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Portuguese Pages 738 [740] Year 2000
OLIVER
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Uma vida
O poder real em confronto com 0
Parlamento. conflitos religiosos, duas
suerras civis. um rei julgado e
No centro de tudo Isso. na ERRO convulsionada Inelaterra do século YVIL estava Oliver Cromwell, herdeiro de linhagem nobre. puritano convicto que se transformou em um dos mais
marcantes e polêmicos personagens da história da Grã-Bretanha. Personagem que Antonia Fraser apresenta aqui em toda a sua complexidade. livre de
RASTRO
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Eleito para à Câmara dos Comuns em 640. Cromwell (descendente de Thomas Cromwell. um dos principais colaboradores de Henrique VIT) logo se transformou em líder da oposição ao autoritarismo real. representado por Curtos |. Na primeira Guerra Civil. de 1642 a 1646. revelou grande competencia multar. com à formação de um regimento de cavalaria composto por RONCeRI TLC
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ANTONIA FRASER
Oliver
Cromwell
Uma vida
Tradução de MARCOS AARÃO REIS
EDITORMARECORMD RIO DE JANEIRO * SÃO PAULO
2000
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
F92o
Fraser, Antonia, 1932-
Oliver Cromwell: uma vida / Antonia Fraser; tradução de
Marcos Aarão Reis. — Rio de Janeiro: Record, 2000.
Tradução de: Cromwell: our chief ofmen Inclui bibliografia ISBN 85-01-04995-6 1. Cromwell, Oliver, 1599-1658 — Biografia. 2. Chefes de Estado — Grã-Bretanha — Biografia. 3. Grã-Bretanha— História = Commonwealth e Protetorado, 1649-1660. 1. Título.
99.068]
CDD - 923.242
CDU - 92(CROMWELL, O.)
Título original em inglês: CROMWELL: OUR CHIEF OF MEN
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Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Proibida a venda desta edição em Portugal e resto da Europa.
E
Copyright O 1973 by Antonia Fraser
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 —Tel.: 585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil
ISBN 85-01-04995-6 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052
Rio de Janeiro, RJ— 20922-970
ESSAS Ra Nota da Autora 9 Calendário de eventos ocorridos durante a vida de Oliver Cromwell
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Sumário
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PARTE UM: O GOVERNO DE SI MESMO
1 2 3 4
Um cavalheiro nato 19 Seus próprios campos 39 Crescendo para a autoridade Grande Reprimenda 83
61
PARTE DOIS: GUERRA E PAZ
5 Nobre e enérgico coronel Cromwell
6 Flanco de ferro 139 7 Vitória feliz 169
8 9 10 11
Brigando entre si 197 Ojogo de cartas 223 A guerra perniciosa 249 Providência e necessidade
109
271
PARTE TRÊS: A COMUNIDADE DA INGLATERRA 12
Tudo se renova
303
13 Irlanda: O derramamento de sangue 14 Escócia: A decisão da causa 357
329
13
6
ANTONIA
FRASER
15 A organização da nação 387 16 Às vésperas das profecias 419 PARTE QUATRO: LORDE PROTETOR
17 Grandeza
447
18 Urzes e espinhos 479 19 A serviço no mundo 511 20 Judeus e generais 543 21 Um cetro real 573 22 Velho Oliver, novas idéias
23 O grande capitão 635 24 As cinzas de Cromwell Notas
Índice
681
707
603
657
A Cromwell, nosso líder,
Que entre as brumas da guerra e rudes detrações, Guiado pela fé e fortaleza sem igual, Percorreu um caminho glorioso rumo à paz. John Milton
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Escrever a biografia de Oliver Cromwell é reconhecidamente uma tarefa ambiciosa. Em vista da maravilhosa riqueza de material existente a respeito do assunto, para não falar dos grandes pesquisadores do século XVII que espreitam a nação, espero que a proposta não pareça pretensiosa. O que pretendi, porém, foi algo bem diferente do que objetivaram os estudiosos cujas obras me trouxeram tantos benefícios: apenas resgatar a personalidade de Oliver Cromwell da obscuridade em que ela aparentemente caíra por força de uma historiografia fortemente concentrada nos aspectos políticos e econômicos — é uma característica de nossa época. O mínimo que se pode dizer é que Cromwell terá sido o maior dos ingleses. Na esperança de colocar ao alcance do leitor comum um pouco desse homem extraordinário, dediquei-me à tarefa — como disse um historiador, meio de brincadeira — de “humanizar”
Oliver Cromwell. Assim, estou em débito com todos aqueles que já estudaram o assunto. Só em termos de biografia, existem dois excelentes estudos modernos: The Lora Protector: Religion and Politics in the Life of Oliver Cromwell (1955), de Robert St Paul, e God's Englishman: Oliver Cromwell and the English Revolution (1970), de Christopher Hill, cujos subtítulos demonstram o caráter especial
da abordagem. Há uma outra biografia nuito interessante, escrita por John Buchan e publicada pela primeira vez há quarenta anos; ainda mais antigo é o inigualável Oliver Cromwell and the Rule of the Puritans in England (1900), de sir Charles Firth. Para não mencionar a pletora de obras pertinentes à matéria, entre as quais se destaca, como padrão de referência, a edição de quatro volumes Writings and Speeches, por W. C. Abbott, que substituiu a obra equivalente de Carlyle, emendada pela sra. Lomas. Mantive o critério de só
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FRASER
incluir material relevante à compreensão da natureza do homem em si ou que contribuísse efetivamente para compor um retrato completo do seu caráter. Tomei portanto as liberdades de praxe, corrigindo a ortografia e parafraseando documentos, quando isso me pareceu necessário, de modo a facilitar o entendimento do leitor médio atual. Também ignorei que c ano, no calendário daquela época, começava em 25 de março e usei o sistema de datas moderno a partir de 1º de janeiro. Gostaria de agradecer, particularmente, ao duque de Sutherland, que permitiu a consulta aos manuscritos de Brid-
gewater; a lady Celia Milnes-Coates, sir Berwick Lechmere, baronete, Raleigh Trevelyan e /ord Tollemache, que me deram acesso a seus respectivos manuscritos; ao primeiro-ministro Rt Hon. Edward Heath, e ao presidente do Chequers Trust, que me permitiram reproduzir imagens e documentos. Ao administrador e curador do Museu
Cromwell, em Huntingdon,
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Wormald, pela permissão de reproduzir quadros, relíquias e documentos. Apoiei-me bastante não apenas nas obras de outros autores, que fiz questão de mencionar nas referências, mas ainda nos conselhos de alguns especialistas. Sou muito grata ao dr. Maurice Ashley, presidente da Associação Cromwell, por sua generosa ajuda em todos os estágios, além das críticas muito valiosas que fez ao meu manuscrito — as falhas, evidentemente, são minhas; a H. G. Tibbutt, que me apresentou à Biblioteca do dr. Williams e indicou inúmeras leituras válidas, além de ler as provas finais deste livro; e ao general-de-brigada Peter Young, extremamente amável na verificação dos mapas.
Agradeço toda a ajuda que recebi das seguintes pessoas e instituições: Nigel Abercrombie, sir John Ainsworth, baronete; Biblioteca Nacional da Irlanda; Jonathan Aitken; A. C. Aylward, notário de Huntingdon & Peter-
borough; professor Thomas Barnes e o bibliotecário da Universidade de Berkeley, Califórnia; sr. Geoffrey Berners, sr. E. G. W. Bill, da Biblioteca do palácio de Lambeth, dr. Christopher Bland; dr. Karl Bottigheimer; sr. M. 5. Bull, de Putney; srta. Anne Caiger, da Biblioteca de Huntingdon, Califórnia; sr. Robert Carvalho, sr. Edmund de Rothschild e a Biblioteca Judaica, por
sua assistência com relação à questão da admissão dos judeus; frei J. Clancy S. J.; sr. J. W. Cockburn, bibliotecário municipal de Edimburgo; sr. E. J. Cowan, da Universidade de Edimburgo; tenente-coronel Leslie Cromwell; dr. Chalmers Davidson e sr. E. Gaskell, bibliotecário do Instituto Wellcome
de História da Medicina, por consultas acerca da questão da saúde e da morte de Cromwell; sr. R. N. Dore; dr. A. 1. Doyle, da Biblioteca Universitária
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de Durham; marquês de Exeter; frei Francis Edwards S. J., por permitir o manuseio dos manuscritos de Farm St.; sr. J. M. Farrar, do cartório do condado do Cambridgeshire; dr. Roger Fiske; conde Fitzwilliam; sr. Michael Foot M. PB; sr. R. M. Gard, do cartório do condado de Northumberland; professor
Alexander Gieysztor, do Instituto Histórico de Varsóvia, pela pesquisa sobre a suposta correspondência de Cromwell com Chmielnicki; sr. Peter Foster;
sra. I. M. Hare, representando a família Cromwell Bush; sr. Nicholas e /ady Henderson, da Embaixada Britânica, Varsóvia; dr. J. Hetherington, de
Birmingham; sra. Margaret Hodson, de Rugeley; dr. A. E. J. Hollaender, da Biblioteca da Câmara Municipal; sr. J. P C. Kent, do Departamento de Moedas & Medalhas do Museu Britânico; professor Frank Kermode; hon. Sra. Edward Kidd de Holders, e o Museu de Bridgetown, em Barbados; sr. A. Lewis, do Museu de Harris, Preston; o presidente da Câmara dos Comuns, o right hon. Selwyin Lloyd e sra. H. M. Prophet, do Departamento do Meio Ambiente, a respeito do retrato do presidente do parlamento, Lenthall; sr William McIntyre, secretário do Conselho de Gainsborough; sra. Alice
Roosevelt Longworth; dr. A. L. Murray, mantenedor assistente do Arquivo da
Escócia; dr. G. E Nuttall; sr. E. C. Newton, do cartório do condado de Sussex do Leste, por permissão para ler os Bright Papers e material inédito a respeito do Protectoral Trade Committee; sra. Owen, da Biblioteca da Uni-
versidade de Cambridge; meu irmão, sr. Thomas Pakenham, do castelo de
Tullynally, pelo uso dos manuscritos Pakenham; dr. S. R. Parks, curador da Coleção Osborn, Biblioteca da Universidade de Yale; rev. G. H. Parsons, de
Burford; sr. C. E Perunddock, então secretário do Chequers Trust; meu tio,
sr. Anthony Powell, por informação concernente à origem galesa dos Cromwell; rev. R. L. Powell, de All Saints, Huntingdon; rev. E. L. B. €. Rogers, de St. Giles”, Cripplegate; dr. T. I. Rae, da Biblioteca Nacional da Escócia; lord De Ramsey; sir David Renton MP; sir Ronald Roxburgh; dr. E. €. Smail; sir: Christopher e /ady Soames, da Embaixada Britânica, em Paris; sr. John Seymour; sr. Patrick Shallard; sr. Quentin Skinner, por ser tão amável,
mostrando-me seu ensaio inédito sobre Thomas Hobbes, em The Interregnum, organizado pelo professor G. E. Aylmer; sr. C. Stafford Northcote; sr. E B.
Stitt, do cartório do Staffordshire; dr. Roy Strong, diretor da National Portrait Gallery, por sua ajuda no tocante às ilustrações; sr. G. H. Tait, mantenedor do
Departamento de Antiguidades Britânicas & Medievais do Museu Britânico; sr. Taylor Milne, então secretário do Instituto de Pesquisa Histórica; sr. Keith
Thomas; monsicur Marcel Thomas, Conservateur des Manuscrits de la
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ANTONIA
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Bibliothêque Nationale de Paris; sr. E. W. Tomlin, adido cultural da Embai-
xada Britânica, em Paris; dr. Thomas Wall, da Comissão de Folclore Irlan-
dês; sr. Esmond Warner; dr. Charles Webster; sr. L. Peter Wenham; sr. Eric W. White; sr. A. D. Williams, do Pembroke Castle Museum; capitão e sra. Malcolm Wombwell, do priorado de Newburgh; srta. Lilian Wood; sr. Douglas Woodruff. Gostaria de agradecer ao sr. Tony Godwin e à srta. Gila Curtis, de Weindenfeld e Nicolson; sr. Bob Gottlieb, de Knopf; sr. Graham Watson, de Curtis Brown; o bibliotecário e todo o pessoal da Casa dos Comuns; sr.
Douglas Matthews, da Biblioteca de Londres; sra. Kate Fleming, pela ajuda em checar referências; minha secretária e sua substituta temporária, sra. Charmian Gibson, e as sras. Jane Sykes e V. Williams e sua equipe, pela digitação. Finalmente, cumpre registrar os beneficios da crítica de alta quali-
dade que recebi de minha mãe, algo que somente ela poderia me propiciar, e de meu pai, autor de algumas idéias igualmente ímpares acerca da natureza do puritanismo. Quanto a meu marido e meus filhos, que ficaram na linha de batalha por quatro anos, imagino que deveria existir uma medalha de campanha destinada às famílias daqueles que escrevem livros muito longos, com a
qual todos eles, do mais velho ao mais jovem, certamente seriam agraciados.
Eilean Aigas, 3 de setembro de 1972
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Calendário de eventos ocorridos durante a vida de Oliver Cromwell
1599 1603
25 de abril
James 1
1616 1617
Junho
1620
22 de agosto
1621 1623 1624. 1625 1626 1628
Março Maio Setembro
1629
1631 1636
Nasce em Huntingdon Morte da rainha Elizabeth. Ascensão do rei
Março
Ingressa no Sidney Sussex College, Cambridge Morte do pai, Robert Cromwell. Deixa Cambridge e volta para casa.
Casamento com Elizabeth Bourchier, em St
Giles, Cripplegate, Londres Nascimento de seu filho Robert Nascimento de seu filho Oliver Nascimento de sua filha Bridget Morte do rei James I. Ascensão do rei
Carlos I Nascimento de seu filho Richard Nascimento de seu filho Henry
Ingressa na Câmara dos Comuns como MP por Huntingdon Petition of Rights [Petição de Direitos] Consulta o médico sir Theodore Mayerne Carlos I dissolve o Parlamento. Cromwell volta ao campo. Nascimento de sua filha Elizabeth (Bettie). Mudança para St Ives
Mudança para Ely
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14
1637 Novembro
1638 1639 1640 1641 1642
Abril Novembro Outubro 27 de novembro
Janeiro
22 de agosto 1643
23 de outubro Fevereiro 13 de maio
28 de julho Setembro
1644
10 de outubro
2 de julho 27 de outubro 1645
1646
9 de dezembro
14 de junho 10 de julho
Outubro 8 de janeiro 27 de abril
24 de junho
FRASER
Nascimento de sua filha Mary Caso do Ship Money [Dinheiro de Navio], argúido contra John Hampden Primeira Guerra dos Bispos. Nascimento de sua filha Frances Morte de seu filho Robert Parlamento Curto. MP por Cambridge Parlamento Longo. MP por Cambridge “Massacres Irlandeses” Grande Reprimenda Os Cinco Membros escapam de ser presos pelo rei Carlos I, que deixa Londres O rei ergue seu estandarte em Nottingham Batalha de Edgehill Cromwell é promovido a coronel das tropas da Associação do Leste Batalha de Grantham Batalha de Gainsborough. Cromwell é nomeado governador da ilha de Ely. O Parlamento aceita a Solemn League and Covenant [Solene Associação e Convenção]
escocesa, permitindo o presbiterianismo na Escócia, Inglaterra e Irlanda Batalha de Winceby Cromwell é promovido a general-de-exército Morte de seu filho Oliver Batalha de Marston Moor Segunda Batalha de Newbury Proposto o Decreto de Abnegação Batalha de Naseby Batalha de Langport Cerco de Basing House Início da campanha de primavera, em Crediton, Devonshire
O rei escapa e busca o apoio dos escoceses em Newark Rendição de Oxford
CROMWELL 1647
fevereiro Março em diante 3 de junho 6 de agosto 28 de outubro 11 de novembro
1648
3 de janeiro 30 de abril 3 de maio Julho 17 de agosto Outubro 6 de dezembro
1649
20 de janeiro 30 de janeiro Maio 15 de agosto
1650
11 de setembro Outubro em diante Abril 26 de maio
Junho 3 de setembro 1651
Fevereiro Maio 3 de setembro Dezembro
15
Cromwell doente Agitações no exército O corneteiro Joyce detém o rei em Holdenby House Cromwell deixa Londres e adere ao exército O exército marcha sobre Londres Começo dos debates no exército em St Mary's Church, Putney O rei foge para Carisbrooke Castle, na ilha de Wight Votação do Nenhum Contato Eclosão da Segunda Guerra Civil Cromwell deixa Londres e vai para Gales Cerco do Castelo de Pembroke Cerco de Preston, no Lancashire
Cromwell em Edimburgo. Cerco do Castelo
de Pontefract, no Yorkshire
Expurgo de Pride. Cromwell chega a Londres durante a noite Abertura do julgamento do rei Carlos 1 Execução do rei Carlos I Cromwell encerra o motim dos levellers em Burford Desembarque na Irlanda Batalha de Drogheda Cerco de Wexford Cerco de Clonmel Cromwell deixa a Irlanda e regressa à Inglaterra Deixa Londres e vai para a Escócia Batalha de Dunbar Cromwell doente, em Edimburgo
Novamente doente Batalha de Worcester Primeira discussão com Whitelocke sobre a organização da nação
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1652 1653
1654
1655
Abril Novembro 20 de abril
Julho
Cromwell se torna Protetor Paz com a Holanda
Dezembro
Começo da expedição às Índias Ocidentais Cromwell dissolve o Primeiro Parlamento do Protetorado Levante de Penruddock Fracasso do ataque a Hispaniola Apoio aos protestantes do Piemonte Conquista da Jamaica Nomeação dos generais Segundo Parlamento do Protetorado Atentado de Sindercombe Assinatura do tratado anglo-francês, visando ao ataque às possessões holandesas na América Cromwell recebe a oferta da coroa Rejeita a coroa Lorde Protetor Mardyck adquirido pela Inglaterra Casamentos de Mary e Frances Cromwell dissolve Segundo Parlamento do Protetorado Batalha de Dunes — vitória das forças anglofrancesas contra as espanholas Conquista de Dunquerque Morte de sua filha Bettie Claypole Morte de Oliver Cromwell
22 de janeiro
Abril Maio em diante
9 de agosto 17 de setembro
23 de março
1658
Março-maio 8 de maio 26 de junho Setembro Novembro 4 de fevereiro
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6 de agosto 3 de setembro
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Primeira guerra anglo-holandesa Segunda discussão com Whitelocke Dissolução do “Rabo” do Parlamento Longo Início do Parlamento de Barebones
16 de dezembro Abril Setembro
Março
1656 1657
FRASER
Primeiro Parlamento do Protetorado Morre a mãe de Cromwell
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O governo de si mesmo
Antes de mais nada ele adquiriu o governo de si mesmo e sobre si mesmo alcançou as mais extraordinárias vitórias, de tal sorte que desde o primeiro instante em que enfrentou o inimigo externo já era um veterano combatente, profundo conhecedor das exigências e armadilhas da guerra.
JoHN MILTON, sobre Cromwell
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1 Um cavalheiro nato Nasci fidalgo, tão distante das mais elevadas posições quanto da obscuridade. CROMWELL
uma primavera, às vésperas do século XVII, nasceu um filho de Robert N e Elizabeth Cromwell, de Huntingdon. A criança foi chamada de
Oliver; a data era 25 de abril de 1599, quatro anos antes de encerrar-se o longo reinado de Elizabeth I. A casa em que ocorreu esse nascimento situase na High Street: apesar de sua modéstia, a residência tem seus próprios ecos históricos — tendo sido construída no local de um convento agostiniano, sua estrutura ergueu-se sobre a fundação original e aproveitou muitas de suas pedras.* Oliver teria vindo ao mundo às primeiras horas da manhã; essa versão, divulgada posteriormente, talvez correspondesse a preocupações contemporãneas com horóscopos. Enquanto a data do nascimento dava a ele um Sol na resplandecente expansividade de Touro, a hora mais cedo acrescentava um ascendente, em Áries, governado pelo guerreiro Marte; dessa forma, os fatos ocorridos na terra teriam a aprovação das estrelas — muitos esperavam que assim fosse. No século XVIII, as estimativas de John Partridge, “contendo a natividade daquele maravilhoso fenômeno — Oliver Cromwell — metodicamente calculada conforme os cânones placidianos”, atribuíram o nascimento, “Conhecida atualmente como Casa de Cromwell, é usada como biblioteca pelo Centro de Pesquisas de Huntingdon. Em 1968, um grande brasão de Cromwell foi pintado na sua fachada.
20
ANTONIA
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aproximadamente, à 1:30 da madrugada — signo de Áries, regido por Marte, dotado de “uma inteligência multifacetada, natural e congênita”, graças à conjunção de Mercúrio com o Sol. Já Thomas Booker, astrólogo de almanaque, fixou a vinda de Cromwell ao mundo às 3h, o que acarretou a ascen dência de Áries. Além disso, John Aubrey ouvira dizer que Cromwell, como Thomas Hobbes, possuía um satellitium ou conjunção de cinco dos sete planetas no ascendente, destinando-o a se tornar “mais eminente em vida do que o comum dos mortais”.! Numa época em que tais fenômenos eram levados
extremamente a sério não apenas pelos crédulos, mas ainda por muitos membros proeminentes do próprio partido de Cromwell, é perfeitamente possível que a informação em que tais adivinhações se baseavam fosse sugerida pelo próprio interessado. Fonte ainda mais provável teria sido a sra. Cromwell, sua mãe, que viveu até uma idade incrível, no centro da corte, em Whitehall, onde qualquer astrólogo poderia ter se aproximado dela facilmente; ou talvez
ela lembrasse, melhor do que ninguém, a hora do parto. Em todo caso, o nascimento nas primeiras horas da manhã parece ter alguma base confiável. Nenhum evento futuro questionou tais fatos, exceto a singular história de um “non-juror” [pessoa que não fez juramento], herdeiro da casa em que Oliver nasceu, segundo o qual o quarto do bebê fora adornado com uma tapeçaria diabólica — poderosa e maléfica influência pós-natal exercida sobre o recém-nascido.? Enfim, como a maior parte de seus irmãos, Oliver escapou das garras da mortalidade infantil: embora a taxa de natimortos estivesse começando a declinar, somente 10% da população chegavam aos quarenta anos de idade. Das dez crianças registradas como filhos dos Cromwell, sete sobreviveram. Mais importante que isso foi o fato de que seis dos rebentos eram meninas — Oliver cresceu como o único garoto em meio a uma grande ninhada de irmãs. O primogênito, Henry, batizado em agosto de 1595, quatro anos antes do nascimento de Oliver, morreu em data ignorada, mas certa-
mente bem antes do pai; em 1617, dez anos depois de Oliver, um outro menino, Robert, nasceu e morreu quase imediatamente. Houve ainda Joan, nas-
cida em 1592, morta antes que Oliver tivesse completado dois anos; Elizabeth, cerca de seis anos mais velha que Oliver; Catherine, dois anos mais velha; Margaret, dois anos mais nova; Anna, nascida no ano seguinte; Jane, nascida
três anos depois, em 1605; e Robina, nascida em data desconhecida. Se a velha sra, Cromwell estava com 89 anos ao morrer, em
1654, teria então 34
quando Oliver nasceu embora Thurloe, secretário de Estado, atribuísse a ela
=.
Er
EE
CROMWELL
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cinco anos mais.* O certo é que Oliver foi um dos filhos nascidos já na sua maturidade e o único a sobreviver até a idade adulta. Portanto, não se carece
da percepção de um psicólogo para ver que as naturais ambições familiares
concentraram-se nele, que, quando chegasse a hora, ele teria de assumir cer-
tas responsabilidades em nome da sua grei. Nos anos subsegientes, ao longo de toda a infância e até mesmo na maturidade, Oliver foi envolvido pelo tépido abraço do amor materno, um excesso de mimos que um crítico confesso apontaria como fator do seu “temperamento rude e intratável”. Não é nenhuma fantasia imaginar que sua posição masculina sem rival, nas fileiras mais jovens da família, tivesse dado origem a essa predisposição. Na verdade, porém, os pequenos Cromwell não consti-
tuíam a primeira família daquela senhora que, na idade provecta, suscitaria a admiração de embaixadores estrangeiros, que a consideravam “uma mulher amadurecida, dotada de sabedoria e grande prudência”. A mãe de Oliver, em solteira Elizabeth Steward, casou-se pela primeira
vez com William Lynne, filho e herdeiro de John Lynne, de Bassingbourn; o túmulo de seu marido, falecido em 1589, e o da única filha desse breve matrimônio, Katherine, morta ainda bebê, estão na catedral de Ely. Elizabeth
ficou com o dote do primeiro casamento, cerca de sessenta libras anuais, levando-o para o segundo matrimônio. É possível que tenha mantido a “cerve-
jaria? de Lynne, tradicionalmente atribuída à família Cromwell. Outros detalhes de seus primeiros esponsais desapareceram na bruma. Num retrato, na
meia-idade, ela demonstra um ar absolutamente inglês, olhar altivo de quem conhece a posição que desfruta na sociedade; rosto e nariz alongados, e as pálpebras pesadas que transmitiu ao filho, face comum, mas não totalmente destituída de encanto, e muita força. É fácil admitir a precisão de Clarendon ao descrevê-la como uma “mulher decente”.º O status social de Elizabeth Steward dispensa justificativas. Filha de uma respeitável família de Norfolk, seu pai — “cavalheiro de adequada fortuna”
— cultivou as terras da catedral nas imediações de Ely, um trabalho lucrativo,
mais tarde continuado pelo irmão dela, Thomas Steward. A coincidência dos sobrenomes excitaria Os críticos: não eram os Stewart origem da casa real dos Stuart, referência ao papel deles na corte escocesa antes do casamento curial
de Walter Stewart com Marjorie, filha de Robert Bruce? Numa época obcecada por ancestralidade e presságios, essa justaposição parecia muito provei-
tosa — ou impressionante demais — para ser deixada de lado sem merecer a devida consideração dada aos surpreendentes propósitos do destino. Assim,
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decidiu-se agraciar Oliver com uma conveniente ascendência Stewart, fazen-
do-se sua linhagem remontar ao naufrágio de um príncipe escocês, na costa de Norfolk, em 1406. Contudo investigação mais cética prova que os Steward derivaram dos Styward, de Calais, e não dos Stewart, da Escócia. Indu-
bitavelmente estranho é que os brasões daqueles incluíssem traços da ascendência escocesa, o que certamente teria sido importante caso ela fosse tida
como genuína. Além disso, havia numerosos Styward, de Swaffham, e residentes em Wells, Norfolk, muito antes da data do suposto acidente marítimo; mais desconcertante ainda é que o primeiro John Styward, de Calais, teria sido de
ascendência relativamente plebéia. Talvez não fosse nem um pouco espantoso
que os Steward crescessem em proeminência, com base nas terras monásticas em torno de Ramsey e Ely, estabelecendo vínculos com Londres, ao mesmo tempo que alimentavam em suas mentes empreendedoras idéias de um
pedigree real, forma de enfatizar a adequação da família à grandeza. Na verdade, porém, nada disso se baseava em fatos concretos — nem Oliver, enquanto
viveu, deu ouvidos a qualquer opinião séria sobre seu suposto parentesco com Carlos Stuart, homem que passara a considerar o principal inimigo da Inglaterra. Em Edimburgo, no ano de 1651, ele teria comentado em tom de brincadeira, numa conversa com pessoas da família de sir Walter Stewart, partidário do rei, que sua mãe pertencia à mesma cepa. O incidente, acompanhado por boas doses de vinho das Canárias, presente do nobre, e outro tanto enco-
mendado pelo próprio Oliver, constituiria exemplo do seu desejo de cativar Os escoceses, mais do que evidência de quaisquer sentimentos profundos referentes a antepassados. Significância muito maior tem o fato dele consentir
que James, filho menor de sir Walter, manuseasse a empunhadura de uma de suas espadas, chamando-o de “pequeno capitão”, e, ao final de tudo isso, comentar que /ady Stewart podia considerar-se “muito menos monarquista”.” O próprio Oliver, com certeza, haveria de concordar com o julgamento de um de seus primeiros biógrafos, o poeta menor Robert Flecknoe, irlandês
e padre católico, mas apesar disso altamente elogioso, talvez por ter publicado sua obra em 1659, antes da Restauração, enunciando: “Enquanto tantos atribuem sua origem a principados, eu atribuirei seus principados a ele próprio, dizendo apenas que nasceu cavalheiro.” Tal ponto de vista era partilhado por Cromwell. Muitos anos depois, já como Lorde Protetor, num dos famo-
Sos discursos que pronunciou perante o Parlamento, alegando ter chegado a “hora de olhar para trás”, ele disse: “Nasci cavalheiro, longe das mais eleva-
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das posições, mas também da obscuridade.”* No fim do século XVI, nenhuma avaliação poderia ser mais justa, e seu pai, Robert Cromwell, segundo filho de um fidalgo, na época ocupava posição mediana, vale dizer, era possível
uma razoável mobilidade social para cima — talvez rumo à aristocracia, ultrapassando os ancestrais — ou para baixo — na direção das fileiras dos pequenos proprietários de terras. Conforme Flecknoe colocou, a nobreza seria “superior”, mas não necessariamente “melhor do que ele”. Uma coisa, todavia, parecia bastante evidente, e as firmes palavras de Oliver o confirmavam. Robert Cromwell e sua família não se identificavam nem um pouco com os yeomen.* Essa era uma distinção que os mais radicais do que Oliver também traçariam: John Lilburne, capturado após a batalha de Brentford e levado a julgamento, recusou-se a peticionar perante o tribunal como “pequeno pro-
prietário rural”, sob a alegação de pertencer a uma família de cavalheiros, desde o tempo de Guilherme, o Conquistador.” A longevidade da estirpe dos Cromwell era algo menos do que o alardeado por Lilburne. Aquela “muito antiga família fidalga”, como James Heath, autor de uma das mais depreciativas obras sobre a juventude de Oliver** admitiu, fundara-se no patrocínio real, durante o reinado de Henrique VIII, poucas gerações antes, portanto, do nascimento de seu filho mais ilustre. Os primeiros Cromwell tinham vindo de Nottinghamshire, onde o nome significava “córrego sinuoso”, um conceito poético derivado e parcialmente reduzido do inglês arcaico crumb [tortuoso]. Havia mais uma proemi-
nente família Cromwell, mas que desapareceu no fim do reinado de Henrique VI. Thomas, representante dos novos Cromwell, ao sair à luz forte da corte como ministro-chefe de Henrique VIII, em 1520, desdenhou os laços que porventura poderia estabelecer com o antigo ramo, pretextando que “não
vestiria o casaco de outro homem, para que o dono não o arrancasse por cima
das orelhas”. Uma modéstia, afinal, bastante justificada, pois seu pai, Walter Cromwell, costumava ser descrito como pisoeiro, ferreiro ou cervejeiro. No
século XV, o avô, John, compactador de tecidos, viera de Norwell, no Nottinghamshire, para Wimbledon, as cercanias de Londres, a fim de dar
prosseguimento a seu ofício. Um de seus filhos fora, de fato, cervejeiro, e
dois dos filhos desse cervejeiro seguiram a profissão do pai. Walter Cromwell
“Classe social dos últimos livres proprietários de terra, situada pouco abaixo da pequena
nobreza. (N. do T.) “*Publicada pela primeira vez, em 1663, no auge do ódio pós-Restauração.
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viveu em Putney, possuindo terras perto do Tâmisa, com uma hospedaria na Cervejaria Lane; na época de sua morte, em 1516, amealhara belas proprie-
dades na vizinhança, não somente em Putney, mas também em Wandsworth e Roehampton. É digno de nota que tenha sido escolhido condestável de Putney por duas vezes, cargo paroquial que costumava ser desempenhado em rodízio pelos principais chefes de família da região. Thomas Cromwell tinha, por conseguinte, uma origem humilde, nada sólida e muito menos justa.!º Oliver, porém, não descendia do famoso — ou famigerado — Thomas
Cromwell, mas da filha de Walter, Katherine. Foi o casamento dessa jovem com Morgan Williams que resultou na indômita linha inglesa dos Cromwell
— aquele traço exótico, de sangue celta, que mesmo um século depois imagina-se ter dado a eles o gênio peculiar que floresceu no misterioso caráter de Oliver Cromwell. Portanto, estrito senso, os Cromwell — o ramo de Oliver
— não eram inteiramente Cromwell, mas, de acordo com a regra inglesa de sobrenomes, Williams. Os descendentes diretos de Thomas, enobrecidos como condes de Ardglass, lutaram do lado realista na guerra civil. É fácil compreender, porém, que a família de um jovem empreendedor desejasse vincular seu próprio nome à estrela em ascensão de um ministro do rei, especialmente considerando que no século XVI, em Gales, o comportamento em relação a sobrenomes nada tinha a ver com o que adotamos hoje em dia. Morgan Williams iniciara a vida como Morgan ap William [filho de William], conforme a tradicional moda galesa de identificar a prole a partir do pai, o segundo nome tendendo a mudar, a cada geração, a menos que um filho recebesse o mesmo nome de batismo de seu progenitor, caso em que ele
passaria a ser conhecido como Fychan [Filho]. O sistema inglês de patronímicos estáveis estava apenas começando a ser adotado, e de forma lenta, pelo povo de Gales: foi somente nesse período, por exemplo, que a família dos Sitsyllt se estabeleceu na' Inglaterra, onde passou a ser conhecida como Cecil. De modo geral, os de Gales limitavam-se a acrescentar um s ao nome
de batismo do pai para se anglicizarem — como fez Morgan ap William —, daí tantos sobrenomes anglo-galeses tenderem a se basear em prenomes masculinos. Sendo Williams um conceito comparativamente novo para Morgan, não
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surpreende que seu filho, Richard, considerasse tão fácil assumir o nome de solteira da mãe, Cromwell. A aceitação voluntária do nome inglês mais célebre era perfeitamente compreensível. O brasão de Williams foi usado pelos descendentes de Richard, e a família continuou por várias gerações a constar
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como “aliás Williams” em livros oficiais ou documentos, inclusive num Re-
gistro de Venda assinado e cumprido pelo tio de Oliver, em 1600 — uma querela oficial concernente ao testamento de seu pai —, além do próprio contrato de casamento de Oliver. Já como Lorde Protetor, um de seus parentes realistas escreveu-lhe em termos bastante francos, dizendo que sempre tivera problemas consideráveis em ser aceito com o nome de Cromwell e que, agora que Oliver o tornara odioso, talvez fosse a hora de reverter a Williams; após a Restauração, o ramo mais antigo da família, os herdeiros de seu tio realmente o fez. Poder-se-ia considerar justiça poética o fato de Oliver, mais tarde, ser acusado por muitos crimes perpetrados por seu tio-trisavô, Thomas, especialmente depredações arquitetônicas:
Uma pequena marca pode, todavia, causar um grande mal, Como uma migalha entalada na garganta de um homem (...)
Tal era a profecia espúria, inventada na época dos Tudor, para deslustrar a honra de Thomas Cromwell.!! O crescente folclore acabaria por fixar o “crumb” na garganta de Oliver, principalmente quando se tratou de partilhar a responsabilidade pelas demolições de monastérios e igrejas. Talvez isso não passasse de uma vingança do destino contra uma família que adotara o nome por razões puramente oportunistas.
Foi William ap Ievan [filho de Tevan], pai de Morgan, o primeiro a fazer uma transferência bem-sucedida de Gales para a Inglaterra. Nascido na paróquia de Newchurch, perto de Cardiff, e conhecido como “o melhor arqueiro daqueles dias”, ele serviu a Jasper, duque de Bedford, depois lorde de Glamorgan. Impressionado com a qualidade do seu trabalho, o nobre enviouo ao sobrinho, Henrique VII, recém-coroado rei da Inglaterra; na corte inglesa, William se casou, reunindo ganhos suficientes, em postos ou privilégios da coroa, que o tornaram capaz de adquirir propriedades. Assim, a
chegada de Morgan e seu pai às pastagens inglesas foi concomitante à aproximação dos galeses com a Inglaterra de Henrique VII. Na idealização de alguns bardos, a ascensão de Henrique Tudor ao trono cumpriu antiga profecia, segundo a qual um galês haveria de conquistar a Inglaterra; historicamente descendentes dos antigos bretões, os galeses eram os governantes de direito da Grã-Bretanha, cruelmente privados da sua herança pelos saxônicos.
Tais vaticínios seriam revividos em favor de Oliver, na época do seu Proteto-
rado, por alguns de seus admiradores.
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Podemos identificar os ancestrais galeses de Oliver Cromwell com algu-
ma exatidão, já que o antigo costume de anexar o nome do pai ao do filho facilita a pesquisa genealógica.* Oriundos de uma família da pequena nobreza, eles possuíam um patrimônio em torno de duzentas a trezentas libras anuais. Quando Cromwell adquiriu fama, particularmente depois de se tornar Lorde
Protetor, necessitando de armas e selos pessoais, a tentação de resgatar a
magnificência de seus antepassados galeses superou os ditames da precisão histórica. Felizmente, uma detalhada árvore de família, conhecida como Lhyfr Baglan [Livro de Baglan], fora compilada, entre 1600 e 1607, por um certo
John Williams, do Monmouthshire. Embora esse Williams estivesse claramente interessado em conectar-se a Thomas Cromwell, ele não poderia ter
cogitado de glorificar, ainda que veladamente, o nome de Oliver, então pouco
mais que um bebê." A linhagem de Oliver remonta a nomes que seu biógrafo do século XVIII, o reverendo Mark Noble, desprezaria com típica condescendência inglesa: a “história deles era pouquíssimo satisfatória, representando apenas alguma experiência”.** O genealogista atual terá uma perspectiva mais esclarecida, partindo de um certo sir Guyon, le Grant, aventureiro normando do final do século XT, ou início do século XII, integrante daquele grupo proveniente da Inglaterra e conhecido como Advenae [forasteiros], que se estabeleceu em Gales. Sua chegada coincidiria com o período em que os normandos, principalmente os da área de Gloucester, invadiram o sul de Gales,
especialmente a região de Glamorgan — muitos deles se casaram e adotaram
a nomenclatura galesa. Assim, indo o mais longe possível na pesquisa do so-
brenome de Oliver Cromwell, poderíamos afirmar, com base em regras estrita-
mente inglesas, que Grant, e não Williams, seria seu nome correto: afinal, foi só depois de sir Gwrgenau, filho de Guyon, que seus descendentes, obedecendo ao uso galês, começaram
a trocar de nome
a cada
geração
—
Gwrgenau
*Os de Gales eram muito rigorosos com seus pedigrees, dado o funcionamento do seu sistema legal; a terra pertencia a determinados grupos, impondo-se multas coletivas a certos crimes, tais como o assassinato, o que obrigava a todos a manutenção de um rígido controle sobre as alianças familiares. Por tal razão, a genealogia galesa, ainda que por uma questão de orgulho, não constituía prova de riqueza, como no caso dos ingleses. **Memoirs of the Protectoral-House of Cromwell, de Noble, publicado pela primeira vez em 1787, permanece uma valiosa fonte de detalhes íntimos acerca da vida de Oliver, posto que O autor estava em posição de reunir e peneirar muitas lendas referentes a ele, evitando que se perdessem com a passagem do tempo. Nisso, ele foi auxiliado pela amizade das senhoritas Ss Letitia Cromwell, de Hampstead, descendentes do Protetor, guardiãs de numerosas tradições de família,
assim como de verdadeiras relíquias e retratos.!*
DA»
MS SET
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Fychan foi sucedido por Goronwy ap Gwrgenau etc. etc. até que ao vários séculos nasceu Ievan ap Morgan, pai de William ap Ievan, Morgan Williams. É bom imaginar, mesmo sem nenhuma prova material, que Cromwell tinha sua pitada de sangue normando e outro tanto de
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cabo de avô de Oliver sangue
pioneiro. Entretanto, os Grant, rapidamente assimilados, realizaram uma
série ininterrupta de casamentos. Mais tarde resgatou-se o vínculo de Cromwell com os príncipes de Powys, especialmente Madoc ap Mere-
dith, último da estirpe, cujas armas se integraram ao brasão do Lorde
Protetor. Essa descendência, como vimos, não era direta. No entanto, ten-
do em vista as relações familiares galesas, evidentemente os Cromwell
bem podiam descender dos príncipes de Powys, e na linha feminina, sem dúvida, isso terá ocorrido diversas vezes. É interessante observar que passado um século, após a emigração da família para a Inglaterra, quando o trineto de Morgan Williams — Oliver Cromwell — chegou ao ponto mais alto de sua carreira, foi na ascendência galesa que os brasões buscaram armas. A família, firme e lucrativamente anglicizada, ainda preservava orgulhosamente suas raízes. Nos tempos do próprio Morgan Williams, na primeira metade do século
XVI, a corte de Henrique VIII constituía-se numa excelente arena para especuladores interessados em operar em proveito próprio, especialmente depois da dissolução dos monastérios. Havia prêmios valiosos a serem conquistados, particularmente pelos que desfrutassem do favor real. Em 1538, quan-
do a influência de seu famoso tio Thomas ainda era grande, Richard Cromvweil, filho de Morgan Williams, foi agraciado com o grande e rentável convento de freiras existente em Hinchingbrooke e várias outras propriedades. Em data ignorada, ele trocou de sobrenome, em grande parte encorajado pela vontade do rei, que insistia no “modo patronímico de nações civilizadas”
e desaprovava esses aps e naps, que dificultavam a identificação dos descendentes galeses no procedimento judicial inglês — mas isso se deu antes daquela concessão, feita em nome de Cromwell. A história da ascensão progressiva de Richard é esplendidamente cavalheiresca. Ricamente aparelhado, ele entrara
na disputa de um torneio com cavalos cobertos de veludo branco, e seu valor em combate foi equivalente à sua magnificência. Muito satisfeito, O rei
Henrique tirou um anel de diamante do dedo e exclamou: “Tu, a quem já chamei de “Dick”, agora terás um diamante!” Para a felicidade da história fu-
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tura dos Cromwell, Dick tratou de apanhar a pedra; outros benefícios se seguiram, incluindo uma mudança no brasão da família — o leão que segurava
um dardo passou a ostentar um anel.! Feito cavaleiro pelo rei, sir Richard sobreviveu à queda do tio, em 1540, Estabelecendo o poder dos Cromwell nas antigas terras monásticas, a leste das Midlands, foi nomeado sherif * dos Huntingdonshire e Cambridgeshire,
em 1541, ingressando no Parlamento em 1542. Graças à generosidade real, deixou um patrimônio equivalente a cerca de três mil libras, uma fortuna considerável segundo os padrões da época. Seu filho — avô de Oliver =
Henry Cromwell, agraciado com o título pela rainha Elizabeth, em 1563, tornar-se-ia famoso
como
“o cavaleiro dourado”.
De fato, coube a ele
incrementar a opulência da família, concluindo a magnífica edificação de Hinchingbrooke, iniciada por sir Richard: aproveitando parte do velho convento de freiras, a residência tinha esplêndidos tijolos vermelhos, lavrados com figuras geométricas em preto, que Oliver conheceria na infância. Descortinando ampla vista para o campo plano e fértil, próximo às águas do rio Ouse, Hinchingbrooke era bem apropriada ao que sir Henry desejava: moradia familiar de muita suntuosidade; incidentalmente, as janelas de vidro
colorido lembravam rísticas de clã. Sem Henry desposaram assumiu deveres no
as origens galesas da família, ostentando cores caracteromper totalmente seus laços urbanos, siy Richard e sir filhas de prefeitos de Londres. Tal como o pai, sir Henry condado: quatro vezes sheriff do Cambridgeshire e Hun-
tingdonshire, tornou-se membro do Parlamento, onde suas arengas, na opi-
nião de sir Charles Firth, prenunciavam o estilo oratório do neto.'º Assumindo rapidamente os costumes das classes proprietárias de terra, ele foi escolhido para receber a rainha Elizabeth, em Hinchingbrooke, no ano de 1564 — uma estada dispendiosa, mas que poderia propiciar benefícios futuros; as razoáveis somas de dinheiro que distribuía aos pobres de Ramsey não lhe trariam, com certeza, nenhuma recompensa terrena.
Robert Cromwell, futuro pai de Oliver, foi o segundo rebento desse brilhante personagem. Dentre os demais membros da família dignos de registro, inclui-se o quinto filho, mais tarde sir Philip Cromwell, cujas filhas Elizabeth e Frances, casadas com um Hampden e um Whalley, respectivamente, deram +
É
=
a
Comissário distrital da coroa, responsável pelo controle da polícia, das prisões, da execução das sen .
tenças criminais, da convocação e realizaçã o de eleições; nos burgos era nomeado pela corporação municipal, (N. do
T.)
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a Oliver dois primos em primeiro grau, partícipes de importantes círculos puritanos. Mas foi o mais velho, herdeiro do “cavaleiro dourado”, o longevo
sir Oliver Cromwell, que chamou a atenção do mundo, pelo menos até a dramática ascensão político-militar do sobrinho usurpar sua fama. Casado em segundas núpcias com Anne Hooftman, dama de origem holandesa, viúva do financista si” Horatio Palavicini, de antiga família genovesa católica, o fato deu margem a histórias, ainda hoje repetidas, de que o futuro Lorde Protetor teria ascendência judaica. Dois enteados de /ady Anne Cromwell — Baptina e Henry —, prole do primeiro casamento de seu marido, casaram-se com dois de seus filhos, um tipo de arranjo complicado, mas frequentemente aceito, na época, para manter o patrimônio inalterado. Dada a situação financeira declinante de sir Oliver, não havia mesmo outro jeito. Obviamente, os casamentos Palavicini-Cromwell, mais ou menos contemporâneos ao nascimento de Oliver, não tiveram qualquer relevância direta sobre o seu ramo familiar; no entanto, meio século depois, talvez o tratamento favorável dispensado por ele aos judeus tenha conferido ao boato um crédito adicional. A sir Oliver, homem dotado de charme e generosidade, John Dowland dedicou um livro de canções e melopéias; sob seu mando, Hinchingbrooke assegurou tepidez patriarcal às relações com os parentes mais ou menos distantes, incluindo Robert Cromwell e seus filhos. Tal receptividade benevolente era um apanágio de homens da sua posição; as farras colossais que promoveu, entretanto, consumiram a fortuna da família. Armado cavaleiro pela
rainha Elizabeth, em 1598, ele hospedou o rei James I, em 1603, quando de seu triunfante itinerário rumo ao sul, partindo de Edimburgo, para ascender ao trono da Inglaterra. Todos concordaram que Sua Majestade tinha recebido “tamanha acolhida, como igual não tinha sido vista em nenhum outro lugar, desde que partira da Escócia”, mas isso acarretou conseqgiiências fatais. Além da generosa hospitalidade, sir Oliver despejou sobre seu ilustre convidado tantos e tão variados presentes — uma “extraordinária taça de ouro”, “cavalos soberbos”, “falcões caçadores de asas excelentes”, afora a construção de uma janela avarandada, na sala de jantar” — que é fácil entender por que o entusiasmado soberano retornou a Hinchingbrooke em muitas outras ocasiões.
Sua recompensa, porém, foi meramente simbólica: no grande funeral do monarca, em 1625, ele conduziu um dos estandartes heráldicos. Não surpreende,
portanto, que a gloriosa Hinchingbrooke fosse vendida aos Montagu, mudando-se sir: Oliver para a propriedade de Ramsey. Nos anos imediatamente anteriores à guerra civil, a conjectura de que o partido do Parlamento deitava
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raízes na pequena nobreza decadente, cujas fortunas estavam em declínio, cer-
tamente encontra apoio na posição dos Cromwell quando Oliver passava à fase adulta. Em
1627, ele não pôde ter deixado de observar com tristeza 0
fim do apogeu dos Cromwell de Hinchingbrooke — um ano antes do seu in. gresso no Parlamento. Robert Cromwell levou uma vida mais obscura. Tal qual o irmão mais velho, ele foi eleito membro do Parlamento em 1593, causando pouca impressão. Também cumpriu seus deveres locais, interessando-se pela drenagem
dos Fens e chegando a firmar um abaixo-assinado que reivindicava a remoção dos excessos de água de uma área conhecida como Great Level [Grande Nível]. Dirigiu a cervejaria, cuja existência motivaria os mexericos dos partidá-
rios do rei contra seu filho.* Não resta dúvida que Robert Cromwell gostava de uma cerveja e, ademais, as terras que possuía em Hinchin eram cortadas por um córrego muito útil na fabricação da bebida. Como vimos, algum estabelecimento do tipo pode ter chegado até ele como parte do dote de Elizabeth, e os primeiros Cromwell, de Putney, de quem descendia, haviam sido cervejeiros. Logicamente, há uma diferença entre fermentar algum volume da amarga cerveja inglesa para consumo doméstico e brindes com os vizinhos ou fazer disso um “comércio”, como diriam as gerações posteriores. E arris-
cado aplicar esse conceito a atividades exercidas no início do século XVII, quando não existia nada semelhante ao moderno mercado.
É curioso que a primeira menção existente acerca das supostas atividades cervejeiras de Oliver, atribuídas não somente a ele, mas à sua mãe também,
tenha aparecido em fevereiro de 1649 no Mercurius Elenticus, o jornal que tanto fez para espalhar veneno, um mês depois da execução do rei, período de maior execração de Cromwell: o texto referia-se à malícia daquele “sangrento cervejeiro Cromwell”.!º Espalhou-se que Oliver, além do mais, fizera a mal-
dosa sugestão de que o filho mais moço do falecido monarca, o duque de Gloucester, fosse adestrado no ofício de cervejeiro, na medida em que
*“Cervejeiro” foi um dos muitos sarcásticos à pelidos dados a Oliver Cromwell por seus inimigos. The Protecting Brewer possui uma estrofe que bem demonstra como a questão suscitava insultos ou no mínimo as zomba rias a que se prestava O tema:!
Um cervejeiro pode ser tão destemido quanto Hestor, Bebendo seu copo de néctar, Ou um Lorde Protetor, Ninguém pode negar
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perdera todas as suas funções nobiliárquicas. Portanto, a cervejaria pode muito bem ter sido uma das ocupações locais desse ramo menor da família Cromwell, mais ou menos profissionalmente, para complementar sua modesta
renda; o fato permaneceu esquecido até a morte de Carlos I, quando toda e qualquer arma tornou-se válida para vilipendiar a figura mais importante do partido que o executara. Desde então a cervejaria alimentou as cortantes palavras de escritores satíricos, empenhados numa atividade de desprezível vulgaridade, emblemática das rudes camadas emergentes que governavam a Inglaterra.
Voltando à infância de Oliver, pode-se ver que a vida de seu pai, típica dos filhos mais moços da pequena nobreza rural, nada teve de muito marcante, embora não chegasse a ser desagradável, tendente a produzir um homem de maneiras calmas e não um pai tirânico. “A vida de um homem saudável é como uma bolha d'água”, declarou Robert em seu testamento; antes de morrer, ele se preocupou em deixar para sua mulher e filhos tanto “a paz e a calma”, quanto “propriedades temporais”.?” Um homem como esse, certamente, teria uma relação bondosa e agradável com o único filho que sobrevivera, durante sua curta vida. Seria também natural que a pequena casa em Huntingdon fosse ensombrecida pela grande casa de Hinchingbrooke e, pela mesma razão, que Robert Cromwell escolhesse o nome de Oliver para seu segundo filho. É quase certo que sir Oliver tenha sido o padrinho de batismo do sobrinho, quatro dias após seu nascimento, em 29 de abril de 1599, na Igreja de São João Batista, em Huntingdon, perto da casa de seus pais. Embora a igreja tenha desaparecido, dando lugar a um jardim municipal, o registro com a menção de Oliverus, filho de Robert Cromwell e Elizabeth, sua mulher, está preservado na Igreja de Todos os Santos, não muito longe, assim como a pia na qual Oliver foi batizado.* Sabe-se pouco sobre o bebê Oliver. Até o final do século XVIII, uma das
obscuras histórias que corriam a seu respeito dizia que um macaco domesticado o teria retirado do berço, fugindo pela casa; isso acontecera em
Hinchingbrooke, nos últimos dias de vida do “cavaleiro dourado”. Mais profético e portanto mais suspeito era o comentário acerca do soco que aos qua-
tro anos de idade ele desferira no nariz do príncipe Charles Stuart, de dois “Embaixo da data, na parte de cima do registro, a frase “empesteou a Inglaterra por cinco
anos”, acrescentada provavelmente no período da guerra civil, foi riscada.
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anos, fato transcorrido por ocasião da visita real a Hinchingbrooke em 1603.
Trata-se de uma lenda, obviamente vinculada a acontecimentos posteriores
que tentava demonstrar uma evidência precoce do caráter violento e antimonárquico de Oliver. Também houve o caso do pároco que teria salvo o jovem
Oliver de se afogar num rio, e que o reencontrando, muitos anos depois, à frente de suas tropas, em Huntingdon, reconheceu-o e disse, cheio de rancor:
“Preferia tê-lo deixado morrer; seria melhor do que vê-lo aqui, em armas
contra sua própria gente.”?!
Os mitos fazem da infância um presságio do futuro, sempre da forma mais correta e adequada ao caráter do herói — ou vilão. A impressão predominante que Oliver criança deixou entre seus contemporâneos, no entanto, foi
bastante diferente. Milton tentou explicar sua grandeza com base em eventos ocorridos nos primeiros anos, mas tudo o que resta é uma sensação de mistério, de algo inexplicável, apontando para uma serenidade exterior, até mesmo uma certa mediocridade aparente, encobrindo a poderosa turbulência interior que demoraria bastante a se revelar. “Oliver cresceu em segredo, dentro de casa”, escreveu ele, em 1654, “acumulando no silêncio de sua própria consci-
ência, com vistas aos tempos de crise que viriam, uma sólida fé em Deus e uma força intelectual inata.”2 Talvez o Protetor tenha fornecido algumas pistas desse processo, em conversas com pessoas que desfrutavam de sua intimidade, mas nada registrou sobre os sentimentos mais íntimos que alimentava na mocidade, fossem turbulentos ou não, nem pronunciou uma palavra sequer
referindo-se a dúvidas internas porventura existentes. A “grandeza intelectual inata”, mencionada por Milton, desenvolveu-se
da maneira mais convencional, na escola primária local, algumas centenas de
metros distante da casa paterna, subindo a Huntingdon High Street.* Era uma instituição livre, semelhante a outras 1.300 que funcionavam na Inglater-
ra e em Gales, que de acordo com os costumes tinham uma única sala de aula
destinada às crianças de todas as idades e equivaliam às escolas privadas — onde seus filhos vieram a estudar — e as mantidas por doações. Antes, ele aprendeu os rudimentos de leitura e caligrafia com a mãe e uma espécie de governanta; durante algum tempo, um clérigo chamado Long exerceu o papel de tutor;? depois, o latim, como uma preparação para a universidade. Em a se pdadi
e
: , quase :intocado, ainda existe e tem mais ou menos o mesmo tamanho do Museu
Cromwell, inaugurado em 1962. Outro ex-aluno bastante conhecido foi Samuel Pepys.
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contato e sob a infuência de apenas um mestre e um assistente, através dos quais tomava conhecimento do mundo exterior, Oliver empreenderia o primeiro salto dramático de sua vida.
O dr. Thomas Beard, mestre encarregado da escola primária de Huntingdon, diplomado em Cambridge e clérigo, tinha alguma fama, embora não fosse tão obcecado por demandas externas a ponto de negligenciar o bem-estar de seus pupilos. Rígido disciplinador, profundamente preocupado com os
novos e importantes progressos da religião oficial, era um típico puritano, intelectualizado, corajoso, buscando conversões, honestamente determinado a descobrir as relações entre Deus e os homens, e o devido papel da Igreja nes-
se contexto. Seu trabalho mais famoso, The Theatre of God's Judgements [O teatro do julgamento de Deus], fora publicado em 1597, sete anos antes dele
tornar-se professor em Huntingdon. A pequena brochura expressava a convicção de seu autor, no sentido de que os malvados deviam ser punidos nesta vida, independentemente de outra, relacionando uma série de ocorrências históricas ou “providências” — termo que mais tarde teria muito significado para o próprio Oliver — analisadas de acordo com as intenções de Deus em premiar ou castigar seus servos: a ênfase maior recaía sobre as penas, evidentemente. Acerca da natureza dos servos, Beard acreditava que reis e governantes estão especialmente sujeitos à justiça divina, sendo não só “mais endurecidos e audaciosos no pecado”, como propensos a “se eximir audaciosamente de todos os corretivos que merecem”.?* Sem dúvida, Oliver deve ter lido essa obra notável, que impactou toda a sua família. Robert Cromwell escolheu Beard como testemunha de seu testamento e, em 1616, ele dedicou a sir Oliver Cromwell outra de suas obras, intitulada A retractive from the Romish religion [A religião de Roma — uma deturpação], na qual identificava o papa com o anticristo: a dedicatória destacava o amor sincero do cavalheiro pela verdadeira religião, seu igualmente sincero ódio pela “sinagoga romana”, estendendo-se “à vossa religiosa esposa, merecedores filhos, irmãos e grande família, que têm sido (...) a principal audiência de meu imerecido ministério (...) e aos quais devo muitos favores extraordinários e muita bondade recebida”.?* Marcando de forma definitiva os
pensamentos do jovem Oliver, a filosofia de Beard refletiu-se, anos após, nos
seus discursos e relatórios de batalha — a idéia de que Deus não era uma fi-
gura distante da justiça, envolto em nuvens, esperando a morte do homem
para só então atribuir-lhe as devidas recompensas ou punições. De modo con-
trário, o Deus de Thomas Beard e de Oliver Cromwell estava permanente-
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mente atento a tudo o que se passava no mundo terrestre, promovendo batalhas perdidas — pelos maus — e sacrificando tronos — dos governantes que não os mereciam. Fosse na pequena sala de aula de Huntingdon, ou talvez,
em casa, ouvindo as doutrinas repetidas por seu pai e seu tio, Oliver acabou encontrando essa divindade, cuja constante interferência e julgamento, premiação e punição ele guardaria pelo resto de seus dias. É conveniente contrapor a incomparável influência exercida por um ho-
mem desse tipo às tradicionais histórias de que Oliver não era um intelectual, preferindo roubar pomares a estudar — James Heath se referia a ele como o “dragão das maçãs” —, sem “nenhuma constância” no aprendizado, alternando surtos de entusiasmo, que duravam de uma a duas semanas, e meses de vagabundagem. O dr. Beard tentava corrigir as falhas de Oliver, dizia Heath, mas “não conseguia prevalecer sobre suas obstinadas e perversas inclinações”.* A verdade é que em todos os diferentes períodos de sua vida, Oliver Cromwell demonstrou-se mais inclinado a pensar, meditar ou elaborar do que ler vorazmente, expondo uma débil tendência literária que só fez prejudicar o temperamento filosófico que ele tinha dentro de si. Portanto, a descrição de um menino enérgico, saltando cercas, roubando pombais a fim de comer a carne das tenras avezinhas, alvo das surras com que seus pais o puniam pelas travessuras, aliás inutilmente, não é irreconciliável com a alma que despertava
para um diálogo com Deus e a noção de buscar os sinais de sua vontade na Terra. A carreira posterior de Oliver iria mostrar a mesma estranha e fascinante combinação de um extremo cuidado com o físico — afinal, um oficial de cavalaria estava na obrigação de aprimorar-se tanto quanto necessário — e o diálogo espiritual. Escrevendo muitos anos mais tarde, o bispo Burnet sugeriu que Oliver fora muito prejudicado pela “dureza de sua educação e temperamento”, dos
quais nunca conseguiu se desfazer, e que o impediram de aprender qualquer idioma estrangeiro, exceto “um pouco de latim (...), que falava pouco e mal”. Por outro lado, Samuel Carrington, entusiástico biógrafo de 1659,* afirmou
“que todos sabiam como ele [Oliver] o utilizava [o latim] para se comuni-
car com os estrangeiros”. Tendo em vista sua história de vida, marcada por vários incidentes, alguns inclusive simpáticos, outros assustadores, não se pode duvidar do seu temperamento inflexível — expresso nos exercícios, em *Em
sua
Biogra phy
Cromwell como sen
9f Oliver Cromwell, W. C. Abbott cita esse trabalho, dedicado a Richard
do a primeira biografia de Cromwell impressa após sua mor te.
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brincadeiras ruidosas ou até mesmo em acessos de ira. Rigidez na educação, porém, não existiu: pelo contrário, a que ele recebeu nos primeiros estágios
foi mais do que adequada, capaz de torná-lo um homem notável e culto, e sob os olhares ponderados de uma família que costumava levar essas coisas a sério. Além disso, a ser verdadeira a afirmação de Carrington, segundo a qual
“o maior prazer” de Oliver era “ler homens em vez de livros”, ele tivera a sorte de conhecer na pessoa de Thomas Beard, e ainda jovem, um sujeito excepcionalmente afeito a esse tipo de “leitura”,” Em 1616, quando Oliver Cromwell partiu para a Universidade de Cambridge, não muito longe de onde morava, as influências puritanas não esmoreceram de forma alguma. Contava então 17 anos, e o college escolhido, Sidney Sussex, era uma fundação protestante, criada no local de um antigo monastério dos monges cinzentos, em 1596, pelos executores do testamento de /ady Frances
Sidney, condessa de Sussex. Thomas Fuller, que também esteve lá uma década depois de Oliver, escreveu em seu livro Worthies [IMéritos] que a dama morrera sem deixar herdeiros, “a não ser que os eruditos que se formaram em sua fundação possam ser considerados assim”, Os “filhos” intelectuais de /ady Frances frequentavam um prédio novo de pedra clara e tijolos vermelhos, uma combinação de cores que inspirou um poeta do século XVII a falar sobre o “rubro da rosa e branco da neve”, referindo-se à sua aparência. O grande vestíbulo, sob um teto sustentado por grandes vigas, tinha janelas laterais; o que sobrara do refeitório dos antigos frades, coberto de palha, servia de capela, dando passagem a uma sala anexa e à biblioteca. Do velho monastério haviam sobrado poucos vestígios, como a área da antiga igreja, junto ao novo campo de bochas; morbidamente, Fuller dizia ter encontrado alguns ossos por ali. Definitivamente, os traços dessa observância religiosa anterior não se coadunavam com as radicais influências doutrinárias de Sidney Sussex. Os estatu-
tos especificavam que os estudantes deveriam receber instrução que os gabaritasse como ministros da Igreja Anglicana ou, segundo a linguagem pitoresca do texto, o college deveria ser como um amplo vale, onde os jovens, semelhantes a laboriosas abelhas, colheriam mel de todos os tipos de flores, antes de sair da colméia e voarem, em nome da igreja, para desfazerem-se do seu tesouro. Quem não se conformasse a esse ideal bucólico-religioso seria atormentado com mordidas e picadas e, finalmente, expulso como um zangão. As regras estabeleciam que diretores e membros da congregação deveriam estar entre os que abominavam o papismo; aos estudantes proibia-se “cabelos longos ou en-
caracolados, calças de veludo, adereços de pano no pescoço etc.” Brincadeiras
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com touros ou ursos não eram admitidas, nem jogo de bocha em más compa-
nhias — a área do próprio college estava liberada. Tavernas, dados e carteado, nem pensar. Enfim, Oliver não terá estranhado nada dessa orientação nitidamente puritana, graças aos ensinamentos recebidos de Beard. Samuel Ward,
diretor desde 1610, ainda continuava no cargo em 1643, tido por Fuller como “o verdadeiro protestante de sempre”, em que pese os rumores de que aderira
ao papismo. Na verdade, seu diário revela fortes tendências ao puritanismo e, em particular, uma acentuada crença na predestinação que talvez tenha transmitido a seu pupilo. Oliver entrou no Sidney Sussex em 23 de abril de 1616, sob a tutela de Richard Howlet, ou conforme o latim da anotação — “Oliverus Cromwell Hluntingdoniensis admissus ad commentum sociorum Aprilis vicesime tertio tutore Magistro Richardo Hovwlet”. Segundo o costume, os novos membros traziam um presente de prata, e ele entregou uma bacia; infelizmente, em 1618, quando o college teve que juntar dinheiro para readquirir algumas propriedades ilegalmente alienadas, “o pote do sr. Cromwell” estava entre os objetos da venda forçada.” Por outro lado, sobreviveu a história de que ele saltara na garupa de um cavalo da janela de seu quarto no primeiro andar do lado norte de Hall Court, em frente a Sidney Street. James Heath o considerava um ás, não junto aos livros, mas no futebol, porretes ou qualquer outro “esporte ou jogo barulhento”. Também ficaram famosos os papéis que Oliver desempenhou, como rei, em peças de teatro estudantis; seus admiradores viram nisso uma evidência de sua grandeza natural, mas os críticos preferiram acreditar numa ambição inata — uma forma típica de polarização entre o bem e o mal nos primórdios da vida de Cromwell.'º No entanto, sua estada em Cambridge, dissipada ou não em prazeres, durou pouco tempo; ele partiu antes de obter a graduação, não por falta de entusiasmo intelectual, mas devido à morte do pai, em 24 de junho de 1617.
Apenas alguns dias antes Margaret casava-se aos 16 anos, pelas mãos do
dr. Thomas Beard, com Valentine Walton, um vizinho do Huntingdonshire,
grande e leal amigo de Oliver durante toda a memorável vida de ambos. Os temores das irmãs, porém, estavam longe de terminar; das seis, pelo menos
quatro, talvez cinco, ainda viviam na companhia materna. Assim, aos 18 anos,
Cromwell tornou-se o único homem numa casa povoada de mulheres. Foi sua primeira oportunidade de mostrar à mãe o apoio adulto e a devoção que manteria com singular atenção pelo resto da vida. A ternura entre eles, que
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sensibilizou os observadores contemporâneos, pode ser facilmente explicada, da parte dela, pela própria posição do filho varão, mas talvez da parte dele tenha se originado nesse período traumático, quando todas as responsabilidades recaíram sobre seus ombros — uma situação que certamente encorajaria as tendências paternalistas de qualquer homem. A situação financeira da família estava equilibrada, nem boa nem má. O testamento de Robert Cromwell fazia de Elizabeth sua única executora e, de
qualquer forma, Oliver ainda seria menor de idade por três anos. Entretanto, houve um momento preocupante, quando pareceu que ele poderia ser posto sob a guarda do rei, visto que uma parte da propriedade em que viviam fora assumida ix capite ou diretamente do monarca, equivalendo à posse de direitos de cavaleiro. Talvez fosse essa a única forma de garantir seus direitos enquanto sua mãe vivesse e desfrutasse, como usuária, nos termos do testamento, “de todas as terras”. Ele teria que fazer alguns pagamentos, argiindo certos procedimentos dispendiosos mas indispensáveis a seu sustento futuro. Felizmen-
te, o caso foi levado à Court of Wards and Liveries — similar a um juizado de órfãos e sucessões —, onde ficou provado que os trâmites suscitados já haviam sido cumpridos por Robert quando da morte de sir Henry Cromwell. Não seria preciso repetir o processo. Afastado o perigo, ante a decisão proferida pelo presidente do tribunal, Elizabeth pôde retornar ao padrão de vida nada excepcional, cuidando de seus bens e, quem sabe, complementando os rendimentos assim obtidos com uma pequena produção de cerveja. Perdida a juventude, Cromwell deparou-se com novas oportunidades. Aqueles anos plácidos da uma colossal importância ma mais conveniente para mos teóricos, ou seja, em dele cuidar da mãe. Numa
infância, aos quais os teóricos modernos atribuem na formação do caráter, tinham se encerrado da forqualquer adolescente masculino, segundo esses mesconseqiiência da morte do pai e dada a necessidade ode mortuária, um escritor escreveu a seu respeito:
Tk começaste com menos preocupações Pensamentos privados ocupando teus anos privados (...) A alma que mais tarde derrubaria cetros aprendeu primeiro a governar o ambiente doméstico:
Assim o governo começou Pela família e o próprio homem.
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Em vão historiadores e, antes deles, os próprios contemporâneos debrucaram-se sobre a juventude de Oliver buscando mais informações — sua obscuridade não cessaria abruptamente aos 19 anos. Contudo, mesmo com os es-
cassos fatos disponíveis, complementados por lendas posteriores, é possível
distinguir certas tendências. Um jovem muito ativo, rijo, feliz, desfrutando de uma situação social modesta mas segura, que muito cedo entrara em contato
com uma forma de religião inquieta, insegura, mas extremamente apaixonada e honesta. Dotado de natureza afetiva, cercado por muitos laços de família e por eles envolvido, converteu-se no seu nó. Sobre tais bases, quase indistintas, da mesma forma que os contornos da antiga capela dos monges cinzentos ainda podiam ser vistos entre os novos prédios de Sidney Sussex, construiu-se a vida adulta de Oliver Cromwell.
RS RS
2 Seus próprios campos Pois tampouco empregaste desde o início Teu sóbrio espírito em tarefas elevadas demais Mas em teus próprios campos exercitaste longamente Mente saudável num corpo forte ANDREW
MARVELL
SOBRE
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om 18 anos, apesar de sua amizade com o dr. Thomas Beard, Oliver Cromwell não se apresenta no palco da vida como um completo puritano, segundo a acepção moderna da palavra. Aos tempos que se seguem à morte de seu pai pertencem as histórias de suas licenciosidades mais divulgadas. Tais relatos nos chegam de muitas fontes e é impossível ignorá-los. Henry Fletcher, em The Perfect Politician [O político perfeito], honesta tentativa biográfica, e não uma hagiografia, cuja primeira edição saiu em 1660, emitiu opinião comedida no sentido de que esse período da vida de Cromwell “não foi completamente livre das libertinagens e loucuras que incidem sobre a juventude”. Richard Baxter, muitos anos mais jovem que Oliver, soubera que ele fora “pródigo na juventude” e referiu-se a isso na sua autobiografia. Philip Warwick, renomado realista, relatou que os primeiros anos de sua juventude se desenvolveram em um tipo de vida dissoluto, no jogo e com bons camaradas, o que posteriormente o sensibilizava e entristecia. Fletcher confirma a história de Oliver como jogador — houve um certo sr. Calton, ao qual anos mais tarde ele vai devolver as trinta libras que lhe havia ganhado nos velhos tempos, visto que considerava não as ter obtido de forma legal e “que se-
ria continuar em pecado manter essa dívida por mais tempo”.
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Previsivelmente, James Heath nos conta de forma mais colorida a fes. ta juvenil daquele a quem considera um Santo Agostinho renascido: Oliver se comportava como um “jovem Tarquínio”, deleitando-se em
acossar mulheres decentes nas ruas para “arrebatar-lhes um beijo à força
ou satisfazer algum outro desejo lúbrico”. Também acometia cidadãos de-
centes com seu bastão e, alternativamente, refugiava-se na bebida; como resultado disso, tornou-se o terror das cervejarias locais, cujas proprietá-
rias gritavam quando o viam aproximar-se: Aí vem o jovem Cromwell, fechem suas portas!? Nesta categoria de vícios típicos de um farrista em
formação pouco ficou de fora. No entanto, foi por essa época que Oliver assumiu a primeira perspectiva de um mundo mais amplo do que Hun-
tingdon, sua rua principal e suas tabernas. Fizesse ou não parte dos planos de sua mãe curá-lo de seus modos dissolutos, como sugere Heath — havendo talvez uma relação entre a reputação do jovem e sua remoção —, entre 1617 e 1620 Cromwell esteve em Londres e prosseguiu seus estudos numa das Inns of Court.* Este episódio permanece envolto numa irritante carência de informações,
visto não existirem registros de Cromwell nos livros de presença de Lincoln's Inn — geralmente associada a ele por seus biógrafos. As fontes não se resu-
mem a Henry Fletcher, citado acima, incluindo também o autor de um traba-
lho anterior — possivelmente Henry Daubeny —, The Portraiture of His Royal Flighness Oliver, late Lord Protector [O retrato de sua alteza real Oliver, último lorde protetor], publicado imediatamente após a morte de Cromwell, e ainda James Heath, que, levando em conta os problemas de historiadores mais recentes, acrescenta com ironia não intencional: “De alguma forma é uma sorte para esta ilustre sociedade que ele nos tenha deixado um memorial
tão pequeno e inocente de sua participação nela.” É verdade que Carrington não se refere especificamente a Lincoln's Inn — registrando, no entanto, que
“seus pais o dirigiram ao estudo do Direito Civil”. Mas não apenas o pai, “x
avô e dois tios de Oliver estudaram nesse lugar, como ele próprio mandou
“Instituições equivalentes a faculdades de Direito. Inicialme nte, quatro hospedarias que albergavam homens da lei que se dirigiam a Londres por ocasiã o das sessões do Tribunal de Just
iça. Depois do século XV, quatro grandes hotéis — Gray, coln, Inner Temple e Middle Temple — onde se organizavam seminários para estudanteLin s especialmente escolhi-
dos é sujeitos à um tutor. A partir do século XVII, os inns foram considerados “a terc eira universidade” inglesa, equiparando-se a Oxford e Cambridge. (N. do T.)
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para lá seu filho, Richard, em 1647: não há portanto nenhuma razão objetiva para duvidar da autenticidade desse incidente relatado nas suas primeiras biografias.** Naquele tempo as Inns of Court não eram, como agora, um conjunto de
instituições especializadas em preparar um grupo de jovens somente para o Direito. Ao contrário, tinham o status de honrosa complementação educacional de jovens cavalheiros: quaisquer que fossem os pontos de vista da mãe de Oliver, ir a Londres para estudar Direito correspondia a um desenvolvimento convencional na vida de um moço do seu nível social, como tinham sido todas as eta-
pas anteriores de sua educação. Entre os membros do Parlamento, no período de 1640 a 1642, mais de trezentos tinham fregientado uma das Inns of Court, inclusive alguns nomes que se tornariam famosos nos turbulentos anos seguintes, como Denzil Holles, John Lambert, John Bradshaw e sir Thomas Fairfax. Uma vez mais, a tradição, sob a forma de Thomas Le Wright — outro biógra-
fo que menciona Lincoln's Inn —, fala de Cromwell como “um estudioso mais
preocupado com os homens do que com os livros, por inclinar-se naturalmente mais à parte prática do que ao sentido da teoria”.* Por volta de 1618, Londres era um lugar muito agradável para o exercício da crescente curiosidade juvenil, e as próprias Inns of Court situavam-se em uma área positivamente campestre, entre a cidade e suas áreas de expansão, em Westminster, rodeadas de verdes campos ainda intocados pela especulação imobiliária. Era o grande Tâmisa, caminho mais efetivo que qualquer via pública terrestre, que ligava os dois cen-
tros, “aquelas cidades gêmeas, vinculadas por uma rua coberta por um fluxo de água”, segundo romântica referência de Thomas Heywood em Porta Pictas — “a primeira, um lugar onde se criam sérios magistrados, a segunda, sítio desti-
nado ao descanso final de grandes monarcas”. E é entre os “sérios magistrados”
de Londres, assim como entre seus próprios familiares, que Cromwell vai en-
contrar associados. Em 22 de agosto de 1620, alguns meses após completar sua maioridade, ele se casa com Elizabeth, filha de sir James Bourchier, magnata da City. **
“W. C. Abbott, em seu Letters & Speeches of Oliver Cromwell, I, p. 33, sustenta que Oliver frequentou Gray's Inn, baseando-se no fato de que muitos de seus futuros associados estavam lá na mesma época. Mas isso parece ser uma complicação desnecessária, tendo em vista as ligações familiares de Oliver com Lincoln's Inn e o fato de que Gray's Inn não é mencionada em nenhuma de suas primeiras biografias. “Núcleo original da cidade de Londres, dentro dos antigos limites fixados no reinado de Guilherme, o Conquistador, incluindo os distritos que exerciam o direito de voto municipal
e os que se encontravam sob a jurisdição do Lord Mayor [prefeito] da cidade. (N. do T.)
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A aproximação com um desses grupos pode ter levado à fusão com o
outro, pois há sugestões de que fora na casa de uma de suas tias, Joan Barrington, filha do velho sir Henry Cromwell, vizinho de sir James
Bourchier, no campo, que ele conheceu sua futura esposa.” Os Bourchier ti-
nham características bem similares às da família de Oliver, mesmo não tendo a mesma origem galesa. À casa de campo de sir James ficava em Little Stambridge, em Essex; transferindo-se da cidade, tal como os Steward e os
próprios Cromwell, eles se mudaram para lá na geração anterior. As conexões urbano-campestres dos Bourchier, no entanto, sempre se mantiveram bastante estreitas. Em Londres, sir James era um próspero curtidor e comerciante de peles, tendo sido elevado à nobreza em 1610. Casado com Frances Crane, uma dama de Suffolk, sua filha Elizabeth, a mais velha de uma prole de cinco rebentos, aos 23, tinha dois anos mais do que Oliver. De origem sólida e segura, provavelmente financeiramente mais garantida do que o próprio marido, o evento nega as histórias mais desvairadas de Heath: de uma posição de riqueza superior, como a de sir James Bourchier, dificilmente ele permitiria
que sua filha se casasse com um depravado impenitente. Em seu contrato de casamento, adequado à posição de uma dama do nível de fortuna que desposava, Oliver comprometeu-se a dar à sua consorte propriedades que, com todos os dízimos incluídos, corresponderiam a uma renda de quarenta libras anuais; estava prevista uma pesada multa no caso de não-cumprimento das condições. Testemunhou o contrato um outro comerciante de couros, Thomas Morley, provavelmente parente de Elizabeth pelo lado materno. O casamento foi celebrado na Igreja de St Giles, situada dentro das muralhas da cidade, em Cripplegate, próxima do extremo oeste de London Wall, igreja frequentada pelos Bourchier quando se encontravam em sua residência
urbana. O Registro de Casamentos está preservado no Ofício de Registros da Cidade de Londres, na Biblioteca Guildhallº E a igreja — onde por coinci-
dência o poeta John Milton foi enterrado, meio século após esse discreto enlace matrimonial — permanece de pé, após grande restauração. Elizabeth Cromwell era rechonchuda e bonita. Deve ter sido atraente, e não apenas em algum momento da juventude, conforme dizia a mãe de
Dorothy Osborne, jovem e arguta realista, de qualquer pessoa “que não seja
deformada”. Na maturidade, sua miniatura, pintada por Samuel Cooper, mos-
tra um rosto sedutor, pequeno e um pouco arredondado, de uma beleza basrante óbvia; olhos enormes, muito separados e de uma languidez insinuante; covinhas nas faces e a boca levemente bem-humorada, com leves traços de re-
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signação. O conjunto da expressão demonstra certo divertimento secreto e inteligente, enquanto que as feições em si mesmas são quase como as de um
fauno. Certamente não é uma coincidência que a filha favorita de Oliver, Bettie, fosse a que mais se parecia com a mãe.
Mais tarde, como a Protetora Joan, assim apelidada por críticos satíricos,*
ela foi objeto de muitas zombarias maldosas, atraindo, ainda que em menor escala, as mesmas atenções infamantes dos difamadores de seu marido. Deixando de lado as acusações mais ferozes — “alcoolismo e intrigas amorosas” —, que não podem ser comprovadas, o que mais se reclamava dela era ser totalmente limitada às atitudes convencionais e mesquinhas de uma dona. Heath, por exemplo, acusava-a de estreiteza desnecessária a uma Lady protetora: “educada e polidamente, ela criticava o desperdício da Outra Mulher que a antecedera”.” Mas apesar das alusões às extravagâncias da rainha Henrietta Maria indicarem uma alma cuidadosa, crente de que a parcimônia deveria ser cultivada mesmo pela realeza, a sra. Cromwell possuía mais do que um mero tino para o gerenciamento doméstico.
Ela foi capaz de orientar o marido em diversas ocasiões, como qualquer
esposa de um homem ocupado — às vezes ocupadíssimo. Em 1650, estando Cromwell ausente, na Escócia, ela remeteu-lhe uma carta muito firme, em que o tratava de “Meu Queridíssimo”, indagando como ele podia queixar-se de sua correspondência pouco fregiiente — “enviei três cartas para cada uma das tuas: só posso imaginar que elas se perderam”, acrescentava ela, com uma delicada ponta de ironia. Seguiam-se tocantes palavras de amor, um tributo a trinta anos de um casamento com muita intimidade, e sua submissão à providência divina que os separava; saudosa, alegava: “Minha vida é somente uma meia vida em tua ausência...” No final, um pouco mais áspera, a sra. Cromwell sugeria que o marido deveria destacar algum tempo para os amigos, Lord Chief Justice — presidente do Tribunal de Justiça —, “a respeito do qual tenho te lembrado várias vezes”, o Speaker of the House — presidente da Câmara dos Comuns —, o presidente do Conselho de Estado e outras personalidades importantes: “Na verdade, meu querido, não sabes o mal que estás te causando ao não escreveres a eles, mesmo que somente de vez em quando.” Com toda a fidelidade, ela assinava “Eliz. CromwellP.º A dama tinha determinação e perspicácia, sem dúvida. “Em meados do século XVII, o nome Joan tornara-se desprimoroso; ainda que as antigas da-
mas da elite o ostentassem — por exemplo, a tia de Cromwell, Joan Barrington, ou sua irmã,
que morreu bebê —, por essa época o nome estava sendo usado como sinônimo de mulher rude; Shakespeare refere-se à “engordurada Joan”, debruçada sobre sua panela.
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Sagaz observadora, /a4y Hutchinson, que nunca conseguiu resistir à grandeza de Oliver, sempre desdenhou sua mulher, chamando a atenção sobre sua
falta de dignidade. Mas a outra faceta do caráter de Elizabeth Cromwell, seu
traço menos prático e mais sonhador certamente consistia numa amável ingenuidade. Ela colecionava retratos da realeza estrangeira e imaginava se Cristina da Suécia não seria uma boa segunda esposa para Oliver — caso algo lhe acontecesse. Diz-se, inclusive, que teria desejos ardentes, mas também preocupações, ao observar a destituída Família Real Inglesa, medo de que os seus talvez não pudessem manter a situação que tinham alcançado.
Tudo isso indicava, evidentemente, uma disposição romântica e fora de moda. Mais tarde, na medida em que o status do marido melhorava, comentava-se que ela não tinha gosto para se vestir, ao contrário de suas filhas, mais adaptáveis. Seu capuz, por exemplo, ela o usava como um chapéu, sem nenhum artifício, sem “esconderijos ou trincheiras simples ou duplas, sem redutos ou bastiões”. Desdenhando notoriamente detalhes do vestuário, é claro que
Oliver não se casara com ela em busca de seus conhecimentos acerca da moda. Sua domesticidade e frugalidade, a preocupação com a casa enquanto um dever cristão a Deus e ao marido agradavam-no muito mais. Os observadores que desmerecem essa mulher, tachando-a de insignificante, só vêem um lado da moeda. Oliver Cromwell apreciava sua lealdade afetiva, o dedicado apoio pessoal que recebia dela e, mais concretamente — e com não menos prazer —, o conforto de um lar bem-organizado. Eram seus inimigos que à chamavam de Joan, identificando-a com um “símio em escarlate”. Sem nenhuma dúvida, Oliver amava a mulher devotadamente, tanto por
uma questão de princípio como, na prática, por todos os longos anos de vida conjugal. Como marido cristão, nas palavras de Thomas Le Wright, “era sempre extremamente amoroso com ela, que mantinha a honra de seu leito”. Mesmo depois de 31 anos de casados, ele expressava um amor explícito: “Minha queridíssima, não podia deixar de escrever, mesmo não tendo muitos motivos, pois na verdade adoro dirigir-me à minha querida, que está sempre
muito presente em meu coração.” Logo após sua maior vitória, em Dunbar,
Oliver escreveu a Elizabeth: “Tua arte é mais adorável para mim que qual-
quer criatura.” Não há nenhuma razão para duvidar de suas palavras. Um manual puritano sobre a vida familiar, muito popular na época — Matrimoniall Honour [Em honra do casamento], de Daniel Roger —, dizia que “o benefício do leito” era uma das maiores vantagens práticas obtidas com o mãtrimônio, pois acarretava “uma boa disposição do corpo e da mente, permi-
= a a
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tindo uma caminhada livre com Deus e a execução dos deveres por ele exigidos, sem distrações e aborrecimentos”.'º Ao presentear Oliver com seus favores, além de uma indestrutível serenidade em sua vida mais íntima, Elizabeth
deixava-o livre para desenvolver sua vida pública sem distrações ou aborrecimentos que lhe poderiam ser impostos por uma esposa mais apresentável, mas possivelmente mais egocêntrica. É difícil imaginar, portanto, que Oliver tenha feito um mau negócio com seu casamento. Fator igualmente importante no que diz respeito ao casamento de Oliver Cromwell reside na ausência de quaisquer “prodigalidades”* posteriores, o que torna mais fácil avaliar que tais primitivas indulgências teriam raízes muito pouco profundas, e foram facilmente extirpadas com a chegada da res ponsabilidade familiar. O desregramento juvenil não é particularmente incomum, nem particularmente censurável, e pode-se comparar com proveito a situação de Oliver com a de John Bunyan, que exclamou, referindo-se principalmente a blasfêmias e folguedos: “Até que eu alcançasse o estágio do casamento, fui líder em todos os tipos de vícios e impiedades.”!! Nenhum dos dois chegou a ser propriamente um devasso. Após seu retorno a Huntingdon, num verdadeiro ambiente rural, Oliver e Elizabeth desfrutaram da vida calma de uma pequena cidade no campo. Os ares tornaram-se ainda mais leves com o nascimento de seu primeiro filho, Robert, em outubro de 1621. Ao primogênito se somaram, em rápida sucessão, Oliver, nascido em fevereiro de 1623; Bridget, em agosto de 1624;
Richard, em outubro de 1626; Henry, em janeiro de 1628; e Elizabeth, em julho de 1629. Provavelmente, Oliver estava descobrindo, como seu biógrafo Flecknoe assinala, que o sustento de uma família guarda “certa analogia com o governo de uma comunidade”. É ao batismo de Richard que devemos a mais antiga carta preservada de Oliver Cromwell, datada de 14 de outubro de 1626: trata-se de um pedido a um amigo de Cambridge para que fosse o padrinho: pouco mais velho, Henry Downhall, clérigo e pároco de Tofts, Cambridgeshire, fora membro do St John's College no período em que Oliver estava em Sidney Sussex. “Duas entradas no Registro da Igreja de St John, Huntingdon, com as datas de 1621 e 1628, dão conta de que Cromwell teria sido repreendido por mau comportamento, cum-
prindo penitência por isso; aparentemente, elas foram feitas posteriormente a estas datas, e por outras mãos. Mesmo que representassem uma autêntica tradição da localidade — con-
forme acredita S. R. Gardiner —, tanto podem se referir a uma multa, decorrente de um delito leve, como a algum pecado. À razão da penitência não é mencionada.
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“Amado Senhor”, escreveu Oliver, desculpando-se por estar tão ocupado que
não poderia levar o convite pessoalmente, “permita-me recebê-lo na quartafeira.” Cromwell prosseguiu afirmando estar bastante consciente de aproveitar-se do amigo, ao lhe pedir um novo favor, mais do que retribuindo o “amor que dele tinha recebido”. No entanto, manifesta a certeza de que a pa-
ciência e a bondade de Downhall não poderão ser exauridas pelo “amigo e serviçal?.” Escrita com o tipo de letra fluente e bem-organizada, mas em es-
paços compactos, que Cromwell mostraria pela maior parte do resto de sua vida, até que a doença interviesse, essa carta mostra-o como um pai consciencioso, esmerando-se em desenvolver relações de amizade, combinando com um deliberado equilíbrio a bondade de Downhall e sua dívida de gratidão. No momento em que seu ninho se completava, aconchegantemente, graças ao nascimento do último dos seis filhos da “primeira fase familiar” — a preciosa Bettie, que viria a ser sua preferida — , as circunstâncias de Oliver tinham mudado — a própria Inglaterra mudara. Daí em diante, sua carreira acompa-
nharia de maneira mais próxima a história do país.
Em 1625, a morte do idoso rei escocês, James I — aquele produto inverossímil da união entre Mary, rainha dos escoceses, e /ord Darnley —, suscitou a subida ao trono de um dirigente completamente diferente. Não seria o glamouroso e admirado Henry, príncipe de Gales, filho mais velho de James, ao qual se vinculava a idéia de uma idade de ouro, mas o menino que o próprio Henry, zombeteiramente, apelidara de Carlos I, da Inglaterra, Escócia e Irlanda, rio, digno, tal como o pai apaixonado pela de ter sido educado numa corte inglesa,e
“o arcebispo”. O novo soberano, contava 24 anos; era pequeno, sémonarquia, mas com a diferença não em meio às lutas pelo poder
que haviam forjado James. Sua juventude infeliz e turbulenta, a mudança para uma Inglaterra estranha, aos 36 anos de idade, conferiram a James muitas oportunidades para que estudasse os processos da mente humana. Quaisquer que fossem suas teorias, ele as enriqueceu com a experiência, transformando-se,
na expressão escocesa, num homem perspicaz — atributo que Carlos certamente não possuía.
Com o passar do tempo, ele demonstraria uma filosofia monárquica
pétrea, mantendo-se impassível ante os argumentos alheios, uma rocha inaba-
lável, sempre na mesma posição. Sua coroação foi marcada, talvez de forma
injusta, mas certamente com a presciência do que ocorreria mai s tarde, com um
terremoto. Pouco depois, o antigo “arcebispo” se cas aria com uma prin-
: =
náie
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ir
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cesa francesa, Henrietta Maria, irmã do rei Luís XIII. Conquanto o período em que esta vivaz amável e empreendedora rainhazinha exerceria grande
influência sobre ele ainda estivesse por acontecer, sua religião — ela era
católica — já causava inquietação entre os muitos súditos de Carlos, temerosos da propagação do “papismo”. Em 1628, as imensas exigências financeiras da política externa do novo rei, nessa época tomando a forma de uma dispendiosa disputa com a França, além
de uma guerra em andamento com a Espanha, já o levavam a convocar o ter-
ceiro Parlamento de seu reinado. Os dois anteriores não tinham aplacado suas
necessidades, nem as de seu ministro e favorito, Buckingham, e nem tampouco
o problema das arrecadações que incidiam sobre os súditos. Com quase 29 anos, Oliver Cromwell foi eleito como um dos dois “burgueses” ou membros indicados pela cidade de Huntingdon. O outro era James Montagu, filho do conde de Manchester, cuja família adquirira Hinchingbrooke muito recentemente. Entre as testemunhas do “Registro Parlamentar”, como era conhecido o documento que atestava a eleição — preservado nos Registros da Cidade —, estava mais uma vez o mestre-escola e puritano dr. Thomas Beard. Esta não foi a primeira participação conhecida de Oliver Cromwell em assuntos parlamentares: antes de seu casamento, em 1620, ele testemunhou outro “registro” da escolha dos burgueses de Huntingdon. Na verdade, não se deve supor que sua eleição constituiu um passo revolucionário na vida de um sóbrio cavalheiro do campo, acostumado a “uma vida reservada e austera, cujo plano mais importante fosse o plantio de bergamotas” — assim o descreveu mais tarde Andrew Marvell. Pode-se até ir mais longe, afirmando-se que a ida de Cromwell para o Parlamento era positivamente previsível, em vista do surpreendente número de parentes próximos — nove primos, segundo estimativas! — que estariam a seu lado nos bancos da Câmara dos Comuns, em março de 1628, data de sua primeira indicação, incluindo os
Waller, Whalley, Hammond, Walton e Ingoldsby. Se por um lado a existência de uma rede familiar fazia com que a atmosfera dos Comuns parecesse em certo sentido amigável, sob todos os demais pontos de vista o ar estava carregado de violência e hostilidade. No exterior, a rebelião holandesa contra seus senhores espanhóis estimulara a imaginação de muitos especialistas em liberdades políticas, propagando-se pela Inglaterra não somente devido à proximidade da costa holandesa, mas também porque havia vínculos estreitos entre os protestantes dos dois países. A sorte da Liga Protestante, sob a liderança do grande militar sueco,
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o herói-príncipe Gustavo Adolfo, repercutiu na Grã-Bretanha, provocando
ondas de zeloso entusiasmo. Internamente, a situação tempestuosa estava lon-
ge de ser revolucionária. Para muitos de seus súditos, Carlos Stuart era o dirigente do Estado — ele possuía o trono. O bispo de Bath e Wells colocou a questão numa prédica, antes do primeiro Parlamento: “Pois ainda que possam
existir muitos “pilares”, só existe unus Rex — um rei — um único grande pilar central, e tudo o mais (...) tem que se colocar sob ele e para ele.”!* Tal conceito de monarquia tinha algo de místico, e a extensão e natureza desse cres-
cente misticismo logo seriam questionadas.
Nesse momento, no entanto, a discussão girava em torno dos poderes especiais do rei, aqueles que iam além da sua atuação conjunta com o Parla-
mento: não se punha em dúvida a teoria do direito divino, segundo a qual o soberano tinha o direito de legislar sozinho e que aparentemente só foi mantida com segurança por James 1. O ponto de vista mais geral da realeza, sob seu filho, era consideravelmente menos audacioso, postulando apenas que em qualquer governo deve haver um poder acima da lei e que numa monarquia tal supremacia cabe ao rei. Como conseqiiência, ele poderia usar sua
prerrogativa, ou poderes especiais, em certos casos predefinidos ou, de forma mais vaga, quando o bem geral do reino assim o exigisse. À justificativa, portanto, para arrecadações extraordinárias de tributos apoiava-se nesses costumes antigos e há muito estabelecidos. Tratava-se de impostos adicionais, de que a dinastia Tudor já lançara mão numa época em que o reino esteve em
perigo. Carlos não pretendia nenhuma inovação teórica em relação a eles.
Para alguns, essa idéia acerca de prerrogativas reais era perigosamente
obscura ou abertamente suspeita. Poderia até se admitir a existência de direitos especiais perante tribunais comuns, direitos de chefe de Estado, abrangen-
do declarações de guerra ou o estabelecimento da paz, a supremacia sobre a Igreja e a jurisdição em cortes conciliares, como o Star Chamber.* O problema se colocava na área indefinida dessas prerrogativas, como mencionado
acima, atribuindo-se ao rei a oportunidade de julgar por si mesmo quando à situação nacional poderia exigir medidas extraordinárias, e a aplicação de tais medidas, sem consulta prévia ao Parlamento. Este claro menosprezo sobre O
papel do Parlamento, bastante visível nas ações empreendidas por Carlos nos primeiros anos de seu reinado, vai se concretizar no instante em que o pró-
“Tribunal da época, com jurisdição civil e criminal, encarregado de processar os assuntos
referentes a interesses diretos da Coroa. (N. do T)
iai
E
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prio Parlamento começa a flexionar seus músculos, depois de anos de passividade ao longo do século XVI. Em 1628, no entanto, não se formulara nenhuma teoria de oposição ao rei. Todos se prendiam ao passado: o soberano afirmava que estava agindo como seus antecessores, e o Parlamento se opunha a ele, alegando que tais práticas nunca haviam ocorrido antes na Inglaterra. Um dos paradoxos desse período revolucionário é que ambos os lados vão buscar justificativas nos “velhos tempos”. É importante enfatizar que em função de suas relações familiares, quando Cromwell chegou ao grande palácio de Westminster, em março de 1628, quaisquer que fossem as lealdades tradicionais de muitos dos súditos do rei Carlos, ele vai se integrar imediatamente e com naturalidade ao grupo já formado — ainda que sem muita clareza — daqueles que criticavam a monarquia. No ano anterior alguns membros do Parlamento tinham sido presos por não estarem de acordo com uma das conveniências financeiras do rei — um empréstimo forçado —, e entre eles se incluíam seis parentes de Cromwell. Dois deles, Oliver St John e John Hampden, logo estreitariam seus laços com ele. Oliver Cromwell teve todas as oportunidades, portanto, para ouvir de pessoas de seu convívio natural tanto as causas da oposição ao rei, quanto a desesperada necessidade dessas mesmas causas: certamente as primeiras impressões públicas a respeito de Carlos I foram muito pouco trangjilizadoras. Mais tarde muitos poetas e escritores da Corte vão pintar um retrato falsamente cor-de-rosa desse período, em contraste com o posterior holocausto. Ben Jonson, por exemplo, em uma Ode de Aniversário, datada de 1629, afasta-se de qualquer possível descontentamento, atribuído ao mau gosto da preguiça: Ok, tempos! Oh, costumes! A saciedade gerada pela facilidade
É uma doença verdadeiramente epidêmica...
Lucy Hutchinson situa-se mais perto da verdade ao recordar com cínica
nostalgia essa época já ultrapassada em que o país permaneceu tranquilo: “Se esta calma pode ser considerada paz, ela se assemelha mais à superfície lisa do mar, cujo ventre está impregnado de uma terrível tempestade.”! Para Cromwell, envolvendo-se com a política neste momento tão crítico, alinhan-
do-se de acordo com suas origens ao grupo que protestava, seria impossível assumir a posição segundo a qual os problemas da Inglaterra decorriam da “saciedade gerada pela facilidade”. A seus olhos, na prática, existiam duas posições divergentes — uma basicamente a favor do rei, e outra, crítica, em re-
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lação a ele; por uma questão de conveniência, esta última poderia ser chama.da de parlamentar. Alternativamente, tais posições poderiam ser descritas
como pertencentes à corte e ao País.* Estes dois pontos de vista foram explicitados três meses após sua integração ao Parlamento, em junho de 1628, na Petição de Direitos.
Este famoso documento exigia a reparação de importantes injustiças, principalmente aquelas causadas por taxações arbitrárias e pela prisão de súditos que não haviam sido submetidos a julgamento. Diferentemente de ou-
tras propostas de lei que Carlos rejeitara, este documento assumiu a forma de
uma petição — pedido —, se bem que já contendo um esboço de definição legal dos direitos dos súditos. É significativo que o grande líder parlamentar John Pym buscasse no direito de um passado remoto as justificativas das leis sugeridas: “Já existiam traços bem evidentes de posturas assim no governo dos saxões (...) tinham tanto vigor e força que sobreviveram à Conquista; mais ainda, estabeleceram fronteiras e limites ao Conquistador.”! E note-se que o passado alvitrado não era o do século XVI, nem mesmo o da época da Magna Carta, porém muito mais longínquo, anterior à conquista normanda; certos parlamentares e teóricos políticos diziam que um “jugo normando” desabara sobre as cabeças dos saxões livres em 1066. Conforme tal argumento, Carlos I nada mais era do que o último descendente de uma longa série de “conquistadores normandos”, conspirando para despojar as liberdades nunca esquecidas de bons e antigos saxões. A Petição de Direitos cuidava de restabelecê-las. Ao receber o documento — porque o estado desesperador de suas finanças não lhe deixava outra opção — , o rei foi bastante cuidadoso em acatar o apelo ao passado, em seus próprios termos, evidentemente. Assim, recusou a exposição de motivos que acompanhava a Petição e alguns dias mais tarde prorrogou — ou suspendeu temporariamente — a sessão do Parlamento. Ainda que concordasse com a reforma das injustiças mencionadas, declarou que apenas confirmava “antigas liberdades” de seus súditos, o que não significava nenhum recuo em suas prerrogativas. De forma mais firme, insistiu que só tinha que prestar contas a Deus e que as casas do Parlamento não possuíam
“Literalmente, qualquer grupamento crítico da monarquia estaria em oposição a ela. Não existia,
porém, uma oposição oficial, segundo a definição mod ção contra o rei, enquanto tal, constituiria traição. Também erna, visto que qualquer objenão se pode falar em “partido” político, no sentido atual, pois entre 1628 e 1643 variaram muito a composição dos grupos divergentes e seu L1
tos
s objetivos.
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direito algum de promulgar qualquer lei sem o seu consentimento. À batalha travou-se, em termos políticos, diante dos olhos de Cromwell, bem antes que se desgastasse sua primeira fascinação com a novidade — a Câmara dos Comuns —, borrando aquela aguda impressão que lhe deve ter ficado de todo o dramático episódio. Política e dinheiro não constituíam os únicos tópicos de oposição ao rei. No campo religioso os súditos também se mostravam inquietos. O primeiro pronunciamento de Cromwell na Câmara dos Comuns, registrado em fevereiro de 1629, foi sobre as perigosas inovações que tangenciavam o “papismo”, por muitos consideradas capazes de manchar as brancas vestes da Igreja Anglicana, e acerca da tolerância geral com a lassidão, que levaria até mesmo à indulgência com o próprio “papismo”. Em novembro, o rei fizera uma declaração a respeito da religião, vinculada ao Book of Common Prayer [Livro das preces comuns], incidindo, segundo os puritanos, nas posições “papistas” do arcebispo Laud, favorito em ascensão, e para o qual era o puritanismo, não o “papismo”, que lenta e poderosamente ameaçava a Igreja do Estado. As tendências puritanas precisavam ser detidas. Sobretudo, não se podia admitir que a consciência individual servisse de guia a definições doutrinárias — dever inalienável da Igreja. Consegientemente, cabia manter uma “profissão de fé uniforme” nos postulados da Igreja da Inglaterra, “proibindo qualquer diferenciação”. Em resposta a esse desafio, a Câmara dos Comuns criou uma comissão parlamentar encarregada de tratar dos assuntos referentes à religião. Por sua própria natureza, tais comissões representavam um artifício antimonárquico
desenvolvido desde o princípio do século. A comissão de todos, por exemplo
— um ardil, segundo o qual toda a Câmara se integrava à comissão, fugindo
à autoridade do podia eleger seus sessão legislativa sem mais de uma nor importância, numa observação
presidente da Casa, naquela época nomeado pelo rei —, próprios dirigentes. O recurso permitia, além disso, que a se prolongasse indefinidamente e que seus membros falasvez. Houve tantas e tão diversas comissões, algumas de meinclusive, que o rei, aborrecido, denunciou sua propagação, feita alguns meses mais tarde, em 1629: “Não ignoramos o
quanto a Câmara tem tratado, nos últimos anos, de estender seus privilégios,
organizando comissões para a religião, os tribunais, o comércio etc.”*” Oliver tornou-se membro da comissão sobre a religião. Se podemos acreditar em Milton, a primavera de 1629 foi particularmente agradável, “terra brincalhona oferecendo-se às carícias do sol”. Cromwell atravessou a tepidez primaveril
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fazendo veementes e indignadas perorações contra o “papismo”; falando aos mais altos estratos da sociedade, ele defendia uma causa em que se declarava informado e inspirado pelo dr. Thomas Beard. Havia um certo Manwaring, anunciou ele, que continuava a desfrutar da posição de pregador, apesar do Parlamento já o ter censurado por seus sermões “papistas”. De fato, na época em que fora um dos capelães do rei, Roger Manwaring fizera um notável sermão sobre o direito divino, cujos poderes, segundo ele, não residiam no consenso, na graça, na lei e nem mesmo nas tradições, mas simples e claramente na investidura proveniente de Deus. O discurso lhe rendeu benesses suficientes para torná-lo um homem de
posses. Tudo isso se ajustava muito bem à história que Beard contara a Cromwell, a respeito de um certo dr. Alablaster, que pronunciara um sermão de “puro papismo” em Paul's Cross. O bispo de Winchester defendeu a IgreJa contra os ataques de Beard — que tinham o apoio do bispo de Ely e se propunha a contradizer as teses de Alablaster. Envolvendo altas esferas e cheirando a incenso — ou enxofre —, esse caso de chicanas religiosas foi mencionado com grande paixão por Cromwell, fato comprovável pelas anotações de pelo menos três pessoas presentes, inclusive Bulstrode Whitelocke.!º* De fato, a comissão condenou Manwaring, obrigando Carlos I a desconsiderar seu sermão, e protestou firmemente contra o “crescimento extraordinário do papismo”, até mesmo na Inglaterra, para não dizer na Escócia e na Irlanda. Reiteradamente em oposição ao monarca, desta vez Oliver deu mostras de um envolvimento concreto. Em suas primeiras aparições públicas no Parlamento, Cromwell protesta incansavelmente, através de turbulentas manifestações, durante a primavera de 1629. Em março, ele estava entre os que se recusaram a entrar em recesso por ordem do rei, mantendo tal determinação até que fosse aprovada a resolução de sir John Eliot condenando o papismo e os subsídios concedidos sem *Uma das dificuldades para a obtenção de informações sobre este período é o fato de que
as sessões do Parlamento não eram, como agora, registradas e divulgadas oficialmente. Alguns membros da Câmara dos Comuns mantinham diários privados ou acerca das sessões, às vezes limitando-se a tomar notas. No
seu importante Journal
[Diário],
sir Simonds
D'Ewes indica algumas dessas fontes. Ademais, por volta de 1640 e obedecen do a ordens
do Parlamento, certos discursos começam a ser impressos. Ambos os procedimentos tinham elevado grau de seletividade, por suposto, e somente a partir de 1681 é que se aprovou uma resolução geral, mandando dar publicidade às sessões e votações . No entanto, o Diário
da Câmara, com o registro de todas as discussões e leis aprovadas, só vai ter início no reinado de Eduardo VI.!º
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autorização parlamentar. O presidente da Câmara, sir John Finch, foi literalmente seguro em sua cadeira, por Denzil Holles e Benjamin Valentine, enquanto o texto era lido. “Ferimentos em Deus”, vociferava Holles. “Ficareis sentado até que nos levantemos.” Quando o rei Carlos I conseguiu dissolver o Parlamento, encerrando essa história pelos 11 anos seguintes, o mal já estava feito e as resoluções já tinham sido aprovadas. Esta talvez tenha sido a primeira visão que Oliver teve de uma ação concreta, rápida e violenta em defesa de uma causa justa. Quaisquer que tenham sido as impressões deixadas pelo incidente, ainda que pudessem se tornar relevantes para sua futura carreira, ele regressou a seus campos de Huntingdon certo de ter testemunhado bastante agitação. Em suas memórias, ao se referir à cena envolvendo o presidente da Câmara, Edmund Ludlow escreveu que o rei Carlos “poderia ter tomado o pulso da nação, que batia fortemente pela liberdade”.? Oliver Cromwell estava sincronizado com esse batimento.
Em sua infância, Cromwell fundira dureza na ação com riqueza espiritual. A história de seus primeiros anos, em Londres, e o breve tumulto, no Parlamen-
to, mostram o mesmo contraste entre uma aparência exterior tendente à ação
direta e um redemoinho interno de águas mais profundas e melancólicas. Os registros de sir Theodore Mayerne, médico famoso que clinicava em Londres, nessa época, dão conta de que Cromwell o consultou em 19 de setembro
de 1628 — seis meses após sua primeira eleição. Mayerne, que contava então cerca de cinqienta anos, era um homem muito rico e bem-sucedido, filho de
um huguenote famoso, e já atendera Henrique IV, rei de França; no futuro,
teria entre seus clientes regulares o rei Carlos I e a rainha Henrietta Maria. Devido à enorme barriga, raramente saía, preferindo receber seus pacientes em casa, registrando seus casos num livro. Aparentemente, Cromwell vinha tomando águas medicinais de Wellingborough — de Northamptonshire —, muito apreciadas pela casal real, que lá estivera por um período dois anos antes. O tratamento, entretanto, apenas agravara as suas condições. Sua pele estava muito seca e sem vida, ele sentia fortes dores no estômago, três horas após as refeições, bem como uma dor persistente do lado esquerdo. Além disso, num sinal de mau agouro, o médico escreveu que o achava valde melan-
cholicus — extremamente melancólico.”
Esta não é a única indicação de que o enérgico contestador, testemunha
dos maus-tratos infligidos ao presidente da Câmara, possuía uma face menos
extrovertida da sua natureza. O médico da família de Oliver, um certo dr.
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Simcott, registrou em seu livro como ele tomara “Mithridato” — um contraveneno — para prevenir a peste e, ao fazer isso, “curara-se das mar-
cas que tinha no rosto”. De forma menos sucinta e mais evocativa ele con-
tou a sir Philip Warwick certos incidentes que ocorreram na mesma ocasião — certamente antes da morte do tio de Oliver, sir Thomas Steward, em
1636. Segundo Simcott, eventualmente Cromwell permanecia junto ao leito, “cheio de melancolia”; ou mandava chamá-lo no meio da noite ou em “horas pouco razoáveis”, acreditando que o parente estava agonizante. Por ve-
zes, ainda, manifestava estranhos “desejos” acerca da grande cruz situada no centro da cidade de Huntingdon. Certa feita, pareceu convicto de que era “o homem mais importante do reino” — a palavra rei não foi mencionada2 As pitorescas revelações de Simcott, todavia patéticas, caracterizam o que em linguagem moderna seria considerado desequilíbrio nervoso. Não importa se ele “sofria do baço”, como sugeria o médico — na época isso indicava pessimismo e modos taciturnos —, ou se tinha um temperamento melancholicus, como observou Mayerne — ele pode ter se apresentado das duas formas, alternadamente, como sói acontecer com pessoas no seu estado. Após mais de trezentos anos, um diagnóstico médico preciso é obvia-
mente impossível; no entanto, existem claras evidências de uma crise, em Huntingdon, tanto quanto em Londres, tão sérias que levaram Cromwell a consultar o clínico mais famoso da época. O testemunho de Simcott aventa que seus sofrimentos se situavam no plano mental, mais do que no plano físico. Não há nenhuma menção a febres, provavelmente resultado de malária, que tanto o atormentariam anos mais tarde. Mesmo a visão de sua futura liderança pode ser encarada segundo os padrões
aceitáveis de um homem que enfrenta as dores como uma forma de agonia pessoal, que em certos momentos sente-se quase diante da morte e em outros pres-
tes a vivenciar grandes acontecimentos que lhe estão reservados, e em outros, ainda, tão deprimido e apático que sequer consegue erguer-se da cama. Segundo a terminologia atual, essa experiência, tal como foi sugerido acima, define-se como um desequilíbrio nervoso; em linguagem mística, também pode ser desrita como a “noite escura da alma”, quando aquele que aspira a alcançar Deus é súbita e terrivelmente apartado de todo conhecimento e contato com a vonta-
de divina. Finalmente, na linguagem dos puritanos contemporâneos, esse tipo de ataque poderia relacionar-se à conversão pela qual todas as almas têm que
passar antes de encontrar a graça. Não há dúvida que essa foi a conversão de Oliv er, sem data precisa, mas por ele próprio admiti da.
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Muito mais tarde, em 1638, Cromwell escreveu uma carta fascinante sobre
sua conversão, mistura de êxtase e auto-humilhação, endereçando-a à sua “amada prima”, a sra. St John, filha de seu tio Henry. Rejeitando modestamente os
elogios que ela fizera a seus talentos, Oliver dizia-se muito desejoso de
“honrar meu Deus pelo que tinha feito por minha alma. (...) Certamente, nenhuma pobre criatura tem mais razão para colocar-se a serviço de seu Deus do que eu. (...) O Senhor me aceitou em Seu filho e deu-me a oportunidade de caminhar na luz, e nos deu a todos a oportunidade de caminhar na luz, pois Ele é a luz que ilumina nossa ignorância e escuridão. Não me atrevo a dizer que Ele esconde seu rosto de mim. Ele me permite que eu veja a luz em Sua luz. Num lugar escuro, um ponto de luz tem muito mais significado. Abençoado seja o Seu Nome por brilhar num cora-
ção tão escuro quanto o meu! Vós sabeis como vivi. Oh, eu vivi e amei a escuridão e detestei a luz. Fui um chefe de pecadores. À verdade é que eu odiei o que era divino, e no entanto Deus se apiedou de mim. Oh, as riquezas do Seu perdão! Louvado seja Ele por mim, pois deu início a um bom trabalho que pode ser aperfeiçoado até o dia de Cristo (...)?.?
Eis aqui, claramente, a autêntica linguagem do convertido, tocado pela graça e sentindo a obra de Cristo em si próprio. Nas cartas de Oliver que sobreviveram, ela expressa, incidentalmente, a primeira manifestação real do
tipo de linguagem altamente religiosa, quase maníaca, densamente interligada a frases bíblicas ou semibíblicas que marcará de forma tão proeminente seus comunicados, desde os relatórios acerca das batalhas até as arengas que pronunciou no Parlamento. Sem dúvida, a Bíblia exerceu papel determinante em sua vida. A grande versão autorizada do rei James, publicada pela primeira vez em 1611, quando ele não passava de um menino de 12 anos, desempenha uma influência literária capital em suas cartas e discursos, em que pese a presença de traços de conhecimento da versão de Genebra, usada provavelmente,
me
FF
as em seus dias de escola, por Beard. Indiscutivelmente, Cromwell recordava frases que ouvira na infância.” É importante enfatizar a natureza da lingua coteria que s pecado aos cia referên faça ele que aqui sugere se não gem, pois
s limetido antes do casamento, após mais de duas décadas, embora as última
por s, veze s uma alg das, cita sido ham ten nto assu no toca que em a cart da nhas a partidários do rei, com o intuito de apontar uma tendência à devassidão que teri
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se prolongado até muito depois da juventude. Uma clara distinção deve ser feita entre os vícios juvenis e a “escuridão da alma” a que Cromwell se refere. Trata-se da escuridão que envolve o espírito antes da conversão, um conceito importante no pensamento puritano da época. Para um calvinista, a conversão, o chamado de Deus, era fundamental. Em seus Fundamentos, Calvino diz que “a promessa divina da vida” não atinge “todos os homens da mesma
forma”; mais adiante, ele afirma que “(Deus) dá a alguns o que recusa a ou-
tros”, No entanto, sem a graça ninguém pode ser salvo. O Eleito, como esses
afortunados possuidores da graça se chamavam a si mesmos, ou “os santos”
não nascem com a graça. E, diferentemente dos católicos, não acreditam na
possibilidade de obtê-la mediante um sacramento, como o batismo, por exemplo — que redime os católicos do pecado original. Os calvinistas e seus descendentes, pelo contrário, supunham que a graça vital provinha apenas da
escolha do indivíduo por Deus — levando-o a crer em Cristo, através de um certo tipo de introspecção. Pois Deus dera Seu filho aos eleitos para apoiálos, como dizia John Preston em sermão mais ou menos contemporâneo à conversão de Oliver: “Quando Deus te chama para vir a Cristo, Ele te promete que a virtude da morte de Cristo vai matar o pecado dentro de ti, e que a virtude da ressurreição de Cristo te elevará a uma nova vida.” Uma vez concedida, a graça não pode mais ser retirada. Escrevendo sobre o próprio
Cromwell, Burnet disse: “a noção que ele mais prezava era — uma vez filho
de Deus, para sempre filho de Deus”.?* Os santos não podiam perder a graça divina. À conversão ou a aceitação do papel da dádiva, por ambas as razões, permitiria o surgimento de um evento espiritual marcante. Em que consistia a conversão? Uma autoridade no assunto afiançou que, na raiz, ela correspondia a um renascimento. Em si mesma, a experiência seria um clímax. Thomas Goodwin comparou-a ao perdão real com que um traidor fosse agraciado, para logo a seguir ser elevado à condição de amigo € favorito. Com certeza, trata-se de um fenômeno muito vívido: um cavalheiro de Yorkshire, Thomas Bourchier, escrevendo de forma tocante, disse que “no início da conversão minha alma estava tão arrebatada com a beleza do Cor-
deiro que eram bem pouco frequentes os momentos em que minha língua não falava da infinita bondade que alcançara alguém tão indigno e miserável
como eu”. Richard Baxter, incapaz de definir precisamente o momento da sua
conversão, mas fazendo-a corresponder à leitura de determinado livro, aos 15 anos, vivia preocupado com tal falta de rigor. John Winthrop, líder dos puritanos que fugiram para o Novo Mundo, foi bastante cuidadoso ao anotar em
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sua autobiografia, escrita 19 anos depois, que sua conversão tinha se dado aos trinta anos.%À carta de Oliver, repleta de sentenças pitorescas e referindo-se às Escrituras, numa passagem anterior, com suas alusões arrepiantes sobre seu odioso passado, já superado por um presente divino, exibe os sintomas clássicos de outras experiências similares. Tendo em vista o significado confuso das conversões, segundo os próprios puritanos, não surpreende que os
anos anteriores a elas fossem lembrados como tempos de “escuridão”. Em princípio, aceita-se que a conversão espiritual de Oliver, mais do que seu distanciamento de uma vida de devassidão, tenha sido o fator que deu origem às suas inseguranças e doenças misteriosas — uma interferência psicos-
somática, por suposto. Seria importante, portanto, determinar o momento desse evento cataclísmico, na sua juventude ou no início da maturidade. Parece evidente que isso só ocorreu após a volta de Cromwell a Huntingdon, algum tempo depois da suspensão das sessões do Parlamento, em 1629, e antes de sua mudança para St Ives, em 1631, visto que seu processo de auto-análise estava em pleno andamento durante o período que passou em Londres e que a consulta a sir Theodore Mayerne, que só pode ser o resultado de extrema tensão, foi marcada para setembro de 1628. É bem verdade que o dr. Thomas Beard indicou Oliver para o Parlamento em 1628. Argumenta-se que ele só o faria caso Oliver já tivesse “renascido” espiritualmente. Todavia, é perfeitamente possível viver uma vida virtuosa sem estar entre os eleitos — provavelmente, Oliver fez isso, a partir de 1620, mesmo que sua escuridão interior ainda não tivesse sido
formalmente dissipada. Há uma concordância geral de que a partir de seu renascimento espiritual ele levou uma vida virtuosa e bastante rigorosa, do pon-
to de vista religioso. O bispo Burnet registrou em sua História que, tendo pesquisado junto a contemporâneos de Cromwell, certificou-se de que “ele levara uma vida muito austera nos oito anos que precederam a guerra”. Escocês, Burnet considerava o período de paz até 1638, início da luta na Escócia, o que nos dá uma data aceitável, em torno de 1630.” Sem dúvida, houve uma mudança na forma de conduta de Oliver por vol-
ta dessa época: anos mais tarde, ele se mostraria mais resoluto e estruturado na direção dos seus negócios, como se seu auto-exame tivesse sido canalizado
para uma consulta ao Todo-Poderoso, um diálogo no qual Deus forneceria pelo menos algumas respostas na forma de sinais e “providências”, em oposi-
ção ao prévio monólogo torturante € infeliz de uma alma angustiada. A mudan-
ar ça de residência terrena também estava pela frente. Mesmo antes de deix
políHuntingdon, ele se envolveu nas lutas políticas locais, como se o vício da
s8
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tica, estimulante mas criador de agitação, penetrando em suas veias, o impedis-
se de descansar. Os dois assuntos que o ocuparam em sua cidade natal ilustram
aspectos lamentáveis da cena política daquele período. Um deles se referia ao
governo local. Cromwell estava entre os líderes de um grupo que protestou ruidosamente, durante o ano de 1630, contra mudanças propostas na estrutura do
governo de Huntingdon. Discutia-se uma nova regulamentação dos funcionários e burgueses de Huntingdon, segundo a qual um corpo de conselheiros e um oficial de Registro, nomeados ad perpetuum, substituiriam os dois funcionários e uma câmara de 24 “comuns”; apenas o prefeito seria eleito, anualmente.
