Olinda Restaurada - Guerra e Açúcar No Nordeste, 1630-1654
 9788573263749

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Evaldo Cabral de Mello

Olinda restaurada Guerra e açúcar no Nordeste, 1650-1654

editoralBl34

Evaldo Cabral de Mello

OLINDA RESTAURADA Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654

3º edição, definitiva

editorall34

EDITORA 34

Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777

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Copyright O Editora 34, 2007 Olinda restaurada O Evaldo Cabral de Mello, 1975, 1998, 2007

A fotocópia de qualquer folha deste livro é ilegal e configura uma apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Bracher & Malta Produção Gráfica Revisão: Cide Piquet

Camila Boldrini

12 Edição - 1975, Forense Universitária, Rio de Janeiro/Edusp, São Paulo 22 Edição - 1998, Topbooks, Rio de Janeiro 3º Edição - 2007

Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundação Biblioteca Nacional, RJ, Brasil) M217o

Mello, Evaldo Cabral de, 1936-

Olinda restaurada: guerra e açúcar no

Nordeste, 1630-1654 / Evaldo Cabral de Mello. —

são Paulo: Ed, 34, 2007.

384 p. ISBN 978-85-7326-374-9 1. Brasil - História - Domínio holandês,

1630-1654.

2. Brasil - História - Pernambuco.

E Título.

CDD - 981.03135

Índice

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À memória dos meus avós

“É impossível fazer a guerra sem soldados, sustentá-los

sem soldo, pagar os seus soldos sem tributos e criar tributos sem comércio.”

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Antoine de Montchrétien (1615)

Prefácio

“Muitos anos há [dizia um “Manifesto a favor dos mascates”, enviado à

Coroa por ocasião da crise de 1710-1711] que anda introduzida em Pernambuco uma proposição temerária mas abusória: que os naturais daquela conquista são vassalos desta Coroa mais políticos do que naturais, por haverem restaurado seus pais e avós aquele Estado da tirânica potência de Holanda no tempo da sempre felicíssima aclamação do Sereníssimo Senhor Rei D. João IV.” Sem ser invocada expressamente durante a guerra que expulsou os neerlandeses, a idéia de relação contratual entre os colonos e a Coroa (concepção a que não devia ter sido alheia a própria justificação jurídica da Restauração portuguesa de 1640) já se achava implícita na afirmação de que Pernambuco fora restaurado graças ao esforço exclusivo da sua gente. Para citar duas ocorrências iniciais deste topos fadado a grande fortuna histórica. Em 1651, a Câmara de Olinda dirigia-se a D. João IV reivindican-

do que “no provimento dos cargos e ofícios, assim da milícia como do político desta capitania de Pernambuco e das que para o norte ocupava o holandês, sejam os filhos e moradores da mesma terra preferidos”, de vez que “à custa de nosso sangue, vidas e despesas de nossas fazendas, pugnamos há mais de cinco anos por as libertar da possessão injusta do holandês”. Em 1656, o procurador de Pernambuco em Lisboa recordava que enquanto a Bahia e Angola haviam sido reconquistadas pelas armas da Coroa, o Nordeste! fora restaurado sem nenhuma ajuda da metrópole, já que os colonos o haviam logrado

! Ao longo deste livro, a expressão será exclusivamente utilizada no sentido de Nordeste oriental, vale dizer, a região compreendida entre os estados do Rio Grande do Norte e Alagoas.

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OLINDA RESTAURADA

“a custa de seu sangue, vidas e fazendas, até que conseguiram, por suas próprias mãos e com seu invencível valor, a expulsão de seus inimigos”. As guerras holandesas foram inegavelmente guerras do açúcar, não apenas no sentido, que é o geralmente posto em relevo, de guerras pelo açúcar, isto é, pelo controle das suas fontes brasileiras de produção, mas também no sentido, que é o deste livro, de guerras sustentadas pelo açúcar, ou antes, pelo sistema sócio-econômico que se desenvolvera no Nordeste com o fim de produzi-lo e exportá-lo para o mercado europeu. As páginas que se seguem buscam precisamente explorar as relações entre guerra e açúcar que sugere esta segunda acepção. Trata-se basicamente de descrever o processo pelo qual os custos do conflito recaíram em grande parte sobre a sociedade colonial e de reconstituir a maneira pela qual ela mobilizou os recursos escassos da sua ordem monocultora, latifundiária e escravocrata. Semelhante tarefa está longe de possuir interesse meramente acadêmico. À historiografia oitocentista supôs uma relação causal entre o domínio ho(E

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landês e a origem do sentimento nativista ou da consciência nacional, mas não

chegoua estabelecer o nexo entre ambos os fenômenos, de modo a analisar o problema com rigor, libertando-o da suspeita de refletir apenas o equívoco lógico do post hoc, propter hoc. Vai além a insuficiência historiográfica, supondo que o nexo é mecânico. Mas entre o restabelecimento da suserania portuguesa em 1654 e a eclosão do sentimento nativista 1 em 1710 medeou mais de meio século, que se relega ao esquecimento. Ora, nada assegura que, a despeito do ocorrido nestes cingiienta anos, a restauração? desembocasse na revolta da nobreza e André Vidal de Negreiros em Bernardo Vieira de Melo. É o efeito cumulativo do que se passou entre 1654 e 1710 sobre o que se passara de 1630 a 1654 que irá explicar em boa parte a Guerra dos Mascates. Braudel costumava recordar EarlJ. Hamilton dizendo-lhe em Simancas que nos períodos

de crescimento econômico as cicatrizes políticas e sociais se fecham como por

milagre. À reconstrução do Nordeste açucareiro a partir de 1654, a cicatriza-

ção das feridas profundas deixadas pela guerra terão lugar numa fase de contração da economia européia, de queda ou estagnação do preço do açúcar, de

2 A palavra restauração servirá para designar a segunda fase da guerra holandesa, iniciada com a Insurreição de 1645.

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PREFÁCIO

concorrência crescente no mercado internacional do produto, de progressiva subordinação da economia portuguesa à da Inglaterra e de aguçamento do conflito entre o produtor mazombo e o comerciante reinol. Quando se exclui o episódio da ocupação de Salvador em 1624-1625, a dominação holandesa no Brasil, que vai de 1630 a 1654, pode ser dividida em três períodos. O primeiro, de 1630, queda de Olinda, a 1637, quando o

exército hispano-luso-brasileiro abandona Pernambuco, corresponde à guerra de resistência, que se saldou pela imposição do poder neerlandês sobre toda a região entre o Ceará e o São Francisco. À segunda fase, de 1637 a 1645, engloba principalmente o governo de João Maurício de Nassau e o começo

da insurreição luso-brasileira, constituindo, na perspectiva historiográfica, a

Idade de Ouro do Brasil holandês. A etapa final, de junho de 1645 a janeiro de 1654, abrange a guerra de restauração, que terminou com a capitulação

do Recife e das demais praças fortes inimigas, liquidando definitivamente a presença holandesa no Nordeste. Estes vinte e quatro anos de domínio estrangeiro comportaram na realidade mais de dezesseis de guerra, pois da chegada de Nassau em 1637 à tré-

gua luso-neerlandesa de 1641, o Brasil holandês conheceu apenas uma paz precária, regularmente interrompida pelas excursões de contingentes campanhistas procedentes da Bahia, que atacavam os engenhos, saqueavam as po-

voações e incendiavam os canaviais, para não mencionar a irrupção da arma-

da do conde da Torre, que em começos de 1640 tentou sem êxito a reconquista. De verdadeira paz, o Brasil holandês só conheceu o período 16411645, que foram mesmo assim tempos difíceis em vista da crise do preço do açúcar. Por conseguinte, a realidade radical da dominação batava foi a guerra, não a paz; e seu interesse reside primordialmente no impacto da guerra

sobre a sociedade colonial que se desenvolvia no Nordeste — e não na tentativa, aliás fracassada, de implantação de instituições e valores da Europa mais avançada, como queria a historiografia nativista; ou ainda nos processos de choque e acomodação de cultura entre protestantes do norte da Europa e católicos portugueses, postos de relevo mais recentemente. À guerra ou as guerras holandesas assistiram ao emprego crescente dos recursos locais, e decrescente dos da metrópole, tendência que se acentuou durante a restauração, devido especialmente a que os luso-brasileiros já não dis-

punham do apoio da monarquia espanhola, de quem Portugal se separara

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OLINDA

RESTAURADA

definitivamente em 1640; e a que os poucos meios ao alcance da Coroa dos Bragança tinham naturalmente utilização prioritária na guerra contra castelhanos nas fronteiras do Reino e não no conflito do Brasil. Ao passo que durante a resistência os recursos levantados no Nordeste devem ter equivalido a

cerca de um terço dos gastos locais, na restauração eles terão girado em torno de dois terços. Esta foi assim uma empresa predominantemente local, dependendo majoritariamente dos recursos da terra, entre os quais avulta o impos-

to extraordinário sobre o açúcar, cujo rendimento era a mais importante ru-

brica fiscal. A mesma tendência observa-se na composição das forças militares. A resistência foi quase toda feita por tropas portuguesas, castelhanas e italianas, com a participação subsidiária de contingentes da terra. Ao contrário, durante a restauração a “infantaria natural”, que reunia os terços de homens livres, índios e africanos do Nordeste, correspondeu a cerca de dois terços dos efetivos luso-brasileiros. O comando militar passou por transformação paralela. O da resistência compusera-se em sua maioria de oficiais com experiência puramente européia; o da restauração foi quase todo brasileiro. A dependência dos recursos locais, a preponderância dos efetivos da terra e a experiência puramente colonial dos seus chefes deram à guerra de restauração aquela fisionomia própria, autônoma, já brasileira, que não escapa a quem a compara a resistência, em que ainda prevaleceu a mistura desenxabida de cosmopolitismo e localismo, de guerra européia e guerra do Brasil. Era a mesma associação indecisa de valores que surpreendeu com grande força empática o fado de Chico Buarque de Holanda, que nos fala das “avencas na caatinga”, dos “alecrins no canavial”, dos “licores na moringa”, dos “jasmins, coqueiros, fontes ou das “sardinhas, mandioca, num suave azulejo”. No tocante ao plano do livro, o capítulo 1 examina as estratégias adotadas por luso-brasileiros, de um lado, e por neerlandeses, de outro, as quais condicionaram o grau de mobilização dos recursos locais. As guerras holandesas constituíram episódio colonial da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e do velho conflito hispano-neerlandês também conhecido por Guerra dos Oitenta

Anos (1568-1648), mas somente quando diretamente relevantes para a defi-

nição daquelas estratégias é que se levaram em conta os cálculos e prioridades de política internacional. Os capítulos II e III analisam a produção, o comércio e a navegação luso-brasileiras dos anos de guerra. O capítulo IV ocupa-

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PREFÁCIO

se das finanças da luta, o capítulo V, do recrutamento das tropas e o VI, do

seu aprovistonamento. O capítulo VII é dedicado à adaptação da arte militar

européia às condições do Nordeste e às divergências entre as concepções militares convencionais e as da “guerra volante” ou “guerrilhas”. Finalmente, o

capítulo VIII detém-se no impacto da guerra sobre a propriedade, em particular sobre o conflito de interesses entre os proprietários de engenhos confiscados pelos neerlandeses e os novos donos de origem luso-brasileira que os adquiriram ao governo holandês, querela cuja reconstrução é indispensável para compreender as tensões entre os grupos que empreenderam a restauração antes e depois da vitória sobre os invasores. À investigação incluiu as fontes impressas, luso-brasileiras e holandesas,

e os manuscritos de relevância para o tema existentes no Arquivo Histórico

Ultramarino, na Biblioteca Nacional, na Biblioteca da Ajuda, no Arquivo

Nacional da Torre do Tombo, todos em Lisboa, e na Biblioteca da Universi-

dade de Coimbra. No Rio de Janeiro, foram consultados os documentos re-

lativos à guerra holandesa pertencentes ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, à seção de manuscritos da Biblioteca Nacional e à biblioteca do

Ministério das Relações Exteriores. No Recife, o autor utilizou o acervo da

coleção José Higino Duarte Pereira, no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, o qual contém a documentação do governo do Brasil holandês; e teve o privilégio de consultar as notas do historiador J. A.

Gonsalves de Mello, referentes às suas pesquisas em arquivos espanhóis e holandeses (nestes últimos complementando as pesquisas de José Higino), notas que ele gentilmente pôs à disposição, com a invulgar generosidade intelectual que era a sua. Por isso mesmo e por outros motivos, as primeiras palavras de agradecimento serão necessariamente para o mestre e primo a quem devo o estímulo e a orientação de doze anos de freqiientação do sobrado vermelho da rua das Pernambucanas, 420, na Capunga, de que guardo a recordação e a saudade mais vivas. Ele não foi apenas o grão-mestre da história de Pernambuco e do Nordeste. Foi também o mais vigilante guardião dos seus valores, como ao formular em 1972 o protesto do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano contra as homenagens com que desavisadamente o go-

verno do Estado associou a velha província às comemorações do traslado dos

restos mortais de D. Pedro I. Eram celebrações que podiam ser um dever de

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OLINDA

RESTAURADA

gratidão para outras partes do Brasil mas à margem das quais o governo de Pernambuco tinha o dever de manter-se, em memória dos filhos da terra atin-

gidos pela repressão feroz da Corte do Rio contra a revolução de 1824. Re-

volução que teve seu sesquicentenário curiosamente esquecido em 1974 pelos profissionais de festividades históricas, que tão numerosos se tinham mostrado dois anos antes. Para desfilar pelas ruas do Recife, onde o primeiro Imperador nunca ousara pôr os pés em vida, seus despojos tiveram de esperar pelo regime militar instaurado em 1964.

A gratidão do autor também se dirige a Elisa van Delden, de Genebra, cuja pertinácia batava terminou por capacitá-lo a ler a língua dos antigos dominadores do Nordeste, o holandês seiscentista, onde ele iria sentir-se bem mais à vontade do que no holandês moderno. À Sra. Lydia Combacau de Mi-

randa, da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, atendeu com a

maior das boas vontades às solicitações de empréstimo de livros relativos ao

tema versado nestas páginas e até obteve uma reprodução da narrativa de Cuthbert Pudsey, soldado inglês a serviço dos holandeses. À Sra. Jandira Martins Teixeira encarregou-se, dedicada e eficientemente, da datilografia do primeiro original. Por fim, os agradecimentos do autor vão para os funcionários

não só das instituições mencionadas acima, como também para os de outras a que também recorreu: a Divisão de Empréstimos, da Biblioteca do Congresso, e a Biblioteca Oliveira Lima, da Universidade Católica, ambas em Washington, D.C.; e a Biblioteca Dag Hamarskjoeld, da Organização das

Nações Unidas, em Nova York. Desde sua publicação em 1975 e ao longo de suas três edições, Olinda

restaurada manteve o argumento e a organização temática, mas foi reescrito

de cabo a rabo de maneira a integrar os resultados de pesquisas ulteriores e das contribuições surgidas nestes últimos trinta anos. Devido à extensão que tomaram alguns dos capítulos, restaurou-se, para conforto do leitor, o sistema de subtítulos usado na primeira edição. Ademais, foram suprimidas as tabelas constantes das duas primeiras edições, optando-se por expor no texto as conclusões que delas se podem tirar. Por fim, o autor deseja registrar seus melhores agradecimentos a Cide Piquet e Camila Boldrini pela competente revisão.

(1974-2007)

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Abreviaturas

ABNR]: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

AGS: Archivo General de Simancas; GA: Guerra antígua; SP: Secretarías provinciales. AHU: Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa. PA: Papéis avulsos. Pco.: Pernambuco; Ba.: Bahia; Pb.: Paraíba.

Ao.Go.: Alto Governo.

Ao.So.Co.: Alto e Supremo Conselho. AMP: Anais do Museu Paulista.

ANTT: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa. ARA, OWIC: Algemeen Rijksarchief, Oude West-Indische Compagnie, Haia. AUC: Arquivo da Universidade de Coimbra; CA, Coleção Conde dos Arcos. BA: Biblioteca da Ajuda, Lisboa. BNL: Biblioteca Nacional de Lisboa; FG, Fundo geral.

BNM: Biblioteca Nacional de Madri. BNRJ: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

CJH: Coleção José Higino, Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano; BPB: Brieven and papieren uit Brazilie; DN, Dagelische notulen; RD, Re-

lações diversas; RUB, Register van uitgang brieven. Co.Eo.: Conselho de Estado. Co.Fa.: Conselho de Fazenda,

Co.Po.: Conselho de Portugal. Co.Uo.: Conselho Ultramarino.

CCT: Correspondência do conde da Torre, Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro.

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OLINDA RESTAURADA

DH: Documentos holandeses, Rio, 1945.

IHGB: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; DH, Documentos holandeses. RIAP: Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. RIHGB: Revista do Instituto Flistórico e Geográfico Brasileiro.

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A empresa da terra e a vitória do mar

A ocupação holandesa do Nordeste constituiu episódio remoto da luta entre a Espanha e a República das Províncias Unidas dos Países Baixos que passaria à história sob a designação de Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648). Acentuou-se, com razão, que ela compreendeu dois conflitos distintos, a montante e a jusante da Trégua dos Doze Anos (1609-1621): uma guerra de independência nacional, deflagrada na esteira da revolta dos Países Baixos; e uma

contenda entre potências européias, que eram também potências coloniais. Durante a primeira, a Espanha procurara reimpor sua soberania sobre uma região que há muito era parte da monarquia e esmagar a heresia calvinista, que fornecera um poderoso aliciente ideológico à rebelião. No decurso da segunda, tais objetivos, já então julgados inalcançáveis, foram abandonados em favor de cálculos estratégicos atinentes ao equilíbrio europeu, em especial à relação de forças, de um lado, entre potências católicas e potências protestantes, e, de outro, entre as ambições dinásticas dos Habsburgos de Madri e de Viena, e dos Bourbons, da França; e em face de considerações relativas à

preservação do império ultramarino hispano-português diante da penetração neerlandesa, que tomara vulto nos anos da trégua.! Nas Províncias Unidas e no plano religioso, a versão gomarista do calvi-

nismo impusera-se desde o Sínodo de Dordrecht (1618). O choque de fac-

ções, que começara como uma controvérsia teológica sobre a predestinação,

! Jonathan I. Israel, “A conflict of empires: Spain and the Netherlands, 1618-1648”, Empires

and entrepots. The Dutch, the Spanish monarchy and the Jews, 1585-1713, Londres, 1990, pp. 1-2. Para a primeira fase da guerra, Geoffrey Parker, The Dutch revolt, Londres, 1977, e a bibliografia ali citada.

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OLINDA

RESTAURADA

descambara para uma grave crise política e institucional: a Maurício, prínci-

pe de Orange, apoiado pela linha dura do clero, pelo governo municipal de Amsterdã e pelos estratos subalternos da população urbana, opuseram-se os “Tegentes”, isto é, o patriciado de comerciantes que monopolizava o poder local, particularmente na província da Holanda. O desfecho foi uma nítida vitória dos contra-remonstrantes e dos partidários da guerra, com a execução de Johan van Oldenbarnevelt, o Grande Pensionário da Holanda.? Sob a égide de uma aliança de interesses inseguros, os do calvinismo ortodoxo e os da expansão colonial, as Províncias Unidas ingressaram na segunda fase da luta com a Espanha. Etapas de uma única guerra, como queria a historiografia tradicional, ou duas guerras distintas, o conflito hispano-neerlandês recomeçou pouco depois de deflagrada a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Como cem anos antes, a França buscava romper o cerco que austríacos e espanhóis lhe haviam imposto na Itália, nos Países Baixos e na mesma Alemanha, não hesitando com este fim em aliar-se ao Império otomano, adversário tradicional da Espanha no Mediterrâneo e da Áustria nos Bálcãs, bem como às potências protestantes, as Províncias Unidas e a Suécia, a despeito da influência do partido católico em Paris e da repressão desencadeada contra os huguenotes. A oposição entre as ambições coloniais da Espanha e das Províncias Unidas fará do conflito hispano-neerlandês um conflito global, ou, como sugeriu C. R. Boxer, a primeira guerra mundial da história. A guerra hispano-neerlandesa explica a criação na Holanda de uma sociedade por ações, a Companhia das Índias Ocidentais (ou W.I.C., West-Indie Compagnie), segundo o modelo da Companhia das Índias Orientais (ou

2 A bibliografia sobre o conflito político e religioso que culminou em 1618 é demasiado extensa e encontra-se na sua maior parte em holandês, mas o leitor interessado dispõe em língua inglesa de três obras utilíssimas: a primeira, que sofre de certa prolixidade, Jan de Tex, Oldenburbevelt, 2 vols. Cambridge, 1973; a segunda, que é um bem logrado exame do sistema político das Províncias Unidas no século XVII, de autoria de J. L. Price e intitulado Holland and the Dutch republic in the Seventeenth century. The politics of particularism, Oxford, 1994; e finalmente a notável síntese de Jonathan 1. Israel, The Dutch republic. Its rise, greatness and fall, 1477-1806, Oxford,

1995, pp. 129-230.

2 C, R. Boxer, The Portuguese seaborne empire, 1415-1825, Nova York, 1969, p. 106.

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À EMPRESA

DA TERRA

E À VITÓRIA

DO

MAR

V.O.C., Vereenigde Oost-Indie Compagnie), estabelecida em 1602. O pro-

jeto, engavetado durante a Trégua dos Doze Anos, foi posto em prática quando ela expirou em 1621. Os Estados Gerais, governo confederal das Províncias Unidas, outorgaram à W.I.C. o monopólio da conquista, navegação e comércio em toda a área entre a Terra Nova e o estreito de Magalhães, de um lado do Atlântico, e entre o trópico de Câncer e o cabo da Boa Esperança, de outro. Apenas incorporada, a W.1.C. já dispunha de capital superior a 7.000.000 de florins. À historiografia recente explodiu o mito de que ela teria resultado de uma conjura antiibérica da comunidade sefardita da Holanda, demonstrando que se deveu à iniciativa de comerciantes calvinistas que dos Países Baixos meridionais (a Bélgica atual) haviam emigrado para o norte após. a reconquista de Flandres e do Brabante pela Espanha. Daí, a tensão permanente entre seus fundadores e os regentes de Amsterdã, favoráveis a uma política moderada no tocante à Espanha, na expectativa de, finda a guerra, penetrarem comercialmente na América hispânica. Para compreender as guerras holandesas no Brasil, cumpre não perder de vista as vicissitudes da luta entre espanhóis e neerlandeses. É certo que os interesses de Portugal e de seu império ultramarino tinham peso específico nas decisões da Corte de Madri, como se constata no episódio da não-renovação da Trégua dos Doze Anos e da restauração da Bahia por uma armada luso-espanhola (1625). Mesmo assim, a guerra na América, na Ásia e muito

menos na África não podia ocupar, no elenco das prioridades estratégicas e dinásticas de Castela, o mesmo lugar que se atribuía ao norte da Itália, onde a Espanha possuía a Lombardia, ou aos Países Baixos, onde ela devia defender as Províncias meridionais contra as Províncias Unidas. Para a monarquia

espanhola, estes foram os palcos cruciais da guerra até 1640, quando a revolta da Catalunha e a restauração de Portugal baralharam as cartas do jogo, fazendo da segurança das fronteiras leste e oeste da península as grandes preocupações de Felipe IV. Inclusive no período mais rentável da exploração da

4 C. R. Boxer, The Dutch in Brazil, 1624-1654, Oxford, 1957. ? Acerca das prioridades internacionais da Espanha, Geoffrey Parker, “Spain, her enemies and the revolt of the Netherlands, 1559-1648”, Spain and the Netherlands, 1559-1659, Londres,

1990, pp. 18-43.

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ÓOLINDA RESTAURADA

prata e do ouro da América hispânica, coincidindo com o reinado de Felipe [1 (1555-1598), os metais preciosos não bastaram para financiar as responsabilidades internacionais do Império. O fantasma do déficit planou incessantemente sobre a capacidade de iniciativa de Madri, mesmo se as considerações financeiras desempenhavam papel subsidiário no processo de decisão.*

(COMO DEFENDER O IMPÉRIO

Se o problema da defesa do império ultramarino havia-se colocado em

Lisboa desde começos do século XVI, com a fundação do Estado da Índia,

em Madri ele só se tornara premente a partir dos anos setenta ou oitenta, em decorrência da intrusão das novas potências navais, a Inglaterra e a França. Até então, a Espanha contara com a colaboração da marinha lusitana no policiamento das rotas atlânticas, donde o atrativo que a aquisição do poderio marítimo português e a posição estratégica da capital lusitana exerceram na decisão de Felipe II de apossar-se da coroa dos Avis. Mas foi somente com a ascensão do conde-duque de Olivares ao posto de principal ministro de Felipe IV (1621), que os círculos dirigentes viriam a pôr em prática as idéias dos chamados “arbitristas del mar”. Ao contrário da Espanha, cujos compromissos europeus haviam crescido desproporcionalmente no rasto das conquistas de Fernando o Católico na Itália e da herança dinástica de Carlos V, Portugal praticara desde D. João II uma política de alheamento dos conflitos europeus (o que não quer dizer que não os observasse atentamente), para dedicar-se à expansão e à preservação das possessões ultramarinas. Elas eram eminentemente talássicas: ademais da deSJ. H. Elliott, “Foreign policy and domestic crisis: Spain, 1598-1659”, Spain and its world, 1500-1700, New Haven, 1989, pp. 124 e 134,

R. A. Stradling, The armada of Flanders. Spanish maritime policy and the European war, 1568-1668, Cambridge,

1992, pp. 6-7, 21-2, 48-9, 52-4, 61 e 105; Geoftrey Parker, The grand

strategy of Philip II, New Haven, 1998, pp. 166-7. E também José Alcalá-Zamora y Queipo de Llano, Espafia, Flandes y el mar de Norte (1618-1639). La última ofensiva europea de los Austrias madrilerios, Barcelona, 1975; e 1. A. A. Thompson, War and government in Habsburg Spain, 15601620, Londres, 1976.

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À

EMPRESA

DA TERRA

E A VITÓRIA

DO

MAR

pendência das comunicações marítimas, em que também se achava Castela relativamente às suas conquistas coloniais, os núcleos portugueses no Brasil, na África e no Oriente concentravam-se no litoral, sendo particularmente vulneráveis aos ataques de outros curopeus, enquanto na América espanhola os centros do poder localizavam-se nos altiplanos mexicanos e andinos, de acesso difícil e penoso.º Na defesa de impérios criados pela revolução tecnológica que combinara avanços em engenharia naval e artilharia,” portugueses e espanhóis, como depois holandeses, ingleses e franceses, atribuíam ao poderio naval a mesma eficácia decisiva que se creditará no século XX ao bombardeio aéreo estratégico. Seu papel na segurança dos Estados “desunidos”, ou territorialmente dispersos, fora formulado por Giovanni Botero, cuja filosofia política, juntamente com a de Justus Lipsius e a do tacitismo, serviu na Península Ibérica de equivalente funcional do maquiavelismo, que a consciência católica dos homens de Estado repudiava.!º As possessões da monarquia espanhola, tanto na Europa quanto fora dela, só podiam ser governadas “por meio do mar, pois não há estado tão distante que não possa ser socorrido pelas armas marítimas”, sobretudo depois que Portugal agregara-se a Castela e que ambas as nações, “indo a primeira de ocidente para oriente e a segunda para ocidente, encontram-se e juntam-se nas ilhas Filipinas, e em tamanha viagem encontram por todo o lado ilhas, reinos e portos à sua disposição, porque ou pertencem ao domínio ou a príncipes amigos ou a clientes ou a confederados seus”.!! No reinado de Felipe II, D. Bernardino de Mendoza, autor de uma Teoria e prática da guerra (1595), ou o célebre Antonio Pérez, haviam enfatizado

9 Para uma comparação entre a colonização portuguesa e espanhola na América em termos

de ocupação preferencial da “marinha” e do “sertão”, Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brastl, 34 ed., Rio, 1953, pp. 132 ss. 2 Carlo M. Cipolla, Gus, sails and empires, Nova York, 1965. 10 Peter Burke, “Tacitism, scepticism and reason of State”, J. H. Burns (ed.), The Cambridge

history of political thought, 1450-1700, Cambridge, 1991, pp. 479 ss. Para a influência de Botero em Portugal, vd. a introdução de Luís Reis Torgal a João Botero, Da razão de Estado, Coimbra, 1992, pp. xv ss.

1 Da razão de Estado, cit., pp. 12-4.

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OLINDA RESTAURADA

a importância do poder naval; o caso também de Álamos de Barrientos. A

Pérez, deve-se o aforismo repetido por um teórico da monarquia espanhola, Tommaso Campanella, aforismo que, nos começos do século XX, teria feito a delícia dos estrategistas anglo-saxões do “sea power”: “O príncipe que for senhor do mar será dono da terra”.!2 Daí que o próprio Felipe II tivesse cogitado de transferir a capital para Lisboa, porque, como assinalava o padre

Antônio Vieira,

tendo a Espanha tanta parte dos seus domínios no mar Mediterrâneo, tanta

12 Gregório Maranón, Antonio Pérez. El hombre, el drama, la época, 7º ed., Madri, 1970, p.

650; Luis Díez del Corral, El pensamiento político europeu y la monarquia de Espafia. De Maquiavelo a Humboldt, 2º ed., Madri, 1983, p. 317. Na época, havia-se acusado Antonio Pérez, já exilado na Inglaterra, de haver inspirado os projetos navais do conde de Essex contra a Espanha e suas conquistas ultramarinas.

'? Antônio Vieira, Sermões, 5 vols., Porto, 1959, v, xv, p. 114. Este trecho de sermão insere-se na narrativa da missão diplomática que D. João IV lhe confiara em Roma (1650), com o fim de sondar as possibilidades de um acordo de paz com Castela, mediante o casamento do herdeiro

do trono português, o príncipe D. Teodósio, com a infanta Maria Teresa, herdeira do trono espanhol. D. João IV abdicaria no filho e a sede da monarquia seria transferida para Lisboa: João Lúcio d Azevedo, História de António Vieira, 2 vols., Lisboa, 1918, i, pp. 176-9. Desde 1607, Luís Mendes de Vasconcelos escrevera em defesa da transferência, mas só utilizara de raspão o argumen-

to geopolítico: “Diálogos do sítio de Lisboa”, António Sérgio (ed.), Antologia dos economistas por-

tugueses, Século XVII, 2º ed., Lisboa, 1974, pp. 27 ss.

24

ST + Md E FO dg

A favor de Lisboa, havia o argumento geopolítico posto de relevo por Pierre Chaunu, para quem “as estruturas espaciais do Atlântico” favoreciam os portugueses: passado certo momento, quando chega o outono, Amsterdã se afasta prodigiosamente de Lisboa e do Brasil” em decorrência das condições físicas da navegação. E o historiador dá o exemplo da restauração da

E

mar, só na água, pouca e doce, que o inverno empresta ao Manzanares?!2

F==

ter a Corte onde as ondas lhe batessem nos muros. E dependendo todo o manejo da monarquia da navegação de frotas e armadas e dos ventos que se mudam por instantes, que política pode haver mais alheia da razão que têla cem léguas pela terra adentro, onde os navios só se vêem pintados, e o

sq:

no mar setentrional e tantas e tão vastas em todo o mar oceano, havia de

À EMPRESA

DA TERRA

E A VITÓRIA

DO MAR

Bahia (1625), em que “as razões geopolíticas, que fundaram no século XVI o monopólio dos ibéricos, vêm uma vez mais à tona”. À notícia da perda de Salvador chegou com um mês de antecedência a Lisboa, fazendo toda a dife-

rença ao dar à armada de D. Fadrique de Toledo a dianteira sobre a força naval de Boudewijn Hendricks enviada em apoio ao exército neerlandês na Bahia. !4 A mesma vantagem será crucial ao tempo da restauração, com a armada de Vila Pouca de Aguiar, que em 1647 antecipou-se à de Witte de With, estorvada pelo inverno no mar do Norte. Quando o chantre da Sé de Évora, Manuel Severim de Faria, buscou convencer Felipe IV a realizar o velho sonho de transformar Lisboa na sede da

repisava o argumento de que “a nenhum príncipe importa tanto o poder do mar como ao da Espanha, pois só pelo meio das forças marítimas faz um corpo unido de tantas e tão distantes províncias”.!? Nos seus conselhos práticos para uso de chefes militares, D. Francisco Manuel de Melo considerou o princípio por demais óbvio para expô-lo, limitando-se a escrever que “a potência mais conveniente às armas da Espanha é a que se põe no mar, e pot ser matéria de Estado tão conhecida, não a disputaria, mesmo se a achasse própria deste lugar”.!6 Ao privilegiar-se a ação naval na defesa ultramarina, relegava-se a guerra terrestre a papel subsidiário, introduzindo-se a especialização de funções entre metrópole e colônia, a qual correspondia à posição relativa de cada uma em termos de recursos demográficos e econômicos. Essa divisão de tarefas já se encontra formulada nas reflexões de D. Bernardino de Mendoza. Referindo-se à monarquia espanhola, dizia o embaixador de Felipe Il em Paris que

!á Pierre Chaunu, “Brésil et Atlantique au XVIIême sitcle”, Annales. Economies. Soctétés. Civilisations, 6 (1951), p. 1.204.

|5 Manuel Severim de Faria, Discursos vários políticos, Évora, 1674, fls. 3y.-4, 16 Francisco Manuel de Melo, Política militar en avisos de generales, Madri, 1638, fl. 6v.

25

— — lia

gráfica e a natureza talássica das possessões do Rei Católico, Severim de Faria

Ep q

portância do poder naval para a conservação do Império colonial e, por sua vez, na do Império colonial para a posição da monarquia na Europa. Após invocar D. Bernardino de Mendoza, que também assinalara a dispersão geo-

=

monarquia espanhola, encontrou seu argumento mais convincente na im-

OLINDA RESTAURADA

“a qualidade de suas coroas e Estados pede, devido à situação em que se encontram, que se tenham armadas no mar com que socorrê-los em qualquer sucesso e ofender o inimigo, pois por si mesmos cada um tem forças com que se manterem à espera de socorro”.!” O argumento continuava válido nos séculos XVII e XVII. Em 1648, segundo o procurador da Fazenda, Pedro Fernandes Monteiro, cabia à metrópole a defesa naval do Brasil; e a este, a defesa terrestre mediante os recursos próprios. O mesmo sustentará 130 anos depois o ministro Martinho de Melo e Castro.!* O pacto colonial implicava, portanto, não só a partilha das atividades econômicas, como se acentua geralmente, mas também a das responsabilidades de defesa e o rateio dos seus custos. Ora, o emprego do poder naval tendia a maximizar os gastos da metrópole; a defesa local, os da colônia. Tudo dependeria, por conseguinte, da intensidade com que um e outro seriam aplicados em cada situação, vale dizer, da combinação de fatores induzida pelas circunstâncias. A analogia com a teoria econômica ajudará a compreender o problema, tanto mais que atividades militares e econômicas são, por excelência, as esferas da racionalidade no sentido de adequação estrita de meios e fins: ao produzir um determinado bem, o agente econômico combina os fatores de produção (terra, mão-de-obra, capital, know how), de maneira a intensificar o uso do fator relativamente abundante e barato, e a minimizar o uso do fator relativamente escasso ou caro. Ao fazerem a guerra, os Estados não agem de outro modo.

“GUERRA LENTA...

A estratégia luso-espanhola durante a guerra de resistência, que seria

depois seguida na da restauração, combinou poder naval e defesa local, segundo a disponibilidade de ambos os “fatores”. Os primeiros decênios do século

XVI assistiram a mudanças importantes: de um lado, a deterioração relativa

!/ Severim de Faria, Discursos vários, El. 4.

!8 Parecer de Pedro Fernandes Monteiro. 1648, BNL, FG, 1551; Martinho de Melo e Castro

a Luís de Vasconcelos e Souza, 27.1.1779, RIHGB, 25 (1862), pp. 480-1.

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À EMPRESA DA TERRA E A VITÓRIA DO MAR

do poderio militar da monarquia espanhola, inclusive no seu componente naval; e, de outro, o crescimento dos recursos ao alcance da economia e da sociedade coloniais. Destarte, os ônus do conflito podiam ser automaticamente transferidos à colônia, transformando a defesa local, “fator” relativamente abundante, no principal ou mais intensamente empregado, embora sua função permanecesse subsidiária do poder naval, relativamente escasso. No pa-

pel, a partilha das responsabilidades prosseguia sendo a mesma, mas havendo-se modificado a disponibilidade dos recursos metropolitanos e dos recursos coloniais, a metrópole podia repassar à colônia parcela substancial dos custos da guerra. As melhores cabeças da época deram-se conta das vantagens militares que decorriam para Portugal do crescimento da população e da economia brasileiras. Num papel de 1648, propondo a formação de uma companhia lusofranco-sueca a fim de destruir pela concorrência o comércio neerlandês de produtos tropicais, um dos muitos projetos em que foi fértil a mente do padre Antônio Vieira, ele sustentava que o comércio português com o Brasil devia ser necessariamente mais lucrativo que o holandês, pela simples razão

de que a navegação de Portugal, por benefício do clima, sítio e comodidades dos portos, é muito mais breve, muito mais fácil e livre e de menos risco. E por

serem as conquistas de Portugal povoadas e defendidas pelos portugueses que as habitam e sustentadas pelas mesmas rendas de suas mesmas cidades, não têm necessidade os mercadores das nossas companhias de pagar soldos nem edificar e sustentar fortalezas, como fazem os das companhias de Holanda com excessivos gastos. De onde se segue que, sendo naquele comércio muito menores as despesas, será a ganância [i.e., o lucro] muito maior, como mostra

: + 16 a experiência.! )

Entre a restauração da Bahia e a ocupação holandesa de Pernambuco,

agravara-se a situação militar e financeira da monarquia espanhola, o que

19 Toão Lúcio d'Azevedo (ed.), Cartas do padre António Vieira, 3 vols., Coimbra, 1925-1928, |, p. 219.

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OLINDA

RESTAURADA

explica por que ela pôde responder célere e energicamente em Salvador mas não em Olinda. Após 1625, o annus mirabilis da definição de J. H. Elliott,

quando se assistira também à rendição de Breda, ao fracasso do ataque angloholandês a Cádiz e ao fiasco da aliança da França e da Sabóia contra Gênova.

a Espanha sofreu uma série de contundentes revezes: a bancarrota de 1627, o fracasso do programa reformista de Olivares, a guerra de Mântua, a captu-

ra da frota da prata por Piet Heyn. O esforço militar feito no norte da Itália contra os franceses redundou numa alteração do equilíbrio estratégico nos Países Baixos, com a derrota de Hertogenbosch (1629).?!

Quando da perda de Olinda, a Coroa estava despreparada para reagir na escala em que fizera cinco anos antes. A reação inicial de Olivares foi moderada: falava em acudir a resistência capitaneada por Matias de Albuquerque, irmão do quarto donatário, mas não falava de armada restauradora.?2 Igual-

mente moderada foi a atitude de D. Antônio de Ataíde, conde de Castro: que

se enviassem soldados e munições. “Parece que não se pode fazer mais”, aduzia, ponto de vista compartilhado pelo marquês de Oropesa, embora participasse da oposição a Olivares.?? Os tempos sendo outros, já não se podia repetir “a jornada dos vassalos” de 1625. Como assinalou C. R. Boxer,

o Brasil não era a única dor de cabeça de Olivares e de seus conselheiros. O

avanço do exército sueco na Alemanha, a perda num furacão caribenho da mais rica frota da prata a partir do México (novembro de 1631), a derrota e morte de Constantino de Sá no Ceilão e três anos sucessivos de estiagem e fome em Portugal (1630-1632), eram apenas alguns dos desastres sofridos pelos vassalos e aliados do Rei Católico. Não era só de Pernambuco que chegavam os apelos urgentes por ajuda, mas das Índias Ocidentais, da Índia, de Flandres, da Itália e da Alemanha. Foram estes múltiplos compromissos

20]. H. Elliott, The count-dube of Olivares. The statesman in an age of decline, New Haven,

198p.9, 226.

21 Israel, The Dutch republic, pp. 497-8 e 507.

?? Conde-duque de Olivares ao duque de Vila Hermosa, 4.v.1630, BNRJ, 1, 2, 35, . 1325. 23 Voto do conde de Castro, 30.iv.1630, BNRJ,

1, 2, 35, fl. 128v.; “Discurso del marqués

de Oropesa sobre el socorro de Pernambuco”, 1630, BNM, 18.719.

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À EMPRESA

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E A VITÓRIA

DO

MAR

em outras frentes e não a indiferença ou a letargia espanholas o que impediu, durante tanto tempo, o envio de auxílio adequado a Pernambuco.?

Dali e de Lisboa pedia-se o envio de armada,?? pois D. Diogo de Castro, conde de Basto, que reassumira havia pouco o governo de Portugal, era sogro do donatário de Pernambuco, Duarte de Albuquerque Coelho. É certo que, em 1631, a Coroa logrou reunir a duras penas os meios com que despachar a força naval de D. Antônio de Oquendo, não sem que as autoridades espanholas e portuguesas se engajassem numa guerrilha de recriminações mútuas devido à atitude das municipalidades do Reino, que se recusavam a pa-

gar as quotas do subsídio indispensável ao socorro. Mas a armada de Oquendo não era restauradora, como fora a de Fadrique de Toledo ou será a do conde

da Torre, tendo apenas a missão de transportar reforços, inclusive o contin-

gente hispano-napolitano que, sob o conde de Bagnuolo, apoiaria a guerra de usura encetada por Matias de Albuquerque.?º Matias, irmão do donatário, era um competente militar e administrador que já governara a capitania e que em antecipação do ataque batavo fora enviado de volta por Madri como comandante supremo. Embora Felipe IV tivesse tomado a decisão de enviar armada capaz de restaurar Olinda-Recife,” não havia recursos para tanto, razão pela qual após a armada de Oquendo, El Rei ordenou o despacho de 15 caravelas com 1.300 soldados e 40.000 cruzados. Mesmo esta ajuda modesta não

se concretizou, e em março de 1632, Madri já se contentava em enviá-las “à

desfilada”, duas a duas a cada mês. Em maio, três estariam de partida, mas

tão pouco providas que, previa-se, só serviriam de “desanimar a todos. Ape-

nas duas velejaram levando 60 homens, malgrado o fato de que há oito meses nada se havia mandado, donde sugerir o Conselho de Estado em Lisboa ser mais prático o socorro “em caravelas e navios de particulares, naturais ou

24 Boxer, The Dutch in Brazil, p. 54.

25 Co.Eo., 29.iv.1630, BNRJ, 1, 2, 35, fls. 134v-137, transcrita por F. A. de Varnhagen, História das lutas com os holandeses no Brasil desde 1624 a 1654, Viena, 1871, pp. 297-302. 26 Instruções de D. Antônio de Oquendo, xii.1633, AGS, GA, 1077.

2! Carta régia de 25.11.1632, BA, 51-X-2, fls. 96-7; José Furtado de Mendonça a Felipe IV, 30.vi.1633, AGS, GA, 1087; Diogo Soares a Pedro Coloma,

29

18.vii.1633, AGS, GA, 1080.

no Nordeste, foram críticos para a marinha espanhola. A crise naval só foi

28 Cartas régias de 27.1, 1, 3 e 10.iii, 21.iv, Co.Eo., 20.v.1632, BA, 51-X-2, 2? Duarte de Albuquerque Coelho, Memórias diárias da guerra do Brasil (citado doravante como Memórias didrias), Recife, 1944, p. 35; Bagnuolo ao conde de Castro, 3.iv.1633, BA, 49X-28. 30 Tosé Furtado de Mendonça ao conde-duque de Olivares, 22.1.1633, AGS, GA, 1078; idem a Felipe IV, 30.vi.1633, AGS, GA, 1091.

“! Felipe IV a D. Diogo de Castro, Madri, 9.vi.1634, BNRJ, 1, 34, 32, 1. 22 Carla Rahn Phillips, Six galleons for the king ofº Spain. Imperial defense in the early Seventeenth century, Baltimore, 1986, pp. 191 e 196; Stuart B. Schwartz, “A jornada dos vassalos: poder real, deveres nobres e capital mercantil antes da Restauração, 1624-1640”, Da América portuguesa ao Brasil, Lisboa, 2003, pp. 155-6. 23 Jesus Varela Marcos, “A expedição de Lope de Hoces ao Brasil”, Max Justo Guedes, His-

tória naval brasileira, ii, ia, Rio, 1990, p. 187.

50

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Adotou-se outro alvitre, o de que a armada restauradora seria desnecessária uma vez que se despachassem “muitos navios de força e de porte medianos, formando uma força de 10 ou 12 unidades que policiasse o litoral,3º fazendo-se no mar a guerra defensiva que se promovia em terra. Plan ejaramse quatro esquadras, que deviam zarpar entre julho e janeiro de 1635.3! Contudo, o projeto, que não obteve a colaboração financeira de Portugal, foi abandonado ao concluir-se que ele desguarneceria o litoral ibérico.22 A expedição organizada em 1635, às ordens de D. Lope de Hoces, destinava-se, como a de Oquendo, a trazer tropas frescas sob o comando de D. Luís de Rojas y Borja, zarpando em seguida para o Caribe com a missão de restaurar Curaçao, recém-ocupada pela W.1.C., e de comboiar o regresso da frota da prata a Sevilha, embora no tocante a ambas se sustentasse na época que poderiam ter desfechado um ataque bem-sucedido contra o Recife. Os primeiros anos trinta, que viram a expansão do domínio holandês

ig

nhos”, ou recrutas, que traziam, eram inúteis.??

Emo

estrangeiros”.º Para escapar da marinha holandesa, descarregavam em pontos distantes da Paraíba, do Rio Grande ou de Alagoas, de modo que quando o socorro chegava ao destino, “era em estado tal, que nem metade se aproveitava, tanto a respeito da gente como do mais que conduziam”. Os “biso-

E

ÓOLINDA RESTAURADA

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MAR

superada por volta de 1637.%4 A entrada da França na guerra com a Espanha (1635) agravara a situação das finanças imperiais. O acréscimo das despesas militares na Europa ocorria em conjuntura desfavorável: desde a virada do decênio, fazia-se sentir a queda abrupta no comércio com a América espanhola e o declínio acentuado das remessas de prata que chegavam a Sevilha e que, através dos mecanismos dos “asientos”, financiava o orçamento da monarquia. Só nos fins do decênio, iniciaram-se os preparativos de duas grandes armadas, a de restauração do Nordeste, confiada ao conde da Torre, e a destinada aos Países Baixos, entregue a D. Antônio de Oquendo, cujo duplo malogro soaria o fim da preponderância espanhola na Europa.” Foi assim que, na impossibilidade do emprego estratégico do poder naval, a resistência no Nordeste limitou-se à guerra terrestre, com o concurso de tropas da terra e de contingentes espanhóis, portugueses e napolitanos. A estratégia a que se chamou na época de “guerra lenta” visava à contenção do inimigo, assegurando o controle do interior, em especial das áreas açucareiras,

e reduzindo os neerlandeses à área entre Olinda e o Recife, à espera de que a Coroa enviasse a armada restauradora ou de que a W.I.C. desistisse da empreitada, por não poder, na sua condição de empresa comercial, arcar indefinidamente com os custos da conquista. Do Reino, enviar-se-tam os recursos

estritamente necessários a sustentar o impasse: socorros periódicos em efetivos, armas, munições, víveres, etc., enquanto a tarefa de garantir a navegação entre o Nordeste e Portugal, indispensável do momento em que os ônus do conflito passavam a incidir sobre a população colonial, ficava a cargo da marinha mercante.?9 Seguia-se o precedente da resistência à ocupação de Salvador em 1624-

1625, quando se lograra encurralar o inimigo batavo na capital, de sorte que

estivesse fechado na cidade que tomara e se não estendesse ao Recôncavo da 34 Stradling, The armada of Flanders,

D: 59,

35 Pierre e Huguette Chaunu, Séville et LAtlantique (1504-1650), 12 vols., Paris, 1955-1960, viii, p. 1.654; A. Domínguez Ortiz, Política y hacienda de Felipe IV, Madri, 1960. O argumento da obra de Pierre Chaunu foi resumido pelo autor em Séville et

P'Amérique, XVle et XVIe siêcies,

Paris 1977. 3% Para a estratégia de guerra lenta, Memórias diárias, pp. 46-7; e as “Adverténcias [...] hechas por Luís Álvares Barriga, caballero portugués”, ABNRJ, 56 (1950), p. 250.

31

OLINDA RESTAURADA

Bahia, porque nisso podiam perigar as grossas fazendas dos engenhos de açúcar, de que tanto proveito recebem as alfândegas de Sua Majestade”. Entrementes, o uso da guerrilha fora “de maior importância do que imaginar se pode”, pois

com o valor com que os nossos se houveram nos assaltos, não só desenganava ao inimigo que lhe não convinha sair da fortificação da cidade mas que nem com socorro da Holanda poderia sustentá-la, chegando as nossas ar-

madas. E por terem os assaltos dos nossos tão presos ao inimigo das portas adentro da cidade, foi limitar-lhe o poder, prendê-lo e segurá-lo, para não poder escapar do da armada de Sua Majestade.?”

Se no final das contas Salvador fora retomada, devera-se à reação pronta da Coroa, despachando a armada de D. Fadrique de Toledo. Do momento, porém, em que Madri achava-se de mãos atadas para atuar decisivamente em Pernambuco, a resistência tinha de revelar-se progressivamente incapaz de deter o avanço inimigo. Mesmo quando, a partir de 1632, tornou-se cada vez mais difícil conter os ataques neerlandeses ao interior, o objetivo da resistên-

cia não variou; e em 1635, perdidas as posições principais (a Paraíba, o Ar-

raial do Bom Jesus e o Cabo de Santo Agostinho), os planos ainda se inseriam no esquema de sempre. Reduzido a Alagoas, Rojas y Borja contava retomar o controle da “campanha”, como se dizia, encerrando o exército holandês nas praças-fortes litorâneas até que a prometida armada restauradora

viesse dar-lhes o golpe de misericórdia.?º No biênio 1630-1631, a guerra lenta conseguiu criar o impasse militar.

Os holandeses ocupavam apenas Olinda e o Recife, e assim mesmo sua posi-

ção era precária, pois só se mantinha graças à força naval. Em terra, era-lhes impossível romper o cerco feroz dos luso-brasileiros por meio de uma linha

de postos avançados, as “estâncias”, apoiadas pelo Arraial do Bom Jesus (er-

3/ Bartolomeu Guerreiro, Jornada dos vassalos da Coroa de Portugal, Rio, 1966, p. 79.

*8 Johannes de Laet, Jaerlyck verhael van de verrichtinghen der Geoctroyeerde West-Indische

Compagnie (citado doravante como Laeriyck verhael), (ed. S. P. "Honoré Naber), 4 vols., Haia, 1931-

1957, tv, p. 218. Há tradução para o português por José Higino Duarte Pereira e Pedro Souto Maior, Anais dos feitos da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais, 2 vols., Rio, 1916-1925.

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À EMPRESA

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E A VITÓRIA

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guido na Várzea)?? e guarnecidas por unidades de guerrilha que, movendo uma incessante “guerra volante”, os isolava do interior, impedindo-lhes o acesso aos engenhos de açúcar, às lavouras e às fazendas de criação .éº O general Matias de Albuquerque ajuntando a gente e, por conselho de homens práticos na guerra, fez uma fortaleza quase inexpugnável uma légua em distância do Recife e outra da vila [de Olinda], pouco mais ou menos, para fazer ao inimigo todo o mal que pudesse e impedir-lhe a que saísse pela terra dentro a destruir as fazendas e matar os moradores. Acabou-se a fortaleza com brevidade e forneceu-se com artilharia e formou-se ali arraial em forma. Logo lhe acudiram de roda a capitania muitos e valorosos mancebos, que divididos em estâncias, entre o Arraial, vila e Recife, tinham tão encurralado o holandês, que não era senhor nem de sair a buscar água para beber nem faxina para suas fortificações, porque em saindo de suas trincheiras, logo davam sobre eles e os matavam, e nem senhores eram de sair da vila para o Recife nem do Recife para a vila senão em grandes tropas, porque os nossos se deitavam a nado e, se era ocasião de maré vazia, passavam o rio; e postos

em emboscadas cada dia lhe faziam tanto dano que andavam assombrados.“!

Dois anos após a conquista de Olinda, que incendiaram devido às dificuldades de fortificá-la, os neerlandeses ainda se achavam cercados no Recife, entenda-se, na península (atual bairro do Recife) e na ilha adjacente de Antônio Vaz (atual bairro de Santo Antônio); e na cabeça-de-ponte estabelecida na extremidade meridional de Itamaracá,?? onde haviam construído

Olinda.

22 Várzea era a designação coeva para o distrito açucareiro do baixo Capibaribe, ao sul de

40 Vd. a representação cartográfica deste sistema de defesa, de autoria do célebre cosmógrafo João Teixeira Albernás, em Isa Adonias, As peças raras da mapoteca do Ministério das Relações Extenores, Rio, 1956, pp. 8-11; e, da mesma autora, Mapa. Imagens da formação territorial brasileira,

Rio, 1993, p. 167.

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35

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“2 Para distinguir entre a ilha e a capitania homônimas, a segunda será designada por capitania de Itamaracá.

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41 Manuel Calado do Salvador, O valeroso Lucideno e triunfo da liberdade (citado doravante como Lucideno), 2º ed., 2 vols,, Recife, 1942, i, p. 28.

OLINDA RESTAURADA

o forte Orange. Nada mais: malogrados haviam sido ataques à Paraíba e ao Rio Grande, a norte; a Rio Formoso e ao Cabo, ao sul. Tão completa era a

dependência em que se encontravam dos navios, que tudo, a começar pela alimentação, vinha-lhes da metrópole, o que suscitou na pena barroca do donatário o comentário irônico de que, “estando eles em terra havia tanto tempo, ainda navegavam, pois não tinham outros mantimentos mais que salgados”. Somente a partir de 1632 e, nitidamente, de 1633, o impasse começou a romper-se em seu favor. O ataque a Igaraçu, a queda do forte dos Afogados, a conquista de Itamaracá e do forte dos Reis Magos (Rio Grande), prefiguravam os anos cruéis que estavam por vir, com a perda da Paraíba (1634), a capitulação do Arraial e do Cabo (1635), a retirada do exército de resistência para as Alagoas, a derrota de Mata Redonda (1636), onde naufragaram

as esperanças depositadas na ofensiva de Rojas y Borja, a queda de Porto Calvo (1637) e a consolidação do Brasil holandês, de Fortaleza ao São Francis-

co, pelo governador, conde de Nassau. Até 1632-1633, a estabilidade da frente militar permitiu a organização do esforço de guerra luso-brasileiro e a mobilização dos recursos locais, de que dependia a guerra lenta, mas desde então tais condições foram desfeitas pela mudança da estratégia holandesa, que ha-

bilitará por fim os soldados da W.I.C. a levarem a melhor. Na perspectiva de Madri, a guerra lenta adequava-se como uma luva ao programa de integração imperial de Olivares destinado a redistribuir os ônus de defesa entre as coroas que compunham a monarquia espanhola e a aliviar o peso fiscal que recaífa sobre Castela,“ embora em Portugal se explicasse a estratégia em termos do descaso castelhano pela sorte de uma colônia lusitana, ou de uma manobra da família donatarial de Pernambuco, refratária a uma intervenção decisiva da Espanha, que, em caso de vitória, levaria à incorpo-

“3 Memórias diárias, p. 77. 44 A União de Armas, peça-chave das reformas domésticas do ministro, previa que cada reino colocaria em pé de guerra sua quota-parte de tropas para a auto-defesa, reservando um sétimo para socorrer outros reinos irmãos. Desde sua formulação em 1625, o projeto vinha encontrando a oposição dos particularismos em Portugal, na própria Espanha (a Catalunha, Aragão, Valência) e nas possessões italianas (Nápoles, Sicília, Lombardia): J. H. Elliort, The revolt ofthe Catalans, Cambridge,

1965, Pp. 182-214, e The count-duke of Olivares, PP. 244-77.

34

À EMPRESA DA TERRA

E A VITÓRIA DO MAR

ração da capitania ao patrimônio régio. A invasão holandesa afetara as rela-

ções da Coroa com o donatário de Pernambuco e o de Itamaracá, conde de

Monsanto. À El Rei, sempre disposto a podar os privilégios do sistema de donatarias, a guerra oferecia oportunidade ímpar de revogar as respectivas cartas de doação, a pretexto de que eles não contribuíam para a defesa dos respectivos patrimônios.” A acusação, improcedente no caso dos Albuquerques, não o era no de Monsanto: já em 1631, Felipe IV ameaçava apossar-se dos seus rendimentos locais; e em 1634, propunha-se que a capitania de Itamaracá ficasse incorporada à Paraíba, desde sempre capitania real.º Em Lisboa, corria o rumor de que, expulsos os neerlandeses, a Coroa expropriaria Pernambuco, compensando o donatário com “alguma outra coisa” no Reino.í” D. Francisco Manuel de Melo e Brito Freyre acolheram a versão segundo a qual, como o primeiro escreveu na sua “Epanáfora triunfante”, uma vez

invadido Pernambuco,

foi então fama que o governador do Reino [i.e., o conde de Basto, sogro do

donatário], desejando em igual modo a restauração da praça e conservação do senhorio dela [...] deu valor ao parecer que entre muitos práticos corria, que a recuperação se intentasse, não por sítio e expugnação, como a Bahia

se ganhara, mas por meio de uma guerra lenta, que oprimindo dentro de

suas fortificações ao inimigo e evitando-lhe os mantimentos e cultura do campo, o impossibilitasse em todos seus gêneros, de tal sorte que a própria inutilidade o despedisse.*º

45 Schwartz, “A jornada dos vassalos”, pp. 160-1; António Vasconcelos de Saldanha, As capitanias do Brasil. Antecedentes, desenvolvimento e extinção de um fenômeno atlântico, Lisboa, 2001, pp. 391-6. Não logrando de imediato seu objetivo, a Coroa, concluída a guerra holandesa em 1654 com a restauração da sua suserania no Nordeste, reincorporarará Pernambuco a seu patrimônio.

16 Felipe IV aos governadores do Reino, 19.x.1631 e 14.11.1632, “Livro segundo do governo do Brasil”, AMP, 2, 2 (1927), pp. 141 e 150; Domingos Cabral Bacelar, “Sobre a capitania de Tamaracá se não fortificar pelo conde de Monsanto”, 20.iv.1634, BNL, EG, 7627. 47 Jaerlyck verhael, iv, p. 219. p. 381.

48 Francisco Manuel de Melo, Epanáfjoras de vária história portuguesa, 3º ed., Coimbra, 1931,

55

OLINDA RESTAURADA

Brito Freyre, por sua vez, embora pondo à conta da “malícia” os boatos relativos aos Albuquerques, também os registrou: Também se disse então que o general Matias [de Albuquerque], comunicando-o a seu irmão Duarte de Albuquerque e este a seu sogro, o conde de Basto, governador do Reino, intervieram e influíram nas causas principais

de um erro tão grande [i.e., a adoção da guerra lenta]. Porque desvelando-se reciprocamente, nos juízos que faziam entre si, sobre as coisas presentes, as

consideravam agora muito pelo contrário do que sucederam depois, porque vendo neste primeiro tempo apertar tanto a gente da terra [aJos holandeses dentro nos seus quartéis, que pareciam dominados e não dominadores, supunham pelo mesmo respeito que o próprio inimigo, como só estimulado da conveniência empreendeu a conquista, saindo-lhe maior a despesa que o proveito, largaria a Pernambuco, sem empenho de mais poderosas forças para que o largasse. E que se com forças poderosas o ganhava El Rei, então mais certamente o perderia o donatário. Discorrendo para conservarem aquele Estado [i.e., a capitania] de tanta honra e tanto lucro em sua Casa, que lhes convinha expor-se antes a uma dúvida, em que tinham mais segurança, que a uma segurança, que os deixava em maior dúvida.”

À correspondência de certo colono de Pernambuco confirma que a versão corria na terra: “os que nos governam [afirmava em outubro de 1632 para Lisboa] só têm o desejo de que esta guerra dure para sempre, informando ao Rei que o inimigo está completamente desanimado e que abandonará o Re-

cife”.2º O ex-governador-geral Diogo Luís de Oliveira também intrigava con-

49 Francisco de Brito Freyre, Nova Lusitânia. História da guerra brasílica (citado doravante como Nova Lusitânia), Lisboa, 1675, pp. 209-10. Há edição fac-similar, Recife, 1977. D. Diogo

de Castro, conde de Basto e sogro do donatário de Pernambuco, pertencera à junta de governadores do Reino de 1621 a 1626. Reassumiu sozinho o governo do Reino em maio de 1630, deixan-

do-o no ano seguinte. Exerceu-o pela última vez, já na qualidade de vice-rei, de julho de 1633 a dezembro de 1634, sendo substituído por Margarida de Sabóia, duquesa de Mântua e prima de

Felipe IV: Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal (1580-1640), Lisboa, 1979, pp. 96, 1145, 118e 124.

0 Jaerlyck verhael, iii, p. 132. O missivista era o belga Gaspar de Mere, a cujo respeito vd. Eddy Stols, De Spaanse Brabanders of de handelsbetrekkingen der zuidelijke Nederland met de Iberisch

36

A EMPRESA DA TERRA E A VITÓRIA DO MAR

tra os Albuquerques: “ocupados em se fazerem grandes senhores e sem obedecer as ordens do Rei, escrevem compridas cartas para esconder a verdade”.>! O sargento-mor do terço napolitano declarava que Felipe IV já teria mandado a armada restauradora se os Albuquerques não o houvessem iludido, “escrevendo-lhe que ainda não era preciso”.?2 E havia queixas de homens de negócio por se ter ordenado, em socorro do Arraial, o segiiestro de bens tomados a navios de particulares, sem havê-los imediatamente indenizado.?? Matias de Albuquerque também herdara rancores antigos. No período ante bellum, a presença frequente dos governadores-gerais, sob pretextos de natureza administrativa e ao arrepio de ordens régias determinando sua residência em Salvador, dividira a capitania em uma facção donatarial e outra sustentada pelo governo-geral. Graças à nomeação para os cargos régios e à manipulação de favores e de oportunidades de ganho, como no tocante ao abastecimento do Maranhão, os governadores-gerais haviam criado suas clientelas. Isto se dera em particular durante o governo de D. Luís de Souza (16171620), que entrara em conflito com a Câmara de Olinda e com a parentela

dos Albuquerques em torno da nomeação para cargos locais, inclusive as interinidades do loco-tenente do donatário, função para a qual designara o segundo João Pais Barreto, cujo cunhado era primo homônimo do governadorgeral. Durante seu primeiro governo em Pernambuco (1620-1627), Matias

pusera cobro a estes e outros abusos, recuperando o poder donatarial e ob-

tendo da Coroa a abolição da Relação da Bahia.

wereld, 1598-1648, 2 vols., Bruxelas, 1971, ii, p. 47; J. A. Gonsalves de Mello, “Os livros das saídas das urcas do porto do Recife, 1595-1605”, RIAP, 58 (1993), pp. 53-5. Há desenho de Frans Post representando o engenho Marapatagipe, que pertencera a De Mere: Joaquim de Souza Leão filho, Frans Post, 1612-1680, 2º ed., Rio, 1973, p. 149.

E, Diogo Luís de Oliveira à condessa de Santa Cruz, 6.111.1633, ARA, OWIC, 5770. da Jaerlyck verhael, iv, p. 219. 93 Co.Fa., 28.vi.1635, AHU,

504.

*4 Francis A. Dutra, “Cenrralization vs. donatarial privilege. Pernambuco, 1602-1630”, Dauril Alden (ed.), Colonial roots of modern Brazil, Los Angeles, 1973, pp. 19-60. Vd., também do mesmo autor, Matias de Albuquerque. A Seventeenth century capitão-mor, University Microfilms International, Ann Arbor, 1968.

ra

A um amigo em Portugal, Matias de Albuquerque queixava-se em 1632

de que “dois anos e meio são passados que estamos à espera de socorro para recuperar este país, e na Espanha nada se resolve”. “Quanto a mim, acho-me numa situação extrema e perigosa, dia e noite sem descanso e sem esperança de solução”, assistindo à desagregação do exército, com “os índios desalentados, os negros de Angola meio amotinados e a soldatesca, doente e desespe-

rada, completamente despida e descalça”. A esta altura, tampouco Lisboa e

Madri alimentavam ilusões. O Conselho de Estado constatava ter “a experiência mostrado que a guerra lenta e defensiva não poderá obrar que desistam eles [os neerlandeses] da empresa que intentam e é força mandar poder bastante para os arrancar de uma vez”.?? Várias cartas régias do mesmo ano ? Co.Eo., 24.ix.1631, AGS, GA, 1325; Memórias diárias, p. 46.

6 Taerlyck verhael, iii, pp. 93-43 iv, p. 32. ” Co.Eo,; 16.viii.1632, “Livro segundo”, pp. 224-5. O próprio Matias escrevia a D. Fadrique de Toledo, 10.viii.1632, a respeito da armada, na expectativa de que ele seria seu comandante: ARA, OWIC, 5771. 28 Matias de Albuquerque a D. Miguel da Costa, 11.viii.1632, ARA, OWIC,

9 Co.Eo., 19.iii.1632, “Livro segundo”, 2, 2 (1927), p. 222. 58

5771.