Os funcionários conseguiram o que queriam, e o processo de transformação de Huntingdon num “burgo podre” não pôde ser obstado.
Antes disso, porém, o Lord Privy Seal* foi forçado a emitir um relatório
a respeito do assunto, e, sem dúvida, a violenta oposição de Cromwell e seus
companheiros tornou sua vitória bastante difícil. A polêmica centrava-se no fato de que o prefeito e os novos conselheiros, além de poderes para criar novas e pesadas multas, excluiriam os burgueses de seus direitos às terras comuns. “Seus discursos são vergonhosos e indecentes”, disse Cromwell, refe-
rindo-se ao prefeito de Huntingdon e a um conselheiro legal — advogado —
chamado Barnard. É bem verdade que o Lord Privy Seal acreditava na possibilidade de um entendimento entre os litigantes, posto que os discursos de Cromwell, “feitos no calor da paixão, poderiam ser esquecidos; encontrei O sr. Cromwell”, disse ele, “bastante disposto a tornar-se amigo do sr. Barnard, que por sua vez está preparado para esquecer os termos desagradáveis que ouviu e fazer o mesmo”.* A precoce capacidade de Cromwell para expressar-se impetuosamente é uma lição a ser retirada do incidente; outra é a simpatia com que encarava as queixas locais.
O segundo protesto referiu-se a questões mais amplas que já o preocupavam em Westminster — os sinistros meios usados pela Coroa para arre-
cadar dinheiro. Segundo a regra estabelecida, qualquer possuidor de uma propriedade livre de foros, cujo patrimônio tivesse uma renda superior à
quarenta libras anuais, seria forçado a presenciar a coroação do rei e sofrer a imposição da dispendiosa honra de ser armado cavaleiro, ou então pagar uma multa, ou “composição”, em virtude da sua ausência. Oliver fazia parte
da ampla categoria daqueles que ignoraram tal obrigação na coroação do NERO
*
de um ministério, no governo real, com características de um ministro sem pasta. =
=
=
n y:
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rei Carlos I, em 1625, não tendo sido armado cavaleiro, nem pagado a multa. Quando comissários foram incumbidos de perseguir os faltosos, com o objetivo de incrementar as finanças reais, o nome de Oliver apareceu na lista negra dos que teriam que fazer o registro da composição e quitar o débito com o Tesouro. Em caso de recusa, poderia ser indiciado por desacato perante o Tribunal do Tesouro. Na primeira instância, contudo, ele ainda se recusou a fazer o pagamento. Mesmo quando a composição foi finalmente paga, em abril de 1631, os registros manuscritos mostram que seu nome foi acrescentado posteriormente à lista daqueles que se retrataram — alguns sugerem que a multa foi paga por outra pessoa.” No final do episódio, tendo recusado submissão à vontade real, Cromwell não sofreu nenhuma punição; evidentemente, os obstáculos preliminares que ele criou, opondo-se a essa patifaria, têm tudo a ver com o que havia testemunhado, nos anos anteriores, em Westminster.
Por volta da mesma época em que a composição foi acertada, Oliver escreveu a John Newdigate sobre um problema mais pessoal — um falcão perdido, que o cavalheiro de Warwickshire recolhera e que poderia ser identificado por seu varvell, o anel. Oliver desculpou-se com Newdigate pelo atraso em tratar do assunto — “Tenho de confessar minha negligência após ter recebido duas cartas suas sem ter enviado nenhuma resposta” —, explicando que a ave, de fato, não lhe pertencia — “esse pobre homem, proprietário do falcão, vivendo na mesma cidade que eu, fez uso de um de meus varvells”. Sua paixão pela falcoaria tornou-se bem conhecida quando ele ascendeu ao poder, e notícias dessa predileção alcançaram âmbito internacional: pretensos aduladores o presentearam com aves de rapina. Robert Lilburne, um de seus comandantes na Escócia, escrevendo em 1654, perguntou-lhe sobre as chances que tinha de ser promovido; bastante cuidadoso, terminou a carta com uma oferta de falcões para a diversão do grande homem. De um ponto de vista contrário, um dos críticos satíricos do Interregno escreveu: “Você não usa falcões de caça? Por que não podemos usá-los também??? Até sua velhice, Oliver sempre foi capaz de entender-se amigavelmente com quem gostasse de falcões, mesmo um partidário da realeza. De acordo com Aubrey, o Protetor “apaixonou-se” pela companhia de sir James Long, após tê-lo encontrado cacando com falcões em Hounslow Heath. Ele ordenou que Long “levasse sua espada e fosse encontrá-lo, para falcoar” — coisas assim faziam seus cavaleiros erguerem as sobrancelhas. Após a grande vitória de Worcester, Cromwell deteve-se nos campos próximos de Aylesbury, a fim de caçar com suas aves favoritas.*
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Esse prazer campestre, tipicamente inglês, aliado ao constante gosto pelas
caçadas, tão inalterável quanto o amor pelos cavalos — mais tarde ele foi alvo da amistosa atenção de países estrangeiros, de onde recebeu egiiinos de presente —, conferiu a Cromwell a imagem pública de um cavalheiro rural. A fama e q responsabilidade não eliminaram tais pendores, que se acentuavam nos momen-
tos de descanso. Na verdade, esse é um estilo muito comum nos líderes políticos ingleses, que costumam manter-se sinceramente vinculados aos “assuntos
Em segundo lugar, atravessara uma crise espiritual, sofrendo muito em seu cur-
so, mas sendo capaz, como o Peregrino de Bunyan, de tirar força da adversidade. Finalmente, provara o gosto da política nacional, em Westminster, e tinha
tomado parte no ponto culminante da mais importante luta constitucional ocorrida por todo um século, na Inglaterra — a apresentação da Petição de Direitos; em seu primeiro discurso ele mostrara o quanto as suas simpatias se encontravam afastadas das autoridades estabelecidas do país, fosse o rei ou a Igreja. À paixão política não se abatera com a suspensão das atividades do Parlamento, antes continuara a se manifestar na persistente defesa dos direitos locais. No estado de fermentação em que se encontrava a Grã-Bretanha , durante a década de 1630, conforme descreveu um historiador, com muitos súd itos “unidos (...) pelo
Mesmo ressentimento e os mesmos temores”? o Davi de Huntingdon tinha muito a ponderar en quanto cuidava de seus rebanhos políticos e pas torais.
sea o E di
“seu prazer pelos cavalos bravios, cervos (...)” — para elogiá-lo. A anglicidade básica de Cromwell foi descrita por muitos, mas seria um erro supor que, com pouco mais de trinta anos, ele ainda acreditasse que seus “próprios campos” consistiam, literalmente, nas verdes e férteis planuras de Cambridgeshire, nas quais estava habituado a caçar e criar seus falcões tão prazerosamente. Posteriormente, deu-se uma considerável ênfase ao secreto ruralismo que estaria na raiz do seu desenvolvimento primordial: a comparação de Carrington com Davi, “cuidando calmamente de seus rebanhos, até que seu país dele necessitasse”, constitui um exemplo típico.*” No entanto, a polarização de sua forma de vida inicial com as lides públicas a que se dedicou mais tarde só se torna plenamente aceitável em virtude de malabarismos literários. Aos 32 anos de idade, Cromwell já tinha dado três grandes passos à frente. Em primeiro lugar, fosse por sorte ou tirocínio, fizera um casamento feliz, assegurando a tranquilidade doméstica, sem dúvida, o menos tortuoso de seus caminhos. Foi uma decisão de grande significado, que não deve ser subestimada.
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rurais”, aumentando, ao invés de diminuir, seus vínculos com o povo. Marvell e outros encomiásticos destacaram os saudáveis traços bucólicos de Oliver —
R
estas
3 Crescendo para a autoridade No entanto, à medida que cresceu para ocupar seu lugar e usufruir de sua autoridade, as características que possuía pareciam renovar-se, como se ele tivesse escondido as faculdades que o dotavam, até precisar delas. CLARENDON SOBRE CROMWELL, em sua History of the Great Rebellion [História da grande rebelião]
etapa seguinte da vida de Oliver Cromwell tem pelo menos a aparência de um certo declínio material. A disputa, em Huntingdon, e a linguagem pouco moderada que ele usou durante todo o processo afetaram seu futuro em termos políticos locais, apesar da conciliação após a querela. As
chances de ser eleito como um dos burgueses representantes da cidade, por exemplo, devem ter diminuído substancialmente em virtude dos ataques que desferiu contra a Corporação, que supervisionava o pleito. É provável que as
relações sociais tenham sofrido da mesma forma. Em 1631, a casa livre de foro na qual nascera foi vendida, e Cromwell tornou-se um simples arrendatário de uma fazenda em St Ives, outra cidadezinha do Huntingdonshire, situada sobre o Ouse, a cerca de oito quilômetros de distância, com uma estreita ponte cruzando o tortuoso rio e cercada de verdes planuras, luxuriantes no verão, mas cinzentas, alagadas e batidas pelos ventos no inverno. As terras de Cromwell ficavam a sudeste da cidade, onde a tradição ainda
associa o Celeiro à casa onde ele e a família foram morar. Similar a Huntingdon, St Ives tem ares ainda mais provincianos, não chegando sequer a sede do pequeno condado. Mas Oliver viveria lá por cinco anos, criando
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gado e mostrando-se como um sólido cidadão, participando na escolha dos guardadores do green [parque] da “rua” ou das “estradas”. E mesmo que estas atividades pudessem ser mais domésticas do que as que exercera num âm-
bito maior, em Huntingdon, como proprietário, burguês e juiz de paz, OS registros comprovam que ele as exerceu com a sua usual energia.*! O declínio social não teve reflexos sobre seu progresso espiritual. Ao
contrário: ao longo desses anos exteriormente calmos, e dando prossegui-
mento à traumática experiência da conversão, seus interesses religiosos mais íntimos se aprofundaram. É importante ressaltar o vínculo entre esse conflito interior e a chegada de seu velho amigo, Henry Downhall, padrinho de Richard, que se tornou o vigário de St Ives mais ou menos na mes-
ma época da mudança de Cromwell. A década de 1630 foi um período
crucial para os seguidores do puritanismo. Em 1633, William Laud ascendeu ao arcebispado de Canterbury; sabedor da morte do titular, o rei deulhe a notícia de forma elegante: “Meu Senhor de Canterbury, seja muito bem-vindo.” Esse sentimento não teve eco entre os puritanos, temerosos de que a indicação de Laud visasse secretamente à restauração do catolicismo na Inglaterra. De fato, a rainha Henrietta Maria era católica praticante, en-
tendendo-se com seus padres e ouvindo suas missas numa capela própria — nefasto sinal. Os termos “papal” e “papístico”, tão frequentemente utilizados pelos puritanos que se referiam às extravagantes inovações no ritual da
Inglaterra, poderia ser executado por traição. Mesmo em certas tendências “armínias”? da Igreja nacional, os puritanos discerniam a temível possibilidade da corrupção “papal”. Originário do nome de um teólogo holandês — Arminius — que atacara intransigentemente alguns conceitos calvinistas, à predestinação, por exemplo, o conceito acabou associado a elaborações e à ornamentação das igrejas e de seus serviços. A batalha, portanto, tendia à ser travada em torno de costumes eclesiásticos específicos ou relacionados ao culto religioso; analisadas uma a uma, e num clima totalmente diferente, as questões talvez não tivessem grande importância. *No caso dos registros paroquiais, a assinatura de Oliver Cromwell teve o desti no habitual:
neste caso, a tentativa de Todavia, atualmente, na Cromwell, com um dedo grafiteiros, constituiu um
eliminá-la coube a um administrador da igreja, no século XVIII. principal rua da cidade, ergue-se uma majestosa estátua de apontando para o caminhante. Constantemente desfigurada por memorial imponente à sua estada por aquelas bandas.
a Re
Igreja Anglicana, expressam esse medo. Fora da lei, a prática do catolicismo acarretava severas punições; um padre católico que fosse descoberto, na
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Esportes dominicais motivaram choques entre os puritanos e Laud; neste assunto tão delicado — a “profanação” do Dia do Senhor — muitos fanfarrões dominicais foram chamados às falas, conquanto a opinião pública estivesse com eles. Reeditado em 1633, o Livro dos Esportes, de James I, que
estabeleceu o controle estatal sobre esse tipo de diversão, proibiu quaisquer punições. O espetáculo público da rainha Henrietta Maria divertindo-se na
corte, aos domingos, acentuava os aspectos mais desagradáveis dessa mensagem. No seu inocente desejo gaulês de dançar alegremente, ela chegava ao ponto de assistir a peças teatrais execradas pelos puritanos. A posição e os adornos da mesa de comunhão também causavam irritação — velas e ricas tapeçarias já eram consideradas sinais de “papismo” incipiente pelos puritanos, € bem assim ajoelhar-se ao nome de Jesus e fazer o sinal-da-cruz, especialmente no serviço do batismo. Num sermão que pronunciou perante o Parlamento, John Owen, mais tarde capelão de Cromwell, disse que todos esses “crucifixos, sinais-da-cruz, pinturas, genuflexões, servilismo, altares,
círios, hóstias, órgãos, hinos, ladainhas, imagens, vestes” não passavam de “verniz romano”.?
A atitude de Laud e do clero que o apoiava e o crescente número de armínios, naturalmente incrementado após sua nomeação, não contribuíam para melhorar a situação potencialmente inflamável — havia intolerância de parte a parte. Entendendo que os rituais em uso pertenciam à Igreja da Inglaterra desde tempos imemoriais, o novo arcebispo enfrentou os protestos com firme determinação de eliminar o culto daqueles que protestavam. Uniformidade seria a sua palavra de ordem, definida pelo único poder autorizado a tanto: a Igreja Anglicana, não a consciência individual. Se Carlos 1 tivesse nomeado alguém menos legalista, imbuído do espírito de “orar e deixar orar”, talvez se chegasse a algum tipo de compromisso, tal como ocorre na Igreja da Inglaterra atual, baseado nas variações locais, e conforme os sentimentos da população e de seu pastor. No entanto, as posições de Laud e as dos puritanos se tornaram irreversivelmente antagônicas. Nessa atmosfera de agitação, um detalhe dos costumes religiosos que adquiriu grande significação foi o sermão semanal a que todos eram obrigados a assistir, por lei, na Inglaterra. Os puritanos vivenciavam essa experiência com muita intensidade. O entusiasmo, característica marcante de sua causa, encontrava expressão natural nas prédicas, capazes de estimular as lideranças
e produzir forte impacto na população em geral. O estilo variava. O dr. serieBedell, de East Anglian, falava em “voz baixa e movia-se pouco; mas à
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dade, a grandiosidade de seu aspecto e a reverência de seu comportamento afetavam muito mais os ouvintes do que a grande elogiência e os pronuncia. mentos pomposos de outros”. John Rogers, por outro lado, tinha o hábito de
segurar a balaustrada do púlpito e “gritar tenebrosamente, representando os tormentos dos amaldiçoados”; segundo um alfaiate de Dedham que a teste. munhou, tal performance era capaz de “despertar”. O próprio Cromwell, que certamente possuía um forte traço de pregador, costumava expressar-se em sermões laicos. Posteriormente, o bispo Williams, de Lincoln, parente de Carlos 1, relatou ao rei que Oliver agira como “porta-voz dos sectários, de-
tendendo suas posições com grande teimosia”. Heath sustenta que ao longo da década Cromwell assumiu “frequentemente e em público os modos de um
professor, pregando inclusive em sua própria casa, sempre de acordo com os
ditames da irmandade” Homens dessa estirpe dificilmente se inclinariam a uma aceitação passiva de sermões cujas doutrinas representassem posições adversas. As con-
gregações, no entanto, não estavam inteiramente destituídas de poderes para
a escolha do pregador que mais lhes conviesse, particularmente na medida em que os estipêndios ministeriais eram muito reduzidos. Isso propiciava a solidariedade entre os paroquianos, que se uniam com vistas a aumentar 0
estipêndio de um ministro cuja teologia eles aprovassem ou a fim de contratar “um conferencista” de fora. Entre grupos de comerciantes londrinos, tornou-se uma boa ação reconhecida participar da subscrição visando ao pagamento de um conferencista em alguns distritos distantes. Em outras áreas, o palestrante era escolhido — e pago — pela Corporação, embora à aprovação do bispo fosse indispensável. Evidentemente, o significado dessas preleções, enquanto método de divulgação de ensinamentos não ortodoxos, não escapava a ninguém. Ainda que nem todas as conferências fossem subversivas, sua realização implicava uma luta bastante amarga entre o rei e as autoridades locais. A Corporação de Huntingdon havia selecionado o dr Beard como seu conferencista, mas quando ele morreu, em 1633, os eventos
foram suprimidos; a companhia Mercers, de Londres, indignada, financiou
um novo pregador, reservando-se o direito de demiti-lo sem consulta ao
bispo, se assim o desejasse, mas o rei o demitiu, atendendo a um apelo de Laud. A correspondência de Cromwell demonstra que ele foi muito além de
suas óbvias simpatias, dirigindo uma exortação pessoal àqueles que tinham
condição de apoiar as conferências. Em janeiro de 1635, escrevendo a seu
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“muito querido amigo” sr. Storie, talvez pretendendo contribuir para reconduzi-lo ao ofício de orador sacro da cidade, Oliver referiu-se à importância do alimento das almas, insistindo para que o destinatário se lembrasse que “a construção de hospitais visa ao cuidado com os corpos humanos, assim como a construção material de templos é um trabalho piedoso; os que oferecem alimentos espirituais, os que constroem igrejas são verdadeiramente caridosos e piedosos. Para isso concorreram vossas conferências neste condado”. Prosseguindo, de forma encorajadora, ele aduz: “Agora resta-nos rogar Aquele que primeiro vos tocou (...), implorando que vos inspire à continuação da obra iniciada. É ao Senhor que elevamos nossos corações, para que Ele possa
aperfeiçoá-los.” Sob pressão das mais altas autoridades, Cromwell destaca a importância vital das doações: «É, muito triste constatar que tais conferências não mais se realizarão (...) posto que vêm sendo suprimidas com rapidez e violência pelos inimigos de Deus e de Sua verdade.” Sua conclusão é bastante objetiva: “Como sabeis, sr. Storie, sem pagamento não há pregação: quem vai à guerra à sua própria custa? Por isso que vos peço, encarecidamente, pelas entranhas de Cristo Jesus: adianteis esta quantia e permitais que o bom homem receba a sua remuneração. As almas dos filhos de Deus vos abençoarão por isso, assim como eu.”*
Apesar do fervor prosélito de gente como Cromwell e da ajuda financeira do sr. Storie e outras pessoas de sua classe — espera-se que ele tenha ouvido o apelo e fornecido ao “bom homem? o seu pagamento —, as dificuldades
dos puritanos não se aliviaram. Oliver tocou num ponto crucial ao referir-se às supressões dos sermões, determinadas pelos inimigos das verdades divinas — os bispos. O senso comum tendia à aceitação, ainda que com amargura. Em 1630 e 1631 as colheitas foram ruins e a pobreza aumentou. À oposição política, tão vociferante durante o último Parlamento e ao longo do silêncio oficial, não concordava, mas fora posta de lado. Não surpreende que a visão
dos eleitos se voltasse na direção do Novo Mundo, situado além-mar, onde a
consciência e a prosperidade poderiam florescer, e as frustrações decorrentes do controle episcopal e do rei seriam porventura esquecidas com o estabelecimento de um reino de Deus. O próprio Cromwell parece ter considerado seriamente a possibilidade de emigrar com sua família para a América do Norte, nos primeiros anos da década de 1630. Nesse período, o auto-exílio esteve estreitamente vinculado à oposição po-
uma de as tom sin dos um era Í los Car rei o que de fato s ple sim o pel lítica,
as tad vol mas fir de em tag mon A ra. ater Ingl na va era imp que ção grande insatisfa
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à colonização de certas áreas do outro lado do Atlântico foi um método utili. zado por opositores políticos do rei, que assim se mantinham informalmente unidos durante a prolongada ausência do Parlamento. Entre os homens res. ponsáveis pela fundação da companhia de New Providence estavam o conde de Warwick, /ord Saye&Sele, sir Nathaniel Rich e o conde de Holland, todos proeminentes puritanos que haviam participado do grupo de oposição à Corte,
Mais tarde, a eles se somariam John Pym, Oliver St John e sir Thomas Barrington. Foi a perda de posição, em 1629, que estimulou John Winthrop a buscar garantias de concessão para a companhia da baía de Massachusetts e construir lá, na costa leste da América do Norte, seu próprio reino de Deus:
embora os destinos das duas companhias — New Providence e a da baía de Massachusetts — viessem a se tornar muito diferentes, a primeira convertendo-se
em companhia privada, interessada em conquistar as riquezas descobertas pelos espanhóis, e a segunda se transformando na base de um Estado teocrático, suas origens foram bastante similares.” Não podemos perder de vista que alguns dos nomes associados à New Providence possuíam laços de parentesco com Oliver Cromwell. De acordo com a história repetida por um dos partidários do rei que escreveu uma de suas primeiras biografias, posteriormente adaptada por historiadores de ambos os lados do Atlântico, no século XVIII, Cromwell teria embarcado, no ano de 1638, num navio ancorado no Tâmisa, prestes a zarpar, na companhia
de dois outros futuros líderes parlamentares, Arthur Haselrig e John Hampden. No último instante, porém, o Conselho recusou a permissão para que o barco levantasse âncora, e enquanto a ordem não foi rescindida, em al-
gum momento do atraso, as “três famosas personalidades” teriam descido à
prancha. Em 1702, Cotton Mather supôs que “seus adversários não os teriam detido (...) se tivessem previsto os eventos posteriores”.º Assim, segundo O ponto de vista do escritor, a América do Norte escapou de muitos problemas, ou de alguma forma de grandeza virtual: as possibilidades dramáticas de uma carreira de Oliver Cromwell no Novo Mundo constituem tema especulativo deveras interessante. Apesar da persistência dessa versão, uma partida projetada em 1638 não
se encaixa com o que sabemos a respeito da disposição e dos movimentos de Cromwell nesse período. A verdadeira história da emigração é bastante anterior e tem uma gênese mais profunda. Não há razão para duvidar dela, S€ bem que os realistas tenham procurado vinculá-la, de forma equivocada, a um
incidente posterior, bastante diferente, insinuando que Cromwell queria esca-
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par porque dilapidara seu patrimônio. Tal afirmação choca-se com o fato de
que sir: Thomas Steward, tio materno de Oliver, morto em 1636, nomeou-o seu principal herdeiro.” Sabemos que Cromwell sempre foi atraído pela idéia do Novo Mundo puritano: sua correspondência mostra um contínuo e caloroso interesse por aqueles aventureiros velejadores que empreenderam uma
grande epopéia para satisfazer suas consciências. Os discursos que proferiu como Lorde Protetor e muitos aspectos de sua política externa revelam uma
concepção positivamente romântica do ideal colonial — encontrar ou fundar a vida a serviço de Deus. A idéia desse salto passou por sua cabeça depois da década de 1630. De acordo com Clarendon, em
1641, quando a Grand
Remonstrance [Grande Reprimenda] foi apresentada ao rei, Cromwell teria sussurrado aos ouvidos de Falkland que, se não fosse assim, ele estava decidido a emigrar. Deixar a Inglaterra, o que em certo sentido correspondia a um gesto de desespero, não seria nada excepcional, nem particularmente irresponsável; por essa época, o retorno de John Winthrop, o jovem, de Massachusetts deve ter permitido a muitos puritanos ouvir histórias inéditas acerca da vida colonial. Lord Warwick e /ord Brooke cogitaram dessa possibilidade durante os tempos mais negros; sir Mathew Boynton, que mais tarde seria membro do Longo Parlamento, escreveu a Winthrop, em Massachusetts, indagando sobre as condições de moradia, “no caso de que eu tenha de ir para aí”. Em 1638, Cromwell era um proprietário cuja vida tomara outra direção,
obrigando-o a assumir outros compromissos e responsabilidades. Talvez ele tenha interpretado a morte de sir Thomas como um sinal de Deus — uma perspectiva que estaria bem de acordo com sua reverência ante desígnios stmilares, nas décadas de 1640 e posteriores. O testamento que o beneficiara fora ditado em janeiro de 1636, denegando outro escândalo suscitado pelos realistas, segundo os quais Cromwell teria tentado usurpar a propriedade do tio, provando que ele era louco. Oliver herdou, de fato, uma propriedade cuja renda foi estimada por Heath entre quatrocentas ou quinhentas libras anuais,
deque imaginar Impossível Ely. em local status considerável um como bem oupois disso ele ainda pensasse na hipótese de emigrar. De um jeito ou de
tro, o projeto não tinha nada de vergonhoso, como alguns escritores chegaram a sugerir; tal qual outros puritanos honrados, mas infelizes, buscando exatamenr idi dec do tan ten , vam ssa ave atr que al mor e cris a para o uçã sol uma
trao nir defi era ria que ll mwe Cro que o , hor mel ro futu o ava situ se e te ond balho de Deus a ser feito neste mundo.
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Em Ely, os Cromwell ocuparam a casa onde nascera a mãe de Oliver,
irmã de sir Thomas, que, sem descendentes diretos, fora bastante generoso com o sobrinho, seu principal legatário; ele deixou uma renda para a irmã e
distribuiu algumas pequenas dotações, inclusive cinco libras destinadas 20 sobrinho-neto mais velho. O patrimônio consistia em várias propriedades ao redor de Ely e na própria cidade, a maior parte delas arrendadas dos deães e do cabido, incluindo 36 hectares de glebas nos campos comuns, 3 hectares de pasto na ilha de Ely, e Bartin in Ely, com suas casas, celeiros e terrenos. Ha-
via ainda o dízimo e a gleba do Presbitério da Santíssima Trindade — a cate-
dral —, a igreja de St Mary in Ely e seus terrenos, a capela de Chettisham, o Celeiro Sextry — o segundo maior da Inglaterra, de acordo com os habitantes da região — e todos os lucros de casamentos, missas e enterros em todos os lugares.* As rendas eram trimestrais — totalizando 77 libras —, mais 5/4 do “melhor trigo, metade entregue no Natal e o restante no dia de Nossa Senhora”?. Não se sabe que “luvas” Cromwell teve que pagar para assumir o arrendamento.!º O novo lar de Oliver Cromwell e família estava dentro do perímetro da cidade, situada numa pequena elevação na margem ocidental do Ouse — segundo Bede, o nome derivava das eels [enguias] do rio. À seu redor se es-
praiava a área plana do Cambridgeshire, conhecida como a ilha de Ely, no passado associada às últimas batalhas que o herói saxão Hereward, o Vigilan-
te, travara contra os invasores normandos. A casa dos Cromwell ficava junto
de um agradável parque, com vista para a grande catedral — mais tarde Carlyle fixou-a “a dois tiros de distância da igreja”, embora tal medida fosse particularmente inadequada à trangiilidade local.** Talvez os moradores da
modesta casa pintada de branco e preto, parcialmente feita de madeira, considerassem a imponência da construção eclesiástica muito dominadora. Sua torre, com o extraordinário octógono central, e a cúpula gótica já tinham ruído há várias gerações, mas o conjunto arquitetônico datava de quatro séculos. Vivendo tão próximo, ninguém seria indiferente a um símbolo tão grandioso da *Quando a regedoria de St Mary e da Santíssima Trindade foi examinada, na época da
Commonwealth, em 1650, a fim de que se promovesse sua alienação, as propriedades pertencentes aos deães e ao cabido permaneciam praticamente idênticas; havia menção a um “arrendamento” da regedoria e das oblações e oferendas da paróquia por “Oliver Cromwell,
então fazendeiro; e por Daniel Wymore, então arcediago de Ely, para Richard Pursaby; curtidor”.
** Aparentemente, a casa era uma
taberna na época de Carlyle;!! atualmente é ocupada
pelo vicariato da Igreja de St Mary, que fica bem próximo.
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Igreja instituída. Anos mais tarde, quando após a devida advertência Cromwell
interrompeu um culto anglicano, isso tanto pode ter sido consequência de um antigo ressentimento como de uma raiva espontânea. Se a catedral podia induzir a uma sensação de opressão, o campo ao redor — as vastas e isoladas planícies dos Fens — somente poderia levar à expansão da mente e da autoconfiança. Ely estava situada na fronteira daquela região pantanosa, uma área que se estendia por quase 3.400km?, no leste da Inglaterra, desde a costa até Wash e King's Lynn, ao norte, Cambridge e Peterborough, a leste, e mais alguns distritos separados, na direção de Lincoln. Estas terras, apenas ligeiramente acima do nível do mar, são regularmente inundadas no inverno; e quando as águas retrocedem, no verão, cobrem-se de uma rica, ainda que efêmera, vegetação de pasto, com a qual os habitantes alimentam o gado e colhem o feno; são terras comuns, segundo direitos há muito estabelecidos pelo Lord of the Manor [senhor da terra). Não havia cercas nem grandes casas, como Hinchingbrooke, que se sobrepusessem à força dos moradores dos Fens. Como Isaac Casaubon escreveu, em 1611, “o bittern solitário e o dotterel imitador” — uma pequena garça e uma tarambola, respectivamente — lançavam seus fortes gritos e agudas queixas sem serem perturbados.'? Lutando contra as duras, mas não impossíveis, con-
dições geográficas acima descritas, além de enfrentar os ventos provenientes da Rússia, sem nenhuma barreira para detê-los, a população dos Fens dedica-
va as energias restantes à manutenção de uma vida muito mais parecida à de seus ancestrais britânicos, pescando e caçando aves selvagens, do que o tipo de existência que se levava então nas cidades inglesas em expansão. O resto
da Inglaterra não tinha nenhuma simpatia por esses diamantes brutos e seus
problemas, olhando-os com desprezo; em Britannia [Britânia], Camden des-
creveu-os como “um tipo de população bem de acordo com o lugar onde moram, rudes e mal-educados, e invejosos de todos os demais homens das Terras Altas”. No entanto, na década de 1630, a gente dos Fens enfrentava a crise resultante de uma grande alteração em sua forma de vida, e suas comunidades desarticuladas careciam da solidariedade geral, representada pela indulgência da autoridade central ou de alguém que assumisse sua defesa. de engenharia A drenagem dos pântanos, através de ambiciosos trabalhos suficientemente secas terras charcos antigos dos extrair visava represamento, e naquelas arado do uso o inviável sido teria então até — para a agricultura
podendo inundações, sofresse terrenos dos restante o que áreas — e impedir sde s ida med as que era ma ble pro O o. eir int ano o e ant servir como pasto dur
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tinadas a possibilitar um uso mais intensivo da terra, parte da tomada das ter. ras alagadas em toda a Europa Ocidental, pressupunham um empreendimen-
to gigantesco.” A drenagem não podia ser gradual, e nenhum indivíduo esta. ria em condições de arcar com as despesas necessárias à tarefa maior A
solução foi contratar uma série de companhias, cujos proprietários, conheci-
dos como “aventureiros”, recebiam concessões da Coroa — que lucrava com isso — abrangendo vários distritos dos Fens, conhecidos como Níveis. A área de Cromwell era conhecida como o Grande Nível, e a companhia que se encarregou de drená-la e explorá-la estava sob a direção do conde de Bedford. Por seu investimento, no final do trabalho, os aventureiros recebiam uma parte da terra recém-drenada — em média, cerca de 1/3 do total.
A maneira como as companhias se apoderavam dessas terras, no entan-
to, variava muito; utilizadas pela comunidade como pasto comum ou entre-
gues pelo senhor da terra a seus arrendatários, de acordo com o antigo estatuto de Merton, eram necessárias medidas especiais para agregar de forma lucrativa tudo aquilo que anteriormente tinha sido muito segmentado. O antigo tribunal de águas e esgotos — Court of Sewers — foi invocado, pois tinha o direito de multar qualquer grupo de pessoas acusado de estar “cercado de forma prejudicial” — por um pântano não drenado —, forçando-o a vender suas terras, estabelecendo taxas, fixando a data do seu vencimento
e confiscando os bens dos inadimplentes. Nem todos os júris se submetiam a tais princípios, e, quando os cidadãos que compunham o tribunal do Lincolnshire tentaram excluir dos “limites prejudiciais” uma área específica, O rei, pessoal e financeiramente envolvido na drenagem, escreveu aos comissários locais, dizendo-lhes que prosseguissem com a venda das terras de qualquer forma; irado, ameaçou usar as prerrogativas reais, caso se man-
tivesse a oposição à sua vontade. Uma vez completada a drenagem, a posição do senhor da terra não era necessariamente tão desfavorável. Sem dúvida, ele se beneficiava com o indiscutível melhoramento. Os pobres “comuns” tinham muito mais dificuldade
em desfrutar desses benefícios. A terra comunitária, destinada à criação de
gado, reduzia-se em 1/3, às vezes mais, extinguindo-se as oportunidades de pescar e caçar aves selvagens, tão importantes para o suprimento de alimentos no inverno.
Cuidado com os grandes planos que eles engendram agora, E que farão definhar nossos corpos, entregues aos corvos e ratos
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gritava Powte, em seu Complaint [Queixa], dirigindo-se à população comum,
que não desfrutaria dos prazeres da terra arável, do cânhamo e do linho, só cultivados nas novas áreas disponíveis para o senhor da terra, segundo confiantes predições. Em tais circunstâncias, e em proveito de suas próprias reivindicações, é compreensível que “um tipo mais mesquinho de gente” optasse por ignorar o ideal abstrato do progresso agrícola. Alguns protestaram com indignação, alegando que a drenagem contrariava a religião cristã, por interferir na
obra da natureza: “Os Fens foram criados assim e assim devem continuar, eter-
namente.” Na década de 1630 havia uma considerável oposição local aos projetos de drenagem ou, como um viajante relatou, em 1634: “Percebemos que a Cidade e o Campo daquela região murmuravam muito” — cidades como Cambridge, temendo a perda de suas rotas de transporte, e populações camponesas, em virtude da perda de seus pastos.” O momento crítico não se dava durante o processo de drenagem em si, quando a mão-de-obra local até podia encontrar mais empregos, mas no instante em que os encarregados da operação, tal qual o anão Rumpelstiltskin no
conto de fadas, retornavam para exigir seu prometido prêmio — separando
com barragens as porções alocadas de terra que lhes dariam lucro. Houve cenas desagradáveis de violência e protesto contra aquilo que não poderia ser aceito. É impossível deixar de simpatizar com os comuns, a população destituída e desamparada, em suas reações desesperadas contra o inevitável. Seu ressentimento é particularmente compreensível, mesmo aos olhos de um pesquisador que sabiamente observou: “Um certo grau de coerção é inseparável de projetos deste tipo.”!* Todavia, não teria sido necessária tanta repressão, neste caso, se a população fosse compensada de forma mais generosa pela mudança de sua condição. Esta, pelo menos, foi a linha definida por Cromwell, que em 1637 tornou-se porta-voz dos comuns, originários de uma classe com-
pletamente diferente da sua.
É mais do que evidente que a ação solidária de Cromwell foi motivada por sua consciência social, e não por qualquer objeção à drenagem como tal,
so ces pro o o tant e ent mem fir a iav apo po, tem to mui há lia, famí sua visto que e seu pai Seu ão. izaç real sua na ar reg emp em ess dev se que os mei os nto qua as águ de ios sár mis [co ers Sew for r nne sio mis Com o com ado atu tio já tinham
opos se sse tive d war Ste mas Tho sir o, ern mat lado pelo e esgotos], ainda que, lhes que as terr de ção por pro da o uçã red uma do obti e s” iro ure ent +o aos “av faem er Oliv de s esto prot os ez Talv 1/4. para ade met da s, seriam concedida à cia stên resi de la amp mais iva pect pers a num em riss vor dos comuns se inse
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expansão das prerrogativas reais. Hostil, sir William Dugdale afirmou que Cromwell “estava especialmente apto a tomar a defesa daqueles que sempre se propuseram a solapar a autoridade real (...)?. Enfim, no verão de 1637,
os arquivos oficiais registram um áspero incidente ocorrido quando um dos
supervisores das barragens de divisão, no Grande Nível, tentou retirar o gado da população do Holme Fen, em Huntingdon, a fim de cercá-lo. Um juiz de paz local, o sr. Castle, com apoio de gente sob suas ordens, obstruiu o supervisor, enquanto uma multidão de homens e mulheres armados de foices e forcados gritava ferozes ameaças contra qualquer um que tentasse
retirar o gado dos Fens. Ao mesmo tempo, comentava-se nos Ely Fens e nos Fens próximos que “o sr. Cromwell assumira a responsabilidade de im-
pedir por cinco anos os trabalhos de drenagem, envidando para isso ações
legais que permitissem a utilização de todo o campo comum ao longo desse período; em troca, ele receberia um groat — moeda de muito pequeno valor da época”.!é No ano seguinte explodiram numerosas revoltas em diversas áreas do Grande Nível, e um juiz de paz e proeminente “aventureiro”, sir Miles Sandys, chegou a manifestar seu temor de uma rebelião geral que se estendesse a todas as cidades do Fen. Talvez por isso tenha se alterado a política central, de modo a permitir-se aos comuns manterem suas terras, naquele mo-
mento, desde que eles pudessem provar que elas não haviam sido beneficiadas
pelas drenagens. Porém, antes que surgisse uma solução definitiva, estourou
uma rebelião que extrapolou os limites das cidades do Fen, envolvendo todo
o povo inglês e absorvendo as energias de toda a população — ao longo da guerra civil, o futuro dos Níveis sempre esteve em questão.
O significado da irrupção de Cromwell no campo da liderança popular,
no entanto, não foi facilmente esquecido. Naquela época, a população pobre dos Fens não representava uma causa particularmente importante para o resto da Inglaterra: mais tarde, os inimigos de Cromwell referiam-se a ele como “Lorde dos Fens”, um título que pode ter conotação romântica hoje em dia,
mas cuja intenção contemporânea era ridicularizá-lo.* O episódio, marcado
pelo impulso da consciência social de Cromwell, forneceu a base da poderosa influência que ele exerceria, posteriormente, sobre essa mesma população, com vistas à criação de um exército em tempo de guerra. É importante notar “O sa ap areceu pela primeira vez no Mercurius Aulicws, jornal realista, em novembro daretítulo €
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que tanto Huntingdon, onde Cromwell tentou bloquear o estabelecimento de um burgo podre, quanto os Fens, onde ele exerceu a defesa da população destituída, situavam-se no território da Associação do Leste, área de seus futuros recrutamentos militares.” Enquanto isso, em Londres, os contemporâneos e parentes de Oliver ocupavam-se de assuntos de natureza muito mais importante. No verão de 1637, o julgamento que resultou na condenação de três puritanos — O advogado William Prynne, o dr. John Bastwicke e um clérigo chamado Henry Burton —, acusados de escrever um panfleto chamado Netos from Ipswich [Notícias de Ipswich], tornou-se foco de alarme e fúria popular. Prynne, dotado de um forte caráter maníaco € “feições de um feiticeiro”, tinha sido levado à política nacional por medo do “papismo? e de conspirainha à e ataqu to violen ir desfer após antes, anos Três as. jesuít dos rações e à companhia teatral — Histriomastix — que Sua Majestade mantinha oresuas , rinho pelou ao nado conde ; multa uma pagar que teve Corte, na
lhas foram “aparadas”. Desta feita, os três acusados receberam sentenças e Prynn . adas” “apar ou s stada desba vez uma mais s orelha as ter — iguais ainda sofreu um refinamento adicional de crueldade: seu rosto foi marcaseou, oso] sedici mador [difa er Libell ous Sediti — “SI” letras as com do gundo sua própria ironia, Stigma of Laud [estigma de Laud!|. O incidente causou profundo impacto na multidão de espectadores, dana do a impressão de que a adversidade simplesmente estimulava os puritanos expressar com maior firmeza suas opiniões. Era fácil para os observadores seu acreditar nas declarações feitas com bravura por Prynne acerca de todo o muUma r”. ndece engra me fazem só ir, destru me rem tenta “ao sofrimento: à ajulher da multidão respondeu: “Há muitas centenas de pessoas que, com !º ” hoje. tes sofres que causa pela de vonta boa de iam sofrer da de Deus, como Em termos materiais, a Coroa instituíra um imposto conhecido poro, furios nto ntime resse um de dor causa ,* navio] de ship-money [dinheiro trase não te, camen Teori ficar. para viera ele que que logo se tornou evidente
naval das defesa da nto ciame finan o o ivand objet ade: novid tava de nenhuma sem , itente interm forma de ado utiliz fora já cidades costeiras, o expediente país suso todo a ão extens e ridade regula sua , Porém gerar qualquer protesto. vinte — ção avalia uma de custo o pagar a se andocitaram suspeitas. Recus
os de guerra e íod per em mos íti mar os dad con € tos por nos e * Imposto cobrado normalment Carlos 1. (N. do T.) de o isã dec por 5, 163 em a, err lat Ing a a tod a arbitrariamente estendido
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shillings —, o primo de Cromwell, John Hampden, foi julgado, em novembro de 1637, sendo defendido por Oliver St John, outro parente igual. No fim do
processo, os juízes deram a razão ao rei, mandando Hampden para a prisão. O veredicto pareceu assustador, especialmente devido às justificativas dadas por sir Robert Berkeley, um dos juízes, que disse “rex est lex loquens” — “o rei é a lei viva, falante e ativa”."” Que papel estaria reservado ao Parlamento num governo submetido a uma lei de tal ordem? O caso do rei baseou-se em seus direitos de
taxar os súditos numa época de grave perigo nacional, cabendo ao próprio so-
berano definir tal ocorrência — um perigoso precedente, sem dúvida. Em 1638, o rei, responsável final pelas mutilações e prisões de súditos londrinos, viu-se às voltas com outros problemas surgidos nos satélites mais ao norte. À Escócia — aquele país submetido com exclusividade por seus ancestrais, até a fatídica viagem ao sul que seu pai empreendera para assumir o trono da Inglaterra, em 1603 — encontrava-se agora em estado de rebelião. Pois, apesar de todo o seu sangue Stuart, Carlos I nunca fora capaz de enten-
der nem gostar dos escoceses, povo com o qual entrara em contato pela primeira vez aos 33 anos. À repulsa parece ter sido mútua. A política de pesada taxação — em contrapartida a quase 150 mil libras entre 1635 e 1636, o va-
lor de cingienta mil libras, antes de 1625, só fora ultrapassado uma única vez — produziu profundo mal-estar.” No que diz respeito à sua dispendiosa coroação, os escoceses demonstram que sua repugnância a cerimônias tão ricas não expressava simples avareza; ao contrário, era parte de uma atitude de aus-
teridade antiga e arraigada face a todas as ostentações e ornamentos do culto divino. As vestimentas douradas dos cinco bispos, na coroação de Carlos I, e à rica tapeçaria por trás da mesa de comunhão, seu “crucifixo cuidadosamente desenhado”, representavam as inovações que os escoceses mais temiam, tanto quanto Prynne receara as representações teatrais patrocinadas pela rainha, €
Os puritanos ingleses, preocupados com a falta de moderação dos sinais-dacruz e as genuflexões em nome de Jesus. Nesse contexto, pode-se dizer que crescia o desagrado, posto que uma boa parte dos tributos era consumida na
construção de templos luxuosos; além disso, desde a ascensão de Laud, as ati-
tudes armínias de uma parcela do clero escocês só contribufam para aumentar
a determinação dos calvinistas. Na linguagem colorida típica da época, George Gillespie escreveu, em 1637, que sua igreja absorvera “os podres detritos do papismo, jamais expurgados da Inglaterra e da Irlanda, vomitados
com ódio, na Escócia, e que agora eram lambidos. (...) Mãe das pros titutas,
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ela se tornou menos atraente, a face pintada (...) fronte envergonhada e marcada pela besta (...) cachos frisados com a dureza das modas do anticristo (...) castos ouvidos forçados a ouvir os amigos da grande Meretriz (...)?.? A publicação de uma nova liturgia, em 1637, que em virtude da prerrogativa real tornou-se obrigatória em toda a Escócia, foi solenemente refutada pela Convenção Nacional, de Alexander Henderson e Archibald Johnston, revisada por três nobres escoceses — Rothes, Loudoun e Balmerino — em
fevereiro de 1638. Conquanto predominasse no país um forte sentimento messiânico, o documento nada tinha de emocional, ainda que convocasse uma
ação ampla, apelando com base nas normas legais e lembrando ao rei que o juramento de sua coroação confirmava a supremacia do Parlamento. Com todo o vigor, os escoceses conclamavam uma verdadeira cruzada, € a aristo-
cracia nacional, envolvida na luta contra a dominação do sul, não tardou a providenciar os líderes naturais.” Quando a assembléia da Igreja da Escócia
refutou o novo Livro de preces, e apesar dos protestos do rei, endossou a Convenção, Carlos I viu-se obrigado a tentar se impor através de uma ação militar, na chamada Primeira Guerra dos Bispos. Por razões óbvias, a causa não desfrutava de popularidade entre os puritanos ingleses, nem contava com o apoio da maioria da população. Bulstrode Whitelocke, outro primo de Hampden, advogado e membro do Parlamento, escreveu em seu diário que “os discursos da guerra escocesa foram vários: aqueles que favoreciam as perspectivas papistas e dos prelados eram muito agressivos com os convencionais, mas em geral o resto da população favoreceu e aprovou os seus procedimentos (...)?. Se pudermos dar mais um crédito de confiança a Heath, Cromwell não foi “atingido” pelo conflito mais do que pela questão do dinheiro de navio, e em conversa com os comandantes do exército que se hospedaram em sua casa, a caminho dos combates que deveriam travar, ao norte, deixou bastante clara sua desaprovação às ações do rei. Apesar de tal discurso ter atraído as suspeitas dos militares, ele se tornou ain-
da mais popular em sua vizinhança em virtude da franqueza com que falara tratado — “no geral, todos estavam infeccionados com o puritanismo”.? O
comum a chegou se não mas hostilidades, às fim pôs 1639, em de Berwick, diversa. promisso, visto que os escoceses € O rei o interpretaram de maneira A assembléia escocesa adiantou-se e aboliu o episcopado. no mergulhava Inglaterra a 1640, de ano o aproximava se À medida que pessimismo. Com seus dedos predatórios, a luta envolvera o norte e em breve,
cavaSlingsby, Henry sir 1639, de janeiro Em novo. de tocaria o certamente,
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lheiro do Yorkshire que mais tarde lutaria em defesa do rei, exprimiu o que
provavelmente passava pela cabeça de muitos, durante a Primeira Guerra Es. cocesa, ao descrever o treinamento de um cavalo ligeiro, em Bramham Moor
como “nossa morte pública”. Seu diário registra a seguinte observação: ck um espetáculo deveras estranho ver esta nação que viveu tanto tempo na paz, sem o ruído de tiros e tambores, e depois se manteve neutra e ainda em paz, quando todo o mundo ao redor se levantou em armas e se destruiu com isso
— eu afirmo que é uma coisa por demais horrível que nos engajemos num
conflito entre nós mesmos, permitindo que nosso próprio veneno se avolume
a ponto de nos consumir.” Não era preciso ir ao teatro para entender, através de fabulosas representações, as trágicas revoluções da fortuna humana: “Nós mesmos seremos os atores.”
No princípio de 1640, forçado de certa forma pelo desperdício de dinheiro na guerra da Escócia, e em parte devido à necessidade de ajuda em futuras
confrontações, o rei convocou o Parlamento mais uma vez — esta assembléia tornou-se historicamente conhecida como o Parlamento Curto. No hiato de
11 anos muitas coisas haviam se modificado: o duro Thomas Wentworth, conde de Strafford, o mais competente dos ajudantes do rei, em breve retornaria ao seu lado e, ao chegar da Irlanda, traria consigo, como muitos
temiam, a ameaça de um exército irlandês em condições de esmagar todos os opositores escoceses e ingleses. A este Parlamento Oliver Cromwell compareceu, mais uma vez, não eleito pelo seu antigo distrito de Huntingdon, mas como um dos dois burgueses representantes de Cambridge, sendo o outro Thomas Meautys, oficial do Conselho Privado, uma indicação do governo, por aparente insistência de /ord Keeper Finch. Alguns meses antes da indicação, Cromwell tinha se tornado um “homem livre da cidade” de Cambridge,
mediante o pagamento aos pobres de um 2enny. Isso, juntamente com algum
tipo de alojamento simbólico na cidade, tradicionalmente vinculado a um lugar onde hoje é o quintal da White Bull Inn, em Bridge Street, constituía toda a qualificação essencial exigida. A adoção de Cromwell por Cambridge indica o renome que ele alcançã-
ra, revelando aquele crescimento geral que o habilitava a “lugar e autoridade”
e em virtude do qual “suas qualidades pareciam destacar-se, como se ele tivesse escondido capacidades, até que surgisse a ocasião de usá-las”, comentou Clarendon; assim fora, desde seu desenvolvimento inicial. Além das relações
com o heróico Hampden, Oliver tinha muitos vínculos na área do Midland oriental e arredores; provavelmente, o prefeito eleito de Cambridge, Thomas
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French, tinha parentesco com o dr. Peter French, futuro marido de Robina,
sua irmã.?º Não se tratava mais de um caso particular de influência que assegurasse a eleição. Cromwell já possuía estatura e alguma posição, incluindose nos conselhos do partido oposicionista, dominado — embora não oficialmente liderado, no sentido moderno — por John Pym. Seu alojamento, em Londres, ficava em Long Acre, próximo de Covent Garden e do Strand, naquele enclave em que tantos líderes parlamentares, inclusive Pym, em Gray's Inn Lane, encontraram hospedagem. Participar no Parlamento Curto, para ele, era um direito normal.
Antes de Oliver partir para Londres, os Cromwell tinham se multiplicado e sofrido uma perda. Sua mãe e sua irmã mais moça Robina viviam agora na casa de Ely, com ele, Elizabeth e os seis filhos. Uma de suas irmãs, Jane, casara-se com John Desborough em junho de 1636, trazendo para o círculo totêmico outro futuro colega de Parlamento e líder militar, mais tarde grosseiramente satirizado por Butler, em Hudibras, na pele do “austero gigante Desborough” e motivo de zombarias em panfletos dos partidários do rei por causa de suas origens rurais. Na verdade, Desborough era um noivo perfeitamente aceitável para Jane Cromwell: de uma boa família do Cambridgeshire, filho mais moço do senhor da terra de Eltisley, tendo inicialmente estudado Direito, tornou-se um fazendeiro nas imediações. A família de Oliver aumentou, quase oito anos depois de Bettie, com o nascimento de Mary, em fevereiro de 1637 — ela foi levada de volta a Huntingdon, a fim de ser batizada na Igreja
de St John. Em 1638, no entanto, Francis, a última criança nascida de Oliver e
Elizabeth Cromwell, recebeu o batismo na Igreja de St Mary, em Ely. A família contava então com oito crianças sobreviventes, quatro meninos € quatro meninas, e no início da década de 1630, como todas as demais daquela época, não escapara de algumas mortes prematuras — Elizabeth dera à luz dois bebês que morreram ao nascer. Crescendo, os Cromwell não estavam destinados à se manter intactos e sem alterações. Em maio de 1639, o jovem Robert Cromwell, filho mais velho de Oliver, com 17 anos, mandado com seus irmãos de algumorreu Bourchier, James str avô, seu de casa da perto Felsted, escola à
sregi O . ial oqu par ja igre na ado err ent foi te: den aci ou ida hec con ma febre des a e ent tem , uro fut de az rap um o com , nte ame ari sum ele a tro em latim se refere a perda — teza tris rme eno sa des nça bra lem A .” sas coi as as tod de ma Deus aci a. vid sua de fim o até ll mwe Cro com r ece man per vai — do filho amado ueraq enf se dotin sen e ie, Bett de te mor pela do ngi ati Passados vinte anos,
Paulo que termiSão de to tex um a alt voz em leu e lia Bíb a cido, ele pediu
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nava assim: “Aprendi a estar satisfeito em qualquer situação; já fui diminuído
e elevado (...) com a ajuda de Cristo, que me fortalece.” Repetindo “através de Cristo, que me fortalece”, acrescentou: “Esta escritura salvou minha vida,
quando meu filho mais velho morreu, o que atravessou meu coração como uma adaga (...).” A lâmina no coração, singela imagem da morte de Robert, aparentemente não produziu nenhum efeito no curso de sua vida. Terno com os filhos e as irmãs, ele passou a ter a partir daí, no entanto, um afeto especial por aqueles que como ele haviam sofrido perdas semelhantes. Sua famosa car-
ta ao cunhado Valentine Walton, dando-lhe a notícia da morte de seu filho, na batalha de Marston Moore, emociona por sua objetividade e compreensão.
“Senhor, conheceis meus sofrimentos por essa mesma razão”, escreveu Cromwell; “aí está o seu precioso filho, cheio de glória, que nunca mais conhecerá o pecado nem a tristeza.”? No ano seguinte, se não o satisfez, a política lhe deu pelo menos o consolo da ação. O Parlamento Curto foi marcado por um requerimento de John Pym, moderado, mas num tom firme, reivindicando que os direitos do Poder Legisiativo fossem reconsiderados. O grande leão parlamentar era então um veterano de 55 anos. Num discurso excepcionalmente longo para os padrões da época — quase duas horas — ele convocou a Câmara dos Comuns a realizar uma reforma geral a partir de todas as queixas religiosas e políticas feitas ao rei. Seu discurso começava com palavras inspiradoras — “Os poderes
do Parlamento, no corpo político, equivalem às faculdades da razão, no tocante à alma do homem” — e terminava propondo legislaturas anuais, pois
um longo intervalo entre as sessões “contrariava os dois estatutos em vigor”. Quando se sentou, todos na Câmara ergueram-se, bradando: «Ótimo discurso!” No entanto, o Parlamento foi dissolvido algumas semanas mais tarde, tendo o rei rejeitado, na prática, a perspectiva de Pym a respeito do corpo político.?? Carlos I, no entanto, foi incapaz de chegar a um acordo com os escoceses e envolveu-se numa nova ação militar contra eles: a Segunda Guerra dos Bispos. Em meio a todos os problemas financeiros e suspeitas, a ausência do
Parlamento não podia ser mantida. Reconvocado no outono, nele estava presente Oliver Cromwell, eleito mais uma vez por Cambridge, só que agora
mais afinado com seu companheiro de bancada, o puritano Jobn Lowry, ho-
mem do lugar e membro do conselho dos 24, que derrotara Meautys, indica-
do pelo governo. O partido oposicionista considerou o significado dessa eleição de enorme importância.”
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O Parlamento Longo instalou-se no dia 3 de novembro. A data correspondia ao aniversário daquela legislatura em que, sob Henrique VIII, Wolsey caiu e as abadias foram dissolvidas; por isso, alguns membros tentaram persuadir o arcebispo Laud a propor um adiamento, a fim de evitar a nefasta coincidência. Confiando nos príncipes, talvez como Wolsey o fizera antes, o arcebispo se recusou. A composição do Parlamento que se apresentava diante do rei era obviamente de importância vital. Pesquisas recentes forneceram algumas estatísticas interessantes que permitem uma estimativa sobre a atuação
de Cromwell: afinal, ele seria o homem que iria emergir ao final da assembléia — “aquele longo, ingrato, tolo e fatal Parlamento”, segundo John Evelyn — e ao longo de inacreditáveis 13 anos, como o incontestável governante da Inglaterra.” A primeira coisa a se notar é que Oliver não se integrou aos jovens radicais; aos 41 anos, fazia parte da metade dos membros mais velhos. A bem da verdade, o tempo iria demonstrar que os partidários do rei contavam ainda menos idade — em média, 35 anos —, mas deve-se
salientar que, em 1640, Cromwell já pertencia à categoria dos políticos conhecidos. Estava, por exemplo, entre os cerca de duzentos membros que já haviam participado de um Parlamento anterior, e o fato de que a maioria desses homens experimentados estivesse a favor do Parlamento — 128 contra 75 partidários do rei — certamente representou uma poderosa força para os seus líderes.” Estavam em jogo, fundamentalmente, os interesses dos proprietários de terras, seguindo-se os dos advogados e comerciantes, bem como os de outras categorias mais populares. Além disso, o Parlamento Longo punha em evidência as ramificações parentais da sociedade inglesa; um enorme número de membros possuía vínculos entre si, nenhuma facção mais do que a de Pym, à qual Cromwell pertencia, conforme já foi enunciado. Com o mesmo nível educacional universitário e experiência comum nos tribunais, cerca de 150 parlamentares, como ele, tinham o mesmo tipo de formação — forjando alianças políticas a partir de laços familiares e proximidade geográfica; assim, típico participante desse culminante Parlamento, Oliver não era um neófito, se bem que não fosse um líder. Sua primeira aparição pública, entretanto, foi auspiciosa. Ele defendeu empedernimais seus de um seria ironicamente que Lilburne, John um certo
cia rên apa a ha tin te tan ins e uel naq que mas os, xim pró s ano dos opositores, nos fora sentenele s, ido tec de te ian erc com um de iz end apr igo Ant . tir már de um pena uma rer sof e o inh our pel o pel sar pas o, ead cot chi ser ta, mul uma a ciado
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de prisão pela distribuição de panfletos não permitidos, inclusive um de William Prynne. No cárcere, Lilburne demonstraria um pouco de seu futuro
ímpeto, justificando a fama de “homem turbulento, que nunca está calmo”, ao
escrever um relato dos padecimentos que suportou, sob o título de The Work of the Beast [O trabalho do demônio], contrabandeado para fora das grades, Podemos avaliar o clima reinante pelo fato de que Bastwick, Burton e Prynne tinham retornado a Londres, recentemente, “como três Césares conquistado-
res, a cavalo”, segundo um panfleto da época. A indignação de Cromwell se incendiava com a idéia de que o jovem Lilburne tivesse sofrido punições tão selvagens e ainda permanecesse numa cela, expiando a culpa de ter distribuído textos proibidos. Ele foi fazer parte da comissão da Câmara que investigava o assunto e que incluía Pym, St John e Hampden.* Numa dramática coincidência, sir Philip Warwick, político e historiador realista, testemunhou o discurso de Cromwell na comissão e dele deixou um
relato para a posteridade, em suas memórias, onde relata que estava de visita à Casa dos Comuns, quando observou um cavalheiro falando — para ele, um
estranho. “Bem vestido”, como teve o cuidado de frisar, Warwick julgou a
aparência do desconhecido pouco atraente. Ainda que de boa estrutura física, trajava uma roupa de corte ordinário, que parecia ter sido feita por um mau alfaiate rural. Além disso, o vulgar tecido de linho não estava muito limpo — uma ou duas manchas de sangue cobriam praticamente todo o colarinho; esse descuido geral se completava com a falta de uma cinta no chapéu. A Câmara dos Comuns, no entanto, ao contrário de sir Philip, era indiferente a esses detalhes. A eloqiência do orador, apesar da sua “aparência corada e inchada, à voz aguda e desentoada”, soava inegavelmente cheia de fervor. Através de um conjunto de fontes podemos esboçar um retrato de Cromwell, aos 41 anos, e tal como ele se manteria, sem qualquer mudança,
até uma avançada meia-idade. A primeira versão — pintada por Robert Walker — data de 1649; provavelmente, existem outras anteriores, datadas
de 1643 e 1646, mas essa mostra pouca diferença em relação aos mais refinados trabalhos de Cooper e Lely, elaborados durante o Protetorado. Há uma concordância geral sobre seu aspecto corado. Um indelicado comentarista, anos mais tarde, Samuel Butler, talvez, referiu-se ao seu rosto “cor de couro”, de tal sorte que não precisava de nenhuma armadura — “sua pele
parece uma cota de malha enferrujada” —, comparando-o a um pedaço de madeira ou a uma amêndoa. Mais caridoso, Richard Baxter limitou-se à destacar sua tez sangiiínea.
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Já Walker nos mostra um rosto que certamente não era bonito nem repulsivo. Nele vemos um homem de altura mediana — algo em torno de 1,70m —, “bem-proporcionado, mais do que alto”, segundo Flecknoe — “forte e dotado de uma constituição robusta, um aspecto leonino, fisionomia
que denotava o verdadeiro caráter de todos os grandes homens e grandes generais”. A fisionomia é marcada por pômulos largos, emoldurada por cabelos castanhos, ligeiramente encanecidos em virtude da passagem dos anos, com-
pridos, e com pequenas entradas numa testa alta; boca curva e bem formada. As famosas verrugas, delineadas com mais cuidado por Cooper, sobressaíam na área em torno do olho esquerdo, abaixo do lábio inferior, a mais proeminente delas sobre a sobrancelha esquerda. O belo nariz, mais tarde alvo de sátiras, tinha uma ponte ossuda e indiscutivelmente longa, dando a impressão
de ser perfeitamente harmonioso, e não a probóscide malévola criada pelos caricaturistas. De fato, dá um bom equilíbrio ao rosto que, como dizia Carrington, apresentava um ar essencialmente másculo.” Contudo, são os olhos, e não a bitácula, a característica mais marcante
desse semblante, de uma cor entre verde e cinza, sombreados por pesadas pálpebras, bonitos e expressivos de uma “aguda bondade”, conforme o elogio de Marvell. A expressão nervosa, quase apreensiva, que aparece no retrato feito por Walker, contrasta a fisionomia “grande e marcial” de Flecknoe. É o olhar introvertido e melancólico da alma do peregrino que nos fita, apesar de toda a parafernália do guerreiro audacioso e confiante que o cercava, a faixa, a armadura, o bastão e a espada. Em seu apogeu, Oliver Cromwell foi essencialmente um homem de porte, digno, cuja indiferença aos detalhes da aparência — pois ele nunca perdeu muito do descuido notado por sir Philip Warwick — levava observadores a uma admiração relutante e à insidiosa suspeita de que tais refinamentos não eram, afinal de contas, tão importantes. Em 1640, ele já tinha o jeito de alguém que merecia ser observado por algum inquisitivo colega no Parlamento. Por outro lado, através de alguma veia de simplicidade, ou certa insegurança típica de sua própria natureza, havia nele também um tipo de atração peculiar, um estranho charme composto de autoridade e humildade, sentido por aqueles que foram seus íntimos, mas quase pela inteiramente fora do alcance das gerações posteriores, influenciadas época na tanto realeza, da partidários dos difamações de quantidade grande
quanto depois na Restauração. tamsenão aparência, sua apenas foi não Longo Parlamento do início No
bém seus argumentos que chamaram a atenção. Discorrendo sobre a injustiça
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praticada contra Lilburne, segundo as palavras preconceituosas de Warwick,
Cromwell “denunciou o aprisionamento deste homem pela Mesa do Conse. lho de forma tão exagerada que se poderia acreditar que o próprio governo
corria algum risco por isso”. Se bem que Warwick finalize dizendo que seu respeito pela comissão diminuíra bastante em virtude do incidente, o mais importante é que ele admite o fato do orador ter conquistado a audiência.
Elevado a alturas tais que o próprio Warwick pôde ridicularizar, esse apaixonado apelo em prol da justiça, por absurdo que fosse, deixou sua marca nos
contemporâneos de Cromwell. Na mesma ocasião, muito provavelmente pouco depois desse discurso, sir Richard Bulstrode relatou em suas memórias um incidente. Lord Digby, um dos seguidores de Hampden, notando que este tentava alcançar Cromwell, descendo desajeitadamente as escadarias da Câmara dos Comuns, também criticou a sua aparência descuidada, indagando de seu líder quem era aquele homem “que está do nosso lado, conforme pude observar, pela forma calorosa
com que discursou hoje”. Hampden garantiu que “este sujeito de ares negligentes que você vê diante de nós, e cuja retórica dispensa maiores floreios, se algum dia houver um confronto com o rei — que Deus nos impeça — será um dos grandes homens da Inglaterra”.'* A profecia testemunha a visão de John Hampden e a crescente autoridade de Oliver Cromwell.
gu dm
ESSAS ERR 4 Grande Reprimenda Posso dizer-lhes, senhores, o que não quero; quanto ao que quero, nem eu próprio saberia responder. CROMWELL,
em conversa, em 1641
e um agitador político é alguém que move, sacode, perturba e excita, então com certeza Oliver Cromwell foi um deles nesse período de 22 meses, desde o início do Parlamento Longo, até o desencadeamento da guerra civil. Longe de ser um tempo de relaxamento anterior à batalha ou uma época de obscuridade política, foi uma fase extraordinária de trabalho constante, semelhante ao de uma formiga. O registro das comissões de que ele participou, os detalhes com os quais se envolveu, os assuntos que tratou mostram-no como um dos mais assíduos entre os homens de confiança de Pym, assim conhecido no ambiente parlamentar, ainda que não necessariamente no conjunto do país. Alguns dos temas que polarizavam seu interesse mantêm um padrão icas. polít — itos once prec ou — ões ileç pred suas às o ciad asso vel, identificá ele agiu, que lam reve ções rven inte suas de dade inui cont à e ro núme o Mas to. amen Parl no iros anhe comp seus de z a-vo port um como de certa forma, idades, além da qual s outra ía possu well Crom te, adian mais verá se Conforme
discurso tiSeu as. coleg aos avam mend reco o que lho, traba sua capacidade de
efetivo ente osam curi mas el, visív impre te, cien impa za, rude de nha um traço Nesse da. ataca o send esse estiv da eleci estab de rida auto a num debate em que pode chamar da espa uma a, Igrej da ou a Coro da des iida inig às contexto, face
mais atenção do que um florete.
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Os comitês da Câmara dos Comuns, como já vimos, funcionavam meto.
dicamente, para evitar o controle do rei. À medida que as relações entre 0 monarca e os parlamentares pioraram, sua importância aumentou, ao mesmo
tempo que se tornaram mais numerosos: um ardente membro da oposição seria o que hoje chamaríamos de “diligente integrante de comissões”. Segundo os registros, ticipou, uma se esquecera radores dos
Cromwell merecia tal descrição. Mas, entre as várias de que pardelas, estreitamente vinculada a seu passado, prova que ele não de sua antiga causa — a injustiça social praticada contra os moFens. Quase imediatamente após a abertura do Parlamento,
Oliver foi indicado, juntamente com outros 32 membros, para formar um grupo encarregado de analisar as reivindicações referentes às disputas nas regiões pantanosas, e, em maio do ano seguinte, assumiu com veemência a cau-
sa dos pobres de Ely e Huntingdon. Estes “comuns? tinham encaminhado à Câmara reclamação contra o cerco de alguns terrenos, a mando de /ord Mandeville* — um ato que violava o acordo, pois feito antes que a drenagem fosse concluída, e em terras oriundas do contrato de casamento da rainha Henrietta Maria, a ele vendi-
das pela soberana. Em represália, as barreiras tinham sido violentamente derrubadas pelos comuns, que tomaram a lei em suas próprias mãos, sem esperar resposta às petições. Mandeville, por sua vez, requereu à Câmara dos Lordes a manutenção do status quo, pelo menos até que se alcançasse uma solução. Data daí a intervenção de Cromwell, defendendo resoluta-
mente os direitos dos comuns, e indo além, declarando que a Câmara dos Lordes, ao ordenar que a posse da terra fosse mantida por Mandeville, en-
quanto a Câmara dos Comuns considerava a demanda original, ferira OS
privilégios desta Casa. Três semanas mais tarde, sem nenhuma resposta
acerca da questão dos comuns ou sobre a quebra de privilégios por parte
dos lordes, ele levantou a questão, mais uma vez, afirmando que o pai de
Mandeville enviara sessenta intimações aos “pobres habitantes do Hun-
tingdonshire, acusando-os de terem derrubado as cercas”, solicitando que
fosse renovada a comissão sobre o contrato de casamento da rainha, antes
que se considerasse a petição dos comuns.
*O visconde de Mandeville sucedeu a seu pai, como conde de Manchester, em novembro de 1642, e com esse título tornou-se um líder da guerra civil. Elevado à Câmara dos Lordes,
em 1625, por seu próprio direito, como lord Montagu, de Kimbolton, também foi chamado de Kimbolton al gumas vezes.
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Reconstituída em 29 de junho de 1641, ainda com a participação de Cromwell, a comissão era presidida por Clarendon — na época, ainda Edward
Hyde —, que descreveu seus resultados no seu livro Life [Vida]. Desde o início, Oliver “mostrou-se preocupado em patrocinar e auxiliar os peticionários”, presentes em grande número, juntamente com suas testemunhas. Ele orientou
os depoimentos e os requerentes sobre como apresentar seus testemunhos e, posteriormente, apoiou e ampliou o que haviam dito apaixonadamente. Sem dúvida encorajados por essa ajuda, e sendo “uma gente muito rude”, na opinião de Clarendon, os impetrantes interrompiam o defensor de Mandeville, assim como os que haviam sido arrolados a seu favor toda vez que diziam qualquer coisa que julgassem desfavorável. Afinal, do alto de sua posição, Hyde foi obrigado a repreender a barulhenta assistência, repetida e duramente. Em consequência, Cromwell acusou-o de estar sendo parcial e tentando atemorizar as
testemunhas com ameaças. Quando a comissão endossou a atitude da Presidência, Cromwell, já meio irado, ficou totalmente fora de si. Em resposta ao discurso moderado e calmo com que Mandeville relatava os fatos — em virtude do seu casamento com a filha do conde de Warwick,
ele tinha sido cooptado pela facção puritana dos Lordes —, Cromwell falou “de forma tão indecente e rude, e numa linguagem tão hostil e ofensiva (...) demonstrando uma atitude tão tempestuosa e um comportamento tão insolente”, que Hyde o repreendeu com severidade, ameaçando suspender a sessão e queixar-se ao plenário da Câmara na manhã seguinte.? É bem verdade que ao relatar o episódio Clarendon recordou fatos passados muitos anos antes, mas nem por isso o quadro pintado por ele perde credibilidade. Este é o mesmo Cromwell que atacara Barnard, em Huntingdon, com discursos inconvenientes e vergonhosos, e atraíra a atenção de sir Philip Warwick com sua incendiária defesa de Lilburne. O caso dos pobres “comuns” dos Fens era secundário, produto da piedade privada e da indignação pública. O trabalho mais importante que Cromwell de-
senvolveu nas comissões, até o final de 1641, pelo menos, foi sobre a religião e
as práticas da igreja institucional, foco de sua maior paixão e interesse. Ele atuou, por exemplo, no comitê que analisou as queixas contra o bispo de Ely,
entusiástico partidário de Laud e opositor vociferante dos puritanos, nos condados orientais. Posteriormente fez parte do grupo que discutiu um “Ato de abolição da superstição e da idolatria, para o melhor desenvolvimento da verdadeira
adoração e do serviço a Deus”, abertamente adverso à Igreja Anglicana. Em 9 de fevereiro de 1641 pronunciou um discurso contra sir John Strangeways,
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denunciando sua sugestão de que a abolição do episcopado e a paridade na igreja produziria efeito similar na comunidade, visto que os bispos eram parte dos três estados, tendo assento na Câmara dos Lordes. Cromwell conside. rou o argumento absurdo e, manifestando-se com a habitual veemência, fo;
interrompido e repreendido devido à sua linguagem não parlamentar. Ante a proposta de que se desculpasse frente à Câmara, Pym e Holles alçaram-se em sua defesa, sugerindo que seria mais sensato chamá-lo a explicar os termos que empregara. Isso simplesmente deu oportunidade a Cromwell para reiterar sua oposição ao episcopado com um argumento adicional: ele não via nenhuma razão para as suas grandes receitas e, mais do que nunca, “estava convencido de que a hierarquia romana não suportaria ver questionadas as irregularidades que cometera e sua própria condição”. Em dezembro de 1640, a Câmara dos Comuns tinha deposto o arcebispo Laud: em março, ele foi preso na Torre de Londres. No intervalo, a fé e a organização da Igreja Anglicana passaram para segundo plano, devido às ações dos escoceses, que em suas Demands towards a Treaty [Condições de um tratado] — base de negociação com o rei — incluíram um artigo reivindicando a religião presbiteriana, pré-requisito ao estabelecimento de “uma paz duradoura entre as [duas] nações”. Mais tarde, toda a questão referente à uniformidade exigida pelos presbiterianos e rejeitada por aqueles que ficaram conhecidos como “independentes” assumiu importância vital nas relações entre o Parlamento, os exércitos e o povo da Escócia. A “independência”, descrita por um historiador como “uma forma de calvinismo descentralizado”, baseava-se na teoria de que a autoridade religiosa pertencia às comunidades locais, visto ter Cristo, deliberadamente, escolhido certas pessoas para “caminhar juntas”. Acreditava-se, assim, que cada grupo de
eleitos, em cada localidade, manteria um poder próprio e autônomo, decidindo
os seus próprios destinos religiosos. Desta forma, por sua natureza mesma, OS “independentes” toleravam muitos tipos de opinião, representativas de diferen-
tes contrarias. Os congregacionalistas, por exemplo, com suas “igrejas agrega
das” sob a inspiração de Cristo, eram “independentes”, ainda que nem todos 08
“independentes” fossem necessariamente congregacionalistas.* Os pres-
biterianos, por outro lado, cuja denominação deriva do grego presbíteros [mais
velho ou ancião], submetiam-se ao controle político central da Assembléia Nacional Escocesa, cujo dever religioso consistia em impor a uniformidade de
crença. Contudo, presbiterianos e “Independentes” concordavam que os bispos, obviamente, não tinham nenhum papel a desempenhar na teocracia de qualquer uma das seitas, e daí as reações violentas de Cromwell contra os bispos.
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Mais tarde, na luta que se travou nas fileiras do exército, entre estas duas
pontas de lança antiepiscopais, Cromwell emergiria como um dos principais “independentes”. Por enquanto, todavia, sem maiores elementos de convicção, ele apenas se dedicava a pensar no assunto. Em fevereiro de 1641 solicitou a
outro “querido amigo”, o sr. Willingham, de Swithin's Lane, em Londres, um
documento que expunha as razões dos escoceses, justificando suas exigências de uniformidade religiosa, expressa no artigo oitavo de seu Pacto. Willingham, certamente, tinha alguns contatos com os escoceses. “Estou me referindo ao que já recebi de você anteriormente”, escreveu Cromwell: ele queria ler algo mais a respeito antes que o tema voltasse a ser debatido, o que se daria muito breve.” Talvez essa busca interna da religião, contrastando uma vez mais com: a violência exterior da palavra, possa explicar seu completo silêncio sobre a questão de Strafford, o servidor do rei que foi deposto, julgado, sentenciado e finalmente executado, no princípio de maio de 1641. O nome de Cromwell só é mencionado em virtude de uma inferência religiosa: ele sugere, no que se refere à deterioração da situação irlandesa pela qual se culpava Strafíord, que a Câmara dos Comuns deveria considerar formas de “expulsar os papistas de Dublin”. A sugestão revela o rumo de seus pensamentos, explicando o prolongado envolvimento com os assuntos irlandeses, a partir da primavera do ano seguinte. A aprovação de um documento conhecido simplesmente como Protesto, um tipo de Pacto Nacional Inglês, aprovado por unanimidade em ambas as câmaras do Parlamento, em 3 e 4 de maio de 1641, com certeza contou com
a participação ativa de Cromwell na sua elaboração: foi por desejo seu que nele se incluiu um Juramento de Associação. O texto final comprova, pública e energicamente, a que níveis chegara a insatisfação diante das políticas do
rei e de sua Igreja. Havia referências a tentativas de subverter as Leis Fun-
cio de oum govera e de introduzir o exercí damentais da Inglaterra e da Irland ana ri j ;
a ai no arbitrário e tirânico”, assim como alusõesemais familiares a “jesuítas e outros seguidores da Sé de Roma”, que estariam solapando as bases da verda-
deira religião. Aludia-se também aos problemas deliberadamente fomentados entre o exército inglês e o Parlamento, ao “exército papista organizado na Irlanda”* e ao uso das receitas reais.
iciai is, bem c omo seu co"Organizado, na realidade, por Strafford, a maior parte de seus oficia mandante — Ormonde — eram protestantes.
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O Protesto terminava com um juramento de manutenção da religião protestante reformada e de lealdade ao rei e aos “poderes e privilégios do Parla. mento, e direitos legais de seus súditos”. Cromwell e Lowry, representantes de Cambridge, escreveram ao prefeito e aos conselheiros da cidade chamando
atenção a respeito dos preâmbulos e do compromisso firmado pelos membros
da Câmara, diziam eles, com entusiasmo e determinação. Sua intenção era
claramente a de inspirá-los no mesmo sentido, posto que se tratava de uma ação digna de ser imitada: “Como corpo representado, vocês deverão declarar seu apoio à prática de seus representantes. Estar de acordo é, em si mesmo, merecedor de elogios (...). O resultado pode vir a ser — com a bênção do Todo-Poderoso — a estabilidade e a segurança de todo o Reino. A união traz a força, e é terrível para os adversários (...).”? De fato, o Parlamento estava descobrindo isso rapidamente. O próximo empreendimento cooperativo a que Cromwell foi publicamente associado, a chamada Lei das Raízes e Ramificações, caso aprovada, poderia ter sido letal aos seus adversários eclesiásticos. Propondo, pura e simplesmente, a eliminação dos bispos, a norma tirou seu nome de uma petição anterior, exigindo a abolição do episcopado, “suas dependências, raízes e ramificações”. Inicialmente apresentada ao Parlamento por sir Edward Dering — posteriormente, ele relatou tê-la recebido de sir Arthur Haselrig, momentos antes do debate, que por sua vez a encaminhara à pedido de Cromwell e sir Henry Vane, o jovem —, sua autoria foi atribuída
por Clarendon a Oliver St John; “lúgubre e sombrio”, o primo de Cromwell
nunca perdoara a Star Chamber por havê-lo processado por conspiração sedi-
ciosa. A participação de Haselrig, Vane e Cromwell é muito mais provável — Dering não teria nenhum motivo para inventar tal história. Além disso, passando para o campo realista e episcopal, ele publicou um livro em que dava as iniciais dos envolvidos com a questão: S.A.H. e O.C.
Ainda que a lei propriamente dita tenha sido subsegientemente abando-
nada, a Câmara aprovou medidas inegavelmente puritanas, por exemplo, à proibição de esportes no dia do Senhor e de “reverência corporal” ao nomé de Jesus; a remoção das grades que impedissem o acesso aos locais de comunhão e de “pinturas escandalosas”, como as existentes nas igrejas da Trindade
e da Virgem Maria. A postura de Cromwell face à religião anglicana não se amenizou com a passagem do ano; tomando parte num debate, ele falou abertamente contra o Livro de Orações Comuns, dizendo que “havia nele diver-
sas passagens que propiciavam aprendizado aos pecadores e às quais não deviam submeter-se nem praticar os que favoreciam ao Divino”. No dia 8 de
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setembro aprovou-se uma moção proposta por ele e referente a um de seus temas prediletos — sermões. Conforme ficou estabelecido, as prédicas seriam lidas nas tardes de domingo e em todas as paróquias da Inglaterra — particularmente aquelas que ainda não o faziam, provavelmente para dar-lhes uma lição acerca do progresso religioso. No início da sessão seguinte do Parla-
mento, em 20 de outubro, Cromwell apoiou uma lei que excluía os bispos da Câmara dos Lordes — o que aquela Câmara, naturalmente, rejeitou; seus discursos subsegientes refletiram a amargura que ele sentia pela permanência do direito de voto dos prelados.” Durante o verão de 1641, enquanto Laud definhava na Torre de Londres e o corpo decapitado de Strafford jazia em paz, finalmente, na tumba familiar, em Wentworth-Woodhouse, os ataques diários contra as posições da monarquia mostravam que, se tantos sacrifícios não haviam sido em vão, de nada valiam para deter a maré crescente de críticas parlamentares. Uma pletora de leis radicais estava em preparo, inclusive um Ato Trienal que impedia a dissolução do Parlamento por vontade do rei, exclusivamente, e medidas que visavam à
extinção da Star Chamber e da High Commission, bem como do dinheiro de navio e de multas por desflorestamento ou que penalizassem os que não tinham sido armados cavaleiros, como acontecera a Cromwell. Em agosto, o monarca ordenou que se preparasse uma expedição que deveria acompanhá-lo à Escócia; Pym e seus associados opuseram-se a isso, e Cromwell indagou qual a necessidade da viagem e por que deveria ela realizar-se em tal “ocasião particular”. Os membros da Câmara desconfiavam que o soberano tinha a esperança de conseguir o apoio dos escoceses contra os seus intratáveis súditos ingleses. Pro-
vavelmente, Carlos I pretendia organizar um exército, tarefa mais fácil no norte, longe de Londres. Uma possível conspiração militar já causara certo pãnico. Cromwell respondeu de público à sua própria pergunta: “passando pelo estaria em rei do oa pess a , cia” Escó na ões, facç de nte leva “o ante e ” cito exér
erigo.!º
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muito concretapossibilidade a reforçava I Carlos de tortuosa l natureza
ao jogando posição, sua de vantagem grande a usar de alcance mente 40 seu
vitória final. As intersua favorecer para lados, os todos com tempo mesmo consideratais que comprovam Pym de objeções as e venções de Cromwell
no Paroposição, pela travados debates nos presentes ções sempre estiveram que também significativo muito É disputa. da lamento, desde o início não ou presença à importância maior davam Cromwell estivesse entre os que
11 anos então contava II Carlos futuro o expedição; na do príncipe de Gales
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de idade. Oliver exigia que ao marquês de Hertford, seu preceptor, se Juntas-
sem dois puritanos, /ord Bedford e lord Saye&Sele. Em outubro, durante os
confrontos sobre a educação do herdeiro do trono — dotado de uma personalidade tão insatisfatória como a de seu pai — visando a assegurar que dele só se aproximassem pessoas “seguras”, e mais tarde, em janeiro de 1642, Oliver
também desempenhou seu papel. O caráter dos príncipes no desenrolar dos eventos já se revelara um fator de grande importância — e não seria ele,
preocupado com a orientação das crianças, em geral, que negligenciaria o
assunto. A visita à Escócia não granjeou o apoio com que Carlos I contava. Segun-
do o relato de sir Patrick Wemyss, em carta enviada de Edimburgo, no final de setembro, assistiu-se ao triste espetáculo de um rei cercado por escoceses hostis: “daria pena ao coração de qualquer homem ver como ele se encontrava;
pois nunca esteve calmo entre eles e sentia-se muito feliz ao deparar-se com
qualquer um que julgasse de confiança”. A descoberta de uma conspiração conhecida como o “Incidente”, resultado do trabalho de alguns dos seguidores menos escrupulosos do rei, com o objetivo de assassinar os líderes escoceses mais importantes, inclusive Argyll, contribuiu muito pouco para melhorar a convivência de Carlos I com os que o rodeavam.! Os extremistas parlamentares, por outro lado, cheios de entusiasmo, acreditavam estar testemunhando a realização gradual mas gloriosa de seu programa divino. Em contraste com a situação do rei, sentiam-se cheios de expectativas. No dia 7 de setembro, os sinos das igrejas de toda a Inglaterra tocaram em agradecimento pela paz com a Escócia, finalmente concluída. O Parlamento teve o privilégio adicional de ouvir dois enlevados sermões de Stephen Marshall, amigo de Pym, e de Jeremiah Burroughes, ambos acentuando a natu-
reza maravilhosa daquele ano — um Aunus Mirabilis —, maior mesmo do que
o ano de 1588, dedicado à Armada. Um “verdadeiro jubileu e a ressurreição da Igreja e do Estado” deveriam ser aguardados para muito breve.!? Em que pese às tristezas de Carlos I e a euforia de Marshall e Burroughes,
no outono, a maré de queixas gerais contra a Coroa dava mostras de algum récuo, ameaçando deixar Pym e sua irmandade expostos nas margens. O espectro de uma conspiração militar, capaz de suscitar as desconfianças populares contra O rei, desapareceu com a dissolução do exército. E nem era tampouco simpático O comportamento extravagante de alguns sectários, incitados talvez por sentimentos como os de Marshall. As declarações do soberano, que manifestar
sua vontade de restaurar as bases da Igreja de Elizabeth, ao voltar da Esc ócia,
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tinham encontrado um eco muito grande. Assim, reforçando aqueles medos
de “papismo” que sempre constituíram a coluna vertebral dos receios do povo, o reino da Irlanda, origem de tantos presságios tempestuosos na histó-
ria futura da Inglaterra, lançou mais um de seus eternos trovões e desencadeou, de novo, suposições desfavoráveis ao rei. O levante irlandês de outubro de 1641 surgiu numa conjuntura em que a
administração existente — o Lord Deputy* e o Conselho governavam juntamente com o Parlamento irlandês — enfraquecera-se ininterruptamente, des-
de o fim do firme governo de Strafford. Ainda que, ao desaparecer, aquele grande homem forte tivesse assegurado que os irlandeses estavam “tão completamente satisfeitos e bem vinculados à pessoa e ao serviço de Sua Majestade quanto seja possível desejar”, sua ausência deixou um crescente vazio a partir do qual os diversos habitantes da ilha, representando muitos e diferentes interesses — religiosos, vinculados à posse de terras e políticos —, rapidamente tentaram levar vantagem.!' Desde o final do século anterior, o catolicismo ressurgira graças à crescente presença dos padres, principalmente jesuítas. Nesse meio-tempo renovavam-se as plantações em terras pertencentes a ingleses, o que causava ódio e ressentimento, assim como sofrimento
concreto aos que tinham que abrir caminho para isso. Talvez as causas profundas do levante irlandês se relacionem aos primeiros povoamentos de colonos estrangeiros, normandos, ingleses ou escoceses. Considerando-se a situação da Irlanda no século XVII, e na década de 1640 em particular, pode-se ter uma visão clara da enorme variedade de tipos de ingleses e anglo-irlandeses anglicanos, anglo-irlandeses católicos, irlandeses católicos e escoceses presbiterianos que, com razão ou sem ela, habitavam a ilha. Em muitos casos, sua presença já contava muitas gerações — se bem
que só fosse suficiente para dar aos imigrantes o sentimento de um direito pa-
triótico. As muitas diferentes naturezas das diversas invasões da terra irlandesa, ou anglo-irlandesa, ocorridas em épocas sucessivas, fizeram com que cada
leva de colonos ingleses tendesse a ser assimilada pelos padrões locais, dando
a impressão ao grupo recém-chegado de encontrar somente naturais do país.
Eventualmente, o governo de Londres apossava-se das suas terras, como se eles não passassem de “meros irlandeses”. Famílias importantes, de antigo sangue irlandês, como os Fitzgerald, eram mais raras do que muitas de ascen/ord por chefiados exemplo, por Butler, os inglesa; ou normanda dência “Substituto interino do Lord Lieutenant, ou vice-rei da Irlanda. (NV. do T.)
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Ormonde, consideravam a Irlanda sua terra natal, mas ainda mantinham mui tos vínculos com a Inglaterra. Tal qual a verdade, raramente pura e nunca
muito simples, a etnia irlandesa não tinha nenhuma limpidez, e sua sociedad e
era o reverso da simplicidade. No entanto, a estrutura íntima e complicada da Irlanda, em 1641, não constituía um assunto mobilizador, do ponto de vista dos elementos puritanos da Câm a-
ra dos Comuns, inclusive Cromwell. Uma reação de simples e apaixonado horror ao levante — ou rebelião, como foi chamada na época pelos ingleses — orig inou-se de notícias sobre o massacre de homens, mulheres e crianças ingleses, ex-
pulsos de suas casas para serem mortos a fio de espada ou perecer de fome e de frio a caminho de Dublin. Nasceu assim a lenda acerca do morticínio irlandês. No que se refere à geração de Cromwell, evidentemente, a lenda é mais importante do que a realidade, porque foi ela que teve tanta influência sobre a sua geração na Inglaterra. No entanto, segundo a exatidão histórica, não existe nenhuma
evidência concreta de que tal carnificina tenha realmente ocorrido.* Sem dúvida, houve grandes sofrimentos entre os colonos ingleses. Expulsos durante O inverno, a fome e o frio foram certamente responsáveis por muitas mortes desnecessárias. No tocante à violência, mesmo que tenham ocorrido alguns casos isolados, nada se terá comparado à vingativa política
institucionalizada pelo comandante inglês, sir Charles Coote. Em qualquer circunstância é importante notar que os participantes jamais
deram seu testemunho sobre um massacre, mas acerca de uma tentativa de re-
belião. O primeiro depoimento fundamental a respeito da questão, incluído no relatório do deão Henry Jones para a Câmara dos Comuns na primavera de 1642, preocupava-se muito mais com as intenções do que com os acontecimentos. De 85 declarações prestadas, apenas 16 mencionaram assassinatos, e as primeiras 55 referiam-se somente ao uso de palavras ameaçadoras. Jones
buscava provar a ocorrência da rebelião e a intenção criminosa era relevante, embora não corroborasse um massacre. Em
1646, sir John Temple, em sua
History of the Horrid Rebellion in Ireland [História da horrível rebelião na Ir-
landa], que causou grande impacto entre seus contemporâneos — e quê, incidentalmente, foi impressa três anos antes do desembarque de Cromwell
naquelas terras —, converteu o material de Jones, de evidência meramente putativa, em provas de um fato real.!t Ea
nine,
Walter D. Love, Civil War in Ireland: Appearanc es in Three Centuries of Historical
E
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A temperatura da opinião pública inglesa, naquele momento, reflete a
convicção então predominante — o povo estava convencido de que a chacina
ocorrera mesmo —, razão por que, oito anos depois, Oliver Cromwell foi
acusado perante o tribunal da humanidade por ações praticadas contra os irlandeses. Nesse caso, a evidência é unânime: os protestantes ingleses consideravam artigo de fé que esse cruel e desumano extermínio de mulheres e crianças inocentes, com uma característica muito marcante de guerra santa, tinha se desencadeado em toda a Irlanda. Em sua narrativa, sir John Temple referese a um depoimento que menciona a morte de mais de cem mil pessoas, entre outubro e abril; Clarendon estima terem morrido entre quarenta mil e cinquenta mil. Edmond Ludlow, em suas memórias, reflete tanto o senso comum quanto os exageros existentes: “Aquele reino [da Irlanda] está cheio de papistas. (...) A mortandade de muitos milhares de protestantes por lá, certamente, deve ter dado prazer ao rei Carlos [1].” Em seu diário, Whitelocke
comentou “esta hedionda e negra rebelião, que não pode encontrar paralelo nas histórias de qualquer outra nação”. O dr. Bate, médico partidário do rei, acrescentou uma nota ainda mais selvagem, lembrando que muitos milhares
foram barbaramente assassinados, independentemente de sua idade ou sexo, “como um sacrifício humano à sua própria superstição”. As estimativas sobre o número de mortos dispararam. Lucy Hutchinson, por exemplo, acreditava em mais de duzentos mil e garantia que se o castelo de Dublin tivesse sido
surpreendido, o que quase aconteceu, “não teria sobrado nenhum protestante naquele país”. John Milton, em seu First Defence of the State of England | Primeira defesa do Estado da Inglaterra], publicado em 1649, cita os mesmos duzentos mil mortos e feridos, aduzindo que os irlandeses, “uma canalha misturada, parte papistas e parte selvagens, culpados no mais alto grau de todos estes crimes (...) por todos os seus deméritos precedentes e provocações, transformaram-se em nossos vassalos — foi justo”.” a forNão faltavam contatos com os infelizes colonos, na Irlanda, aptos de Comuns, dos Câmara Na mão. primeira em horror de necer histórias em D'Ewes escreveu como lá, por parentes” e “amigos 1641, muitos tinham na Irlanda residiam Inglaterra, da distritos representando outros, seu diário; Num nível Ulster. do ou Londonderry de plantações nas ou tinham interesses
aumentanespalharam, se também desgraças de histórias as baixo, mais social , excepcionalmente Não preconceito. O € — ingleses pelos simpatias as do o oit r ebe rec a ou ss pa e, hir rds ffo Sta no , ek Le uma certa Alice Stonier, de nção te nu ma sua ra pa , ais loc s do ra st gi ma os pel os id pence por semana, conced
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e de sua família — três deles podiam ser colocados a “bom Serviço”, m
ds
dois eram muito jovens, “incapazes de qualquer coisa além de pedir esmolag” Tendo acompanhado o marido, condutor de gado, à Irlanda, ela se sentiu ai bada: queimada sua casa e expulsa, sem nada com que se cobrir, exceto um roto manto de lã. Os Stonier pernoitaram nos frios campos outonais , antes de
alcançar Dublin, onde seus problemas só aumentaram, pois o exército recrutou Thomas Stonier, morto em combate, e a pobre Alice teve de retornar à sua terra natal a fim de obter ajuda.” Em todos esses relatos muita ênfase foi dada a dois aspectos do leva nte.
Em primeiro lugar, a crua barbárie dos crimes provocou uma genuína sens ação de horror nos corações dos ingleses: gente que havia assado homens e devorado suas carnes, embarcado mulheres em botes com o casco furado, a fim
de que se afogassem, assassinado crianças de forma medonha, diante dos olhos de seus pais, e, além disso, competido entre si para verificar quem enterraria mais fundo uma faca mortal, como poderia ter qualquer pretensão de civilização ou esperar a consideração dos demais povos civilizados? Sem mencionar horrores comparativamente menores — mulheres famintas, prisioneiros alimentados com lixo e restos de carne e a afronta à sensibilidade de
uma protestante, forçada a assistir à missa. Quase uma década depois, foi
com base em tais coisas que o povo inglês negou qualquer deferência aos irlandeses. Em segundo lugar, o papel dos padres católicos no levante, longe de ser considerado secundário, foi bastante acentuado, junto com suas práticas su-
persticiosas que os acumpliciavam com os assassinatos. Corriam histórias à
respeito de sacerdotes que alertavam seus paroquianos sobre o pecado mortal
de dar guarida a um inglês, garantindo que a morte de um protestante era uma ação meritória, válida como indulgência parcial, poupadora de futuros
sofrimentos no purgatório. Com tais sombras horríveis cobrindo a memória do passado recente é compreensível, embora cruel, que o discurso público de Oliver Cromwell, na sua primeira chegada a Dublin, em agosto de 1649, Se referisse a “esses irlandeses bárbaros e sedentos de sangue”. Também faz sentido que essa oração tenha sido descrita como “doce e plausível” pelos numerosos ingleses e anglo-irlandeses reunidos à sua volta e que o aplaudiram,
Juntamente com seus soldados.'º
Consegiiência mais imediata das notícias que chegaram à Inglaterra à respeito do levante irlandês, de 1641, foi o impacto que elas causaram nas reclamações que se tornaram conhecidas com o a Grande Reprimenda. Esse
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amplo e inaudito ataque à posição da monarquia como um todo estava na pauta das discussões, no dia 1º de novembro, data em que as histórias do massacre começaram a circular. Destarte, Pym teve uma nova oportunidade de lançar dúvidas sobre a credibilidade do rei. Quem confiaria um exército a este homem que, no ano anterior, cogitara de lançar forças irlandesas contra seus súditos ingleses? À gangorra da popularidade pendeu, mais uma vez, para o lado do Parlamento; na cabeça do cidadão comum, a vinculação entre Carlos e os irlandeses parecia cruelmente muito próxima — era impossível ignorá-la. A Grande Reprimenda — osso raivosamente mastigado pelos cães
puritanos e realistas — acabou sendo aprovada pelos Comuns, em 22 de no-
vembro. O documento, verdadeiramente incrível, estava cheio de exigências
ao rei, desde pequenos detalhes a respeito de tópicos controvertidos, como a questão dos Fens e os abusos da Comissão de Águas e Esgotos — Cromwell fora indicado para “explicar em profundidade a função desse órgão” —, até exigências inteiramente novas: o soberano poderia escolher seus conselheiros, mas cabia ao Parlamento aprovar as indicações.” Absorvido e excitado por algo que continha claras idéias revolucionárias, mesmo que o apelo às antigas liberdades estivesse formal e constantemente nos lábios de seus expoentes, Cromwell mantinha-se suficientemente afastado da opinião pública e em condições de poder apreciar as discussões clamorosas que logo se iniciaram. Quando os opositores da lei pediram um adiamento, pretendendo considerar em profundidade o que ela exigia, Oliver perfilouse entre os que se irritaram com a concessão do prazo solicitado e perguntou a lord Falkland, no dia 20 de novembro, por que a decisão fora adiada: “Pois hoje tudo teria se resolvido, rapidamente.” Falkland respondeu que não haveria tempo suficiente e que valia a pena um debate prolongado; Cromwell replicou, prevendo que as discussões seriam “muito pobres”, estando ele convencido de que poucos se oporiam à petição.”
Rm
Foi uma profecia incorreta. Face à oposição exaustiva e amarga, cláusulas,
como, por exemplo, as que se referiam à escolha dos conselheiros reais, trans-
formaram vacilantes partidários do episcopado em adeptos da realeza. A Cãatacamara dos Lordes, integrada por muitos bispos e católicos, diretamente dos pela petição, aderiu ao rei. Quando Hampden apresentou moção — lanReprimenda, Grande da texto O imprimir para — aprovada finalmente da diante estar de cogitaram indecisos muitos país, o todo a cando o apelo ll we om Cr que o siã oca sa nes Foi rei. do os eit dir s negação final dos antigo dimos sobre a alu já que a o ári ent com o nd kla Fal de s ido ouv aos sussurrou
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questão da emigração: “Se a Grande Reprimenda fosse rejeitada, eu teria ven dido meus bens na manhã seguinte e não tornaria a ver a Inglaterra iamjlão Ele acrescentou ter conhecimento de muitos outros homens honestos igual. mente decididos — observação feita com alguma solenidade, segundo Falkland, o que demonstra a paixão com que Cromwell se deixara envolver pela questão. No seu retorno da Escócia, em 25 de novembro, o rei mostrou que sabia
bem quais as melhores armas de que dispunha contra Pym. Tão logo a medida foi mandada imprimir — uma exceção notável — o rei apelou para o
povo, prometendo reformar a Igreja e, inclusive, submeter à investigação a participação dos bispos na Câmara dos Lordes. Declinou, no entanto, de abrir mão de sua “liberdade natural” na escolha de seus próprios conselheiros. Os últimos meses de 1641 transcorreram num clima de fermentação po-
lítica, enquanto o monarca e o Parlamento disputavam um cabo-de-guerra pelo apoio popular, de resultados imprevisíveis. A City, por exemplo, que desde o início se supunha fosse hostil a Carlos I, demonstrara opiniões relativamente favoráveis, concedendo-lhe empréstimos muito úteis, em 1640 e 1641. Às eleições locais, vencidas pelos “novos homens” do partido parlamentar, que entregaram o poder a Pym, só tiveram lugar em janeiro de 1642.?
O papel de Cromwell em todo esse processo limitou-se a descobrir casos individuais de pares do Reino e bispos que, por acaso, estivessem abusando de seus privilégios para ajudar o rei e denunciá-los à Câmara. Certa ocasião, ele verificou que /ord Arundel escrevera aos habitantes do seu burgo sobre a eleição
de um novo representante; tratava-se de um costume talvez deselegante, mas imemorial, e nesse caso a comissão parlamentar de que Oliver participou, juntamente com Pym, Hyde, Falkland e outros, mandou sustar o pleito. Cromwell sempre temeu que Carlos I apelasse para a força, provavelmente, com apoio do exército irlandês. Num debate travado nos últimos dias de dezembro, ele aderiu
a um pedido para que o conde de Bristol fosse retirado do Conselho, sob a ale-
gação de que, na “última conspiração do exército”, o nobre teria persuadido o
soberano a colocar as tropas em um estado de perigosa prontidão — “situação que não tinha nenhum significado normal, visto que o citado exército estavê
numa posição normal de não se movimentar”. No dia seguinte, ele tratou do assunto de um certo Owen O'Connell, que alertara as autoridades de Dublin
sobre a intenção do levante, e como recompensa recebera a promessa de assUr
mir o comando de uma companhia de dragões; o posto não lhe fora concedido;
e cabia a Cromwell perguntar a Lord Lieutenant por quê.2
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sz
Alguns dias após esse acontecimento, em 4 de janeiro de 1642, a paciên-
cia do rei esgotou-se, e ele empreendeu a tentativa histórica de surpreender
os cinco parlamentares que supunha estarem liderando as prolongadas e traiçoeiras iniciativas destinadas a arrebatar-lhe a autoridade, o que a seu ver implicaria a derrubada da monarquia. Os Cinco Membros, tal como se tornaram historicamente conhecidos, eram John Pym, John Hampden, sir Arthur
Haselrig, Denzil Holles sua cadeira o presidente Strafford não o impediu constituição. Strode fora ticipação nesse mesmo questionamentos, na Star
e William Strode. Holles é quem mantivera preso à da Câmara, em 1629, e o fato de ser o cunhado de de tornar-se um vigoroso orador contra os abusos à encarcerado, de 1629 a 1640, em virtude de sua parincidente, após o qual recusara-se a responder a Chamber, por palavras que teria proferido no Parla-
mento. Seus sofrimentos o transformaram num “incendiário”, segundo
D'Ewes — “um dos homens mais violentos do partido”, de acordo com Clarendon. Ordenando ao procurador-geral que os depusesse por traição, Carlos I dirigiu-se apressadamente à Câmara, disposto a exigir que fossem presos. Acompanhado apenas pelo Eleitor Palatino, seu sobrinho, ele ingressou no recinto e descobriu que os cinco pássaros, avisados de sua aproximação, haviam fugido para a City. Foi então que Lenthall, presidente da Câmara, perguntado por seu rei sobre os parlamentares desaparecidos, num misto de reverência e desafio, respondeu: “Para o bem de Vossa Majestade, não tenho olhos para ver e nem língua para falar, a não ser aquilo que aprouver a esta Casa, da qual sou servidor...”2 Assim, o rei se retirou da Câmara dos Comuns, e logo a seguir de Londres, nunca mais voltando, até o momento de sua morte. Para aqueles como
Cromwell, comprometidos com as posições do Parlamento, a batalha contra Carlos I estava desencadeada, se bem que ainda fossem decorrer oito meses antes que o monarca erguesse seu estandarte, em Nottingham. Houve algumas negociações e, enquanto isso se passava, ambas as facções buscaram con-
dições materiais para a guerra, caso esta viesse a se travar, num país singular-
mente despreparado e destituído de ânimo guerreiro. Não existe prova mais
vívida das irascíveis atitudes de Pym e seus partidários do que o teor do ser23 em to, amen Parl do te dian , hall Mars hen Step go ami seu por o gad mão pre
a com o jeari bin com se que ie sér a um de ro mei pri o 2, 164 de fevereiro de tes.” uin seg s ano e set os pel , mês do ira -fe jum, realizado toda a última quarta
— u sce cre s ore gad pre dos eto ímp o I, XVI ulo séc o No desenrolar de todo
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um conflito espiritual que iria se confundir, gradualmente, com o enga-
jamento físico. Conforme seus ouvintes não poderiam deixar de notar, o ser. mão de Marshall, denunciando os “neutros”, que não queriam saber de engajamento, equivaleu a uma convocação bélica — uma explosão impressa sob o sugestivo título de Meroz Cursed [Meroz amaldiçoada], que ressoou de norte a sul do país, até se converter numa obra típica da época. Baseada num verso do Livro dos Juízes — “Amaldiçoada sejas, Meroz, disse o anjo do Senhor, amaldiçoados seus habitantes (...) porque não saíram em defesa do Se-
nhor contra 0 Inimigo” —, a mensagem de Marshall podia ser resumida nos
seguintes termos: “Maldito seja quem se recusa a sujar as mãos de sangue,” Em vista desse tipo de linguagem, não surpreende que o próprio Clarendon acusasse os pregadores da escola de Marshall de serem “os únicos arautos da guerra (...) incendiários que levaram à rebelião”, em vez de se comportarem como mensageiros da paz.” Cromwell, por seu turno, não carecia de trombetas de guerra para despertar seus sentidos. Em 14 de janeiro de 1642, respondendo a uma exigência de Pym, de que a Câmara se constituísse em comissão a fim de apreciar o estado do Reino, sob o pretexto de que haveria uma ameaça papista, foi ele que propôs um comitê encarregado de preparar a defesa da nação. Ao mesmo tempo,
ordenou-se a todos os sheriffi que recolhessem as armas e proibissem qualquer assembléia ilegal. Quando o rei se recusou a abrir mão do controle sobre a milícia, a Torre de Londres e as fortalezas, o Parlamento determinou “o re-
crutamento e a organização de soldados incumbidos da defesa dos Reinos da Inglaterra e da Irlanda”. Ante a negativa do rei, Cromwell incluiu-se entre os que doaram fundos destinados a socorrer Dublin: no seu caso, trezentas li-
bras. Em 24 de fevereiro, no dia seguinte à partida da rainha Henrietta Ma-
ria rumo ao continente, carregando as jóias reais, na esperança de angariar O apoio de que o marido necessitava, a comissão parlamentar competente nomeou
14 membros responsáveis por acelerar e resolver as questões com à Ir-
landa. Pym, Holles e sir Henry Vane, o jovem, estavam entre eles, assim como Cromwell. Mesmo que não se aceite o amargo veredicto de Clarendon sobre o partido do Parlamento — que “eles começaram a anga riar recursos sob o pretexto de ajuda a Irlanda” —. a organização da empreitada, ostensivamente orientada no seu sentido explícito — a necessidade de levantar fundos e armar tropas —, foi sem dúvida uma excelente oportunidade para desenvolver OS
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preparativos do conflito. Contudo, pelo menos teoricamente, prevalecia a
idéia de diluir a ameaça do catolicismo irlandês através de uma boa e saudável colonização protestante inglesa ou, como colocava a Declaração das Duas Câmaras, por meio do replantio de “muitas famílias nobres desta nação e de religião protestante”. Em fevereiro de 1642 organizou-se um punhado de “aventureiros”; a sugestão partira de comerciantes londrinos que se apresentaram à Câmara dos Comuns dispostos a financiar tropas que esmagariam a rebelião irlandesa — “eles tirariam satisfação das propriedades dos rebeldes (...) conforme o que fosse considerado razoável”.% Os membros da Câmara dos Comuns não regatearam contribuições a esse esquema aparentemente tão promissor, pois combinava um bom trabalho espiritual — a erradicação da malvada fé católica — com a riqueza material
— terra irlandesa, como retorno do investimento. Em maio de 1643, instituí-
do por dirigentes da Igreja Católica na Irlanda, o Juramento de Kilkenny, tentativa de arregimentação de todos os fiéis em torno de uma liga, cujo ob-
jetivo principal seria a restauração religiosa do país, contribuiu para sublinhar a necessidade de projetos desse tipo, de cunho marcadamente parlamentar — os realistas só concorreram com cerca de 9%. Significativamente, a
cota preenchida pelos futuros “independentes” foi duas vezes superior à dos presbiterianos.
Ficou claro, portanto, que a teoria de que a resistência à Coroa baseavase no declínio de suas fortunas não era verdadeira: o volume da subscrição mostrava o contrário. O próprio Cromwell estava bem colocado no projeto: contribuiu com uma bela quantia, segundo os padrões do século XVII,
totalizando pouco mais de duas mil libras, em três prestações, duas de seiscentas, em abril, e uma de 850, em julho.” Como recompensa, contava receber terras no baronato de English. Para muitos membros do Parlamento, à
reação inicial aos horrores dos irlandeses se agregavam outras emoções muito diferentes, resultantes da participação financeira na colonização da terra.
Apesar disso, ainda se poderia dizer, sobre o ponto de vista de Clarendon, que tudo tinha por objetivo a criação de um exército inglês: no dia 30 de julho, os tesoureiros do fundo receberam a solicitação de entregar aos Comuns
| a. pag foi ca nun que , ras lib mil cem de a a quanti Enquanto decorriam os agitados meses de 1642, os lords lieutenants e os
juízes de paz deram início ao recrutamento, € à milícia foi convocada, a fim . ções cora os muit em r pesa a va eça com ra guer de ça amea a -se; trar ades de
lábios. (...) seus em eira oliv de ramo o a trag to amen Parl el afáv o “Oh, que »
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Somos tantos e tão atemorizados”, escreveu a sra. Eure a seu primo, o depu-
tado Ralph Verney, que retrucou com firmeza: “A paz e as nossas liberdades
são nosso único objetivo; até que consigamos a paz, tenho certeza que não
poderemos desfrutar de liberdade, e sem ela, sinceramente, não posso desejar
a paz.”* Tal atitude, certamente, teria a solidariedade de Cromwell, cujo pon-
to de vista, provavelmente, estava ainda mais próximo do de Marshall: evitar o derramamento de sangue poderia ser uma negligência com o Senhor, Não obstante, só incorrendo numa perigosa simplificação, poderíamos sugerir que
Oliver Cromwell e seus associados sabiam exatamente o que queriam da luta, caso ocorresse. O paradoxo — um partido que retirava sua força da negativa, mais do
Chichely no ano anterior, quando ele observou: “Posso dizer-lhes, senhores, o
que eu não quero; quanto ao que quero, nem eu próprio saberia responder.”? Era muito fácil enumerar o conteúdo desse “não quero” — por exemplo, a
e
que da sugestão de qualquer alternativa viável — foi resumido, sucintamente, pelo próprio Cromwell, em conversa com sir Philip Warwick e sir Thomas
Star Chamber, o dinheiro de navio e outras atitudes que ele considerava afrontosas aos direitos dos súditos, assim como as queixas induzidas na dire-
respeito às questões religiosas, Cromwell parecia pessoalmente ainda pes incerto, sem saber que igreja nacional desejava; sua clareza limitava-se à aboq lição do episcopado: sobre isso não alimentava quaisquer dúvidas. Mas o que dizer do “saberia”, especialmente em relação à pi No mundo moderno, as propostas da Grande Reprimenda, limitando o po i do rei, inclusive na escolha de seus conselheiros, não seriam nada pio a nárias; em 1642, no entanto, eram muito radicais. Ainda que aprovadas, ê
cilmente se tornariam aceitáveis por muitos daqueles que ainda se ç vam partidários do Parlamento. A atitude do Parlamento, nessa época; só
compreensível quando referenciada à pessoa do próprio monarca. Não se tra
tava de uma teoria política, mas das consegiiências práticas de um gover no arbitrário, exercido por um homem do temperamento de Carlos — isso ç que preocupava Pym e seu partido, orientados essencialmente pelo pragmatismo. Em circunstâncias que deixariam muitos perplexos, valia mais concentrar-S
em ações práticas — como a supressão da rebelião irlandesa ou a mobilização armada do país — capazes de gerar mais satisfação do que uma discus” são abstrata acerca dos direitos monárquicos, fossem eles divinos ou não. efeito de tais incertezas básicas, entretanto, na raiz das ações do Parlamento»
—
ção eclesiástica de Laud, apoiada na posição dos bispos. Mesmo no que diz
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levou a uma confusão que se generalizou pelo país inteiro, principalmente à medida que se tornou claro que algum tipo de conflito bélico era iminente. O
que significava apoiar o Parlamento? O rei, seguindo os conselhos de Hyde, situou-se na legalidade absoluta de sua posição, e na ilegalidade absoluta do Parlamento, que organizara ataques contra ele, o que representava traição.