[E a a ção Ra e

de todo infalivelmente se houver mais dilações em lhe acudir com armada poderosa”.?”

o

Na realidade, os Albuquerques oscilavam entre o desejo da intervenção naval da Coroa e o receio das suas consegiiências patrimoniais. De qualquer maneira, não se pode supor que pudessem impingir a guerra lenta a Madri sem o beneplácito de Olivares. Ao menos desde 1631, Matias de Albuquerque assinalava que a guerra lenta não poderia ser sustentada por muito tempo e que sem armada restauradora Pernambuco se perderia, o que confirma a alegação do donatário segundo a qual o irmão sempre alertara El Rei neste sentido.?? É certo que o emissário, por ele enviado ao governo do Recife a fim de propor a evacuação batava em troca de generoso resgate em açúcar, admitiria aos interlocutores que a estratégia dos Albuquerques consistira inicialmente em vencer pela guerra lenta, mas que após os primeiros revezes teriam resolvido expor “francamente” a Felipe IV a verdadeira situação.?º O ataque a Igaraçu em 1632 confirmou-o na convicção de que “o Brasil se perderá

+

OLINDA RESTAURADA

À EMPRESA DA TERRA E À VITÓRIA DO MAR

reiteram que só a armada de restauração poderia salvar o Brasil.” Apenas não se dispunha dos meios para aprestá-la. É injusto, portanto, jogar a culpa sobre os Albuquerques, como fará Olivares. Se a guerra lenta prosseguiu mesmo quando todo mundo já se convencera da sua inoperância, foi por inexistência de alternativa. Em Portugal, não se queria ou não se podiam fazer os sacrifícios pecuniários exigidos pela

armada; e em Madri, temia-se forçar a barra aos portugueses, receio que as

“alterações de Évora” (1637) vieram justificar. A responsabilização dos Albuquerques foi manobra de Olivares para consumo do ressentimento português com a perda do Nordeste. Matias de Albuquerque achava-se na sua alça de mira desde a queda de Olinda. Sabedor da nova, sua primeira reação fora substituí-lo no comando, de acordo com sua teoria de que a causa dos reveses internacionais da Espanha era a falta de “cabeças”, isto é, de chefes capazes.*! Felipe IV adotou-a: a experiência teria demonstrado que “muita parte dos maus sucessos que há havido no Brasil é por falta de cabeças que governem a guerra”. Matias não gozava de reputação militar em Madri, onde era injustamente acusado de não haver jamais terçado o pique nem visto um esquadrão, alegação infundada em vista do seu aprendizado no norte da África e no patrulhamento do Mediterrâneo ocidental. Tendo-se reabilitado parcialmente graças à decisão de incendiar os armazéns de açúcar do Recife, privando a W.L.C. de arrecadar o valioso butim, sua destituição só teve lugar com a queda do conde de Basto.*?

Além de suas estreitas relações com os jesuítas portugueses, suspeitos de

anticastelhanismo,º* Matias de Albuquerque tinha contra si a desconfiança e

60 BA, 51-X-2.

61 Olivares ao duque de Villa Hermosa, 4.v.1630, BNRJ, 1, 2, 35, l. 132; Elliott, The countduke of Olivares, pp. 535-7. 62 Felipe IV a D. Diogo de Castro, 9.vi. 1634, BNRJ, I, 34, 32, 1. 63 Jaerlyck verhael, iii, p. 22, iv, p. 218; “Sucesos del afio de 1630”, BNM, 2362; Co.Eo., 29.1v.1630, BNRJ, 1, 2, 35, fl. 137. 64 Para as relações de Matias com o padre Francisco de Vilhena que, em 1640, será emissário de D. João IV na Bahia com vistas a assegurar a adesão do Brasil à Restauração, Serafim Leite,

História da Companhia de Jesus no Brasil, 10 vols., Rio, 1938-1950, v, pp. 369-75. Para um exa-

39

OLINDA RESTAURADA

ra, Rojas, ao aportar em Jaraguá, convidara-o a bordo, informando-o, em

nome d'El Rei, que “devia retornar prisioneiro nesta frota à Espanha, onde à sua chegada lhe cortariam a cabeça pelos seus bons serviços”.ºº Duarte de Albuquerque não refere a prisão, apenas alude a que, já na Bahia, recusara-se seu pedido para regressar a Pernambuco como soldado raso.º” Mas à chegada a Lisboa será submetido a processo, permanecendo encarcerado até a Restauração portuguesa em 1640, Mesmo quando conseguira evitar a substituição de Matias de Albuquerque, o conde de Basto não logrou impedir a partilha do comando da resistência, que ocorreu de fato embora não de título. O conde de Bagnuolo, à frente dos contingentes de soldados castelhanos e italianos embarcados na armada de Oquendo (1631), trazia ordem secreta de Felipe IV no sentido de ser consultado em todas as decisões importantes. E o donatário confessará que o irmão tinha motivos ponderáveis para acatar as opiniões de Bagnuolo, mesmo quando divergiam das suas.”? Destarte, Madri estava em condições de exercer o controle direto sobre a conduta da guerra. Felipe IV tinha grande

me recente da participação dos jesuítas portugueses na Restauração, Dauril Alden, The making of an enterprise. The Society of Jesus in Portugal, its empire and beyond, 1540-1750, Stanford, 1996,

t

;

SU

pp. 101 ss.

|

|

cante para investigar a gestão da guerra.” Conforme versão corrente na ter-

a

natural da Coroa relativamente a um general português pertencente à família do Reino que detinha a propriedade da capitania mais rentável do Brasil. Quando o sogro do donatário deixou o governo do Reino em 1634, Matias foi substituído por D. Luís de Rojas y Borja, em cuja companhia viajou sindi-

A parte de ameaça contida na frase, embora inverossímil, estava no ar, haja vista o que acontecera anos antes a D, Juan de Benavides, executado em Sevilha pela perda da frota da prata. 68 Nova Lusitânia, p. 250; Matias de Albuquerque a Felipe IV, 8.v.1634, AGS, GA, 1113.

40

E a

4

E

69 Memórias diárias, p. 106.

pe

a

67 Memórias diárias, p. 232.

a

lis, 2000). Para o desgaste do vice-rei, conde de Basto, Elliott, The count-duke of Olivares, p. 525.

E

S6 “Tournal of a residence in Brazil by Cuthbert Pudsey” (citado doravante como “Journal”, BNRJ, 12,3, 17, fls. 20v-21r. (Há recente edição brasileira, Diário de uma estada no Brasil, Petrópo-

a

O

6 Co.Fa., 28.vi.1635, AHU, 504.

À EMPRESA

DA TERRA

E À VITÓRIA

DO

MAR

apreço profissional pelo italiano, compartilhado, aliás, pelos neerlandeses, que o reputavam conselheiro prudente e soldado experiente”, malgrado as limitações da “sua extraordinária inclinação à obesidade”, julgamento endossaEE

e

1

3

*

*

do por Brito Freyre.

Na armada, viera também Duarte de Albuquerque, cujo desprestígio era

visível até aos soldados, um dos quais, prisioneiro dos holandeses, reportará

que se ignorava se viera por ordem do Rei ou “por conta própria”. O tratamento que lhe dispensaram prefigurou o que o aguardava no Brasil, onde, tratado com “grande respeito”, “não fez parte de conselho [de guerra] alcum”. Destituído Matias de Albuquerque, a posição do donatário tornou-

se ainda mais precária: o governo civil da capitania lhe foi formalmente reconhecido, porém subordinado ao comando militar.” Nem suas opiniões nem seus interesses eram levados em conta. Em 1637, por exemplo, ao saber que ele discordava da decisão de abandonar o território pernambucano, sem deixar ao menos alguma tropa ao norte do São Francisco, Bagnuolo recusou-se a ouvi-lo, “pois ele [...] tratava só de seu negócio”, isto é, do patrimônio ameaçado.>

“9 “Tournal”, fl. 7r; Nova Lusitânia, p. 314.

"1 Jaerlyck verhael, iii, p. 22.

72 Apostila à patente de nomeação de D. Luís de Rojas y Borja, 9.v.1635, BNRJ, 34, 32, 12.

?3 “Memória do que sucedeu em Pernambuco desde 26 de janeiro de 1637”, BNL, FG, 1555. A documentação relativa ao Brasil, existente no códice 1555, compõe-se basicamente de relações elaboradas em Pernambuco por ordem de Matias de Albuquerque e também dos “Opúsculos de la Guerra de Pernambuco”. Embora o códice só inclua relações referentes a 1636 e 1637, sabe-se por uma consulta da Junta de Portugal, datada de Madri, 24 de setembro de 1631, que, pelo menos desde este ano, Matias enviava “relações diárias” dos sucessos bélicos: AGS, GA, 1325. Uma das relações de 1633 encontra-se, aliás, na série “Guerra antígua”,

do Arquivo Geral de Si-

mancas. Da grande maioria, porém, desconhece-se o paradeiro. O conjunto das “relações diárias” serviram de base posteriormente à elaboração das Memórias diárias, de Duarte de Albuquerque Coelho. Quanto aos “Opúsculos”, pode-se supor terem sido escritos ou ditados pelo próprio Matias ou ainda redigidos com base em narração sua, no decurso da prisão a que foi recolhido ao retornar do Brasil. Trata-se provavelmente de material preparado com vistas à sua defesa perante o governo espanhol,

4]

OLINDA

RESTAURADA

Como mestre-de-campo, Bagnuolo não aceitara de bom grado a subor-

dinação, mesmo teórica, a Matias de Albuquerque.”

Em Madri, porém, te-

mera-se ofender as suscetibilidades portuguesas, colocando-se tropas lusobrasileiras sob a chefia de um oficial napolitano a serviço de Castela, tanto mais que a rivalidade entre oficiais lusitanos e castelhanos já se fizera sentir, em desserviço régio, quando da reconquista da Bahia pela armada de D. Fadrique de Toledo.”? Resolveu-se a dificuldade designando-se Matias para o Conselho de Guerra, afastando-se o obstáculo hierárquico levantado por Bagnuolo,?é cujas relações com os Albuquerques foram difíceis. Já em 1632, estando dis-

cordes, Felipe IV ordenou se fizesse saber a Matias, “por caminho confiden-

te e indireto, quanto convém a meu serviço a conformidade”, recomendação reiterada de outras vezes.” A despeito do que se disse na época, Matias de Albuquerque não tomou por conta própria a iniciativa de propor ao governo holandês no Recife o resgate de Pernambuco em troca de alguns milhares de caixas de açúcar, ambas as propostas enfaticamente rejeitadas. Embora as autoridades da W.I.C. tivessem ficado com a impressão de que, ao menos da primeira vez, tratara-se de gestão de exclusiva responsabilidade dos Albuquerques, a realidade foi diferente: quando do apresto da esquadra de Oquendo, a Coroa cogitou de negociar diretamente com o comando neerlandês a entrega das posições conquistadas, dando-se ao almirante amplos poderes para tentar suborná-lo, na persuasão de que o caráter multinacional do exército da W.L.C. facilitaria a

manobra, de resto comum em Flandres e em outros teatros europeus. Em fins

de 1631, o Conselho de Portugal em Madri requentava a idéia, cuja execução seria confiada a Matias ou a alguém mais a propósito.8 Também se sugeriu outrora que a destituição e prisão de Matias de Albuquerque visara frustrar o plano de estabelecer em Pernambuco um estado /á Bagnuolo a Felipe IV, 24.11.1631, AGS, GA, 1048. ?? Stuart Schwartz, “A jornada dos vassalos”, pp. 162-4. 76 Memórias diárias, p. 39; Felipe IV a Bagnuolo, 29.1.1631, AGS, GA, 1039.

*/ “Livro segundo”, pp. 151, 155 e 208. 8 Jaerlyck verhael, iii, pp. 93-4, iv, p. 32; papel s.d. sobre o apresto da armada de Oquendo, AGS, GA, 1025; junta de Portugal, Madri, 24.ix.1631, AGS, GA, 1325.

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À EMPRESA

DA TERRA

E A VITÓRIA

DO

MAR

livre. Não era preciso ir tão longe. O progresso das armas holandesas, a saída do conde de Basto e a política portuguesa de Olivares são mais que suficientes para explicar a sorte do general. Findo o vice-reinado do conde de Basto, Olivares passara a atuar por meio do secretário de Estado de Felipe IV para assuntos portugueses, Diogo Soares, o qual, de Madri, controlava as

decisões em Lisboa através de seu cunhado, Miguel de Vasconcelos, que fazia e desfazia sob a fachada da autoridade da governadora do Reino, a duquesa de Mântua. Em Portugal, Matias foi apenas o protegido da situação política que caíra, e, portanto, o candidato natural a bode expiatório. Substituído Matias de Albuquerque por Rojas y Borja, aboliu-se até mesmo a aparência de controle português sobre a condução da guerra. Em Lisboa, a designação de Rojas fora argiiida de ilegalidade, de vez que, não sendo natural do Reino, era inábil para o cargo, consoante as capitulações de Tomar (1581), pelas quais Portugal aceitara Felipe II como reí.º0 Tratava-se de

mais uma violação das liberdades lusitanas, tema predileto da contestação nacionalista desde o reinado de Felipe III, mas o protesto de nada serviu. Não

foi menor a insatisfação entre os oficiais e soldados dos terços portugueses em Pernambuco, alegando que Rojas carecia de experiência e conhecimento da guerra do Brasil.º! É a tal descontentamento que parece estar ligada sua morte na batalha de Mata Redonda (1636), vitimado por tiro disparado de dentro do seu próprio exército, por um morador de Alagoas, contratado para a empreitada.

A ordem de sucessão aberta à raiz do episódio indicava que Madri não tinha a menor intenção de que o comando voltasse aos portugueses. Às ins-

2 E. A. Pereira da Costa, Anais pernambucanos, 2º ed., 11 vols., Recife, 1983-1987, iii, p. 20. Pereira da Costa não cira a fonte da informação. Por outro lado, não se conhecem as peças do

processo aberto contra Matias ao seu regresso a Portugal em 1636.

80 Co.Po., 16.v.1635, AGS, SP, 1478, 51! Memórias diárias, p. 226. Para a folha de serviços de D. Luís de Rojas y Borja, vd. a patente de sua nomeação, 30.1.1635, BNRJ, 34, 32, 12. Oriundo da nobreza valenciana, ele ingressara no serviço militar ainda ao tempo da privança do seu poderoso parente, o duque de Lerma, valido de Felipe III. 2 Lucideno, i, pp. 71-2; “Sucesos del afio de 1635”, BNM, Ms. 2366. Meses depois do homicídio, o assassino, ferido de morte, teria confessado o crime.

43

OLINDA RESTAURADA

truções previam que, em caso do desaparecimento de Rojas, assumiria outro espanhol, o mestre-de-campo Juan de Ortiz, falecido entrementes, e, na falta deste, o conde de Bagnuolo. O mais alto oficial lusitano, Manuel Dias de

Andrade, tenente de mestre-de-campo, era apenas o quarto da lista, embora muito influente na tropa portuguesa e também na colônia graças a seu paren-

tesco com Pedro da Cunha de Andrade, senhor de engenho na Várzea e emi-

nência parda de Matias de Albuquerque, donde dizer-se que Manuel tinha

mais afilhados nos terços luso-brasileiros do que tivera o primo na Câmara de Olinda.º” A impopularidade de Bagnuolo ajudando, o ressentimento chegou ao ponto de oficiais lusitanos tramarem sua destituição, o que só não ocor-

reu em face da recusa de Manuel Dias em assumir a chefia. Duarte de Albuquerque, igualmente consultado, também se escusara, embora não mencione o fato nas Memórias diárias.“ Na Bahia, o governador-geral, Pedro da Silva, estranhava a ascensão de Bagnuolo, quando havia tantas patentes portuguesas e espanholas.º? Pouco depois da conjura, havendo recebido a notícia da promoção de Manuel Dias a mestre-de-campo, Bagnuolo mandou-o de volta a Portugal, “não se sabe com que fundamento”.8º

+ É PODER

NAVAL

Como, na melhor das hipóteses, a guerra lenta alcançaria o objetivo limitado de conter o inimigo no Recife, ela pressupunha a eventual interven83 “Breve e sucinta relação desta guerra de Pernambuco”, 1636, BNL, EG, 1555. Para o madeirense Pedro da Cunha de Andrade, A. J. V. Borges da Fonseca, Nobiliarquia pernambucana, 2 vols., Rio, 1935, ii, p. 258. Sá Lucideno, i, pp. 79-80; Nova Lusitânia, p. 374. Há, contudo, uma discrepância entre as versões: ao passo que Calado data o episódio da queda de Porto Calvo em 1637, Brito Freyre o situa um ano antes, quando do falecimento de Rojas, o que parece mais convincente. > Pedro da Silva a João Teles de Menezes, 11.iv.1637, Kroniek van het Historisch Genootschap [Utrecht], 5 (1870), p. 177.

86 “Memória do que sucedeu em Pernambuco desde 5 de abril de 1637”, BNL, FG, 1555. Manuel Dias regressará ao Brasil como mestre-de-campo de um dos terços da armada do conde

da Torre, vindo a falecer durante a escala em Cabo Verde.

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À EMPRESA

DA TERRA

E A VITÓRIA

DO

MAR

ção do poder naval, reputado único capaz de romper o impasse. Nem mesmo a heterodoxia dos partidários da “guerra volante” punha em dúvida a necessidade da armada de restauração. Como escreveu o teórico anônimo da guerrilha, “a empresa da terra virá a pender da vitória do mar, e sendo esta certa (mediante favor divino) não se pode duvidar da outra”.8” O problema consistia em que a guerra lenta não poderia ser feita interminavelmente. Em fins de 1632, o comando da resistência já se dera conta da impossibilidade de prolongá-la. Como

acentuava um oficial, que o Nordeste “não sofre a

guerra dilatada é coisa certa”, dada a dependência da sua economia relativa-

mente ao açúcar. Ademais, a guerra lenta não consumia o poder inimigo, pois

os ganhos que lhe negava em terra, ele os obtinha no mar por meio do corso. Por fim, a prolongação do conflito acarretava prejuízos substanciais à Coroa e ao Reino, devido à redução drástica do volume de açúcar exportado e dos seus reflexos no comércio e na receita fiscal. Um “arbitrista” português, Luís Álvares Barriga, expôs os cenários do emprego do poder naval no Nordeste.º? O primeiro, modesto, reduzia-se a assegurar as comunicações marítimas com Portugal e o suprimento do exército de resistência, mediante embarcações velejando separadamente. Era o que já se vinha fazendo e que já demonstrara sua ineficácia. À segunda alternativa residia no apresto de esquadra de 10 ou 12 galeões, que permaneceria em águas brasileiras entre Pernambuco e a Bahia para proteger a navegação portuguesa; privada dos rendimentos do corso, a W.I.C. precisaria abandonar o Brasil. Tinha, porém, seus inconvenientes: devido ao regime de ventos e cor7 “Carta ou papel em que um capitão desta guerra responde a outro o que lhe parece do

estado presente desta capitania”, 25.iv.1633, Livro primeiro do governo do Brasil, 1607-1633, Rio, 1958, p. 433. Há reedição recente da Comissão Nacional para os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 2001. sb Informação de Antônio de Araújo de Mogueimes,

19.11.1633, BNRJ.

1, 2, 35, fl. 200.

52 “Adverténcias que de necesidad forzada importa al servicio de Su Magestad que se consideren en la recuperación de Pernambuco, hechas por Luís Álvares Barriga”, ABN, RJ, 69 (1950), pp. 250-75. As “Adverréncias” foram provavelmente redigidas em fins de 1633 ou começos de 1634, pois o autor refere estarem os holandeses senhores do Recife “pelo fim do quarto ano”, pp. 232 e 246. Elas devem ser lidas em conexão com a “Propuesta de las adverténcias”, ibid., pp. 277-311. A “Propuesta” foi, ao que parece, escrita um ano depois: o ataque holandês a Pernambuco já ia

45

então no seu quinto ano e já começara “o verão daquela costa”, pp. 285, 287 e 310. Ambos os textos constituem todo um programa de defesa da América portuguesa, vazado em forma de “arbítrio”, tão ao gosto dos reformadores da Espanha dos Áustrias. Álvares Barriga, que se declara “cavalheiro português”, já transmitira a Olivares duas breves propostas sobre negócios do Brasil, oferecendo-se para desenvolvê-las de viva voz ao ministro de Felipe IV. O conde-duque, porém, não se dignara responder-lhe, pp. 233, 270 e 310. Álvares Barriga não desanimou, redigindo as “Advertências, a Propuesta” e, segundo afirmava, todo um livro sobre o assunto, o qual não chegou até nós. Era também autor de trabalho sobre o comércio da costa da Mina, p. 269. Não conhecia, porém, o Brasil, a cujo respeito escrevia por informações de pessoas idôneas com experiência da ter-

ra, p. 295.

46

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de 1.500.000 ducados. À terceira opção confiaria a carreira do Brasil aos dunquerqueses, corsários belgas, vassalos da monarquia espanhola, mas que não disporiam de forças suficientes para repelir o inimigo. A quarta possibilidade era a armada de restauração, uma operação mista de bloqueio naval e de sítio, ao custo de 3.000.000 de ducados, comportando 60 navios, dos quais mais de 20 embarcações de grande porte, e 16.000 soldados e marinheiros. Cabia duvidar, porém, de que, com todo seu poderio, lograsse retomar o Recife, de tal maneira fortificado pela engenharia holandesa que se tornara praticamente inexpugnável, tanto mais que a armada só contaria com cinco meses para obter a capitulação da praça antes da entrada do inverno. É certo que poderia invernar na ilha de Santo Aleixo ou na baía da Traição, mas em vista do imperativo de reabastecê-la e reequipá-la, seria impossível mantê-la por muito tempo em águas brasileiras. E mesmo expulsos do Nordeste, os holandeses se estabeleceriam em Ilhéus, Porto Seguro ou no Espírito Santo, todos apropriados à cultura da cana. Consoante Álvares Barriga, a segurança da carreira do Brasil só poderia ser alcançada por um sistema de comboio da navegação particular, apoiado por uma frota de cinco galeões de 1.000 toneladas, quatro de 800, oito pa-

a

fossem necessários outros 10 ou 12 galeões, o que custaria anualmente cerca

a

rentes marítimas, a esquadra não poderia atuar no inverno, mas para ter êxito deveria operar ininterruptamente ao longo do ano. Ademais, ela não defenderia a navegação portuguesa ao norte do equador, precisamente a área onde os corsários faziam maior número de presas. E no frigir dos ovos talvez

a

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e

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tachos e 4.500 soldados. Partindo anualmente de Lisboa, ela correria o litoral, da Paraíba a São Vicente, e limparia a costa da Mina de barcos estrangeiros, além de proteger as naus da Índia. Suas despesas, calculadas em 1.520.000 ducados anuais, não custariam um único ceitil à Coroa e aos vassalos, deven-

do ser cobertas pelo aumento dos fretes e de receitas régias, decorrente da eliminação da presença neerlandesa no Atlântico sul. Quanto à fonte dos recursos destinados ao primeiro ano de operação, Álvares Barriga, por temor aos plagiários, se reservava para expô-la de viva voz a El Rei ou a Olivares.?

Quando em 1638 a Coroa pôde finalmente despachar a armada de res-

tauração, sob o comando do conde da Torre, já os holandeses se haviam asse-

nhoreado da região entre Fortaleza e o São Francisco. Embora seu objetivo fosse o de sitiar imediatamente o Recife, como fizera D. Fadrique de Toledo

na Bahia, concluiu-se, no decurso da viagem, pela impossibilidade de fazê-

lo, devido à insuficiência de provisões e às perdas de efetivos durante a escala em Cabo Verde. Ancorada em Salvador todo um ano, a armada tratou de recuperar-se. Ao zarpar contra o Brasil holandês em fins de 1639, seu alvo era desembarcar o exército no cabo de Santo Agostinho, de onde se faria “senhor

da campanha”, reduzindo “o inimigo às menos fortificações que puder ser [...] queimando e abrasando todos os canaviais e mais coisas de que ele possa tirar proveito”.?! Ajudada, porém, dos ventos e correntes marítimas, a esquadra neerlandesa conseguiu mantê-la à distância, numa série de batalhas na-

vais em janeiro de 1640 no litoral de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do

Norte. O conde da Torre ainda pôde desembarcar na baía de Touros uma

parte dos efetivos que, sob a chefia de Luís Barbalho, regressaria à Bahia,

marchando a oeste da área habitada. Fracassara redondamente a única grande tentativa dos Áustrias madrilenos de restaurar o Nordeste.

20 A proposta não teve acolhida, mas em linhas gerais viria a ser a consagrada em 1649 com a criação das armadas da Companhia Geral de Comércio do Brasil. O autor também preconizava adicionar ao exército de resistência uma força de 2.000 homens, a ser parcialmente recrutada no Nordeste.

21 Felipe IV ao conde da Torre, 19.vii. 1638, CCT, 1, Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio. A correspondência do conde da Torre foi publicada recentemente pela Comissão Nacional para os Descobrimentos Portugueses, 3 vols., Lisboa, 2001.

47

OLINDA RESTAURADA

A independência de Portugal em 1640 significava que a Coroa não possuíria Os meios navais com que apoiar a insurreição luso-brasileira, e que, por conseguinte, a guerra lenta continuaria a ser a única estratégia ao alcance do exército restaurador. Desta vez, contudo, ela atingiu o objetivo de, no decurso de nove anos, isolar os holandeses no Recife e fortificações litorâneas e negar-lhes o acesso às freguesias canavieiras, defendidas por trás de linhas sólidas, ao abrigo das quais puderam produzir o açúcar com que financiar o conflito. Superadas as hesitações dos primeiros tempos de um levante que só em parte alcançara seus fins, pois seu êxito limitara-se ao interior, não logrando reconquistar nem o Recife nem Itamaracá nem a cidade da Paraíba, o comando luso-brasileiro preparou-se para a luta, alertando a Coroa, como outrora Matias de Albuquerque, para a necessidade de intervenção naval. Em 1646, propunha o emissário de Pernambuco em Lisboa seja o envio de armada real, seja o de uma esquadra de 10 ou 12 fragatas que protegesse a navegação da capitania, a serem fretadas na França em nome dos colonos, que arcariam com os ônus mediante tributação especial sobre o açúcar.”? Como a Coroa impecuniosa se limitasse a despachar caravelas à desfilada, com efetivos e material bélico, uma representação das Câmaras voltou ao assunto: conhece-se claramente que a guerra que pela campanha se lhe [aos holandeses) fizer não será de grande efeito sem que pelo mar se lhe dê calor com muito considerável poder, o qual tenha aos inimigos atentos e temerosos por aquela parte, reprima seus socorros e vá entretanto dando lugar às batarias e assaltos da parte da terra, por que o inimigo com este freio se não possa empregar inteiramente na resistência de suas praças, como, pelo contrário, fará quando no mar não tenha de quem se temer e antes estiver por ele cada dia recebendo novos socorros e refrescos,??

O triunfo obtido em ambas batalhas dos Guararapes veio tornar ainda

mais evidente que, como lembrava o mestre-de-campo general do exército

luso-brasileiro, Francisco Barreto de Menezes,

“não é possível render-se o

22 J. A. Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, 2 vols. Recife, 1956, ii, pp. 18-22 e 29.

23 Câmaras de Pernambuco a D. João IV, 20.11.1647, AHU, PA, Pco., iii.

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À EMPRESA

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Recife por maior que seja o [nosso] poder por terra”, sem bloqueá-lo pelo mar. Embora bem-sucedida agora, a guerra defensiva não bastava para gerar o desfecho favorável: “por guerra lenta nunca se viu conseguir coisa que boa fosse; antes por causa dela se perderam algumas monarquias”. E advertia a D. João IV: “Senhorear Pernambuco é o que importa a Vossa Majestade para aumento de sua real coroa, não reparando em razões de Estado que podem fazer perder um Estado sem razão”.?* E a Antônio Cavíde, secretário d'El Rei, Barreto

escrevia no mesmo tom: “Quem imaginar que Pernambuco se há-de guardar por armas sem tomar o mar, vive muito enganado”. A Coroa nem contava com forças navais suficientes, tendo de manter as poucas de que dispunha na defesa do Tejo contra um ataque espanhol, nem recursos com que financiar uma armada restauradora, e, mesmo se tivesse podido aprestá-la, não se arriscaria a fazê-lo em face das implicações internacionais para suas relações com as Províncias Unidas e com a França. Apenas quando confrontada pela ocupação holandesa de Itaparica e pela perspectiva

da capitulação da Bahia, conseguiu-se reunir na praça de Lisboa os meios para enviar a armada do conde de Vila Pouca de Aguiar no objetivo de desalojar o inimigo daquela posição, mas não de hostilizar o Brasil holandês. Só a criação da Companhia Geral de Comércio do Brasil habilitará Portugal a desferir o golpe de misericórdia contra o Recife. Quando da escala feita no Cabo pela primeira armada da Companhia Geral, Francisco Barreto solicitou ao conde de Castel Melhor o bloqueio do Recife. O governador-geral, que se mostrara inclinado, foi dissuadido pelo almirante Pedro Jaques de Magalhães. A idéia de utilizar a força naval da Companhia de Comércio para tal fim data, portanto, ao menos de 1650. À situação dos holandeses tornara-se mais frágil devido ao retorno da armada de Witte de With à metrópole e à adoção pelo governo de Haia de uma estratégia defensiva no Brasil. Com a primeira guerra anglo-neerlandesa (1652-1654) e suas repercussões para as comunicações através do mar do Norte, a defesa do que restava do Brasil holandês chegou a um ponto crítico. Na perspectiva

24 Francisco Barreto a D. João IV, 28.11.1650, AHU, PA, Pco. iii.

% Erancisco Barreto a Antônio Cavide, 8.i11.1649, BA, 50-V-38.

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OLINDA

RESTAURADA

luso-brasileira, urgia aproveitar a ocasião, pois não haveria “outra tão cedo em que com menos custo e mais acerto lancem de todo o holandês do Brasil”.?º Viajando da segunda armada na Companhia de Comércio, Cristóvão de Almeida ficara encarregado de recolher opiniões no Cabo e em Salvador. De volta a Lisboa, ele descreveu as operações possíveis visando à reconquista do Nordeste. A primeira, indolor, consistia como sempre em subornar a guar-

nição holandesa, mas estabelecer contatos secretos no Recife tornara-se extremamente difícil em face da vigilância do governo. Poder-se-ia também meter a pique, na barra estreita e rasa do porto, certo número de urcas carregadas de pedra, mas certamente o inimigo abriria nova passagem no arrecife; ou construir barcos longos, tripulados e artilhados, que cortassem o tráfego das embarcações neerlandesas, idéia impugnada por pessoas experientes que os julgava insuficientes para assediar navios de grande porte.” Por fim, previa-se o bloqueio do Recife pela armada da Companhia de Comércio, enquan-

to O exército restaurador desfecharia o ataque por terra, fórmula que será

aplicada com êxito em janeiro de 1654.

%6 Cristóvão de Almeida a D. João IV, 15.xi.1652, BNL, FG, 218, n. 134. 27 Como a utilização da força naval tática pressupusesse o domínio naval estratégico, os luso-

brasileiros ficaram impedidos de empregá-la. Em 1632, Felipe IV solicitara ao governo do Reino estudar a adoção no Nordeste dos “navios de remo que se usam na Índia”, isto é, as fustas ou sanguicéis, embarcações chatas dispondo de falconete e de duas dezenas de soldados. Aprovado o projeto por uma junta de peritos, resolveu-se armar duas esquadras de navios de remo, num total de 16 embarcações. Mas a experiência ficou limitada à Bahia, onde o governador-geral Pedro da Silva estendeu a medida aos senhores de engenho e lavradores de cana do Recôncavo. A armada do conde da Torre as requisitará, embora suas instruções tivessem previsto a armação de novas unidades, inclusive canoas grandes, à moda do Rio de Janeiro. No vice-reinado do marquês de

Montalvão (1640-1642), serão construídas várias embarcações de 10 e 12 remos de cada lado e

jogando de 6 até 10 peças de artilharia: Felipe IV aos governadores do Reino, 14.1.1632, BA, 51-

X-2; conde de Castro a Felipe IV, 30.iv.1633, Felipe IV ao conde de Castro, 4.vi, 19.vii e 15.x1.

1634, BA 51-X-5; Felipe IV ao conde da Torre, 19.vii.1638, bando do conde da Torre, 24.11.1639,

e Pedro Cadena de Vilhasante ao conde da Torre, 28.11.1639, CCT, i; Salvador Pinheiro, “Papel que se fez na preparação da armada”, BA, 51-11-33; Co.Uo., 14.iv.1646, AHU, PA, Pco., iii; “Em

caso que os holandeses cometam a Bahia”, s.d., BA, 51-VIII-26.

28 Cristóvão de Almeida a D. João IV, 15.x1.1652, BNL, FG, 218, n. 134.

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E A VITÓRIA DO MAR

OLINDA CONQUISTADA

À estratégia luso-brasileira não foi condicionada apenas pelas decisões de Madri e Lisboa ou pelas condições da terra. Ela o foi também pela estratégia holandesa. Ão planejar a conquista do Nordeste, a W.I.C. pensou consumála mediante a aplicação coordenada do bloqueio naval e do sítio das praçasfortes. À este esquema, amoldaram-se a tomada de Olinda e do Recife e as primeiras expedições contra a Paraíba, o Rio Grande e o Cabo. Acreditava o Conselho dos XIX, órgão diretor da W.I.C., que, assenhoreadas as praçasfortes, a região cairia automaticamente em seu poder, de vez que, na falta de

ligações com Portugal, os colonos se veriam na contingência de aceitar o domínio estrangeiro. Na América espanhola, pelo contrário, seria indispensável

a ocupação de extensos territórios.” Segundo o plano proposto por Jan Andries Moerbeeck (1624), como o Brasil só possuía dois núcleos importantes, a Bahia e Pernambuco, e ambos se situassem à beira-mar, não se correria o risco de serem cortadas as comunica-

ções com a metrópole e de se esgotarem as tropas em longas marchas.!º O

prestígio desta concepção era tão grande que, em 1632, quando o comando

neerlandês, decepcionado com os resultados obtidos, tomou a iniciativa de

testar uma estratégia alternativa, encontrou enorme resistência por parte das

autoridades civis na colônia e na metrópole. Poucos duvidavam da eficácia do bloqueio naval + assédio das praças-fortes, embora Willem Usselincx, propagandista incansável da criação da W.I.C. e mais bem informado das condições locais, tivesse manifestado seu ceticismo, antes mesmo das expedições contra a Bahia e Pernambuco, a menos que se dispusesse de efetivos substanciais.!!!

A preferência da W.I.C. por este tipo de operação era compreensível, de

vez que ele permitiria tirar partido da superioridade naval, da artilharia e da engenharia neerlandesas, e exigiria menores despesas, poupando gastos com

22 Taerlyck verhael, ili, p. 27, iv, p. 44; DH, pp. 30, 35, 55, 74, 111 e 125.

100 Jan Andries Moerbeeck, Motivos por que «a Companhia das Índias Ocidentais deve tentar tirar ao Rei da Espanha a terra do Brasil, Rio, 1942, p. 30.

'01 DH, p. 126;]. F. Jameson, Willem Usselincx, founder of'the Dutch West India Company, Nova York, 1887, pp. 2234.

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OLINDA RESTAURADA

tropa numerosa, além de manter intacto o sistema açucareiro que cumpria repor imediatamente em funcionamento. Recomendava-o, por fim, a formação do soldado neerlandês. Desde os fins do século XVI, a guerra das Províncias Unidas contra a Espanha perdera a fluidez e a improvisação tática dos anos heróicos da conquista da Holanda e da Zelândia pelos zeegeuzen, espécie de guerrilheiros marítimos, para estabilizar-se rotineiramente ao longo das fronteiras dos grandes rios que dividem ao meio os Países Baixos, concentrandose no sítio e conquista das praças-fortes. À correspondência oficial permite entender o processo pelo qual o comando militar deu-se conta da inadequação do modelo original. Nas primeiras cartas para a metrópole, Waerdenburch ainda acreditava que, com a conquista de Olinda, “toda a costa do Brasil não mais será livre e o comércio [portu-

guês] se estagnará, o que forçará e constrangerá os habitantes a vir ad rem e viver em paz conosco”.!22 A despeito de estarem isolados pelas guerrilhas lusobrasileiras, escondidas nos mangues e camboas à margem do istmo entre Olinda e o Recife, os holandeses priorizaram a fortificação das praças, com vistas

a uma armada luso-espanhola, malgrado a preferência do Conselho Político por um ataque frontal que destroçasse o centro da resistência inimiga, o Ar-

raial do Bom Jesus, recém-edificado.!º2 Foi a primeira de uma série de divergências entre os governos civil e militar do Brasil holandês. Os XIX exigiam o ataque às praças-fortes portuguesas, mas Waerdenburch escusava-se com a insuficiência de efetivos. Em julho de 1630, por exemplo, ele alegava que seus

3.600 soldados, dos quais 600 enfermos, não davam sequer para defender Olinda e o Recife, de vez que a vila requeria guarnição de 6.000 homens e o porto, 3.500.104 Mas como na Holanda os diretores batessem o pé, fez-se a expedição que

estabeleceu uma cabeça-de-ponte em Itamaracá (1631), mesmo ao risco de

desguarnecer o Recife.!º> E quando Waerdenburch propôs o abandono de 102 DH, pp. 30 e 35.

103 Jaerlyck verhael, ii, pp. 156-7; Gil Correia Castelo Branco a Felipe IV, 8.viii.1630, ARA, OWIC, 5771.

104 pH; p. 51:

105 Tbid., p. 67.

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Olinda, cuja defesa imobilizava efetivos que poderiam ser utilizados ofensivamente, a maioria do Conselho Político, órgão colonial de cúpula, votou pela consulta prévia aos XIX. Estes, que inicialmente resistiram, aceitando a contragosto.!ºº Incendiado o burgo duartino, dispunha-se de tropas adicionais, mas restava decidir o que fazer com elas. Sempre alinhado com as diretivas da metrópole, o Conselho Político insistia em que se investisse o Arraial, ao

que se opunham os oficiais, a quem desagradava também o projeto de ataque à Paraíba, inclinando-se por concluir a conquista de Itamaracá. Posta a questão a votos, decidiu-se pela expedição à Paraíba, a qual, havendo gorado, foi prolongada contra o Rio Grande (1631), ocorrendo segundo fiasco.!"” Tais disputas explicam-se à luz da partilha de competências instaurada pelo regimento de 1629, que estabelecia que todas as operações bélicas deviam

ser aprovadas por maioria de votos dos conselheiros e dos oficiais.!?* Como as decisões eram tomadas no Recife, o Conselho Político dispunha de maioria, de modo que somente em caso de discórdia entre conselheiros é que o comando tinha possibilidade de impor seu ponto de vista, donde a queixa de Waerdenburch de que “a pluralidade dos votos decidia sempre e, conquanto eu houvesse da questão [em debate] compreensão inteiramente diferente (o que aconteceu a mim e a meus oficiais muitas vezes) e não deixasse jamais de dar meu melhor parecer, de nada adiantou”.!?2 O resultado só diferia no caso de as deliberações serem tomadas no decurso das operações, quando prevalecia a autoridade militar, de vez que nelas o Conselho Político estava apenas representado por um dos seus membros, segundo a prática vigente nas Províncias Unidas, onde o stathouder e os chefes do exército eram acompanhados por delegados do governo civil.

106 Iuerlyck verhael, iii, p. 26. A respeito do debate na Holanda sobre o abandono de Olinda, J. A. Gonsalves de Mello, Tempo dos flamengos. Influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil, Rio, 1947, pp. 49-51.

107 Juerlyck verhael, iii, pp. 28-9 e 36-7; DH, pp. 95-9. 108 “Regimento do governo das praças conquistadas ou que forem conquistadas nas Índias Ocidentais”, RIAP, 31 (1886), p. 299.

O DE, po 115;

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OLINDA RESTAURADA

Em começos de 1632, Waerdenburch formulou a crítica da estratégia

original, que estava na raiz do impasse militar. O Nordeste, que vinha sendo

colonizado pacificamente pelos portugueses havia um século, podia auto-abastecer-se de quase todos os víveres, com exceção do vinho e do azeite. Por outro lado, como a presença naval neerlandesa ainda não inviabilizara a navegação para Portugal, os colonos continuavam a dispor de recursos externos com que resistir. Por fim, ao contrário do que se informara, a região contava com população bastante para defender-se. Nas palavras de Waerdenburch: O ponto principal sobre que se baseavam os Senhores Diretores [da

W.LC.], no tocante à incorporação desta região brasileira, foi acreditarem que,

fechando-se bem o país, forçar-se-iam os habitantes, pela falta de provisões e pela suspensão do comércio, a pôr-se de acordo conosco, mas, neste particular, estão inteiramente enganados, porque tal região, que foi possuída du-

rante mais de setenta anos sem guerra nenhuma, tem sido tão cultivada que, sem falar no vinho e no óleo [i.e., azeite], pode prover suficientemente às suas

7

próprias necessidades; além disso, a remessa de seus açúcares não poderá ainda incomodar muito os habitantes, de modo que não se colocarão de nosso lado enquanto não houverem visto os resultados que conseguir sua armada.110

Em relatório ao governo de Haia, Waerdenburch voltava à carga: Para falar sem rodeios, o plano de conquistarem-se o país e os habitantes

e o começo da empresa não foram nem bem concebidos nem bem executa-

54

o ão O

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outras terras": História do Brasil, 1500-1627, 4º ed., São Paulo, 1954, p. 71.

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“O DH, p. 74. Tratava-se, aliás, da mesma tese que frei Vicente do Salvador defendera pouco antes na sua História do Brasil: o país “pode sustentar-se com seus portos fechados sem socorro de

a.

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não nos deixaria mais que um monte de pedras e areia para todas as nossas grandes despesas, a menos que fosse perseguida por uma força suficiente, per-

o

após haver incendiado os açúcares, como a experiência no-lo tem provado,

Tiga

menos a capitania de Pernambuco, apoderar-se aí do comércio e colher-lhe todos os frutos. E notai bem, para executar isto, supõe-se que bastará tornarmo-nos senhores da cidade, do porto, do Recife e de Antônio Vaz, sem a ninguém ocorrer que a população foge e que, com os meios de que dispõe,

À pg

dos. A idéia dos Senhores Diretores era submeter a costa do Brasil, ou pelo

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seguida até a floresta e impelida para mais longe, sem o que haveria sempre

habitações bastantes e outros pontos onde o inimigo poderia sustentar-se mau grado nosso. !!!

Destarte, o bloqueio naval não bastaria. Contrariamente ao pressuposto de que, em vista do comércio com Portugal e da especialização da economia açucareira, o Nordeste seria altamente vulnerável à ruptura das ligações marítimas, existiam recursos locais em efetivos e víveres que podiam ser mobilizados. À alternativa óbvia ao bloqueio naval + assédio das praças-fortes consistia numa ofensiva que aniquilasse o exército de resistência, para cujo fim

seriam necessários reforços substanciais, cerca de 4.000 a 5.000 soldados, sem falar em outros 4.000 ou 5.000 indispensáveis à defesa do Recife, algo, portanto, da ordem de 8.000 a 10.000 homens. Mesmo assim não havia garan-

tia de que, evitando toda confrontação, os luso-brasileiros não conseguissem prolongar a situação.!!2 Aré um soldado como Cuthbert Pudsey espantava-

se de que “uma companhia privada de comerciantes possa ser capaz de arcar tanto tempo com estes ônus e sem tirar o menor lucro, por vários anos, exceto algumas presas de açúcar ao longo do litoral”.!!3 Para a W.I.€C., urgia romper o impasse militar ao menor custo possível, de vez que suas limitações financeiras só haviam sido aliviadas graças a um subsídio do governo neerlandês, malgrado as manobras de Amsterdã, cujo conselho municipal, que caíra sob o domínio dos arminianos, pressionava em favor da paz ou de nova trégua com a Espanha, aproveitando-se de que as

negociações de Roosendaal, que a Companhia observava com viva apreensão, haviam revelado o desejo de Madri de se desengajar momentaneamente em Flandres para concentrar-se na Itália. À conquista de Olinda complicara os entendimentos, na medida em que certas províncias e cidades passaram a exigir a contrapartida de garantias para o Brasil holandês, embora Amsterdã estivesse pronta a trocá-lo pela abertura do comércio hispano-americano. Por deferência a Portugal, a Espanha exigia a restituição de Pernambuco em troca de Breda

A DK p: MI, 12 Tbid., pp. 87, 99 e 111. 15 “Tournal”, fl. 13r.

OLINDA RESTAURADA

(Brabante), mas as Províncias Unidas só aceitariam a cessação de armas com

a retenção das possessões brasileiras. No verão de 1632, a ofensiva neerlandesa que anexou Maastricht (1632) enfraqueceu a posição espanhola, fazendo surgir a possibilidade de um acordo bilateral entre Haia e Bruxelas. Mas enquanto Bruxelas reivindicava a evacuação de Pernambuco em troca de Breda e de compensação financeira, Haia queria limitar o tratado de paz à Europa, continuando o estado de guerra no ultramar, ou cogitava de compromisso pelo qual Pernambuco seria restituído contra a abertura do seu comércio aos neerlandeses. As negociações desembocaram outra vez no impasse criado, de um lado, pela linha dura nos Esta-

dos Gerais (Zelândia, Frísia e Groningen) e nos Estados da Holanda (Leiden,

Haarlem e Gouda), e também pela sabotagem da França; de outro, pela intransigência de Olivares contra qualquer acomodação que não previsse a restituição de Pernambuco e das praças-fortes do Limburgo, Maastricht e Venlo. Em meados de 1633, as conversações haviam chegado a um ponto morto. O stathouder Frederico Henrique, duvidando das chances de acordo e apoiado pela maioria do parlamento confederal, pronunciou-se pela preservação das conquistas no Nordeste, pondo termo aos entendimentos.4 No Recife, em fins de 1631 e começos de 1632, enquanto o Conselho Político insistia no sítio do Arraial e demais praças-fortes, os militares alegavam carência de efetivos para operações de tal envergadura, opinião ratificada pelo fracasso das expedições contra a Paraíba e o Rio Grande. Ventilando-se uma excursão ao sul do Recife, escolheu-se Rio Formoso, mas desembarcados os exércitos, constatou-se a impossibilidade de continuá-la. Ante a insistência dos oficiais, começaram-se preparativos para rematar a conquista de

Itamaracá, postos de lado em face de ordens terminantes da W.1.C. no senti-

do de atacar-se alvo de importância. A esta altura, Waerdenburch coroava sua 14 Boxer, The Dutch in Brazil, p. 31; W. ]. van Hoboken, “The Dutch West India Company: the political background of its rise and decline”, J. 3. Bromley e E. H. Kossmann (eds.),

Britain and the Netherlands, i, Londres, 1960, pp. 55-6 [há versão brasileira, RIAP, 49 (1977), pp. 309-27]; Jonathan 1. Israel, The Dutch republic and the Hispanic world, 1606-1661, Oxford, 1982,

pp. 227-38, The Dutch republic, pp. 494-5, 510 e 516-23, e “The Holland towns and the Dutch-

Spanish conflict, 1621-1648”, Empires and entrepots, pp. 43 ss.; Elliott, The count-duke of Olivares, p. 403.

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E A VITÓRIA

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reflexão, concebendo uma estratégia antiguerrilha visando à destruição das bases de apoio da resistência. Conquanto os oficiais já estivessem convertidos à opinião do chefe, o governo civil sustentava que o plano não obrigaria o inimigo a capitular, de vez que continuaria a receber reforços de Portugal. Eles acabaram por ceder, concordando em sitiar o Cabo, iniciativa que, apenas

iniciada, teve de ser descartada em vista dos riscos excessivos. !!> Com a chegada do inverno e da inatividade forçada, o Conselho Político aprovou, sem lhe dar maior atenção, o projeto modesto, que Waerdenburch propôs a título experimental, de atacar de surpresa a vila de Igaraçu, situada a distância cômoda do litoral. O êxito da operação (1.v.1632) foi tal que Waerdenburch escreveu aos XIX que “se se pudesse efetuar, de quando em vez, mais algumas dessas rápidas incursões, incendiando e massacrando, lançar-se-ia não somente uma grande consternação entre os habitantes mas também se causaria até a Albuquerque, em seu Arraial, uma grande falta de diversas coisas indispensáveis, tanto mais quanto se diz que Igaraçu tem mantido anualmente no Arraial uma companhia, além da sua contribuição

ordinária”.!16 Igaraçu assinalou a virada na condução da guerra, pondo um termo às divergências entre civis e militares. O Conselho Político aceitou adiar o sítio das praças-fortes em favor de ataques pontuais contra objetivos civis no interior, visando eliminar as bases locais da resistência: povoações, engenhos de

açúcar e pequenos portos. À tática, que tinha a vantagem de poder ser executada com efetivos existentes no Brasil, buscava

não só manter continuamente em estado de alerta a região circumvizinha

daqui [i.e., do Recife] e fatigá-la com expedições frequentes mas sobretudo fazer sentir ao inimigo nossas armas nas localidades mais distantes e em toda a capitania, tanto ao sul quanto ao norte, de maneira a causar-lhe em todos os rios e em todos os portos, todos os danos possíveis e obter para a Companhia os proveitos possíveis. !!

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15 laerlyck verbael, in, pp. 82-8.

7 DH, p. 136. Modernamente, a contraguerrilha foi formulada ao que parece pela primeira

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16 Tbid., iii, pp. 90-2; DH, pp. 101-4.

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OLINDA

RESTAURADA

As fontes luso-brasileiras não fazem mistério do impacto do saque de Igaraçu e do massacre de seus colonos sobre o moral da população. O comando da resistência logo deu-se conta de que a operação facilitaria outras [...] pelo interesse dos roubos e porque se iriam fazendo senhores do campo; e se por esta causa, os moradores o desemparassem, abandonando (como alguns começavam a fazer) suas casas [...] ficávamos privados dos grandes serviços que prestavam [...) com seus carros, pretos e cavalos, para ajudarem a comboiar para o Real [i.e., o Arraial] todo o necessário, e

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O inimigo marchou contra Porto Calvo e no caminho incendiou o engenho de Manuel Ramalho assim como já fizera aos de Domingos de Oliveira e de Miguel Álvares. Ele faz o que bem entende e carrega muito gado, pois lhe faltam víveres [...) Ele atacou diversos lugares; em Igaraçu apossouse de 80.000 ducados em jóias e em ouro; caiu sobre Sirinhaém, que foi inteiramente saqueada; em outros lugares pôs fogo a muitas casas e levou quantidade de gado; como se não bastasse, ocorreu uma grande enchente que cau-

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Por fim, ficaria provado que os soldados d'El Rei já não podiam proteger seus súditos da fúria batava, incentivando-se o derrotismo e o colaboracionismo. Depois de Igaraçu, realizaram-se excursões semelhantes à Barra Grande e Rio Formoso. Na correspondência apresada em barcos portugueses, viram confirmado os holandeses o acerto da contraguerrilha. Uma das cartas reportava:

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para plantar as roças e mais mantimentos, como arroz e legumes.!!ê

vez no livro do capitão Bernardo de Vargas Machuca, Milícia y descripción de las Índias, publicado em Madri em 1599, no qual o autor reputava “fora de propósito fazer a guerra européia” na Amé-

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18 Memórias diárias, p. 85.

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tes”, preconizando “a criação de grupos de comando para missões de busca e destruição, operando dois anos em profundidade no interior do território inimigo”: Parker, La révolution militaire, p. 150. Parece remota, contudo, a possibilidade de que Waerdenburch conhecesse a obra, sendo mais provável que se tenha inspirado nas táticas empregadas na Irlanda pelos ingleses e também no decurso da Guerra dos Trinta Anos na Alemanha, donde procedia boa parte dos oficiais e soldados da W.LC., inclusive o próprio Waerdenburch.

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rica, com “sua hierarquia de unidades táticas, suas formações lineares e suas guarnições permanen-

58

À EMPRESA

DA TERRA

E A VITÓRIA

DO

MAR

sou danos de 200.000 ducados [...] Se faz tudo isto sem haver recebido reforços da metrópole, o que não fará quando os receber?!!?

Para levar a contraguerrilha à Várzea, conquistou-se o forte de Afoga-

dos em março de 1633, inutilizando a linha de estâncias, que podia doravante

ser contornada e atacada pela retaguarda. 120 A, posição permitia também con-

trolar a estrada carroçável que ligava a Várzea ao sul de Pernambuco, cortando as comunicações entre o Arraial e o Cabo (segunda praça-forte de importância e principal porto luso-brasileiro) e relegando a resistência às estradas vicinais, o que complicou seus problemas logísticos. Graças aos Afogados, os holandeses ganharam acesso à principal freguesia açucareira e aos distritos centrais, resultando em que “não poucos moradores desempararam suas casas e fazendas por verem o inimigo fortificar-se naquele lugar, com o que nos

foi faltando no Real a comodidade e serviços que nos prestavam estes vizinhos |...] como cada dia se experimentou, pela facilidade com que por ali penetraram no campo”.!2l “Pessoas importantes da Várzea”, cujos engenhos eram outras tantas “minas de prata”, entabularam entendimentos secretos com

emissários do Recife, declarando-se cansados da guerra e recusando-se a pegar em armas ou aprovisionar o Arraial.!* Também já não se pôde socorrer dali, com a brevidade necessária, as demais praças-fortes. Em Itamaracá, onde a resistência sitiara os holandeses no forte de Orange, enquanto, do outro lado do canal, uma linha de redutos

defendia os engenhos da terra firme, uma ofensiva bem-sucedida consumou a conquista da ilha em junho de 1633, levando os luso-brasileiros a abandonar os entrincheiramentos e possibilitando ao inimigo lançar os mesmos ataques que já afetavam a Várzea. Em breve, a contraguerrilha estendeu suas ações a toda a costa, mercê do poder naval tático, que assegurava a dispersão e mobi-

lidade dos contingentes. Dependendo da extensão da área visada, a tropa, que

19 Juerlyck verhael, iii, pp. 1324,

120 DH, pp. 101 e 113-4,

21 Memórias diárias, p. 101. *2 Johan Gisselingh aos XIX, 20.vii.1633; e Mathias van Ceulen e Johan Gisselingh aos XIX, 19.viii.1633, CJH, BPB,

59

OLINDA RESTAURADA

podia chegar a 500 ou 600 homens, subdividia-se em companhias de 50, 60 ou 70 soldados, caindo de surpresa sobre engenhos e povoações da marinha,

mas sem adentrar-se demasiado pelo interior. No caso de excursões contra

zonas de maior densidade demográfica, como Igaraçu, Goiana ou a Várzea, os efetivos compreendiam entre 300 e 600 homens. Tais cifras correspondiam a bem menos das que teriam sido imprescindíveis às operações de assédio, que

mobilizavam de 1.000 a 1.500 soldados, como nos sítios do Arraial em 1634

e 1635 ou como na ofensiva contra a Paraíba.!2? A historiografia do período acentuou o papel estratégico do poder naval mas ignorou seu parente pobre, o emprego tático, que não foi menos importante, graças à experiência adquirida nas operações ao longo do complexo sistema fluvial dos Países Baixos.!24 Também neste aspecto, Waerdenburch com-

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de socorro e queriam estorvá-las. Assim cada um nos apertava mais, sendo-

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começou a dividir por aquela costa os seus navios, não só para presar o que pudesse como porque souberam que nos entravam em alguns portos caravelas

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comando. Em 1631, lamentava que os navios de grande porte permanecessem ociosos a mator parte do tempo, desperdiçando víveres, imobilizando efetivos e exigindo manutenção, quando o domínio da costa requeria sobretudo iates e chalupas que pudessem entrar pelos pequenos portos (muito freqientados pelos luso-brasileiros após a perda do Recife), fechando barras, subindo os pequenos cursos d'água e saqueando os engenhos ribeirinhos.!?? Servaes Carpentier, conselheiro político, tinha a mesma opinião: a conguista do interior dependia do bloqueio dos rios, tarefa para que eram inaptos os cruzadores.!26 Mercê do conhecimento minucioso das condições de navegação no Nordeste, os neerlandeses podiam atacar, em poucas horas, pontos afastados da costa que as tropas luso-brasileiras, restritas aos caminhos terrestres, levavam dias para alcançar. Segundo o donatário, o inimigo

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preendeu o partido a tirar, nos rios do Nordeste, das forças limitadas sob seu

125 DH, p. 89. 126 “Adyys van S. Carpentier”, 27.xi.16 31, CJH, BPB.

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124 Israel, The Dutch republic, pp. 253 e 513.

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23 Iuerlyk verhael, iii e iv, passim,

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E A VITÓRIA

DO

MAR

lhes agora fácil o caminho por mar, onde não temiam os capitães de emboscadas que em terra os assaltavam com tanto dano seu. O que ele nos causou com essa vantagem foi muito grande, porque navegando com vento em popa para sudoeste quando soprava nordeste, e para o norte e nordeste quando reinavam sueste e sul (são os que dominam naquela costa alternativamente

de seis em seis meses), chegavam em poucas horas aos portos que por terra

não podíamos socorrer em muitos dias, já pelas distâncias, já pelos muitos rios que neste país demoram a marcha.!

E constatando que “o modo de guerra que fazem hoje é para destruir

todos os engenhos que estão pertos do mar, pois fazem correrias em todas as águas vivas”, Bagnuolo calculava que a diferença entre a rapidez do deslocamento por terra e por mar era de, pelo menos, 4 para 1.128 Se a contraguerrilha não podia ser levada demasiado longe sob pena de destruir o sistema produtivo em dano das expectativas da W.I.C., ela habilitou o comando neerlan-

dês a retomar, desta vez com êxito, a estratégia original de assédio das praçasfortes, que selou a sorte do domínio lusitano. Em dezembro de 1634, com a

capitulação da Paraíba, o exército batavo pôde avançar sobre a capitania de Itamaracá e completar o cerco dos principais baluartes pernambucanos, o Arraial e o Cabo. Em meados de 1635, só restava ao exército de resistência recuar para o sul, de maneira a garantir em Alagoas a cabeça-de-ponte para o desembarque do socorro trazido por Rojas y Borja; entre a derrota de Mata Redonda em janeiro de 1636 e a conquista de Porto Calvo por Nassau em março do ano seguinte, manter-se em território alagoano; e finalmente, com a retirada para a margem direita do São Francisco, recorrer à tática da terra arrasada, despachando para o Brasil holandês contingentes de campanhistas encarregados de abrasar canaviais e engenhos. Às posições haviam-se invertido. Mais do que o resultado dos reforços enviados pela W.1.€., como pensou Oliveira Lima,!?? o colapso da resistência luso-brasileira foi o triunfo da

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À EMPRESA

127 Memórias diárias, pp. 59-6 e 91. 128 Bagnuolo a Felipe IV, 29.1.1632, AGS, GA, 1071; idem a idem, 15.11.1633, AGS, GA, 1091.

122 M. de Oliveira Lima, Pernambuco. Seu desenvolvimento histórico, Leipzig, 1896, p. 71.

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OLINDA RESTAURADA

contraguerrilha. A chegada de tropas frescas não era necessariamente vantajosa, por ser difícil sua adaptação à guerra nos trópicos. Soldados vigorosos do norte da Europa tornavam-se muitas vezes aquelas “sombras vivas” a que se referiu Waerdenburch. Pierre Moreau os descreveu, fracos, descarnados. incapazes de esforço físico, caindo pelas ruas ou morrendo pelos hospitais, vítimas do escorbuto, da disenteria e dos vermes.!30 Donde o empenho das

autoridades em persuadir os aclimatados a renovarem os contratos, no que tiveram certo sucesso, pois muitos deles já tinham em 1638 cinco, seis ou sete

anos de terra.'*! Um veterano destes valia mais que três recém-chegados, além da conveniência de permanecerem como colonos uma vez desmobilizados.!32 Não houve acréscimo líquido de efetivos neerlandeses durante a resistência, pois os reforços enviados da Holanda destinavam-se geralmente a substituir as baixas, que não eram pequenas. Em fins de 1631, a W.1I.C. mantinha 4.477 soldados e 2.240 marinheiros; três anos depois, 4.136 soldados e 1.528 marinheiros.'?* Ao partir contra a Bahia (1638), Nassau recenseou 4.400 soldados, dos quais 1.000 índios; em 1639, ao preparar a defesa contra a arma-

da do conde da Torre, o exército de terra montava a 4.320.134

NA RESTAURAÇÃO

Ao contrário da resistência, uma frente estável caracterizará a restauração. Seu prólogo, a insurreição luso-brasileira de 1645, foi originalmente

150 Pierre Moreau, Histoire des derniers troubles du Brésil entre les bollandais et les portugais,

Paris, 1651, p. 136. Há tradução brasileira, História das últimas lutas entre holandeses e portugueses,

Belo Horizonte, 1979.

131 João Maurício de Nassau aos Estados Gerais, 6.x.1638, IHGB, DH, 2. 152]. A, Gonsalves de Mello (ed.). Fontes para a história do Brasil holandês (citado doravante como Fontes), 2 vols., Recife, 1981 e 1985, ii, p. 428.

133 Juerlyck verhael, iii, p. 27, e iv, p. 44.

134 Gaspar Barleus, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o governo do ilustríssimo João Maurício, conde de Nassau (citado doravante como História dos feitos), Rio, 1940, p. 79; Nassau aos Estados Gerais, 18.11.1639, IHGB, DH, 2.

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sil holandês, mas seu fracasso parcial desembocou no conflito de nove anos

(1645-1654). O levante seria apoiado por contingentes do exército da resis-

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planejada como uma fulminante operação marítima e terrestre contra o Bra-

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A EMPRESA DA TERRA E A VITÓRIA DO MAR

tência que, vindos da Bahia por terra e por mar, conquistariam a praça-forte

do Cabo, de modo a contar com porto de mar para as comunicações com o Reino. Reunidos, insurretos e soldados deveriam assediar o Recife e demais guarnições, rendendo-as uma a uma, simultaneamente com o bloqueio marítimo pelos galeões da Coroa que, sob o comando de Salvador Correia de Sá, comboiavam a frota do açúcar do Rio e da Bahia com destino a Portugal. T'ratava-se, como advertiu Boxer, de um conjunto ambicioso de operações a exigirem “um timing perfeito”, difícil de conseguir “em termos das ligações marítimas e terrestres entre Pernambuco e a Bahia”.!3º No final das contas, o projeto ficou comprometido pela recusa de Salvador Correia em fazer sua parte. Em junho de 1645, Fernandes Vieira deflagrou o levante na Várzea, a contingentes da Bahia, evitaram inicialmente a tropa holandesa saída em seu encalço. Em agosto, porém, os acontecimentos precipitaram-se com as vitórias de Tabocas e da Casa Forte, que encurralaram o exército neerlandês no Recife; a chegada das tropas de Henrique Dias e de Camarão, que marcharam pelo interior; o desembarque em Sirinhaém dos terços de André Vidal de Negreiros e de Martim Soares Moreno; e o suborno da guarnição batava do Cabo, que entregou a praça-forte. Mas quando, em meados de agosto, a frota de Salvador de Sá apresentou-se diante da capital, o governo holandês cominou-a a partir. Seu conselho de guerra reforçando-lhe as dúvidas acerca da viabilidade do bloqueio em pleno inverno, Salvador de Sá seguiu viagem para Portugal, enquanto a força-transporte de Serrão de Paiva era destruída

por Lichthart em Tamandaré. Em setembro, o levante da Paraíba também isolou os holandeses na cidade, ao passo que, em Alagoas, capitulavam os presídios de Penedo e Porto Calvo. Ao cabo do primeiro trimestre de insurreição, os luso-brasileiros controlavam o interior, havendo reduzido o poder holandês ao Recife, Itamaracá,

135 C, R. Boxer, Salvador de Sá and the struggle for Brazil and Angola, 1602-1686, Londres,

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1952, p. 201.

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que se seguiram semanas de indecisão, de vez que os rebeldes, à espera dos

OLINDA RESTAURADA

Fernando de Noronha e às fortificações litorâneas da Paraíba e do Rio Grande. No resumo de J. A. Gonsalves de Mello, um episódio que se esperava fosse de rápido desfecho — o ataque por terra sincronizado com o bloqueio marítimo da esquadra — ia transformar-se numa luta cuja duração não se podia prever e cujo resultado era mais incerto, pois ia colocar frente a frente, ainda uma vez, o enorme poder econômico e militar da Holanda contra o de Portugal e dos moradores do Brasil, no período de crise em que ainda se achava o mundo português, depois da ascensão ao trono do duque de Bragança.!3º

À restauração recriou o impasse dos primeiros anos da resistência. Mas

doravante a frente militar não conhecerá modificações de monta, embora reduzida em 1646, com a chegada de reforços holandeses, quando o comando luso-brasileiro decidiu proceder à evacuação de toda a população do Rio Grande, Paraíba, Itamaracá e Igaraçu, vale dizer, toda a área ao norte de Olinda, transferindo-a para o sul de Pernambuco, de modo a diminuir radicalmente o perímetro de defesa e a concentrar efetivos contra o Recife. Destarte, a guerra desenrolar-se-á quase toda ao longo dos poucos quilômetros da linha de estâncias que, apoiada a oeste pelo Arraial Novo, permitia, como em 1630-1632, isolar a cidade, Para o comando neerlandês, o problema voltou a ser o de romper o cerco implacável; e a tentativa de fazê-lo deu origem aos dois principais episódios bélicos do período, as batalhas dos Guararapes em 1648 e 1649. Fracassando também os ataques diversionistas a Itaparica (1647), ao Recôncavo baiano (1648) e ao Rio de Janeiro, e privados de meios para nova ofensiva, os holandeses adotaram postura defensiva até a rendição em 1654. Ão reencontrar-se com o problema estratégico de 1630-1632, a W.L.C. achava-se em circunstâncias bem diversas. Em parecer dado a Nassau, ao receber-se nas Províncias Unidas a notícia da insurreição pernambucana, Gaspar Dias Ferreira esboçou as opções. A primeira, negociar um perdão geral, com indenização dos danos e restituição dos bens confiscados por motivo da revolta, com o retorno dos religiosos expulsos e a plena liberdade do culto ca136 Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, ii, DEZ,

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À

EMPRESA

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E A VITÓRIA

DO

MAR

tólico. Sendo inviável face à perseverança dos insurretos, restavam os meios

da força. À guerra terrestre requereria tropa de 10.000 homens, sem que houvesse ao menos garantia de êxito, pois “com a longa experiência da guerra passada, todos [os luso-brasileiros] são soldados e todos hão-de pelejar até morrer”. Por sua vez, a vitória seria contraproducente, pois em retaliação os re-

beldes abrasariam canaviais e engenhos, retirando-se com os escravos para a Bahia, “e este dano é irreparável e sem remédio algum”. À região ficaria devastada, os engenhos destruídos por muitos anos e a W.1.C. reduzida às presas marítimas. Mesmo reconstruído, o sistema produtivo continuaria à mercê dos ata-

ques da Bahia, como bem sabia Nassau, que só pudera debelar os campanhistas

graças à trégua de 1641 entre Portugal e as Províncias Unidas. Se outrora o exército holandês lograra conquistar o interior, devera-o a que as tropas do o que não ocorreria

agora, com a ascensão de rei natural ao trono português. Por outro lado, sem

a cooperação dos colonos luso-brasileiros seria inviável reerguer a economia açucareira, cujas técnicas os neerlandeses nunca haviam dominado. Concluía Gaspar Dias que a guerra devia ser por mar, bloqueando os portos e estorvando a navegação e o comércio dos rebeldes, não na expectativa de levá-los

à rendição, como acreditara a W.I.C. ao atacar o Brasil, mas de coagir Portugal a restituir o Nordeste por via diplomática. Na hipótese de não se alcançar este !/ objetivo, só restaria negociar sua cessão em troca de recompensa financeira, Frente à eficácia com que os luso-brasileiros segregaram os inimigos no

Recife e praças-fortes costeiras, o comandante holandês, o alemão Von Schkoppe, que militara outrora sob as ordens de Waerdenburch, cogitou recorrer à lição do antigo chefe. Mas os efetivos eram insuficientes mesmo para a contraguerrilha. Após o tratado de trégua e por medida de economia, a W.I.C. reduzira sua tropa no Brasil, medida cuja imprudência Nassau em vão denunciara.!28 Ao rebentar o levante restaurador, ela contava apenas com 2.000 solda-

dos, 800 milicianos, entre 600 e 700 marinheiros e a gente do trem de artilha-

137 Gaspar Dias Ferreira a Nassau, 2.x.1645, e idem a idem, s.d., ambos em “Cartas e pare-

ceres de Gaspar Dias Ferreira”, RIAP, 31 (1886), pp. 335-42 e 345-51. , K

158 Nassau aos Estados Gerais, 24.ix.1642, IHGB, DH, 2.

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Rs

Rei Católico haviam alienado a simpatia da população,

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RESTAURADA

ria. Descontando-se as guarnições, sobravam apenas 300 soldados e 200 ín-

dios para expedições de comando.!?? Mesmo os reforços trazidos por Schkoppe em 1646 não conferiram capacidade ofensiva: ele estimava que, sem contar os presídios, seriam necessários 2.000 soldados para romper o sítio do Recife. 140 Cálculo conservador, de vez que, consoante Nassau, o Brasil holandês

exigiria um mínimo de 7.000 para presidiar as praças-fortes e um exército de campanha entre 2.000 e 3.000 homens, no montante de 10.000 soldados.!*! A WC. não estava em condições de atender a reivindicação de Schkoppe que, após várias tentativas de reeditar os ataques ao interior, concluiu pela impossibilidade de realizá-los. É certo que, em toda a região evacuada ao norte de Olinda, suas tropas podiam excursionar em 10 ou 12 léguas de profundidade a partir de Itamaracá. Eram, porém, operações destituídas de utilidade, em vista do deserto em que se transformara a área. Do Recife para o sul, elas eram impraticáveis, pois, como referia Schkoppe, logo que marchamos, o que sucede muitas vezes, para ver se lhes podemos tirar alguma vantagem, eles saem também, mas quando percebem que somos mais fortes, retornam imediatamente às passagens estreitas e às matas,

onde os nossos devem inevitavelmente chegar e onde nada podemos esperar, salvo ver nossas tropas dizimadas à direita e à esquerda. Nos bosques, não podemos obter vantagem alguma sobre eles, e muito menos desalojálos de suas posições, de maneira que nada há a fazer, exceto ao preço de grandes riscos e da perda de muitos homens.!*?

A impossibilidade de atrair o exército restaurador para uma batalha campal ou de reutilizar a estratégia de Waerdenburch só deixava ao comando neerlandês a diversão naval, com suas variantes: uma, limitada ao litoral do Nor-

deste, visando forçar os luso-brasileiros a despachar parte da tropa em socorro dos pontos atacados, de modo a aliviar o Recife e permitir excursões ao interior; outra, de escopo mais amplo, prevendo represálias contra a Bahia ou 139 Balthasar van de Voorde aos Estados Gerais, 21.ix. 1646, ibid., 3. 140 Sigismund von Schkoppe aos Estados Gerais, 21.ix.1646, ibid., ibid. 141 Nassau aos Estados Gerais, 24.ix.1642, ibid., 2.

142 Schkoppe aos Estados Gerais, 9.iii e 9.xii.1648, ibid., 4.

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o Rio de Janeiro, a fim de induzir o governo português a retirar contingentes de Pernambuco.!43 De 1646 a 1649, testaram-se estas alternativas. O Alto Governo favorecia o ataque frontal, enquanto os oficiais optavam pelos ataques à costa, opondo-se às tentativas de romper o cerco da cidade que resultarão nas derrotas dos Guararapes. À argumentação militar era uma reiteração da utilizada outrora por Waerdenburch: vencido, o inimigo se dispersaria pelas matas em pequenos contingentes, sem que a força neerlandesa, curta de víveres, pudesse alcançá-los ou impedir que se reunissem. Schkoppe também pensava assim mas acabou cedendo às autoridades civis.!“* Somente no decurso do debate pósprimeira Guararapes, é que ele se alinhou com o ponto de vista dos coman-

dados, propondo a conquista do Rio de Janeiro ou a devastação do Recôncavo

baiano. Alegando os desejos da W.1.C., o Alto Governo descartou a sugestão. À insatisfação com o imobilismo do exército era particularmente viva entre os habitantes do Recife, favoráveis também ao ataque frontal por acreditarem que pretender triunfar mediante expedições diversionistas era o mesmo que fazer como o mosquito, “voar em torno do fogo e queimar-se”.!$ E, com

efeito, tampouco a ocupação de Itaparica e as excursões contra o São Francisco, o Recôncavo baiano e a baía da Guanabara produziriam resultados.

Em ambas as Guararapes, o exército da W.1.C. retrocedeu com perdas substanciais.!46 As expedições marítimas ao sul de Pernambuco foram infrutíferas. Mesmo a poderosa armada que o governo neerlandês confiou a um dos seus mais gloriosos almirantes, Witte de With, nada realizou de militarmente relevante no Nordeste, na Bahia ou no Rio. Não dispondo o Alto Governo de recursos para mantê-la no grau de preparação imposto pelo pro-

143 Para o debate estratégico do lado neerlandês, W. J. van Hoboken, Witte de With in Brazilie, 1648-1649, Amsterdã, 1955, pp. 79 ss. A conquista de Salvador, a exemplo do que tentara Nassau em 1638, tornara-se alternativa acadêmica devido à necessidade de contar-se para tal com efetivos de 10.000 a 12.000 homens.

144 Cornelis van den Brande aos Estados Gerais, 23.iv.1648, e Schkoppe aos Estados Gerais, 12.v.1648, IHGB, DH, 4. 145 Schkoppe aos Estados Gerais, 10.iii.1649, ibid.; “Diário ou breve discurso acerca da rebelião e dos pérfidos desígnios dos portugueses do Brasil”, RIAP, 32 (1887), p. 217. 146 Alto Governo aos Estados Gerais, 9.vii. 1648, IHGB, DH, 4.

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fisstonalismo de De With, este regressou à pátria, abandonando o Brasil holandês à própria sorte. Ao menos o saque do Recôncavo (1648-1649) resul-

tou no incêndio de 23 engenhos e no butim de 1.500 caixas de açúcar.!4 Considerando desconsoladamente a situação, Moreau não via saída: o interior, do Ceará a Olinda, achava-se completamente deserto, nada se podendo obter com a posse das praças-fortes do Rio Grande, Paraíba e Itamaracá. Os

luso-brasileiros eram senhores de todo o campo habitado e de todas as posições, do sul do Recife ao Rio de Janeiro. E, repetindo o refrão de Waerdenburch, toda essa extensa região era povoada e produtiva, podendo, ao contrário dos holandeses, dispensar os produtos europeus. !48 O envio da armada de De With denotava, aliás, o estado a que, em poucos anos, ficara reduzido o poderio naval da W.I.C. Para o socorro de 1646,

ela teve de recorrer ao empréstimo de navios de guerra do almirantado da Zelândia e a um subsídio do governo confederal. Em 1648, por ocasião da chegada do almirante, o Recife dispunha apenas de cinco embarcações velhas

e de alguns iates. O corso, que lhe havia dado vultosos benefícios, fora terceirizado a uma organização de corsários zelandeses desempregados pela capitulação de Dunquerque (1646). Em vão o Alto Governo solicitava iates e embarcações de pequeno porte.!4? Revendo a idéia de que a paz de Munster (1648), privando-a dos lucros do corso, fora a causa do declínio naval da WC. W.]. van Hoboken demonstrou que ele já se fazia sentir desde 1640, muito antes, portanto, do fim do conflito hispano-neerlandês. Ao que se poderia aduzir o despreparo em que já se achava a defesa marítima do Brasil holandês por ocasião do ataque da armada do conde da Torre. Examinando os elementos reunidos por Irene A. Wright sobre o Caribe no período 1621-

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1648, Hoboken concluiu que, até 1640, a W.I.C. ainda utilizava grandes fro-

147 Hoboken, Witte de With in Brazilie, pp. 110 ss.

148 Moreau, Histoire des derniers troubles, pp. 197-8. 149 Alto Governo aos XIX, 25.v.1647; “Bericht van wegen President en de Raden veror-

donneert tot de Hoog Regering alhier aan de Ed. Vergadering der XIX over de zaken van Brazilie”, 27.11.1647; Alto Governo aos XIX, 5.xi1.1651, CJH, BPB; e “Pointen daarop bij de Heeren President en Raden van de Hoog Regering in Brazilie antwoord verzocht word”, 5.xii.1651, CJH, RUB.

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DO MAR

tertam conseguido provavelmente destruí-la, caso a crise comercial não a hou-

vesse previamente fragilizado. | Face às derrotas dos Guararapes e à deserção da armada de governo de Haia optou por uma estratégia defensiva no Brasil e Europa, mediante o bloqueio da barra do Tejo. Mas ao longo 1649-1654, ele ficou paralisado pela crise entre a província da Guilherme II e pela primeira guerra anglo-neerlandesa. Com o

De With, o ofensiva na do período Holanda e inesperado

falecimento do stathouder, a Holanda tomou as rédeas da Confederação, reestruturando em seu benefício as instituições políticas. Resolvidos os problemas internos, interveio o conflito externo, decorrente das disputas comerciais

com a Inglaterra. No mar do Norte e no Báltico, as Províncias Unidas sofreram sérios revezes às mãos da marinha inglesa, incorrendo em perdas substanciais. Em 1654, foi assinado o tratado de Westminster, que pôs fim à guerra mas, neste ínterim, aproveitando-se da situação, a terceira armada da Companhia de Comércio e o exército restaurador haviam levado o Brasil holandês à capitulação.

DO xy. J. van Hoboken, “De West-Indische Compagnie en de vrede van Munster”, Tijdschrift voor Geschiedenis (1957), pp. 361 e 363.

51 “Sobre as pazes com os holandeses”, s.d., BA, 51-VI-38.

152 Hoboken, “The Dutch West-India Company”, cit.

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E À VITÓRIA

tas na região, as quais haviam desaparecido desde então, ao passo que, no tocante ao corso, as fontes espanholas silenciam a partir de 1644,150 À deterioração do poderio da W.1.C. não esteve evidentemente alheia a crise do preço do açúcar em Amsterdã, que iniciada em 1638, agravou-se em 1642 com efeitos críticos para o Brasil holandês. A trégua luso-neerlandesa de 1641 também aumentara os embaraços financeiros da Companhia ao sustar a guerra de corso contra a navegação portuguesa, segundo sustentava um papel anônimo, o qual aduzia que a situação só melhorara após a retomada da pirataria em 1647.21 É certo que a receita daí proveniente tornara-se vital, de vez que a insurreição pernambucana zerara a receita brasileira da W.I.C. Quanto aos “fatores políticos” que, na interpretação de Hoboken, determinaram sua ruína, em especial a sistemática hostilidade de Amsterdá,!>2 não

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À EMPRESA

69

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Produção, comércio e navegação, 1630-1636

Frei Manuel Calado do Salvador prefaciou com estas palavras a descri-

ção da vida material em Pernambuco às vésperas da ocupação batava: “Era aquela república [i.e., comunidade] antes da chegada dos holandeses a mais

deliciosa, próspera, abundante e não sei se me adiantarei muito se disser a mais rica de quantas ultramarinas o reino de Portugal tem debaixo de sua coroa é cetro”. E ecoando um dos motivos edênicos estudados por Sérgio Buarque de Holanda, aduzia que “tudo eram delícias e não parecia esta terra senão um retrato do terreal paraíso”.! O cronista exagerava: o quadro já não correspondia à Nova Lusitânia da segunda e da terceira década do século XVII. O vento Nordeste ainda não desembarcara “das velas do almirante Loncq na praia de Pau Amarelo”, como no poema de Joaquim Cardozo, e a produção e o comércio do açúcar já enfrentavam dificuldades que, se por um lado resultavam em boa

parte da guerra de corso movida desde 1624 pela W.L.C., por outro, já se ha-

viam manifestado no decurso do segundo decênio de Seiscentos. Mesmo assim,

o autor anônimo de uma “Descripción de la província del Brasil” (1629) esti-

mava que o comércio do Nordeste valesse anualmente 3.400.000 cruzados.?

O PASSADO ANTERIOR

Este primeiro Nordeste sobre que se abateram por um quarto de século a guerra e a ocupação holandesas, cindindo-o daquele que viria depois, per| Lucideno, à, pp. 18-9.

2 “Descripción de la província del Brasil”, 1629, BNM, 3015, fls. 1-7, transcrito por Frédéric Mauro, Le Brésil au XVIlême siêcle, Coimbra, 1963, pp. 171-82.

71

OLINDA

RESTAURADA

tence cronológica e sociologicamente à fase inicial da expansão açucareira no Atlântico. Iniciada na Madeira e nas Canárias, ela transportou suas técnicas de produção para este lado do oceano, em São Domingos, no Brasil ou em

São Tomé, até que, a partir de meados do século XVII, tendo Barbados como

ponta-de-lança, as colônias inglesas, francesas e holandesas do Caribe inau-

da cana e no fabrico do açúcar; o segundo, em atividades que, dependentes

de níveis modestos de capitalização, fixavam a população livre mas pobre, excedente do limitado mercado de trabalho que oferecia o setor açucareiro: o cultivo dos produtos que satisfaziam as necessidades deste e também a extração de pau-brasil e a lavoura do fumo. É sabido que a agricultura de subsistência e a criação extensiva que se desenvolveram na faixa árida e semi-árida do Nordeste constituíram originalmente uma resposta à demanda de alimentos e animais de tração gerada na área canavieira.? No período ante bellum, o processo de especialização regional limitavase praticamente à faixa úmida. À monocultura da cana e o fabrico do açúcar dominavam as freguesias centrais de Pernambuco (Várzea, Igaraçu, São Lourenço, Jaboatão-Muribeca e o Cabo); na Paraíba, o rio homônimo e seus afluentes; e na capitania de Itamaracá, o Goiana e seus tributários. Mas mesà Para a comparação entre as fases da economia açucareira do Atlântico, Stuart B. Schwartz (ed,), Tropical Babylons. Sugar and the making of the Atlantic world, 1450-1680, Chapel Hill, 2004. é Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, 2º ed., Rio, 1959, pp. 70-7; Stuart B. Schwartz, “Plantations and peripheries, c. 1580-c.1750”, Leslie Bethell (ed.), The Cambridge history

of Latin America. Colonial Latin America, 2 vols., Cambridge, 1984, ii, pp. 453-65.

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longo dos rios, em particular a ribeira do Capibaribe, onde a penetração era mais acentuada. À partir de Olinda, centro administrativo e comercial servido pelo anteporto do Recife, o Nordeste, quando da ocupação holandesa, já se articulara economicamente em dois setores principais. O primeiro, baseado no cultivo

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Rio Grande do Norte, alcançava Penedo às margens do São Francisco. O povoamento não ultrapassava a oeste os 70 quilômetros, e assim mesmo ao

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guraram uma nova etapa na história do açúcar, caracterizada pelas escalas superiores da plantation.? No primeiro quartel do século XVII, o Nordeste eram as chamadas capitanias de cima, que, demograficamente falando, constituíam apenas a franja litorânea de disposição latitudinal que, de Natal no

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1630-1636

mo no interior desta área eminentemente canavieira, havia espaço para a lavoura de mantimentos. Em Jaboatão-Muribeca, em São Lourenço, e até na

Várzea e no Cabo, o autoconsumo local dispunha de quantidade de farinha de mandioca, seja nos próprios engenhos, seja mais frequentemente em la-

vouras livres, sem mencionar a numerosa criação doméstica, os legumes, as frutas, a caça e o pescado de mar e de rio. Algo parecido ocorria nos núcleos

açucareiros secundários, a Paraíba e a capitania de Itamaracá. Com o avanço do povoamento pelas freguesias meridionais de Pernambuco, aumentou o espaço para a cultura de víveres e sua venda às freguesias centrais. Se em Ipojuca e em Sirinhaém produzia-se farinha, fumo e peixe seco para as necessidades dos seus habitantes, mais ao sul, de Una, Porto Calvo,

das Alagoas e do São Francisco, comerciava-se com gado, mantimentos, especialmente farinha, e pescado para o suprimento de Olinda-Recife e freguesias centrais, além de se cultivar fumo. Na extremidade norte da região, o Rio

Grande, vinham de Cunhaú e de Natal para Pernambuco gado, farinha, mi-

lho e pescado, além do produto de suas salinas naturais. À oeste da região açucareira, principalmente ao longo da bacia do Capibaribe, estendia-se a faixa de cerca de cem quilômetros de comprimento, onde campeavam a lavoura de subsistência e os “currais”, que forneciam gado de corte e de tração à região canavieira, muitos deles pertencentes a senhores de engenho. Desta faixa, também chamada de mata do Brasil, procedia a maior parte do pau-brasil vendi-

do aos contratadores da Coroa.” Contudo, as principais áreas de suprimento de gado estavam no litoral do Rio Grande e no baixo São Francisco. À criação constituía, segundo dirá o governo holandês, “a mais certa e lucrativa atividade que se pode empreender no Brasil, pois não trás riscos e despesas”.º O gado abundava no São Francisco, onde havia curraleiros com desde 5.000 até 12.000 reses.” Cavalgando ? Este esboço da geografia econômica do Nordeste em 1630 baseou-se principalmente no relatório preparado naquele ano para as autoridades holandesas por Adriaen Verdonck, brabantino há doze anos residente na terra: Fontes, à, pp. 33-46. O leitor pode consultar também Luís da Càmara Cascudo, Geografia do Brasil holandês, Rio, 1956.

Ó Fontes, ii, p. 227. ? DH, pp. 118€e 122, Pudsey as descrevia como de “raça portuguesa, bem conformadas, couro macio, bons chifres e bom tamanho”: “Journal”, fl. Sv.

73

OLINDA RESTAURADA

pela sua ribeira, Nassau espantar-se-á do tamanho das boiadas que pastavam trangiillamente: “pasmei e não acreditaria nestas maravilhas se não as contemplasse com estes olhos”.º Bom holandês, Nieuhof deplorará que não se pudesse fabricar manteiga no Brasil: o leite coalhava rapidamente.” “Toda esta costa e praia do Rio Grande até à Paraíba [observara Diogo de Campos Moreno no começo do século XVII] vai em partes povoada de redes ou pescarias e de currais de gado, [o] que faz aquele caminho, sendo o mais afastado e pobre de todos, ser o mais cômodo a se andar por terra.”!º Reputava-se o rio Potengi “o mais fértil de peixe”, nele se fazendo “muito grandes pescarias e as mesmas pela costa no verão, de que vai muito peixe salgado à Paraíba e a Pernambuco”.!! Do sul de Pernambuco, também se expedia peixe seco, ao passo que o litoral em torno do Recife abastecia-se de peixe fresco, em particular Olinda e seus conventos, cujo suprimento estava a cargo de cem pescadores de alto-mar, além de consumir-se volume notável de caranguejos colhidos nos mangues circunvizinhos por duzentos escravos! A piscosidade das águas litorâneas surpreenderá os holandeses: “aconteceu muitas vezes que uma rede deu dois ou três mil belos peixes de uma vez s6”.!º À pesca atendia a demanda dos engenhos, roçados e núcleos urbanos. Os pesqueiros, ou sítios de pescaria, a primitiva forma de utilização econômica e de ocupação humana do terraço marítimo, antes que os sítios de coqueiros surgissem ao seu derredor, constituía atividade rentável, a ponto de utilizar mão-de-obra africana; e um bom pesqueiro, como o de Maracaípe,

seria adquirido por 10.000 cruzados, tendo ademais o comprador de investir

é História dos feitos, p. 45. 2 Johan Nieuhof, Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil (citado doravante como Memordvel viagem), 2º ed., São Paulo, 1951, p. 46. Pudsey adiantava que, devido ao calor, as va-

cas produziam pouco leite, o qual, estragando-se com brevidade, desencorajava a exploração comercial: “Journal”, fl. 5v. !ô Diogo de Campos Moreno, “Relação das praças-fortes, povoações e coisas de importân-

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1H “Descrição do Rio Grande”, s.d., mas anterior a 1630, BNM, 3015.

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cia que Sua Majestade tem no Estado do Brasil”, RIAP, 57 (1984), p. 194.

12 Fontes, à, pp. 36-7, 40 e 42-3.

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5 Fontes, ii, p. 228.

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1630-1636

na reedificação das instalações e da capela adjacente, e num curral de gado.!“ Nos pesqueiros, tratava-se e salgava-se o produto, especialmente a tainha: “todos os moradores da terra [dele] se alimentam e sem isto os engenhos não poderiam manter-se”.!> Os mais afastados da costa consumiam peixe de água doce, geralmente mais saboroso e melhor nutrido do que o da praia”.!º A importância da pesca de rio na alimentação quotidiana é confirmada pela proibição do período ante bellum, reiterada por Nassau, de se atirarem aos cursos dágua o bagaço da cana e a calda das moagens.!” Sugeriu Pierre Chaunu que o crescimento da economia açucareira no Brasil teria terminado por volta de 1610, seguindo-se uma fase de estabilização até cerca de 1629. “Além de 1629, entre 1629 e 1645, é o autêntico declive”, escreveu. Ele também chamou a atenção para o fato de que essa “primeira modificação decisiva da aceleração do crescimento” coincidiu com a reversão da tendência secular à expansão no Atlântico espanhol. !8 As conclusões de Frédéric Mauro apontam na mesma direção. A um período de expansão até 1600, com aumento da produção e dos preços, suceder-se-á uma eta-

pa de estabilização até 1625.1? Stuart B. Schwartz propôs periodização mais fina. Utilizando também o índice da construção de engenhos, detectou três

ritmos: 1570-1585, crescimento rápido; 1585-1612, desaceleração; 1612-

1630, crescimento, menos intenso que o primeiro, induzido não pelos pre-

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PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1á História dos feitos, pp. 162-3; Fontes, ii, p. 371; “Journal”, fl. 5r.; Barão de Studart (ed.), Documentos para a história do Brasil e especialmente a do Ceará, 4 vols., Fortaleza, 1904-1921, iv, p. 153. '2 Fontes, ii, pp. 96 e 228. 16 Fontes, À, p. 41; e ii, pp. 228-9. Foi, aliás, na mata do Brasil que Verdonck assistiu a uma

tinguijada, técnica aprendida dos indígenas e que consistia na utilização de vegetais tóxicos que, jogados na água, em três ou quatro horas faziam boiar grande quantidade de pescado. “Dias houve [escreveu] em que vi |...) serem apanhados de 6 a 7.000 peixes de todas as qualidades [...] gor-

dos e de delicado sabor”: Fontes, i, p. 41. Vd. a respeito Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do folclore brasileiro, Rio, 1954, pp. 612-3. f Fontes, 1, pp. 150, 152e 191. '8 Chaunu, “Brésil er Atlantique au XVIlême siêcle”, pp. 1.194-5. 19 Frédéric Mauro, Le Portugal et | Atlantique au XVIême sitcle, 1570-1670, Paris, 1960, p. 25):

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OLINDA

RESTAURADA

ços mas pot uma novidade tecnológica, o engenho de “palitos” ou de “três paus”, isto é, a moenda de três cilindros verticais que aumentava o rendimento

da cana e requeria investimento módico. Examinando os preços do açúcar na Bahia, ele concluiu que os dois primeiros decênios de Seiscentos haviam sido

de prosperidade, graças também à Trégua dos Doze Anos. Contudo, a partir de 1620, verificou-se uma queda do preço que o reduziu à metade dos níveis de 1613, iniciando-se um período de depressão, exacerbado pela conjuntura européia e pela ofensiva da W.I.C. no Atlântico Sul. Os dados relativos ao número de engenhos no Nordeste indicam que, de 1570 a 1583, ele quase triplicou, de 23 para 66, mas que, de 1583 a 1608, passou apenas de 66 a 78, malgrado a abertura das fronteiras agrícolas na Paraíba, Itamaracá e Alagoas. Contudo, com a introdução da moenda de

“palitos”, o total quase duplicou, de 78 a 149 em 1630, dos quais 121 em Pernambuco e os restantes em Itamaracá, Paraíba e Rio Grande. Em Pernambuco, os canaviais tomaram o rumo das freguesias meridionais de Ipojuca a Porto Calvo e às Alagoas. À existência na mata úmida de condições mais favoráveis à cultura da cana explicaria em boa parte o desbravamento ao sul dos Guararapes, que abriu uma nova e mais fértil fronteira agrícola. De 1609 a 1630, as freguesias centrais, próximas do Recife, tiveram um incremento mo-

desto e mesmo certa estabilização no número das fábricas, que passaram de 64 a 74, exceção de São Lourenço. No mesmo

período, as freguesias meri-

dionais (Ipojuca, Sirinhaém, Porto Calvo e Alagoas) foram de 14 a 47. Enquanto em 1609 os engenhos das freguesias centrais correspondiam a 82% do total de Pernambuco, em 1630 eles equivaliam a 61%. As capitanias de [Itamaracá e da Paraíba tiveram também crescimento notável, em Itamaracá de 10 fábricas em 1609 para 23 em 1630, na Paraíba, de 10 para 20. Por fim, no Rio Grande do Norte existiam apenas duas fábricas em 1630. Em 1623, o Nordeste produzia 659.069 arrobas de açúcar macho e retame, as quais, a 20 arrobas por caixa, correspondiam a 32.953 caixas. Pernambuco, com 519.310 arrobas ou 25.965 caixas, detinha 78,8% da produção,

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O Stuart B. Schwartz, Sugar plantations in the formation of Brazilian society. Bahia, 15501835, Cambridge, 1985, p. 171. 21 “Relação das praças-fortes”, pp. 194, 196 e 203-206; Fontes, 1, pp. 141-76.

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1630-1636

enquanto à Paraíba cabiam 12,9% (84.997 arrobas ou 4.250 caixas) e a Itamaracá, 8,3% (54.762 arrobas ou 2.738 caixas). As freguesias centrais de Pernam-

buco respondiam por 358.972 arrobas ou 17.949 caixas (ou 69%) da produção da capitania, ficando as restantes 160.338 arrobas ou 8.017 caixas (31%)

por conta das freguesias meridionais, particularmente Ipojuca e Sirinhaém. À capacidade produtiva cobria uma larga faixa, desde os engenhos de mais de

6.000 arrobas anuais, passando pelos médios, entre 3.000 e 6.000 arrobas, até os molinotes, de menos de 3.000 arrobas. Das 137 unidades existentes em 1623, 15% pertenciam à primeira categoria, 47% à segunda e 38% à terceira. Cada uma delas pode ser avaliada segundo sua participação na produção regional: 56% provinham dos engenhos médios, 30% dos grandes e 14% dos molinotes.?? Desde os começos da expansão açucareira, as diferenças de condições físicas entre a mata seca e a mata úmida, tema privilegiado pelos geógrafos pernambucanos,*? condicionaram o desenvolvimento desigual da região. Enquanto 75% dos grandes engenhos ou se localizavam na mata úmida ou na bacia do Capibaribe (Várzea e São Lourenço), os restantes 25% espalhavamse pela mata seca (Igaraçu e capitania de Itamaracá), Paraíba e Alagoas. Os engenhos médios estavam bem distribuídos pelas diversas áreas, dominando

22 Fontes, i, pp. 25 e 28-32. Gaspar Dias Ferreira calculava em 1637 que no período ante bellum o dízimo do açúcar montara a 90.000 cruzados, o que corresponderia à produção de 500.000 arrobas ou 25.000 caixas: ibid., p. 251. Por sua vez, a “Lista do que o Brasil pode produzir anual-

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mente” (1635), também elaborada com base em dados anteriores à ocupação neerlandesa, arredonda

o total de Pernambuco e capitanias vizinhas para 700.000 arrobas (ou 35.000 caixas): ibid., p. 16. Como Gaspar Dias, Diogo Lopes de Santiago avaliava para 1629 o volume de 500.000 arrobas de açúcar macho, que postas no Reino a 5 cruzados por arroba produziriam 2.500.000 cruzados: Diogo Lopes de Santiago, História da guerra de Pernambuco e feitos memoráveis do mestre-de-campo João Fernandes Vieira (citado doravante como História da guerra), edição integral, Recife, 1984, p. 18. A disparidade de estimativas é compreensível em função de que, como assinalou Mauro, “os dízimos não são um reflexo absolutamente exato da produção”, não somente devido à isenção fiscal de dez anos para os engenhos recém-instalados e da “meia liberdade” de que continuavam a gozar após a expiração do prazo, como à fraude praticada à sombra destes privilégios: Mauro, Le Portugal et LAtlantique, pp. 260-1.

25 E pioneiramente por J. Vasconcelos Sobrinho, As regiões naturais de Pernambuco, o meio ea civilização, Rio, 1947, p. 33.

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em

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

OLINDA

RESTAURADA

na mata úmida e na mata seca e sobretudo na Paraíba, onde representavam cerca de 75% das unidades produtivas. Inversamente, na extremidade meridional da área açucareira, em Alagoas, eles reduziam-se a pouco mais de

que há, e mais neste que na Bahia por ter[em] mais curso e largueza os mora-

dores. Daí que D. Diogo se mostrasse partidário do trabalho indígena, “mais fácil e menos custoso”, pensando “não ser necessário a este Estado tanto negro da Guiné”.* Em 1614, houve “peste”, seguramente a epidemia de bexigas que voltará a grassar dois anos depois, dizimando a escravaria, seu alvo principal. “Ficaram muitos homens [...] de ricos, pobres”, informa o autor dos Diá-

logos das grandezas do Brasil, que, a despeito de grande senhor de engenho na

Paraíba, Em tória das seguinte,

manifestava idêntica apreensão sobre a quantidade de africanos.?? 1616, senhores de engenho e lavradores de cana obtiveram moradívidas, medida que a Câmara de Olinda voltou a solicitar no ano alegando notórios prejuízos.” Em 1618-1619, verificou-se forte

24 Fontes, à, pp. 142-75. p. 68.

?> “Correspondência do governador D. Diogo de Menezes, 1608-1612”, ABNRJ, 57 (1935),

26 Felipe III a frei Aleixo de Menezes, 2.xi.1614, AGS, SP, 1511; Diálogos das grandezas do Brasil (ed. ]. A. Gonsalves de Mello), 22 ed., Recife, 1966, p. 62.

* Livro primeiro, p. 147.

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lugar de Pernambuco e o da Bahia, e deles pende todo o governo e máquina

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ral, D. Diogo de Menezes, tanto mais quanto “no Brasil, não há mais que este

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(39%); na mata úmida, chegava a 28% e na Paraíba caía para 12%. Resumindo: concentração dos grandes engenhos na mata úmida e várzea do Capibaríbe; boa distribuição dos engenhos médios na mata úmida e seca, predomínio na Paraíba, rarefação em Alagoas; e concentração dos molinotes em Alagoas e na mata seca.?/ As fontes do segundo e terceiro decênios de Seiscentos permitem rastrear os sintomas da crise no setor produtivo e no comercial. Os anos de euforia haviam completado a transição do trabalho indígena para o africano. À venda a crédito da mão-de-obra e as altas taxas de mortalidade e de fuga acarretaram o endividamento generalizado que, em 1610, já preocupava o governador-ge-

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1/10. À categoria inferior adensava-se ali (80%), como também na mata seca

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1630-1636

incremento do corso barbaresco, graças à sua fusão com outras correntes da pirataria atlântica;?* e em 1621, foi a vez da queda do preço do açúcar, Uma

representação de Pernambuco acentuava que “se vão despovoando e diminuindo as fábricas de muitos engenhos por não poderem sustentar as grandes despesas que neles fazem, com o que também o comércio daquela capitania e das mais se vai diminuindo”.?? Que não se tratava de exagero, indica a receita dos dízimos da capitania e suas vizinhas: de 73.500 cruzados em 1620-1621 caiu para 51.500 em 1623-1624. Entre 1622 e 1632, os fretes, por sua vez, haviam duplicado.?* Tais dificuldades não eram apenas locais. O período ante bellum coincidiu com os primeiros sinais da grande recessão européia do século XVII. Menção especial cabe ser feita à crise de 1619-1622, anunciadora da ruptura entre a prosperidade do “longo século XVI” (a expressão é de Braudel) e a depressão do XVII. Ela não se limitou à Península Ibérica, ao Atlântico e ao mundo mediterrâneo. O outro grande eixo do comércio europeu, o Báltico, também sentiu-lhe as repercussões, 31 não sendo de estranhar que ela tenha atuado sobre a atividade açucareira no Brasil. Sabe-se que parte do produto era adquirido por peruleiros que o enviavam ao Reino, pagando com reales de a ocho, e que às vésperas da ocupação holandesa, o Recife era fregiientado anualmente por dois ou três navios do rio da Prata, que deixavam na terra “grande número de mil cruzados”. Quando da capitulação do Arraial do Bom

Jesus, os moradores refugiados resgataram-se por 20.000 reales de a ocho; e isto

após mais de cinco anos de guerra e de interrupção dos contatos com o Peru através de Buenos Aires?

*8 Fernand Braudel, La Mediterranée et le monde mediterranéen à Vépoque de Philippe II, 22 ed., 2 vols., Paris, 1966, ii, p. 208. “2 “Livro segundo”, p. 118. 0 Mauro, Le Portugal et 'Arlantique, pp. 251-2; Leonor Freire Costa, O transporte no Atlántico e a Companhia Geral de Comércio do Brasil (1580-1663), 2 vols., Lisboa, 2002, 1, p. 77. 31 Ruggiero Romano, “Tra XVI e XVII secolo. Una crise economica: 1619-1622”, Rivista

Storica Italiana, 74 (1962), pp. 480 e 488. 3 Crestofle d'Artischau Arciszewski aos XIX, 4.xi.1635, CJH, BPB; Vitorino MagalhãesGodinho, Os descobrimentos e a economia mundial, 2 vols., Lisboa, 1963-1965, 1, pp. 424-5,

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OLINDA

RESTAURADA

De 1619 a 1622, nem se fala de epidemias ou estiagens, nem a W.I.C. havia encetado sua guerra de corso no Atlântico; e, contudo, as coisas já não iam bem. Com a criação da W.I.C., a situação agravou-se. Mesmo descontando a ênfase dos documentos, o quadro ainda era excepcionalmente sério.

Em 1626, os círculos comerciais de Lisboa calculavam que, nos últimos dois anos, se haviam perdido mais de 120 navios. No primeiro semestre de 1626,

apenas 20 embarcações haviam chegado do Brasil. Um memorial redigido em Pernambuco (1627) declarava que, ali e na Bahia, onde muitas vezes ancoravam entre 80 e 100 navios, o comércio estava reduzido “a dois e três e muitas vezes nenhum”. Em 1625-1626, 80 embarcações foram capturadas, das quais 60 carregadas de açúcar no regresso a Portugal, sem mencionar as que haviam sido postas a pique. Matias de Albuquerque informava que a média anual de naves da carreira do Brasil declinara de 300 para menos de 100. A maior parte desses apresamentos não se verificava no nosso litoral mas no de Portugal, sendo realizada pelo corso zelandês e pela pirataria barbaresca. O Conselho de Estado estimava que no quadriênio 1623-1626 a agressão batava

provocara danos superiores a 5.000.000 de cruzados; deles, 3.000.000 corresponderiam ao negócio do açúcar. O fim da trégua hispano-neerlandesa acarretou a retração de capitais de

judeus portugueses residentes na Holanda, capitais que eram aplicados ilegalmente no comércio e na navegação do açúcar por meio de testas-de-ferro domiciliados em Lisboa, no Porto ou Viana. Estima-se que durante os anos da trégua esses capitais teriam controlado de 1/2 a 2/3 da navegação entre Portugal e o Brasil e financiado a importação de 40.000 a 50.000 caixas anuais de açúcar para as Províncias Unidas, onde a indústria do refino passara de três ou quatro fábricas em 1594 para 29 em 1621.34 O reinício da guerra com a * Co.Eo., 23.vii.1626, e “Memorial do Estado do Brasil para Sua Majestade”, 1627, Virgínia Rau e Maria Fernanda Gomes da Silva, Os manuscritos da Casa de Cadaval respeitantes ao

Brasil, 2 vols., Coimbra, 1956-1958, i, pp. 21-3; Matias de Albuquerque a D. Antônio de Ataíde, 3.1v.1628, BNRJ, 1, 1, 2, 44, transcrito por Hélio Viana, Capítulos de história colonial, São Paulo, 1948, pp. 240-2; e Hurtuho de Orizar a Felipe IV, 30.1.1628, AGS, GA, 2145.

3 Engel Sluiter, “Os holandeses no Brasil antes de 1621”, Revista do Museu do Açucar, 1 (1968), p. 81. Tal afirmação, constante de um documento de 1622 a que se reporta Boxer, The Dutch in Brazil, p. 20, só poderia ser aceita com a reserva de que tais capitais pertenceriam a es-

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PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1630-1636

Espanha, com a volta do embargo ibérico ao comércio neerlandês, afetou, mais

duramente do que a qualquer outro grupo mercantil das Províncias Unidas, a comunidade sefardita da Holanda, cuja principal atividade era o tráfico com Portugal e Brasil. Embora ela tivesse reagido fretando navios hanseáticos e outros, que velejavam de Hamburgo e de portos neutros do norte da Alemanha, sua participação no comércio lusitano diminuiu consideravelmente,

quando mais não fosse devido a que a Hansa não possuía uma marinha mercante em escala suficiente para substituir a das Províncias Unidas.” As fontes deixam entrever os efeitos incorridos pela atividade produtiva

no Nordeste. Por carência de navios, cresciam no Brasil os estoques de açú-

car e outros produtos. Em meados de 1631, a armada de Oquendo encontraria em Salvador açúcares de mais de dois anos. Senhores de engenho e la-

vradores de cana foram colhidos num movimento de pinças: de um lado, o

preço do açúcar caíra em 1626 a menos de cruzado a arroba; de outro, subiam os preços da mão-de-obra africana e dos artigos do Reino. “Muitos engenhos

deixaram de produzir [...] ficando mesmo os campos por lavrar.” Segundo

Matias de Albuquerque, muitos produtores haviam deixado de operar “e os outros não fazem a terça parte do que costumavam”. Em 1628, a produção de açúcar brasileiro declinaria de uma média anual de 70.000 a 80.000 calxas para menos da metade de uma e outra cifra.?º Também os documentos holandeses permitem vislumbrar estes apertos. O relatório de Adriaen Verdonck (1630) menciona vários engenhos de fogo morto ou com capacidade

ociosa, especialmente em Alagoas; outro relatório, este de 1637, refere-se a

engenhos arruinados ou paralisados há muitos anos.”” Na capitania de Ita-

trangeiros radicados na Holanda e, em particular, a cristãos-novos, não significando, portanto, que cidadãos holandeses controlassem já então a exportação do açúcar brasileiro. Vd. a respeito Evaldo Cabral de Mello, “Questão de cronologia”, Um imenso Portugal. História e historiografia, São Paulo, 2002, pp. 102-9, e Leonor Freire Costa, O transporte no Atlântico, à, pp. 118-9. 32 Jonathan I. Israel, Dutch primacy in the world trade, 1585-1740, Oxford, 1989, p. 127.

36 Os manuscritos da Casa de Cadaval, à, pp. 21-3; Matias de Albuquerque a D, Antônio de Ataíde, 3.1v.1628, BNRJ, I, 1, 2, 44; Felipe IV aos governadores do Reino, 26.v.1629, AGS, SP, 1522.

> Fontes, i, pp. 35 ss. e 77 ss.

81

OLINDA RESTAURADA

maracá, antes da invasão holandesa, já não se levantavam novos engenhos, havendo-se mesmo desamparado alguns dos existentes, embora se atribuíssem esses males aos desmandos dos agentes donatariais.? Os dízimos do açúcar são outro índice precioso para a avaliação da instabilidade ante bellum. De 1609 a 1611, sua receita em Pernambuco caiu ligeiramente (de 44.000 cruzados para 43.000 cruzados); em Itamaracá, mais

perceptivelmente (de 8.000 cruzados para 6.000), crescendo, porém, na Pa-

raíba (de 8.000 para 10.000 cruzados).º? A tabela compilada por Frédéric Mauro também indica oscilações para a receita do dízimo do açúcar do Nordeste: queda marcada da safra de 1617-1618 para a de 1618-1619 (67.000

cruzados para 54.000), recuperação na safra de 1620-1621 (73.500 cruzados)

e nova queda mais substancial para a de 1623-1624 (51.500 cruzados.“º ) Contudo, quandose leva em conta o período 1609-1629, verifica-se incremento da ordem de 30%, ou 1,5% anuais, de 60.000 cruzados em 1609 para 80.000 cruzados em 1629. Seria, porém, precipitado concluir pelo crescimento real da produção açucareira, pois, mais provavelmente, o aumento da receita deveu-se a que, a partir de 1628, a cobrança dos dízimos passara a ser feita por capitania.

É revelador o que Brito Freyre escreveu dos senhores de engenho do Nordeste ante bellum: “a própria confiança de cabedais tão grossos ia já empobrecendo a muitos, por ostentarem grandezas vás em gastos demasiados”. Significativa também é a instabilidade na composição da açucarocracia (o neologismo é de Tobias Barreto no “Discurso em mangas de camisa”) no período 1594-1630. Quando se comparam as listas de proprietários nestes anos,

salta à vista a intensa transferência dos engenhos, fenômeno também obser-

vado na Bahia. Essa comparação está longe de ratificar a imagem tradicional de uma sociedade estável do ponto de vista da sua classe privilegiada, pretendidamente recrutada entre pequenos fidalgos de província e, por conseguinte,

28 Domingos Cabral Bacelar, “Sobre a capitania de Itamaracá se não fortificar pelo conde

de Monsanto”, 20.v.1634, BNL, FG, 7627.

?? “Relação das praças-fortes”, pp. 194, 196 e 199.

10 Mauro, Le Portugal et LAtlantique, pp. 2591-2, 41 Nova Lusitânia, pp. 168-9.

82

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1630-1636

motivada por valores rotineiramente agrários, como se acredita haver sido o grupo restrito de colonizadores estabelecidos ao tempo do primeiro donatário, Duarte Coelho, ou da sua viúva e filhos, grupo que se supunha haver monopolizado as oportunidades econômicas e sociais criadas pelo açúcar. Nada disto. Dessas listas, estão quase ausentes os nomes de família convencionalmente associados à colonização da capitania, como a indicar que os duartinos (expressão cunhada porJ. F. de Almeida Prado)*? não alcançaram,

ou, se alcançaram, não conseguiram deter o controle da propriedade açucareira. Em 1594, em 61 sobrenomes de senhores de engenho, acham-se apenas oito que sugiram esse primeiro who 1s who da história brasileira: um Pais Barreto, um Lins, dois Bezerras, dois Albuquerques. Os demais são todos sobrenomes obscuros. Aos descendentes de Jerônimo de Albuquerque, menos de cem anos após a chegada do pai fundador, Verdonck referia-se depreciativamente como “grandes fidalgos segundo se julgam mas na realidade gente pobre e indigente”.? Somente a partir da relação de 1623 ou dos textos holandeses, é que começam a soar os patronímicos dos que em breve serão designados por “nobreza da terra”, vários dos seus membros se havendo beneficiado, neste ínterim, do processo de transferência da propriedade açucareira provocado pela crise do segundo e terceiro decênios do século XVII.

ÀS ESCAPULAS DO COMÉRCIO LIVRE

Se a crise do açúcar precedeu a invasão holandesa, esta não acarretou de

imediato a cessação do comércio entre Portugal e a área sob controle luso-

brasileiro. A guerra lenta exigia a mobilização dos recursos locais, pressupondo o funcionamento, mesmo limitado e precário, do sistema produtivo. É certo que em Pernambuco, sobretudo entre os militares, pensava-se que sustar o trabalho dos engenhos era condição do êxito bélico, segundo o precedente

da Bahia, onde a chefia da resistência proíbira a fabricação de açúcar, mas no

42 7. F. de Almeida Prado, Pernambuco e as capitanias do norte do Brasil (1530-1630), 4 vols., São Paulo, 1939-1942.

3 Fontes, À, p. 37.

83

ÓLINDA RESTAURADA

fito de impedir contatos comerciais com os neerlandeses.“ Em 1630, ins-

pirado talvez pelo exemplo de Matias de Albuquerque que, à raiz do desem-

barque holandês, mandara incendiar os armazéns do Recife, o Conselho de

Estado propusera que se pusesse fogo aos canaviais, de modo a

liquidar no

nascedouro as expectativas neerlandesas de grandes lucros. Mas quando a poeira baixou e constatou-se a inexistência de alternativa à guerra lenta, o Conselho escolheu o mal menor, opinando ser indispensável a manutenção do fabrico do açúcar.º A paralisação dos engenhos era inviável, do momento em que a Coroa, não tendo a possibilidade de intervir imediata e decisivamente na contenda, adotava a guerra de usura, que pressupunha a manutenção das comunicações com o Reino, de modo a garantir o escoamento do açúcar e habilitar a gente da terra a arcar com os ônus bélicos. Entre a queda de Olinda (1630) e a capitulação do Arraial e do Cabo

(1635), as comunicações com o Reino sofreram as consequências da presen-

Em setembro, com o verão e o início da safra, reanimou-se a pequena

navegação de cabotagem e os holandeses redobraram de vigilância: uma es“4 “Papel que se fez na preparação da armada”, s.d., BA, 51-11-33; Bartolomeu Guerreiro, Jornada dos vassalos, p. 72.

45 Co.Eo., 29.iv.1630, BNRJ, I, 1, 22, 24, . 135. 46 Co.Eo., 19.11.1632, “Governo. Índia e Ultramar”, AMP, 2, 2 (1929), p. 221.

17 Jaerlyck verhael, ii, pp. 144-5.

an = uvas)

= mt

Ar ed

“8 Ibid., ii, pp. 148-9; Memórias diárias, p. 42.

dra CÉis

tativa de interceptar o galeão anual da carreira da Índia.” Contudo, o bloqueio da costa não podia ser 100% eficaz, e em meados de 1630 aportavam à Paraíba e Itamaracá sete caravelas do Reino, trazendo a primeira ajuda da Coroa em soldados, armas e munições.**

O si

Norte à Bahia, e até para enviar um esquadrão à ilha de Santa Helena, na ten-

qria dand fimo mt DT:

outra seguira para o Caribe sob o comando do almirante Ita, mas as forças que permaneceram eram suficientes para policiar o litoral, do Rio Grande do

ay

mada holandesa, com o almirante Loncq, regressara às Províncias Unidas, e

ARA

ça naval holandesa, sem que esta lograsse fechar completamente as escapulas do tráfico luso-brasileiro. No primeiro ano da invasão, viveu-se na expectativa de ação drástica da Coroa que restaurasse Olinda e o Recife. Parte da ar-

84

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO, 1630-1636

quadra de 14 navios cruzava do Recife para o sul, enquanto outros cinco fa-

ziam o mesmo do Recife para o norte, bloqueando portos, barras de rio, en-

Goiana, Sirinhaém, Rio Formoso, Porto de Pedras, Porto do Francês; e na

“9 “Rapport van Jan Jacobz. Cravendonck over de scheppen in Brazilie zijnde”, 24.11.1631; e Maarten Thyssen aos XIX, 11.11.1631, CJH, BPB. 50 Juerlyck verhael, ii, p. 158, iii, pp. 6 e 11; “Advies der officieren nopens het beleg van Cabo St. Augustijn”, 17.iii.1632; e Waerdenburch aos XIX, 12.iv.1632, CJH, BPB. |

51 Paulus Serooskercke aos XIX, 8.x1.1631, e Conselho Político aos XIX, 6.xi.1631, CJH, BPB; Memórias diárias, p. 66; Bagnuolo a Felipe IV, 25.x.1631, AGS, GA, 3156.

|

| | | || |

52 “Descripción de la província del Brasil”, 30.ix.1629, BNM, 3015.

||

23 “Relação das praças-fortes”, pp. 194-5,

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Fontes, à, pp. 51 ss. 76 Arciszewski a Nassau, 24.vii.1637, RIAP, 35 (1888), p. 7.

9

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1630-1636

o. e

devido à escassez de mão-de-obra, ao estado dos canaviais e a outras circuns-

tâncias, calculando-se que a redução pudesse ser em média de 30% da produção. Entre os 23 engenhos da capitania de Itamaracá, 12 (52%) estavam

de fogo morto, como também os dois existentes no Rio Grande. A Paraíba,

contudo, safara-se bem: em 20, apenas dois (10%) não moíam,”” como vimos, pelo motivo de que somente ali pudera ser aplicada a estratégia inicial da W.1.C. Dominadas as fortalezas existentes na foz do rio, em cuja bacia con-

|

|

centravam-se as fábricas da capitania, ela caíra como um fruto maduro. A destruição do sistema produtivo a nível das freguesias pernambucanas foi substancial em quatro delas: a Várzea (52% dos engenhos total ou parcialmente danificados), Muribeca (50%), Sirinhaém (61%) e Porto Calvo

(50%). A Várzea sofrera da proximidade do Recife, ao abrigar, de 1630 a 1635, o Arraial Velho, centro da resistência. Entre as freguesias interiores, a

oeste da Várzea, apenas Muribeca foi afetada na mesma escala, mas suas vizi-

nhas, Jaboatão (19%) e São Lourenço (25%), receberam danos bem inferiores. O mesmo aconteceu em Igaraçu (30%) e na capitania de Itamaracá. No

)

sul, em comparação com Ipojuca (25%) ou com o Cabo (28%), Sirinhaém

foi desproporcionalmente vitimado, de vez que o exército luso-brasileiro ofereceu ali a derradeira resistência ao norte do rio Una, e que, com sua retirada

para Alagoas, o distrito passou a ser alvo mais próximo dos campanhistas. Por

fim, com a chegada da tropa de Rojas y Borja, Porto Calvo tornou-se o principal teatro de operações até a conquista por Nassau em 1637. No decurso da resistência, as vicissitudes bélicas ampliaram naturalmente a margem entre o preço local do produto, em baixa, e seu preço internacional, em alta, beneficiando os negociantes do Reino, que, para indignação

do donatário, ganhavam também com os preços elevados dos artigos importados.* Entre 1629 e 1632, a arroba do açúcar branco em Pernambuco caiu de 800 para 240 réis; e o vinho, o sal, o azeite e outros gêneros do Reino tinham de ser adquiridos a dinheiro, pois o açúcar já não funcionava como moeda de troca.” Os preços das importações pernambucanas eram duas ve77 Fontes, i, pp. 141-63 e 165-76.

|

78 Memórias diárias, p. 109. AN

2 Iaerlyck verhael, iii, p. 132; Mauro, Le Portugal et PAtantique, p. 240.

91

OLINDA RESTAURADA

zes superiores aos vigentes em Salvador.º? Tamanha foi a atração deste verdadeiro negócio da China que se cogitou em Lisboa de proibir a partida de navios para a capitania, de modo a não prejudicar os aprestos da armada restauradora.! Malgrado a carestia, os artigos do Reino não faltavam: os holandeses constataram que o Arraial achava-se suprido por vivandeiros que, à sombra das muralhas, haviam edificado lojas e armazéns. A maior parte compunha-se de comerciantes que haviam abandonado Olinda em 1630 em número suficiente para formar companhia de cem milicianos.? Embora não se disponha de dados relativos à produção de açúcar durante a resistência, sabe-se que mesmo antes dos ataques aos engenhos, muitos haviam suspendido suas atividades, devido à falta de mão-de-obra escrava decorrente da cessação do tráfico.º? Nos navios, já não havia praças, que os irmãos Albuquerque eram acusados de açambarcar em proveito próprio e da Coroa; e os senhores de engenho e lavradores de cana viram-se na contingência de reduzir a produção ou de utilizar terras e escravos na lavoura de subsistência. No tocante ao segundo produto de exportação, ainda se fazia pau-brasil na ribeira do Capibaribe pouco antes da queda do Arraial (1635).84 Exigindo investimento modesto, o abate da ibirapitanga resistia melhor que o açúcar aos desastres da guerra, e por servir de lastro nos navios era menos afetado pelas dificuldades de transporte.º? Mercê dos contatos do exército neerlandês com a população da mata a partir de 1632, parcela crescente da produção de açúcar foi desviada para as naus da W.I.C., seja mediante o confisco de estoques em engenhos e trapiches,

80 Joaquim Veríssimo Serrão, “Dois documentos para a história da Bahia em 1634-1635”,

Brasília, 11 (1960), p. 89.

81 “Meios para destruir os holandeses”, s.d., BA, 51-VII-33. 82 laertyck verhael, iii, p. 82; Livro primeiro, p. 428.

83 Embora os holandeses ainda apresassem um navio com 300 africanos, em 1633 havia três anos que não entrava nos portos do Nordeste “embarcação alguma de Angola”: Juerlyck verhael,

iii, pp. 133 e 198; informação de Antônio de Araújo de Mogueimes, fl, 200,

19.11.1633, BNRJ, 1, 2, 35,

Sá História da guerra, p. 79. *> Documentos históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, xvi, p. 197.

92

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1630-1636

seja por meio do contrabando, embora não se deva excluir a ocorrência de tal prática em 1630 e 1631. O atentado contra a vida de Matias de Albuquerque foi atribuído a colonos descontentes com as medidas visando impedir o comércio com o inimigo.ºé Mas somente os ataques ao interior permitiram às autoridades do Recife encetar relações comerciais com a gente da terra. Em 1633, elas fecharam acordo com proprietários da Várzea, de Igaraçu e da capitania de Itamaracá pelo qual, contra o pagamento de taxa em açúcar, dariam proteção aos engenhos e autorizariam os negócios com mercadores batavos, ajuste que, descumprido por muitos, viria a ser sustado.*”

|

A PENETRAÇÃO DAS “NAÇÕES DO NORTE As guerras holandesas abriram espaços no monopólio colonial português em favor dos aliados da Espanha. Em Madri e Lisboa, compreendera-se, desde

finais do segundo decênio de Seiscentos, o perigo que, para a carreira do Brasil,

representavam o corso norte-africano, e, expirado em 1621 0 tratado de tré-

guas hispano-neerlandês, as ambições coloniais das Províncias Unidas. Em 1618, havendo o governador-geral D. Luís de Souza queixado-se a El Rei dos

|

“contínuos roubos” que sofria a navegação, Felipe III ordenou-lhe tratar com

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À

as Câmaras brasileiras e os homens de negócio, da criação de imposto destinado ao aprestamento de esquadra que assegurasse as rotas do Atlântico sul.ºº

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A Câmara de Olinda, entre outras, torpedeou a iniciativa, tanto mais que por

então a pirataria limitava-se ao norte da linha equatorial. Em 1620 e 1623,

cessões com vistas ao estabelecimento de escolta naval, ao passo que a Coroa procurava fazer adotar a navegação em comboio.” Ela também negociou com Tristão de Mendonça Furtado a formação de esquadra de proteção, a ser financiada por imposto específico, proibindo-se ademais que embarcações de

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os Brito Freire, que tinham interesses açucareiros na Bahia, pleitearam con-

86 Memórias diárias, p. 28; Nova Lusitânia, p. 189. 87 Carpentiere Ceulen aos XIX, 18.1v.1634, CJH, BPB.

88 “Livro segundo”, pp. 66, 74 e 80.

89 Leonor Freire Costa, O transporte no Atlântico, 1, pp. 214-7,

E

|

E!

93

N

OLINDA RESTAURADA

menos de 300 toneladas navegassem para o Brasil.º Não prosperando qualquer destas iniciativas, tratou-se apenas, entre 1630 e 1636, de recorrer a navios estrangeiros, de grande porte e bem artilhados, seja mediante licença para comerciarem no Brasil, seja através de seu afretamento por comerciantes portugueses e estrangeiros domiciliados em Portugal. O emprego de navios de fora da Península Ibérica, como as urcas da Liga Hanseática ou as fragatas de Dunquerque, o grande centro naval dos Países Baixos espanhóis, já fora ventilado na primeira reunião do Conselho de Estado que debateu a situação de Pernambuco.?! O assunto voltou à baila em 1632, ao constatar-se que o envio de socorros militares não se fazia com a re-

gularidade desejada, devido à falta de caravelas e de outros tipos de embarca-

ções causada pelas perdas da carreira do Brasil. Julgava o Conselho que, enquanto não se aprestasse a armada restauradora, urgia utilizar outros meios, inclusive o afretamento de naus estrangeiras pelos homens de negócio de Via-

na, desde sempre interessados no açúcar pernambucano, ou por particulares,

como Iristão de Mendonça Furtado, que se haviam oferecido para organizar escolta. Propunha o Conselho que os comerciantes estrangeiros domiciliados no Reino ficassem autorizados a enviarem seus navios, mesmo quando

fabricados no exterior e tripulados por nacionais de potências aliadas como a Inglaterra e o Império germânico. Outrora, a proibição da navegação estrangeira visara impedir o conhecimento das conquistas ultramarinas, mas tal objetivo perdera sentido do momento em que súditos de outras Coroas haviam ganho acesso a elas.

20 “Livro segundo”, pp. 122-4; proposta de Tristão de Mendonça Furtado e Co.Fo., 7.v. 1627, BNRJ, 1, 2, 35, fls. 48-63. 91 Co.Fo., 29.1v.1630, BNRJ,

1, 2, 35, fl. 134y, O afretamento de embarcações permitia

um importante ganho de tempo e economias substanciais. Basta assinalar que, em dezembro de 1636, a Junta da armada do Brasil calculava que, para enviar uma força de 20.000 toneladas ao

Nordeste, exigindo nada menos de 14.000 toneladas de navios estrangeiros, a aquisição de barcos orçaria entre 840.000 e 870.000 cruzados, ao passo que os gastos de afretamento montariam a apenas 151.000 cruzados anuais: Junta da armada do Brasil, 25.xii. 1632, BA, 51-X-4.

22 Co.Eo., 20.v.1632, parecer do conde de Castro, s.d., e Co.Eo., 11.xii.1632, “Governo. Índia e Ultramar”, pp. 201-3 e 213-4,

94

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1630-1636

A Inglaterra de Carlos I tirou partido da sua neutralidade e posição estratégica entre a Espanha e o norte da Europa para atrair ao porão dos seus navios um volume crescente do comércio entre ambas as regiões ou para transportar tropas espanholas para Flandres, concorrendo com os próprios dunquerqueses, súditos de Sua Majestade Católica, processo que se acelerou com a entrada da França na Guerra dos Trinta Anos.?? Em 1632, El Rei aceitou proposta de Tristão de Mendonça Furtado para enviar 12 naus inglesas, de 350 até 400 toneladas, com tropas, armas e munições, sem ônus para a Fazenda Real, a quem ademais adiantaria 100.000 cruzados em gêncros.?* A este contrato, vinculou-se a presença de navios ingleses na resistência, como as seis embarcações incendiadas pelos holandeses em 1633 em Peripueira.?? No mes-

mo ano, outra foi posta a pique em Rio Formoso antes de cair em poder dos

|

batavos, que em 1634 afundaram na Paraíba mais uma nau de fabricação inglesa.?º Batizadas com nomes católicos, pertenciam muitas vezes a sectários de Calvino ou de Lutero, sendo que em Londres as tratativas eram conduzidas pela Embaixada espanhola, que emitia licenças a peso de ouro, prática que Antônio de Souza de Macedo faria sustar quando da sua residência como agente diplomático de D. João IV em Londres.” O Conselho de Portugal, que objetara ao contrato de Tristão de Mendonça Furtado, é que não via os ingleses com bons olhos. Em setembro de 1633, ele reconsiderou o assunto, em conexão com as propostas de dois comerciantes. Um deles, há muito residente em Lisboa, oferecia-se para enviar 23 Harland Taylor, “Trade, neutrality and the English road, 1630-1648”,

The Economic

History Review, 25 (1972), pp. 246 e 252-9.

94 Felipe IV a D. Fadrique de Toledo, 20.vii. 1632, AGS, SP, 1527. 95 Jaerlyck verhael, it, p. 139.

96 Tbid., iii, p. 150; iv, p. 35. Também na Bahia surgem embarcações inglesas fretadas por particulares portugueses: Documentos históricos da BNRY, xvi, pp. 262 e 448, 97 Lembrete para André de Rosas, 30.iii. 1634, AGS, GA, 1532; Afonso Pena Júnior, A “Arte de furtar” e o seu autor, 2 vols.; Rio, 1946, 1, p. 126. Para a armada do conde da Torre, o conde de

Linhares, a quem fora inicialmente confiado o comando da expedição, contatou o representante

de Sua Majestade Britânica em Madri: lembrete para Francisco Gomes de la Sprilla, 14.v1.1637,

AGS, GA, 1532; Calendar of the Clarendon state papers preserved in the Bodleian Library, i, Londres; 1972, p: 129.

95

OLINDA RESTAURADA

oito naus de 350 a 400 toneladas, artilhadas com 25 a 30 peças cada uma e transportando 500 soldados, em troca do direito de comerciar livremente, cobrando o frete de praxe. O outro solicitou licença para despachar navios

ingleses e alemães a carregar açúcar, com escala em Portugal.?8 O Conselho

rejeitou ambos os requerimentos, não por se tratar de estrangeiros mas de ingleses, gente que não merecia confiança pois em vista das afinidades religiosas se poderiam coligar com os holandeses. Seria mais seguro valer-se Portugal de navios de súditos de Felipe IV, viscaínos, valencianos e dunquerqueses, ou de embarcações hanseáticas e florentinas.?? O recurso aos dunquerqueses parecia a solução óbvia quando encarada

na perspectiva da Espanha, que já os empregava há tempos para reabrir as co-

municações marítimas entre o litoral cantábrico e a costa flamenga, outrora

prejudicadas pela hostilidade da Inglaterra elizabetana. Recentemente, o percurso havia-se tornado vital para o governo de Madri, em decorrência do avanço sueco e francês sobre o Reno, isto é, sobre a etapa final do “caminho de Flandres”, como era chamada a rota que ligava o exército espanhol nos Países Baixos à Espanha através do litoral catalão, do Mediterrâneo, da Lombardia, dos passes alpinos e do Franche-Comté. Graças aos navios dunquerqueses e à armada de Flandres, as tropas espanholas foram reforçadas por via marítima no período 1631-1639." A favor da utilização dos dunquerqueses falava também sua longa experiência de guerra marítima com os vizinhos neerlandeses, a qual celebrizara suas fragatas. No Brasil, comparavam-se desfavoravelmente os galeões portugueses, “pesados e zorreiros”, com os navios de Dunquerque, que demandavam pouca água e manobravam com grande agilidade.!º! Em Lisboa, o assunto era encarado sob outro ângulo. Em dezembro de 1632, a junta encarregada do apresto da armada restauradora opinava que os navios a serem fretados deveriam ser espanhóis, mas como não os houvesse

38 Requerimentos de Gualter Haat e Antônio Grafian, 1633, AGS, SP, 1583.

99 Co.Po., 30.ix.1633, AGS, SP, 1583.

0º Geoffrey Parker, The army of Flanders and the Spanish road, 1567-1659, Cambridge,

1972; R. A. Stradling, The armada of Flanders, passim. p. 331,

101 Francisco Pais a Paulo da Costa, 1.ii.1640, transcrito por Varnhagen, História das lutas,

96

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1630-1636

em número suficiente e como geralmente não viessem artilhados, a solução

consistiria em fretar embarcações em Hamburgo, Lubeck e outras cidades alemãs, ou na Inglaterra.!º Nenhuma palavra sobre naus flamengas ou dun-

querquesas. À razão desta reserva achava-se provavelmente em que há muito os armadores e comerciantes dos Países Baixos espanhóis eram suspeitos de atuarem como testas-de-ferro dos neerlandeses na Península Ibérica,!º3 Sem papas na língua, Luís Álvares Barriga reputava a presença de dunquerqueses em águas brasileiras contrária a toda razão de Estado. Não se tratava apenas de derrogar o monopólio colonial mas de fazê-lo em benefício de súditos de cuja fidelidade a monarquia espanhola podia razoavelmente duvidar. Ao argumento de que os dunquerqueses eram tão vassalos do Rei Católico e inimigos dos holandeses quanto quem mais o fosse, rebatia o arbitrista que uns e outros pertenciam à mesma nacionalidade, aduzindo que o porte dos navios flamengos, de cerca de 400 toneladas, não os habilitava a enfrentar a marinha holandesa de alto-mar, que dispunha de barcos de 800 e de 1.000 toneladas. Cético acerca da eficácia dunguerquesa, Álvares Barriga assinalava que os êxitos obtidos haviam-no sido contra pequenas forças navais e que as armadas que tinham conquistado a Bahia, capturado a frota da prata e atacado Pernambuco haviam velejado impunemente ao largo da costa de Flandres. !04 Reservas que ficaram ignoradas em Madri. Já em 1630 Felipe IV auto-

rizara, por sugestão, aliás, dos governadores do Reino, a incorporação de dun-

querqueses à armada de Oquendo, ocasião em que embarcações neerlandesas, fazendo-se passar por flamengas, haviam lutado contra seus compatriotas sob as ordens do almirante Pater.!?? Nas armadas de Lope de Hoces e do conde da Torre, há notícia de urcas flamengas e alemãs.!ºº Dunquerqueses

102 Junta da armada do Brasil, 25.xii.1632, BA, 51-X-4.

(02 Eddy Stols, De Spaanse Brabanders, i, p. 109.