No dia 2 de junho, no entanto, na leal York, ao norte, Sua Majestade foi
confrontado com as chamadas Dezenove Proposições que, pelo menos, forne-
ciam alguma indicação do que pleiteavam Pym e seus companheiros. Posteri-
ormente, Edmond Ludlow referiu-se a elas como “as bases da guerra que se seguiu”. Carlos, não obstante, após sua leitura, considerou-as “uma zombaria
e um escárnio” — uma avaliação amparada nos padrões da autoridade monárquica tradicional. A simples entrega do documento impusera-lhe uma indignidade, ele disse. Algumas cláusulas eram muito pessoais — os filhos do rei teriam que ser educados por aqueles que o Parlamento considerasse bons, e seus esponsais também dependeriam de autorização similar. Outras, religiosas — o rei deveria aceitar as reformas da Igreja sugeridas pelo Parlamento, e as leis contra os católicos deveriam ser executadas, estritamente, assim
como deviam ser excluídos da Câmara dos Lordes os pares do Reino que professassem a fé católica. Havia disposições de cunho político — os conse-
lheiros privados e os funcionários mais importantes do Estado só seriam no-
meados com a anuência do Parlamento — relativas à defesa — governadores de fortificações também passariam pelo crivo da Câmara dos Comuns, cabendo ao rei assinar o decreto da milícia. Na prática, ante a idéia de uma “monarquia mista” que teria chocado seu pai, Carlos 1 assumiu uma posição ofi-
cial, baseada no passado — e invocou a norma: Nolumus leges Angliae mutari
[não mudaremos as leis da Inglaterra] —, condenando a intoxicação que re-
sultaria dos novos e muito grandes poderes que seriam entregues aos Comuns e, em última análise, ao próprio povo, tendo a anarquia como possível consequência. Muito melhor era a “feliz e antiga, bem-colocada e nunca-suficien30 ira o”. Rein e dest rno temente-elogiada constituição do Gove
as o com im ass ão, lex ref de es dad ili sib pos as a min eli es vez A ação muitas suas oportunidades. Assim ocupado, no final da primavera de 1642, Cromwell ara dos Câm da is cia ofi ens sag men tas tan ou lev , ões iss com tas tan ou egr int com da, nha ali des e ada pes ura fig sua que , des Lor dos ara Comuns à Câm
do os óci neg aos ado vot e do ina erm det mas , ado onç eng seu caminhar des Um Uma ns ter mi ins st We de a cen na i h ar ili fam nar tor se por bou aca Parlamento,
s dos sso gre pro aos -se ava cul vin s ade vid ati s sua parte de
“aventureiros”, pois
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a luta contra os rebeldes irlandeses estava se comprovando demorada e dispendiosa. Outras atividades se referiam mais diretamente às preparações para um conflito na Inglaterra: a proclamação do Parlamento destinada a or. ganizar a milícia e subordinar suas forças. Em junho e julho, seu ritmo não
diminuiu. Entre outras tarefas, Oliver fez parte da comissão que considerou as respostas do rei às Dezenove Proposições; foi um dos que manteve contato
com o governador da Torre de Londres, discutindo questões de segurança, Além disso, encarregaram-no de debater com os lordes o problema do Lord Mayor — prefeito — de Londres, o subversivo sir Richard Gurney. Mais
uma vez, ele participou de um grande número de comitês responsáveis pela
remessa de mais dinheiro e mais tropas à Irlanda. No dia 1º de agosto deci-
diu-se que quatro membros do Comissariado Irlandês, com a ajuda de Cromwell, ficariam incumbidos de preparar um plano que promovesse o rápido envio de voluntários àquele país.*! Ainda não se pode dizer que Cromwell estivesse entre os líderes do partido do Parlamento — não aos olhos do grande público —, mas ele já adquirira alguma reputação dentro de Westminster, particularmente por seu apoio a pastores puritanos. No fim de julho, sir William Brereton, chefe do movimento de oposição, no Cheshire, protestou contra a severidade demonstrada pela Comissão Real de Recrutamento contra esses pastores, escrevendo três cartas a respeito do assunto: ao presidente da Câmara, a seu primo, o MP Ralph Assheton, e a Oliver Cromwell. 32
Brereton, certamente, forneceu um quadro muito vivo dos sofrimentos desses pobres homens, carentes de proteção contra seus tormentos. “De fato, é bastante claro”, afirmou, “que eles [os homens do rei] têm a intenção de atemorizar o país de tal forma que ninguém ouse se opor, descobrir o que fazem ou falar contra suas atitudes.” A esperada vinda do soberano aquelas reglões encorajava o arbítrio — os vice-governadores vinham sendo rapidamente subjugados pelos comissários de recrutamento. Não existia nenhum vínculo especial unindo os dois homens; com outros dois parlamentares,
Cromwell tinha apenas ajudado na redação de uma carta oficial em que O presidente da Câmara congratulava-se com Brereton e se us aliados, pela “entusiasmada obediência” do condado de Chester à Ordem de Milícia, no princípio do mês. Evidentemente, Oliver já adquirira renome como alguém comprometido com as mudanç as nacionais da Igr eja. Mas, como tão frequentemente acontecia, sua carreira estava impregnada de ação — ação arrojada — que marcava seu s pe
nsamentos mais profundos.
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No verão de 1642, quando os dois lados buscaram o apoio do país, numa es-
merada e desajeitada dança fora de moda, a Inglaterra, de alguma maneira, deu alguns passos na direção da guerra. Apesar de que a maioria da população ainda acreditava na possibilidade da paz, os novos movimentos rituais se
desenvolviam. Nesse momento, a posição das universidades de Oxford e
Cambridge, das quais o rei esperava ajuda financeira e política, assumiu considerável importância. Em carta de Leicester, datada de 24 de julho, Carlos 1
sugeriu que uma parte da rica prataria da universidade fosse enviada a ele, em
York; o soberano teve a cautela de disfarçar a requisição, insinuando ser ne-
cessário salvar a baixela, evitando que caísse nas mãos dos rebeldes. Em
Cambridge, certamente, se juntou alguma prataria: a contribuição do St John's College, por exemplo, foi de duas mil onças de prata [cerca de 56
quilos]. Afinal, parece que nada foi realmente enviado a York, com exceção
de algumas peças do Magdalene College, interceptadas pelo Parlamento.* Pois a mão forte do MP por Cambridge, Oliver Cromwell, já se encontrava na cidade, e a sombra de seu pulso opunha-se a esse tributo real. Antes, ele tinha demonstrado interesse no treinamento militar de seus eleitores: no dia 15 de julho propusera que os cidadãos organizassem duas companhias de voluntários, indicando inclusive os oficiais que as comandariam, e adiantara o
dinheiro das armas. Desta vez, estando presente, e com a ajuda de seu cunhado, Valentine Walton, de Huntingdon, decidiu impedir que esse cavalo de Tróia saísse da cidade — se conseguisse entrar. Nesse sentido, tentando ser mais esperto que os realistas, Cromwell marchou sobre o King's College, ao
som dos tambores e sob bandeiras desfraldadas, para assegurar que qualquer
tesouro lá guardado fosse confiado à guarda do Parlamento, e não à do rei. Em meados de agosto, quando da chegada do capitão James Dowcra, en-
carregado de liderar o comboio para York, as calmas estradas de East Anglia
tinham se tornado palco de furiosas pilhagens. E era típico da atmosfera da
época, num país que oscilava à beira de uma guerra mas ainda não mergulha-
do no conflito, que algumas famílias já estivessem divididas ao meio, inclusi-
ve os Cromwell. O primo-irmão de Oliver, Henry Cromwell, filho de sir Oliver, trouxe cinquenta homens a fim de ajudar a proteger a prataria; Walton, por outro lado, mobilizou duzentos com o intuito de confiscá-la. e
,
)
“Para uma reavaliação desse incidente, corrigindo os registros dos partida: iu» do rei desde
O ponto de vista dos colleges, ver P. J. Varley, Cambridge during the Ciusl War
Pp. 79-83.
1642-1646,
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Foi um incidente sensacional, e os habitantes de Cambridge, pouco interessados no destino do tesouro — talvez secretamente desejosos de que uma peste
atingisse ambas as facções —, conscientes de todo aquele drama, acorreram para assistir à luta.
Cromwell alinhou seus mosqueteiros nos campos da Grande Estrada do Norte, mandando deter e interrogar todos os viajantes. Os filhos de um vizi-
nho, sir John Bramston, foram devidamente obstados, e deles se exigiu que fossem dar conta de si perante o “sr. Cromwell”; entretanto, cientes de que o resoluto comandante se encontrava a cerca de 12 milhas de distância [mais
ou menos 20 quilômetros], rapidamente os jovens desembolsaram 12 gence e
seguiram seu caminho. À prataria não passou às mãos do rei. Salva por Cromwell, seu valor foi estimado em algo próximo de vinte mil libras, e a aventura considerada suficientemente importante para que ele e seus companheiros recebessem uma indenização da Câmara dos Comuns por seu procedimento. Montaram-se pontos de observação reforçados nas diversas pontes ao redor de Cambridge e King's Lynn, com ordens de confiscar todas as mercadorias e dinheiro que pudessem ser enviados ao monarca. No dia 22 de agosto, Carlos I levantou seu estandarte, em Nottingham, tendo ao seu lado o príncipe de Gales e o sobrinho, príncipe Rupert, do Reno, recém-chegado do continente. Para os que apreciam coincidências his-
tóricas, era o aniversário da vitória de Henrique VII, que conquistara a coroa em Bosworth Field, dando início à dinastia Tudor.* Na prática, talvez tenha
sido mais significativo o fato do rei ter impedido a leitura da proclamação,
tão logo soou um floreado de trombetas, na parte exterior do castelo de Nottingham, temendo que alguns dos seus termos pudessem ser mal-entendidos. Tomando a folha de papel, ele corrigiu-a rapidamente, de tal forma que o arauto teve dificuldade em entendê-la, somente a decifrando de forma balbuciante. A falta de uma definição clara de ambos os lados, cuja própria composição permanecia obscura, ficou mais uma vez demonstrada pela confusão. Além disso, o pesado Estandarte Real, tantas vezes erguido na história feudal da Inglaterra, significando a convocação do rei, precisava de vinte ho-
mens para manipulá-lo. Abandonado no dia 6 de setembro, uma peça móvel e mais moderna fora colocada em seu lugar.
“Perez Zagorin, em The Court and the Country, 1969, refere-se a “uma dessas correspondên-
cias singulares que, figurativamente, comprovam a passagem das coisas (...) num sentido muito real, o que começou em 1485 — isto é, a submissão do reino à autoridade monárquica estabelecida pelos Tudor — estava se encerrando em 1642”.3
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Somente o brado de lealdade que se seguiu — “Deus salve o rei Carlos e leve à forca os cabeças-redondas” — revelava que pelo menos os apelidos tinham se polarizado. “Cabeças-redondas” era uma alusão à moda dos aprendizes que, deliberadamente, cortavam o cabelo e zombavam da “feiúra dos cachinhos” — incidentalmente, um antigo panfleto de William Prynne recebera esse título. A mania de cabelos curtos não durou muito. Como Lucy Hutchinson observou,
poucos anos após o início do conflito armado a alcunha seria incompreensível.
tura dos ombros, por toda a sua vida. “Cavaliers” era um grito de guerra, inegavelmente sedutor e audacioso aos ouvidos modernos, derivado do espanhol — caballeros — e sarcástico em relação à suposta fidelidade da corte inglesa aos modismos católicos espanhóis.” Clarendon escreveu sobre um país punido por seus pecados num conflito civil que expressara a resistência ilegal ao seu rei: “Tudo se resumia à questão
do soberano ser superior, relativamente ao Parlamento, ou se o Parlamento,
ao governar, poderia considerar-se acima dele.” Embora o autor acreditasse que a rebelião fora uma luta pelo poder, o próprio Cromwell, ao olhar para
trás, 12 anos depois, encarava o assunto de forma diferente. Ainda que os
contestadores lutassem por liberdade, para fazer curador das leis na Inglaterra, havia outra causa Deus. “A religião não foi contestada de imediato, trouxe esta questão (...) e, finalmente, demonstrou
do Parlamento o supremo — a maneira de adorar a mas Deus, finalmente, nos sua maior relevância.” Mas
naqueles agitados dias, no final de agosto de 1642, Cromwell não estava dedicado à introspecção, nem era um dos que acalentavam perspectivas pessimistas. Pelo contrário, tudo isso fazia parte de um processo tão perturbador quanto excitante, através do qual os caminhos do Senhor tinham que ser percorridos e descobertos. Sua incursão, um ataque audacioso, bem planejado e
realizado com sucesso, mostrou que o paciente de Mayerne, melancólico e
introvertido, tinha progredido, fosse na Câmara dos Comuns, nas comissões, organizando tropas ou, simplesmente, saqueando a prataria do rei.
Posteriormente, seria na ação militar, na boca do canhão, que se alcançaria de forma inequívoca a certeza dos favores de Deus. De que modo mais
dramático poderia a aprovação divina abater-se sobre Os abençoados, neste “Teatro dos Julgamentos de Deus” — assim o dr. Beard chamava o mundo
us
ii
aà es a
retratos, seguindo com isso, é claro, os hábitos de sua classe social, e não a dos aprendizes: Oliver Cromwell, certamente, deixava os cabelos soltos, quase à al-
iii
taram assim. Quase todos usavam longas madeixas, como se pode ver em seus
ei
Pois, ao contrário da impressão popular, os líderes parlamentares nunca os cor-
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terreno, em seu famoso manual sobre os puritanos —, do que num expressivo
triunfo, numa batalha? Ele mencionava as remotas mas não esquecidas escaramuças bíblicas, cujo resultado revelava a misericórdia de Deus. Se bem que
a combatividade ainda escasseasse e houvesse muita tristeza ante a perspectiva da luta — “com que desalento parto para este serviço”, escreveu o comandante parlamentar, sir William Waller, ao seu opositor realista, Hopton —,
Cromwell, agitador, laborioso e, nesse instante, soldado, não tinha tempo de compartilhar esta falta de alegria. Não se preparara ele, talvez inconscientemente mas ao longo de muitos anos, para esta grande cruzada a serviço do
Senhor? Foi Milton que resumiu, com aguda percepção, essa primeira mas
não insignificante fase da vida de Cromwell: “Antes de mais nada, ele adquiriu o governo sobre si mesmo, e sobre si mesmo alcançou as mais extraordinárias vitórias, de tal sorte que, desde o primeiro instante em que enfrentou o inimigo, já era um veterano combatente, profundo conhecedor das exigências e armadilhas da guerra.”
ese ae PARTE DOIS Guerra e paz
Pax Quaeritur Bello [A paz deriva da guerra] LEMA PESSOAL DE CROMWELL
sem seia 5 Nobre e enérgico coronel Cromwell Prefiro um capitão envergando uma grosseira roupa de lã, mas que sabe por que está lutando, e preza suas razões, aos chamados cavalheiros, e nada mais. Honro um cavalheiro de verdade. CROMWELL, em agosto de 1643
tingdon, provavelmente composta de voluntários do Huntingdonshire e do
Cambridgeshire, seu nome figurou entre os de oitenta capitães que receberam a quantia de 1.104 libras cada um pelo desempenho dessa tarefa. Seu cunhado, John Desborough, foi nomeado intendente. Naquela época não havia regimentos de cavalaria — em geral os homens se organizavam em grupos de
cem. Cromwell adotou uma atitude muito direta, sem demonstrar qualquer sinal da agonia que assaltava os que não podiam aceitar a legalidade do combate ao rei. Em deferência a esse tipo de sentimento, a comissão encarregada
de organizar as tropas determinou, com o risco de causar alguma confusão,
que os soldados lutariam “pelo rei e o Parlamento”. A lealdade ao Parlamento ainda
permanecia
estreitamente vinculada
à idéia das
antigas liberdades,
O Sialus
quo britânico preexistente: fora a pessoa do monarca que atacara a instituição de uma monarquia devidamente controlada. Segundo Clarendon, entretanto, Cromvwell assegurou a seus ouvintes, em Huntingdon, que não estava ali para
e a
com a postura que ele assumiria nas etapas iniciais da guerra civil — rápido, vigoroso e efetivo. No dia 29 de agosto, junto à tropa reunida em Hun-
E
dades, levantando seu estandarte, em Nottingham, foi bem de acordo
o
primeiro movimento de Cromwell, tão logo o rei deu início às hostili-
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ludibriá-los ou tentar obter seu apoio com “expressões confusas e enganadoras” — se o rei se encontrasse nas fileiras inimigas, ele, Cromwell, dispararia
sua pistola como se fosse contra qualquer indivíduo. Quem não se considerasse capaz de fazer o mesmo, não devia alistar-se em sua tropa ou sob seu
comando. Posteriormente, já como Lorde Protetor, alguém o desafiou a levar a
termo o juramento que pronunciara naquela ocasião: “Ele não nos fez uma
pergunta, mas uma afirmação a nós e para nosso bem-estar, de lutar a nosso
lado pela liberdade do evangelho e segundo as leis do país.?' Entretanto, o problema estava na obtenção dos meios necessários à concretização de tão elogiosos objetivos, e não numa discussão sobre a sua natureza. Na verdade, alguns comandantes ingleses — sir Thomas Fairfax, o conde de Essex e George Monk, por exemplo — depois de passarem pelos exércitos holandeses e combatido na Guerra dos Trinta Anos — haviam adquirido experência militar adequada. O mesmo se podia dizer dos escoceses, em geral, cujos oficiais — boa parte deles, pelo menos — tinham prestado serviço no exterior, segundo a tradição dos mercenários. Mas é importante frisar que Oliver Cromwell pertencia à parcela muito maior dos que se levantavam em armas pela primeira vez. Revistas militares, como The Swedish Intelligencer [O Informativo Sueco] ou The Swedish Soldier [O Soldado Sueco], divulgavam as proezas de Gustavus, na Inglaterra, durante a década de 1630. Houve quem alegasse que Cromwell poderia tê-las estudado, absorvendo conhecimentos acerca de princípios e táticas militares em vez de valer-se apenas da experiência pessoal. No entanto, ninguém duvida que, numa guerra de fato, algumas semanas se sobrepõem a meses de treinamento teórico. Aos 43 anos, pode-se dizer que ele foi um dos raros gênios natos: mesmo a tradição que lhe atribui, sem nenhuma base concreta, uma visita anterior aos Países Baixos, onde teria lutado como mercenário, não passa
de um relutante tributo à imensa aptidão natural que demonstrou.?* Em
1642 não existia na Inglaterra nenhum exército permanente, e as
únicas forças estáveis, por assim dizer, eram a guarda pessoal do rei e as companhias que guarneciam os fortes. Nas divers as expedições relativas à sua políti ca externa ou irlandesa, o mon
E
Sra ue pc ionat alguns de seus co mpetidores, em termos de reputa prestado serviço militar na ção, Júlio César tinha Juv ent ude , fissional desde cedo. io e Welli Wellington, é claro, foi treinado como soldado pro E
CROMWELL
ti
e tentar que O Fran pagasse seu soldo. A defesa do Reino, em caso de necessidade, cabia à milícia ou aos “grupos treinados” organizados pelos Zords
lieutenants e seus imediatos; promoviam-se exercícios com a lança e o mosquete, uma vez por mês. À realidade, porém, estava muito longe da teo-
ria, € com a exceção de Londres, onde tais contingentes demonstraram algum significado, enquanto força militar, tanto o adestramento quanto o comparecimento dos homens deixavam muito a desejar. Todas as desculpas serviam,
desde que a participação fosse adiada, as armas eram velhas e fora de uso, €
havia uma idéia generalizada de que os recrutas se interessavam mais em
beber do que em qualquer atividade marcial. A grande preocupação de Cromwell com os hábitos particulares de suas tropas — se bebiam ou blasfemavam — pode ser entendida em função da conhecida reputação de desleixo de seus compatriotas.
Os soldados de infantaria dividiam-se entre lanceiros, munidos de enormes e pesados chuços medindo entre 4,80 e 5,20m, e mosqueteiros. As armas destes últimos eram, principalmente, um tipo de matchlocks [espingardas] com alcan-
ce de até 75m, igualmente difíceis de manipular e carregar, fosse em batalha ou não, mediante um pavio incandescente ou “fósforo” que disparava a carga. Havia inúmeras possibilidades de fracasso no tiro de um mosquete, inclusive o perigo do pavio incendiando alertar o inimigo de um ataque iminente. Só para se ter uma idéia do “poder de fogo” na metade do século XVII, basta dizer que
alguns ainda pediam a volta do arco e da flecha:
Na ausência de baionetas, sequer inventadas, ou das posteriores e mais fáceis de acionar carabinas de pederneiras, os pobres mosqueteiros ficavam
nham que se tornar muito hábeis; no entanto, o complicado processo de
a
única proteção, à exceção dos elmos ou “panelas”, eram as chamadas “penas suecas”, pontiagudas estacas de ferro que eles cravavam no solo para impedir as cargas de cavalaria. Evidentemente, precisavam combinar isso com os lanceiros. Dispondo de armamento tão pouco apropriado, os soldados ti-
e
extremamente vulneráveis a qualquer ataque depois de terem atirado. Sua
treinamento — os mosqueteiros recarregavam enquanto os lanceiros avan-
[Crítica da guerra], de Ward, publicado em 1639, por exemplo, relacionava 36 ordens de comando para o treinamento dos atiradores. À audácia admiente ndi ser pode só Cro mwe de ll man obr as prim eira das s alg uma de s rável
da contra o pano de fundo das complicadas rotinas necessárias à execução de qualquer deslocamento.*
RR
cavam — estava em falta. Um antigo manual — Animadversions of War
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112
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Cromwell fora um chefe de cavalaria, mas na época isso não simplificava
nada. Se bem que a armadura tivesse seu peso reduzido a cerca de 11 quilos,
incluindo uma “panela”, “costas” e “peitorais”, muita ênfase ainda se dava à
um gracioso ritual, bem pouco militar — o manêge ou exercício de montar e apear de “grandes cavalos”, assim definido por muitos nobres expoentes da arte, inclusive o conde William de Newcastle, famoso comandante realista. O próprio Carlos I era capaz de demonstrar talento nessa atividade. Teoricamente, habilitar um cavalo de batalha era um trabalho muito longo. As
Militarie Instructions for the CavalPrie [Instruções militares para a cavalaria],
de John Cruso, em 1632, além de confirmar a importância do papel do capitão, enquanto valoroso líder de homens, estavam repletas de regras aprimora-
das a que os animais deviam submeter-se antes de se tornarem aptos a enfrentar uma batalha.* Palafreneiros deveriam ter condições de vestir-lhes a armadura e alimentá-los com aveia. Desde o início da guerra, alguns já haviam descoberto a importância de um cavalo muito diferente, menor e mais robusto, do tipo utilizado no campo, para a caça. Os cavaleiros estavam habituados a atirar com pistolas e recuar, num trote gracioso, recarregando as armas longe dos enfrentamentos. O movimento era planejado e lento. Gustavus Adolphus já insistira que sua cavalaria avançasse, empunhando espadas, depois de disparar as pistolas. Cromwell repetiu essa orientação e sob seu comando as cargas de cavalaria perderam a sua característica de bailado, com avanços € recuos, transformando-se num ataque letal com vistas à destruição do inimigo. No início do conflito, o príncipe Rupert obteve grande vantagem graças aos muitos cavalheiros dotados de experiência em caçadas que tinha ao seu lado. Em
compensação, Cromwell tirou partido da sua verdadeira obsessão por cavalos.
Suas primeiras energias concentraram-se na aquisição de animais de montaria € na garantia de poder contar com eles, através de meios justos ou não. Tratando com pessoas “bem-intencionadas”, dava preferência a métodos civilizados: em 1643 vamos encontrá-lo escrevendo uma carta à Comissão de Suffolk, desculpan-
do-se pela requisição do cavalo de um certo sr, Goldsmith, em Wilby, desde que o referido cidadão demonstrasse não ser mal-intencionado ou partidário do rei. Ofereceu a devolução do animal capturado ou o pagamento do seu preço —
sendo muito cuidadoso em acrescentar: “Não que eu quisesse, nem por dez mil cavalos, possuí-lo para meu uso particular, mas, pelo contrário, somente pela
“Dê serventia no interesse público.” Até mesmo um simples cavalo incomodava e
pulosa — ele terminava a carta dizendo-se “muito ins atise Ito” e que o animal seria uma carga, caso o assunto nãoZ fosse resolvido.
CROMWELL
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Indagações tão minuciosas dão a medida da importância que ele atribuía à questão. Bons cavalos custavam de cinco à dez libras. A virtual
inexistência da raça árabe ou barb, introduzida muito mais tarde, faria com que esses animais nos parecessem pequenos hoje em dia, de qualidade infe-
rior e muito pesados; os que a cavalaria usava tinham, em média, um metro e meio. Na sequência das batalhas tornou-se mais fácil confiscá-los do que
pagar por eles, situação posteriormente legalizada mediante ordens de confisco emitidas pelo Parlamento. Cromwell, entretanto, sempre se preocupou em cuidar de seus cavalos, tanto quanto pagar suas tropas. Diante de
Winceby e de Newbury, ele protestou contra o uso de montarias exaustas, sendo que na segunda ocasião disse enraivecido a Manchester: “Eles cairão
sob seus cavaleiros, se forem acicatados; pode-se arrancar sua pele, mas não
seu serviço.”
A instrução, nos primeiros tempos da peleja, era difícil e desajeitada, pouco compreendida pelos cavaleiros, mais adestrados para as paradas do que para o ataque. Considerando-se, além disso, as tropas que tinham sido recru-
tadas qualquer ofensiva tinha características puramente temporárias. Onde os
soldados não estivessem ansiosos por abandonar sua região natal, enfatizavase uma guerra defensiva, após as batalhas, em vez de uma pressão incessante contra o inimigo. Não é difícil entender o ponto de vista desses homens; em condições de pagamento e abastecimento restritos, relutavam em abandonar os confortos de suas casas, pouco se inclinando a fornecer provisões a “estrangeiros” — referindo-se, nesse caso, mais aos vizinhos do que ao inimigo.
Sir William Brereton enfocou esse chauvinismo ao descrever como a guarni-
ção de Shrewsbury, mesmo com grande carência de homens, assim mesmo
pretendia dispensar os reforços enviados de Stafford, que utilizavam uma lin-
guagem amotinada e expressões insultuosas, sendo pouco confiáveis na hora do perigo.* Em
tais circunstâncias, os voluntários nunca pareceram adequa-
dos, durante o conflito civil, e o recrutamento forçado se impôs à ambos os
lados. No que diz respeito às provisões, o exército tinha direito ao “aquartelamento gratuito”, isto é, comida e bebida fornecidas pela população local; os
termos de pagamento constantemente adiados tornaram-se um tópico muito
o
no Warwickshire, no dia 23 de outubro de 1642, demonstrou a precariedade alcande muitas teorias correntes sobre a arte da guerra. Carlos I tencionava Essex, çar Londres. As forças do Parlamento, sob o comando do conde de
TES
debatido nos anos seguintes. | A primeira das batalhas mais famosas, a de Edgehill, próximo à Kineton,
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ANTONIA
FRASER
filho do infortunado favorito da rainha Elizabeth, nomeado general em
julho, pretendiam forçar o rei a recuar. No entanto, as tropas realistas,
chefiadas por seu sobrinho Rupert, também recém-indicado general de cavalaria, iniciaram a luta abandonando uma posição de força num vasto
escarpado a algumas milhas de Kineton — o Edge Hill. Desta forma,
deixaram escapar o elemento surpresa e a indubitável vantagem da encosta, três vezes mais alta do que o solo. Enquanto isso, os soldados do Parlamento ocupavam a planície, com a vila de Radway entre os dois grupos. O primeiro movimento de Rupert teve sucesso. À cavalo, ele “lançou uma
carga contra os rebeldes (...) tão furiosa que equivaleu a uma ordem de
execução”, segundo escreveu uma testemunha realista.” No entanto, o que
poderia ter sido um êxito completo, tendo em vista a debandada das forças parlamentares, quando a cavalaria continuou avançando, até Kineton, os
realistas se esmeraram em saquear a carga transportada pelos homens de Hampden, e isso permitiu que a infantaria inimiga contra-atacasse com bons resultados. Pouco antes da batalha, o realista sir Jacob Ashley pronunciara a oração do guerreiro piedoso: “Oh Senhor, se por acaso deixar de pensar em Ti, neste dia, não Te esqueças de mim.” Naqueles campos gelados, onde Edmond Ludlow só dispunha de uma capa para se proteger, no meio daquela miséria e confusão, muitos devem ter se perguntado se a prece fora ouvida. Encostado a uma sebe, William Harvey, o cientista, lia um livro, até que uma bala raspou o chão; numa prova de grande sangue-frio, ele se cobriu com um cadáver; aquecendo-se contra o frio da noite. Feridos e infelizes, duzentos homens de Essex confessaram a um partidário do rei terem sido enganados, acreditando
que Sua Majestade não estaria presente. Segundo se dizia, alguns soldados
galeses favoráveis ao Parlamento mostravam-se particularmente sombrios, entoando uma triste modinha não muito refinada, assim: “As armas peidaram, assustando o pobre Taffy, Oh, Taffy, Oh, Taffy (...) No jardim de Kineton, O
pobre Taffy foi visto, Oh, Taffy, Oh, Taffy (...).”1º Esse desconcerto caracteri-
zou a cena após Edgehill, Essex bateu em retirada, rumo a Warwick, antes de dirigir-se a Londres, e o rei tomou a direção de Oxford, ambos os lado s considerando-se vitoriosos.*
E
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A participação de Oliver Cromvell nesta batalha está cercada de incertezas. À evidência se complica pela presença de outro Oliver Cromwell, seu fi-
lho mais velho, corneteiro do regimento de Oliver St John. No dia 13 de setembro, os capitães Cromwell, Austin e Draper receberam ordem de reunir suas tropas de cavalaria e juntar-se ao exército de Essex. O conde de Bedford
desfraldara sua bandeira prateada, ornamentada e emoldurada em negro, diante do regimento de 75 cavaleiros sob seu comando. Cromwell liderava ou-
tros 67 e certamente esteve presente no final da luta, O mais provável, porém,
é que assim como Austin ele somente tenha chegado ao palco da ação para
tomar parte no contra-ataque aos realistas. O puritano MP Nathanial Fiennes, na chefia de um dos contingentes de cavalaria de Essex, tentou deter a debandada das forças parlamentares e juntar um “belo corpo” numa colina.
Juntando-se a outras tropas, inclusive à do capitão Cromwell, marcharam sobre Kineton.”
Não se deve dar muita atenção ao malicioso ataque de Denzil Holles, em suas memórias, escritas algum tempo depois do combate, pois nessa ocasião ele já se tornara inimigo declarado de Cromwell; embora afirmando que Oliver teria fugido do confronto por deliberada covardia, no relatório produzido ainda no calor da refrega ele não mencionara nada a respeito. À explicação do próprio Cromwell — “passara todo aquele dia buscando o exército e O lugar da luta?” — foi acoimada por Holles como ridícula tolice, pois ele poderia ter se guiado pelo ruído da artilharia. No entanto, provavelmente, a afirmação de Cromwell toca o cerne da verdade. Já na fantasiosa história do realista sir William Dugdale, Oliver Cromwell desempenha c absurdo papel de um poltrão: para evitar a luta, sobe à torre da igreja de Durton Bassett e,
logo depois, vendo através da luneta as alas do Parlamento em fuga desordenada, balança-se na corda do sino. Já se sugeriu que esta versão talvez con-
tenha um grão de verdade: chegando atrasado, Cromwell teria trepado na torre em busca de melhor perspectiva, querendo juntar-se à batalha em vez de evitá-la.'2 O campo Edgehill era tanto difuso quanto confuso, mas tal acusação é absolutamente inverossímil, não apenas no que diz respeito a esta bata-
lha quanto a qualquer outra ocasião da carreira militar de Oliver Cromwell. Apesar da chegada tardia ao campo de batalha, duas coisas chamaram sua atenção: a personalidade ácida do agilíssimo príncipe Rupert — a abelha que
Picava com o ferrão da cavalaria, embora somente uma vez, pois não pôde reerior Organizar os combatentes depois da primeira carga — € à qualidade sup
uma conversa que u elo rev ele e, tard s mai s Ano s. iro ale cav mos desses mes
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teve com seu primo John Hampden sobre o assunto, imediatamente após a contenda — as palavras iniciais de Cromwell confirmam a suposição de que ele alcançou a batalha já a meio caminho: “Assim que acorri a esse combate, vi nossos homens batidos por todos os lados.” Essex precisava de “alguns novos regimentos”? e Cromwell ofereceu-se para apoiá-lo, acreditando estar em condições de cobrir a lacuna que lhe parecia evidente. “Muitos de seus soldados”, disse ele a Hampden, “são beberrões, velhos e decrépitos, com muitos
anos de serviço; os soldados deles [realistas] são filhos mais jovens de cavalheiros, pessoas de qualidade; você acha que gente próxima do fim e mesquinha será capaz de enfrentar homens que carregam honra, coragem e resolução dentro de si?” A solução, segundo Cromwell, era “recrutar homens determinados”, e ele insistiu com Flampden para que não subestimasse suas palavras — sem dúvida, estranhas aos ouvidos de um interlocutor do século XVII; disse que novos soldados deviam ser dotados “de uma determinação que os levasse tão longe quanto a de qualquer cavalheiro, do contrário as derrotas se sucederão”. Naquele instante, mesmo sendo uma pessoa sábia e valorosa, Hampden rejeitou a idéia, considerando-a boa mas impraticável. No entanto, o tempo se encarregaria de provar que o esquema nascido das convicções mais profundas de Cromwell, sinalizando uma superioridade potencial em termos tanto de uma vitória terrena quanto da salvação espiritual dos abençoados por Deus, não era apenas bom, mas também prático. Os fantasmas de Edgehill continuaram a assombrar o rei, enquanto a lembrança da derrota tornava sombria a visão de Cromwell. Pouco depois do combate, os pastores locais escutaram o som das trombetas e dos tambores, seguidos pelos terríveis gemidos dos moribundos — espectros de cavaleiros alados, imagens do conflito. Tais manifestações repetiram-se com suficiente freqiiência a ponto do rei enviar emissários, desde Oxford, para investigá-las; cada facção tirou suas próprias conclusões, imprimindo-as em panfletos: os realistas profetizaram que a malvada rebelião contra o soberano chegaria ao seu fim brevemente; os adeptos do Parlamento garantiram
que o monarca não demoraria a afastar seus igualmente malévolos conse-
lheiros.! Muito distante desses eventos sobrenaturai s, Cromwell voltara a Londres, provavelmente acom panhando Essex, e lá permaneceu alguns meses. Ele combinou seu papel anterior de membro do Parlamento com o de capitão de cavalaria. A a mbivalência de Edgehill e a falta de confiança
de
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a
muitos parlamentares ficaram demonstradas pelo fato do rei se sentir sufi-
cientemente forte e rejeitar negociações de paz. Opondo-se ao partido da guerra, dirigido por Pym, um partido da concórdia, sob a liderança de
Denzil Holles, preocupado, entre outras coisas, com o sucesso de dois co-
mandantes realistas — o conde de Newcastle, ao norte, e sir Ralph
Hopton, a oeste — começou a crescer dentro da Câmara dos Comuns. O embaixador de Veneza ouviu que muitos líderes parlamentares estariam “exportando” ouro, a fim de assegurar a eventualidade de uma fuga. Mes-
mo quando Essex impediu o rei de alcançar Londres, na batalha de
Turnham Green, em novembro, faltou-lhe o instinto assassino que teria permitido o aniquilamento da força militar do soberano. Como disse Whitelocke, foi uma “honra e segurança suficiente” para o Parlamento que o rei tivesse se retirado.” Cromwell manteve-se resolutamente no partido de Pym. Ele atuou como
escrutinador na contagem dos votos que negaram o Ato de Anistia Geral que daria aos seguidores do rei uma perspectiva de indenização; e envolveu-se desde o início na formação de duas entidades — a Associação dos Condados do Leste e a Associação dos Condados das Midlands — autorizadas pelo Parlamento, no final de 1642, com o objetivo de recrutar tropas e armazenar
suprimentos. Foi nomeado membro da comissão local do Cambridgeshire e Huntingdonshire, incumbida de avaliar, semanalmente, os recursos destinados
a financiar a guerra. Sob o controle do Parlamento, isso seria feito em todos os condados e cidades do Reino, segundo as formas usuais de arrecadação de tributos; de fato, os débitos foram calculados com base nas velhas listas do dinheiro de navio.
De volta a Cambridge, enquanto em Londres o Parlamento permanecia
irresoluto, Cromwell continuou a brandir um punho de ferro enluvado por
tênue pelica. No caminho de regresso suas tropas prenderam o sheriff do
Hertfordshire e, apesar da furiosa oposição local, enviaram-no para a prisão, em Londres, acusado de proclamar Essex e seus adeptos como traidores.
Velhas contas estavam frescas na sua memória. Seus soldados fizeram uma
visita ameaçadora ao velho inimigo de Huntingdon, Robert Bernard, memafinado o tã o iss por m ne s ma , ds an dl Mi das os ad nd Co bro da Associação dos friamente, Ê u de on sp re ll we om Cr , tos tes pro ar. s ent seu lam Ante com a causa par estão sug uma que do s mai co pou m co e pas cul des Sem nenhum pedido de de ameaça:
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“E a completa verdade, que o meu tenente, com alguns outros soldados de minhas tropas, esteve em sua casa (...) em virtude de informações que obtive sobre suas ações contra as atividades do Parlamento, assim como as daqueles que perturbam este país e este Reino (...). Estou certo de que fui cauteloso ao agir desta forma, mas não fique muito confiante, daqui por diante. À sutileza poderá enganá-lo — isto é, derrubá-lo. À integridade jamais o fará.”
Cromwell terminava declarando que não tendo o objetivo “de ferir nenhum homem (...) também não lhe farei nada. Espero não ter razões para isso, pois caso o faça terei que ser perdoado — minha relação com o povo o exigirá”.!s Na primavera de 1643, quando as negociações de paz com o rei estavam
mais uma vez paralisadas, Cromwell começou a ampliar suas tropas, com vistas a formar um regimento, o que iria culminar, mais tarde, na formação do
eficiente Exército de Novo Tipo. No final de janeiro, promovido a coronel, provavelmente por /ord Grey de Wark, que Essex nomeara comandante-em-
chefe das forças da Associação do Leste, a ele se referiu John Vicars como “nobre e ativo coronel Cromwell”, acrescentando: “Deus infunde e inflama os
corações de seu povo de forma que eles se mostrem alegres e preparados ao se adiantar para ajudar o Senhor contra os poderosos Nimrods e as Fúrias Caçadoras de nosso tempo (...).”!” A atividade de Cromwell era imensa, e em
todos os seus esforços, visando organizar e equipar uma força capaz de deter a maré realista, ele imprimia a marca de uma nobre determinação de aplicar
aqueles princípios “bons, porém impraticáveis” que tinha exposto a Hampden depois de Edgehill. Sua persistência nesses novos métodos de recrutamento vem de muitas fontes diferentes. Segundo Whitelocke, seus homens eram proprietários € filhos de proprietários engajados na luta “por uma questão de consciência (E)
espiritualmente, bem armados com a satisfação da probidade e, externamente,
graças a bons braços de ferro, o que os mantinha firmes como um só homem, aptos a atacar sem piedade”. Manchester confirmava: os oficiais de seu regi-
mento eram “homens comuns, pobres e de ascendência pobre, com outras antenores (...). Eu o ouvi dizer muitas vezes que soldados ou escoceses não deveriam ser encarregados desse trabalho, mas somente os abençoados”. Richard Baxter descreveu como, desde o início, “ ele tomava especial cuidado em recru
tar gente com boa formação| religiosa”, 101 porque os apreciava ! e amava;;
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naturalmente, desta feliz e valiosa escolha, decorriam “poucas desordens, mo :
=
)
tins, saques e outras queixas que rebaixam os soldados e em geral inculpam
o
os exércitos”.” A rotina religiosa era da maior importância e foram dados passos para
recrutar capelães, muitos deles dublês de combatentes: Hugh Peter, formidável pastor “independente”, possuía um jeito peculiar de levantar fundos e liderar as massas, sendo visto carregando uma Bíblia e uma pistola. Confor-
me o ditado popular, “os Santos devem ter o louvor a Deus em seus lábios e uma espada de dois gumes na mão”. Richard Baxter narrou como fora convidado a se tornar pastor dos oficiais de Cromwell, que pretendiam criar
“uma igreja organizada”.”” Ainda que esse incidente tenha sido apresentado
como evidência congregacional da visão eclesiástica de Cromwell — sua adesão a um corpo unido, mais do que a formas livres e independentes de culto —, Baxter atribuiu o convite a James Berry, ex-funcionário de uma fundição do Shropshire e naquela ocasião capitão-tenente do regimento de Cromwell. Trata-se portanto de uma referência muito isolada e não categórica. Não se sabe quem foi escolhido, afinal, supondo-se que tenha sido William Sedgewick.” Desde o início, a disciplina das tropas, abrangendo inclusive os hábitos pessoais dos soldados, contrastava fortemente com os costumes dos militares a que já nos referimos. No mês de abril, em Huntingdon, dois “praças” tentaram desertar e foram chicoteados. Em maio, o Special Passages [Trechos Principais], jornal parlamentarista, registrou com satisfação que o coronel Cromwell mantinha “dois mil bravos, bem disciplinados; nenhum deles fala
palavrões, mas recebe seus 12 pence; quem se embebedar será preso (...) se chamar o outro de cabeça-redonda será expulso (...) onde chegam, a populaa a d r a o r d b o a c v o e n a ax i z i sa pr n ”. r Es es e m t el o a c r f a n o ri c e eg a al ção salt de istas dos conscritos, tradicionalmente brutais e licenciosos, ou no mínimo porr
€ blasfemadores, pode ser avaliada com base na expectativa piedosa expressa
pelo mencionado periódico, que augurava à felicidade que seria, caso “todas
as forças fossem assim disciplinadas!”. Em março de 1643, os cinco destacs.amentos que formavam o primeiro regimento de Cromwell estavam completo lia, a mí ri fa óp a pr is su m ia e u ic o c of s u , b e e t el n e a m m n i e a v Com a certez di
não só Desborough, como também seu primo, Edward Whalley,temubmrosojábrihanhvio;a O jovem Valentine Walton, e seu próprio filho, Oliver. Em se
ll alcançadez grupamentos e em abril de 1644 o corpo de tropas de Cromwe ra cerca de 1.400 homens.
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O primeiro sucesso dessa força disciplinada e abençoada deu-se numa es. caramuça nas redondezas de Grantham, no Lincolnshire, no mês de maio de 1643. Cromwell já tinha tomado parte no bem-sucedido porém menos importante cerco de Croyland, ao norte de Peterborough, onde oitenta realistas, sob o comando de um dos seus primos, se entrincheiraram com alguns reféns, Agora seu objetivo era atacar o importante baluarte de Newark, a nordeste de Nottingham — uma ação preventiva contra a possibilidade dos real istas
avançarem sobre os condados do leste. Cromwell partiu rumo ao norte a fim de juntar-se a /ord Grey de Groby, em Stamford, mas para seu desgosto, publicamente expresso, aliás, o nobre não compareceu ao encontro, alegando não poder deixar Leicester desprotegida. No dia 9 de maio, as tropas de Cromwell, as de lord Willoughby, de Parham, e as de sir John Hotham reuni-
ram-se em Sleaford, entre Peterborough e Lincoln. No dia 11, marcharam na direção oeste, no sentido de Grantham, e tarde da noite de 13 de maio entraram em confronto com o inimigo nos arredores de Belton. Mais tarde Cromwell escreveu que seus oponentes tinham cerca de 21 grupos de cavalaria e três ou quatro de dragões — infantaria montada armada com espadas curtas e mosquetes, nove dos quais desmontavam para disparar, enquanto o décimo segurava as rédeas dos cavalos — que ele enfrentou com apenas 12 destacamentos, “alguns tão pobres e alquebrados que dificilmente haveria pio-
res”. Algum fogo de mosquete foi trocado e, passada meia hora, apesar de sua superioridade, o inimigo não avançou. Cromwell decidiu então tomar à
iniciativa, adiantando-se “a um bom trote” e, diante da firmeza do oponente, carregando impetuosamente. A surpresa produziu bons resultados. Os adversários debandaram e foram perseguidos pela vitoriosa cavalaria de Cromwell ,
que só perdeu dois homens, contra cerca de cem antagonistas. O Parlamento
demonstrou sua
gratidão e apreciação pelo valor do
trabalho de Cromwell, que bloqueara o avanço realista no leste, porta de
que as três mil libras já recolhidas nos do ordenan , Londres de entrada condados associados e enviadas a Cambridge fossem pagas ao cor onel, destinando-se à manutenção de suas tropas. Rel atando os fatos, Cromwell abriu um precedente, atribuindo seu triunf o à divina providência. Escreven
do de Syston Park a um outro comandante, ele declarou: “Deus nos concedeu, esta noite, uma gloriosa vitória sobre o inimigo.” Um mero grupo de homens tinha “merecido o de Deus, fazendo pesar a balança
a nosso
favor”,DEN:
favor
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Ironicamente, enquanto a disciplina de seus homens fazia aumentar à re-
putação de Cromwell junto aos partidários do Parlamento, por outro lado
os panfletários realistas atribufam-lhe uma imagem de vândalo e rebelde. A cizânia espalhava-se no espírito dos soldados e entre as tropas purita-
nas, em particular. Nesses primeiros anos da guerra e durante a campanha da Irianda Cromwell foi acusado de iconoclasta, surgindo daí a lenda e o
folclore que cercam e mancham seu nome.* Toda essa história de iconoclastia — literalmente, destruição de imagens — é obviamente bastante emocional. Não existe meio mais seguro de atingir o renome de uma pes-
soa na estima das gerações seguintes do que atribuir-lhe a demolição
desordenada de obras de arte. Muitos castelos que ele teria posto abaixo, igrejas violadas e estátuas quebradas são erroneamente datadas, de forma ridícula, ou ocorreram em áreas tão distantes de qualquer ponto que ele tenha visitado que nem merecem ser repetidas. Um exemplo do primeiro caso pode ser citado — às vezes se credita a Cromwell o desmantelamento da torre e do transepto da catedral de Ely: de fato, ele morou naquela
cidade, e a torre, sem dúvida, caiu... no século XIV.
O processo de falsa imputação se acelerou devido à infeliz coincidência de Thomas Cromwell, ancestral de Oliver, estar associado à destruição de monastérios. Escrevendo sobre as depredações perpetradas contra a catedral
de Peterborough, no final do século XVII, um clérigo realista achou importante acrescentar uma nota sobre o nome de Cromwell — “hoje tão funesto
para os pastores, como antes para os monastérios”. No século XVIII, em via-
gem à região das Midlands, um certo coronel Byng notou a perplexidade dos homens do campo diante de “dois Cromwell, um destruidor de monastérios e outro de castelos”.= A verdade é que à medida que cresce o folclore eles mais
se parecem. Com certeza, a imaginação popular terá feito recair sobre Oliver
as responsabilidades criminosas de Thomas.
Quando Cromwell ainda estava distante do comando geral já circulavam histórias malignas também a respeito das tropas do Parlamento, e que de cer-
ta forma se vincularam à sua reputação. Em função das culminâncias que al-
cançou ele personificou todas essas barbáries. À maioria das acusações era
divulgada por dois jornais realistas — o Mercurius Aubicus, que durante muito
tempo alcançou grandes tiragens, e o Mercurius Rusticus, de vida curta. As re[a
all, e The Image of Cromwell “Ver, especialmente, Was Cromwell an Iconoclast?, de G. F. Nutt in Folklore and Tradition, de Alan Smith.
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ferências a Cromwell inserem-se num conjunto de ataques aos parlamentares
incluindo a “muito miserável desfiguração” da catedral de Peterborough, seus órgãos e vitrais, em fins de abril de 1643. “Houve ultrajes maiores e mais numerosos do que os praticados pelos
godos ao saquear Roma, e semelhantes aos cometidos pelos turcos contra as
cidades cristãs”, disparou o Mercurius Rusticus; a versão espalhou-se com o li. vro História de Peterborough, do reverendo Simon Gunston, impresso em 1688,
segundo o qual, enquanto demoliam o púlpito, “as bocas sujas dos soldados
vociferavam: Abaixo o trono do Anticristo! Haveremos de arrasá-lo!”: a narrativa do padre prossegue dizendo que, antes de destruírem o órgão, eles to-
caram músicas lascivas, acompanhando a dança dos companheiros, vestidos com sobrepelizes. Aos apelos dos fiéis, que exigiram o fim da profanação, Cromwell respondia que seus homens estavam prestando um bom serviço a Deus — ele mesmo derrubou um crucifixo. Os livros de orações, em geral, eram alvo de ataques, mas um deles foi preservado por um comendador militar, que pagou por ele dez shillings a um dos homens da tropa do jovem Oliver. O soldado em questão inscreveu devidamente numa de suas páginas: “Peço que se deixe em paz este livro de escrituras, pois o portador me pagou por ele. (...) Por mim, Henry Topcliffe, soldado sob o comando do capitão Cromwell, filho do coronel Cromwell. 22 de abril de 1643.»
As tropas foram acusadas de profanar a catedral de Lincoln, derrubando
túmulos e esculturas e instalando um estábulo em sua nave. Posteriormente chegou-se a comentar que /ord Kimbolton demitiria o cavalariço caso ele permitisse que seu estábulo ficasse tão sujo como Cromwell deixara a casa de Deus. Em Cambridge, na primavera de 1644, dizia-se que Oliver encorajara o confisco do Livro de Orações Comuns pertencente aos clérigos da Univer-
sidade, tendo causado a demolição de algumas belas esculturas “que sequer representavam imagens”? O único incidente crível, e do qual Cromwell emerge exatamente como
em anos posteriores, ocorreu na catedral de Ely em Janeiro de 1644, comprovado por documentos, além das notícias coléricas dos jornais realistas. Como
todos os puritanos, ele considerava à prática do coro “não edificante e ofensi-
va”. Não se tratava de nenhuma oposição à música ou ao canto enquanto tais, mas de uma atitude que abrangia inclusiv e os órgãos, frequentemente quebra a baseada na objeção a tudo que rompesse o silêncio — afora orações — em
casa de Deus. Tudo bem que se tocassem inst rumentos e se cantasse, mas casa, Apaixonado pela música, Já como Lorde Protetor, Oliver Cromwell
)
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instalou um órgão em Hampton Court. No caso citado, ele antecipou-se, escrevendo ao sr. Hitch, clérigo da igreja, para adverti-lo de que os soldados
poderiam acabar promovendo tumultos, devido à continuação do coro. Seria muito melhor catequizar a população lendo as Sagradas Escrituras e discorrendo a seu respeito; ignorar esse conselho ou, pior, proferir sermões subversivos acarretaria problemas da inteira responsabilidade de Hitch. Ignorada a advertência, Cromwell apareceu durante uma sessão do coro e, sem tirar o chapéu, dirigiu-se a Hitch dizendo: “Sou a autoridade e ordeno
o encerramento desta assembléia.” Heróico e obstinado, o clérigo fez ouvidos de mercador e prosseguiu o serviço religioso. Furioso, Oliver desembainhou
a espada, obrigando-o a deixar de tolices e descer do púlpito. Ato contínuo, expulsou toda a congregação do templo.” Este era Oliver Cromwell, firme mas razoável, e, se provocado, autor de violências, todavia sempre apoiadas pelo Parlamento. O conjunto das evidências acerca da iconoclastia de Cromwell é parco e pouco impressionante: nos anos seguintes seu temperamento voltou-se contra ultrajes desordenados, e o deão Stanley, em sua History of Westminster Abbey [História da Abadia de Westminster], achou de bom alvitre anotar que os monumentos daquela circunscrição eclesiástica, tão cruelmente tratados sob Henrique VIII, permaneceram intocados sob Cromwell. Mesmo nesse período inicial, Cromwell ficou estarrecido diante dos danos causados ao castelo
de Nottingham e disse ao coronel Hutchinson que teria se oposto, se tivesse sido consultado. Na mesma época, Rupert, apelidado de “príncipe assaltante”, incendiou Cirencester e Marlborough. Por razões diversas, os realistas terminaram a luta com uma reputação
bastante ruim: relativamente à respeitável questão de dar às igrejas uso semelhante ao de estábulos — acusação atribuída com indignação às forças do Parlamento — é importante assinalar que até mesmo o grande cavalheiro
cristão Montrose o fez, em Udney, no Aberdeenshire. Nem a santidade das
de a quanto Lichfield, de catedral a tanto pois incólume, igrejas escapou
Hereford, transformaram-se em praças de guerra, fortificadas pelos partidários do rei. Couraças, pólvora e munição eram guardadas em seus recintos. Ambos os lados converteram igrejas em prisões, o que com freqiiência produzia danos em seu interior Cranborne Manor House, por exemplo, após sofrer nas mãos dos realistas, segundo relatos da família Salisbury, teve incendiados os portões e “uma pequena casa no pomar” por Cromwell e seus
mais justo Seria 1645. de outubro em militar campanha a durante seguidores
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aceitar o veredicto de John Evelyn, que escreveu em seu diário ser “impossível evitar que se façam coisas muito feias durante uma guerra” e depois fugiu para o exterior, onde permaneceu enquanto duraram as hostilidades.”
É bastante importante, entretanto, estabelecer a diferença entre a destruição sem objetivos, realmente comum num estado de beligerância, e uma polf-
tica deliberadamente iconoclasta, patrocinada pelos puritanos e inquestionavelmente apoiada pelo Parlamento. Um escritor bastante inventivo
alegou que os partidários do rei eram piores, pois acreditavam no caráter sa-
grado das igrejas profanadas por seus soldados. Tal ponto de vista equivale a considerar mais repreensível uma destruição descuidada do que uma campanha — indiscutivelmente ocorre o contrário. Enfim, a tradição iconômaca remontava à época de Eduardo VI. Um historiador ressalta que o ódio dos puritanos do século XVII contra as imagens deve ser entendido como parte de uma longa segiiência de mais de um século da história da Inglaterra, e não “como uma fúria desusada e insensata, inteiramente apartada de seu contexto”. Sob o comando do Parlamento, os métodos da soldadesca não se diferen-
ciavam muito dos estabelecidos com base nos antigos estatutos que prescreviam a quebra de ídolos e obras de arte.? Já acentuamos a enorme importância simbólica que os puritanos davam aos símbolos exteriores de “papismo” — grades separando os fiéis dos padres
que lhes ministravam o sacramento da comunhão, crucifixos etc. Sua destruição intencionada expressava uma revolta doutrinária, cujas tendências já exis-
tiam bem antes da guerra: em 1641, por exemplo, as grades e mesas de comunhão, em Wolverhampton, foram destroçadas por um grupo de cidadãos de classe muito baixa, inclusive caldeireiros e ferreiros, e duas mulheres, que
assumiram toda a responsabilidade e foram multados; apesar disso, um dos caldeireiros dirigiu-se atrevidamente ao magistrado, afirmando que a mesa “transformara-se num ídolo” e que ele faria tudo outra vez, “caso necessário”.
A luta simplesmente criou mais oportunidades para gestos assim — vontade já existia. Uma balada satírica, cuja letra foi impressa em 1646, escarnecia dos soldados puritanos, atribuindo-lhes os seguintes lemas:
Qualquer coisa que os papistas tenham construído Nossos martelos destruirão:
Quebraremos seus órgãos e queimaremo s suas vestes,
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E derrubaremos suas igrejas também.
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CROMWELL
Como uma flecha, a referência a “mãos papistas”? atin giu o alvo. Antes que se tornasse fundamental a formação de um exército profissional e disciplina-
do, Cromwell, em suas atividades iconoclastas, estava imbuído muito mais pelo sentimento de uma genuína repulsa doutrinária do que por atitudes gros-
seiras características de uma vulgar brutalidade militar. Nos anos seguintes ele mostrou muito poucas evidências em contrário.
Após a vitória de Grantham, em maio de 1643, os meses restantes do verão foram consumidos por Cromwell numa série de pequenos enfrentamentos nos condados do leste e arredores; a captura de Stamford e a defesa de Peter-
borough contra um ataque realista que partiu da perigosa Newark inserem-se
nessa campanha. Nenhum de seus aliados demonstrava a mesma firme intenção no sentido de dar prosseguimento à guerra com todos os recursos possí-
veis e com todas as tropas disponíveis. No dia 13 de junho queixou-se à Associação, em Cambridge, do atraso de sir John Palgrave, vice-governador de
Norfolk, que ainda não se juntara a ele no campo de luta, sob alegações que lhe
pareciam totalmente inadequadas: “Não se deve permitir a permanência de um voluntário sequer em Wisbeach — eu vos rogo, não o façam (...). Esta não é uma hora de opções prazenteiras. Há um trabalho a ser executado. Ordenem e sejam obedecidos!”*º Tão insatisfatório quanto o comportamento vacilante de sir John, beirando inclusive a traição, foi o de John Hotham, um jovem intratável que devastou o campo e, sendo repreendido pelo coronel Hutchinson, replicou, orgulhosamente, estar lutando pela liberdade que esperava conquistar “em toda parte”. Diz-se que ele chegou a agir desdenhosamente até mesmo contra Cromwell e Jord Grey de Groby, e que numa disputa local em torno de uma pequena quantidade de aveia apontou seus canhões contra eles. Finalmente, em virtude das reclamações encaminhadas à Comissão de Segurança, Hotham foi detido e levado ao castelo de Nottingham. Mas nem isso arrefeceu seu desca-
ramento; logrando escapar, escreveu uma carta ao presidente da Câmara dos Comuns, queixando-se do baixo nível social e sectarismo religioso dos homens de Cromwell, que teria se valido de um “anabatista”* contra ele, enquanto outro de seus subordinados, o coronel White, até bem pouco tempo .
não passava de um criado”.
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*Hotham
usou o termo “anabatista” pejorativamente,
como era comum
naquela DR
her tando uma pessoa de classe baixa. Os batistas nunca falariam assim. Christop MH atualmente. que “anabatista”, no século XVII, seria o mesmo que “vermelho”
Hil afirmou
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No dia 24 de julho, Cromwell comandou com sucesso o cerco de Burghley
House, perto de Stamford, no Northamptonshire, suntuosa construção do tem. po da rainha Elizabeth, erguida por seu grande servidor e defendida, então, pela viúva, condessa de Exeter, representante do filho menor. Inicialmente os realistas se recusaram a negociar, mas foram persuadidos a mudar de idéia
por três esquadrões de mosqueteiros, seguindo-se às tentativas da artilharia de
derrubar a casa. Conforme as regras da guerra, o desafio dos defensores daria
aos atacantes o direito de matá-los. Cromwell, porém, apesar da primeira e peremptória recusa dos defensores, proibiu seus soldados de matar quem quer que fosse, sob pena de morte para eles próprios: a casa foi tomada sem perda de vidas, e os duzentos cavaleiros levados como prisioneiros a Cambridge. Supõe-se além disso que Cromwell tenha presenteado a condessa com um retrato seu, pintado por Robert Walker,* lembrança da terrível situação. O confronto militar seguinte — a liberação de Gainsborough, onde forças parlamentares achavam-se sitiadas por realistas — permitiu-lhe comprovar a firmeza que já demonstrara em Grantham e a prudência de Burghley House. No dia 28 de julho Cromwell tinha se juntado às forças de lord Willoughby, somando cerca de vinte destacamentos de cavalaria e três ou quatro de dragões. Para atacar o inimigo, a maior dificuldade residia no fato dele ter se entrincheirado no alto de uma colina extremamente íngreme, terreno muito traiçoeiro, local de criação de coelhos. Os realistas eram muito numerosos — “um conjunto importante”, segundo Cromwell —., dispondo de seis ou sete destacamentos de reserva. Apesar da posição tão favorável dos oponentes, decidiu-se atacá-los desde baixo. Cromwell comandou a ala direita.
Seus homens, inicialmente, subiram o aclive em colunas, formando uma linha
de batalha quase no topo da elevação. Quando já estavam ao alcance dos tiros de mosquete, os adversários lançaram-se contra eles, descendo. Foi carga contra carga — corpo a corpo ou “cavalo a cavalo”, conforme a descrição de Cromwell —, uma luta tensa que durou um tempo considerável até que um
dos lados conseguisse quebrar o ímpeto do outro.? Conseguindo uma peque-
na margem de pressão adicional, as tropas parlamentares fizeram o inimigo recuar um pouco, e essa vantagem bastou para que acabassem conseguindo
romper suas defesas.
Caindo sobre a retaguarda, Cromwell desbaratou as forças de reserva COmandadas pelo coronel sir Charles Cavendish, que dispunham de três grupos *O quadro ainda se encontra em Bu rghley House. E
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CROMWELL
127
de cavalaria, enquanto as tropas de Willoughby, compostas por voluntários do
Lincolnshire, atacavam frontalmente. Forçado a buscar refúgio no pântano, Cavendish foi mortalmente ferido por Berry, o capitão-tenente de Cromwell, com uma estocada logo abaixo das costelas.” Seus homens se puseram em
fuga, com os de Cromwell em seus calcanhares. Não por muito tempo, porém. Oliver não se esquecera que a maior fraqueza da vitoriosa carga de ca-
valaria fora a dificuldade de reorganizar as fileiras após o ataque. De alguma forma, ele manteve a coesão de seus comandados num momento particularmente crítico. Pois foi justamente quando as forças do Parlamento começaram a cumprir as ordens que haviam recebido, ou seja, o aprovisionamento de novos suprimentos e munições à cidade de Gainsborough, que se descobriu que o exército realista do conde de Newcastle, cuja aproximação era temida, colocara-se do lado oposto da cidade, mais uma vez seriamente sitiada. A cavalaria de Cromwell e a infantaria de Willoughby não poderiam manter a cidade contra essa força muito superior. Além disso, recém-saídos de um
combate, homens e cavalos estavam exaustos. Atemorizado, Willoughby buscou
refúgio dentro dos muros, mas Oliver entendeu que seria um desastre encerrar os animais lá dentro, imobilizando-os ou para que fossem capturados. Decidiu
portanto retirar-se, suportando, apesar de todo o desgaste das montarias, um
ataque inimigo que o forçou à retirada, evitando a luta em tão precárias condições. Segundo sua versão, alcançou-se o impossível: “Juntamos nossos cava-
los com certa dificuldade num único corpo e enfrentamos a carga adversária, procedendo a um recuo organizado, até Lincoln, onde chegamos sãos e salvos
(..)” O sucinto relatório sobre a batalha encobriu a magistral tática militar
empregada e uma flexibilidade impressionante, particularmente se considerarmos o tipo de treinamento usado na época. Analisando as campanhas de
Cromwell, um soldado profissional observou que um comandante militar só tem um problema mais difícil do que atacar um inimigo já preparado, que é o de retirar-se fatigado, enfrentando tropas descansadas e superiores. Cromwell
obteve sucesso em ambas as manobras.
Após Gainsborough, de volta a Huntingdon, Cromwell foi informado de que o Parlamento o nomeara governador da ilha de Ely e promovido ao posto de coronel, responsável pelo comando das forças sediadas nos condados do
leste. No entanto, olhando ao redor, ele não poderia deixar de notar
que a
causa a que servia de forma tão zelosa e efetiva encontrava-se numa situação militar extremamente perigosa. A escaramuça de Chalgrove Field, em 18 de junho, havia terminado com a vitória da cavalaria ligeira de Rupert, à morte
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de John Hampden — causada por ferimentos recebidos na batalha —. cio abandono, por parte de Essex, de quaisquer planos futuros de assediar
Oxford, onde o rei mantinha seu quartel-general. Durante o combate, o prín-
cipe tinha demonstrado coragem pessoal. Ao mesmo tempo, como foi Visto, 0
conde de Newcastle deslocara-se desde o norte; engolindo Gainsborough, ele tinha anulado o pequeno triunfo das forças parlamentares e não demorou a mover-se na direção de Lincoln. Não surpreende que as cartas de Cromwell apelassem quase desesperadamente por dinheiro, reforços, qualquer coisa que salvasse a nobre aventura iniciada pelo Parlamento de perecer ante os realis-
tas, por causa de uma completa ineficiência. Em julho, a envelhecida matriarca da família Cromwell escreveu a um primo, indignada: “Gostaria que tivesses o cuidado de separar algum dinheiro para socorrer meu filho, tão negligenciado.” O parente também devia restituir mais de cinquenta libras que ela depositara em suas mãos. O pagamento dos militares variava de dois shillings — soldo diário de um recruta de cavalaria, destinado às suas provisões, roupas, equipamentos e ali mentação da montaria (as tropas de infantaria recebiam sete gence por dia) — até uma libra e 19 shillings pagos aos capitães. Os oficiais de maior patente
recebiam conforme um sistema que remunerava seus respectivos papéis — por exemplo, um coronel no comando de um regimento de cavalaria poderia chegar a três libras e 9 shillings por dia. O problema não estava nos valores
em si, bastante generosos, mas no recebimento dos estipêndios. Dinheiro é
um tema recorrente nas cartas de Cromwell do final do verão aos meses do
outono — às vezes, um lembrete agressivo aos subcomandantes de Essex, reclamando ter desembolsado o pagamento de meias, sapatos, camisas e aquar-
telamento das tropas do condado, e cobrando a restituição, “pois não se espe-
re de mim arcar com tal ônus”; às vezes, uma abordagem apaixonada de temas gerais junto aos comissários, en Cambridge, afirmando que “o dinkeiro que trouxe comigo é insuficiente para ser distribuído às minhas tropas, OU vesti-las pela metade, tão grande é o atraso. Se não recebermos mais, e rapi-
damente, haverá desestímulo. Lamento ter que escrever tão frequentemente
sobre isso. Parece que me torno desnecessariamente inoportuno, mas trata-S da constante negligência daqueles que deveriam nos prover. Cavalheiros,
vosso dever ajudar os que estão dispostos a dar seu sangue por vós”. | Em
11 de setembro, falando em nome da sua “querida companhia”, ele
dirigiu um desesperado apelo pessoal a seu primo Oliver St John, em Londres: “Dentre todos os homens, você é o último a quem eu deveria perturbar
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com esse tipo de problema, não fosse o estado de penúria em que se encontram minhas tropas — estou sob pressão irresistível, excessivamente negligenciado!” Escrevera à Câmara dos Comuns com amargura, pois não solicitava nada em
proveito próprio; infelizmente, o que possuía não servia sequer como comple-
mento às carências manifestadas pelos soldados — seu patrimônio, inclusive, tinha diminuído: “As propriedades que tenho são poucas e, em dinheiro, devo dizer-lhes que os negócios da Irlanda e da Inglaterra levaram de mim entre 1.100 e 1.200 libras; minha bolsa privada não vale quase nada para ajudar ao públi-
co.” Concluía tristemente, assegurando que restava sua própria pele, e que a arriscaria junto com os homens que seguiam seu comando. “Coloquem um peso sobre a paciência deles, mas não a rompam.” O pós-escrito, ainda mais urgente,
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referia-se à falta de cuidado geral na manutenção do exército de Manchester:
“A força fracassará se não houver alguma ajuda; conselhos e débeis ações são inúteis. Envie qualquer tipo de apoio, imediatamente, ou tudo estará perdido. Só nos restará o auxílio de Deus — garanto.” Em tais circunstâncias, foram muito tocantes as reações de alguns “jovens, rapazes e moças”, cujo entusiasmo adolescente levou a que ultrapassassem a
vergonhosa inércia dos pais, oferecendo dinheiro para equipar, parcialmente pelo menos, a nova tropa de Cromwell. Ele aprovou o projeto, inteiramente, na
expectativa de poder recrutar gente honesta e temente a Deus, a quem agradeceu “por inspirar a juventude a abrir mão de suas pequenas quantias”. Quanto
às 240 libras assim arrecadadas, aconselhou que fossem utilizadas na compra de “pistolas, selas e oitenta cavalos, pois menos de quatrocentas libras não or-
ganizam uma tropa de cavalaria”. Ao se juntar a Fairfax, em Boston, não encontrou nenhuma ajuda do Parlamento destinada aos seus homens e, de acordo com um relato, começou a chorar de pura raiva e frustração.”
No outono, entretanto, a situação geral das forças do Parlamento parecia mais uma vez favorável, se bem que os problemas financeiros de Cromwell só viessem a ser efetivamente solucionados no ano seguinte. Estabeleceu-se um soldo regular, ainda que reduzido, para todos os homens — os seus e os do exército de Manchester No oeste, Gloucester, fortaleza do Parlamento, foi sal-
va de um longo cerco; em Newbury, em 18 de setembro, Essex superou uma Londres. alcançasse rei o que impedindo Reading, até avançou e batalha dura de apelo um a do responden capital, à escoceses s comissário dos A chegada mso um em ss xe ou tr s ele ra bo em o, oi ap de John Pym, reacendeu as esperanças asa ser vi al de on o ci çã Na en nv a Co ri óp pr a su — co bi ra no ei iv ol de mo brio ra
sinada. Cromwell fora enviado ao norte a fim de contatar sir Thomas Fairfax.
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Foi o primeiro encontro de Fairfax com aquele que seria seu chefe. Des.
cendente de antiga família de proprietários de terra no Yorkshire — de onde provinham suas tropas —, tipo interessante e romântico, de olhos negros e abundante cabeleira escura — ele e Strafford eram apelidados de Black Tom —, silencioso em público, inspirava muita simpatia e admiração a seus con-
temporâneos, inclusive Cromwell, 12 anos mais velho, graças à rara combinação de temperamento doce e perícia militar de aço. Segundo Joshua Sprigpe, o caladão costumava converter-se em anjo da batalha — com franqueza, e ainda que levando em conta ter sido emitida por um fervoroso admirador, a comparação é ruim. Milton escreveu que Fairfax, como Cipião, o africano,
não que em ela
se limitava a derrotar o inimigo: ele o fazia gloriosamente.” Todavia, em pese tamanha autodisciplina, Fairfax era muito influenciado pela esposa; solteira /ady Anne Vere, criada nos Países Baixos, extremamente religiosa, se tornara presbiteriana por volta de 1647. A primeira colaboração entre ambos foi auspiciosa. Em 10 de outubro, em Winceby, a alguns quilômetros do litoral de Boston, na direção nordeste, Manchester e Cromwell, aliados a Fairfax, enfrentaram o governador de Newark, sir John Henderson, tentando impedi-lo de ir em socorro de Bolingbroke Castle. Apesar da superioridade numérica dos realistas e da fadiga de alguns contingentes parlamentares era vital barrar a progressão das forças dos partidários do rei nessa região. As tropas de Manchester dispunham de melhor equipamento. A batalha foi iniciada pelos dragões, e Cromwell comandou pessoalmente a primeira carga de cavalaria. De acordo com uma testemunha, um forte canto de salmos ergueu-se no ar — esse som se tornaria pano de fundo familiar nas batalhas da guerra civil, entoado pelos “cabeças-redondas” e, em certas ocasiões, até por cavaleiros.*º Logo à primeira salva de mosquete, o cavalo de Oliver caiu, e ele teve de montar um ani-
mal bastante inferior. Coube a Fairfax, na segunda carga, obrigar o inimigo à fugir, após somente meia hora de luta.
Cromwell passou a maior parte do outono em Ely com a família. Henry
Ireton, vice-governador da ilha, viera do Nottinghamshire; solteiro, 32 anos,
ex-major da cavalaria do coronel Thornhaugh, em Gainsborough, de natureza
reservada, religioso, teimoso e inteligente, os realistas o consideravam rude — “como um alto e desprezível ladrão, cabelos encaracolados, rosto descarnado e olhos fundos, numa expressão mesquinha”.*! Acima de tudo, porém, era um homem extremamente sério, um intelectual, que só partia para a ação
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depois de meditar profundamente e de acordo com as conclusões à que tives-
se chegado. Nisso ele diferia muito de Cromwell, que pensava e agia ao mesmo tempo — fagulhas espontâneas acendendo a chama de seus gestos. Ambos se tornaram muito amigos, como frequentemente acontece quando há
identidade de objetivos suficiente. A amizade aprofundou-se quando Ireton
cortejou a filha mais velha de Cromwell, Bridget.
No final do ano, Cromwell estava de volta a Westminster, discursando; em novembro fez parte de uma comissão presidida pelo conde de Warwick, encarregada de examinar os problemas da expansão colonial no Novo Mundo. Foi um período politicamente complicado. O preço da ajuda escocesa — uma promessa de vinte mil homens — seria a aceitação da sua Liga: em se-
tembro, Pym já assinara a Convenção. As dificuldades contidas no documen-
to transpareciam mesmo para os mais tolerantes, que nada tinham a ver com os rígidos princípios do presbiterianismo, e sir Henry Vane, o jovem, conseguira alterar alguns de seus termos: a anunciada reforma da Igreja passaria a ser “de acordo com a palavra de Deus”, terminologia muito mais vaga do que a dos escoceses e passível de diferentes interpretações. Pode-se dizer que a emergência dos “independentes”, enquanto grupo político e não apenas religioso, em Westminster, decorre desse incidente. Sua primeira menção ocorre em 1643. Desde o início, eles se identificaram muito com o “partido da guerra”. A morte de John Pym, em 18 de dezembro, retirou da cena política o único homem suficientemente capaz de controlar os escoceses. Permitiu também a ascensão natural ao poder dos “in-
dependentes” mais jovens, como Vane, ampliando a brecha na frente parlamentar entre os que se inclinavam no sentido de um presbiterianismo escocês
e os que preferiam a visão separatista. Vane, então com trinta anos, era filho do antigo secretário de Estado de Carlos I, até sua demissão em 1641. Punitano dedicado, desde sua conversão na juventude, homem de intelecto e força, exercia grande influência sobre seus contemporâneos. Clarendon referiu-se a
seu aspecto “pouco usual”, apesar de seus pais não terem sido particularmente belos, o que fazia muita gente pensar que ele possuía “algo de extraordinário
em si: e toda a sua vida favoreceu esta idéia”. Na Casa dos Comuns ele vinha
se tornando rapidamente o equivalente político de Oliver Cromwell no campo de batalha.
iAs lutas internas se acirravam em virtude das tentativas do rei, sem dúv
tar esen repr sse pude que o vídu indi quer qual com r trata de is, da compreensíve dos ica ind dos um foi ll mwe Cro . ição opos da ente corr na o frac mais um elo
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para considerar a delicada questão da carta que Sua Majestade enviara a Vane,
propondo liberdade de consciência. O destinatário a mantivera em segredo, no
intuito de descobrir as verdadeiras intenções do monarca, mas a interpretação de Essex foi má — como algo dirigido contra si próprio. No entanto, em fevereiro, quando se constituiu a Comissão dos Dois Reinos — Inglaterra e Escócia — em substituição à antiga Comissão de Segurança, criada pelo Parlamento
para administrar a guerra, muitos dos seus 21 membros poderiam ser considerados “independentes”. Nela, o nome de Cromwell destacava-se, aparecendo ao lado de Vane, Oliver St John, sir Arthur Haselrig e Warwick. Apesar das disputas intestinas, a maior preocupação de Cromwell ainda era à luta armada. Quando discursou na Câmara, em 22 de janeiro, dirigiu um furioso ataque a /ord Willoughby, de Parham, por sua inépcia após a batalha de Gainsborough, e que acarretara a perda daquela praça e de Lincoln, com todas as suas armas, inclusive sete peças de artilharia. Não se tratava de um erro tático simplesmente. Oliver acusou Willoughby de conceder ex-
cessiva autonomia a “lugares-tenentes profanos” que mantinha sob seu co-
mando e citou pelo menos um exemplo de comportamento impróprio. Houve quem se aborrecesse com o fato dele jogar lama em alguém “de tanto merecimento”, mas Cromwell conseguiu que o Lincolnshire passasse ao comando de Manchester, e o caso de Willoughby foi levado a uma comissão especial. Nesse mesmo dia recebeu sua promoção a tenente-general de cavalaria e infantaria [general-de-exército], com o posto de subcomandante, sob as ordens de Manchester. Sua remuneração diária aumentou para cinco libras, mas ele continuou a receber o pagamento de coronel e capitão de cavalaria, acrescentando 42 shillings por dia, pelas despesas com os cavalos. À última hora, no dia 5 de fevereiro. assinou a Convenção, sem o que não poderia assumir o comando. Os violentos ataques de Cromwell contra os subcomandantes de Willoughby
demonstram que ele estava longe de abandonar seus princípios básicos: a força militar tinha que ser recrutada entre os que temiam a Deus. No final de agosto, em Cambridge, falara sobre as vantagens práticas de se escolher capitães de cavalaria entre os de melhor reputação: outros homens honestos os seguiriam, mantendo-se atentos para não perder o privilégio de cavalgar junto a eles. Numa passagem que ficou famosa por expressar sua filosofia pessoal acerca dos comba-
tentes, declarou: “Prefiro um capitão envergando uma grosseira roupa de lã,
mas que sabe por que está lutando, e preza suas razões, aos chamados cava-
lheiros, e nada mais. Honro um cavalheiro de verdade.” É bem verdade que
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seus próprios homens poderiam sair perdendo com essa política de rígido controle. Pedindo apoio financeiro a sir: Thomas Barrington, Cromwell disse que “há muitos dispostos a saquear e pilhar; estes não padecem de necessida-
des (use)
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o soldo de seus homens, por outro lado, estava atrasado havia se-
manas. Contudo, ele exalta a disciplina! “Realmente, meus soldados — estigmatizados por alguns como anabatistas — são honestos, tementes a Deus e,
segundo minha crença, mais livres de práticas injustas do que quaisquer ou-
tros que se possam encontrar em toda a Inglaterra.” Eventualmente, suas
doutrinas tinham certo caráter oportunista: numa réplica às críticas de
Hotham, no final de setembro, negando mais uma vez que comandasse
anabatistas, ele falou em defesa dos chamados homens comuns, elevados a ca-
pitães de cavalaria: “Seria ótimo que pessoas de honra e nascimento estivessem vinculadas a este tipo de trabalho. Por que não apareceram? Quem as teria impedido?” Percebendo a necessidade do trabalho não sofrer solução de
continuidade, melhor seria contar com gente comum do que ninguém. Os
verdadeiros sentimentos de Cromwell, no entanto, podem ser observados em sua conclusão: mais do que indispensável, é melhor contar com os “pacientes, fiéis e conscienciosos”.**
Ao longo de todo o ano de 1643, Cromwell negou que suas tropas esti-
vessem contaminadas pelos temidos e desprezados anabatistas. Originárias do continente, corriam muitas histórias exageradas sobre esta seita. Na verdade,
suas práticas normais, como, por exemplo, o batismo adulto, correspondiam a
princípios espirituais — o direito de cada um buscar a verdade, por si próprio, nas Escrituras. A primazia conferida ao julgamento individual levava à crença de que em qualquer crise entre a Igreja e o Estado, a obediência ao Estado não devia estender-se além da consciência individual. Embora os batistas também tendessem a aceitar pacificamente qualquer punição imposta
pelas autoridades leigas, é perfeitamente compreensível o medo à anarquia
que uma doutrina como essa poderia infundir na mente das pessoas do século.
As divergências entre Cromwell e Manchester datam da primavera de 1644, culminando no final daquele ano, na disputa dele contra Lawrence Crawford.
Rígido presbiteriano escocês, o major-general [general-de-divisão] tinha uma opinião comum a muitos homens da época, considerando o anabatismo messi em ”, ndência “indepe à que de convicto estava horrendo; não obstante, ma leniente, era naturalmente suscetível a tais abusos. Sem dúvida, o crescimento do poder dos “independentes” no exército constituía O pano de fundo da querela, já notada pelo pastor presbiteriano escocês Robert Baillie.“
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Os contatos de Cromwell e Crawford começaram depois de ins talada a Comissão dos Dois Reinos, enquanto o exército de Manchester obtinha sucesso nas terras situadas entre Oxford e os condados da Associação do Leste,
Oliver dirigiu uma expedição com resultados bastante práticos, chegando a capturar o gado que pastava do lado de fora dos muros da capital do rei. Ele
atacou Hillesden House, posto avançado a cerca de oito quilômetros de Buckingham, perto de Newport Pagnell, cidadela do Parlamento governada por sir Samuel: Luke. Quando a Comissão decidiu impedir que o rei se juntasse a seu general Hopton, Cromwell já estava providenciando a rápida convocação de tropas descansadas: no dia 8 de março, ele escreveu a Luke, soli-
citando o deslocamento de quaisquer contingentes em condições de alcançar Cambridge com a maior presteza possível. Lá, os homens deveriam bivacar na Hospedaria Swan. No pós-escrito, como bom puritano, manifestou sua crença na auto-ajuda, garantia de autopreservação: pediu que o coronel Aylife fosse lembrado da promessa que fizera — ceder a Cromwell a sua própria cota de malha. Foi justo nesse momento que Crawford incorreu na ira de Cromwell, mandando prender um certo tenente William Packer, batista, provavelmente
por alguma ofensa religiosa. O acusado queixou-se a Oliver, que mandou um emissário com o recado de que sendo um “homem de Deus” o tenente deveria ser deixado em paz. Na mesma ocasião Henry Warner, tenente-co-
ronel de Crawford, recusou-se a assinar a Convenção, alegando convicções
batistas, e foi enviado a prestar contas perante Manchester. Numa explosão
de raiva, Cromwell escreveu uma longa carta a Crawford, insistindo para que ele não afastasse alguém tão fiel à “causa” e tão interessado em servir a seu próprio comandante. Por acaso, ele preferiria um homem notório por sua maldade, bêbado contumaz e blasfemador, a alguém que “temesse o pecado?? O cerne da questão não estava no temor de Warner ao pecado, na no fato dele o evitar de modo supostamente anabatista. Cromwell, que seis meses antes negara a existência de anabatistas em seu exército, admitia agora não somente essa possibilidade, como ainda teimava que isso não tinha qualquer relevância na condução da guerra: “Sim, o homem é um anabatista. Existe certeza disso? Mesmo que ele o reconheça, isso o torna incapaz de servir ao povo (...)? Senhor, ao escolher os homens que devem servi-lo, O Estado não tem em vista suas op iniões, desde que estejam convenientemente adestrados e dispostos a um se rviço fiel, é o que basta. Anteriormente, já O
aconselhei a tolerar pontos de vista divergentes; caso tivesse seguido meu
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conselho, creio que não teria encontrado tantos problemas em seu caminho (...).” E claro que se existisse alguma acusação de caráter militar contra Warner a história seria outra, cabendo nesse caso, um tratamento judicial. *
No entanto, Crawford devia “evitar ser severo ou deixar-se atingir facilmente por outros, contra os quais se podem ter poucas objeções e dos quais se discorda no que se refere à religião”.” Ainda que Crawford fosse um soldado profissional, com experiência no exterior, Cromwell é que reagiu como militar, não se colocando como um inimigo dos presbiterianos ou se-
quer como um “independente” convicto, visto que ele não dedicava nenhum
tempo a pensar sobre tais questões, antes dedicado a alcançar a vitória no campo de batalha, quaisquer que fossem as particularidades dos compromissos religiosos de suas tropas. Não há licença que libere o soldado de todas as preocupações privadas. Na primavera de 1644, enquanto desenvolvia uma dura campanha e tentava combater a inquisição de Crawford, Oliver não podia deixar a casa, em Ely, à matroca; em abril, ele assinou uma ordem destinando parte do dinheiro que lhe era devido à sua mulher — uma quantia de cinco libras semanais —, incidente que Manchester tenta usar, mais tarde, como prova da sua corrupção. Mais uma vez os Cromwell tinham-se reduzido: aos 21 anos de idade, ser-
vindo na guarnição do exército, em Newport Pagnell, o jovem Oliver morrera de varíola. O suave Richard tornava-se, assim, o filho mais velho. Desaparecendo da história tal como cinco anos antes já acontecera a Robert, pouco
se sabe dele, exceto o que se disse após seu falecimento — que fora “um jovem cavalheiro bem educado e a alegria de seu pai”. Preservada, uma das cartas que ele escrevera de Peterborough, seis meses antes de morrer, queixavase de um patife ou dois recentemente recrutados. Segundo o jovem Oliver,
eles “desonravam a causa de Deus, desagradando muito a meu pai, a mim € a
todo o regimento”; enquanto viveu, parecia uma lasca do velho tronco de
Cromwell. Mas as agonias pessoais tinham que ser postas de lado. Os sons da guerra enchiam o norte, onde sir Thomas Fairfax e seu pai, Ferdinando, /ord
haLeven, de comando o sob escoceses, os e Selby, capturad o tinham Fairfax,
viam finalmente cruzado a fronteira, em janeiro, instalando-se em Durham.
Em consequência dessa pressão bem-sucedida, Newcastle — que recebera 0
título de marquês no outono anterior — viu-se forçado a recuar uma força considerável de cinco mil cavaleiros e seis mil soldados de infantaria, instahomens, desses parte maior a tarde, Mais York. de muros dos lando-a dentro
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sob o comando de /ord Goring, juntou-se à força de socorro. O cerco de York
começou no dia 22 de abril. As tropas do Parlamento bem podiam alimentar
excelentes perspectivas, desde que o príncipe Rupert não chegasse a tempo de ajudar Newcastle. Nas primeiras etapas do cerco, /ord Manchester e Cromwell ficaram próximos a Belvoir Castle, no Lincolnshire, tentando atrair Rupert na
direção sul; e enquanto Oliver mantinha /ord Goring à distância, /ord Manchester atacava Lincoln. Então, com as Midlands orientais temporariamente
seguras nas mãos do Parlamento, Manchester e Cromwell seguiram rumo ao norte, a fim de juntar-se aos Fairfax e aos escoceses, diante de York. Não havia unidade de opinião entre os diversos comandantes —
o gentil Manchester,
sempre propenso a ouvir os mais experientes; os Fairfax, pisando um terreno conhecido; e o veterano líder escocês, Alexander Leslie, conde de Leven, que tinha lutado sob o comando de Wallenstein e Gustavus Adolphus. Entretanto, todos concordavam, enfaticamente, que uma junção das forças de Rupert às de Newcastle seria fatal. Ao mesmo tempo, York não podia ser tomada — uma precipitada e mal-organizada tentativa de Crawford nesse sentido frustrou-se inteiramente.
Quando chegaram notícias sobre a arrasadora vitória de Newark, após a
qual o príncipe tinha salvo a galante condessa de Derby, até então encastelada em Lathom House, deslocando-se em seguida na direção de Knaresborough, onde estava acampado naquele momento, tornou-se inevitável
imaginar o impossível — Rupert ocupava uma excelente posição para so-
correr York e juntar-se ao exército de Newcastle. A rapidez desses movimentos não daria tempo a que as forças do Parlamento recebessem os reforços de sir John Meldrum ou do conde de Denbigh. A estimativa de que
Rupert contasse com 18 mil homens — provavelmente não eram mais do
que 14 mil — determinou a retirada de York e o abandono de um valioso
material de cerco. Tratava-se de impedir a qualquer custo o avanço dessas tropas. Decidiu-se portanto manter uma posição próximo a Long Marston, defendendo a estrada principal entre Knaresborough e York. Também levan-
do em consideração o tamanho dos exércitos adversários, Rupert optou por uma manobra circular, realizada com determinação e rapidez extraordinári-
as, segundo Whitelocke, “girando os braços, como um compasso”,* e correu em socorro de York, pelo noroeste, em vez de avançar pela estrada principal. A manobra teve êxito, deixando as forças do Parlamento à espera, confusas sobre a sua localização, enquanto Yo rk era libertada e os homens
de Newcastle ficavam a um passo de dis tância.
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CROMWELL
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Apesar desse golpe altamente bem-sucedido, Rupert não liquidara os parlamentares. Valendo-se de uma ordem bastante ambígua do rei, referindo-se,
na mesma frase, ao socorro a York e à destruição dos exércitos rebeldes — objetivos não necessariamente consequentes —, o príncipe decidiu que assim o seria.” Quase sem parar, após o socorro à cidade, e pressionando Newcastle
a segui-lo, lançou-se em perseguição das tropas do Parlamento, que se diri-
giam para Tadcaster ao sul. Ainda ignorando o que se passava na retaguarda,
e com ordens de cobrir a retirada de Leven e da infantaria, já perto de Tadcaster, os soldados de Cromwell, Fairfax e Leslie avistaram a guarda
avançada da cavalaria de Rupert — uma ameaça nada desprezível. Despa-
chou-se uma mensagem angustiada a Leslie, exigindo que voltasse. Às 16h, Leven e sua infantaria encontraram-se com o restante das forças parlamenta-
res. Da parte dos realistas, a ordem de batalha também estava completa. Os dois lados se encaravam através do pântano de Long Marston. Dentre as inúmeras rivalidades que distinguiam “cabeças-redondas” e cavaleiros, uma das mais interessantes ligava-se aos dois formidáveis comandantes de cavalaria, Rupert e Cromwell. O contraste entre ambos não poderia ser
maior. O príncipe, vinte anos mais jovem que Cromwell, “muito galante” em sua forma de vestir, era um verdadeiro cavaleiro, no sentido romântico da palavra. Vencedor de Powick Bridge, Cirencester, Chalgrove Field, Bristol e Newark, estava no auge da fama; suas táticas audaciosas só contribuíam para aumentar-lhe a sedução. Cromwell, 45 anos de idade, invicto comandante de
cavalaria, não tomara parte, no entanto, em nenhum enfrentamento maior; escolhidos segundo métodos não ortodoxos, seus homens possuíam valor até então praticamente desconhecido, embora se atribuísse a eles, pelas vitórias alcançadas, um sinal do favor divino. Referindo-se particularmente a Cromwell, Joshua Sprigge escreveu: “Deus estava a seu lado, e ele começou a se tornar
famoso.” Sua reputação militar já tinha excitado a imaginação do próprio Rupert. “Cromwell está lá?”, perguntou ele, ansiosamente, a um soldado da Associação do Leste, capturado antes da batalha. Mais tarde, ao ser solto, O
homem contou a história.*! “Com a graça de Deus, ele enfrentará uma boa luta”, foi o comentário
sombrio de Cromwell, quando soube do interesse de Rupert. Marston Moor mostraria se a graça de Deus — ou manifestações mais mundanas, como O treinamento de novo tipo do exército da Associação do Leste — permitiria ao Parlamento defender-se do seu temerário mas brilhante oponente.
KR 48
ENS
6 Flanco de ferro Esta grande vitória foi realmente uma bênção do Senhor
para a Inglaterra e a Igreja de Deus. É evidente que o
partido protegido por Ele recebeu um grande beneficio. CROMWELL,
sobre Marston Moor
arston Moor, na longa noite de 2 de julho de 1644, foi certamente a maior batalha travada em solo britânico até então: em suas redondezas se instalaria o maior cemitério comunal da época.* Chovera abundantemente durante todo o verão, e aquele tinha sido mais um dia frio e úmido, com pancadas inter-
mitentes, do tipo que leva os ingleses ao desespero, devido ao clima do estio. Se isso permitia antecipar um tempo sombrio, por outro lado aquelas verdes planí-
cies do vale de York guardavam surpresas — certas elevações do terreno, suficientemente altas para constituir alguma vantagem estratégica. Pois lá, além dos encharcados campos de centeio, onde um homem afundaria até os joelhos, às
on, Marst Long e ith Tockw de vilas as entre nosa, panta região uma de margens
localizava-se a suave elevação conhecida como Marston Hill. Em seu cume esta-
, abaixo nte atame imedi e, mento Parla do forças das res milita s mento supri os vam no ponto hoje conhecido como Cromwel?s Plump [Crista de Cromwell], os exércitos aliados haviam estabelecido seu posto de comando, de onde poderiam
observar o campo da luta. Na parte inferior dos flancos do outeiro, um pouco de cerca — a batalh de linha a ia-se estend n, rsto -—Ma with Tock a estrad acima da
s. urbana áreas icar fortif m comu era não s; aldeia duas as entre 2,5km | E ia
“Sobre a batalha, ver Marston Moor 1644, do general-de-brigada Peter Young; PP. 210-269,
onde são relacionadas todas as histórias da época.
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ANTONIA
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FRASER
A Batalha de Marston Moor
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Usualmente, a infantaria ocupava o centro, flanqueada por duas alas de
cavalaria. À direita, próximo a Long Marston, sob o comando geral de
Manchester e do escocês Leven, perfilavam-se os pouco mais de cinco mil homens de sir Thomas Fairfax — quatro mil cavaleiros, quinhentos dragões e seiscentos mosqueteiros, alguns “recém-recrutados” e alguns escoceses — € Os cerca de 11 mil infantes — 15 brigadas de dois regimentos, cada uma — liderados por seu subcomandante, também do Yorkshire, o jovem e popular coronel John Lambert. À extrema esquerda, perto de Tockwith, estavam Os
2.500 homens de Cromwell e os seiscentos dragões chefiados pelo coronel
Hugh Fraser, e, na retaguarda deles, os seiscentos cavaleiros escoceses de David Leslie.
A battalia [linha de batalha] dos partidários do rei situava-s e abaixo da estrada Tockwith—Marston, quer dizer, numa posição top ograficamente inferor aquela das forças aliadas, e a uma distância convencional — cerca de
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das peças de artilharia leve, empregadas em tais
OIS exércitos havia uma vala curva e irregular, que se esperto de Tockwith.! Nela se alinhavam os mosqueteiros da algo como eram conhecidos os soldados da guarda avançada
» Que haviam deixado seu material de guerra no bosque de Wilstrop»
CROMWELL
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dando as costas à White Sike Close — tal como seus oponentes, eles se colo-
cavam no centro, junto com a infantaria, flanqueados pelas alas da cavalaria. À esquerda das tropas do rei, de frente para Fairfax, estava lord Goring, o
audacioso e instável comandante de cavalaria, cuja “vivacidade” impressiona-
va Os contemporâneos, mas cujos defeitos de caráter e indisciplina ainda se tornariam um dos maiores problemas do comando realista. No centro acha-
va-se a infantaria, cerca de 11 mil homens, incluindo alguns trazidos do sul por Rupert, € alguns “cordeiros” ou “casacos-brancos”, de Newcastle, assim chamados em virtude das suas vestimentas, feitas de túnicas de lã crua. À di-
reita, de frente para Cromwell, postavam-se os 2.600 cavaleiros de Rupert,
com lord Byron e seu regimento na linha de frente — mal pressagiados, visto ter sido sua carga que causara tanta devastação em Edgehill dois anos antes, os eventos logo demonstrariam que sua visão tática permanecia imutável. Apoiado pelos mosqueteiros, e à moda sueca, o príncipe pretendia romper a primeira investida do inimigo. Seus guarda-costas, os conhecidos “casacosazuis”, juntaram-se a um regimento de cavalaria menor — cerca de 1.500 homens — no extremo da linha. Ambos os lados dispunham de alguns canhões — o Parlamento muito mais: 25 peças — e trocaram tiros intermitentes, durante a tarde, enquanto
as linhas de batalha iam se desenhando. Com fogo irregular, seguido por
salmos que se erguiam dos campos de milho, os exércitos aliados limita-
vam-se a “mostrar os dentes”, conforme observou sir Henry Slingsby. Em campo aberto, à distância de um tiro de mosquete, segundo o chefe dos
batedores de Cromwell, cerca de quarenta mil homens se encaravam: en-
tre 27 mil e 22 mil a 23 mil aliados — as estimativas atuais se inclinam por um número menor?* — e uns 18 mil realistas. Chegando de York
com atraso, na companhia de seu subcomandante, /ord Eythin, Newcastle
foi asperamente recebido por Rupert: “Meu lorde, gostaria que tivésseis vindo antes (...).” Sob a luz da tarde, os vistosos estandartes de guerra não apenas coloriam
O ambiente, mas permitiam que os comandantes identificassem suas tropas €
vice-versa. Naquela época ainda não existiam as bandeiras de regimento, atrlbuindo-se a cada companhia confeccionar seus próprios estandartes, bandeiras
de batalha no pla no -se eia bas , ada cit já a obr "O general-de-brigada Peter Young, em sua s teriam até ada ali ças for as que o nd ri ge su de Lumsden, ignorado por autores anteriores, rt muito pe Ru de o afi des o na tor que o acreditava, se que do menos a cinco mil homens Mais plausível.
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ou flâmulas. Em geral, os da cavalaria eram de tafetá pintado ou adamascados
conduzidos por um oficial comissionado, que passava a ser chamado de cometa,
e contendo caricaturas de caráter político, desenhos religiosos ou frases de propaganda — às vezes, o desenho de um mastim assediado por cinco beagles pequenos, e que exclamava: “Pym, Pym, Pym”, acrescentando quousque tandem
abutere patientiam nostram [até quando abusarás da nossa paciência], ou um lema como “Pro Rege et Regno” [Pelo rei e pelo Reino]. As bandeiras da infan-
taria costumavam ser maiores — cerca de 1,80m x 1,80m — do que as da cavalaria — 60cm x 60cm. A de um coronel teria uma única cor, a de um tenen-
te-coronel, a cruz de São Jorge e o símbolo de seu posto, e assim por diante, acrescentando-se vários desenhos e recursos diversos a fim de demarcar as pa-
tentes. As bandeiras escocesas ostentavam a Cruz de Santo André:
Esses pontos de identificação eram fundamentais em virtude de um fator ainda mais importante do que a ausência de signos regimentais: a falta de uma política coerente de uniformes para os soldados. É bem verdade que nos primeiros estágios da luta cada facção usava cachecóis diferentes — vermelhos, os realistas; laranja, os partidários do Parlamento —, mas havia várias tonalidades, o que exigia um sistema especial de identificação antes de batalhas mais importantes. Os comandantes vestiam-se da mesma forma, sem qualquer sinal relativo à patente: não existe nenhuma base histórica que justifique o contraste entre os cavalheiros, que apareciam nas pinturas tradicionais exibindo um esplendor de bordados, e a severidade puritana dos “cabeças-re-
dondas”. A cavalaria usava casacos amarelos de couro grosso por baixo da armadura — quando dispunha delas; os lanceiros cobriam-se assim também e ainda cuidavam de proteger as coxas.
Só se começou a cogitar da uniformidade quando alguns regimentos passaram a envergar jaquetas e outras insígnias originais — as forças parlamen-
tares, oriundas da Associação do Leste, tenderam a concentrar-se no vermelho; a infantaria de Manchester tinha casacos verdes com forro vermelho; OS de Essex, vermelho com forro azul; e os homens do coronel Montagu, Ver
melho com ornatos brancos. Os guarda-costas de Rupert, por outro lado, tra-
javam azul, os de Newcastle, branco, e os do coronel Tillier, verde. Esta diversidade de cores, às vezes muito enganadora, só contribuía, evidentemente, para confundir os campos ou dificultar a compreensão sobr e o curso da bata lha em algumas áreas do combate etc. Por isso, não é difícil entender a IM”
portância simbólica da bandeira e o triunfo que representava sua capt ur?: prova tangível de vitória, ela era disputada arduament e durante à luta.
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A cena talvez fosse alegre, mas o mesmo não se pode dizer acerca das condições de quem aguardava nos campos molhados. A dúvida persistia: quando a ba-
talha seria travada? Newcastle achava que o inimigo logo tomaria a iniciativa, graças às vantagens do “sol, vento e terreno” que lhe eram favoráveis. Mas Rupert impôs sua vontade: de acordo com o príncipe, não haveria luta naquela noite —
ele não daria início a nenhuma ação antes da manhã seguinte bem cedo, preferin-
do retirar-se das linhas e ir jantar. No entanto, os pressentimentos do chefe dos “casacos-brancos” tinham perfeita razão de ser. Enquanto ele fumava seu cachimbo para se consolar, e Rupert comia, a apenas algumas centenas de metros de distância, os “cabeças-redondas” assentavam os planos do primeiro ataque. É justo supor que o mais experiente deles, o escocês conde de Leven, 64 anos, apelidado
pelo pastor Baillie de “pequeno soldado torto”,* tenha tomado a decisão final, após um meticuloso estudo da situação, considerando inclusive a superioridade numérica — antes da chegada de Newcastle, ela deve ter parecido ainda maior. Um conselho de guerra — onde Cromwell tinha seu lugar, com certeza — deliberou que um ataque de surpresa seria extremamente vantajoso. Escurecia, e nuvens de tormenta se avizinhavam — pouco depois das 19h podia-se ouvir o ruído dos trovões. Quando uma pesada chuva desabou sobre os dois exércitos, a ala esquerda das forças aliadas, os bem-treinados homens da
Associação do Leste, sob o comando de Cromwell, e a retaguarda guarnecida pelos escoceses de Leslie iniciaram uma carga inusitada, rápida, controlada, com
rédeas e estribos curtos, em grupos compactos, mais próximo do trote ligeiro do que de um galope moderno, avançando em toda a extensão da linha. Simeon Ashe, capelão de Manchester, que observava do alto da colina, disse mais tarde de homens os Foram densas”. “nuvens pareciam destacamentos diversos que os Cromwell que investiram com maior ferocidade: “Descemos à colina decididos a nos comportarmos com bravura inaudita e sem piedade”, escreveu O chefe geral dos batedores, Leonard Watson, em testemunho posterior. Imprudentemente, e tal como fizera em Edgehill, /ord Byron tentou enfrentar a carga de Cromwell frente
a frente, uma tática bastante normal no caso de um assalto de cavalaria, mas que só produziu o infeliz resultado de inutilizar o fogo de seus próprios mosquetes. Rupert em “Fomos muito prejudicados com essa inoportuna reação”, registrou
seu diário. A primeira linha de Byron e parte da segunda debandaram; ao mes-
to rci exé no do ina tre — er as Fr gh Hu l one cor do s se mo tempo, os dragões escoce sueco — fizeram um bom trabalho, expulsando esses mosqueteiros da vala em fosso que estavam entrincheirados. Crawford também se saiu bem, cruzando esse rt. Rupe de ados sold os com o ront conf o ava evit que nho cami e abrindo um
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No centro da linha de batalha, avançando valentemente, a infantaria de
Manchester eliminou os mosqueteiros da “esperança perdida”, partidários do rei, muito adiantados de sua battalia, e conseguiu capturar a artilharia deles, À
direita, os cavaleiros de sir Thomas Fairfax tiveram problemas desde o início, progredindo em terreno ruim, coberto de moitas e arbustos, cheio de sulcos, bem diferente do chão pisado por Cromwell. Bastante fustigados ao cruzar à vala pelos mosqueteiros de Goring, e embora conseguindo romper as linhas adversárias em alguns pontos, seu êxito não foi dos mais brilhantes. Enquanto
perseguiam os realistas, na direção de York, o próprio Fairfax viu-se cercado por esquadrões da cavalaria inimiga: o curso do combate voltara-se contra ele.
Esgotados os efeitos de sua primeira e vibrante carga, as perspectivas da
ala esquerda do Parlamento também não eram muito róseas. Certamente,
Rupert ainda não estava batido — na verdade, ele mal entrara na luta, desper-
tado para o tumulto somente quando gritos roucos e inesperados, encobertos pelo ruído dos disparos de mosquetes, o alcançaram, “comendo, sentado no chão, a uma boa distância de suas tropas”. Muitos dos cavaleiros que o acompanhavam tinham desmontado e permaneciam deitados. Abandonando a inoportuna refeição, rapidamente, o príncipe juntou o maior número possível de guarda-costas e correu para onde se dera a primeira debandada de suas forças. Foi nesse momento, na dura peleja que se seguiu, segundo a descrição de Leonard Watson, que a divisão de Cromwell sofreu “um duro empuxo”, acometida frontal e lateralmente pelos homens mais corajosos de Rupert. Ambos os lados brandiam espadas. O contra-ataque realista conseguiu quebrar € €spalhar “como um punhado de poeira” os inimigos mais próximos e que esta-
vam à sua frente e não fosse a segunda linha da cavalaria escocesa de Leslie, que atacou o seu flanco, permitindo que os homens de Cromwell se recupe-
rassem, a situação teria se tornado muito sombria, com certeza. Onde estava Cromwell? De acordo com a história que circulou, ele fora ligeiramente ferido no pescoço — “acima dos ombros”, segundo Clarendon, logo na primeira carga. Whitelocke ouviu dizer que teria sido um descuido: um tiro de pistola disparado por um de seus próprios homens. Todavia, O CO-
ronel Marcus Trevor, que comandava o regimento na linha de frente de Byron, reivindicou a honra de tê-lo atingido com sua espada, versão mais aceitável, especialmente porque após a Restauração o autor da façanha foi nomeado visconde Dungannon em recompensa por seu intrépido gesto. Oliver
se afastou, dizem, para cuidar do ferimento numa casa próxima, em Tockwith. Deixando de lado a ridícula alegação do sempre hostil Denzil Holles — su-
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plicando de forma patética um conselho a Lawrence Crawford, Cromwell,
agradecido, aceitara a sugestão de abandonar o campo de batalha — e consi-
derando o fato indiscutível do bem-sucedido contra-ataque he a rr breve ausência se torna provável, contribuindo para conscientemente.” De um jeito ou de outro, foi a arremetida de Leslie que
deu à cavalaria do Parlamento tempo de se reorganizar.
No momento do segundo grande assalto da ala esquerda da cavalaria
parlamentar, Cromwell estava presente. Dramaticamente, foi essa carga que
dispersou as tropas de Rupert — “numa revoada pela estrada de Wilstrop, tão rápido quanto possível”. Tudo bem. Mas, depois de reiterar o triunfo,
essa cavalaria deveria perseguir os inimigos debandados até York, onde a aguardavam saque glorioso e inglório massacre? No instante crítico, contrariando os instintos predominantes na época, Cromwell arregimentou seus homens e, nas palavras de Cholmley, testemunha ocular, manteve-os “firmes e compactos”. Lord Saye também percebeu o cuidado especial com que ele impediu a divisão e desorganização dos regimentos que sob seu comando haviam quebrado o inimigo “e que se mantiveram juntos, num só Corpo,
para atacar onde fosse necessário”. Às 20:30, quem se dispusesse a dar uma olhada em outras áreas do campo de batalha só encontraria perplexidade e desespero. Os oponentes estavam longe da derrota, pelo contrário, e as forças parlamentares, numa situação bastante desconfortável, nem de leve haviam provado
o gosto da vitória. Cercado, sir Thomas Fairfax arrancou a faixa branca que o identificava como soldado do Parlamento e atravessou as linhas adversárias até alcançar um lugar seguro, junto à cavalaria de Cromwell. O esbelto comandante, talvez demasiadamente audacioso para um oficial de seu posto, parecia sempre inclinado a aventuras pessoais nos campos de batalha. Enquanto
isso, no centro, a inexperiente infantaria de seu pai, /ord Fairfax, fora batida pelos “casacos-brancos” de Newcastle. Na retaguarda, Leven e a infantaria
escocesa submergiam sob uma onda de fugitivos que imploravam ajuda, gritando: “Fomos destroçados”;º não tendo sobrevivido a trinta anos de serviço militar inutilmente, e ciente de que a prudência constitui um dos aspectos mais importantes da coragem, ele decidiu preservar suas forças € efetuou uma
veloz retirada estratégica, não se detendo antes de alcançar Leeds. À medida
que a catástrofe se avolumava, o próprio Manchester vacilou; o capelão Ashe
testemunhou seu esforço de juntar ao redor de si uns quinhentos homens. e de Lindsay de condes pelos dos comanda s, escocese Apenas dois regimentos
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Maitland, mantiveram as posições originais e continuaram a lutar. Depois de algum tempo, os homens de Baillie e de Lumsden vieram ajudá-los: apoiando suas lanças no chão, esses resolutos guerreiros conseguiram deter terrívei s
e sucessivos assaltos. Difícil dizer quanto tempo agiientariam. A ajuda, porém, estava próxima. No último momento, de alguma forma possivelmente por intermédio do próprio sir: Thomas Fairfax —, Cromwell recebeu uma mensagem e ficou sabendo da precária situação da ala direita das forças aliadas e do desespero da infantaria que ainda combatia no centro. Após a debandada de Rupert, perto de Wilstrop, ele se encontrava exatamente por trás das posições inimigas. Foi então que os homens da Associação do Leste puderam demonstrar seu valor Ainda admiravelmente agrupada num bloco só-
lido e firme, aquela “adorável companhia” lançou-se ferozmente contra Goring, Justo de onde era menos esperada — dada a inversão das primitivas posições das forças de cavalaria do Parlamento e dos partidários do rei, Oliver surgiu bem próximo do bosque realista — e num momento em que a batalha parecia já ter terminado. Como disse Watson, diante da galante postura da cavalaria de
Cromwell, eles foram obrigados a renunciar à perseguição do inimigo, pois “tinham que lutar mais uma vez pela vitória que pensavam ter alcançado”.'º Desta feita, a posição de Goring foi definitivamente rompida, e seus homens se dispersaram. Entretanto, o combate não terminara. Os “casacos-brancos”, postados no centro — gente de Newcastle, que lutava apaixonadamente, por sua própria causa e em seu próprio terreno —, empreenderam uma última tentativa, tão desesperada quanto inútil, para deter a infantaria de Manchester. Segundo
uma testemunha, recusando todas as ofertas de rendição, eles preferiram morrer nas posições que ocupavam, transformando suas jaquetas em sudários:
apenas uns trinta sobreviveram. Cerca de duas horas após o início da pugna, por volta das 21:30, a luz do calmo entardecer de verão havia desaparecido mas sem ceder à escuridão, pois com a noite viera uma brilhante lua cheia, deixando os derrotados inteiramente desprotegidos e expostos à vor acidade de
seus perseguidores, Aproveitando o luar, a vitoriosa cavalaria de Cromwell
acossou a de Goring quase até York. Comentouse que Rupert só lograra €Scapar à captura escondendo-se num cam po de vagens — na época o incidente motivou uma charge mordaz. Antes d e dormir, nos campos manchados de sangue, os exércitos aliados e ntoaram um salmo de ação de graças; muitos buscaram o descanso sem se à chegou a Leeds e pediu as n limentar sequer. Leven, por outro lado, quando otícias, esperando ouvir um relato de desastres,
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ficou um pouco surpreso ao ser saudado com as seguintes palavras: “Está tudo bem, e que possa agradar a Vossa Excelência saber que os exércitos do
Parlamento obtiveram uma grande vitória.” Regressando ao local da batalha
tão rápido quanto possível, ele comentou de forma trocista: “Quisera Deus que eu tivesse morrido aqui.”! A carnificina fora suficiente para satisfazer a qualquer Moloch.* Se-
gundo Whitelocke, com base em estimativa amplamente aceita, pelo me-
nos três mil partidários do rei tinham sido mortos; outros afirmam que o
número chegou a sete mil. Os coveiros computaram cerca de quatro mil
cadáveres. Até o fim do século XVIII podiam-se encontrar sepulturas junto ao bosque de Wilstrop, marcos da maciça retaliação de Cromwell
contra a cavalaria de Rupert. Por essa mesma época, quando as matas de
lord Petre foram podadas, “os lenhadores encontraram muitas balas no le-
nho das árvores”. Pelo menos 1.500 soldados realistas caíram prisioneiros. Os exércitos aliados sofreram muito menos: em que pese a quantidade de feridos, os mortos não chegaram a trezentos. Os estandartes realistas — havia uma recompensa de dez shillings por bandeira capturada — eram tantos que dariam para “ornamentar todas as catedrais da Inglaterra”, segundo um testemunho contemporâneo. Alguns ficaram em exibição, na entrada de Westminster, outros se tornaram troféus pessoais dos vitoriosos. Circulou uma história de que na véspera da batalha de Marston Moor Cromwell teria cavalgado até Knaresborough a fim de jantar, mas lá chegando desaparecera, sendo encontrado, afinal, duas horas depois, por
uma menina, num quarto fechado no alto da torre; espiando pelo buraco da fechadura, ela o viu de joelhos, com a Bíblia diante de si, absorto nas suas preces — respondidas com certeza. Escrevendo ao cunhado, Valentine
Walton, dois dias após o combate, ele disse: “Esta grande vitória foi real-
mente uma bênção do Senhor para a Inglaterra e a Igreja de Deus. É evidente que o partido protegido por Ele recebeu um grande benefício.”
Tal como agora, a guerra mostrava as duas faces de Jano. Deus propiciava consternação e graças a seus seguidores, e a carta de Cromwell a Walton era motivada, principalmente, pela necessidade de transmitir a notícia da morte
do jovem Valentine após a batalha. Ele escreveu:
E
qual eram sacrificadas crianças, em geral de bronze. tua está sua da has ran ent nas dia ar que ro sei bra no s vivo os çad , Primogênitos lan "Divindade cananita, mencionada na Bíblia, à
(MN. do T:)
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“Senhor, Deus levou vosso filho com um tiro de canhão. Quebrou-
lhe a perna. Tivemos que amputá-la, e ele não resistiu. Sabeis das tristezas que já tive pelo mesmo motivo [a morte de seus filhos,
Robert e Oliver], mas Deus me consolou: que Ele o tenha levado
para a felicidade pela qual tanto lutamos e desejamos. Eis vosso precioso filho, coberto de glória, para sempre isento do pecado e da dor. Era um jovem galante, muito gracioso. Deus lhe concedeu o Seu alívio. Antes de morrer, sentia-se tão repleto dele que sequer podia expressá-lo a mim ou a Frank Russell — era maior do que a dor que sentia: isso ele nos disse. Foi admirável, com toda a certe-
za. Pouco depois acrescentou que algo pesava sobre seu espírito. Perguntei-lhe o que era. Ele me disse que Deus não lhe permitira ser mais carrasco de Seus inimigos. Quando caiu, tendo seu cavalo sido morto à bala, e conforme fui informado, outros três cavalos também, pediu que fossem afastados, à direita e à esquerda, a fim de que pudesse ver os tratantes fugirem. Ele era verdadeiramente muito amado por todos os que o conheciam no exército. Mas poucos sabiam o quanto ele era precioso, pronto para Deus. Tendes razão de agradecer a Deus, pois vosso filho terá se tornado um santo glorioso, no céu, e por isto deveis vos regozijar. E que isto afaste vossa tristeza; não escrevo palavras enganosas, meros lenitivos, mas uma verdade real e indubitável. Com a força de Cristo, tudo está ao nosso alcance (...).”
Naqueles dias de lanças e balas de canhão, a morte era frequentemente lenta e suja. Havia poucos cirurgiões — em geral um para cada regimento, com dois ajudantes, mesmo no Exército de Novo Tipo — e nenhum hospital
de campo. Num último gesto — medida extrema de desesperada vingança —
alguns dos heróicos “casacos-brancos”, de Newcastle, derrubados no chão, abriram o ventre dos cavalos de seus inimigos com os chuços. O corneteiro
Gabriel Ludlow, primo de Edmund Ludlow, morreu devagar e dolorosamente, o estômago rasgado, os intestinos estraçalhados, a bacia quebrada, com €stilhaços alojados nela. No século XVII, o glamour bélico restringia-se ao €S-
pírito e à coragem da carga, nada restando dele na lúgubre visão do campo depois da batalha, onde grandes e pequenas tragédias se mesclavam. “Pobre € infeliz rei Carlos!”, exclamou sir Charles Lucas, comandante de cavala ria € veterano combatente, prisioneiro dos escoceses, observando seus camaradas que
jaziam
nos
pântanos,!3 Mascote
do
príncipe
pajem], desaparecido antes da batalha, foi
Rupert,
O spaniel
doy
[jovem
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Demonstrava-se cortesia, no entanto. O coronel Cha rles Towneley, do Lancashire, tinha tombado; no dia seguinte, sua esposa, Mary, que esperava notícias em Knaresborough, saiu em busca do corpo. Inevitavelmente, ela viu
alguns “cabeças-redondas” pilhando os cadáveres, de acordo com o feio costume dos vitoriosos, e permaneceu ali, sem saber o que fazer, até que um oficial se aproximou dela e suplicou que abandonasse o local para evitar os
insultos dos soldados. A um de seus próprios homens ele ordenou que conduzisse /ady Towneley na garupa. No caminho de volta, ela perguntou ao soldado o nome do seu protetor. Era Oliver Cromwell. Lady Towneley viveu até
1690, e a história do cavalheirismo de Cromwell com a viúva de um inimigo foi transmitida de geração em geração de sua família.' Talvez a própria carta
de Cromwell a Walton, misto de compaixão, simpatia por um pai sofredor e orgulho pelo zelo militar do rapaz moribundo, que fizera os companheiros se afastarem para ver “os tratantes fugirem”, represente um somatório de todas
as estranhas consegiiências de uma batalha travada no contexto de uma guerra civil, quando o coração de um país sangra com as mortes de ambos os lados. Curiosamente, apesar do fato de tal carta estar essencialmente vinculada à morte do jovem Valentine, dedicando umas poucas linhas preliminares ao
combate, ela foi usada em algumas ocasiões como prova de que Cromwell
minimizava o papel desempenhado pelos escoceses, assumindo todo o crédito
da vitória para si e seus homens. Sem dúvida, trata-se de uma referência muito breve: “À esquerda e à retaguarda, sob meu comando, nossa cavalaria, in-
cluindo uns poucos escoceses, derrotou toda a cavalaria do príncipe. Deus permitiu que os ceifássemos e os colocássemos em debandada.” Ele não queria perder tempo na descrição da luta, “cujos detalhes não posso contar agora”, dedicando-se ao registro completo e emotivo das últimas horas do ra-
paz.“ Longe de constituir-se num relatório de batalha, como insinuaram alguns de seus críticos, a missiva expressava condolências a um amigo íntimo.