104 «A dyerténcias hechas por Luís Álvares Barriga”, pp. 253-5. 105 Felipe IV aos governadores do Reino, 1.iv.1630; e “Instrução a Rui Correia Lopes para

a compra dos navios”, 6.v1.1630, AGS, SP, 1521; Joris Calf aos XIX, 2.viii.1631, CJH, BPB.

106 Papel relativo à armada de D. Lope de Hoces, 29.x.1635, AGS, SP, 1478; duquesa de

Máântua a Felipe IV, 8.vii.1635, AGS, GA,

1139; Max Justo Guedes, “As guerras holandesas no

mar”, pp. 226 ss.

97

OLINDA

RESTAURADA

foram também licenciados para viagens individuais, sob a condição de completarem suas tripulações com súditos portugueses. Em 1633, o Conselho de Portugal examinava a proposta de certo comerciante flamengo de Lisboa, que oferecia navios de Dunquerque de 300 a 400 toneladas, bem apetrechados e artilhados.!” O socorro comandado por Francisco de Vasconcelos naquele ano incluía duas destas naus, provavelmente as que foram avistadas na Paraíba pelos holandeses. De Laet refere também a construção de navios por dunquerqueses que, havendo escapado de um naufrágio na baía Formosa, refugiaram-se na barra do Cunhaú, onde foram surpreendidos pelo inimigo.'º8 Enfim, quando já era demasiado tarde, à raiz do fiasco da armada do conde da Torre, Felipe IV tomou a decisão drástica de oficializar o comércio dos seus

súditos belgas com as conquistas portuguesas.!º? Acerca da atuação de barcos franceses, apenas se conhecem os episódios do navio incendiado pelos holandeses em Peripueira (1633) e da viagem de

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certo Jacques Raynard e de outros comerciantes de Marselha em 1634. Após escala na Madeira, Raynard singrou para o Cabo, “com esperança [escrevia à mulher] de ganhar mais ali do que em qualquer outra parte”. Aportando em Alagoas, soube que, com a rendição do Cabo, já não havia oportunidades comerciais nos portos do sul de Pernambuco, de modo que seguiu para Salvador, onde só entraria após escaramuça com a força neerlandesa de bloqueio. Ali, os preços haviam desmoronado, por se acharem nada menos de 80 navios com grande quantidade de todo tipo de mercadoria.'!º Há motivos para suspeitar de que, devido à carência de embarcações no Reino, a participação estrangeira na navegação e comércio da resistência tenha ido além do que indicam os elementos registrados aqui. À gente, como a luso-brasileira de Seiscentos, que em face do abandono recente da navegação por urcas, reacostumara-se à leveza feminina das caravelas, as naus do norte da Europa, enormes e sólidas, deviam parecer uma

espécie de monstro marinho, como o que descreviam pela mesma época os 107 Co.Po., 30.ix.1633, AGS, SP, 1583.

108 Taerlyck verhael, iii, pp. 181 e 206, iv, pp. 54 e 57-8; História da guerra, p. 65.

98

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verhael, vi, p p. 139, iv, P p. 45; Veríssimo Serrão, “Dois documentos”, PP p . 87-8. DO Jaerlyck y

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109 Arte de furtar (ed. Roger Bismut), Lisboa, 1991, p. 155.

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1630-1636

Diálogos das grandezas do Brasil, barcos incômodos para as tarefas prosaicas de carregar açúcar ou pau-brasil e descarregar vinho, farinha de trigo € azeite. É o que indica o exemplo do “Hércules”, navio de Lubeck, de 700 toneladas, propriedade de Albert d'Amberg, de Linge, nos Países Baixos espanhóis. Autorizou-o Felipe IV a viajar ao Brasil."!! À saída da Bahia, foi apresado com a carga, monumental para a época, de 1.850 caixas de açúcar. Em Salvador, ele ancorara quase dois anos à espreita de oportunidade para atravessar o bloqueio; e como este fosse implacável, o capitão, desobedecendo o governadorgeral e enfrentando o fogo das fortalezas da cidade, deixou a trangiilidade do Recôncavo para cair nas mãos do inimigo.!!2 Levado para o Recife, não foi possível descarregá-lo com segurança, tendo de ser levado à ilha de Santo Aleixo; e não podendo ser reparado no Brasil, foi abandonado na Paraíba. 113

4

Felipe IV a D. Antônio de Ataíde, 12.1.1633, AGS, SP, 1529; Document os históricos da BNR/, xvi, pp. 140-1. 112 laerlyck verhael, iv, p. 172; Jacob Stachouwer aos XIX, 23.viii.1635. e J. €C. Lichthart aos XIX, 24.vi1i.1635, CJH, BPB; H. Warjen, O domínio colonial holandês no Brasil, São Paulo, 1938,

BPB.

PP.

534-8.

“3 Conselho Político aos XIX, 20.xii. 1635; Servaes Carpentier aos XIX, 11.71.1636, CJH,

99

|

|

Produção, comércio e navegação, 1645-1654

| |

As guerras holandesas inauguraram um período de modificações estru-

o

turais no comércio português com o Brasil. Há que definir, aliás, a expres-

são liberdade de comércio” antes de empregá-la no contexto do nosso primeiro século XVII, que é o prolongamento da segunda metade de Quinhentos. Por se tratar de uma liberdade formalmente restrita ao comércio português, exercendo-se, por conseguinte, no marco do monopólio nacional, a despeito do grau de penetração estrangeira, tolerada mas não legitimada, ela não se enquadrava na concepção que, sob a mesma etiqueta, teria um economista liberal do século XIX. Ademais, essa liberdade convivia com um importante setor monopolista, os “estancos” do fumo, do pau-brasil e do sal,

arrendados a grupos privados. Por fim, e não menos importante, ela sofria a ação de outros elementos monopolizantes, derivados das próprias condições de navegação.

É esclarecedor a respeito o parecer do Dr. Antônio de Souza de Macedo, membro do Conselho de Fazenda e ex-representante de Portugal em Londres, parecer redigido com vistas às negociações do tratado anglo-português de 1654. Assinalava Souza de Macedo entre as razões que desaconselhavam à Inglaterra mandar seus navios ao Brasil, como pretendia Cromwell, o fato de

o mercado brasileiro (i.e., os mais importantes centros de povoamento em torno do Recife, Salvador e Rio de Janeiro) ser incapaz de absorver rapidamente as mercadorias trazidas por navios estrangeiros, por terem maior capacidade de carga e custos operacionais mais elevados. O volume de artigos que o comerciante inglês teria de transportar apenas para cobrir seus custos (construção ou afretamento do barco + soldo da tripulação + valor das mer-

cadorias) bastaria para saturar o mercado; e a decorrente queda dos preços

101

OLINDA RESTAURADA

deixaria prejuízos em vez de lucros, como já sucedera a certos navios franceses que haviam negociado com licença régia. Daí a preferência da carreira do Brasil pelas caravelas, que, malgrado sua tonelagem modesta, aínda tinham de deixar os gêneros na terra para serem posteriormente vendidos.! As caravelas permitiam manter na colônia a relativa escassez de artigos do Reino indispensável à manutenção de um nível de preços satisfatório do ponto de vista do comércio português. Explica-se assim sua pertinaz resistência às medidas da Coroa visando a substituí-las por navios de maior tonelagem e mais bem artilhados, capazes de se oporem às depredações do corso, fosse este dos inimigos europeus ou dos piratas barbarescos. Mas o que a legislação não conseguiu realizar, fê-lo o corso zelandês em 1647 e 1648, quando dizimando a carreira do Brasil, obrigou o recurso às naus, inclusive estrangeiras. Destarte, o comércio livre foi sacrificado ao monopólio, primeiro do “assento de Pernambuco”, e depois da Companhia Geral de Comércio do Brasil, pois sem a garantia de preços monopolistas a utilização de embarcações de grande porte não era rentável. Caravelas e comércio livre; naus e monopólio: a conexão parece nítida entre a estrutura da navegação e o regime comercial.? Comércio livre e monopólio não exprimiam ainda a antinomia irremediável que o livre-cambismo virá emprestar a ambos os conceitos. No âmbito das relações econômicas entre Portugal e o Brasil na primeira metade do século XVII, comércio livre e monopólio representavam formas distintas de um mesmo sistema comercial visceralmente monopolista. À transição por que passou o comércio brasileiro ao tempo das guerras holandesas, da liberdade ao exclusivo da Companhia de Comércio, ou antes, a passagem de um regime comercial permitindo a participação ampla do comércio reinol para outro que só beneficiava o grande co-

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* À conexão que se propõe aqui entre comércio livre e caravelas, de um lado, e monopólio e naus, de outro, é obviamente ideal-típica, em vista, inclusive, da dificuldade de classificação rigorosa das embarcações da época. Como acentuou Leonor Freire Costa, o comércio livre não excluiu a utilização de outros navios de construção diversa embora de porte semelhante, como os patachos, por exemplo, e até de naus; nem o monopólio eliminou o uso subsidiário das caravelas nos comboios: O transporte no Arlântico, à, pp. 181, 202.

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' “Razões por que parece que não convém à Inglaterra navegarem os seus navios para o Brasil”, 11.11.1654, BA, 51-VI-34.

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1645-1654

mércio lisboeta, realizou-se dentro do mesmo quadro monopolista e consti-

tuiu a mutação da mesma estrutura.

Em ensaio há muito publicado, Jaime Cortesão contrastou o declínio do comércio português no Oriente (submetido ao monopólio da Coroa exercido diretamente por seus agentes ou por alguns grandes contratadores), com o crescimento do comércio brasileiro sobre a base do açúcar e dos pequenos

portos de província na segunda metade do século XVI e começos do XVII. Segundo esta teoria, que hoje seria reputada neo-liberal, ao passo que o negócio das especiarias fora a chasse gardée do capitalismo monárquico, a expan-

são do comércio brasileiro fora o dom da livre iniciativa, a qual, excluída pelo Estado do setor mais rentável do tráfico ultramarino, inventara o Brasil. Con-

frontada durante as guerras holandesas pela perspectiva de perdê-lo, a nação reagira em 1640, entregando o trono ao duque de Bragança, aclamado como

D. João IV. A teoria exerce a atração das grandes sínteses e como estas não escapou à revisão.“

A literatura mais recente relativa ao Estado da Índia (i.e., as possessões lusitanas ao longo do arco que vai da costa oriental da África a Macau) indica que a antítese entre o comércio do Oriente e o do Brasil não deve ser levada muito longe. Os negócios portugueses no outro lado do mundo foram bem mais abertos à iniciativa particular do que se pensara. Desde o reinado de D.

> Jaime Cortesão, À geografia e a economia da Restauração, Lisboa, 1940, pp. 55-7 e 76-81. Cortesão mencionava o apoio do Porto, Viana e portos algarvios às “alterações de Évora” (1637)

bem como os acontecimentos verificados nas duas primeiras cidades e também em Setúbal em 1640. * O assunto foi reexaminado por Vitorino Magalhães-Godinho, que concluiu que os círculos comerciais mais poderosos, principalmente os ligados ao Brasil e ao norte da Europa, apoiaram a Restauração, enquanto o setor vinculado a Sevilha, embora preferisse a união dinástica, não

parece ter hostilizado a nova ordem de coisas: “1580 e Restauração”, Ensatos, 3 vols., Lisboa, 19681971, ii, pp. 283-4, Recentemente, Leonor Freire Costa procedeu a uma abrangente revisão críti-

ca, a qual, matizando a intuição de Cortesão sobre o papel do comércio e da navegação do Brasil na recuperação da independência portuguesa, assentou-a em bases sólidas: do ponto de vista do

tráfico (não da armação), a pluralidade de portos suposta por Cortesão reduz-se a três (Lisboa, Porto e Viana), que, ademais, não atuaram de maneira concorrencial mas complementar: O transporte no Atlântico, cit.; e também da mesma autora, Império e grupos mercantis. Entre o Oriente e o Atlântico (século XVTI), Lisboa, 2002.

103

OLINDA

RESTAURADA

Sebastião e, sobretudo, desde o de Felipe II, a carreira da Índia passara progressivamente da administração da Coroa à dos contratadores da distribuição das especiarias na Europa, dos armadores das frotas e até dos arrematadores da cobrança dos impostos que incidiam no Reino sobre os produtos asiáticos, ou seja, daqueles capitais que originalmente haviam tido função subsidiária à do Estado no tráfico. Por outro lado, o comércio inter-regional no Oriente, entre colônias portuguesas ou entre estas e os potentados locais, permaneceu sob controle privado, transformando-se no verdadeiro esteio da pre-

cálculos de poder das potências européias que eram seus aliados contra Castela, como a França, as Províncias Unidas e a Inglaterra. É inegável também que, embora de maneira menos nítida que a proposta pelo historiador, tem razão de ser a oposição entre um Estado da Índia empobrecido e um Brasil pujante, mesmo se ela não se originou apenas nos vícios do monopólio e nas virtudes do comércio livre. Ironicamente, a Restauração, viabilizada pelo Atlânti-

co português, assestaria duros golpes no comércio e na navegação livre em

benefício de um punhado de grandes negociantes de Lisboa, muitos deles

cristãos-novos e alguns ligados, desde o tempo de Olivares, ao financiamento da monarquia espanhola. Seria injusto, porém, atribuir a D. João IV a in-

burgs, 1580-1640, Baltimore, 1992.

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? Sanjay Subrahmanyam, The Portuguese empire in Asia, 1500-1700. A political and economic history, Londres, 1993, pp. 137-43; e James C. Boyajian, Portuguese trade in Asia under the Habs-

104

e age tg nd À e

nio espanhol, nem contaria com o trunfo comercial e político para entrar nos

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substituídas pelas concessões régias a determinados indivíduos em determinados percursos e durante certos prazos, e, posteriormente, pela iniciativa particular pura e simples. Por fim, os grupos que na metrópole comerciavam no Oriente e no Brasil nem sempre se ignoraram, sabendo-se que, no caso específico dos cristãos-novos, as mesmas redes operavam em ambas as esferas, ligando-se através da América espanhola e da navegação através do Pacífico entre o México ou o Peru, as Filipinas e Macau.” É inegável, porém, que Cortesão viu justo ao associar Restauração portuguesa e expansão do açúcar brasileiro. Reduzida ao Estado da Índia, a Coroa não disporia dos recursos para mover a guerra de 28 anos contra o domí-

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sença lusitana entre o Índico e o mar da China, onde as naus d'El Rei foram

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1645-1654

tenção de arruinar os pequenos círculos comerciais de província, cuja diligência criara, ao longo de tantos decênios obscuros, a economia açucareira do

Brasil. A Coroa não teve escolha em face da precariedade da sua posição frente à Espanha na Europa e às Províncias Unidas no Atlântico e no Oriente, bem como do colapso da carreira do Brasil em 1647-1648, que aprofundou o desequilíbrio entre Lisboa e os portos de província.

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O problema das comunicações com Portugalcolocou-se também ao coe

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mando luso-brasileiro da restauração. O: restabelecimento da navegação e do E

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comércio com o Reino dependia da reativação dos engenhos em meio às incer-

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tezas que cercaram em 1645-1646 o futuro da i insurreição, devido às ordens € contra-ordens relativas ao abandono dos engenhos « e a retitadada popula ó haso- “brasileira-para a Bahia, « com o desmonte das fábricas e incêndio dos nã

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canaviais.” Para cúmulo da situação, previra-se uma safra excepcional, falan-

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do-se em mais de 20.000 caixas de açúcar. Na realidade, mesmo assim, ain-

6 Vitorino Magalhães-Godinho entreviu na oposição entre Lisboa e o Porto, de um lado, e os portos de província, de outro, “um dos ritmos mais poderosos, mesmo dos mais profundos, da vida coletiva portuguesa ao longo dos séculos”. Para ele, “Lisboa representa sobretudo os monopólios, as grandes companhias privilegiadas — o grande capitalismo; no outro pólo, os pequenos portos representam interesses de família ou de sociedades de menor envergadura, uma classe média laboriosa e larga. Desde o século XVI, senão mesmo desde o XV, esses conflitos de interesses,

de forças sociais e de focos geográficos estabelecem equilíbrios sucessivos, onde predominam ora uns, ora outros: Prix et monnaies au Portugal, 1750-1850, Paris, 1955, pp. 293-4. Por sua vez,

Frédéric Mauro chegaria à conclusão de que “os grandes negócios estão entre as mãos de um grupo restrito”, e identificando também monopólio e Lisboa, liberdade de comércio e portos de província, sugeriu que a economia portuguesa teria sido dominada até 1580 por Lisboa, de 1580 a 1620 pelos portos de província, e desde então até 1670, novamente por Lisboa: “La bourgeoisie portugaise au XVIlême siêcle”, Etudes économiques sur Vexpansion portugaise, Paris, 1970, pp. 21 e 31. Mas vd. os reparos de Leonor Freire Costa, O transporte no Atlântico, à, p. 106. ? Para os difíceis começos da insurreição de 1645, Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, 1, pp. 7-33.

105

sm

ÓLINDA RESTAURADA

da se estaria muito aquém dos níveis anteriores a 1630, os quais, como se re-

corda, correspondiam a 33.000 caixas. Deflagrada a revolta, era melancólico o estado da mata açucareira: os O ma

canaviais haviam sido deixados no mato, e as socas e ressocas, sem limpa.8,ºAÀ

estee quadro, somou-se ET

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do Nordeste,

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o incêndio dos canaviais como preliminar éà evacuação

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para que o inimigo não tivesse esperanças de levar proveito algum [...] antes soubesse que gastava sua fazenda debalde, sustentando soldados e mandando naus e dispendendo muito cabedal, sem esperanças de ganância; e as-

sim, vendo o pouco que interessavam e o muito que gastavam, despejassem

a terra, ou por força ou por grado. E também se executou esta facção para que os moradores da terra ficassem mais desembaraçados para acudir à guerra e aos ministros dela e não tivessem escusa que dar quando os chamassem para ela assim eles como seus escravos.”

Os partidos de cana da Várzea arderam quatro dias consecutivos.!? Mas

tão forte foi a reação à medida que logo sustou-se a execução, à espera de con-

tra-ordem que em breve chegaria e graças à qual salvou-se a maior parte da

safra, especialmente nas freguesias meridionais de Pernambuco, na capitania

de Itamaracá e na Paraíba.| Fernandes Vieira'foi dos que se opuseram à queima, pois 'moendo os engenhos, se conseguiam muitos bens, porque assim os | lavradores e senhores de engenho fazendo açúcar, teriam cabedal para se pro Di

verem das coisas necessárias e possibilidade para aj judar e sustentar a guerra a E

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º “Diário ou breve discurso”, p. 126; Van de Voorde aos Estados Gerais, 16.xi.1645, IHGB, DH, 3; Bericht van wegen President en de Raden verordonneert tot de Hoog Regering alhier aen

de Ed. Vergadering der XIX over de zacken van Brazilie”, 27 .viii.1647, CJH, BPB.

? Lucideno, ii, pp. 233-4. 10 “Diário ou breve discurso”, p. 150.

! Lucideno, ii, pp. 234-5. Mas quando o Conselho Ultramarino examinar as queixas que

se faziam de Pernambuco contra Fernandes Vieira, Salvador Correia de Sá as atribuirá ao res-

sentimento causado pelo incêndio, como se fosse considerado responsável por ele: Co.Uo., 17.ii. 1647, AHU, PA, Pco., iii. Pela mesma época, um papel que compendiava várias propostas do madeirense sobre a estratégia, registrava que “tanto que se levantou a guerra”, ele sugerira que “lo-

106

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1645-1654

Vários dos engenhos da Várzea permaneceram de fogo morto até o fim da guerra. Ainda em 1652, “até a parte de Pernambuco onde se situara o nosso Arraial não tinha qualquer habitante”, enquanto, a oeste, os engenhos de São

— 0 —

bairro da Iputinga, onde se localizava o Arraial Novo. Provavelmente o redator do papel exagerava a extensão dos estragos, de vez que pleiteava facilidades para a importação de escravos e de equipamento fabril. Uma lista dos engenhos de Pernambuco, elaborada com propósitos fiscais menos de dois anos depois do fim da guerra, enumerava apenas seis engenhos a monte na Várzea, no total de 16 que ali existiam,!* embora as fábricas que então safrejavam pudessem ter ficado realmente sem fazê-lo ao tempo da guerra, sem que,

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Lourenço mofam com receio.!2 Caso se interprete a afirmação ao pé da letra, estariam inativos todos os engenhos ao norte do rio Capibaribe ou do atual

sabe-se que, embora Calado afirmasse que ele “foi o primeiro que mandou

queimar a maior parte dos seus canaviais, no que perdeu mais de duzentos mil cruzados, e Diogo Lopes de Santiago assegure que a construção do Arraial Novo pusera a perder três de seus engenhos e “muitos canaviais” ,!4 à ver-

dade é que eles moeram regularmente durante a guerra. À denúncia anônima (1646) de certo “capelão” ou de quem queria passar por tal, referia que “nos seus engenhos, (Vieira) sempre mói mas com o sangue dos pobres, que

“por ser governador manda vir todos os carros e o servem sem lhes pagar e asMi

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sim as caixas, assim suas como algumas que se dão ao dízimo, todas vão nos carros a[o porto de] Nazaré » 15

À indefinição política e militar do movimento restaurador prolongouse atéfinais de 1646, , enquanto pendeu sobre seu futuro a ordem régia de Nm

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go se queimassem todas as canas e engenhos”: Co.Uo., 8.vii,1647, AHU, PA, Pco. iii. É provável que o autor do Valeroso Lucideno tenha querido isentar Fernandes Vieira de responsabilidade por ato extremamente impopular, no momento em que sua posição pessoal era das mais dificeis junto à Coroa.

2 Os manuscritos da Casa de Cadaval, à, p. 115.

3 Fontes, i, pp. 237-8.

!á Lucideno, ii, p. 234; História da guerra, p. 329. 15 “Papéis inéditos sobre João Fernandes Vieira”, RIHGB, 75, 2 (1912), p. 46

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Foram os lucros substanciais proporcionados pelo isolamento dos insurretos ao mercador com o gosto do risco que permitiram a retomada do comércio. O padre Antônio Vieira aludia ao “muito que se ganha nos portos de Pernambuco”, atribuindo-lhe a oposição que os homens de negócio faziam à restituição do Nordeste à W.L.€., que Souza Coutinho negociava em Haia. Atitude incompreensível para o jesuíta: cegos pelo interesse, “ainda que tão arriscado”, do que se lucrava ali, eles não viam .36 O embai“o que por todas as outras partes, e ainda ali mesmo, se perde” xador deblaterava também contra um comércio que redundava em vantagem do inimigo, e que, “movido pela cobiça dos nossos mercadores e conservação das caravelas”, servia apenas para prolongar militarmente uma situação internacionalmente insustentável.?? Devido à crise financeira em que se debatia, a linha de menor resistên-

34 Papel sobre a fortificação de Tamandaré, Co.Uo., 25.vi.1650, AHU, PA, Pco., dit.

35 “Relação dos navios que se perderam indo e vindo do Estado do Brasil”, Co.Uo., 2.v.1651, AHU, PA, Ba., v; Boxer, The Dutch in Brazil, pp. 280-90.

36 Cartas do padre Antônio Vieira, à, p. 256.

37 Correspondência diplomática de Francisco de Souza Coutinho (citado doravante como Cor-

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respondência diplomática), 3 vols., Coimbra e Lisboa, 1920-1955, iii, p. 85.

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OLINDA

RESTAURADA

cia da W.L.C. era a guerra de corso, autorizada pelo governo neerlandês desde janeiro de 1646, mas restrita ao sul da linha equatorial. Em princípio, a medida compreenderia apenas os navios destinados aos portos de Pernambuco, mas evidentemente a autorização seria interpretada em sentido lato para dano de toda a carreira do Brasil.” A conquista de Dunquerque pela aliança

franco-neerlandesa (1646) privara o corso da Zelândia, base da economia provincial, dos lucros da guerra marítima contra os Países Baixos espanhóis, possibilitando a criação da “Brazilische Directie ende Compagnie”, sediada em Middelburg. Desempregada no mar do Norte, a pirataria zelandesa deslocou-se para o Atlântico, sob a condição de repartir seus ganhos com a

W.I.C.º? Basicamente zelandês, o negócio também atraiu capitais da comunidade sefardita de Amsterdã, embora nem a cidade nem a província da Ho-

landa se quisessem associar,“ Às primeiras fragatas chegaram em março-abril de 1647. Como o regimento concedido à Directie” proibia o ataque a navios portugueses em portos do Reino, Madeira e Açores, o governo do Recife interpretou-o em sentido lato, autorizando até mesmo a captura de embarcações ao norte da linha equatorial." Os corsários agiram com eficiência implacável na safra de 16471648: apenas no período de 1º de janeiro a 7 de março de 1648, teriam feito

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tana e das ilhas, de onde eram conduzidos diretamente às Províncias Unidas, tanto assim que as presas feitas no Nordeste corresponderam a apenas 9% do

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levados ao Recife, mas ao norte do Equador, nas proximidades da costa lusi-

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1647-1648 foram apresados 49 navios, total bem inferior ao montante de 249 registrado por fonte portuguesa, disparidade que se explica não só pela dupla contagem,“> mas sobretudo pelo fato de que a grande maioria das capturas era realizada não ao longo do litoral brasileiro, caso em que os barcos eram

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22 presas somente entre navios da carreira de Pernambuco. Apenas em

1 Ao.Go. aos XIX, 26.vii.1647, CJH, BPB. “2 Cartas do padre Antônio Vieira, à, p. 256.

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*3 Boxer, The Dutch in Brazil, p. 290.

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O Correspondência diplomática, ii, pp. 47, 53 e 60.

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2? Hoboken, Witte de With in Brazilie, pp. 67-8.

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38 Ibid., ii, p. 32.

114

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1645-1654

total da carreira do Brasil em 1647, e a 27% em 1648. Do total de 89 capturas realizadas entre 1646 e 1653, 27 foram-no pela W.L.C., 36 pela “Directie”, dez por particulares e sete por operações conjuntas da W.L.C. e da “Directie”,

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faltando informações sobre as nove restantes. Vendídas no Recife, as embarcações deram o rendimento líquido de 3.444.409 florins,“ equivalente a 70% da receita anual que a W.1.C. auferia do Nordeste no período nassoviano. Com a

restauração de Angola em 1648 pelos portugueses, tiveram lu-

gar os apresamentos de navios dela procedentes ou a ela destinados. Durante a administração de Nassau, a conquista de São Jorge da Mina e Angola permitira eventualmente importar quantidade de africanos, embora ainda inferior ao do período ante bellum, que fora da ordem de 4.000 escravos anuais.

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Reiniciada a guerra em 1645, o tráfico cessou até 1654.$ Em 1647, autori-

dade lusitana alegaria acharem-se em Fernando de Noronha cerca de 2.000 africanos, que não encontrando compradores, seriam reexportados para as Índias Ocidentais; daí que o procurador de Pernambuco em Lisboa sugerisse a reconquista da ilha pela armada de Vila Pouca de Aguiar.“ A documentação

neerlandesa, porém, refere tão-somente a presença de escravos alugados aos moradores, em número de 89.4 A reativação dos engenhos ficou assim seriamente prejudicada pela escassez de mão-de-obra, malgrado os escravos trazidos pelos retirados da Paraíba 4º BPB, 1646-1653, CJH; “Lyste van prinsen bij particuliere en Compagnie op de custe van Brasil verovert”, ARA, OWIC, 5781.

45 Ernest van den Boogaert e Pieter C. Emmer, “The Dutch participation in the Atlantic

slave trade, 1596-1650”, HenryA. Gemery e Jan S. Hogendorm (eds.), The uncommon market. Essays in the economic history of the Atlantic slave trade, Nova York, 1979, pp. 353-75. À tabela compilada por J. M. Postma relativa à importação de escravos no Brasil holandês apresenta o total de 1.550 para apenas três dos nove anos de guerra da restauração, parte da qual reexportada para as colônias inglesas do Caribe: J. M. Postma, The Dutch in the Atlantic slave trade, 1600-1815, Cambridge,

1990, p. 21. Vd. também Pedro Puntoni, A mmísera sorte. À escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico no Atlântico sul, 1621-1648, São Paulo, 1999, pp. 100 ss. 46 Co.Uo., 28.vii.1647, AHU, 14, Co.Uo., 23.ix.1647, Os manuscritos da Casa de Cadaval, 1, p. 60,

47 Ao.So.Co. aos XIX, 27.ii e 17.1v.1646, CJH, BPB; DN, CJH; Ao.Go. aos XIX, 1,x1.1650 e 20.xii.1652, CJH, BPB.

115

12.i e 3.111.1646 e 22.x.1650,

OLINDA RESTAURADA

navios se não houver de dar no Brasil carga de açúcares, não têm por que 1r

aquele Estado nem levarão a ele deste Reino as coisas com que se conserva e sustenta”.?2 A solução será a Companhia Geral de Comércio do Brasil.4 18 Co.Uo., 8.vii.1647, AHU, PA, Pco., iii. 49 Fontes, ii, p. 222.

O História da guerra, p. 318; “Diário ou breve discurso”, pp. 152 e 168.

?* Atas da Câmara da Bahia, 1625-1700, 6 vols., Salvador, 1949-1956, ii, p. 365; parecer

de Pedro Fernandes Monteiro, s.d., mas de 1648, BA, 50-V-35.

22 Cartas do padre António Vieira, i, p. 235.

?* CoUo., 5.ix.1648, AHU, 14. 54 Para a criação da Companhia Geral de Comércio do Brasil, já se dispõe da análise de

Leonor Freire Costa, O transporte no Atlântico, i, pp. 477 ss.

116

io sda do

tou sequer com a mão-de-obra existente no início da insurreição (calculada em 40.000 africanos),* devido, em primeiro lugar, à epidemia de 1645-1646, que matara “infinitas pessoas brancas e muitíssimos escravos”, e também à venda de escravos para a Bahia, para onde os luso-brasileiros enviaram “uma grande porção de negros”, inclusive pertencentes a neerlandeses ou capturados nas proximidades das fortificações.” Havia por fim o recrutamento de escravos pelo exército restaurador. Com o colapso da navegação livre em 1647-1648, os fretes no Brasil subiram assustadoramente; no Reino, a maioria dos seguradores foi à falência?! Amadureciam as condições para uma decisão radical por parte da Coroa. Cogitou-se inicialmente na suspensão pura e simples da carreira do Brasil. Em agosto de 1647, por iniciativa do padre Antônio Vieira, preparou-se a correspondente ordem, aparentemente engavetada na Secretaria de Estado, “mas [escrevia o jesuíta] não sei quem sejam os poderosos que a desmandam nem os desobedientes que não querem executar”.º2 De Pernambuco, Fernandes Vieira fará idêntica sugestão. À seu ver, só o interdito sobre a exportação de açúcar brasileiro, privando os holandeses das ricas presas que faziam, os induziria a desistir do Brasil. Mas a medida era suicida, de vez que, de seu comércio, dependiam os homens de negócio que financiavam a Coroa na luta pela independência. Como argumentava o Conselho Ultramarino, “se aos

=D seia dii-— dg had

e de Itamaracá, boa parte dos quais revendida em Pernambuco. Não se con-

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1645-1654

As relações luso-neerlandesas atingiram ponto crítico em fins de 1648. O acordo negociado por Souza Coutinho prevendo a restituição do Nordeste à W.I.C. provocou o desfecho que habilitou a Coroa a cortar o nó górdio que a manietava: a existência, nos conselhos d'El Rei, de duas facções que se cancelavam. À primeira, à dos “valentões de Portugal” a que se referia com escárnio o padre Antônio Vieira, era favorável a somar à guerra contra os ra o amei

ii

castelhanos a guerra contra os holandeses, se esta fosse, como acreditava, indispensável a salvar o Brasil;(a segunda, um partido moderado, composto por Souza Coutinho, pelo marquês de Niza e pelo próprio padre Vieira, o qual, forte da sua experiência internacional, sabia não haver alternativa à política, que vinha sendo seguida por D. João IV, de guerra defensiva contra a Espanha e de paz com as Províncias Unidas, mesmo ao preço de concessões territoriais e comerciais no Brasil. De 1641 a 1648, foi essa a cisão que dividiu os círculos dirigentes do Reino e paralisou a Coroa. O projeto da Companhia de Comércio fora originalmente descartado face à resistência da Inquisição, que não concordava com a isenção de confisco para os bens de cristãos-novos que subscrevessem o capital da empresa. Enquanto Souza Coutinho negociava com os Estados Gerais, os “valentões” iam de vento em popa, mercê da evacuação de Itaparica pelos holandeses em dezembro de 1647 à aproximação da armada da Vila Pouca de Aguiar; e, sobretudo, da notícia da primeira vitória dos Guararapes, alcançada na ocasião em que, a apenas alguns quilômetros das colinas onde se travara a batalha, ancorava impotente a armada das Províncias Unidas, sob o comando de Witte

de With. Ambos os sucessos confirmavam o argumento dos “valentões' de que o poderio neerlandês não era imbatível, como sustentava Antônio Vieira no “Papel forte”, sendo possível derrotá-lo no Brasil, sem sacrifício da herança colonial da nação. Ademais, as perdas incorridas às mãos do corso zelandês endureciam a posição da praça de Lisboa. Os prejuízos sofridos pelo comércio do Reino seriam tais que, desesperados com a política de D. João IV, mesmo os negociantes cristãos-novos, fazendo causa comum com o inimigo

natural, a Inquisição, exigiam a ação da Coroa. Foi assim que as contingências encarregaram-se de inviabilizar a entrega de Pernambuco, eliminando-a do rol das soluções possíveis para o conflito entre Portugal e as Províncias Unidas. À pressão dos conselhos da Coroa e da praça de Lisboa forçou El Rei a tomar a decisão dramática de rejeitar o

117

OLINDA RESTAURADA

acordo negociado por Souza Coutinho. Enganava-se, contudo, quem supusesse que [). João IV dera-se por vencido. Ainda lhe restava um trunfo que desagradava a Inquisição e um setor dos “valentões”: a criação da Companhia Geral de Comércio do Brasil, sobre a base da isenção do confisco. É prova da sagacidade política do monarca ter sabido aproveitar-se da unanimidade nacional para arrancar o que momentos menos difíceis lhe haviam até então

118

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*6 Vulnerabilidade posta de relevo por Charles Wilson, “The decline of the Netherlands”, Economic history and the historian, Londres, 1969, p. 26.

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2 Correspondência diplomática, ii, pp. 251 e 278-9.

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Outra idéia cara ao padre Vieira e aos partidários do abortado acordo de Haia era a participação estrangeira no comércio ultramarino. “Os perigos do mar [escrevia Souza Coutinho a D. João IV] tinham muito fácil remédio, permitindo Vossa Majestade a ingleses, franceses e suecos que navegassem os açúcares do Brasil”, ou limitando a concessão a Pernambuco. A medida constituíria duro golpe nos interesses da W.J.C., que a temia mais que tudo. Souza Coutinho pensava especialmente em termos de explorar a rivalidade comercial entre a Inglaterra e a Holanda, concedendo privilégios comerciais aos súditos de Sua Majestade Britânica, estratégia que se cristalizará na Companhia de Comércio, cuja demanda por navios de grande porte e pesadamente artilhados não podia ser atendida no Reino. Como demonstrará a primeira guerra anglo-neerlandesa (1652-1654), Souza Coutinho calculava com acerto a profundidade do conflito entre ambas potências navais, inclusive a vulnerabilidade do domínio marítimo das Províncias Unidas no mar do Norte.>$ A representação das Câmaras, de 1647, propusera, como vimos, o afretamento de fragatas francesas, antecipando a objeção da aliança entre a França e as Províncias Unidas (aliança que já entrara em crise em 1648), com o argumento de que também os neerlandeses, sendo aliados da Dinamarca, haviam alugado seus navios aos suecos no conflito em torno do Zonte. O projeto pernambucano também procurava acautelar os interesses da Coroa, lembrando que se nomeassem para o comando das fragatas oficiais confidentes que acatassem as ordens da chefia restauradora. Sustentava-se, por fim, que

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negado. Em março de 1649, isolando o Santo Ofício, ele aprovou os estatutos da Companhia de Comércio.

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1645-1654

o afretamento dos navios de Saint-Malo serviria para agravar as dissensões, do

interesse de Portugal, entre holandeses e franceses.”” Por então, comerciantes de Rouen solicitavam enviar naus ao Cabo. Ali, como em La Rochelle, estava-se a par do conflito através de navios holandeses que faziam escala no regresso do Recife, cujas informações eram transmitidas à embaixada em Patis pelos judeus de origem portuguesa desses portos.?º A missão de frei Cirilo de Mayenne, capuchinho francês residente na capitania, já foi analisada por frei Francisco Leite de Faria e por J. A. Gonsalves de Mello,?? mas cabe sublinhar seu aspecto comercial pois entre os objetivos a alcançar na França estava o de interessar mercadores de Saint Malo na exportação de víveres e munições em troca de açúcar.

O “ASSENTO DE PERNAMBUCO”,

1648-1650

No caso de Pernambuco, a abolição da navegação livre fez-se inicialmente em benefício de um grupo de grandes comerciantes de Lisboa, cujos repre-

sentantes, Jorge Gomes Álamo e Jerônimo Gomes Pessoa, assinaram com a Coroa em 1648 um assento, ou contrato, para o abastecimento da capitania.

*” Co.Uo., 12.iv.1646, AHU, Pco., iii. 8 Marquês de Niza a Pedro Vieira da Silva, 12.v.1647, BNL, FG, 2667.

59 Leite de Faria, “Os barbadinhos franceses”, pp. 72-80; Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, ii, pp. 70-4. 60 Cartas dºEl Rei D. João IV ao conde da Vidigueira, 2 vols., Lisboa, 1940, ii, p. 284. Jorge

Gomes Álamo pertencia à grande família de mercadores cristãos-novos, os Rodrigues de Évora, tendo mesmo sido implicado com o pai e com Pedro de Baeça na frustrada conspiração contra D. João IV (1641). Quanto a Jerônimo Gomes Pessoa, era um dos contratadores do aprovisionamento do exército do Alentejo, participara do financiamento da expedição de Salvador Correia de Sá que restaurara Angola e tornar-se-á em breve um dos grandes acionistas da Companhia de Comércio e um dos seus diretores: Boyajian, Portuguese bankers at the Court of Spain, 1626-1650, New Brunswick, 1983, p. 129; David Grant Smith, The mercantile class of Portugal and Brazil in the Seventeenth century: a socio-economic study of the merchants of Lisboa and Babia, University Microfilms International, Ann Arbor, 1975; e “Old Christian merchants and the foundation of the Brazil Company, 1649”, Hispanic American Historical Review, 54 (1974), pp. 233-59.

119

OLINDA

RESTAURADA

Os assentistas obrigavam-se a enviar doze navios por ano, quatro por quadrimestre ou seis por semestre, com “mantimentos, munições, roupas e tudo o necessário para a vida humana”, contra pagamento em açúcar e pau-brasil. Os artigos seriam tabelados “à semelhança do que se usa nos lugares de África”.! Os contratadores teriam ainda o monopólio da importação de vinho em Pernambuco ao preço fixo de 360 réis a pipa.º? Em carta ao marquês de Niza, El Rei tratou de dar versão diplomática, declarando não ter tido qualquer atuação em assunto que teria sido negociado diretamente entre o procurador de Pernambuco e os assentistas. Tinha mesmo procurado impedi-lo para evitar problemas com as Províncias Unidas, não o havendo permitido, contudo, nem “as leis da consciência e da razão” nem o sentimento público do Reino. O argumento não era totalmente caviloso, haja vista, poucos meses depois, a reação ao acordo de Haia. À iniciativa do assento partira do próprio vedor da Fazenda Real, o conde de Odemira, que se correspondia com os chefes da insurreição. Fora dele o intento de meter na capitania “algum socorro por via das naus inglesas; e para esse efeito persuadiu a Jorge Gomes Álamo”.ºf O Conselho Ultramarino fora mantido à margem, tanto assim que em outubro de 1648 D. João IV enviava à sua consideração o texto do contrato cuja assinatura já autori-

zara; ademais, quando surgiram dúvidas sobre o escopo dos privilégios dos

assentistas, o Conselho solicitou a El Rei que a questão fosse esclarecida pelos funcionários que o haviam despachado, vale dizer, pelo Conselho de Fazenda. Do momento em que um órgão recém-criado como o Conselho

Ultramarino empenhava-se em conquistar seu espaço próprio na estrutura

conciliar do Estado português, sua marginalização em assunto que reputava

6! Cartas d'El Rei D. João IV ao conde da Vidigueira, ii, p. 284. 62 Parecer do marquês de Niza, 26.x1.1648, transcrito por Charles R. Boxer, “As primeiras

frotas da Companhia do Brasil à luz de três documentos inéditos”, Anais do IV Congresso de História Nacional, 10 vols., Rio, 1950-1951, v, p. 308.

63 Cartas d El Rei D. João IV ao conde da Vidigueira, ii, p. 284.

$4 Parecer de Pedro Fernandes Monteiro, s.d., BA, 50-V-35. Odemira será também um dos negociadores do contrato da Compania Geral de Comércio. 5 Co.Uo., 31.1.1650, AHU, 14; Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, ii, p. 104.

120

e

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1645-1654

da sua competência era de molde a predispô-lo em favor dos insurretos na disputa que estava por vir. Como ocorrerá com a Companhia de Comércio, os privilégios dos assentistas provocaram oposição em Pernambuco e entre os mercadores do Reino e da Madeira engajados no comércio da capitania. No governo, também se enxergavam inconvenientes. Para o marquês de Niza, constituindo o vinho o principal produto da metrópole no Brasil, os assentistas estartam na posição de obter o monopólio dos outros gêneros, com o que os maiores prejudicados seriam aqueles a quem se desejava ajudar. Doze navios seriam insuficientes para escoar a safra anual de açúcar, que o marquês estimava em 15.000 ou 20.000 caixas. (Cálculo otimista, pois devido à guerra ela não passava da metade da primeira cifra avançada.) Além do quê, ao contrário do vinho, o preço do açúcar não fora fixado, ficando à mercê dos agentes dos contratadores.º Mas Boxer exagerou ao ver no marquês de Niza “um apóstolo do comércio livre em pleno século dezessete”, pois embora opondo-se ao estanco particular, ele apressava-se em sugerir que a Coroa chamasse a si o comércio do vinho, e não só em Pernambuco, mas em todo o Brasil; ou que, ao meÀs primeiras naus do assento, quatro navios ingleses fretados, aportaram

em março de 1649,º8 não podendo regressar imediatamente a Portugal, de-

vido ao bloqueio holandês do Cabo, onde ainda se encontravam ao despontar o segundo comboio. Com a partida de De With em novembro, o governo do Recife utilizou os barcos de guerra que lhe restavam, poucos mas sufi96 Parecer do marquês de Niza, cit., pp. 311-2.

67 Parecer do marquês de era no século XVII, mesmo em muito mais significativa do que centista. Atendo-nos ao período

Niza, cit., pp. 313-4. Na realidade, a oposição aos monopólios já país progressivamente à margem do desenvolvimento capitalista, em geral tem feito acreditar a historiografia do liberalismo oitoholandês, nos anos trinta o governador-geral do Brasil, Diogo Luís

de Oliveira, criticara a criação de uma “bolsa” que Matias de Albuquerque teria organizado com

vistas ao suprimento do exército, com o consabido argumento de que os estancos desencorajavam

o comércio e infelicitavam os súditos: Co.Fa., 28.vi.1631, AHU, 39. E a campanha contra o “as-

sento de Pernambuco” e depois contra a Companhia Geral de Comércio do Brasil ilustram suficientemente o ponto.

68 Ao.Go. aos XIX, 20.iv.1649, CJH, BPB; Co.Uo., 21.viii. 1649, AHU, 14.

121

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nos, entrasse também no negócio.”

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OLINDA RESTAURADA

cientes para intimidar as naus do assento.º? Somente em fevereiro de 1650 elas retornariam ao Reino, sob a proteção da primeira armada da Companhia

de Comércio.” O segundo comboio, que chegou em começos de 1650, agru-

pava os navios correspondentes aos últimos quadrimestres: cinco ingleses,

quatro hamburgueses, dois franceses e oito holandeses, estes últimos tripula-

dos exclusivamente por portugueses.! O terceiro comboio, esperado para

março de 1650, só apareceu seis meses depois, de conserva com as embarca-

ções correspondentes ao segundo semestre.”? Os prazos previstos no contrato eram assim descumpridos. À resistência ao assento em Pernambuco prefigurou a que fará o Estado

do Brasil à Companhia de Comércio. Enquanto os assentistas procuravam ampliar sua posição privilegiada, a capitania agarrava-se, com unhas e dentes, ao comércio livre, com o apoio de agentes locais da Coroa e do Conse-

lho Ultramarino. Os assentistas eram acusados de cobrar preços extorsivos pelos artigos do Reino, de eliminar os concorrentes e de açambarcar o açúcar. Insatisfeitos com seus privilégios, pretendiam obter o monopólio do abas-

tecimento em bacalhau, azeite, sardinha e farinha de trigo, ademais do contrato do pau-brasil, como virá a ocorrer com a Companhia de Comércio. Francisco Barreto alertou a Coroa para que tais condições reduziriam a receita dos impostos que financiavam a guerra, propondo que se permitisse aos senhores de engenho exportarem seu açúcar nos próprios navios do assento, o

que era inaceitável para os contratadores, que se recusavam a transportar até

o de particulares influentes beneficiados por ordens expressas de D. João IV, escudando-se na cláusula do contrato que dera a seus barcos prioridade na

69 Ao.Go. aos XIX, 7.v111.1649, CJH, BPB; Witte de With, “Kort register”, CJH, RD;

Hoboken, Witte de With in Brazilie, pp. 251-3 e 255-7.

“9 “Relação dos sucessos da armada que a Companhia Geral do Comércio expediu ao Estado do Brasil”, ABNRJ, 20 (1899), pp. 163-4. 1 Co.Vo., 31.1.1650, AHU,

OWIC, 66.

14; depoimento de Manuel Afonso, Recife, 2.ii. 1650, ARA,

* CoUo., 9.xii.1650, AHU, 14; parecer de Pedro Fernandes Monteiro, s.d., BA, 50-V-35. 2 Co.Uo., 21.viii. 1649 e 26.iv.1651, AHU, 14; D. João IV a Francisco Barreto, 17.11.1651, AHU, 275.

122

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO, 1645-1654

carga e descarga. O ponto parecia obscuro ao Conselho Ultramarino, que sugeriu que o Conselho de Fazenda esclarecesse o assunto, pois se o assento permitisse o alegado, cumpria modificá-lo. Das queixas, como a de Francisco Barreto, de que, “dos navios de sua obrigação em dois anos, têm [os assentistas] mandado muito poucos”, eles desculpavam-se com a impossibilidade de fretar naus inglesas em plena crise das relações entre a Coroa e o Parlamento inglês, provocada pelo apoio de D. João IV à causa dos Stuarts, embora El Rei estivesse informado de que havia bar-

cos suficientes no rio de Lisboa.”? Por sua vez, as reclamações contra a quan-

tidade e a qualidade dos artigos enviados do Reino serão confirmadas pelo

conde de Castel Melhor na escala que fez no Cabo rumo à Bahia, onde assu-

miria o governo-geral; e o Conselho Ultramarino endossava a alegação de que, em decorrência do assento, os navios de particulares não desejavam mais navegar a Pernambuco.?º Ao iniciar-se a safra de 1649-1650, ancoravam cerca de 20 embarcações somente no Cabo, embora a fregiência dos portos pernambucanos houvesse efetivamente diminuído, como indicava a redução substancial das capturas holandesas no litoral do Nordeste. Em 1648, 39 presas haviam sido trazidas ao Recife, cifra que caiu para 14 no ano seguinte. Mas a explicação da queda estava menos na concorrência feita pelo assento aos comerciantes livres do que na presença da armada de De With e na eficácia do corso zelandês, tanto as-

sim que, ao chegarem em março de 1649 as primeiras naus do assento, já as autoridades neerlandesas lamentavam só haver apresado, entre dezembro de

1648 e abril de 1649, uma caravela de açúcar procedente da Bahia e outra, de vinho, proveniente da Madeira. Sem expectativas de lucro, os corsários

começaram a desarmar as fragatas.” E no biênio 1649-1650, serão tomadas

apenas três embarcações da carreira de Pernambuco. 7á Co.Uo., 31.1.1650, AHU, 14.

75 Co.Uo., 30.iv.1650, AHU, 14; decreto de 6.x1i. 1649, BNL, FG, 7626. 76 Castel Melhor a D. João IV, 27.11.1650, AHU, PA, Pco., iii; Co.UO., 30.iv.1650, AHU,

14.

77 CoUo., 31.1.1650, AHU, 14; Ao.Go. aos XIX, 20.iv.1649, CJH, BPB. e

78 BPB, 1646-1653, CJH.

123

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OLINDA RESTAURADA

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Com a partida da armada de De With, o governo do Recife viu-se re-

duzido a um navio e quatro iates velhos, que devido à escassez de víveres e de peças de reposição eram forçados a encurtar suas operações. Não seria muito melhor a situação dos corsários.? Em meados de 1650, a força da W.L.C. consistia em dois navios e dois iates, mas um dos navios, o “Posthoorn”, logo

regressaria às Províncias Unidas por não dispor de tripulação suficiente e requerer consertos que não se podiam fazer no Brasil. Poucos eram também os barcos, como botes e sumacas, com que atender as guarnições costeiras.80 Quando da escaramuça marítima de setembro daquele ano, contava-se ape-

nas com três embarcações de alto-mar.º! Só em janeiro de 1651, com a presença no Recife dos seis navios e iates sob o comando de Willem Haulthain,

tornou-se possível restabelecer o bloqueio do Cabo e dos portos do sul da

capitania?

O terceiro comboio do assento sofreu as delongas resultantes da crise anglo-portuguesa. Tendo bloqueado a barra do Tejo de março a novembro de 1650, a esquadra de Blake apresara inclusive as embarcações inglesas afretadas em Portugal. Os assentistas recorreram, por conseguinte, a navios franceses. Apesar dos avisos de Francisco Barreto para que fossem aportar a Tamandaré, o comboio não escapou à vigilância de Haulthain, que o atacou diante do Cabo. Em conserva com as naus, navegavam barcos particulares. Enquanto a nau capitânea, a “Villeroy”, entregou-se sem resistência, os demais naufragaram sobre os arrecifes, salvando-se apenas um patacho e uma caravela.º2 Exit o assento: a partir de então, a responsabilidade pela carreira 2 Ao.Go. a Guilherme II, 13.xii.1649, e Ao.Go. aos XIX, 15.ii.1650. CJH, BPB. 9 Ag.Go. aos XIX, 8.vi.1650, CJH, BPB. 81 Ao.Go. aos XIX, 1.xi.1650, CJH, BPB.

2 Ao.Go. aos XIX, 20.i e 21.viii. 1651, CJH, BPB. 83 Co.UO., 9.xii.1650, AHU,

14: “Diário de Henrique Haecxs”, ABNRJ, 69 (1949), Pp. 140-1; Cosmo de Castro Passos ao conde de Odemira, 20.ix.1650, AHU, PA, Pco., ill. Vd. tam-

bém J. A. Gonsalves de Mello, Felipe Bandeira de Mello, Recife, 1954, p. 38. O “Villeroy”, de 350 toneladas e procedente de Saint Malo, fora afretado pelos assentistas a mercadores portugueses de Rouen. Estava armado com 27 peças de artilharia e sob o comando de Guillaume Truchot. A venda do navio no Recife rendeu 148.056 florins: Ao.Go. aos XIX, 1 e 21.x1.1650, 22.vi.1651 e 3.1v.1652,

CJH, BPB; DN, 4, 15 e 19.ix e 18.xi.1650, CJH; também ARA, OWIC, 28.

124

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO, 1645-1654

de Pernambuco passou à Companhia de Comércio, cujos estatutos previam escala no Cabo. A COMPANHIA DE COMÉRCIO EM PERNAMBUCO,

1650-1654

A primeira armada da Companhia de Comércio, sob o comando de

Castel Melhor, chegou em fevereiro de 1650, não trazendo, contudo, uma

única embarcação para a capitania.“ Surpreendido pela carência de gêneros a que o assento a relegara, o novo governador-geral mandou descarregar quan-

tidade de bacalhau, farinha, azeite e vinho, deixando também seis barcos em

que transportar o açúcar da terra no retorno da armada.º? Mas o conde de

Vila Pouca de Aguiar, que a comandou nesta ocasião, ou não procurou tocar no Cabo, como conjecturou Boxer, ou tentou fazê-lo, sendo dissuadido pe-

las dificuldades da barra.ºº Era a esse episódio que seguramente aludia a representação dos colonos do Brasil contra a Companhia de Comércio ao assinalar que as embarcações de Pernambuco achavam-se na contingência de viajarem separadamente, expondo-se ao inimigo, ou de esperarem interminavelmente nos portos com prejuízo do comércio.” Entre setembro de 1650 (desastre das naus do assento) e fevereiro de

1652 (escala da segunda armada da Companhia de Comércio), a navegação

84 Francisco Barreto a D. João IV, 28.11.1650, AHU, PA, Pco., ti; Cosmo de Castro Passos

a Felipe Bandeira de Melo, sem menção de data, mas apresada a 6.iv.1652, ARA, OWIC, 66.

85 Castel Melhor a D. João IV, 27.ii.1650, AHU, PA, Pco,, iii; Co.Uo., 30.iv.1650, AHU,

14; Cosmo de Castro Passos a Felipe Bandeira de Melo, sem menção de data, mas apresada a 6.iv.1652, ARA, OWIC, 66: C. R. Boxer, “Blake and the Brazil fleets in 1650”, The Mariner Mirror, 36 (1950), p. 213.

86 Co.Uo., 8.x1.1651, AHU, PA, Pco., iii; Boxer, “Blake and the Brazil fleets”, p. 226. Esta

última versão parece confirmada por fonte holandesa, segundo a qual a armada da Companhia Geral fora avistada dirigindo-se ao Cabo: “Diário de Henrique Haecxs”, p. 141. À armada partira de Salvador a 24 de setembro: Gustavo de Freitas, A Companhia Geral de Comércio do Brasil, São Paulo,

1951, p. 94. 57 “Representação dos moradores do Brasil sobre o comércio, navegação e defesa daquele Reino”, 1652, AHU, PA, Ba,, v.

125

OLINDA RESTAURADA

de Pernambuco ficou praticamente reduzida a zero. Na falta de navios, o açú-

car perdeu valor e os produtos locais ficaram à mercê do que quisessem pagar os comerciantes. Destarte já não havia recursos para apontar os engenhos, verificando-se grande diminuição no cultivo da cana. Para conservar em paz “as duas partes desta república, lavoura e mercancia”, a Câmara de Olinda tomara a iniciativa de fixar os preços dos artigos da terra segundo os custos

de produção, o preço vigente na praça de Lisboa, os fretes, os impostos, etc.

Tratava-se de medida que não feria os direitos da Companhia de Comércio e cuja confirmação se pedia a El Rei, embora aos conselhos municipais tocasse tabelá-los. Solicitava também a Câmara que Pernambuco ficasse isento de pagar os gêneros trazidos pela Companhia de Comércio aos preços estipulados, que eram o dobro dos ordinários.ºº Em face da perda das naus do assento, Francisco Barreto, que enviara

Felipe Bandeira de Melo a Lisboa para relatar a situação, pediu que, à espera do comboio seguinte, a Coroa enviasse duas caravelas por mês com bacalhau

e sardinha, evitando o Cabo para demandar os portos do sul, menos vigiados pelo inimigo.” O pedido foi atendido, confiando-se a tarefa à Companhia de Comércio; e para estimular armadores e mestres de navio a navegarem para Pernambuco, decidiu-se isentá-los dos fretes devidos a ela e de 2/3 dos impostos pagos às alfândegas do Reino, ao passo que se eximiam dos tributos os barcos de Cabo Verde que trouxessem pescado.?? Ao longo de 1651, os insurretos ficaram na dependência destes últimos, de vez que a Companhia de Comércio, ressentida com esta derrogação dos seus privilégios na capitania, sabotou a ordem régia.?! As coisas só melhoraram a partir de fevereiro de 1652 com a segunda

armada da Companhia de Comércio, embora só viessem cinco navios para

Pernambuco, apenas suficientes para transportar 700 caixas de açúcar. O almirante Pedro Jaques de Magalhães tomou a iniciativa de deixar duas outras º8 Câmaras de Pernambuco e povos das capitanias do norte do Estado do Brasil a D. João

IV, 10.11.1651, BA, S1-IX-6.

89 Co.Uo., 9.x11.1650, AHU,

14: Gonsalves de Mello, Felipe Bandeira de Melo, pp. 38-49,

90 Co.UO., 8.x1.1651, AHU, PA, Pco., iii.

*! Co.Uo.; 17.vii e 21.x.1651, AHU, 14; Co.UO., 13.v.1652, AHU, PA, Pco. iv.

126

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1645-1654

embarcações com vinho da Madeira mas a Câmara de Olinda, não se dando

por satisfeita, embargou mais sete barcos, ignorando os protestos dos agentes

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da empresa.” Outros oito ou nove que se achavam retidos no Cabo valeramse da proteção da armada para tomar o alto-mar.?? Em Lisboa, sob a pressão da campanha contra suas prerrogativas, a direção da Companhia de Comér-

cio dispôs-se a agir, aprestando quatro navios que velejartam de conserva com a frota da Índia.“ Licenciaram-se também duas embarcações genovesas para levar gêneros do Reino a serem pagos em açúcar e permitiu-se a um comerciante inglês carregar bacalhau.?? Na realidade, partiram apenas o inglês e um dos genoveses. Entre março e dezembro de 1652, a Companhia de Comércio despachou 35 navios a Pernambuco, entre patachos, caravelas e naus.?º Um comboio de

seis aportou em novembro.?” E no retorno a Portugal, a segunda armada re-

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colheu os navios que estavam retidos em Tamandaré, Rio Formoso e no Cabo. A guerra anglo-neerlandesa viera arranjar a situação. O governo do Recife reconhecia que “os portugueses navegavam livremente neste litoral [...] e o que é mais irritante ainda, fazem esta navegação com navios e marinheiros holandeses; e face a isto, estamos impossibilitados de pôr no mar um único

navio”, não se dispondo de marujos, pois os que restavam eram empregados nas sumacas que asseguravam as comunicações da cidade com as praças-fortes costeiras.?8 Daí que Francisco Barreto se pudesse gabar de haver despachado 26 embarcações para o Reino no decurso de 1652, devendo partir em

breve outras dez.??

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92 Co.Uo., 13..1652, AHU, PA, Pco., iv. 93 “Kort verhaal van het gebeurde mer de Portugeese vloot”; e Ao.Go. aos Estados Gerais,

di,

28.11.1652, CJH, BPB.

9á Co.Uo., 28.11.1652, AHU, 14. 95 Provisões de 10 e 16.1v.1652, AHU, 92.

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96 Lista dos navios partidos para Pernambuco de 10.iii a 23.x11.1652, anexa a Co.Uo.,

SM" mr) Da

13.v.1652, AHU, PA, Pco., iv.

97 Co.Uo., 13.11.1653, AHU, PA, Pco,, iv. 38 Ao.Go. aos Estados Gerais, 5.1x. 1652, IHGB, DH, 6.

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2) Co.Uo., 13.11.1653, AHU, PA, Pco., iv.

127

OLINDA

RESTAURADA

las armadas da Companhia de Comércio!9é . À situação de Pernambuco e os protestos do Estado do Brasil foram

instrumentalizados junto a El Rei pelos adversários da empresa. Não se tratava apenas da Inquisição, impedida de confiscar os bens dos acionistas cris-

tãos-novos, ou do Conselho Ultramarino, cioso das suas competências. Cfr-

culos da Coroa visavam estatizá-la, cassando-lhe os privilégios para transformála em mera entidade encarregada da organização e gestão das armadas, o que 100 Cosmo de Castro Passos ao conde de Odemira, 20.ix.1650, AHU, PA, Pco., iii; Co.Uo., 13.x1.1651, AHU, PA, Pco., iti; e CoUo., 8.x1.1651, AHU, 14.

101 Co.UO., 8.xi.1651, AHU, 14,

102 Co.Uo., 28.11.1652, AHU, 14. 103 Co.Uo., 29.viii e 28.1x.1652, AHU, 15. 104 Co.Uo., 14.x.1653, AHU, PA, Pco., iv.

128

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cisco Barreto, o provedor da Fazenda Real e a Câmara de Olinda clamavam por caravelas e outros navios ligeiros que tivessem acesso aos pequenos portos, pudessem entrar e sair nas barbas do inimigo e viajassem independentemente das armadas, que não se prestariam à navegação de Pernambuco devido à estreiteza da barra do Cabo e a serem facilmente detectadas pelos neerlandeses.'?º Reivindicação que o Conselho Ultramarino apoiou sem reservas. Segundo o novo presidente, o conde de Odemira, as caravelas e o comércio livre eram a salvação da capitania, embora, como assinalado, ele tivesse sido um dos instigadores da criação do assento.!"! Que a Junta de Comércio ficasse autorizada a conceder “licenças livres” ou que El Rei as provesse, porque destarte “haverá muitos vassalos que em navios ligeiros queiram ir a Pernambuco”.!92 Em outras ocasiões, o Conselho voltou à carga: que “todos os que quiserem ir a Pernambuco vão livremente, levando a Companhia os gêneros de seus assentos”, como outro comerciante qualquer.!03 D, João IV, contudo, nunca se mostrou disposto a abrir exceções ao monopólio e mesmo que as tivesse aberto, cabe duvidar de que os comerciantes livres houvessem podido competir, de vez que na ribeira de Lisboa já não se encontravam calafates, carpinteiros e marinheiros, todos absorvidos pela esquadra real e pe-

a

À luz da experiência com o assento, a capitania pleiteou a volta ao comércio livre, que reputava mais apropriado às circunstâncias da guerra. Fran-

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO, 1645-1654

renderia empregos vitalícios e polpudas sinecuras.!05 Havia também os pequenos armadores e os portos de província e das ilhas, duramente atingidos pelo monopólio; e, por fim, o comércio inglês de Lisboa.!96 O tratamento dispensado a Pernambuco prestava-se esplendidamente às manobras destes grupos, as quais vingarão após o falecimento de D. João IV: um exército lusobrasileiro, lutando pela fé católica, era deixado à míngua para que alguns marranos da praça se cevassem nos preços extorsivos cobrados pelos artigos de primeira necessidade e nos preços irrisórios pagos pelo açúcar. Solicitava a Câmara de Olinda que Pernambuco ficasse isento do monopólio detido pela Companhia de Comércio sobre a farinha de trigo, o baca-

lhau, o vinho e o azeite.!º” Como o bacalhau era vendido pelo triplo do preço

praticado no Reino, Francisco Barreto propunha que, juntamente com a farinha de trigo, fosse enviado por conta da Fazenda Real, não lhe parecendo justo que se lucrasse às custas dos soldados, opinião partilhada pelo Conselho Ultra-

marino.'º8 Os protestos não foram totalmente inúteis, embora a Companhia

de Comércio alegasse ter prejuízo com a capitania. À vista da representação pernambucana, D. João IV interpelou a direção da empresa, que forneceu explicações julgadas pouco convincentes pelo Conselho: graças às suas armadas, nunca se assistira tão continuamente Pernambuco e como já não fizessem tantas presas nas costas brasileiras, os corsários zelandeses se haviam desinteressado do Recife, deixando-o em posição de ser facilmente recuperado. !º?

Segundo a Companhia de Comércio, o principal obstáculo ao negócio em Pernambuco consistia no abuso de se tomarem arbitrariamente as praças dos navios, o que provocava o retraimento dos mercadores.H0 A acusação não era infundada: fonte local assinalava que “os navios não querem vir a estes portos e fazem bem, porque se lhes faz tal companhia que todos em geral o '83 Parecer de Pedro Fernandes Monteiro, s.d., BA, 50-V-35.

106 Boxer, “English shipping in the Brazil trade”, p. 208.

'9” Câmaras de Pernambuco e povos das capitanias do norte do Estado do Brasil a D. João IV, 10,111.1651, BA, S1-IX-6. 108 Co.Uo., 13.11.1650, AHU, 14.

' Co.Uo., 8.xi.1651, AHU, 14; Co.Uo., 13.v e 28.ix.1652, AHU, PA, Pco., iv. 10 Co.UO., 13.v.1652, AHU, PA, Pco., iv.

129

(OLINDA RESTAURADA

sentem muito e não menos se queixam”.!!! Certo comerciante português e não dos menores reclamava que, havendo mandado um barco com sardinha, os oficiais da Câmara de Olinda haviam segiiestrado a maior parte da carga, fazendo-o regressar não com o açúcar dele, comerciante, mas com o de terceiros. O próprio Francisco Barreto bem como o provedor da Fazenda Real e outras autoridades locais haviam tomado praças, obrigando a reduzir o frete em mais da metade.!!2 De Francisco Barreto, sabe-se que comerciava por conta própria, passando meses a fio no Cabo, e até negociava com as autoridades do Recife, enviando-lhes nos dois primeiros anos de governo perto de 300 caixas de açúcar, que,

a pretexto de servirem ao resgate de pristoneiros, trocavam-se por gêneros que

eram revendidos à população do campo.!!? André Vidal de Negreiros também se entregou a atividades que não as estritamente curriculares de oficial do exército: há referência a caravela sua partindo do Cabo; e entre as presas feitas em 1648, achava-se outra embarcação que lhe pertencia, com 200 cai-

xas de açúcar.“ Quando da rendição dos holandeses, ele já se tornara senhor de um dos melhores engenhos da Várzea, o São Francisco.!!? Datou assim

11 “Pernambuco afligido” a D. João IV, 26.11.1650, AHU, PA, Pco., iv. 12 CoUo., 28.1.1654, ibid. De tais práticas nasceria inclusive o desinteresse da capitania pela construção naval, Em 1651, a Câmara de Olinda solicitou à Coroa a remessa de enxárcias, amarras, breu, âncoras e lonas, persuadida de que não faltaria quem quisesse construir navios por conta própria para satisfazer a falta que havia. A primeira reação do Conselho Ultramarino foi negativa, só mudando de parecer quando um armador com conhecimento da terra referiu haver feito uma experiência bem-sucedida, aduzindo que outros barcos poderiam ser fabricados, caso se punisse o abuso de se tomarem praças à força. Opinava o Conselho em favor da exigência, fixandose em 200 toneladas a capacidade máxima das embarcações: Co.Uo., 8.x1.1651 e 13.v.1652, AHU,

14. Neste ínterim, tendo melhorado as comunicações com o Reino, já não se tratou do assunto.

13 “Pernambuco afligido” a D. João IV, 26.11.1650, AHU, PA, Pco., iv. Para as atividades comerciais do comandante do exército luso-brasileiro, J. A. Gonsalves de Mello, Testamento do general Francisco Barreto de Menezes, Recife, 1976.

14 Ao.Go. aos XIX, 27.x.1648, CJH, BPB; e requerimento dos capuchinhos franceses, s.d. mas entre papéis de 1650, AHU, PA, Pco.., iii, cujo texto foi transcrito por Francisco Leite de Faria, “Os barbadinhos franceses”, cit. 15 Fontes, à, D. 297.

130

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO, 1645-1654

da guerra de restauração o começo da fortuna amealhada, uma das principais da capitania, por este filho de carpinteiro da Paraíba. Escusado aduzir que seja o comércio com o inimigo, sejam os afazeres mercantis das autoridades eram corriqueiramente tolerados na Europa como no ultramar.!l6 O contrabando entre holandeses e insurretos amiudou-se no triênio 1648-1650 ao avultarem as dificuldades de navegação para o Reino. No Re-

cife, a escassez de açúcar empurrava seu preço para níveis inéditos; em feve-

reiro de 1647 a libra do produto de má qualidade custava um florim.!!7 A venda para exportação às Províncias Unidas era mais segura e mais cômoda, podendo contar, de um lado, com a cumplicidade, quando não com a participação, das autoridades luso-brasileiras, de outro, com os contatos de nego-

ciantes judeus junto ao Alto Governo, Em 1649, o corretor Abrahão Cohen,

que havia sido agente financeiro de Nassau, propôs que se permitisse o comércio entre a capital e o interior, permutando-se açúcar pelos gêneros que

sobrassem nos armazéns da W.I.C. A idéia foi vetada pelo governo batavo, por temor à reação na metrópole,!!º pelo que tais atividades passaram a ser feitas ilegalmente. Invocando o pagamento de dívidas ou de resgaste de prisioneiros, as

autoridades do Recife forneciam licenças de importação de açúcar em volu-

mes superiores aos necessários para a satisfação das obrigações. As operações de um marrano português, Estêvão Dias da Fonseca, permitem compreender o que se passava sob a aparência de contatos anódinos entre holandeses e

luso-brasileiros. Seu irmão, Fernão do Vale, senhor do engenho São Barto-

lomeu na Muribeca, fora colaboracionista notório, havendo delatado os preparativos da insurreição de 1645. Quando ela irrompeu, ele deixara-se ficar no São Bartolomeu, confiado provavelmente na proteção do genro, Fernão Soares da Cunha, também senhor de engenho mas que aderira ao movimento. Em 1646, durante um ataque neerlandês, Fernão do Vale e Estêvão Dias

H6 C, R. Boxer, The Portuguese seaborne empire, pp. 323-6, e The Dutch seaborne empire, 1600-1800, Nova York, 1965, pp. 21-2. 17 “Diário ou breve discurso”, pp. 202 e 219.

18 J. A. Gonsalves de Mello, Gente da nação. Cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-

1654, Recife, 1989, pp. 346-7.

131

OLINDA RESTAURADA

foram levados para o Recife, onde suas relações na colônia judaica intercederam com êxito pela sua libertação. Mas como tivessem feito várias dívidas na cidade, obtiveram autorização para receber uma partida de açúcar com que pagá-las.!2 Fernão do Vale regressou ao engenho, enquanto Estêvão Dias permaneceu no Recife. Aí, em setembro de 1647, chegou o primeiro carregamento, mas dois anos depois as remessas prosseguiam. Em agosto de 1649, por exemplo, Fernão do Vale conseguia licença de Francisco Barreto para despachar 13 caixas de açúcar, ainda a pretexto da satisfação das dívidas.!?? Como a carga levantasse suspeitas, o Alto Governo reclamou a Francisco Barreto, que

se desculpou.!2! Em fevereiro, Estêvão Dias requeria mais uma autorização

para receber número indiscriminado de caixas.!?? Obviamente, as remessas consentidas pelo Alto Governo não exclufam que, à sua sombra, se fizessem

outras. Fonte luso-brasileira alude, no tocante a 1649, a nada menos de 200

caixas enviadas à capital a título de libertação de prisioneiros.!?? Em 1651, uma denúncia de três deles pôs termo às atividades de Estêvão Dias que, havendo alcançado licença para dez caixas destinadas ao resgate dos mesmos, exigira-lhes a terça parte. Perante o Alto Governo, Estêvão Dias chamou a si toda a responsabilidade, mas é evidente que contara com proteções oficiais. !24 A denúncia não esclarece quem adquiria os carregamentos, seguramente comerciantes judeus. !2> 12 Representação dos moradores de Pernambuco, anexa a Co.Uo., 14. iii.1646, AHU, PA, Pco., iii; DN, 1 e 6.v, e 11.ix. 1647, CJH. Para Fernão do Vale, cristão-novo reconvertido ao judaísmo, Arnold Wiznitzer, Jews in colonial Brazil, Nova York, 1960, pp. 60, 69-70, 77 e 94; e Gonsalves de Mello, Gente da nação, pp. 423-4.

20 DN, 12.viii.1649, CJH. 21 DN, 29.xie 3 e 7.xii.1649, CJH. 22 DN, 9.11.1650, CJH. 123 “Pernambuco afligido” a D. João IV, 26.11.1650, AHU, PA, Pco., iv.

24 DN, 6.ix.1651, CJH. '25 As atas do Alto Governo incluem a concessão de licenças em nome do almirante Jerônimo Serrão de Paiva (DN, 6.1v.1648, 4.111. 1649, 28 e 29.1.1650), Rodrigo de Barros Pimentel (DN, 15.iv, 26.vi e 17.ix.1647, 8.vii, 12 e 30.x1.1649 e 10 e 17.1.1650), Gonçalo Novo de Lira (DN,

19.11.1649 e 28.iv.1650) e Antônio Barbalho (DN, 9.11.1650), CJH.

132

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1645-1654

A melhoria nas comunicações entre Pernambuco e o Reino a partir de 1652 não se deveu no essencial à Companhia de Comércio mas à primeira guerra anglo-neerlandesa, pois o domínio naval da Inglaterra no canal da Mancha estorvou o envio de socorro ao Recife. !2º Em fins de 1652, quando o conflito apenas começara, Cristóvão de Almeida, de regresso do Brasil, observava que “o holandês não infesta hoje tanto os mares”, pelo que haviam podido aportar a Pernambuco os navios que partiam do Reino fora das armadas, o que seria impensável anteriormente, “quando de dez chegava apenas um”.!27 O número de corsários diminuíra drasticamente, inclusive porque a W.1.C. permitira-lhes levar diretamente às Províncias Unidas as presas feitas ao sul do Equador. O governo do Recife protestara: sem corsários, ficaria privado da percentagem que lhe cabia sobre o valor das capturas, cuja receita financiava as despesas incontornáveis, de vez que já não recebia recursos da metrópole. A medida seria o fim do que restava do comércio recifense.!28 Em 1652, a deserção dos navios de Haulthain pôs fim ao domínio neerlandês do litoral do Nordeste, a ponto de Francisco Barreto enviar por via marítima e não pela terrestre, como fazia normalmente, socorro de soldados e munições ao São Francisco; e de caravelões tripulados por soldados lusobrasileiros irem buscar aos portos de Alagoas o açúcar a ser reembarcado para o Reino.!? A carreira do Brasil pôde enfim respirar. Em maio de 1653, uma frota

de 30 embarcações deixava a Bahia; em junho, outra, de 18 velas, carregada de açúcar, zarpava de Pernambuco, sob o olhar impotente das autoridades neerlandesas. O único iate da W.I.C. e os derradeiros corsários não conseguiram capturar um só barco retardatário.!*? Constatando que “de presente não

tem o inimigo nesta costa poder que faça impedimento aos nossos navios, visto

126 Schkoppe aos Estados Gerais, 20.xii.1652; e Ao.Go. aos Estados Gerais, 17.1.1653,

IHGB, DH, 6.

127 Cristóvão de Almeida a D. João IV, 15.x1.1652, BNL, EG, 218, n. 134. 128 Ao.Go. aos Estados Gerais, 4.xii.1651, IHGB, DH, 6. 129 Ao.Go. aos XIX, 20.x11.1652, CJH, BPB; Francisco Barreto a Francisco Barreiros, 3.x. 1652, e Francisco Barreto a Álvaro de Azevedo, 7.vii.1653, AUC, CA, 31, fls. 6v., 7v.-8 e 10.

0 Ao.Go. aos XIX, 13.vi.1653, CJH, BPB.

133

OLINDA RESTAURADA

não se avistar mais que um há muitos dias, Francisco Barreto despachou outros seis em conserva; quatro foram, porém, apresados, com 1.600 caixas

de açúcar, algum pau-brasil e fumo.!*! Em novembro, às vésperas de apontar no horizonte a terceira armada da Companhia de Comércio que, bloquean-

do o Recife, encerrará a história do Brasil holandês, a força naval às ordens

do Alto Governo compunha-se de um navio tomado aos luso-brasileiros, de um iate e de uma caravela, ao passo que a “Directie” mantinha somente quatro fragatas. 192 AÇÚCAR E PAU-BRASIL

Não se dispõe de séries referentes à produção e ao preço do açúcar pernambucano durante a guerra de restauração, apenas de informações dispersas. Para a safra de 1646-1647, previam-se 15.000 caixas,!?2 estimativa que englobava também as capitanias de Itamaracá e da Paraíba, que, como vimos, foram evacuadas. O marquês de Niza avançava uma cifra entre 15.000 e 20.000 caixas, !34 igualmente irrealista, pois confundia produção potencial e

produção real. Durante o governo nassoviano, a produção do Nordeste oscilara entre 17.000 e 20.000 caixas, embora uma safra excepcional pudesse chegar a 25.000 caixas, !*? o que significa, seja dito de passagem, que em nenhum momento o domínio holandês atingiu o desempenho do período ante bellum,

131 Francisco Barreto a Cosmo de Castro Passos, 9.v.1653, e Francisco Barreto a Francisco

Álvares Moreira, 20.vii.1653, AUC, CA, 31, fls. 9v-10v; Ao.Go. aos XIX, 30.vi.1653, CJH, BPB. Barreto acusou os mestres das embarcações de não haverem resistido ao inimigo, ordenando a abertura de inquérito.

132 Ao,Go. aos XIX, 10.xi.1653, CJH, BPB. Para o recurso à caravela pelos holandeses nas suas ligações com as Províncias Unidas, vd. fatura da carga da caravela “Olinda”, ARA, OWIC, 66.

133 Representação dos moradores de Pernambuco, anexa ao Co.Uo., 14.iii.1646, AHU, PA,

Pco., iii.

134 Parecer do marquês de Niza, 26.xi.1648, p. 311. 135 Fontes, ii, pp. 223 e 295.

134

HM

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO, 1645-1654

quando, como mencionado, as capitanias que constituirão o Brasil holandês produziam em torno de 33.000 caixas. Nas circunstâncias da guerra, o volu-

me tinha de ser substancialmente inferior ao pretendido pelo marquês de Niza, devido à inatividade forçada de muitos engenhos, à capacidade ociosa causada pela interrupção do tráfico negreiro, à falta de bois de tração e de recursos para financiamento das safras, etc. Segundo Francisco Barreto que, como comandante do exército restau-

rador, devia saber o que se passava, a produção seria de 6.000 a 7.000 caixas. 36 O cálculo é confirmado pela receita do imposto extraordinário de 200 réis por arroba de açúcar, o qual rendia 60.000 cruzados, equivalentes a um volume de 120.000 arrobas, vale dizer, 6.000 caixas.!” Estes dados reportam-se à safra de 1649-1650 mas é plausível que, graças à estabilidade da frente militar, as de 1647-1648 e de 1648-1649 tenham girado em torno deste nível. Ao prever o envio anual de 12 navios, o assento faz pensar em produção da mesma ordem, se supusermos 500 caixas por nau.!28 É certo que, segundo a Câmara de Olinda, seriam necessários anualmente 24 navios com capacidade média de 400 a 500 caixas, o que corresponderia a cerca de 11.000

caixas;!22 mas ela seguramente inflacionava a estimativa, de modo a forçar a

diminuição do frete. Há indícios de queda adicional da produção a partir de 1650, embora não se saiba de quanto.!4º Ela se deveu sobretudo à estiagem que coincidiu com os derradeiros anos do Brasil holandês, prolongando-se pelo menos até 1654 e comprometendo a moagem da maioria dos engenhos, além de pro-

136 Co.Uo., 8.viii.1649, AHU, PA, Pco., iii; e Co.Uo., 30.iv.1650, AHU, 14. 137 “Pernambuco afligido” a D. João IV, 26.11.1650, AHU, PA,, Pco, iii.

138 Co.Uo., 31.1.1650, AHU, 14. Seria arriscado estimar a exportação de açúcar na base dos dados relativos ao tráfego marítimo entre Pernambuco e o Reino. À principal dificuldade reside na variação da carga média por embarcação. Frédéric Mauro sugeriu que essa carga foi de 360 caixas, mas o assunto exige análise a partir de universo estatístico mais amplo do que o utilizado por ele: Mauro, Le Portugal et [ Atlantique, p. 227.

133 Câmaras de Pernambuco e povos das capitanias do norte do Estado do Brasil a D. João IV, 10.51.1651, BA, 51-IX-6,

140 Co.UO., 9.x1.1650, AHU, 14.

135

OLINDA RESTAURADA

vocar escassez de farinha de mandioca e de outros víveres.!4! Dada sua gravi-

dade e duração, é lícito conjecturar um decréscimo da ordem de 25% a 50%, isto é, entre 1.500 e 3.000 caixas. Sendo então a produção brasileira de cerca de 30.000 caixas,!42 pode-se concluir que, durante a restauração, a produção pernambucana terá correspondido, na melhor das hipóteses, a 20% do total do Brasil, podendo ter declinado até 10% nos últimos anos do conflito.

Malgrado o silêncio da documentação no tocante aos preços do açúcar na capitania, !“ pode-se dar de barato que eles caíram a partir de 1647-1648, embora, ao passo que decrescia a fatia do produtor, aumentasse a do comer-

ciante reinol e estrangeiro. As armadas da Companhia de Comércio encontraram grandes estoques de safras anteriores, pelos quais recusavam-se a paear o preço corrente na terra.!“ Após o insucesso naval de setembro de 1650, esses estoques haviam triplicado, de vez que às caixas da safra de 1649-1650 que esperavam embarque, cerca de 4.000, vieram juntar-se as 6.000 ou 7.000 da safra de 1650-1651. À pressão baixista, a Câmara de Olinda procurou opor a fixação dos preços. Não era muito melhor, aliás, a situação na Bahia, onde, em começos de 1650, acumulava-se o açúcar de três ou quatro anos.!4º O declínio do preço no Brasil contrastava com o aumento em Amsterdã, cen-

| |

tro redistribuidor para o norte da Europa. Ali, entre 1645 e 1651, a libra de

açúcar branco subiu de 0,46 florim a 0,73.147

|

141 Co.Uo., 13.v.1652, AHU,

14; Fr. Mateus de São Francisco a D. João IV, 1653, e Fran-

cisco Barreto a D. João IV, 7.v111.1654, AHU, PA, Pco., iv; Ao.Go. aos Estados Gerais, 4.x11.1651 |

e 8.viii.1652, CJH, BPB; Cosmo de Castro Passos a Felipe Bandeira de Melo, s.d., mas de 1652, ARA, OWIC, 66. 142 Parecer de Salvador Correia de Sá, 1652-1653, Boxer, “As primeiras frotas”, p. 329.

143 Para os preços do açúcar brasileiro no período 1570-1670, Mauro, Le Portugal et PAtlantique, pp. 240-7.

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147 N. W. Posthumus, An enquiry into the history ofprices in Holland, 2 vols., Leiden, 1946-

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136

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E russos

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1652-1653, recuperando-se ligeiramente em 1654 com a capitulação do Recife. Neste ínterim,

Pao +

1965, i, p. 119. Cabe aduzir que em Amsterdã os preços voltaram a declinar suavemente no biênio

rcaçE:

146 Aras da câmara da Bahia, iii, p. 66.

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144 CoUo., 13.11.1653, AHU, 15. 145 Co.Uo., 9.xii.1650, AHU, 14.

À i

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO, 1645-1654

A Companhia de Comércio obtivera também o monopólio do pau-bra-

sil. Com a queda da produção de açúcar, a madeira, normalmente transportada como lastro, adquirira um peso maior no conjunto das exportações per-

nambucanas. Em 1647, o procurador de Pernambuco em Lisboa solicitou a

liberação do seu comércio na capitania, submetido ao sistema do contrato,

de modo a permitir-se aos moradores exportarem-no para o Reino.!*8 Por sua

vez, as Câmaras reivindicaram o arrendamento do contrato aos próprios ha-

bitantes, de maneira a aplicar-se a receita na amortização do empréstimo que,

já o vimos, se pretendia obter dos homens de negócio para o estabelecimento de uma companhia de navegação e comércio.!*? O Conselho Ultramarino não favorecia o regime de contrato mas julgava indispensável preservar o monopólio régio da venda em Portugal; e o Conselho de Estado era mesmo favorável a que El Rei fizesse vista grossa às exportações de particulares, permitindo aos colonos extrair, transportar e vender o pau-brasil que quisessem, sem incorrer nas penas da legislação.!>º A sugestão foi aparentemente aceita. Mas como o assento de 1648 criasse o temor de que os assentistas açambarcassem a madeira, consoante alertava Francisco Barreto, a Câmara de Olinda procurou impedi-los de comprar pau-brasil, sendo desautorizada por D. João IV, que permitiu que embarcassem todo o que pudessem fazer.!! Em 1649, vendiam-se 2.000 quintais anualmente e o preço melhorara substancialmente desde o começo da guerra. Enquanto às vésperas da insurreição os neerlan-

deses compravam o quintal a cruzado, quatro anos depois o preço triplicara, ocorrendo idêntica recuperação, embora menos pronunciada, no mercado de

capitais procedentes das Províncias Unidas financiavam o aparecimento de um formidável concorrente, Barbados, cujo ingresso no mercado internacional beneficiou-se de tecnologia trazida de Pernambuco. E Barbados foi apenas a ponta-de-lança da formidável expansão da cultura da cana nas Antilhas inglesas e francesas, que, na segunda metade do século XVII e ao longo do XVIII, prejudicaria implacavelmente as áreas açucareiras da América portuguesa.

148 Co.Uo., 18.vii. 1647, AHU, PA, Pco,, iii. 149 Representação das câmaras de Pernambuco, 20.11.1647, AHU, PA, Pco., iii. 50 Co.Uo., 8.vii.1647, AHU, PA, Pco., iii; Co.Eo., 15.vil. 1647, Os manuscritos da Casa de Cadaval, 1, p. 99.

51 Co.Uo., 21.viii.1649, AHU, 14; provisão de 29.iv.1650, AHU, 92.

137

OLINDA

RESTAURADA

Amsterdã.!»2 Não é possível determinar em que medida o privilégio concedido à Companhia de Comércio afetou a produção e o preço do gênero. A substituição da navegação livre pelas naus do assento e da Companhia de Comércio recolocou a questão do porto mais apto a concentrar as exportações pernambucanas, de vez que o Cabo tinha inconvenientes sensíveis. Sua barra, demasiado estreita, era um risco permanente, que o bloqueio holandês agravava; e o surgidouro achava-se, em vários pontos, raso ou mesmo seco. À alternativa consistia na utilização da baía de Tamandaré, mais ao sul, sugerindo-se também que se reconquistasse Cabedelo ou Itamaracá, que, aliás, permanecerão sob controle holandês até 1654.!22 Tamandaré era tido na conta do melhor porto da capitania; e um piloto experiente na costa do Brasil, Domingos Luís, recomendara outrora que se procedesse ali ao desembar-

que da tropa de Rojas y Borja, pois o ancoradouro comportaria entre 30 e 40 galeões,!5* o que não ocorria no Cabo. Mas havia quem se opusesse a Tamandaré, por estar distante das freguesias centrais quando já faltavam animais de tração. No Cabo, não se corria maior risco em atravessar o arrecife desde que se contasse com piloto prático e com rebocador.!>> A perda do último comboio do assento favoreceu Tamandaré, que passou a ser mais frequentado. Na barra, Fernandes Vieira erguera fortificação destinada a defendê-la; agora, o reduto foi reparado ou reedificado.!ºº Dali

partiu em finais de 1652 uma frota de seis navios e, em maio seguinte, metade de outro comboio de 18 navios.!”” Aumentou igualmente a fregiienta-

152 “Pernambuco afligido” a D. João IV, 26.111.1650, AHU,

PA, Pco., iv; “Processo de

Manuel de Morais”, RIHGB, 70 (1907), p. 36; Posthumus, An enquiry into the history of prices in Holland, à, p. 443.

153 Papel sobre a fortificação de Tamandaré, anexo a Co.Uo., 25.vi.1650, AHU, PA, Pco., iii; “Adição ao arbítrio que deu Manuel Fernandes Cruz”, 2.x.1652, Os manuscritos da Casa de Cadaval, 1, p. 115.

154 Papel de Rui Correia Lucas, 8.i1.1635, AHU, PA, Pco., ii; Livro primeiro, p. 54. 155 “Informação de Gaspar Dias Ferreira sobre o haver-se de fortificar o porto de Tamandaré”, 17.v.1650, AHU, PA, Pco., iii. 156 Lucideno, ii, pp. 341 e 344; DN, 15.ix.1650, CJH. 157 Ao.Go. aos XIX, 20.xii.1652 e 13.v1.1653, CJH, BPB.

138

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO,

1649-1654

ção da barra do Rio Formoso. À utilização de ambos não se prendia apenas a considerações de segurança mas também ao atendimento das freguesias meridionais. À insistência pelo envio de caravelas devia-se em parte a que eram mais aptas a tocarem seus portos. Infelizmente, a relação dos navios apresados em 1647-1648 recorre à generalização “portos de Pernambuco”, embora haja alusões esporádicas a embarcações procedentes do Rio Formoso e de Porto Calvo.!28 Outra consegiiência da substituição da navegação livre pelos comboios do assento e da Companhia de Comércio foi o aumento da presença de navios estrangeiros. Quanto aos ingleses, coubera ao conde de Odemira atraílos; de Pernambuco, Francisco Barreto também sugerira que viessem, sem intermediação da Coroa, de modo a não comprometê-la ainda mais perante as Províncias Unidas. Odemira persuadiu certo John Mills ou Miller ou ainda Muley,!? a despachar navios diretamente da Inglaterra, sem tocar no Reino, como normalmente exigido. Havendo um deles caído em poder do inimigo, o mercador e seus sócios desistiram da aventura.!º9 Doravante, os ingleses limitaram-se a afretar suas naus a comerciantes portugueses, de acordo

com a preferência do Conselho Ultramarino.!é! Segundo Boxer, “ao menos vinte navios ingleses estavam empregados no comércio brasileiro em 16481649”, em sua maioria na carreira da Bahia.!9? A partir de 1648, a documentação holandesa começou a registrar a presença de navios estrangeiros no litoral de Pernambuco. Em abril, avistava-se um comboio de cinco caravelas e três naus, das quais duas inglesas e uma francesa, vindas da Bahia; em agosto, na altura da Paraíba, um grande navio inglês de 36 peças de artilharia, viajando em conserva com outras três embar-

8 “Relação dos navios que se perderam”, anexo a Co.Uo., 2.v.1651, AHU, PA, Ba, v.

159 Provavelmente o John Muley, negociante católico, em cuja quinta lisboeta hospedou-se naquela altura seu compatriota, o poeta Richard Flecknoe: Rose Macaulay, They went to Portugal, Londres, 1946, pp. 81-2. 160 Parecer de Pedro Fernandes Monteiro, s.d., BA, 50-V-35; Ao.Go. aos XIX, 27.x.1648, CJH, BPB.

16! Co.Uo., 9.vii. 1648, AHU, 14. 162 Boxer, “English shipping”, p. 204.

139

DT

OLINDA RESTAURADA

cações, todas procedentes também da Bahia, onde, acuadas por corsário zelan-

dês, se haviam refugiado algum tempo junto ao morro de São Paulo, o que levara até mesmo a armada de De With a desistir de atacá-las.!ºº Em outubro, outra nau inglesa velejava a meia milha da torre de Garcia d' Ávila; e De With apresava naquelas paragens outro navio inglês, que partira de Londres, com carga de víveres, munições e equipamento naval para a armada de Vila Pouca de Aguiar, refugiada no Recôncavo, !ºé provavelmente o barco perten-

cente a John Muley. À crise nas relações anglo-portuguesas em 1649 reduziu a utilização de naus inglesas mas a prática nunca cessou por completo, a par do afretamento

mais frequente de embarcações francesas, hanseáticas, genovesas, suecas e até holandesas.!º Entre as embarcações a serem enviadas a Pernambuco pela

Companhia de Comércio em 1652, estavam previstos três navios, dos quais

zarpou apenas o Merchant of Venice”, com 4.000 arrobas de bacalhau, e que foi capturado por corsários zelandeses à saída da baía de Tamandaré, transportando açúcar e pau-brasil. T'razido ao Recife, foi confiscado pelo governo holandês. O “Merchant” zarpara de Plymouth para Lisboa com uma carga de bacalhau da Terra Nova e cinco toneladas de ferro, pertencente ao proprie-

tário do navio (1/4), a Cristopher Warren, negociante em Portugal (1/4), e

diversos mercadores ingleses (2/4). Em Lisboa, o navio fora afretado pela Coroa, que adquirira o bacalhau para remeter a Pernambuco. Em Tamandaré, o Merchant” permanecera por quatro meses a cargo dos procuradores da Companhia de Comércio que, para a viagem de retorno, carregaram-no com 640 caixas de açúcar, 100 das quais da empresa e as restantes, de negociantes particulares. !º6 163 Ao.Go. aos XIX, 13.v e 9.ix.1648, CJH, BPN; Hoboken, Witte de With in Brazilie, pp. 98-100. 164 Ao.Go. aos XIX, 27.x e 9,x11.1648, CJH, BPB; Witte de With, “Kort register”, RD, CJH;

Ao.Go. aos Estados Gerais, 9.xii.1648, IHGB, DH, 4; Hoboken, Wise de With in Brazilie, pp. 129-31.

165 Boxer, “English shipping”, p. 229.

166 Resumo da resposta da Companhia Geral, anexo a Co.Uo., 13.v.1652, AHU, Pco., IV; provisão de 10.1v.1652, AHU, 92; Ao.Go. aos XIX, 20.x11.1652 e 21.v.1653, CHJ, BPB; depoimentos de diversos, 7, 8, e 19.x1.1654, ARA, OWIC, 67.

140

PRODUÇÃO, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO, 1645-1694

Não estando ainda superada a crise anglo-portuguesa, até mesmo navios neerlandeses foram empregados para suprir os insurretos, consoante, aliás, a

tradição holandesa de comerciar com o inimigo.!9” As autoridades da metrópole, o governo do Recife manifestou sua indignação com o fato de que fluiten holandesas achavam-se entre as embarcações que haviam zarpado do Cabo e

de Tamandaré em 1653, as mesmas que haviam velejado do Tejo no ano anterior, de conserva com a caravela em que o padre Antônio Vieira ia melancolicamente curtir seu ostracismo político no Maranhão.!º8 Outra, catolicamente batizada de “São Francisco”, pertencente a comerciante de Amsterdã

e afretada por negociante holandês estabelecido em Lisboa, chegara mesmo a

ser apresada pelos compatriotas.!9? Tais fatos também geravam protestos no Reino em nome da segurança do Brasil e dos prejuízos para a marinha mercante portuguesa, que não podia competir com fretes que eram a metade dos que ela cobrava.!?º Frete barato e juro módico constituíram, como se sabe, os pilares da supremacia comercial das Províncias Unidas no século XVII.

167 Boxer, The Dutch in Brazil, pp. 236-7. 168 Ao.Go.

aos XIX,

13.vi.1653, CJH, BPB; depoimento de Bento Machado

Ferrão,

9.v1.1652, ARA, OWIC, 67; Cartas do padre António Vieira, à, p. 317.

169 Ao.Go. aos XIX, 20.xii.1652, CJH, BPB; depoimentos de diversos, 21, 23.xi e 20.xii.1652, ARA, OWIC, 67. 170 Parecer anônimo, 9.x.1652, Os manuscritos da Casa de Cadaval, 1, pp. 117-8,

141

Á,

O deve e o haver

À descrição, mesmo superficial ou aproximativa, das finanças luso-brasileiras durante as guerras holandesas requer algumas reflexões preliminares que indiquem a precariedade e limitações de uma investigação de tal natureza. À receita e a despesa vivem do número, mas este, na Europa ocidental do século XVII, sequer monopolizava a esfera que, com o capitalismo, tornavase privilegiadamente sua, a atividade econômica. Em Portugal, o capitalismo monárquico, graças ao qual a Coroa chamou a si os setores comerciais mais

rentáveis, que eram os ultramarinos, não conduziu automaticamente à racio-

nalização das finanças públicas nem alterou abruptamente o funcionamento do aparelho fiscal, que por algum tempo se acomodou às técnicas rotineiras do passado. Um aspecto ilustrativo destas inércias é o da substituição da notação numérica de origem romano-peninsular pelos algarismos indo-árabes, substituição que, segundo Vitorino Magalhães-Godinho, “só vagarosamente

avança ao longo de Quinhentos”. Ainda em 1633, a Casa dos Contos em Lisboa ordenava que a contabilidade do Estado da Índia lhe fosse encaminhada

em numeração luso-romana e por extenso, de acordo com as regras em vigor

na instituição. Só mais adiantado o século é que ela adotará por completo a notação indo-árabe.!

A pobreza da documentação de natureza quantitativa com que se defronta a historiografia de Seiscentos deriva dessa modesta penetração do número.

Não há séries sobre produção, preços, população; e o Estado ainda não orientava sua ação mediante previsões sistemáticas e periódicas da receita e da despesa. As decisões relativas à guerra, sempre as mais onerosas, não eram mui| Vitorino Magalhães-Godinho, “Finanças públicas e estrutura do Estado”, Ensazos, ii, p.

47; e Os descobrimentos e a economia mundial, à, pp. 25-7.

143

OLINDA

RESTAURADA

tas vezes tomadas à luz das disponibilidades orçamentárias; estas é que tinham de se lhes adequar. Uma e outra vez elaboravam-se listas dos rendimentos e dos gastos da Coroa, mas elas ainda se encontravam longe do que constitui

modernamente o orçamento público. No caso das guerras holandesas, basta

dizer que para apenas um ano, o de 1649, dispõe-se de uma relação abrangente dos impostos locais com que os luso-brasileiros custearam a luta. Os desconchavos bélicos complicavam a atuação da burocracia régia. De

1630 a 1637 e de 1645 a 1654, os funcionários da Fazenda Real, como tam-

bém os da Justiça, trabalhavam sem regulamentos, de vez que, com a perda de Olinda, estes haviam caído em poder do inimigo.? Em 1657, visando à clareza das contas municipais, ordenava-se à Câmara da vila que seguisse os métodos contábeis da de Salvador, mas ainda em fins do século XVII elas achavam-se na mais completa, embora não inteiramente inocente, desordem.) As finanças donatariais tampouco haviam primado pelo arranjo. Quando, expulsos os holandeses, Pernambuco transformou-se em capitania régia e a Coroa passou a cobrar os tributos outrora pagos ao donatário, a Provedoria da Fazenda Real teve de se valer não de documentos fiáveis mas pura e simplesmente do que lhe declarou o agente donatarial. Este, aliás, confessaria haver arrecadado em quantia inferior os impostos dos engenhos de Porto Calvo, induzido por informações errôneas que lhe prestara o encarregado da cobrança na freguesia. A monetarização escassa da economia colonial, já posta de relevo pelos historiadores, também impede formar uma idéia razoável da carga fiscal des-

tinada à guerra e da sua distribuição entre as camadas sociais. Tal objetivo é dificilmente realizável quando a expressão monetária não capta o conjunto da atividade produtiva e a receita, a que se atém o presente capítulo, não abrange o total dos recursos utilizados. Por fim, a guerra produz uma ampla franja informal, constituída por fintas e donativos: contribuições individuais, requisitadas ou não, como mantimentos fornecidos por senhores de engenho, la-

2? Co.Uo., 6.iv.1655, AHU, PA, Pco., iv.

? Documentos históricos da BNRJ, v, p. 265; Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos mazombos. Nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715, 2º ed., São Paulo, 2003, pp. 78 ss. à Fontes, 1, pp. 234-43.

144

O DEVE E O HAVER

vradores e ordens religiosas, despesas incorridas por oficiais ou por proprietários rurais que recrutaram tropa, pagando-a do seu bolso; adiantamentos, jamais reembolsados, em dinheiro e víveres; doações ou empréstimos de escravos pata O exército e para a construção e reparação de fortalezas e caminhos; cessões de meios de transporte para o trem de guerra e para outros fins; suprimentos aos campanhistas luso-brasileiros.? Mesmo entre os recursos canalizados pela Coroa, existia uma área não-contabilizada, tais as comendas das

ordens militares e outros prêmios por serviços militares: somente em hábitos da Ordem de Cristo, concedidos com parcimônia no Brasil para não afetar o rendimento do dízimo, El Rei atendeu 48 em 105 solicitações.

À RECEITA FISCAL ANTE BELLUM

No exame das finanças da guerra holandesa, cumpre distinguir os recur-

sos arrecadados localmente, dos recursos arrecadados no Reino mediante a im-

portação de produtos da terra. Ao tempo do domínio holandês (1637), Gaspar Dias Ferreira, comerciante português que vívia em Pernambuco desde os fins 5 Também na Europa coeva, os recursos despendidos do custo efetivo do exército”, estimando-se, por exemplo, cinco vezes mais do que os 2.000.000 de táleres fornecidos rante sua intervenção na Alemanha, levantou “contribuições

pelo Estado eram apenas “uma fração que o exército de Wallenstein custou por Viena; e que o exército sueco, dudez a doze vezes maiores do que o que

provinha do tesouro de Estocolmo”: Geoffrey Parker, “O soldado”, Rosario Villari (ed.), O homem

barroco, Lisboa, 1995, pp. 46-7. 9 Cleonir Xavier de Albuquerque, 4 remuneração de serviços da guerra holandesa, Recife, 1968, pp. 58-9. Quanto à moeda e à evolução dos preços no período em tela, ateve-se o autor ao valor nominal, sem recorrer à indexação que constituiria uma sofisticação supérflua. A precariedade dos dados quantitativos é incompatível com a precisão técnica, além do que os anos de União ibérica foram de fixidez do padrão monetário em Portugal. Relativamente ao comportamento dos preços, os estudos de Vitorino Magalhães-Godinho permitem entrever que as guerras holandesas no Brasil coincidiram com uma fase de relativa estabilidade, ao menos no tocante aos produtos fundamentais da economia do Antigo Regime, como o trigo, o carvão e o azeite: Vitorino Magalhães-

Godinho, Introdução à história econômica, Lisboa, 1971, pp. 172-3. Para os preços no Brasil, exame do assunto assinalou “uma inflação permanente, embora relativamente lenta”, cuja média anual situou-se em torno de 1,6%: Mircea Buescu, 300 anos de inflação, Rio, 1973, pp. 48 e 53.

145

OLINDA RESTAURADA

do segundo decênio do século XVII e que graças ao seu tino comercial tor-

nara-se a eminência parda do conde de Nassau, calculava que a receita fiscal

das quatro capitanias do Nordeste na “sua antiga florescência”, isto é, nos me-

lhores anos do período ante bellum, teria sido da ordem de 991.500 cruza-

dos anuais.” Deste montante, 827.500 cruzados correspondiam a direitos

percebidos em Portugal (tributos alfandegários, dos contratos do pau-brasil e da entrada de escravos); e 164.000 cruzados, a direitos percebidos na terra pela Coroa, pelos donatários de Pernambuco e de Itamaracá e pelas Câmaras municipais.” Dos 164.000 arrecadados localmente, 90.000 cruzados procediam do dízimo do açúcar (que englobava a redízima, vale dizer, o dízimo do dízimo, ou 1%, que cabia ao donatário, os dízimos e a redízima sendo arrema-

tados conjuntamente, a Coroa transferindo ao donatário a sua parcela), 24.000 cruzados da pensão dos engenhos, 20.000 cruzados dos passos ou armazéns de açúcar sitos à beira dos rios e do mar, a vintena do peixe e a passagem dos rios, 20.000 cruzados da pesagem do açúcar, da “imposição dos vinhos”, do corte da carne verde e transporte do gado, e finalmente 10.000 cruzados do dízimo das miunças (farinha, criação, legumes e outros víveres da terra). Ainda em 1629, porém, quando já não se podia falar mais de “florescência”, os dízimos do açúcar perfaziam 80.000 cruzados, dos quais os de Pernambuco, 60.000, os da Paraíba, 12.000, e os de Itamaracá, 8.000.1º

/ Levando em conta que o autor anônimo da “Descripción de la província del Brasil” (1629)

estimava o valor do comércio do Nordeste em 3.400.000 cruzados anuais, a carga fiscal que o onerava localmente e no Reino equivaleria a 29%: “Descripción de la província del Brasil”, 1629, BNM, 3015, fls. 1-7, transcrito por Frédéric Mauro, Le Brésil au XVIême sitcle, Coimbra, 1963, pp. 1/1-82. 8 Os cálculos de Gaspar Dias Ferreira para governo das autoridades holandesas eram feitos em libras de grosso equivalentes a 6 florins. As estimativas referem-se ao Nordeste como um todo, não estando discriminadas segundo as capitanias. Durante o período holandês no Brasil, o cruzaIdi

do deteriorou-se frente ao florim em cerca de 1/3, passando de 3 florins por cruzado para 2, mas

ao longo deste livro supôs-se sempre uma taxa cambial de 3 florins. ? Fontes, 1, pp. 251-3.

(9 “Descripción de la província del Brasil”, 1629, BNM, 3015; e relatório de Servaes Carpentier, 1636 (2º parte), CJH, BPB. Os dados contidos na “Descripción” correspondem aos contra-

tos de arrendamento da cobrança de impostos concluídos em julho daquele ano. O ano fiscal ado-

146

O DEVE E O HAVER

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Desde o século XVI, a Coroa adotara uma política de incentivos fiscais para a produção açucareira, mediante a qual as fábricas recém-instaladas beneficiavam-se da chamada “liberdade dos engenhos”, a isenção de impostos por dez anos; e ao cabo destes, por outros dez, da “meia liberdade”, que lhes permitia pagarem apenas a metade dos direitos alfandegários.!! Ao encerrarse o século XVI, o uso e abuso do privilégio daria um prejuízo anual da ordem de 200.000 cruzados.!2 El Rei tentou limitá-lo em 1614, excluindo os chamados “engenhos de três paus”, isto é, os que dispunham de moendas de três cilindros verticais, “porque ora sou informado de que, de alguns meses a

esta parte, os moradores do dito Estado [do Brasil] inventaram novo modo

de moer açúcares [...) de que todos os moradores vão usando”. A isenção fora

originalmente consentida para compensar o investimento fabril; do momento em que ele já não era tão oneroso, não havia por que continuar o favor.! A ordem, aliás, não foi executada. O principal tributo municipal era a “imposição dos vinhos”; e a pensão dos engenhos, a mais importante fonte de renda donatarial. Ela era fixada, quando da fundação da fábrica, por acordo entre o senhor de engenho e o lugar-tenente do donatário, sendo paga sobre todas as variedades de açúcar antes de ser dizimado. Geralmente de 3%, ela podia cair para 1,5% no caso dos molinetes ou subir a 3,5% e 4% no dos engenhos reais. Para outros, era cobrada segundo um montante que podia variar de 8 até 90 arrobas. Ainda em outros, a pensão era satisfeita em dinheiro: de 120.000 réis a 10.000 réis. O tributo implicava muitas vezes a obrigação de entregar o produto encaixatado nestes contratos começava em agosto, de modo a coincidir com o início da moagem dos engenhos, terminando a 31 de julho do ano seguinte,

1 Diálogos das grandezas do Brasil, p. 89. !2 Domingos de Abreu e Brito, Um inquérito à vida administrativa e econômica de Angola e do Brasil, Coimbra, 1931, p. 66.

'3 Felipe III a Gaspar de Souza, 24.v.1614 e 7.viii.1614, “Cartas d'El Rei escritas aos senhores Álvaro de Souza e Gaspar de Souza”, Ministério das Relações Exteriores (Rio). Há edição recente da Comissão Nacional para os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 2001. Felipe III determinou também que o rendeiro do engenho recém-construído não se pudesse valer da franquia; e que, para evitar as fraudes, o governador da capitania aprovasse as procurações dos agentes dos proprietários absenteistas.

147

OLINDA

RESTAURADA

do e até mesmo posto no trapiche próximo ou no porto do Recife. O que não mudava era a exigência do pagamento em açúcar branco.!é Estas diferenças correspondiam a duas categorias de engenho: os levantados em sesmarias, e os construídos naquelas terras a que o donatário tinha direito graças à concessão régia que lhe permitia reservar para si 600 braças de cada légua dada em sesmaria. Em vez de deixar tais parcelas dispersas ou de explotá-las diretamente, o donatário tratava de reuni-las e arrendá-las, sob a condição de que

a renda lhe fosse paga em quantidades certas, independentemente do volu-

me da safra.l? Outras variações na cobrança da pensão diziam respeito a conjunturas diversas da produção e comércio do açúcar. Algumas datariam dos dias de Duarte Coelho, outras teriam origem na fase de expansão para o sul dos montes Guararapes, nas conveniências donataríais, no maior ou menor poder de barganha do senhor de engenho, na necessidade de incentivar o povoamento de áreas remotas e de atender situações sub-regionais, circunstâncias que todas conspiravam contra a adoção de critério único ou de uma só taxa. Aos engenhos de Sirinhaém permitia-se

pagarem apenas duas arrobas de açúcar branco por mil, arrecadadas após a cobrança do dízimo, vale dizer, sobre 90% da produção. Tratava-se de compensar os proprietários de freguesia distante que deviam arcar com ônus maiores de transporte; e nas freguesias interiores, com as despesas elevadas da con-

dução por terra, como no engenho Mussurepe, da Ordem beneditina, que alegava gastar nada menos de 3 cruzados pelo carreto.!6 No período ante bellum, a receita dos impostos reais produzia exceden-

te confortável em Pernambuco, como indicam documentos coevos, inclusi-

ve o Livro que dá razão do Estado do Brasil, do qual se infere que, enquanto

Pernambuco, Paraíba, Itamaracá, Ilhéus e Sergipe produziam superavits, Porto lá Fontes, 1, pp. 236-42.

!5 Simão Álvares de la Penha Deusdará a Afonso VI, 28.11.1663, AHU, PA, Pco., v. Da concessão régia para que os donatários de Pernambuco pudessem reservar para si 600 braças de terra em cada légua de sesmaria concedida, originara-se o costume local de atribuir-se à légua 2.400 braças e não 3.000, como no Reino. A designação de “reguengos” que se lhes dava na capitania era, aliás, equívoca, de vez que a verdadeira acepção do termo em Portugal era a de terras pertencentes à Coroa e sobre as quais ela exercia domínio direto e não apenas eminente.

16 Livro do tombo do mosteiro de São Bento de Olinda, Recife, 1948, pp. 350-1.

148

O DEVE E O HAVER

Seguro, Bahia e Rio Grande do Norte eram deficitários.!” Os “soldados pagos”, isto é, a guarnição, não passavam de 580 homens, que recebiam seus

soldos da mesma forma pela qual os contratadores da cobrança de impostos satisfaziam o erário régio, metade em dinheiro e metade em tecidos.!º Mas

os gastos com a defesa da terra já cresciam constantemente, sobretudo devido à ofensiva naval holandesa no Atlântico, donde o empenho da Coroa em que a “imposição dos vinhos”, cobrada pela Câmara de Olinda para o custeio de obras públicas indispensáveis, fosse aplicada à manutenção e reparo das fortificações do Recife. A decisão criou grande celeuma mas a Câmara acabou cedendo a metade da receita do tributo.!? Em 1629, de regresso a Pernambuco como superintendente da guerra, Matias de Albuquerque trouxera instruções no sentido de obter concessão ainda mais larga para emprego nas obras de defesa, que se deveriam beneficiar também da contribuição de 6 vinténs por caixa de açúcar. FINANÇAS DA RESISTÊNCIA

Ao iniciar-se a guerra holandesa, a receita fiscal arrecadada localmente era, como vimos, de 164.000 cruzados, mas ela reduziu-se significativamente em decorrência da perda de Olinda-Recife, que desorganizou os serviços alfandegários e estimulou o contrabando. À partir de 1632, os ataques inimigos ao interior desmantelaram o sistema produtivo, afetando drasticamente o dízimo do açúcar, coletado ix loco nos engenhos pelo sistema de arrendamento a particulares, que já não puderam atuar regularmente. Em 1635, já 7 Diogo de Campos Moreno, Livro que dá razão do Estado do Brasil (ed. Helio Viana), Realle; 1955; Db: 217:

IB Livro primeiro, p. 67; Geoffrey Parker, The army of Flanders and the Spanish road, 15671659, Cambridge, 1972, p. 161. 19 Francis A. Dutra, “Matias de Albuquerque, capitão-mor de Pernambuco e governadorgeral do Brasil”, RIAP, 48 (1976), pp. 61-2. 20 “Instrução que se deu a Matias de Albuquerque”, 25.v.1629, e Felipe IV a Antônio de Albuquerque, 26..1629, AGS, SP, 1522. O general deveria obter igualmente que a Câmara da Paraíba empregasse a receita da taxa de 4 vinténs por caixa aos gastos da capitania.

149

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não havia Fazenda Real e a despesa militar passara a depender exclusivamente de donativos obtidos pelos irmãos Albuquerque e de letras de câmbio pas-

sadas por ele sobre a Espanha.?! Relativamente à alimentação do exército de resistência, em 1632 o dispêndio era da ordem de 73.000 cruzados anuais, consoante Matias de Albuquerque.?* Que ele se reportava apenas ao suprimento de víveres, infere-se de

outra informação sua, segundo a qual havia mister diariamente de 80.000 réis

para carne e farinha,* o que perfaz 73.000 cruzados. Quanto à soldada, Luís

Álvares Barriga assinalava ser necessário enviar anualmente 88.000 cruzados

a Pernambuco.?* Da soma de sustento e soldada, resulta o total avançado por Bagnuolo, de 224.000 cruzados para ambas as rubricas.?? Assim, no período 1632-1636, as despesas locais, em princípio, deveriam girar em torno de 161.000 cruzados anuais, dos quais 73.000 cruzados à conta de alimentação

e 88.000 cruzados à conta de soldo. O sustento corresponderia assim a 33% do total dos dispêndios, substancialmente menos do que na Europa, onde o desembolso com víveres podia alcançar 2/3 do montante dos soldos.?é Quanto

à diferença de 63.000 cruzados entre as cifras de 161.000 cruzados e de

224.000 cruzados da estimativa de Bagnuolo, cabe atribuí-la a gastos efetuados

no Reino com o fornecimento de armas e vestuário, segundo o modelo da mi-

lícia espanhola.2? Via de regra os gastos locais com o exército de resistência resumiram-se ao sustento da gente de guerra. No Brasil como na Europa, o pagamento de 21 Memórias diárias, pp. 196-7.

2 Co.Eo., 11.xii.1632, “Governo. Índia e Ultramar”, p- 213. 29 Co Eô: 16-vi1,1652, “Goveino: Índia e Ultramar”, p. 224. O texto diz 80 réis mas trata-se evidentemente de erro de cópia ou de impressão.

24 “Propuesta de las adverténcias”, p. 292. 25 Isto é, o equivalente a 204.000 ducados, ao câmbio de 1,1 cruzados o ducado: Bagnuolo a Felipe IV, 8.1.1633, AGS, GA, 1091.

26 Parker, “O soldado”, p. 46. * O qual previa que anualmente se daria a cada soldado uma roupa nova (duas camisas, gibão, roupeta, calção, chapéu, meia) e um par de sapatos: ordem de 4.111.1639, CCT, i; Parker,

The army of Flanders, p. 165.

150

O DEVE E O HAVER

todo o soldo em numerário nunca pôde vigorar, embora em 1612 Felipe II houvesse ordenado que as guarnições fossem pagas “em dinheiro e não em outra coisa alguma”. Entre nós, a medida era ainda mais inviável devido à escassa circulação monetária, como o governador-geral Gaspar de Souza tratou de explicar para o Reino; 28 «e nem mesmo os holandeses se darão ao luxo de adotá-la. Durante a resistência, tem-se notícia de apenas duas remessas de numerário, em 1635 e 1636, no total de 34.000 cruzados, nenhuma das quais destinou-se à soldadesca. Antes da chegada de Rojas y Borja, enviaram-se de Lisboa 10.000 cruzados para emergências, recursos que Matias de Albuquerque, na queixa do general espanhol, utilizara para outros fins.?? Quanto aos 24.000 cruzados remetidos pelo provedor-mor da Bahia, destinavam-se apenas a pagar os soldos atrasados de Bagnuolo e dos oficiais maiores, pois os pobres soldados, que são os que pelejam e que trabalham”, não haveriam de embolsar um real.” Em 1632, eles não recebiam havia dois anos e meio, es-

tando “completamente desalentados, nus [e] descalços”.?! Ainda em 1634,

não se efetuara um único pagamento em dinheiro ou tecidos.?*

Em 1637, ao retirar-se o exército para a margem direita do São Francisco, Bagnuolo afirmava enfaticamente: “desde que aqui estou, há seis anos, nun-

ca se lhes deu [aos soldados] um real”.2? Dinheiro de contado, eles só haviam

visto o meio soldo que, em 1634, Matias de Albuquerque pagou, do próprio bolso, às guarnições do Arraial e do Cabo.?í Já na Bahia, receberam da Cámara de Salvador uma gratificação pelos serviços prestados à cidade quando do sítio posto por Nassau, a qual não deveria ser descontada “do que El Rei 28 Alvará de 29.v111.1613, “Cartas d'El Rei escritas aos senhores Álvaro de Souza € Gaspar

de Souza”, cit. 29 Rojas y Borja a Felipe IV, 31.xii.1635, AGS, GA, 1173.

30 Pedro Cadena de Vilhasante a Felipe IV, 15.11.1636, AHU, PA, Ba., ii. À remessa teria sido de 25.000 cruzados segundo outra fonte, BNRJ, iv, 12-2-3. 31 “Recueil van de brieven geopent den 20 Januari 1633”, ARA, OWIC, 5771.

32 Andrés Marín a D. Juan de Zufre, 18.x.1633, AGS, GA, 1117; D. Fernando Henriques de Toledo a Felipe IV, 1.x1.1634, AGS, GA, 1118.

*3 Bagnuolo a Felipe IV, 7.11.1637, AGS, GA, 1201.

3 Memórias diárias, p. 157.

151

OLINDA RESTAURADA

lhes devia”. Duarte de Albuquerque Coelho louvou o “singularíssimo exem-

plo, comparado com tantos que muitos soldados têm dado na Europa por faltar-lhes a paga de alguns meses, quando a de tantos anos não obrigou estes

a desviar-se da honra e de seus deveres”.?? No exército de Flandres, por exem-

plo, se haviam verificado de 1572 a 1607 cerca de 45 motins, muitos dos quais

duraram mais de ano. Na Europa de Seiscentos, era comum as tropas ficarem sem pagamento por longos períodos, prática que se justificava com o argumento de que, pagos pontualmente, os homens desertariam em busca de

atividade amena ou rotineira.?º

À remessa de gêneros pela Coroa podia destinar-se seja ao pagamento dos soldados seja ao custeio de outras despesas. Na armada de Oquendo, transportaram-se “algumas fazendas para do produto delas vestir os soldados e acudir às mais urgentes necessidades”.” Em fins de 1631, enviaram-se 20.000 cruzados em roupas, por conta do estanco do pau-brasil. No ano seguinte, Felipe IV ordenou a remessa, em caravelas, de “provimento de ves-

tidos”, Mas o método tinha inconvenientes: em consequência da guerra,

muitas vezes os artigos não encontravam compradores, donde a insistência

dos chefes por dinheiro vivo. A partida de sal trazida pela armada de Lope

de Hoces teve de seguir viagem para Salvador, de modo a obter melhor pre-

ço. O soldado sempre saía prejudicado. Não havendo comprador, dava-se por feliz quando conseguia vendê-los pela metade do preço; e se era pago em açúcar, o dano era maior, pois tinha de mandá-lo para o Reino, pagando frete e impostos alfandegários, a menos que obtivesse licença especial.“º Somente 95 Memórias diárias, p. 285. %6 Parker, The army of Flanders, pp. 185, 187-8 e 190. 7 Memórias diárias, p. 60; conde de Castro a Francisco Soares de Abreu, 18.1v.1631, BA, 49-X-10.

º8 BA, 51-X-1; Co.Eo., 20.v.1632, BA, 51-X-2.

“2 Memorial de Rojas y Borja, 1634, AGS, GA, 1111; Rojas y Borja a Felipe IV, 31.x11.1635,

AGS, GA, 1173.

10 D. Fernando Henriques de Toledo a Felipe IV, 1.xi.1634, AGS, GA, 1118; Bagnuolo

ao conde de Castro, 3.iv.1633, BA, 49-X-10: requerimento do capitão Paulo Botelho, 1635, AHU, PA, Pco., il.

132

O DEVE E O HAVER

em 1638, El Rei interveio em seu favor, dispondo que os tecidos entregues em pagamento deveriam ser apenas os que servissem para seu uso, sendo os demais vendidos pelas autoridades fazendárias, que lhes entregariam o valor em numerário. Só em última hipótese, deveriam ser dados tecidos impróprios, e desde que os homens fossem devidamente compensados.*! Devido à insuficiência da receita local, já em 1630 estabelecia-se contribuição especial destinada ao sustento do Arraial. Em Madri, julgava-se que a taxação extraordinária devia recair sobre o açúcar mas o vice-rei conde de Basto opôs-se à idéia, lembrando que outrora na Bahia os holandeses teriam obtido apoios com a promessa de moderar a carga fiscal sobre o gênero.*3 A chegada da tropa trazida por Bagnuolo afastou a objeção: tratava-se agora de custear um exército profissional, não de sustentar companhias de milícias, servindo gratuitamente por turnos nas estâncias que sitiavam o Recife. Em 1631, El Rei criou o imposto de um cruzado por caixa de açúcar ou vintém por arroba em todo o Brasil,“í despertando a reação do setor açucareiro, com quem Matias de Albuquerque desejava contemporizar. Ordem que não teve efeito, pois se o aumento da tributação do açúcar era o único meio de

enfrentar o déficit, devido ao peso do produto na economia regional, “isto havia de ser pensionarem-se [i.e., taxarem-se] os mimosos da fortuna”, ou seja, a açucarocracia. Cumpria, pois, buscar outros meios, já que “é descrédito da mesinha aplicá-la a corpo morto, como diz a razão natural”, embora se lamen-

tasse a perda da “soma de consideração” que o tributo teria proporcionado,* algo em torno de 15.000 a 20.000 cruzados. No lugar do imposto impolítico, surgiu uma verdadeira colcha de retalhos, impondo-se “novos subsídios e alguns por tão extraordinários caminhos que apenas se lhes sabe dar o nome”, “tributos sobre toda qualidade de mercadoria, uns a título de contratos e estanques, outros por razão do lugar don41 “Regimento do que se há-de usar e guardar na despesa da Fazenda Real no Estado do Brasil com a gente de guerra daquele Estado”, 13.v111.1638, CCT, i. 42 “Livro segundo”, p. 139,

43 Diogo de Castro a Felipe IV, 12.vi.1630, BNRJ, 1, 1, 22, 44, fl. 138. 44 Carta régia de 19.x1.1631, BA, 51-X-1.

15 Livro primeiro, p. 429.

153

OLINDA RESTAURADA

de se vende; qual para a liberdade para não ir à guerra, qual para esmola ou novo serviço”.“º Em Itamaracá, o capitão-mor Salvador Pinheiro levantou uma “grossa contribuição”, que era, aliás, acusado de haver embolsado.*” Em Pernambuco, em fins de 1631 ou começos de 1632, criou-se um imposto comutando por dinheiro a obrigação de serviço militar, a ser pago consoante

o nível de renda do contribuinte ou, segundo versão menos fiável, de 100 cru-

zados por pessoa.*º A Câmara de Olinda aumentou a “imposição dos vinhos”; e Matias de Albuquerque impôs a contribuição de uma caixa de açúcar por comerciante e a taxa pessoal de 30 cruzados anuais.é? Na Paraíba, tributaram-

se os engenhos e as lavouras de cana, as lojas, a carne, a farinha de trigo e de mandioca, o vinho, o azeite, o pescado, as frutas e os legumes, bem como a reexportação de açúcar de Itamaracá e de Pernambuco.?? A tributação adicional não cobriu o déficit crescente, permitindo, na melhor das hipóteses, manter estável a carga fiscal no âmbito de um sistema

produtivo em contração. Devido à sua regressividade, ela antagonizou a população não vinculada à produção de açúcar. O descontentamento agravouse, impedindo-se a cobrança da taxa de isenção do serviço militar: em 1633,

ocorreram distúrbios em três ou quatro freguesias. Em Una, o pelotão incumbido da coleta foi atacado por homens armados e mascarados que declaravam agir em nome do distrito. Matias de Albuquerque não teve sequer a gratidão

do setor açucareiro. À correspondência particular entoa a mesma cantilena so-

bre “os grandes tributos” que “este ladrão de Albuquerque” fazia pagar todos os meses e a que não escapariam sequer as crianças.?! A guerra e, em espe-

46 Tbid., pp. 428-9 e 432.

47 “Sobre a capitania de Itamaracá”, BNL, FG, 7627.

48 Informação de Antônio de Araújo de Mogueimes, 19.11.1633, BNRJ, 1, 1, 2, 35, fls. 199v.-200; Sebastião da Rocha Pita, História da América portuguesa, Lisboa, 1730, pp. 257-8.

“9 Livro primeiro, p. 429; Inerlyck verhael, iii, p. 103; Antônio Gonçalves Requião a Gonçalo Gonçalves, 3.v111.1632, CJH, BPB. 30 “Cópia do tributo que se pôs na capitania da Paraíba”, 6.x11.1632, BNRJ, I, 1, 2, 35, fls. 197-197v.

*1 Antônio Gonçalves Requião a Gonçalo Gonçalves, 3.viii.1632, e Manuel Rabelo Pereira

a João Ribeiro da Silva, 10.ix.1632, CJH, BPB; “Enige naardere consideratie naar kenisse en ge-

154

O DEVE E O HAVER

cial, a tropa profissional tornaram-se impopulares. Os irmãos Albuquerque eram odiados “como a peste” e acusados de serem os principais interessados no prosseguimento do conflito. Contra eles e contra Bagnuolo, dirigiam-se as pragas mais contundentes e os sarcasmos mais rudes, como o de que “Matias

escrevia, Duarte dormia e Bagnuolo bebia o dia inteiro”. Os soldados caste-

lhanos e napolitanos só falavam em regressar à Europa.”

Para a gente da terra, a fiscalidade escorchante decorria do excesso de

oficiais, especialmente de capitães. Malgrado a ordem régia para que não se levantassem na terra companhias de menos de 100 soldados, as havia de 15 ou 20 homens, calculando-se que se elas fossem reduzidas em número mas dotadas de efetivos plenos, poupar-se-ia 1/3 na rubrica dos soldos,?? algo em torno de 30.000 cruzados. Mas nada se podia fazer devido à oposição dos oficiais e ao temor de motim. Ainda em 1637, o contador da artilharia de Pernambuco reclamava de que do Reino chegavam continuamente capitães munidos de patentes.?* Mesmo quando o exército já se havia retirado para a Bahia, ainda se criavam “ofícios novos, praças supérfluas, mortas, e assim de cavalaria, como títulos desnecessários, que comem o que se houvera de dar à infantaria, que é a que só padece”.? Enquanto as companhias baianas conta-

vam em média com 40 soldados, as de Pernambuco tinham cerca de 28, abuso

que o conde da Torre procurará remediar, fixando em 60 o contingente mínimo, embora na Europa pudesse excepcionalmente verificar-se o mesmo.?é

voelen van Balthazar Bijma”, 13,x.1634, CJH, BPB; Jaerbyck verhael, ili, p. 132; informação de Antônio de Araújo de Mogueimes, 19.51.1633, BNRJ, I, 1, 2, 35, fls. 199v.-200.

?2 “Enige naardere consideratie”, CJH, BPB; Diogo Luís de Oliveira à condessa de Santa Cruz, 6.111.1633, ARA, OWIC, 5771. 53 Carta régia de 13.xii.1631, BA, 51-X-1; Livro primeiro, p. 431,

** António de Igual y Castillo a Tomás de Ybio Calderón, 12.xi.1637, AGS, GA, 1240. 157-8.

?> Pedro Cadena de Vilhasante, Relação diária do cerco da Babia em 1638, Lisboa, 1941, pp.

*6 “Relação da gente de guerra que se achou no felicíssimo exército que Sua Majestade tem neste Estado do Brasil”, 12.v.1639, CCT, ii, e assento em junta, 2.11.1639, CCT, iii. Durante a Guerra dos Trinta Anos, o efetivo das companhias francesas, que era teoricamente de 120 homens, havia caído para 21 nos anos quarenta: Parker, La révolution militaire, p. 83.

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ÓLINDA RESTAURADA

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O custo da guerra era também imputado ao soldado europeu, propondo-se a alternativa do recrutamento maciço de gente da terra, pois enquanto

os capitães aceitariam o soldo de alferes, os guerrilheiros contentar-se-iam com o pagamento em tecidos ordinários do Reino, bons para os rústicos que eram, mas rejeitados pelos terços do Rei Católico que, havendo servido em Flandres e na Itália, etam os que mais reclamavam da pobreza vestimentária.” Estimava-se que o soldado europeu custava dez vezes mais que o da terra, donde

também a sugestão de recrutarem-se paulistas, dados à vida militar desde seus tenros anos.

Na realidade, os reinóis não eram menos sóbrios, ao menos

comparativamente à gente de guerra ao norte dos Pirineus, pois durante a

guerra com a Espanha, Schomberg assinalará que se contentavam “com limitadas pagas”, sem demonstrarem qualquer “espécie de inclinação a se amoti-

narem, vício que não falta às outras nações”.?? Outra causa de desperdício era

o fornecimento de rações, que dava lugar a falcatruas sem conta. Menos numeroso que a guarnição da Bahia, o exército de resistência consumia 2.865 rações diárias para cerca de 1.700 efetivos, provocando conflito entre Bagnuolo e as autoridades fazendárias. 60

À contribuição da Coroa às finanças da resistência fez-se assim sob a forma do envio de numerário ou de tecidos, armas e munições. Para este fim,

ela dispôs da receita do estanco do sal, criado em 1631 por Felipe IV para custear a defesa do Brasil,º! do estanco do pau-brasil e do rendimento do dízimo do açúcar, que continuou a ser regularmente enviado à metrópole até 1632 no caso da Paraíba e de Itamaracá, quando se ordenou que fosse aplicado localmente às despesas da guerra. Quanto aos dízimos de Pernambuco,

7 Livro primeiro, pp. 53 e 56; conde da Torre ao conde-duque de Olivares, 4.vi.1640, ER IE 28 Jaime Cortesão (ed.), Jesuítas e bandeirantes no Guairá, 1594-1640, Rio, 1951, pp. 186-7.

y : 7

3 C. R. Boxer, “Vicissitudes of the Anglo-Portuguese alliance, 1660-1700”, Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, 3, 11 (1958), p. 19.