Ainda que nessa carta em particular Cromwell deva ser absolvido de
qualquer deliberada desvalorização dos feitos escoceses, como avaliar sua
Própria participação? Que importância devemos atribuir ao crucial ataque comandado por David Leslie no vitorioso final de Marston Moor? Destacando
ter sido ele o carrasco do vencido regimento inimigo, /orá Saye classificou 0
feito dos
“seus
poucos
cavalinhos”
como
um
“excelente
serviço”.
É, interes-
sante notar que no primeiro momento ambos os lados se consideraram vence-
dores — algo semelhante já acontecera em Edgehill; neste caso, O equívoco foi parcialmente causado pelas dificuldades de comunicação entre 0 Yorkshire
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e o sul, além das dúvidas genuínas em torno do resultado, pelo menos até a
devastadora ação de Cromwell. Na edição de 30 de junho/6 de julho, o jornal
Mercurius Aulicus, por exemplo, proclamou o triunfo dos partidári os do rei;
mais tarde o editor explicou o engano, alegando que seu relato se baseara nos fatos resultantes do primeiro ataque de Rupert.'* Na Irlanda, Ormonde recebeu notícias de Arthur Trevor, que tinha estado gundo o qual um dos lados levara a melhor à direita, enquanto vitorioso à esquerda — o resultado da batalha era duvidoso,
o conde de presente, se. o outro saíra pois os dois
exércitos “retiraram-se com uma asa quebrada, em busca de alguém capaz de consertar ossos”, Em 12 de julho, o embaixador de Veneza em Londres ainda desconhecia quem fora vencedor, embora estivesse seguro de ter havido um combate “sanguinário”.” No entanto, tão logo assentou a poeira da luta, os relatos contemporâneos reconheceram a importância da gloriosa contribuição que Cromwell dera à vitória — obtida graças a ele, segundo Ludlow; “muito ovacionado”, conforme testemunho de Whitelocke. Watson, ainda que dando a Leslie o devido crédito,
diz que Oliver foi “o grande agente” do triunfo.'* De fato, estivesse ele ausente
ou não do teatro de operações no momento da vital reação contra Rupert, é di-
fícil negar-lhe as honras da batalha; inspirando a cavalaria da Associação do Leste, fora o único comandante capaz de reorganizar seus homens para um segundo ataque. Depois de Marston Moor, e por causa de suas fileiras inexpugnáveis, o príncipe apelidou-o de Old Ironsides [Velho dos Flancos de Ferro] — alcunha que se transferiu do homem a seu regimento. No instante crucial, Leslie e seus escoceses comportaram-se com serenidade e coragem, merecendo
elogios, por certo, mas o mérito maior cabe aos métodos de Cromwell, à sua disciplina e ao seu treinamento comprovados pelo triunfo.* Dito isso, deve-se
acrescentar que a vitória também pode ser debitada — de forma negativa — à indecisão de Rupert, recusando-se a tomar à iniciativa do combate. Tivesse ele permitido que Newcastle se recuperasse do cerco de York, ganhando tempo, à
fim de que os dois exércitos realistas elaborassem uma tática conjunta, à inferioridade numérica poderia ter sido superada mediante o recr utamento de ho"O obelisco que assinala o lugar da bat alha de Marston Moor, erguido pela Associação Cromwell e o grupo Harrogate, da So ciedad e Arqueológica do Yorkshire, além de prestar tributo a Fairfax, contém uma inscri ção cheia de tato nos seguintes termos: “Perto deste lugar, a ala esquerda do exército do Parlamento » sob a liderança de Oliver por David Leslie, completou a derrota das forças do príncipe Rupert Cromwell, apoiada .” É um julgamento ponderado e razoável.
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"
mens que se sentissem atraídos pelo êxito anterior — segundo Ludlow, “como
uma bola de neve”. Interpretando extensivamente as ordens do soberano, por que não se lançou sobre a retaguarda das forças do Parlamento assim que as avistou recuando em direção a Tadcaster? A resposta está no seu diário: “Se O príncipe se lançasse sobre a retaguarda [das tropas do Parlamento] e errado, haveriam de criticá-lo por não ter esperado Newcastle (...).?1? Portanto, após a audácia inicial, ele procedeu cautelosamente; melhor que seguisse apenas um desses impulsos, pois certamente teria obtido melhores resultados. Ao norte, à exceção de uns poucos castelos que ainda resistiam — Pontefract, por exemplo —, as tropas do Parlamento saíram vitoriosas em toda a linha. Desgostoso, talvez consigo mesmo, Newcastle viajou para o exterior —
não queria tornar-se motivo de chacota na Corte. Seu subcomandante, lord Eythin, cujo atraso irritara Rupert, adotou idêntica atitude. “Caso os vencedores de Marston Moor tivessem sabido aproveitar a oportunidade”, escreveu um historiador, “poderiam ter ganhado a guerra até o final do ano.”2 O exército do rei somava cerca de dez mil soldados mais o que restava da cavalaria de Rupert e os cinco mil homens de seu irmão, o príncipe Maurice. Se os generais do Parlamento perderam a chance de aplicar um golpe fatal contra seus enfraquecidos inimigos, isso se deveu à visão localista que mantinham, e que perdurava, infelizmente, apesar do êxito conjunto alcançado num combate tão importante. Além do mais, eles estavam às voltas com as disputas internas
que opunham presbiterianos e “independentes”, e o ressentimento dos escoceses, em virtude do injusto crédito que Cromwell obtivera por sua participação
na batalha. No dia 16 de julho, em Edimburgo, Robert Baillie, capelão do exército auxiliar escocês, queixou-se do recém-chegado major Harrison, que trombeteava elogios aos “independentes” por toda a cidade, tentando persuadir a todos “que Cromwell, praticamente sozinho, com seus regimentos incrivelmente corajosos, fizera todo o trabalho”. No dia 8 de julho, relatando a vi-
tória perante a Câmara dos Comuns, Thomas Stockdale alvitrou uma piedosa aquele ódio que tanto todo de parte boa esvaziado “teria ela que — esperança quantidaPrejuízo vem causando ao Estado”.?! Aparentemente, restava grande
de de ódio. Os vencedores se dispersaram imediatamente. Leven seguiu o rumo ee
as forram tra cen con fax Fair Os . tle cas New de ade cid a diar asse de te, a fim
er pod em da ain , ire ksh Yor do s eza tal for das no tor em o and ças sob seu com
à dos realistas. Frustrando o comandante da cavalaria, Manchester retornou SUa região — a Associação do Leste — distanciando-se de quaisquer
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engajamentos; quando John Lilburne capturou o castelo de Tickhill, ao arre.
pio de suas ordens, ameaçou enforcá-lo. Não atacou a poderosa fortaleza do
castelo de Belvoir, situada numa imponente colina do Lincolnshire, e menos
ainda o reduto de Newark, de difícil acesso. Tampouco decidiu-se a enfrentar
Rupert, que alcançara Chester, juntando-se às forças de sir William Brereton, Longe de ser pessoalmente desagradável — Cromwell o considerava genui-
namente humano, “um homem doce e meigo”, segundo o escocês Baillie = Manchester tinha passado a noite, depois de Marston Moor, tentando solucio-
nar as necessidades de seus homens. Dotado de um sentimento religioso menos
virulento, estava sempre insistindo com os presbiterianos para que ameniz as-
sem seus escritos mais veementes — conforme relatou Baxter. Acima de tudo, porém, era um homem fraco, “afável”, mas “excessivamente dócil e flexível”, como disse sir Philip Warwick.” Não fosse a campanha tão árdua, tais quali-
dades teriam excelente aproveitamento, mas certamente não constituíam atributos de um grande comandante estratégico. As circunstâncias de uma guerra
impõem a necessidade fundamental de responder prontamente às oportunidades favoráveis. De fato, a sorte do rei melhorou repentinamente. Não havia tempo a perder.
Já antes de Marston Moor — embora as notícias ainda não tivessem sido divulgadas — Carlos I tinha conseguido escapar de sir William Waller, que ensaiou confiná-lo em Oxford, e no dia 29 de junho, em Cropredy Bridge, perto de Banbury, derrotara seus oponentes. Chester estava sob o estrito con-
trole de Rupert. Pior: Essex tomara a iniciativa de uma expedição ao sul, com o objetivo de conquistar o bastião realista da Cornualha. Singularmente de-
sastrosa, a campanha culminou com a colossal derrota de Lostwithiel, no dia
2 de setembro, a 48 quilômetros a oeste de Plymouth. Embora o próprio Essex, acossado pela retaguarda, conseguisse encontrar uma saída, e Philip Skippon tenha salvado a maior parte da cavalaria, cerca de oito mil infantes tornaram-se prisioneiros do rei, juntamente com grande quantidade de peças de artilharia. O soberano achava-se portanto numa posiçã o muito boa, mais uma vez em condições de marchar sobre a indefesa capital. Antes mesmo que se espalhassem as notícias acerca do desastre de Lostwithiel, Cromwell, soldado experiente, bastante capaz de apreciar à real situação militar, já se sentia inteiramente frustrado, devido à inação de seu
próprio general. No dia 1º de setembro, em Lincoln, escrevendo como governador
de Ely, ele confessou estar “muito sensível à necessidade de melhor aproveitarmos as oportunidades atuais, para sermos os mais fortes no campo
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nã
de batalha”. A correspondência mais íntima enviada à Valentine Walton, al-
guns dias mais tarde, permitiu que expressasse suas angústias com muito mai-
or clareza: “E com bastante tristeza no coração que constatamos o terrível estado do nosso exército, no oeste (...) tivéssemos asas, voaríamos para lá.
Assim que o meu /ord Manchester me liberar, me apressarei em fazer o que puder. (...) Nossos homens ficam muito felizes quando há algum trabalho a realizar (...).”?
Nos dois dias que se seguiram, em Peterborough e Huntingdon,
Cromwell tentou persuadir Manchester a marchar, mas nem mesmo as notí-
cias a respeito de Lostwithiel — praticamente impondo o dever de bloquear o caminho do rei em direção a Londres — mudaram a atitude daquele
homem fraco e indeciso: ele disse que enforcaria quem lhe desse algum
conselho. Oliver estava convicto de que todos no comportamento extremamente irritante do Finalmente, ele se sentiu obrigado a exigir a de Manchester ou todos os coronéis sob seu
os problemas tinham origem general-de-divisão Crawford. demissão do subcomandante próprio comando se demiti-
riam. Extrapolando os limites do exército, a questão teria que ser colocada perante a Comissão dos Dois Reinos; como resultado, Manchester prometeu partir em socorro do exército do Parlamento, a oeste, enquanto Cromwell retirava sua intimação.
Nas cartas que escreveu nesse período Oliver situa a discordância com
Manchester num terreno puramente militar. Qual a razão do general recusar-
se a executar obrigações mais do que evidentes? O desabafo com Walton deixa claro que considerava irrelevantes as acusações dos presbiterianos em contraposição à questão central — ganhar a guerra. Exato nas suas críticas, ele não era tão inocente do crime de recrutar exclusivamente “independentes”
para compor suas tropas — fosse isso realmente um crime. Mais tarde, o general repetiu palavras que atribuiu a Cromwell: “Desejo que meu exército seja de homens de julgamento independente”, pois no caso de surgir alguma proposta de paz que não agradasse à gente honesta — argumentava ele — “tal exército poderia impedir este dano”. Segundo Manchester, em consequência, o regimento de cavalaria sob seu comando estava cheio “daqueles
que se consideram abençoados por Deus”, alguns dos quais chegavam a admitir ter visões ou receber revelações. Sobre os escoceses é sua rígida disci) sacaria (... m ua at mo co to jei o “D : do fa ba sa de ia ter ll we Plina religiosa, Crom minha espada contra eles, praticamente da mesma forma que contra qualquer um do exército do rei.”
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Na verdade, os problemas subjacentes àquela paz transitória, a necessida.
de de derrotar o rei, definitivamente, antes que Sua Majestade pudesse expor seus termos, e as muitas questões referentes à continuidade do conflito, em si, borbulhavam na consciência de Cromwell. Mais do que quaisquer outros, os “independentes” eram capazes de alcançar uma vitória total sobre o inimigo.
A condução da guerra dividia Manchester e Cromwell, e não o misterioso complô, nas vésperas de Marston Moor, supostamente dirigido por sir Henry Vane, visando substituir Carlos I por algum outro monarca mais tolerante em matéria de religião; além do que a conspiração não passou de um mito, conforme se comprovou, sem nenhuma substância.” Na grande batalha, sob o
fogo inimigo, os homens de Cromwell definiram resolutamente suas posições,
até então pouco claras. Certamente, Deus tinha demonstrado sua aprovação aos “independentes” ao recompensá-los com uma vitória tão incontestável. Destarte sua tendência converteu-se em convicção. No dia 13 de setembro, num debate no Parlamento — o primeiro a que compareceu em sete meses —, discutindo-se a ordenação de ministros conforme o novo estilo de igreja proposto, Cromwell apoiou a moção de Oliver St John — inspirada por ele próprio, segundo a opinião de muita gente — que colocava muito bem o ponto de vista amplo e tolerante dos “independentes”. O comitê de Lordes e Comuns, indicado para tratar do assunto com os comissários da Escócia e a comissão da Assembléia Nacional, “deveria levar em conta as dife-
renças de opinião” e, caso isso não fosse possível, “empenhar-se na busca de
uma fórmula pela qual as consciências delicadas, que não podem se submeter a uma direção comum, serão dirigidas de acordo com a Palavra (...)”. Foi durante essa sessão que o presidente da Câmara agradeceu oficialmente o fiel serviço prestado por Cromwell na última batalha, perto de York — “onde Deus fez dele um instrumento especial para a obtenção da grande vitória”2 Aos presbiterianos, isso valeu como um lembrete: ele era um eficiente senhor
da guerra, derivando daí a influência que exercia naquele momento. Os problemas adviriam sem maiores delongas assim que o “instrumento especial de Deus” deixou de obter vitórias: quando a espada divina perdesse indevidamente
O corte, e por força da filosofia da providência que adotava, Cromwell teria que procurar explicação em algum tipo de interferência externa.
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Nesse meio-tempo, desencadeando finalmente outra ofensiva, Manchester
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preencher o vácuo deixado por Waller, na região
correr em socorro de Essex, a oeste. Devido ao atraso
muito grande, entretanto, e apesar das ordens explícitas do Parlamento, ele só
rd
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alcançou Harefield, no Middlesex, no dia 27 de setembro. Sua correspondência
indica que a demora era deliberada — uma opção sua.” O plano consistia em enviar à cavalaria na frente, para juntar-se às de Waller e Essex, que já haviam recrutado novos infantes. O general manteve-se teimosamente em Reading,
perdendo a oportunidade de enfrentar o rei antes que ele alcançasse Salisbury.
Resultou disso não só a ocupação da cidade pelos realistas, como também a re-
tirada forçada das tropas do Parlamento que sitiavam o castelo de Donnington, um esplêndido ponto fortificado cerca de quilômetro e meio a nordeste de Newbury. Manchester e Waller juntaram-se, afinal, em Basingstoke. Quando a
infantaria de Essex chegou, e com a adição de alguns grupos treinados em Londres, as forças parlamentares somaram 18 mil homens — um belo total, superior às forças do rei na proporção de dois para um. Carlos I deteve-se em
Newbury, aguardando o combate, no dia 27 de outubro: aparentemente, quatro
meses após Marston Moor, e na segiiência de tantas vicissitudes, a Providência
oferecia ao Parlamento o ensejo de infligir ao monarca uma retumbante derrota. No entanto, o soberano ainda dispunha de uma vantagem: ocupava uma forte posição, tendo às suas costas o castelo de Donnington, a ala esquerda de sua cavalaria às margens do Lambourne, com a fortificação de Shaw House
protegendo o ponto de cruzamento do rio, e sua ala direita em Newbury. Só um ataque excepcionalmente coordenado poderia ser bem-sucedido. O plano do
conselho de guerra, sob o comando geral de Manchester, baseava-se em dois
pontos capitais. Metade do exército, chefiada por Waller — a sugestão deve ter partido dele próprio —, inclusive a cavalaria de Skippon e Cromwell, deveria fazer um grande contorno e atacar Maurice por trás, em Speen. Ao mesmo tempo, Manchester assaltaria Shaw House. Mesmo sem contar com o fator surpresa, as forças do Parlamento que se lançaram contra o príncipe tiveram sucesso, O canto dos salmos foi ouvido mais uma vez, por volta das 15h: as forti-
ficações caíram, sendo capturada toda a artilharia. Nesse momento, mais uma vez, Manchester demonstrou sua fatal capacidade protelatória. Esperando ouvir Os canhões de Waller, em Speen, para iniciar sua investida, e sem conseguir
diferenciá-los do restante da artilharia, ele só desferiu a estocada de apoio dePois das 16h — as duas pontas não se coordenaram. Por fim, a chegada da noite pôs fim ao combate, embora Manchester tenha sustentado que seus Soldados lutaram em vão por mais uma hora, à luz da lua. Seu fracasso em abrir caminho até Shaw House impediu o avanço da cavalaria e, dessa forma, 0 que fora planejado como uma ação conjugada terminou em confusão. No escuro,
às forças realistas conseguiram escapar.
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Mas o pior ainda estava por vir. Inconformados, Waller e Cromwe ll In. sistiam em perseguir o inimigo e tentaram persuadir Manchester à junta -se à eles, visto que o apoio da infantaria era indispensável. Uma vez mais O pe. neral preferiu a imobilidade, pretextando a exaustão de seus homens. Sem dú. vida, havia uma terrível falta de médicos — os feridos estava m praticamente sem atendimento. Seguiram-se algumas manobras inúteis, no dec urso das quais Carlos I pôde voltar à segurança de Donnington. Desobede cendo às ordens de Manchester, Cromwell alegou que seus cavalos est avam cansados: não tinha condições de deter os realistas. Sir Samuel Luke, que fora buscar canhões de que sua própria guarnição carecia, considerou o incidente “muito infeliz” — não se travara nenhuma batalha contra o rei. Em 9 de novembro,
detidas em Newbury, sem ter conquistado Donnington nem Basing House — a grande fortaleza católica próximo a Basingstoke —., as forças do Par lamento exauriam-se ante o clima outonal particularmente ruim, minada s pelas discordâncias entre seus comandantes e as doenças que vitimavam as tro pas. O rei, por outro lado, detida a incômoda ação de Cromwell à sua retagu arda, e tendo assegurado artilharia e material de cerco dentro dos muros do castelo, conseguira restabelecer contato com o príncipe Rupert. No dia 23 de no-
vembro, aquartelado em Oxford, ele se dispôs a passar o inverno ali. Divergências ásperas explodiam entre Manchester e seus comandantes mais combativos, e entre a Comissão em Londres, e o exército como um
todo. Cromwell acusou Manchester, por seus sucessivos atrasos, de ser o res-
ponsável por tantos insucessos; o general era incapaz de perceb er a importância fundamental de uma vitória clara no campo de batalha: o tão almejado
acordo religioso dependia da derrota do rei. A questão foi claramente coloca-
da no dia 10 de novembro, no conselho de guerra realizado pr óximo à Newbury. Cromwell defendeu enfaticamente a continuação da luta, apesar das péssimas condições de seus homens, argiindo vantagens militares ete rnas — determinação e surpresa. Ainda que o momento não fosse propício, as clf
cunstâncias poderiam agravar-se muito caso o monarca con seguisse obter ajuda da França na primavera. Manchester posiciono u-se contra qualquer nova ação. Uma de suas observações, relatada pelo próprio Cromwell
mais tarde, revelava a confusão de muitos que se situavam no campo parlamentar: “Mesmo que derrotemos o rei 99 vezes, ele ainda seria o rei, lemb
rado pela poste
ríamos súditos, mas se ele nos vencer uma única VEZ Da
remos enforcados, sem nenhum direito à posteridade,”2º A isso Cromwel respondeu: “Meu senhor, entã u tal
o por que nos levantamos em armas? Se o caso
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é esse, vamos fazer a paz, pois não há melhor ocasião” Realmente, nem todos tinham tanta certeza sobre a necessidade imperiosa do conflito armado. Mas, quando a Comissão dos Dois Reinos criticou Manchester por não
ter acatado as ordens de atacar Basing House, Oliver ficou 20 lado de seu general, contra a autoridade civil que incluía os escoceses, em parte culpados pela ineficiência da campanha anterior. Ele redigiu uma resposta assinada por todos, assinalando que o conjunto das decisões estratégicas fora definido por um conselho de guerra. Chamava a atenção sobre o estado de completa exaustão das tropas e dos cavalos, doentes e desgastados, “submetidos a con-
dições de tempo tão ruins como raramente se vira”, apontando o fato da po-
pulação camponesa estar sendo levada à miséria devido ao aquartelamento
dos soldados. Fora fundamentalmente errado dar início a cercos, como o de Donnington, e perseverar nessa tática, e disso não se podia acusá-los.”” Essa última observação sinaliza a preocupação principal de Cromwell: o soldado profissional de novo tipo, instintivamente afastado das antigas idéias militares — os sítios, que tanto apaixonavam o rei — e defensor dos métodos moder-
nos de ataque como forma de alcançar a vitória. Em 17 de novembro, a co-
missão autorizou o exército a aquartelar-se em Reading. Os comandantes se deslocaram a Westminster. No dia 23, Waller e Cromwell foram solicitados a apresentar um relatório acerca de Basing House e Donnington, discriminan-
do as “posições dos exércitos”.
A essa altura da guerra — segundo a História, de Clarendon —, ao se sentir “melancólico”, o rei buscava consolo refletindo sobre a desordem maior
do Parlamento, pois nem toda a riqueza do reino poderia livrar seus adversáros de “imprevidência e disputas”. Sir Samuel Luke — cuja correspondência posterior a Marston Moor revela uma crescente antipatia pelos “independen-
tes” —, enfocando o problema das divergências de opinião no exército, dizia:
“Temo que rudes palavras nos tragam mais perigo neste inverno do que todas as forças do inimigo no verão passado.”*! Certamente, à querela latente entre
Manchester e Cromwell, e que se desencadeou após Newbury, estava Comes
cando a adquirir contornos mais sérios, e os argumentos brandidos, justos ou não, logo se tornariam de domínio público.
No dia 25 de novembro, a pedido da Câmara dos Comuns, Cromwell as me for con so; cur dis go lon num r ste che Man tra con o cas apresentou seu
Poucas notas preservadas, ele enfatizou que “o referido conde esteve
pouca vontade ndo tra ons dem os, ment enta enfr nos sado atra Indisposto ou
e
de
finalizar a guerra com a espada, defendendo a paz em contraposição a uma
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vitória insofismável — e tem-no declarado não apenas por princípios expres.
sos com tal objetivo, como também por uma série contínua de ações pelas quais é responsável”. Existe outra versão, mandada imprimir pelo próprio Cromwell; nesta, intitulada Narrative, com a provável ajuda de Waller
Haselrig e Vane, ele detalha minuciosamente o libelo — embo ra s em fazer
nenhuma referência ao fato de ter se recusado a atacar Donnin g ton quando seus cavalos estavam exaustos.?
Três dias depois, perante a Câmara dos Lordes, Manchester prestou um longo depoimento pessoal, imputando a Cromwell uma estúpida agressão
contra a nobreza: “[Cromwell] esperava viver para assistir à extinç ão dos nobres, na Inglaterra, desejando-o ardentemente, mais do que quaisquer outros, porque os detestava.” O depoente ouvira-o dizer, inclusive, que “as coisas não
estariam bem enquanto ele [Manchester] não se tornasse apenas o sr. Montagu”. Ainda que substancialmente verdadeiras, tais histórias certamente não se destinavam a acalmar os ânimos. Mas o testemunho prosseguia: Cromwell teria alardeado que transformara a ilha de Ely no bastião mais forte do mundo e que expulsaria de lá todos os patifes sem religião, de sorte a convertê-lo “num lugar onde Deus pudesse morar”. O redator dessas alegações — única
fonte que restou da exposição de Manchester — deu-se ao desfrute de acrescentar, gratuitamente, a opinião de que Ely, de fato, não estava melhor do que antes, assemelhando-se muito a Amsterdam — notório refúgio de sectários. Junto a denúncias de desfalque, havia uma referência aquelas cinco libr as pagas semanalmente à sra. Cromwell. Além dessas questões pessoais, Manchester também publicou sua própria Narrative,º provavelmente delineada por Crawford, com uma elaborada justificativa militar, destacando seus esforços para impedir que o exército se amo-
tinasse, sem ter que “assumir Cromwell e sua junta”. “Ele [Cr omwell] abusou muito (...) atribuindo a si todos os elogios referentes às ações de outros
homens” — segundo explicação mais moderna, Oliver tinha o hábito de conceder entrevistas aos correspondentes especiais, obtendo assim menções pre éferenciais no
s jornais contemporá ria, essencial a que se prom ovesse a debandada das tropas do rei.” Como resultado dessa troca de imp ropéri os, ambas as casas do Parlamento remeteram à ques ,
tão às suas respectivas comi ssões. Os opa: militares acirraram o ranc
or dos inimigos religiosos de romwel well. l. No No iin níc ício de dezembro, Essex sugeriu que Whit| elocke entrass E
cm contato com os escoceses, discutindo com eles a validade de atribuir-se 2
CROMWELL
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Cromwell a fama de exaltado”, Whitelocke, porém, julgou que tal acusação
dificilmente se manteria, não contribuindo em nada para a causa do Parla-
mento, dada a popularidade de Oliver?* No entanto, o simples fato de se ter
aventado a hipótese mostra o grau de divisão a que haviam chegado os
opositores do rei; além disso, a hostilidade não fez com que Cromwell sentisse qualquer simpatia pela facção escocesa,
Apesar de todas as mesquinharias, suas atitudes no futuro imediato evidenciaram que através de grandes eventos ele estava começando a se tornar um grande homem. No decorrer de um único dia — 9 de dezembro —, pro-
nunciando três comoventes discursos perante a Câmara dos Comuns, arrancou de Clarendon o seguinte comentário: “Pelo menos ele se expressou numa
linguagem nobre, se bem que não tenha alcançado ainda a faculdade de falar
com decência e moderação.” Ou seja: mantivera seu velho estilo veemente, expondo uma filosofia bastante inteligente.” É chegado o momento de falar ou calar-se para sempre. Não se trata apenas de estancar a hemorragia quase fatal da nação, resultante da longa continuidade desta guerra, mas de dar aos procedimentos bélicos a aceleração necessária, abandonando as protela-
ções que só agradam aos soldados-da-fortuna [mercenários], ou este Reino se cansará de nós e odiará o nome do Parlamento. Num César, vários do às
trecho que lembrava as palavras de Marco Antônio após a morte de Cromwell enfocou as inúmeras críticas feitas aos interesses egoístas de membros do Parlamento, que prosseguiam envolvidos no conflito devi“posições importantes e comandos que detinham, com a espada em suas
mãos” — ele próprio não pensava assim, limitando-se a repetir o que se murmurava à sorrelfa. Perfeitamente ciente do valor desses comandantes, membros de ambas as Casas, só queria expor sua consciência: “Se O exército não
for organizado de outra forma, e a guerra mais vigorosamente continuada, 0
Povo não a tolerará por mais tempo, forçando-nos a uma paz desonrosa. Da terapêutica que sugeriu transparecia ainda mais claramente a ambígua n
caridade de Marco Antônio. Não lhe caberia “insistir sobre queixas ou omisSões que se deram em qualquer ocasião, por parte de qualquer comandanteem-chefe, pois devo admitir que também fui culpado de omissões, e sei que
nha de provi vação obser [a ares” milit tos assun em -las evitá raramente se pode sem perdoar , er st he nc Ma de es sõ is om as ar on ci alguém que acabara de rela
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uma sequer]. Contudo, sem perder tempo pesquisando as causas de tais fatos redargúia: “E necessário que nos dediquemos aos remédios. Espero que on
sos verdadeiros corações ingleses e o zeloso afeto que experimentamos pela
prosperidade geral de nossa Pátria Mãe [referindo-se aos membros de ambas
as Câmaras] nos livrem de escrúpulos e, se preciso for, de nossos interesses
privados, em benefício do bem público (...).” O mais importante nesse seu primeiro discurso como político, e não
como revolucionário ou profeta, é que ele apontava na direção de uma desistência voluntária, segundo a qual nenhum membro de qualquer uma das CA. maras poderia exercer comando no exército quarenta dias após ter sido
diplomado. O Decreto de Abnegação foi proposto naquele mesmo dia por Tate, secundado por Vane, encerrando — nas palavras de Baillie — as disputas que tinham existido entre Cromwell e Manchester. Tudo foi feito numa única sessão, com apoio unânime, apesar do que permaneceram algumas dúvidas: se fora uma ação heróica, necessária e sensata ou a posição mais injusta e perigosa até então assumida pelo Parlamento. Na opinião de Baillie, havia muito o que dizer em favor das posições pró e contra ao que “mais parece um sonho, cuja base ainda não foi compreendida”.
Talvez a profundidade do Decreto de Abnegação nunca seja devidamente
alcançada, visto que sua paternidade também ficou em dúvida: Vane, político e negociador extremamente hábil, teria sido seu autor.* A idéia não era nova,
pois desde novembro se tornara patente o forte descontentamento motivado
pelo fato de membros do Parlamento deterem posições lucrativas: habitantes
de Kent queixaram-se de que o conflito se arrastava por causa dos ganhos fi-
nanceiros que propiciava a alguns — e para tratar do assunto fora organizada uma comissão que incluía Holles, mas não Vane ou Cromwell. Do ponto de vista de um político “independente”, como Vane, a Ordem permitiu tornar à
comissão desnecessária, calar os peticionários de Kent e afastar os generais malogrados — e tudo isso com a aprovação dos presbiterianos.
Cromwell, entretanto, soldado recém-chegado do campo de batalha, estava muito mais interessado em garantir a reforma do exército do que num quiproquó em torno do impedimento dos comandantes. Ded icara-se a isso desde
que começou à organizar sua “querida companhia”. No segundo discurso, ele expôs claramente a disposição de abrir mão do seu posto e discorreu sobre OS vícios e a corrupção que haviam se introduzido no exército, denunciando “a profan
idade, a falta de devoção e ausência, mesmo, de toda religião, além da bebida e do jogo, e todas as formas de lic enciosidade e preguiça”. E prognos-
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ticou: “Até que o exército inteiro seja remodelado e submetido a uma rígida
disciplina, não se deverá esperar nenhum sucesso notável em nada que as tropas encaminhem.? De sua ótica, a questão central era essa — o novo exército pelo qual esperava e rezava, e que desejava obter através do Decreto de Ab-
negação. Whitelocke foi um dos que se ergueu contra a proposta, argumentando perante o Parlamento que serviriam melhor à causa aqueles cujos interesses mais coincidissem com ela; citou o exemplo dos gregos e romanos que pela mesma razão cediam as posições mais elevadas aos senadores, tanto na
paz quanto na guerra. Para Cromwell, no entanto, o mais nobre dos romanos
não seria capaz de levar à vitória nenhum exército mal equipado, desnutrido, sem as vestimentas adequadas, mal pago, insubordinado e libertino.”
Ao final do ano de 1644, três fios do tecido político haviam se esgarçado, mantendo-se todavia enredados. Apresentado pelos Comuns à Casa dos
Lordes, em 19 de dezembro, o projeto que consubstanciava o Decreto de Abnegação precisava ser aprovado, do contrário não poderia entrar em vigor; no entanto, abespinhados com os ataques sofridos por Manchester, os nobres não demonstravam nenhuma predisposição favorável, e foram necessários meses de negociações até que a proposta se convertesse em lei. Além disso, os partidários da paz nunca deixaram de tentar um entendimento com o rei e, em que pese o fracasso de uma rodada de conversações, em novembro os escoceses
insistiam na sua retomada; a ocasião apresentou-se no final de janeiro de
1645, mas um mês foi suficiente para que essa experiência de evitar uma so-
lução bélica falhasse: o Tratado de Uxbridge não deu certo, levando os presbiterianos escoceses à desagradável descoberta daquilo que os “independentes” já haviam constatado há algum tempo — comportando-se como uma cololugar, terceiro Em anzol. um com apanhado seria só monarca o enguia, cava-se o problema da organização do Exército de Novo Tipo, esperança do
Parlamento; Cromwell estava entre os que se destacavam na elaboração dos seus regulamentos. Em meio a tantas discussões, a execução de Laud, após
um longo processo, em janeiro de 1645, parecia irrelevante — O arcebispo
não passava de um fantasma de um mundo ultrapassado. Contudo, não foi
nada irrelevante que os Comuns tenham conseguido impor sua vontade contra Os protestos dos Lordes.
o
Ao longo desse ano, Cromwell fora nomeado para importantes comissões.
Uma era responsável pela redação de uma carta aos escoceses, sugerindo re-
da subsidiária Outra, nações. duas das Parlamentos os entre lações amigáveis
Comissão dos Dois Reinos e mais próxima do seu coração, cuidava da reor-
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ganização do exército; nos primeiros meses de 1645, suas energias estavam concentradas nesse ponto vital. O Exército de Novo Tipo formaria com dez te. gimentos de cavalaria — seiscentos homens cada um — 12 de infantaria 1.200 homens cada um — e um corpo de mil dragões; mais tarde, o 11º de as valaria elevou o efetivo a 22 mil homens, aproximadamente. Os gastos seriam
cobertos por uma taxa mensal de seis mil libras, arrecadada nos distritos con. trolados pelo Parlamento. Os oficiais superiores foram escolhidos no dia 21 de janeiro. A indicação de sir Thomas Fairfax, como comandante-em-chefe,
foi liderada por Cromwell e Vane: ganhou por 101 votos afirmativos contra 69; obviamente, ele estava “à altura da tarefa” e não ocupava cargo no Parla-
mento. Philip Skippon, soldado profissional que já servira no exterior, antes
da guerra civil, homem devoto e de personalidade agradável, recebeu o posto
de general-de-divisão. Falando à tropa, pronunciou um “discurso excelente, piedoso, exortatório e incisivo”, encerrado com o reiterado compromisso “de viver e morrer ao lado deles, com a ajuda de Deus”. Significativamente, o posto de comando da cavalaria ficou vago. O ho-
mem mais qualificado para ocupá-lo estava absorvido por questões organizativas. Antes de ser convocado a deixar Londres, Cromwell só perdera duas reuniões da comissão que definia as normas do Exército de Novo Tipo; e enquanto a Câmara dos Lordes protelava a aprovação do Decreto de Abnegação — afinal sancionado em 3 de abril, segundo uma fórmula abrandada — não dera nenhuma indicação de tristeza ante o fim inevitável de sua carreira nos campos de batalha. Preocupado em garantir a máxima eficiência militar, Oliver discordou veementemente da proposta que obrigava a nomeação de todos os oficiais de patente superior a tenente por ambas as Câmaras, defendendo o direito
do comandante-em-chefe fazer suas próprias gou-se a um compromisso pelo qual Fairfax Parlamento aprovaria. Como já fizera antes, idéia de que os oficiais fossem compelidos a ias
escolhas. Finalmente, cheindicaria os nomes que O ele se opôs com firmeza à assumir alguma convenção
Durante a discussão desse tópico, Whitelocke observou que
“apesar de não subscreverem uma forma muito rígida de governo da Igre-
ja, os homens da cavalaria do coronel Cromwell são insuperavelmente bem armados e disciplinados”.º De fato, quando a Câmara dos Lordes
tentou excluir dois coronéis e mais de quarenta capitães da lista de nomeações
de Fairfax, com base em suas opiniões religiosas, a Câmara dos Comuns forçou-os a abandonar a idéia,
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O valente Exército de Novo Tipo surgiu do que restava dos antigos regimentos de Manchester, Essex e Waller, aos quais se somaram mais de oito
mil homens, recrutados em Londres e nos condados do sul e do leste. O
Flanco de Ferro — tropa de Cromwell —, que crescera a ponto de incluir 14
destacamentos, foi dividido, visto que os novos regimentos de cavalaria não deveriam ultrapassar seis. Apartados contingentes iguais, colocados sob o co-
mando do próprio Fairfax — o regimento do general, como era chamado — e do coronel Whalley, dois destacamentos foram dispersados. Sob ordens di-
retas do comandante-em-chefe ficaram alguns puritanos, antigos baluartes do primeiro período da Associação do Leste, que haviam sido recrutados por Cromwell: seu cunhado, John Desborough, seu ex-capitão, James Berry, e
aquele William Packer, já promovido a capitão, que um ano antes causara o
choque entre Oliver e Crawford, devido a suas convicções religiosas.*? Aprestada desde o início de abril, essa força entrou oficialmente em campo no mês de maio, destinando-se a ser apenas um entre os muitos exércitos que lutavam pelo Parlamento, inclusive o dos escoceses e os que fossem formados por recrutamentos locais. A idéia de um exército reformado também não era nova; datam de março de 1644 algumas tentativas malsucedidas de
reorganizar as tropas de Essex e, em junho, Waller falara ao Parlamento so-
bre a inutilidade dos recrutamentos locais: “Até que se possa ter um exército próprio, realmente disciplinado, será impossível levar a cabo projetos relevantes.” Os sonhos estavam se tornando realidade, e o Parlamento finalmente
dispunha de uma força bem disciplinada e bem paga, que o livrava, acima de
tudo, daqueles irritantes problemas que tanto prejudicavam sua estratégia.
Por exemplo: a recusa dos homens de Essex de lutar sob o comando de Waller; as constantes solicitações da Associação do Leste, para que suas tro-
pas retornassem, a fim de assegurar proteção às suas terras de origem; a famosa relutância de Manchester em abandonar essa mesma região etc. Simbo-
lizando o novo sentimento de uniformidade e disciplina, todos os soldados do
Parlamento deveriam vestir-se de vermelho. Em maio, um jornal declarou diver sos os “cas acos dos -ver o melh os”; seria Tipo Novo de Exérc o ito que regimentos se distinguiriam uns dos outros pelos ornamentos: O de Fairfax, pela cor azul de seu brasão de família." h esse abandoCaso a guerra se limitasse a discussões, Cromwell talvez tiv nado seu comando para sempre, quarenta dias após a aprovação do Rê sir Samue , Essex r, Walle er, hest Manc ram fize como tal o, gaçã Abne de muito antes que ém, Por o. ent lam Par do s ro mb me is áve not ros out e tantos
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isso acontecesse, desagradáveis eventos militares demonstraram que a teoria
política baseada no comando de Westminster não venceria batalhas que vi.
essem a ser travadas nas mais remotas regiões do país; mais uma vez o pro-
blema teve que ser levado à Câmara dos Comuns. Na primavera de 1645 50
moral dos partidários do rei não estava tão baixo como se poderia supor
Evidentemente, eles nem cogitavam do papel que o Exército de Novo Tipo desempenharia no futuro, mudando inteiramente o curso do conflito. As in-
críveis vitórias de Montrose, na Escócia, abriam perspectivas de apoio por parte dos católicos irlandeses, e o distanciamento dos comandantes parlamentares, inclusive Cromwell, o até então invencível líder da cavalaria, en-
chia-os de satisfação. Em contrapartida, a disposição dos escoceses era particularmente amarga, dada a maneira como a sua amada Convenção vinha sendo debatida por alguns membros dos Comuns; abandonando posições ao norte, onde desfrutavam de sólida vantagem, eles se desinteressaram de tão irreverentes aliados. Fazendo um retrospecto desse período, num sermão pronunciado perante ambas as casas do Parlamento, em abril de 1646, Hugh Peter recordou a depressão e os maus pressentimentos que o haviam feito pensar no exílio: “Foi somente há um ano, quando imaginávamos ter pendurado nossas harpas nos salgueiros de países estranhos, governados por estranhos príncipes, supondo que bastaria estender a mão para apanhá-las € entoar nossas canções inglesas — ai, meu Deus, elas teriam se misturado a lágrimas, suspiros e gemidos!”*? Nesse momento a ameaça persistente de Goring exigia uma resposta firme do Parlamento. A oeste, a fortaleza de Bristol era uma porta permanentemente aberta à possível intervenção irlandesa, ou até mesmo do continente, a favor do rei. Decidiu-se portanto que caberia a Waller deter Goring, com o apoio indispensável da cavalaria de Cromwell, dado o des-
contentamento que reinava entre seus homens, praticamente amotinados, €
em virtude das tropas de Essex recusarem seu comando. Juntos, Waller é Cromwell poderiam aliviar Taunton e, se possível, capturar a cidadela. Tra-
tava-se de um expediente provisório, à margem do Decreto de Abnegação»
que de qualquer forma ainda não se convertera em lei, devido às ações
protelatórias da Câmara dos Lordes. Cromwell serviria sob as ordens de
Waller e, depois da campanha, retornaria a Windsor, abrindo mão do posto: Posteriormente, Waller testemunhou que ele se comportara como um oficial discipli
nado, sem discutir as determinações superior es ou demonstrar à
minima arrogância.
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De fato, as operações realizadas na primavera — as últimas da antiga organização militar — demonstraram o quanto poderiam ser letais problemas como a falta de pagamento, que mantiveram os soldados de Waller num estado de constante fermentação. Apesar de tais percalços, houve alguns divertidos momentos de alívio. No dia 9 de março, em Andover, alguns realistas, comandados por lord Percy, caíram prisioneiros. Encarregado de providenciar seu alojamento, Cromwell suspeitou das credenciais militares de um deles, de tez muito clara, e com seu rude senso de humor decidiu testá-lo mandando que cantasse. À voz aguda que se fez ouvir motivou seu comentário zombeteiro, dirigido a /ord Percy — como guerreiro, ele estava
bem acompanhado de amazonas. Desconcertado, o nobre admitiu tratar-se de “uma senhorita”, Todos acabaram recebendo passes para a França, sujeitos à aprovação do Parlamento.“
Em 17 de abril, data em que Waller e Cromwell deveriam retornar a Windsor, a fim de cumprir a norma do Decreto de Abnegação, finalmente aprovado, chegaram notícias de que o rei, não satisfeito em permanecer placidamente em Oxford, enquanto seus inimigos se organizavam melhor contra ele, planejava juntar-se ao príncipe Rupert e marchar na direção do nor-
te, apoiado pelas duas importantes guarnições de Chester e Pontefract, para desafiar os escoceses. Com ou sem lei, sendo absolutamente imperativo impedir a junção das tropas realistas, Cromwell recebeu ordens de retornar ao campo de batalha. Integrado a seu antigo regimento, agora de Fairfax, e junto ao coronel Fiennes, ele deveria bloquear o caminho do rei a qualquer custo. Mais uma vez, através de uma série de assaltos e escaramuças, Cromwell provou sua brilhante capacidade. Postando-se entre as posições do rei, em
caa derroto u ele Worcest e er, Herefo rd em partidá rios, seus de Oxford, e as
valaria do conde de Northampton, em Islip, capturando mais de cem cavalos
— o que liquidou com as possibilidades de deslocamento cogitadas pelo soberano. Em seguida conquistou Bletchingdon House, a cerca de 24km, sem
nenhuma dificuldade, dada a prudência ou a covardia de seu comandante, que não travou combate; essa surtida rendeu uma quantidade substancial de munidirealizo u vigoros o, ímpeto mesmo o Manten do ção, mosquetes e cavalos.
versos ataques predatórios em toda a região do Oxfordshire, cortando as coe rápidas ações Foram seguido res. seus e monarc o a entre municações decididas, que sem dúvida reverteram as perspectivas imediatas à favor do
Parlamento.
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Logo após tê-las empreendido, referindo-se a seu comandante, Fairfay ) 1 ) . ele afirmou ter liderado “o regimento de Vossa Honra — anteriormente, mey próprio regimento”. Levando-se em conta que o Decreto de Abnegação já havia entrado em vigor, seu texto é particularmente interessante:
Foi a bondade de Deus, e nada merece maior consideração; e
embora eu tenha recebido maiores indulgências, nenhuma pareceu mais clara do que essa; em primeiro lugar, porque Deus a
trouxe sem que eu a buscasse. (...) Nisso também transparece
Sua benevolência, pois, dispondo de poucos dragões, hesitei muito em me lançar ao assalto contra a casa fortificada e bem guarnecida [Bletchingdon], que não era assunto meu; e, ainda assim, nós a tomamos. (...) Espero ser perdoado por não ter agradecido suficientemente a Deus. Olhamos demais para homens e ajudas visíveis (...).
Três dias mais tarde, em 25 de abril, no relatório encaminhado à Comissão
dos Dois Reinos,'* Cromwell ressaltaria a enorme importância desse seu primeiro comando militar, após a criação do Exército de Novo Tipo, elogiandoo como instrumento das manifestações do Todo-Poderoso:
Deus os aterroriza (...) e certamente se regozija com a dedicação que se aplicou na reforma de seus exércitos;
só peço que mais e
mais seja feito. Homens maus e descontentes alegam que se criou uma facção, mas eu desejo fazer parte daquela que pretende evitar que os pobres dessa miserável nação sejam oprimidos (...) [não] se pode olhar para isso sem que o coração sangre.
Mantendo sempre o mesmo tom de inspiração pessoal e direção diviná, Oliver ainda fez algumas críticas ao sistema de aquartelamento gratuito, qué tanto desgaste produzia na rela ção com as populações locais, e concluía: “Perdoem, senhores, meu atrevimento, eis que descubro em tudo O que faço à mão de Deus me gui ando, tanto que posso dizer não ter feito nenhuma dessas coisas.” | Mais tarde, seus inimigos — sem falar nos historiadores partidários do rei — | acusaram -no de ter montado o “artifício de Abnegação” — assim
Denzil Holles se referia ao decreto em suas memórias — visando ao fortale-
cimento das posições “independentes”, Indignado, ele protestava, dizend o que
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todos os antigos comandantes teriam que se aposentar, “Jogados fora, como
velhos almanaques, exceto Cromwell — para ele, logo acharam uma alternativa”. Alguns historiadores argumentaram que Oliver teria feito uma grande
jogada, dispondo-se a abrir mão do comando quando, na verdade, tencionava escapar da aposentadoria no último momento.” Conforme se verá, muitos fatores pesavam contra ele. Seu posto de comando no Exército de Novo Tipo só foi confirmado no dia 10 de junho, e mesmo assim condicionado a um prazo. Sectário do providencialismo, ele atribuía todos os êxitos à vontade de Deus, que sinalizava seu envolvimento, desde o início; desse ponto de vista, a autoridade que lhe foi conferida após o Decreto de Abnegação adquire enorme importância. Não se pode apontá-lo como um grandíssimo hipócrita, simplesmente, pois em dezembro de 1644 havia dificuldades imensas e nenhuma certeza de sucesso. À noção de jogo é mais plausível. De certa forma, ele tinha a expectativa de obter a carta certa antes do final da partida, e a seus olhos as rápidas vitórias no Oxfordshire equivaleram a um selo de aprovação divina. Aparentemente, Deus nunca pretendera que abandonasse o comando; ao contrário, queria que ajudasse a liderar o grande exército recém-criado e para cuja organização trabalhara com tanto afinco. Curiosamente, na pequena escaramuça que se seguiu, em Faringdon, no dia 2 de maio, ele
foi repelido por Goring e teve seus passos obstados. Poderíamos especular sobre qual atitude tomaria, caso os primeiros combates tivessem sido claramente desastrosos? Os sinais teriam apontado no sentido de um retorno imediato à Londres — o abandono do comando? Do jeito como os fatos se passaram, serecebido bêntivesse já ele embora Cromwell, de palavras próprias as gundo çãos maiores, nenhuma foi tão clara quanto Bletchingdon — dádiva formidável da Providência, definia claramente o rumo a ser seguido: Deus queria que ele
lutasse no campo de batalha. Entre tantos outros membros do Parlamento, ele e somente ele deveria continuar desempenhando o duplo papel de político e milisotar. Absolutamente convencido, Joshua Sprigge, capelão de Fairfax, escreveu de Novo Exército ao apoio seu manifestava Deus “Assim bre Bletchingdon:
Tipo, ou melhor, com um de seus ramos, anunciando a chegada dos tempos." apoiava sua partiSenhor 0 que sentiu Cromwell Oliver certeza, Com idêntica cipação: ele também faria parte dessa nova € abençoada força de ataque.
Efe Rosa 7 Vitória feliz Ao cavalgar sozinho, a fim de cumprir minhas tarefas, não poderia deixar de louvar e sorrir para Deus, certo da vitória,
pois com as coisas que não são Ele transformaria em nada aquelas que são.
CROMWELL, em Naseby, momentos antes da batalha
rei não podia manter-se, indefinidamente, na simplicidade rural do Oxfordshire, e assim, em 1645, no “generoso maio” a que se referiu Milton, aquele mês florido cujo verde colo produziu a prímula amarela e a pálida, a interessante disputa de xadrez entre o soberano e o Parlamento chegou a um impasse. Qual seria o próximo lance de Carlos I? Aos adversários,
obcecados pela indagação, só restava bloquear seus movimentos, o que impedia qualquer ação ofensiva. Será que ele abandonaria seu forte reduto em Oxford? Considerando tal possibilidade mais do que plausível, e a fim de
conservar-se próximo da retaguarda inimiga, em 5 de maio Cromwell deslo-
cou-se para Abingdon, ao sul, alcançando Dorchester no dia seguinte. De fato, 48 horas depois o monarca pôs-se em marcha, acompanhado por seu comandante de cavalaria, o errático Goring. Oliver sofreu a humilhação de ser cavaleiros surpreendido perto de Burford, onde dois de seus coronéis e alguns foram aprisionados. Mas quais seriam as verdadeiras intenções do rei? Talvez desviar-se, rumo
e o ng Gori ando deix eses, escoc antes hesit os ntar enfre ão norte, no intuito de Príncipe de Gales encarregados de deter o exército de Fairfax, a oeste. Isso tordessa vez s meno Pelo . well Crom de ão posiç ima próx e ment tiva rela a vital nava
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o comando civil, exercido em Londres pela Comissão dos Dois Reinos, demons. trou entender a situação e atendeu a seu pedido de reforços — em homens, art.
lharia e munição —, permitindo que se lançasse nas pegadas do arquiinimigo em
condições de executar quaisquer manobras que julgasse convenientes, Ainda não
chegara a hora deles atenderem ao apelo explícito de Fairfax, que queria promo. ver Cromwell ao posto de general de cavalaria; concederam-lhe apenas uma ex tensão do prazo de serviço ativo, isentando-o mais uma vez das cláusulas do Decreto de Abnegação. Posicionado em Hinton Waldrist, a sudoeste de Oxford,* Oliver solicitou mais dinheiro e munição." Contudo, nesse momento, a Comissão
decidiu que ele deveria agir com mais calma, dirigindo-se ao Warwickshire, ao norte, e guardar as entradas que seguiam na direção dos condados da Associação
do Leste, caso o rei se visse tentado a atacar esses alvos tão vulneráveis e bastante indefesos. Os azares da guerra conduziriam o soberano aos braços dos escoceses, que o deteriam ou derrotariam. Mas Carlos I estaria mesmo marchando para o norte? Ou, mais prudente, dirigia-se à fortaleza de Chester, no litoral noroeste, excelente acesso a suprimentos e reforços provenientes da Irlanda? Cromwell colocou essa difícil questão — e a necessidade de responder a ela — numa carta ambígua que
endereçou à Comissão em 14 de maio, perguntando se a ordem de não perse-
guir o rei implicava proibição de marchar sobre Chester, sitiada pelas forças
do Parlamento sob o comando de sir William Brereton, aquele admirável É
consciencioso soldado, que não poderia manter seus esforços por muito mais tempo, ainda mais considerando a poderosa força realista que se aproximava. O próprio Brereton, interessado em preservar as vantagens obtidas com aquele prolongado cerco, desenvolveu um plano pelo qual a marcha triunfante do
rei poderia converter-se em sua própria destruição. A idéia era simples:
Cromwell e Fairfax juntariam suas forças, na retaguarda de Carlos I, enquan-
to Brereton resistiria, às portas de Chester, até a chegada do exército escocês, vindo do norte. O monarca ficaria, então, muito bem preso e apertado por mandíbulas cheias de dentes. Escrevendo a seu vizinho no Cheshire, John
Bradshaw, sir William previu que “um avanço acelerado das forças escocesa ea presença de sir Thomas Fairfax na retaguarda” provavelmente fariam com que essa fosse “a última Jogada que eles teriam ao seu alcance” ?
immSS do h “Não se trata de Hinton-in-th tt. Sobre este ponto, e para um e-Hedges, ao norte de Oxford, como sugere W. C. Abbo a N. Dore, Sir William Brereton's revisão per al da campanha que antecedeu a Naseby Ve! R: siege of Chester and the campaign of Naseby.
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Em meados de maio, Brereton sentiu-se muito encorajado com as notícias de que Cromwell já estava bem ao norte, em Warwick — na verdade, no dia 15, obedecendo às instruções da Comissão e tratando de se colocar entre o rei e as terras do leste, ele estava a caminho de Banbury. O plano de sir William não despertou grande entusiasmo em Londres; de Coventry, no dia 18, Cromwell escreveu-lhe manifestando sua cautelosa aprovação. Se tudo desse certo, e as tropas se juntassem conforme previsto, “nesse caso, não duvido que estaremos numa posição tão auspiciosa como nunca antes, e tendo apanhado os exércitos do rei entre nós, com a bênção divina, haveremos de
criar muitos problemas para ele”. Evidentemente, o texto terminava salientan-
do a necessidade de se discernir os desígnios de Deus: “Será bom esperar por Deus e buscar sua definição, como estou certo que estais fazendo.”* Apesar da idéia ser excelente, capaz de pôr cobro a “essas guerras não naturais”, a Comissão revelou uma completa falta de imaginação e ordenou a Cromwell que recuasse. No dia 19, informou Brereton a respeito, dizendo ter recebido ordens de recuar a fim de prestar um “serviço importante”. No cumprimento
forçado de tais instruções, no dia 20 ele já se encontrava em Daventry, de onde escreveu a sir Samuel Luke, governador de Newport Pagnell, solicitan-
do o envio de qualquer quantia que fosse possível fazer chegar a Brackley, onde deveria estar em mais 24 horas.**
Obstando o audacioso esquema de Brereton, que teria antecipado em várias semanas o colapso das posições realistas, em Naseby, a Comissão deixou escapar uma ótima oportunidade. Mas o fato serve para demonstrar uma faceta interessante do soldado Cromwell, bastante rápido em avaliar positivamente as possibilidades delineadas, mas estritamente disciplinado ante a auto-
ridade superior — Waller tecera comentários acerca disso alguns meses antes.
Foi incrível a velocidade com que ele se deslocou pelas Midlands. No dia 22 de maio já estava de volta a Oxford, com Fairfax, tendo coberto mais de
110km em apenas quatro dias, à testa de tropas que incluíam, além da cavalamais ria, uma pesada infantaria; foram jornadas de 28km, em média, muito
duras que as da guerra civil — em torno de 16km a 18km, às vezes 24km —, quando o equipamento era menor. Rupert tornara-se legendário graças à sua
habilidade de correr e girar pelos campos; Cromwell, naquela tentativa frusestá em R. N. Dore, op. cit., to ple com to tex O ta. car a e rev nsc tra não *W. C. Abbott
PP. 30 e 31. ed. H. G. Luke, l Samue Sir of Books r Lette The Ver carta. a creve trans não t Abbot **W. C. Tibbutt, nº 1.301, d. 30, p. 342.
Lg
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trada de antecipar Naseby, mostrou parte das qualidades que exibiria às vésperas da batalha de Preston. Enquanto isso, sempre temerosa de um ataque realista às posições da Associação do Leste, a Comissão par ecia cega aos ris. cos acarretados pela presença de Carlos I a noroeste do país. As ordens de Cromwell afastaram-no totalmente do caminho do rei; enc arregado de defen-
der as terras do leste e arregimentar tropas por lá, ele teve a chance de servir
mais do que à honra, disse Joshua Sprigge. No dia 31 de maio, em Cambridge , conseguiu recrutar três mil soldados de cavalaria. De sua Huntingdon natal escreveu a Fairfax, em 4 de junho, relatando que fizera o melhor possível, embo ra
considerasse muito precárias as fortificações locais. A Comissão só acordou para o perigo que corriam as Midlands em 1º de junho, quando Leicester caiu e foi saqueada pelos soldados do rei e do príncipe Rupert, e ante a violenta carnificina que se seguiu, vitimando inclusive muitas mulheres que teriam participado na defesa da cidade. Até então Cromwell fora deixado na banda oriental do país, como um reforço às eventuais incursões que o vitorioso Montrose pudesse lançar desde a Escócia. À falta de um comandante de cavalaria, sentida por Fairfax, e, da parte de Oliver, o anseio de tentar algum tipo de ofensiva acabaram acelerando as lentas considerações estratégicas. De fato, a paciência do comandante-em-chefe estava praticamente esgotada e ele requereu a imediata nomeação de Cromwell, baseado não somente -na afeição e estima geral que lhe dedicam os oficiais e soldados de todo o exército, e em sua coragem e habilidade pessoal”, mas também — notável detalhe puritano — na “constante presença e bênção de Deus, que o têm acompanhado”.* Em resumo, Oliver era indispensável aos planos de vitória. O re-
querimento foi aceito, não obstante os resmungos dos lordes, ainda furiosos com o caso de Manchester, que se limitaram a insistir no caráter temporário da indicação. Fairfax apressou-se em avisar Cromwell das novidades, exigindo
que ele se juntasse ao núcleo do exército. As duas principais forças oponentes — do rei e de Fairfax — circulavam na área central das Midlands, eventualmente muito próximas uma da outra, elaborando planos, logo deixados de lado, sem uma idéia precisa sobre a localiza-
ção do adversário. Nesse período da guerra, a informação variava do brilhante ao desprezível: daí a importância do posto de batedor-geral, que mediante um soldo pouco usual de quatro libras diárias, incumbia-se de descobrir e acompa-
nhar a movimentação inimiga. Datados da década de 1630, alguns mapas FéBlon
ais da Grã-Bretanha tinham sido produzidos em Amsterc am, mas a famosa
CROMWELL
sá
carta geográfica de John Blaeu é de 1648. Campanhas locais orientavam-se
por descrições muito primitivas, meros esboços. No período anterior a
Naseby, a quase absoluta carência de dados foi um dos fatores que contribuiu
para a derrota do rei. Depois da vitória de Leicester, Carlos I não tinha mais a intenção de lu-
tar, em parte devido à insociabilidade, se não insubordinação, de Goring, que
retardara a marcha de seus homens por ciúmes de Rupert. Protegido pelos
poderosos canhões do alto castelo de Belvoir, o rei pretendia dirigir-se às im-
portantes fortificações de Newark. Fairfax, por outro lado, tinha esperança de
poder desafiá-lo; tendo capturado alguns papéis realistas, estava ciente da atitude recalcitrante do comandante da cavalaria inimiga e aguardava apenas a
vinda de Cromwell para garantir superioridade numérica. No dia 11 de ju-
nho, atendendo às mensagens de seu superior, Oliver se encontrava em
Bedford, e às seis horas da manhã seguinte, apesar do tempo muito úmido,
partiu para Kislingbury, onde foi muito ovacionado pelos soldados de Fairfax. Com uma vantagem proporcional de dois para um, chegara o momento de forçar o rei a combater. A caminho de Newark, o exército do rei Carlos I passou a noite de 13 de junho em Market Harborough, no Leicestershire. O soberano pernoitou na aldeia de Lubenham, alguns quilômetros a oeste. Nem ele, nem Rupert ima-
ginavam que o Exército de Novo Tipo estava tão próximo — até serem in-
formados de que Henry Ireton capturara um posto da retaguarda realista, em
Naseby, pequena cidade a cerca de 1lkm ao sul de Harborough. Naquele ins-
tante, despreocupados, eles estavam jantando e jogando quoits.* A inesperada e desagradável notícia levou-os a cogitar das posições relativas de ambos os exércitos, dando lugar a uma rápida conferência noturna. Que fazer? Havia duas alternativas, nenhuma muito satisfatória. O rei poderia prosseguir em sua retirada, na direção de Leicester, mas acossado pela eficiente cavalaria
parlamentar, que lhe criaria problemas à retaguarda, durante a viagem, talvez fosse forçado a fugir. Perigo adicional era que os escoceses, finalmente, se
voltassem para o sul, aprisionando o monarca numa armadilha semelhante à enseria opção outra À anterior. mês no concebera Brereton William que sir
frentar o exército do Parlamento, na desesperada tentativa de compensar à inferioridade numérica com habilidade e organização.
“Jogo que consiste em lançar anéis, discos de metal ou outro objeto
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Em contrapartida, aguardando a junção de suas tropas de infantaria e cavalaria, as forças do Parlamento só teriam que retardar a marcha do rei. Co-
locando-o diante de duas escolhas, igualmente insatisfatórias, Fairfax alcançara uma vitória tática, antes mesmo que o primeiro tiro fosse disparado em
Naseby. Carlos I decidiu-se pela batalha, preferência que se comprovou, €M última análise, desastrosa, se bem que a crítica ao monarca não deva subesti-
mar a vantagem de informações a que se tem acesso atualmente. O Exército
E pan ee por exemplo, ainda não fora testado, e é significativo que 08 ; efes rea is, tais como lord Digby, o ridiculari zassem, chamando-o de nova cabeça” — eles viveriam ó desprezo: tamanho de arrepender se para Tamb E a E Fa que Rupert aconselhou que se fizesse justamente o contréEa g o XVII, entretanto, seria impossível prever o resultado de qualquer
grande combate: no curso da luta, constantemente, a fortuna mudava de
CROMWELL
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jado. Mesmo considerando a imensa superioridade numérica do oponente, ainda assim, nos termos formais da guerra, podia-se esboçar o desenho da “hattalia” — ataques cuidadosamente planejados, cargas de cavalaria sem con-
trole, o corpo-a-corpo dos lanceiros, os mosqueteiros vulneráveis após o tiro, em resumo, dependendo fundamentalmente da qualidade dos soldados e de seus comandantes, a vitória realista não podia ser descartada. Na manhã de 14 de junho, se Rupert conseguisse sacar da cartola uma de suas rápidas cargas de cava-
laria, O rei ainda poderia contar com uma possibilidade a seu favor. Escolhido involuntariamente, o palco dos acontecimentos situava-se na vasta planície que se estende pelas margens norte-ocidentais do Northamptonshire — quase o centro geográfico da Inglaterra. Entre duas cadeias de montanhas não muito elevadas, na ampla região campestre ao sul de Market
Harborough, as forças do Parlamento, um pouco ao norte de Naseby, ocupa-
vam uma posição ligeiramente acima do inimigo.* O terreno era bastante enganador: os suaves platôs e encostas, cobertos de arbustos, pequenos bosques e capoeiras, escondiam buracos capazes de surpreender os combatentes. Os realistas passaram as primeiras horas da manhã — assim como em Marston Moor, uma manhã fria e úmida — organizando suas linhas, e mal as tinham
completado quando o exército parlamentar surgiu. De seu lado do campo, no
cume da cadeia de colinas, Rupert pôde espionar a cavalaria, claramente visí-
vel na linha do horizonte. Hesitando por um momento — o príncipe ainda poderia evitar o combate, especialmente porque os documentos capturados
davam conta de que Goring insistia que o esperassem —, Fairfax postou-se
ft. um pouco à esquerda de onde se situa hoje a estrada Naseby—Sibberto Como resultado dessa movimentação, Cromwell se viu diante de uma área pantanosa, totalmente inadequada à carga rápida e controlada que estava em seus planos. Assim, apontando uma posição mais alta, chamada Red Hill, ele sugeriu a Fairfax uma decisão que se tornaria importantíssima no curso da
batalha: “Vamos nos retirar, eu suplico, para o outro lado daquela colina, a
fim de encorajar o inimigo a nos atacar, através do alagadiço: será a sua abso-
luta ruína.””
rada Naseby—Clipston— est l atua a ra afo s, çõe era alt s nde gra reu sof não *O cenário rtoft. a Sibbe de ção dire na a, trilh uma de ava pass não a époc ela naqu que h, Harboroug o o que Post s. inte segu e 124 p. War Civil ish Engl the of es Battl , rych Wool Austin E oca O E ais Novo de cito Exér pelo do orri perc ser anto port ndo pode mal existia, não
C. B. Rogers, em Batiles a H. nel coro O e supõ que do oeste o combate mais para
0f the Civil Wars. Seguimos as posições definidas pelo professor Woolrych.
enerals
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FRASER
O movimento à esquerda efetuado pela cavalaria do Parlam ento em con
sequência dessa proposta chamou a atenção de Rupert; insatisfeito com as in formações trazidas por seu batedor, naquele exato momento e le ia saindo numa expedição de reconhecimento. Terá imaginado que o Inim igo batia em retirada? Ou simplesmente anteviu a oportunidade de lançar um ataque con. tra tropas ainda mal preparadas? Nunca se soube, mas de um Jeito ou de ou. tro, O príncipe ordenou que o restante do exército fosse im ediatamente con. vocado. Decidiu que suas forças ocupariam o melhor ter reno disponível — uma colina chamada Dust Hill, que terminava na extens a ravi na de Broad Moor. Do lado oposto no extremo ocidental da cadeia, o Ex ército de Novo Tipo já ocupara uma outra quebrada. Pouco depois, o rei se integrou à linha de batalha, que se estendia desde a esquerda, acompa nhando aproximadamen-
te O traçado atual da estrada Naseby— Sibbertoft, onde se postav am os homens comandados por sir Marmaduke Langdale, seguidos pela infant aria de lord Astley, bem no centro, e a cavalaria de Rupert, que alcançava os arbustos existentes no extremo oeste, uma área conhecida como Sulby Hedges. A vanguarda parlamentar, de frente para o norte, buscava se contrapor com uma formação idêntica à dos realistas que a encaravam, não somente em virtude das convenções militares, mas visando também minimizar os possíveis efeitos desvantajosos do vento, que, “soprando levemente, na direção do oeste”, po-
deria espalhar sobre ela a densa fumaça dos mosquetes.” Assim, os dragões se enfileiraram em Sulby Hedges; Henry Ireton, recentemente promovido a general, e a pedido de Cromwell nomeado desde aquela manhã subcomandante da cavalaria, comandava a ala esquerda; no centro, Skippon e a infantaria se
situavam bem defronte a Astley; na ponta direita, Cromwell arrostava Langdale. Numa astuta manobra, para aproveitar o declive do terreno, Fairfax ordenou que toda a sua linha recuasse cerca de cem metros, resultando daí que uma boa parte da cavalaria ficou escondida — fora do campo de visão dos reàlistas. O capelão Joshua Sprigge deixa claro que isso não foi acidental, muito
pelo contrário. Comentou-se que Fairfax teria a intenç ão de evitar que as to” pas menos experientes sob seu comando se sentissem desencorajadas, particularmente a infantaria, diante d a formação compacta do inimigo.” Recém-nomeado general-de-brigada, O liver organizou os homens de sua cavalaria, à direita, e os dragões, comand a dos por Okey, na extrema esq uerda, adiante a Ireton. Prestes a iniciar esse e nfrentamento crucial, o primeiro de
que participava após assumir um alto p osto no Exército de Novo Tipo, quais seriam 08
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seus sentimentos Observando O posicionamento preliminar das fileiras do adversário, estaria apreensivo? Corroborando suas próprias declarações poste-
riores, diversas testemunhas afirmaram que longe de se sentir inseguro ele estava cheio de uma exaltação semelhante a um júbilo selvagem —
“ostentando
uma fé e alegria bem triunfantes”, escreveu Sprigge. Outro observador foi
mais longe, lembrando-se de tê-lo ouvido soltar uma sonora gargalhada. O
próprio Cromwell confirma seu estado de espírito sobreexcitado: “Ao caval-
gar sozinho, a fim de cumprir minhas tarefas, não poderia deixar de louvar e sorrir para Deus, certo da vitória, pois com as coisas que não são Ele transformaria em nada aquelas que são.”!º Terá sido ótimo experimentar tamanha
segurança acerca da bênção de Deus; certamente, esse estranho quadro dele
rindo sozinho, nos instantes que antecederam à batalha de Naseby, ilumina de
forma mais vívida do que qualquer um de seus discursos teológicos explícitos
a extensão da confiança que sentia na doutrina de que o certo é que vale.
Concretamente, entretanto, a situação não condizia com nenhuma expecta-
tiva emocional. Rupert estava determinado a atacar antes que as tropas do Parlamento completassem seu alinhamento, para compensar a diferença numérica
entre os nove mil soldados de infantaria de que dispunha, contra 14 mil antagonistas; além disso, a ausência de Goring deixara-o com apenas 4.500 cavaleiros
— Cromwell comandava 6.500. Mais tarde, ele foi muito criticado por esse
“voluntarismo” que, segundo alguns, causara o desastroso resultado da batalha.
Todavia — informa o coronel John Okey — seus dragões estavam desmonta-
dos e se municiando, a uns oitocentos metros de distância, quando perceberam
os soldados inimigos marchando “em nossa direção, imponentes e compactos, pensando em nos atemorizar ou pelo menos nos atingir enquanto ainda não estávamos em condições de recebê-los”. Nesse instante Cromwell teve uma inspi-
ração valiosa. Ordenou que Okey deslocasse seus homens a toda a velocidade,
alinhando-se em Sulby Hedges, a fim de cobrir seu flanco esquerdo —à direi-
ta, 0 fogo dos mosquetes impediria o ataque realista. Os dragões mal tiveram
tempo de montar, alinhar-se nas novas posições, desmontar, passar as rédeas ao
décimo homem encarregado de cuidar dos cavalos e preparar suas armas —
“em poucos momentos” o inimigo se lançou sobre eles. Uma operação reali-
| zada, em suma, com absoluta precisão. Eram cerca de 10h. Alinhados, cada um dos exércitos exibia as respectivas
identificações — branco, como em Marston Moor, para os parlamentares, €
o comando verde, para os partidários do rei. No último momento, à linhaos sob contendores se de Fairfax avançou alguns metros, de tal forma que ambos
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defrontaram por inteiro. Brados de desafio fizeram-se ouvir Num anglicizado
tributo à Henrietta Maria, os realistas gritavam: “rainha Mary”; COerentes
as tropas do Exército de Novo Tipo respondiam: “Deus e nossa força”, Eua
rada por Rupert e seu irmão Maurice, a cavalaria investiu, expondoSê ao fogo dos mosquetes. Tendo contornado os arbustos, confor me as ordens de Cromwell, os dragões estavam em vantagem. Desse modo, numa furiosa luta corpo a corpo, os cavaleiros de Ireton, superiores na proporçã o de três contra dois, conseguiram repelir parte dos atacantes — aquela vaga que obedecia diretamente a Maurice; entretanto, perdendo o contato com seus homens e sem conseguir encontrar o caminho de volta, Ireton correu em socorro de Skippon,
cuja infantaria suportava enorme pressão, e, ferido no rosto por uma lança, caiu
prisioneiro. Pior sucedeu na sua própria ala esquerda, levada de roldão pela grande carga conduzida por Rupert. Logo, todas as forças do orgulhoso Exército de Novo Tipo que haviam se colocado daquele lado do terreno esta vam completamente desorganizadas, confirmando as suspeitas de seus críticos e o profundo desprezo dos adversários realistas. No centro, ante os exaustos partidários do rei, numericamente inferiores — quatro mil contra sete mil —, a infantaria parlamentar começou a ceder.
O próprio Skippon foi ferido, e seu subcomandante, morto. Somente os homens de Fairfax mantiveram-se firmes. Fosse necessária mais uma prova da importância do moral das tropas, em batalhas assim, ela teria sido fornecida pela firmeza e a coesão dos experimentados homens de Fairfax, comparados ão novo regimento de Skippon — formado por antigos soldados de Essex € de Manchester, que nunca tinham se dado bem. Combatendo furiosamente no meio do campo enlameado, as forças do Parlamento estavam diante de um resultado pelo menos incerto. Se na ala direita houvesse outro Ireton e outro Rupert, certamente, “este sábado terrível teria sido iluminado com as alegres bandeiras da vitória”, anotou em seu diário um capitão realista. “Provavel-
mente, poderíamos ter vencido”, escreveu sir Henry Slingsby: do seu posto,
na infantaria do rei, ele compreendia bastante bem o quanto eram amplas àS indefinições bélicas naquela época.!2 Ocorre que ali se encontrava o próprio Cromwell, sem rir, mas com rêdobrada convicção e ainda determinado a alcançar uma vit
ória abençoada. Ele organizara seus regimentos em três linhas —. seus próprios homens, 05 leais sold
ados da Associação do Leste, à direita de Fa irfax; à esquerda, 08 de Whalley; e Ho centro, os comandados de sir Robert Py e. Isso deixava sob sua ordens diretas cerca de 3.500 treinados e disciplinados cavaleiros, trajando O
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mesmos casacos de couro amarelo escuro que caracterizavam a cavalaria do
Lincolnshire, chefiada por Rossiter — no Exército de Novo Tipo só a infantaria usava escarlate. No primeiro engajamento, Whalley e Langdale troca-
ram fogo de pistola praticamente à queima-roupa, recorrendo depois a espadas curtas. Foi Langdale que acabou cedendo, mas antes desse incisivo remate Cromwell e Rossiter já atacavam, descendo pelo lado direito da colina, envol-
vendo os combatentes.
Demonstrando, então, o gênio militar que em última análise faltava a
Rupert, Cromwell impediu que seus homens se lançassem numa alegre perseguição à cavalaria realista em fuga: enquanto um destacamento punha fim ao combate, passando bem perto do rei, aliás — corajosamente, Sua Majestade
pensou em liderar um contra-ataque, colocando-se à frente de seus guardas, mas alguém do séquito o levou de volta —, Oliver reorganizou os restantes, usando-os como um poderoso martelo de Thor para golpear o flanco esquerdo da infantaria adversária. Seria impossível resistir ao assalto combinado de Cromwell e Fairfax. Okey, cujos dragões tinham sido deixados numa situação difícil e embaraçosa, a ponto de se considerarem perdidos, após a dispersão de Ireton manteve-se firme, contudo, e foi capaz de avaliar com rapidez a mudança da sorte. Fazendo seus homens montarem de novo a cavalo, ele atacou a infantaria oponente do outro lado. A batalha durava há uma hora. E Rupert? A vitória escapara das mãos de sua infantaria e as tropas de Langdale tinham se dispersado; em contrapartida, os cavaleiros de Ireton, teoricamente derrotados, contornando o campo de batalha, buscavam novos engajamentos. Diante de circunstâncias que tão rapidamente se deterioravam, nunca houve maior necessidade de frieza e visão tática por parte dos realistas.
Contudo, levado por sua carga triunfante — como uma onda forte que invade
a costa, afastando-se do mar —, O príncipe estava muito longe, saqueando su-
primentos na vila de Naseby, a mais de três quilômetros de distância. Quando retornou ao campo de batalha, ele deparou com um quadro sombrio: a infantaria era o caos, e somente alguns bolsões tentavam se reagrupar — à guarda
Enquanto isso, Moor. Broad de fundo no lá Langdale, de cavalaria a e rei do
a que espera à apenas alinhavam, se Fairfax e Cromwell abutres, como dois | ga. car uma s mai a par , eles à se tas jun se o ent lam Par infantaria do o organizado Tip vo No de to rci Exé do ão vis À ém. por ia, dar se Isso não
smo s do r ca po pi te en st si in O e a” lh ta ba “[n]uma segunda e boa linha de as s da to de ar es Ap a. ad nd ba de ra ei ad rd ve a um am queteiros de Okey provocar ante tão m ra ve ol ss di s€ as op tr as su , pe ci ín pr do e rei do es frenéticas exortaçõ
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caloroso desafio, fugindo na direção de Market Harborough. Naquele mo.
mento, diante da completa vitória, os cavaleiros de Cromwell talvez pudessem
empreender uma perseguição tradicional; mas nem assim lhes fo; permitido
esquecer seus regulamentos. À infantaria — menos disciplinada e, claro, não comandada por Oliver — é que saqueou as carroças do Inimigo; os ricos
despojos do rei ficaram entregues a mesquinhas paixões, enquanto instintos muito mais desprezíveis se satisfaziam com o assassinato das pobres e aterro. rizadas mulheres que acompanhavam os veículos — irlandesas, identificadas pela algaravia de seus dialetos, ou galesas, segundo sugestão mais plausível. !3 Bastava essa nacionalidade para despertar reações agressivas e inspirar excessos nos rudes protestantes ingleses — as mais afortunadas tiveram a face
marcada com o signo judicial da prostituição. No entanto, é justo lembrar que os próprios realistas tinham perpetrado crimes semelhantes, apenas duas semanas antes, em Leicester. Muitos deles acabaram enterrados em Marston
Tressell, junto aos cedros do presbitério, ou no próprio cemitério da igreja, perto do beco de Pudding Poke — dali nunca mais poderiam escapar. Aos olhos da gente simples e inocente daquelas cercanias, Slaughter Field [Campo do Matadouro] assinala o verdadeiro fim da batalha de Naseby.
Muito longe dessas sombrias reflexões, a Câmara dos Comuns acolheu as gloriosas notícias que lhe chegaram pela via das cartas de Fairfax, lidas em voz alta por seu presidente. Cromwell redigiu um costumeiro relatório de batalha, referindo-se à “mão de Deus”, antes de elogiar Fairfax — sua fé e sua honra — e na suposição de que o comandante-em-chefe também atribuísse
tudo à graça divina.!! Os membros de ambas as casas do Parlamento foram
recebidos para um esplêndido banquete, em Grocers' Hall, após o qual cantaram o 46º Salmo. No domingo seguinte “houve uma grande explosão de júbilo nos púlpitos” de todo o país. O embaixador de Veneza atribuiu à grande
vitória o alívio da City: “Os êxitos do rei foram efêmeros, e, alterando rapldamente o cenário, o destino tornou suas condições extremamente precárias
— aquela guerra desgastante podia estar chegando ao fim. Na França, onde à rainha Henrietta Maria tentava obter o apoio da sua própria família, as poticias causaram impressão igualmente sinistra acerca da força do Parlamento.
Em 21 de junho — como num triunfo romano — três mil homens aprisionã”
dos em Naseby desfilaram pelas ruas de Londres; quem os conduzira até lá fora John Fiennes, filho de lord Saye, que lutara sob o comando de Cromwell.
O Mercurius Aulicus deixou de circular durante várias semanas, provando A: forma inconteste a conf usão dos realistas.!s
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ft
Bem diferente do duvidoso sucesso de Edgehill e da confusa vitória de Marston Moor, desta vez O Parlamento não podia duvidar de que suas preces haviam sido atendidas — tratava-se de um triunfo completo, ao qual se seguira a total reestruturação do exército, sobre cuja eficiência, na falta de uma prova definitiva, nem todos tinham a mesma fé de Oliver. O jornal parlamentar
The Kingdoms Weekly Intelligencer fora bastante cauteloso: os
soldados de Cromwell possuíam pouca experiência, “mas algum exercício lhes dar[i]á competência (...) uma boa causa e um bom coração também
constituem prenúncio de sucesso”. Agora era evidente até que ponto se poderia chegar com essa combinação. Assim, o Parlamento afastou qualquer sinal de arrependimento pela partida de Essex e Manchester ou devido à reorganização geral do exército — que se tornou um benefício mais do que óbvio. A batalha de Naseby deu asas à imaginação: foi o último grande combate da guerra civil em que o rei teve alguma chance de obter uma vantagem insofismável. Comentou-se, mais tarde, e com certa insistência, que Cromwell
teria manifestado vontade de ser enterrado por lá. Batizou-se com seu nome um grande navio lançado ao mar na época do Protetorado. Comovido com a visão da histórica arena, um bispo do século XVIII compôs versos de advertência: Naquele sítio, o infeliz Carlos viu sua sorte desaparecer, Vencidas suas forças e seu Reino perdido... Tristes cenas, que nos darão uma lição proveitosa, Para que uma futura Naseby não se repita facilmente.'
Atualmente, dois monumentos, separados por alguns quilômetros, demarcam
O local das tristes cenas. Erguido em 1823, por “Tord and Lady of the manor of
et Mark de ada estr na by], Nase de s terra das ora senh a e or senh [O Naseby”
Harborough, à saída da cidade, um belo obelisco contém uma inscrição alusiva à decisiva batalha o nd ta re ar ac l, rea sa cau da a rot der a m co te en lm que terminou fata
anos e nt ra du e , ção tui sti con da e ar alt do no, a derrubada do tro rra cida gue e ia qu ar an da es ror hor nos o çã na a est o nd mergulha
der os limice ex a nc nu de ão liç a s ico tân bri s rei aos do an ix vil; de icos, de nunca tân bri s ito súd aos € s, iva gat rro pre tas jus tes de suas rcas. na mo mos íti leg s seu a de lda lea sua de m re ta se afas
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Na verdade, apesar dos admiráveis sentimentos que expressa, esse memorial
está no lugar errado. De acordo com estudos posteriores, certo é o marco colocado um pouco fora da estrada Naseby—Silbertoft, em 1946, sob os auspícios da Associação Cromwell; sua inscrição encerra uma mensagem um pouco mais tranquila: “Perto daqui, Oliver Cromwell liderou a carga de ca-
valaria que decidiu a batalha e a grande guerra civil”. Resta apenas especular se a formação do Exército de Novo Tipo determ inou
o resultado final de Naseby — mesmo que tal clareza não tenha prevalecido na
época — a fim de que possamos avaliar com justiça os comportamentos elogiosos e as condutas negligentes dos atores que desempenharam diferentes papéis na grande vitória do Parlamento. Em primeiro lugar, parece evidente que a sorte da batalha seria diversa caso Langdale dispersasse a cavalaria de Cromwell — realizando, portanto, o oposto do que sucedeu. Ainda que as tropas parlamentares se reorganizassem após a luta, uma debandada produziria efeitos extremamente negativos, do ponto de vista político, sobre a opinião pública em Londres, expondo a sério risco o futuro da nova força militar Em segundo lugar, deve-se dar todo o crédito a Fairfax pelo excelente desenvolvimento da sua campanha anterior, que impediu o monarca de evitar o combate decisivo, em que pese estar numericamente inferiorizado, dada a ausência de Goring. No entanto, nos estritos limites da ação, a glória de Naseby cabe a Cromwell, e desta vez sem qualquer contra-argumento possível, graças à sua habilidade em atacar, reunir a soldadesca e atacar
outra vez. Clarendon comentou com bastante lucidez a diferença entre ele e Rupert: “Embora se mantivessem na ofensiva, desfazendo as fileiras do inimigo,
Os partidários do rei nunca se reagrupavam para um segundo ataque”; os homens de Cromwell, por outro lado, ainda que se considerassem vitoriosos, ou mesmo
na hipótese contrária, jJulgando-se derrotados, eram treinados para “manter a dis-
ciplina até receber novas ordens”
Semanas depois, referindo-se à batalha, Cromwell escreveu que Naseby fora
“uma feliz vitória (...)”. Felizes, sem dúvida, foram as forças do Parlamento, que deram fim a cinco mil soldados da infantaria real — mortos ou capturad os. Além
dos ricos anéis de diamantes e outras jóias encontradas na bagagem de Carlos 1,0
exército vencido perdeu toda a artilharia, pólvora e munição. Sir Henry Slin gsby revela que o soberano suportou a tristeza pelo desastre com sua habitual “têmpera
admirável”: ele nunca se exaltava na prosperidade, nem se diminuía nos reveses, O que era ainda mais elogiável, visto não ter ninguém que o confortasse.'* Todavia, como
tantos outros da desventurada linhagem dos Stuart, seu charme pessoal, transparente aos olhos daqueles que o conheciam, cont rastava lamentavelmente com
uma reputação de trapaceiro, adquirida nas marchas e contramarchas de ne-
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gociações em diferentes frentes. Pilhando seus papéis pessoais, o inimigo constatou que ele estava disposto a fazer concessões aos católicos a fim de receber ajuda
de um exército irlandês. Os documentos mencionavam, inclusive, a vinda de tropas estrangeiras, enviadas pelo duque de Lorena. Pouco importava se Sua Majes-
tade tinha intenção de cumprir as promessas feitas aos irlandeses ou se estava simplesmente barganhando com eles, como já fizera com os líderes do Parlamen-
to — a impressão de dubiedade e má-fé estava presente.
A correspondência do rei foi lida em voz alta, na Câmara do Comuns, e logo em seguida num local de reuniões comunitárias, na City, sendo finalmente
impressa, para que todos pudessem tomar conhecimento do seu conteúdo e unir-se na sua execração. Tida como um triunfo dos “independentes”, Naseby
fortaleceu-os nas lutas internas dos partidos parlamentares, e deles dizia-se que estariam “nas alturas” em Londres.” A feliz vitória engrandeceu ainda mais a fama de Cromwell junto à opinião pública, eliminando a hipótese do
seu afastamento do exército antes do fim da guerra. Imediatamente após a batalha, a Câmara dos Comuns aprovara a permanência de suas funções militares, “enquanto isto desse satisfação a ambas as câmaras”; mal-humorados, os lordes só lhe concederam uma nomeação de três meses, a partir dos quarenta
dias que ele vinha cumprindo, na ocasião, e com o soldo de general-de-exército. No entanto, em 12 de agosto, o Parlamento estendeu o seu período de serviço por mais quatro meses; e em 23 de janeiro do ano seguinte, por mais
um semestre. Em que pese a suspeita dos lordes, Naseby tornou o general Cromwell praticamente isento das exigências do Decreto de Abnegação.
No entanto, o bem-estar geral de seus homens era um problema diferente. Nos meses subsegientes, acirraram-se as divergências entre presbiterianos e “independentes”. Em seu relatório ao presidente da Câmara, o próprio
Cromwell havia antecipado essa possibilidade; o texto contém uma nota bastante nítida de angústia, além de preocupação, ante o risco de se perder
uma chance de concórdia e terminava assim:
serviNesse combate, Senhor, homens honestos é confiáveis vos
jeis. ora enc des os não o: lor imp s, Deu de e nom Em . nte ram fielme ildade Gostaria que essa batalha fomentasse à gratidão e a hum arriscado suas do Ten . nela dos aja eng ram ive est que os entre todos
Fis vidas pela liberdade do país, gostaria que esses homens pela , vós em e , ias enc sci con s sua de sem em Deus, pela liberdade liberdade que tanto almejam.”
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O apelo foi ignorado. Ao imprimir a carta de Cromwell, para divulgação of. cial, a Câmara dos Comuns omitiu deliberadamente tais alusões às Crenças
dos “independentes”.
E claro que nem todos eles pareciam sábios ou tinham temperamento calmo e tolerante. Richard Baxter, na famosa visita que fez aos soldados de
Oliver alguns dias depois de Naseby, ficou horrorizado com o que encontrou — idéias sem pé nem cabeça acerca das relações da humanidade com Crist o, definidas por “sectários exaltados”, numa linguagem cnocante e de humor grosseiro. Pois os soldados, assim como seu general, apreciavam uma brinca-
deira, mesmo em se tratando de questões sérias, e se deleitavam chamando os
presbiters | presbíteros] de priest-byters [mordedores de padres], os divinss [divinos pastores] de dry-vines [vinhas secas], e os Assembly (membros da Assembléia) de dissembles (dissimulados). Sua perspectiva política dos vínculos entre a Igreja e o Estado era ainda mais horripilante: falava-se muito do rei, discutindo-se inclusive a morte daquele a quem consideravam inimigo e tirano. É claro que ninguém supunha que tais lunáticos — ou criminosos — representassem as idéias de Cromwell ou do comando do exército; segundo Baxter, “eles não cogitavam de aderir a nenhum partido, almejando a mais completa liberdade (...)”.2! Ocorre que essa liberdade parecia encobrir uma tolerância generalizada com todos os tipos de perigo. Assim, Baxter integrouse ao regimento de Whalley, decidido a servir como capelão e guiar os homens por melhores caminhos. Não fazia parte dos planos de Cromwell, entretanto, que qualquer capelão comunicasse aos seus guerreiros o câncer do conformismo presbiteriano. Os padres do Exército de Novo Tipo não estavam vinculados a nenhum regi-
mento em particular, podendo pregar — segundo a prerrogativa dos pastores
— à quem, como e quando quisessem, além de participar dos conselhos de
guerra. Tratava-se — exatamente conforme a intenção — de uma organização nada rígida, embora dotada de características marcadamente “indepen-
dentes”. Os honestos combatentes haviam lutado bem, em Naseby, e enquanto permanecessem bons soldados desfrutariam de toda a liberdade de consciência — afinal, fora por ela que haviam lutado com tanta coragem. Sabedor de que Baxter pretendia disseminar um método religioso rígido no exército, coronel Purefoy o advertiu pessoalmente: “Se escutar algu m soldado falando
dessa maneira, Cromwell lhe dará uma pancada no alto da cabeça.”
Superados os dramas de Marston Moor e Naseby, o exérc ito ainda tinha muito trabalho a fazer nos 12 meses seguintes, antes do final da Primeira Guerra
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Civil. À partir de então desenvolveu-se um padrão de cercos, assaltos, vitórias, ao longo dos quais as fortalezas dos partidários do rei foram caindo sucessivamente.
como velas que se Apagar nima aum, Isso estava mais de acordo com o tipo de luta que se travava no início do século XVII. Foi Cromwell quem teve audácia
suficiente para cogitar de matar a cobra de uma vez, mediante um único golpe, em vez de desgastá-la através de uma série de rodeios, pouco conclusivos em geral. Instintivamente, o monarca tendia a empreender combates de posições entre
fortalezas. Cromwell revela-se um expoente também nessa modalidade de combate e, incidentalmente, um soldado muito humano: numa grande quantidade de pequenos eventos, durante as prolongadas operações, vamos encontrá-lo como homem e como militar mostrando bondade e generosidade. Seja concedendo um passe a um certo sr. Chichley, que pretendia visitar a
esposa enferma, e em virtude do que o general viu-se obrigado a apresentar desculpas perante o Parlamento, embora de forma relutante: “Acredito ter
praticado um ato de humanidade (...) prestei um serviço, agindo civilizadamente, e nem tomei nenhuma liberdade, nem espero fazê-lo jamais, apenas julguei que era uma melhor forma de vos servir.” Seja no caso mais controverso de John Lilburne, que ainda não recebera a indenização aprovada pela Câmara dos Comuns, como reparação dos sofrimentos que sofrera perante a Star Chamber [tribunal da Idade Média], e a quem se deviam soldos
atrasados; Cromwell entregou-lhe uma carta de recomendação, juntamente
com uma advertência ao Parlamento, para que fossem cuidadosos e não ignorassem os direitos daqueles que os protegiam no campo de batalha: É. verdadeiramente uma tristeza ver homens que se arruínam por seu afeto e fidelidade ao espírito público, e tão poucos que se preocupam com isso.”2 Fatos assim retratam um homem que não está no comando apenas de si mesmo, mas dos que seguem suas ordens, e cuja confiança dispensa atitudes selvagens ou rudes para alcançar seus objetivos com Sucesso. 0€s no era rec apa des rei o que -se cou ifi ver a, alh bat da Assentada a poeira pas se juntatro s mai que de va ati ect exp na es, Gal de s ira te, rumo às fronte ses oce esc os n, ve Le de o nd ma co 0 sob ão, Ent or. eri riam a ele, vindas do int a terrível for, lan Rag o tel cas no o úgi ref car bus de avançaram, e Carlos I teve u-se que di ci De ta. lis rea do ca di de e co óli cat , ter ces Wor de taleza do marquês
ua tín con a zar rci exo o and vis , ing Gor tra con ia çar lan se x rfa O exército de Fai for a um de e a-s tav tra n; nto Tau tra con te, oes sud no , ha in nt ma ameaça que ele res de alta en am rl pa tos rci exé dos o çã ma xi ro ap a a di pe ça substancial que im ater, por exemplo. No dia 10 de julho,
guns objetivos importantes — Bridgw
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finalmente, Fairfax e Cromwell atraíram-no ao combate, em Lon B Sutton,
próximo a Langport. Foi um risco calculado: tentando escapar à luta, Goring havia se entrincheirado numa posição segura, e o ataque implicava uma cora. josa carga de cavalaria através de uma passagem muito estreita, Existem algumas insinuações de que o Exército de Novo Tip o deve toda a glória que conquistou à sua tática e ao seu treinamento su periores, O que traduzido em miúdos quer dizer: só entrava em combate quando ci rcunstâncias favoráveis lhe asseguravam a vitória. O que a batalha de Lan gport revelou, no entanto, foi a coragem desesperada e o entusiasmo marcial da sua carga, Segundo palavras do próprio Cromwell, o major Bethel lançou-se à frente de 120 homens “com a maior galanteria imaginável, e derrotou [o inimig o] à ponta de espada”; não recuando nem mesmo ante o contra-ataqu e de quatro-
centos cavaleiros, e tendo recebido o apoio do major Desborough, ambos aguardaram que os infantes, “chegando com bravura”, se juntassem a eles. Resultado: dois mil mortos, a infantaria real completamente desbaratada, uma quantidade enorme de prisioneiros e cavalos capturados. Pouco depois, a poderosa fortaleza de Bridgwater caiu em poder das forças parlamentares, acrescentando a seus ganhos um rico depósito de artilharia e munição. “Desta forma, podeis ver a misericórdia de Long Sutton somada à de Naseby”, escreveu
Cromwell, “é o mesmo que ver a face de Deus!”
Em Londres, conforme reminiscências de Whitelocke, houve um domingo
de ação de graças por esse sucesso, e na parte da tarde, em Cheapside, onde antes se erguia uma cruz, queimaram-se crucifixos, quadros papistas e livros. Ca-
bia ao destacamento do oeste acabar com as atividades de alguns expoentes da arte do butim, os conhecidos c/ubmen, que se valiam da total desorganização da lei e da ordem, nas áreas rurais, para protestar contra assaltos a suas próprias
propriedades. Cromwell demonstrou alguma compreensão a respeito a natureza essencialmente primitiva, não militar, dessas “nobres criaturas tolas » tomando o cuidado de evitar um engajamento desnecessário. Foi some nte após ter enviado três mensagens de paz a dois mil desses espíritos turbulen tos,
entrincheirados em Hambledon Hill, perto de Shaftesbury, que ele ordenou 0 ataque, e mesmo assim com certa relutância. Tratando com eles, posteriormente, deu mais ênfase ao seu bom comportamento futuro do que aos delitos que haviam praticado — poderiam defender-se, mas apenas isso.” de vitórias preliminares, a oeste, e dos triunócia, onde Glasgow caiu em 15 de agosto, que se decidiu tent ar o cerco de B ristol. Andava por lá o príncipe Rupert, com pelo menos
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gi
dois mil homens. À peste grassava na cidade, mas todos se sentiam confiantes
na proteção de Deus; realmente, não se registrou um só caso da doença entre as tropas do Parlamento, um sinal admirável da bondade divina, segundo Joshua Sprigge. Fairfax e Cromwell estavam absolutamente seguros de conquistar a cidadela, ainda que Leven tivesse tentado o mesmo, em Hereford, sem sucesso. Numa carta de fraterna simpatia, ambos os comandantes dirigiram-se a ele, reconhecendo as muitas dificuldades que enfrentara justamente por tê-los
ajudado; comprometiam-se a apoiá-lo, quando isso fosse necessário.2% No dia 25 de agosto, Fairfax e Cromwell assinaram um compromisso, garantindo a tranquilidade dos cidadãos de Bristol e suas propriedades, caso se
rendessem. No entanto, o assalto só se desencadeou às 2h da manhã do dia 10
de setembro. Os dois generais se postaram no alto do forte de Prior's Hill,
posição mais conveniente à observação do que segura: no curso da batalha, uma bala passou a apenas “duas mãos de distância” deles. Alguns regimentos, inclusive o do próprio Cromwell, foram inicialmente repelidos; mas após duas horas de bombardeio o Gloucestershire, do outro lado da cidade, cedeu. Justo quando se deram conta de que as chamas começavam a envolver Bristol
— aparentemente incendiada por Rupert — e “temendo vê-la reduzida a cin-
zas, diante de nós”, um corneteiro veio da parte do príncipe, propondo um acordo de rendição, concedido em termos honrosos. Amargamente acusado pelos seus, por ter desertado, na verdade a atitude do príncipe foi sábia; ele partiu com todos os seus homens mais ou menos incólumes ao encontro do rei em Oxford. Mais do que nunca, Cromwell estava convencido de que Deus colocara
uma espada nas mãos do Parlamento, “para o terror dos que praticavam O mal? — só “um completo ateu” não aceitaria a interferência divina, claramente expressa na rendição de grandes cidades, após tão curtos períodos de resistência. Comentando sucintamente o comportamento dos soldados, ele
observou: “Presbiterianos e “independentes, todos mantiveram o mesmo espí-
rito de fé e oração; a mesma presença e a mesma resposta, o mesmo acordo, sem nada que os diferencie: ; pena pena q que em outros lugares seja diferente!””, Ao mandar imprimir esse relatório, e tal como fizera depois de Naseby, a Câma-
ra dos Comuns teve o cuidado de omitir referências polêmicas sobre a falta de unidade religiosa em seu meio. Quanto ao caráter violento de Rupert, em contraste com a reputação de Fairfax € Cromwell, Easta dizer que o povo de
Bristol saiu às ruas, saudando sua retirada aos gritos: não lhe dêem trégua!”
Não lhe dêem trégua,
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Seguiram-se três cercos sucessivos. Devizes foi tomada no dia 22 de se.
tembro. Não houve perdas, pois seu governador optou pela prudência e con. cordou em render-se; muitos estrangeiros encontravam-se na cida de, com
passes para terras distantes e exóticas — Egito, Mesopotâm ia e Etiópia,
Winchester capitulou em 28 de setembro. O segundo dia de bombardeio caiu
num domingo, e Hugh Peter relatou de que forma o respeito religioso e a guerra podiam combinar-se à perfeição: “Passamos o Dia do Sen hor orando e pregando, enquanto nossos artilheiros continuavam atirando (... ).28 Os soldados do Parlamento mantiveram uma rígida disciplina, de acordo com as normas de rendição; acusado de ter participado de saques, um dos hom ens de Cromvwell chegou a ser executado, servindo de exemplo aos demais. Basing House era a última guarnição realista entre as terras a oeste e a capital do país. Fortificada pelo católico fervoroso e mui leal John Paulet, quinto marquês de Winchester, dizia-se que seus porões guardavam um fabuloso tesouro; segundo outros rumores, numerosos padres de Roma haviam
buscado refúgio lá. Desde o início da luta, a fortaleza atraíra devotos perseguidos e partidários do rei, provenientes de outras regiões do sudoeste. Em
virtude da influência do nobre, os chamados papistas constituíam a maioria da população. Na verdade, e ao contrário do que propalavam os puritanos,
pesquisas recentes indicam que eles não costumavam aderir à causa do rei: nos anos que precederam à guerra, Carlos I não os tratara nada bem.” Contudo, sempre que a atitude geral de neutralidade dava lugar à beligerância, à religião não perdia tempo em se armar com uma espada. Foi assim no cerco do castelo de Raglan, no Monmouthshire, e em Somerset, no Lancashire. Situada pouco além dos limites da pequena cidade de Basingstoke e ocupando uma posição estratégica que lhe permitia controlar a principal estrada entre Londres e o oeste, Basing House fora construíd a — em 1530 — pelo
primeiro marquês, considerado então o homem mais rico da Inglaterra. UM
século mais tarde, seus descendentes transformaram o castelo num verdadeiro formigueiro, repleto de bastiões, descrito num panfleto como “o único ponto de encontro de cavaleiros e papistas na região”. Nos doi s últimos anos,
envidando todos os esforços necessários à sua defesa, o própri o lord Winchester chegara a ser ferido em combate. Homem refinado e de muito bom
gosto, ele concedera asilo não somente aos temíveis acólitos do papa; as também ao gravador Wenceslaus Hollar e ção ao monarca tinha algo de sublime — todas as Janelas, inscrevendo “Aimez loyauté” [Amai a lealdade). A mans ão
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são
possuía ares majestosos: rica em jóias, prataria e obras de arte, parecia “destinada à corte de um imperador”, segundo palavras de indesejável admiração de um capelão de Cromwell perante a Câmara dos Comuns. Contudo, esse sincero, franco e honesto cavalheiro vira chegar para si a hora da verdade. Cromwell ordenou às suas bocas-de-fogo martelar um lado das muralhas, enquanto o coronel John Dalbier, ex-comandante de um dos regimentos de cavalaria de Essex, iniciava canhoneio equivalente no outro. Oliver dispunha de cinco “grandes canhões”, dois deles com cargas de 11 quilos, provavelmente, e pelo menos um em condições de disparar projéteis
de 22 ou 23 quilos, afora as colubrinas, que carregavam balas de sete quilos. Típicas da eficiente artilharia de cerco do Exército de Novo Tipo, essas peças já haviam demonstrado seu valor: em Sherborne, os canhões de Fairfax abriram buracos nas muralhas depois de dois dias de bombardeio, e de acordo com Hugh Peter, no caso mais recente de Winchester, em apenas um dia, uma brecha suficientemente ampla para que trinta homens passassem por ela, ombro a ombro. Em Basing House não tiveram menos sucesso, cumprindo a dura profecia do que estava por vir. A ordem de ataque foi dada ao amanhecer da segunda-feira, 13 de outubro. Cromwell passou a noite anterior orando, e ponderou muito sobre um texto do Salmo 115, que se refere a ídolos — “aqueles que os constroem se identificam com eles, assim como todos os que neles confiam”. O assalto teve curta duração, mas muito sangue correu: terminantemente, os católicos recusaram todas as propostas de rendição, e John, marquês Winchester, não quis pedir quartel. Diz-se que foi capturado com o rosário nas mãos, dentro de um forno de padaria, e que Inigo Jones teria sido carre-
guarda quarto Um coberta. numa envolto apenas nu, amente complet gado, nição pereceu, nobres inclusive, além de seis padres católicos e uma mulher.
Comprovou-se que um dos oficiais mortos media 2,75m de altura — pelo menos foi o que Hugh Peter disse ao Parlamento, talvez num relutante tribu-
hoto à galanteria dos defensores. Dessa vez Cromwell não impediu que seus mens participassem do incrível butim. Diante da casa em chamas — iniciadas
ain, marquês o — joviais soldados de bandos por da devasta adega, talvez na
da desafiador, berrou que “se o rei não tivesse mais nenhum lugar
e Ingla-
Levaterra, como Basing House, ainda assim a luta prosseguiria, até 9 finalP. ambos — menores filhos dois seus com nte juntame do à Torre de Londres,
gaele —, o ent lam Par do em ord por nte, esta prot o cred no s ado cri Seriam como a lend à sou pas se Hou ing Bas e ”, imo íss del “Fi nhou o apelido de
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Loyalty House [Casa da Lealdade]. Cromwell, porém, não ex Perimentoy maior emoção nessa surtida. No comando das operações, não lh € cabia lide.
rar o cerco, embora Denzil Holles o tenha acusad o de covarde, dizendo que
ele se escondera “atrás de uma cerca, a uma grande dis tância, fora do alcance
dos tiros”. Sua recomendação de que a fortaleza fosse derrubada baseou-se
em considerações estratégicas. Basing House ficava em campo aberto e fazia mais sentido guarnecer Newbury, centro de provisões; de um Jeito ou de outro, os cavalheiros do Hampshire e Sussex contribuiriam com muito mais boa vontade para uma guarnição em suas fronteiras do que “em seus intestinos”22
Enquanto Fairfax e Cromwell conduziam aquela custosa mas efetiva sequ ên-
cia de cercos, os canhões políticos de Westminster continuavam a disparar, fu-
riosamente, produzindo quase o mesmo barulho, se bem que com resultados menos tangíveis. No outono, os escoceses, descontentes desde Naseby, decidiram firmar a paz com o rei. Na segunda semana de outubro, seus representantes encaminharam uma lista de propostas a serem estudadas pelo monarca, solicitando que Carlos I aceitasse um acordo sobre a Igreja, a ser discutido pelos Parlamentos e Assembléias de ambos os reinos — em resumo, um pacto que mantivesse o sistema presbiteriano. Naturalmente, os “independentes” não gostaram nada da idéia, que lhes imporia uma estranha e deplorável observância religiosa. Na verdade, esse ajuste não tinha nada a ver com a anterior e mais tolerante lei de Acomodação, inspirada por Cromwell, um ano antes, e que desde o início de novembro fora revogada pelos lordes — não
passava, segundo eles, de um gesto de concessão às “consciências delicadas + Desde então, e em oposição aos presbiterianos, os “independentes” tinham se declarado favoráveis à total liberdade de consciência. No entanto, à questão não seria motivo de lutas imediatas, pois a ajuda militar escocesa Je essencial aos planos que previam a derrota do rei, antes de qualquer discussão com ele. Carlos I continuava a negociar com os irlandeses cató licos, e apesa!
das graves suspeitas do núncio papal, que questionava a boa-fé do soberano ,
um tratado irlandês chegou a ser assinado, no outono, motivando igual desconfiança por parte dos ingleses protestantes. Em meio a tantas e tão desagradáveis complicações, Westminster conseguiu estabe lecer uma espécie de
harmonia entre os adeptos de ambas as facções e encaminhar ao rei um novo
conjunto de propostas, baseado na estrutura social existente no país: have r ja
dois ducados, para os lordes puritanos Essex feito marquês; Jord Fairfax receberia um co e Warwick; Manchester sent? ndado; Denzil Holles se tornari?
E”
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visconde; Thomas Fairfax e Oliver Cromwell, barões. O esquema previa, além disso, generosas recompensas monetárias a serem pagas, anualmente, ao
comandante-em-chefe, Fairfax — cinco mil libras —, a Cromwell — 2.500 libras — e a Skippon — mil libras. Rejeitadas essas proposições, a solução militar acabou se sobrepondo.
Cromwell não recebeu nenhuma renda ou baronato, embora provavelmente
os aceitasse de bom grado, assim como Essex e Holles não recusariam o que se previa para eles. Especular sobre o que poderia ter acontecido é interessante, pois mais ou menos na mesma época os “independentes” cogitaram de retirar-se em bloco, rumo à Irlanda, presenteando o rei com o Exército de
Novo Tipo e as fortalezas; atualmente, a idéia pode parecer espantosa, considerando o comportamento futuro de Cromwell por aqueles lados, mas enqua-
drava-se bem nas fortes tendências migratórias dos primeiros puritanos — seu desejo de fundar em outro lugar, que não a Inglaterra, o perfeito Estado de Deus, onde se pudesse praticar livremente a religião, conforme a vontade individual. Visto o toque de quase irrealidade que tem, para nós, o espetáculo de uma Nova Irlanda, paralela a uma Nova Inglaterra, povoada por gente como Cromwell e Vane, não significa que na imaginação contemporânea isso fosse uma completa quimera. Não podemos esquecer seus frequentes gestos no sentido da imigração, particularmente em momentos de intensa coação religiosa. Sir: Hardress Waller afirma terem discutido o assunto, e que na ocasião Oliver teria dito: “O espírito insiste nesse caminho.” Talvez quisesse apenas apoiar Munster, mas o nobre chegou a sugerir que ele poderia ser in-
dicado lord deputy da Irlanda.”
Se acabou afastando da cabeça a hipótese de uma Irlanda Puritana, as
perspectivas de recompensa pelo seu trabalho militar tornaram-se cada vez mais brilhantes. No final de 1645, Cromwell dera prosseguimento à campa-
nha com Fairfax, e após uma temporada excepcionalmente curta, em aquarte-
lamentos de inverno, retornou a seu posto na região oeste, no início de janeiro. Aí ficou sabendo que o Parlamento aprovara uma dotação anual de 2.5 00 libras a seu favor, tendo em vista “seus abnegados e fiéis serviços, mais qui-
nhentas destinadas à compra de cavalos e móveis. Houve complicações no pagamento, dada a intenção de se utilizarem as propriedades do marquês de
Winchester, no Hampshire, mas finalmente tudo se arranjou, graçãs à
Grés pu as outr te ian med a ivad efet ão taç men comple de Wi Worcester, em Gales. Além ng uentes”, inclusive as do marquêses de Ilinq =
de guerra,
ele estava
se tornando
um
homem
dotado
E
ia = de herói E
de substância material;
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felizmente, pois breve se veria diante das despesas tão tradicionais quan to
imprevisíveis que qualquer pai de numerosas filhas tem que encarar, na forma de contratos de casamento e dotes. Foi Bettie, sua filh a favorita, então com apenas 16 anos, quem primeiro contraiu núpcias — Bridge t, seis anos mais velha, ainda era cortejada por Henry Ireton. O enlace de Bet tie com John Claypole, do Northamptonshire, no dia 13 de Janeir o, na Igreja da Santíssima
Trindade, em Ely, realizou-se na ausência do pai da noiva, € o contrato que lhe atribuía um dote de 1.250 libras só foi assinado dois mes es depois » provavelmente pela mesma razão.” A juventude de Bettie e a pressa do casamento tornam plausível que o casal estivesse apaixonado. Os manuais puritanos da época, rechea dos de sábios preceitos sobre a vida familiar, são curiosamente modernos na ênfase que conferem à necessidade do amor mútuo, mesmo nos matrimônios arranj ados, visto que “o afeto deverá perdurar eternamente, como tudo que é bem colado”. À partir de então, eles sempre estiveram “bem colados”. John Claypole era filho de um vizinho e velho amigo de Oliver Cromwell, que vivia em
Northborough, perto de Peterborough, a cerca de cingiienta quilômetros de Ely — John Claypole, pai, foi um dos que se recusaram a pagar o dinheiro
de navio. Definido por Lucy Hutchinson como um “devasso é pecaminoso cavaleiro”,** seu rebento costumava atrair as mulheres,* e, embora diferente de Henry Ireton, isso não significava que seria mau companheiro para à charmosa e extrovertida Bettie, tão distante da sóbria Bridget. Enquanto à mais velha preocupava o pai em virtude de escrúpulos religiosos, a mais nova
o apoquentava pela frivolidade que ela mesma admitia.
.»
Alguns meses depois do casamento, Oliver relatou a Bridget que a irmã
“encontrava-se em estado de perplexidade, absorvida com a própria vaidade € fantasias sensuais, mas lamentando-se por causa disso; ela está à cata de algo
que possa satisfazê-la — espero que encontre”. Não há razão para que duvidemos das palavras de Cromwell, segundo o qual Bettie tentava colocar limis
tes à sua “mente carnal”, mas sobrou vaidade bastante, tanto que ao surglf ô ocasião ela adotou fácil e alegremente a postura de filha de um homem IM” portante. No entanto, ainda que sem uma absoluta perfeição moral, o pai 2 amava ao extremo. Seus olhos oblí; quos, seu delicado rosto oval — capaz ú e conter o pronunciado nariz dos Cromwell e ainda ser atraente —, sua boca *Após a prematura morte de Bettie, ele se casou novamente, e no fim da vida sua afeiG o de disputa à
entre a s egunda
.
mulher e uma lavadeira com quem vivia.
e
ão
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1a
pRqnenA Cana botão de rosa, os abundantes cabelos castanhos, a brilhante tez inglesa, tudo isso poderia se dizer de uma querida “Eliza”, descrita por Marvell como “amada sua e da natureza”.
No dia 8 de janeiro de 1646, sob uma forte nevasca que impedia a continuidade da luta contra sir Ralph Hopton, a oeste, Cromwell reuniu seus homens em Crediton, no Devonshire. O primeiro combate que haviam travado
naquela campanha fora quase uma farsa: comandando um ataque de surpresa
contra o quartel-general de Jord Wentworth, em Bovey Tracey, cerca de 22km ao sul, ele surpreendeu os oficiais inimigos jogando cartas. Numa cena digna
de Moliêre, os soldados do Parlamento atiraram-se sobre o dinheiro das
apostas, que os realistas com muita presença de espírito tinham atirado pela
janela. Na árdua disputa que se seguiu, eles conseguiram escapar pela porta dos fundos. Assim mesmo, foram aprisionados quatrocentos cavaleiros e um major — provavelmente menos ágil do que os outros. Tavistock foi tomada dois dias depois. A verdade é que mesmo naquelas bandas o moral dos partidários do rei declinava rapidamente, e o próprio Fairfax escreveu a seu pai que bastavam três casacos-vermelhos para afugentar uma centena de adversários. O Devonshire estava inundado de recrutas dispostos a aderir ao vitorio-
so estandarte parlamentar. Em Totnes, os homens tinham o privilégio de ouvir o próprio Cromwell. Ele lhes falava a respeito do futuro em termos otimistas: “Nós viemos trazer a vocês liberdade (...) e paz, além de fartura.”* A paz, sem dúvida, não estava longe, mas as perspectivas de fartura eram problemáticas. Hopton resistia bravamente; suas provisões, porém, escasseavam,
enquanto diminuía o entusiasmo dos soldados. No dia 2 de março, o príncipe de Gales partiu em direção às Ilhas Scilly, e no dia 14, em Exeter, o exército
de Hopton assinou os termos da capitulação.
Os realistas defendiam-se ainda na sua capital, Oxford, onde o rei se homiziara, juntamente com seus filhos menores, nã companhia dos príncipes Rupert e Maurice. Fairfax enviou contra esse derradeiro bastião uma guarda
os avançada de cavalaria. Mais tarde, ele escreveu a Clarendon que “todos
dias chegavam
notícias da queda de outra guarnição
[realista ] », Newark,
ameaça constante à Associação do Leste, desde os primeiros dias da guerra, rendeu-se no princípio de maio, obedecendo às ordens de Sua Majestade. Às fortalezas restantes eram como castelos de areia dos quais o mar se afastara. à relatou Cromwell abril, de 22 Em Westminster. para O palco deslocara-se Câmara dos Comuns os detalhes da rendição de FHopton; no dia seguinte re-
cebeu agradecimentos formais pelos esforços que dispensara à causa parla-
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mentar. Seu movimento posterior antecipou tensões políticas que as comple. xas possibilidades da paz fariam eclodir — que tipo de enten dimen to poderia ser estabelecido? em que termos? beneficiando a quem? No dia 24 de abril, Henry Ireton fez chegar a suas mãos uma carta do rei, expressand o desejo de negociar. Imediatamente, ele denunciou o portador por tê-la entregue em ca. ráter privado e leu -a em voz alta perante o Parlamento, a fim de enfatizar a lealdade do exército. O fato de Ireton ser seu amigo íntimo, e dev ido ao contrato de casamento de sua filha ter sido assinado na mes ma data da denúncia,
deu maior relevo à posição assumida por Cromwell.º Enquanto político, ele começava a substituir o soldado. Ão cabo do conflito, no entanto, em seu próprio partido e entre os homens que tinham servido sob suas ordens ele era visto como um mag nífico
general, mais do que um grande orador ou firme negociador Do ponto de vista estritamente político, faltava-lhe proeminência, particularmente por ele ter se mantido ausente de Westminster nos anos anteriores. Sua reputação militar, sim, atingira enorme dimensão: o povo creditava-lhe a responsabilidade pelas grandes vitórias que haviam demonstrado as bênçãos do Senhor. Mais tarde, John Owen, seu capelão, conclamaria: “Onde está o Deus de Marston
Moor e de Naseby?”* Ser identificado com tais gloriosas manifestações da Providência não faria mal a ninguém.
No tocante a esse entusiasmo, os soldados que o conheciam pessoalmente não ficavam atrás; seria impossível compreender grande parte da influência que
ele veio a exercer sobre os turbulentos espíritos militares sem levar em conta à posição que alcançara em sua estima, no final dessa primeira fase da guerra. Além de uma magistral visão tática, Cromwell possuía o rude magnetismo que transfor-
ma um brilhante general num grande líder De alguma forma, entre seus homens, ele era um personagem maior do que a realidade, capaz de incorporar com ro
ralidade suas paixões ou brincadeiras. Sabemos que amava um “gracejo inocente »
A caminho da crucial batalha de Dunbar, parou para rir quando viu alguns solda-
dos se divertindo — um deles besuntava à cabeça de outro com creme de leite.
As marchas se faziam ao som de canções, e não somente salmos. Sentados ao ré dor das fogueiras, nos acampamentos, mascando tabaco, tocando pífaros e cítaras, entoando cantigas indecentes — os puritanos tinham razão em considerá-las ssim —, OS praças contavam com a tolerância de seu comandante. Numa discussão surgida entre um cap itão e um coronel acerca de uma dessas toadas, e qué terminou num tipo de co rte marcial, Oliver propôs
parando-os em dois destacamentos difere ntes?
uma solução salomônica, St
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gs
Essa empatia — verdadeira capacidade de identificação com os entretenimentos e prazeres de homens comuns — convertia-se naturalmente em popularidade e lealdade. Nada se distanciava mais da sua “forma rústica de se comportar”, divertindo-se à vontade entre seus soldados, do que à imagem sombria do puritano desmancha-prazeres. E não havia nada parecido com relaxamento. Certa vez, ele e Ireton foram detidos pelos guardas encarregados
de vigiar o acampamento; a princípio, o capitão recusou-se a acreditar quando deram seus nomes. Ireton zangou-se um pouco, mas Oliver, sorridente, elogiou-lhe o zelo e deu vinte shillings para que distribuísse aos demais integrantes da patrulha. Mais tarde, todos confessaram saber perfeitamente quem eram aqueles “grandes homens”, alegando estarem determinados a provar ri-
gidez, na suposição de que Cromwell os estaria pondo à prova.*! Sem dúvida, eles se reconheciam mutuamente, A imensa alegria que Cromwell costumava demonstrar durante as cargas de cavalaria foi descrita por Richard Baxter de tal forma que poderia sugerir,
numa linguagem mais moderna, as características de um maníaco: “Ele tinha a vivacidade, hilaridade e entusiasmo de quem tivesse bebido uma taça de vinho além da conta.” Esse bom humor contagiava. Excitava muito cavalgar com os casacos-amarelos do Exército de Novo Tipo, e atirar-se na batalha, empunhando uma lança, aos gritos de “Deus e nossa força”, vencer guarnição após guarnição, e sentir, afinal, que a força era recompensada. Depois disso, só restava recompensar o general com admiração e inclusive amor. Carrington escreveu que ele “amava seus soldados como a seus filhos, estando permanentemente preocu-
pado com a satisfação de suas necessidades”.*? Havia entre eles uma real afeição — naquele ano, ela seria testada. Enquanto isso, a arruinada facção do rei perdera quase toda a alegria. 8 rainha, Retoricamente, Clarendon perguntava ao soberano: “Que fazer?” sua esposa, estava na França, e o príncipe de Gales, seu filho mais velho, nas
ilhas Scilly. Quase sem generais e com tropas reduzidíssimas,* Carlos I vinha
tentando negociar com os escoceses secretamente, valendo-se dos préstimos
do embaixador francês. Finalmente, no dia 27 de abril, ele escapou de
E New ark . em depo is, sem ana uma esco cês Oxford, alcançando o exército € Crom well envi ou Fair lá fax para e man se tin ha, aind a por ém, antiga capital,
Ea um de atra vés venc ê-la pud ess em que de expe ctativa seus homens, na
Foi, portanto, em Oxford, no dia 15 de junho, sob o teto de lady
em Holton, onde se localizava 0 quartel-general, que o casamento Ireton e Bridget Cromwell se realizou.
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de
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Os nubentes — ambos de natureza conscienciosa — contavam 32 anos e 22 anos, respectivamente. Bridget, donzela puritana, tímida e muito Caseira apesar do seu bonito cabelo castanho tinha o longo nariz característico da fm: lia num rosto comprido e — herança paterna — olhos encimados por pesadas pálpebras, traço masculino demais para ser assimilado a uma beleza feminina,
Interessada principalmente no estado de sua própria alma, convinha bastante a Henry Ireton. Até mesmo Lucy Hutchinson admitiu sua “piedade e humildade”, destacando-a como a menos arrogante dos Cromwell. Ela vivia “em busca de Cristo”. No entanto, Oliver se preocupava com sua “querida Biddy”, Na velhice, ele se sentiu compelido a adverti-la, embora carinhosamente, para que
fosse mais alegre, evitando “um espírito acorrentado”, apoiando-se mais no amor e comparando “a voz do medo” — tivesse eu feito isso, ou evitado aquilo, que bom teria sido — à voz do afeto, que clama com maior confiança: “Qual é O Cristo que eu trago dentro de mim (...)? Ele é Amor — livre, imutável, infinito."** Talvez Ireton tenha manifestado mais simpatia ante os escrúpulos reli-
giosos da esposa, e visto ele ser consideravelmente mais velho, algum tipo de apoio em substituição à dependência que ela tinha do pai. O amor entre os dois seguiu um curso suave, mesmo que não inteiramente livre de preocupações. Meses mais tarde, Cromwell escreveu à filha em termos gentis e instigantes, desculpando-se por não dirigir a carta ao chefe da família: em parte, para evitar problemas, visto que “uma linha que eu redija corresponderá a muitas linhas dele, o que sem dúvida irá fazer com que fique acorda-
do até muito tarde”. Ao mesmo tempo, ele a trangúilizava sobre algum tipo de escrúpulo referente à essência do amor divino e do amor conjugal: “Querida do meu coração, prossiga; não deixe que nada, ou nenhum marido, esfrie teu amor
por Cristo. Espero que ele [Ireton] represente mais uma ocasião para inflamar esse amor, posto que não há nada mais digno de amor nele do que a imagem ds Cristo que carrega.” O casamento, celebrado por Dell, capelão de Fairfax, deu
ao casal o arrendamento de uma fazenda em Ely. Tudo indicava que muito em breve Ireton poderia dedicar-se a ela. O fato daqueles dois dedicados soldados terem afinal proposto e consentido no enlace representava o sinal mais evidente de que a guerra estava se aproximando do fim.
Oxford se rendeu em 20 de Junho e a guarnição abandonou a cidade qua-
tro dias depois. Os termos da capitulação, como em Exeter, foram generosos. Cromwell podia encerrar o comand o que o Parlamento renovara po r mais seis Meses, em janeiro. Estava che
Eta soa 8 Brigando entre si Vocês fizeram seu trabalho e, agora, podem se divertir, a menos que prefiram brigar entre si. LORD AsTLEY, ao ser detido pelo Parlamento em 1646
12 meses que se estenderam a partir do verão de 1646 constituem por assim dizer um divisor de águas na história da Inglaterra. Contrastando com as glórias militares dos quatro anos anteriores, Oliver Cromwell iniciou esse período mergulhando na vida civil. Uma de suas primeiras iniciativas foi trazer a família de Ely para Londres. Deixando a rua Long Acre — enquanto permaneceu ali o custo de vida subira, e a ajuda que ele dava aos pobres passou de dez a 14 shillings —, a família ocupou uma casa na relativamente O:
próxima rua Drury Lane. Não se sabe o lugar exato, mas era perto da Red
Lion [Leão Vermelho], famosa taberna de Holborn, local de importantes
reuniões, segundo os anais da época. Recentemente urbanizado, entre a City e Westminster, o bairro tinha características essencialmente residenciais,
sendo bastante adequado a um homem do status de Cromwell. Uma geração jardins, numerosos seus a referira-se Herball, de autor Gerard, antes, John onde flores silvestres cresciam em profusão. O gosto tipicamente inglês pela jardinagem, assinalado pelo filósofo puritano Samuel Hartlib, enrique-
cia a natureza: os jardins de Londres estavam repletos de rosas — almiscaradas, carmesins, adamascadas — além de peônias e até mesmo groselhas. Vinhedos floresciam nos campos de Leicester; havia grandes olmos nos Jar-
e has tan cas s, figo , ras amo n bor Hol de a volt em e rt, dins das Inns of Cou Cerejas.!
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Graças às excelentes dotações concedidas pelo Parlamento Oliver podia
considerar-se um homem de posses. Na prática, porém, essas rendas Costuma. vam atrasar — na primavera de 1648, ele declarou só ter recebido 1.680 li. bras; por isso seu nome aparecia constantemente nos livros de contabilidad e
do Exército de Novo Tipo, mesmo após ele ter se afastado, oficialmente, em julho. A pesquisa dos registros mostra vários pagamentos autorizados por Fairfax, inclusive um de 23 de novembro, por 120 dias de serviço, correspondente ao soldo de general da cavalaria; em dezembro, Cromwell recebeu um
vultoso adiantamento de quinhentas libras, devidamente deduzido de seus
ganhos no exército.* No entanto, sua patente militar extinguira-se e não fora
renovada, tornando-se honorária: os estipêndios que recebia nada mais eram
do que uma forma de cobrir as deficiências do Parlamento. Lendas estranhas
cercam seu nome. Diz-se, por exemplo, que ele construiu Cromwell House, em Highgate — hoje, parte de um hospital —, dando-a de presente a Bridget por ocasião do casamento. No entanto, em 1646, ele não estava em condições de fazer isso e, de fato, não o fez.? No final de 1647, mudou-se com a família mais uma vez para King Street, em Westminster, entre Charles Street e Great
George Street — ao lado da atual Parliament Square. O local desapareceu após o alargamento da Parliament Street, onde se situam os prédios do governo. Obviamente, é muito mais próximo ao Parlamento do que Holborn, e a mudança terá sido um reflexo da crescente vida parlamentar de Cromwell. Na guerra recentemente concluída, Londres, que na rude descrição de Thomas Hobbes possuía “uma grande pança e nenhum paladar, nenhuma sensibilidade para distinguir o que é certo ou errado”, demonstrara tino suficiente a ponto de levar sua própria defesa muito a sério: armadas com peças de artilharia, ergueram-se fortificações em torno de pontos estratégicos, como Tothill Fields, e nos arredores do atual palácio de Buckingham, chamado
Spring Gardens, em 1647; Mount Street era o nome que se dava a uma parte
desses baluartes,” aparentemente desnecessários aos olhos da população, cujo estado de espírito beirava o caos. Durante o conflito, a enorme incom-
preensão revelada pela maioria dos ingleses foi um corolário da sua índole
bairrista; as grandes disputas — quaisquer que fossem — tendiam a ser ré
solvidas em pequenas batalhas, opondo inimigos locais já conhecidos. A cã-
pital do país resumia a inquietação generalizada diante de uma paz que não trouxera de volta os antigos valores, nem mesmo o tipo de continuidade eX *Ver G. E. Aylmer, Was Oliver Cromwell a Me mber of the Army in 1646-7 or Not?
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pressa pela Corte. Em The General Eclipse [O eclipse total], expressando melancolicamente a perda da beleza e da elegância de uma era desaparecida, O poeta Cleveland referiu-se, em 1645, às Damas que fazem rubra a brilhante manhã E cujos reflexos corrigem seus raios... Quem sois, agora, que a Rainha se foi? Como que seguindo as ordens do Parlamento para disseminá-lo, a névoa
fria do puritanismo estendia-se sobre a cidade: considerado tolice papista, o
Natal foi proibido; em 1646, a Câmara dos Comuns cumpriu com suas obri-
gações, trabalhando normalmente nesse dia. Na primavera seguinte, perdidos os feriados implícitos nos festivais da Igreja, os aprendizes encaminharam
uma petição solicitando a criação de “dias de jogos”, todos os meses. Londres estava cheia de descontentes de todo tipo. A falta de uma Corte refletia a falta do rei, que optara por tornar-se prisioneiro dos escoceses. No que se refere à posição de Sua Majestade, beira o
ridículo que a guerra — ou a grande rebelião, como diziam seus partidários
— tenha definido tão pouco. Fracassadas as tentativas anteriores, Os acordos políticos permaneciam pendentes. Arrastava-se à definição dos direitos do monarca em face do Parlamento e do Parlamento em face da nação, como se Marston Moor e Naseby jamais tivessem sido travadas. O primeiro esforço as chamadas do quan , julho em eu ocorr ico polít o vácu esse r nche pree para evidente Propostas de Newcastle foram apresentadas a Carlos I. Sinalizando a asas maioria parlamentar dos presbiterianos, cogitava-se de aparar bastante as o tempo que se mesm ao , dores segui cados desta mais seus punir e ano do sober imos próx pelos to amen Parl do ole contr o sob pretendia colocar o exército pelo o ençã conv da o ment jura O íam inclu iosas relig ulas vinte anos. As cláus
de acordo culto, do ma refor a e opado episc do ção aboli a os, súdit rei e seus em res Pasto de ia mblé Asse à da ulta cons com a vontade do Parlamento, esque o mesm , hante semel algo ar aceit ia poder s Westminster. Carlos I jamai as rar explo de u trato ele , perar deses se de tivesse ix extremis. Contudo, longe nho de ser aprisionado, à cami Ao s. sário adver seus entre possíveis dissensões un am fizer s “Você ente: profeticam res, capto aos ra disse y Astle rd, Oxfo Sem si. entre r briga ram prefi que ser não a balho, e agora podem brincar, ano Ras nissober O sto, propo era lhe que o acord o descartar de imediato
prova well, Cromv ndo segu — ica genér sta respo uma dado ter so, daí
da sua
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tendência à prevaricação e total incapacidade de assumir um compromisso, Distante das negociações, Oliver continuava tolerante; nesse mesmo período,
fez apelos amigáveis em defesa de alguns pobres habitantes de Hapton, ao sul
de Norwich, perseguidos em virtude de suas convicções. “Não importa como
o mundo possa interpretar isso”, escreveu ele, “não me envergonho de pedir
por todos aqueles que sofrem pressões deste tipo, seja onde for, fazendo em
relação a eles o que certamente fariam em relação a mim (...).”* Pequenos gestos de boa vontade, entretanto, eram muito pouco para o homem que tinha sido ovacionado como o mais glorioso dos generais: enquanto na Câmara dos Comuns os presbiterianos impunham suas posições, seu ânimo se esvaía e ele se sentia cada vez mais deprimido, muito longe da exaltação triunfante da campanha militar. Em agosto, já em desespero, escreveu ao seu antigo comandante, Fairfax, que retornara a Bath, depois de conquistar o castelo de Raglan: “Se as coisas não vão bem na Escócia, de que forma poderiam ser diferentes na Inglaterra! Há muito sectarismo, ou algo pior.”* De fato, no verão de 1646, a sombria análise de Cromwell parecia correta, inclusive no tocante ao terceiro domínio de Carlos I — a Irlanda. Os escoceses mantinham uma posição relativamente simples: o rei continuaria com eles até que fossem pagos: só então voltariam à sua terra. Sem dúvida, boa parte dos
ingleses desejava mesmo que esses turbulentos aliados desaparecessem de uma vez — aliados potenciais dos presbiterianos, os “independentes” os viam como oponentes. Por outro lado, o vulcão irlandês começava a dar sinais de estar prestes a explodir, o que certamente provocaria sérias reações na situação política da Grã-Bretanha, Durante o conflito civil, tanto o rei quanto o Parlamento haviam dedicado quase nenhum empenho às suas respectivas campanhas na Irlanda — ambos os lados desejavam a paz, naquelas bandas, para poderem se guerrear mutuamente. No entanto, a existência de vários exércitos irlandeses autônomos
ã
, uma dessas forças obe-
decia ao comando do conde de Ormonde, chefe da grande família anglonormanda dos Butler, dono de grandes propriedades em Kilkenny, um homem de prodigiosa energia, cujo cabelo amarelo pálido lhe acarretara o apelido de
James, o Branco; certa vez, diante de um retrato seu, Cromwell obse rvou que
ele mais parecia um caçador do que um soldado. Súdito leal do seu rei, ele conseguira estabelecer uma tênu e aliança com Owen Roe O'Neill, líder dos católicos confederados, seguidores do lema heróico “Irlanda unida por Deus, pelo rei e pelo País”. Internamente, porém, estavam em desavença . Havia "
E
a)
*
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ainda à tropa do cardeal Rinuccini, legado papal, mais interessado na restauração do catolicismo, e duas protestantes — a dos escoceses, chefiados por Munro, derrotada por O'Neill na batalha de Benburb, em junho, e o exército
oficial do Parlamento, sob o comando de sir Charles Coote. Ormonde fizera a paz com os confederados em 1646, mas o cardeal, em-
bora dotado de uma típica sutileza italiana, pouco entendia da realidade à sua
volta — ele fez com que as ordens do Lord-Lieutenant do rei Carlos I fossem recusadas pelo clero.” Temendo perder o controle da situação para os irredutíveis católicos, e sabendo que o monarca não estava em condições de ajudá-lo, Ormonde pediu ajuda ao Parlamento. A solicitação obteve o apoio dos “independentes”, dispostos a enviar alguns regimentos do Exército de Novo Tipo à Irlanda. O comitê encarregado do assunto, porém, decidiu de modo diferente — Cromwell, sempre interessado nas questões irlandesas, contou os votos a favor, enquanto Holles e Stapleton, zelosos representantes presbiterianos, verificaram quem se opunha — e resolveu enviar recrutas especialmente convocados. Furioso, Oliver escreveu a Fairfax, queixando-se de que a tarefa fora atribuída a um exército que sequer existia, deixando ociosa à excelente máquina militar inglesa. Em setembro, a morte do simpático e muito popular conde de Essex aju-
dou a levantar o moral dos “independentes”. Espíritos dissidentes rondavam seu magnífico funeral, na abadia de Westminster. À noite, a efígie em cera do representante presbiteriano, vestida com o casaco amarelo e as calças escarlates que ele usara em Edgehill, foi esfaqueada; a espada desapareceu.” No outono, Oliver desenvolveu uma atividade parlamentar intensa, mas de parcos resultados. No caso do Grande Selo do Parlamento, símbolo da supremacia
do rei ou da Câmara dos Comuns, ele saiu vitorioso; com apoio de Vane,
conseguiu que a custódia ficasse com os presidentes de ambas as Câmaras. O acordo com os escoceses foi assinado no dia 23 de dezembro. O nome de Cromwell era o nono entre os 13 ingleses que o firmaram; Haselrig e Stapleton também o fizeram — chamou atenção a ausência de sir Henry
Vane. Fairfax soube do fato com 48 horas de antecedência, por intermédio de Oliver, que aproveitou a oportunidade para descrever a insatisfação da City
com o exército.” Mediante o pagamento de quatrocentas mil libras, as tropas
escocesas se retirariam do norte da Inglaterra. Mesmo sem nenhuma menção
no texto, estava implícito que o rei seria entregue ao Parlamento, e tomaramse providências para seu aprisionamento. Após alguma discussão, resolveu-se que o local mais adequado seria Holdenby Hall, construído pelo favorito da
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rainha Elizabeth, Christopher Hatton, no Northamptonshire. O monarca
chegou a esse fantástico amontoado de rorrinhas, cheias de chaminés, no dia 16 de fevereiro de 1647. A decisão não teve apoio unânime. Os soldados escoceses deixaram Newcastle debaixo dos insultos da população, que os chamava de “judeus”, porque tinham vendido o rei e a honra — os oficiais ingleses foram obrigados a coibir as mulheres, que pretendiam apedrejá-los. Sua retirada, que no ano ante-
rior significara uma ligeira melhora na situação dos “independentes”, agora refletia o firme controle parlamentar em mãos dos presbiterianos. Só faltava dissolver o Exército de Novo Tipo e persuadir seus remanescentes defensores
a partir para a Irlanda. Desde o início do ano, Ormonde abandonara o plano
de conciliar o núncio papal com os parlamentares protestantes. Em carta de 20 de fevereiro, ele apresentou sua demissão incondicional, como lordlieutenant, reivindicando apenas garantias de segurança pessoal. Assim, a guerra na Irlanda tornara-se uma responsabilidade exclusiva do Parlamento, que felizmente dispunha do instrumento apropriado.
À força expedicionária não seria permitido o luxo de opiniões próprias: an-
tes de mais nada, todos os seus oficiais deveriam assinar a Convenção. Na prática, essa castração do exército “independente” não seria tão fácil. A cúpula parlamentar parecia surda aos gritos bem menos espirituais do que “Deus e nossa força”, ignorando a disposição cada vez mais desagradável dos soldados, atentos a necessidades fundamentais, principalmente o pagamento do soldo. No dia 17 de março, em face de inumeráveis incidentes — inclusive ameaças de violência por parte de alguns soldados em Covent Garden — reiterou-se a ordem de que os homens de Fairfax deveriam manter-se a pelo menos quarenta quilômetros de Londres. No entanto, neste meio-tempo, os efeitos pacificadores dessa disposição haviam sido anulados, pois já no princípio de março uma grande quantidade de tropas bivacara em Saffron Walden, Essex, a fim de se prepararem para a expedição irlandesa; sem dúvida, a insatisfação que reinava entre eles
criava um caldo de cultura propício a decisões tumultuadas. Ao longo dessas progressivas crises entre o exército e o Parlamento, onde estava o homem que obtivera tanto sucesso em ambas as esferas e cujos poderes de
mediação eram tão necessários? Em janeiro, depois de algum trabalho parlamen-
tar, Oliver Cromwell tinha desaparecido de cena, gravemente enfermo. Não paira qualquer dúvida a respeito: ele próprio
escreveu a Fairfax, relatando quase ter
morrido, e a história oficial registra um caso de “apostema na cabeça” — um
inchaço infeccioso que hoje chamaríamos de abscesso1º Como tudo que se refere
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à saúde de Cromwell nessa época, antes das indiscutíveis sequelas da idade, deve-
se levar em conta as possíveis causas psicossomáticas da moléstia. O outono
transcorrera enquanto ruíam os grandes ideais pelos quais ele rezara e travara uma guerra, e a primavera parecia confirmar a falta de compreensão do Parlamento acerca da verdadeira natureza das reivindicações dos homens honestos que tinham lutado por ele. Sem dúvida, é difícil avaliar com rigor a relação sutil entre os aspectos físicos e psicossomáticos de uma doença. Originalmente, a frágil saú-
de de Cromwell tinha uma característica nervosa, que se manifestara na crise, em Huntingdon, quando consultou sir Theodore Mayerne. Mais tarde, com toda a certeza, ele sofreu uma série de problemas, febres inclusive, devido à malária e aos cálculos renais. O historiador precisa ser cuidadoso. Pode-se afirmar que a piora que sentiu, durante aquele ano, acabou por atingir seu temperamento exaltado, predispondo-o a uma infecção. Cromwell passou longo tempo deprimido, mesmo depois que a doença já fora debelada. Em carta a Fairfax, ele descreveu os sintomas do mal que o afli-
gia: “Admito que o Senhor (...) tenha exercitado os intestinos do Pai sobre mim.
Fui condenado à morte para aprender a confiar Nele, que se ergue dos mortos, e desconfiar da carne.” Mais significativo foi seu comentário acerca dos sentimentos que o assaltavam durante a doença: “O que existe de bom neste mundo é tão restrito que chega a ser uma bênção morrer um pouco a cada dia...”*! Foi neste estado sombrio e resignado, contrastando a confiante hilaridade que demonstrara na época da guerra, e com a saúde extremamente debilitada, que Cromwell se lançou naquele período crítico de sua carreira, que tantas acusações de traição e duplicidade suscitou. Sem dúvida, seu sucesso contribuiu, e muito, para acentuar tais denúncias. No entanto, nenhum contemporâneo — ou ele próprio, caso estivesse em plena saúde — poderia prever o curso dos acontecimentos e o que deles resultou. De fato, na primavera de 1647,
a última coisa que se poderia esperar de Cromwell é que ele se sentisse sufi-
cientemente seguro, a ponto de participar naquilo que certamente foi a mais
elaborada conspiração da história britânica. Seu estado de espírito melancólico transparece claramente na conversa que
manteve com Edmund Ludlow, provavelmente nessa mesma época. O encontro se deu nos jardins de Westminster, antiga propriedade do antiquário sir Robert Cotton, e nele Cromwell revelou toda a profundeza da infelicidade que lhe ia
malma. O que parecera uma gloriosa cruzada, em nome do Senhor, transforma-
ra-se em algo similar a uma matilha de cães raivosos disputando nacos do poder. Como a vida era simples no exército! Ou até mesmo nos dias anteriores à
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guerra civil, quando pelo menos os parlamentares permaneciam unidos em vez
de se altercarem tão mesquinhamente, como o faziam agora. “Se teu pai* esti-
vesse vivo”, disse a Ludlow, suspirando, “faria com que ouvissem o que mere-
cem; custa muito ser leal ao Parlamento e é uma miséria servi-lo, sempre sujei-
to às calúnias de algum colega pragmático; são coisas que grudam na pele e não se apagam jamais. Sob o comando de um general, não se pode permanecer
por muito tempo sem o risco de se tornar alvo de inculpações ou inveja.”12
Enquanto convalescia, sua amargura com quem não acreditava na justeza
da causa do exército não esmoreceu: na correspondência endereçada a Fairfax, em 11 de março, aparentemente antes de estar em condições de retornar à Câmara dos Comuns, referiu-se à malícia generalizada contra o exército. Todos pareciam dominados pela angústia. Em contrapartida, a mágoa dos soldados nunca fora tamanha e espalhava-se rapidamente; simpático às reivindicações da tropa, ele não gostaria de testemunhar algum surto de indisciplina. Concordava, por exemplo, com a regra dos quarenta quilômetros — distância que o exército devia manter de Londres. Sob muitos aspectos, as queixas dos soldados concentrados em Saffron Walden eram plenamente justificadas, incluindo pagamentos atrasados no montante de trezentas mil libras. É claro que problemas financeiros não constituíam novidade: no ano anterior, em York, os homens do general-de-divisão Poyntz tinham se amotinado, apontando-lhe suas pistolas e gritando alto e bom som: “Dinheiro, dinheiro, dinheiro.” Naquele momento os regimentos de infantaria ainda esperavam receber
o soldo de 18 semanas, e a cavalaria, de 43. O Parlamento só se dispunha a pagar umas míseras seis semanas. Paralelamente, boa parte da população do país ressentia-se diante do fato deles continuarem armados — reação ilógica, talvez, mas não inesperada partindo de civis, constantemente atingidos pela turbulência habitual dos militares. Em Saffron Walden, por exemplo, à parte dos esporádicos motins em outras localidades, a influência dos oficiais mais ortodoxos vinha se exaurindo. Duas forças distintas agiam no meio da soldadesca: de um lado, os Jevellers — seita radical, originalmente externa ao exército —, e de outro, os “agen-
tes”, ou “agitadores” — grupos formados dentro do exército para pressionar o Parlamento contra a ordem de dispersar. “Sir Henry Ludlow teve uma participação radical durante o Parlamento Longo, e em maio
de 1642 fora repreendido pelo presidente da Câmara por ter afirmado que o rei não erà
”
digno da coroa.
e
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No dia 21 de março, a comissão parlamentar responsável pela discussão da dispensa da tropa e sua posterior reorganização reuniu-se com um punhado de oficiais em Saffron Walden. Sem propriamente discordarem da desmo-
bilização, os militares apresentaram uma petição assinada, entre outros, por Okey, Pride, Robert Lilburne, irmão de John, e Ireton — todos “independen-
tes” —, exigindo maiores esclarecimentos a respeito tais como pagamentos atrasados e futuros, além da serviços prestados até então. Ao mesmo tempo, os quitação dos débitos acumulados, isenção de novos
de assuntos importantes, indenização devida pelos soldados rasos exigiam a recrutamentos, indeniza-
ções e tratamento justo às viúvas e órfãos dos mortos em combate. Embora tais pedidos não ultrapassassem a fronteira humanitária é interessante notar que Cromwell estava entre os que achavam de mais o fato dos soldados rasos
terem apresentado suas próprias petições. Perto dessa data — mais provavelmente no momento da votação, no dia 22 de março — Cromwell se ergueu, na Câmara dos Comuns, e pôs a mão direita sobre o coração, jurando que o exército aceitaria pacificamente a desmobilização. Conforme testemunhou Clement Walker, na sua History of the Independency [História dos independentes], “em presença de Deus todo-poderoso, diante de quem ele estava, disse saber que o exército se dissolveria e depositaria suas armas na porta do Parlamento, tão logo recebesse tal comando”. Aos olhos dos contemporâneos que acreditaram na raiz conspiratória da carreira de Cromwell, esse compromisso público nada mais foi do que uma falsa profecia, prova de sua impostura. Vaticínio infeliz que tenha sido, demonstrando a falência de suas previsões no campo político, não o transforma num canalha desonesto. Ele acreditava genuinamente em suas próprias afirmações baseando-se no fato de que as queixas do exército seriam solucionadas. John Lilburne, que reagiu histericamente quando Cromwell rejeitou a petição dos soldados, acusou-o de derrubá-la para atender a “um compromisso com a Câmara dos Comuns, obrigando os soldados a depor as armas”. Ele imaginou que Cromwell fora enganado por “aquelas duas indignas e ambiciosas minhocas”, Vane e St John.!* Entre todas as muitas aptidões de Oliver, a antecipação política nunca foi uma das maiores, embora em alguns momentos tenha tido sorte e oportunismo, que seus furiosos opositores atribufam à conspiração. Clarendon relacionou detalhadamente as acusações contra ele: fingiu desgosto com a insolência dos soldados, investiu amargamente contra suas presunções e sugeriu penalidades para aquietar os espíritos amotinados; hipócrita demais, “quando se re-
Posta i Ss
dt
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feria ao envolvimento da nação em novos problemas, chorava amargamente e aparentava a maior aflição do mundo”.” A maior parte disso poderia constituir um relatório confiável acerca do comportamento de Cromwell. Sem dú.vida, ele chorou — revelou, mesmo, uma certa tendência às lágrimas — e,
embora como Protetor tenha sido acusado de produzir “lágrimas à vontade”,
e derramá-las diante do Conselho a fim de obter atendimento aos seus desíg-
nios, a verdade parece indicar que era um orador naturalmente emotivo. Sem
dúvida, sentiu-se perdido e agoniado, além de desgostoso com a atitude obsti-
nada do exército. À dissimulação que Clarendon insistiu em somar a essa
equação foi o erro que cometeu: na primavera de 1647 Cromwell estava real-
mente infeliz. Enquanto isso, o violento debate travado na Câmara dos Comuns, no dia 29 de março, mais uma vez comprovou a pouca simpatia que os membros presbiterianos alimentavam pelas reivindicações mais evidentes dos soldados. Eles se declararam furiosamente contra a petição da tropa; e, no dia seguinte, Holles fez com que aprovassem uma resolução ainda mais agressiva, no sentido de uma tomada de atitude contra todos aqueles que persistissem nas suas posições agressivas: seriam tratados como inimigos do Estado. O futuro do exército na Irlanda foi no entanto acertado mediante um compromisso: Skippon ganhou o posto de marechal-de-campo e sir Edward Massey o de general da cavalaria; claro, os “independentes” preferiam que tal promoção coubesse a Cromwell. Todavia, seu próprio regimento recebeu ordens de per-
manecer na Inglaterra sob o comando do major Huntington. Mas, enquanto o Parlamento propunha, o exército dispunha: as notícias levadas pelos comissários de Londres a Saffron Walden, no dia 15 de abril, não lograram nenhuma aceitação dócil. Reunidos na bela igreja Perpendicular, duzentos oficiais expuseram suas posições; sob a tácita presidência de Fairfax, que sem estar de acordo também não resistiu ativamente à conduta de seus subordinados, eles lançaram um grito desconcertante em prol da manutenção da mesma “direção” ou liderança de sempre: “Todos! Todos! Fairfax e Cromwell e to-
dos nós!” Na manhã seguinte, a maior parte dos oficiais de cavalaria e muitos da infantaria assinaram uma petição ao Parlamento nesse sentido.
Na medida em que se alargava o fosso entre o exército e o Parlamento, O
desgosto de Cromwell com a incompetente condução determinada pelo grupo dirigente presbiteriano foi se tornando mais claro, inclusive por suas raras visitas à Câmara dos Comuns, durante o mês de abril. Vane agia da mesma forma. Tampouco haviam desaparecido sua profunda depressão e insatisfação com O
encaminhamento de sua vida pessoal. Ele voltou a manifestar interesse na pos-
sibilidade de abandonar a Inglaterra, desta vez para servir no exterior, lutando
pela causa do sobrinho protestante do rei Carlos.'* Embora em comparação a Rupert, seu irmão caçula, o Eleitor Palatino fosse dotado de uma personalidade frágil e possuísse muito mais vontade de aliar-se aos vencedores, sem se impor-
tar com honra ou lealdades de família, naquela oportunidade ele poderia granjear as simpatias religiosas de Cromwell. Ao passo que luteranos e calvinistas tentavam excluir-se mutuamente da paz que vinha sendo negociada com vistas
ao fim da Guerra dos Trinta Anos, o Eleitor queria um exército parlamentar que o ajudasse a recuperar suas propriedades alemãs. O embaixador francês relatou que ele manteve longas conversações com Cromwell sobre o assunto. Considerando a justiça da causa e a acentuada frustração que os acontecimentos na Inglaterra impunham a Cromwell, quem sabe ele não terá interpretado as necessidades de seu interlocutor como um novo sinal de Deus, sugerindo pelo
menos um afastamento temporário. Mais uma vez a impressão que se tem é a de um homem confuso, buscando uma solução, não um conspirador. No início de maio, Cromwell, Ireton, Skippon e Charles Fleetwood foram encarregados de esfriar os ânimos do exército. A situação dos quatro era delicada — oficiais de alta patente ocupando cargos no Parlamento. Fleetwood começara a guerra como integrante da guarda pessoal de Essex, mas seu regimento, no exército de Manchester, tinha se tornado famoso pelo número de
sectários, estando entre os que se recusaram a partir para a Irlanda; tal como Ireton, que ingressara na Câmara dos Comuns por Appleby, em 1645, ele tam-
bém podia se considerar um novato, representando Marlborough. À comissão
foi informada sobre entendimentos anteriores, totalmente insatisfatórios, e do
fracasso de Skippon em persuadir os regimentos a aceitar o deslocamento para a Irlanda. Ficou decidido que os oficiais deveriam conferenciar com seus regimentos antes de fazer qualquer relatório. Assim, no dia 15 de maio, realizou-se uma reunião com cerca de duzentos oficiais, na igreja de Saffron Walden, presidida por Skippon, tendo Cromwell a seu lado. Tratava-se de ouvir a verdadeira
voz do exército, delegada a seus superiores imediatos. As exigências eram de fato incrivelmente razoáveis, embora Skippon fosse
obrigado a advertir alguns oficiais de baixa patente, como Lambert, Whalley e
Okey, por seu estilo agitado, sugerindo que eles ouvissem uns aos outros ma mais sóbria. O primeiro pedido referia-se ao pagamento dos soldos dos: reclamava-se uma parcela maior do que as miseráveis seis semanas tão prometidas pelo Parlamento. A tropa queria encaminhar uma petição ET
Ad
de foratrasaaté enao seu
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general e o Parlamento deveria examiná-la em março; além disso, reivindica. vam dar publicidade às razões de sua conduta, cabendo ao Parlamento defender
o exército de ataques insidiosos. Independentemente da linguagem, não havia nada de revolucionário nisso. Os comissários retornaram a Londres no dia se-
guinte, admitindo soldados comuns simpatizaram com de sossego. Antes
terem encontrado deveras inquietos; os sofrimentos dos do fim da reunião,
o exército profundamente magoado e os no fundo de seus corações, com certeza, homens, ainda que desprezando sua falta Cromwell pronunciou um discurso signi-
ficativo; além de anunciar que as ordens do Parlamento incluíam mais duas se-
manas de pagamento sobre os atrasados, perfazendo um total de oito semanas, ele instou os oficiais a utilizarem da melhor maneira possível sua liderança junto aos subordinados, levando-os a conformar-se diante da autoridade que estava acima de todos. Eles deveriam levar em conta que as consultas precisavam obter apoio unânime do Parlamento, do contrário coisas muito piores poderiam acontecer. “Se esta autoridade se transforma em nada, a confusão reinará.” Em
maio, apesar da maioria presbiteriana na Câmara dos Comuns, Cromwell ainda via o Parlamento como repositório da ordem pacífica que todos almejavam. No dia 21, ele e Fleetwood apresentaram um relatório completo do que se passara em Saffron Walden, tomando especial cuidado de absolver os oficiais de qual-
quer acusação de conspiração: eles tinham se limitado a limpar a linguagem
dos soldados, cheia de “tautologias, impertinências ou fraquezas”, persuadindoos a abandonar muitas imputações ofensivas,” tudo isso com a louvável intenção de evitar que o Parlamento fosse mais uma vez ofendido e a fim de que a convivência melhorasse no futuro. A petição baseou-se num acordo que satisfez as principais demandas dos “agitadores”, mas a situação fora longe demais para que os presbiterianos apro-
vassem qualquer tipo de concórdia com o exército — eles não confiavam mais
nas afirmações de Cromwell sobre a desmobilização e suas cabeças vinham engendrando algumas novas e despropositadas idéias, como a de devolver o rei Carlos I aos escoceses. Isso talvez permitisse sua volta ao trono, apoiado nas forças aliadas de escoceses, ingleses realistas e presbiterianos, dando margem
afinal à reforma da Igreja na Inglaterra. É claro que esse esquema jamais se reàlizaria enquanto o exército mantivesse contingentes numerosos é ameaçadores em Essex. Por isso que, no dia 25 de maio, os presbiterianos apresentaram uma proposta fatal, impondo a dissolução gradual da força militar sem o cumprimento de nenhuma das promessas feitas até então. Do ponto de vista das tropas
insatisfeitas, essa proposta sugeria roubo e traição. No dia 1 º de junho — data
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prevista para à dispensa do primeiro regimento (o do general) — o exército já tomara a questão em suas próprias mãos, reunindo-se em Newmarket, no condado de Suffolk, não muito longe de Saffron Walden. Mutuamente desconfia-
dos, os dois lados se enfrentaram como porcos-espinhos. Mais uma vez Carlos
I ocupava uma posição chave. Tratava-se de uma estranha mas bem-vinda reversão da sua sorte, posto que não se completara um ano desde que os dois campos tinham lutado unidos contra ele. Segundo Fairfax, o monarca se trans-
formara na “Bola de Ouro lançada entre os partidos”.!* O problema era prever em que direção a bola ia rolar.
Desde fevereiro, sir Lewis Dyve, um correspondente sensível, percebera
certa suavidade na atitude dos “independentes” em relação ao soberano. Comandante realista, em Sherborne, Dyve fora trazido a Londres como prisio-
neiro, após sua derrota, e estava preso na Torre, acusado de traição. Desfrutava de suficiente liberdade, entretanto, e recebia bom número de visitas, o que
lhe permitia passar informações secretas ao rei sobre o que estava ocorrendo na capital. Ele foi bastante caloroso ao dar conta dos modos mais cordatos daqueles que até então tinham sido extremamente agressivos e que de repente haviam-se convertido em admiradores de Sua Majestade. Se a liberdade de consciência pudesse lhes ser assegurada por Carlos 1, eles não se negariam a apoiá-lo. No dia 24 de maio, sir Lewis mandou dizer a Carlos I que os esforços de reconciliação empreendidos por Cromwell estavam prestes a se tornar inviáveis. Querendo preservar-se das crescentes suspeitas dos presbiterianos, ele optara pelo exército. No entanto, o informante acreditava — e um amigo íntimo de Oliver o confirmara — que seus sentimentos em relação ao rei derivavam do medo que sentia de uma vingança pessoal, devido às derrotas que impusera às forças realistas durante a guerra; se obtivesse alguma garantia de incolumidade, “poderia comprovar-se um instrumento de grande utilidade no
exército, cuja maior parte já se inclina na direção do rei?.” Se a atitude de Cromwell e de seus colegas “independentes” refletia a absoluta falta de alternativas, nem por isso o soberano apressou-se em responder às Propostas de Newcastle ou demonstrou preocupação com as consciências delicadas. Concordava com o estabelecimento do presbiterianismo por um
período de três anos, desde que ele e sua família pudessem usar o Livro de
Orações Comuns, ou seja, manter os rituais anglicanos. Ademais, ele indica-
aria ria vinte pastores para integrar a Assembléia de Westminster que negoci der enpon res a se vausa , rec ção ven Con à to an . Qu ico ást esi ecl rdo aco um quanto não pudesse vir a Londres e aconselhar-se com seus próprios capelães.
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Assim, Carlos I insistia em jogar conforme seu estilo, estimulado sem dúvida pelas provas de popularidade que tivera ao longo do seu cativeiro, em
Holdenby, quando o povo se juntava para tocá-lo, na expectativa de que os
curasse de escrófula, o conhecido “mal do rei”. Em vão, a Câmara dos Comuns tentava informar que isso não passava de superstição: antigas lealdades — e credulidade — custam a morrer.
Apesar de todas as advertências acerca da natureza dúbia do monarca, os
“independentes” ainda buscavam um entendimento com ele, a fim de evitar que se aproximasse dos presbiterianos. Tal possibilidade, mais do que tudo, preocu-
pava o pequeno grupo de militares que começaram a se reunir na residência de Cromwell, em Drury Lane. A sra. Cromwell, é claro, não pôde deixar de envol-
ver-se, embora muito lhe custasse abandonar hábitos domésticos arraigados. Alguém que detestava seus menus tanto quanto os planos de Oliver escreveu que “Jamais uma pessoa tão abstêmia tentou atacar um governo tão justo de forma tão vil?. Os comentários a respeito dela eram os mais desencontrados: acusavam-na de receber propinas, de possuir um toque de Midas, transformando
tudo em ouro, e, ao mesmo tempo, de ter vendido uma placa comemorativa ga-
nha pelo marido,? a fim de equilibrar o orçamento, e de receber os convidados de forma mesquinha, dando-lhes “pouca cerveja, pão e manteiga”. O que se pode razoavelmente presumir é que a frugalidade de sua mesa refletisse o desgosto natural de qualquer dona de casa que visse seu espaço doméstico convertido em quartel-general de políticos conspiradores. Nunca se soube o que se decidiu naquelas reuniões, nem na que se realizou sob o teto da Taberna Star, em Coleman Street, e da qual participaram Cromwell, Hugh Peter, o famoso pastor “independente”, e outros. Obviamente, não se poderia admitir que os presbiterianos se apoderassem do monarca e o enviassem aos escoceses, pelo menos enquanto houvesse soldados
“independentes” dispostos a impedi-lo; todavia, uma atitude capaz de manter
o rei fora do alcance de mãos estranhas era muito diferente de algo que significasse praticamente aprisioná-lo, en Holdenby — onde mais? Ao que parece, liderados por Cromwell, os conspiradores chegaram a cogitar disso. É bem provável, no entanto, que ambos os partidos estivessem inspirados por mútuo temor, no que se refere ao rei, agindo como dois homens vendados, numa sala, de costas um para 0 outro, tentando não se chocar. Em tais circunstâncias, qualquer provocação pode desencadear uma reação violenta.
O fato, porém, é que o grupo de Londres enviou um certo corneteiro Joyce a Oxford, no dia 1º de junho, com a missão de garantir o depósito de
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munições lá existente. Figura pouco expressiva mas de importância histórica crucial, ele começara a vida como alfaiate, antes de se tornar soldado da Associação do Leste, primeiro no regimento de Cromwell e, depois, sob as ordens de Fairfax — em Memorials [Memórias], o “Black Tom” o descreveu como um “arquiagitador”. Tendo cumprido a tarefa que lhe incumbia, no dia
seguinte Joyce partiu para Holdenby à frente dos quinhentos soldados que havia reunido. Chegando à prisão real, Joyce declarou que viera com a autoridade outorgada pelos soldados e a fim de prender o coronel Graves, oficial
encarregado da custódia de Carlos I, “para impedir uma conspiração cujo objetivo é conduzir o rei a Londres”. Até aí, podemos acreditar que estivesse agindo conforme as instruções recebidas. A carta que escreveu às 8h do dia seguinte, 3 de junho — equivocadamente datada de 4 de junho —, confirma essa impressão. Dirigida a Cromwell e, na sua ausência, a Haselrig ou Fleetwood, dizia: “Senhor, já estamos com o rei, Graves fugiu. (...) Deveis
enviar imediata resposta a esta, dizendo-nos o que fazer. Só obedeceremos às ordens do General e, por enquanto, estando por nossa conta e risco, dos co-
missários.” O final do texto indica claramente que ele não possuía nenhuma determinação explícita de ir além da captura do rei: “Hlumildemente, peço que considereis o que foi feito, pois não descansaremos, nem de noite nem de dia, até ouvirmos vossas ordens.”?! Na verdade, Joyce não demorou a perder a calma e decidir que o rei deveria ser removido para algum lugar menos distante do ponto de encontro do exército. Em audiência com o monarca, quando Carlos I indagou quem o autorizara a proceder assim, o corneteiro limitou-se a apontar a tropa que per-
manecia às suas costas, ao que Sua Majestade respondeu com famosa ironia: “É a autorização mais justa e mais bem escrita que vi em toda a minha vida.”
A meio caminho, em Hinchingbrooke, observado em silêncio pela população, o soberano ficou numa casa próximo de Newmarket, antes de ser conduzido a uma outra, perto de Cambridge — mais uma prova de que nada fora premeditado, sequer habitações condignas. Ciente da expedição de Joyce mas desconhecendo seu imprevisto final — e isso deve ser enfatizado —, Cromwell libertou-se de todas as incertezas e hesitações e, mais uma vez à altura das circunstâncias, percebeu que deveria colocar-se ao lado do Exército. Era arriscado permanecer em Londres. Informado
de que os presbiterianos pretendiam aproveitar-se de sua ida ao Parlamento no
dia seguinte para prendê-lo na Torre, tratou de abandonar a cidade; na madrugada de 4 de junho, ele Hugh Peter alcançaram Ware, no Hertfordshire, onde
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fizeram o desjejum. Enquanto o rei se instalava numa casa a noroeste de
Cambridge, em Childerley, Cromwell chegava a Kentford Heath, um pouco além de Newmarket, ponto de encontro do exército. O relato de Clarendon demonstra como ele foi consegiente: o plano de seus opositores visava afastá-lo dos Conselhos do Exército, na certeza de que
Fairfax mostrar-se-ia submisso, caso não recebesse estímulos no sentido do endurecimento. Mais tarde Joyce tentou responsabilizar Cromwell pelo inci-
dente, atribuindo-lhe as “ordens” que alegou ter recebido. Sabedor de que Fairfax ficara furioso com a atitude do seu subordinado, o major Huntington
testemunhou que o corneteiro agira sob determinações [de Oliver] recebidas, ainda em Londres, “para fazer o que fizera em Oxford”. No entanto, o mesmo Huntington referiu-se à versão de Ireton, segundo o qual o mandado limitara-se à captura do rei, em Holdenby — não a tirá-lo de lá. O suposto comentário de Cromwell — “Não fosse assim [a mudança de Carlos I],o Parlamento acabaria fazendo com que o levassem a Londres ou o próprio Graves tomaria essa iniciativa na esperança de receber alguma recompensa pelo serviço”? —— mais parece uma avaliação sensata, após o fato consumado, do que a admissão de qualquer responsabilidade pessoal.
Atemorizada ante as notícias da ação de Joyce, a Câmara dos Comuns votou a favor do pagamento dos soldos atrasados, no dia 3 de junho, e eliminou de
seus registros a venenosa resolução que considerava inimigos do Estado os soldados que tivessem participado dos protestos de março. Tarde demais: 0 torvelinho se desatara e seria impossível contê-lo. No dia 5 de junho, em Newark, o exército lançou uma declaração contra a agressiva atitude dos líde-
res presbiterianos, exigindo os nomes dos que tinham elaborado a resolução
de Holles. Porém, inspiradas por Cromwell, as duas últimas cláusulas talvez pudessem representar uma tábua de salvação. A primeira criava um Conselho de Generais, incluindo dois oficiais e dois representantes de cada regimento
— Oliver, Fairfax e Ireton faziam parte dele portanto; a segunda negava que
o exército pretendesse derrubar a maioria parlamentar, reivindicando somente liberdade de consciência para os soldados. O rei recebeu vários oficiais de alta patente, em Childerley, com um espírito otimista, aparentemente bastante disposto a jogar sua sortê com os mili-
tares; quando Fairfax se retirava, ele disse: “Senhor, tenho tanto interesse no exército quanto vós.” Cromwell e Ireton com portaram-se de forma educada, j mas, ao contrário de Fairfax, que beijara a mão do soberano, apenas curvaram
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a cabeça.” Atendendo ao desejo manifesto de Carlos I, permitiu-se seu regresso a Newmarket — se bem que Cromwell houvesse autorizado Whalley a usar de todos os meios, menos a força, para persuadi-lo a não voltar a Holdenby. A fim de evitar demonstrações de entusiasmo popular, o monarca
foi levado pela porta dos fundos.
É compreensível que a nova conjuntura o estimulasse: notícias filtradas de
Londres descreviam a cidade envolta numa crescente desordem, levando-o a
crer numa possível tertius gaudens [luta armada] entre o exército e o Parlamento. De fato, muitos ex-soldados, conhecidos como “reformados”, renomados
desordeiros, tinham penetrado na capital, concentrando-se junto à porta da Câmara dos Comuns e invectivando os parlamentares, segundo Whitelocke, “de forma muito grosseira”.?* Na tentativa de abrir uma brecha nas inesperadas nuvens de tempestade, o Parlamento destinou dez mil libras a essa barulhenta
multidão, tendo em vista a possibilidade de empregá-la de alguma forma útil contra a massa também insatisfeita do exército oficial. Em Thriplow Heath, a cerca de 1lkm de Cambridge — 16km de Londres —, aquele ajuntamento impedia que os espíritos mais aguerridos do exército pudessem alimentar qualquer intenção de marchar naquela direção. Completando a transformação que se processava desde a primavera, o grupo
frouxo de antigos soldados indisciplinados, no máximo uma turba furiosa, organizou-se numa assembléia, constituiu um conselho, mas nem assim obteve
a adesão de Cromwell. Ao contrário: face àquela fração da soldadesca cujos objetivos e linguagens eram tão revolucionários que ameaçavam a própria existência da paz e da ordem, Oliver expressava sentimentos bastante ambivalentes. Dez anos mais tarde, sir Gilbert Pickering revelou suas dúvidas e perplexidades: Cromwell não estava nem um pouco a fim de liderar o vio-
lento e temerário partido do exército, que recusava a autodissolução; só após
receber três cartas exigindo uma tomada de posição, e moralmente convencido de que os homens marchariam com ou sem ele, pôde se ver não como um
radical, mas alguém capaz de influenciar positivamente as tropas.
Sob pressão de Fairfax, que recomendou “muito silêncio e educação”, os soldados se comportaram polidamente perante os comissários do Parlamento que vieram a Thriplow Heath, mas não cederam um milímetro de suas posições. As vozes roucas bradavam por “Justiça” — conforme lhes fora ensinado
por Cromwell e Ireton, segundo observou Holles, sombriamente, em suas memórias. Depois disso, o exército se movimentou em direção a Royston. Na
noite seguinte, suas novas lideranças expediram um manifesto ameaçador,
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cujo conteúdo bem mais sofisticado correspondia a muitas das recentes preocupações de Cromwell. Denunciando o Parlamento por querer livrar-se de “questionamentos e punições”, mediante o reinício das hostilidades, reafirma-
va a firme vontade do exército de alcançar um acordo honesto que em nada
deveria alterar a constituição vigente: “Tal como antes, insistimos, não dese-
jamos nenhuma alteração no Governo Civil (...).”2 Em St Albans foi atingido o limite de quarenta quilômetros definido pelo Parlamento. Convocados pela City, os grupos treinados para sua defesa recusaram-se a cooperar. Em 14 de junho, na nova proclamação lançada pelo exército — primeira amostra do pensamento político de Ireton —, Já se alvitrava O expurgo, assim como um plano destinado à formação de uma nova Câmara dos Comuns. Holles considerou ter sido esse o primeiro intrometimento do exército nos assuntos do reino, sob a alegação de que “não eram um poder mercenário, para servir ao poder arbitrário do Estado, mas [soldados] que tinham tomado armas com opinião e consciência”. Dez dias depois, em 24 de junho, a Humilde Admoestação fez com que os membros do Parlamento temessem por suas vidas e propriedades. Preso na Torre de Londres devido a uma série de crimes, inclusive por ter
agredido Manchester, Lilburne regozijou-se com o rumo dos acontecimentos é enviou congratulações a Cromwell pelas suas “atitudes firmes” em prol da causa certa. No entanto, menos preocupado com quem estava à sua esquerda —
se é que se pode considerar Lilburne assim —, Oliver mantinha-se atento à marcha do rei: vindo de Newmarket, o soberano já chegara a Royston. Em que pese a Dyve ter suposto que Carlos I ainda poderia atraí-lo,? ele acabou adotando uma postura intermediária, advertindo Whalley para que não deixasse o monarca fugir, nem o antagonizasse sobre questões religiosas de natureza pessoal. Deixou que esse ônus recaísse sobre os adversários: no momento em que O rei mandou celebrar uma missa anglicana, os comissários do Parlam ento que O
acompanhavam bateram em retirada, junto com seus capelães.
O quartel-general do exército avançara ainda mais, até Uxbridge, ond e
Fairfax designou dez oficiais de alta patente , Inclusive Cromwell, e os enviou à hospedaria de Katharine Wheele, a fim d e discutir os termos da Humilde Admoestação com os parlamentares. As tro pas recuaram um pouco, detendose em Reading, e o rei foi conduzido a Windsor e, posteriormente, à residência de lord Craven, em Caversham, na outra margem do rio, em frente às novas posições ocupadas pelos soldados. Ali, os líderes independentes? poderiam chegar a um acordo com o soberano. Afinal de contas, as discussões
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políticas com os presbiterianos tinham sido tão insatisfatórias que talvez eles tivessem julgado mal o monarca, atribuindo-lhe uma parte das cavilações de
seus opositores políticos. Desde a primeira entrevista, Fairfax deve ter se dado conta da impossibili-
dade do rei evoluir para qualquer sentido que fosse em linha reta. Durante todo o processo, Carlos I reservou-se o direito, compreensível porém fatal, de alterar
suas posições e cambiar alianças em função dos interesses últimos da Coroa, segundo sua própria visão. “Senhor, tendes a intenção de ser o árbitro entre nós e o Parlamento”, disse Ireton, “ao passo que nós desejamos sê-lo entre Vossa Majestade e o Parlamento.” Mesmo assim, as negociações prosseguiram. Indi-
cado como intermediário pelos “independentes”, sir John Berkeley fora governador de Exeter e diplomata antes da guerra; favorito da rainha Henrietta Ma-
ria, viera da França disposto a influenciar os chefes militares. O tempo se encarregaria de demonstrar sua honestidade e ingenuidade, numa situação que exigia extrema sutileza. Em Tornbridge, no condado de Kent, ele se encontrou
com sir Allen Apsley, realista e antigo governador da fortaleza de Barnstaple, a oeste. Em suas memórias, disse ter recebido dele cartas, um código e instruções de Cromwell e outros oficiais do exército: o rei deveria ser posto a par de que os “independentes” estavam totalmente desiludidos com os presbiterianos e
propondo-se a fazer “o que eles apenas simulavam, isto é, restaurar o reie o Povo em seus justos e ancestrais direitos”28
Os primeiros passos deste delicado processo foram estranhamente fáceis, tão rápidos que chegaram a levantar as suspeitas de Oliver St John, primo de Cromwell, que achou por bem adverti-lo sobre o risco de estarem “os negócios do rei” sendo encaminhados depressa demais. De fato, autorizado por Fairfax, Cromwell avistara-se com o monarca no dia 4 de julho, saindo do encontro
certo de que um entendimento poderia ser alcançado em duas semanas, no máximo. Mais tarde, o major Huntington relatou que ambos estavam preparados
para demonstrar sua boa vontade, permitindo que o soberano fizesse contato
com seus capelães e recebesse a visita dos filhos menores. À seriedade de suas intenções na restauração também pode ser comprovada pelas sérias discussões, cujo objetivo era assegurar maior tolerância à comunidade católica. Rumores
sobre tais progressos chegaram aos ouvidos do embaixador da França, em 9 de
julho. Tratava-se de uma mudança surpreendente nas posições de dedicados puritanos, como Cromwell e Ireton, claramente anticatólicos ao longo da década de 1630, e uma demonstração do abrandamento dos soldados, obtido graças ao prestígio dos “independentes”. É bem verdade também que os católicos não ti”
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nham se mostrado tão letais quanto a imaginação popular os pintava durante a
guerra.” Se pudessem aceitar um comprometimento firme com o sistema político inglês, não admitindo, por exemplo, nenhuma jurisdição civil estrangeira, talvez lhes fosse permitido aderir às forças da luz, numa Inglaterra afinal pacifi-
cada e submetida a seu monarca. Essas tratativas começaram, provavelmente, através de contatos secretos com Henry More, vice-provincial dos jesuítas, que Já havia feito comentá-
rios acerca da paz que reinava na Alemanha e na Holanda, apesar das dife-
renças entre o regime e as comunidades que não professavam o credo oficial. Por seu turno, /ord Brudenell, militar e católico, assegurou ao Consel ho do Exército que não havia nada na sua doutrina que impedisse um acordo satisfatório — nem mesmo problemas práticos, como o valor da propriedade da Igreja que fora confiscada ao longo da guerra. Segundo os padrões da época, as condições que se impunham aos católicos não eram muito severas: eles poderiam desfrutar plena liberdade de consciência e praticar seus cultos, em casa, desde que não portassem armas e se eximissem de manter contatos com potências estrangeiras. A única dificuldade decorreu de um juramento de lealdade civil, do qual nenhum católico poderia ser dispensado, nem pelo papa. Depois de muita discussão e auto-análise teológica, a comunidade católica inglesa decidiu aceitar essa regra, visto que os assuntos
tocados por ela não eram necessitate medii [essenciais à salvação). Datado de 1º de agosto, o acordo foi assinado por representantes do clero e da comunidade católica. Todavia, seu prefácio — um acréscimo de Henry More — enfatizava o caráter secular dos acertos feitos com o poder civil, dizendo: “Não significam artigo de fé ou ensinamentos de nossos pastores.” Isso fez com que /ord Brudenell temesse pelo fracasso de toda a negociação em curso. Mas enfim o texto seguiu para Roma, sob os auspícios do núncio papal de
Paris, sofrendo alterações pelo caminho, talvez acidentais,)! e em janeiro de
1648 acabou condenado pelo pontífice. More, considerando que assinara um acordo sob condições, deixou a Inglaterra. De um Jeito ou de outro, a Câmara dos Comuns também recusara as propostas. O assunto não chegou a voltar à
baila sequer quando da discussão sobre a tolerância que poderia existir para todos os cultos, sob um governo presbiteriano, em m eados de outubro — nessa ocasião, as petições católicas recebidas no início do outono foram deliberadamente postas de lado. Somente Henry Marten, com sua habi tual independência, defendeu os “papistas”. Por que tolerar os presbiterianos e não aceitar os católicos?,
perguntava ele,
acidamente.
Muito
melhor do
que
tiranos em
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cada paróquia seria um único, limitado a questões espirituais e vivendo fora do reino. Afinal, as crescentes preocupações e disputas políticas superaram o
projeto, que desapareceu para sempre quando Cromwell se afastou do rei.* Enquanto essa elogiável tentativa de integrar os católicos romanos às es-
truturas inglesas ainda estava em desenvolvimento, o ilusório caso de amor entre o exército e o rei também prosseguia. Talvez não se deva julgar Carlos I muito severamente por não conseguir entender a mentalidade dos homens
que tinha diante de si: sua crença empedernida de que “um soberano e um súdito são duas coisas completamente diferentes” não dava espaço a qualquer concessão, nem lhe permitia negociar em termos de igualdade. O próprio Berkeley sentiu-se chocado quando o monarca lamentou que nenhum dos oficiais do exército lhe tivesse pedido nada — razão pela qual era difícil confiar neles. Em 12 de julho, ele se reuniu com Cromwell e outros dois oficiais, o coronel Thomas Rainsborough e sir Hardress Waller, dizendo-lhes que Henrietta Maria sugerira ao marido concordar com as exigências do exército, na medida em que sua consciência e honra o permitissem. Acentuando o altruísmo que tanto assustava o soberano e levando a novas alturas as esperanças do ex-diplomata de uma rápida restauração, Cromwell respondeu que os militares só almejavam viver como súditos — “ninguém poderá desfrutar a vida ou suas propriedades sem que o rei tenha seus direitos”.*” Breve, esse reconhecimento genérico seria especificado, incluindo todos os interesses realistas, presbiterianos e “independentes”. Não há motivo para duvidar dessa sinceridade. Três dias mais tarde, muito comovido, Cromwell contou a Berkeley uma cena que presenciara entre O rei e seus três filhos menores; a ternura paternal demonstrada por Carlos I fizera-o chorar.” O monarca, disse, era “o homem mais correto e consciencioso de seus três reinos”, e os “independentes” jamais poderiam saldar a dívida que tinham com ele, que recusara as Propostas de Newcastle, em 1646, impe-
dindo a consolidação do presbiterianismo. A verdade é que enquanto os panfletários londrinos latiam como mastins, açulando ursos contemporâneos em Bankside, nos calcanhares de Cromvwell, furiosos por ele ter se juntado ao exército, um acordo com o rei ainda representava a melhor esperança de solução para aquele salseiro. Oliver não estava sendo hipócrita ao dar crédito à real possibilidade de acordo, mas naquele mesmo instante seu soberano correto e consciencioso estava recebendo mensagens “Ver Thomas H. Clancy S. I. The Jesuit and the Independents: 1647.
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secretas do conde de Lauderdale, aventando apoios alternativos. Enquanto isso, Os presbiterianos ameaçavam convocar O exército escocês, com o qual
segundo rumores, o coronel Poyntz, em York, pretendia juntar forças. Os =
&
levellers continuavam a insuflar os soldados ingleses a marchar sobre a capital e resolver a situação de uma vez, ocupando a City. Contra o pano de fundo dessa fermentação, o conselho de guerra reuniu-se,
no dia 16 de julho, em Reading, a fim de estudar as reivindicações dos radicais, misturados aos oficiais presentes — a informação sobre o número varia, mas
pela primeira vez sua participação era admitida pela imprensa.” As exigências
iam além do banimento daqueles infames 11 parlamentares e da libertação de prisioneiros, como John Lilburne, concentrando-se no desejo de que o exército marchasse sem demora sobre Londres ou pelo menos se aproximasse da cidade,
Cromwell discursou várias vezes, colocando que a razão, e não a força bruta, é que deveria movê-los. “Marchar em direção a Londres parece uma idéia sim-
ples, mas não cai de Júpiter, e convém debatê-la, considerando os prós e os contras.” Ele defendeu ardorosamente um acordo legal, e é interessante que isso tenha vindo de alguém que, mais tarde, foi justamente acusado de colocar o Parlamento de lado por meio da força. “Tudo que conseguimos alcançar com o tratado (...) será firme e duradouro — um legado à posteridade, Cabe evitar as contestações que se fazem contra nós, no sentido de que obtivemos concessões
do Parlamento pela força, pois sabemos que tal mancha jamais se apagará (...).” Ele tentava preservar a Câmara dos Comuns, onde seu partido vinha crescendo,
sem embargo de reformas e expurgos que poderiam facilitar o trabalho de homens de alto nível, preocupados com o interesse público. Por tais princípios sábios, justos e honrados haviam marchado sobre Uxbridge e St Albans. “Realmente”, dizia ele, “não imagino o porquê de usarmos a força, exceto se não conseguirmos obter sem ela o que é bom para o reino.”35 Foi Ireton, político vinculado a Cromwell por laços de família, quem colocou desde seu primeiro discurso o que deveria ser à questão central do debate. Mais importante do que atribuir poder a um homem sobre todos os de-
mais era conquistar as liberdades do reino e mostrar o que o exército poderia fazer. Com a ajuda de Lambert, ele se dispôs a formular as propostas que
consubstanciariam os direitos e liberdades do povo, assegurando uma paz du-
radoura. À reunião terminou depois da meia-noite, com a total desistência da
marcha em direção a Londres. Expostas num manifesto, as Propostas dos Líderes
do Exército seriam submetidas aos comissários, que as levariam ao Parlamento.
Nesse meio tempo, o Conselho as estudaria, e bem assim uma comissão de 12
,
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oficiais e 12 representantes dos radicais. Formuladas sob pressão e, conforme
colocou um radical, por um grupo de “jovens estadistas”, elas eram tortuosas e, às vezes, confusas. Após tê-las lido, Berkeley disse ao rei que as considerara surpreendentemente moderadas: “Jamais uma Coroa quase perdida terá
sido recuperada tão facilmente, como a de Vossa Majestade poderá ser, caso
eles realmente concordem com esses termos.” As sessões do Parlamento deveriam estender-se durante dois anos, ocupando no mínimo 120 e no máximo 240 dias; haveria uma distribuição melhor dos assentos e eleições livres; os membros da Câmara dos Comuns teriam toda a liberdade de divergir do rei, que não poderia obstar o julgamento de seus funcionários. Haveria um Conselho de Estado, com mais autoridade
do que o anterior Conselho Privado, com ascendência sobre as forças armadas, a política externa; a milícia ficaria sob o controle do Parlamento por um
período de dez anos. A fim de concretizar o acordo religioso, os bispados seriam eliminados e o Livro de Orações Comuns perderia seu caráter de obri-
gação legal, tal como a Convenção. Previam-se soluções para uma série de demandas que iam das desigualdades nos impostos até leis florestais. O rei e sua família deveriam ser restaurados e garantidos seus atributos de segurança, honra e liberdade, sem diminuição de seus direitos pessoais ou qualquer ou-
tra limitação ao futuro exercício dos poderes que lhe cabiam. Porém, antes que Carlos I pudesse se pronunciar publicamente a respeito
— ele tomou conhecimento extra-oficial das propostas no dia 23 de julho —,
a violência explodiu em Londres. A turba feroz invadiu as duas Câmaras e deteve Lenthall, forçando-o a abrir mão do controle do Parlamento sobre a milícia. O presidente percebeu que chegara a hora de lutar e com o apoio dos cerca de sessenta membros “independentes” que restavam, incluindo o próprio Manchester, antes hostil, buscou contato com o Exército, temendo algo
pior nas mãos dos presbiterianos. Os famigerados 11 retornaram, e com mais confiança do que sabedoria trataram de preparar as defesas da cidade. Sem dúvida, esse era o tipo de notícia que os espíritos mais audazes do exército esperavam. Caberia a eles salvar Londres do caos. No entanto, ouvindo o ruí-
do dos distúrbios, que soavam como música aos seus ouvidos, e encorajado pelas novas que lhe chegavam da Escócia, o rei, com insana convicção, optou pela rejeição das propostas. Conforme o registro de Ludlow, nesse momento
crítico, John Maitland, conde de Lauderdale, emissário escocês, estava ao lado do monarca, juntamente com outros representantes da City, assegurando que se oporiam ao exército até a morte.
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À cena dessa recusa oficial, por volta do dia 28 de julho, traumatizou
os oficiais, como Ireton, que a testemunharam. A linguagem do soberano
revelava precipitação e exagerado otimismo. Tendo comentado, algo irres. ponsavelmente, que dada a impossibilidade do exército passar sem ele esta-
ria disposto a receber seus representantes, “desde que seja em igualdade de
condições”, agora ele gritava, jogando de lado as Propostas: “Vocês não podem fazer isto sem mim! Vocês serão arruinados se eu não os sustentar” Temeroso das consegiiências que poderiam resultar de tais “posições muito agressivas e amargas”, o fiel Berkeley tentou detê-lo, recomendando que não revelasse a fonte secreta de sua súbita confiança. O coronel Rainsbo-
rough retirou-se rapidamente, indo espalhar as notícias da reação imo-
Não surpreende, como Clarendon escreveu mais tarde, que daí por diante Cromwell tenha adotado uma atitude fria perante o rei! — com certeza, o incidente o marcou profundamente, embora naquele momento a acelerada evolução dos acontecimentos, em Londres, não lhe tenha deixado tempo para maiores reflexões. Os aprendizes de diversos ofícios penetraram nos prédios do Parlamento, exigindo a derrubada da Ordem das Milícias e a presença do rei na capital. Os próprios Ludlow e Haselrig decidiram colocar-se sob a proteção do exército. Quando os grosseiros “reformados” começaram a falar
em saquear a City, o burgo de Southwark chamou o exército de volta. As tropas, já em Hounslow Heath, podendo contar com o presidente da Câmara dos Comuns para liderá-las, sentiram-se incentivadas — legalizado seu avanço, os soldados atiraram os chapéus para o ar e bradaram: “Lordes e Comuns, um Parlamento livre.” Às 2h do dia 6 de agosto alguns regimentos penetraram pelos portões abertos do burgo rebelde de Southwark. Os soldados carregavam ramos de
louro nos chapéus. Cromwell cavalgou à frente de sua tropa, precedendo 0 corpo principal da cavalaria, sob o comando de Fairfax. No Hyde Park, O
prefeito e seus conselheiros os acolheram com improvisados discursos de boas-vindas; em Charing Cross, foram saudados pelo Conselho Comum.
Antes do final do dia, o presidente do Parlamento tinha recuperado seu lugar, *Rainsborough era uma estrela em ascensão nos Conselhos do nha conexões com os puritanos da Europa e do Novo Mundo; com o governador Winthrop, de Massachusetts, e outra com um regimento para Manchester, repleto de retornados da Nova bro do Parlamento em maio. ma
E
Exército, um homem que tiuma de suas irmãs casara-Se seu filho. Tendo organizado Liclitoer irrcisGe meme , l
e
derada do rei entre os soldados.*?
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decretara-se Ação de Graças e o pagamento de um mês de soldo à soldadesca.
Sem muita sinceridade, a Câmara dos Comuns votou uma resolução aprovando e agradecendo “a vinda do general e do exército para garantir a segurança do Parlamento”. Os 11 parlamentares, símbolo da contra-revolução, tornaram a desaparecer. Na manhã seguinte todo o exército, cerca de 18 mil homens, atra-
vessou a cidade, rumo a Croydon, deixando guardas tanto na Torre quanto no Parlamento. Fairfax, que estivera doente, tomou uma carruagem na companhia
da mulher e da sra. Cromwell — os riscos em que a anfitriã dos conspiradores
pudesse ter incorrido estavam superados pelas glórias da esposa de um conquistador. Oliver Cromwell cavalgou à frente da cavalaria. Brigando entre si, de fato, os parlamentares haviam dado cabo da paz; a previsão de Jacob Astley, fei-
ta um ano antes, convertera-se em realidade, mas não como ele esperava.
Ao tempo em que transcorriam as negociações com o rei, o embaixador francês tivera uma conversa bastante significativa com Cromwell. Muitos anos mais tarde, já sob o Protetorado, ele a relatou de memória ao cardeal de Retz. Perguntado sobre quais seriam seus verdadeiros objetivos, Oliver respondera, enigmaticamente: “Sobe mais alto quem não sabe para onde vai...”* A posteriori, tais palavras parecem apontar para uma ambição sinistra, embora tenham sido ditas numa época de grande confusão — naquele desconcertante verão, seu espírito estava impregnado de dúvidas. Num dos discursos pronunciados em Reading, ele não escondera sua dupla natureza, escancarando aquele traço de impulsividade que frequentemente sucedia aos períodos de incerteza. Cambiando afetos e desejos, acreditando que os perigos poderiam ser mais imaginários que reais, ele próprio admitiria que muitos o julgavam como “alguém que anda depressa demais”.*” Acreditando em solução diversa, não tomara qualquer iniciativa, convencendo os outros a agirem da mesma
forma, a fim de evitar a marcha sobre Londres pelo maior tempo possível.
Nunca se colocou ao lado dos temerários e indisciplinados e se manteve es-
perançoso de que os soldados ainda fossem “seus cordeiros obedientes” — Baxter ouviu-o falar nesses termos. Estudioso dos caminhos da providência, e ciente das atitudes tomadas pelos sobreviventes do Parlamento, com certeza ele terá concluído que chegara o momento de uma ação mais decisiva. *A frase completa do embaixador, em francês, é a seguinte: “Jl me disoit um jour, que Pon ne
montait jamais si haut, que quand on ne sait o l'on va.” No entanto, conhecendo tão pouco
esse idioma, Cromwell deve ter falado em inglês. S. R. Gardiner situa a conversa entre 9 e 11 de julho, quando Belliêvre visitou os oficiais. De qualquer forma, ela deve ter ocorrido
antes de outubro, mês de sua partida da Inglaterra.”
ERR
E
9 O jogo de cartas O direito estava com o rei, certamente, mas ninguém tinha condições de exercer o poder; entre 1647 e 1648, ele não foi objeto de lutas, mas de um jogo de cartas disputado pelo Parlamento e Oliver Cromwell. THOMAS HOBBES, em Behemoth
1)
ee por 12 meses de desavenças com o Parlamento, Cromwell ingressou num período dramático de sua vida, no qual atou e desatou alianças com extraordinária rapidez. Anos mais tarde, em Behemoth — estudo dialogal sobre o Parlamento Longo —, Thomas Hobbes descreveu as enormes incertezas daquela época, quando o direito de governar pertencia ao rei, incontestavelmente, mas “ninguém o exercia; e ele se converteu em objeto de
um jogo de cartas”.! Foi nesse tempo que Oliver descobriu, como muitos o
fizeram desde então, a diferença entre um estadista e um soldado bem-sucedi-
dos. Na política, uma decisão pode implicar retratação; por outro lado, aguardar a passagem dos acontecimentos, às vezes, garante valiosas recompensas. Seu caráter possuía um traço que o tornava capaz de enfrentar uma espera prolongada, até que a providência divina indicasse o caminho correto;
no entanto, a pureza desses sentimentos religiosos acabou sendo tocada pelo
oportunismo e ele cometeu vários enganos. Sem dúvida, Cromwell continuava a se considerar um sujeito em busca de respostas, com o coração aberto dian-
te do Senhor. No outono de 1647, porém, deixara de ser um homem simples, transformando-se no hábil negociador, cada vez melhor, que tratava de preservar seus trunfos, qualquer que fosse a jogada.
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A primeira rodada do carteado consistiu em múltiplas tentat ivas de se chegar a um acordo com o rei. Carlos 1 foi trazido para seu palácio, em
Oatlands, e depois levado a Hampton Court. Enquanto isso, o Parlamento carregava todo o peso da ira dos líderes do exército: todas as ordens que a minoria presbiteriana fizera aprovar na ausência de Lenthall foram rechaçadas; nesse mister, os generais contaram com a assistência dos membros “independentes” e dos que pertenciam ao importante “grupo intermediário”,
numa unidade que objetivava um acordo de paz definitivo. Mesmo assim houve diversas ocasiões em que Cromwell perdeu a paciência, reclamando
com Ludlow que “estes homens nunca resolverão nada enquanto o exército não lhes der um puxão de orelhas”. No dia 20 de agosto, ele ordenou que um regimento de cavalaria se postasse defronte ao Hyde Park, ameaçando a Camara dos Comuns, e cavalgou até Westminster; embora deixasse sua escolta
do lado de fora, foi bastante ostensivo e, afinal, todas aquelas determinações foram declaradas nulas e sem valor legal. Mais uma vez os presbiterianos abandonaram o palco e, com isso, a Câmara dos Lordes reduziu-se a sete participantes, e os Comuns a cerca de 150. Assumindo virtualmente o poder, o Conselho do Exército voltou-se contra o triste veredicto de Holles: “O Parlamento não era mais que um número, respondendo “amém” ao que lhe determinavam (...) um Terceiro Estado absoluto.”? Os elementos radicais do exército haviam sido contidos, e a marcha dos lobos famintos sobre Londres fora evitada. Mas o retorno à capital não os pacificara e eles mantinham-se em observação, suspeitando de possíveis aproximações com Carlos I. Nas semanas que se seguiram, enfrentando os mais diversos tipos de protestos, Cromwell e Ireton cortejaram o soberano; se bem que subordinado a Fairfax, que entristecido se afastara das negociações, Oliver convertera-se no indiscutível líder político.
Hampton
Court, aquele
grande palácio construído no século anterior pelo servidor de um monarca, € depois expropriado pelo próprio monarca, fora mesmo concebido para a rea-
leza, podendo receber um número de visitantes igual ao de qualquer Corte; além dos dois e da sra. Cromwell, que viviam pelos corredores, o exército transferira seu quartel-general para um local bem próximo, Putney, ao sul do Tâmisa.
Segundo mexericos hostis, muito bem recebidos por seus inimigos presbiterianos e /evellers, a boa senhora era conduzida e “festejada” pelas
mãos de Ashburnham, Bridget Ireton e a sra, Whalley. Diz ta-se também que Oliver estava para ser feito conde — talvez de Essex, títul o perdido por seu
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parente Thomas Cromwell — e agraciado com a fita azul da Ordem da Jarreteira,* ao mesmo tempo que seu filho se tornaria ajudante de câmara do príncipe de Gales. No clima de rapprochement [aproximação], predominante nas relações entre o soberano e o exército, em agosto e setembro de 1647, nada impedia que tais histórias fossem verdadeiras. Durante as negociações,
Carlos I não sugerira a Berkeley que prometesse recompensas pessoais às lideranças militares? Aceitar honrarias não seria nenhum despautério, caso se chegasse a um acordo. Elizabeth Cromwell não teria sido a primeira nem a última mulher a se alegrar com o título de condessa, e seu filho poderia ascender junto com o pai. No mês seguinte, o jornal realista Mercurius
Pragmaticus publicou uma nota sarcástica sobre os “gastos excessivos” de Cromwell; Lilburne os atribuía à quantidade enorme de dependentes que ele tinha que sustentar? — sete ao todo, contando seu filho Henry, os genros, Ireton e Claypole, e Whalley, seu primo-irmão. No dia 7 de setembro, Carlos I viu-se forçado a informar às Câmaras que aceitaria as propostas do exército; provavelmente, ele terá sido vítima de uma pequena manobra de Cromwell e Ireton, que o ameaçaram com a moção de Newcastle, muito menos favorável. Entretanto, tudo isso se inseria no qua-
dro geral de um esforço consciente cujo objetivo era alcançar um acordo com O rei: os dois homens estavam dispostos a apoiar, inclusive, as exigências do soberano, buscando a resolução dos problemas governamentais num contexto monárquico. Sua sinceridade pode ser comprovada pela crescente veemência
de Lilburne, que os acusava de traição, juntamente com os dois “grandes conselheiros” — Oliver St John e sir Henry Vane —, suspeitos de encaminhar as questões em detrimento do exército. O radical coronel Rainsborough estava prestes a obter o posto de vice-almirante, que tanto almejava, perdendo prestígio junto a Oliver, em contrapartida. Ouvindo as intrigas, o panfletário as passou ao seu companheiro de cárcere, sir Lewis Dyve, informante do rei.*
No dia 15 de setembro, o próprio Cromwell decidiu ir pessoalmente à Torre, pretextando verificar os estoques de armamentos que ainda existiriam lá, mas
na realidade para manter longa e interessante conversa com Lilburne. Ele implorou ao seu ex-protegido que sustasse os discursos tão amargos sobre o Parlamento, pois tudo logo se resolveria. Em resposta, ouviu um pedido de julgamento público, no qual o acusado poderia defender-se aberta“A mais alta ordem de cavalaria da Inglaterra, instituída por Eduardo III e reformada por Henrique VIII. (N. do T.)
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mente — e a isso só pôde replicar com a desculpa de que a situação melhora-
ra, pelo menos em relação ao regime anterior. Ao “hábito de opressão e tira.
nia? sucedera um tempo em que “o Parlamento parecia ter se afastado da di. reção correta e justa, mas somente por acidente e necessidade”; a reforma
estava a caminho, e nesse meio-tempo, dizia Cromwell, os homens prudentes deveriam ter paciência, assegurando sua própria preservação. Lilburne, que não primava pela paciência, muito menos pela prudência, continuou a exigir
uma justiça imparcial — “o meio mais correto e melhor para que se preservem”. O tom da conversa e outras informações que chegaram ao conheci-
mento de sir Lewis Dyve confirmam a idéia de que Oliver favorecia o rei. Seus relatórios só podem ter feito Carlos I se sentir indispensável. Não esmorecia, no entanto, sua dura oposição aos agitadores subversivos. No início de setembro, por exemplo, ele tomara parte ativa no processo de expulsão do Conselho de um certo major Francis White, que dissera publicamente não existir “nenhuma autoridade visível no reino, a não ser o poder e a força da espada” — não era assim que Cromwell enxergava as coisas naquele período. Em carta que escreveu ao coronel Michael Jones, governador de Dublin, uma semana mais tarde, ele se refere à impopularidade resultante dos seus es-
forços em prol de um acordo com o rei: “Embora, neste momento, nossas ações pareçam encobertas por nuvens, pelo menos aos olhos daqueles que desconhecem as bases de nossas transações, não duvidamos que Deus mostrará nossa integridade e inocência, livres de quaisquer objetivos que não sejam Sua glória e o interesse público.” Em 21 de setembro, na Câmara dos Comuns, apoiado por Vane, Fiennes e St John, ele resistiu aos ataques dos republicanos, como Marten, que pretendiam criar uma comissão sobre os entendimentos em
curso. Contando os votos a favor, enquanto Rainsborough verificava os contrários, a proposta chegou a ser aprovada, sendo afinal rejeitada. A luta de facções tornou-se óbvia: escrevendo a seu irmão, no Staffordshire, no dia 28 de setembro, William Langley disse que os Jevellers suspeitavam de Cromwell e seu grupo, imaginando que estariam tentando ganhar os favores reais; de outra parte, Oliver considerava que eles já tinham tomado uma fatia
grande demais do poder. Langley soubera do quanto Oliver defendera o monarca na Câmara, em virtude da resposta “tão controvertida” que Sua Majesta-
de dera às propostas de entendimento.é Realmente, Cromwell passou as primeiras
semanas de outubro dividido entre o Conselho do Exército — cujas clamorosas exigências tornavam-se cada vez mais perturbadoras —, seu lugar no Parlamen-
to e as negociações com os representantes pessoais do rei, no qual ele via uma
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espécie de amuleto, capaz de deter o ávanço escocês. No dia 11 de outubro, a chegada de dois comissários de Edimburgo, encarregados de reforçar as posições de Lauderdale, só serviu para acentuar o perigo que poderia surgir daquele lado, caso eles conseguissem estabelecer um acordo antes dos ingleses. Foi nesse momento delicado — no dia 9 de outubro — que cinco regi-
mentos particularmente propensos a se amotinar lançaram um manifesto intitulado A verdadeira posição do exército, exigindo o imediato expurgo da Cà-
mara dos Comuns e sua dissolução dentro de um ano, a fim de que, mediante
sufrágio universal, outro Parlamento assumisse autoridade suprema. Uma reivindicação de tão ampla soberania popular não deixava dúvidas sobre o que
pensavam os levellers. Fairfax, na qualidade de comandante-em-chefe, recebeu
o documento no dia 18; dois dias depois, na Câmara dos Comuns, Cromwell
pronunciou um vigoroso discurso de apoio à monarquia, na expectativa de persuadir o Parlamento de que nenhum comandante militar teria tomado parte em quaisquer atos de regimentos amotinados, muito pelo contrário, sua intenção e vontade, desde o início da guerra, não foram outras senão servir ao soberano. Expressando-se em termos favoráveis a Carlos T, ele concluiu re-
clamando sua restauração, o mais rápido possível.” Mais tarde, realistas frenéticos citaram suas palavras como evidência da conspiração que ele urdira para alcançar o poder absoluto — uma prova de sua avassaladora hipocrisia. Numa avaliação mais objetiva pode-se considerar que se tratou de mais uma tentativa honesta, embora malsucedida, de defender a posição de centro contra os ataques de quase todos os lados — de fato, ele acreditava que um monarca devidamente contido poderia deter uma parcela de poder. Em meio a tantas incertezas sensacionais é que se travaram os grandes debates do exército, sem dúvida, um dos mais extraordinários da história bri-
tânica, iniciados no dia 28 de outubro, na Igreja da Santa Virgem Maria, em Putney.* A construção, datada do século XV, bem mais alta do que larga, situava-se às margens do Tâmisa, defronte a Fulham — na época o local só podia ser alcançado de barco. Sendo uma igreja paroquial distrital, que não rea-
lizou quaisquer cerimônias durante a ocupação, seus registros indicam enterros de soldados aquartelados próximo dali, alguns sem nome. À ata das reuniões, no segundo dia, refere-se a intervalos “de 8h às 11h, para buscar a Deus”;
“A histórica igreja reconstruída no século XIX, ainda pode ser vista no mesmo local, mas agora quase ao lado da (nova) Ponte de Putney.
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além disso, houve sérias invocações a textos das Escrituras e até mesmo às leis de Israel, cotejadas com as leis inglesas. Num nível certamente muito diferente,
tudo isso consagrava o popular astrólogo William Lilly, que em seu Almanaque
de 1647 previra “altas discussões (...) sobre nossos costumes e privilégios” no final de outubro. Os participantes lançaram idéias das mais disparatadas às
mais proféticas, algumas tão avançadas que só seriam implementadas trezentos
anos depois. Elas foram preservadas integralmente graças aos papéis de
William Clarke, que contava apenas 24 anos, e iniciara sua carreira como subordinado de Rushworth, secretário de Fairfax e do conselho de guerra, quando
o Exército de Novo Tipo se constituiu; no verão anterior, ele já se tornara se-
cretário daqueles comissários que tinham tentado estabelecer um acordo entre o exército e o Parlamento. As anotações taquigráficas, incluindo menções pitorescas a tipos atraentes e anônimos, como o “Casaco Amarelo” e o “Homem do
Bedfordshire”, são da responsabilidade do próprio Clarke. Estando Fairfax doente, em Turnham Green, quem presidiu às reuniões foi Cromwell, que além disso desempenhou importante papel numa das comissões — sua experiência anterior em diversos comitês foi valiosa — e, mais uma vez, mostrou ser bom orador, obtendo os resultados menos ruins. Bem que gostaríamos de tê-lo ouvido discursar, a fim de podermos avaliar seu estilo, pois entre Marvell, que menciona “aquela linguagem poderosa e encantadora”, e Burnet, que alude à sua forma “muito pouco graciosa”, há certamente espaço para mui-
tas interpretações. Não terão sido somente suas palavras, tão ardentes e diretas, que impactavam os ouvintes. Força, para não dizer veemência, é uma das maiores qualidades que ele claramente possuía desde o início de sua vida pública — uma elogiência que Carrington descreveu educadamente como “masculina € marcial” —, qualidade inata, não adquirida. A ele também não faltava aquela
capacidade auto-induzida de disparada emocional, talvez vinculada ao seu sangue galês. O embaixador veneziano, tentando descrever esse fervor apaixonado de forma mais fria, disse que Cromwell discursava mais como pastor do que
como estadista.” Às vezes, provocando lágrimas em seus próprios olhos, às vezes, nos olhos da entusiástica audiência — e , ÀS vezes, o rosnar de “hi póc rita”
nos lábios de seus inimigos. É em Putney, no entanto, que nasce aquela forma de expressão obscura que parecia possuí-lo como um espírito mau, sempre que o tema em debate fosse difícil e duvidoso, a linguagem torturada que se tornou uma caracterís-
tica marcante de sua oratória como Protetor, embora outros fatores possam
ter contribuído para tais registros desconexos, inclusive sua própria falta de
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anotações ou suas hesitações. Acusado de usar deliberadamente recursos am-
bíguos a fim de esconder o significado de suas idéias, na realidade isso pode ter sido um recurso muito útil, principalmente quando foi obrigado a se diri-
gir a um Parlamento durante o Protetorado. Mais tarde, sir Roger | Estrange supôs que a “confusão” de seus discursos era deliberada: “nisso resídia sua habilidade — impedir que seus amigos se enganassem com ele, sem ser entendido por seus inimigos. Tomando uma posição de centro, ele ganhava o
tempo necessário à remoção dos obstáculos e ao amadurecimento das oca-
siões (...)?. Fletcher comentou sua atuação em reuniões públicas, “onde ele
deixava aos demais a tarefa de descobrir o significado, em vez de esclarecê-lo por si mesmo”. Todavia, é bastante significativa a gênese dessa qualidade nos debates de Putney. Lá, longe de estar sob qualquer controle, ele tentava assumi-lo, e com uma genuína dúvida sobre o melhor caminho a seguir, sugerindo que o estratagema tenha começado, pelo menos, involuntariamente. Um furioso escritor referiu-se, mais tarde, ao modo de Cromwell inclinar-se, en-
quanto falava, como se estivesse “pronto para enxergar o pombo de Noé”.'º A imagem de um homem buscando a verdade é provavelmente correta, mas não a fonte de inspiração que se lhe atribui. A base das propostas dos /evellers já fora escrita antes. Conhecidas como O Compromisso do Povo, tinham sido elaboradas por John Wildman, renomado agitador e advogado, pouco mais de vinte anos, autor igualmente d'A Posição do Exército, nelas se propunha um novo sistema de governo. O Parlamento deveria ser dissolvido, e um novo, com quatrocentos membros, escolhido a cada dois anos, reunir-se-ia de junho a dezembro. Não se reivindicava nada tão revolucionário como o sufrágio universal: o eleitorado incluiria todos os “chefes de família, maiores de 21 anos, que não tivessem prestado ajuda ao rei ou criado obstáculos para o exército”, excluindo-se, portanto, “os esmoleres, assalariados e servos”. Nomeado pelo novo Parlamento, um Conselho de Estado criaria € aboliria Tribunais e aprovaria as leis a que se submeteriam todos os habitantes
do reino. A religião, mantida sem dinheiro público, seria reformada, “assegurando-se maior pureza à doutrina, à adoração e à disciplina, de acordo com a
Palavra de Deus”, excetuando-se da tolerância apenas os católicos e os socianos. Por trás desta ampla gama de solicitações havia um igualmente amplo espectro de princípios filosóficos e um estranho e romântico apelo à história inglesa.
Em agosto, no Parlamento, Fairfax mencionara a Magna Carta — “É por ela
que lutamos todos nós” — referindo-se à noção convencional acerca da origem
das liberdades inglesas. Lilburne e seus associados, entretanto, remontavam à
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época da conquista — Carlos I seria apenas o último de uma longa série de reis normandos, que teriam imposto seu jugo aos saxões e a todos os ingleses,
arrebatando ao povo direitos ancestrais. E importante lembrar que apelo similar às antigas liberdades já aparecera Cd
na década de 1620, na Petição de Direitos. Os /evellers limitaram-se a expandir a doutrina. Lilburne, que tinha começado sua campanha apelando para a Magna Carta, em 1645, considerava este documento provisório, uma etapa anterior
a grandes melhorias.” Na prisão, ele concluiu que o homem só pode dar seu
consentimento ao governo enquanto cidadão; em contrapartida, quem governasse outros indivíduos não poderia ir além do livre consentimento, conforme fos-
se melhor a cada um. Assim, desde o seu título, O Compromisso do Povo estava repleto de significado, sinalizando os fundamentos da nova sociedade. Tudo isso, é claro, estava a anos-luz de distância das lutas da oposição parlamentar ao rei, que tentava estabelecer, constitucionalmente, o que já fora realizado pela força, ou seja, situar a suprema autoridade do reino. Um acordo do tipo proposto pelos /evellers teria que ser ratificado não apenas pelo Parlamento, mas ainda por todos os ingleses; representava um novo contrato social, pois Lilburne acreditava que o anterior se dissolvera em consegiiência da guerra — extinguindo os direitos do Parlamento enquanto representação do povo. Esse audacioso programa costuma excitar a imaginação moderna. Richard Overton, por exemplo, radical extremado e fanático opositor ao jugo
normando, em seu Appeale [Apelos], sugeria escolas gratuitas em todo o país
e o tratamento organizado dos doentes, pobres e idosos. Devemos insistir, no entanto, que qualquer avaliação moderna não pode nem deve desprezar as características extremamente revolucionárias e mesmo assustadoras dessas propostas na época em que foram formuladas e para a sociedade contemporânea. O debate teve início com um discurso bastante franco de um proeminente agitador, Edward Sexby, originário de Suffolk, que se unira ao regimento de cavalaria de Cromwell por volta de 1643 — em abril de 1647 integrara à trinca de soldados encarregados de entregar uma carta do exército aos generais. Demonstrando um estilo cortante, ele começou explicitando a posição
contrária aos entendimentos que Cromwell e Ireton vinham mantendo com O rei e mencionou duas razões concretas, na raiz dos problemas existentes, ambas decorrentes de tais iniciativas: tentando satisfazer a todos, os líderes só tinham conseguido desgostar a todos; e tentando satisfazer o monarca, Só O
conseguiriam se todos se dispusessem a cortar suas próprias gargantas. Ade« “suportes apodrecidos” — a Câmara dos Com em se domais, apoian uns,
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segundo rude comparação do orador —, viam-se sem sustentação. Cromwell
reagiu de maneira conciliadora mas prudente: “De fato”, ele observou, “este documento propõe enormes modificações no governo deste reino, alterações
no governo atual, um governo que existe desde quando nos tornamos uma nação (...) e que consegiências acarretariam tais alterações, caso fossem imple-
mentadas, e mesmo que não se chegasse a isso ou a outras alternativas, ho-
mens sábios e homens de Deus teriam que considerá-las (...).”12 Oliver prosseguiu enumerando todos os possíveis riscos, alguns dos quais
extraídos da sua imaginação, mais do que da realidade. Supondo-se, por
exemplo, que outro grupo de homens estivesse reunido, preparando um documento semelhante, “não haveria uma completa confusão? A Inglaterra se
transformaria numa Suíça, um cantão contra o outro, um condado contra outro??, A opinião pública também não pode ser ignorada — “os espíritos e temperamentos do povo desta nação estarão preparados para receber e concordar com isso (...)”. É incrível que esses sentimentos calmos e ponderados, a própria voz da fé, em geral tão clara, nem sempre seja ouvida. Oliver via
pela primeira vez esses estranhos pântanos, através dos quais a luz anteriormente confiável poderia conduzir alguns membros do exército — uma perspectiva certamente desconfortável, geradora de insegurança. “Eu sei que um homem pode responder a todas as dificuldades com a fé, mas não basta propor coisas que se tornarão boas, e [mesmo] que esse modelo seja excelente, adequado à Inglaterra, e o reino o receba, é nosso dever de cristãos considerar as conseqluiências e sondar o caminho.”
Ireton, e não Cromwell, já dissera que nenhum plano objetivando a destruição do rei e do Parlamento contaria com sua cooperação. Naquele momento, como autor da Proposta do Exército, ele postulou com igual firmeza que os soldados haviam assumido um “compromisso” com os documentos anteriores: não poderiam rasgá-los, publicamente, alegando que já não gosta-
vam deles. Contrapondo-se a esse argumento, Rainsborough e John Wildman
alegaram que as necessidades da justiça sobrepujavam quaisquer compromissos. Aparentemente, até nesse ponto Cromwell preocupou-se mais em baralhar as cartas, se preciso fosse, concordando com ambos os lados. Numa arenga particularmente prolixa e redundante, ele ruminou sobre se seria cor-
reto ou não romper obrigações solenes, posto que existiam tantos fatores que
precisavam ser levados em consideração: “As circunstâncias podem ser de tal ordem que me obriguem a sustentar um pacto incorreto ou me permitam agir de forma escandalosa por algo bom.” Acabou propondo uma comissão que se
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responsabilizasse pelo exame da questão — o único item afinal aprovado, naquele dia —, sendo indicado para compô-la com outros 17 participantes, in-
clusive Sexby e cinco agitadores."
A jornada seguinte começou com uma oração sugerida por um certo coronel Goffe, homem de exuberante espiritualidade, deveras inclinado a idéias des-
ta natureza. Na noite anterior, Cromwell advertira Wildman e seus seguidores
para que não rezassem com os ouvidos fechados. “Não vou dizer mais do que isto: peço a Deus que julgue (...) quando nos encontrarmos, se nos aproximaremos Dele atentos à defesa de nossas opiniões ou se nos colocaremos diante Dele a fim de sermos por Ele dirigidos, fazendo tudo o que nos comunicar” Qualquer definição desagradaria a todos. A questão dos compromissos anteriores foi novamente brandida. Cromwell e Ireton reafirmaram categoricamente
que não tinham nenhum entendimento secreto com o rei e manifestaram preocupação com a palavra empenhada do exército no tocante às Propostas — voltando atrás, temiam ser acusados de “malabarismos, enganos e ilusões”.!* Nessa atmosfera intranquila, o Compromisso do Povo foi relido, deflagrando um caloroso debate sobre o primeiro artigo, que propunha um eleitorado proporcional ao número de habitantes, uma sugestão inovadora, sem dúvida, que
eliminava a noção prevalecente desde os primeiros dias do Parlamento, sob o reinado de Eduardo 1, segundo a qual a representação vinculava-se a qualificações de propriedade ou status social, além de alterar o parcelamento das unidades eleitorais, entre condados e burgos, nem sempre correspondente à realidade do reino, cuja população urbana crescia sem parar. Ireton ergueu-se: “Se a idéia é conferir a qualquer habitante o mesmo conceito, dando-lhe voz na eleição dos representantes (...) tenho algo a dizer contra isso.” E ele o fez, com coragem €
sinceridade, numa linguagem admirável, clara e coerente, enfrentando uma audiência hostil, clamando por menos reforma, em vez de mais. Antes de tudo, tratou de derrubar as premissas dos argumentos de seus adversários:
Para desenvolver esta regra, acredito que devamos buscar abrigo no direito natural absoluto, relegando todos os dir eitos civis (...) de minha parte [o direito natural] não é um direito. Creio que ninguém tem direito a um interesse, ou participação, na dis posição e determinação do reino, e só quem tiver um interesse permanente neste reino poderá escolher aqueles que irão determinar
quais as leis que deverão nos reger (...) ter nas cido aqui não me parece ser razão suficiente, capaz de conferir a um
homem
ma parcela de poder sobre as terras e as coisas daqui. !5
algu-
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Percebendo a profundidade do que estava em discussão, sem dúvida influenciado pelas fisionomias dos que o ouviam, muitos deles provenientes da cate-
goria geral dos não-proprietários, Ireton discernia um ataque velado ao próprio
conceito de propriedade. Não se tratava de nenhuma coincidência o fato dos
homens se qualificarem para votar como proprietários, mas artigo fundamental
da Constituição, e, se isso fosse derrubado, “caminharemos inexoravelmente no
sentido da tomada da propriedade e dos interesses (...) na terra, por herança ou simples posse”. Apaixonado, Rainsborough replicou, insistindo no direito do
povo, fundamento de toda a lei: “Não há nada na lei de Deus mandando que
um lorde deva eleger vinte burgueses, ao passo que um cavalheiro só pode indicar dois, e um homem pobre não tenha o direito de escolher um sequer.” Ireton manteve-se firme até o fim. “Tudo o que defendo é com os olhos voltados para a propriedade” — ele acreditava que isso se perderia caso predominassem os chamados direitos naturais. Quando Rainsborough perdeu a calma diante das suas insinuações de que o que se propunha era a anarquia, Cromwell interveio: “Ninguém aqui diz que estais desejando a anarquia, mas que a proposta tende à anarquia; chegará à anarquia; pois onde não houver nenhuma fronteira ou limite definido (...) os homens que não têm nenhum interesse exceto o de respirar perderão o interesse nas eleições. Por isso, creio que não devemos nos agredir
mutuamente.”!$
O debate prosseguiu nesses termos. O capitão Audeley queixou-se de tanta lengalenga, afirmando que a impressão que se tinha é que continuaria até o dia 10, provavelmente aludindo aos idos de março. Sexby fez algumas observações relativas aos soldados, que haviam arriscado suas vidas na guerra, mas permaneciam sem direitos. Cromwell protestou contra os modos agressivos de Sexby; tais sentimentos, disse ele, “significavam puro voluntarismo”, e propôs outra comissão para que se chegasse a um acordo. Antes do fim da reunião, John Wildman criti-
cou detalhadamente as Propostas, afirmando que elas preservavam a autoridade do rei e da Câmara dos Lordes e deixavam o controle da milícia em suas mãos, por
isso apenas aperfeiçoavam os fundamentos da escravidão, reforçando-os ainda
mais. Em resposta, Ireton tentou provar que os pontos principais do Compromisso
estavam substancialmente cobertos pelas Propostas, mas Wildman insistiu; gritando que a futura liberdade dos soldados estava sob ameaça, ele sustentou que o
povo de Deus fora expulso e pisoteado, em muitos lugares do reino, sendo necessária uma anistia, a fim de impedir que os juízes do rei mandassem enforcar al-
guém por atos praticados durante a guerra. Mantida a constituição em vigor, porém, nada seria lei, exceto o que o rei assinasse.”
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No terceiro dia, 30 de outubro, o comitê dos oficiais reuniu-se, mais uma
vez, com um representante dos agitadores. Os argumentos dos /evellers causara suficiente impressão para que se concordasse em estender o sufrágio universal q todos os que tivessem participado do último conflito, mediante serviços, armas, cavalos ou dinheiro. Assim, os soldados obteriam direitos políticos, pelo menos, O ânimo de Cromwell, no entanto, tinha sido bastante sacudido nos debates em
torno da monarquia como forma de tirania, e a necessidade de eliminar o rei e a Câmara dos Lordes não afastara seus temores. As notícias filtradas da Corte, dando conta das atividades do monarca, eram igualmente preocupantes. Estaria
Carlos I pensando em fugir, apesar de ter empenhado sua palavra de que não o algumas indicações que sinalizavam nesse sentido: tinham-lhe solicitado que retirasse os guardas postados dentro do palácio, porque o ruído que faziam dificultava o sono da princesa Elizabeth, de 11 anos; mais preocupante foi quando se pediu ao soberano que renovasse seu compromisso de não empreender nenhuma fuga, e ele se recusou. Em consegiiência, na data supra, fortaleceu-se a guarda e proibiram-se as visitas dos leais Berkeley e Ashburnham. Contudo, no dia seguinte, quando Cromwell chegou a Putney, tais problemas ainda não eram do conhecimento geral. Ele estava preocupado em argumentar sobre questões práticas, aceitando até mesmo a controvérsia da monarquia. Afinal de contas, desde épocas muito remotas, os nham experimentado as mais diversas formas de governo, variando de família a juízes e reis, de acordo com as necessidades de cada
a respeito judeus tide chefes momento.
Portanto, todos estavam obrigados a admitir a forma de governo que melhor
conviesse à situação concreta, principalmente, acrescentava ele, quase patético, visto ser a liberdade de consciência o objetivo original, e toda a disputa acerca de questões temporais não mais que “refugo e excremento, em compa-
ração
com
Cristo” —
palavras
de S. Paulo.!º Apesar
disso,
a questão
do rei €
da Câmara dos Lordes motivou muita discussão: Wildman opunha-se a qualquer tipo de poder de veto, e até mesmo Ireton acreditava que o poder devia ser limitado. O que Oliver queria, entretanto, é que o exército reafirmasse seus compromissos anteriores. No dia 2 a comissão estabeleceu um esquema, muito parecido ao que
fora elaborado por Ireton. O soberano seria mantido, mas perderia a maior parte de suas prerrogativas; o poder caberia à Câmara dos Comuns. Passadas
24 horas, no entanto, à insatisfação com a monarquia recrudesceu: Fairfax fo!
a
faria? E se o fizesse, tentaria conseguir o apoio dos escoceses? Isso não desencadearia uma nova guerra? Whalley, primo de Cromwell, via pelo menos
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acusado de “levantar a bandeira do rei” e alguns dos soldados de estarem so-
frendo reações sentimentais em favor da realeza. No geral, o plenário parecia estar se voltando contra Cromwell e Ireton, apesar de todos os seus esforços, haja vista duas votações, realizadas nos dias 4 e 5 de novembro, francamente
contrárias às suas posições. Primeiro, decidiu-se estender o sufrágio a todos, menos servos e mendigos; depois, os extremistas conseguiram aprovar a convocação de um encontro geral do exército e a remessa de uma carta do Con-
selho ao Parlamento exigindo a suspensão das discussões com Carlos 1.
Não bastassem esses problemas, o rei exigia ir a Londres a fim de estabelecer um tratado pessoal. Ao mesmo tempo, os Comuns acharam por bem
aprovar uma lei obrigando o soberano a acatar todas as normas votadas pela Câmara. O mínimo que Cromwell conseguiu, dias mais tarde, foi que o Conselho do Exército ordenasse aos oficiais que se retirassem para seus respecti-
vos regimentos, até o momento do encontro geral; e, no dia 9 de novembro,
uma moção determinando que as discussões seriam em comitês, ao contrário da idéia dos levellers, defensores de um plenário gigantesco. O Conselho do Exército suspendeu suas atividades por duas semanas, mas os oficiais continuaram reunidos, e foi sob seus auspícios, ainda em Putney, dois dias mais tarde,
que o major Thomas Harrison desferiu um ataque crucial contra Carlos 1. Filho de um criador de gado do Staffordshire, ele ingressara no Parlamento, em 1646, sem esconder suas tendências religiosas milenaristas — confiava no advento do Reino de Cristo na terra. Referindo-se ao rei como “um homem sujo de sangue”, propôs que fosse julgado por seus crimes. Já se sugeriu que em sua resposta Cromwell teria admitido, pela primeira
vez, essa possibilidade, mas o resumo da sessão mostra que suas preocupações não estavam voltadas para o futuro, ao contrário, centravam-se num presente
assaz desagradável. Citando diversos precedentes, inclusive das Escrituras, ele afirmou que a punição do assassino não serviria de nada naquele momento. Concordou que os delinguentes deviam ser punidos com base em sanções le-
gais, mas não em meio a disputas, e somente por quem de direito. Só aceita-
ria a tarefa se ela se impusesse, como “um dever absoluto e indiscutível” — resposta bastante morna,?º sem outra intenção além de afastar os discursos al-
tamente emocionais. Ninguém levou em consideração os planos do “homem sujo de sangue”, aliás bem adiantados. Enquanto Berkeley tentava convencê-lo a escapar para o
continente, Ashburnham, segundo seu próprio relato, expunha as grandes vantagens dele buscar refúgio na ilha de Wight, governada pelo coronel Robert
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Hammond, adepto da causa realista; casado com a filha de John Hampden, primo de Cromwell, ele era sobrinho do capelão de Carlos I. Os comissários escoceses, interessados em novas aberturas que levassem o rei a consentir em maiores concessões religiosas, sugeriam Berwick; e ainda restava uma última
possibilidade: a ilha de Jersey, bastião da realeza. Num ponto todos concordavam: o monarca não podia permanecer encarcerado — devia evadir-se. Parecia existir perigo em toda parte. Escrita, talvez, pelo irmão de John
Lilburne, tenente-coronel num dos diversos regimentos amotinados do exército, uma carta anônima advertia o rei sobre uma conspiração que visava matá-lo,
antes de qualquer julgamento. No dia 11 de novembro — data do discurso de Harrison contra o soberano — Cromwell escreveu a Whalley, referindo-se a rumores, no estrangeiro, “acerca de um atentado à pessoa de Sua Majestade (...) rogo bastante cuidado em sua vigilância, pois se tal acontecesse seria terrível”. Mais adiante, segundo revelação de Berkeley, em suas Memórias, ele aconselhou um reforço da guarda a fim de obstar a violência dos /evellers.* O texto foi exibido ao rei, imediatamente, segundo Whalley, não para atemorizá-lo, mas no sentido de provar as boas intenções dos oficiais encarregados de sua segurança. Ao menos dessa vez o rei agiu com ligeireza e determinação, deixando uma nota na qual explicava que sua fuga não se dera por causa da carta de Cromwell, mas porque ele estava “cansado de ser prisioneiro”, mesmo tendo em vista a salvaguarda de sua vida. Escapou “pela escada dos fundos, através de uma passagem subterrânea que conduzia ao rio” — ou, conforme Cromwell escreveu mais tarde, para o ar fresco da noite e da liberdade. Do lado de fora, encontrou Berkeley, Ashburnham e William Legge, conspirador realista, antigo governador de Oxford — e os quatro desapareceram por completo. O fato não tardou a ser des-
coberto e as notícias foram enviadas a Oliver, que as transmitiu ao presidente da
Câmara dos Comuns, em carta datada de “Hampton Court, meia-noite”. O pequeno grupo de fugitivos tomara a direção da ilha de Wight; Berkeley e Ashbur-
nham seguiram na frente com o objetivo de prevenir Hammond, enquanto o monarca aguardava em Titchfield, perto da costa, na residência do conde de Southampton. Chegando ao destino, ele ficaria no castelo de Carisbrooke ou viajaria para a França. À inesperada reação do governador, genuinamente assombrado, liquidou as duas alternativas. Lívido, tremendo como vara verde, ele expressou funestos sentimentos, exclamando: “Oh, cavalheiros, vós me destruístes...”2 Mais leal ao Parlamento do que a seu rei, resolveu abrigar o soberano em
Carisbrooke, mas como prisioneiro, informando a Camara dos Comuns à respei-
to do acontecimento tão incrível quanto inesperado.
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Enquanto Carlos 1 e seu relapso súdito se debatiam em estado de singular confusão, Oliver Cromwell compareceu perante o Parlamento e, prestando infor-
mações acerca do ocorrido, segundo Clarendon, demonstrou “uma alegria tão
pouco usual que deixou patente o fato do rei estar exatamente onde ele desejava
que estivesse”. Seu retorno aos campos de batalha e a inegável conveniência, para
ele, da mudança do monarca, permitiram que seus inimigos desenvolvessem uma
teoria conspiratória que no futuro haveria de incriminá-lo fortemente. Em Carisbrooke, Carlos I estava a salvo dos /evellers, longe dos escoceses e sem boa parte de sua vantagem pessoal, perdida em virtude da fuga. Face ao destino que lhe coube e à solução dada à questão do poder é fácil ligar os fatos e atribuí-los à
esperteza de Cromwell. Foi o que fez Marvell, ao compor estas famosas linhas: Entrelaçando medos sutis e esperança, Ele teceu um ninho de tal amplitude, Que o próprio Carlos veio a cair Na armadilha de Carisbrooke...
À questão é: tratou-se de uma difamação como tantas outras, engendrada pelos realistas, ou algum conluio secreto, no qual ele realmente se envolveu? Em sua defesa, costuma-se apontar para a trama discutida, ponto a ponto, pelo rei, Berkeley e Ashburnham. Todavia, o testemunho posterior desses dois não esclarece, por exemplo, aquela carta a Whalley — seria mesmo tão fortuita assim? Não expressaria, propositadamente, sentimentos capazes de induzir o monarca à fuga imediata? Não veio ela a calhar, em meio àquela situação tão explosiva? Tais suspeitas persistem, acrescidas da misteriosa visita de Cromwell a Hammond, na ilha de Wight, no princípio de setembro; o regis-
tro de um jornal da época, à falta de quaisquer outros motivos aparentes, insinuou que a autoridade do governador estaria sendo ameaçada.? No terreno da pura conjetura é possível conceber uma demonstração dos novos talentos políticos de Cromwell, capaz de avaliar as enormes vantagens
que lhe adviriam da transferência do rei para Carisbrooke, longe da capital. A reação de Hammond também poderia ser prevista. À partir do momento em que Ashburnham mordeu a isca, os planos teriam se desenrolado sem maiores atropelos — e com uma boa dose de sorte, evidentemente. Daí em “ diante, contudo, as incertezas são tantas que bloqueiam qualquer especulação. Chega-se à conclusão, no máximo, de que tudo se encaixa nos hábitos de Oliver: manipular, tentar convencer e sugerir quando não havia como dirigir.
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De volta ao centro da disputa, Cromwell enfrentou, além do ressentimento
do exército, muita impopularidade na Câmara dos Comuns, onde Marten e Rainsborough chegaram a cogitar do seu impeachment; no entanto, a histó-
ria alucinada de Lilburne, que atribuiu ao primeiro a intenção de cravar
uma adaga em Oliver — como “um Felton”? (o assassino do duque de
Buckingham) —, provavelmente não é verdadeira. O primeiro dos três en-
contros prometidos ao exército realizou-se em Corkbush Field, próximo a
Ware, em 15 de novembro: o palco fora armado para que se apresentasse aos soldados um manifesto contendo as idéias dos oficiais. Os homens estavam num evidente mau humor, e como num conselho de anjos caídos, de Milton, “sentindo seus méritos feridos, expuseram idéias fixas, demonstrando todo o seu grande desdém”. Pior: compareceram dois regimentos conhecidos por sua rebeldia e que não haviam sido convidados, inclusive o do irmão de Lilburne; trazendo cópias do Compromisso, eles enfeitavam seus chapéus com fitas em que estava inscrito o lema: “Liberdade da Inglaterra! Direito dos Soldados!” Nenhum general cioso da disciplina poderia tolerar tal situação. Cromwell reagiu enfurecido não somente às acintosas proclamações, como também à desobediência direta dos regimentos não convocados, e, ante a atitude dos que se recusaram a retirar os emblemas, sacou da
espada resolutamente. Quatro líderes foram detidos, e a um deles, por sorteio, coube servir de exemplo aos demais, sendo passado pelas armas. Essa
tática, típica dos “flancos de ferro”, assegurou um clima de maior calma
aos dois encontros seguintes. Em 19 de novembro, porém, na Câmara dos Comuns, ele fez um pronunciamento dramático, demonstrando o quanto aprendera de Rainsborough e os outros fanáticos críticos do “jugo normando”, durante aquelas longas sessões
realizadas no outono na igreja de Putney. Gratificado com a unanimidade do
exército e sua maior disciplina, Cromwell argumentou que os soldados, tendo submetido o reino, tal qual Guilherme, o Conquistador, haviam adquirido O direito de opinar sobre as leis, preservando a própria liberdade.* Quando
John Swynfen, representante de Stafford, questionou este ponto de vista sur-
“Sobre este discurso, assim como os de 23 de novemb ro e 3 de deze mbro, ver David Underdown, The Parliamentary Diary of John Boys 1647- 8. Aos quarenta anos, tendo integrado o Parlamento nos dois anos anteriores, Boys pronunciou discursos radicais, embora tenha votado com os moderados, em algumas ocasiões; sua carreira como a de muitos membros E do, serao demonstrou particular consistência. do grupo de centro, naquele perío Seus textos; boa parte deles escrita em mau francês, contêm algumas expressões extrav agantes
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preendentemente não parlamentar, Oliver criticou-o por não reconhecer os direitos da tropa de peticionar, enquanto ingleses, “apenas como súditos”2 e afirmou que a representação se daria na medida da obediência e concordância
dos soldados ante o Parlamento. Cromwell foi então incumbido de comunicar ao exército que a Câmara es-
tava pronta a receber suas reivindicações, desde que fossem encaminhadas con-
forme os trâmites parlamentares. No entanto, passados quatro dias, quando os
Comuns criticaram e condenaram os soldados, tratou de dissociar-se “dessas
propostas de nivelamento e paridade etc.”. Na verdade, dera-se conta de que os homens insistiam em medidas já censuradas pelos oficiais e por ele próprio.