60 Vilhasante, Relação diária, pp. 157 e 163-4; Tomás de Ybio Calderón a Felipe IV, 6.v.1638, AGS, GA, 1237. 6! Myriam Ellis, O monopólio do sal no Estado do Brasil, 1631-1801, São Paulo, 1955. $2 “Livro segundo”, pp. 152, 212-3; Documentos históricos da BNRyJ, xvi, p. 88.

156

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O DEVE E O HAVER

bem mais vultosos, ainda em 1633 continuavam a ser remetidos para Lisboa,

donde propor-se que o açúcar correspondente passasse a ser vendido na terra, destinando-se ao sustento da tropa, com o que se ganharia cerca de 1/3

no preço.? Por sua vez, os rendimentos donataríais em Pernambuco foram alocados

à defesa desde 1630, exemplo que, contudo, não foi imitado pelo conde de

Monsanto, donatário de Itamaracá.” Ademais, Duarte e Matias de Albuquerque (que se recusou, aliás, a receber o soldo a que tinha direito) levantaram empréstimos junto a comerciantes de Lisboa com a garantia de bens que possuíam no Reino. Em 1634, Matias voltou a fazê-lo para pagar meio

soldo às guarnições do Arraial e do Cabo, por temor a que se amotinassem.*

Os irmãos também comerciaram com açúcar, estimando-se que entre 1630

e 1632 o teriam exportado no valor de 110.000 cruzados,*º soma que parece excessiva. O donatário alegará igualmente haver vendido toda a sua prata, que representava na época uma forma de entesouramento de fácil liquidez, mas a realidade é que, ainda em 1641, um agente seu, com a autorização

do governo holandês, desenterrava certa quantidade do metal que deixara escondido.” Para concluir este exame, necessariamente superficial, das finanças da

resistência, cabe arriscar algumas conjecturas sobre as despesas totais da guerra para o lado luso-espanhol, entenda-se, custos locais + custos incorridos em Portugal e na Espanha com socorros, armadas, etc. Frei Mateus de São Francisco alegava que os tributos e donativos pagos pelos colonos luso-brasileiros teriam alcançado, de 1630 a 1636, a cifra de 2.000.000 de cruzados. Em

03 Livro primeiro, p. 432; informação de Antônio de Araújo de Mogueimes, 19.11.1633, BNRJ, 1, 2, 35, fl. 200. 64 Memórias diárias, p. 41; Domingos Cabral Bacelar, “Sobre a capitania de Itamaracá se

não fortificar pelo conde de Monsanto”, 20.1v.1634, BNL, FG, 7627. 65 Memórias diárias, pp. 41, 157 e 221.

66 Jaerlyck verhael, iii, p. 132.

97 Lucideno, à, p. 237. 68 Memorial de frei Mateus de São Francisco, 1636, transcrito por Leire de Faria, Frei Ma-

teus de São Francisco, p. 103.

157

OLINDA RESTAURADA

1637, avaliava-se em 1.650.000 cruzados os gastos incorridos até então so-

mente pela Coroa de Castela.º? Não se dispõe da Coroa de Portugal, mas elas não devem ter castelhana, tendo em vista que só as armadas de lhe custaram perto de 1.000.000 de cruzados;

de estimativa para as despesas ficado abaixo da contribuição Oquendo e de Lope de Hoces e a do conde da Torre, quan-

tia superior a esta.Ӽ Por baixo, pode-se sugerir gastos totais no montante de

6.000.000 de cruzados, dos quais 30% procedentes de recursos levantados na

terra. Tendo em vista que no período ante bellum a tributação local era de 164.000 cruzados, a contribuição local de 2.000.000 de cruzados seria de 333.000 cruzados anuais, equivalente à duplicação da carga fiscal. Seu impac-

to, porém, tinha de ser bem maior, ao incidir sobre uma economia e um ter-

ritório que encolhiam. Tais estimativas não incorporam os prejuízos sofridos pela Coroa e pelos particulares. A este respeito, existe, aliás, informação confiável. De Laet, diretor da W.I.C., computava os danos em terra com o saque

de engenhos, povoações e portos, em 2.427.000 cruzados; no mar, só com a

apreensão de açúcar e pau-brasil a bordo das embarcações lusitanas e com a captura de 199 delas, em 9.300.000 cruzados,?! um total de 11.727.000 cruzados, que não incorpora, porém, os lucros cessantes da Coroa e dos particulares. Entre gastos e perdas, a ocupação holandesa do Nordeste terá custado no mínimo algo da ordem de 18.000.000 de cruzados, quantia enorme para a época, o equivalente a mais de dois anos do orçamento militar da monarquia espanhola em 1635.º2

62 Elliott, The count-duke of Olivares, p. 529.

7º Max Justo Guedes, “As guerras holandesas no mar”, p. 114; Carla Rahn Phillips, Six galleons for the king of Spain, p. 189. O montante equivalia a 500.000 escudos, dada a paridade entre o cruzado e o escudo espanhol. À soma indicada não incluía, porém, a contribuição da Coroa portuguesa, a cujo respeito não se dispõe de cifras mas que consistiu em cinco navios de guerra. Os dispêndios totais já eram calculados em 1633 em 2.000.000 de cruzados: Livro primeiro, p. 430. À Jaertyck verhael, iv, pp. 282-86 e 288-91. As somas de De Laet em florins foram conver-

tidas em cruzados, ao câmbio de 3 florins por cruzado,

“ Elliorr, The count-duke of Olivares, p. 480.

158

O DEVE E O HAVER

FINANÇAS DA RESTAURAÇÃO

São menores as dificuldades apresentadas pelas finanças da restauração. A desorganização das atividades produtivas à raiz da insurreição de junho de 1645 e a inexistência de comunicações marítimas com Portugal redundaram inicialmente no predomínio das fintas e donativos como forma de arrecadação de recursos. Só a retomada, a partir de meados de 1647, da navegação com o Reino possibilitou o estabelecimento de um sistema fiscal que, aos impostos ordinários do período ante bellum (que haviam sido preservados pelos holandeses), veio somar novo tributo sobre o açúcar. Mesmo assim as fintas e donativos continuaram a ser uma fonte importante de meios, como, aliás, eram-no também na Europa coeva.”? As fintas tinham certamente caráter compulsório mas a expressão “donativos” não denotava apenas contribuições voluntárias, isentas do elemento de coação, inclusive física.

Prestando-se o sistema a toda sorte de abusos, os protestos fizeram-se ouvir já na primeira finta lançada em agosto de 1645. Segundo Calado, ela teria sido bem recebida pelos colonos, acudindo este com dois mil cruzados, aqueles com os mil, aqueloutro com quinhentos, este com os cem mil réis, aquele com os cingienta; um oferecendo as cadeias de ouro, outro a prata lavrada, outro trazendo as jóias ricas da mulher e das filhas, com tanta liberalidade que, suposto que todos estavam roubados e saqueados pelos holandeses, todavia qual mais qual menos todos os que podiam acudiram com seus oferecimentos e empréstimos, de sorte que em breve se ajuntou boa soma de dinheiro, com o qual se fez fundamento para se sustentar e seguir a guerra?“

Bem diferente era a versão do capelão anônimo e do autor, também desconhecido, da “Relação verdadeira do alevantamento de Pernambuco e governo dele”. Segundo estas fontes, a finta fora levada a cabo com força e vio-

73 Para as formas de finta na Europa da primeira metade de Seiscentos, F. Redlich, “Contributions in the Thirty Year's War”, The Economic History Review, 12 (1959-1960), pp. 247-55. TÁ Eucideno, ll, p. 104.

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OLINDA RESTAURADA

lência intoleráveis. Com os recalcitrantes, Fernandes Vieira não usara de per-

suasão ou de manha,

antes os afrontava com palavras, chamando-lhes de traidores e outras semelhantes palavras, mandando-os meter em troncos e golilhas que tinha de-

baixo de uma varanda que lhe servia de matadeiro para [re] partir a carne [ajos soldados, e por ser assim sujo e o lugar, infame e cheio de moscas e de fedor, aí os tinha entroncados e engolilhados à vista do povo.

Cenas que teriam causado tal terror e espanto que a maioria cedeu às

exigências, dando tudo o que possuía, “prata lavrada, cadeias de ouro, jóias, dinheiro em ouro e prata, gado, açúcar e homens”, isto é, escravos; e tudo isto

sem que houvesse qualquer forma de contabilidade. Embora Fernandes Vieira se gabasse de fazer a guerra às suas custas, “ela é feita com o sangue dos pobres; e todos [os chefes da insurreição] estão mui ricos, assim governadores [i.e., Vieira, André Vidal de Negreiros e Martim Soares Moreno] como capi-

tães”.? O próprio Martim Soares admitia que se lançara mão de meios drásticos para obter recursos, embora as fontes divirjam no tocante à receita da finta, calculando-a ora em 40.000 cruzados, ora em 20.000, ora em 10.000,

mas não a seu fim, o suborno dos oficiais holandeses da fortaleza do Pontal, no Cabo, e o pagamento dos soldos vencidos da guarnição que a presidiava. Em começos de 1646, já não sobrava tostão e a soldada do terço de merce-

nários estrangeiros que desertara para os luso-brasileiros corria por conta de uma contribuição mensal dos colonos. Outra finta foi levada a cabo na Pa-

raíba para sustento das companhias ali recrutadas.”” Dessa finta de 1645, que teve o caráter de uma contribuição geral, distinguiram-se as subsequentes, que gravaram especialmente a carne e a farinha para sustento do exército, como a que foi feita em abril de 1646: um “pedi-

75 Alberto Lamego (ed.), “Papéis inéditos sobre João Fernandes Vieira”, RIHGB, 75, 2 (1912), pp. 35 e 43-4.

76 “Correspondência sobre o auxílio prestado pelo Governo-geral aos rebeldes de Pernambuco”, RIAP, 35 (1888), p. 46; “Papéis inéditos sobre João Fernandes Vieira”, p. 43; Lucideno, ii, p. 104; História da guerra, p. 386. 77 História da guerra, pp. 292, 315, 333, 363 e 389,

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O DEVE E O HAVER

tório de gado e farinha, embora rendesse também algumas caixas de açúcar, uma “pura e voluntária esmola para sustentação dos soldados que andavam com armas na mão, pelos lodos, expostos ao rigor dos mosquitos”. Ao evitar a conotação de obrigatoriedade, buscava-se evitar também o descontentamento causado pela contribuição anterior ou mesmo “alguma rebelião com que se deitasse a perder aquela empresa”. Com a retomada da navegação para o Reino em 1647, as fintas deixaram de ser a principal fonte de recursos, embora continuassem a representar uma rubrica fundamental. Basta dizer que ainda em 1649 produziam 46.000 cruzados, equivalentes a 28% da receita do ano, só inferior ao rendimento do “donativo do açúcar”. Além das “fintas em geral”, podia haver outras, particulares, como a de 300 cabeças de gado, lançada sobre os colonos do baixo São Francisco; ou a de 200 caixas de açúcar, sobre os senhores de engenho e lavradores de cana.”? É lícito conjecturar que, a partir de 1650, devido à queda na produção de açúcar provocada pela estiagem, as fintas tenham voltado a representar a principal fonte de receita. Em dezembro de 1653, com vistas ao sítio e ao ataque final contra o Recife, foi por meio delas que se reuniram mantimentos para dezessete meses.º! Além das fintas e donativos e do rendimento dos impostos municipais, o qual em 1649 produzia 12.000 cruzados, buscaram-se outros meios de custear a guerra. À denúncia contra Fernandes Vieira mencionou a criação de um monopólio sobre a venda de carne, farinha, vinho, azeite e tecidos, con-

cedido a José Fernandes e sócios.*! A referência, contudo, parece aludir apenas aos primeiros meses de guerra. Por outro lado, embora não se possa levar a sério a alegação feita muito tempo depois por Vieira, segundo a qual haveria gasto do seu bolso nada menos de 600.000 cruzados,82 não se deve descartar a asserção de Diogo Lopes de Santiago de que Vieira sustentou a tropa 8 Lucideno, ii, pp. 307 e 340-2, 9 “Pernambuco afligido” a D. João IV, 26.11.1650, AHU, PA, Pco., iv.

SO História da guerra, p. 577. 81 “Papéis inéditos sobre João Fernandes Vieira”, p. 36. %2 João Fernandes Vieira ao Regente D. Pedro, 22.v.1671, BNL, FG, 27, n. 76, transcrita

por Varnhagen, História das lutas, pp. 346-50.

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OLINDA RESTAURADA

até o lançamento da finta de setembro de 1645,8? de vez que os insurretos, não detendo até então o controle do interior, não podiam recorrer aos cabedais dos moradores.

Fernandes Vieira também se disse autorizado por D. João IV a levantar

empréstimos e a passar letras de câmbio no real nome, mas não é de supor

que o tenha podido fazer nas circunstâncias difíceis do começo da insurreição. Também lançou-se mão de escravos, animais, cobres de engenho e ou-

tros bens que, pertencentes a holandeses e a judeus, foram apreendidos pelos engenhos e povoações. Em 1646, o donatário de Itamaracá solicitou autorização régia para a venda deles, mas alertado pelo Conselho Ultramarino, D. João IV indeferiu o pedido, de modo a desmentir as acusações neerlandesas sobre a responsabilidade da Coroa no levante.é Decisão que chegou dema-

siado tarde no tocante aos bens móveis e semoventes, de que se podia dispor

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mais facilmente. É o que se depreende da correspondência do marquês de Niza, que desaprovou os atos praticados contra proprietários judeus do interior, receando as represálias dos cristãos-novos portugueses, cujo apoio financeiro à monarquia dos Bragança reputava imprescindível à sua consolidação. Segundo Manuel de Morais, Fernandes Vieira teria enviado à Bahia entre 200 e 300 escravos de judeus e neerlandeses, a fim de serem vendidos e também a título de presentear o governador-geral Antônio Teles da Silva. Até mesmo imóveis, como casas e olarias, teriam sido confiscados de ordem sua, a maior

parte em benefício de seus clientes e aderentes.” O próprio Calado admitia a venda dos africanos, embora pretendesse que o produto se destinasse a sustentar o exército e a estimular o ânimo bélico de capitães e soldados.”

Mercê da reabertura das comunicações com o Reino, passou-se a con-

tar com fontes regulares de receita. A representação dos colonos (1645) pleiteara que os dízimos e outros direitos reais fossem aplicados ao provimento 85 História da guerra, p. 220. 84 Jerônimo Fernandes do Vale ao marquês de Cascais, 31.111.1646, AHU, PA, Pco., LI; Co.Uo., 20.vit1.1646, AHU, 13.

85 Marquês de Niza a Vicente Nogueira, 29.vi e 9.viii.1647, BNL, FG, 2667. 86 “Processo de Manuel de Morais”, pp. 27-8.

5” Lucideno, 1, pp. 172 e 179.

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dos soldados, pedido secundado pelo marquês de Cascais no tocante à sua capitania. O Conselho Ultramarino apoiou a medida, que D. João IV vetou, com o argumento de que seria interpretada como prova de cumplicidade ré-

gia com os insurretos.º* Escrúpulos diplomáticos que, contudo, não impediam

a Coroa de receber o produto do dízimo, tarefa de que não descuraram os oficiais da Fazenda Real, que, ao remetê-lo para o Reino, queixavam-se de que os cavaleiros das ordens militares, que em Pernambuco sempre haviam pago o tributo, sem alegar a isenção de que gozavam os colegas do Reino, procuravam agora eximir-se da obrigação a pretexto da guerra, o que já importaria em 1647 em prejuízo de muitos mil cruzados.” Até fevereiro de 1648, com a posse de Francisco Barreto no comando, o exército restaurador viveria sem Fazenda Real nem socorro”.2 (O provável é que Barreto tenha recebido autorização para utilizar os dízimos, que em 1649 rendiam 27.000 cru-

zados, equivalentes a 16% do total da receita. A despeito da alegada queda

da produção causada pela estiagem dos primeiros anos cinquenta, seu rendimento parece ter-se estabilizado em torno de 30.000 cruzados no qiiingiiênio

1650-1654.71

Quanto aos réditos donatariais, como a redízima e a pensão dos engenhos, que em 1649 produziam 8.000 cruzados anuais, foram aplicados às despesas bélicas, certamente de ordem de Matias de Albuquerque, já então conde de Alegrete, o qual, no Reino, praticou, até seu falecimento (1647), atos

administrativos de competência do irmão donatário, que havia permanecido na Espanha após a Restauração portuguesa.?2 Outros tributos donatariais fi68 Representação dos moradores de Pernambuco, anexo a Co.Uo., 14.11.1646, AHU, Pco., iii; e Co.UOo., 20.viii.1646, AHU, 13.

PA,

89 Cosmo de Castro Passos a D. João IV, 15.v.1647, AHU, PA, Pco,, iii; Mauro, Le Portu gal et [Atlantique, p. 221.

90 História da guerra, p. 480. ?1 Co.UO,., 6.vi. 1654, AHU, PA, Pco., iv. 22 Francisco Barreto a D. João IV, 28.ix.1655; Co.UO., 25.ix.1656, AHU, PA, Pco., Iv: e

Co.Uo., 17.viii.1662, AHU, 16. Entre o falecimento de Matias e a reincorporação de Pernambuco ao patrimônio da Coroa em 1654, coube à filha do donatário, D. Maria Margarida de Cas-

tro e Albuquerque, e a seu marido, D. Miguel de Portugal, conde de Vimioso, exercer os direitos donatariais.

163

ÓOLINDA RESTAURADA

caram sem ser cobrados durante a guerra, como foi o caso da vintena do peixe e da passagem dos rios ou o laudêmio que gravava a venda dos engenhos.” Os tributos municipais também foram empregados na guerra. O mais rentável, a “imposição dos vinhos”, correspondendo ao consumo de 240 pipas, produzia 12.000 cruzados anuais, concorrendo com 7% da receita fiscal, e consistia na taxa original, criada no período ante bellum, e na parcela acrescentada em 1632, donde distinguirem-se a “velha” e a “nova imposição dos

vinhos”.?é Por fim, havia a taxa sobre os sítios de pescaria, paga in natura e suficiente para alimentação do exército durante três meses.” Ao contrário das finanças da resistência, pode-se ter uma visão menos imprecisa das finanças da restauração, graças à estimativa da receita fiscal de Pernambuco contida em representação anônima de 1650 contra o mestre-decampo general Francisco Barreto. Embora em princípio as intenções do missi-

vista despertem suspeita, constata-se, com base em outras fontes, a fidedignidade das cifras avançadas. Aliás, a denúncia parece ter sido redigida por funcionário da provedoria da Fazenda ou por alguém versado no assunto.

Assim, a queixa de que o escriba da repartição era apenas um criado de Barreto soa como lamúria de preterido. Para o Conselho Ultramarino, o fato de tra-

tar-se de documento sem assinatura não comprometia sua credibilidade, “pois

se sabe que muitas vezes um zeloso encobre o nome pelo perigo que corre sendo descoberto”, de modo que a carta foi reputada idônea, justificando ao menos a apuração dos fatos.?º A receita ordinária, correspondendo aos tributos ante bellum, montava a 51.000 cruzados; e a extraordinária, criada a partir de 1645, a 106.000 cru-

95 Fontes, À, Di 239

94 Co.Uo., 2.viii.1655, AHU, 15. 25 “Pernambuco afligido” a D. João IV, 26.11.1650, AHU, PA, Pco., iv.

%6 Co.Uo., 28.vii.1653, AHU, PA, Pco., iv. Foi encarregado da averiguação o ouvidor Luís Marques Romano. Com base em informação sua, o Conselho Ultramarino sugeriu que se adiasse

o assunto para a ocasião da “residência” das autoridades da Coroa que governavam Pernambuco, lembrando que carta régia de 1644 proibira a investigação dos altos funcionários em exercício: Co.Uo., 23.viii.1655, AHU, PA, Pco., iv. A “residência” era a sindicância a que se submetiam os

agentes d'E] Rei, uma vez terminadas suas funções.

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O DEVE E O HAVER

zados, equivalentes a mais de 2/3 do total de 157.000 cruzados. Triplicou-se assim a carga fiscal, crescimento esmagador mesmo em termos da fiscalidade das guerras européias do tempo. Somente o “donativo do açúcar” proporcionava receita superior à de todos os impostos ordinários, enquanto as fintas

eram pouco inferiores a estes. Comparada à carga fiscal da resistência, que gravara uma produção que diminuía, a da restauração pôde, após a evacuação das capitanias de cima, valer-se da estabilidade da frente militar. Igualmente instrutivo é o cotejo da receita do Nordeste ante bellum com a de vinte anos

depois, quando o sistema produtivo reduzia-se às freguesias entre a Várzea e as Alagoas. Em 1649, esta área contribuiu com 29.000 cruzados a mais do que haviam pago Pernambuco, Itamaracá e a Paraíba às vésperas da ocupação holandesa. Ê Quanto à distribuição da carga fiscal segundo os setores da economia, não há como evitar a conclusão de que, desta vez, os “mimosos da fortuna”, que teriam tirado o corpo fora durante a resistência, é que pagaram a fatura do aumento da fiscalidade. Cerca de 80% da receita corresponderam ao rendimento de impostos que incidiam sobre a produção e o comércio do açúcar,

como o “donativo dos açúcares”, o dízimo, as pensões e redízima, os 4 vin-

téns e a taxa da balança. Mesmo a “imposição dos vinhos” gravava primordialmente o setor açucareiro, que era o grupo de mais alta renda da colônia. No caso dos dízimos, a parcela equivalente aos dízimos do açúcar girava em torno de 88%,?” 12% apenas do seu total reportando-se ao dízimo das miunças. Quanto às fintas, recaftam especialmente sobre o setor de subsistência, podendo-se estimar em cerca de 2/3 do total o quinhão que pagou. A contribuição do setor açucareiro terá sido assim três vezes e meia superior. Sendo o rendimento dos impostos ordinários de 51.000 cruzados, só a alimentação da tropa somava anualmente 80.000 cruzados, ao que cumpria agregar as despesas de vestuário, pólvora e munições, além dos gastos buro-

cráticos. O déficit resultante foi coberto não só pelas fintas, mas sobretudo pelo imposto extraordinário sobre o açúcar. Na representação de finais de

1645, os colonos se haviam prontificado a lançar contribuição sobre o açú-

Y Watjen, O domínio colonial holandês no Brasil, p. 381.

165

ÓLINDA RESTAURADA

car embarcado, de duração limitada à guerra, cuja receita deveria destinar-se ao afretamento de navios franceses, projeto que não prosperou, como se

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recorda, o que não impediu em 1647 a criação do imposto, de 200 réis por

arroba ou 10 cruzados por caixa de 20 arrobas. Em 1649, o “donativo do açúcar”, o verdadeiro nervo da restauração, rendia 60.000 cruzados, o equivalente a 36% de toda a receita.”? Bem ou mal, os “mimosos da fortuna” haviam aceito um imposto três vezes superior ao tributo repudiado em 1632. Destarte impediu-se a proliferação de taxas ocorrida na resistência, que, além do seu caráter regressivo, haviam aumentado os custos de arrecadação e as chances de roubalheira. À importância do “donativo do açúcar” explica em boa parte a preocupação de Francisco Barreto e da chefia restauradora com as vicissitudes da navegação e do comércio entre a capitania e o Reino. Ao insurgir-se contra as práticas monopolistas do “assento de Pernambuco”, acentuava Barreto que a guerra “não tem outros efeitos de que se sustente senão do novo tributo”.100 O imposto criou uma solidariedade de interesses entre os agentes da Coroa e a açucarocracia, a qual faltara conspicuamente à resistência, solidariedade reforçada pela decisão da Coroa no tocante à terceira categoria de rendimentos, os monopólios régios. À receita dos estancos do sal e do pau-brasil foi aplicada à guerra desde 1648,1º1! rendendo 12.000 cruzados anuais ou 6% dos

rendimentos da capitania. Somente a partir de 1651, a Coroa cedeu os “direitos de Pernambuco”, isto é, os impostos cobrados nas alfândegas de Portugal (o consulado, a sisa e o quinto do açúcar) sobre os produtos da capitania. Pelo menos desde 1649, os colonos, “visto haver quatro anos que estão sustentando aquela guerra à sua custa”, haviam requerido a El Rei fosse servido mandar aplicá-los às des-

28 Representação dos moradores de Pernambuco, anexo a Co.Uo., 14.111.1646, AHU, PA, Pco., li.

29 “Pernambuco afligido” a D. João IV, 26.11.1650, AHU, PA, Pco. iv. Pereira da Costa enganava-se, portanto, ao supor que o “donativo do açúcar” só tivesse sido criado em 1656: Anais pernambucanos, Wii, pp. 381 e 425. O tributo ainda vigia em 1750: ibid., p. 391. 100 Co.VOo., 21.viii. 1649, AHU, 14.

0! Co.UO., 8.vii. 1647, AHU, 14.

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O DEVE E O HAVER

pesas militares, da mesma maneira pela qual se empregavam os rendimentos do Reino no exército que o defendia na fronteira espanhola.!º2 Em 1651, estimava-se que os “direitos de Pernambuco” atingissem entre 8.000 e 10.000 cruzados, graças ao que se pôde fazer uma remessa de fazenda aos soldados, a título de soldo, à razão de 7.500 réis para os soldados brancos, e de 5.000

réis para os africanos e índios, a qual, porém, foi insuficiente para atender to-

do o exército. !º3 Escusado assinalar que a Câmara de Salvador não contribuía sequer para os gastos dos contingentes mandados de lá em 1645, embora existisse a correspondente consignação, que era despendida na Bahia para outros fins.!º* Com recursos obtidos em Pernambuco, pagava-se também o vestuário. “Como aquela guerra é na campanha, gasta muito”, embora se tratasse de tecidos ordinários e baratos, panos da serra da Estrela, rochetas, baetas e estamenhas, estas reservadas aos oficiais.!”? Por outro lado, os gêneros importados como bacalhau, farinha de trigo e azeite eram enviados por comer-

ciantes do Reino para serem vendidos ao exército, o mesmo acontecendo no

tocante às armas e munições, embora esporadicamente a Coroa fizesse remessas modestas. À situação piorou nos derradeiros anos de guerra. À partir de 1650, a seca, além de afetar o suprimento de víveres, reduziu a produção de açúcar e a receita dos dízimos e do “donativo do açúcar”, se bem que pareça exagerada a alegação da Câmara de Olinda de que tais impostos tivessem sofrido uma quebra de 75%.!96 Os empecilhos à navegação e a contração do comércio repercutiam também na receita, de vez que os colonos procuravam pagar os tributos com o açúcar de safras passadas e os feitores da Companhia de Co-

102 Co.UO., 21.viii. 1649 e 9.x1i.1650, AHU, 14; Co.UO., 13.7.1652, AHU, PA, Pco., iv.

103 Francisco Barreto a D. João IV, 28.11.1650, BNRJ, I, 34, 32, 26; Cosmo de Castro Passos a Felipe Bandeira de Melo, s.d., mas do primeiro semestre de 1652, ARA, OWIC, 66.

104 Francisco Barreto a Antônio Cavide, 8.111.1649, BA, 51-X-16; Co.UO., 19.xii. 1646,

AHU, PA, Ba., iv.

193 Co.Uo., 21.viii.1649, AHU, 14; Co.Uo., 13.11.1653, AHU, 15. 106 Co.UO., 13.7.1652, AHU, PA, Pco., iv. A experiência atual na zona da mata pernam-

bucana indica que os períodos de estiagem prolongada diminuem em média em 25% a produção de açúcar, podendo excepcionalmente chegar a 50%.

167

OLINDA

RESTAURADA

mércio recusavam-se a comprá-lo ao preço corrente.!“” Pode-se ter uma idéia do prejuízo quando se sabe que quase toda a carga fiscal era paga em açúcar. Em 1653, frei Mateus de São Francisco julgava que a situação tornara-se in-

suportável: os colonos, onerados pelo longo período de luta e ultimamente pela seca, já não possuíam cabedais com que satisfazer os compromissos.!08 Segundo Francisco Barreto, que chegou a tomar dinheiro emprestado para sustentar o exército, “a gente da terra, cansada, diminuída e consumida com guerra de tantos anos, começada e sustentada à sua própria custa [...] não podia suportar os tributos que pagava nem sustentar a guerra por mais tempo”.102 À tropa recebia apenas suas rações; e só a disciplina mais rigorosa impedia que se dissolvesse.!!º Igualmente negativo era o clima de suspeita causado pela fracassada conjura para entregar o Cabo aos holandeses, tramada entre soldados italianos e oficiais dos navios neerlandeses que bloqueavam o porto.!!! Ao con-

fessar, o intermediário, o mameluco Pascoal Dias, que já trocara de lado vá-

rias vezes, comprometera gente da terra, inclusive João Gomes de Melo, se-

nhor de engenho no Cabo e cunhado de Gaspar van der Ley, desterrado na Bahia no começo da insurreição. !!+

Uma palavra final mas não definitiva, antes meramente conjectural, sobre os custos da restauração. Para o período de junho de 1645 a dezembro de 1647, pode-se supor uma despesa da ordem de 200.000 cruzados, dos quais 80.000 para o sustento da tropa. Para o triênio 1648-1650, caberia a hipótese de 500.000 cruzados, equivalentes à receita anual de 169.000. Por fim, para o triênio 1651-1653, na base do decréscimo de 25% na arrecadação e, portanto, de uma receita anual de 130.000 cruzados, ter-se-ia o montante de

107 Co.Uo., 13.11.1653, AHU, 15. 108 Frei Mateus de São Francisco a D. João IV, 1653, AHU, PA, Pco., iv. 09 Co.UO., 24.xi.1651, AHU,

14; “Breve relação dos últimos sucessos da guerra do Bra-

sil”, 1654, ABNRJ, 20 (1889), p. 168.

HO Cosmo de Castro Passos a Felipe Bandeira de Melo, s.d., mas do primeiro semestre de 1652, ARA, OWIC, 66.

H1 Baltasar dos Reis Barrenho a Luís da Silva Teles, Bahia, 13.vii.1651, ARA, OWIC, 34. !!2 Depoimentos de diversos, 12.vi.1651, ARA, OWIC, 66. Pascoal foi executado por alta

traição, libertando-se os demais, ao passo que os napolitanos eram deslocados para Rio Formoso.

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O DEVE E O HAVER

400.000 cruzados. Destarte, o conflito teria custado à gente da terra mais de 1.000.000 de cruzados, sem contar os prejuízos com a evacuação das capitanías do norte e com a desativação do seu sistema produtivo. Quanto aos gastos sufragados pelo Reino, não devem ter ultrapassado o nível de 20% a 30%

daquele total. Sua participação financeira, mesmo levando em conta a contribuição da armada da Companhia de Comércio (pois a do conde de Vila Pouca de Aguiar em 1647 destinara-se à Bahia), tinha de ser substancialmente inferior à concedida outrora por Madri, de vez que os recursos do Reino não

bastavam sequer à defesa contra os terços do Rei Católico que, na fronteira, ameaçavam a independência reconquistada.

POST BELLUM: TRIBUTAÇÃO,

ESTAGNAÇÃO,

RECONSTRUÇÃO

À capitulação holandesa não trouxe para os colonos o sonhado alívio

fiscal. À reconstrução da economia açucareira e o repovoamento das capitanias abandonadas em 1646 fizeram-se penosa e lentamente numa conjuntura de

declínio do preço do açúcar decorrente da entrada das colônias açucareiras do Caribe no mercado internacional. A Coroa não podia dispensar a receita dos impostos criados durante a guerra de restauração, inicialmente em vista da possibilidade de represálias militares por parte das Províncias Unidas, a qual perdurou até a assinatura do segundo tratado de Haia (1669), posteriormente em face da crítica situação financeira do Reino ao longo da segunda metade de Seiscentos. Ao voltar em 1654 à suserania portuguesa, o Nordeste não

se desvencilhou da tributação escorchante legada pela guerra.

Esta, porém, não é suficiente para explicar a depressão post bellum, embora a historiografia atual tenda a negligenciar os efeitos negativos da taxação, numa reação excessiva à ênfase que lhe conferiam os historiadores do século XIX.!!3 É indispensável lembrar a outra perna da tesoura, a concorrência antilhana. O período post bellum, que deveria ter encetado a reconstrução da economia açucareira, foi, pelo contrário, vítima do círculo vicioso

13 Charles Wilson, “Taxation and the decline of empires: an unfashionable theme”, Econo-

mic history and the histortan, Londres, 1969, pp. 114-6.

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OLINDA RESTAURADA

de recessão e tributação, o qual impunha a manutenção da carga fiscal e inibia o reequipamento dos engenhos e a fundação de novos. Os investimentos

eram também desencorajados pela indefinida situação jurídica dos engenhos confiscados pela W.1].C. e revendidos a luso-brasileiros, questão que não estará resolvida antes dos anos setenta. Foi assim nas circunstâncias mais desfavorá-

=

veis que o Nordeste enfrentou o colapso dos preços internacionais do açúcar.

religiosos de letras” no sentido de que eles não poderiam ser cobrados em tem-

po de paz sem expressa autorização régia, sob pena de excomunhão. Escrúpulos que o Conselho Ultramarino estranhará, lembrando tratar-se não do lançamento de novos tributos mas da cobrança dos existentes.!!4 Por sua vez, na euforia da restauração, a Câmara de Olinda, que concentrava a gestão

supramunicipal destes tributos, suspendeu seu recolhimento, embora depois tivesse de concordar com a solicitação régia de que fossem prorrogados, na esperança de que em breve D. João IV pudesse aliviar os colonos das despesas com a tropa, consoante os requerimentos que o procurador da capitania apresentava em Lisboa.! Em 1655, a Câmara teve de assentir à renovação do “donativo do açúcar, embora obtendo a redução de 62% na caixa de açúcar branco e de 50% na de mascavado e contra a promessa de que, ao cabo de um ano, os gastos do exército correriam por conta exclusiva da Coroa. Promessa vã. O “donativo”, que produzia 60.000 cruzados seis anos antes, só rendia agora cerca de 25.000 cruzados, que mal davam para comprar a farinha da tropa. Propunha a Câmara substituí-lo pelo envio anual de mil pipas de vinho, que ge-

raria receita da ordem de 50.000 cruzados, proibindo-se ademais a fabricação de aguardente, interdição de que Pernambuco fora isento quando da criação da Companhia de Comércio.!!º Embora esta argumentasse que o mercado 14 Co.Uo., 12.viii e 28.1x.1655, AHU, 15. 115 Câmara de Olinda a D. João IV, 20.11.1655, AHU, PA, Pco., iv.

16 Co Uo., 12.viii.1655, AHU, 14; provisão régia de 13.ix.1649, J.J. de Andrade e Silva, Coleção cronológica da legislação portuguesa, 1603-1674, 8 vols., Lisboa, 1854-1856, vii, p. 50.

170

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até 1657, hesitou num primeiro momento em prosseguir na arrecadação dos impostos extraordinários criados durante a guerra, face às objeções de “alguns

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Francisco Barreto, que continuou a exercer o governo de Pernambuco

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1

O DEVE E O HAVER

local não absorveria tal quantidade, o Conselho Ultramarino aprovou a proposta da Câmara. A decisão d'El Rei foi no sentido de que se sustentasse a tropa com os rendimentos régios, tanto mais que eles já incluíam os réditos

donatariais decorrentes da incorporação de Pernambuco ao patrimônio da Coroa, rateando-se o déficit entre os colonos “pelos meios mais suaves que possa ser”. 117 Em 1655, à raiz da restauração de Pernambuco, a Coroa portuguesa ordenou o cadastramento da receita dos impostos donatariais que, em vista da incorporação da capitania ao patrimônio régio, passavam a ser arrecadados pela Fazenda Real. Em 109 engenhos existentes entre a Várzea e Alagoas, 85 safrejavam e 24 achavam-se de fogo morto, sendo que estes últimos chegavam a 50% em Jaboatão, 38% na Várzea, 25% no Cabo e em Porto Calvo e 23% em Sirinhaém.!!8 O montante das rendas reais que, em 1649, alcançara 43.000 cruzados, não passava de 29.000 cruzados, mesmo computando

a antiga receita donatarial.''? Embora o dízimo se recuperasse no qiuingiiênio 1654-1658, de 24.000 cruzados para 32.500, voltou a cair em 1659 para

22.000 cruzados e para 20.000 cruzados em 1662.120 À alimentação do exército não saía por menos de 50.000 cruzados, malgrado as providências de Francisco Barreto, que repartira dois terços dos efetivos pelo Ceará, Rio Grande, Paraíba, Itamaracá e Fernando de Noronha,

mandando para casa o terço restante.!21 Contudo, as capitanias de cima, que estavam sendo recolonizadas após oito anos de abandono e destruição, não

tinham como pagar o sustento de suas guarnições, que eram mantidas com os rendimentos pernambucanos. Os da Paraíba, por exemplo, não davam sequer para cobrir o gasto mensal da guarnição de 600 soldados, tendo de se recorrer a fintas de farinha da terra e de pescado.!22 Sobretudo em função da 7 Co.UO., 28.1x.1655, AHU,

15: D. João IV a Francisco Barreto, 9.x.1655, AHU, 275.

118 Fontes, i, pp. 236-42. 19 Documentos históricos da BNRJ, xviii, p. 454. 120 Mauro, Le Portugal et ['Arlantique, pp. 251-5

21 Co.Uo., 7.iv.1655, AHU, PA, Pco., iv. 122 Co.UO., 12.vil.1657, AHU, 46; “Informação que faz ao muito reverendo padre cronis-

ta-mor do Reino [...] um criado seu”, s.d., BA, 54-X-9,

171

OLINDA

RESTAURADA

paz franco-espanhola dos Pirineus (1659), que habilitou a Espanha a concentrar forças numa última tentativa de recuperação do Reino, a Coroa ficara ainda mais impossibilitada de arcar com os ônus de defesa do Nordeste. À única saída era a “reformação”, isto é, a redução da tropa. Havia muito,

a Câmara de Olinda criticava o número excessivo de capitães e a existência de companhias de apenas trinta soldados, denunciando também o abuso de proprietários de engenho e lavradores de cana que se valiam do seu statu castrense para receber as rações de praxe e para não pagar os impostos extraordi-

nários. Com o apoio do Conselho Ultramarino, fixou-se em cem homens o

efetivo das companhias e dispensaram-se os oficiais que fossem também “ricos da terra”, mas a reforma só será implementada em 1663, uma vez assina-

do o primeiro acordo de paz com as Províncias Unidas. O exército em Per-

nambuco compreendia então três contingentes, no total de 1.913 homens, cujo sustento e soldada montavam anualmente a 150.000 cruzados, 65.000 ou 43% provenientes de impostos ordinários e 85.000 ou 57% oriundos de tributos extraordinários.!? Não houve assim diminuição significativa da carga fiscal. Os impostos extraordinários, que em 1649 correspondiam a 63% da receita, ainda equivaliam em 1663 a 57%. Decorridos vinte anos da expulsão dos holandeses, a Câmara de Olinda lamentava que os colonos ainda não houvessem experimentado “as melhoras que com a restauração esperavam no alívio dos tributos”.!2* Os antigos impostos donatariais continuavam a ser cobrados regularmente (inclusive a vintena do pescado, suspensa ao tempo da guerra),

embora Pernambuco e Itamaracá, incorporados ao patrimônio régio, deves-

sem estar livres do ônus. Mesmo o Conselho Ultramarino opunha-se à abolição, recomendando apenas que se dispensasse do pagamento da pensão dos engenhos os senhores cujas fábricas se encontrassem muito danificadas.!2> Em 1662, a Câmara de Olinda reiterava a pretensão de que os colonos de Pernambuco fossem postos em pé de igualdade com os das demais capitanias

123 Co.UO., 7.x1.1663, AHU,

16. Para a reforma do exército restaurador, Cabral de Mello,

A fronda dos mazombos, pp. 43-6.

'2á Câmara de Olinda a Fernão de Souza Coutinho, 14.v11.1673, AUC, CA, 33, fls. 75-75v. 125 Co.UO.,

10.71.1656, AHU, PA, Pco., iv.

172

O DEVE E O HAVER

reais. Desta vez, o Conselho opinou favoravelmente mas o assunto ficou engavetado. !26 Na reconstrução do sistema econômico, a Coroa preferiu à extinção de impostos as medidas parciais de incentivo, como a de estender aos engenhos reconstruídos a “liberdade dos dez anos”.'”” O privilégio foi mais importante para as capitanias evacuadas em 1646, cujo repovoamento cumpria estimular. É fato ignorado ou esquecido pela historiografia colonial que, de 1654 em diante, o Nordeste, de Olinda para cima, teve de ser recolonizado a partir da

estaca zero. De regresso às suas terras, os colonos viveram dias tão inaugurais

como os que haviam vivido seus pais e avós em fins do século XVI. Era tal o abandono, com “os matos tão incultos pelo muito que crescem nestas partes, que houve morador a quem custou muita diligência o acertar com o sítio donde havia deixado a casa”.'2º Francisco Barreto ordenou que os retirados retornassem no prazo de um mês, sob pena de serem suas terras consideradas

devolutas e atribuídas a terceiros, concedendo-lhes dezoito meses de moratória das dívidas.!?? Posteriormente, os colonos da capitania de Itamaracá e

da Paraíba obtiveram da Coroa a ampliação da medida a dez anos, mas restrita às dívidas contraídas antes da capitulação holandesa e com a obrigação para os devedores do pagamento anual da quinta parte dos débitos.!3% O repovoamento das capitanias de cima se fará penosa e lentamente no decorrer da segunda metade do século XVII. Nos anos sessenta, a Câmara da Paraíba pedia inutilmente que os moradores ficassem isentos da quota anual de 3.000 cruzados que lhes coubera no rateio do “donativo da Rainha da Inelaterra e paz de Holanda”,!*! dada “a miséria e opressão em que se vêem”. Bastava dizer que dos 19 engenhos que ali safrejavam antes da ocupação ho-

'26 Co.UO., 17.viii. 1662 e 21.viii. 1663, AHU, 16; Simão Álvares de la Penha Deusdará a

D. Afonso VI, 28.111.1663, AHU, PA, Pco., v.

!2/ Pereira da Costa, Anais pernambucanos, iii, pp. 413-4, '28 “Informação que faz ao muito reverendo padre cronista-mor do Reino [...] um criado seu, BA, 54-X-9. 129 Bando de Francisco Barreto, 3.ix.1654, AUC, CA, 31, fl. 16.

50 Co.Uo., 8.iv.1655, AHU, PA, Pco., iv.; Co.Uo., 23.11.1658, AHU, 46. '51 Destinado à satisfação por Portugal dos compromissos financeiros assumidos para o ca-

173

OLINDA

RESTAURADA

landesa, apenas nove mofam e assim mesmo precariamente, tanto que “na safra lil

passada se fez muito pouco açúcar, e de presente, nenhum, que assim se pode

dizer por cem caixas que em todos eles se fizeram, sendo a capitania capaz de nela se fazerem, como faziam em tempo que moíam todos com a largueza necessária, dez e doze mil caixas”.!º2 Na capitania de Itamaracá, nos anos

oitenta, ainda se recuperavam fábricas anteriores ao domínio batavo.!>3 No caso de Pernambuco, contudo, não se cogitou de moratória, prova-

velmente devido à importância da soma. Quando em 1648 Francisco Barreto impedira que se intentassem processos de cobrança de “dívidas velhas”, isto é, de débitos contraídos antes da insurreição de 1645, a grita fora tamanha que D. João IV revogou a decisão, passando provisões a diversos credores para que pudessem executar seus devedores, que, segundo afirmava um daqueles, mofam seus engenhos e lavravam seus canaviais com notório proveito, esquivando-se dolosamente a satisfazer o que deviam.!2é A Câmara de Olinda, contudo, tomou o partido dos devedores. Tão grande era a pobreza da terra que não se poderia fazer execuções “sem grande violência”, cumprindo esperar pelo fim da guerra ou restringir a cobrança aos colonos ricos conforme as possibilidades de cada um. Com o parecer do Conselho Ultramarino, El Rei aprovou a sugestão, deixando-se a critério de Francisco Barreto

e da Câmara determinar quem poderia ser executado.!25 Nos anos sessenta, o assunto foi solucionado quando a Coroa confirmou para o Brasil o privilégio da não-execução por dívidas na fábrica dos engenhos, canaviais e mãode-obra escrava. 12º

samento de D. Catarina de Bragança com Carlos II, da Inglaterra, e para a indenização das Províncias Unidas pela perda do Brasil holandês.

'32 Câmara da Paraíba a D. Afonso VI, s.d., mas posterior a 1662, AHU, PA, Pb,, v. !33 Cabral de Mello, À fronda dos mazombos, p. 86.

134 Provisões régias de 12.x1i.1650, 23 e 24.1.1651, 7.iii e 29.viii. 1651, AHU, 92; Co.Uo.,

2.v1.1649, AHU, PA, Pco., iii.

135 Co.UO., 8.x1.1651, AHU,

14,

!36 Cabral de Mello, A fronda dos mazombos, pp. 203-4. As correspondentes provisões eram via de regra válidas por prazos de seis anos mas os credores aproveitavam-se do hiato entre a expiração de uma ordem e a recepção de outra.

174

O

DEVE E O HAVER

Indício revelador do mal-estar que permeia a sociedade pernambucana post bellum é a assustadora criminalidade que atinge todas as classes. Em 1663, o governador Brito Freyre assinalava que as perdas em vidas humanas não haviam sido menores que as do tempo da guerra. Após vangloriar-se de um único homicídio no decurso do seu triênio, recordava que de 1654 a 1660 se haviam acumulado devassas relativas a 437 delitos com armas de fogo, sem falar nos cometidos com arma branca ou nos numerosos crimes que não haviam sido investigados. Se já era trabalhoso pôr um freio ao desregramento em que viviam os habitantes do Brasil, a situação de Pernambuco era pior devido às consegiiências da guerra, como a difusão de armas, os conflitos relativos à propriedade de muitos engenhos e a enraizada aversão ao pagamento de dívidas.!?” Mas Brito Freyre iludia-se se pensava haver resolvido o problema. Em 1671, a Câmara de Olinda compilava uma longa relação de 206 devassas por assassinatos e ferimentos. A violência, aliás, não se exercia apenas contra gente pacífica e inerme mas até mesmo contra os detentores legítimos da força e contra veteranos da guerra holandesa. !3º

157 Francisco de Brito Freyre a D. Afonso VI, 23.11.1663, BA, 51-VI-1, 158 Relação anexa a Co.UO., 8.viii.1672, AHU,

Congresso de História Nacional, x1, pp. 123-9.,

175

PA, Pco., vi, transcrita nos Anais do IV

Ds

Gente de guerra

A despeito da riqueza de informações atinentes à história econômica do

Nordeste, a documentação neerlandesa não proporciona uma idéia, mesmo

aproximada, da população regional. Do assunto, não se ocuparam sequer os relatórios governamentais mais abrangentes, como o “Breve discurso sobre o estado das quatro capitanias conquistadas” (1637) e o informe do conselheiro Adriaan van der Dussen (1639), embora este último apresente minucioso censo da população indígena das aldeias. E a descrição de Adriaen Verdonck (1630), que refere a população de diversas áreas do Brasil holandês, está lon-

ge de ser trabalho sistemático; além de incompleto, o texto ora menciona o

número de habitantes, ora o de indivíduos do sexo masculino e, no tocante à

escravatura, limita-se a estimar a que residia em Olinda. Há também boas

razões para supor que, apesar do seu conhecimento da terra, onde já residia

havia anos quando da invasão holandesa, ele tenha subestimado a população de certas freguesias, particularmente as do sul de Pernambuco." O único recenseamento promovido pelo governo holandês, o de 1646, ficou adstrito ao Recife e às praças-fortes sob controle batavo, de vez que àquela altura já se iniciara o movimento restaurador.?

As fontes luso-brasileiras são igualmente vasqueiras, contendo apenas es-

timativas globais, aliás bastante díspares, mencionando mais de “trinta mil

almas portuguesas” (lusitanos e seus descendentes mestiços ou não) ou 60.000, 80.000, 130.000 e 150.000 “almas cristas” ou que “tinham recebido o batis-

“ Fontes, i, pp. 35-46. ? Gonsalves de Mello, Tempo dos flamengos, p. 82.

177

OLINDA RESTAURADA

mo”, o que incluía a população integrada ao domínio colonial, colonos e suas

famílias, a escravaria e os índios aldeados mas não as tribos bravias que viviam

do outro lado da fronteira do povoamento.? Outro desses cálculos pretendia que no período ante bellum houvesse “25.000 casas de moradores ricos, lavouras e gados, [e] mais de 150.000 escravos da Guiné”,/ cômputo visivel-

mente excessivo.

É certo que os engenhos, núcleos de condensação demográfica, ocupavam uma “multidão de gente”, de vez que cada um deles empregaria em mé-

dia 25 indivíduos, entre livres e escravos, só para as fainas de fabricação do

açúcar, sem falar na quantidade de trabalhadores do eito, constituindo cada fábrica “uma formosa aldeia”, com 400, 600 e até 1.000 almas.” Cruzando tais informações com os dados relativos às 116 fábricas existentes em 1623 no Nordeste,º tem-se a cifra de 70.000 para a população do setor açucareiro. Em 1630 o total de engenhos era superior (149), mas o resultante acréscimo

demográfico pode ser absorvido no total de 70.000, de modo a descontar a tendência inflacionária das estimativas demográficas. Consoante um “belga que residira diversos anos” na colônia, a proporção entre colonos luso-brasileiros e escravos seria da ordem de 4,3 escravos por colono, de vez que nos maiores engenhos eram necessários 15 ou 20 portugueses e 100 negros; nos médios, 8 ou 10 portugueses e 50 negros, e nos pequenos 5 ou 6 portugueses

3 Lucideno, À, p. 292; Parecer de Pedro Fernandes Monteiro, 1648, BNL, EG, 1570, fl. 113;

“Parecer enviado a El Rei sobre as condições da paz com a Holanda”, 5.x11.1648, Os manuscritos da Casa de Cadaval, 1, p. 71; “Discurso de Gaspar Malheiro em que mostra se não deve entregar Pernambuco aos holandeses”, 5.xii.1648, BNL, FG, 1551, fl. 64; parecer do corpo de comércio

de Lisboa, 20.xi.1648, ANTT, Mss. da Livraria, 1116, fl. 53; Correspondência diplomática de Francisco de Souza Coutinho, ii, p. 393; André Vidal de Negreiros ao marquês de Montalvão, 25.viii. 1646, BNRJ, I, 34, 32, 15.

4 “Adição ao arbítrio que deu Manuel Fernandes Cruz”, 2.x.1652, Os manuscritos da Casa de Cadaval, 1, p. 113.

? Lucideno, ii, p. 234; “Resposta que deu o licenciado Manuel de Morais a dizerem os holandeses que a paz era a todos útil mas a Portugal necessária”, 1648, BNL, FG, 1551, fls. 59-64, transcrita em AMP,

1, 2 (1922), pp. 123-33.

é Dezenove engenhos correspondentes à primeira categoria, 55 à segunda e 42 à terceira:

Fontes, à, p. 25.

178

GENTE

DE GUERRA

e 20 negros.” Como estimar, porém, a população existente fora das atividades açucareiras, dispersa pelas vilas e sobretudo pelo setor de subsistência? Outra maneira de calcular a população regional consistiria em estabe-

radores brancos”, isto é, colonos luso-brasileiros, deduz-se do registro de

Diogo de Campos Moreno, sargento-mor do Estado do Brasil, que tinha obrigação de conhecer o assunto, o qual acrescentava 5.000 índios flecheiros das aldeias.”

Com a invasão neerlandesa, os algarismos tornam-se francamente irrea-

listas, pois ao raciocinar em termos de recrutamento potencial, os contendores incorriam em sobreestimações que, aliás, lhes interessava propalar: os holan-

deses para obter reforços substanciais da metrópole e os luso-brasileiros no objetivo de desinformá-los. Em 1630, Waerdenburch previa que o Recife seria sitiado por 10.000 homens. Em 1632, ele transmitia informações de prisioneiros segundo as quais haveria, além do exército profissional de 1.000 a 1.500 soldados (dado correto), forças auxiliares de 6.000 a 7.000 homens, além de 3.000 índios e 7.000 africanos.!º Em 1637, o Nordeste contaria com 18.000

7 Jean [Johannes] de Laet, L histoire du Nouveau Monde ou description des Indes occidentales, Leiden, 1640, p. 529. Carece assim de fundamento a afirmação de um jesuíta, com um quarto de século no Brasil, para quem a relação entre escravos e livres seria superior a 10 por 1: “Información que hize por mandado de V. M. sobre unos capítulos que Duarte Gomes da Silveira, vecino de la Paraiba, envió a la Mesa de Consciéncia”, sem indicação de autor, local ou data, AGS, SP, 1583.

é Diálogos das grandezas do Brasil, pp. 27 e 190; Co.Uo., 30.v.1623, AHU, 34. ? Campos Moreno, Livro que dá razão, pp. 175, 198. 10 DH, pp. 55, 69, 74, 85 e 105.

179

E

do excluído por motivos de segurança, seu número, como veremos, foi bastante modesto. Neste caso, a dificuldade reside na fidedignidade das cifras avançadas. Para o período ante bellum, elas ainda podem parecer razoáveis. Em 1618, os Diálogos das grandezas do Brasil afirmavam que as quatro capitanias poderiam pôr em campo 10.000 homens armados. Só Pernambuco disporia de 6.000 efetivos; quatro anos depois, Matias de Albuquerque elevava a 8.000 o total pernambucano.é Que estes cálculos reportavam-se a “mo-

sm

lecer a relação entre a população livre e seu segmento militarmente mobilizável, tendo em vista que, em princípio, o recrutamento de africanos estan-

ÓOLINDA RESTAURADA

|

“moradores”, que “como vêem que os que servem a El Rei andam desnudos, descalços e mal alimentados, fogem de ser soldados”; urgia, pois, atraí-los com

incentivos.! Iniciada a restauração, as autoridades batavas, que já não tinham

a desculpa de desconhecimento da terra, ainda receavam um exército lusobrasileiro de 8.000 soldados.!2 As limitações que operavam no sentido de manter a mobilização local em níveis muito inferiores aos registrados no papel tinham a ver com a estratégia adotada durante a guerra, a qual, como vimos, procurou minimizar O impacto das atividades bélicas sobre o funcionamento do setor açucareiro. Foi, portanto, a opção pela “guerra lenta” que condicionou o nível do recrutamento local. Caberia considerar ademais a distribuição da população regional em função do sistema produtivo. Enquanto as atividades canavieiras absorviam a quase totalidade da mão-de-obra escrava, era no setor de subsistência que se concentrava a população livre. Sobre ela é que incidiu o peso do recrutamento local, uma vez que aquelas não ofereciam maiores possibilidades, exceto

no tocante aos escravos, cuja mobilização maciça teria posto em xeque a se-

gurança da população livre e, no mínimo, causado a desativação dos engenhos, tanto mais que com a suspensão do tráfico em decorrência da guerra, a mãode-obra africana escasseava e sem ela não havia como sustentar a produção açucareira, indispensável ao financiamento do conflito.

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A demografia do período holandês é também complicada pela redistri-

||

buição populacional causada pela guerra através de deslocamentos intra e inter-

regionais. De 1635 a 1640, limitando-nos aos movimentos relevantes de população,!2 a região sofreu perda substancial em benefício da Bahia e do Rio

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1 António de Igual y Castillo a Tomás de Ybio Calderón, 12.x1.1637, AGS, GA, 1240. O

Ro Bo

|

missivista emprega neste contexto o termo de Pernambuco mas é evidente que ele se refere ao Nordeste. Caso se opte pela relação de 5 para 1 entre a população e os 18.000 moradores mobilizáveis, ter-se-á o total de 90.000 colonos na região. 12 “Diário ou breve discurso”, pp. 165 e 212. Em 1639, o conde de Nassau achava-se bem melhor informado acerca dos efetivos do conde da Torre: Nassau aos Estados Gerais, 9.vii.1639,

IHGB, DH, 2; História dos feitos, pp. 167-8.

13 De vez que já quando da invasão em 1630 comerciantes e pessoas gradas partiram com as famílias: Conselho Político aos XIX, 23.ix.1630, CJH, BPB.

180

GENTE

DE GUERRA

de Janeiro. O primeiro contingente de emigrados seguiu com Matias de Albuquerque em meados de 1635, após a queda do Arraial e do Cabo: seu montante situou-se entre 3.000 e 4.000 moradores e de 4.000 a 5.000 índios.!4 Em 1636, o segundo contingente, que se retirou com a tropa de Camarão, abrangia 2.500 pessoas de Itamaracá, soma que incluía provavelmente os índios aldeados da capitania, de vez que relação coeva refere a chegada a Porto Calvo de apenas 1.000 moradores.!? Mas na expectativa de reviravolta graças à esperada armada luso-espanhola, parte da gente retirada em ambas oportunidades permaneceu nas áreas do sul de Pernambuco ainda sob controle

luso-brasileiro, de modo que, em 1637, quando Bagnuolo finalmente cruzou

o São Francisco, seguiram com ele mais de 6.000 emigrados.!º Um contingente final, cerca de 2.500 pessoas, partiu em 1640 após a expedição do conde da Torre.!” Devido a que, em todas estas ocasiões, verificou-se o regresso dos arrependidos, que acabaram optando por viver no Brasil holandês, podese estimar o máximo de 5.000 para a população livre que abandonou a regtão entre 1635 e 1640. Quanto à população escrava, apesar da carência de

dados, pode-se admitir, por baixo, algo da ordem de 4.000 africanos.

Às áreas mais afetadas pela emigração foram as freguesias ao sul do Re-

cife, além de Goiana ao norte, donde se retirou a maioria dos habitantes.!*

De Porto Calvo, por exemplo, a cujo respeito há informações precisas, sabese que a população da vila e do seu termo, que alcançava 3.000 habitantes,

lá Memórias diárias, p. 205; Matias de Albuquerque a Felipe IV, 22.vii.1635, AGS, GA, 1147; certidão de Afonso de Albuquerque, 12.vii.1635, AHU, PA, Pco., iii. D Memórias diárias, p. 239; “Breve e sucinta relação desta guerra de Pernambuco desde março deste ano de 1636 até dezembro do mesmo ano”, BNL, FG, 1555. Ao todo, mais de 5.000 índios

teriam sido levados pelos jesuítas para o Recôncavo baiano: Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, v, pp. 360-1. 16 João Rodrigues Molinar a Felipe IV, 1.iv.1637, Kroniek van het Historisch Genootschap [Utrecht], 5, 5 (1870), p. 177.

17 Antônio Vieira, Obras várias, 3 vols., Lisboa, 1951, i, p. 54. Subtraindo-se, do total de 6.000, os 3.500 soldados que haviam desembarcado em São Roque (Rio Grande do Norte) ou que se haviam agregado a caminho de Salvador: Boxer, The Dutch in Brazil, p. 95. !8 Nassau aos Estados Gerais, 16.1.1638, IHGB, DH, 2.

181

ÓLINDA

RESTAURADA

ficara reduzida a 300.!º A Paraíba foi menos afetada. É provável que cerca de

9.000 habitantes, brancos, índios e negros, tenham deixado o Nordeste. Mes-

mo quando em 1637 o governo holandês ordenou a evacuação da área entre o São Francisco e o rio Sergipe, fazendo passar para Alagoas os moradores com seus gados,*? é provável que, em vez de marchar para o norte, muitos tenham seguido para o sul. À guerra também beneficiou a marinha e as freguesias açucareiras. Para impedir o apoio que os campanhistas luso-brasileiros recebiam ao atacar o Brasil holandês, em 1636 as autoridades holandesas evacuaram para o norte

de Porto Calvo os moradores da área, longa de 10 milhas, entre a vila e o rio

de Santo Antônio (Peripueira). Mais numerosa terá sido a transferência, para a mata canavieira, da população que vivia a oeste da linha de 32 milhas de

currais e de roças que se estendia da Terra Nova, na capitania de Itamaracá,

a Sirinhaém, em Pernambuco.?! A medida visava também promover o me-

lhor aproveitamento agrícola das zonas sob a proteção imediata das praçasfortes holandesas, dependentes dos víveres locais. Deslocamentos intra-regionais foram igualmente encorajados pelas violências e extorsões praticadas pelos campanhistas luso-brasileiros e pelos bandoleiros que infestavam o interior do Brasil holandês, donde muitos moradores terem abandonado o baixo São Francisco, as Alagoas e Porto Calvo, para fixarem-se nas capitanias de Itamaracá e da Paraíba.” Durante a restauração, a decisão do comando luso-brasileiro de evacuar

os habitantes de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande teria provocado o deslocamento de 15.000 almas,?? que, somadas às 5.000 transferidas de Igaraçu, fre-

guesia bem povoada, totalizariam 20.000, embora certo memorial fale de

19 “Memorie door den kolonel Artichofsky”, 111.1637, Kroniek van het Historisch Genootschap [Utrecht], 5, 5 (1870), p. 338.

20 “Memória do que sucedeu no exército de Pernambuco desde 6 de junho de 1637”, BNL, FG, 1555.

21 Jaerlyck verhael, iv, pp. 179-80 e 246-7. 22 “Pro posta que o capitão Francisco Teixeira fez”, 28.1x.1639, BA, 51-X-7.

23 Pedro Ferraz Barreto a Afonso de Barros Caminha, 6.x.1646, AHU, PA, Pco., iii.

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CrENTE

DE GUERRA

100.000 pessoas,Zé soma a que não se pode dar crédito. O despovoamento do norte redundou em proveito das freguesias do sul de Pernambuco, especialmente do Cabo e Ipojuca, onde se fixou a maioria dos retirados, e de Sirinhaém, de onde se lhes proibiu de passar.” Aí permaneceriam até o fim da guerra, a maior parte a granjear suas lavouras, muitos a plantarem cana e fabricar açúcar em partidos e engenhos arrendados.

EFETIVOS: ALGUNS

NÚMEROS

No período ante bellum, a regra fora a insuficiência dos meios de defesa em caso de ataque inimigo ou mesmo de levante da indiada ou da escravaria. Somente na esteira do assalto de James Lancaster ao Recife (1593), estabele-

ceu-se guarnição em Pernambuco, levantando-se duas companhias de 220 mosqueteiros e arcabuzeiros, uma sediada em Olinda, outra no anteporto. Com gente de guerra que trouxera de Portugal e com efetivos da terra, o go-

vernador-geral Diogo Botelho criou terceiro contingente destinado, em situação de emergência, a assistir Itamaracá, onde não havia tropa paga. Na Pa-

raíba, capitania real, havia uma companhia na cidade, outra em Cabedelo e uma terceira no Inhobi, para o caso de hostilidades indígenas, mas suas forças eram ainda mais modestas que as de Pernambuco. A guarnição do Rio

Grande compunha-se de 130 pessoas, a grande maioria família dos soldados, gente do serviço, degredados e até escravos de particulares. Pela mesma época, começos do século XVII, Salvador, capital da América portuguesa, contava apenas com três companhias que perfaziam 252 soldados.?º

À paz entre a Espanha, a França e a Inglaterra, de um lado, e de outro, a trégua dos Doze Anos com as Províncias Unidas, parecem mesmo haver reduzido tais efetivos. Em 1609, a guarnição de Pernambuco não tinha mais

24 Representação das capitanias do norte do Estado do Brasil, s.d., mas de 1646, AHU, PA, Pco., lil.

> História da guerra, pp. 426-8. 26 J, A. Gonsalves de Mello (ed.), “Relação de Ambrósio de Siqueira da receita e despesa do Estado do Brasil (1605)”, RIAP, 49 (1977), passim.

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OLINDA RESTAURADA

de 60 homens, embora estivesse previsto o total de 150; Itamaracá continuava a depender de Olinda; a Paraíba era presidiada por 50 mosqueteiros e arcabuzeiros; e o Rio Grande, por 60. De fato, a defesa da colônia dependia das milícias, bem mais numerosas e socialmente valorizadas, embora inteira-

mente despreparadas. Naquele mesmo ano, Pernambuco contava com 13 companhias de segunda linha, algumas com mais de 200 homens, além de quatro unidades de cavalaria, equipadas às próprias custas; Itamaracá, com

duas; e a Paraíba, com três.?” Em 1616, Pernambuco dispunha de 90 soldados, a Paraíba, 20, o Rio Grande, 80, enquanto Itamaracá continuava sem tropa paga.?º Daí que, ao chegar La Ravardiêre preso do Maranhão, o governador-geral Gaspar de Souza, então em Olinda, procurasse impressioná-lo,

fazendo desfilar cerca de 1.500 milicianos, “muito mal armados”, a pé e a cavalo, além de providenciar para que o prisioneiro só entrasse na vila à noite, de modo a não perceber a insuficiência da guarnição.?? O francês é que não se deixou enganar por tais espertezas, e de regresso à Europa, procurará inte-

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ressar os holandeses no ataque contra Pernambuco. O problema consistia também na impossibilidade de mobilizar as milícias ao mesmo tempo, como indica a precaução, tomada contra levantes de escravos e índios, de permitir-se que aos alardes e mostras periódicas apenas comparecessem a metade ou 1/3 da tropa de segunda linha. Ademais, a gente de freguesias remotas, como as do sul de Pernambuco, estava dispensada de acudir à revista geral, sendo inspecionada in loco. Segundo Diogo de Cam-

pos Moreno, em caso de ataque estrangeiro não se conseguiria juntar de ime-

diato mais de 600 homens, computando os soldados da guarnição e as milícias olindenses, nas quais não se podia confiar por serem compostas de “tendeiros, adventícios, mercadores”, que “quando hão-de tomar o arcabuz para pelejar, tomam o livro de razão e o fato para se acolher”, de modo que “ninguém se engane com gente do povo, cuidando que nas suas mãos está a sua

27 “Relação das praças-fortes”, pp. 187, 191 -3, 195, 197-8.