Sua oscilação entre os diversos poderes do reino, todavia, não poderia continuar para sempre. Foi pelo final de novembro, provavelmente no dia 23 ou 24, que a gangorra desceu finalmente, lançando contra o soberano todo o peso e a autoridade de Cromwell. Aparentemente, tratou-se de uma decisão bastante súbita. Apesar de todos os esforços anteriores no sentido de um acordo, no dia 26, quando trouxe as cartas de Carlos I pedindo o apoio dos oficiais à sua restauração, Berkeley ficou sabendo dos discursos hostis que Oliver e Ireton haviam feito perante o Conselho do Exército. As más notícias incluíam um dado sinistro: Cromwell referira-se aos /evellers com calor pouco habitual, dizendo: “Se não pudermos trazer o exército para nossas posições deveremos nos encaminhar para as deles.” Recusando um encontro com o emissário de Sua Majestade, mandou avisá-lo de que não estava mais disposto a morrer pelos interesses do monarca.
Que inspiração, que dado ou mesmo que descoberta teria levado a essa reviravolta, após quatro ou cinco meses de favorecimento à causa do rei? Diferentemente de Carisbrooke, o próprio Cromwell encarregou-se de explicar O mistério: dois anos mais tarde, perguntado por /ord Broghill sobre as razões
que o exército tivera para desistir de um acordo com Carlos 1, ele contou uma história digna dos romances de Alexandre Dumas, fazendo revelações
Incríveis que Thomas Morrice, capelão e biógrafo de seu confidente, entregou à posteridade. O incidente da “Carta da Sela” teria ocorrido no outono de 1647: temerosos de uma aliança dos presbiterianos ingleses e escoceses, Oliver e sua facção estavam dispostos a “fechar com o rei”, mas foram avisados por um espião, cujo nome nunca foi revelado, de que, apesar de todos os
esforços que vinham empreendendo, sua “destruição final” tinha sido decretada — uma carta costurada às abas de uma sela revelaria toda a falsidade do soberano. Na data especificada, seu portador estaria na Blue Boar Inn, em
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Holborn, por volta das dez da noite, carregando a sela na cabeça. De lá, des. conhecendo o conteúdo da missiva, tomaria o rumo de Dover, onde homens que sabiam de tudo o aguardavam. Ciente da informação, Cromwell parece mesmo ter vestido o manto de um dos audazes mosqueteiros de Dumas. Em Windsor, envergando roupas de soldados comuns, ele e Ireton, na companhia de um único “homem de confiança”, dirigiram-se à hospedaria de Holborn. Enquanto os dois bebiam canecas de cerveja, o acompanhante permaneceu do lado de fora e, às 22h em ponto,
alertou-os: o homem da sela chegara. Empunhando as espadas, os dois líderes do exército correram para o exterior e ameaçaram o estranho — ignorante de tudo e, portanto, honesto — cortando a aba da sela onde se achava a carta. À
mensagem era realmente mortal, conforme avisara o espião: nela o soberano relatava à rainha as jogadas do exército e dos presbiterianos escoceses, ambas as facções interessadas em obter seu concurso, apesar dele já ter tomado uma decisão — “preferia os escoceses”. No retorno a Windsor, os dois aventureiros tam-
bém se decidiram, segundo as palavras de Cromwell, “percebendo que não chegaríamos a termos aceitáveis com o rei, resolvemos buscar sua ruína”.?
Essa estranha história, contada de segunda mão e publicada muito depois dos acontecimentos,* pode parecer improvável, mera ficção. No entanto, despida de certos exageros compreensíveis, foi confirmada, inclusive pelo relato de sir William Dugdale — embora ele mencione uma correspondência dirigida pela rainha ao rei.? Algo dramático e radical terá sucedido, para justificar mudança política tão radical e dramática. O “espião”, provavelmente, seria algum criado de quarto, mandado por Hammond; a carta ou as cartas provariam a natureza pouco confiável de Carlos I. Caindo nas mãos de Cromwell e Ireton, no final de novembro, justamente no momento mais deli-
cado das negociações políticas em que estavam envolvidos, ameaçados tanto pelos escoceses quanto pelos radicais do exército, levou-os a uma completa reavaliação do caráter do monarca. Contudo um único episódio poderia ter produzido tal efeito? Vale lembrar não somente as muitas ocasiões em que 0 rei demonstrara publicamente sua perfídia, mas ainda a atenção pessoal que “Roger, lord Broghill, mais tarde conde de Orrery, viveu até 1679, mas poderia ter contado a história muito antes de morrer, é claro. No século XVIII, a localização da “Carta da Sela”
foi objeto de muita especulação. Por volta de 1743, Bolingbroke disse a Alexander Pop* que lord Oxford levara uma carta do rei à rainha e que a an fora interceptada; mesma p E ã em estaria : missiva a que de E Ene disso a circulou a informação Ê mãos de um leiloeiro chama o z
Millington, mas que ele não a mostraria a nenhum pesquisador.”
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Cromwell dava às indicações da Providência. A Carta da Sela pode ter sido interpretada por ele como um sinal de que as negociações deviam ser susta-
das, pois não contavam com a aprovação divina.
Dois dias após a “conversão” de Cromwell, operada no Conselho do Exército, em 27 de novembro, o clima do Parlamento também se alterou: isso se tornou claro quando as chamadas Quatro Leis foram apresentadas
como precondições a qualquer acordo com o rei. Todas as declarações anterio-
res contra o Parlamento deveriam ser anuladas; a milícia ficaria sob seu controle pelos vinte anos seguintes e a Câmara se reuniria quando julgasse con-
veniente; honras reais, concedidas depois de 1642, seriam revogadas. Alguns
realistas acusaram Cromwell e Ireton de traição. Ludlow, porém, insiste numa história que muito prejudicou o monarca, visto lançando um osso a
dois spaniels, em Carisbrooke, e rindo alegremente, enquanto os cães lutavam pela peça.” De um jeito ou de outro, o soberano suspendera seus contatos com os escoceses; em 15 de dezembro, ele chegara a redigir um documento prevendo a vinda de um exército de seus aliados à Inglaterra e um acordo religioso, mediante o qual se suprimiriam diversas seitas, inclusive os anabatistas, brownistas e “independentes”. Esse texto, mais tarde conhecido como Compromisso, permaneceria em sigilo, encerrado num cofre de chumbo
e enterrado no jardim de Carisbrooke, até a data de sua triunfal divulgação. De fato, bastaria ao exército adivinhar seu conteúdo para que se tornasse con-
cebível o tom dos debates travados em 21 de dezembro, em Windsor; e mais
difícil criticar suas lideranças — Cromwell e Ireton — acusando-as de trair publicamente quem trabalhava para traí-las em segredo. Nessa reunião do Conselho do Exército, inesperadamente, Cromwell e os levellers se confraternizaram. Durante as orações habituais, escreveu um observador, tocaram-se “músicas de uma suavidade para lá de celestial”. Coroando,
afinal, suas tentativas, que vinham desde setembro, o coronel Rainsborough ga-
nhou o posto de vice-almirante. Do ponto de vista do rei, o pior que poderia acontecer foi a sugestão de que ele deveria ser julgado “como pessoa criminosa” — sujeito a pena de morte, portanto. Watson, intendente-geral do exército, encarregou-se de transmitir-lhe as notícias, embora se pretendesse mantê-las em sigilo, até que — segundo Clarendon — o Parlamento fosse “gradualmente engabelado, para fazer o que nunca tivera a intenção de fazer”. A aliança de
Carlos I com os escoceses ainda não se concluíra, em virtude de duas exigências adicionais: igualdade de oportunidade no serviço público e fixação da residência do monarca, ou do príncipe de Gales, na Escócia. Com o tempo, e de =
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preferência em liberdade, ele amadureceria esses planos. Assim, no dia 28 de dezembro, peremptoriamente, recusou as Quatro Leis do Parlamento e recla. mou, mais uma vez, um tratado pessoal. Esperava fugir para Jersey no mesmo
dia, mas Hammond expulsou Berkeley, Ashburnham e Legge da ilha, botan-
do tudo por água abaixo. O governador agiu com rapidez, advertido pelo primo, que escreveu contando detalhes da fuga: “Estais autorizado a expulsar os
servidores que pareçam suspeitos; fazei-o sem demora, ao menor sinal de perigo. Vereis que Deus honrou e abençoou todas as ações firmes dos que lutam
por Ele; não duvideis, pois Ele continuará obrando desta forma,”3º No dia 3 de janeiro de 1648, a Câmara dos Comuns debateu a questão do “Nenhum Contato” — dever-se-ia prosseguir nas tentativas de aproximação com o rei ou ele deveria ser considerado um caso perdido. Clarendon, um panfleto da época e o diário de John Boys dão conta dos discursos que se pronunciaram naquela sessão, e todos concordam em que a fala de Cromwell distinguiu-se pela profunda mudança de atitude em relação ao soberano; do homem mais honesto e consciencioso do reino, conforme ele dissera a Berkeley, uma vez, Carlos I se tornara um “tão grande dissimulador e (...) tão falso, que não se pode confiar nele” — em outra versão, “um homem obstinado, cujo coração Deus endureceu”. Contudo, é importante distinguir, como Cromwell o fazia, entre o homem e o cargo. Dirigindo palavras duras contra o monarca, em momento algum ele se ligou aos que reivindicavam abertamente o fim da monarquia. Thomas Wroth, por exemplo, verberou nesse sentido: “De reis e demônios me afaste o bom Deus, É chegado o memento de
nos erguermos e fazer o que é necessário. Prefiro qualquer forma de governo ao rei.” Oliver, porém, ainda tendia à conciliação.
“Declaramos com absoluta sinceridade nossas posições sobre a monarquia, € elas ainda são idênticas, a menos que a fatalidade nos force a alterá-las”, disse ele a certa altura, sempre insistindo em considerar objetivamente cada situação. Preocupava-se muito mais, no entanto, em frisar a difícil situação dos homens que tinham vencido a guerra. Seria fatal, para o Parlamento, permitir que os soldados se alienassem: “Tende em conta o povo por vós representado, pois é fundamental não romper sua confiança e não destruir o honesto partido do reino, que sangrou
por vós, e impedir que a miséria caia sobre eles, por falta de coragem e resolução vossa, ou eles tomarão, quem sabe, a direção que a natureza lhes determinar” Outra versão afirma que ele levantou a hipótese da tropa sentir-se preterida pelos escoceses... Nesse caso, o desespero poderia “ensiná-los a buscar a segurança
por outros meios que não uma adesão a vós, e (...) uma decisão dessas será
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destrutiva. Iremo, só em pensar, e deixo a vós o julgamento”, Nes não haveria mais discussões com o rei. Num no que causou teia pacto, talvez porque tenha terminado citando as Escrituras e com a mão nos copos da espada, Oliver persuadiu a Câmara a negociar sem o soberano: “Não se há de sofrer sob o domínio de um hipócrita.”3! A moção que encerrava as aproximações com Carlos 1 e determinava que suas mensagens não seriam mais
recebidas foi aprovada por ampla maioria.
Sinal dos tempos: reativou-se o antigo Comitê de Segurança, agora cha-
mado de Comissão da Derby House — onde se reunia — posto que muito
em breve os dois reinos estariam em guerra. Escrevendo a Hammond, no
mesmo dia da votação, a fim de comunicar o triunfo deixa bastante clara sua insatisfação com o caráter do crito, ele anotou: “Rapidez, enviar com rapidez.” No derosa providência para este pobre reino e para todos
que obtivera, Cromwell rei. No próprio sobrestexto, aduz a “uma ponós (...)”. E prossegue:
“À Câmara dos Comuns, muito preocupada com as transações do rei, e com nossos irmãos (...). Peço-vos a máxima atenção a qualquer indício de alguma
artimanha, investigue e faça-nos saber (...).”*?
Por uma justiça poética, talvez, no mesmo momento em que Cromwell solicitava de Hammond provas adicionais acerca das falsidades de Carlos 1, pretendendo com isso sujar ainda mais seu nome em público, a fúria malevolente de satíricos realistas o atingia com exacerbada virulência. Data dessa época a primeira sugestão de que ele tinha em mente substituir o rei no trono. Conhecida como O, Brave Oliver [Ô, bravo Oliver], suas linhas mais rascantes diziam: Tereis um monarca, sim, mas quem...
Acaso algum rei terá sido tão bem servido? Para abrir caminho para Oliver, Ó, bom Oliver; Ó, bravo e excelente Oliver,
Ó, afúvel e galante Oliver
Agora, Oliver tem que se assumir
Agora, Oliver tem que se assumir
Para o nariz de Oliver A rosa de Lancaster se expõe E dat advém sua autoridade...
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Tanta impopularidade junto à parcela mais arguta da comunidade somou-
se aos inevitáveis ataques à sua aparência pessoal. À alusão ao nariz —. sem
dúvida proeminente — associado à rosa de Lancaster pode ser considerada suave; o panfleto sobre o debate do dia 3 de janeiro referia-se de forma bem menos romântica ao “vaga-lume, que brilhava em seu bico”. Menções ao tamanho e à cor da sua bitácula também eram comuns. O próprio sir Arthur
Haselrig reconhecia ser difícil admitir a honestidade de um homem tão narigudo. Os realistas, é claro, batiam na tecla da sua fealdade — “odiando tanto as imagens”, disse Cleveland, referindo-se à iconoclastia puritana, “ele desfi-
gurou a Deus em suas próprias feições”. Apelidaram-no de “Nariz”, “Nariz de Cobre”, “Nariz Todo-Poderoso”, “Nariz de Rubi” — não raro destacando
a tonalidade sangiiínea citada por Baxter. Disso derivaram chistes que o acusavam de excesso de bebida e, um ano depois, de ser um antigo cervejeiro. Pencudo ou não, Oliver era um homem cuja autoridade fora obtida à custa de seus próprios esforços. A de Carlos Stuart, a quem ele se opunha naquele momento, tinha raízes históricas, aparentemente inamovíveis do coração de muitos de seus súditos. Apesar de toda a sua veemência e do republicanismo de homens como Thomas Wroth, na primavera de 1648 o estágio de indecisão geral ainda persistia, expresso em divagações sobre qual seria o melhor caminho a tomar. À remoção do rei não significava a abolição da monarquia, e Cromwell estava entre os que anteviam a possibilidade de um esquema de
governo sob um membro mais jovem da família real. Do “grupo de centro”,
Vane e St John tinham a idéia semelhante: uma regência. O príncipe de Gales
parece ter sido contrário a isso, havia James, duque de York, com 16 anos, € Henry, duque de Gloucester, com 12, diferentemente de seu irmão mais velho, ambos sob a guarda do Parlamento. Lilburne, trazido perante a Câmara dos Comuns para ser julgado, refletiu
sobre essas novas possibilidades da monarquia e repetiu a velha insídia, suge-
rindo que Cromwell estava prestes a ser feito conde de Essex. Circularam rumores a respeito de “novos envolvimentos” com o rei. Pulando para não ser
preso pelas cadeias da intriga, Oliver tentou em vão um reatamento de amizade com o republicano Marten. Ludlow descreveu um jantar realizado nã residência de King Street, para “Exército e Comunidade”, bem como homens importantes da Câmara dos Comuns, avaliando-o como uma deliberada ten-
tativa de juntar as diferentes tendências que dividiam a opinião pública. No dia seguinte ao ágape, Cromwell disse a Lu dlow que os anseios républicanos eram “válidos, mas impraticáveis” - Em 11 de fevereiro, quando
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a Câmara dos Comuns reafirmou o Voto de Nenhum Contato, ele havia pron unci-
ado “uma severa invectiva contra o governo monárquico”; durante o Jantar, entretanto, todos foram — na opinião de Ludlow — irritantemente vagos, “man-
tendo-se nas nuvens e escamoteando suas opiniões, fosse por um governo
monárquico, aristocrático ou democrático, posto que qualquer um teria suas van-
tagens, conforme os ditames da Providência”.** Ao final do repasto, Oliver foi tomado por uma daquelas explosões de humor, certamente de origem maníaca,
que o haviam popularizado entre os soldados: apanhando uma almofada, ele encerrou a discussão lançando-a sobre a cabeça de Ludlow, e escapou escada
abaixo a fim de livrar-se da reação. Seu contendor, porém, conseguiu ultrapassá-lo e, armado com outra almofada — vangloriou-se mais tarde —, conse-
guiu atirá-la com surpreendente força e rapidez. As brincadeiras refletiam a tensão nervosa: tanta coisa por decidir e quase nada se decidira. Enquanto Oliver e seus camaradas aguardavam a Providência — ou os
escoceses, talvez — para decidir sobre a forma mais conveniente de governo,
no resto do país reinavam a desordem e o descontentamento — uma combinação perigosa. A paz, condição desejável, parecia ter trazido consigo uma colheita má e a carestia, nada mais. Sentia-se a falta da antiga ordem social, principalmente ao nível da pequena nobreza, ressentida por ter sido posta de lado; de fato, as funções que lhe eram em geral atribuídas — controle da mi-
lícia local e dos juizados de paz — vinham sendo sistematicamente usurpadas
pelo poder central. As classes mais baixas também almejavam o retorno dos direitos regionais. Houve levantes por comida, em Warminster, no Wiltshire;
ao sudoeste, no dia de Natal de 1647, um jogo de futebol acabou em briga,
clara evidência dos sérios distúrbios que ameaçavam a região.»
Nessa época problemática, e com desconfortável regularidade, o esporte
parecia conduzir mais a distúrbios do que a boa vizinhança — fato que deve ser levado em consideração na análise da proibição de eventos esportivos durante o
Protetorado: um simples jogo de arremessos, na região oeste, degenerou numa
série de manifestações. O caráter do país não se conformava ao ideal puritano,
manifestando sua resistência em diversos níveis. As determinações parlamenta-
res contra o teatro, por exemplo, demonstraram-se singularmente ineficientes; em maio de 1647 ainda se encenavam peças na suburbana Knightsbridge, fosse na Inn of the Rose and Crown [Hospedaria da Rosa e da Coroa], fosse em
Holland House. “Onde vamos parar!”, clamava furiosamente um boletim de
notícias dos “cabeças-redondas”.** Quando terminou a validade da ordem con-
tra as lutas de ursos com cães, equilibristas e espetáculos teatrais, em janeiro de 1
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1648, o número de palcos cresceu. Um mês depois, tão obstinado era o espír ito inglês em busca de prazeres, que se achou necessário aprovar sanções ainda
mais rigorosas, mandando demolir os tablados e multar os atores e espectadores em três shillings. Mesmo assim, as encenações continuaram. No 27 de março, dia da ascensão ao trono de Carlos I, data de tradicio. nais celebrações, um grande número de súditos leais manifestou-se a seu £;vor. Nas ruas de Londres, os transeuntes foram forçados a beber à sua saúde,
e Os açougueiros ameaçaram cortar Hammond como a um pedaço de carne.
Indiscutivelmente, a Coroa dispunha de prestígio, simbolizando a ordem per-
dida e a segurança anterior à guerra, e isso trazia à baila, mais uma vez, à idéia de um pacto político; no Parlamento, o “grupo de centro” mantinha só-
lidas convicções monárquicas, impeditivas de qualquer solução que excluísse o soberano de forma permanente. O próprio Oliver deu um passo atrás, dedicando o dia da coroação a um problema de família; na época falou-se que ele teria ido à ilha de Wight conversar com rei, prova de quanto eram duradouras e fortes as suspeitas sobre suas mútuas relações. Realmente, Cromwell rumara para o sul, mas sem passar de Winchester,
onde se deteve em conversa com um certo Richard Mayor, na Great Lodge of Merdon [Grande Hospedaria de Merdon]: trataram de um possível casamento da filha de Mayor, Dorothy, e Richard, então com 21 anos. Ex-integrante do exército de Manchester, o coronel Norton, bom amigo de Cromwell, vinha agindo como intermediário nas prolongadas negociações financeiras que acompanhavam o caso. Um pai puritano tinha sérias obrigações no que diz respeito
ao casamento dos filhos, e Oliver as assumia por igual, não importa que se tratasse de alguma das moças ou de um dos rapazes. Havia outra possibilidade — “uma excelente proposta”, do ponto de vista de Richard — , mas apesar de sua
posição política, que poderia motivá-lo a buscar conexões mais vantajosas, Cromwell simpatiza com a modesta Dorothy: “A outra talvez seja mais rica, mas não sinto nela nenhuma garantia de religiosidade. (...) Se Deus nos brinda com a piedade dos pais [Mayor] e da gentil dama, só posso considerar isso como uma bênção.”
Richard Mayor, porém, obscuro proprietário no Hampshire, tinha suas dúvidas. Oliver disse a Norton, Posteriormente, que teve que acalmar certas preocupações do futuro sogro de seu filho: “Fatos que pertenciam ao domínio público criaram dificuldades. Tomei ciência de seus escrúpulos e respondi da melhor maneira possível, deixando-o satisfeito afin al.” Evidentemente, à par de suas qualidades espirituais, os dotes terrenos de Dorothy não haviam sido
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negligenciados: passados alguns dias, Cromwell esc reveu a Norton uma lon-
ga e detalhada carta acerca das questões materiais do matrim ônio — queria que Ma
yor legasse sua casa ao jovem casal, caso não tiv esse nenhum filho varão. Preocupado com outros problemas que poderiam envolv ê-lo a qualquer
momento, estimulava 0 amigo a agir com a máxima rapidez: “Sei que és um homem preguiçoso, mas te peço, não me esqueças, principalmente agora.”” Não seria preciso nenhuma extraordinária capacidade de pr emonição
para que Oliver suspeitasse da possibilidade de logo estar envolvido por pro blemas muito diferentes — da Escócia chegavam rumores sobre uma inv asão iminente. Sabia-se de novas conspirações para libertar o monarca: no dia 6 de abril, Cromwell alertou Hammond a respeito. Três dias mais tarde, os aprendizes se revoltaram na City e correram por Whitehall, gritando: “É agora!
Viva o rei Carlos!” Detidos pela cavalaria sob o comando de Cromwell e
Ireton, seu líder foi morto e houve vários feridos. Segundo a notícia de um Jornal, “abortou-se o problema, conforme os desejos do Partido Maligno”. Entretanto, tal era o padrão da violência em defesa do soberano ausente, e que não dava o menor sinal de dispersão. Propostas de se coroar o jovem duque de York se sucediam: dizia-se que uma jovem fora portadora de mensa-
gem secreta, nesse sentido, mediante a qual o Conselho do Exército ameaçava
O rei.” No dia 21 de abril, porém, o príncipe anulou a hipótese, tomando a iniciativa de escapar rumo ao continente, disfarçado de mulher. A mobili-
zação dos escoceses fortalecia a monarquia e, em 28 de abril, a Câmara dos
Comuns decidiu — 165 votos contra 99 — que “o governo fundamental do reino”, isto é, a constituição monárquica, não poderia ser alterado; o própri o Vane apoiou a moção. Ante as explosões de rebeldia que começaram a pipocar pelo país, suspendeu-se temporariamente o Voto de Nenhum Contato. Em Canterbury, os participantes do motim iniciado durante uma partida de futebol acabaram absolvidos. Em Kent, Essex e Surrey, O povo clamava por um
tratado pessoal com Sua Majestade e pela dissolução do exército. Pode-se imaginar o temor que isso despertava. Sob supervisão de Fairfax, as tropas já estavam em franco processo de desmobilização. O soldo diário de Cromwell fora reduzido de quatro para três libras: indiferente, ele fez uma
generosa doação ao Parlamento no valor de 1.500 libras, parte do pagamento
que lhe era devido pela continuação da guerra na Irlanda. Na mesma ocasião ofereceu mil libras anuais por um contrato de cinco anos, relativo às proprie-
dades que lhe haviam sido entregues em Worcester. No entanto, os soldados não demonstravam nenhuma disposição de tolerar os arreganhos daqueles que
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supunham desejar a sua destruição. Depois de tanta coisa, ainda teriam que
aceitar a progressiva redução do contingente, a marcha dos escoceses e que aquele ogro do Carlos I mergulhasse a nação em outro banho de sangue? Reunido em Windsor, o Conselho do Exército debateu as notícias da Escó. cia, demonstrando a mais absoluta hostilidade à pessoa do rei. No dia 30 de
abril, enquanto os realistas tomavam Berwick e Carlisle, com a ajuda dos escoceses, Cromwell apontou três alternativas: uma Igreja e um Estado de novo
tipo, de acordo com as linhas propostas pelos /evellers; a restauração de Carlos 1, com poderes mais limitados, ou sua deposição, em favor do jovem duque de Gloucester; e um Protetorado temporário. Diante dos fatos, Os rea-
listas contemporâneos acreditavam que ele se inclinava pela terceira hipótese.
Qualquer sugestão de compromisso, no entanto, não tardaria a ser posta de
lado. No dia seguinte soube-se que Fleming fora morto pelos realistas, em Gales, durante um motim das forças parlamentares dissolvidas. Todo o sul do condado estava em armas. O general-intendente desfrutava de grande popularidade e foi com lágrimas nos olhos que os oficiais resolveram submeter o reino e acertar de uma vez as contas com aquele homem que julgavam responsável pelos renovados horrores da luta armada — Carlos Stuart. Fairfax enviou Lambert ao norte, e sir Hardress Waller à Cornualha. Outro período de incertezas, na vida de Cromwell, terminava em ação precipitada. Desencadeada a Segunda Guerra Civil, ele [Oliver] assumiu o comando da maior força do exército e seguiu na direção do sul de Gales.
ESBIs BRR 10 A guerra perniciosa Se algum dia o Senhor nos trouxer a paz de volta, é nosso
dever chamar Carlos Stuart, um homem sujo de sangue, a prestar contas do quanto ele derramou, e por toda a enorme maldade que causou... RESOLUÇÃO DO ExÉRcITO, abril de 1648
N
o dia 3 de maio de 1648 Cromwell tomou a estrada em direção às belas
e selvagens terras de Gales, a fim de cumprir sua parte nessa Segunda Guerra Civil — cabia a ele subjugá-la. Cinco dias depois penetrou em Gloucester, onde falou rapidamente aos regimentos acantonados na cidade, lembrando aos soldados seu dever de lealdade. Já fazia dois anos que não participava de uma ação, mas arriscamos a vida juntos e com fregiiência, lutando contra o inimigo comum deste reino (...) portanto, tratem de se armar com a mesma resolução anterior, e avançar com idênticas coragem, fé e fidelidade, como em tantas vezes, em tantas batalhas e arremetidas audaciosas (...) de minha parte, estou disposto a viver e morrer com
vocês.
Assim que terminou, os homens soltaram “um grande grito e consagra-
ção?, atirando seus chapéus para o alto, demonstrando que também tinham suas lembranças; unanimemente, declararam-se prontos a jogar suas vidas e sua sorte sob seu comando, contra qualquer inimigo, no país ou no exterior.!
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O conflito teve início numa atmosfera de muita determinação. Essa nova certeza, em contraste com as hesitações dominantes no curso de lutas passadas, concentrava-se não apenas no mal-intencionado inimigo, causador da guerra, mas também no arquivilão desta peça, Carlos Stuart. Em abril, uma resolução do exército o chamara de “homem sujo de sangue”, ameaçando levá-lo a julgamento, “se algum dia o Senhor nos trouxer a paz de volta”, por
toda a série de “enormes maldades que causou (...)”. Assim endurecidas, as tropas dirigiram-se à fronteira sul de Gales, uma área que se acreditava estar
“em chamas”? — segundo carta de Cromwell a Fairfax — ateadas por antigos
seguidores do Parlamento. O coronel John Poyer, por exemplo, já chefiara as
forças parlamentares em quatro condados, no fim da Primeira Guerra Civil? Tratava-se de um homem realmente interessante, presbiteriano convicto, mas bom de copo — “dotado de dois humores”, dizia Whitelocke, “sóbrio e penitente pela manhã, bêbado e conspirador à noite”. Certamente, tinha espíritof de sobra — espírito público, provado desde suas origens humildes até a prefeitura de Pembroke, que exerceu, e espírito próprio, demonstrado pela
ousadia e independência de suas decisões. Ciente de que o grande Cromwell vinha dar-lhe combate, afiançou que seria o primeiro a enfrentar seus flancos de ferro. No exército, entretanto, tinha um conceito de “orgulhoso e insolente”
ou, pior do que isso, “vergonhoso apóstata” de sua própria causa. Foi a presença de antigos soldados, tanto nas fileiras realistas quanto entre os atacantes, que conferiu ao levante galês um caráter odioso, do ponto de vista do exército que avançava. À experiência militar tornava o inimigo muito perigoso, potencialmente. Um jornal da época relatou que Poyer aterrorizava a população, compelindo-a à obediência e despertando “um grupo de descontentes que já admitia aceitar as ordens do Parlamento (...)?. Gente simples, distante da capital, face aos sucessos do coronel, começou a acreditar no rétorno do rei, na restauração dos bispos e na revolta de Londres contra a Câ-
mara dos Comuns. O destino das tropas que permaneceram nas planícies,
quando os ágeis galeses escalaram as montanhas, não era nada invejável. Um
relatório inglês queixava-se das pilhagens “daquele povo rancoroso € mau”.
Havia falta de forjas e ferreiros; um desafortunado inglês tivera que pagar
quarenta shillings para ferrar seu cavalo. “O sr. Vulcano tem se mostrado um grande inimigo de nossos procedimentos”, comentava outro sofredor. Visto
ste LD “A autora joga com as palavras, pois spirits, em inelê o, também signando bebidas alcoólicas destiladas. (N. do E) Blês, tem duplo significad
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que os lemas levados nos chapéus dos chamados malvados galeses exp ressa-
vam claramente seus desejos — um dizia: “Desejo muito ver Sua Majesta-
de...” —, o raivoso panfleto parlamentar sobre o tema terminava sugerindo que algo diferente teria que ser feito, a fim de “derrubar os estômagos deste povo-um-pouco-menos-que-bárbaro”.º Contudo, no momento em que Cromwell entrou em Gales, os realistas,
sob o comando do coronel Laugharne, outro ex-comandante parlamentar, já
tinham sofrido um violento golpe, em St Fagans, próximo a Cardiff, derrota-
dos pelo coronel Horton. Os restos do seu exército retiraram-se para o castelo de Pembroke, no extremo sudoeste do país; competia a Oliver tão-somente liquidar a resistência de algumas fortalezas, no caminho, antes de seu encon-
tro com Horton. No dia 11 de maio, ele se confrontou com a primeira delas, Chepstow, enorme estrutura às margens do Wye. Curiosamente, tinha interesse pessoal em conquistá-la, pois, da mesma forma que muitas das pequenas vilas que atravessara, pertencia ao marquês de Worcester — teoricamente, lhe havia sido dada pelo Parlamento. Enfim, após violenta luta, entrando na cidade teve que se contentar com uma casa modesta, numa rua estreita, perto da
ponte, enquanto a praça forte, sob o vigoroso comando de sir Nicholas Kemoys, resistia obstinadamente ao cerco. Cromwell não ficou para assistir à conclusão; deixando o coronel Ewer no comando, tomou o rumo de Cardiff e, circundando a costa retalhada do sul de Gales, dirigiu-se a Tenby. Lá deparou com o castelo de Tenby, excelente posição flanqueada por dois rochedos
escarpados, com uma vista panorâmica que alcançava até a Irlanda em dias claros; seu ocupante, o coronel Powell, também antigo oficial das forças parlamentares, no comando de quinhentos a seiscentos homens, podia resistir bastante tempo. O coronel Horton foi encarregado de sitiá-lo, ao passo que
Oliver punha em movimento o núcleo principal do exército. O castelo de Tenby rendeu-se em 31 de maio, seis dias após o heróico sir
Nicholas ter sido derrotado em Chepstow. Restava Pembroke. Transcorridas seis semanas de um longo e cansativo cerco, o vencedor de Marston Moor e
Naseby estava metido num atoleiro, aparentemente sem saída — construída segundo as condições de guerra vigentes na Idade Média, a fortaleza era qua-
se inexpugnável, podendo resistir enquanto durassem seus suprimentos. No idioma galês, Pen Broch significa “cabeça da enseada”: situada pouco acima
do porto de Milford Haven, à beira de um riacho, tinha três de seus quatro
lados cercados pela baía — na maré alta, as águas batiam de encontro às enormes muralhas — e um belo fosso separando-a da cidade. Vista impressionante
EVT RP
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ainda hoje, o castelo já testemunhara uma boa parte da história britânica desde a conquista normanda até a metade do século XVII. Dele partira Strongbow para subjugar a Irlanda; nele Owen Cadogan escreveu os anais de Helena de Gales; nele Henrique Tudor cresceu — buscando a coroa de Henrique VII, em 1485, ele passou perto dali, a caminho de Bosworth, por coincidência trazendo consigo o ancestral galês de Cromwell.
)
Infelizmente, Oliver estava muito mal equipado, sem condições de lidar com
O que viria a ser o berço da fortuna de sua família. Do alto dos parapeitos, Poyer
e Laugharne comandavam um grande contingente de soldados, enquanto ele não dispunha sequer de canhões capazes de derrubar os grandes muros de seis metros
de largura — colubrinas e drakes* de nada adiantariam. A munição fabricada nas forjas de Carmarthen — o sr. Vulcano tornara-se mais amigável — e as peças en-
viadas por Hugh Peter, de Milford Haven, não bastavam: precisava urgentemen-
te do material vindo da Inglaterra. Mas o navio que transportava o carregamento vital, açoitado por uma tempestade no canal de Bristol, acabou encalhando em
Berkeley, no Gloucestershire. Um assalto frontal falhou porque as escadas não tinham a altura necessária — a torre central, com quatro andares, chegava a mais de 22 metros. Uma segunda tentativa foi prejudicada pelo atraso de um major que liderava a reserva dos lanceiros e mosqueteiros; nos violentos combates que se seguiram, em torno da cidade, Laugharne saiu do castelo e atacou os “cabeças-
redondas” pela retaguarda, matando trinta deles. As tropas sitiantes acamparam em Underdown, a sudeste da cidade, € Cromwell alojou-se a pouco mais de três quilômetros, em Welston Court,
acima de Lamphey, com uma ampla vista da enseada; a casa pertencia a um certo capitão Walter Cuney, soldado do Parlamento, em Tenby. Segundo a tradição local, ele passou uma boa parte do tempo acamado.** Arrastando-se
interminavelmente, o cerco impacientaria qualquer comandante, mesmo sau-
dável; Oliver, ainda por cima, preocupava-se com a situação do exército, na
Inglaterra, que exigia sua presença. Os sitiados enfrentavam o problema das
provisões, agravado pela insatisfação dos subordinados de Poyer: no início do levante, eles não esperavam ficar sujeitos à fome e à prisão. Em 14 de junho, quando o cerco já completara mais de três semanas, Oliver escreveu a Londres, “Pequena peça de artilharia da época. (N, do T,) **O quartel-general de Cromwell teria ficado na Taberna York,
na rua principal de
Pembroke, dentro da cidade portanto. Próximo ao local do acampamento de Underdown ainda existe uma extensão de terra conhecida como “o campo de Cromwell”, onde se diz que os “cabeças-redondas” enterraram seus mortos.
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num tom otimista, assegurando que o inimigo não poderia viver mais 15 dias
“sem morrer de fome”. Repisando os rumores sobre o excepcional descontentamento dos soldados de Poyer, contou que eles teriam ameaçado cortar-lhe a garganta; reagindo com sua habitual coragem, o coronel teria afirmado que, se a ajuda não chegasse até segunda-feira à noite, não acreditassem mais nele e o enforcassem. Mas o tempo passou e o socorro não veio: como a irmã Anne, no conto de fadas do Barba-Azul, os homens postavam-se no alto da torre, buscando no horizonte da enseada os navios realistas que trariam reforços — em vão. Às embarcações que aportaram, afinal, saudadas com grande alarido pela guarnição do castelo, esperançosa de que nelas viesse o jovem príncipe Carlos, na verdade eram os também longamente esperados navios
das forças parlamentares. Sobrara um “pouco de pão” e, para os cavalos, a palha que cobria o telhado das casas.”
Mas Cromwell também errou. Só em um mês Pembroke pôde ser induzida à rendição — e a traição, além da fome, provavelmente contribuiu para isso. A fortaleza dispunha de um excelente suprimento d'água, boa parte dela proveniente de uma caverna natural de calcário, localizada em seus porões — a Caverna de
Wogan —, e o restante de uma represa, em Monkton, do outro lado da cidade. O bombardeio da caverna não produziu maiores danos e foi, afinal, suspenso; po-
rém, fiado nas informações de um tal Edmunds, que morava próximo à barragem, Oliver mandou cortar o cano que abastecia o castelo. A história talvez seja verdadeira, mas teve um final sardônico: em vez de pagar-lhe a grande recompensa que esperava, Cromwell enforcou o traidor — diz-se que seus descendentes ficaram
conhecidos como “os Cromwell-Edmunds”. De qualquer forma, em 11 de julho,
pressionados pela rebelião de seus homens famintos, Poyer e Laugharne se renderam, implorando a clemência do Parlamento.
Segundo Henry Fletcher, autor de uma biografia de Cromwell, seu obje-
tivo era “evitar o derramamento de muito sangue precioso, sabedor de que a vitória menos custosa é a que se vence sem muitos golpes”. Ele proibiu o sa-
que da cidade e mandou para um exílio de apenas dois anos os realistas con-
victos, isto é, aqueles que tinham defendido a monarquia em ambas as guer-
ras. Sobre os renegados, descarregou o peso de sua espada: “Só foram executadas as pessoas que antes vos serviram numa muito boa causa”, escreveu em seu relatório ao presidente da Câmara dos Comuns; “escolhi os apóstatas, de preferência aos que sempre lutaram pelo rei, julgando sua dupla iniquidade, por terem pecado contra tanta luz e contra tantas evidências da
divina providência.”* Poyer, Laugharne e Powell, encarcerados na Torre de
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Londres, foram condenados à morte. Mas Fairfax intercedeu por eles, e, de acordo com o costume da época, mórbido mas pitoresco, coube a uma criança tirar a sorte: os papéis correspondentes a Powell e Laugharne diziam: “Deus lhe concedeu essa Vida”; o de Poyer estava em branco. Assim, só ele sofreu a pena capital, nove meses mais tarde, na Piazza, em Covent Garden. Em vão Poyer invocara seu passado puritano, no pedido de clemência que encaminhou ao Parlamento, afirmando ter estado na vanguarda contra o “inimi-
go comum” na Primeira Guerra Civil. Do ponto de vista de Cromwell, isso
constituía uma circunstância agravante; até novembro, ele ainda demonstrou
profundo desgosto com os renegados — teve um ataque de fúria ao saber que o coronel Humphrey Matthews, também capturado em Pembroke, livrara-se mediante o pagamento de uma pena pecuniária. Antigo integrante do exército do Parlamento, “ele se tornou um apóstata de vossa causa e de vossa luta (...) sendo público e notório que quase fostes levados à ruína com isso (...)”. Na campanha de Gales, Oliver não revelou nenhum sentimento xenófobo, limitando-se a tratar os camponeses da região como “um povo ignorante e enganado” Seu ódio profundo fixou-se nos “canalhas arquicavaleiros”, culpados pela agitação que envolvera “esses pobres tolos e inocentes galeses”. A mágoa residual somou-se ao ressentimento que votava aos responsáveis pelo desencadeamento da Segunda Guerra Civil, por terem ignorado deliberadamente as óbvias lições da Providência expressas nas vitórias do conflito anterior. Secundariamente, a expedição resultara em algo bastante diferente. Sua au-
sência de Londres o distanciara das jornadas políticas, e esse afastamento deveria prolongar-se por quase sete meses de um período decisivo, ao longo do qual urdiram-se as exigências fatais que levaram à morte do soberano; Cromwell
não era tão inocente e nem ignorante do que se passava, mas esteve ausente da
cena. Sua responsabilidade final ou suas intenções interiores não precisavam ser afetadas, mas, inevitavelmente, suas atitudes sofreram alguma alteração, obscurecendo ainda mais a verdade acerca de seus motivos e participação. Enquanto a pacificação de Gales prosseguia depressa, em outras partes das Ilhas Britânicas a causa do exército apresentava aspecto alarmante. Em Kent € Sussex, as consequências dos levantes reprimidos no mês de junho ocupavam Fairfax e Ireton: o comandante realista, sir Charles Lucas, retirara-se para Colchester, com cerca de quatro mil homens, e se recusava a abandonar a cida-
de, apesar do prolongado sítio. O castelo de Pontefract, formidável fortificação
ao sul de Leeds, em condições de estrangular todos os territórios à sua volta,
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caíra em poder dos realistas no dia 1º de junho — seria preciso atacá-lo. O
Northamptonshire e o Lincolnshire também foram palco de insurreições. Entrementes, do outro lado do estreito mar, o jovem príncipe de Gales viajara da França à Holanda, a fim de assumir o comando de uma frota de nove navios realistas inteiramente equipados. O perigo mais sério, porém, como sempre, vi-
nha do norte. Em 8 de julho, três dias antes da rendição de Pembroke, o exército escocês, com cerca de 11 mil homens, cruzou a fronteira.
Esta poderosa força, movendo-se lentamente na direção do sul, tendo à
frente apenas o pequeno contingente de Lambert, na verdade padecia de mui-
tas mazelas, talvez desconhecidas pelas alvoroçadas lideranças parlamentares.
Disputas políticas e religiosas, na Escócia, haviam retardado a partida; os
“comprometidos”, assim chamados porque tinham aderido secretamente aos acordos de Carisbrooke, lutavam contra os presbiterianos, que consideravam a Convenção uma precondição a qualquer entendimento. Meses vitais transcorreram, quando teria sido possível atingir os ingleses, bastante desorganizados, até que o poder militar passou às mãos dos primeiros, visto que /ord Leven e David Leslie, veteranos de bem-sucedidas campanhas, se retiraram. Argyll e os clérigos, também opositores do novo regime, mantinham-se numa
expectativa hostil, sem participar do numeroso e malfornido exército, coman-
dado por James, primeiro duque de Hamilton. Para começar, os escoceses tinham muito pouca munição e nenhuma artilharia; suas tropas não se comparavam aos experimentados combatentes de Marston Moor — muitos nunca tinham empunhado uma lança antes. A ca-
valaria era melhor, mas não dispunha de cavalos que puxassem as carroças, ou seja: suprimentos — ou cavalos — teriam que ser obtidos ao longo do cami-
nho, acirrando a animosidade das populações campesinas. De fato, a falta de provisões combinada à indisciplina natural, em se tratando de soldados inexperientes, deu margem a novos recordes de pilhagem e depredação, determinando boa parte da receptividade dos habitantes do norte da Inglaterra. A restauração do rei em seu trono iria depender, afinal de contas, dos realistas
ingleses e dos presbiterianos arrebanhados pelas estradas. A fim de evitar ade-
sões de maior peso, espalharam-se rumores, de resto plausíveis, de que os es-
coceses tinham recebido a promessa de ganhar terras na Inglaterra — o próprio Cromwell referiu-se a isso numa de suas cartas. Entretanto, a maior debilidade da força invasora estava no alto da pirâmide. A carreira militar do duque de Hamilton fora infeliz, não o recomendande a Napoleão, que gostava de marechais bafejados pela sorte; aos 42 anos,
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chefe da segunda família da Escócia e senhor de um domínio secular, ele era
irmão mais velho do conde de Lanark, que desempenhara o papel de comis-
sário nas negociações do controverso Compromisso com Carlos 1.* Odiado pe-
los pastores, por ter se recusado a assinar a Convenção, suas qualidades de estadista não contribuíam quase nada para melhorar sua incapacidade de comandante — lamentavelmente, mostrava-se fraco quando devia ser forte, complicando as coisas ao reverter o processo. Seu subordinado, no posto de general-de-exército, o conde de Callander, possuía indiscutível experiência militar — no exterior, lutara com o exército holandês —, mas tinha levantado
suspeitas devido à sua conduta entre os partidários do rei, numa fase anterior da guerra. Baillie mencionaria “seus procedimentos bastante ambíguos”, razão pela qual muitos escoceses relutavam em depositar “vidas e religião em sua mão”;? pior: seu temperamento autocrático, rígido, não fazia dele o mais indicado segundo em comando. Ultrapassada a fronteira, o terrível clima inglês, batendo naquele ano todos os recordes de umidade, criou mais um obstáculo à expedição escocesa. Em Carlisle,
Hamilton uniu-se às forças de sir Marmaduke Langdale; com três mil homens, o
ex-comandante realista durante a Primeira Guerra Civil vinha mantendo a fortaleza desde a insurreição em abril. A essa altura, o exército invasor já contava com
18 mil soldados. Acampado no castelo de Barnard, Lambert tinha o dever de tentar detê-los, enquanto aguardava auxílio, mas, como Hamilton — em Kirkby Thorne, entre Penrith e Appleby — também esperava reforços, todos trataram de manter suas respectivas posições. Os ingleses imaginavam que o inimigo cruzaria a cadeia Penina, na direção do Yorkshire: daí teria de vir a ajuda ou do recém-liberado exército de Cromwell.
Oliver vinha marchando com a rapidez possível, mas a distância a ser per-
corrida era imensa: da ponta sudoeste de Gales ao norte da Inglaterra. Exauri-
dos pelo cerco de Pembroke, os homens estavam bastante mal equipados. No
entanto, as notícias de um gigantesco exército escocês, seguindo para o sul, capaz de alcançar uma vitória dramática que destruiria tudo que fora obtido nos seis anos anteriores revitalizaram seu ânimo de militar e de político. Enviando boa parte da cavalaria na frente, ele se deslocou com uma força modesta — três
mil infantes e 1.200 cavaleiros; de Gloucester, em 24 de julho, escreveu à Comissão da Derby House, furioso, reclamando que seus “pobres soldados “Nascido William Hamilton, feito conde
irmão como duque de
É Hamilton.
de Lanark por Carlos I em 1639, sucedeu a seu
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desgastados” precisavam de sapatos e meias. Aguardando na fortaleza de
Warwick uma melhora geral da situação, só se moveu ante os apelos desesperados de Lambert e, em Leicester, recebeu três mil pares de sapatos e meias; por sorte, o prefeito e os conselheiros da cidade forneceram vinho, pão, açúcar, cer-
veja e tabaco em abundância. Cromwell ainda recrutou algumas tropas locais,
inclusive “quinhentos ou seiscentos cavaleiros” dos condados de Derby e
Nottingham, conforme relatório à Derby House, datado de 5 de agosto.'º Embora vinte anos mais moço, Lambert talvez não estivesse disposto a se
subordinar; nascido e criado no Yorkshire, sua beleza atraente e seus modos extrovertidos, que o tornavam muito querido entre os soldados, escondiam um
“cérebro sutil e bem pensante”, segundo Whitelocke. Antecipando-se a eventu-
ais problemas, porém, a Comissão da Derby House escreveu a Oliver, infor-
mando ter determinado de forma inequívoca não haver ninguém no norte que pudesse assumir o comando-em-chefe enquanto ele estivesse lá; e para dirimir quaisquer dúvidas, que intimara todos os comandantes locais a acatar suas ordens. Assegurado o mando, Cromwell dirigiu-se a Lambert, por volta do dia 4 de agosto, pedindo-lhe que evitasse os combates até que ele chegasse.” Convicto de que os realistas tentariam cruzar o condado, Lambert deixou a maior parte de suas tropas no castelo de Barnard, retirando-se para Otley, entre Knaresborough e Leeds, a fim de impedir que Hamilton aliviasse o sítio de Pontefract. Alhures, o vírus realista ainda contaminava o organismo in-
glês: os levantes continuavam e, ao longo de julho, ocorreram insurreições
em lugares distantes, como Horsham, no Sussex, e Hereford e Newark, nas Midlands. O governador do castelo de Scarborough declarou-se favorável ao rei, sem dúvida encorajado pelos escoceses; em contrapartida, o Mercurius Britannicus, veículo dos “cabeças-redondas”, acusava-os de “impor seus piolhos e seu presbitério”, sem levar em conta que muita gente na Inglaterra estaria menos interessada em pragas, ou teologia, do que no restabelecimento da antiga ordem social. Neste contexto, fazia sentido a marcha de Cromwell, sempre no rumo leste, atravessando áreas tradicionalmente puritanas, conseguindo reforços, e
sua determinação de impedir que Lambert entrasse em combate sem ele —
ignorando a força e as repercussões da campanha realista, era essencial não
dispersar o exército unificado do Parlamento.
No entardecer de 8 de agosto, em Doncaster, tendo recebido alguma munição de Hull, Cromwell empurrou de volta às profundezas de sua fortaleza
normanda os saqueadores realistas de Pontefract. Integrando a flor das tropas
sitiantes, ele deixou o cerco por conta dos soldados mais inexperientes que
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havia recrutado nas Midlands. No dia 12, finalmente, juntou-se a Lambert.
Houve alguma alegria e gritos de saudação, ante o surgimento de “um ótimo
exército, adestrado e pronto para a ação”.!? Oliver estimou-os em cerca de 8.600 homens. A questão era: que rumo haviam tomado os escoceses e onde poderiam ser atacados? Hamilton avançava lentamente, parando sempre. No
final de julho, parecia estar indo na direção do Lancashire, condado tradicio-
nalmente realista, que em tese lhe forneceria reforços. No entanto, bivacou em Kendal, na Westmoreland, onde se juntaram a ele os três mil escoceses comandados por sir George Munro, que se supunha no Uslter. Callander re-
cusou-se a aceitar esse veterano lutador como seu igual, e o resultado foi a decisão desastrosa de deixar essas excelentes tropas na retaguarda, em Kirkby Lonsdale, juntamente com outros dois regimentos do norte, esperando os canhões que viriam da Escócia. O corpo principal seguiu adiante, alcançando o castelo de Horny, cerca de 11km ao norte de Lancaster, no dia 9 de agosto. Era imperativo resolver de uma vez o rumo a tomar. Os escoceses — todas as suas facções — e seus aliados realistas ingleses poderiam cruzar as montanhas Peninas, dirigindo-se o mais rápido possível para a capital, ocupando o Yorkshire no caminho; a alternativa seria continuar através da costa noroeste, atravessando o Lancashire. Os relatos divergem sobre a razão que os terá leva-
do nessa direção. A versão de sir James Turner é bem plausível: afinal, ele esteve presente ao conselho que tomou tal deliberação. Segundo seu testemunho foi Hamilton que fez a escolha, não somente visando novos recrutamentos, mas ainda na esperança de unir-se às forças de /ord Byron, vindas do norte de Gales.
Langdale apoiou-o — desde uma expedição que fizera ao castelo de Skipton ele devia estar ciente da concentração de “cabeças-redondas”, em York —, assim como Baillie, comandante da infantaria. Callander não manifestou qualquer opinião. Foram Middleton, comandante da cavalaria, e o próprio Turner que propuseram evitar a região fechada, cheia de diques e cercas, mais favorável aos treinados homens de Oliver, exceto à sua cavalaria. Na planície do Yorkshire, por outro lado, os cavaleiros escoceses levariam vantagem. Mas a decisão esta-
va tomada e eles deixaram Horny no dia 14 de agosto. A hora da verdade também chegara para Cromwell e Lambert. É impor-
tante reconhecer
que,
muito
provavelmente,
Os realistas
não
teriam
tempo
para
cruzar todo o Yorkshire. Por outro lado, a decisão de Oliver, no dia 13 de agos-
to, de perseguir e fustigar os escoceses, constitufa-se numa autêntica jogada de
risco. Muito mais sensato, como destacou um soldado profissional, escrevendo acerca das campanhas internas, teria sido recuar na direção sul, cobrindo as
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estradas de Londres e “enviar patrulhas na direção oeste, a fim de localizar o
inimigo”.”* Todavia, planos cautelosos nem sempre caracterizam grandes generais. Melhor ainda seria bater em retirada, se bem que a perspectiva de uma
guerra prolongada e cansativa não agradasse a ninguém. O caráter de Cromwell impelia-o a tentar uma vitória rápida e decisiva, a fim de manter os ursos do norte
à distância e desestimulá-los de futuras travessuras.
Assim, ele e Lambert foram de Otley a Skipton, deixando a artilharia em
Knaresborough, com ordens de avançar diretamente no rumo oeste, região pantanosa, coberta de urzes em agosto, terra de cicatrizes arredondadas, elevações
semi-rochosas, boa para reconhecimento, talvez graças às suas gargantas e perspectivas das montanhas Peninas, mas pouco favorável a marchas. Apesar de tudo, eles alcançaram a fortaleza na noite de 14 de agosto. Daí em diante esten-
dia-se uma área de pastagens, através de contornos descendentes, até a estreita faixa costeira: em 24 horas chegaram a Gisburn Park. Foi logo depois, no limite entre o Lancashire e o Yorkshire, na ponte Hodder, a cerca de cinco quilômetros de Clitheroe, que Oliver tomou a decisão que o conduziria à sua mais
espetacular vitória.* Como acossar o inimigo? Hamilton estava em Preston, ci-
dade de uns três mil habitantes, perto do litoral, ao sul de Lancaster. De lá, evidentemente, seguiria seu caminho, sem alterar a rota. O estratagema óbvio — o plano judicioso —, visto que a perseguição fora tão longe, seria tomar o curso do Ribble, pela margem sul, bloqueando qualquer ofensiva contra a região central do país. Cromwell preferiu a margem norte, a fim de atacar os escoceses pela retaguarda, cortando suas possibilidades de recuo. Muito o ajudou a suposição — equivocada — de que as tropas de Munro estavam a caminho de Kirkby Lonsdale, a fim de juntar-se às de Hamilton em Preston. Imaginando-se em grande inferioridade, ele não poderia perder a chance de barrar esses reforços. Quando informou ao Parlamento que enfrentara um exército inimigo de 21 mil homens com seus escassos 8.600 — na verda-
de, a proporção deve ter sido de um contra dois —, ele deu margem a comen-
tários de que teria se vangloriado demais; os números mencionados por Lambert indicam que seus regimentos reuniam mais de 12 mil soldados."
Pode-se supor algum exagero de sua parte, mas uma falsificação do relatório
oficial da batalha, posteriormente impresso, é menos provável. Posta de lado
*Desconhecendo a área, Oliver se referiu, mais tarde, à ponte sobre o Ribble, quando na verdade pisava outra, sobre o Hodder, um de seus tributários, e cujas ruínas magníficas ainda podem ser vistas.
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essa questão, o combate representou uma aposta muitíssimo alta, pois a derrota deixaria escancaradas as portas do sul, enquanto a vitória significaria, sem sombra de dúvida, um desastre incalculável para os escoceses. Não existe relato mais claro ou mais dramático sobre o raciocínio que levou Cromwell a assumir esse ponto de vista, exceto o seu próprio: “Consideramos se deveríamos (...) nos interpor entre o inimigo e seu avanço rumo ao Lancashire, e daí para o sul, visto que tínhamos alguma informação de que essa era sua intenção (...) ou marchar imediatamente sobre a referida ponte (...) e enfrentar o inimigo, que iria resistir no local (...).” O texto contém uma sentença categórica: “Concluímos que fazer face ao inimigo era assunto nosso...”1é Portanto, o exército passou a noite de 16 acampado, em Stonyhurst Hall, a cerca de 19 quilômetros de Preston, na margem norte do rio. Cromwell dormiu na casa de um certo sr. Sherbourne, “um papista”, segundo o capitão Hodgson, da sua guarda avançada; hoje nela se abriga uma conceituada escola jesuíta. O mais extraordinário é que Hamilton nem desconfiava da presença tão próxima do Exército de Novo Tipo — a responsabilidade de coletar informações cabia a Langdale. Isso o levara a algumas escaramuças com as patrulhas avançadas de Oliver, uma delas envolvendo os homens do capitão Henry Cromwell, perto de Skipton. No próprio dia 16, em Waddow, a pouca distância de Clitheroe, alguns cavaleiros realistas foram capturados, mas nem assim os escoceses se dispuseram a encarar a dura realidade, sentindose inteiramente livres para deslocar o grosso da sua cavalaria, sob o comando de Middleton, até Wigan, ao sul de Preston, do outro lado do rio. Na noite de 16, talvez tenham suspeitado de algo, mas já sem tempo de chamar Middleton de volta. No dia seguinte, 17 de agosto, desde cedo os homens de Cromwell já estavam posicionados e em condições de descer como
assírios sobre aquele rebanho indefeso.
Foi, é claro, a vanguarda realista de Langdale, em Longridge, que os soldados de Cromwell encontraram primeiro, travando-se então uma violenta luta corpo a corpo. Hamilton tomou ciência do ocorrido nos pântanos, a quase dois quilômetros da cidade, onde estava envolvido no complicado processo de fazer o restante do seu exército atravessar o Ribble, pela ponte de Preston, no rasto da cavalaria avançada de Middleton. Sem se dar conta da urgência
da situação e fiado na sua vantagem numérica, ele sequer interrompeu a travessia, ordenando ao comandante realista, com seus 3.600 soldados, que detivesse o que de fato era toda a força de ataque do Exército de Novo
Tipo.
Quando sir Marmaduke retornou a seus homens, encontrou-os escondidos na
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estrada Preston-—Skipton, defronte ao campo aberto de Ribbleton Moor. Nessa estreita faixa, excepcionalmente afundada pela formação natural e inundada pe-
las chuvas de verão, transcorreram os estágios iniciais da batalha.* Antes mesmo que a maior parte das tropas de Oliver pudesse se alinhar, ele ordenou que sua guarda avançada, composta de duzentos cavaleiros e seiscentos infantes, comandada pelos majores Smithson e Pownell, limpasse a vereda. Seria preciso coragem e alguma fé, e Hodgson nos conta que eles solicitaram um pouco de paciência e tempo para se preparar. Mas o general simplesmente gritou: “Marchem”, e eles marcharam.”
Por volta das quatro horas da tarde, Cromwell considerou já dispor de tro-
pa suficiente para tomar a iniciativa: “Resolvemos que os enfrentaríamos, se possível àquela noite (...)”, escreveu ele. O plano consistia em limpar a estrada
com cargas de mosquetes e lanças, a fim de fazer passar por ela, apesar de
“muito cavada e ruim”, uma carga de cavalaria; seria uma manobra reminiscente do bem-sucedido ataque de Langport. Contudo, o terreno estava tão alagado que a limpeza ficou a cargo da infantaria, em desesperados combates corpo a corpo, nos quais se sucediam o “empurrão de lanças” e o “fogo à queima-roupa?; posteriormente, ele rendeu homenagem à bravura dos soldados do coronel Bright, ao regimento de Fairfax e aos homens de Read e Ashton, que abriram caminho expondo o peito aos mosquetes do inimigo. Assim mesmo, a
teimosa determinação dos homens de Langdale, inferiores em número, não cedia. Hodgson elogiou os corajosos contingentes do Lancashire e sua dura resistência, referindo-se a “homens tão firmes como não se vêem em lugar nenhum?. O pobre Langdale não recebeu reforços de Hamilton, além de uns poucos lanceiros escoceses, e mais tarde confessou a sir Henry Slingsby que se tivesse pelo menos mil, em condições de flanquear o inimigo, “teria ganhado o
dia”.'º Porém, naquele momento, a proporção se invertera a favor de Cromwell,
dois para um. Depois de seis horas paralisado, finalmente, o Exército de Novo
Tipo superou o obstáculo e pôs em debandada os bravos realistas. Passando velozmente por Preston, as tropas de Cromwell lançaram-se sobre os soldados que cruzavam a ponte. A manobra era muito demorada, mas Callander teimara em levá-la a cabo. Na confusão que se seguiu, Hamilton ordenou o retorno da cavalaria, tentando uma junção com as forças de sir George
*O terreno ainda mantém a mesma configuração pantanosa, atualmente dividido em pequenos lotes destinados a plantações, apesar do crescimento urbano. Corta-o uma estrada principal, chamada Cromwell Road, e três vicinais, a Langdale Road, a Lambert Road e a Hamilton Road, um tributo à imaginação dos vereadores da cidade, no século XIX.
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Monro, que avançava; como resultado, seus homens foram caçados pelos de Oliver, afastando-se da batalha, na direção de Lancaster, ao norte. Não lhe fal. tou coragem em ação, e segundo sir James Turner, “ele mostrou uma rara intrepidez pessoal”. Golpeando com a espada um infante acovardado, conclamou os
demais a “atacar de novo, pelo rei Carlos”.” Reduzido a um pequeno grupo
que incluía Langdale, Turner e alguns homens de sua própria infantaria, provou
que heroísmo e visão estratégica são coisas inteiramente distintas. Afinal, só conseguiu voltar ao corpo principal de seu exército a nado. Na margem sul, Baillie formou a infantaria realista, pouco acima da ponte do Ribble, nas cercanias de Walton Hall, em Church Brow Hill, uma colina
que se sobrepunha à cidade e de onde se descortinava toda a frenética cena, Situada num ponto em que o rio se alargava, independentemente do caudal provocado pelas chuvas, a ponte converteu-se na chave da batalha ou, segundo palavras de Cromwell, de “uma disputa feroz”. Turner testemunhou que o adversário tinha a vantagem de atacar de um acentuado declive, se bem que sob uma chuva de pedras. Venceram, empunhando suas lanças, e avançaram, subin-
do aquele afluente do Ribble a que Milton se referiu ao falar do “fluxo do Darwen, saturado com o sangue dos escoceses”. Conquistando outro pontilhão, eles asseguraram as encostas ao norte da colina e de Walton Hall, embora
Baillie tenha defendido a posição enquanto pôde. Quando a noite caiu, os dois lados deviam estar ansiosos por um pouco de alívio; o dia começara cedo para
ambos, mas fora cheio de surpresas e terror para os inimigos de Cromwell. Ao relento, os soldados do Exército de Novo Tipo sentiam-se exaustos, enchar-
cados e famintos; antes de dormir, porém, tiveram o prazer de encontrar o ouro
de Hamilton, que despencara de uma carroça virada. Sombrios, os realistas observaram o saque, “sem vontade de resgatá-lo”, disse Hodgson.?º
Os escoceses não puderam dormir. Preocupado em evitar que fugissem para o norte, Cromwell colocara seus guardas, tendo em mente que o núcleo principal do exército inimigo não se envolvera na batalha e ainda poderia estar
disposto à luta. Num rápido conselho de guerra, na metade da noite, igualmente molhados e cansados da batalha, eles decidiram seguir atrás da cavalaria de Middleton, que retornava apressadamente, pela estrada de Wigan. Mais uma
vez o plano era de Callander, e mais uma vez prevaleceu contra as dúvidas de Baillie e Turner, em dúvida quanto a uma retirada tão complexa. Como todos
os anteriores, foi melhor na teoria do que na prática. Executada em silêncio absoluto, durante algum tempo a manobra foi bem-sucedida. “Desgastados (...) ni o”, não percebemos a partida do inimig
confessou Cromwell. Mas os problemas
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dos escoceses estavam apenas começando. Supondo que sua munição fora per-
dida, eles descobriram que tinha sido abandonada nas mãos dos ingleses. Pior: Middleton retornou de Wigan através de uma estrada diferente, sem encontrar Hamilton. Já se sugeriu que o ruído dos cavalos é que chamou atenção para a
fuga que transcorria no meio da noite; de um jeito ou de outro, foi o coronel Thornhaugh, no comando de dois regimentos de cavalaria, que se defrontou com Middleton, e não os realistas. Na refrega que se seguiu, os homens de
Thornhaugh se saíram bem, o líder, ferido na testa, no peito e na coxa, morreu
pronunciando palavras edificantes: “Alegro-me, pois Deus me permitiu assistir à derrubada desse pérfido inimigo.”?! A partir daí, a batalha de Preston transformou-se numa corrida debaixo
de chuva — a cavalaria de Cromwell “perseguiu o inimigo, matando e fazen-
do prisioneiros pelo caminho”. Sem munição, o inimigo praticamente não
ofereceu resistência. Na noite de 18 de agosto, os campos em volta de Wigan estavam sujos e encharcados; segundo o relatório de Oliver, os soldados marcharam “vinte quilômetros em terreno tão ruim como eu nunca vira antes, completamente alagado”. Houve algumas escaramuças, mas combate mesmo só a cerca de cinco quilômetros de Warrington. Mais uma vez os combativos escoceses venderam caro a derrota. Baillie ofereceu a rendição da cidade em termos favoráveis, e Cromwell, considerando a força de sua posição, aceitou. O duque de Hamilton conseguiu escapar para o Cheshire juntamente com Langdale e cerca de três mil de seus cavaleiros. Cromwell não foi em seu encalço, admitindo com total franqueza que seus homens tinham esgotado as forças: “Se tivesse quinhentos cavaleiros e quinhentos infantes descansados, poderia tê-los destruído completamente.”22 Não se tratou de uma bravata, de modo
algum — no deslocamento de Knottingley, na luta, em Preston, e no seu desdo-
bramento, ao parar. Enfim, milton desceu ao governador do. Langdale
longo da costa do Lancashire, ele cobrira 225 quilômetros, sem a “questão escocesa” estava encerrada. Perdidos os dentes, Hapelas Midlands até Uttoxeter, no Staffordshire, onde se rendeu de Stafford, que contava com o apoio de Lambert, recém-chegafoi capturado numa taverna de Nottingham. Somente Callander
teve a sorte que não merecia e conseguiu evadir-se na direção do continente. A batalha de Preston, na Segunda Guerra Civil, equivaleu à de Naseby, na Primeira, liquidando as esperanças realistas. Refletindo um desespero sar-
antes de mais nada, e ao nariz de Cromwell (...).”2 Do lado perdedor, os
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só se ouvem os sons de triunfo e alegria, cantos e risos — graças ao Diabo,
Sa
cástico, um jornal da época publicou matéria, dizendo: “A irmandade calou, e
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mortos somaram dois mil, contando-se em milhares o número de prisioneiros
— Cromwell perdera apenas cem homens. Ele sequer imaginara tamanha
destruição, ainda que as circunstâncias lhe fossem favoráveis e os desastrados escoceses tivessem contribuído bastante para a vitória. Langdale, mal-informado, Callander, teimoso e equivocado, Hamilton, fraco no comando, sem falar na falha inicial — os crescentes atrasos —., nada disso pode ser subestimado; antes deve-se admitir que o exército escocês “arruinou-se num instante e por desorganização”, conforme escreveu Guthry:* Caso não existisse o concurso de tais fatores, Cromwell alcançaria um êxit o limitado e o exército escocês teria empreendido uma retirada em ordem. Mas
foi ele quem forçou a confrontação: sua velocidade e decisão levaram a que a
batalha se travasse justamente naquele local. O afortunado jogador deve rece-
ber o crédito pela coragem de lançar os dados — e, em Preston, isso determinou o sucesso. É importante notar, entretanto, que no relatório de batalha e em alusões posteriores, Oliver sempre deu mostras de estar bem consciente | do papel desempenhado pela Divina Providência — acreditava ter sido ajudado por algo que outros chamariam sorte ou análise correta da situação. Numa carta que escreveu, mais tarde, contou a história de “um pobre homem de Deus”, que em seu leito de morte, em Preston, na véspera da batalha, quando lhe disseram que o Exército de Novo Tipo estava chegando, pediu à mulher que trouxesse um punhado de grama — ela secaria ou não, agora que
fora cortada? Sim, a grama secaria, respondeu sua esposa. “Pois o mesmo
acontecerá aos escoceses”, disse o homem antes de expirar. O enredo se situa
perfeitamente no lírico relato de Cromwell sobre a batalha, em que seu traço
messiânico está mais acentuado do que nunca. Dirigida ao presidente da Câmara dos Comuns, e impressa sob a forma de panfleto, como muitos de seus relatórios anteriores, refere-se à mão de Deus, demolidora de tudo quanto se
baseie no auto-elogio.
Em caráter mais pessoal, dirigindo-se a seu primo St John, em 1º de setembro, ele volta a mencionar a gloriosa natureza de Deus — “Que tudo que
respira louve o Senhor”; ao seu “querido irmão”, sir Henry Vane, recomenda
que não desdenhe as manifestações divinas e que leia um capítulo de Isaías, um longo comentário acerca dos desejos dos maus — “E muitos dentre eles
tropeçarão e cairão, e serão quebrados, presos e levados”. Vane, com certeza, entendeu a citação. Anos mais tarde, quando perdeu o favor de Cromwell, ele se referiu ao incidente, dizendo temer “tanto sua a E) i ]
atividade do ex-companheiro.?
[própria] inércia”, quanto
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Naquela ocasião, Oliver tratou de levar sua atividade na direção do
Yorkshire, tentando postar-se entre o exército de Monro e a fronteira da Es-
cócia. Enquanto isso, ao sul, o projetado ataque naval do príncipe de Gales
fora abandonado. Beneficiado pelas notícias de Preston, Fairfax colheu a ren-
dição de Colchester e, embora os defensores tenham se colocado à mercê do Parlamento, não demonstrou muita misericórdia; furioso com aquele desne-
cessário derramamento de sangue, passou pelas armas dois ou três comandan-
tes realistas, acusando-os de trair o juramento que haviam feito ao término da
Primeira Guerra Civil. Perdoou sir Bernard Gascoigne pela surpreendente razão dele ser florentino: não queria sujeitar-se, ou a seus descendentes, a pos-
síveis vinganças em futuras visitas à Itália. Tal atitude contra os responsáveis por seus novos problemas era característica do exército. Cromwell mostrou-se sinceramente preocupado com a “triste viúva? do coronel Thornhaugh, manifestando o desejo de que o poder público cuidasse dela; em seu julgamento, Hamilton agradeceu cortesmente os gestos de compaixão para com os “pobres cavalheiros [escoceses] feridos” que ele deixara para trás, reconhecendo que [Cromwell] fizera “mais do que tinha prometido”. Os antigos soldados parlamentares, porém, não deviam es-
perar gentilezas.”* No entanto, o próprio Parlamento revelou pouco entusiasmo. A reação da Câmara dos Comuns às notícias da vitória enfatizou o abismo que a separava do exército. As diferenças se tornaram ainda mais
marcantes quando, no dia seguinte, o Voto de Nenhum Contato com o rei foi
derrubado. Preston, afinal de contas, não valera de nada à causa presbiteriana, nem para que se chegasse a um tratado pessoal com o soberano. Enquanto Oliver tomava o rumo do norte, no sul, o Parlamento, a cujos pés ele colocara sua vitória, envidava esforços no sentido de um acordo com o homem que ele julgava responsável pela situação que o levara à batalha. Em carta de 2 de setembro, a Jord Wharton, ele revela imensa preocupação.
Desincumbindo-se da agradável tarefa de parabenizar o amigo pelo nascimento
de um herdeiro varão, Oliver não resistiu a um amargo comentário a respeito
da deliberada ingratidão da Câmara dos Comuns:” “Sabeis da minha dificuldade em escrever uma única palavra que seja, mas imploro ao Senhor que nos sensibilize com uma parcela da Sua grande bondade, certamente muito superior à que (...) o Parlamento expressou.” Impossibilitado de encontrar Wharton pes-
soalmente, consolou-se com explosões epistolares: “Ah, como eles são bondosos com toda a sociedade de santos, desprezados e vaiados santos! Nos ridiculari-
zam — que seja! Se ao menos fôssemos realmente santos. Os melhores dentre
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nós — Deus o sabe — são santos pobres e fracos, mas ainda assim santos; ou, no mínimo, cordeiros que precisam ser alimentados. Temos o pão de cada dia (...) apesar de todos os inimigos.” Desgostoso com as coisas terrenas, pede ao companheiro que tome seu filho recém-nascido como mais uma “bênção” e “não conspire ou aja (...) para torná-lo grande (...) melhor dizer que pertence a Deus, que fará dele o que quiser, guiando-o”.* Em 12 de setembro, em Alnwick, Cromwell estava prestes a cruzar a divisa da Escócia, depois de ter feito uma pausa, em Durham, onde assistiu à
uma Ação de Graças. Ordenara que todo e qualquer escocês apanhado pelas estradas fosse preso, sem ser molestado. A Comissão da Derby House queria
que recuperasse as fortalezas fronteiriças, recentemente tomadas do Parlamento. Por isso que ele lançou uma conclamação a Ludovick Leslie, governador de Berwick, afirmando que não havia mais necessidade alguma de justificar a posição do Parlamento, visto que “o testemunho de Deus fora dado contra o exército invasor deste reino, que desejava estar em paz com vós e nenhum mal vos desejava (...) se recusardes a aceitar isso, seremos obrigados a lançar outro apelo a Deus, certos de sob Sua direção conseguirmos obter nossos direitos. (...) Ele haverá de nos julgar (...)”.2 Na Escócia, a derrota de Preston motivara uma reviravolta política — os moderados, responsáveis pelo primeiro apelo a Deus, tinham perdido espaço para os nobres e os clérigos. Personagem destacada, na nova conjuntura,
Archibald Campbell, primeiro marquês de Argyll, alto, magro, sobrancelhas arqueadas e cabelos ruivos, expressão sagaz, acentuada por um longo e incisivo nariz, era conhecido como g/ey'd Argyll, por causa do seu estrabismo; segundo Clarendon, “mesmo sem aparentar grandes virtudes à primeira vista, ele conse-
guia reconciliar inclusive os que o detestavam com uma boa conversa”.? Ou seja, Argyll tinha charme. Em 1637, já era considerado o súdito mais poderoso do reino, um tributo aos seus vastos domínios, a oeste da Escócia, € à sua posição de chefe de um poderoso clã — nas batalhas, os que o seguiam não gritavam vivas ao rei Stuart, mas a ele próprio, como se soberano fosse. Apaixonadamente religioso, inteligente e simpático, nada disso o impedia de
cambiar de posição a toda hora, fazendo e desfazendo compromissos. Refe-
“Os piedosos desejos de Cromwell quanto ao futuro bebê não se realizaram. O jovem, mais tarde primeiro marquês de Wharton, transformou-se nu m notório dissoluto, descrito por Swift como um adepto incurável de “vício e política” , talvez reagindo contra sua educ ação,
posto que o próprio Swift o chamou pelo pior de tod Os Os nomes: “ateu enxertado num herege”.
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rindo-se às jogadas políticas de que costumava participar, um jornal da época disse que ele não gostava de “usar todas as cartas da mesa”. Julgar um chefe escocês não seria tarefa fácil. No entanto, os ingleses teriam muito mais dif-
culdade em julgar um chefe escocês das Highlands do que um escritor, escre-
vendo sobre o próprio pai:
Nenhuma fé nos padrões dos tartans, nenhuma confiança nas cores dos calções das “highlands”.
Pode-se argumentar que Argyll estava motivado por novo tipo de patriotismo e que suas oscilações indicavam uma preocupação mais ampla com o futuro de seu país — que ele claramente identificava à ascendência do clã Campbell. O novo governo formado na Escócia, sob os auspícios do Comitê de Proprietários, evidenciou o declínio dos “envolvidos”. Desertando de sua antiga causa, Loudoun tornou-se chanceler; além disso, numa reação coletiva à política anterior, os camponeses de Ayrshire, extremistas religiosos conhecidos como whigs ou whiggamores,* iniciaram um levante armado. Uma aliança com Cromwell seria extremamente vantajosa para os homens que haviam acabado de se assenhorear do poder — muito melhor do que a perspectiva de continuar a guerra. A mudança de conjuntura foi devidamente explicada ao comandante in-
glês, que respondeu afirmando sua crença na possibilidade de aproximação entre
Os dois povos, desde que o Compromisso fosse eliminado. Em 18 de setembro, ele escreveu: “Diante do Senhor, que conhece o segredo de todos os corações, temos como verdadeiro que um dos objetivos especiais da Providência, ao permitir que Os inimigos de Deus e da bondade conseguissem alçar-se tão alto, exercitando sua
tirania sobre Seu povo, foi demonstrar a necessidade de união entre aqueles que o apóiam, nas duas nações (...). Seu último favor, ao nos conceder tão feliz sucesso contra nossos inimigos, pode servir de base à unidade (...).? Assim, cheio de cordialidade, Oliver transpôs os limites que separavam os dois países no dia 21 de setembro de 1648. Na mesma data escreveu ao Comitê de Proprietários descul-
pando-se pelos saques que seus homens tivessem praticado?! — não se justificavam, e as conversações deviam transcorrer num clima de amizade. *Origem da alcunha posteriormente atribuída ao Partido Liberal, na Inglaterra, da mesma
forma que os camponeses católicos da Irlanda acabaram gerando o apelido — originalmente insultuoso — do Partido Conservador: tory.
Do
Como os camaleões, elas mudam tanto...
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A nova liderança escocesa cavalgou ao seu encontro e, conforme relato do próprio Cromwell, tudo correu muitíssimo bem. Um dos emissários, escolhido por sua prudência, era o major Archibald Strachan, da seita escocesa, que com-
batera em Preston, e durante algum tempo eles trocaram satisfações “ref erentes
à integridade e sinceridade de cada um”. Oliver estava satisfeito de poder testemunhar que em Argyll, Elcho e outros cavalheiros não encontrara “nada além
do que se espera de cristãos e homens honrados”. A verdade é que, apesar de todos os ataques que haviam sido desferidos contra ele, acusações de incendiário, conspirações contra sua vida, combates cruentos, havia muito o que parti-
lhar com esses sinceros calvinistas. Um homem como Argyll, que se levant ava às 5h e rezava até as 8h, tinha muito em comum com Cromwell, que não só orava fervorosamente, mas ainda estimulava seus colegas, na Câmara dos Comuns, a fazerem o mesmo, inclusive através de relatórios de batalha. Igualmente exaltados na distribuição de bênçãos, os convencionais só o ultrapassavam em virtude de sua convicção na missão evangelizadora da nação escocesa; alguns deles chegavam a se comparar aos judeus — /ord Johnston de Warriston dizia existir “um paralelo muito próximo entre Israel e nossa Igreja”, e em seu diário ele se referiu às “duas únicas nações presas a um juramento ao Senhor (...)”.
Cromwell jamais concordaria com isso, mas o confronto só viria a ocorrer dois anos depois. Entrementes, ambos podiam dialogar na mesma língua. Em 2 de
outubro, em carta a Fairfax, ele afirmou: “Espero que haja um bom entendimento entre a parte honesta da Escócia e nós (...).”32
O entendimento foi avante. Lambert e o corpo principal do exército
acamparam, em Seaton, onde Cromwell se reuniu a eles, ao passo que Argyill apressou-se em voltar a Edimburgo. O Comitê de Proprietários convidou os ingleses a visitar a capital. Na quarta-feira, dia 4 de outubro, Cromwell entrou em Edimburgo, sendo recebido — assim giram as rodas da história — com “toda a solenidade” e o respeito devido ao “libertador de seu país”. Durante três dias ele permaneceu hospedado na residência da condessa de
Moray,* na estreita mas aristocrática e histórica Canongate, defronte aos am-
plos jardins que se estendiam até o Holyrood Park, com vista para a grande
rocha de Arthur's Seat [Cadeira de Arthur]. A hospitalidade escocesa brindou os comandantes do exército inglês com um Jantar num castelo, conduzindo-os em carruagens, através das ruas da cidade, ao encontro de Argyll e SA casa ainda existe — com uma pequena coroa or namentada com o M, de Moray, sobre uma janela; atualmente, lá funciona um curso superi or de educação .
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Johnston de Warriston, que censurara energicamente os “envolvidos”, segun-
do o bispo Burnet, seu sobrinho, “sem mostrar qualquer inquietação consigo ou sua família, embora tivesse 13 filhos, pois considerava o presbitério mais
importante do que tudo no mundo”. Em tais circunstâncias, e com o exército de Lambert em Seaton, Cromwell pôde assegurar o afastamento de todos os
“indesejados” dos postos de confiança. Monro curvou-se à dissolução de suas tropas. No dia 6 de outubro, Loudoun disse a Cromwell que havia unanimi-
dade acerca de seus termos. Houve algum ranger de dentes, por certo, e cava-
los roubados, mas nada disso perturbou a trangiilidade de Oliver?
Obviamente, mesmo no curto período de tempo que duraram as discus-
sões, o destino das duas nações e o do soberano que compartilhavam há de ter sido acertado. O início de outubro foi um momento especialmente delicado no sul. Para desgosto do exército, o Parlamento dera consegiiência à eliminação do Voto de Nenhum Contato com uma renovada tentativa de adaptação ao
rei e, através dos presbiterianos, vinha elaborando os termos do Tratado de
Newport [cidade situada na ilha de Wight]. Holles, é claro, nunca deixara de olhar para trás, temendo pela sua vida. Os /evellers continuavam a pressionar em prol do tipo de governo definido no Compromisso do Povo, enviando à Cãmara dos Comuns uma série de petições maiores e menores, e Vane insistia na aplicação das Propostas do Exército. De sua parte, o monarca sugeriu que se
experimentasse o presbiterianismo, por três anos, estendendo-se às demais seitas uma tolerância limitada; a milícia ficaria sob o controle do Parlamento
durante uma década. Os Comuns haviam acabado de rejeitar isso quando Cromwell chegou a Edimburgo, e Carlos I aproveitou o tempo para imaginar novas possíveis concessões e tramar outra fuga. No continente, a paz fora finalmente alcançada, e o Tratado de Westfália o encorajava a buscar apoio externo, livre de responsabilidades. Sem nenhum contato permanente com os meios políticos, em Londres, e ignorando o que se passava na ilha de Wight e nos Conselhos do Exército, Oliver permanecia atado às conversas com seus hospedeiros. Os regis-
tros das conversações que mantiveram — segundo o testemunho dos escoceses — foram utilizados para acusá-lo de hipocrisia. Num dos encontros, expressando sua opinião com “palavras floreadas”, os olhos de Cromwell teriam se umedecido, o que levou o célebre pastor presbiteriano Robert
Blair a chamá-lo de “demônio chorão”. Numa hora de máxima incerteza, enfrentando os articulados escoceses, o satã lacrimejante não deixava de ser simpático. Mais sério do que a acusação de impostura foi o ataque de
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Montrose, reproduzido por Clarendon, de que ele e Argyll estavam dec;. dindo a destruição da monarquia — não necessariamente a morte do rei, mas “seu encarceramento e um governo que o excluísse”. O autor da de-
núncia afirmava que, de regresso a Londres, Cromwell se vangloriava disso
mais do que da vitória obtida em Preston. Em suas Memórias, mesmo reconhecendo que “ninguém pode saber o que se passou entre eles”, Guthry admitiu a crença geral de que Cromwell comunicara aos escoceses seus pla-
nos relativos ao monarca, recebendo deles total aprovação. Mas discussões não significam um plano. Oliver pode perfeitamente ter sondado a reação de Argyll a uma Inglaterra sem monarquia — algo que ainda suscitava suas dúvidas —, obtendo do chefe dos Campbell uma cautelosa
aceitação. Isso é muito diferente de um acordo secreto. No seu julgamento e no cadafalso, o marquês sempre jurou que tal combinação jamais ocorrera, demonstrando grande alívio ao ser absolvido de ter tomado parte na morte de Carlos I, embora condenado por várias outras acusações. Ademais, no início de outubro de 1648, seria realmente muito pouco provável que Oliver já tivesse opinião formada sobre o destino final do soberano — naquele momento não cabiam cogitações desse quilate. A situação no sul era tão fluida que até mesmo a opinião do exército podia mudar de um dia para o outro. A extrema neurose revelada nas famosas cartas escritas a “Robin” Hammond (analisadas em capítulo posterior) é típica de um homem angustiado e indeciso. Assim, em 9 de outubro, de Dalhousie, Cromwell enviou ao presidente da
Câmara dos Comuns um relatório informando sobre a dissolução de todas as
forças escocesas. Dirigindo-se ao sul, via Carlisle e Newcastle, onde foi festejado pelo prefeito, ele alcançou Durham no dia 20 de outubro. Lá o aguardavam assuntos eminentemente práticos, relacionados à pacificação de todo O norte da Inglaterra, além de um documento da comissão de York, reivindicando a tomada do castelo de Pontefract. Nas seis semanas seguintes, cruciais
na história inglesa, enquanto outros participavam de conferências, projetando idéias, Oliver estaria envolvido em questões militares, a quase quinhentos
quilômetros de Londres — um fim inevitável de uma guerra que ele sempre considerara desnecessária e mortificante.
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Providência e necessidade
Desde que a Providência e a necessidade os lançaram a isto só cabia rogar a Deus que abençoasse seu julgamento. CROMWELL NO JULGAMENTO DO REI, 26 de dezembro de 1648
demora de Cromwell diante de Pontefract se prolongaria de forma surpreendente, sinistra mesmo, até o final de novembro, obrigando-o a uma ausência de sete meses da capital. Entretanto, é indubitável que sem a ocupação da fortaleza a Segunda Guerra Civil não seria encerrada. Das proximidades de Knottingley, ele planejou o cerco como se fosse uma batalha. Construído na rocha, o castelo era de difícil acesso: cercadas por um largo fosso
cheio d'água, suas altas torres, reminiscência dos dias sombrios de Ricardo II, não poderiam ser escaladas nem derrubadas. Durante algumas alegres tréguas, houve brindes entre os “irmãos cabeças-redondas” e os “irmãos cavaleiros”, mas a correspondência de Oliver nunca cessou de suplicar por supri-
mentos, fazendo menção a detalhes administrativos ligados à pacificação do norte, inclusive os humildes problemas de uma certa sra. Gray, que queria vi-
sitar o irmão doente na fortaleza sitiada, e os de outra pobre mulher, sem
meios de alimentar sua própria família, mas compelida — “muito além de
suas possibilidades” — a dar alojamento aos soldados.!
Persistindo em sua audácia e confiantes na base de que dispunham, os realis-
tas desfecharam um ataque no fim de outubro. Levando uma suposta mensagem
de Cromwell, quatro cavaleiros penetraram no acampamento do coronel Rainsborough, em Doncaster, e o segiestraram; no tumulto que se seguiu ele tentou escapar, mas foi morto. O plano era trocá-lo por sir Marmaduke Langdale que,
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ironicamente, escapara do castelo de Nottingham no dia anterior. O fato provo-
cou sensação no Parlamento, atribuída à reputação de Rainsborough, que nos debates de Putney fora um dos primeiros a sugerir o julgamento do rei; O Próprio Cromwell se encarregou de identificar e punir os assassinos,
No sul, crescia a consciência do Conselho do Exército de que muito pouca
coisa adviria do rei ou do Parlamento, exceto procrastinações astutas e pusilanimidade ante os responsáveis pela Segunda Guerra Civil. Na aus ência de Cromwell, Henry Ireton — segundo Burnet, “dotado dos princípios e do temperamento de um Cassius” — desempenhou um papel decisi vo. A Carlos I, tendo em vista as boas possibilidades de ajuda externa, interessa va manter o Tratado
de Newport em suspenso (na verdade, “negociações” de Newport). A Europa era
um foco de otimismo, e ainda mais a Irlanda, onde se operara outra comple ta reversão de alianças, e o enérgico Ormonde estava prestes a concluir um acordo
com os católicos. O monarca lhe escreveu nos seguintes termos: “Po deis ouvir que esse tratado está próximo de ser concluído, ou que isso seja plausível , mas não deveis dar crédito a tais rumores, antes seguir pelo caminho que ora tril hais, com todo o denodo, transmitindo minhas ordens a todos os vossos amigos, em sigilo, porém.” A advertência, bem característica do rei, daria ensejo, por exemplo,
a que ele ordenasse o recuo nas negociações, caso preferisse fazer novas concessões ao Parlamento. Toda duplicidade se justifica, desde que permitisse a salvação dos direitos essenciais da Coroa. Face à constância da nação, ao longo de seis anos, suas concepções não tinham se alterado um milímetro sequer. Em Wight, deleitava-se copiando versos de Claudiano, poeta da corte de Honório, imp erador
de Roma, segundo o qual seria errado chamar de escravidão o serviço prestado a um príncipe — nunguam libertas gratior extat quam sub Rege pio [ninguém é mais
livre do que sob um rei valoroso] —, doutrina ridiculamente descompassada com
as posições firmemente defendidas por seus súditos. O próprio Clarendon escreveu, mais tarde, que a queda do rei, cercada de tantas circunstâncias milagrosas,
“segundo alguns acreditavam (...) estaria escrita nos astros”2
O estado de espírito dos soldados estava expresso na sua Admoestação, cujo preâmbulo fora elaborado por Ireton. Chamada por Whitelocke de “primeira manifestação de vontade contra o rei”, discutida ainda sob a forma de rascunho,
em St Albans, no dia 7 de novembro, tratava-se de um documento cheio de có-
lera, que exigia o imediato expurgo do Parlamento e o Julgamento do monarca
e de outros grandes responsáveis pelo recente conflito. Acusava as criaturas do Parlamento que desejavam “reconduzir ao trono” um soberano que traíra à confiança nele depositada, “culpado de todo o derra mamento de sangue ocorri-
do nas guerras internas”, juntamente com os que haviam “planejado e apoiado”
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a carnificina. A única solução, neste caso, seria punir de forma justa e imparcial “monarca, lorde ou o mais puro homem comum”. O texto só foi aprovado no dia 16 de novembro, vencidos os derradeiros escrúpulos dos que se opunham aos elementos radicais — como em Putney, um ano antes, Fairfax continuava preocupado e hostil diante de qualquer plano que envolvesse a derrubada do
governo. A adesão do exército do norte foi decisiva. Em 2 de novembro, o secretário de Cromwell, em Pontefract, Robert Spavin, manifestara seu otimismo:
“Creio que Deus vai quebrar este grande ídolo do Parlamento e aquela tosca forma de governo bicameral, apoiada no rei.” No dia 10, representantes dos re-
gimentos do norte endossaram as petições dos regimentos do sul.? Acerca das idéias de Cromwell, já não há tanta certeza. Sobre o que lhe ia nalma, John Lilburne, liberto da Torre de Londres desde agosto, nos fornece uma visão interessante, de um homem bastante afastado do pensamento radical. Em Pontefract, onde se encontraram, ele parecia mais “exaltado” do que entusiasmado no que tange às “Liberdades da Nação”. Apesar disso, considerou útil que /evellers e “independentes” se reunissem — em Putney aprendera que era melhor ter os “duros” ao seu lado. De qualquer forma, no dia 15 de novembro, na taberna Nag's Head, representantes daquela facção estabeleceram contato com Ireton, Hugh Peter e o coronel Harrison, e algumas importantes modificações de última hora foram introduzidas na Admoestação, aproximando-a das linhas gerais do Compromisso. Repleta de revelações pessoais de incerteza é a primeira das duas cartas íntimas escritas por Cromwell ao seu primo “Robin? Hammond, que guarda-
va o rei, na ilha de Wight.º Datada de 6 de novembro, seu texto obscuro menciona uma série de codinomes e apelidos, nem todos identificáveis. Dela emergem, entretanto, alguns indicadores do pensamento de Cromwell, menos
hostil aos Jevellers do que já fora antes, provavelmente em consegiiência da
reação presbiteriana: a certa altura, ele aduz ao que se contrapõe a eles, referindo-se a “alguma coisa amaldiçoada (...)”.
Ao mesmo tempo, o intricado segundo parágrafo deixa claro que ele ain-
da prefere o presbitério, capaz de conter o rei melhor do que o episcopado
moderado: “Se minha lógica está correta, seria mais fácil [para Carlos I] ti-
ranizar com a ajuda dos que servem à sua causa [isto é, o episcopado] do que amparado em algo que notoriamente o desgosta.” Nesse contexto, ele defende fortemente a aliança escocesa, argumentando contra os que o acusaram de fraqueza ante os presbiterianos: “De todo o meu coração, confesso que tenho rezado e espero o dia em que possa haver união e entendimento correto entre os povos de Deus — escoceses, ingleses, judeus, não-judeus, presbi-
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terianos, “independentes”, anabatistas e todos os demais.” Posto que os escoceses admitiram seus erros, unir-se a eles não fora “um trabalho mais glorioso
(...) do que se tivéssemos saqueado e destruído Edimburgo e os castelos que conquistamos, estendido a ocupação de Tweed às Orcades”? Aniquilá-los,
como sugerira um amigo, teria sido “não somente impossível, de um ponto de vista prático, como ainda anticristão”. A carta não contém uma única palavra contra a aceitação do Tratado de Newport, apesar da linguagem velada e frases como “a Paz só é boa quando a recebemos das mãos de nosso Pai Er O julgamento do rei também não é mencionado. De fato, seu conteúdo não
evidencia nenhuma posição definida a respeito de quaisquer das questões vitais que estavam sendo decididas no sul. No geral, a atitude de Cromwell
pode ser resumida numa frase em que ele se refere aos escoceses: “Inocência e integridade não perdem nada com a paciência de esperar pelo Senhor” No dia 20 de novembro, todavia, data em que a Admoestação foi apresentada à Câmara dos Comuns — sua leitura em voz alta consumiu quatro horas —, a carta de Cromwell a Fairfax, enviando-lhe algumas petições de apoio do exército, mostra que ele tendia, ainda que cautelosamente, para as posições mais radicais:* “Acho que a explanação dos regimentos faz muito sentido quando relaciona os sofrimentos e a ruína deste pobre reino (...) e revela grande zelo ao reivindicar que os criminosos sejam submetidos a uma justiça imparcial (...) de
pleno acordo com eles, verifico, penso e estou persuadido de que Deus coloca coisas em nossos corações.” Cinco dias mais tarde, a segunda carta refletia algum nível de decisão, forjando-se na bigorna de sua consciência.” Parcialmente inspirada em decla-
rações do próprio Hammond, que se distanciava dos argumentos do exército, ela contém a mais explícita das afirmações que Oliver fizera, até então, sobre sua crença nos sinais da vontade de Deus. Começa pedindo que o destinatário os examine: “Cada um de nós tem sua cota de manifestações explícitas, se po-
demos falar assim, da admirável Providência e aparições do Senhor. Sua presença está entre nós, e pela luz de sua aprovação temos prevalecido.” O primo é instado a lembrar-se de como Deus o havia buscado, a ele, Oliver,
apesar de seu desejo de retirar-se, tão logo o rei fugitivo foi encerrado na ilha de Wight. Diante da sucessão de fenômenos divinos, ele é bastante corajoso para afirmar que “não são os malvados que devem ser exaltados fe De volta às questões políticas, Cromwell se indaga sobre a legalidade da resistência ao Parlamento, afirmando que, todavia, nenhuma autoridade é oni-
potente, e “todos estão de acordo em que há casos nos quais é certo resistir”.
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Portanto, Hammond deveria verificar, antes de mais nada, se a Salus Populi —
a segurança do povo, enquanto lei suprema — era uma proposição correta.* Segundo, se nos entendimentos em curso isso estava sendo devidamente con-
siderado, ou “todos os frutos da guerra” não estariam sendo frustrados, “existindo grande possibilidade de um retorno à situação anterior ou algo pior”. Terceiro, que o exército poderia estar constituído num poder legal em si mes-
mo, chamado por Deus a se opor e lutar contra o rei — nesse caso, suas ações
estariam justificadas in foro humano, com base nos interesses da humanidade.
Pensando em voz alta, Cromwell reitera suas observações a respeito dos sinais divinos e das importantes vitórias obtidas na Segunda Guerra Civil: “Tais indícios, constantes e desanuviados, têm com certeza algum significado. Malícia, confirmada malícia contra o povo de Deus, a quem agora chamam de Santos, com o fito de banir qualquer referência a ele, embora esteja devidamente armado e tenha sido abençoado com o encargo da defesa e muito mais.” A crescente insatisfação não seria também um sinal? “O que pensas da Providência, dispondo assim os corações de tanta gente, especialmente nesse
pobre exército, ao qual o grande Deus condescendeu em aparecer (...)?” Numa frase significativa, ele descreveu como “o exército do norte se mantivera na expectativa, querendo saber aonde nos levaria o Senhor”. Foram guiados. No final, há uma nota sombria relativa ao rei e aos que “não julgam”, muitos deles seus amigos, orientados pela “passividade” e pela crença equivo-
cada de que sempre se chegará ao bem, de um jeito ou de outro. “O bem des-
te Homem!” — Carlos I —, verberava Cromwell, contra quem o Senhor testemunhara, e que Hammond conhecia tão de perto. Vê-se, pois, que mesmo no norte, e conservando ainda uma certa esperança,
Oliver vinha avançando em suas posições, consoante a apresentação dos planos
do exército se tornava mais explícita e graças à confirmação de cada uma de
suas próprias indagações. No sul, entretanto, devido à precipitação dos fatos, e
muito antes de Hammond receber essa segunda carta, uma verdadeira revolução forneceu a Cromwell muito mais revelações a considerar e interpretar. O texto final da Admoestação colocava a Câmara dos Comuns diante de um
desafio radical, impossível de ser ignorado. É verdade que a par de exigir um Julgamento para o rei, não postulava a extinção da monarquia, limitando-se a “A doutrina que concebia a Salus Populi Suprema Lex servira, na Admoestação, como funda-
mento do direito moral do exército para atacar o monarca; atribuindo a soberania ao povo, considerava que o contrato entre governantes e governados, uma vez rompido — como
Carlos I o fizera —, tornava a revolta legítima.*
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sugerir a diminuição de suas pompas, pelo menos durante alguns anos, enquanto o custo das guerras não fosse coberto; ficava aberta a porta por onde poderia transitar uma regência e resguardados os direitos do pequeno duque
de York. Aos apreensivos ouvidos dos parlamentares, mirando os soldados de
esguelha, mais importante que a dissolução do Parlamento, impertinentemen-
te solicitada, era a demanda em prol de um sistema eleitoral muito mais democrático — sentia-se aí a marca indelével dos /evellers. Com otimismo superior à sabedoria, decidiu-se adiar a discussão — uma semana seria o
bastante — na expectativa de que Carlos I fortaleceria suas posições, respon-
dendo favoravelmente às propostas de entendimento. Porém, quando se soube
de sua última palavra, constatou-se que não admitia a abolição do episcopado — e rogava a extensão do prazo permitido à reflexão. Esgotada a sua paciência, o exército movia-se inexoravelmente, como o tempo e as marés. Em 26 de novembro, reunido em Windsor, após as orações, o Conselho Geral considerou “a grande questão em pauta”. O Parlamento deveria ser dissolvido ou expurgado, preservada apenas a minoria radical — aparentemente, essa minoria derrubou a oposição de Ireton e optou pelo expurgo. No dia seguinte, a Câmara dos Comuns voltou a adiar o debate sobre a Admoestação; passadas mais 24 horas, o Conselho decidiu deslocar o exército na direção de Londres. A marcha fatal efetuou-se em 1º de dezembro, provocando a mesma onda de medo que atingira os habitantes da capital, em consequência da incursão militar do verão anterior. O rei foi transferido de Wight para o castelo de Hurst, e Hammond substituído por um carcereiro mais determinado, na pessoa do coronel Ewer. Enquanto Carlos I fazia longas caminhadas pelo litoral gelado do Solent, a Câmara dos Comuns correu para sua ruína final com a velocidade de um rebanho de gado, se bem que demonstrando certa dose de coragem ao rejei-
tar, afinal, a Admoestação — 125 votos contra 58. Curvando-se à exigência de quarenta mil libras cobradas por Fairfax ao prefeito da cidade, em virtude do
aquartelamento das tropas, o Parlamento teve seu destino selado ao longo dos
debates que se seguiram às respostas do monarca, durante os quais um
número substancial dos membros sugeriu que o rei fizera concessões suficientes ao restabelecimento da paz. Na chuvosa segunda-feira, dia 4 de dezembro, o exército acampou no Hyde Park.
Onde estava Cromwell, enquanto essa controvérsia entre o exército e o Par-
lamento tinha curso? No norte, sustentando uma deliberada “postura de expectativa”. Publicada em 22 de novembro, a Admoestação terá sido recebida em
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Knottingley no dia seguinte, o mais tardar no dia 24. Cromwell escreveu ao seu
comandante uma carta sem data, provavelmente entre 23 e 25:4 “Lemos sua declaração e não vimos nela nada que não esteja de acordo com o que dizem e propõem bons e honestos cristãos e homens íntegros. Convém volver os olhos a
Deus, único capaz de mudar os corações no sentido das coisas justas que
expressais (...).”? Na esperança de um próximo encontro, informava sua partida,
marcada para a terça-feira seguinte — 28 de novembro. Mas naquele dia a mensagem de Fairfax, convocando-o “com toda a rapidez e conveniência possível”? a Windsor, ainda o alcançou: em trânsito, não pode ter demorado mais que 48 horas. Partiu, finalmente, na sexta-feira, 1º de dezembro, deixando o cerco
de Pontefract em outras mãos, e chegou a Londres na quarta-feira, 6 de dezem-
bro. À conclusão que se pode tirar dessa viagem de cinco dias, num período tão tumultuado, óbvia e compartilhada pelos contemporâneos, é que ele assim o quis, a fim de evitar a capital, antes que o expurgo tivesse começado. É plausível que Cromwell ainda esperasse, à margem de qualquer esperança, que a Câmara dos Comuns assumisse a responsabilidade de sua própria reforma. Em contraste com outros oficiais do exército, ele desempenhava o duplo papel de membro do Parlamento e líder militar, e nunca abandonou a consideração pelos princípios parlamentares, mesmo que algumas vezes a exasperação o tenha levado
a violá-los. O uso da força contra um corpo de representantes era questão muito
delicada, e, embora a correspondência anterior entre ele e Ireton sobre o assunto
tenha desaparecido — por boas razões de segurança, é claro —, com certeza ela terá existido. Cromwell, apesar da ausência, devia estar bem informado acerca das propostas de depuração. Em janeiro, discutindo com seu camarada sobre a fixação de prazos, ele considerou “honroso e conveniente” que o debate fosse travado pela própria Câmara dos Comuns; posteriormente, logo após o Rump,** afirmou ter desejado que “aqueles homens deixassem seus cargos com honra” e que ele próprio, na condição de membro do Parlamento, exercera infindáveis pressões nesse sentido, “uma vez e outra, e ainda outra, e mais de dez, e mais de vinte”.”? Fora, entretanto, a vontade de Deus.
Ao chegar a Londres, no entardecer do dia 6 de dezembro, e sabedor da forma dramática que o expurgo assumira, Cromwell disse a Ludlow que sua atitude *Ver David Underdown, Pride's Purge, p. 149, e nota de rodapé 17, que corrige W. S. Abbott, na sua tentativa de datá-la de 29 de novembro, deixando um espaço muito grande
entre a divulgação da Admoestação e sua tomada de consciência, por parte de Cromwell, e o
seu comentário a respeito com Fairfax, além de ignorar o dia de sua partida de Pontefract,
indubitavelmente, 1º de dezembro. **Literalmente, “Rabo” do Parlamento Longo, afinal dissolvido violentamente. (N. do T.)
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fora determinada pela Providência; desconhecendo previamente as medidas, ele
não deixou de aprová-las e declarou que “lutaria para que fossem mantidas”, Tudo acontecera tão apressadamente que pode até ser verdade — o comité de ofi-
ciais havia rejeitado a dissolução do Parlamento na véspera, quando Cro mwell estava a caminho, só podendo estar inteirado do assunto por intermédio de Ireton. Improvisado, na sua execução, o expurgo começou às 7h: os soldados cercaram a Câmara dos Comuns e barraram a entrada dos membros. Pride, baluarte do radicalismo, carroceiro ou cervejeiro na juventude, veterano de
Naseby e Preston, tinha nas mãos uma lista com o nome dos proscritos, identificados com a ajuda de lord Grey de Groby, par do reino, mas ativo partidário dos “cabeças-redondas”, dotado de uma “boa natureza crédula”, o que lhe permitiu tomar parte no estranho ritual. Ainda que discordando da medida, William Prynne cedeu à força da espada do coronel; ele e outros parlamentares foram impedidos de entrar — os que resistiam eram presos, e 39 passaram a noite numa taberna, o “Inferno”, inclusive os sete mais idosos, que recusaram a liberdade sob palavra, alegando-se ofendidos em sua honra. Na manhã seguinte, os oitenta restantes assistiram à reaparição de Cromwell, e Henry Marten discursou, afirmando que se Tophet fora preparada para os reis, nada mais justo do que seus adeptos serem confinados ao Inferno. Possivelmente brincando, ele indicou ao plenário a oportunidade de um elogio aos méritos de Oliver. No entanto, sir Henry Vane aceitou o repto e propôs que a idéia fosse submetida a votação, e a Câmara aprovou o voto de congratulações sugerido. Tentando demonstrar alguma independência, o Rump protestou contra a prisão de antigos parlamentares, e mesmo sem realizar tal intenção conseguiu adiar uma nova discussão da Admoestação até o dia 10 de dezembro. Daí em diante, porém, a manutenção do quorum tornou-se difícil — segundo fontes realistas, a frequência média não chegava nem a quarenta. Paralelamente ao declínio da influência parlamentar, cresceu a hostilidade
contra o monarca, estimulada pelos oradores sacros, que retomaram seu papel
de instigadores da violência com a mesma linguagem venenosa de antes; as pregações de George Cockayne eram violentamente antimonárquicas, cheias de referências a Saul e Ahab [marido de Jezebel], líderes que haviam falhado na execução de reis, transmitindo a clara mensagem de que o julgamento não
devia tardar, visto não haver mais razão para quaisquer acertos. “Honrados €
valiosos”, gritava o pastor de St Pancras Cheapside, “se não fizerdes justiça contra aqueles que foram os grandes agentes de todo esse derramamento de sangue, não penseis que isso trará para vós o amor divino”.!2
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Submetendo-se aos ditames do setor radical do exército — ou à Divina Providência, conforme sua interpretação preferida —, Cromwell não abandonara a idéia de executar Carlos I. Preocupava-o muito mais o julgamento do
que a sentença, € até que ponto se deveria implicar os partidários da causa rea-
lista, presbiterianos ingleses e líderes escoceses, igualmente responsáveis pelo desencadeamento da Segunda Guerra Civil. A mudança final de sua atitude
verificou-se nas três semanas seguintes — a partir de 7 de dezembro —, período de manobras e negociações, no curso das quais ele tentou de tudo, convencendo pelo menos um grande historiador de que ainda tinha esperanças de poupar a vida do soberano. Servil, revogando o que revogara, o Parlamento restabeleceu o Voto de Nenhum Contato, determinando multas e o banimento de Hamilton, Goring e outros. O exército não se satisfez com isso, e sir William Waller e sir John
Clotworthy foram detidos sob a acusação de compactuar com os escoceses; julgá-los, entretanto, exigia evidências, e parece que Cromwell assumiu a tarefa de tentar obter provas concretas contra o duque de Hamilton, prisioneiro em Windsor, e bastante firme, apesar dos rumores caluniosos divulgados no dia 14 de dezembro pelo Mercurius Pragmaticus, apoiado pelo Mercurius Elenticus, dando conta de que o “esperto covarde” dera com a língua nos dentes. Quatro dias mais tarde, os jornais tiveram que se retratar: Hamilton insistia em dizer que não fora convidado a entrar na Inglaterra nem pelo rei nem por qualquer membro do Parlamento inglês e, segundo rumores, teria escrito ao irmão — usando suco de limão — recomendando que não caísse
na armadilha de aceitar subornos e endossar versão diferente. Patético, em 23
de dezembro, endereçou outra carta ao Parlamento escocês: “Sofro porque obedeci aos vossos ditames, e confio em Deus que serei respeitado, em vez de encarado como inimigo dos dois reinos (...).?*º Os conselhos do exército vinham debatendo os termos de um novo Com-
promisso do Povo, mas Cromwell só participou de umas duas discussões, nos dias 15 e 29 de dezembro. Na decisão crucial de trazer o rei segurança, até a hora em que tuiu-se uma comissão de sete
primeira dessas duas datas, todavia, tomou-se a para o castelo de Windsor, “mantendo-o lá, em tivesse de responder perante a justiça”. Constimembros, encarregada de estabelecer as normas
do julgamento e definir o destino de Hamilton, Goring e /ord Capel. Em 23 de dezembro, ricamente vestido — confirmando que a casa puritana abrigava muitas mansões —, o coronel Harrison escoltou Carlos I; na véspera, o coro-
nel Whichcote fora abençoado com uma longa série de instruções, assinadas
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por Oliver e Ireton, detalhando as precauções que deveria tomar com seu prisioneiro real, não deixando nada ao acaso, a fim de impedir que o rei fugisse. Entre medidas que incluíam guardas a cavalo, na parte alta do castelo, uma companhia de infantaria sempre a postos, pontes levantadas durante a noite, isolamento completo etc. havia uma frase curiosa: “Será conveniente provi-
denciar a retirada de todas as pessoas malignas ou simpatizantes da nobreza, exceto os prisioneiros.” À carta terminava assim: “Que o Senhor esteja convosco e vos abençoe na grande responsabilidade que vos cabe.”!t
Em 24 horas, o Conselho de Oficiais determinou regras muito rígidas, cujo artigo 5º dizia: “Não são permitidos contatos privados entre ele [o rei] e qualquer outra pessoa, exceto sob vossa escuta ou a dos oficiais de guarda.” Cromwell opôs-se a isso, certamente tendo em vista as negociações secretas mas positivas em que estava envolvido. Quais seriam seus objetivos? É muito difícil afirmar, com certeza, particularmente depois de tanto tempo e com
base em evidências de segunda mão. Na época sugeriu-se que estava tentando esfriar os ânimos dos “Jevellers mais mesquinhos”, muito ansiosos pela morte do monarca. Em 21 de dezembro, um agente realista escreveu que parecia estranho, mas fora informado de que “estava se operando um certo distanciamento, dada a incompatibilidade de objetivos — são como água e fogo —, eles, lutando por uma democracia pura, e Cromwell, por uma oligarquia”. Sua análise indicava que Oliver estaria de acordo com “o desígnio atual de tirar a vida do rei”, o que desviaria os ataques contra os radicais, mostrando o quanto
eram selvagens.” Ão final da terceira semana de dezembro, surgem indícios de que Cromwell tendia para algum tipo de acordo; ele se encontrara com Whitelocke duas vezes, na casa do presidente da Câmara dos Comuns, no dia 19, e em Whitehall, 24 ho-
ras depois — a segunda conversa incluíra sir Thomas Widdrington. Diante da “seriedade? de Oliver e Lenthall, os dois comissários elaboraram uma pro-
posta, pronta no dia 22, cuja intenção era “tentar levar o exército a uma
melhor disposição”. Whitelocke e Widdrington já tinham percebido, desde segunda-feira, que nada induziria os soldados a poupar a vida do rei e de-
sistiram das tentativas de mediação que vinham empreendendo.!º Cromwell,
porém, ainda não aderira à fanática propensão da maioria dos soldados.
Na mesma data de 22, por exemplo, Hugh Peter fez um sermão incendiário, simulando acordar, de repente, no púlpito, cercado de soldados, ao som de uma voz que vinha dos céus e lhe bradava aos ouvidos que a monarquia estava prestes a ser extirpada pelo exército não somente na Inglaterra, mas também na
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França e em outros reinos. Os poderes na terra seriam destroçados, uma vez “cortada, na base da montanha, a pedra de sustentação”. Alguns dias depois
Peter se referiu a Carlos I como “esse grande Barrabás de Windsor” — um la-
drão que poderia ser solto, deixando os soldados como Cristo, na cruz, a menos que fosse empreendida alguma ação enérgica. Cromwell não usava esses termos. Embora se tenha dito que ele pretendia confrontar o monarca com evidências obtidas no julgamento de criminosos menores — em resumo, levá-lo à barra dos tribunais “sob uma legalidade plausível e pactuada”!”” —, parece não
existir nenhuma razão concreta capaz de pôr em dúvida aquilo que muitos contemporâneos tinham como certo: sua intenção genuína de resolver os problemas do reino sem cortar a cabeça do rei. Segunda-feira, 25 de dezembro — um afanoso Natal puritano —, não passou sem mais uma dessas obscuras aproximações: a visita a Windsor de lord Denbigh, eminente “cabeça-redonda” que já fora utilizado em várias missões anteriores envolvendo a pessoa do soberano. Desculpa havia: a falecida esposa de Hamilton era sua irmã. Os comentários, porém, apontavam-no como emissário de algumas propostas secretas. Carlos I, contudo, não chegou a ver O visitante, frustrando sua misteriosa missão: recusou-se ou simplesmente ignorou o autêntico motivo da cortesia.” De um jeito ou de outro, naquele mesmo dia, discursando perante o Conselho do Exército, Oliver ainda
demonstrou bastante indecisão. Conforme as ácidas palavras do Mercurius Melancholicus, em vez de ir à igreja agradecer a memorável e indizível graça de Deus, que enviara Seu filho para salvar a humanidade, o exército preferia discutir as sombrias questões do julgamento de Sua Majestade. Foi Ireton quem definiu o monarca como “inimigo capital” daqueles que haviam “conquistado o reino duas vezes” e exigiu uma “justiça rápida”. “Esperto, e menos irado”, Oliver afirmou que “tirar a vida do rei não seria político”. Brandindo um raciocínio puramente prático e mais convincente, contrapôs que ele pode-
ria ser útil, no caso de sofrerem alguma derrota, como “garantia de uma paz mais conveniente”.!º
No dia seguinte, entretanto, quando o Parlamento debateu a mesma ques-
tão, sua atitude foi inteiramente diversa. Segundo uma versão, “Cromwell se levantou e disse que se algum homem apresentasse tal proposta [a execução
de Carlos I] em benefício próprio ele o consideraria o maior traidor do
mundo, mas desde que a Providência e a necessidade os lançaram a isto, só cabia rogar a Deus que abençoasse seu julgamento”. Outra testemunha se re-
fere às razões, presentes na fala que proferiu, e que o teriam levado a mudar
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de idéia: “Visto que a Providência Divina nos impõe esse fardo, só posso me submeter, embora ainda sem condições de dar meu voto.”* Mas sua posição estava definida, sim, e daí em diante cessaram os esforços que vinha empreendendo no sentido de salvar o monarca.
De fato, uma transformação tão marcante nos leva a inferir uma daquelas suas mudanças dramáticas, similar à revolta contra Carlos 1, na época da Carta da Sela, no outono do ano anterior, e dessa vez motivada — quem sabe — pelo fracasso da missão Denbigh. Não raro decisões fundamentais resultam de mal-entendidos. No entanto, qualquer que tenha sido a causa que o levou a uma adesão
passiva ao princípio ativo de processar o rei, como sempre foi a Providência que indicou o caminho. Os sinais apontando uma nova direção — a da morte do soberano. Em 27 de dezembro, a Câmara dos Comuns decidiu restringir drasticamente o stazus real de Carlos 1, eliminando seus serviçais mais dispendiosos e dis-
pensando os restantes da genuflexão obrigatória. Tratava-se de uma humilhação mesquinha, posto que o monarca possuía dignidade inata e podia colocar-se facilmente acima dela; em teoria, porém, era uma perigosa indicação. “Pisotear! Pisotear!”, conclamava o indignado e pejorativo Mercurius Pragmaticus em sua última edição daquele ano — “ele e sua imagem, na poeira que levantou”.?! A partir daí, a marcha dos acontecimentos se acelerou ainda mais. No dia 28
de dezembro, a Câmara dos Comuns ouviu a leitura da ordem que institufa o tribunal especial que julgaria o rei no dia 1º de janeiro de 1649. Todavia,
montar uma corte assim não seria tão fácil, e as contradições espoucaram na Câmara dos Lordes, reduzida a 11 ou 16 membros, mas suficientemente corajosos para rejeitar a medida. Liminarmente. O conde de Northumberland
resumiu o problema de forma simples: presa à tese de que o monarca se erguera em armas contra o Parlamento e o reino, a Câmara dos Comuns não apresentava nenhuma evidência de que Sua Majestade tomara, efetivamente,
tal iniciativa, nem havia lei alguma que definisse semelhante atitude — caso
tivesse existido — como crime de traição. Em suma, devia-se responder à se-
guinte questão central: como julgar um soberano por alta traição se a lei só previa tal delito contra ele próprio? O julgamento da avó de Carlos I, Maria,
rainha da Escócia, fora marcado por idênticas dificuldades, tendo-se encon“Supostamente pronunciado no dia 2 de janeiro, esse segundo discurso refere-se ao assunto já abordado no primeiro, do dia 26 de dezembro, ocasião em que a Câmara dos Comuns ee ade quaDo : a de pena capital contra O de abordou, pela primeira vez, a possibilid sso proce um «p . 20 Tel “
à
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trado, naquela época, o precedente de Conradin Hohenstaufen, única maneira
de justificar a sentença dada a um monarca de outro país, excluído, portanto,
da lei inglesa — se Carlos I reinava na um súdito qualquer. falta de dispositivos
bem que o Ato de Associação a tornasse abrangente. Inglaterra e, além disso, não poderia ser Julgado como Mais: como estabelecer um júri de seus iguais? Assim, à legais que fundamentassem adequadamente o processo,
uma escassa maioria parlamentar, submetida pela força bruta, acabou criando uma “novidade” altamente censurável.
O sentimento geral transparece desde a nomeação dos magistrados Rolle e
St John, juntamente com o barão Wilde, encarregados de presidir um corpo de
150 jurados, quando cingienta garantiram o quorum legal; em 3 de janeiro, en-
tretanto, essa idéia foi posta de lado, provavelmente porque o Judiciário não
queria tomar parte na farsa, e o novo Tribunal Superior de Justiça ficou limita-
do aos 150 comissários — juízes e júri ao mesmo tempo. Nas 24 horas seguin-
tes vieram à luz três resoluções memoráveis. À primeira estabelecia que, “abaixo de Deus, o povo é a fonte original de todo poder justo”; de acordo com a segunda, “reunidos em Parlamento”, os Comuns passavam a deter o supremo poder da nação; finalmente, conferindo força de lei a tudo quanto fosse votado pelo Parlamento, “o consentimento e acordo do rei e dos Lordes” deixava de
existir.2 Coroando uma luta que se desenvolvera de maneira entre vaga e confusa, aqueles homens acabaram conferindo todo o poder à Câmara dos Comuns e eliminando para sempre o direito de veto do monarca e da Câmara dos Lordes. O Ato de 6 de janeiro deu início a uma nova era de legalidade dúbia, porquanto se admitiu que os Comuns teriam a capacidade de promulgá-lo sem a anuência dos demais poderes. Seu preâmbulo relacionava todas as acusações contra Carlos Stuart, que, tendo concebido o malvado plano de introduzir um governo arbitrário e tirânico, organizara e mantivera para isso uma longa guerra no país, contra o Parlamento e a nação, provocando uma deplo-
rável devastação. Apesar de tanta inigúidade, o Parlamento poderia satisfazerse em conservá-lo preso, “mas tristes experiências revelaram que isso só ser-
viria à continuação das práticas perversas, dele e de seus adeptos”.? Apesar desses termos audaciosos e da determinação despreocupada de
quase todos, restavam alguns mais prudentes, inspirados por uma estranha mistura de dúvida e fé. No próprio Conselho do Exército, a incerteza se ma-
nifestou quando da misteriosa aparição de Elizabeth Poole; no final de dezembro, surgida do nada, essa mulher afirmou ter tido uma visão de um ho-
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mem e uma mulher, personificando o exército e a nação — ela, “cheia de
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imperfeições, torta, frágil, doentia...”, e ele, aparentemente, destinado a curá. la. Perguntada se viera dar orientação ao Conselho, seu testemunho foi def. nido pelo coronel Rich como “uma inesperada manifestação da Providência”. No dia 5 de janeiro, enquanto o assunto estava sendo debatido, Deus ordenou
à boa senhora que voltasse ao Conselho, a fim de entregar um papel onde ar-
gumentava contra a execução do rei; o documento foi lido sem sua presença e só depois disso a chamaram, para ouvi-la repetir que o monarca poderia ser submetido a julgamento “com as mãos amarradas” e “metido na prisão”, mas não executado. Tratada com o maior respeito e interrogada durante bastante tempo, Ireton, por exemplo, quis saber se suas revelações diziam respeito a
Carlos I, especificamente, ou significavam que qualquer rei jamais deveria ser condenado à morte, não importa os crimes hediondos que pudesse ter cometido? Discutiu-se sobre a natureza exata do que ela vira — uma aparição de um anjo, talvez, ou uma revelação? Concluiu-se pela segunda hipótese.?* Um panfleto realista acusou Cromwell e Ireton de terem forjado todo o incidente, instruindo a mulher a respeito do que dizer, no intuito de alterar as posições do Conselho. O registro dos fatos, porém, demonstra que a sugestão é claramente absurda; o verdadeiro significado do episódio estava no grande respeito que se deu a esta visitante. Ao apelar contra a execução, citando as Escrituras — “A vingança é Minha, disse o Senhor, Eu castigarei”— ou descrevendo o rei como “marido” [líder] do povo, passível de ser contido pela “esposa”, mas não morto por ela, conforme o precedente bíblico de Nabal, Elizabeth Poole exprimiu-se numa linguagem que os “santos” entendiam perfeitamente. A própria /ady Fairfax tivera a visão de um homem que entrava em seu quarto, carregando nas mãos a cabeça de sir Thomas — e foi isso, segundo o Mercurius Pragmaticus, que a levou a implorar ao marido que não se envolvesse no julgamento do monarca.” Como na Roma de Júlio César, os idos de março pareciam ter parado no tempo e, num período tão tenebroso,
os “novos supersticiosos” se inclinavam no sentido do sobrenatural, distanciando-se da normalidade desvairada e das regras que a norteavam. Não obstante, o exército continuava a se guiar pelo Compromisso do Povo. Cromwell comparecia às reuniões apenas esporadicamente, devido aos problemas que enfrentava na Câmara dos Comuns — se bem que o Conselho tivesse se transferido para Whitehall. Num dos debates, porém, ele deixou claro O rumo de seus pensamentos, ao discutir até quando deveria permanecer aquele Parlamento impop ? ular. A data fatal, segundo Ireton, devia alcançar no máximo o final de abril, e nesse ponto é que Oliver interveio, afirmando que “seria mais
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honrado e conveniente” que os próprios parlamentares definissem o prazo. Ireton objetou, dizendo que “o povo pode imaginar que se opondo ao Compromisso eles pretendem postergar
o encerramento dos seus trabalhos”. Ao que
Cromwell replicou: “E isso que temeis?” Assim, a cláusula se manteve.” O tex-
to, concluído em 15 de janeiro, foi apresentado à Câmara dos Comuns no dia 20, e posto de lado até que se decidisse a situação do rei. Sem conseguir que se
aprovasse sua ampla divulgação, Lilburne afastara-se das discussões. Evidentemente, as ações da Câmara dos Comuns contavam com pouquíssimo apoio — um cidadão em cada vinte, segundo lord Northumberland
—, mas era um esteio qualificado e bem conhecido dos homens envolvidos
nas questões. Os acontecimentos evoluíam, no entanto, como um carro sem freios num declive acentuado. Disposto e resoluto, como se estivesse numa carga de cavalaria, e embora plenamente consciente da necessidade de propaganda, Oliver parecia esperar a aprovação divina mais do que o aplauso po-
pular. Há evidências de que pressionou, inclusive, os pastores presbiterianos da City, quase todos hostis — Hugh Peter e Stephen Marshall seriam exceções. Na primeira semana de funcionamento do Tribunal de Justiça discutiram-se os procedimentos a serem adotados, e foi Cromwell quem fez um discurso a favor de uma audiência pública — indicação negada.” Ele também chamou a atenção acerca da importância de se manter a unidade, acima de aspectos doutrinários, ao apoiar os membros da Câmara Alta. A resolução dos Comuns, datada de 4 de janeiro, avocando a si todo o poder, negava-lhes qualquer direito à discordância. Contudo, sob a presidência de Denbigh, a Câma-
ra dos Lordes — que não fora extinta — aprovou uma série de resoluções de
menor importância e, misturada a elas, uma ordem pela qual, daí em diante, qual-
quer soberano que se lançasse à guerra contra o Parlamento seria culpado de trai-
ção e julgado por esse crime; e para fixar seu direito de fazê-lo, segundo os ritos estabelecidos, um comunicado à respeito foi enviado à Câmara dos Comuns. Na-
quela atmosfera de mudanças contínuas, onde ninguém sabia que atitude tomar, Marten propôs que se recusassem as disposições — e a maioria o derrotou. Durante os debates, surgiram diversas idéias sobre o futuro dos lordes, desde a abolição até a unificação de ambas as casas do Parlamento numa só; Whitelocke rejeitou essa proposta, muito perigosa a seu ver, ante os riscos dos Comuns serem dominados. Numa postura tipicamente pragmática, Oliver
ergueu-se em defesa dos pares do reino, parecendo a seus ouvintes “muito vio-
lento”, Suas explosões haviam se tornado mais raras, e em Putney ele se mostrara mais interessado na segurança geral do reino; naquele instante, porém, indagou
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se não seria loucura “tomar atitudes que estreitavam a margem de unidade”.
Assim, o exame da matéria foi adiado, enquanto durasse o julgamento do rej2
Prova de que havia também uma forte relutância por parte da comunidade é o fato de só terem respondido à primeira chamada 52 dos 135 comissári-
os nomeados como juízes e jurados. Fairfax estava lá — sua primeira e última
aparição. Na sessão do dia 10, o magistrado do Cheshire, John Bradshaw, foi escolhido presidente do Tribunal. Milton descreveria a pompa com que ele
ultrapassou “todos os tiranicidas anteriores, revelando exatamente o quanto é
mais másculo, justo e majestático julgar um déspota do gamento”.? Suas qualidades de jurista não estavam em cançara sequer o pináculo da carreira —, mas sim sua conferir certo verniz de autenticidade legal ao processo.
que matá-lo sem julcausa — ele não aldisposição, capaz de Alojado na antiga e
bem guardada residência eclesiástica de Westminster, Bradshaw certamente não se descuidou de algumas medidas práticas essenciais ao desempenho de
sua tarefa, tanto que usava por baixo do belo manto escarlate que recebeu uma armadura, e seu chapéu era forrado de aço.* Duas comissões encarregaram-se de redigir as acusações — uma, sob a presidência de Ireton, funcionaria como assistente da acusação, e outra, dirigida por Ludlow, seria responsável pelo julgamento propriamente dito. Dois dias mais tarde decidiu-se que os procedimentos estavam suficientemente avançados e a vítima poderia ser trazida à capital. A residência de sir Robert Cotton, aquele grande antiquário da época do reinado do pai de Carlos I, foi considerada conveniente: com seus amplos jardins à beira do rio, situada no coração do Pa-
lácio de Westminster, perto da capela de St Stephen e entre as duas casas do Parlamento, apresentava poucas possibilidades de fuga.** Levado primeira-
mente ao palácio de St James, o rei passou depois para Whitehall, conduzido numa cadeira fechada, chegando a Westminster de barco, tanto se temiam de-
monstrações populares a seu favor. Cromwell teria presenciado a melancólica procissão de Carlos I, através de Cotton Gardens. Uma das testemunhas contra Henry Marten, em seu julgamento, contou que ele acorrera a uma janela, ao saber da presença do soberano, e empalidecera, tornando-se “branco como uma parede”. Depois, indo ao en*Ambos preservados, o chapéu pode ser visto no Museu Ashmolean, to, na Guildhall, em Stafford.
em Oxford,
e o man-
**Hoje em dia o local corresponde a uma área interna, entre a Câmara dos Comuns e a Cã-
mara dos Lordes, chamada St Stephen's Court, nos guia s de turismo, ou mais informalmente,
Boiler House Court, pois ali se guardam andaimes. Co nvém lembrar que o rio, naquela época, tinha muito maior largura e não existiam os atuais t erraços do Parlamento.
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contro de Bradshaw, sir Henry Mildmay, e sir William Brereton, dissera: “Ele
chegou, senhores, ele chegou, e cabe-nos agora satisfazer a nação, cumprindo a grande tarefa que ela exige.” Nos dias posteriores a essa frase evocativa sua participação foi determinante, até mesmo expressando dúvidas alheias: “Vamos resolver aqui e agora qual a resposta que daremos ao rei quando ele estiver diante de nós, pois certamente ele nos perguntará que autoridade temos para julgá-lo.”
O silêncio que se seguiu foi rompido pelo astuto Marten: “Em nome dos Comuns e do Parlamento reunido, e todo o bom povo da Inglaterra.” Armado o cenário, a cortina se abriu no dia 20 de janeiro. O Tribunal
fora transferido da Painted Chamber para Westminster Hall, naquele gran-
de edifício retangular, jazendo como um caixão, transversal ao palácio do mesmo nome, próximo à abadia. Construído na época de William Rufus, pouco depois da conquista normanda, o salão possuía dimensões excepcio-
nalmente grandes — quase noventa metros de comprimento por trinta
metros de altura. Ali Eduardo II abdicara e Ricardo II tinha sido deposto.
Ali, desde o início do século XIV, heróis, patriotas e vilões haviam sido julgados — sir William Wallace, sir: Thomas More, Guy Fawkes — e, havia
apenas sete anos, o infortunado Strafford.* Porém, mais do que palco de espetáculos históricos, com galerias especialmente montadas, em andaimes, Westminster Hall ocupava um reconhecido lugar no sistema judiciário da época: alguns tribunais, como o de Apelações Comuns, o King's Bench — uma divisão do Supremo Tribunal —, o cartório e as varas da Fazenda Pública reuniam-se sob seu teto de carvalho ou, não muito longe, abrigadas sob leves e cambiáveis estruturas de madeira leve. As cortes costumavam atrair um comércio que supria as necessidades dos advogados, e tavernas, cafeterias etc. locais de discussões permanentes. Em oposição à gelada austeridade atual, Westminster Hall era um centro movimentadíssimo. Em contraste com o seu tempo de história, Westminster Hall estava prestes a testemunhar um processo sumário e pouco edificante.”'** E trágico, de
certa forma, que os antigos ideais de “governo divino” tenham chegado a esse
*Hoje uma placa de bronze que assinala o lugar onde Carlos I se sentou comemora o Julgamento a que foi submetido. Após a deposição de Hastings [primeiro governador-geral da India, de 1773 a 1785], Westminster Hall deixou de ser usado para esse tipo de Julgamento, oficialmente, em 1806. Os tribunais que restavam foram retirados em 1822. As placas de bronze mais modernas referem-se aos velórios de soberanos ou de seus assim como de algumas personalidades notáveis, como Gladstone e sir Winston E
urchill.
**Ver C. V. Wedgwood, The Trial of Charles |, nota bibliográfica da p. 227, para um útil re-
sumo e consideração dos vários textos do julgamento.
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nível de expediente — um julgamento ilegal, sob as bandeiras capturadas nas batalhas, símbolos do poder militar, as de Marston Moor, Naseby e Preston,
inclusive. Carlos I demonstrou grande coragem e dignidade; Burnet e muitos outros comentaristas notariam que os Stuart eram melhores no infortúnio do que na prosperidade. Talvez houvesse alguma justiça nisso; com tanta fre-
quência suas qualidades pessoais tinham lhes trazido a desdita que parece ló-
gico estarem bem preparados para suportar as afrontas da adversidade. Foram
apenas a atitude do monarca e a firmeza de suas respostas que deram um toque de glória ao julgamento, desmascarando o processo — uma série de
meios esquálidos, arquitetados com absoluta incompetência. O rei entrou na sala exibindo sua habitual elegância no vestir, envergando uma roupa preta, ornada com uma faixa de jóias e condecorações; a estrela da Jarreteira pendia-lhe do pescoço. Encarando o tribunal com um “olhar firme”, não se dignou a tirar o chapéu, deixando evidente sua opinião a respeito da le-
galidade daquela corte. Deram-lhe uma cadeira forrada de veludo vermelho, no
lado sul do recinto. Havia guardas atrás dele e soldados em toda a parte. Postados à sua frente, Bradshaw ao centro, os juízes ocupavam uma mesa coberta por um belo tapete vermelho. A posição exata de Cromwell é incerta; um artista colocou-o sentado na platéia, mas há evidências — e um balanço das probabilidades — sinalizando uma posição mais proeminente. Ele não se esconderia, com certeza. Dois dias antes, ouvindo de Algernon Sidney, um dos juízes esco-
lhidos, que “o monarca não pode ser julgado por um tribunal, e esse tribunal não pode julgar ninguém”, Cromwell respondera sem hesitar: “Pois eu lhe garanto que vamos cortar sua cabeça com coroa e tudo.” Num tiro de despedida, Sidney replicou desgostoso: “Podeis fazer qualquer coisa, não posso impedi-lo, mas conservarei minhas mãos limpas, não me envolvendo nesse assunto.” Oliver não tinha dessas ambivalências, embora muitos de seus antigos alia-
dos tivessem se afastado. Desaparecido da Câmara dos Comuns, desde o “ex-
purgo de Pride”, sir Henry Vane não participava do tribunal, se bem que seu retorno ao cargo no Almirantado no dia 30 de janeiro, data da morte do rei, tenha sido suficiente para incluí-lo no rol dos regicidas após a Restauração. Quando a lista de juízes foi lida, Fairfax não respondeu à chamada. No meio da
“grande multidão” de espectadores que ocupavam as galerias, uma mulher mascarada gritou que a esperteza o afastara de lá. Transpirou depois que seria /a4) Fairfax, dedicada presbiteriana, a quem se atribuía o evanescente entusiasmo do marido com os procedimentos de seus associados. O fato provocou tumulto, € à verdade é que durante todo o julgamento o público se comportou de forma
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indisciplinada, contrariando a expectativa dos magistrados, que contavam com sua docilidade. Longe dos ex-camaradas a quem respeitava, só as poderosas forças da Providência e da necessidade impeliam o contínuo avanço de Cromwell. A acusação contra o rei foi proferida por John Cook, homem relativamente obscuro, nomeado advogado da comunidade em virtude de William Steele, procurador-geral, ter alegado doença — no clima de suspeitas da época, a desculpa só foi aceita depois que uma comissão investigou suas condições pessoais. Cook contava com a ajuda de John Aske, também sem importância, e de um homem
mais interessante, o dr. Dorislaus, um intelectual amigo de Cromwell, que o recomendara para uma posição em Cambridge; mais tarde, ele foi enviado pelo
Parlamento aos Países Baixos.” A certa altura, o soberano tentou interromper
a leitura do texto, tocando o braço de Cook com sua bengala, e, ao fazer isso, o castão de prata caiu; Carlos I esperou que alguém o recolhesse, mas abai-
xou-se afinal. Cercado de serviçais desde a infância, tendo sempre alguém à sua disposição, ele estava completamente só. O libelo, seguindo as mesmas linhas da lei de 6 de janeiro, acoimava o rei de “tirano, traidor, assassino e inimigo implacável da comunidade”, imputando a ele abuso de confiança, enquanto governante, com vistas a um poder despótico, e a responsabilidade das guerras contra o Parlamento. Quando Bradshaw chamou o soberano, para que respondesse, “em nome dos Comuns, reunidos em Parlamento, e do bom povo da Inglaterra”, a irreprimível lady Fairfax gritou: “Isto é mentira, nem a metade, nem a quarta parte do povo. Oliver Cromwell é um traidor.” O coronel Axtell, comandante das tropas no
tribunal, perdeu o controle e queria disparar sobre a galeria, mas outros, dotados de mais sabedoria, limitaram-se a retirar a vociferante senhora do local. Respondendo a Bradshaw, Carlos I indagou — e nisso residia sua argumentação mais sólida — que autoridade o tinha levado a julgamento? Na ausência dos Lordes, não se poderia falar em Parlamento, e, visto que ele não
estava convencido da legalidade da corte, não responderia, por respeito à sua própria posição. Bradshaw afirmou ser representante do povo da Inglaterra, que o escolhera rei, mas isso não facilitou as coisas, pois o monarca replicou
que não recebera a coroa mediante eleições, mas por herança. Depois, sem fazer concessões, calou-se. No dia 22 de janeiro voltou à luta e, batendo na
mesma tecla, perguntou aonde se chegaria der” e “ilegalidade” — “pois se um poder normas fundamentais do reino, não sei de se seguro de sua vida ou de qualquer coisa
sob a odiosa combinação de “posem a lei estabelece leis e altera as um súdito inglês que possa sentirque considere sua”.
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No dia seguinte insistiu no assunto, mantendo outro diálogo com Bradshaw,
que o proibiu de usar da palavra, a menos que contestasse a acusação. O rei não cedeu, exigindo o direito e o tempo necessário para expor as razões de sua nãocontestação. “Não cabe aos prisioneiros exigir”, declarou o juiz. O mon arca zombou: “Prisioneiros! Não sou um prisioneiro comum.” Isto era ver dade. Pois,
apesar de todas as imprudências que cometera, de seu governo arbitrário numa época em que florescia a independência de pensamento e das dificuldades em fizer prosperar no solo inglês a teoria do direito divino — ele não podia ser julga-
do como um súdito comum; na verdade, não havia qualquer estrutura jurídica destinada a isso. Finalmente, ante a recusa inarredável e peremptória, a corte viuse forçada a ordenar ao escrivão que “registrasse sua negativa”. O tribunal não se reuniu em sessão pública no dia 24, mas houve muita atividade nos bastidores. A teimosia do monarca deixara os juízes confusos. Por outro lado, preocupados com a ausência de Fairfax, alguns temiam que
ele polarizasse a oposição. O Parlamento de Edimburgo realizara três vota-
ções, condenando o julgamento, a última delas na véspera, e isso também
produzira efeito sobre seus presumíveis aliados. Burnet ouviu o tenente-coronel Drummond contar que Cromwell argumentara com escoceses a partir das doutrinas de Mariana e Buchanan — com certeza, referindo-se ao seu conteúdo, posto ser muito duvidoso que ele tivesse realmente lido os trabalhos da
dupla —, defensores, um século antes, da legalidade de se matar um tirano, dependendo das circunstâncias.” Ao sugerir que a quebra de confiança de um rei seria muito mais grave do que a de um súdito comum, Oliver assumia
uma postura bastante lógica e talvez legal, de um jeito ou de outro, superior
às absurdas acusações de alta traição. O status do soberano teria por base uma
espécie de contrato, celebrado entre ele e os súditos, e que uma vez rompido
o sujeitaria a uma pena qualquer, conforme as conveniências. No decurso da
história, diversos líderes haviam sido judicialmente executados. E, certamente, dispunha-se de fortes argumentos no sentido de que Carlos I quebrara à
confiança nele depositada. Contudo, a Convenção Nacional, que todos tinham assinado, obrigava-os à
preservar o rei; Cromwell argumentava que o monarca obstruíra o acordo acerca da religião, liberando-os de seu juramento. Burnet forneceu alguns indícios sobre seu estado de espírito naquele momento, revelando fatos de que tomara
conhecimento através de pessoas que privavam da intimidade de Oliver “e todo
aquele grupo de homens”. Segundo seu informante, “eles acreditavam que há grandes ocasiões nas quais alguns são chamados a prestar grandes serviços 6,
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assim agindo, isentavam-se das regras comuns da moral; isso aconteceu a Esaú e Jael, Sansão e Davi, justificando certos privilégios quanto às normas atualmente em vigor”. De pronto, Burnet refutou tal raciocínio, dizendo ser “óbvia a extensão que esse princípio poderia alcançar, permitindo a qualquer entusiasta audaz pôr de lado toda justiça e misericórdia”. Obviamente, esse ponto de vista sobre a morte do rei era diametralmente oposto ao anterior. Cromwell e seu grupo estariam sendo levados a executar o
monarca por um desígnio de Deus. Um ano depois ele implorou 20 seu amigo
lord Wharton que considerasse como “é fácil contrapor-se aos gloriosos atos de Deus julgando os instrumentos. (...) Não te ofendas com a forma; talvez não houvesse outro caminho?.** Fora um tipo de processo inexorável — caso tivesse sido coroado de sucesso — e que conduzira à única conclusão possível. Visto que esse segundo argumento sempre esteve presente nas alocuções do próprio Cromwell, vinculando-se à teoria do contrato rompido, é justo supor que ele se sentiu acima de tudo influenciado pela Providência. Mesmo aceitando, formalmente, a tese de Buchanan e Mariana, tão a gosto de seus contemporâneos, essa convicção é que orientou seu comportamento, enquanto os soldados clamavam por “justiça” e a multidão murmurava “Deus salve o rei”. No dia 25, quando as testemunhas foram chamadas, tentou-se aplicar os procedimentos judiciários normais. Houve quem declarasse ter visto o monarca, em diversos campos de batalha, com a espada em riste, forma um tanto
bizarra de provar que Carlos I se erguera em armas contra o povo, mas
irrelevante, da perspectiva das conclusões predefinidas: no mesmo dia, os 46 homens presentes resolveram que o tribunal deveria ditar a sentença contra o rei, condenando-o à pena capital — por se tratar de “inimigo público da comunidade inglesa”. Esse quorum, entretanto, foi considerado baixo, e enquanto se organizava mais uma comissão para redigir o veredicto, nova condenação foi proferida, no dia seguinte, com a participação de 62 juízes. Abandonando a denúncia de alta traição, o texto afirma, pela primeira vez, que Carlos I será morto “separando-se sua cabeça do seu corpo”. Na sexta-feira, 26 de janeiro, os membros mais determinados do júri, Cromwell inclusive, já haviam assinado a sentença. No documento, seu nome é o
terceiro, abaixo de Bradshaw e de Jord Grey de Groby. A histórica relação lembra Os antigos dias da guerra — ali estão Edward Whalley, John Okey, Hardress Waller, Ireton, Thomas Pride, Richard Deane, Harrison e Isaac Ewer. A unida-
de, porém, não foi total. Dos 62 que aprovaram a sentença, somente 59 assinaram a ordem de execução — e apenas 28, até o sábado seguinte. Independentemente
DO
ai
is) ar E
ssa
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das incriminações e autojustificativas que marcaram o julgamento dos regicidas
dez anos depois, dois pontos emergem com certa verossimilitude. Primeiro, vis-
to que Janeiro atrasos obtido
a data prevista da execução, segundo a sentença, foi alterada para 30 de — a ordem original era datada do “último sábado”, isto é, dia 27 —. os ocorridos devem ter sido inesperados. Talvez o número de assinaturas até então parecesse insuficiente, mas quem sabe alguém se arrependeu?
À grosseira substituição das datas — uma nova sentença com uma nova data —.
dá margem a tal suposição.”
Em segundo lugar, os rumores a respeito do uso de força moral e física para assegurar as assinaturas foram bastante divulgados, indicando uma deter-
minação verdadeiramente maníaca de Cromwell, querendo aprovar a medida a todo custo — nada poderia impedi-lo. Apesar de todas as precauções na avaliação das desculpas apresentadas pelos regicidas — naturalmente interessados em acusá-lo depois de morto por tê-los forçado a assinar —, ele parece ter demonstrado mesmo uma terrível alegria, que lembra a teoria de Burnet sobre a retidão — ou sua gargalhada, ao se lançar nas batalhas. O coronel Ewer conta que o futuro Lorde Protetor e Henry Marten pintaram os rostos um do outro,
depois de firmar a sentença, na Painted Chamber, como dois grotescos garotos de escola. Clarendon disse que, para coagir sir Richard Ingoldsby a apor seu nome, Cromwell correu atrás dele, puxando-o pela mão e gritando: “Embora tenhas escapado até agora, deves fazer como nós”; Ingoldsby recusou-se, mas agarrado, acabou traçando uma garatuja: rindo muito alto, Oliver colocou a caneta em suas mãos e o obrigou.* O relato de Thomas Waite, outro que parece ter relutado, dá maior suporte a toda essa implacabilidade: atraído ao tribunal
por uma mensagem forjada, ele testemunhou algumas cenas que o motivaram à retirar-se, e só retornou, na segunda-feira dia 29, porque lhe garantiram que
não haveria execução. Cromwell, porém, sobrepôs-se a suas objeções, dizendo: “Os que já assinaram puseram suas mãos, e agora eu quero as tuas mãos .” Lucy Hutchinson, em Memoirs, mostrou bastante desprezo por essas cOvardes histórias: “Depois, pretendendo se desculpar, alguns deles renegaram seus atos, alegando medo do exército, coação de Cromwell e outros como ele, mas o certo é que todos os envolvidos desfrutavam de plena liberdade e não
foram induzidos ou compelidos a coisa alguma; entre os nomeados para à CO“É justo que se diga que a assinatura de Ingoldsby não demonstra nenhum sinal da alegada
violência, ao contrário, parece perfeitamente normal, desmentindo o que ele alardeava:
“Comparada a qualquer outra, em algum documento que eu tenha firmado, seria impossível identificá-la.”
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missão, houve quem nunca tenha participado dela ou participado apenas no
início, o que qualquer um poderia ter feito, se quisesse (...).”* Tendo conseguido livrar O marido, graças às conexões que possuía no campo realista, a sra. Hutchinson não teria por que mentir, ao contrário dos que se preocupavam em
salvar a própria pele. Importantes, porém, são as reflexões que ela faz acerca
da variedade de reações humanas diante de certas situações. Os que se retiraram com honra não sofreram nenhum tipo de pressão — Oliver jamais os te-
ria forçado a nada. Mas, tomado por sua crença de ser o instrumento do Se-
nhor, sobre os fracos, sim, devemos acreditar que ele se valeu de todo tipo de
coerção que julgou adequada às circunstâncias. No meio de todas essas chicanas que se desenvolviam abertamente ou nos bastidores, no sábado, dia 27, o rei foi trazido de volta ao tribunal, a fim de ou-
vir a leitura da sentença. Por algum tipo de acordo ou simples intenção de adiar as coisas, ele parece ter sido retirado de Cotton House, no próprio recinto de Westminster, e levado ao palácio de St James. Talvez se pretendesse fazê-lo desaparecer. Os soldados já não gritavam “justiça”, tendo ampliado seu brado familiar para “justiça e execução!”. Mas quando Bradshaw se referiu ao tribunal “constituído em nome do povo da Inglaterra”, ainda houve uma mulher, na galeria, que protestou: “Nem a metade do povo!”*º De forma comovente, Carlos I exigiu que lhe fosse permitido fazer sua própria apologia, diante de Lordes e Comuns, e o pedido pareceu tão razoável a John Downes, parlamentar e representante de Arundel, que ele teria cogitado de proferir um ardente discurso, defendendo o direito do soberano — pelo menos foi o que testemunhou mais tarde quando precisou defender a si mesmo. No entanto, num cochicho cheio de raiva, Cromwell perguntou-lhe se estava louco, e isso o inibiu. O tribunal reti-
rou-se para a sala adjacente da Inner Court of Wards, e lá ele pontificou sobre
a ilegalidade da corte sem sucesso algum; os juízes não seriam impedidos de
cumprir com seu dever por “um homem obstinado”, e tudo o que Oliver fez foi
murmurar: “ele [Downes] não sabe que está tratando com o homem de coração mais duro que existe”. Waite, outra testemunha dessa cena, disse que Cromwell ria e gargalhava, escarnecendo.*! E assim o processo prosseguiu. Bradshaw pediu ao escrevente que lesse a sentença, e ele mesmo fez um longo discurso, citando monarcas depostos ou decapitados, como Eduardo II, Ricardo II e Maria, rainha da Escócia. Carlos I, corajosamente, insistiu em ser
ouvido. Do que tentou dizer pouco se guardou: “Se não me permitem falar — qual a expectativa de justiça que outros terão?” E ao ser levado à força pelos soldados, que gritavam, ainda protestava.
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De volta ao Palácio de St James, o rei Carlos retornou à paz espiritual que
tanto prezava: ouviu reverentemente os cultos da Igreja Anglicana e insistiu
com seus filhos menores, Henry e Elizabeth, para que mantivessem a confiança e perdoassem. No continente, grandes esforços estavam sendo envidados para preservar a vida à qual ele dava menos valor do que à sua concepção de honra real. Luís XIV escreveu a Cromwell e Fairfax. Os Estados Gerais dos Países Baixos promoveram idênticas solicitações a ambos — tamanhas eram as sus-
peitas da época que, segundo o embaixador, os generais só abriram as cartas
diante de trezentos oficiais. Na Inglaterra, é fácil dar crédito à história de
Fairfax, que estaria implorando misericórdia ao Conselho de Oficiais; ho-
mem bom e fraco que ele era, retraiu-se, temendo o maior derramamento de
sangue que uma oposição decidida poderia provocar.'? Vê-se, pois, como são importantes as qualidades pessoais num momento crítico: alguém mais endurecido que Fairfax estaria mais preparado para convocar os soldados e a qualquer custo, talvez, salvar O rei. Muitas histórias mirabolantes circularam, na época, dando conta de tentati-
vas de salvar a vida do monarca. Uma delas relaciona-se a um parente de Oliver, um certo coronel John Cromwell, que comandava um regimento inglês a serviço dos Países Baixos e que teria vindo da Holanda trazendo duas folhas de papel em branco, já com os sinetes do rei e do príncipe de Gales, significando a disposição do herdeiro do trono de ceder qualquer coisa, desde que o pai
fosse poupado. O coronel teria encontrado Cromwell em sua própria casa, sem
disposição sequer para ouvir lembranças de suas promessas anteriores; a respeito delas, ele se limitou a dizer que “os tempos mudaram e a Providência dispôs
as coisas de outra forma” — depois de rezar e jejuar pelo rei, “nada lhe chegara de volta”. John Cromwell insistiu, aludindo ao bem-estar de sua família e de
seus descendentes, alvitrando a possibilidade dele ser obrigado a retomar O
nome de Williams, a fim de evitar a vergonha sobre suas cabeças, mas o máximo que conseguiu foi o compromisso de “pensar no assunto”, Deixando os dois papéis e permanecendo num quarto contíguo, sem dormir, por volta da uma da
madrugada soube que o príncipe não deveria esperar qualquer resposta, pois O “Conselho de Oficiais buscara a Deus tanto quanto ele [Oliver] e decidira, unanimemente, que o monarca tinha que morrer”. O relato se baseia na autoridade capenga de Heath, mas a linguagem é semelhante à de Cromwell, e mes-
mo que tenha sido exagerada pelo autor não parece absurc a, posto que ele mantinha relações de amizade com seus parentes realistas, N o ano anterior pedira pelo pobre velho sir Oliver, salvando suas terras de segu estro, e mais recente-
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mente ajudara o primo Henry a conseguir remissão de dívidas que contraíra. Mantendo contato com Oliver, esse mesmo John Cromwell desempenhou missões na Dinamarca durante o Protetorado.*
Desse modo, na ausência de qualquer oposição ativa, os preparativos da execução prosseguiram. O cadafalso foi erguido, em Whitehall, defronte à bela Casa de Banquetes do rei. Preocupadíssimos, os encarregados fincaram
cravos no chão, onde se prenderiam cordas supostamente necessárias para conter o soberano. Os homens humildes responsáveis por esses detalhes práticos acabaram sendo presos, junto com os mais destacados regicidas. Um certo
Robert Lockier confessou, em 1660, ter recebido ordens de um mestre carpin-
teiro chamado Hammond, que o mandara construir um patíbulo, e do coronel Dean, que lhe pedira quatro cravos de ferro — ele foi buscá-los na casa de um comerciante da King Street. Insistiram que ficasse no cadafalso, até depois da execução, com seu martelo e outras ferramentas, a fim de prestar ajuda caso o rei resistisse, e lhe pagaram uma diária de dois shillings e seis pence.
Assim, na manhã de terça-feira, 30 de janeiro, Carlos Stuart caminhou com calma, dignidade e resignação religiosa, do palácio de St James até o
lugar indicado para sua morte, em Whitehall. Lá chegando, introduzido no
recinto, ele tomou um pouco de vinho tinto e comeu um pedaço de pão.
Houve um certo atraso, pois naquele mesmo momento a Câmara dos Comuns tratava de aprovar a lei que proibia a indicação de seu sucessor. De repente, eles se deram conta das palavras de Pride sobre o problema de cortar a cabeça de um monarca hereditário sem abolir oficialmente a monarquia. Às 14h, Carlos assomou à janela da Casa de Banquetes, diante da enorme multidão silenciosa. O tempo estava gelado. Secretamente, o soberano usava duas camisas por debaixo da roupa, pois não queria tremer de frio e ser acusado de medroso. Na hora da morte, só teria a companhia do seu capelão, o bispo Juxon — sir Thomas Herbert, que viera com ele desde o palácio de St James, declinara da dolorosa tarefa de servir como testemunha; os coronéis Hacker e Tomlinson se encarregariam de supervisionar a execução. Uma tropa compacta evitaria apelos do monarca — ou, quem sabe, apelos populares.
O rei certamente parecia ter envelhecido muito, sua barba grisalha e seu cabelo prateado. Só os que estavam mais perto tinham condições de ouvir suas palavras — o bispo, os dois coronéis e os dois carrascos —, guardadas, porém, pelo capelão, a fim de que alcançassem o mundo. Sem arrependimento, ele disse desejar
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ardentemente a liberdade do povo, o que significava “um governo e leis que pa. rantam suas vidas e propriedades (...) outra participação não lhes cabe, pois mo. narca e súdito não se identificam. Parto de uma coroa corruptível rumo a uma coroa incorruptível, longe das perturbações deste mundo”. Assim caminhou para a morte, colocando o pescoço no cepo coberto por um pano negro, orgu-
lhoso das concepções que resultaram em sua queda, mas assumindo uma auréola de mártir que ficaria gravada na memória dos ingleses. Inspirado, no meio da multidão, Andrew Marvell compôs uma ode em louvor de Cromwell, adve rsário mortal de Carlos I, mas acabou imortalizando a coragem demons trada pelo soberano: Nem invocou os deuses, com rancor vulgar;
Exigindo vingança, por seus desamparados direitos, Antes, curvou sua graciosa cabeça, Como se a reclinasse no leito,
Um minuto mais tarde o carrasco exibiu o crânio decepado, lançando no
ar o grito tradicional: “Eis a cabeça de um traidor!” Seria Brandon, talvez, mas tanto ele como seu assistente tomaram precauções, a fim de preservar suas identidades, usando barbas postiças e perucas. À triste cerimônia, segun-
do o embaixador de França, durou menos de um quarto de hora. O povo, entretanto, não demonstrou o menor sinal de satisfação; ao contrário, ouviu-se um profundo suspiro, conforme disse uma testemunha, “diferente de todos os que já escutara e espero não escutar jamais”** — na verdade, o lamento característico dos tempos em que justiça e injustiça se entrelaçam. Pois diga-se
qualquer coisa — que a execução de Carlos I fora inevitável, necessária —, mas nunca se poderá garantir que terá sido correta.
E onde estavam os autores dessa sentença de morte, os líderes do exército, Os signatários daquela melancólica ordem de execução, os regicidas? No momento
fatal, segundo Heath, Cromwell manteve-se em reunião com o Conselho de
Oficiais, atento aos numerosos “expedientes cansativos” dos que ainda tentavam salvar o rei. Oliver afirmou que eles se tornariam alvo de muitas calúnias, sugerindo que deviam “buscar a Deus, a fim de conhecer Seus desejos”; durante as
orações, chegou a notícia de que o monarca fora executado, e, erguendo às mãos para o alto, ele declarou que, obviamente, não era “a vontade de Deus que ele vivesse”. Testemunhando sua resolução inabalável, no julgamento do
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coronel Hacker, um tal coronel Huncks disse que, uma hora antes da morte do monarca, estivera na sala de Ireton, assistindo à entrega da ordem de execução ao encarregado de supervisioná-la, ocasião em que Cromwell lhe pediu que redigisse a ordem do carrasco, o que ele se recusou a fazer, resultando disso uma
acalorada discussão, no curso da qual foi chamado de “indisciplinado e brigão”.
Por não admitir atrasos, o próprio Oliver sentou-se à mesa e escreveu, ele mesmo, a mensagem, ordenando a Hacker que a assinasse. No julgamento de Hugh Peter, outra testemunha que cumprira funções de estafeta do exército, num período em que a execução estava pendente, disse ter recebido de Cromwell a sugestão de ir a Whitehall ver o rei perder sua cabeça.” O relato de sir Thomas Herbert confirma a história da reunião do Conselho de Oficiais. Logo após a execução, ele se encontrou casualmente com
Fairfax, que vinha da sala de Harrison, onde se havia rezado. Fairfax parecia
ignorar que o rei já tinha morrido, lhes disse que “era preciso rapidez Richard Baxter também ouviu dizer Evidentemente, os que se supunham
mas pouco depois Cromwell apareceu e na preparação das ordens do funeral”. que Oliver teria deixado Fairfax rezando. instrumentos da vontade de Deus deviam
estar rezando mesmo naquele momento. Muito eficaz, a organização do enterro não deixou nada ao acaso. O corpo ficou num caixão, sob um pálio de veludo, no quarto em que Carlos 1 pas-
sara seus últimos dias, em Whitehall. Depois de embalsamado, segundo os costumes da época, foi removido para o palácio de St James. Rejeitada a
idéia de alguns de seus servidores que pretendiam enterrá-lo na capela de
Henrique VII, na abadia de Westminster, ele acabou transladado para o castelo de Windsor. Lá, no dia 9 de fevereiro, sob o sudário da neve que caía — “a cor da inocência” —, baixou ao túmulo, na presença de um pequeno grupo de amigos leais; não se permitiu que Juxon lesse o serviço fúnebre do Livro de Orações Comuns. O corpo de Carlos I repousou junto aos de Henrique VIII e Jane Seymour, o implacável monarca e a consorte imaculada. Uma bela tradição diz que Cromwell foi a Whitehall prestar as últimas homenagens ao cadáver do soberano. Cerca das duas horas, o conde de Southampton e um amigo, em melancólica vigília na Casa dos Banquetes, ouviram o ruído de alguém subindo lentamente as escadas. A porta se abriu, dando passagem a um desconhecido, com o rosto inteiramente encoberto por
uma capa, que se aproximou e olhou atentamente o féretro, balançando a cabeça e murmurando: “Cruel necessidade!” Depois disso, o misterioso personagem retirou-se. Se bem que nada tenha discernido de suas feições, lord
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Southampton costumava dizer que “por sua voz e forma de andar era Oliver
Cromwell?.* De alguma forma, por mais improvável que pareça, a história
tem certa sustentação no relato de Heath sobre Oliver, observando o caixão e dizendo: “Se ele não tivesse sido rei, talvez vivesse mais.” Os deta lhes são diferentes, mas a impressão é praticamente a mesma. No século XVIII, exis-
tiam muitas narrativas acerca dessa visita de Cromwell ao esquife de Carlos: o reverendo Mark Noble interpretava o fato como uma espécie de “comemo. ração pessoal”, enriquecendo sua versão com um pormenor —
Oliver teria
posto o dedo no pescoço do monarca, a fim de confirmar que fora cortado. O soldado Bowtell, cuja espada ele teria usado para levantar a tampa do ataúde, ousara perguntar ao general: “Que governo terão agora?” Resposta sucinta: “O mesmo que estão tendo.”*º A conversa é verossímil e talvez seja autêntica, afora uma ou outra minúcia. Mas que sejam todas elas apócrifas ou não, o mais provável é que juntas, de forma sinóptica, essas histórias indiquem algum tipo de “última inspeção”,
representando o comentário que na época circulava acerca da atitude de Cromwell ante Carlos I. Já se tem dito que muitos falsos relatos sobrevivem
através dos séculos, resumindo dramaticamente situações particulares — no caso, “o incrível dilema de Oliver Cromwell”.** Poder-se-ia argumentar que, embora distantes da verdade histórica, a continuidade prova pelo menos sua verdade poética. Assim, a famosa exclamação — “Cruel necessidade” — adquire um peso maior, referindo-se ao que, do ponto de vista de Oliver, era
realmente indispensável, ou seja, a morte do rei. Sentindo-se encurralado, ele depositava sua fé na Providência, que o levara a isso, posto que a vontade de
Deus determinava o fim de Carlos. E, pelo que se sabe, nunca se arrependeu da decisão tomada. Nunca tendo sido um homem atento aos fatos passados, talvez tenha se preocupado, durante o Protetorado, com a vingança de Carlos
II, dirigida à sua família, quem sabe, mas não demonstrou a menor compunção pelas circunstâncias que acarretariam esse ódio.
Na verdade, Cromwell foi muito mais longe. No ano seguinte, em Edim-
burgo, ele se referiu à morte do rei como “o grande fruto da guerra”, posto que fora “a execução de uma justiça exemplar contra o líder de maior expressão, “A história foi publicada pela primeira vez em Spence's Anecdotes, no século XVIII, provavelmente contada por lord Southampton a um intermediário que a transmitiu a Alexander Pope.
**Ver Robert Birley, The Undergrowth of Histo
à É : ry» em que outras histórias similares são esmiuçadas, tais como os Bolos do rei Alfred, a capa de sir Walter Raleigh etc
dentre todos os que se envolveram nessa luta”. Mais tarde, falando dos
regicidas, disse que tinham agido de tal forma que, “no futuro, os cristãos a mencionarão com honra, e os tiranos tremerão diante dela”.*º Não era apenas Oliver que pensava assim — as alegações de constrangimentos e ameaças apresentadas por alguns, nos julgamentos realizados após a Restauração, não obscu-
recem a posição muito determinada e os objetivos muito claros manifestados por outros. O promotor John Cook, por exemplo, pouco antes de ser executado escreveu: “Não somos traidores, assassinos ou fanáticos, mas verdadeiros cristãos e homens bons da comunidade (...) buscamos o bem público e teríamos libertado o povo, e assegurado o bem-estar de todos os queixosos, se a nação não tivesse preferido a servidão (...).” Partilhando esse ponto de vista, Cromwell também teria aprovado o retrato traçado pela sra. Hutchinson de seu marido, aquele padrão de cavalheiro puritano, refletindo com agonia, mas colocando-se firmemente e para sempre a favor da execução necessária. O coronel Hutchinson, como muitos outros, estava convicto de que, se fora solto, Carlos I teria provocado males muito maiores: “Tendo-o entregue em suas mãos, Deus exigiria que pagassem [os que consentissem na libertação do monarca] por todo o sangue e desolação que se seguiriam.”? Assim, deixando-se guiar pelos desígnios do Senhor e livre de qualquer fraqueza humana, “buscando na própria consciência a confirmação de que era seu dever agir como agira (...) após um sério debate consigo mesmo, e se dirigindo ao Criador, e conferenciando com pessoas justas e imparciais, assinou a sentença de morte contra o rei”. Hutchinson também nunca se arrependeu do que fizera. Mais explícita ainda foi a resposta dada em seu julgamento por outro regicida, o coronel Harrison, segundo o qual eles “agiram com medo do Se-
nhor”. Indignado, o juiz perguntou-lhe: “Atribuís a Deus a autoria das traições e assassinatos que praticastes?”” Cromwell teria dito que sim, afirmando que
Deus era a origem de tudo quanto fizeram. Talvez os radicais do exército o conduzissem, através do labirinto de dúvidas que o obcecavam, até sua posição
curso centrado na denúncia do rei da Babilônia, por Isaías: “(...) como um
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morte do rei. Basta lembrar os farisaicos pregadores, sedentos de sangue, que o tinham formado, e não apenas as palavras de Stephen Marshall, mas toda uma tradição de violência presente nos sermões desde o final do século anterior, baseada nos exemplos frequentemente citados de Ahab e de Saul, para perceber a lógica de uma execução necessária, positivamente justificada, santa. Na véspera da morte de Carlos I, no palácio de St James, Hugh Peter pronunciou um dis-
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final e inequívoca, mas foram suas convicções que o levaram a concordar com a
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ramo abominável, serás expelido do teu túmulo (...) porque destruíst e tua terra
e massacraste teu povo.” No dia seguinte, os sanguinários textos sobre OS reis
de Israel foram lidos nos sermões de John Cardell e John Owen diante da Ca. mara dos Comuns. O galês Owen, ex-capelão de Fairfax durante o cerco de Colchester, chamou os regicidas de “agentes divinos” e descreveu seus feitos
com palavras retiradas dos Salmos: “O trabalho de Deus é maravilhoso aos nossos olhos.” Na Câmara dos Lordes, Stephen Marshall falou com igual viru-
lência e confiança. Cromwell não passava de uma pessoa de ação, educado segundo essas tradições, um eco das palavras do pregador, “uma eminente teste munha do Senhor sobre a culpa do sangue”.*? Todavia, a própria necessidade era cruel, e as histórias tradicionais não
deixavam de refletir o outro lado da verdade. bou constituindo-se num erro desastroso para intimamente persuadido. Desde sua posição do julgamento a que o submetiam, apoiado
A execução judicial do rei acaa causa de que Cromwell estava inarredável sobre a ilegalidade num comportamento nobre, o
monarca enveredou pelo longo caminho do martírio. No dia em que foi enterrado, surgiu uma publicação intitulada Eikon Basilike [Ícone Máximo], contendo o relato detalhado de “sua Solidão e seu Sofrimento”; supostamente autobiográfica, antes que o ano se findasse já tivera trinta edições. A partir daí, a acusação de tirania arbitrária alcançaria os homens que o tinham supliciado. À vantagem da honra, a atração dos que lutam pela liberdade do povo, opondo-se a forças poderosas, afastara-se definitivamente de Cromwell — por ironia, devido a uma ação que ele genuinamente acreditava ter sido demandada pela “Providência” e imposta pela “fatalidade”. Prova maior não há dos profundos e arriscados caminhos a que os homens são arrastados em virtude do sectarismo doutrinário, resvalando simples e convenientemente no
sentido da autojustificativa de qualquer ato incivil e questionável mas essencial a seu tempo.
Et a PARTE TRÊS A Comunidade da Inglaterra
Declaro e prometo que serei fiel e verdadeiro à Comunidade da Inglaterra, agora que ela se estabelece sem um rei ou uma Câmara de Lordes JURAMENTO
DE COMPROMISSO DE 1649
Em Rosa
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12 Tudo se renova Esses novos cristãos cuidam de fazer desaparecer as coisas
antigas, e que tudo se renove, para manter esse novo esquema da República (...) MERCURIUS PRAGMATICUS, junho de 1649
corpo político da Inglaterra imbuiu-se, então, de muitas novidades, desde medidas grandiosas, que tinham por objetivo eliminar os resquícios da monarquia e da Câmara dos Lordes, até preocupações menores, respeitantes à maneira de desfraldar a bandeira nos navios da Armada. Já antes da
morte do rei um novo Great Seal [Grande Selo] fora encomendado pelos Comuns; Thomas Simon, famoso gravador, anteriormente a serviço de Carlos, tinha sido encarregado de criá-lo, a um custo total de duzentas libras,
incluindo o material a ser usado. De forma pictórica — obedecendo aos dita-
mes de um comitê especialmente constituído — ele tornou bastante claras as mudanças no poder. Numa das faces estava representada a Câmara dos Comuns em sessão, o presidente na sua cadeira e os parlamentares ocupando os assentos laterais — nenhum sinal da Câmara Alta —, sob os seguintes termos: No Primeiro Ano de Liberdade, com a Bênção de Deus, restaurada em 1648.*
No reverso havia um mapa da Inglaterra, até a fronteira com a Escócia, é claro, e o mapa da Irlanda, juntos às suas respectivas cotas de armas. No dia 7 de fevereiro, o novo selo estava pronto para ser trazido à Câmara e entregue *Pelo antigo calendário, no qual o ano começava em 25 de março, o rei tinha sido executado em 30 de janeiro de 1648.
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aos comissários. Dos anteriores encarregados, um deles, siy Thomas Widdrington, pediu dispensa, sendo substituído por John Lisle, um regicida
e Sergeant Keeble, advogado “cabeça-redonda”. O outro, Bulstrode White. locke, permitiu-se aceitar. E explicou: embora [nas duas faces do selo]
“dificilmente se evidencie um cumprimento estritamente formal dos devidos processos legais (...) uma necessidade inevitável nos colocou nesse
rumo, que de outra forma talvez não tivéssemos tomado”.! Tratava-se do antigo — ou melhor, do novo — argumento.
Considerando o pouco tempo disponível, Simon fizera um excelente tra-
balho; a pressa, no entanto, obrigou à confecção de um novo selo, mais cuidadosamente elaborado, um ano depois. Nesse, os mapas tinham detalhes mais nítidos e a data era outra. Posteriormente, os demais selos foram sendo modificados, por exemplo, o Selo da Court of the Common Bench [Tribunal das Causas Ordinárias], o do ducado de Lancaster, o do Parlamento, todos seguindo mais ou menos os mesmos padrões. No cetro, que também simbolizava o poder, as armas reais cederam lugar às da Inglaterra e da Irlanda. As cruzes, em volta de sua borda superior, transformaram-se em carvalhos. Sem perda de tempo, embora amargamente, um jornal realista observou que, tendo Absalão sido enforcado numa árvore, a Comunidade escolhera um emble-
ma bem expressivo de sua rebelião. As vestimentas dos encarregados de trans-
portar os membros do Parlamento pelas águas do Tâmisa foram objeto de debate, e, nos panos das barcaças, as armas do rei substituídas pelas da Co-
munidade? Num nível mais elevado, havia o problema do dinheiro — necessidade imediata do novo regime. Uma ordem datada do dia 13 de fevereiro instituiu uma série de moedas de certa forma graciosas, cujos desenhos incluíam as armas da Inglaterra e da Irlanda, ramos de palma e de louro, e duas inscrições — The Commonwealth of England [A Comunidade da Inglaterra] e God With
Us [Deus está conosco]. Algumas coisas levaram mais tempo: foi somente
em fevereiro do ano seguinte que se expediram as ordens no sentido de remo-
ver as armas do rei de todos os lugares públicos; os juízes de paz € OS curadores eclesiásticos supervisionaram sua troca pelas da Comunidade. Ao mesmo tempo, o Parlamento descobriu que os navios Prince, Mary e Elizabeth deviam ser rebatizados, a fim de se tornarem bastiões da Comunidade. Uma nova embarcação, lançada ao mar em 1649, recebeu o nome menos majestoso
de President. Rápida e inexoravelmente, as novidades apareceram aos olhos de todos e, no verão, o Mercurius Pragmaticus refletiu tristemente que “esses n0-
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ma
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vos cristãos cuidam de fazer desaparecer as coisas antigas, e que tudo se renove para manter esse novo esquema da República (...) através do qual, agora, a
velha Inglaterra se transformou numa coisa nova, e nós fomos transportados a » . o” nd outro mu
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Essa nova iconoclastia, porém, poderia propiciar bons lucros e algum
prazer. Carlos Stuart tinha gosto e dera-se a ricas indulgências em tudo que fosse fino e mais primoroso no campo das artes. Sua herança teria sido sufici-
ente para resgatá-lo ou, conforme se sugeriu, encher os cofres do tesouro da Comunidade. Esse objetivo estava por trás do elaborado plano de vendas dos quadros, tapeçarias, livros, jóias e medalhas do falecido monarca. À respeito, o Mercurius Elenticus publicou, no dia 20 de fevereiro, a denúncia de que “ambiciosos sanguessugas de cavalos dedicam-se a vender a coroa e tudo o mais”. Num desagradável trocadilho, o jornal insinuava que “eles” tentavam salvar os “penduricalhos” para si mesmos. O governo — e não furiosos filisteus — sentia-se obrigado a se desfazer dessa incomparável coleção, fundamentalmente, devido às suas necessidades financeiras. Uma equipe de curadores foi encarregada de localizar, inventariar, avaliar e até mesmo impedir o roubo dos bens. Mesmo nessas difíceis circunstâncias, alguns lutaram pela preservação dos antigos valores. Em outubro de 1651, John Dury lançou um furioso protesto pelo estado da biblioteca do antigo soberano; livros jogados por toda parte, no chão, estavam expostos à chuva e à poeira, ratos e camundongos. Whitelocke conseguiu impedir que alguns dos livros e medalhas do palácio de St James fossem vendidos no exterior; mais tarde, Milton recebeu a incumbência de classificá-los. Ironicamente, com o passar daquele ano, alguns dos ricos objetos acabaram preservados, graças à crescente autoconfiança e o gosto pelo luxo do novo regime. Certas tapeçarias foram usadas para decorar as salas oficiais dos membros do novo Conselho. Pertences reais, no valor de dez mil libras, des-
tinaram-se ao serviço do Estado. A Comunidade manteve uma parte conside-
rável das propriedades do rei, inclusive o palácio e o parque de St James e o castelo de Windsor. Por maior que fosse o desgosto dos realistas, o fato dos novos governantes da Inglaterra desfrutarem dos prazeres legados pelos anti-
gos devia ser até bem-vindo, pois fosse uma inspiração de genuíno requinte ou mera questão de vaidade pessoal, ao menos garantiu a inte gridade de algumas preciosas obras de arte que poderiam ter sido tragadas numa venda catastrófica. Dizia-se que o cardeal Mazarino estaria farejando a possibilidade de adquirir algumas peças, antes mesmo do enterro de Carlos I. O humilde
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Croullé, deixado pelo embaixador da França em seu lugar, ocu pou-se com as compras de Sua Eminência. Depois de retornar a Londre s, boa parte do tem.
po de Bordeaux seria utilizada em negociações desse tipo. O acúmulo de mudanças e mesmo a preocupação dos rel atórios contem-
porâneos com as alterações de selos e armas revelam a estranha natureza ad
hoc dessa nova Comunidade.* Era preciso agir com rapidez e sem qualquer recurso a precedentes históricos, dado o ineditismo do pro cesso. Transforma-
ções realmente radicais, como a abolição formal da monarquia, tiveram que esperar até o dia 17 de março. A própria Comunidade só foi formalmente
instituída pelo Parlamento em maio, embora o vazio de pod er não existisse, pois a Câmara dos Comuns assumira a mais alta autoridade do país várias semanas antes da execução. Da mesma forma, discutiu-se bastante sob re o fim da Câmara dos Lordes — muitos gostariam de mantê-la em caráter cons ultivo, e Cromwell, de acordo com Ludlow, votou mais ou menos nesse sent ido, talvez antevendo algum papel que os pares do reino poderiam desempenhar na consecução dos objetivos que ele “estava determinado a alcançar”. No dia
19 de março, porém, os Comuns extinguiram a Câmara Alta; considerada -a grande inconveniência do poder de veto dos que não representam o povo”, suas funções judiciais também desapareceram.” Eliminar era uma coisa, substituir era outra. A limpeza fora, sem dúvida, bem dinâmica. O Conselho Privado tinha desaparecido, bem como os departamentos do Almirantado e o Exchequer [Fazenda]. Não existia mais a Star Chamber, a Court of Wards e o Tribunal das Prerrogativas do Rei, nem o
Lord Chancellor [presidente da Câmara dos Lordes], o Chancellor of the Exchequer [ministro da Fazenda] ou secretários de Estado. Desse holocausto
dos poderes executivos só restou o próprio Parlamento, isto é, a Câmara dos Comuns, ou o que sobrou dela depois do expurgo de Pride, com seu Speaker [presidente] elevado ao posto mais alto do país. Todavia, isso não solucionava a questão do governo do reino, e o remédio foi criar um novo é poderoso
Conselho de Estado, por intermédio de um Ato do Parlamento. Dotado de amplos poderes executivos, esse Conselho expediria ordens através de comissões, sendo as mais importantes as de Assuntos Exteriores, a do Exército, da
Marinha e da Irlanda. Quanto à urgente necessidade de fundos, já existiam, é “A palavra, com o significado original de bem
“estar público
o bem-estar geral, tinha se transformado no começo do século XVI para si enificar o corpoou políti co do Estado, visto €Specialmente como um corpo em que toda à população tinha voz ou interesse; no século
XVII estava começando a assumir o
significad o de república.
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claro, todas as outras comissões criadas nos momentos diferentes da guerra e destinadas ao segúestro de propriedades ou à aplicação de multas; muito bu-
rocráticas e ineficientes, mesmo assim, ainda funcionavam.
Depois de alguns debates, a Câmara dos Comuns fixou em 41 o número
de membros do Conselho de Estado — chegou-se a sugerir que fossem cem
— e o quorum mínimo de nove participantes. A primeira seleção, feita em 14
de fevereiro — naturalmente, Cromwell estava entre os escolhidos —, mante-
ve-se virtualmente intacta, com a exceção significativa de Ireton, eliminado
provavelmente devido aos esforços que empreendera na tentativa de dissolver o Parlamento. Enquanto ocupou a presidência, em caráter interino — John Bradshaw só foi eleito para o cargo um mês depois —, Oliver tratou de conciliar as agudas divergências em torno do juramento de compromisso que todos os membros teriam que prestar. Como na questão da Câmara dos Lordes, ele achava que as novas e delicadas circunstâncias exigiam uma ampla base de apoio, daí que a forma adotada pelo Compromisso obrigava os membros a apoiar o governo e a executar as vontades do Parlamento; a primeira versão, sugerida por Ireton, implicaria a sustentação do Alto Tribunal de Justiça e da execução do rei. O conceito original do Conselho de Estado parece dever alguma coisa a duas comissões anteriores, a dos Dois Reinos e a de Segurança.
O Parlamento limitou sua duração a um ano, e as reuniões tiveram início,
primeiro na Derby House, depois, a partir de maio, em Whitehall, refletindo o crescente poder assumido pelo organismo.
Tal qual o executivo, o judiciário carecia de reformas. Em fevereiro, Cromwell integrou uma comissão responsável pela listagem de todos os Juízes de paz da Inglaterra e de Gales. A King's Bench Court [Juízo Fazendário] passou a chamar-se Upper Bench [Juízo Superior], excluindo-se do juramento prestado por seus integrantes o nome do rei. Nem todos os membros do judiciário adotaram a posição de Whitelocke: metade dos 12 juízes da Common Law [primeira instância do direito positivo] recusaram novas comissões. Ainda presos, os delingientes secundários foram levados perante um tribunal especial que os condenou sem maiores dificuldades; segundo Lilburne, embora alegassem que haviam se rendido mediante a promessa de clemência, Hamilton, Zord Capel, o conde de Holland, lord Norwich — anti-
go lord Goring — e sir John Owen acabaram arrastados pelas ruas, como “escravos duas vezes conquistados”.” Recusada a apelação de Hamilton, baseada
na sua nacionalidade escocesa, ele morreu na esperança de que sua morte encerrasse o derramamento de sangue. Apesar disso, Holland e Capel o segui-
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ram no patíbulo. Apenas Goring e Owen tiveram suas sentenças comu tadas,
se bem que Cromwell e Ireton votaram a favor da pena capital. Assim
termi-
nou, finalmente, a Segunda Guerra Civil. Nos primeiros meses da Comunidade, o governo dispensou arg umentos políticos que apoiassem o novo regime: os atos diziam tudo. Após a execução do monarca, John Cook publicou King Charles His Case LO cas o do rei
Carlos], sustentando que o abuso de confiança por parte de quem devia pro-
teger o povo era passível de punição extrema. John Milton, que logo se tor-
naria o mais afamado propagandista da Comunidade, tirou dinheiro do pró-
prio bolso e editou um folheto intitulado The Tenure of Kings and Magistrates: Proving that it is lawful, and Flath been Held so through All Ages, for Any, who Have the Power, to Call to Account a Tyrant or Wicked King, and after Due Conviction to Depose and put him to death [O cargo dos reis e magistrados:
prova da perene legalidade do direito de quem assume o poder e julga um tirano, ou rei malvado, e, após a devida condenação, trata de depô-lo e executálo]. O autor enfurecera-se ante os ataques dos pastores presbiterianos durante o julgamento de Carlos I e decidira vingar-se. O texto mencionava inúmeros exemplos de tiranicídio, desde a antiga Grécia e Roma, até os precedentes da
história inglesa, referindo-se não apenas ao divino direito do povo de julgar os déspotas, mas ainda à “majestade e grandeza” desse ato. O panfleto produziu consequências notáveis. Obviamente, o novo Conselho de Estado precisa-
va constituir um secretariado, e o bem-intencionado Milton, recomendado
por Bradshaw, acabou assumindo o cargo de “secretário de Línguas Estrangeiras”,* com o modesto salário de 288 libras anuais — o secretário-chefe
ganhava 730; assim, o maior poeta de sua época entrou para o serviço público, indo morar, naquele de relação pessoal que obscuro: Oliver jamais o primeiro encontro de
mesmo ano, num apartamento de Whitehall. O tipo ele estabeleceu com Cromwell permanece bastante o mencionou em cartas ou discursos. Provavelmente, ambos deu-se quando Milton tomou posse, no dia 20
de março de 1649. Coube a ele responder à crescente publicidade em torno dos sofrimentos do ex-soberano, divulgada através do citado Eikon Basilike; infelizmente, apesar de ter cunhado uma frase memorável — “Prefiro à tainha Verdade ao rei Carlos” —, seu Eikonoklastes não alcançou o simpático vigor nem o sucesso do texto popular!
*Mais tarde ele se tornou conhecido como “s ecretário d im?. poisno; embora tra duzisse Latim”, e resp só português, e espanhol francês, italiano, ondia em lati m.
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Novas teorias sobre apoio político teriam que esperar pela maior estabilidade do novo governo. Naquele momento, o horror resultante da morte de Carlos 1 induzira as hostes realistas a uma enorme apatia, e ninguém cogitava de qualquer atividade conspirativa. Filha do ex-secretário do monarca, lady Anne Halkett mencionou em carta a depressão que dominara os partidários do rei, dizendo que “eles pareciam estar sonhando”. William Sancroft, futuro arce-
bispo de Canterbury, referiu-se a encontros, todavia inúteis: “(...) só falamos so-
bre perspectivas de fuga.” Pairava sobre todos a sombra daquela tristeza indefi-
nida que assombraria a Comunidade, o fantasma do passado, apontando seu dedo espectral para trás, inspirando à inação e a um triste enclausuramento. Mesmo um puritano assumido, como Ralph Josselin, vigário de Earls Colne, registrou no seu diário o abalo que sofrera ao ler sobre a execução do soberano: “minhas lágrimas corriam nas passagens sobre sua morte (...)?. De um ponto de vista diametralmente oposto, John Lilburne confessou idênticos sentimentos de resignação apática, pensando na possibilidade de trocar a Inglaterra pela Holanda: “Meditei sobre mim mesmo, sem saber o que fazer, sentindo-me como um velho navio, marcado pelo tempo, merecedor de algum descanso num porto trangúilo.”!
Diante de tamanho retraimento, não surpreende que os novos governantes tenham enfrentado pouquíssima oposição às suas entusiásticas e eventualmente desajeitadas tentativas de renovação à outrance. Entre eles, predominava um estado de espírito bastante diferente. Contrastando a melancolia de Lilburne, o alegre vigor de Cromwell e Ireton pode ser ilustrado pela história publicada no Mercurius Elenticus, jornal altamente hostil, que com grande desgosto informou
ter Oliver se oferecido para cuidar da formação do jovem duque de Gloucester,
instruindo-o nos ofícios de sapateiro ou cervejeiro; a princesa Elizabeth seria
dada em casamento a um dos seus próprios filhos ou ao de Pride. O rapazinho,
que contava apenas oito anos de idade, replicou com alguma disposição ter esperanças de que o Parlamento lhe destinasse parte das rendas de seu pai, de forma a evitar que ele fosse obrigado a se tornar aprendiz. Mas Cromwell encerrou a conversa, dizendo: “Menino, terás que ser aprendiz, pois nem todas as rendas de teu pai compensarão o mal que ele fez ao reino.” Dito isso, segundo
o periódico, “Nariz [Cromwell] saiu furioso”.
Relatado de segunda mão, o incidente terá sido mais uma brincadeira de
mau gosto do que uma tentativa séria de humilhar a família real. Cromwell era um homem gentil e terno com as crianças, e já citara o duque de Gloucester
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como seu candidato a rei, sob uma regência; na verdade, os jovens cativos sempre foram bem tratados. Orientada pelo Parlamento a cuidar deles com a
mesma cerimônia dedicada aos filhos da nobreza, /ady Leicester não se sacri ficava por isso, e nada justificava a perspectiva escandalizada do Mercurius Pragmaticus, temeroso de que logo os pequenos fossem chamados, simp lesmente, de “Betty e Harry”.'? Mais do que a diminuição do status, afligia-os a morte do pai. Sobre o comportamento indiscutivelmente alegre de Cromwell nesse período, Whitelocke é bem mais convincente e substancial. Jantando com Oliver e Ireton, na noite de 24 de fevereiro, ele os encontrou muito bem-dispostos e satisfeitos com a marcha dos acontecimentos. A conversa prolongou-
se até a meia-noite, girando em torno das “maravilhosas provas da Divina Providência” que haviam tido, durante a guerra, por ocasião do deslocamento
do exército em direção a Londres e quando da prisão de alguns membros da Câmara dos Comuns — “e em tudo isso abundavam passagens milagrosas”. Indicação marcante da vida serena que Cromwell retomara foi o fato de ter voltado às negociações acerca do casamento de Richard e Dorothy Mayor. A
fim de superar desacordo financeiro que persistia, a partir de 1º de fevereiro escreveu uma série de dez cartas ao pai da jovem, algumas muito longas, contendo explicações detalhadas a respeito dos termos do acordo proposto, além de reflexões sobre a questão do matrimônio em si.
De fato, à parte o desejo natural de um pai no encaminhamento do filho, Oliver parecia ter um cuidado particular com Richard, de cuja fraqueza suspeitava. Dorothy o atraíra não devido à sua fortuna, mas por “ser uma dama de fino trato”, cujas virtudes estáveis apoiariam o aprimoramento do caráter vaci-
lante de Dick. Tão logo o casamento se realizou — no final de abril — ele se ligou muito à nora, sua “Doll”? [Boneca], como ele a chamava, numa das relações paternais a que tendeu à medida que envelhecia. Em julho, informado de
que o jovem casal encontrara tempo para fazer uma expedição à cata de cerejas, ele perdoou aquilo que imaginava ser um desejo de mulher grávida: «É, bastante desculpável (...) acredito que ela tenha um bom pretexto (...).”!* Richard Mayor, antigo adversário, tornou-se um grande amigo e confidente.
As preocupações acerca de Dick eram provavelmente justificadas. Seu re-
trato revela um rosto de contornos suaves, maravilhosos olhos sonhadores; boca demasiado sensível — no conjunto, uma fisionomia doce e algo tímida. No veredicto de seus contemporâneos juvenis, um jovem fraco e gentil, que Lucy Hutchinson considerou “camponês por natureza” — cavalheiro rural
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seria uma expressão mais generosa. Talvez tenha tido a má sorte de crescer
no período da ascensão meteórica do pai, nacionalmente afamado enquanto líder militar — seus falecidos irmãos tinham crescido antes de Oliver sair do anonimato. De qualquer forma, Cromwell continuou preocupado com as deciências do filho; obcecado com suas leituras, no verão insistiu com Richard Mayor para que fizesse com que seu novo genro lesse mais, talvez história ou
geografia. Um ano mais tarde, da Irlanda, forçou Dick a se comprometer
com a leitura da History of the World [História do mundo], de Raleigh, um
livro que contava com sua aprovação, apesar de ser leitor pouco assíduo, pos-
to que baseado na teoria de “um Deus onipotente [que] lança sobre homens e nações pecadoras uma punição justa e inevitável”. Raleigh negava a possibilidade de acidentes decorrentes da sorte, uma vez que “tudo deriva da vontade de Deus, a fim de se chegar ao presente (...)”.'º Educado na doutrina do dr. Thomas Beard, não surpreende que Cromwell jurasse por este livro e o recomendasse tão apaixonadamente ao relaxado Richard. Tendente a aconselhar espiritualmente os filhos que cresciam e encorajado por Dick — “Recebo tuas cartas com afeto: gosto de tudo que vem diretamente do coração, sem ser forçado ou afetado” —, Oliver escreveu-lhe para que buscasse continuamente “o Senhor e Seu rosto”, tal qual fizera com Bridget. O matrimônio também ocupava parte de suas preocupações, embora com mais cautela, em deferência à masculinidade de Richard: “Talvez imagi-
nes que [talvez] não preciso te persuadir a amar tua mulher. O Senhor te ensina a melhor forma de fazê-lo, pois de outra forma não se faria bem. Ainda que o casamento não seja um sacramento instituído, no entanto, aí está o bom leito, e o amor, a união que lembra Cristo e sua Igreja.”'* Somado às comparações mais ou menos similares, contidas nas cartas a Bridget, sobre a imagem de Cristo impressa em seu esposo, o vívido interesse pessoal que Cromwell manteve na relação de Dick e Doll dá a impressão de que esse pa-
pel de casamenteiro e pai puritano muito o agradava. O zelo demonstrado na correspondência pré-matrimonial com Richard
Mayor é mais marcante, visto que o perigo voltara a rondar os negócios do
Estado, a partir do fim de fevereiro, o que poderia ter acabado com sua enér-
gica disposição doméstica e deprimido o júbilo que sentia. À indiferença realista, particularmente no exterior, não duraria para sempre. Toda a Europa sustara o fôlego com a morte de Carlos I. Os contatos diplomáticos entre as nações do continente e a Comunidade eram mínimos — por algum tempo, o isolamento foi quase total; governados por cabeças coroadas, muitíssimos países
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estavam incapacitados de encarar com serenidade os acontecimentos que transcorriam na Inglaterra. Circulavam rumores de intervenção militar estrangeira, talvez liderada pelo duque de Lorraine. Na Escócia, Carlos II fora
aclamado assim que se soube da morte de seu pai, e o galante Montrose comprometera-se a cantar loas ao rei morto “ao som de trombetas, e escrever seu epitáfio em sangue e ferimentos”. A maior e mais imediata ameaça, entre. tanto, parecia provir da Irlanda.
Em Kilkenny, ainda no mês de janeiro, Ormonde e os católicos haviam concluído um tratado, e uma semana antes da execução o futuro Carlos II tinha sido convidado a ir até lá, a fim de concentrar o apoio realista, quem
sabe, com vistas a uma intervenção. Geograficamente, o país oferecia um excelente ponto de partida; além disso, Rupert formara um pequeno mas eficaz esquadrão naval, composto de oito belonaves, baseadas nas ilhas Scilly. Na Inglaterra, a idéia de desencadear um ataque preventivo trouxe à tona antigos problemas — soldos atrasados, desmotivação da tropa etc. —, numa situação
muito pior que a da primavera de 1647, quando os soldados podiam contar com seus porta-vozes radicais. A morte de Carlos I, longe de acalmar os
levellers, tornara-os tão coléricos quanto os realistas. Esses três fatores — o
perigo realista na Irlanda, a necessidade de mobilizar um exército e o ascenso da oposição — determinaram a nova conjuntura em que Cromwell se viu envolvido. Segundo os levellers, os líderes do exército haviam traído a revolução ao
não implementarem as reformas sociais implícitas no Compromisso do Povo. No começo de março, o Mercurius Pragmaticus deu início à publicação
de
uma série de comentários acerca de dissensões entre Cromwell, de um lado, e Henry Marten e sua “equipe /eveller”, de outro; durante os debates na Câmara dos Comuns, Ruby Nose [Nariz de Rubi, isto é, Cromwell] teria sacado uma adaga.” Um panfleto radical, intitulado England's New Chains Discovered [Descobertos os novos grilhões da Inglaterra], enfureceu os detentores do poder. No dia 15 de março, a nomeação de Oliver para o comando do exército de 12 mil homens que o Conselho de Estado pretendia enviar contra a Irlanda teve como pano de fundo a crescente fúria dos Jevellers. Outro panfleto, sob o eufórico título de The Hunting of the Foxes from Newmarket to Triplo Heath to Whitehall by Five Small Beagles [A caça às raposas de Newmarket à Triploe Heath e a Whitehall, por cinco pequenos beagles], referia-se à Cromwell como o “novo monarca”, criticando -0 asperamente. Diante dos que o procuravam, e antes de qualquer resposta, “ele poria a mão no peito, levan-
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taria os olhos e invocaria a Deus (...) choraria, gritaria e se diria arrependido, mesmo quando atingisse alguém logo abaixo da primeira costela (...)?. Os autores, por sua vez, clamavam: “Oh Cromwell! O que queres, afinal?” Uma
nova realeza, talvez?
Sob esse fogo cruzado — é irônico, mas ele era acusado de aspirar à co-
roa de duas direções diferentes — Oliver encarou com cautela a nomeação
para o comando da expedição militar. Talvez ele fosse “o mais orgulhoso rebelde do grupo”, conforme publicou o Mercurius Elenticus, mas sabia bem da
desunião dos que estavam à sua retaguarda. Ausente, seus inimigos teriam
uma excelente oportunidade para enfraquecê-lo; além disso, muitos generais ingleses já haviam perdido sua reputação nos campos de batalha da Irlanda. Em suma, seu discurso longo e tortuoso — ou mesmo torturado — foi marcado por uma extrema prudência. Se a vontade de Deus determinasse sua ida à Irlanda, certamente ele não
se recusaria: “Comprometo-me, não apenas diante de vós, mas como se estivesse diante do Senhor, e em Sua presença, que abandonaria o comando (...) ou qualquer posição de liderança política que vos induzisse a uma promessa, até que esteja em condições de declarar se irei ou não, dependendo da inclinação que Deus der a meu coração (...).” Sobre a Irlanda, ele usou os mesmos termos fortes, mostrando que seus preconceitos não tinham arrefecido desde o início da década de 1640: “Antes ser derrotado pelos interesses dos cavaleiros do que dos escoceses, ou pior, dos irlandeses, na minha opinião os mais perigosos (...) todo o mundo conhece a sua barbárie.” No terreno prático, ele sugeriu “que o exército se mova, a fim de obter provisões, como cabe a homens
honestos”. Objetivamente, não tinha nenhuma vontade de liderar uma campanha fadada ao insucesso por falta de equipamento. Em suma, “vamos se Deus
também for (...)”.!º É bem verdade que o aprestamento das tropas agravaria o problema financeiro, mormente porque já se haviam frustrado todas as tentativas de levantar
fundos. O ano de 1649 foi marcado por uma sensível depressão econômica,
consumindo as receitas em necessidades imediatas; assim, antes que alguns expedientes — como a alienação dos bens reais — produzissem efeito, decidiu-se pedir um empréstimo à City, no valor de 120 mil libras, sob a garantia das terras do rei. Isso não deu certo — na época, os emprestadores estavam arredios —, e o jeito foi decretar a venda das propriedades fundiárias dos deães e congregações religiosas. Os atrasos se sucediam, devido às dificeis negociações, num clima em que as línguas /evellers não conseguiam ficar quietas.
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Alguns dias após o discurso de Cromwell, o Conselho de Estado convo-
cou Lilburne e Richard Overton; o panfleto England's Chain fora considerado
sedicioso pela Câmara dos Comuns, capaz de levar a uma nova guerra civil. Inquirido, Lilburne manteve sua tradicional postura de desafio, sendo reco m-
pensado por uma explosão de Oliver, que bateu na mesa, exaltado, assim que ele se retirou: Asseguro-vos, senhores [ele gritou], que não há outra forma de tratar com estes homens senão quebrá-los, ou eles vos quebrarão; isso, ou aceitar que o ônus do sangue derramado e dos tesouros dissipados caia sobre vossos ombros e cabeças, frustrando e esva-
ziando o trabalho que haveis realizado durante anos e anos de esforço, árdua luta e tantas dores, para ao final passar de homens racionais a homens tolos e de baixo nível, quebrados e eliminados por essa geração desprezível e mesquinha que eles são (...). Repito: é preciso quebrá-los! 1º
Grande parte do seu profundo ressentimento contra os agitadores, que perturbavam o governo dos santos, fossem os levellers ou outras organizações que deles surgiram, está contida nesse discurso. Os radicais, no entanto, foram condenados somente à prisão e por uma maioria de apenas um voto. Dias depois Cromwell concordou em aceitar o comando do exército irlandês e, no dia 30 de março, sua nomeação foi aprovada pela Câmara dos Comuns. Continuou, porém, a se sentir muito desnorteado e inseguro, O que pôde ser confirmado mesmo por uma fonte hostil, como Clement Walker, na sua History of Independency [História da independência]. No dia 1º de abril, Oliver estava entre os pregadores laicos chamados pelo “Espíri-
to do Senhor” e pronunciou um sermão de noventa minutos após ter rezado durante uma hora. Walker comentou, acidamente, que ele pedira a Deus “para liberá-lo do governo deste poderoso Povo da Inglaterra, pois a tarefa pesava demais sobre seus ombros — uma imitação audaciosa e hipócrita de Moisés”. Segundo seu testemunho, ele adquirira o hábito de 15 minutos toda vez que se discutia um assunto importante, “os Oráculos do Espírito”.” Deixando de lado a antipatia do imagem de um homem incerto sobre o destino apontado pelo por sua própria natureza.
retirar-se por voltando com autor, resta à Senhor — OU
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Daí para a frente, a questão passou a ser quais os regimentos que iriam à
luta, além dos já designados — o de Cromwell e mais dois. Uma criança foi
encarregada de tirar de um chapéu quatro papeizinhos — dois deles com a palavra “Irlanda”, para a cavalaria e a infantaria, respectivamente, e os outros dois em branco. Entre os regimentos de cavalaria escolhidos estavam o de Ireton, o de Lambert e o de Scrope; a infantaria incluía os de Hewson, Ewer e Deane;
cinco contingentes de dragões também seguiriam na expedição. Até aí tudo
bem, não fosse a atitude dos soldados, muito distante da aceitação daquela cri-
ança. Além das suspeitas dos /evellers, acerca do comando do exército, os soldos continuavam em atraso, o que poderia levar a um motim a qualquer momento.
O regimento de Whalley — que deveria permanecer na Inglaterra — teve que ser subornado pelos próprios oficiais para que partisse de Londres; os homens de Hewson abandonaram as armas. Pior, do ponto de vista do governo, foi a multidão de pobres que se aglomerou às portas da Câmara dos Comuns, muitas
mulheres, inclusive, trazendo um documento com mais de dez mil assinaturas,
solicitando a libertação dos evellers presos. Misturados à turba, alguns soldados encostaram suas pistolas engatilhadas no peito dos membros do Parlamento — sombras do verão de 1647 —, e uns vinte agitadores conseguiram penetrar no vestíbulo. Diante de uma agitadora, um parlamentar pouco hábil advertiu que “não cabia às mulheres fazer petições, elas deveriam ficar em casa lavando os pratos”. Ferina, ela respondeu: “Senhor, resta-nos poucos pratos para lavar, e não sabemos sequer como mantê-los.” Outro que se aventurou a fazer um comentário moderado, considerando estranho, pelo menos, que as mulheres fizessem petições, ouviu a seguinte resposta: “Foi estranho que cortásseis a cabeça do rei, mas suponho que podeis justificar isso.” Cromwell também não se saiu muito bem. A mesma corajosa mulher segurou sua capa, quando ele saía, e o criticou por se preocupar tão pouco com 0 povo comum, ao ponto de não querer ouvir suas petições, ele que já os escutara
antes, sempre que o povo lhe dera dinheiro para as guerras. “Pensais que não temos nada, mas ainda temos contra vós.” “O que quereis?”, ção que nos foram prometidos liberdade dos líderes /evellers,
um pouco, e sangue também, que gastaremos perguntou ele. “Os direitos e liberdades da na(...)” respondeu a mulher, especificando com a aprisionados ilegalmente. Em vão Cromwell ar-
gumentou que o Parlamento ordenara que fossem julgados conforme a lei —
estava nas garras de uma harpia bem à sua altura, e que replicou: “Senhor, se tirarem suas vidas, ou a vida de qualquer um contra a lei, nada nos satisfará
exceto a vida de quem fizer isso, e isso, senhor, inclui vossa própria vida.”?
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O movimento /eveller já tinha diversas dissid ências. Em fevereiro, enco-
rajados pela morte do rei, o grupo milenarista dos pentamonarquista cre s, ntes de que o império de Cristo sucederia ao império romano, in vadiu a arena po-
lítica. Sua primeira petição veio de Norwich; em março, Norfolk, ambas reclamando “o avanço de Jesus Cristo” e seu reino na terra”, além de questões mais mundanas, como ro e a abolição dos dízimos.?? Os diggers [escavadores]
uma segunda de So crescimento de o expurgo do cle* apareceram em
abril, perto de Windsor, em St George's Hill. Em março, Cromwe ll acedera
ao pedido de alguns soldados pobres, permitindo que cultivassem a ter ra comunal, Suas atividades organizadas, entretanto, eram muito mais sérias, não somente porque ameaçavam os direitos dos freeholders — possuidores de pro -
priedades livres, sem pagamento de foros —, mas ainda em virtude da teoria que haviam elaborado, capaz de ameaçar os fundamentos da propriedade, tal como Ireton acreditara que o sufrágio universal faria. Whitelocke os descreve com bastante clareza. Tendo cavado a terra e espalhado as sementes de raízes e vagens, “convidavam a todos para vir ajudálos, prometendo em troca carne, bebida e roupas; ameaçam derrubar as cercas dos parques, e deixar tudo aberto (...) e os vizinhos, dizendo que em breve os obrigariam a trabalhar junto com eles”. Seus líderes, William Everard e Gerard Winstanley, queriam que o povo de Deus reouvesse os frutos e beneficios da terra. O primeiro afirmava ter sido levado a esse nobre trabalho por uma visão. Numa petição a Fairfax, os diggers reclamavam as recompensas nunca recebidas pelas vitórias contra o rei e sua dependência do jugo jamais superado; a terra continuava fora de seu alcance, “mantida pelos senhores feu-
dais, ainda sentados em seus tronos normandos”. Descontentamento social de inspiração visionária e teoria política eram jogados no mesmo sac o, pro-
duzindo um mélange que se contasse apenas com um de seus elementos talvez fosse menos perigoso. No dia 19 de abril, as tropas dispersaram os dig ge!S) posteriormente, os frecholders erradicaram suas plantações. Levados à presença de Fairfax, em Whitehall, os líderes demonstraram desprezo pela autorida-
de, recusando-se a tirar o chapéu; o movimento não tinha sido debelado de forma alguma.
e Também Cmnceido Sta verdadeiros tevellers, defendiam uma utopia sem distinções de que a maior parte das aflições humanas Cane, S P (N. do é T.)dinheiro, acreditando de tudo isso.PEaOa decorria proprCtade
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Cromwell também teve visitas — “uma Profetisa do Norte” apareceu em
Londres, nessa mesma época, apresentando-lhe um papel cheio de vaticínios
terríveis, grandes problemas que atingiriam a Inglaterra, caso as liberdades dos “nobres comuns” não fossem reconhecidas. Ele pode ter concluído que indisciplina militar, insatisfação popular, carência de meios e oposição realista ativa já
constituíam grandes problemas. No final de abril, Bradshaw tristemente: “Apesar de todos os métodos justos e injustos que cavaleiro abraçou nossa causa com sinceridade.”?* Mais grave perda gradual do reduzido apoio com que a nova Comunidade
teria comentado usamos, nenhum do que isso era a contava.
Uma campanha destinada a extirpar os /evellers dos regimentos que deve-
riam tomar o rumo da Irlanda seria essencial para assegurar o sucesso da expedição, considerando o ânimo que esses dissidentes tinham alcançado, mas
resultou num motim. Seu líder, Robert Lockier, soldado de 23 anos — entra-
ra no exército aos 16 —, foi detido e fuzilado, e a rebelião esmagada. À po-
pularidade do rapaz e sua reputação de religioso conferiram-lhe uma aura de mártir — justamente o que os radicais precisavam: no enterro, eles desfilaram com fitas verde-mar e ramos de alecrim nos chapéus.* Se bem que o expurgo dos levellers representasse uma condição essencial do ponto de vista militar, a atitude deles ante a nação irlandesa, como já se tinha visto dois anos antes, em Saffron Walden, contrastara os contemporâneos ingleses menos ra-
dicais. Não se pode deixar de lamentar a ausência forçada desses homens, para os quais “a causa dos nativos irlandeses, na busca de sua justa liberdade,
é a mesma que defendemos, lutando por nosso próprio resgate e liberdade do poder dos opressores”. Posição, sem dúvida, muito diferente das atitudes colonialistas ou missionárias do governo, que ao pedir dinheiro à City endossara, por assim dizer, as famosas palavras de James I: “Extirpem os papistas da Irlanda e semeiem puritanos, garantindo sua segurança.”? O sabor de cruzada de tudo isso não se encontrava apenas nas observa-
ções que Cromwell fizera, semanas antes, na Câmara dos Comuns, mas em seu primeiro e significativo encontro com John Owen, o capelão que estava destinado a aumentar o número de seus “amigos divinos”. Eles se viram em 19 de abril, na casa de Fairfax, onde o assistente espiritual pronunciou um
sermão invocando a necessidade de se retirar a “argamassa anticristã? que ci-
mentava a constituição do governo das nações, isto é, o sistema papal. Ele in*Variações da cor verde caracterizavam os revolucionários naquela época, como o vermelho hoje em dia.
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sistiu nessa questão, descrevendo a batalha contra o cat olicismo, civil e reli.
giosa ao mesmo tempo. Ao se despedir, Cromwell se aproximou dele e, tocando-o no ombro, disse: “Senhor, sois a pessoa que preciso conhecer” Educadamente, o pastor respondeu: “Será mais vantajoso para mim do que para vós.” “Veremos”, replicou Oliver, convidando-o a seguir com as tropas sob seu comando; e, a fim de persuadi-lo, informou que seu irmão seri a O porta-
estandarte. Owen era aquele mesmo pregador que dissera, uma vez, “onde está q Deus de Marston Moor e Naseby?” — “uma advert ência aceitável num dia
triste” — e que também acreditava no sucesso militar como uma saudável indicação do favor divino. Sua escolha demonstrava não apenas a dir eção que as idéias de Oliver acerca da Irlanda estavam tomando, mas terá contribuído
igualmente, a partir da íntima amizade que nasceu entre eles, par a sublimar essas idéias. Mais tarde, na dedicatória de um de seus livros, o capelã o escreveu sobre “o apoio espiritual diário” que recebera de Cromwell, guiado por ele na descoberta “das misteriosas e imensas indicações de Deus a seus emissários confidenciais” e que ele aprendera a valorizar.” Certamente, muitos desses sinais os levariam a ponderar sobre a Irlanda. No início de maio, em vários regimentos problemáticos, chegara-se a um ponto crítico — centrado em Salisbury e Banbury, explodira um motim muito mais extenso do que a tentativa abortada de Lockier. Encorajados pela publi cação do último Compromisso do Povo, de Lilburne, que exigia um Parlamento eleito pelo sufrágio universal, os regimentos de Ireton e do coronel Scrope declararam sua intenção de permanecer na Inglaterra até que as liberdades da
nação estivessem asseguradas. Em Banbury, a revolta foi liderada pelo capitão William Thompson, do regimento do coronel Reynolds. Discursando em Hyde Park, no dia 9 de maio, Cromwell demonstrou sensibilidade 20 reco-
nhecer a gravidade da situação — e a exatidão de muitas das queixas dos soldados sobre a falta de pagamento. Ele enfatizou gestos do passado, como “a
justiça contra os grandes delingiuentes” e , NUM nível mais rasteiro, os diversos
procedimentos já iniciados para regularizar os soldos — conseguira deitar mão em dez mil libras que se destinavam à marinha, deixando furioso s%” Harry Vane, da Comissão do Almirantado. No entanto, podia ver as fitas nos chapéus dos “homens verde-mar” » assim chamados pelo jornal Perfect Diurnall, e, tal como tinha feito em Putney, ordenou que fossem arrancadas.
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Dias depois reuniu-se com Fairfax para tratar da rebelião militar que germinava no sudoeste. Em Andover, Cromwell fez outro excelente discurso, lembrando aos soldados sua disposição de “viver e morrer com eles” e in-
sistindo que apoiassem seu desejo de levar à justiça os “revoltosos”.2? Ambos os levantes já tinham sido em grande parte debelados, permanecendo a
ameaça do regimento de Reynolds, sob o comando de Thompson, que escapara do quartel e tentava uma junção com os amotinados de Salisbury. No domingo, 13 de maio, esses homens atravessaram Burford, no Oxfordshire, e decidiram acampar na vila e em volta dela, a fim de passar a noite. Um certo major White os alcançara em Abingdon, com um recado dos generais: num ensaio de mediação, nenhuma tropa seria lançada contra eles. Contudo, era exatamente esta a intenção de Oliver — colar nos seus calca-
nhares.* No domingo, após marcha acelerada de setenta quilômetros, ele atacou os amotinados na escuridão da noite, surpreendendo-os e confundindo-os. A batalha foi rápida e os sobreviventes ficaram aprisionados na igreja local. O
mais plausível é que os generais tenham mudado de idéia em virtude dos soldados estarem “clara e peremptoriamente” decididos a seguir no rumo de Salisbury. A junção dos grupos rebeldes seria inadmissível, do ponto de vista de Cromwell, que considerou a oferta de mediação rejeitada. Os soldados, porém, sentiram-se traídos, alegando que White lhes propusera uma trégua, desmentida pela investida noturna, nem um pouco pacífica. Realmente, havia certa razão nisso. As consegiências, para os amotinados, não foram agradáveis, nem parti-
cularmente sumárias, como era o costume da época. Cerca de quatrocentos homens permaneceram trancados, desde o domingo até a manhã de quintafeira. O capitão William Thompson conseguira escapar e acabou sendo abatido alguns dias mais tarde numa escaramuça, mas seu irmão, o corneteiro
Thompson, estava entre os líderes fuzilados no pátio da igreja, tendo enfrentado a morte com “grande terror”,*º segundo um de seus contemporâneos.**
Um certo cabo Dunne, que escrevera às pressas um panfleto contra o motim, no último momento recebeu indulto.
*Ver R. H. Gretton, “The Levellers at Burford”, pp. 233-256, em Studies in Burford Flistory. **A assinatura do soldado Antony Sedley, entalhada na parede da igreja de Burford, ainda pode ser vista; a anotação do seu diário, correspondente à data de 17 de maio de 1649, assinala o fuzilamento de três companheiros, enterrados no cemitério adjacente.
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Cromwell considerou John Lilburne o maior culpado por esse desagradável incidente, não por simples paranóia, segundo White, que chegou a sugerir uma
“composição”, só conseguindo, entretanto, enfurecê-lo — de monstrando “muita insatisfação”, ele disse que seria ridículo esquecer o assunto, Bateu na mesa ao ouvir o nome do adversário político e exclamou: “Alguém terá que paga r com a vida, Lilburne ou ele mesmo.”º! Tal era a medida de seu crescente sentimento de que os /evellers estavam pondo em perigo tudo quanto fora co nquistado nas guerras. À verdade é que se confiava pouco no povo da Inglaterra, incapaz de pozar devidamente das novas liberdades. Deixaram isso bastante claro, primeiro o , Ato de Traição, aprovado no dia 14 de maio, dando ao Parl amento todos os atributos e poderes que anteriormente pertenciam ao rei e definindo como traição qualquer tentativa de amotinar os soldados; e, segundo, no intervalo de apenas uma sema-
na, O ato que proibiu a impressão de livros e panfletos escandal osos — o Ato da Comunidade, que instituiu a censura total, só apareceu no outono. Após a refrega, Cromwell e Fairfax passaram a noite confortavelm ente insFalkland antes da guerra. De lá deslocaram-se para Oxford, onde se hosp edaram num lugar igualmente aprazível — os alojamentos do diretor do All Souls” College. Embora a universidade tivesse abrigado o quartel-general do rei durante a luta, não foi nenhum dos dignitários realistas que veio recepcioná-los e, inclusive, entregar a eles o título de Doutores da Lei Civil. “Pois não se tornaram mestres antes de serem doutores?”, comenta o Behemoth, de Hobbes.” Há
alguma verdade nessa ironia, pois foi Jerome Sankey, subdiretor do All Souls”, quem recebeu os generais, substituindo o diretor Gilbert Sheldon, anglicano € futuro arcebispo de Canterbury. Suas simpatias, opostas às de seu antecesso r,
podem ser sintetizadas numa única informação: mais tarde ele acompanhou
Oliver à Irlanda. Wood descreveu os discursos de saudação pronunciados no dia seguinte como “ruins, mas suficientemente bons par a soldados”.* Talvez tenham sido mesmo ruins, mas a fala de Cromwell — cing ida de sentimentos graciosos e superior a toda a crítica — mostrou que de alguma forma O manto da realeza caíra sobre seus ombros com muita facilidade. Ele se referi ao u fato de que nenhuma Comunidade poderia florescer independen temente do
aprendizado e que os novos governantes pretendiam encorajá-lo ao máximo, por
maior que fosse a oposição. Magdalen College também foi palco de maus discursos e ovações; nos seus jardins, após o ágane. iogonev expressou sua satisfação em acolher os menta DE ec est asda al ram entre si, tentando dar as mais calorosas boas-vindas. Contraria ndo OS costumes, permitiu-se que os estudantes participasse m da solenidade — por
e
talados na Burford Priory, pertencente a Lenthal, que a adqu irira de lord
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trás de grades —
a fim de “animá-los [com]
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a cerimônia”. Finalmente,
Cromwell e Fairfax desfilaram pelas ruas da cidade, envergando suas vestes escar-
lates. Deve ter sido curioso aos olhos dos que se lembravam dos tempos do rei.
No dia 25 de maio, Oliver estava de volta a Londres, relatando à Câmara
dos Comuns os planos dos malvados /evellers, “impedidos de avançar dentro
do reino pela Providência de Deus”.”* O restante do verão foi consumido em agitados preparativos para a expedição militar, cuja urgência aumentava à medida que decrescia a sorte da Comunidade na Irlanda. Aliado aos católicos irlandeses, Ormonde alcançara vitórias inesperadas, e as dúvidas que persistiam sobre a próxima vinda de Cromwell só faziam estimular a causa realista. Em Paris, poucos acreditavam na sua partida. É bem verdade que a desunião não fora totalmente erradicada: o líder celta, Owen Roe O”Neill, considerando inadequadas as concessões religiosas que haviam sido feitas, estabeleceu um acordo com o general parlamentar George Monk, comprometendo-se, no princípio de maio, a manter-se neutro por três meses. Esse entendimento, possivelmente estabelecido com o conhecimento prévio de Cromwell, manteve-se em segredo por algum tempo. No fim do mês, todavia, a situação da Comunidade era bastante perigosa. Enquanto Monk mal se mantinha no Ulster, o coronel Michael Jones, governador de Dublin, corria o risco de ser obliterado pelo cerco das forças combinadas de Ormonde e de Jord Inchiquin. Prejudicado pela falta de munição e
as inúmeras deserções, já poderia ter sido derrotado, não fosse a indecisão dos atacantes. Em junho, Drogheda, Dundalk e Trim caíram nas mãos dos
realistas, e em Kinsale, próximo à costa sul da Irlanda, o príncipe Rupert e sua pequena esquadra obtiveram estimulante vitória. Naquele verão, porém, as baixas não ocorreram somente nos campos de batalha. Em maio, o dr. Dorislaus, que desempenhara papel de destaque no
julgamento do rei e, recentemente, fora nomeado representante diplomático na Holanda, sofreu um atentado e morreu. O governo ressou muito em punir o grupo de realistas responsáveis em Londres o Parlamento horrorizou-se. Dorislaus teve Abadia de Westminster, embora a multidão de soldados
holandês não se intepelo assassinato, mas um funeral solene na presentes tivesse mais
a intenção de proteger a vida das lideranças vivas do que homenagear o camarada morto. Outros assassínios se sucederiam, convertendo-se numa pode-
rosa arma da oposição ao governo baseado na força e na personalidade de um pequeno grupo de homens. Dizia-se que Cromwell estaria ameaçado de sequestro por parte de seus próprios soldados e que teria brigado com Ireton após uma discussão a respeito da repressão contra os levellers. Afinal, um pan-
da
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fleto da tropa sob seu comando desmentiu o boato, e Ireton foi promovido a general-de-divisão, posto que se esperava fosse para Lamber t. Mas OS rumores continuaram a florescer, sinalizando os tempos difíceis que se viviam, Em meio às incertezas, no dia 7 de junho, as autoridad es da City oferece-
ram um magnífico banquete em comemoração ao fim dos levellers. O que se pretendia era mostrar confiança no governo e solidariedade no tocante aos atos que ele vinha praticando, além de intimidar a oposição mais frágil. No entanto, em que pese todo o esplêndido ritual da celebração, ficou patente o
pouco apoio popular com que contavam o exército e o Conselho de Estado
naquele momento. No trajeto entre Westminster e o centro comercial e finan-
ceiro, as lideranças foram alvo de vaias, e a certa altura as carruagens em que
tam tiveram que parar, quando algum espírito frívolo ou caprichoso removeu o pino de sustentação do carro do próprio Cromwell. Os convidados — todos os oficiais com o posto de tenente para cima, assim como os membros do Conselho de Estado e os três comissários do Grande Selo — entregaram-se a “diversão livre e alegre”, ao som de tambores e cornetas, muito marciais para uma reunião pacífica. Algumas iguarias eram servidas em pratos enfeitados com bandeirolas onde se lia a palavra BEM-VINDOS — depois removidas, posto que os restos foram distribuídos nas prisões de Londres. Os pobres da cidade receberam uma doação de quatrocentas libras. O Perfect Diurnall, favorável ao governo, deu destaque à “festa de cristãos e de chefes”, comparandoa a eventos similares anteriores, de “cretinos e gananciosos”.% Nestes dias agitados, Cromwell foi um dos que se opôs a uma resolução que aumentaria o número de membros do Parlamento — mais uns cem —, entendendo serem limitadas as possibilidades de se encontrar tanta gente favorável às suas políticas e dispostas a assumir o compromisso. Em contrapartida, suge-
riu que a sessão legislativa fosse suspensa por três meses e as eleições adiadas. Em outubro chegou-se a uma solução provisória, pela qual todos os novos parlamentares teriam que fazer o mesmo juramento aplicado aos integrantes do Conselho de Estado — “Declaro e prometo que serei fiel e verdadeiro à Comunidade da Inglaterra, sem um rei ou uma Câmara dos Lordes”; a idéia era afastar os realistas de qualquer envolvimento com os assuntos da nação. No dia
20 de junho, a Câmara dos Comuns conferiu a Cromwell os poderes de coman-
dante-em-chefe e Lord-Lieutenant da Irlanda, determinando assim que todas às
instituições civis e militares estivessem sob sua autoridade. Segundo Clarendon,
ele discursou com rara modéstia, falando de seu pouco mer ecimento, completa resignação e “dependência absoluta da bênção e providência divinas, que tanto
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já tinham se manifestado a seu favor”. Submeteu-se, na esperança bastante me-
q
e
lancólica de que mesmo perdendo a vida ainda assim poderia ajudar a obstruir o caminho dos inimigos da Comunidade.” Sua preocupação e auto-abnegação, porém, tinham justificativas de sobra.
Seus rendimentos totais, na Irlanda, correspondentes a ambos os postos, alcançariam 13 mil libras anuais— cinco mil por ano pelo desempenho como Lord-
Licutenant, mais dez libras por dia, desde o momento da partida, além de um adicional de oito mil libras na volta.** Para o exército, entretanto, ainda não havia
dinheiro nem provisões, e ele estava determinado a não seguir viagem antes que isso estivesse assegurado. À situação persistiu por todo o mês de junho, até meados de julho. Somente em 27 de junho ele foi autorizado a levantar as verbas necessárias na City, mediante a garantia da futura arrecadação de impostos — varinha de condão que se revelou inútil —, e no início de julho, na bolsa de apostas de Londres, sua expedição à Irlanda estava cotada na base de um contra vinte. O senso comum tinha como certo que Oliver jamais poria os pés na Irlanda. De um jeito ou de outro, com as trinta mil libras resultantes da venda das fazendas reais e das terras dos deães e congregações, além de compromissos de
aventureiros, em troca da promessa de concessões territoriais posteriores, € a
esperança da obtenção de mais, através de coerção, argumentação ou bajulação, no dia 5 de julho Cromwell sentiu-se seguro para botar na estrada artilharia e munição. Em Dublin, a situação de Jones tornara-se catastrófica, necessitando desesperadamente de reforços. O Man in the Moon publicara uma caricatura do governador, no alto do seu castelo, buscando ansiosamente, no horizonte do mar, o cintilante nariz de Cromwell; inutilmente, segundo o jornal satírico, pois o úmido clima irlandês apagaria essa luz.” Uma semana depois, entretanto, Oliver promoveu um jantar de despedida — e apesar de ainda se manter algum tempo na Inglaterra não pôde cumprir a promessa que fizera aos soldados: só mais tarde recebeu setenta mil das cem mil libras que calculara precisar. Mas nem todos os preparativos eram financeiros. Antes de partir de Londres, Oliver conseguira dar uma brilhante tacada, conquistando um aliado fundamental na pessoa de Roger Boyle, /ord Broghill, filho do conde de Cork — “Existisse um Cork em cada província e os irlandeses Broghill, homem de muitas facetas, autor mandar batalhas, tinha vários irmãos — Catharine, viscondessa de Ranelagh, dama
não teriam se rebelado”, ele dissera. de romances e tragédias, além de coentre eles o cientista Robert Boyle e puritana muito admirada naquele pe-
ríodo — e que mais tarde veio a integrar a privilegiada trupe de amigos de Oliver na companhia dos quais ele abandonaria sua grandeza de Lorde Protetor. A
.;
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Em 1649, porém, a decisão de convidar tal homem e entregar-lhe um posto de comando no exército parlamentar, confiando apenas em sua palavra, revelava au. dácia, indiscutivelmente. Tendo mantido uma atitude discreta na Inglaterra, após
ter participado de uma campanha a favor do rei em seu país, ele estava prestes a
tomar o rumo do continente, a fim de oferecer sua espada a Carlos II. Detendo-o,
Cromwell advertiu-o de que seus planos tinham chegado ao conhecimento do Conselho de Estado e que o livrara de ser encarcerado na Torre; com isso, conseguiu ganhar sua adesão. Broghill representava exatamente aqueles interess es anglo-irlandeses que deviam ser conciliados, ou a paz na Irlanda seria impossív el. Dotado de uma extraordinária habilidade para escolher os homens, Cromwell nunca fez outra nomeação melhor do que essa. A desdita é que viss e as outras partes da comunidade irlandesa com a mesma acuidade. Partiu de Londres no dia 11 de julho — austero e impressionante, como convinha à Comunidade, Três pastores compareceram à despedida solene, invocando as bênçãos de Deus. Cromwell recitou alguns textos das Escrituras.
Depois de toda essa festa santa, não foi senão às 17h que finalmente embar-
cou em sua carruagem, puxada por seis éguas de Flandres, com um estandar te branco desfraldado — branco, a cor da paz. Diversas autoridades rodeavam o
carro, cavalgando a seu lado uma parte do caminho. Encantado com à guarda
pessoal de oitenta homens, o Moderate Intelligencer — governista — relatou
serem todos oficiais, alguns coronéis, e provocou: “E agora, senhor de Ormonde, quando disseres “César ou nada”, ouvirás em resposta “república ou nada” (...).” Soaram trombetas. Piedosamente, alguém comentou que o barulho teria abalado as fundações da própria Charing Cross, salva desse destino pelos iconoclastas que a derrubaram no início da guerra civil.*º? Quarta-feira, 1º de agosto, foi dia de jejum na Inglaterra, a fim de atrair o favor de Deus para a expedição.
Oliver foi primeiro a Bristol — à sua chegada decretou-se feriado — € daí, através de Gales, passando por lugares de antigos combates, atingiu Milford Haven, porto do castelo de Pembroke, onde ficou. Prazenteiro, no fim da primeira semana de agosto, o Mercurius Pragmaticus cantava:
Noll ainda não partiu.
Ele ainda está em Gales,
Exortando seus rapazes
iu
Com frases santas e contos Sobre alegrias terrestres, +!
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Aguardando a chegada dos fundos prometidos, Cromwell foi informado de
duas novidades cruciais acerca da situação na Irlanda. A maneira como reagiu a tão imo, expediçã da vésperas às espírito, de estado seu avaliar elas nos permite portante para à causa da realeza quanto para sua própria reputação a partir daí.
A primeira notícia dava conta da rendição de Monk a lord Inchiquin, expondo o acordo de maio com Owen Roe O”Neill à crítica puritana. À opinião pública, com certeza, rejeitaria qualquer composição que envolvesse um celta católico — ainda mais esse, que usava um hábito dominicano por baixo da armadura.
Embora existissem razões militares mais do que justificáveis, e tudo parece comprovar que Oliver sabia delas e as aceitara, o fato era inadmissível. O jeito seria jogar a culpa sobre os ombros de Monk.
A decisão talvez partisse do Conselho de Estado, em Londres, mas
Cromwell aderiu a ela, entusiasticamente; a braços com o agravamento dos
problemas financeiros, uma vez que a tropa reivindicava o soldo antes de se fazer ao mar, ele não queria nem pensar na possível contaminação da sua cruzada pela sugestão de métodos não ortodoxos. Em carta datada de 4 de agosto queixou-se das deserções provocadas pela atitude de Monk, insistindo que o comandante derrotado devia assumir a responsabilidade que, frisava, “estava
bem de acordo com suas inclinações”. Coube aos Comuns votar um pedante pronunciamento que lamentava a conduta de Monk com O”Neill e, ao mes-
mo tempo, “recusava e renegava” quaisquer idéias de negociação com os rebeldes papistas irlandeses, “cujas mãos se tingiram de sangue inocente por lá”, A expedição não só seria divina, mas ainda vista como divina. Felizmente, as notícias mais importantes que chegaram a Milford Haven eram muito mais róseas. No dia 2 de agosto, o coronel Jones conseguira romper o cerco e infligir grave derrota a Ormonde, em Rathmines, nos arredores de Dublin. Sem munição e com apenas uns cinco mil soldados mal
equipados e pior alimentados, contra cerca de 19 mil, ele tinha obtido uma grande vitória, utilizando as táticas do Exército de Novo Tipo — audácia e surpresa. Mil realistas caíram prisioneiros e chegou-se a falar em quatro mil
mortos, uma cifra exagerada provavelmente. Contudo, a desproporção das forças atraiu sobre esse histórico combate uma sombra que lembrava Davi e Golias; após os longos meses de espera angustiante e de informes invariavel-
mente ruins acerca das condições dos sitiados, um final tão feliz deu a
Rathmines um pouco do sabor das vitórias do tempo da guerra, quando a Causa de Deus e do Parlamento terminava sempre vitoriosa. Agora, a expedi-
ção de Cromwell podia velejar segura para Dublin, abandonando a rota alternativa que se cogitara e que previa um desembarque mais ao sul.
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Foi com grande arrebatamento, portanto, que ele escreveu ao “ querido
lr-
mão” Richard Mayor, transmitindo-lhe “as felizes notícias”, já a bordo do navio Johx., pronto para zarpar no dia 13 de agosto . “Trata-se de uma indulgência extraordinária; tão grande e preciosa que até nos parece um sonho. O que se pode dizer? O Senhor enche nossas almas de gratidão, e que nossas bocas se encham de louvores a Ele — e nossas vidas também. (...) Rezai por mim. Que eu possa ser digno do Senhor em tudo que ele me ordenar.” Em outra carinhosa missiva, ele implorava a Dorothy, mais uma vez, que buscasse a Deus com fregiiência e ajudasse Richard a fazer o mesmo, acrescentando conselhos de avô para que cuidasse bem da saúde,* e que só saísse de carruagem, acrescentando: “As maravilhosas obras do Senhor nos revela m o quanto Ele está próximo de nós e nos atraem na Sua direção. Na Irland a, mais do que uma manifestação, fomos agraciados com uma grande bondade. Teu marido te falará a respeito. E importante ser grato numa hora assim” * É fácil entender essa súbita explosão de entusiasmo. Nos seis meses que haviam transcorrido, desde a morte do rei, sua virtuosa alegria se desvanecera. Para alguém habituado a buscar os favores de Deus e descobrir O sucesso nesses sinais, o período fora positivamente deserto, com poucos acertos e numerosos erros, bem ao contrário do que se poderia esperar do governo dos santos. Os ataques pessoais, embora descartados, não ajudaram em nada. Aqueles selvagens semanários realistas, cujo fogo só foi extinto pela censura imposta no outono, continuavam a martelá-lo numa linguagem incrivelmente
escorregadia. Sem falar nas crescentes acusações à sua ambição pessoal: uma
caricatura holandesa, lançada no próprio 30 de janeiro, intitulava-se “A coroação de Oliver Cromwell”. Em abril apareceu um panfleto chamado Um
caixão para o rei Carlos, uma coroa para Cromwell e um fosso para o povo. Uma obra satírica malvada, sob a forma de sermão, surgiu pouco antes
dele embarcar para a Irlanda; o texto imitava seu tortuoso estilo de discursar, misturando muitos dos tópicos favoritos dos que atiçavam escândalos sobre sua aparência — “É, verdade, tenho um fígado quente, o que produz à
vermelhidão do meu rosto, principalmente a do nariz, mas que é minha coragem também” —, com rumores a respeito da esposa de até mesmo da senhoria dos alojamentos que ele ocupava, perto do Pembroke, pondo na boca da mulher palavras que evocavam seu
a fonte da Lambert é castelo de hábito de
“Cromwell talvez já estivesse informado so bre a recente condicã ap a perde Dorothy, que ue após ição pr sua novo: da do neném, engravidara de imeira filha nasceu no final de março.