28 “Livro segundo”, pp. 24-6, 28-9. 22 “Discurso sobre o tema da tomada de Pernambuco, dedicado aos Senhores Diretores da

Companhia Ocidental”, s.d., RIAP, $1 (1979), pp. 249-50. 184

GENTE DE GUERRA

defesa”. No Recife, é que sempre havia 80 homens militarizáveis e 300 marinheiros dos navios mercantes para uma eventualidade indesejada.?” Mesmo quando a situação internacional mudou, devido à expiração da trégua hispano-neerlandesa, as carências não foram remediadas. Se em 1624, quando da ocupação holandesa da Bahia, havia 400 soldados em Pernambuco,

é que o cômputo incluía as milícias de Olinda, de cujo profissionalismo nin-

guém se fiava, a começar pelo governador Matias de Albuquerque.”! De retorno a Pernambuco em 1629, com a incumbência de organizar a resistência contra o anunciado ataque da W.I.C., Matias encontrou uma guarnição de 130 homens, distribuídos em três companhias. As ordenanças de OlindaRecife, únicas a poderem ser mobilizadas de imediato, constavam de quatro unidades com 650 soldados, desarmadas e sem treinamento.” Mas a culpa

não era só da Coroa. Autoridades locais e pró-homens, convencidos da eficácia da guerra volante, menosprezavam a tropa paga, que complementava o soldo exercendo ofícios manuais como alfaiates e sapateiros. No Estado do Brasil parecia “coisa desnecessária o haver soldados”, observava Diogo de Campos Moreno, que lembrava, contudo, que lhes cabia não apenas proteger a colônia contra os estrangeiros mas preservar o poder da Coroa face aos proprietários rurais que, nos seus engenhos, comportavam-se como verdadeiros régulos.? No primeiro ano e meio de guerra, recorreu-se às milícias. Em julho de 1631, o exército de resistência compunha-se maciçamente das ordenanças rurais, na sua maioria procedentes das freguesias meridionais, no total de 3.500 homens, além de cinco companhias “volantes”, ou de guerrilhas, com outros 200, e cerca de 300 índios. Neste período, os soldados trazidos do Reino pelas caravelas de socorro eram apenas 580.24 Com a chegada dos terços de Bagnuolo, passou-se a dispor no papel de 5.512 efetivos, dos quais 3.095

milicianos, 500 ordenanças de cavalaria, 417 irregulares, 200 índios, 900 es*0 “Relação das praças-fortes”, 201. 1 Dutra, “Matias de Albuquerque”, pp. 57-9. 32 Memórias diárias, pp.6e8.

33 “Relação das praças-fortes”, pp. 201-2. 34 “Verlkdaring gedaan door Pedro Álvares de Madeira”, 10.vii. 1631, CJH, BPB.

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a sério as cifras relativas às milícias, que não resistiram aos primeiros tempos da luta, dissolvendo-se na deserção e na indisciplina, ao passo que a minoria

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panhóis e napolitanos e 400 soldados de Portugal.” Contudo, não se levem

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incorporava-se à tropa de primeira linha e às companhias volantes. Duarte de Albuquerque Coelho atribuía o fato a serem naturalmente os milicianos “mais afeitos às delícias do que às armas”, ou, como expressaria Bagnuolo, aptos a servirem-se antes dos pés do que das mãos.?º Já na primeira escaramuça com o inimigo, às margens do rio Doce, “fo-

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ram entrando mais prontos pela mata do que pelo perigo”. Ao saber-se no Recife da perda de Olinda, a gente que defendia o porto “começou a fugir, de maneira que muitos se lançaram no rio Beberibe, onde se afogaram, outros [morreram] de nossos mosquetaços que, para lhes obviar a fugida, lhes mandou atirar o sargento-mor”. As milícias de Sirinhaém não se demoraram três dias no Arraial. Com o falecimento do seu capitão, a companhia regressou a Ipojuca. Quem “chegava de tarde não aparecia de manhã”. Para resolver o problema, instituiu-se o rodízio pelo qual as unidades de milícias assistiriam

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por turnos de quarenta dias no Arraial ou nas estâncias que cercavam o Recife, sistema que tampouco deu resultado, pois “acudiam poucos e demoravam-

se menos”. Somente a partir do momento em que a ofensiva neerlandesa se estendeu ao interior, foi possível empregar, embora de maneira local e espo-

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rádica, a população livre do campo, a qual passara a sentir na própria carne

os desastres Entre das milícias da chegada

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ou papel”, “foram chegando os socorros de Portugal e com a nova gente, es-

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timando-se em menos os que cá serviam, ou porque todo estrangeiro se faz

respeitado no lugar que se corre ou porque o superior quis antes dar[-lhe] o

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da guerra.” soldados e moradores da terra, a explicação era outra. À deserção devera-se ao pouco caso com que passaram a ser tratadas a partir dos contingentes profissionais de Bagnuolo.?º Segundo a “Carta

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> “Informatie genomen den 29 juni 1632”, “Instructie genomen den 29 juni 1632” e “Informatie genomen den 8 augustus 1632”, CJH, BPB; Memórias diárias, p. 64.

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36 Memórias diárias, p. 20; Bagnuolo a Felipe IV, 3.vi.1633, AGS, GA, 1091.

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3” Memórias diárias, pp. 20, 22, 27-8, 38, 41, 117, 145, 157, 162, 188 e 214. 38 Livro primeiro, p. 56.

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GGENTE DE GUERRA

primeiro lugar em seu gosto”.?? O ressentimento local ainda estava vivo quando Calado escreveu sua crônica: “começou-se a fazer mais caso dos capitães e soldados que haviam vindo do Reino”, com o que “uns se foram indo para suas casas, outros afrouxaram do contínuo trabalho, assim diurno como noturno, com que andavam oprimidos, dizendo que trabalhassem os soldados que haviam vindo do Reino, pois eram pagos, e que soubessem e experimen-

tassem ao que sabia o andar por matos e atoleiros”.º A modéstia do socorro enviado em 1631 sob o comando de Bagnuolo também teve impacto negativo sobre o moral da resistência. Em 1632, os efetivos locais estavam reduzidos a 500 homens integrados à tropa de primeira linha ou irregulares que constituíam as esquadras volantes, no total de 1.200 soldados, sem contar os índios.4 Nos exércitos multinacionais de Felipe IV, não se dava valia aos soldados recrutados localmente, notórios pelas altas taxas de deserção, donde a preferência pela utilização de tropas italianas e castelhanas nos Países Baixos, onde os valões eram esnobados, como os italianos na Itália e os castelhanos em Castela. Como assinalou Geoffrey Parker, “a experiência havia demonstrado que a eficácia militar da maioria das tropas aumentava na proporção direta da distância entre o teatro de operações e seu país de origem”.22 Acreditava-se também que um exército exclusivamente nacional, necessariamente recrutado nas camadas mais pobres do campesinato e da população urbana, representava um grande risco político para o sistema de poder. Por isso

também aqueles Estados que careciam de caráter multinacional, como a França e as Províncias Unidas, recrutavam maciçamente nos países vizinhos; a exceção era a Suécia de Gustavo Adolfo, que se tornará assim a precursora dos exércitos nacionais.) Dada a pouca inclinação dos neerlandeses a aceitarem os baixos soldos pagos pela W.I.C., suas tropas no Brasil contavam com bom número de soldados e oficiais alemães, cujos compatriotas, fugin32 Tbid., p. 428.

40 Lucideno, i, p. 31. 41 Memórias diárias, pp. 68, 95. 2 Parker, The army of Flanders, p. 30.

43 Franco Cardini, La culture de la guerre, Paris, 1992, pp. 195-6.

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do às misérias da Guerra dos Trinta Anos, representavam a maioria da imigração estrangeira na República; e subsidiariamente com ingleses, franceses e escoceses.““ Em começos de 1635, ano decisivo, o exército da resistência dispunha de 1.950 homens, dos quais 450 no Arraial, 600 no Cabo de Santo Agostinho, 300 em Sirinhaém e 600 em Porto Calvo. Após a queda do Arraial e do Cabo, ele ficou reduzido a 900 efetivos. Em finais do ano, reuniu-se-lhe o con-

tingente de Rojas y Borja, 1.600 soldados, dos quais 700 portugueses, 500 castelhanos e 400 napolitanos.iº Após a derrota de Mata Redonda em janeiro de 1636, havia 2.100 efetivos e quantidade não discriminada de índios sob o comando de Camarão; mas ao encerrar-se o ano a mostra geral só indicava 1.726 soldados: 1.012 portugueses, 355 castelhanos e 359 napolitanos, a maioria estropiados ou enfermos.” Para explicar a diminuição de cerca de 400 homens, há que levar em conta as baixas e deserções, além da possibilidade de não se terem computado os campanhistas em operação no território sob controle inimigo.“* Os soldados da terra mal chegavam a 100, pelo que foram incorporados ao terço português. Em outubro de 1637, a revista passada em Sergipe, após a perda de Porto Calvo e das Alagoas, indicava apenas 1.015 soldados.? Já na Bahia, os quatro terços de Pernambuco que partici-

44 Israel, The Dutch republic, p. 330. 15 Memórias diárias, pp. 185-6; Rojas y Borja a Felipe IV, 31.x1i.1635, AGS, GA, 1173.

17 Memórias diárias, p. 233; “Breve e sucinta relação desta guerra de Pernambuco desde março

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deste ano de 1636 até dezembro do mesmo ano”, BNL, EG, 1555; duquesa de Mântua a Felipe IV, 4.1v.1637, AGS, GA, 1201.

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16 Segundo Rojas y Borja, teriam vindo com ele 1.700 soldados mas Duarte de Albuquerque Coelho alude a 1.600: Memórias diárias, p. 220. Ettore de la Calce, oficial napolitano feito prisioneiro pelos holandeses, inflacionou a cifra para 2.400: Jaerlyck verhael, iv, p. 216.

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48 Em todo caso, a redução comparava favoravelmente com as cifras verificadas nos exérci-

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tos coevos, em que “a taxa média de usura para as tropas de elite treinadas [...] gira em torno de 2% ao mês, ou seja, grosso modo, um quarto do efetivo total por ano”: Parker, La révolution militaire, pp. 84-5. í9 Certidão de Manuel de Vasconcelos, 28.x.1637; e Bagnuolo à duquesa de Mântua, 6.xi, 1637, AGS, GA, 1214.

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GENTE DE GUERRA

param da expedição do conde da Torre haviam somado 1.584 homens, me-

diante a integração nas fileiras de refugiados do Nordeste.”? A composição do exército restaurador oferece contraste marcante. Com a Restauração portuguesa, já não se podia dispor de contingentes castelhanos, que grosso modo haviam sido desarmados na Bahia em 1641 e reembarcados para a Europa, embora haja notícia de uma companhia de 70 veteranos de Nápoles, de mistura com alguns castelhanos,”! que, tendo optado por permanecer em Salvador, fora mandada depois para Pernambuco. O comando luso-brasileiro ainda formou, sob as ordens de Hooghstraten, que negociara a entrega da fortaleza do Pontal, um terço de 250 soldados holandeses, ineleses e franceses que se haviam rendido no São Francisco, em Porto Calvo e no Cabo; mas suspeitos de contatos com o governo do Recife, foram em breve recambiados para a Bahia.?? Por outro lado, em guerra com a Espanha, Por-

tugal não podia despachar efetivos numerosos e experientes para o Nordeste. À restauração caracterizou-se assim pela predominância dos colonos, que em agosto de 1645 eram 1.200. À vitória das Tabocas foi obtida apenas com estes “moradores da terra”,?> de vez que a “infantaria de fora”, ou seja, os terços enviados de Salvador sob a chefia de André Vidal de Negreiros e de Martim Soares Moreno, ainda não haviam chegado em apoio da “infantaria natural”, vale dizer, do núcleo original recrutado por Fernandes Vieira. Mas se a “infantaria de fora” compreendia soldados da expedição do conde da Torre e recrutas baianos, incorporava também veteranos da resistência, em especial número ignorado dos soldados que se haviam retirado com Bagnuolo, como também de emigrados que se tinham alistado em Salvador. Por uma declaração de Vidal em Pernambuco, sabe-se que “os capitães e soldados que trouxe comigo da Bahia [...] quase todos são filhos desta terra”,

50 “Soma da gente que constou achar-se na mostra que se tomou em 27 de janeiro de 1639”, (di. 1 Depoimento de André da Rosa, 11.xi.1652, ARA, OWIC, 67; Alto Governo aos XIX,

26.11.1648, CJH, BPB. 2 Lucideno, ii, pp. 162, 214-17.

55 Ibid., ii, p. 21. 54 Tbid., ii, p. 101.

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OLINDA RESTAURADA

Graças à estabilidade da frente militar, que desde os primeiros meses da insurreição limitou a grande maioria das operações às escaramuças ao longo da linha de estâncias que cingia o Recife a poente, os efetivos da restauração conheceram menos oscilações que os da resistência. Em 1646, eles eram de

2.750 soldados; às vésperas da primeira batalha dos em 1651, de 2.158; em 1652, de 3.000; e em 1654, índios. A “infantaria natural” correspondeu a cerca Ela incluía as companhias levantadas em Pernambuco

Guararapes, de 3.550; de 3.277, sem falar nos de dois terços do total. (24), em Igaraçu-Goia-

na (6) e na Paraíba (5) em 1645 ou organizadas com recrutas oriundos da

população evacuada das capitanias de cima em 1646, mobilizadas por turnos de três meses, e, esporadicamente, como em 1648, licenciadas por vários,

de modo a aliviar as dificuldades de abastecimento. Por este sistema de rodízio, uma companhia em duas permanecia no Arraial. No âmbito da “infantaria natural”, a mais numerosa, o terço de Fernandes Vieira reunia 1.800

homens em 1648, e, em 1651, 733, redução a ser atribuída não só às baixas

mas à adoção da rotatividade. Suas companhias tinham em média 33 soldados, dispersos pelo Arraial, Cabo, estâncias em torno do Recife, e em São Lourenço e Alagoas. A “infantaria natural” englobava finalmente as companhias de índios, negros e mestiços, que montavam a 650 homens em 1648 e 700 em 1651.” Pelo menos dois terços da “infantaria natural” foram recrutados entre

as camadas que viviam à margem da economia açucareira, ocupadas na la-

voura de subsistência e na extração de pau-brasil. Ao rebelar-se na Várzea em junho de 1645, Fernandes Vieira só pudera reunir 130 homens. Ao internarse pela ribeira do Capibaribe é que levantou o grosso da tropa com que derrotará o coronel Haus em Tabocas. Ao partir para Maciape, já dispunha de

* Representação das capitanias do Nordeste, s.d., mas de fins de 1646, AHU, PA, Pco., iii; História da guerra, p. 472; “Sterckte van onsen vyjant in de maent October 1651”, anexo à Generale Missive de 5.x11.1651, ARA, OWIC, 66; Cristóvão de Almeida a D. João IV, 15.xi.1652, BNL, FG, 218, n. 134; Francisco Barreto a Castel Melhor, 5.1.1654, BA, 51-VL-19.

56 Prática que, aliás, continuaria no período post bellum, pelo menos até meados dos anos sessenta: Francisco de Brito Freyre a D. Afonso VI, 23.11.1663, BA, S1-XI-1. *! “Sterckte van onsen vyjant”, ARA, OWIC, 66; História da guerra, p. 472.

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GENTE

DE GUERRA

250 homens e 30 escravos; ali agregaram-se-lhe 90 indivíduos. Nos três dias seguintes, recrutaram-se mais de “oitocentos homens brancos, mamelucos e mulatos, entre os quais haveria cento e trinta espingardas grandes e pequenas, alguns dardos, foices e paus tostados”, sinal de que não se tratava de grandes proprietários ou de seus séquitos. Foi, portanto, esta “gente da freguesia de São Lourenço e da ribeira do Capibaribe” que constituiu a espinha dorsal do terço de Pernambuco, sendo “a melhor por haver alí muitos homens que na guerra passada haviam sido soldados [...] e muitos tinham suas armas de fogo escondidas”.º Enquanto isto, só com muita dificuldade Amador de Araújo conseguiu pôr em campo em Ipojuca, Cabo e Muribeca, ricas e populosas freguesias açucareiras, o total de 400 homens com que coadjuvou Fernandes Vieira.” A “infantaria de fora” incluía os contingentes de Vidal de Negreiros e de Martim Soares Moreno, soldados vindos do Reino com Francisco Barreto (80 veteranos e 96 “bisonhos”, ou recrutas, incorporados à força em aldeias das cercanias do Porto) e, a partir de 1648, outros 280 vindos da Bahia bem

como o terço levantado na ilha Terceira por Francisco de Figueiroa.” Em 1646, a “infantaria de fora” somava 820 homens; em 1648, 1.100; em 1651, 723.81 Neste último ano, enquanto a “infantaria natural” compreendia 733 soldados sob Fernandes Vieira, 300 índios e 400 africanos, montando a 1.433, a “infantaria de fora” contava com os 360 homens do terço de Vidal de Negreiros e os 363 açorianos de Figueiroa (média de 27 por companhia), perfazendo 723. Os açorianos dividiam-se pelo Arraial, Olinda (de onde podiam acorrer ao norte da capitania) e praias do sul, como o rio Jangada, Pontal, Tamandaré e Porto das Pedras. O terço de Vidal de Negreiros (média de 25

58 Lucideno, i, pp. 378, 393-4; História da guerra, pp. 218-9. 9 Lucideno, 1, pp. 396 e 409; Matheus van den Broeck, “Diário ou narração histórica”,

RIHGB, 40, 1 (1877), p. 8.

S0 Representação de Francisco Barreto, 1647, AHU, PA, Ba., v; Felipe Bandeira de Melo a D. João IV, 19.v.1648, BNRJ, I, 34, 32, 8; História da guerra, p. 472; Alto Governo aos XIX, 9.vi1.1648, CJH, BPB; J. A. Gonsalves de Mello, Francisco de Figueiroa, Recife, 1954, p. 49.

61 Representação das capitanias do Nordeste, s.d., mas de fins de 1646, AHU, PA, Pco., iii; História da guerra, p. 472; “Sterckte van onsen vyjant”, ARA, OWIC, 66.

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OLINDA

RESTAURADA

por companhia) dispunha de 360 homens, cerca de metade dos quais no Ar-

raíial Novo e o restante disseminado pelas estâncias.? Às variações verificadas nestes terços deviam-se mais à deserção e às en-

fermidades do que à guerra, perdas que tiveram de ser preenchidas localmente. Francisco Barreto empenhou-se em aumentar os efetivos, recrutando colonos e formando novas companhias de mulatos, mamelucos e africanos. Os senho-

res cujos escravos ultrapassavam o número de três deviam contribuir com metade do excedente. Mediante este esforço, Barreto pôde contar para o

ataque final ao Recife com 3.277 soldados, sem incluir os índios. Do total, perto de 2.500 foram empregados nas operações de sítio da cidade e conquista das suas fortificações, enquanto os restantes guarneciam os presídios.“ As

companhias eram comandadas por brancos ou por quem passava por tal; e apenas no terço de Fernandes Vieira, assinala-se a presença de dois capitães mulatos, como era, aliás, o próprio chefe. É impossível quantificar a deserção entre os luso-brasileiros, embora, inexistindo alternativas atraentes, ela deva ter sido substancialmente inferior à dos exércitos europeus, em que podia chegar a 40% ou mais. Em todo caso, terá sido maior durante a guerra de resistência. Em 1639, na Bahia, o conde

de Bagnuolo alertava o conde da Torre contra “a muita quantidade de gente de Goiana, Paraíba e de toda a capitania de Pernambuco” que viera alistar-se para o ataque contra o Brasil holandês com a única intenção de receber o soldo duplo prometido e cair no mato, como haviam feito em Porto Calvo.*º Os derradeiros anos da restauração também assistiram a inúmeras

deserções, causadas sobretudo pela miséria geral. Os soldados fugiam para Alagoas, onde ficavam à solta pelos currais de gado do São Francisco, donde a solicitação de Francisco Barreto ao governador-geral para que lançasse 02 “Sterckte van onsen vyjant”, ARA, OWIC, 66. 63 Depoimentos de diversos, 2.vi.1651, ARA, OWIC, 66.

64 Francisco Barreto a Castel Melhor, 5.1.1654, BA, 51-V1-19; J. A. Gonsalves de Mello, A rendição dos holandeses no Recife (1654), Recife, 1979, pp. 103, 111, 123. 65 Parker, The army of Planders, pp. 207-11, e “O soldado”, Villari, O homem barroco, pp.

42-3; Thompson, War and government in Habsburg Spain, p. 112. 66 Bagnuolo ao conde da Torre, 19.1.1639, CCT, ii.

192

GENTE DE GUERRA

a pena de morte e de confisco dos bens contra quem quer que os ajudasse.” Castel Melhor não atendeu a sugestão mas encarregou os capitães-mores da Bahia e de Sergipe de levarem-nos de volta ao exército de Pernambuco, sal-

vo os criminosos de morte. Em fins de 1652, incorporou-se uma companhia de 46 destes indivíduos.ºº

NEGROS E ÍNDIOS NA GUERRA BRASÍLICA

Já se apontou a razão pela qual o recrutamento de escravos não alcan-

çou níveis significativos. Em 1636, os henriques não passavam de 80.º? Na Bahia, em 1639, somavam 138.70 A restauração engrossou suas fileiras: em 1648, somavam 300.1 Em 1652, os henriques perfaziam 400 homens, ou

15% dos efetivos, não se compondo apenas de africanos ou crioulos, mas “de toda a sorte de mestiços, mulatos e mamelucos”, muitos dos quais temidos quilombolas, atraídos por um perdão geral. Um desertor italiano não hesitava, aliás, em caracterizá-los como “os melhores soldados, dos quais se tira mais trabalho”.?2 Por outro lado, negros e escravos não participaram da restauração apenas como henriques, mas foram disseminados pelos outros terços, provavelmente por motivos de segurança, tanto assim que, terminado o conflito, Francisco Barreto calculava em perto de 900 seu total, quer emprestados por seus donos quer recrutados contra a vontade destes.” Durante a resistência, Matias de Albuquerque fora extremamente cuidadoso ao aceitar os serviços de Henrique Dias e seu bando, que deu por forros

57 Avas da Câmara da Bahia, iii, p. 145.

68 AUC, CA, 31, fls. 6v-7 e 8-8y.

92 Memórias diárias, pp. 242, 254, 79 “Relação da gente que se achou [...) pela mostra que se lhe tomou em 9 de maio ”, 12.v. 1639, CCT, ii. A História da guerra, p. 472. 2 Depoimento de André da Rosa, 11,x1.1652, ARA, OWIC, 67.

3 AHU, 15, fls. 193-193v; e 275, fls. 25 0 e 258v.

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(ÓLINDA RESTAURADA

mas após indenizar os proprietários, determinando que só africanos livres

poderiam ser doravante recrutados.“ Durante a restauração, mesmo Fernan-

des Vieira, em quem o escrúpulo estava longe de ser o traço predominante, usou de maneira tímida dos poderes, segundo dizia amplos, que lhe teria dado D. João IV para alforriar os africanos que tomassem armas.”? Ao convocar o povo à insurreição, ele comprometeu-se a reembolsar pelo justo preço seus senhores.* Por ocasião da batalha das Tabocas (3.viii. 1645), Vieira alforriou

vários pretos, sob a condição de servirem pela duração do conflito, mas neste caso tratava-se de peças que lhe pertenciam.” É certo que, nestes primeiros meses de luta, houve reclamações de que os henriques “tiravam do ferro os seus parceiros e os levavam, e quando queixavam-se os proprietários, os governadores [da guerra] riam-se”.8 Ao próprio Vieira acusou-se de, a pretexto de recrutamento, apossar-se de escravos de terceiros.”? Como vimos, Francisco Barreto foi mais drástico, obrigando os senhores que possuíam mais de três escravos a emprestarem metade dos que excedessem este número.8º Via de regra, portanto, a propriedade servil foi respeitada. Muitos henriques foram alistados a título de empréstimo.º! Como cativos e não como forros, é que mataram e morreram. Terminada a guerra, os donos os exigiram de volta e quando resistiam a regressar às senzalas, queimavam-se seus papéis

de serviço, de modo a impedi-los de requerer a alforria à Coroa. Em Lisboa, Henrique Dias reivindicará da Rainha Regente a libertação dos soldados cativos do seu terço. À questão foi finalmente resolvida com base em parecer do Conselho Ultramarino, indenizando-se moderadamente os senhores reme-

74 Memórias diárias, p. 109; Lucideno, i, p. 349. 2 “Notícia dada ao prudente Sr. Dr. Feliciano Dourado para a mandar ler”, BNL, FG, 27,

76, reproduzida por Varnhagen, História das lutas, pp. 350-2.

76 Lucideno, i, p. 378. 7! Ibid., ii, p. 19. 78 Van den Broeck, “Diário ou narração histórica”, p. 52. 9 “Papéis inéditos sobre João Fernandes Vieira”, pp. 34, 36 e 44. 80 Depoimentos de diversos, 2.vi.1651, ARA, OWIC, 66. 81 7. A. Gonsalves de Mello, Henrique Dias, Recife, 1954, p. 49.

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GENTE DE GUERRA

diados e determinando-se a manumissão gratuita aos senhores acaudalados, de maneira a garantir-se, em todo caso, a liberdade aos pretos.º?

Na resistência, em meio às circunstâncias mais árduas da emigração, o

senhor procurava levar o maior número possível de cativos, que no exílio poderia alugar ou vender. Ao recolher-se às praças-fortes, trazia-os consigo,

como no Arraial, onde os holandeses surpreenderam mais de 200 africanos,

ou em Iejucopapo onze anos depois.º> A capitulação do Arraial em 1635 previu a devolução dos pretos a quem de direito mas a do Cabo, pouco depois, dispôs que parte deles seria rateada entre os oficiais.“ Na retirada para a Bahia, até mesmo os jesuítas do Colégio de Olinda insistiam em conduzi-los,

malgrado os transtornos da viagem e do aprovisionamento.”” A economia

baiana é que se beneficiou do dreno de mão-de-obra, a ponto de passar a dispor da escravaria mais numerosa do Brasil.ºº Do mais rico senhor de engenho de Pernambuco, João Pais Barreto, primeiro morgado do Cabo, sabe-

se que levou para Salvador nada menos de 350 africanos.” Nos engenhos

abandonados da região que se estende do Recife ao rio Una, o conselheiro Schott, em viagem de inspeção, só toparia com negros velhos e crianças, de-

masiado fracos para a aventura dos caminhos.88 Em outras áreas, contudo, quando o escravo não fugiu para os quilombos ou não foi apresado por índios bravios, como os 60 escravos que Fernandes Vieira resgatará quando governar a Paraíba,*? os plantéis permaneceram razoavelmente intactos. Engenhos houve que foram revendidos pelo governo holandês com seus negros e bois de tração.

82 Co.UO., 9.v11.1659, AHU, PA, Pco., iv; D. Luísa de Gusmão a Francisco Barre to, 5.x1.

1657, AHU, 275; Gonsalves de Mello, Henrique Dias, pp. 48-9. º3 Conselho Político aos XIX, 15-25.vi.1635, CJH, BPB; História da guerra, p. 392.

84 Juerlyck verhael, iv, pp. 148, 160,

85 Memórias diárias, p. 215; laerlyck verhael, iv, p. 247, 86 Maurício Goulart, Escravidão africana no Brasil, São Paulo, 1949, p. LIA.

*” Memórias diárias, p. 203 B8 Fontes, i, pp. 58, 64, 66-8. º2 Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, 1, p. 159.

195

OLINDA RESTAURADA

A invasão holandesa criou o temor de um levante geral dos escravos.” Malgrado a reação moderada de “uma grande quantidade de gente que se devia tomar por violentada”,?! adotaram-se providências cautelares. Durante a restauração, a estância ocupada pelos henriques (e que deu o nome ao bairro do Recife atual) localizava-se em sítio onde se poderia facilmente esmagar um motim ou revolta: a norte, cercavam-na as estâncias do caminho de Olinda, a oeste o Arraial e ao sul a estância dos Afogados. Não se deve, portanto, idealizar a participação de escravos na guerra holandesa, associando-a a um sentimento de confraternização racial, a exemplo do que fará o imaginário da restauração. Afinal de contas, a criação de milícias negras, auxiliares dos corpos

pois se sem negros não haveria Brasil, sem índios não haveria negros, já que não poderia haver segurança.?? Quando, nos anos finais da guerra, intensi-

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de linha, esteve longe de representar originalidade luso-brasileira, uma vez que ocorreu até mesmo em áreas de colonização inglesa, onde reconhecidamente as barreiras raciais foram mais rigorosas que no Brasil. É muito provável que os primeiros capitães de campo, nomeados no período ante bellum, tenham disposto de tropas compostas de índios.?2 Informação de jesuíta anônimo com longa experiência da terra acentuava serem eles grandemente temidos pelos africanos, “porque pelos montes lhes vão a buscar, prender e castigar”, constituindo, portanto, a salvação dos colonos, ficaram-se as tropelias dos quilombolas contra os distritos meridionais de Per-

nambuco, Francisco Barreto confiou aos índios a tarefa de debelá-las.* O

ódio interétnico, atiçado pelos colonizadores, portugueses ou holandeses, podia atingir extremos de crueldade, como no episódio em que soldados pre-

tos a serviço da W.I.C. cortaram a cabeça de alguns índios de Camarão, e,

29 Conselho de Portugal, 24.ix.1631, BNRJ, 1, 2, 35, reproduzido em Varnhagen, História das lutas, pp. 303-9.

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“carregando-as espetadas em chuços pelo meio das ruas [do Recife], cantando

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22 “Cartas d'El Rei escritas aos senhores Álvaro de Souza e Gaspar de Souza”, n. 57.

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21 Co.Eo., 29.iv.1630, BNRJ, 1, 2, 35, fls. 134v.-137.

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94 AUC, CA, 31, fls. 10v.-11.

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25 “Información que hize por mandado de Vuestra Majestad sobre unos capítulos que Duarte Gomes da Silveira, vecino de la Paraíba, envió a la Mesa de Conciéncia”, s.d., AGS, SP, 1583.

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GENTE

DE GUERRA

e dançando à sua moda, jogaram bola com as mesmas e depois lançaram-nas no mar”???

À guerra nem afetou a escravidão como sistema de trabalho nem a noção do escravo como objeto, passível de apropriação, inclusive pela violência

e pelo roubo. Ao rebentar a insurreição restauradora, os cativos pertencentes a holandeses e a judeus que cafam às mãos dos luso-brasileiros eram doados, a título de incentivo, a capitães e soldados (e até mesmo aos henriques); outros eram mandados para a Bahia, a serem vendidos para custeio das despesas militares.?º Fernandes Vieira teria mesmo obsegquiado o governador-geral Antônio Teles da Silva com um bom lote, repartindo outros por amigos € clientes; o mestre-de-campo Martim Soares Moreno presenteara um sobrinho clérigo; e o sargento-mor Antônio Dias Cardoso possuía 70 ou 80 arrendados a colonos. O mesmo fizeram outros oficiais, inclusive o Camarão.” Nestas circunstâncias, não admira que ninguém soubesse ao certo o que acontecera às muitas peças que um Baltazar da Fonseca, por exemplo, mantivera no corte do pau-brasil.? As crônicas luso-brasileiras referem as proezas dos soldados, inclusive henriques, que se arriscavam pelas imediações das fortalezas inimigas a fim de “tomar negros”, que escondiam sob as vistas benevolentes dos seus comandantes. Como, porém, recusar a quem não recebia soldo a oportunidade de

vender um negro vadio? Em torno de tais capturas, surgiram sérias disputas.” Às excursões também ofereciam a ocasião de pilhagens. Em Itamaracá (1646), elas apresaram 14 cativos da W.I.C, e de particulares neerlandeses. No ano

seguinte, uma expedição ao Rio Grande rendeu “muitos negros”. Outra à Paraíba, 22. Em

1651, foram apresados 50, também no Rio Grande.!9º Em-

bora a fuga de escravos para o lado neerlandês fosse, em teoria, punida com a 25 Moreau, Histoire des derniers troubles, cit. %6 Lucideno, ii, p. 179; “Diário ou breve discurso”, pp. 152, 168 e 219.

97 “Papéis inéditos sobre João Fernandes Vieira”, pp. 34, 36 e 44. 28 “Processo de Manuel de Morais”, pp. 27-8.

2 Lucideno, ii, pp. 178-9; História da guerra, p. 330. BPB.

109 DN, 3.v.1646, 12.i e 22.vi.1647, CJH; Ao.Go. aos Estados Gerais, 21.viii. 165 1;C.H,

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OLINDA RESTAURADA

pena de morte, se apresados eram restituídos aos proprietários luso-brasileiros, que pagavam uma gratificação ao soldado que os tomara. !º! Por outro

lado, quando os desertores do terço da Bahia levavam escravos furtados para

lá, o governador-geral Antônio Teles da Silva agia com rigor, vendendo as

peças e indenizando o dono.!?2 Do lado luso-brasileiro como do neerlandês, não houve consenso acerca da utilidade militar dos índios, que se revelaram tão infensos à disciplina euro-

péia da guerra quanto à rotina da produção açucareira. Camarão era, aliás, o

primeiro a admitir, embora com orgulho, serem os da sua raça precipitados e inquietos” e destituídos de “fleugma”.!º? Sustentava Bagnuolo que eles não serviriam “para outra coisa senão para que não desertem para o inimigo; e se algumas vezes lutam, muitas não querem”. Daí que ele houvesse procurado despertar-lhes a belicosidade com rações de aguardente, experiência que se revelou contraproducente, de vez que “perderam a vista e mui poucos pelejaram”. toa O conde da Torre fazia o mesmo conceito dos soldados índios e negros.!? A atitude dos oficiais da terra era mais equilibrada, como também a dos neerlan-

deses, embora Van der Dussen critique-os duramente ao acentuar que “em parte alguma estão os índios mais satisfeitos do que quando vão à guerra mas não têm escrúpulos de, quando têm vontade, desertar das fileiras como velhacos”. Durante as marchas, “se esquivavam aqui e ali [...], voltando para suas casas”, de modo que “não nos foi possível mantê-los na mesma firme disciplina dos nossos soldados, se bem que recebessem soldo e ração mas em quantidade me-

nor”.!06 Como os holandeses, os luso-brasileiros também discriminavam no pagamento: enquanto cada soldado branco percebia 7.500 réis, africanos e índios

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contentavam-se com 5.000 réis. 197

101! AUC, CA, 31, fls. 5v.-6.

02 Lucideno, ii, p. 172. 103 História da guerra, p. 477.

104 Bagnuolo à duquesa de Mântua, 6.xi.1637, AGS, GA, 1214.

105 Conde da Torre a Duarte Brandão, 29.v.1639, CCT, ii.

106 Fontes, 1, p. 184.

107 Cosmo de Castro Passos a Felipe Bandeira de Melo, s.d. mas do primeiro semestre de 1652, ARA, OWIC, 66.

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GENTE DE GUERRA

Outras fontes neerlandesas exprimiam opinião menos etnocêntrica. No tocante aos tupis, reconhecia Cuthbert Pudsey que, graças ao treinamento,

“eles se tornaram muito bons soldados, cuidadosos de suas vigias, aprendendo também o uso das armas de fogo, bons mosqueteiros, audaciosos e preci-

sos na execução e excelentes coadjuvantes quando tínhamos êxito nos ataques”. Nos tapuias e a despeito de “sua incomparável força física”, é que não se podia confiar: no calor da refrega, por temor às armas de fogo, jogavam-se ao chão. Eram, contudo, de grande valia uma vez concluída a luta, pois graças à sua rapidez, faziam maravilhas na perseguição aos contrários, que invariavelmente alcançavam e matavam.!?8 Nieuhof pensava que “os tapuías não são tão bons guerreiros quanto os demais brasileiros”, entenda-se, os outros índios.!º? Contudo, o ex-jesuíta Manuel de Morais, grande perito no assunto,

lamentará que a resistência não houvesse sabido melhor empregá-los.!!º As tarefas que Moreau atribui aos índios no exército neerlandês eram as mesmas que eles desempenharam entre os luso-brasileiros: Conduziam-nos pelos lugares mais ásperos e difíceis, passavam eles próprios a nado os soldados que não ousavam aventurar-se nos grandes rios, marchavam e corriam com uma velocidade incomparável para frente, para

trás e para o lado, cortavam com machados que se lhes entregara os espinheiros e silvados espessos |...) levavam dois a dois numa maca, que é uma tela de algodão feita como as redes de pescadores, os oficiais cansados ou indispostos e os soldados doentes, projetavam as emboscadas, levavam os holandeses

a lugares onde os inimigos eram surpreendidos e mortos.!!!

Enumeração que não esgota o elenco dos serviços auxiliares prestados pelos indígenas, pois cumpriria aduzir o transporte de víveres, de armas e munição e de cargas em geral, a construção de pontes de jangadas para tra-

vessia dos rios, a edificação de defesas e paliçadas e reparo das fortificações, o 108 “Tournal”, fls. lv. 109 Memorável viagem, p. 320. Moreau e Pudsey também mencionam o pavor dos tapuias

às armas de fogo.

HO “Resposta que deu o licenciado Manuel de Morais”, cit. 111 Moreau, Histoire des derniers troubles, cit.

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cultivo de roçados de mandioca.!!? Ao menos durante a restauração, os ín-

dios residiam nas suas aldeias, ocupados na plantação de mantimentos, só sendo mobilizados parcialmente nas ocasiões de peleja.!!º Nas atividades bélicas propriamente ditas, não se limitavam os índios às emboscadas e assaltos, preparando armadilhas, fojos e estrepes à maneira dos que deitavam por caminhos e veredas na captura de animais bravios.!!4 Entre seus “muitos ardis de guerra”, havia umas armações que “serviam de trincheira” às tropas de Camarão: “uns carros emadeirados com uma manta ou máquina de guerra”, que levavam “diante de si com mosquetaria e outros instrumentos de guerra, para chegarem à cerca e abarbarem com ela e de cima atirarem aos cercados”, uma espécie de “máquina de pranchas à prova de bala, construída sobre três carros e montada de tal forma que podia ser impelida para a frente”, !!> o equivalente indígena da torre de sítio, utilizada na Antigúidade e na Idade Média. Índios e mamelucos houve que se notabilizaram pela capacidade para “descobrir e assegurar os caminhos”, como João de Almeida, ou Francisco

Ramos, tido na conta de “um dos mais espertos homens em diligência que há no Estado do Brasil, para tomar o rastro e descobrir emboscadas e andar por entre os matos, e de ânimo e valor para qualquer perigosa facção; e sobretudo grande espingardeiro e mui certo no atirar”.!!é Por trás destes no-

mes reinóis, não havia apenas aborígenes ou seus descendentes mestiços (a antroponímia do terço de Camarão era castiçamente portuguesa e católica), !!/

mas também negros e mulatos, que encontraram nas corridas e entradas uma alternativa ao banditismo dos bosch-neggers, os quilombolas, tão temidos das autoridades holandesas, e que, fruto da desorganização imposta pela guerra, infestavam o interior, e a cujos bandos pertenciam por vezes até desertores do

112 “Journal”, fls. 3r; Jaerlyck verhael, iv, p. 157.

13 Depoimento de André da Rosa, 11.xi.1652, ARA, OWIC, 67. Há Lucideno, à, p. 29. 15 Jaerlyck verhael, iv, p. 236. 16 Memórias diárias, p. 227; Lucideno, ii, p. 18.

7 “Lista da gente do terço do capitão-mor D. Antônio Felipe Camarão”, s.d., CCT, ii.

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exército da W.1.C.,!!8 o que contribuía para a fluidez da linha entre as operações de cunho militar e a criminalidade dos grupos de salteadores. O que mais impressionava os neerlandeses eram a agilidade e a mobilidade dos naturais do país. “Desempenados e ágeis”, caracterizou-os Nieuhof.!!? Dos tapuias, observou Barleus que “na velocidade da carreira dificilmente cedem às feras”.!?2 Rouloux Baro registraria surpresa ao ver o chefe tapuía, Janduí, correr como um rapaz: “coisa maravilhosa de ver um homem de mais de cem anos, ou mesmo, segundo a opinião dos seus, de mais de cento e sessenta anos, correr tão habilmente”. Para um companheiro de viagem de

Baro, o ancião devia ser antes “um diabo que um homem”.!21 Ao coronel

Arciszewski, atribuiu-se a confissão de que não sabia como se haver com a rapidez dos soldados de Camarão, que atacavam suas tropas ora em uma, ora em outra parte. Os três mamelucos encarregados de eliminar Fernandes Vieira eram além de bons espingardeiros, grandíssimos corredores”.!22

Na época, não só Calabar mas também os índios foram responsabilizados pela perda do Nordeste. Frei Calado estava entre os que descarregavam culpa maior sobre eles, chegando a considerá-los “a causa e o principal instrumento de os holandeses se apoderarem de toda a capitania de Pernambuco e de a conservarem tanto tempo”.!2? O mesmo pensava curiosamente o conde de Bagnuolo, pois embora não tivesse em bom conceito os soldados indígenas, reconhecia que “para vigias é a primeira nação do mundo”, e que, sem

eles, os neerlandeses jamais se atreveriam a trilhar os caminhos e veredas da

“8 Gonsalves de Mello, Tempo dos flamengos, pp. 161-2. 19 Memorável viagem, p. 310. 120 Fristória dos feitos, p. 260 .

'21 “Rélation du voyage de Rouloux Baro”, Relations véritables et curienses de Vile de Madagascar et du Brésil, Paris, 1651, p. 221. Que não se leve a sério, no entanto, a idade atribuída a Janduí, mero exemplo do mito da longevidade dos índios do Brasil, estudado por Sérgio Buarque de Holanda: Visão do paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, 2º ed., São Paulo, 1969, pp. 239-49. Como o ano cristão correspondia a dois anos do calendário indígena (segundo a colheita anual de duas safras de caju), Janduí devia estar pelos seus 80 anos. 22 História da guerra, pp. 112, 419, 123 Lucideno, i, pp. 95-6.

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região. !2é Quando, no fim da restauração, parte dos tapuias bandeou-se para os luso-brasileiros, o governador-geral, conde de Vila Pouca de Aguiar, con-

siderou o acontecimento uma terceira vitória dos Guararapes e até mais im-

portante que as duas primeiras.!? Em matéria de colaboracionismo, seria injusto acusar apenas o gentio,

pois os holandeses sempre contaram com os serviços de indivíduos, quer per-

tencentes à classe de senhores de engenho e de lavradores de cana, quer a camadas desafetas à ordem colonial portuguesa, como cristãos-novos, escravos e o Lumpenproletariat de mestiços vegetando à sombra dos engenhos, aqueles “pícaros da terra” a que se referia oficial espanhol, graças aos quais o invasor se teria tornado “mais prático do país” do que os soldados do Rei Católico.!2 Num ou noutro momento, todos estes grupos foram acusados de quinta-colunismo. É notória a tese, endossada por Lope de Vega numa de suas peças, acerca de uma conspiração de marranos portugueses que, conluiados com os parentes e correspondentes de Amsterdã, teriam estimulado os ataques à Bahia e a Pernambuco. Sabe-se igualmente do papel desempenhado por negros fugidos.!2 E até por religiosos, como o jesuíta Manuel de Morais, sem cuja ascendência sobre os índios “nunca os holandeses entravam [i.e., entrariam] pela

terra dentro e fizeram o dano que se tem feito”; ou Jerônimo de Paiva, que na Índia pertencera à Companhia, “grande hereje e blasfemo que se casou em

124 Bagnuolo a Felipe IV, 21.vii.1632, AGS, GA, 1070; idem a idem, 7.11.1637, AGS, GA, 1199.

25 Co.UO., 8.x.1649, AHU, Ba., v. Na resistência maranhense à dominação holandesa (1641-1643), o papel da indiada seria naturalmente muito mais importante. À acreditar-se fonte de finais do século XVII, o restabelecimento da suserania portuguesa devera-se aos índios que, em

pouco tempo, “destruíram dois mil holandeses [sic] que na cidade [de São Luís] estavam de presí-

dio e a restauraram”, demonstrando assim que “o ponto principal para a segurança do Estado [do Maranhão] são índios, com que, sem eles, por muito grande presídio que seja, é nada; e com eles

o pequeno presídio é muito”. As tropas que expulsaram os holandeses da região tinham, com efeito, uma composição bastante diversa da dos exércitos em Pernambuco: apenas 700 luso-brasileiros para nada menos de 3.000 índios: Miguel da Rosa Pimentel, “Informação do Estado do Maranhão”, 4.ix.1692, BA, 50-V-34, fls. 201v.-202; História dos feitos, p. 251.

126 Andrés Marín a D. Juan de Zufre, 18.x.1633, AGS, GA, 1117. 127 Gonsalves de Mello, Tempo dos flamengos, p. 206.

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Goiana”, morrendo num recontro com o terço de Camarão. !28 Entre os “pícaros da terra”, Domingos Fernandes, o Calabar, não foi o único a pagar com a vida: em 1636, arcabuzava-se certo Cosmo de Almeida, “um mulato da Paraíba, grande homem de cavalo e agora grande traidor”.!*? E ao longo do litoral, os holandeses contaram com pilotos portugueses e espanhóis.!?0

VETERANOS E BISONHOS

Péssima era a reputação dos soldados europeus enviados ao Nordeste, via

de regra recrutas. Na sua Arte militar, Luís Mendes de Vasconcelos descrevera as características físicas ideais do mosqueteiro e do piqueiro. Para mosqueteiros, cumpria escolher “homens membrudos e forçosos”; para piqueiros, “homens grandes de corpo e de convenientes forças”. Os de estatura meã só serviam para arcabuzeiro, porque “se cobre melhor e se mantém mais em campanha”.!º! Outra seria a realidade das levas recrutadas no Reino, muitas vezes à força, com destino ao Brasil. À elas, os oficiais e funcionários régios reservavam as mais depreciativas expressões. “Moços de pouca substância”, chamoulhes D. José Furtado de Mendonça.!32 A certo magote reunido na Andaluzia, o duque de Nájera referia-se como “gente miserável, distraída, pícaros, viandantes, desnudos, sem espada nem qualidades para soldados”. 155 A maioria dos

recrutas portugueses compunha-se de rapazes de 15 e 16 anos.!2é Ao recru-

128 “Processo de Manuel de Morais”, p. 102; “Memória do que tem sucedido em Pernambuco desde 4 de julho [de 1636] que se tem mandado ao Sr. Matias de Albuquerque”, BNL, FG,

1555. 129 “Memória do que tem sucedido em Pernambuco desde 4 de julho”, cit. 30 Jaerlyck verhael, iii, p. 41, e iv, p. 36. 131 Luís Mendes de Vasconcelos, Arte militar dividida em três partes, Alenquer,

1612, fls.

125-125v. e 127.

132 José Furtado de Mendonça a Felipe IV, 30.vi.1633, AGS, GA, 1091. 133 Duque de Nájera a Pedro Coloma, 3.11.1637, AGS, GA, 1199.

134 Manuel Severim de Faria, “Notícias de Portugal”, António Sérgio, Antologia dos econo-

mistas portugueses, p. 203.

203

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RESTAURADA

tamento das tropas lusitanas entre gente fisicamente tão despreparada talvez não fosse alheio o fato de que tanto se orgulhava D. Francisco Manuel de Melo, a inexistência, entre eles, de sedições e motins, fregientes entre solda-

dos alemães ou franceses.!?> De 600 homens chegados em 1633, 220 evadiram-se, adoeceram ou morreram na marcha da Paraíba ao Arraial.!2º Em 1637, em cerca de 1.700 soldados, 400 achavam-se enfermos.!?” Destes, muitos padeciam de feridas nas pernas, causadas pelas longas marchas e pela umidade e calor a que não estavam habituados.!*8 O próprio Bagnuolo sofreu de um apostema na perna, que lhe dava febre, achaque de que padeceu também Matheus van den Broeck na caminhada rumo à Bahia.!*? Houve soldados que foram vítimas da inexperiência do meio tropical, ingerindo frutas venenosas.!“º Na escala em Cabo Verde, a febre amarela dizimou boa parte dos efetivos da armada do conde da Torre, que já pagavam o preço da alimentação deteriorada e insuficiente que se lhes dava a bordo. !*! Muitos soldados já chegavam adoentados, a ponto de terem de ser imediatamente recolhidos pelas casas dos colonos, como os ilhéus do terço de Francisco de Figueiroa.!42 Quem não adoecia, ganhava os matos na primeira oportunidade, largando o mosquete pelo caminho. “Só servem para atrapalhar ou para se meter nos montes”, escrevia Bagnuolo. Do contingente vindo com Rojas y Borja, a maior parte era inútil.!43 Uma companhia levantada em Lamego compreendia “homens extravagantes [i.e., andarilhos] que não têm obrigação alguma e que se não sus155 Francisco Manuel de Melo, Política militar en avisos de generales, fl, 45. 136 Memórias diárias, p. 137.

137 Certidão de Manuel de Vasconcelos, 28.x.1637, AGS, GA, 1214.

158 Memórias diárias, p. 243. 139 “Memória do que sucedeu em Pernambuco desde 5 de abril de 1637”, BNL, EG, 1555; “Diário ou narração histórica”, p. 48.

140 Memórias diárias, p. 225. 141 Max Justo Guedes, “As guerras holandesas no mar”, pp. 246-7.

142 História da guerra, p. 527.

143 Bagnuolo a Felipe IV, 3.vi.1633, AGS, GA, 1091; Bagnuolo à duquesa de Mântua, 3.11.1636, AGS, GA, 1152.

204

GENTE DE GUERRA

tentaram mais que com o que furtaram”.!“ Os bisonhos recrutados nas ilhas

do Atlântico para a expedição do conde da Torre deram um péssimo exem-

plo na travessia do sertão, do Rio Grande à Bahia, abandonando facilmente

as armas, de modo que foram “mais junta de inimigos contra mim que de serviço d'El Rei”, na queixa de Luís Barbalho Bezerra.!*> A preferência pela incorporação de açorianos explicava-se em função da pletora demográfica das ilhas: eles custavam menos da metade do que se gastava com os peninsulares não só em termos de soldada mas também de alimentação.!4º Escusado acentuar que o serviço no Brasil foi prestado por efetivos exclusivamente recrutados nas camadas populares do Reino. Já em 1632 o Dr. João Pinto Ribeiro sustentava que um dos motivos dos nossos insucessos militares residia na preferência dos fidalgos portugueses por servirem em Flandres, recusando-se a seguir para o ultramar, ao contrário do que ocorrera quando da restauração da Bahia.!!” A militância na guerra holandesa ofereceu oportunidades de promoção social tanto a reinóis quanto a mazombos. Pouco se pode dizer da procedência regional dos soldados do Reino. Em apenas 28 indivíduos, cuja vila ou termo de origem é mencionada nas Memórias diárias, metade era originária do Ribatejo e da Estremadura, enquanto a outra metade procedia, por ordem de importância, das províncias do norte -N

(Minho, Douro e Trás-os-Montes), dos Açores, da Madeira e, finalmente, do

4

no

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Alentejo. Embora precaríssima, a amostragem indica certa inversão relativamente às correntes de povoamento que em fins do século XVI dirigiam-se para o Brasil, caracterizadas pela “predominância completa dos imigrantes originários do norte”, que constituíam quase o dobro da segunda corrente regional mais numerosa, a que procedia de Lisboa e arredores.!48 A composição 144 Co.Fa., 19.1.1635, AHU, 40. 145 Luís Barbalho Bezerta ao conde da Torre, 26 e 29.111,1640, CCT, iii. 146 Carta régia de 27.iii.1638, Andrade e Silva, Coleção cronológica, v, p. 147.

147 Discurso sobre os fidalgos e soldados portugueses não militarem em conquistas alheias desta Coroa, Lisboa, 1632. !48 Com base na documentação inquisitorial, concluiu-se que cerca de 36% dos colonos portugueses do Brasil compunham-se de gente do norte, ao passo que em Pernambuco a propor-

205

|

OLINDA

RESTAURADA

regional de contingentes militares diverge naturalmente da das correntes de povoamento, embora atuem sobre ambas as mesmas condições sócio-econômicas geradoras de excedentes demográficos. No caso de recrutamento, ope-

tavam outros fatores, certamente mais voláteis, tais como o arbitrário das le-

vas e a atração exercida por Lisboa nos distritos circunvizinhos. À procedência das tropas portuguesas é, aliás, de maior interesse em se tratando da restauração, ao fim da qual boa parte dos soldados domiciltaram-se na terra. Em vista da afluência de bisonhos, clamava-se inutilmente por veteranos, mais confiáveis e testados pelas durezas da guerra, a exemplo dos solda-

dos das guarnições portuguesas da costa marroquina.!4? Felipe IV ordenou mesmo que se tirasse dos presídios de Mamora, Larache, Tânger e Ceuta o maior número possível de soldados práticos para o Brasil, ordem que, contudo, não foi cumprida ou por descaso das autoridades ou porque esses postos já tivessem efetivos insuficientes.º Por outro lado, havendo-se recomendado ao governador-geral na Bahia despachar 200 homens a Pernambuco, “os melhores e mais escolhidos” que houvesse, que eram os do terço castelhano de D. Cristóbal Mejía Bocanegra, ele não o

fez, pretextando falta de ventos

favoráveis e a vigilância da marinha neerlandesa. ">! Ao partir de Lisboa, Rojas y Borja levantou o assunto, protestando por só lhe quererem dar 1.300 bisonhos, mas graças à intervenção d'El Rei conseguiu que certo número de veteranos fosse embarcado na armada de Lope de Hoces, decidindo-se, porém, durante a viagem, que eles seguissem para o Caribe. !? Bagnuolo, entre outros, observou a vulnerabilidade dos seus homens às doenças do Brasil, que os afetavam continuamente, exigindo longas conva-

ção chegava a quase 60%: Tarcísio do Rego Quirino, Os habitantes do Brasil no fim do século XVI, Recife, 1966, pp. 22-3. 149 João de Souza Falcão Coutinho, “Meios para destruir os holandeses, s.d., BA, 51-VI-33.

150 Diogo Soares a Gaspar Ruiz Escaray, 19.vii.1634, AGS, GA, 1101; Felipe IV à duquesa de Mântua,

10.vi11.1635, AGS, GA, 1128.

151 Portaria de 12.vi.1633, AGS, SP, 1532; Cristóbal Mejía Bocanegra a Felipe IV, 23.xa1.

1633, AGS, GA, 1087; e Conselho de Guerra, 31.vii.1634, AGS, GA, 1098.

152 Duquesa de Mântua a Felipe IV, 20.viii.1635, AGS, GA, 1140; Rojas y Borja a Felipe IV, 31.x11.1635, AGS, GA, 1173.

206

———

lescências. Os europeus do norte que compunham as fileiras holandesas pareciam-lhe mais sadios, suportando melhor os cansaços e sofrimentos da guerra.!23 Avaliação com que não teriam concordado os chefes neerlandeses, que também alegavam a inadaptação dos seus comandados ao meio tropical. Já quando da invasão, em plena marcha vitoriosa da praia de Pau Amarelo a Olinda, houve soldados que, no calor de fevereiro, deixaram-se ficar para trás, sendo abatidos. Após a conquista da vila e do Recife, quando as perdas haviam chegado a 550, dos 2.900 homens de que dispunha a W.1.C., nada menos de 900, ou 31%, achavam-se enfermos. Nestes primeiros tempos, o trabalho penoso sob o sol na edificação de fortificações e paliçadas ceifou a vida de muitos.!º“ No governo de Nassau, a situação melhorou: em 3.820 soldados, apenas 500 achavam-se doentes ou estropiados, 55 uma taxa de 13%, que

comparava favoravelmente com a dos exércitos europeus. Mas iniciada a restauração, 33% dos efetivos da W.I.C. estavam incapacitados. 156 Os neerlandeses já desembarcavam afetados pelo escorbuto, o mal das longas travessias marítimas que mesmo em terra podia atacar devido à falta de alimentos frescos.!” Havia também desde a disenteria, como a que atingiu o contingente que sitiava Salvador (1638), até o tétano, a malária, o mal de Chagas e o tropicalíssimo bicho-de-pé.!ºé Pouco depois de sua chegada, Nassau foi vítima da malária, que durante três meses o prendeu ao leito.!>? Por sua vez, os soldados do Rei Católico, italianos, portugueses ou espanhóis,

não estariam mais bem preparados para a guerra nos preparados que seus contrários do norte da ridade do regime alimentar. Tais comparações, momentos críticos. Assim como os holandeses

no trópico, talvez mesmo meEuropa, em razão da inferioporém, perdiam sentido nos na grande fome por que pas-

3 Bagnuolo a Felipe IV, 17.vii.1634, AGS, GA, 3162.

154 DH, pp. 29, 33. 155 Nassau aos Estados Gerais, 18.i1.1639, IHGB, DH, 2.

156 “Diário de Henrique Haecx”, p. 92. 157 Gonsalves de Mello, Tempo dos flamengos, pp. 42-3.

58 Iaerlyck verhael, iii, pp. 138-9, 174. 9 História dos feitos, p. 65.

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GENTE DE GUERRA

OLINDA RESTAURADA

sou o Recife em 1646, os soldados da resistência, sitiados nas praças-fortes,

“consumiram cavalos, couros, cães, gatos e ratos”. 160 Pudsey estranhou, aliás, a prática não só pouco cristá mas também pouco higiênica de não se enterrarem os inimigos. Os cadáveres eram entregues aos cuidados dos urubus, que os devoravam em pouco tempo, rejeitando as

vísceras que, expostas ao sol, causavam um odor pestilencial, depoimento con-

firmado, aliás, por Calado, cujos guerrilheiros metiam os despojos das suas vítimas no mato aonde eram comidos de cachorros e urubus”.!º! Quanto a seus mortos em combate, os luso-brasileiros costumavam arrastá-los com a ajuda de cordas passadas em torno do pescoço. O transporte de feridos graves era efetuado por meio de redes; e a assistência religiosa, especialmente pelos jesuítas, que no exercício do seu mister por ocasião das pelejas vestiam-se à moda secular, embora os holandeses lograssem identificá-los pela tonsura. 12 Subalimentados e maltratados do clima, os contingentes europeus da resistência não se puderam valer tampouco de cuidados médicos institucionais, como os que havia muito eram dispensados no exército espanhol de Flandres.!ºº Embora haja notícias de um abrigo instalado por inacianos na aldeia de São Miguel e de um recolhimento da Santa Casa da Misericórdia

de Olinda nas cercanias do Arraial dispondo de botica e de boticários,!º não

existiram, pelo menos até 1636, facilidades hospitalares adequadas, nem aos doentes se servia mais que a ração ordinária da soldadesca. Devido à perda das caravelas de socorro de Francisco de Vasconcelos, ficara-se sem o material necessário à instalação de hospital, pelo que teria regressado ao Reino um grupo de religiosos da Ordem de São João de Deus.!“ Privados de recur'60 Memórias diárias, p. 202; Lucideno, i, p. 35.

161 Tournal”, fl. 26v.; Lucideno, i, p. 62. 162 Jaerlyck verhael, iv, pp. 19, 214 e 216. 163 Parker, The army of Flanders, pp. 167-9.

164 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, v, p. 351; Ulysses Pernambucano de Mello neto, “O Arraial Velho do Bom Jesus”, RIAP, 47 (1975), p. 162; Leite de Faria, Frei Mateus de São Francisco, p. 17. 165 Fernando Henriques de Toledo a Felipe IV, 1.x1.1634, AGS, GA, 1118: memorial de

208

GENTE DE GUERRA

sos, os médicos não podiam fazer muito, a não ser agasalhando os feridos pe-

las casas dos colonos.!ºº Graças à insistência de Rojas y Borja, novo equipa-

mento foi despachado para Pernambuco, outra vez destinado aos irmãos de São João de Deus, que só no fim da guerra puderam estabelecer hospital em

Porto Calvo.!9?

O descaso pela sorte dos homens era a tal ponto generalizado que, afirmava o Dr. Manuel Álvares de Figueiredo, “nunca capitão [algum] me perguntou por soldado seu doente”.!º8 Os medicamentos enviados pela Coroa

eram objeto de um tráfico descarado, a acreditar-se no médico, que o denun-

ciava em termos veementes:

As mesinhas que Vossa Majestade tem mandado para a cura dos doentes, usa-se delas como roupa de franceses, pois as menos se gastam com os soldados e gente de guerra, as mais vão por contemplações, outras se vendem e se dão por mãos de cirurgiões que as furtam e vendem e ganham sua vida com elas. E hoje, há muito tempo que não há com que se cure um soldado; e o que tem um real para as poder comprar as compra da mão destes para se

haver de curar. De outra maneira, não há senão padecer e perecer. 16?

Com o reinício da guerra em 1645, não tendo os levantados “consigo cirurgião algum que os curasse”, recrutou-se um francês com sua “botica de ungiúentos”.!2 A Misericórdia de Olinda passou a atender o exército, contando com os serviços de dois benévolos moradores de Apipucos, “pessoas Rojas y Borja, 10.v.1635, AHU, PA, Pco., ii; Memórias diárias, p. 130; Leite de Faria, Frei Mateus de São Francisco, p. 17.

166 Certidão do Dr. Francisco Pereira, 8.xi.1631, e requerimento do Dr. Diogo Pereira,

7.w1.1638, e AHU, PA, Ba., iii; Memórias diárias, p. 41; Lucideno, À, p. 46; Leire de Faria, Frei Mateus

de São Francisco, p. 16; Há referência a outros médicos, como João de Azevedo Roxas e Thomas Potter, inglês, casado na terra: Cleonir Xavier de Albuquerque, A remuneração de serviços na guerra holandesa, pp. 34-5.

17 Co.UO., 18.xi.1637, AHU, 43. 168 Requerimento de Manuel Álvares de Figueiredo, 1637, AHU, PA, Pco., ii.

169 Manuel Álvares de Figueiredo a Felipe IV, 4.xi1.1636, AHU, PA, Pco,, ii.

VO Lucideno, 1, p. 411.

209

OLINDA RESTAURADA

além de caritativas, mui compassivas e maviosas para acompanhar os enfermos e os ajudar a bem morrer”. Era grande, contudo, o número de soldados que vinha a falecer por falta do necessário.!”! Em meio à pobreza geral, a Santa Casa não recebia esmolas suficientes, carecendo de tudo, a começar pelos remédios, donde pedir-se a Lisboa médico e material de botica.'? De partida para o Brasil, Francisco Barreto solicitou dois cirurgiões.!”? Que a sorte a que estava relegado o soldado não melhorou na restauração, conclui-se de denúncia, eivada de indisfarçável ódio teológico mas nem por isso descartável. Formulou-a o vigário-geral de Pernambuco, Domingos Vieira de Lima, contra frei Mateus de São Francisco, a quem, como capelãomor do exército de Pernambuco, cabia zelar pelo conforto espiritual da tropa. Além das intrigas que urdia contra Francisco Barreto, frei Mateus teria inventado meios diabólicos para enriquecer. Aos moribundos, pedia os soldos, roupas e armas; e aos que tinham na terra família de algum cabedal, extorquia dinheiro ou sua parte da herança paterna. As mezinhas que tinha a seu cargo vendia-as todas, até que Barreto acabara com o abuso. Durante as escaramuças, acudia preferencialmente aos soldados que lhe podiam dar alsuma coisa; quem nada possuía, devia esperar pelo dia seguinte, caso pudesse chegar até lá. Em resumo, frei Mateus mais parecia “mercador cadimo do que religioso recolhido”. Graças a estas espertezas, preparava-se para regressar a Lisboa com mais de setenta caixas de açúcar de seu e quantidade de dinheiro e jóias. 174 As questões disciplinares no exército luso-brasileiro resultavam fregiientemente de querelas de honra provocadas por miúdas disputas de precedência, tão ao gosto da cultura barroca. No entanto, não é demais lembrar que a resistência teve como pano de fundo as crescentes divergências nacionais na

171 Tbid., ii, pp. 116 e 226.

172 Cosmo de Castro Passos a D. João IV, 30.v.1647, AHU, PA, Pco., iii; Co.UO., 14.1v.1646, AHU,

13.

1/3 Representação de Francisco Barreto, 1647, AHU, PA, Ba,, v.

174 Domingos Vieira de Lima a D. João IV, 25.vii.1650, AHU, PA, Pco., iii; Leite de Faria, Frei Mateus de São Francisco, pp. 59-60, e Um vimaranense notável na restauração pernambu-

cana. O vigário geral Domingos Vieira de Lima, Guimarães, 1954, p. 28.

210

GENTE

DE GUERRA

monarquia espanhola e o recrudescimento do nacionalismo português no

reinado de Felipe IV, desembocando nas “alterações de Évora” e na recupe-

ração da Independência. Tensões que eram inevitáveis numa tropa multinacional, composta de “nações tão belicosas e opiniosas como castelhanos, portugueses, italianos, mamelucos, índios e negros”. Sobretudo para temer

eram as rivalidades entre castelhanos e portugueses, muitas vezes instigadas por oficiais, como Fernando de la Riba Aguero, de quem Matias de Albuquerque queixava-se a El Rei ser “pessoa de pouca experiência militar” e, o que era pior, muito inclinado “a grandes discórdias”.!7é Quizílias que excepcionalmente podiam degenerar em morte, como no assassinato do capitão Manuel de Campos pelo ajudante Juan de Osuna, que lhe chamou “nomes afrontosos” e o matou à traição.!”” Castelhanos e portugueses tinham, porém,

em comum o desprezo pelos napolitanos; e todos eles pelos soldados da terra, mazombos, índios ou negros.