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autoflagelar-se diante de Deus — “Só falo para sua glória, que houve por bem hospedar-se num quarto tão vil, desprezível, desorganizado e sujo [suas
partes pudendas] dessa minha casa sem nenhum valor [seu corpo)”. Lilburne dirigira violentos ataques pessoais a Cromwell, e os pastores presbiterianos se excederam de tal forma nos púlpitos que ele chegou a defender algum tipo de controle legal que os impedisse de pregar contra o governo e a favor de Carlos II. Não faltaram irritações menores. Robert Spavin, seu secretário, envolveu-se nas lucrativas tramóias de uma quadrilha que vendia passes forjados com seu nome e timbrados com seu selo; demitido, o homem foi condenado
a cavalgar, montado de costas, de Westminster a Whitehall, levando pendura-
do no pescoço um cartaz que proclamava os crimes que cometera. Na Inglaterra, acabadas as novidades, restavam as dificuldades e as complicações. Do lado de lá do canal de São Jorge, porém, tudo poderia ser diferente. Lá, com certeza, ele reencontraria aquele senso original de missão que o animara no início da guerra ou aquela estranha sensação de ser conduzido por Deus que o tinha levado a envolver-se em todas as etapas cruciais da execução do monarca. A vitória de Jones trazia de volta a generosa bondade divina, indicando o caminho de uma nova guerra santa. À distância, mas com muito interesse,
Cromwell vinha acompanhando a situação irlandesa há cerca de oito anos. Antes de partir da Inglaterra, peticionara a favor daqueles que tinham sofrido nas mãos dos rebeldes e investira dinheiro, sob a forma de empréstimos, garantidos por terras irlandesas. Afinal, à testa de uma nova cruzada, ele pisaria aquela terra apontada pelos sinais e sobre a qual tinha imaginado tanto, quem sabe para liderar o assentamento de um novo povo de Deus e dar à Irlanda — a Ilha dos Santos — um significado inteiramente novo.
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13 Irlanda: O derramamento de sangue Esse foi um justo julgamento de Deus acerca desses bárbaros desprezíveis que mancharam suas mãos com tanto sangue inocente (...) evitar o derramamento de
sangue, no futuro, justifica nossas ações (...) agir de outra forma, só nos traria remorso e arrependimento.
CROMWELL, após a tomada de Drogheda
mar irlandês estava picado naquela região, e a viagem foi desconfortável.
Cromwell demonstrou não ser um bom marinheiro. Antes mesmo de sair do porto, segundo Hugh Peter, já era o mais enjoado dos homens que ele
vira em tais condições.! Fútil ou não, houve quem argumentasse que o estorvo afetou sua atitude com os naturais da ilha. Realmente, durante os nove meses da estada, Oliver não esteve bem de saúde, e tais inconveniências sem dúvida ajudaram a deprimi-lo ou exacerbaram seu comportamento. Às primeiras palavras que dirigiu ao povo de Dublin, no entanto, não revelaram ne-
nhuma novidade. A frota de 35 navios desembarcou, em Ringsend, no dia 15 de agosto. Sempre disciplinado, Ireton chegou dois dias depois, com outras 77 naus, aportando um pouco mais ao sul; depois ainda vieram mais barcos —— uma grande armada, sem dúvida. “Muito heroicamente recebido”, sob o troar dos grandes canhões que circundavam a cidade, conforme escreveu Whitelocke — valiosa fonte sobre a expedição irlandesa, na qual se alistara seu filho, James —, imediatamente Cromwell tratou de delinear a natureza da missão que o trouxera diante da-
quela multidão que o ouvia graciosamente de pé, com os chapéus entre as mãos. Descrito por um jornal inglês como “muito suave e plausível”, o disCurso salientou a necessidade de uma cruzada protestante:
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Como Deus o tinha trazido com segurança até ali, ele não duvidava que a Divina Providência restauraria as justas liberdades que haviam perdido; e todos aqueles cujo coração estivesse realmente
vinculado ao grande trabalho contra os bárbaros irlandeses, sedentos de sangue, assim como o resto de seus sequazes e confederados, e à propagação do Evangelho de Cristo, ao estabelecimen-
to da verdade e da paz, ao ressarcimento da nação que sangrava, à devolução de sua antiga felicidade e trangiilidade, todos esses encontrariam o favor e a proteção do Parlamento da Inglaterra e receberiam doações e gratificações correspondentes a seus méritos?
As ovações que recebeu devem ser colocadas no devido contexto: certamente,
a audiência compunha-se de uma maioria protestante, visto ter o coronel Jone s
envidado todos os esforços no sentido de expulsar os católicos de Dublin — dar guarida a um padre, por uma hora que fosse, constituía delito, sujeitando o autor à pena capital ou à perda da propriedade.* Assim, fica mais fácil entender que muitos tenham jurado viver e morrer com o tribuno, que de forma tão clara expusera sua intenção de restaurar na Irlanda tudo aquilo que os ingleses sempre esperaram dela: a paz e uma prosperidade lucrativa para a Inglaterra. A ênfase nessa
paz que já existira e, portanto, no retorno à normalidade, compunha a base da filosofia de Cromwell. Em Bristol, dirigindo-se a seus homens, ele tinha dito que
eles eram “israelitas”, responsáveis pela extinção dos “idólatras habitantes de Canaã” — um ponto de vista tipicamente inglês. O poeta Payne Fisher, alistado
nas fileiras do regimento de sir John Clotworthy, na época do levante de 1641, de-
dicou estes versos a um oficial, lamentando a perda da inocência da nação:
Quando nos encontraremos, novamente, senhor; e seremos capazes de restaurar Esses primitivos passatempos de que desfrutávamos antigamente?
De certa forma, a Arcádia fora rudemente perturbada pelas ações violen-
tas da população nativa, merecedora portanto da retribuição que cairia sobre *Tudo indica que alguns sacerdotes conseguiram passar pela rede. O padre Nicholas Netterville,; S. J., alega dE va teria jantado com Oliver e Jogado xadrez com ele, o que supunha
lhe conferir algum tipo
de isenção para rezar a missa impunemente: “Sou padre, e O lorde
general sabe disso. Portanto, que toda a cidade saiba que rezarei a missa aqui todos 08 =
dias.”
n
A história é Eur mente apócrifa; mas não deixa de ser curioso que Cromw ell sempre tenha se mostrado propenso a contatos Pessoa is com os católicos que denunciava, E
=
enquanto grupo religioso.
o
—
E
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ela ou, como diria Milton, os irlandeses, por seus próprios deméritos e provo-
cações anteriores, tinham “feito jus à vassalagem perante a Inglaterra”. Com o
passar do tempo,à lenda dos massacres irlandeses de 1641 crescera,* tornando-se amplamente aceita € dando substância moral a uma nova onda colonizadora, cujo propósito constava da declaração que o Parlamento fizera no mês de fevereiro daquele mesmo ano, indicando a necessidade de “replantar aquele país com muitas nobres famílias desta nação [a Inglaterra] e da religião protestante”.* Cromwell acreditava nisso. Historicamente, é claro, essa postura vinha de muito antes — a pacífica
Arcádia de Payne Fisher jamais existiu realmente. Edmund Spenser, em View of she State of Ireland [Perspectiva do Estado irlandês], expressara corretamente a
visão do inglês elizabetano. Refletindo com presciência sobre o “destino fatal” da Irlanda — seria o gênio do solo ou a influência das estrelas? —, ele obser-
vava que “nenhum propósito, qualquer que seja, que tenha em vista o seu bem prosperará ou produzirá bom efeito”. Era necessário, portanto, cortar os males da Irlanda pela raiz, antes que qualquer bem fosse plantado, “pois ramos corrompidos e galhos doentes devem ser podados primeiro, e o musgo daninho precisa ser limpo e removido a fim de que a árvore possa dar bons frutos”. Nos seus discursos e cartas de cruzado, Cromwell expressava não somente os pensamentos habituais de seus contemporâneos protestantes, mas ainda os das hordas de ingleses que o haviam precedido. E antevendo o amadurecimento de muitos “bons frutos”, oriundos de todo o investimento inglês em terra irlandesa, desde os “aventureiros”, de 1642 em diante. Por conseguinte, em 1649, não apenas ele mas O exército inteiro, que o seguia, estavam possuídos de uma “maravilhosa confiança” — conforme palavras de Ralph Josselin em seu diário. A combinação do zelo no proselitismo religioso com o lucro financeiro previsto os esti-
mulava bastante. Para isso, segundo o Mercurius Elenticus, Cromwell equipado para a guerra
cavalga como Guy de Warwick,
a fim de extrair uma Época de Ouro
de seus Slancos de ferro”...
Por isso, “o casaco amarelo substituiu as vestes negras nos púlpitos de
Dublin”, escreveu o mais amigável Moderate Intelligencer, posto que “usar bem as duas espadas é um grande mérito (...)”. Uma segunda declaração ao a
*Ver Capítulo 4.
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povo proibiu atitudes profanas, praguejar, beber e blasfemar, pr áticas comuns, segundo se imaginava; os costumes do “inimigo odioso” devi am ceder lugar a modos mais apropriados à Inglaterra puritana.' Todavia, da mente do militar experimentado não fugiu nem por um instante a idéia da campanha que viera empreender. Durante quase seis meses,
Cromwell insistira que era preciso equipar e pagar bem aos soldados. As primeiras declarações que fez ao povo da Irlanda não escond eram sua determinação de provar o valor dos homens que comandava com uma vitória incontestável, mas esses mesmos homens foram expressamente proibidos de fazer mal à “população do país”, que recebeu a oferta de um mer cado livre para seus produtos — que ninguém cogitasse daqueles sof rimentos inerentes ao aquartelamento gratuito. Além disso, eliminando uma grande limitação de forças anteriores, os suprimentos do exército in glês não dependeri am exclusivamente de Dublin. Tais afirmativas se comprovaram muito hábe is. Assim, tendo encaminhado as questões práticas e de conteúdo, Oliv er dedicou-se ao problema de dar prosseguimento à operação. Rathmines fora, de fato, um golpe terrível nos realistas confederados. Após a batalha, quando
Ormonde escreveu a Jones, solicitando a lista dos prisioneiros, obteve uma resposta sardônica: “Senhor, desde que expulsei o exército de V. Sa., não tenho a felicidade de saber onde estais, o que me impossibilita de entregá-la [a
lista].? Ao norte, porém, as forças coligadas mantinham-se muito fortes, sem falar no poder exercido em quase todo o sul pelos protestantes anglo-irlande-
ses e católicos irlandeses, temporariamente unidos no apoio ao rei. Seria in-
dispensável atravessar Drogheda, a cerca de cinquenta quilômetros de Dublin,
pela costa, e Cromwell partiu no dia 31 de agosto — o desfile do exér cito era um brilhante espetáculo em “vermelho Veneza”, conforme Ludlow descreveu nas suas memórias,” contrastando o úmido verdor daquela terra de past agens, regada o ano inteiro. Para eles, uma terra estranha .
De Dublin, os alvissareiros relatórios de John Owen, referindo-se à multi-
dão que costumava ouvir suas prédicas — “tanta gente e tão sedenta pelas Escrituras como eu jamais vi” —, na verdade só se aplicavam ao círculo relativamente estreito da capita 1º* acostumado aos hábitos e às riquezas
dos ingleses, de nada valendo para o restante do país. A Irlanda, apesar de todas as fantasias sobre o seu passado maravilhoso, era um país dife rente, e nem só em vitude da “Em
Irish Life in the Seventeenth Century, o dr. Ed
ward MacL Ysaght traça um para lelo entre aquela situação e a da Hong Kong atual, tão dife rente da China.?
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religião proscrita que a grande maioria de sua população tentava praticar.
Cromwell jamais saíra da ilha onde nascera — nem voltou a sair depois dessa
campanha — e estranhou o espírito daqueles lugares, nada parecido com o da Escócia, dotada de cultos, valores e prioridades bastante assemelhados.
A Irlanda, conforme Edmund Campion escrevera oitenta anos antes, tinha uma atitude “reticente”? face à civilização ocidental, acentuada pelo seu
'solamento geográfico, objeto dos comentários de todos os viajantes contem-
porâneos, e os vastos espaços abertos que pareciam compor o país. “Há pou-
cas cidades, muito distantes, umas das outras”, testemunhou o infatigável ob-
servador Fynes Morison, recomendando “um guia, que possa conduzir [o visitador] sem esforço”. Luke Gernon, um alemão que esteve lá em 1620,
identificou-a com “uma jovem mulher, verde de vontade de ser possuída”. Suas comparações não pararam por aí: em alguns lugares, rompendo o vazio, um castelo arruinado mais parecia o resto de um pastel de carne de veado, as fortalezas derrubadas, bolos de carne moída, as antigas abadias de pequenas
torres pontiagudas, carcaças de ganso.!” As comunicações, evidentemente, eram péssimas, e o correio, lento e ineficiente. Quase não havia carruagens — que, de qualquer forma, teriam muita dificuldade para trafegar naquele
terreno acidentado. De uma cidade a outra ia-se a cavalo ou de barco. À pirataria florescia e, na costa sul, completamente exposta, sabia-se de casos de populações inteiras capturadas e vendidas como escravos.
Uma região assim selvagem oferecia algumas vantagens, é claro: a Irlanda
era um país excelente para o esporte. A caça com falcões, tão popular quanto na Inglaterra, proliferava graças à quantidade de faisões, lebres e galinholas que esVoaçavam entre os arbustos que haviam substituído as antigas florestas. Sentindo a
falta das gralhas-calvas, corvos e pegas — também não havia rouxinóis —, o soldado inglês encontrava compensação nas águias-pescadoras e nos gaviões-pombo, que ele pouco conhecia, mas que abundavam naquelas terras. Além de tudo, havia muitos lobos, cada vez mais, tendo-se efetuado uma caçada pública em 1652 em Castleknock, atual subúrbio de Dublin, pagando-se seis libras por animal morto — Maldosamente, Cromwell vinculou o crescimento das alcatéias à expansão do clero católico. Pouco se ressentindo disso, o paraíso esportivo da aristocracia anglo-irlandesa continuou organizando corridas de cavalos, competições mistas de tiro — dizia-se que /ady Broghill atirava com espingarda de caça melhor do que muitos homens. Breve, a tropa compartilharia esses prazeres.”
A população das regiões agrestes tinha aparência, hábitos e costumes peculiaes, além da religião. Vivendo em cabanas, construídas nas faldas das colinas, que
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erguiam e abandonavam com a mesma facilidade — “as mais pobres que
Já VP,
segundo sir William Brereton, que passou pela Irlanda em 1630 —» Queimando um combustível feito de terra e esterco de gado, os homens se envolviam em
grosseiras capas de lã, enquanto as mulheres se cobriam com capuzes de linho, carregando entre os seios crucifixos atados a cordões negros — “sem vergonha de sua crença”. O contato prolongado com esses modos nativo s corrompeu os ingleses — pelo menos, assim consideravam os recém-chegados: alguns só se vestiam convenien
temente quando viajavam a Dublin. Sir Henry Piers, um baronete de Westmeath, concluiu que “a degeneração de muitas famílias inglesas” impedia a
correta educação do povo irlandês; entregar crianças peq uenas a amas, casar-se com nativos e adotar sua onomástica — Fitzsimmons,
McKuddery, Weysley,
McFalrene — só poderiam produzir resultados indesejados. “Mas o que esperar de homens que mudaram?”, indagava ele, furioso.!? No entanto, os irlandeses tinham muitas características agr adáveis: eram
generosos e hospitaleiros, alegres; amantes da música de harpa, bon s dançarinos e exímios contadores de histórias, principalmente sobre sua origem e genealogia. Possuíam, sem dúvida, um lado indulgente, sendo dados à beb ida e ao Jogo, pecados veniais do ponto de vista social, e algo brigões, talvez devido ao fluxo do “usquebagh” [uísque], ao qual os ingleses também atribuíam o “tempo chuvoso”. Na verdade, a maioria dos seus vícios derivavam de circunstâncias aleatórias. Preguiça, indolência e grosseria decorriam não raro da falta de trabalho; maneira “indecente” de vestir ou o hábito de dormir nus, da
pobreza. Sob o aspecto moral, seu nível mantinha-se na média dos demais po-
vos europeus, e é importante notar que nem mesmo por ocasião dos massacres de 1641 houve casos de estupro. Sua forma de vida, que tanto atraía Os imigrantes, não se distanciava muito dos costumes que os puritanos impuseram contra a vontade de boa parte da população inglesa. Porém, a mágica precisava de tempo para funcionar,
e Oliver Cromwell
não dispunha de tempo. À frente da expedição armada, ele marchou na direção do norte, convicto de estar liderando uma cruzada contra bárbaros, bêba-
dos, malvados e padres católicos, e nesse estado de espírito deu início ao cerco de Drogheda — Tredagh, segundo os ingleses —, na realidade Droched Atha, a Ponte e o Fiorde. Ironicamente, devido à sua localiza ção às margens do Boyne, a cidade tinha um estilo quase inglês. Brereton falou dela com o “ampla e espaçosa”, semelhante à Holanda, por suas ruas e canais. Batendo em retirada, Ormonde deixara sir Arthur Aston no comando de dois mil hoCromwell saqueasse Dundalk e as demais terras da região. Inglês e católico,
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Aston servira na Polônia, onde lutara contra os turcos, antes das guerras civis; em Edgehill, formara com as tropas realistas. Ciente da superioridade numérica do adversário — na verdade, cerca de oito mil soldados de infanta-
ria e quatro mil cavaleiros —, tencionava explorar as condições do terreno e
manter a posição; mesmo sem nenhuma expectativa de vitória, ousou dizer:
«Quem tomar Drogheda será capaz de tomar o inferno.” Contava, sim, com os dois aliados de todo cerco, sempre citados por Ormonde — o coronel Fome e o major Doença —, que o ajudariam a desgastar o exército parlamentar além de qualquer chance de recuperação.
De fato, a geografia de Drogheda era crucial para o sítio. Em torno da
cidade erguia-se uma formidável muralha de 2,5km, com cerca de seis metros
de altura e uma espessura que variava de dois metros na base, a setenta centí-
metros no topo. À área mais importante ficava ao norte do rio, mas o perímetro urbano estendia-se até o extremo oposto, ainda dentro dessas impressio-
nantes fortificações, sobre uma colina que teria de ser galgada pelos atacantes que viessem por ali. Encaixada no muro de proteção, a sudoeste, estava a igreja de Santa Maria — do alto de seu campanário, descortinando os arre-
dores, os defensores podiam orientar o tiro da artilharia — e, além do paredão, uma ravina muito inclinada, conhecida como “o Vale”. Bem guarnecido, o portão Duleek, entrada sul da urbe, ainda contava com uma defesa
acessória: uma imponente colina artificial, chamada Mill Mount.* Chegando pela próxima Tecroghan, Cromwell não teve outra escolha a não ser delinear sua linha de batalha e instalar as bocas de fogo ao sul de Drogheda. Graças aos preparativos de que cuidara pessoalmente, contava com peças poderosas, não menos do que seis canhões de cerco e 12 peças de cam-
Po, entregues pelo Conselho de Estado no dia 12 de julho e postos sob o co-
mando de seu controlador de artilharia, o capitão Edward Tomlins. Apesar de toda essa vantagem e do volume de tropas superior, ele tinha esperanças de obter uma rendição sem luta — perspectiva que se fortalecia com o fato de Seu exército já acolher alguns ex-comandados de lord Inchiquin. Assim, ele tratou de manter a mais rígida disciplina: dois homens apanhados, no caminho de Dublin, roubando galinhas de uma mulher, foram sumariamente en-
forcados.!! No geral, os camponeses sentiram-se felizes com a aproximação dos soldados parlamentares, que não regateavam os alimentos adquiridos. “
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Tanto a igreja, como a colina, o “vale” e a própria muralha, embora em boa parte demolidy continuam a ser visitados, o que facilita a compreensão do cerco, mostrando claramente
à Posição defensiva, particularmente forte na zona sul da cidade.
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No dia 10 de setembro, Cromwell tentou um primeiro contato oficial com sir Arthur Aston, solicitando que entregasse a cidade uma bandeira ) içando branca, pois “tendo trazido o exército do Parlamento da Inglaterra a este lugar, a fim de forçá-lo à obediência e evitar o derramamen to de sangue (...) caso isso
seja recusado, vós não tereis motivo para me culpar” « Aston recusou, hasteando uma bandeira vermelha — a cor do sangue, Então, instalados sobre a colina atualmente conhecida como CromwelP's Mou nt, falaram os canhões. O enfraquecimento da magnífica estrutura da muralh à somou-se ao bloqueio do porto»
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defendido pelas tropas de sir George Ayscough — cerca de 2.200 soldados de infantaria e 320 cavaleiros, na maior parte católicos — que, sem poder contar com reforços, armas e provisões escassas, não podia sequer tentar uma surtida; pior: estava isolado da cidade. Dentro dos muros, refletindo os problemas que
as diversas facções irlandesas não haviam superado nos sete anos anteriores, por isso que não chegaram a uma aliança sólida contra o inimigo comum, alguns defendiam a rendição. A própria avó de Aston, que a despeito da idade avançada não tinha a mínima firmeza, encabeçou um conluio de mulheres para atrai-
çoar Drogheda. O neto reagiu de forma bem pouco sentimental, expulsando todas as senhoras, sem exceção, e ameaçando “reduzi-las a pó”. Posteriormente, mais cavalheiresco, Ormonde limitou-se a confinar /24y Wilmot em Mellefont, “em função da consideração e respeito que temos por sua idade e qualidade (...)2.!4 O incidente, entretanto, revelou o dilema em que Aston se encontrava. As regras da guerra, no que se refere a cercos, eram bastante claras. Se um comandante se recusasse a aceitar uma proposta de rendição e a cidade fosse tomada de assalto, isso poria em risco não só a vida dos soldados, mas a de todos aqueles que pudessem ser considerados combatentes. O rompimento das muralhas constituía-se num momento crucial — a partir daí, seria impossível pedir ou dar quartel. Não havia mistério algum nisso. Durante longos períodos, os homens permaneciam sentados diante de fortalezas inóspitas, desperdiçando provisões e sujeitos a fome e a doenças; Aston e Ormonde fizeram planos de
resistência prolongada, e Cromwell admitiu que suas tropas, acampadas em tendas frias e úmidas, sofreram o diabo, naquele período de intempéries. Um co-
mandante sitiado só baixaria a guarda caso tivesse um incentivo muito bom nesse sentido — a regra de não dar quartel após a derrubada dos muros aguilhoava-o com certeza. Na expectativa de salvar muitas vidas, guarnições se renderiam rapidamente, encurtando os cercos e tornando as vitórias breves e incruentas. Na época ninguém contestava isso. Meses mais tarde, ainda na Irlanda, lord Broghill — quem o consideraria desumano? — fuzilou os oficiais de Castleton, “único meio de atemorizar os defensores desses pequenos castelos, levando-os a não serem tão peremptórios na sua defesa”. Um século e meio dePOIS, no tempo de Wellington, a norma ainda vigorava, induzindo o próprio duque a dizer que “a prática de recusar quartel a uma guarnição que resiste a um assalto não é um derramamento de sangue inútil”.!5
- Portanto, quando Aston comunicou a Ormonde que seus comandados ha-
viam tomado a decisão unânime de “morrer antes de entregar a cidade”, aquilo não foi uma simples ostentação heróica, pois eles bem podiam ser chamados a
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honrá-la na prática. A população civil não tinha outro remédio senão sub me. ter-se às duras consequências de tais gestos — daí a perple xidade de Wilmot;
na confusão do saque, quem distinguiria combatentes e não-comba tentes? As teorias contemporâneas, porém, não levavam em conta rei vindicações huma.
nitárias de fracos e desamparados. Horrorizado com a mortandade que resul. tara da Guerra dos Trinta Anos, Grócio, em De jure pacis et belhi [Sobre o direito da paz e da guerra], trabalho inicialmente impresso em 1625, pretendeu limitar as vinganças originárias dos conflitos armados, embora ainda postulasse a legalidade de se matar prisioneiros e, mais, a impunidade do “massacre de
mulheres e crianças (...) aceito pelo Salmo 137 — “Feliz daquele que toma e rompe em pedaços teus filhos contra a tempestade””. Os mor ticínios de
Magdeburg tinham ocorrido há menos de vinte anos, e há quatro apenas,
diante de Philiphaugh, Leslie se permitira algo comparável. Mais tarde Monk cometeria atrocidades, em Dundee, sem que isso maculasse sua reputação. De início só se pensou na proteção dos soldados. Em Drogheda, naquele mês de setembro de 1649, muitos homens e mulheres inermes estavam envolvidos
numa situação de alto risco, de resto indesejável a quem quer que fosse. O primeiro canhoneio derrubou a torre do campanário da igreja de Santa Maria. Decidiu-se, então, segundo palavras de Cromwell, “fazer o máximo,
no dia seguinte, para abrir brechas que permitissem o assalto e, com a ajuda de Deus, atacá-las”. O objetivo desse acometimento seria à igreja mesma, uma posição difícil de conquistar, mas de posse da qual a infantaria poderia conter o inimigo até receber os reforços da cavalaria. Nenhum outro ponto
oferecia tal vantagem. A arremetida começou às 17h do dia 11 de setembro.
Desde o início, porém, o plano não se desenvolveu muito bem — as brechas não davam passagem aos cavalos, o que obrigou as tropas parlamentares a Se
defrontarem com as forças combinadas do adversário, que opunham uma
encarniçada resistência. No comando da ofensiva, o coronel James Castle levou um tiro na cabeça e morreu; fim semelhante encontraram diversos ofici-
ais e soldados “que cumpriam seu dever” — à expressão é de Cromwell. Isso
mais a temerária coragem que Deus dera aos defen sores — a contra gosto, ele reconheceu o fato — e a “topografia do loca)” fizeram com que se ordenassem a retirada e o abandono da brecha, temporariamente.!s Pode-se especular que tenha sido esse o dado que o empurrou para a violência, no momento em que toda a sua estratégia militar estava na balança. Alguns homens conseguiram atravessar o portão Duleek, abatendo cerca de quarenta a cinquenta oponentes, mas ainda longe da cidade propriamente dita. Õ
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segundo assalto, mais sangrento que o primeiro, teve desfecho idêntico: os in-
gleses foram rechaçados. Então, percebendo-os sem ânimo, Cromwell juntou-se a eles, sustentando a posição até a chegada dos reforços comandados pelo coronel Ewer. Finalmente, cerca de sete mil ou oito mil homens penetraram pela muralha, € a igreja e as trincheiras em volta dela caíram. De acordo com a evidência prestada a Ormonde, posteriormente, nesse instante foi oferecido algum tipo de quartel, aceito por certo número de oficiais e soldados irlandeses, que depuseram suas armas. No calor da batalha, nada ficou muito claro. É verdade que o coronel Wall, comandante irlandês,
fora morto, e podem ter ocorrido ofertas individuais de clemência, levando os defensores a acreditarem que seriam poupados. Duas coisas, no entanto, são certas: primeiro, que isso seria contrário às leis da guerra em vigor; segundo, que não houve nenhuma proposta oficial nesse sentido. Em suas memórias, Ludlow nega-o explicitamente. Whitelocke ouvira que “todos teriam concordado que não se daria quartel”.!” Cromwell, mesmo que tivesse sido informado a respeito, dificilmente concordaria. Aquela altura dos acontecimentos ele estava tomado de paixão. Depois de perder a posição da igreja, Aston e os que ainda tinham força e disposição para prosseguir na luta contornaram a colina e trataram de se reorganizar sobre o Mill Mount, entrincheirando-se nas grandes e planas fortificações que ali havia. Acossados pelas tropas do Parlamento, tentaram render-se, mas Cromwell, furioso, correu até lá e ordenou que fossem passados à espada. Assim, morreram praticamente todos, inclusive Aston, espancado com sua pró-
pria perna de pau — equivocadamente, os soldados imaginavam que escondia
nela moedas de ouro. Sedentos de sangue, os homens não tiveram quem os
contivesse e, inundando as ruas de Drogheda, alcançando a sua zona norte,
deram fim a umas mil vidas. Muito tarde se terá pensado em levantar ou derrubar a ponte levadiça que separava as duas partes da cidade, e as ordens de Poupar os civis desarmados só se cumpriram oficialmente.* Muita gente pereceu por acaso, ou acidente, ou porque a linha de demarcação entre combatentes e não-combatentes fosse impossível de delinear — em meio à excitação do saque, qualquer um, militar ou civil, trataria de empunhar uma arma, desde que a tivesse a seu alcance.
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Deve-se frisar que Cromwell não deu nenhuma ordem direta São civil. Ao relacionar as baixas militares, em carta à Câmara nou o assunto, e somente quando a impressora do Parlamento sob a forma de panfleto, ele acrescentou as palavras: “E muitos
para o massacre da populados Comuns, não mencioestava prestes a divulgá-la, habitantes.”!º
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Os frades e padres de Drogheda tiveram tratamento especial, extremo
pode-se dizer. Ninguém deu ordens para que fossem poupados. Tra tados como
combatentes, alguns deles, pobres infelizes, talvez tenham lutado mesmo em de-
fesa de sua causa. Quase todos morreram. Mais terrível ainda foi a sorte dos defensores da Igreja de São Pedro, na zona norte da cidade, que também não quiseram se render. Os últimos, agrupados no campanário, acabaram sen do queimados vivos, quando se pôs fogo nos bancos de madeira. Transformado numa tocha humana, um dos míseros gritava: “Que Deus me amaldi çoe e me
humilhe! Estou queimando! Estou queimando!” Sem o menor traço de emoção,
Cromwell narrou o fato em seu relatório de batalha. Um deles conseguiu saltar
da pira e quebrou a perna, tendo sido poupado “pelo caráter extraordinário da coisa”. Ão anoitecer ainda havia homens escondidos no alto das muralhas, e pretendeu-se deixá-los lá, a fim de que cedessem à fome, mas como alguns teimavam em atirar, matando soldados parlamentares, Cromwell ordenou que ao serem capturados os oficiais “levassem pancadas na cabeça” e que se matasse um de cada dez homens* — os restantes seriam enviados a Barbados. Sir Edmund Verney, que teria recebido quartel, foi retirado da sua presença e morto. No dia seguinte, quando jantava com /ord More, o coronel Boyle recebeu um aviso de que sua hora havia chegado: um soldado entrou na sala e cochi-
chou ao seu ouvido. Boyle levantou-se e, ante o espanto de /ady More, que lhe perguntou aonde ia, respondeu: “Morrer, madame.”!º No total, entre duas mil e quatro mil pessoas morreram em Drogheda: Cromwell optou pelo número menor e o dr. Bate pelo maior — o veredicto oficial fixou-se no meio-termo: três mil. Mas a maneira como Oliver encarou os fatos ficou patenteada no relatório de batalha que ele enviou ao presidente dos Comuns, dizendo: “Estou convencido que esse foi um justo julgamento de Deus acerca desses bárbaros desprezíveis, que mancharam suas
mãos com tanto sangue inocente (...) evitar o derramamento de sangue, no futuro, justifica nossas ações (...) agir de outra forma só nos traria remorso € àr-
rependimento.” Suas proverbiais exortações ao Parlamento, atribuindo o mé-
rito das vitórias a Deus, dessa feita pareceram indicar que Sua misericórdia
oscilara um pouco: “Nossos homens foram levados a um ataque tão corajoso por obra do Espírito Santo, que lhes deu coragem e a retirou, entregando-a “Foi esse tipo de represália que deu ori gem ao verbo “dizimar”, sig nificando a morte de poucos — em geral, os amotinados ou em sinônimo de devastação.
covardes
—
e que
a linguagem
popular
convertel
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ao inimigo e à retirando dele também, para devolvê-la finalmente a nós, O
que permitiu nosso sucesso (...) portanto, é bom que somente Deus fique com toda à glória.”?? Resumindo seu ponto de vista de forma brutal, ele assegurou
que agora OS responsáveis pelos massacres de 1641 estavam enterrados sob os muros de Drogheda, tendo merecido por completo seu destino ou, como dissera Jones, tinham sacrificado a flor do seu exército aos fantasmas dos ingleses que haviam assassinado. Além disso, a carnificina fora uma ação excelen-
te, que ajudaria o avanço da paz na Irlanda.
Deixando de lado a incorreção histórica do primeiro argumento, o segundo, se bem que implacável, possuía força. Ilustrando nitidamente as lições de
um cerco, Drogheda espalhou o terror entre as guarnições menores, fazendoas tender à rendição. Não foi preciso endurecer sua mensagem a Dundalk — bastou a Cromwell exigir que os defensores baixassem as armas, “para impedir o derramamento de sangue”. Com a guarnição de Trim, logo a seguir, não foi diferente. Em suas memórias, Ludlow chegou a comentar “que a extraordinária severidade tinha por objetivo desencorajar (...) qualquer resistência”. Em carta ao rei Carlos II, Ormonde frisou esse mesmo aspecto: “Não se pode imaginar o terror desencadeado por esses acontecimentos, e como o poder dos rebeldes [isto é, os ingleses] atingiu a população (...) tão estupefata que tem sido grande a minha dificuldade em persuadi-los a se defenderem, tendo em vista sua própria preservação.” Henry Fletcher, numa biografia reativamente imparcial de Cromwell, escrita no século XVII, defendeu-o da acusação de crueldade, afirmando que ele agira como cirurgião, sangrando uma veia a fim de curar “o Corpo da Nação”. Em setembro de 1649, apesar da vitória de Rathmines, a situação dos ingleses estava longe de ser segura, € foi Drogheda que demonstrou a vontade que Cromwell tinha de vencer, na realidade, permitindo que ele alcançasse muito mais do que houvesse querido no início da expedição. Como disse Whitelocke naquele período, “se o Parlamento tivesse perdido uma única batalha, todos os que se vinculavam a ele estariam à beira da ruína” 2! Infelizmente, porém, a história não acabou aí. Transferindo as hostilidao Para o campo da propaganda, Ormonde comparou os eventos do saque S inumeráveis imagens de desumanidade contidas no Livro dos Mártires ou na Relação de Amboyna”,2 cotejos que muito emocionavam os ingleses do século XVII, referindo-se à obra protestante de Foxe e às atrocidades dos holandeses contra os colonos ingleses, em 1623, nas Índias Orientais. Da parte dos irlandeses, as histórias se avolumaram, incluindo virgens assassinadas,
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Jesuítas cravados em estacas, crianças usadas como escudos nos a taques aos templos.* Propagand
a é uma coisa, culpa pessoal é outra — ao biógrafo só interessa a segunda. Não se pode fugir à conclusão de que Cromwell perdeu o autocontrole, em Drogheda, após o fracasso dos primeiros at aQ ues e viu tudo vermelho — literalmente, o sangue de seus camara das —, sendo tomado
por um daqueles súbitos e cataclísmicos acessos de fúria que mais tarde o levariam a dissolver o Parlamento pela força, Jogando no lixo a bugiganga
histórica. Boas razões militares, ele as possuía, mas não foram elas que o ani-
maram a agir naquele momento, durante aquele dia e aquela noit e de incalculável mortandade, que se destaca muito, completamente estranho ao seu comportamento misericordioso normal, de soldado inclusive, e que em outras circunstâncias lhe teriam causado “remorso e arrependimento”. Assim, de forma tão rápida, no calor de um instante e numa terra estr angei-
ra, é que ocorreu o incidente que iria manchar o nome de Oliver Cromwell na história por mais de três séculos. Mas é importante observar que na Inglaterra as notícias provocaram um enorme prazer e júbilo. Dos púlpitos, os pastores
asseguraram suas bênçãos, e o dia 30 de outubro foi um dia público de ação de graças. Mobilizou-se um novo corpo de tropas a ser enviado, através do canal, para a Irlanda. Publicamente, só ecoaram aplausos satisfeitos: os malvados rebeldes irlandeses tinham recebido sua justa recompensa. Com Drogheda, Dundalk e Trim vencidas, Cromwell atormentou um pouco Meath e Westmeath, enquanto esperava notícias do coronel Venables, no Ulster. Talvez tenha visitado Trim ou Ballinlough, mas com certeza passou pelo castelo
de Trubly. Entre as muitas lendas sobre esse período, a mais destacada é a que narra a captura de lord Plunkett, que estaria dando de beber a seu cavalo, no fiorde, quando viu na água o reflexo da fisionomia ameaçadora do inglês e puxou da espada para lutar, mas em vão; condenado à morte, o filho do conde de Louth pediu que lhe devolvessem a espada, a fim de perecer combatendo contra
dois adversários entre os oficiais. Comovido com sua coragem, o general concedeu-lhe o perdão, à condição de que sempre houvesse um Oliver na sua famflia. Os detalhes dessa linda história discrepam da realidade: desde o primeiro conde de Louth, cem anos antes, já existia mais de um com esse nome na estirpe.2 No entanto, o trânsito de Cromwell pela Irlanda foi assinalado por várias *Nesse particular, o que se soube é que Oliver se apieda ntava sugar te que bebê, Piedara de um o leite do peito de sua mãe morta,
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narrativas de clemência unida à coragem pessoal, mais agradáveis do que os
contos endurecidos e cruéis. As notícias de que Venables tinha capturado com poucas perdas Carlingford e Newry, e mais tarde Belfast, chegaram logo de-
pois; com st” Charles Coote estabelecido em Antrim, a região norte estava se-
gura. Era tempo de retornar ao sul, onde havia a expectativa de uma resistência
mais obstinada nos portos marítimos de Leinster e Munster.
Antes, porém, Cromwell tinha que encontrar-se com a esposa em Dublin;
além do prazer de sua companhia, ela trouxera grande quantidade de utensílios domésticos e móveis. De acordo com o embaixador de Veneza, vinha disposta a
«desfrutar (...) do título e da posição de vice-rainha, no caso do marido ser
bem-sucedido em seus planos [a subjugação da Irlanda]”. Talvez tenha sido uma parte desse mobiliário que Christopher Tothill tomou, numa surtida contra as tropas de Oliver, nos desfiladeiros de Wicklow, juntamente com seu cavalo de batalha; posteriormente, o flibusteiro recusou um resgate de cem libras pelo animal, preferindo guardá-lo como lembrança.” Afora isso, a expedição percorreu a costa de Wicklow sem maiores atropelos; Cromwell dispunha de uma força muito bem equipada, e a frota os acompanhava, majestosa. À caminho de Wexford, no extremo sudoeste da Irlanda, atravessando os bosques que margeavam o rio, ele tomou o castelo de Enniscorthy, pequena fortificação situada numa ordeira cidade ao lado de um cais, verdadeira miniatura de Drogheda, e que se rendeu sem um golpe sequer. Wexford, dotada de “um grande e espaçoso porto”, segundo sir William
Brereton, “capaz de receber milhares de velas”, tinha enorme importância do
ponto de vista dos invasores. Porta natural de entrada e saída para o continente, habitado por uma população suspeita de conivência com os piratas, tudo
Isso impunha sua conquista. E dado que o clima estava prestes a mudar, o
Hermpo se tornando mais úmido e ventoso, a operação deveria ser rápida. A doença do país” [disenteria] atacara o exército e era preciso encontrar um
local adequado ao aquartelamento, durante o inverno. A vanguarda das tropas
alcançou a cidade no dia 1º de outubro, e o restante 24 horas depois: cerca de Sete mil soldados de infantaria e dois mil cavaleiros, que bivacaram num descampado a noroeste, “praticamente inundado pela chuva e pelo orvalho”. Uma narrativa anônima, creditada por alguns ao regicida Robert Wallop, conta que foi preciso esperar que a tempestade amainasse, antes de descarre-
&ar os canhões de cerco e sua munição.?
Em Wexford, muito mais do que em Drogheda, a separação entre o go-
verno militar e a população civil era nítida. Na verdade, havia uma forte ten-
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dência a favor da rendição imediata, e só a chegada do coronel David Si nnott, no comando de 1.500 homens, reforçara o ânimo dos hab itantes, Ainda assim, os dignitários civis inclinavam-se para a paz e, conf orme| o militar m ando u dizer a Ormonde, estavam “propensos a capitula r € ace itar as condições d o inimigo”. Muitos católicos preferiam Cromwell à Confed eração e, liderados
por Hugh Rochford, tentaram negociar; o prefeito e seus conselheiros não esconderam seus sentimentos, oferecendo roupas, aguard ente e cerveja. A deso-
cupação do forte Rosslare, que guardava o por to — “um presente dos céu n Ss segundo Cromwell —, avivou as esperanças de ocupaç ão pacífica,
Sinnott, no entanto, era um otimista. Cercada de muralhas excepcionais, com quase sete metros de altura, além de proteçõe s de terra de até seis
metros de largura, a cidade ocupava toda a extensão do porto. No extremo sul, fora dos muros, havia um castelo. E a barcaça que fazia a ligação com o norte estava em boas condições, podendo transportar ref orços. Confiante, ao receber a primeira mensagem de Oliver — “o derramam ento de sangue pode ser evitado e a cidade preservada da destruição” — ele sug eriu cessar as hostilidades. A resposta foi um ultimato que se esgotaria ao mei o-dia — “nossas tendas não são tão boas quanto vossas casas” —, cabendo às delegações, a partir daí, discutir apenas os termos da rendição. O coronel exigiu que isso fosse feito “com honra” » Pois do contrário preferia a morte, é propôs uma ampliação do prazo até as oito horas da manhã seguinte. Então, Cro mwell mandou desembarcar os canhões Nesse exato momento, trazidos pela barcaça, chegaram /ord Castlehaven e 1.500 cavaleiros, e, embora Sinnott se apressasse em negar que estivesse aguardando essa ajuda, ele insistiu na dilatação do prazo, alegando a necessi-
dade de pôr o camarada ao par das iniciativas já tomadas. Furioso com a evi-
dente procrastinação, Oliver demorou três dias para deslocar suas tropas € posicionar os canhões sobre Trespan Rock — hoje conhecida como forte de
Cromwell.* Os disparos abriram buracos nas estruturas do castelo e “o estômago do governador não resistiu”: ele voltou a propor negociações.” A aproximação de Ormonde, com mais quinhentos soldados de infantaria € cem cavaleiros, levou Sinnott, mais uma vez, a recusar a rendição incondicional, reivindicando liberdade de culto para os católicos, o direito de evacuar seus homens carregando todo o armamento e uma indenização a ser paga à população,
* Atualmente, o espaço é utilizado pela criançad : cadeiras. a dos conjj untos residenciais ja! próx imos com o local de brin
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compensando-a por suas perdas — o que certamente incluía a pirataria. Considerando a situação indiscutivelmente inferior do adversário, Cromwell contrapropôs libertar Os soldados e suboficiais, que partiriam com o que pudessem levar, desde que prometessem jamais erguer-se em armas contra o Parlamento; os oficiais teriam quartel, mas seriam detidos. Quanto aos habitantes, ele prome-
teu que não haveria nenhuma violência contra os seus bens e que protegeria a
cidade do saque. Na época, ninguém poderia negar a generosidade desses termos nem a seriedade com que foram encaminhados.?
No entanto, devido a “uma providência inesperada” — eufemismo de
Cromwell —, um certo capitão Stafford, no comando do castelo de Wexford,
aproveitou os entendimentos em curso e entregou sua posição, adjacente à muralha, no lado sul da cidade. Descrito como um “jovem preguiçoso e inútil, sem nenhuma prática militar”, terá sentido que seu “estômago” estava pior do que o de Sinnott ou pretendeu ser “tratado corretamente” pelo inimigo — de um jeito ou de outro, as forças parlamentares foram presenteadas com uma oportunidade ímpar de penetrar no perímetro urbano e submeter seus teimosos defensores. À correspondência de Oliver deixa claro que ele pretendia evitar o saque, a fim de manter o casario no melhor estado possível para o aquartelamento de inverno. À narrativa que se segue é dele próprio.” Quando seus homens apareceram no alto da amurada, o inimigo fugiu, diante do que os soldados parlamentares correram na direção da cidade, carregando escadas, e a assaltaram. No local do mercado, após vencer a dura resistência do inimigo, mataram todos os que viram pela frente. Dois barcos que tentaram escapar, repletos de soldados, afundaram, causando o afogamento de uns trezentos deles. Acredito que, no total, o inimigo não perdeu menos de dois mil homens; do início ao fim do cerco, nossas perdas podem ter chegado a vinte.
Essas severas palavras resumem o que seria argiido contra sua reputação —
“ma mancha maior do que Drogheda, onde pelo menos ocorrera uma resistêncla tenaz e alguns de seus oficiais haviam sido mortos; em Wexford, os soldados
“Biram como desatinados, sem nenhuma ordem sua ou de qualquer outra dos Seus lugares-tenentes para que o fizessem ou para detê-los. Mais tarde, bastoulhes refletir sobre a malvadeza dos católicos locais, obrigados a “responder com “sangue pelas crueldades praticadas contra numerosos protestantes pobres”. Ss
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Das atrocidades católicas de que recentemente ficara sabendo, ele rela-
cionou duas, relatando a morte por afogamento de sete ou oito protestantes lançados ao mar dentro de um barco que fazia água, e de outros tantos que teriam sido trancados numa capela, onde pereceram de inanição. A piedade
que demonstrava diante de tais fatos contrastava com a ausência abs oluta de emoção face ao desaparecimento de centenas de católi cos — uma dicotomia total, surdez mesmo, que o impedia de ouvir as qu eixas igualmente
humanas da população que considerava bárbara e cruel. Deus fiz era “um Julgamento justo sobre eles [os habitantes de Wexford], expond o-os aos soldados (...)”. Só lamentou os excessos que provocar am danos materiais: “A moderação lhes teria sido mais útil.” O local era excele nte, reconhecia ele, ao final, “bem situado e seguro”, adequado a um lucrativo comércio de pesca. Após a fuga dos antigos moradores, “teria sido ótimo que um povo honesto viesse e plantasse aqui”, aproveitando-se das muitas prop riedades vazias. Os detalhes sobre o saque de Wexford apareceram mais tarde, complementando o breve relato de Cromwell. Há o testemunho do bispo de Ferns, o dr. Nicholas French, que soube da morte de seu sacristão e jardineiro, um rapaz de 16 anos, assassinado no palácio episcopal, e que padres foram chicoteados e
lançados nos donado para uma religião nificina, em
esgotos — seu próprio capelão recebera seis facadas, sendo abanmorrer, esvaindo-se em sangue. Os sacerdotes — soldados de odiada — tiveram o mesmo tratamento dos combatentes. Na carMarket Cross, onde muita gente se concentrara, fugindo através
das ruas estreitas, morreram muitas mulheres: Heath fornece uma descrição terrível de duzentas, dentre as quais algumas damas de alto nível, implorando misericórdia “com olhos charmosos cheios de lágrimas”.*'! Reivindicando in-
denizações, após a Restauração, a municipalidade relaciona 1.500 mortos civis, além dos soldados irlandeses.** *Existe no local, hoje conhecido como Bull Ring, uma placa que lemb ra o massacre. Nela se lê: “Considerou-se justo colocar aqui esta placa a fim de que fosse lembrada a morte de cinco padres e dois irmãos franciscanos, e numerosos cidadãos massacrados por Oliv er
Cromwell, em 11 de outubro de 1649,” Na parede externa da igreja franciscana existe uma pedra que contém o relato da matança, os nomes dos sete sacerdot es assassinados, al-
guns ajoelhados diante do altar, outros ouvindo confissões — dois deles se chamavam Sinnott e outros dois tinham o nome menos glorioso de Stafford. **Os State Papers, Irish Series. Charles II, vol. 307, nº 65, BR.O, dão conta de que “entre os demais, o referido governador perdeu a vida, e outros soldados, e 1.500 habitantes”. Por
equívoco, posteriormente corrigido, dá-se apenas o número das mortes civis.?
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Naquele dia, em Wexford, o catolicismo não foi somente uma passagem para a morte. Houve histórias de santidade in extremis: o sangue do padre, que seu carrasco nunca mais conseguiu lavar; o hábito do monge moribundo, que as balas não conseguiam penetrar; os soldados ingleses que adoeceram e morreram, após terem vestido a roupagem dos frades. Perto da hora do pôrdo-sol, uma bela mulher foi vista, subindo aos céus, justo acima do lugar
onde certo número de religiosos perecera.* Ignorando essas histórias consolatórias, os puritanos previam “uma congrega-
ção do povo de Deus, que deverá ocupar terras e casas abandonadas”. Todo entusiasmado, Hugh Peter escreveu, no dia 22 de outubro, sobre os milhares que “vi-
rão da Inglaterra, a fim de ver esse trabalho, que eu espero seja o cumprimento
de profecias”.'* Um panfleto inglês, impresso no final de 1649 em Londres, repercutia as palavras de Cromwell: “Foi uma providência maravilhosa que, estando prestes a se render, tal possibilidade lhes tenha sido negada.” Fora a Providência que obrara no sentido de tornar Wexford imprestável para o aquartelamento! Embora admitindo a inconveniência do saque, Wallop entendeu que “Deus tinha mais desavenças com eles [os habitantes da cidade] do que nós, por isso que ordenou aquilo”, ou seja, a vontade divina determinara que eles não usassem a cidade como “retiro invernal”.* Cromwell pensou o mesmo. Não queria o saque — e Sinnott foi imprudente, sem dúvida, dada a precariedade de sua situação —,
mas, vendo-o consumado, permitiu que o ódio que sentia contra os irlandeses e a
convicção acerca de sua iniguidade descessem como um manto, encobrindo tudo com a proteção de uma “providência esperada”.
De Wexford, rumando para oeste, alcançou New Ross — felizmente, o tempo tinha melhorado — e fez chegar às mãos de sir Lucas Taaffe a mesma mensa-
gem de sempre, falando sobre o “derramamento de sangue” que gostaria de evitar. Os canhões fizeram alguns disparos antes que a rendição fosse anunciada.
Mostrando-se um bom cumpridor de promessas, Oliver permitiu que os solda-
dos abandonassem a cidade com suas armas, munições e provisões, e declarou os habitantes livres de “ataques e violências”. Houve, entretanto, um momento delicado, quando Taaffe solicitou liberdade de consciência em nome da popu-
lação. Cromwell respondeu: “Não me envolvo com a consciência de homem algum. Mas, se por liberdade de consciência entendeis o direito de rezar a missa, é melhor deixar as coisas claras e fazer-vos saber que onde o Parlamento da Inglaterra tiver o poder isso não será permitido.”'* Hoje em dia tais palavras podem aparentar certa ironia, visto ostentarem uma tolerância
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”
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claramente limitada. Naquela época, porém, o remoque terá
evidente, posto que a missa católica estava proibida em ambos terra e Irlanda. A frase de Cromwell, portanto, tin ha absoluta precisão. A distin. ção entre
liberdade de pensamento e liberdade de ação, que ime diatamente trouxe à baila a questão da legalidade e da ordem, era bastante gen uína. Durante o Pro. tetorado, os católicos ingleses haveriam de entender isso bastante bem. Apesar da “misericórdia sazonal” concedida a Ross e do bom augúrio da reconquista de Munster, a expedição irlandesa estava começando a pagar um preço que não incluía apenas vidas. Doente e mui to “enlouquecido”, conforme disse em carta a Richard Mayor, Cromwell sofreu provavelmente seu primei
ro ataque de malária.* Na mesma epístola, um tanto melancólica, ele se revelou
deprimido com Dick, recomendando ao sogro que o exortasse “a se preocupar mais e mais com as coisas de Deus (...) as coisas deste mundo, exceto se forem aproveitadas em Cristo, não passam de armadilhas”. Até a tão querida Dorothy recebeu uma nota de censura: “(...) conhecendo sua [de Dick] preguiça, não espero muito dele, mas estou zan gado com minha filha, que rompeu sua promessa. Por favor, dizei-lhe isso, e que eu rezo para que
ela se redima”*” — ela o fez, e em abril Cromwell pediu ao filho que agrade-
cesse por “sua amorosa carta”. panha, que prosseguiu muito O'Neill deixou em suspenso a sença de /ord Broghill junto às
Nada disso afetou o desenvolvimento da cambem. A morte do líder irlandês Owen Roe lealdade de suas forças. Em Munster, a pretropas inglesas produziu efeitos salutares.
No mês de outubro, a guarnição de Cork revoltou-se contra os confederados; o motim ocorreu durante a noite e, pela manhã, sir Robert Starling acor-
dou para descobrir que tinha perdido seu comando —. “pode-se dizer que ele
foi pego cochilando”, comentou-se na época. Inglesa e realista, lady Ann Fanshawe contou em suas memórias que ouvira da cama os gritos dos irlandeses, “desnudos e feridos”, sendo expulsos da cidade. Apó s mandar avisar o ma-
rido, em Kinsale, ela arrumou suas coisas rapidamente, obteve um pas se às 3h — um amigo recompensou a bondade que ela havia demo nstrado — e saiu às Sh, levando os filhos, na carroça de um vizinho. Cor k foi a primeira das preciosas praças de Munster a cair em pode r do exército parlamentar — em consequência, o próprio Jord Inchiq uin deu sinais de estar preocupado com suã imunidade. No início de novembro , Youghal também se rebelou, arrastando “Tratava-se de uma forma de malária uma variedade benigna da febre terça. extremamente comum, no século XVII, na verdade
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Capperquin, Mallow e outras unidades irlandesas, muitas das quais tinham apoiado O Parlamento nos estágios iniciais da guerra civil irlandesa, somente se
vinculando à confederação em 1648. Ao escrever seu relato acerca do que acontecera, e pedindo provisões adicionais, Cromwell sentiu-se capaz de dizer: «Graças à Presença que nos tem acompanhado, espero que em breve a Irlanda
deixe de ser um peso, No entanto, bem xou Ross e marchou ram o forte Passage,
tornando-se uma parte lucrativa da Comunidade.”* depois disso, e ainda mal sarado, em novembro ele deina direção de Waterford. Ligeiros, seus dragões tomaque guardava o porto, mas a inclemência do tempo e as
doenças abateram a tropa, causando mil mortes — segundo se disse —, in-
clusive a do veterano coronel Horton e a do outro Oliver Cromwell, filho de seu tio sir Philip. “Podeis ver como Deus troca as nossas taças”, foi o comentário do general. Em tais circunstâncias, considerou-se boa política abando-
nar Waterford, ainda resistindo, e prosseguir, em 2 de dezembro, rumo a Dungarvan — “este é um dos piores dias de marcha de toda a minha vida”, escreveu Cromwell.” Na hospitaleira Youghal, a cerca de trinta quilômetros de Cork, finalmente, o exército permitiu-se um aquartelamento invernal. Debaixo das nogueiras daquela cidade, lendo Faerie Queen [A rainha das fadas), sir Walter Raleigh sonhara com outros mundos. Lá morreu Michael Jones, herói de Rathmines, da doença que o acometera. Apesar dos diversos rumores que diziam ter sido Cromwell que o envenenara, e que fora denunciado
pelo moribundo, o próprio Lord-Lieutenant fez a oração funeral, na Igreja de Santa Maria, prestando-lhe um tocante tributo em carta posterior. Alojado na
abadia de São João, modesto edifício do século XIV, na estreita rua principal,* Oliver não estava destinado a permanecer ali por muito tempo. Andou por
Cork, e foi muito festejado, e em Kinsale, onde deixou no comando um certo
coronel Stubber, não muito estrito na sua observância religiosa, segundo lhe
disseram. Lembrando-se dos anabatistas que tinha defendido, ele respondeu:
“Talvez não, mas é um soldado, tem honra, e deixaremos a sua religião quieta
por esta vez,”
Apesar das vicissitudes de ordem pessoal, Cromwell mantinha absoluta
clareza sobre seus objetivos na Irlanda; apenas que à sua intenção original de
derrotar os poderes católicos adicionara-se uma acentuada preocupação com Os habitantes do país, que ele não encarava como inimigos. No final de noo
Es lugar ainda existe e tem uma placa, mas está ocupado por uma loja de artigos eléricos.
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vembro, escrevendo ao Parlamento, ele se referiu aos problemas de saúde do exército, dizendo: “O que pensar dessas coisas? Serão obra de um braço hu. mano? Não, é somente Deus (...) uma parte considerável de VOSSO exército
poderia mais facilmente baixar a um hospital do que ir à luta — e se O inimi-
go não soubesse disso eu não estaria cometendo a imprudência de escrever a respeito —, mas eles sabem e não se aproveitam.” No entanto, ao tent ar per-
suadir o amigo John Sadler a assumir a presidência do Tribunal de Munster, ele descreveu o povo comum da Irlanda como “muito ansioso pela Palavra” , e acorrendo às reuniões cristãs, num “doce sintoma pelo menos da seriedade
do bem que nos espera”. Cromwell mostrava-se ansioso para tomar o lugar
da autoridade anterior, numa terra anárquica que Deus depositara em suas mãos, e estimulava Sadler a juntar-se a ele nesse bom trabalho: “Parece-me
que é uma grande oportunidade, até que o Parlamento determine uma forma
de fazer justiça a este pobre povo.”*!
Com relação ao clero irlandês, que na sua convenção, em Clacmanoise, declarara uma espécie de guerra santa aos ingleses, seus sentimentos eram bem outros. O gesto belicoso causara sérios problemas, inclusive entre os próprios anglo-irlandeses realistas. Cromwell, de sua parte, reagiu através da Declaração
do dia 14 de janeiro, expressando o mais puro e simples ódio total, próximo à paranóia.” Atacando diretamente a proposta de unidade formulada, ele disse: Com a graça de Deus, não queremos e não tememos a vossa união. Dizeis que ela é contra um inimigo comum, mas eu afirmo que foi pactuada com a morte e o inferno, e se insistis nela vos darei algo bem amargo para morder, e que demonstrará que Deus
não está convosco. De onde teria surgido esse inimigo comum?
Quem o criou? Suponho vos referis aos ingleses. Os ingleses! Lembrai-vos, hipócritas, que a Irlanda Já esteve ligada à Inglaterra. Ingleses tinham boas heranças, eles e seus ancestrais, honestamente
adquiridas
de
muitos
de
vós
ou
de
VOSssos
ancestrais
(55)
Rompestes com essa união! Sem nenhuma provocação, executastes um bárbaro e inimaginável massacre, desconsiderando idade ou sexo das vítimas, tão cruel que até o próprio sol se deteve. E num momento em que a Irlanda gozava de perfeita paz, quando através do exemplo do trabalho inglês, através do comércio, os nativos
detinham algo melhor do que teriam alcançado caso não existisse nenhum inglês por aqui. O que estais pensando? Porventura não é verdade o que afirmo? Estará Deus convosco? Confio que não.
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A partir de tais concepções relacionadas à Irlanda — comuns, diga-se de
passagem, na Inglaterra do século XVII —, Cromwell prossegue denunciando a religião católica numa linguagem ainda mais virulenta. “Intrusos” no país, os padres tinham “violado [com sua missa] as leis conhecidas”. À acusação de que O exército inglês cruzara o mar para ocupar terras irlandesas, ele replicou:
Certamente, posso explicar melhor a vinda do exército. Enfren-
tando dificuldades e altos custos, a Inglaterra já experimentara a bênção de Deus
no desenvolvimento de causas justas. E, se já
houve alguma causa justa neste mundo, nenhuma seria mais relevante do que a nossa. Viemos pedir contas pelo sangue inocente derramado. (...) Viemos destruir o poder de um bando rebelde sem lei. (...) Viemos — com a ajuda de Deus — elevar e manter com firmeza o valor e a glória das liberdades inglesas numa nação onde temos o indiscutível direito de fazê-lo. Porém, mesmo em plena tempestade de paixão, ele tem o cuidado de preservar a distinção entre o povo comum e os padres, concedendo aos primeiros
os benefícios do seu modo de pensar e da sua tolerância pessoal. “Não posso
alcançar os pensamentos religiosos que eles [o povo] têm dentro de si, mas penso ser meu dever, desde que caminhem honesta e pacificamente, não lhes
causar nenhum sofrimento por isso.” Tal qual em Ross, a ênfase recaía sobre a ordem civil, não sobre a conformidade privada. No dia 29 de janeiro, Cromwell estava pronto para ir em frente, e, desde que tinha escrito aos Comuns sobre alguns regimentos que se haviam posto em marcha com não mais de quatrocentos homens e que agora reuniam oitocentos ou novecentos, é justo presumir que os doentes estivessem se recuperando. Seu próximo objetivo era erradicar a influência de Ormonde sobre as ricas regiões
do interior de Munster; para isso seria preciso conquistar uma série de castelos no vale dourado, a leste de Tipperary — Cahir, Cashel, Fethard e Clonmel —, que, distando entre si cerca de vinte quilômetros, formavam um tipo de quadrado nas vertentes das montanhas de Comeragh. Em certos momentos, a campanha assumiu a feição de um jogo de xadrez. Newcastle, berço dos Prendergast, foi salvo da ruína pela rendição, tendo se comprometido a nunca mais se fortifi-
car; alguns soldados parlamentares ficaram por lá, encarregados de supervisionar a remoção do armamento. Súbito, uma matilha de cães de caça, pertencente ao dono do castelo, começou a latir, e as tropas retornaram, apressadamente,
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imaginando que seus camaradas estivessem sendo atacados. Levados à presenç de Cromwell o proprietário e os animais, provou-se que nad a disso acontecera E o general pôde melhorar as condições de sua estada, dedi cando-se ao e passatempo favorito. Anos mais tarde, na qualidade de Protetor , red
igiu uma
nota pessoal para que Prendergast não fosse banido. No conjunto, os defensores que tiveram a sabedoria de se render receberam a
prometida recompensa de misericórdia. O acordo de Fethard, por exemplo, tin ha uma cláusula que protegia as propriedades dos habitantes do saque desde aquele
momento, e cinco anos depois, já sob o Protetorado, ele s peticionaram com sucesso contra um novo assentamento; invocando “a proteção de vossas graciosas concessões em anexo”, obtiveram em resposta uma nota assinada Oliver P, nos se-
guintes termos: “Nossa vontade e prazer é de que os artigos con cedidos aos habitantes da cidade de Fethard, na Irlanda, sejam bem e verdad eiramente observados
e executados em tudo, de acordo com suas verdadeiras intenções e significados.”
Cahir, imponente castelo sobre o Suir, opôs alguma resistência; Oliver, ao contrá-
ro, em seu relato ao Parlamento, fez questão de lembrar imediatament o e trabalho que dera a conquista daquela fortaleza nos tempos da rainha Elizabeth: o conde de Essex lutara durante oito semanas, ao passo que ele o fizera sem sacnfi-
car um soldado sequer. Os termos foram generosos, poupando-se inclusive a vida dos clérigos. Conta-se que Cromwell subiu 20 alto de uma colina e, descor-
tinando o vale, comentou: “Sem dúvida, esta é uma terra pela qual vale a pena lutar.” Guido de Orange — futuro Guilherme, o Conquistador — teria dito o mesmo, mas não é difícil imaginá-lo seduzido pelas verdes planícies de Tipperary; espraiando-se em volta da rocha de Cashel além disso, o que talvez torne a história ainda mais plausível, ele separou uma boa parte daquela região para si em vez de entregá-la aos “aventureiros” e soldados Encontrando-se mais uma vez com Ireton, Cromwell tomou o rumo de
Kilkenny, ao norte de Callan, dominada pelo magnífico castelo da família Ormonde, uma construção de mármore, segundo um francês contemporâneo, capaz de rivalizar com os palácios italianos. Tinha grandes esp eranças de
conquistá-lo pacificamente — na verdade, contava com a traição de um certo
Tickle, por isso que não levou os equipamentos necessários a um cerco. Lá chegando, porém, soube que o
e, por algum tempo, inúteis. De fato, , o c astelo “era excepcionalmente bem “ custaria muito fortificado”, e tomá-lo uito “sa ngue e tempo”, posto que os defenE ; e preferência a submeter-se.
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Apesar dessa obstinação, o Cromwell racional nada tinha a ver com o
Cromwell furioso. Ante um primeiro assalto nitidamente fraco, já no segundo
o inimigo tratou de propor os termos de uma rendição; sem conceder os mais Avoráveis — que dera a outras cidades e que Butler exigia —, Oliver sugeriu uma solução de compromisso: garantiria os habitantes contra o saque, desde que pagassem duas mil libras. À tropa adversária pôde retirar-se em marcha
organizada, ao rufar dos tambores e com suas bandeiras desfraldadas, levando cem mosquetes e cem lanças, a fim de que pudesse defender-se dos “tries” — aqueles bandidos irlandeses que pilhavam as cercanias e mais além.”
Entrando em abril, Cromwell sabia que sua presença era cada vez mais
urgente na Inglaterra, onde a convivência com os escoceses voltara a se com-
plicar. No dia 11 de janeiro, o presidente da Câmara dos Comuns iniciara com ele uma correspondência acerca da organização de um governo civil na Irlanda, mas seu relatório sobre Kilkenny só se referia a “diversas necessidades privadas”; a menos que o Parlamento lhe transmitisse ordens formais, seria “demasiada audácia” abandonar a responsabilidade assumida. Adotando um estilo similar ao do almirante Nelson, fingiu ignorar as insinuações ou não levá-las ao pé da letra. Estava ciente, é claro, de que seu retorno tornarase desejável, mas como militar planejava levar a campanha até o fim, concluindo seus propósitos. Por isso concentrou suas atenções nas três fortalezas inimigas que ainda se mantinham — Clonmel, Waterford e Limerick —, sem dúvida encorajado pelas notícias de que a confederação irlandesa não prosperara depois de Clacmanoise — havia negociações em curso para dissolver o exército realista, deixando por conta dos soldados encontrar o caminho de
casa. Em Carrick, no dia 26 de abril, Oliver assinou os Articles for the Protestant Party in Ireland [Programa do Partido Protestante Irlandês]; embo-
ra Ormonde e Inchiquin tivessem se recusado a aderir, mesmo assim ele lhes concedeu salvo-conduto, satisfeito por vê-los desaparecer. No entanto, apenas
lady Ormonde aceitou o passe, embarcando com a família e vários agregados. Em Clonmel, igualmente flanqueada pelo tortuoso Suir, Cromwell encontrou Hugh O'Neill, chamado pelos irlandeses de buidhe [moreno], filho de Art Oge, irmão mais velho de Owen Roe O'Neill, nascido nos Países BaiXOs € veterano do exército espanhol. Desde fevereiro, ele assumira o comando
dos 1.200 homens que guarneciam aquela praça. No final de abril, os canhões de Cromwell estavam engajados no seu trabalho habitual de derrubar pedras
irlandesas. Desta vez, porém, o adversário haveria de mostrar-se hábil e cheio
de iniciativa. Antes de mais nada, tratou de consolidar as defesas, empilhando ”
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pedras atrás das muralhas e colocando sua artilharia sobre elas, gra ças ao que conseguiu deter o primeiro assalto do exército parlamentar — eles chegaram entoando hinos e recuaram totalmente frustrados. Ao percebere m a armadilha que os esperava, os oficiais gritaram: “Alto!” A tro pa, no entanto, estimulada pelos brados contrários — “Avançar!” — vindos da retaguard a, não prestou atenção e caminhou para o massacre. Estima-se que o número de baixas te. nha chegado a dois mil. Aguardando junto ao portão principal, Oliver pare-
cia, segundo o testemunho de um soldado, “mais vex ado do que nunca, desde
que pusera o capacete contra o rei, pois não estava acostumad o a ser repelido daquela forma”. Num segundo assalto, seus homens conseguir am penetrar na cidade, mas tiveram de recuar, acumulando mais algumas centenas de perdas. Numericamente inferiorizado e sem pólvora, O'Neill con quistara uma vitória apenas parcial e, tendo se comportado, nas palavras de sir Lewis Dyve, com “discrição e galantaria”, decidiu escapar com seus homens no meio da noite, deixando o prefeito livre para discutir a rendição pela manhã. Assim, quando Cromvwell entrou em Clonmel, após acertar os usuais termos mod era-
dos, descobriu que os pássaros haviam fugido da gaiola. Furioso, voltou-se na direção do prefeito e, exclamou: “Sem-vergonha, por que não me disseste nada?” Calmo, o homem respondeu: “Vossa Excelência nada perguntou... nesse caso, eu falaria.” Recuperando o controle, Oliver manteve o acordo, mas achou que valia a pena perguntar que tipo de homem seria O'Neill, ouvindo em resposta: “Um soldado estrangeiro, nascido na Espanha.” Isso provocou
outra explosão do general — “Que Deus vos amaldiçoe e a vosso estrangei-
ro” — e uma ameaça de perseguir o oponente e destruí-lo.'º Sua vontade, entretanto, jamais se realizou. Mais tarde, o “moreno” manteve Limerick, con-
tra Ireton, e, ao render-se em 1651, alegou sua nacionalidade, escapando da pena capital. Prisioneiro na Torre de Londres, acabou solto graças à intercessão do rei de Espanha, onde morreu tranquilamente. Sem dúvida, mereceu sobreviver, quando nada por ter sido mais esperto do que Ironsides. Do ponto de vista de Cromwell, o episódio fora desagradável, equip arando-se, no que diz respeito à sua reputação militar, à segunda batalha de
Newbury — onde ele não detinha o comando supremo —, tendo sido umã
das poucas ocasiões em que chegou a ser repelido. Dominando as regras do
cerco, desde as campanhas realizadas no oeste da Ingla terra, em 1645, ele nunca alcançara a maestria nessa arte, devendo seus sucessos mais à audác ia € ao fator surpresa, dos quais sabia tirar bom provei to. Ao deparar com um adversário que agia da mesma forma, não teve sorte. De fato, seu grande
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«runfo continuava sendo a força excepcionalmente bem paga, equipada e treinada, diferente de tudo quanto já se vira antes na Irlanda. Diante dos “filhos de Marte” — assim um contemporâneo se referiu aos seus canhões” — não é surpresa que tantos castelos desmoronassem. Mas nenhuma estrela se jun-
tou à constelação onde já brilhavam Marston Moor, Naseby e Preston.
Seus dias na Irlanda estavam contados. Em 9 de abril, o Conselho de Es-
tado enviou-lhe mensagem ordenando que regressasse imediatamente, e a nova fragata President, construída no outono anterior por determinação do Al-
mirantado, recebeu a missão de trazê-lo de volta. No dia 13 de maio, em Barnstaple e Bristol, havia cavalos à sua espera. Indo pelo sul, ele se deteve
brevemente na obstinada Waterford, onde uma nova carta do Conselho encerrou o assunto. Deixando a Irlanda aos cuidados de Henry Ireton, Cromwell
partiu do pequeno porto situado além das muralhas de Youghal em 26 de
maio. A aventura irlandesa terminara: durou nove meses e 14 dias. A lama que respingara sobre sua reputação, porém, não foi tão fácil de remover. Ele não tinha agido pior do que outros conquistadores, nem se envolveu, posteriormente, em acontecimentos semelhantes à Drogheda e Wexford, tendo obtido inúmeras rendições pacíficas e concedido mercê a diversos padres, contrastando os ácidos termos com que denunciou o clero católico. Enfrentou todavia um inimigo perigoso — a lembrança folclórica de um povo tenaz, valente, romântico e belicoso —, o povo da Irlanda. Essa força iria caçá-lo no futuro tão implacavelmente quanto o haviam sido os sacerdotes nas duas praças saqueadas. Algumas piadas* a seu respeito têm caráter sobrenatural, ligando-o
a fantásticos contos de fadas — na pele de um sapateiro inglês ele se torna rei da Irlanda e, ao morrer, é enterrado em três caixões na confluência de três mares; em outra narrativa, o herdeiro do trono francês corteja sua filha.** Além disso, surgiram novos relatos de iconoclastia, tal como na Inglaterra, situando-o
em lugares onde nunca pusera os pés. Referindo-se a um castelo que ele teria
demolido, a rima “Oliver Cromwell, he did it pommel” [ele o esmurrou] pode
não ter nenhum fundamento, mas sua “maldição” se mantém tal qual uma aferrada erva daninha e talvez jamais seja esquecida. “Kiltartan History Book
[História dos clãs], de lady Gregory, cita quatro, uma delas
intitulada A Worse Than Cromwell [Pior do que Cromwell], que se refere à bebida: “Cromwell era muito mau, mas a bebida é pior, pois muitos dos que ele matou devem ter
ido para o céu, enquanto os bêbados nunca verão o Paraíso.” **As lendas cotejadas pela Comissão Irlandesa do Folclore, nem de longe afinadas ao míii tom de realidade, transmitem a idéia de um grande poder, não de uma grande malade,
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Resta considerar o quanto Oliver Cromwell merecia esse infortúnio. atitudes foram convencionais, no que havia de melhor e pior naquela é Suas Poca, A Inglaterra o recebeu com festas, como um herói, e durante SUa ausência, conforme Whitelocke assinalou, os sucessos que obteve só fizeram engrande. cer sua glória. Daí o significado dos versos que Marvel] compôs para honrá. lo. O Perfect Diurnall sustentou que os irlandeses tinham recebido o tratamento adequado, não se podendo tolerar, evidentemente, “a idolatri a papista que professavam”. O Mercurius Politicus, acrítico e adulad or, rendeu tributo aos “prestimosos serviços [de Cromwell] que se somarão às grinaldas das vitórias conquistadas na Inglaterra, reconhecidas pela opinião pública mundial, e que o tornam um dos mais sábios e realizados líderes da geração atual e da posteridade”. Elogiente, Lenthal discursou perant e a Câmara dos Comuns,
descrevendo “a grande Providência divina revelada por esses grandes e estra-
nhos feitos, dos quais ele [Cromwell] foi instrumento”, A pacificação abriu caminho às atividades coloniais, inaugurando o período de novos assentamentos que a história da Irlanda registra como “transplantes”, uma política odiada pelo povo e da qual ele se converteu num símbolo.
A transferência de moradia de populações inteiras tivera início no reina-
do de Elizabeth — a teoria acerca dos direitos de colonização existia há séculos. Oliver não executou nenhuma medida sequer semelhante e não voltou ao país depois de 1650. Durante o Protetorado, embora os “aventureiros” te-
nham promovido migrações internas a fim de propagar sua prosperidade, as intervenções pessoais de Cromwell foram sempre no sentido de minorar à
sorte dos envolvidos. No entanto, não pôde escapar à responsabilidade daqu ilo que o historiador Lecky, no século XVIII, disse que fora “a causa princi-
pal dos males políticos e sociais da Irlanda”.
Conquanto falsa, essa sombria acusação contém certa dose de justiça. Cromwell foi um soldado de extraordinária capacidade; como general vitorios o,
atraiu as atenções; aos olhos dos ingleses, suas glórias eram militares, e através da força armada é que ele conseguiu atingir os mais altos objetivos políticos. Na Irlanda, na condição de conquistador caíra abaixo de seus elevados padrões — em Drogheda, com o sangue quente, e em Wexford, a sangue-f rio. Ao ser julgado por tais aberrações, ele já desfrutara do poder e do prestígio conf eridos pela vitória. Quisesse ou não, vivia da espada. Ali, sua reputação pereceu com à
espada. Certamente não era justo, mas pelo menos compreensível, que a maldição da Inglaterra acabasse sendo a maldição de Cromwell.
rem a 14 Escócia: A decisão da causa Ambos os partidos atribuíram a Deus a decisão da causa, desejando que ele fizesse Seu julgamento no dia da batalha, para que cada um dos lados e todos os que observavam pudessem conhecer Seu veredicto no tocante à justiça do que propunham... CARTA RECEBIDA POR CROMWELL APÓS A VITÓRIA DOS
INGLESES SOBRE OS ESCOCESES
O liver Cromwell não ficou mais do que quatro semanas em Londres, antes de tomar a estrada para um outro canto das Ilhas Britânicas, levado pelo que Whitelocke corretamente chamou de “o espírito litigioso da natureza humana e a pouca calma que se pode esperar nesse mundo”. Frágil ainda, o mo-
vimento realista clandestino promovera em abril de 1650, na cidade de Salisbury, uma corrida de cavalos, mero disfarce da reunião inaugural da Àssociação do Oeste (para a restauração da monarquia), que contou com a presença de figuras proeminentes, como o coronel Francis Wyndham e sir John
Paulet.' Todavia, sem a liderança dos pares do Reino ou dos proprietários de terras, cuidou-se apenas de problemas pessoais urgentes — a iminência do Sequestro de bens, por exemplo. Ameaça mesmo parecia advir de Edimburgo,
onde o novo rei fora proclamado poucos dias após a morte do pai. Atitudes
consegientes demoraram a ser encaminhadas devido às cisões que se expres-
savam nos três possíveis gritos Rei”, “Presbitério sem o Rei” e Da Irlanda, submetida por Uma expedição dos partidários
de guerra do exército escocês: “Presbitério e “Rei sem o Presbitério”. Cromwell, Carlos II já não esperava nada. do “Rei sem o Presbitério” — os chamados
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realistas puros —, sob o comando de Montrose, tinha fracassado. Gra dual
Mente, O Jovem monarca se deu conta do quanto dependia dos presbiterian os e, relutante
aceitou o sacrifício do marquês, executado pelo s convencionais em maio. pi teriormente “engoliu” a própria Convenção, jurando man tê-la, Não Se tratou
de uma conversão: “Pecaminosamente, Carlos II concordou com o que nós, de forma mais pecaminosa ainda, o forçamos a faze r”, escreveu um protestante convic to, admitindo a culpa de seu partido. Mas, aqu ela altura dos acontecimentos, as desastrosas consequências da hipocr isia permaneciam ocultas, A chegad
o do soberano foi saudada com alegria geral; as mulheres do mercado de
Tron, em Garmouth-sobre-o-Spey, queimaram seus ban cos e cestas em festivas fogueiras comemorativas. Os felizes escoceses notaram que, tal como sua avó,
Maria Stuart, no seu retorno da França, ele também escapara dos ingleses pro-
tegido por um nevoeiro — “a mesma providência”, gri taram. Um correspondente do secretário Nicholas, descrevendo o evento, adi cionou o único comentário pesaroso: “Rezo a Deus que [Carlos] se comprove mais afortunado, e mais leais alguns dos que se dizem seus seguidores.”? Aproveitando a oportunidade e o poder imenso de que desfrutava naquele momento, Argyll afastou os servidores do jovem e alegre monarca, substituindo-os por gente de sua confiança, cujos nomes, dizia-se, relacionavam-se à traição e à morte do antigo rei. O líder escocês tinha inclusive à esp erança de casar a filha, /ady Anne Campbell, com o recém-coroad o soberano — uma
proposta que chegou a interessá-lo, posto que não tinha nenhuma pretendente
à vista e semelhante união com a Escócia seria com certeza um estímulo aos
seus adeptos na Inglaterra. Consultada, Henrietta- Maria demons trou, pelo menos dessa vez, precaução e bom senso, admitindo não existir “nada de ex-
traordinário” no matrimônio com uma moça tão bem nascida, mas questionando se valeria a pena excluir a Inglaterra de um acordo que devia ser avalia-
do do ponto de vista de sua recuperação. Prevalecendo esses prudentes conselhos, a idéia foi abandonada —. é, como a referida jovem mos trou um
traço um tanto pedante em sua correspondência, talvez ela não fosse mesmo à
noiva mais conveniente, sendo apenas tão bonita quanto qualquer outra da corte inglesa, segundo /ady Anne Halkett.:
O Presbitério atravessava uma fase de franco entusiasmo: no ano ante rior
a Lei das Classes proibira acesso a empreg os públicos e ao exército a quem
não apoiasse incondicionalmente a Convenção. Natura lmente, seriam necessários muitos Expurgos para que a norma fo
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controle, garantindo o predomínio dos que se aglutinavam sob a chancela de
«Presbitério e Rei”. Um ameaçava a organização religiosa, o outro a organização política da Comunidade — o recurso à força era inevitável, Contudo uma perspectiva tão clara de confronto militar não esclarecia a quem deveria caber a liderança das tropas inglesas, quando chegasse a hora de
organizar uma expedição. Popular, se bem que retirado, Fairfax conservava o posto de comandante-em-chefe do exército, coisa que Cromwell jamais contestaria. Segundo testemunho do coronel Hutchinson, os dois homens conversaram a respeito durante uma noite inteira, e o diálogo entre eles demonstrou a grande diferença de caráter que os separava. Fairfax ponderava que uma campa-
nha ofensiva seria injusta. Cromwell objetou: “Não podemos evitar a luta, e Vossa Excelência vai determinar, muito em breve, se é preferível travá-la nos intestinos de outro país ou do nosso. Prefiro que seja no deles, e digo isso sem qualquer escrúpulo”, obtendo como resposta que “cálculos humanos não constituem base suficiente para se levar a guerra a uma nação vizinha”.* Oliver ainda implorou que ele considerasse a fidelidade das tropas, mas sir Thomas insistiu no direito de seguir os ditames da sua consciência. Assim, derivou para suas mãos o comando de um exército que deveria reunir 25 mil homens — expectativa inicial que acabou não se concretizando — saudado pelo novo porta-voz do governo, o Mercurius Politicus. Seu editor, o volátil Marchament Nedham, ex-propagandista do lado oposto, questionava espirituosamente suas próprias credenciais, indagando por que a Comunidade não poderia ter “um bobo da corte, como o do rei”. O valor de Cromwell era
tratado com maior seriedade: “Da minha parte, e sem qualquer lisonja”, escreveu ele, “tendo em vista suas ações, da primeira à última, não me acanho em proclamá-lo o único Novas Princeps [Novo Príncipe] existente desde os confins da história.” Na verdade, discutiu-se o título que ele deveria ostentar e, embora se determinasse que formalmente ele seria “General das Forças da
Comunidade da Inglaterra”, foi-lhe permitido escolher o que preferisse. Dessa forma, “Lorde-GeneraP” acabou se impondo. As Nouvelles Ordinaires, periódico
governista destinado à propaganda no exterior, por isso que escrito em francês, em seu primeiro exemplar (21 de junho a 8 de julho), aplaudiu-o como
“Gentralissime” de todas as forças inglesas.**
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im À segiiência desse jornal, até maio de 1658, permite uma boa avaliação de como o gover-
no inglês desejava ser visto no exterior. No continente, o periódico causou suficiente imPressão para que o próprio Mazarino o lesse ocasionalmente.f
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Afora esse instrumento de propaganda tão óbvio, os relatórios de de Croullé destinados ao cardeal Mazarino frisav am a confiança da opinião pú-
blica na expedição e os detalhes dos preparativos que envolviam inúmeras
pessoas em diversos setores. A idéia de levar a guerra além da fronteira E poupando o norte da Inglaterra de outra invasão — acarreta va u mM Sério problema de suprimentos. Caberia à Armada um import ante pape | — Virtualmente inexistente, a marinha escocesa pouco poderia fazer —, e mesmo assim os comandos que não trouxessem consigo o necessário ficariam à mercê dos fornecedores locais, sob o risco de morrer. O plan ejamento do general. intendente William Rowe previa depósitos de “pão mu ito bem cozido”, fornos de cozer um tipo especial de pão muito sim ilar ao que o exército consumia, Juntamente com queijo, ferraduras, cravos e camas — visto que se apropriar dessas coisas em Newcastle causar
ia enorme tumulto. Grãos e aveia, peras e maçãs seriam enviados de Kent pelo mar .” Um dos problemas mais graves da campanha acab ou sendo a insuficiência de tendas adequadas — a maior parte dos homens ficou exposta aos rigores do verão escocês, dormindo ao relento; apenas cem tendas foram adquiridas ao custo de uma libra cada uma, além de uma outra “p ara o uso pessoal de Sua Excelência”, pela qual se pagou 46 libras. Os aspect os espirituais não foram negligenciados: Thomas Harrison, que na ausência de Cromwell assumiria o comando das tropas, na Inglaterra, demonstrou zelo ao sugerir que 0 comandante destacasse “três ou quatro almas preciosas”, encarr egadas de rezar diariamente a prece “Esperando por Jeová”. Uma dessas almas, John Owen, num sermão aos soldados, falou sobre a natureza religiosa do empreendiment o, argumentando que a guerra poderia trazer não soment e a paz, mas ainda troféus espiritualmente significativos: “Uma casa ou um palácio, engalanados com os estandartes tomados aos inimigos que te ntaram conquistá-los, é uma glória — a própria casa de Deus enfeitada.?º
Sob os olhares de toda a Inglaterra, em 28 de junho, Cromwe ll partiu. Em Oxford, o antiquário Elias Ashmole teve o cuidado de anotar a hora exata — 17:05 — a fim de elaborar o mapa astral da expedição. Cavalgando com ele,
nessa primeira etapa da viagem, ia o Jeveller John Lilbur ne, temporariamente solicitado =
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reconciliado com O Lorde-General. Numa despedida afetiva, ele corroborou as boas instâncias de Harrison, insistindo para que se cuidasse das almas tanto
quanto dos corpos. Oliver seguiu por Ware e Cambridge, onde tentou tranqui-
lizar o vice-diretor e os doutores da universidade, assegurando que não tinha a
intenção de fazê-los aceitar a religião oficial do país assim que a questão da Es-
cócia estivesse solucionada; cínico, um dos presentes considerou o fato como simples manifestação do seu desejo de “convencer e agradar a todos, através de
uma aproximação cortês, no momento em que toma o rumo de uma ação de caráter duvidoso”. Foi em Northampton, diante da multidão que o aclamava, junto a Lambert e Ingoldsby, que ele fez o famoso comentário: “Eles gritariam da
mesma forma se estivéssemos aqui para ser enforcados.” Dez anos mais tarde, voltando à cidade sob apupos como prisioneiro de Ingoldsby, Lambert se lem-
braria dessas palavras.” Em Durham juntaram-se à caravana os coronéis Pride e
Hacker, e em Newcastle, no dia 10 de julho, deu-se afinal o encontro com os 16 mil homens — oito regimentos de infantaria e oito de cavalaria —, com os quais ele pretendia marchar contra os escoceses. Experientes e disciplinadas, as tropas juraram lealdade, dispostas a viver e morrer com seu general. Entretanto alguns problemas tiveram que ser resolvidos. Um deles foi a questão de George Monk, cujo desempenho militar no
Ulster impressionara Cromwell a ponto deste oferecer-lhe o posto do regimento antes comandado por John Bright. Puritano de longa Yorkshire, Bright não se demitira por desaprovar o regime, mas pela rasteira de ter comprado uma propriedade confiscada aos realistas.”
de coronel tradição no razão mais Todavia os
soldados não se mostraram dispostos a tolerar o comando de um “vira-casaca”;
lembravam-se de o terem derrotado e feito prisioneiro em Nantwich no ano de 1644. Afinal, essa tropa mais um regimento de cavalaria ficaram ambos sob a liderança de Lambert, e um novo regimento de homens de Newcastle e Berwick, que tirou seu nome da vizinha cidade de Coldstream, foi entregue a Monk. Assim, do orgulho de um regimento nasceu outro, que se tornaria tão
glorioso na história militar da Inglaterra.
Chegara a hora de “convocar” a Escócia. Diante de uma simples fortaletà, mas como estivesse se dirigindo ao país inteiro, observando as mesmas
convenções, o Lorde-General manifestou suas esperanças de evitar o confronto. Depois de Dunbar — um acontecimento irremediável, afinal de contas —
Cromwell admitiu abertamente o “desejo e a esperança de que fosse evitado o
derramamento de sangue”.'? À razão era clara e indicava o tipo de relacionamento que ele pretendia estabelecer com os escoceses —
“Trata-se de um
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povo que, por equívoco, teme o nome de Deus” — em fla Brante Cont raste com a atitude e a linguagem que manifestara na Irlanda. D esde sua Pri meira Declaração aos escoceses, nota-se uma vontade quase des e sperada de disc utir quaisquer assuntos, teológicos ou não, em vez de lutar, u ma relutância a parentemente mórbid a em aceitar que dois grupos eleitos deve ssem realmente combater entre si pela segunda vez.
Dirigida especificamente “a todos aqueles que são santos e eleitos para compartilhar a fé em Deus, na Escócia”, estava cheia de referências carinhosas ao povo irmão. Na longa justificativa da invasão, todas as questões pendentes ao longo dos dez últimos anos, inclusive a morte do rei, eram trazidas à baila, em particular a assinatura da Convenção pelos ingleses. E verdade que isso os tinha vin-
culado à manutenção dos interesses do monarca, a fim de “preservar a religião e a liberdade”, mas, posto que os meios não Justificavam os fins, “os fins deverão ser preferidos aos meios”. Só ao término, e mesmo assim refe rindo -Se escoceses, em vez de vis camaradas, há uma clara ameaça de isso deixemos que Deus no Céu (...) nos julgue, no ca mpo de tude da perversidade de quem detém a autoridade entre vós, que a decisão desta controvérsia seja obtida pela espada (...).”13 Sua confusão espiritual naquele período expressou-se
aos preciosos
guerra: “(...) sobre
batalha, se, em virDeus nos ordenar
além disso numa
auto-reflexão contida em carta que escreveu a Richard Mayor, mais uma vez
a respeito de Dick. Ele começa perguntando pela pequena Elizabeth, sua neta recém-nascida — a correspondência de Dorothy co ntinuava atrasada: “Gostaria de saber como está a menina e, talvez, reclamar da negligência dos pais; sei que meu filho é preguiçoso, mas eu ti nha uma opinião melhor de Doll. Duvido que o marido tenha conseguido e stragá-la. Peço-vos, diga isso a ela
por mim. Tivesse eu o tempo de que eles dispõem, escreveria algumas vezes.
Se minha filha estivesse grávida, eu a de sc ulparia, mas não por estar amamen-
tando.” Um comentário típico do home m ocupado sobre aqueles que ele supunha menos ocupados — Cromwell não seria o primeiro nem o último homem a não dar valor às ; nquiet ações do período de amamentação. Mas, voltando a falar sobre as d eficiências de Di ck — “Ele está no momento mais perigoso da sua id ade e vive num mundo muito fúti]” —, Oliver coloca uma perspectiva diferente. Ma yor deveria
aconselhar o genro: “Podeis ver como estou atarefado. Mereço piedade. Sei como me sinto. Altas posições e Importantes assuntos materiais não são coisas desejáveis; eu não teria conforto al-
presença de Deus. Não busquei nada disso: na
verdade, recebi ordens e de vo cumpri-las em nome do Senhor (...).”!
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Sua sorte, pelo menos, era a confiança de que Deus permitiria “que Seu pobre € fraco servo cumprisse com Sua vontade”. Infelizmente, os escoceses sentiam-se inspirados por idêntica fé apocalíptica, lançando uma hábil cam-
panha na qual atribufam aos ingleses a intenção de praticar terríveis atrocidades contra o povo de Deus assim que cruzassem a fronteira. As notícias da Ir-
landa robusteciam tal possibilidade — mencionava-se com frequência o
costume dos soldados ingleses de cortar os seios das mulheres. John Nicoll,
advogado do mais alto tribunal civil da Escócia, acreditava piamente nos odio-
sos instintos ingleses: ele recordava que um compatriota seu, preso, nu e acorrentado, tivera os olhos arrancados porque escrevera nas cotas que era a favor do rei Carlos, e que nem as mulheres obtinham misericórdia, ainda que
a implorassem de joelhos. Na sua segunda Declaração, Cromwell tentou combater isso, proibindo o
saque e lembrando aos escoceses a “atitude e comportamento” calmos que os ingleses haviam demonstrado dois anos antes: “O que fizemos de errado contra as pessoas? Destruímos propriedades por acaso? Levamos o gado de alguém?” Aproximando-se da fronteira, ele se preocupava em manter uma conduta honrada diante da população. No dia 17 de julho entregou cartas especiais de salvo-conduto a /ady Anne Thornton, uma realista que hospedara as tropas sob seu comando nas terras que possuía, em Netherwitton, garantindo que nem ela nem sua família sofreriam qualquer violência e livrando de confisco “cavalos, gado ou qualquer outro bem”; semanas mais tarde, /ady Anne recebeu o
pagamento de 95 libras que lhe eram devidas pelo fornecimento de milho e forragem.!* O medo do invasor poderia ser uma arma poderosa nas mãos de escoceses dispostos a uma tática que hoje em dia seria descrita como guerra de guerrilhas. No domingo, 28 de julho, seis dias após ter transposto a linha divisória entre os dois países, Cromwell chocou-se com o exército escocês, comandado por John Nicoll, em Haddington, a meio caminho de Edimburgo e da
costa leste, e provou pela primeira vez o remédio que David Leslie pretendia ministrar-lhe nas semanas seguintes. Pois, em vez de lutar, as tropas ini-
migas recuaram na direção da sua capital, abandonando inclusive a fortaleza de Leith. À primeira vista tal decisão pode parecer surpreendente, pois 0 comandante escocês, em seu próprio terreno, detinha um potencial numérico incalculável; além disso, tendo participado de lutas ao longo de toda *Trevelyan (Longwitton) MSS. Não impresso em W. C. Abbott.
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uma década, estava em condições de propiciar a seus homens
treinamento similar ao do Exército de Novo Tipo. A realidade, entretanto, era um pouco diferente; suas forças haviam so frido muito com os recentes expurg os perdendo veteranos. A população da s Highlands — ao norte da Escócia Ei Já não se dispunha a combater nas Lozlands — região ao sul de Edimbuyr. go, até a fronteira com a Inglaterra — e, embora Carlos II tivesse acabad o de passar em revista cerca de vinte mil homens , a maioria não tinha experiência nem fora adestrada. O velho soldado, que aprendera seu ofício com Gustavus Adol
phus, nem precisava olhar o mapa da Escócia, a rede de ca. deias montanhosas, as quedas de Pentla nd e Lammermuirs, nem olhar pela Janela e ver a chuva — o verão anunci ava-se áspero como sempre, Til como Ormonde, na Irlanda, ele conh ecia os dois aliados com que poderia contar: a Fome e a Doença do exército da Comu nidade.
O desastre final da campanha de Leslie não deve obscurecer os hábeis recursos com que ele explorou as potencialidades de su a situação no início do conflito. No fim de agosto, em desespero, Charles Fleetw ood escreveu que o principal problema dos ingleses era “a impossibilidade de fo rçá-los [os escoceses] a lutar — enquanto seguimos num sentido, eles se deslocam ao inverso”. Cromwell 0 seguiu até Edimburgo e bombardeou a cidade, de sde Arthur's Seat, no sopé de
Salisberry Hill, e dos navios ingleses ao largo da costa, mas Leslie não deixou
seu refúgio fortificado e fustigou a retaguarda ingles a quando Oliver recuou para Musselburgh, no litoral leste, alguns quilômetros ao sul de Leith. Mais acrimoniosa, a Declaração lançada dali definia a religião nacion al como “um concerto com o inferno e a morte”; embora ecoando as ruidos as denúncias do clero ca-
tólico de Clacmanoise, a frase fora extraída de um capítulo de Isaías, ameaçando o povo da Judéia de extermínio pelo “Senhor dos Exércitos”.* Comp elido a bus-
car provisões debaixo de chuvas constantes e em terreno montanhoso, Crom we ll re cuou mais ainda, à procura de um port o melhor, até Dunbar.
Durante todo o mês de agosto os ingleses foram forçados a uma série de avanços € recuos; sem tendas apropria das, muitos soldados caíram doentes; O
Mercurius Politicus menciona que dois mil estariam incapacitados para O comvada, mas os suprimentos vitais am
“Ligeiramente deturpada, a citação provém de Isaías, Capítulo 28: 15, textualmente: “Porquanto dizeis: fizemos concerto com a morte, e com o inferno fizemos alianç a (...).” Provas Velmente, na: Irlanda, Cromwell terá recorrido à mesma fonte, mas sem se dar ao desfrute de indicar ao clero católi co uma referência bíblica. ,
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elo menos, um incidente divertido. Saindo com um pequeno grupo, nas pro-
ximidades de Coltbridge, Cromwell deparou com observadores escoceses,
que recuaram rapidamente; um soldado inimigo disparou contra ele, e Oliver
gritou que se estivesse sob o seu comando seria punido — àquela distância não devia arriscar um tiro. O homem respondeu que não o alvejara à toa: tendo servido com Leslie, em Marston Moor, sabia quem ele era. No geral,
entretanto, esse período nada trouxe de novo. Ás críticas de Londres, que o
acusavam de estar agindo muito suavemente com os escoceses, evitando o impiedoso confisco de provisões, enfureciam-no ainda mais. Segundo William Rowe, havia quem dissesse que ele enriquecia uma nação com o tesouro de outra. Mais tarde, de fato, Nicoll atribuiu a derrota escocesa ao
ouro inglês; todavia não se pode desconsiderar seu desejo contínuo e genuíno
de conquistar os escoceses pela persuasão, se isso fosse possível, pretendendo uma aliança de preferência à sua eliminação — o ouro inglês só teria va-
lor no primeiro caso, não no segundo. Cromwell não perdeu uma única oportunidade de parlamentar com as autoridades escocesas. No dia 27 de agosto, uma quase batalha foi travada em Gogar, no Midlothian; fazendo bom uso de um terreno excepcionalmente pantanoso, Leslie impediu que Oliver engajasse sua cavalaria, embora os ingleses, no geral, tivessem obtido alguma vantagem. A partir daí, os escoceses recuaram de novo, talvez tentando barrar o acesso dos ingleses a Edimburgo, enquanto estes tomavam o rumo do litoral, quem sabe devido ao número crescente de soldados doentes e que deviam ser embarcados de volta por Musselburgh. Logo, porém, Leslie deci-
diu fustigar a retaguarda adversária, propondo o embate, em Haddington, no dia 31 de agosto — ele conseguiu fazer com que as tropas de Cromwell marchassem
ao longo da estreita faixa costeira, com cerca de 13 quilômetros, desde o mar até
onde se elevam as vagas formas dos grandes Lammermuirs. Um grande exército escocês — 23 mil homens — deslocou-se paralelamente e na segunda-feira, 2 de setembro, deteve-se numa posição muitíssimo favorável, na faldas de Doon Hill, acima das desgastadas forças inglesas acampadas em Dunbar. Os 11 mil soldados de Cromwell que ainda estavam em condições de lutar viram-se então expostos ão perigo: de um lado, as águas geladas do mar do Norte, e, nas escarpas, bloque-
ando a estrada para Berwick, via Copperspath, um inimigo com feições de lobo
faminto. Realmente, eles pareciam aquele herói de seriado que chega ao fim do
episódio inapelavelmente encurralado, sem escapatória.
Foi mesmo como um autêntico herói que Oliver rompeu as correntes que o
Prendiam e libertou-se para o próximo episódio de sua carreira. Mas, trocando s ç
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as improbabilidades da ficção pelas probabilidades históricas, cabe quais eram suas intenções na armadilha de Dunbar? Estaria mesmo Perguntar. disposto a recuar, evacuando seus homens da ainda invicta terra escocesa, acei tando tem-
porariamente a derrota ante a fome e a doença? Sua fuga teria sido i Nterpretada como um golpe de sorte — entre muitos, numa carreira certame nte afortunada — decorrente de um erro de Leslie? Sem dúvida, retirar- se ser ia admitir uma
tremenda derrota: nenhum exército inglês poderia ser mobilizado e enviado de
volta à Escócia antes da primavera do ano seguinte; e desse modo, sem que as duas espadas chegassem a se cruzar, o árbitro divino teria definido “a controvérsia pela espada” a favor dos escoceses. Dotado de otimismo militar, digamos assim, Cromwell jamais consideraria algo tão derrotista. Acredi tando na eterna possibilidade da vitória, ele assumia os riscos necessários à sua concretização. O recurso a Dunbar, portanto, se encaixa mais facilmente num padrão de estra-
tégia, segundo o qual ele ainda tinha esperança de seduzir Leslie a lutar Por isso chamara da Inglaterra e aguardava, ansiosamente, Richard Deane, especialista em artilharia. Claro: ele não cogitava de velejar. Ao escrever a Haselrig, em Newcastle, no dia 2 de setembro, pedindo reforços urgentes, tinha plena consciência da circunstância arriscada em que se envolvera — “Melhor não tornar isso público, a fim de não aumentar o perigo” —, mas terminava dizendo, com sua inabalável confiança: “Nossos espíritos permanecem trangjúilos —
louvado seja o Senhor —, embora nossa situação seja o que é. Mantemos muita esperança em Deus, de cuja misericórdia já tivemos grande experiência.” Cercado como estava, um general do seu calibre não ignoraria a grande
vantagem que tinha a seu favor: querendo atacá-lo, Leslie só o faria descendo
das encostas — em Dunbar os ingleses estavam fora do alcance de seus canhões. As forças da Comunidade agrupavam-se dentro do perímetro urbano € mais ao sul, ao redor de Broxmouth House, propriedade do conde de Roxburgh, cujo terreno alcançava o mar Também correndo para o mar havia um riacho; fechado num pequeno vale arborizado, suas margens eram tão inclinadas que davam certo caráter de ravina a essa paisagem costeira, de resto bastante plana. Reunido num conselho de guerra com Lambert e outros oficiais nã residência do conde, Cromwell foi informado de um pequeno movimento — percebido com a ajuda de lunetas — no campo escocês, que parecia estar quase pendurado sobre suas cabeças, tão próximo e, no entanto, tão alto. A hora: 16h. O dia: segunda-feira. Mais tarde Oliver adorava contar que acabara de rezar É sentira-se suficientemente consolado a ponto de estimular “a todos em volta para que tivessem coragem, pois Deus Os tinha ouvido e certa mente lhes daria
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am sinal de sua providência”. Nesse instante, como se fora uma resposta direta
às suas orações, OS ESCOCESES abandonaram as posições que detinham, iniciando a marcha em direção à planície. Ele reagiu instantaneamente: “Deus os entrega em nossas mãos, eles descem ao nosso encontro.” De fato, a decisão fora tomada pelo Comitê de Proprietários, comando da
Convenção Escocesa: suas tropas deveriam deixar aquelas alturas aparentemente inexpugnáveis e acampar mais abaixo, preparando-se para atacar. É possível que
Leslie tenha tido uma participação muito maior na deliberação do que se admitiu posteriormente, convencido, pela enorme vantagem escocesa, de que valia a pena
afinal desencadear o combate tão esperado. Ele também temia o avanço da estação — a notória tendência do soldado escocês a simplesmente desaparecer na época da colheita. Capturado e solto, depois de ser interrogado pelo comandante escocês, um dos homens de Cromwell relatou que ele ignorava a verdadeira força e os objetivos dos ingleses. Perguntado se as tropas de Oliver pretendiam lutar, o sujeito replicou rudemente: “O que pensais que viemos fazer aqui?” “Mas como, se acabais de embarcar metade do contingente e todos os grandes canhões?”, duvidou o comandante escocês. A resposta de que descendo a montanha ele poderia ver isso com seus próprios olhos não pareceu convencê-lo.” Na planície, Leslie armou suas linhas num grande arco, desde a costa ao sul
do riacho até onde as margens do Broxburn se estreitavam: aí colocou a maior parte da cavalaria, contra uma tentativa dos ingleses de cruzá-lo. Com uma superioridade aproximada de dois para um, os escoceses se deitaram nos campos de milho, a fim de uma boa sesta, despreocupados com os cavalos, deixados sem ar-
reios, distantes dos oficiais hospedados em fazendas, na expectativa de uma magnífica e decisiva vitória no dia seguinte. Cromwell, porém, não estava disposto a
esperar pelo dia seguinte. Conforme seu relatório posterior, confirmado por Henry Fletcher, ele e Lambert estudaram cuidadosamente as novas posições do inimigo — ante a perspectiva do que seria “sua obra-prima ou seu desastre”,
Oliver se mantinha calmo: “Eles, com sua vantagem numérica e sua confiança, e
nós, fracos e confinados, estávamos na Montanha, e na Montanha o Senhor have-
ria de aparecer e descobrir uma forma de nos redimir e de nos salvar (...).”2
O que Deus fez foi colocar nas cabeças de Cromwell e de Lambert, apa-
rentemente ao mesmo tempo, que o movimento de dois terços da ala esquer-
da do inimigo, para a direita, empurrara aproximando demais a cavalaria do mar disse [a Lambert] que isso nos daria uma escreveu Cromwell; segundo Lambert,
toda a infantaria naquela direção, e sem espaço de manobra. “Eu lhe excelente oportunidade de ataque”, “ele tirou essas palavras de minha
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boca”. Convocado à p presenca dos dois, Monk tomou conheci mento da idéia
que, transmitida aos demais coronéis, obteve deles “alegre con cordância”* A investida foi assim concebida, de forma au daciosa, e mais tarde um soldado recordou que Cromwell passara diversos re gimentos em revista, durante a noite montado num pequeno cavalo escocês, “mordendo os lábios até tirar sangue”. imaginando os últimos detalhes de um ataque de su rpresa. No alvorecer E como se viu depois, um pouco antes, provavelment po e r volta das quatro horas .. Os primeiros contingentes cruzaram as margen s íngremes do Broxburn, tomando
posição para cair sobre os adversários, que de nada suspei t avam, pois eles mesmos ti nham inclusive planos de atacar naquele me smo dia. As manobras se desenvol.
veram no escuro — há narrativas que se referem à luz do luar — e em completo silêncio: seis regimentos de cavalaria, sob o comando de Fleetwood, Lambert e Whalley, e três regimentos e meio de infantaria ultrapass aram a ala direita do inimigo. À brigada de infantaria chefiada por Overton permanec eu do outro lado do riacho, junto aos canhões postados segundo as orientações de Richard Deane. Com o apoio dessas peças, os dragões de Okey, provavelmente, co meçaram a batalha. O dia estava clareando, e, embora a cavalaria acabasse rompen do as linhas oponentes, no período inicial, brandindo suas longas lanças espanholas, os ho-
mens de Leslie conseguiram detê-los, enquanto alhures se travava aquilo que
Cromwell definiu como “uma disputa muito violenta à ponta de espada”. No centro a infantaria de Monk encontrou uma resistência ainda mais dura e recuou.
Foi então que Oliver ordenou que seu próprio regimento, sob o comando de Goffe e White, penetrasse pelos vãos do arco escocês, à esquer da do centro, onde a luta era mais encarniçada 2**
diria ser “especial “Maurice Ashley em
, hino que cinco anos mais tarde Cromwell
para qualquer cristão”. O dos escoceses limitava-se ao brado Cromuwel)'s Generals,
IP- 38, sugere que não foi tanto a ap reita escocesa que atraiu a atenção dos gen era da alaa: is, mas sua frágil posição, cheia deerta cl ar os ; embora Cromwell se atrasasse em penetrar por esses espaços de forma letal, seu relatório a como o que primeiro lhe chamou a atençê ”” » ele nã o me nc io na nada além disso. **O) tosco menumento, feito de aa a pedra, comemorativo de Dunbar em que estão inscritas à gumas palavras de CarCar lyl e — «A lyl qu e i — “Aq ui tev e | : ugar a maior agonia da bataaalha de Dun acha-se localizado, aproxi madamente, Ponto de onde Cromwell enviou suas reservas: campo de batalha, dominado por Doon no Hill, mantém quase a mesma aparência — à ção de algumas obras modernas de cimento. *
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)
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“Convenção”. Talvez lhe tenha ocorrido novamente a lembrança do capítulo 28, de Isaías — “Naquele dia o Senhor dos Exércitos será por coroa gloriosa, e por grinalda formosa para os restantes de seu povo”. Com certeza, a Bíblia e o fervor religioso que impregnara toda a campanha estariam em
sua mente, pois foi com aquela intervenção que o rumo da batalha mudou a favor dos ingleses. Às 6h, justamente quando o sol se erguia sobre o mar do Norte, sir John Hodgson ouviu-o saudar o astro-rei, citando triunfante o
Salmo 68: “Levante-se, Deus, e sejam dissipados os seus inimigos.” Pois
naquele momento, após ter sido temporariamente repelida, a cavalaria conseguira irromper de forma selvagem, “voando por ali como as Fúrias, matando e executando” aqueles que o Senhor dos Exércitos “transformara em palha de suas espadas”, segundo Oliver; ou, de forma menos glamourosa,
segundo Whitelocke, “empurrando os escoceses como perus”.? Numa debandada terrível, os soldados rivais foram caçados até cerca de 12 quilômetros. Acredita-se que uns três mil pereceram e outros tantos caí-
ram prisioneiros. As provisões de ambos os lados eram tão escassas que seria melhor estar entre os mortos. Na marcha forçada dos que haviam sido captu-
rados, em direção ao sul, faltaram alimentos, e os cativos arrancaram repolhos crus das hortas em Morpeth. O exército inglês transformara-se numa so-
berba máquina de guerra, capaz de executar uma manobra difícil como aquela travessia silenciosa, durante a madrugada, contra um inimigo em vantagem numérica e ao cabo de uma campanha árdua. Lambert, um dos heróis
da batalha, teve participação excepcionalmente boa, tanto no planejamento, quanto na arregimentação da cavalaria. Do lado escocês, cabe destacar a duvidosa participação dos pastores protestantes, que influenciaram a decisão do Comitê dos Proprietários, “envolvendo-se tolamente na política terrena (...)”. Foi Cromwell quem inspirou o ataque e, depois, lançou as reservas no momento decisivo e no lugar certo. Assim, Dunbar convertera-se na sua
obra-prima, a maior vitória de sua grande carreira. Ele não atuara com a for-
Sa, nem numa situação propícia — os mais ferrenhos inimigos admitiriam
Isso. Escrevendo de Londres, Sadrach Simpson disse francamente que os êxitos anteriores deviam-se ao fato dele dispor de “muitos e muito vigorosos”
soldados, mas Dunbar fora um teste supremo, no qual ele tivera de enfrentar “a terra fria e a falta de provisões, num país estranho”. No relatório que enviou ao Parlamento, o general descreveu a pugna como “uma das graças maiores que Deus propiciou à Inglaterra, e a Seu povo, nessa guerra”. Em 4 de setem-
bro, quando a tranquilidade voltou ao campo de batalha, ele enviou cartas
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aos Comuns, ao presidente do Conselho de Estado, a Haselrig em Newcastle a Ireton na Irlanda, à sua “amada esposa” em Londres, a seu “querido irmã o»
Richard Mayor, no Hampshire, e até mesmo a /or d Wharton — todas demons. trando uma jubilosa exaltação, quase delirante. Segundo o bi spo Burnet, desde
então Dunbar tornou-se um de seus temas favoritos de co nversação: ele adorava
contar o comportamento que tivera na batalha, de tal sorte que os detalhes a respeito chegaram até nós com bastante segurança.” Aquele foi “seu dia mais auspicioso”. Dunbar provocou reações específicas em cada segmento da opinião pública. A Inglaterra ficou extasiada. Em Charing Cross, a caminho de Chelsea, Whitelocke foi detido por um mensageiro esbaforido que lhe disse: “Oh, meu senhor, Deus apareceu para nós na Escócia; um dia glorioso, meu senhor, em Dunbar, na Escócia.” Depois disso, querendo chegar logo à Câmara dos Comuns, o homem afastou-se apressadamente, obrigando Whitelocke a mudar o rumo da carruagem e segui-lo a fim de inteirar-se dos termos do relatório. O Parlamento decidiu cunhar uma medalha, a ser entregue a todos os soldados e oficiais,* contratando para isso os serviços de Thomas Simon, que viajou a Edimburgo no início do ano seguinte para fazer o retrato do LordeGeneral. Cromwell escreveu a Londres, protestando debilmente: “Posso assegurar que seria agradecimento suficiente retirarem minha efígie [substituindo-a por] um retrato do Parlamento, que sairia singularmente bem”; fazia
questão, no entanto, da presença das tropas e do lema: — “O Senhor dos Exércitos”. Com muita perícia, Simon conseguiu introduzir, numa das faces,
encimando uma simbólica escaramuça, seu perfil e a inscrição do grito de guerra dos vitoriosos. Oliver ficou tão satisfeito que chegou a encomendar uma peça semelhante — o tempo ou o medalheiro acalmou seus escrúpulos? Os escoceses residentes em Londres empalideciam; à medida que as nô-
tícias se espalhavam, eles sofreram vexames, sendo insultad os, nas lojas. EM
carta a Mazarino, de Croullé mostrou-se afrontado com as prolongadas louvações a Deus feitas por Cromwell em seu relatório de batalha, um sinal,
afirmava, da natureza hipócrita dele e de toda à sua facção. Alarmado, o embaixador francês também ruminava contra o espírito militante que a vitória fizera brotar nos espíritos ingleses: circulavam boatos sobre a derrubada de 10245
CROMWELL
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as monarquias, e, nesse caso, a França seria a primeira da lista. Sublinhando suas palavras, as Nouvelles Ordinaires dedicou uma edição inteira ao relato que Oliver enviara à Câmara dos Comuns, descrevendo os detalhes do combate. Numa correspondência lírica, Oliver St John falou ao primo do senti-
mento predominante em todo o país: “Ambos os partidos atribuíram a Deus à decisão da causa, desejando que ele fizesse Seu julgamento no dia da batalha,
para que cada um dos lados e todos os que observavam pudessem conhecer Seu veredicto no tocante à justiça do que propunham. (...) O Deus do Julga-
mento assume a decisão conforme o pedido.”? Os escoceses insatisfeitos tiveram pensamento igual. Pois ninguém tomou
mais a sério a derrota do que eles próprios — a flor de seu exército fora vergo-
nhosamente esmagada, deixando a maior parte do sul da Escócia sob virtual ocu-
pação militar. Ademais, a indiscutível rejeição de sua causa pelo Senhor — o ve-
redicto do julgamento de Deus — desconcertou-os, e eles se quedaram confusos e atormentados. De certa forma, comportaram-se com honra admirável, diante
dessa assustadora providência, sem escamotearem que teriam sido os principais responsáveis, em virtude de sua falibilidade, pela desaprovação divina. Robert Baillie disse que o Senhor os abandonara, “contrariamente às aparências (...) devido à nossa própria negligência”, atribuindo as subsegiuentes divergências internas à “mão de Deus [que se abateu] sobre nós”. Psicologicamente, os partidários do rei aceitaram os fatos muito mais facilmente do que o Presbitério. O que o jovem monarca considerou apenas um “triste golpe”, no diário de Nicoll aparece como
uma instância vingativa de Deus, ampliando-se em consegiiência do mau tempo, prejudicial às colheitas, obrigando os escoceses a jejuar e humilhar-se — de fato, essa penitência tornou-se cada vez mais comum na Escócia pós-Dunbar. Mais
tarde ele consideraria Worcester um simples argumento a mais “da ira e da indig-
nação do Senhor contra o Reino da Escócia”, chegando à melancólica conclusão de que “o manto da piedade” devia estar cobrindo “muita sem-vergonhice” na-
quela época?
| A resistência, é claro, não terminou. Leslie escapou para à fortaleza de
Stir ling, portal das Highlands, onde conseguiu reunir uma tropa de quatro
mil a cinco mil homens. Os ex-companheiros de Cromwell, Strachan e Kerr, ambos dedicados presbiterianos, tomaram o rumo do oeste na esperança de
a “rregimentar mais forças. Em Perth, Carlos II tentava o mesmo, buscando
ajuda de Middleton — em outubro, na expedição conhecida como “o Princfdi
ende necess a idade Porém conven cionai aos s. aliado ele preferiu esse
Bolir e digerir
ultraje dividia os escoceses entre “admoestadores”, os duros,
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ANTONIA
FRASER
que exigiam uma estrita aderência à Convenção e desconfiavam da atitude do rei em relação a ela — talvez o relaxamento ti vesse sido o pecado que haviam cometido; e “solucionadores”, mode rados, que tendiam a aliar-se ãOS re alistas antes conhecidos como “malignos”. À va ntagem natural de tudo isso É que no futuro tendia-se a um partido nacion alista escocês, distanciado dos realista s, Isso permitia que Cr
omwell se aproximasse, individualmente, de anti gos con. vencionais, tentando persuadi-los de que Deus se declarara a favor dos ingleses. Ele concordava com uma certa liberali dade no terreno religioso, sempre interessad
o numa discussão fraternal com seus opon entes, aos quais assegura-
Ya que suas terras não seriam confiscadas, como ocorrera na Irlanda. Oliver entrou em Edimburgo no dia 7 de setembro. A cidade soubera de Dunbar de uma forma particularmente adeq uada: no momento em que um ce rto sr. Haig ocupava o púlpito, denunciand o os sectários e delineando sua derrota, um soldado exausto entrou pelos fundos da igreja e pôs-se a descrever o contrário — o massacre dos compatriot as. Cromwell foi recebido em Nether Bow por três