SOLDADOS DA TERRA

Bagnuolo não fazia mistério da sua opinião sobre os soldados da terra: sendo quase todos “gente inconstante”, que só se alistava para receber o pagamento antecipado do soldo e que, em ação, desaparecia pelos matos, raros tinham “experiência, habilidade e bondade”; entre estes eleitos, estaria talvez Henrique Dias, que se declarou certa vez “seu discípulo”.!$ Escusado assinalar que entre os colonos do Nordeste vigia a opinião contrária. “Vale mais um homem soldado e natural do Brasil que dois do Reino”, escrevia o capitão Vicente Campelo. Dada a vulnerabilidade do europeu ao clima tropical, cumpre reconhecer que não se trata de bravata de mazombo. Os soldados da

175 Memórias diárias, p. 221. 176 Matias de Albuquerque a Felipe IV, 8.v.1634, AGS, GA, 1113. 177 “Memória do que sucedeu em Pernambuco desde 5 de abril de 1637”, BNL, FG, 1555. 178 Bagnuolo a Felipe IV, 1.viii. 1632, AGS, GA, 1070; Henrique Dias a Bagnuolo, s.d. mas

de 1640, CTT, iii; Bagnuolo ao conde da Torre, 19.1.1636, CTT, ii.

2d)

ÓLINDA RESTAURADA

terra “sofrem estarem n água todo o dia e noite e sofrem os mosquitos, o que não podem sofrer os do Reino”.!?? As autoridades do Brasil holandês contrastavam por vezes a “indolência” ou a fraqueza” das suas tropas com o vigor e a rapidez dos luso-brasileiros, cujas “qualidades físicas superam de muito nossos soldados mais experientes em agilidade e disposição”. “Eles sabem melhor que os nossos sujeitar-se às extremidades, tais como a falta de víveres, etc., nossos soldados estando sempre carregados sobretudo de seus bornais ou dependentes de que os alimentos sejam transportados para eles.” 180 Já Waerdenburch considerava “esse povo como um povo de soldados vivazes e valorosos, aos quais nada falta senão o comando”, não sendo “absolutamente cordeiros, como se lê nas histórias das Índias Ocidentais, e disto sei por experiência várias vezes repetida”.'8! Gabavam-se em especial as qualidades militares dos colonos do São Francisco e de Sirinhaém.!82 Mesmo os neerlandeses aclimatados fatigavam-se facilmente durante as marchas. A expedição de 1648 contra o sul de Pernambuco resultou num grande fiasco; em 450 soldados, 160 tiveram de regressar exaustos às embarcações que os haviam trazido do Recife. Pelo contrário, os luso-bra-

sileiros achavam-se tão bem dispostos que caminhavam 50, 80 ou mais mi-

lhas sem revelar cansaço.!8º

É verdade que nos primeiros dias da insurreição restauradora, os batavos demonstravam incisivo desprezo pela tropa reunida por Fernandes Vieira. Comentando a batalha das Tabocas, o autor do “Diário ou breve discurso” pensava que, a despeito da vitória nela obtida, tratava-se de “uma gentalha e canalha que, em sua maior parte, nunca viu espadas nuas”, voltando a assinalar que “a maior parte da tropa inimiga, afora os trânsfugas e os soldados da Bahia, se compõe de criados, mulatos e quejanda canalha, gente esta que não tem experiência do manejo do mosquete ou arcabuz e é mais própria para o 79 Livro primeiro, p. 56.

180 Ao.Go. aos Estados Gerais, 9.vii. 1648; Michiel van Goch aos Estados Gerais, 22.11.1649; e Schkoppe aos Estados Gerais, 15.11.1649, IHGB, DH, 4. 181 DH, p. 50.

182 Ibid., pp. 118e 119. 183 Ao.Go. aos XIX, 27.x.1648, CJH, BPB.

22

(SENTE DE GUERRA

trabalho ou para serem escravos do que para a guerra”.!8í Opinião que mudaria a partir das batalhas dos Guararapes. Quando da capitulação do Reci-

fe, o conselheiro Haecxs, que a viu desfilar na sua miséria, admitiria que,

malgrado ser “gente horrível de se ver”, marchava “em tão boa ordem, como jamais se viu”, 18 A agilidade do soldado da terra não se devia apenas às características ftsicas da população luso-brasileira, descrita pelas autoridades holandesas como pequena e seca de corpo, como também ao gosto da roupa leve e sumária, donde serem depreciativamente chamados “os das ceroulas”, de vez que “assim iam ordinariamente aos assaltos, por andar à ligeira e passarem os rios com mais presteza. Desejando certa feita ver de perto as fortificações inimigas, o

próprio Fernandes Vieira não hesitou em ficar “em ceroulas e em gibão”, e,

de outra, “em bombachas”.!8º O guerrilheiro pintado por Eckhout tem a cabeça descoberta, está descalço e traja uma camisa de mangas largas, saiote

que chega aos joelhos e jaleco sem mangas.!*” Mas é provável que, no decur-

so das refregas, seu traje fosse mais sumário: de um deles, sabe-se que, tendo de aparecer em público, “se refez de vestido [...] porquanto andava com vestido de homem do mato”.!88 Enquanto isto, o soldado europeu da resistência recebia artigos da sua procedência: camisas e ceroulas de linho, balonas de cassa, meias coloridas de lã e de pano da França e meias de seda da Itália e de Toledo, gibões de bombazinas da Alemanha, chapéus de cor, inclusive chapéus-balões com seus véus, carapuças de vários tons, atacas de bispo e de couro, botões de seda, panos



E

dozenos de Estremoz e de Portalegre, estamenhas de Castela e de Portugal, raxas, panos de Hamburgo, estamenhas de freira, holandilhas listradas, fus-

tões, tafetás, tafeciras da Índia, sapatos de couro de vaca e de cordovão, mo-

caxins; e o indispensável complemento de dedais e agulhas de alfaiate, linhas 184 “Diário ou breve discurso”, pp. 127-8 e 158, 185 “Diário de Henrique Haecxs”, po dol.

186 História da guerra, pp. 91 e 580. 18” P. ]. P, Whitehead e M. Boeseman, A portrait of Dutch 17th century Brazil. Animals, plants and people by the artists of Johan Maurits of Nassau, Amsterdã, 1989, p. 71. 188 Lucideno, 1, p. 367.

213

OLINDA

RESTAURADA

brancas e de cores, retroses e cadarço.!8? A qualidade é que deixava a desejar. Como os tecidos vindos na armada de Lope de Hoces já tivessem apodrecido, em breve os soldados estavam novamente andrajosos.!??

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A Europa ainda não adotara a uniformização do fardamento, que data

da segunda metade de Seiscentos, razão pela qual os soldados identificavamse por insígnias, os cinturões alaranjados da tropa neerlandesa, ou a faixa encarnada e as penas da mesma cor no chapéu dos soldados do Rei Católico.!?! Aliás, não há indicação de que os soldados da terra usassem divisas ou insígnias. Para distinguirem-se entre si, bastaria provavelmente a roupa escassa e inconvencional e o próprio aspecto físico. É o que se pode inferir do fato de que as Memórias diárias aludam apenas uma vez, sem descrevê-la, ao uso de divisa por tropa comandada por Martim Soares Moreno e assim mesmo durante operação noturna, de modo a evitar “a confusão que ordinariamente trás consigo aquela hora”.!22 O não uso pode ser inferido também do que narra Calado acerca do costume adotado pelo terço de mercenários holandeses, que desertara para o exército restaurador, de trazer “papelinhos brancos nas tranças dos chapéus”, exemplo logo imitado pelos luso-brasileiros. Em Tabocas e outras ocasiões, sabe-se que os africanos usavam “penachos a seu modo”. !?3 De Camarão, reporta-se que utilizava um apito para agregar seus homens. Na

primeira Guararapes, enquanto os holandeses arvoravam “sessenta e uma bandeiras de cores diversas, principalmente de azul e cor laranjada”, os restauradores “não levavam bandeiras mas uma firme confiança de lhas ganharem”,

como, com efeito, ganharam, “e em lugar delas levavam seus rosários de contas pendurados do colo, que eram as bandeiras da Virgem Nossa Senhora”. 14

189 “Relação da gente, armas e munições e outras coisas com que se proveram as partes do Brasil”, 1630, BNRJ, I, 1, 2, 35, fls. 171-2v., 210-4, 218, 222, 224-31, 238-238v., 242. 190 Bagnuolo a Felipe IV, 7.11.1637, AGS, GA, 1201.

121 Cardini, La culture de la guerre, pp. 217-20; Parker, The army of Flanders, pp. 164-5, e

“O soldado”, pp. 47-8 e 51; História dos feitos, p. 47. 192 Memórias diárias, p. 143. 123 Lucideno, ii, pp. 12, 180.

194 Flistória da guerra, p. 497.

214

(GENTE DE GUERRA

Mas ainda em finais do século XIX, Ramalho Ortigão veria no Palácio real de Amsterdã um estandarte capturado aos restauradores, com a efígie de Santo Antônio, que se tornara o patrono dos insurretos.!?

Já uma narrativa da expulsão dos franceses do Maranhão salientara a

co

vantagem da roupa leve ou sumária dos luso-brasileiros. Em certa escaramuça feroz, os nossos todos iam à ligeira [...] e saltavam pelo lado como gamos, sendo que os inimigos, como traziam meias e sapatos e calções de pato tosado de vinte côvados de pano”, afundavam nos lamaçais onde os índios lhes quebravam a cabeça com cacetes de jucá.!?º Cenas análogas ocorreram nos mangues e alagados no sopé leste dos Guararapes, onde quantidade de hoJandeses foram trucidados durante a segunda batalha ali travada.” Em finais do século XVII, ainda se tecia o elogio do costume. Os soldados vão a esta guerra [do Estado do Maranhão], descalços e nus

a empreendem, porque se entrarem no mato calçados e molharem os pés (que por força o hão-de fazer), não lhes perguntam de que morrem e que não. Militam descalçando-se, porque em lugar de ser danoso é sadio, além de não poderem aturar a quentura dos vestidos, com eles se embaraçam no mato para

poderem correr,

Prática a que não podiam adaptar-se os soldados do Reino “pela falta de criação dos matos”.!?8 Pregados ao corpo, escondiam-se papéis destinados a exorcizar os perigos, com desenhos de piques, espadas, flechas, mos-

quetes ou pequenas cruzes alternadas com Hs ou invocações em latim contra as armas holandesas, prática que pareceu a Moreau “singular raridade”, confirmando aos olhos neerlandeses a incrível superstição e ignorância dos

195 Ramalho Ortigão, A Holanda, 8º ed., Lisboa, 1935, pp. 62-3; “Diário ou breve discur-

so”, pp. 144-5,

| |

196 Livro primeiro, p. 84. 197 A melhor síntese das batalhas dos Guararapes é a de Hoboken, Wizte de With, pp. 8791 e 147-50. Para descrições pormenorizadas, Belisário Pimenta, As duas Guararapes, Coimbra,

1948; e Antônio de Souza Júnior, Do Recôncavo aos Guararapes, 2º ed., Rio, s.d., pp. 131-91. !98 Miguel da Rosa Pimentel, “Informação do Estado do Maranhão”, 4.ix.1692, BA, 50V-34, fls. 200v.-201.

215

COLINDA RESTAURADA

papistas.!?? Outros, como Brito Freyre, julgavam que o hábito fosse filho da pobreza, pois muitos dos soldados possuíam apenas uma camisa que, “metidos no mato, lavavam por suas mãos, esperando que se enxugasse para a tornarem a vestir”.200 Durante a guerra de restauração, por falta de roupa muitos se recusavam a servir, ou por pudor ou por temor às doenças.”*! Mais do que à necessidade, porém, o estilo de lutar à maneira dos índios correspondia melhor às condições do meio físico. Seguindo o exemplo dos nativos, usaram-no também os soldados portugueses no Ceilão.?º2 Entre nós, ele originaria o apodo de “pés rapados”, dado pelos reinóis aos mazombos pernambucanos que, após a expulsão dos holandeses, transformaram-no em

orgulhoso gentílico. Na primeira Guararapes, a “bizarria e ostentação” do inimigo, “com suas lustrosas e majestosas líbréias, gloriando-se das arrogantes e soberbas plumagens e bizarrias, bandas e mais ornatos e faustos”, destoava da pobreza dos restauradores, metidos nas suas “bombachas e almilhas safadas e rotas do contínuo trabalho da guerra e jornadas que pela campanha faziam”.203

129 Moreau, Histoire des derniers troubles, p. 158; Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala,

102 ed., 2 vols., Rio, 1961, ii, p. 434. 200 Nova Lusitânia, pp. 188-9.

“0! Representação das Câmaras de Pernambuco, 20.11.1647, AHU, PA, Pco., iii. 202 George D. Winius, The fatal history of Portuguese Ceylon. Transition to Dutch rule, Cambridge, 1971, p. 22. A adaptação do soldado da terra à guerra tropical recomendou-o para Angola. Em 1644, ordenou-se a Henrique Dias que passasse com seu terço ao outro lado do Atlântico, para resistir à ocupação holandesa da colônia. O projeto não se concretizou porquanto a Bahia precisava dos henriques para o levante planejado em Pernambuco. Mas nomeado governador de Angola em 1656, Fernandes Vieira obteve autorização régia para levar consigo cem soldados pernambucanos. Idêntica permissão seria concedida a André Vidal de Negreiros, a quem se autorizou embarcar o mesmo número “dos mais vaqueanos e práticos da terra, a quem o clima de Angola menos ofenda com a doença que é certa nos que vão deste Reino”, isto é, de Portugal. Anos depois, mandava-se organizar nova leva, composta dos soldados dispensados pela reforma do exér-

cito restaurador: D. João IV a Henrique Dias, 14.xi.1644; e idem a Antônio de Abreu de Miranda, 18.viii. 1644, AHU,

275: provisão de 28.x1.1656, AHU, 92; Co.Uo., 27.ix.1660, AHU, 46;

D. Afonso VI a Jerônimo de Mendonça Furtado, 12.x1.1663, AHU, 275. 203 História da guerra, p. 498.

216

GENTE

DE GUERRA

A frugalidade do soldado da terra era notável, bastando-lhe a ração de carne seca e farinha de mandioca, dias havendo em que se contentavam com uma espiga de milho ou em que passavam fome.?º Sobriedade compartilhada

com a população luso-brasileira, num contraste com as descrições de abun-

dância quase pantagruélica do período ante bellum deixadas, entre outros, por Fernão Cardim.” Moreau assinalava serem os colonos de origem portuguesa “bastante sóbrios à mesa”,20º sem excetuar os ricos. Outra fonte holandesa

espantava-se da falta de variedade do seu regime alimentar, pois contentavamse de “um pouco de farinha e um peixinho seco”, o único luxo consistindo em grandes quantidades de doces de frutas tropicais.207 A dieta dos moradores das Alagoas não variava: farinha, bacalhau, legumes e água, pois “em alguns engenhos, não há vinho por muito tempo”. Graças ao que a gente da terra conseguia sobreviver enquanto as despesas excessivas dos neerlandeses com alimentos levavam-nos à ruína,?º8 comentário destoante da tendência a associar calvinismo e austeridade material.

204 Nova Lusitânia, p. 187. Mas anos depois o general Schomberg faria em Portugal observação semelhante acerca do soldado português, em quem louvava “a obediência [...] e o serem parcos

no comer: Boxer, “Vicissitudes of the Anglo-Portuguese alliance”, p. 19. 205 Como observou Braudel, “os festins principescos ou públicos, tão fregiientemente registrados pelos cronistas, são afinal de contas acontecimentos de significação talvez interessante mas seguramente limitada”, de vez que “as mesas dos ricos e de seus servidores, como sabemos, testemunham verdades excepcionais, de curto alcance”: Fernand Braudel, “Alimentation et catégories de Phistoire”, J. J. Hémardinquer (ed.), Pour une histoire de Valimentation, Paris, 1970, p. 16.

206 Moreau, Histoire des derniers trouble, Ds

207 Fontes, à, p. 109. 208 Ibid., ii, pp. 133-4. Malgrado a fama de sovinice que os nacionais das Províncias Unidas desfrutavam na Europa, há quem pretenda que, no Século de Ouro, o consumo conspícuo é que teria predominado em toda a sociedade. Destarte, eles não teriam se mostrado menos sensíveis do que os italianos do Renascimento ou os contemporâneos espanhóis ao gosto do desperdício ostentatório, que deitara raízes nos Países Baixos desde o período borguinhão. A diferença consistiria em que ele preferia manifestar-se na vida privada, como na decoração doméstica, em vez da vida pública, como entre os latinos: Simon Schama, The embarassment ofriches. An interpretation of Dutch culture in the Golden Age, Los Angeles, 1988, pp. 297-8, 304, 310-4, 320-3. Idéia em contrapelo da distinção dominante na historiografia holandesa entre o austero patriciado urbano do século

217

ÚOLINDA RESTAURADA

Outro motivo de surpresa dos neerlandeses era a preferência luso-brasileira pela “água da fonte”, incompreensível a europeus reputados na própria Europa pela dipsomania, que, combinada ao tabagismo, faria dos batavos, na

definição célebre de Diderot, “alambiques vivos que se destilam a si mesmos”.22? Prolongava-se no Brasil a louvável temperança de espanhóis e de portugueses, tão gabada por Fernando Cardoso, marrano lusitano e médico

de Felipe IV. No seu “Utilidades del água y de la nieve, del beber frio y caliente”, publicado em Madri em 1637, ele notava que, “na Europa, a Espanha

[i.e., a Península Ibérica], como a mais política, é a província que menos se entregou ao vinho (deixando ao norte [da Europa] o culpável de suas delícias), vinculando-se à água os senhores e gente de primeira qualidade, sendo neles temperança o que em outros é preceito”.21º Abstenção também dos índios, que bebiam ordinariamente “a água fria da fonte ou do rio”, embora fizessem seus vinhos de frutas e de raízes, sem desprezar as bebidas alcoólicas dos europeus ou a garapa a que eram afeitos os africanos.?! Aos luso-brasileiros chocava o alcoolismo dos holandeses, sobretudo o das mulheres. Daí que a injúria mais comum atirada contra eles fosse a de bêbados.2!2 Não é apenas no tocante à alimentação que as fontes holandesas reduzem à devida proporção os encômios dos cronistas portugueses que se ocuparam da civilização material dos colonos de fins do século XVI e começos do XVII.

XVII e seus descendentes do século XVIII, que teriam sucumbido ao consumismo e ao luxo paralelamente à sua transformação em elite de poder, com o abandono progressivo das atividades produrivas pelas políticas e administrativas e a adoção de um estilo de vida de rentter: Joop de Jong, Een deftig bestaan. Het dagelijks leven van regenten in de 17de en de 18de eeuw, Utrecht, 1987.

209 Schama, The embarrassment ofriches, pp. 188 ss. Piso observou no Brasil holandês que o clima tropical favoreceria a cirrose, a que a inclinação à bebida já predispunha os holandeses: Francisco Guerra, “Medicine in Dutch Brazil”, E. van den Boogaart (ed.), Johan Maurits van

Nassau-Siegen (1604-1679). A humanist prince in Europe and Brazil, Haia, 1979, pp. 475-6.

“10 Apud Julio Caro Baroja, Los judtos en la Espafia moderna y contemporânea, 3 vols., Ma-

dri, 1961, ii, p. 442.

211 Georg Marcgraf, História natural do Brasil (ed. Affonso de E. Taunay), São Paulo, 1942,

pp. 273-4.

ú

212 Evaldo Cabral de Mello, A ferida de Narciso. Ensaio de história regional, São Paulo, 2001, pp. 36-7.

218

GENTE

DE GUERRA

Não havia, por exemplo, preocupação com o conforto. Os luso-brasileiros

eram, “sem distinção de pessoas, tampouco curiosos com relação às suas casas e economia doméstica, contentando-se com uma casa de barro, contanto

que vá bem o seu engenho ou a sua cultura”. Móveis, apenas os indispensáveis, consistindo “o seu maior luxo” em servirem-se em baixelas de prata, símbolo de statu mas também forma de entesouramento de fácil liquidez. Quanto ao vestuário, “os homens usam pouco de vestidos custosos, vestem-se de estofos ordinários ou ainda de pano, trazendo os calções e o gibão golpeados com grandes cortes por onde se deixa ver um pouco de tafetá”. As mulheres é que trajavam ostentatoriamente, cobrindo-se de ouro e de jóias falsas.

Por fim, traço escandaloso para holandeses do Século de Ouro, os lusobrasileiros não demonstravam o menor interesse por “quadros e outros ornatos para cobrir as paredes”, não tendo conhecimentos de pintura.?!3 É certo que, sob este aspecto, o holandês é que era a exceção entre os europeus, que costumavam estranhar a presença de quadros até nas casas de pequenos comerciantes e artesãos.?!é Embora a documentação holandesa se reporte a uma sociedade empobrecida por sete anos de guerra, suas observações estão seguramente mais próximas da realidade do que as páginas dos cronistas portugueses, cujo único ponto de referência eram os padrões de consumo vigentes no Reino.

213 Fontes, , pp. 108-9. 214 Schama, The embarrassment of riches, p. 318.

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Munição de boca

Exemplo expressivo do divórcio entre os modelos da arte militar da época e as realidades da guerra do Brasil é o abastecimento das tropas luso-brasileiras. Segundo Luís Mendes de Vasconcelos, a alimentação do soldado deveria consistir em “trigo, farinha e biscoito, que este é o mais necessário mantimento de todos”. Farinha, portanto, e de trigo, “por ser a que mais sustenta e a mais

sã . Na sua falta, farinha de centeio, de cevada ou milho e até mesmo “uma

que no Brasil se usa de pau”, a de mandioca, de que havia “duas sortes, uma que se há de fazer cada dia [...] outra, a que chamam farinha da guerra, que está sempre em sua perfeição”. Com a farinha, carnes salgadas e verdes. “O peixe salgado e seco é também ordinário provimento.” Por fim, os legumes.! Assim, já se compreendera no Reino a utilidade militar da farinha de mandioca. Aliás, a farinha da terra não constituiu o único alimento indígena valorizado militarmente pelos colonizadores, de vez que o milho também o foi no

sertanismo paulista.? Mendes de Vasconcelos não escondia, aliás, que ao uso da farinha de mandioca só se deveria recorrer na falta dos cereais europeus, mais nobres. O regime por ele prescrito caracterizava-se assim por um cosmopolitismo e diversidade a que era impossível atender numa guerra colonial. A armada de D. Fadrique de Toledo, que restaurou a Bahia em 1625, zarpou de Lisboa con-

soante O figurino: quantidade de biscoito (i.e., o pão cozido para as longas via-

! Mendes de Vasconcelos, Arte militar, fls. 200v., 221. Compare-se com Parker, La révolution militaire, p. 104: “cada soldado exigia pão; na maioria dos exércitos [europeus] , a ração

quotidiana era calculada a uma libra e meia por dia [...] Ademais, cerca de uma libra de vianda, de queijo ou de peixe e 6 pintas de cerveja ou 3 de vinho”, 2 Sérgio Buarque de Holanda, Caminhos e fronteiras, Rio, 1957, pp. 221-3.

221

OLINDA RESTAURADA

gens marítimas que os holandeses chamavam &roote que se aportuguesou em “brote” na língua do Nordeste), mas também de vinho, carne, peixe, arroz, azeite, vinagre. Não faltaram sequer certas iguarias, queijos, passas, figos, amêndoas, ameixas e doces,” pois então, mercê do açúcar brasileiro, inventava-se a rica tradição doceira da cozinha dos conventos e casas nobres portuguesas. Durante os meses do sítio de Salvador, a armada não soube o que fosse penúria, havendo sempre “grande abundância”, embora os víveres do Reino tivessem de ser suplementados por gêneros da terra. Como veremos, bem diferente será a experiência da armada do conde da Torre. E a coisa mudava de figura em se tratando de guerra lenta, que jogava a responsabilidade pelo aprovisionamento da tropa sobre a limitada oferta de alimentos de uma economia monocultora e escravocrata, especializada na exportação de açúcar e, por conseguinte, já incapaz de abastecer satisfatoriamente a sua população.

A Andaluzia do primeiro século pós-Colombo, opulenta de víveres destinados às Índias de Castela graças a certa abertura da grande propriedade aos ventos do mercado que se formava do outro lado do Atlântico,? não se repetiria em Portugal, que não respondeu às oportunidades criadas pela demangolpeara seu cultivo, de modo que até às vésperas do descobrimento do Brasil, o Reino conhecera nada menos que 21 crises de subsistência. As praças do norte da África eram supridas da Andaluzia e da metrópole carente até que no reinado de D. Manuel se conquistaram as áreas do litoral atlântico do Marnocultura da cana causou sua escassez. Só os Açores, bem ou mal, reagiram aos incentivos da colonização do Brasil, mas mesmo assim, nota Oliveira Mar-

ques, “a viciosa organização econômica do Reino impediu que se transformassem em sucedâneos perfeitos para a importação de fora parte”.

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rocos, ricas em cereais. Na Madeira, passada a fartura inicial do trigo, a mo-

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da ultramarina. Veja-se o caso do trigo. Desde finais do século XIV, a crise

3 Bartolomeu Guerreiro, Jornada dos vassalos, p. 125.

“ Tbid., pp. 124-5. 5 Braudel, La Mediterrante et le monde mediterranéen, i,

75:

é A, H. de Oliveira Marques, Introdução à história da agricultura em Portugal, 2º ed., Lisboa, 1968, pp. 281 e 285. Vd. também Vitorino Magalhães-Godinho, Os descobrimentos e a economia mundial, ti, pp. 264-70.

222

MUNIÇÃO DE BOCA

Sancionou-se assim, nos começos de Quinhentos, a dependência por-

tuguesa relativamente ao trigo do norte da Europa, dependência em que o Reino se antecipou de quase um século aos vizinhos do Mediterrâneo, como a Espanha e a Itália, onde só a partir dos últimos decênios do século XVI o

produto local revelar-se-ia insuficiente, recorrendo-se ao cereal do Báltico,

transportado pelas urcas e fluyten neerlandesas. Graças também ao milho americano, que se generalizou no norte do Reino pela mesma época, operando verdadeira revolução ecológica e econômica, é que se conseguiu paliar a penúria do trigo no país.” Aliado ao bacalhau, o milho ajudou, sobretudo nas províncias nortenhas, a recuperação demográfica, sem a qual a história brasileira poderia ter sido diferente. No reinado de D. Manuel, aboliram-se os impostos sobre cereais estrangeiros desembarcados em Lisboa e Setúbal. É provável que a medida tenha visado menos o suprimento da população do que o abastecimento das armadas da Índia, de vez que elas se aprovisionavam naqueles mercados e que a decisão régia mencionava expressamente não só o trigo e a cevada mas também o biscoito”. Nem por isso a providência é menos reveladora de que, no setor fundamental da economia do Antigo Regime que é o dos cereais, Portugal estava de todo despreparado para a expansão ultramarina. À mudança que se processou nos hábitos alimentares do colono lusitano, seja entre nós, seja em outras áreas tropicais (o povoamento de Cabo Verde será mesmo freado pela carência crônica de trigo), foi menos o resultado da capacidade nacional para amoldar-se a novas condições ecológicas do que da impossibilidade de obter suprimento regular e suficiente deste e de outros víveres de procedência européia. Na medida do possível, o povoador de Quinhentos procurou permanecer fiel ao regime a que se habituara no Reino. No Pernambuco ante bellum, os gêneros da Europa eram ordinariamente consumidos pelo grupo privilegiado, ao menos na tríade básica constituída pelo trigo, vinho e azeite. É bem conhecida a resistência que os hábitos alimentares opõem à mudança, devido inclusive às conotações simbólicas de statu

! Orlando Rangel, “Milho”, Joel Serrão (ed.), Dicionário de história de Portugal, 4 vols., Lis-

boa, 1963-1971, iii, pp. 58-64,

8 Oliveira Marques, Introdução à história da agricultura em Portugal, pp. 284-5.

223

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OLINDA RESTAURADA

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e de especialização do paladar de classe ou de camada social, como no exemplo clássico da expansão dos vinhedos europeus na Alta Idade Média para satisfazer não só às exigências do culto católico como também ao consumo de ostentação da nobreza e do alto clero.” Nos anos sessenta do século XVI, o padre Rui Pereira observava ser a Nova Lusitânia (i.e. Pernambuco), “mui provida das coisas do Reino pelos muitos navios que a ela vêm todos os anos,

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de modo que nas provisões, quem tiver com que as compre, não há diferença

do Reino”, pois “continuamente se vende pão de trigo, vinho, azeite, etc.”,10

Quando da invasão holandesa, o aprovisionamento da capitania nos pro-

dutos canônicos da mesa reinol continuava o mesmo: as embarcações do Reino

apresadas pelo inimigo continham o invariável carregamento de trigo, vinho

e azeite. No período ante bellum, o consumo da farinha de mandioca nas suas

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várias formas ainda estava estigmatizado pela sua condição de comida de bugre, da mesma maneira pela qual a aguardente de cana e o azeite de dendê pertencerão ainda por muito tempo ao passadio dos estratos pobres da população colonial. Embora iniciada no século XVI, a aceitação dos produtos da terra pela gente de condição só se acelerou a partir das guerras holandesas, em decorrência das vicissitudes do abastecimento de gêneros reinóis e da redução do nível de vida local resultante da queda do preço do açúcar em meados de

Seiscentos. À medida que os colonos aderiam aos gêneros locais, os sucedá-

neos europeus foram sendo reservados à utilização excepcional e até sacra. Equivocava-se Gilberto Freyre ao supor que o consumo de trigo em Pernambuco e na Bahia datasse da ocupação neerlandesa, ficando limitado a estas capitanias.!! Paradoxalmente, os paulistas, a despeito de naturalmente mais permeáveis aos costumes da terra em comparação aos colonos da marinha,

estavam mais bem abastecidos do produto, graças ao seu cultivo no planalto de Piratininga, que servia “de armazém ordinário, aonde muitas embarcações

5 c—

? Roger Dion, Histoire de la vigne et du vin en France, Paris, 1959, pp. 171-94. Braudel assinalou como é penoso para as sociedades cruzar as fronteiras alimentares: Fernand Braudel, CivilisaHon matérielle, économie et capitalisme, 2º ed., 3 vols., Paris, 1979, 1, pp. 81 ss.

1 Gilberto Freyre, Ingleses no Brasil. Aspectos da influência britânica sobre a vida, a paisagem ca cultura do Brasil, 2º ed., Rio, 1977, pp. 190 e 216.

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19 Serafim Leite (ed.), Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, 3 vols., Roma, 1956-1958, p. 335.

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MUNIÇÃO DE BOCA

carregam de copiosos mantimentos para diversas partes” do Brasil.!2 Cumpre dar o devido desconto às generalizações de cronistas como Gândavo ou frei Vicente do Salvador, para quem a farinha de mandioca já desempenharia no Brasil do seu tempo o papel da farinha de trigo no Reino. Tais asseverações eram o produto de uma atitude louvaminheira, interessada ou ingênua pouco importa, no tocante à riqueza e variedade da natureza brasileira. O vezo está particularmente presente neste pré-Policarpo Quaresma que foi frei Vicente, para quem o Brasil se poderia tornar economicamente autárquico

mediante a substituição do trigo pela mandioca, do vinho pela aguardente,

do azeite de oliveira pelo de coco, dos panos de linho ou de lá pelos de algodão, do ferro do Reino pelo de São Paulo, das amêndoas pela castanha de caju. Os Diálogos das grandezas do Brasil põem as coisas em pratos limpos, ao menos no tocante ao Nordeste. Perguntando Alviano a Brandônio se o uso da mandioca era comum entre os colonos, o interlocutor foi categórico: “AIguns e não poucos usam também de pão, que mandam amassar e cozer em suas casas, feito de farinha que compram do Reino ou mandam buscar às casas das padeiras, porque há muitas que vivem desse ofício”. O próprio autor cultivara trigo em Pernambuco a título experimental, não se dando mal com a experiência que só não prosseguira porque, segundo confessava, “se me comunica também o mal da negligência dos naturais da terra”.!2 Na Paraíba, a farinha de mandioca era o pão dos pobres; os ricos e os remediados só consu-

miam pão de trigo do Reino ou de São Paulo.!4

O vinho fazia parte da existência quotidiana dos colonos olindenses do período ante bellum que nos espiam dos fólios da documentação inquisitorial. Neste particular, os hábitos do Reino ainda são os seus. É raro haver referência a almoço ou jantar, por frugal que seja, que não inclua o vinho.!? O pro'2 Nova Lusitânia, p. 26; Sérgio Buarque de Holanda, Tentativas de mitologia, São Paulo,

1979, pp. 120-2. Para a cultura do trigo na São Paulo colonial, vd. do mesmo autor, Caminhos e fronteiras, pp. 205 ss; e também John Manuel Monteiro, Negros da terra, São Paulo, 1994, pp. 113 ss.

5 Diálogos das grandezas do Brasil, pp. 191 e 121-2. 1é Fontes, ii, p. 43. É Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Denunciações e confissões de Pernambuco, Recife, 1984.

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OLINDA RESTAURADA

duto consumido no Brasil era principalmente o da Madeira e o das Canárias. A colônia oferecia o mais importante mercado ao produto madeirense, que não deve ser confundido com a malvasia da mesma procedência, cujo tríunfo ocorrerá nos séculos XVIII e XIX. No XVII e nos finais do XVI, o vinho da Madeira era simplesmente o vinho de mesa, cuja popularidade entre os colonos era creditada à notável tolerância ao calor tropical, ao transporte marítimo e aos micróbios.!º Cingiienta anos antes da invasão neerlandesa, o consumo de vinho em Pernambuco cifrava-se em 50.000 a 80.000 cruzados anuais, soma considerável.!” Na realidade, o volume consumido seria ainda maior haja vista a preferência ibérica pela sangria, consistente em terçar ou mear o vinho com água da fonte, hábito estimulado pelo clima do Brasil. Ao conquistar Olinda, a tropa da W.I.C. topou com 500 pipas de vinho

das Canárias, mais que suficientes para embebedá-la; e nos ataques ao interior

da capitania, também o encontrou pelos trapiches e passos.'º Devido à partida

apressada dos habitantes, “os primeiros dos nossos que penetraram na cidade

encontraram as casas abertas e vazias, as mesas postas por toda a parte e bem providas com comidas e bebidas”.!? Um protagonista do episódio referiu como a soldadesca celebrou a vitória: “é difícil acreditar as riquezas e o butim

que nossos homens encontraram [...] sendo tal a abundância de tudo que eles

não sabiam a que atirar-se”, comentário que na pena de um europeu do norte assume particular relevo. Não houve soldado que não fizesse sua provisão de

vinho, azeite, farinha de trigo, uvas e azeitona, o que lhes veio a calhar por estarem ainda dependentes da alimentação européia.” Ali, como em Itamaracá,

eram comuns as latadas de parreira e as uvas davam duas ou três vezes ao ano, embora não se utilizassem no fabrico do vinho, que era todo importado.?!

16T, Bentley Duncan, Atlantic islands. Madeira, the Azores and the Cape Verde in the Seventeenth century commerce and navigation, Chicago, 1972, pp. 38, 43 e 45-6. 17 Fernão Cardim, Tratados da terra e da gente do Brasil, 3º ed., São Paulo, 1978, pp. 201-2. 18 J. Baers, Olinda conquistada, Recife, 1898, p. 42; e A. Richshoffer, Diário de um soldado, Recife,

1897,

PP.

69-70.

2 Baers, Olinda conquistada, p. 30. 20 “Tournal”, fl. 10r.

21 Diálogos das grandezas do Brasil, pp. 141-2.

226

MUNIÇÃO DE BOCA

Outro aspecto da persistência dos hábitos alimentares do Reino consis-

tiu na aclimatação, desde o primeiro século, de vegetais europeus e não ape-

nas do Oriente. Não é este o lugar onde se examinar o assunto mas cabe invocar os testemunhos de caráter geral que se encontram nas fontes coevas. Barleus acentuou que, à chegada dos holandeses, “a diligência dos portugueses já transportara para o Brasil “quase todos os cereais e frutas da Europa”, ponto também enfatizado por Nieuhof.?? Mas é a um companheiro de La Ravardiêre no Maranhão que se deve o elogio pormenorizado do que representava, nos primeiros anos de Seiscentos, o esforço de criação deste “imenso Portugal”: O que faz as coisas mais agradáveis é que agora se encontra comumen-

te no país o que lhe era exótico no passado. Pois que a curiosidade dos por-

tugueses, querendo todas as coisas na medida do seu gosto, levou-os a trans-

ferir para ali muitas plantas estrangeiras tanto da Europa quanto da África; assim o trigo e a cevada desenvolvem-se muito bem e em grande abundância, do Rio de Janeiro até São Vicente. As laranjas e os limões de diversas espécies são tão vulgares por todo o país que são encontrados comumente nas matas, ultrapassando em bondade os de Portugal; os figos, as uvas e as romás dão duas novidades por ano. As uvas são encontradas somente nos pomares, pois há proibição expressa da fabricação de vinho, para não estorvar o que vem das Canárias, que é ordinariamente vendido em todo aquele país. Há ainda tâmaras tão boas quanto as de África, também em pomares particulares, como o dos jesuítas em Pernambuco. Os melões frutificam todos os meses e os marmelos ali crescem naturalmente [...) Quanto aos legumes e hortaliças, há couves e a beldroega, que são comuns, as ervilhas, os feijões, as batatas e as abóboras de diversas espécies.??

Mesmo fora da área açucareira, o colono teimava em alimentar-se à ma-

neira do Reino. No Rio Grande do Norte, fabricavam-se “queijos e requeijôes como no termo de Lisboa”. Natal, humilde povoação de 25 vizinhos, “pobremente acomodados”, era provida não só de víveres da terra como tam22 História dos feitos, p. 22; Memorável viagem, pp. 296-7. 23 “Discurso sobre o tema da tomada de Pernambuco”, p. 251.

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OLINDA RESTAURADA

bém de “muitos dos de Portugal, como melões, pepinos, abóboras e finalmente todas as hortaliças, tudo tão estremado que avantaja as da Espanha [i.e., as

da Península Ibérica], as frutas de espinho muito melhores que as das outras capitanias, muitas toranjas e limões franceses e laranjas bicais”. De Itamaracá,

gabava as “boas uvas, romãs e figos”?! Sequer a alimentação dos soldados que presidiavam o litoral do Nordeste

se havia afastado notavelmente dos padrões reinóis. Até 1601, a guarnição de

Pernambuco recebia regularmente suas rações de carne, peixe e vinho, só então substituindo-se o fornecimento dos víveres por quantia em dinheiro, com o que provavelmente sua dieta assumiu feição mais local. A farinha, porém,

continuou a ser provida pelo governo, sendo, de acordo com as disponibili-

dades, de trigo ou de mandioca. No Rio Grande do Norte, na virada do sé-

culo XVI para o XVII, dava-se diariamente a cada soldado um alqueire de

farinha da terra, um quartilho de vinho e, cada mês, vinte arráteis de carne e

sete de peixe; aos escravos, que trabalhavam nas fortificações, a mesma alimentação, exceto vinho. O peixe era o salgado e a carne era freqiientemente a de chacina, isto é, carne salgada e curada de porco e de outros animais, embora a farinha pudesse ser a do Reino, sem falar no azeite doce e nas azeitonas.”

Mas já a expedição contra os franceses do Maranhão indicara não se poder contar com os alimentos do Nordeste para qualquer empresa militar de certa envergadura. Não os havendo trazido de Lisboa, o sargento-mor do Estado do Brasil, Diogo de Campos Moreno, teve de insistir no Recife, onde se faziam os preparativos da jornada, por que lhe fosse fornecida farinha de

mandioca suficiente para seis meses ou o equivalente a 6.000 alqueires, mínimo indispensável pois não se podia confiar, uma vez no teatro de operações, no envio de novos suprimentos de Pernambuco, dada a falta de pilotos que conhecessem a difícil costa leste-oeste. Para a tropa de 800 homens que se tinha em vista, o governador-geral, Gaspar de Souza, só pôde oferecer 3.000 alqueires de farinha da terra mas não o vinho, o azeite ou a carne. Apesar dos seus esforços, os resultados ficaram muito aquém do prometido, tanto assim

que “a armada milagrosa” (como a intitulava Campos Moreno) que incorpo24 “Relação das praças-fortes do Brasil”, pp. 188-9 e 196.

º “Relação de Ambrósio de Siqueira”, pp. 144, 146-8, 164 e 168-72.

228

MUNIÇÃO

DE BOCA

raria o Maranhão à Coroa portuguesa, composta de dois navios redondos, uma

caravela e cinco caravelões, só conseguiu zarpar graças ao providencial apare-

cimento de alguns navios do Rio de Janeiro, carregados de farinha e de peixe seco, aos quais o governador requisitou 6.000 alqueires de farinha, 100 arrobas de peixe e 20 canastras de sardinha. ESTREITEZAS DO TEMPO

Na Europa quinhentista e seiscentista, o aprovisionamento de um exército em campanha representava “severo teste de eficiência governamental”. Três soluções eram usadas. Pela primeira, vivandeiros encarregavam-se de suprir diretamente as tropas, sendo autorizados a se instalarem nas imediações das praças-fortes e acampamentos. Pela segunda, o governo tomava a si a tarefa, adquirindo e distribuindo as provisões. Por fim, recorria-se ao abastecimento nas fontes de produção, seja a pilhagem da população do campo, seja o fornecimento compulsório de quotas fixas de alimentos pelos habitantes da área ocupada, o chamado “Kontributions-system”, utilizado pelos espanhóis nos Países Baixos e aprimorado por Wallenstein durante a Guerra dos Trinta Anos por meio de um serviço central de requisição e distribuição.” Consoante as circunstâncias, recorreu-se a todos estes métodos no abastecimento das tropas luso-brasileiras. Durante a resistência, o aprovisionamento foi feito seja pelas remessas de víveres a cargo da Fazenda Real, seja por meio de vivandeiros, como os que se instalaram junto ao Arraial do Bom Jesus e outras praças-fortes, solução que pressupunha a relativa estabilidade da frente militar. Durante a restauração, as autoridades reservaram-se a tarefa. Os

campanhistas dependeram do esbulho da população interiorana pois o trans-

porte maciço de alimento teria comprometido sua mobilidade; eles também

26 “Jornada do Maranhão por Diogo de Campos Moreno, sargento-mor do Estado do Bra-

sil”, Revista do Instituto do Ceará, 21 (1907), pp. 218, 221-2 e 227.

HC. L.S. Davies, “Provisions for armies, 1509-50; a study in the effectiveness of early Tudor government”, The Economic History Review, 17 (1964-1965), pp. 234-5, 247; Parker, The army of Flanders, pp. 162-4 e 176-7; Israel, The Dutch republic, pp. 261-2. ||

229

OLINDA RESTAURADA

procuraram estabelecer, a oeste da área povoada, uma rede de pontos de su-

primento em farinha da terra. Por fim, o sistema de contribuições foi adotado a partir de 1635, quando o exército de resistência já se passara a Alagoas. Às tropas neerlandesas utilizaram-se também destes métodos, sendo que o sistema de quota de víveres fornecidos pelos agricultores de determinadas áreas foi adotado por oficiais como Schkoppe ou Arciszewski, veteranos da Guerra dos Trinta Anos. Os problemas de abastecimento já começaram antes da chegada dos primeiros reforços da metrópole. No Brasil colonial, a lavoura de mantimentos tinha baixo nível de produtividade, sendo uma ocupação desvalorizada, boa apenas para as áreas marginais. Abafando-a e expoliando-a, exercia-se a ação das Câmaras e da administração régia, interessadas em controlar o preço dos víveres, de modo a baratear o sustento da escravaria e os gastos de suprimento das guarnições. Redistribuía-se assim pelo conjunto da população os custos de defesa e de operação do sistema açucareiro.? Natural pois que o Brasil se tornasse aquela “terra de alimentação incerta e de vida difícil”, da descrição

de Gilberto Freyre.?? À retirada da população de Olinda e do Recife para os distritos rurais e ao abandono de muitos roçados pelos moradores obrigados ao serviço da milícia, juntaram-se os efeitos de um ano seco, dando lugar a tamanha penúria que o preço da farinha da terra quintuplicaria. Matias de Albuquerque teve de tomar medidas severas de racionamento de farinha de trigo, carne seca e salgada, bacalhau, arroz, legumes, embora a carne verde não tenha faltado inicialmente por se dispor de “quantidade considerável de vacas”. Da capitania de Itamaracá e de outros distritos, sempre vinha alguma ajuda de farinha e peixe seco.>º

28 Veja-se, por exemplo, a política dos governadores-gerais e da Câmara de Salvador no tocante à capitania de Ilhéus, principal área abastecedora de farinha de mandioca para o Recôncavo baiano: C. R. Boxer, Portuguese society in the tropics. The municipal councils of Goa, Macau, Bahia and Luanda, 1510-1800, Madison, 1965, pp. 103-4; José Pinheiro da Silva, A capitania da Bahia no século XVII, Coimbra, 1964, pp. 167-76. nd Freyre, Casa-Grande & Senzala, à, p. 52.

*º Memórias diárias, pp. 28 e 39; “Opúsculos de la guerra de Pernambuco”, BNL, EG, 1555, caps. 21, 22 e 34.

250

MUNIÇÃO

DE BOCA

Não havia assim excedentes de víveres locais com que sustentar uma tropa que não alcançava ainda o milhar de homens. Agravou o problema a presença do contingente de Bagnuolo, como assinalou Luís Felipe de Alencastro “o primeiro exército regular europeu a incorporar a farinha de guerra” de mandioca [...] à ração de tropa”.?! Há quatro meses em Pernambuco, Bagnuolo

se queixava de que, “por muitas diligências que se façam, não se pode obter a comida para esta gente e algumas vezes passam cinco e seis dias sem ter o que comer. Como tudo é necessidade, miséria e desespero”, reinava péssimo moral entre os soldados, “tanto mais que [ordinariamente] só recebem uma

libra e meia de carne e pouca farinha”, além de ficarem por vezes “três a qua-

tro dias sem nada receber”, ou na contingência de se alimentar do açúcar, que na falta de outro gênero era repartido pelos homens.”? A produção de alimentos não cresceu proporcionalmente ao aumento da demanda causado pela presença do exército. Não se tratava apenas da desorganização trazida pela guerra às atividades produtivas e pelo alistamento de parte da mão-de-obra ocupada na lavoura de subsistência, setor, como vimos, onde se recrutava a maioria da população livre. À produção de mantimentos para a tropa não foi encarada jamais como emprego alternativo da mão-de-obra escrava subempregada nos engenhos em

decorrência do conflito, pois sua transferência do açúcar para os víveres só

teria sido viável a um nível de preços extremamente oneroso. O produtor não

dispunha de garantias frente ao seu freguês potencial, o exército, que não só

podia impor-lhe preços ou requisitar-lhe a colheita como não tinha condi-

ções de pagar-lhe os fornecimentos regular e previsivelmente. Eis um caso entre muitos, recolhido ao acaso da pesquisa: ainda em 1641, certo Leonar-

do de Oliveira alegava dever-lhe a Coroa sessenta cabeças de gado e quanti-

31 Luís Felipe de Alencastro, O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul, São

Paulo, 2000, p. 361. 32 Bagnuolo a Felipe IV, 29.1.1632, AGS, GA, 1071; idem a idem, 1.viii.1632, AGS, GA,

1070; Conselho de Portugal, 9.x.1635, AGS, SP, 1478. Segundo informação obtida pelos holandeses, a alimentação diária do soldado da resistência seria de uma libra de carne e um prato de farinha: Manuel Rabelo Pereira a João Pereira da Silva, 10.1x.1632, e “Informatie genomen den 8 Augustus 1632”, CJH, BPB.

231

ÓLINDA RESTAURADA

dade de peixe fornecidos seis anos antes, “por não haver naquele tempo Fazenda Real de que pudesse ser pago”.*? De tais abusos não estavam tampouco imunes os comerciantes do Reino que se arriscavam a remeter víveres. Em

1635, El Rei mandava apurar o que se havia passado com mercadorias to-

madas a crédito para provimento do Arraial. Devido a tais práticas, os ho-

mens de negócio do Reino desistiam por vezes de suprir o Brasil, em dano do esforço de guerra. Os socorros enviados pela Coroa eram via de regra em soldados, armas,

munições e tecidos, raramente em víveres. A tropa de Bagnuolo trouxera conapenas o necessário à sua manutenção no decurso sigo alguma quantidade,

das primeiras semanas na terra. As provisões com que desembarcou Rojas y Borja mal dariam para dois meses, segundo as estimativas; na realidade, foram suficientes para trinta dias.?º Embora a ajuda vinda do Reino pelas caravelas à desfilada pudesse eventualmente conter vinho, azeite, farinha de trigo e bacalhau, criticava-se com razão o absurdo de se mandar “gente sem abastecimento” e de assim “impossibilitar o sustento dela”.?” Seria demasiado esperar da capacidade organizacional da Coroa que enviasse tropas adequadamente abastecidas quando as próprias armadas já velejavam de Lisboa com provisões escassas. Apenas levantou âncora, a de Oquendo teve de cortar as tações pela metade, ficando a de biscoito reduzida a doze onças, “coisa de que não se conhece precedente”. Uma parte do aprovisionamento já precário da

33 Requerimento de Leonardo de Oliveira, 23.ix.1641, AHU, PA, Pco., iii. 34 Co.Fa., 28.vi.1635, AHU, 504, Na Bahia em 1639, a Coroa devia a mercadores mais de

10.000 cruzados a título de mantimentos e materiais requisitados para a armada do conde da Torre: “Cópia da resposta que deu o provedor-mor da fazenda ao pé da portaria acima”, 18.viii.1639, CCT, iii, > Lucideno, à, p. 31.

3%6 Memórias diárias, pp. 220 e 223. A declaração de Ettore de la Calce segundo a qual viera “grande quantidade de víveres na esquadra, que podiam durar muito tempo” visava obviamente a desinformar o inimigo: Jaerlyck verhael, iv, p. 219. A correspondência de Rojas y Borja confirma, como veremos, a asserção do donatário,

37 Memórias diárias, pp. 129 e 138. 38 Junta de armadas, 15..1631, AGS, GA, 1036.

232

MUNIÇÃO DE BOCA

armada do conde da Torre estragou-se no percurso inicial da viagem e durante a escala de Cabo Verde.” Até sua capitulação em 1635, o Arraial supriu-se do “pouco que há para comer” a quatro ou cinco léguas de distância.é? A farinha da terra era transportada da capitania de Itamaracá e do médio Capibaribe. Da primeira, segundo o capitão-mor, “se leva grande sustento a Pernambuco e à Paraíba”, especialmente das farinhas que se produziam na Taquara, distrito da terra firme.?! Subindo o curso do Capibaribe, os roçados estendiam-se a norte pela Terra Nova e São Miguel, ao sul, por Periperi e pela várzea do Tapacurá.!? Os distritos meridionais de Una, Porto Calvo e de ambas as Alagoas também

forneceram farinha às guarnições do Arraial e do Cabo. Principalmente a partir de 1635, devido à queda da Paraíba e à perda da capitania de Itamaracá, que subtraíram ao controle da resistência as áreas de lavoura de subsistência ao norte de Olinda, recorreu-se à farinha e à carne de Porto Calvo.

Em março, na previsão da armada de Lope de Hoces, Bagnuolo foi ocupar a freguesia para assegurar “os mantimentos das roças e currais de gado (que eram muitos)”.“4

Ali já se encontrava o provedor da Fazenda Real, André de Almeida da Fonseca, para reunir carne e farinha para o Arraial e para o Cabo, então sitiados.*? A seu espírito prático não teria escapado a perspectiva de fazer da

região o celeiro da resistência. Calado, que viveu muitos anos nas cercanias de Porto Calvo, é testemunha da abastança local, pois naquela subárea a

monocultura da cana não dominara inteiramente sequer no interior dos en-

39 Junta de 23.v.1639, CCT, i; e conde da Torre a Tomás de Ybio Calderón, 16.iii. 1639, ibid., iii. Para o aprovisionamento das armadas espanholas no período, Carla Rahn Philips, Six galleons for the king of Spain, pp. 93 ss. 40 Andrés Marín a D. Juan de Zufre, 18.x.1633, AGS, GA, 1117.

41 Salvador Pinheiro, “Papel que se fez na preparação da armada”, s.d., BA, 51-J1-33; “Proposta que o capitão Francisco Teixeira fez”, 28.1x.1639, BA, 51-X-7.

“2 Juerlyck verhael, iv, passim. 43 Walbeeck aos XIX, 11.x1.1632, CJH, BPB.

“é Memórias diárias, p. 187.

9 Lucideno, i, pp. 36 e 39.

233

OLINDA RESTAURADA

genhos. No Escorial, por exemplo, os soldados encontrariam “muito que co-

mer, ovelhas e carneiros, perus e galinhas”.“º De um colono abastado, sabe-

se que ofereceu ao exército 2.000 alqueires de farinha,*” equivalentes à ali-

mentação de mil soldados durante dois meses. Por outro lado, as fontes, via de regra, só aludem à carne de boi, raramente à criação miúda, que também

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desempenhou seu papel, ou aos porcos, cabras e carneiros, raros em áreas açucareiras onde eram reputados animais daninhos, mas presentes nas de lavoura de subsistência.* A contribuição da Paraíba, donde inicialmente fizeram-se remessas de farinha e peixe salgado para Pernambuco,” não pôde continuar devido ao reforço da sua guarnição, em breve atacada. E, contudo, a Paraíba contava com economia mais bem equilibrada que a pernambucana, tendo um setor de subsistência mais vigoroso: em vista do relevo mais acidentado, a cana de açúcar limitara-se à várzea do Paraíba.?º A ribeira do Mamanguape estava ocupada por fazendas de criação, sua conquista pelos canaviais sendo bastante tardia, fins do século XVIII, começos do XIX; e ao longo dos pequenos cursos d'água, plantavam-se mandioca e milho c criava-se gado.”! A lavoura de subsistência dá ali a impressão de maior variedade, graças à importância do milho, que era cultivado para a mistura da farinha de trigo, embora conside-

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46 Tbid., 1, p. 63. 4 “Memória do que sucedeu em Pernambuco desde 8 de outubro até 12 de novembro de 1636”, BNL, EG, 1555. O alqueire de Pernambuco (medida de peso) era 2,5 vezes maior que o de Portugal, de modo que um alqueire pernambucano bastava para alimentar um homem pelo espaço de um mês: Diálogos das grandezas do Brasil, p. 119.

48 A carne de carneiro era julgada “tão nociva que absolutamente a aborrecem e não a concedem aos que têm saúde, quanto mais aos enfermos”: Simão Pinheiro Morão, Queixas repetidas em ecos dos arrecifes de Pernambuco, Lisboa, 1965, pp. 17-8. “9 Memórias diárias, p. 39. 0 Fontes, ii, pp. 42-5.

1 Ibid,., ii, pp. 79 e 82-3, 52 Ibid., ii, p. 93; Jaerlyck verhael, iv, p. 121; Sérgio Buarque de Holanda, Caminhos e fronteiras, p. 216.

234

MUNIÇÃO DE BOCA

arroz era pouco, os hábitos alimentares já haviam assimilado e elaborado grande número de frutas nativas e de fora, fabricando-se marmeladas e doces. Os

bovinos, porcinos e a criação miúda eram “em quantidade superior àquela de que necessita a capitania para si mesma”,?? afirmação impensável no caso de Pernambuco. À participação da caça na dieta paraibana parece também ter sido maior. Entre as providências de Matias de Albuquerque, inclufram-se o plantio de mandioca e a preparação da farinha pelos índios das aldeias. Os jesuítas ajudaram-no repetidamente com fornecimentos de farinha da terra e gado dos seus currais. Na retirada do exército de resistência, índios foram também utilizados, sob a direção dos inacianos, na fabricação de farinha em Porto Calser a alimenvo.“ Ela foi trazida também da Bahia. Em 1635, observava-se tação da tropa superior à dos retirados, graças à farinha que se mandara comprar a Salvador, ao passo que eles mal tinham o que comer, devido à quantidade de escravos que levavam consigo e à impossibilidade de pararem tempo suficiente para o plantio e colheita da mandioca e outros vegetais.”? Rojas y Borja também adquiriu farinha na Bahia, fazendo-a transportar para Alagoas em pequenas embarcações, que velejando entre a praia e os arrecifes iludiam a vigilância da marinha holandesa.?º Em dezembro de 1635, a Câmara soteropolitana referia-se à urgência de acudir-se a capitania; e em março de 1637,

aludia a encomenda de farinha por parte de Bagnuolo.?” Ali não se via com satisfação as remessas que “de contínuo se vão levando para Pernambuco e outras partes”, causa da carestia do produto, agravada pelo estio prolongado e pela presença da armada de Lope de Hoces.?* O pescado, sob a forma de peixe seco, também teve seu papel na resistência. O Arraial era abastecido do

23 Fontes, ii, pp. 43-4 e 96. 54 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus, v, pp. 353 e 389. 5 Memórias diárias, p. 215. 56 “Memorie door den kolonel Artichofsky”, p. 313.

57 Memórias diárias, p. 233; Atas da Câmara da Bahia, i, pp. 295 e 334; Documentos históricos da BNRJ, xvi, p. 333.

58 BNRJ, 12-2-3, ns. 8€ 9.

235

OLINDA RESTAURADA

Rio Grande por barcos que aportavam à Paraíba, de onde o gênero seguia por terra a Pernambuco. 32

ÀS ATRIBULAÇÕES

DA INTENDÊNCIA

|

As dificuldades de abastecimento sujeitavam as operações militares a

priorizarem a obtenção de víveres sobre quaisquer outras considerações, como se verificou com a chegada da tropa de Rojas y Borja. Em Lisboa, não se cumprira a promessa de dar-lhe víveres para quatro meses de Brasil, por se carecer do tempo e do dinheiro para reuni-los. Embarcou-se apenas o equivalen-

te a 40) dias, assim mesmo sob a forma de sal, azeite e queijos, a serem vendidos ou trocados na terra. Isto fora o mesmo que nada, de vez que Rojas não poderia negociá-los em terra despovoada e desprovida de comércio como Jaraguá, onde desembarcou, tendo de mandá-los para Salvador. Ele também adotara a sugestão que se lhe fizera no Reino, no sentido de reduzir as rações de bordo, de modo a alcançar Pernambuco com alimentos para 45 dias. Contudo, ao desembarcar, sequer sobravam víveres para uma semana, recorrendo o general a uma carga de farinha que trouxera da Espanha, provavelmente no intuito de vendê-la por conta própria.º?

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90 Papel sobre os preparativos da armada de D. Lope de Hoces, Madri, s.d., AGS, SP, 1478; Rojas y Borja a Felipe IV, 31.xii.1635, AGS, GA, 1173.

91 Memórias diárias, p. 220.

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39 “Enige naardere consideratie naar kenisse en gevoelen van Balthazar Bijma”, 13.x.1634,

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O sustento do contingente adicional de 1.600 homens representou o problema maior com que ele se defrontou. Cumpria-lhe obter os 1.600 alqueires de farinha da terra imprescindíveis ao sustento dos recém-chegados, questão que obcecou os últimos dias do oficial espanhol. O comando era unânime em reputar “impossível passar aquele socorro adiante do lugar em que se achavam e que por isso o julgavam perdido por falta de farinha, principal alimento”.º1 A El Rei, Rojas explicava ser Jaraguá “a terra mais má e estéril que há em todo este Estado, por não ter nenhuma população, mantimento ou água”.

236

MUNIÇÃO DE BOCA

De lá até o São Francisco, a região, também “muito estéril, com pouca população e sem nenhum abastecimento”, dispunha somente de “alguma vacaria”. Só lhe restava, portanto, marchar para noroeste, no rumo de Porto Cal-

vo, de modo a arrebatar ao inimigo o controle do distrito, onde “terei comida para esta gente”.º2 A outros, também anunciou sua decisão de “buscar a comida que aqui não há e que não há esperanças de obter”; e chegando à povoação, declarou que não viera “tanto a fazer a guerra ao inimigo como a buscar mantimentos para sustentar a gente que trago”.ºº O “ardor irrefletido” que Netscher criticou em Rojas y Borja“ foi, na

realidade, a tentativa justificada de assenhorear-se da derradeira área de lavoura

de subsistência que restava ao exército de resistência. Ao marcharem de Jaraguá, seus soldados tinham farinha para oito dias. Havia outra razão de pressa. Para esfomear o inimigo, os holandeses haviam resolvido arrancar os roçados e incendiar os canaviais e engenhos ao longo do caminho de dez milhas de Peripueira a Porto Calvo, evacuando a população para o norte do rio

das Pedras. A medida, que já teria sido grave para pequenos contingentes, acuaria a tropa regular à alternativa de se render ou morrer de fome. Em janeiro de 1636, Schkoppe entrou em Porto Calvo com duas companhias e 150 índios para realizar a missão tão logo expirasse o prazo de retirada dado aos colonos.ºº Ao partir para a vila, Rojas soube do que se preparava.” Como só lhe restassem cinco dias, despachou uma vanguarda de 600 homens, obrigan-

do Schkoppe a abandonar Porto Calvo, aonde arribaram finalmente os contingentes e a artilharia que haviam ficado em Jaraguá. Graças à operação, o exército de resistência ainda conseguirá manter-se por mais um ano ao norte do São Francisco, malgrado a derrota de Mata Redonda.

S2 Rojas y Borja a Felipe IV, 31.xii.1635, AGS, GA, 1173. 65 Rojas y Borja a Tomás de Ybio Calderón, AGS, GA, 1173; Lucideno, à, p. 69. 6 Pp M. Netscher, Les hollandais au Brésil, Paris, 1853, p. 77.

95 Iaerlyck verhael, iv, p. 219; Memórias diárias, pp. 223-4.

06 Jaerlyck verhael, iv, p. 208. 67 Memórias diárias, p. 225.

68 Tbid., pp. 225, 231 e 233; Jaerlyck verhael, iv, pp. 208 e 219.

257

OLINDA RESTAURADA

A abastança da região não resistirá aos descalabros da guerra. Em outubro de 1636, sóbria mas pungentemente, o cronista do exército constatava: “Neste Porto Calvo, vai padecendo-se já tanta fome que vai dando muito cuidado, e com a muita gente que acresce dos retirados se vai ela aumentando”. Adotou-se o sistema de contribuições obrigatórias pelo qual cada colo-

no forneceria, durante dois meses, os víveres necessários a número determi-

nado de soldados, mas “sempre se irão prorrogando”, como previa em tom cúmplice o analista castrense. Mas os resultados não foram os esperados. Como crescessem os clamores, resolveu-se aquartelar a norte mil soldados e os ín-

dios de Camarão, “assim por se aliviar isto de bocas, como porque afirmam

que no rio Formoso, nas Lages, Arquinda [sic] e Una, havia mais de quinze mil alqueires de farinha, segundo as muitas roças que há, as quais estão a quem

quiser”. A execução foi menos ambiciosa: 200 soldados de Martim Soares

Moreno e o terço de Camarão ocuparam a margem do Una, apoderando-se dos roçados desemparados, mas o inimigo logrou destruir muitos deles.'º A esta altura, Porto Calvo, que antes da guerra mandava gado de corte para Pernambuco, tinha de trazê-lo do São Francisco. O primeiro lote de reses aliviou o problema, tanto assim que, quando da conquista da vila por Nassau, os sitiados ainda dispunham de mantimentos para quatro meses, além de 40 cabeças de gado, legumes e até licores. Nassau é que não encontraria quem lhe fornecesse farinha, devido à prática de se desmontarem ou se depredarem as

instalações onde ela se fabricava.”!

As principais áreas de suprimento de gado estavam no litoral do Rio Grande e sobretudo no baixo São Francisco. Malgrado a guerra, os currais sãofranciscanos continuavam prolíficos, embora a maior parte dos animais se

tornasse selvagem.? Ao retirar-se para a Bahia, o exército da resistência não

se queixou da falta de carne, pois os habitantes de Sergipe forneceram-lhe a

$9 “Memória do que sucedeu em Pernambuco desde 8 de outubro até 12 de novembro de 1636”, BNL, FG, 1555.

70 Ibid.; Memórias diárias, p. 243. 71 “Memória do que sucedeu em Pernambuco desde 8 de outubro até 12 de novembro de 1636”, BNL, FG, 1555; Lucideno, à, p. 80; Memórias diárias, p. 259. 72 Fontes, ii, p-227.

238

MUNIÇÃO DE BOCA

quota diária de 18 reses. Os 4.000 alqueires de farinha que também entregavam é que se mostraram insuficientes.”? Havendo Bagnuolo mandado abater 5.000 reses e tanger outras 8.000, ainda assim os holandeses tinham podido arrebatar mais 3.000. O prejuízo foi grande para os criadores. Quando o conde da Torre solicitou ao senhor da Casa da Torre ajuda para a armada, Francisco Dias d'Ávila desculpar-se-á com a contribuição que fizera anteriormente, pois possuindo muitos milhares de cabeças, “os soldados e retirados de Pernambuco as comeram”. Nos quatro meses em que acampara naquelas bandas, o exército de Bagnuolo consumira “cinco currais de gado, que todo

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veio aqui para a infantaria comer, de que não recebi um real mais que um papel do senhor conde”. Já havendo dado sua parcela de sacrifício pela causa comum, o senhor conde que fosse bater à porta dos criadores do Recôncavo.” No tocante ao suprimento de um exército regular, a armada do conde da Torre na Bahia também revelou as limitações da economia colonial. O plano inicial da Coroa previra que ela permanecesse no litoral brasileiro o tempo necessário para restaurar o Nordeste, mas, como acentuado, devido aos

problemas de aprovisionamento e de mortalidade no decurso da viagem, tevese de adiar o ataque contra o Brasil holandês e de dirigir-se à Bahia, onde se esperava reunir alimentos e soldados. Além das promessas de que se lhe acudiria dos Açores, Madeira e Canárias, bem como do próprio Reino, o conde da Torre deveria recorrer às fontes brasileiras e ao rio da Prata. Contudo, a situação em Salvador era péssima. Ao contrário do que lhe haviam assegurado em Lisboa, o conde não achara “nesta praça depósito nenhum de bastimentos nem outra prevenção para o apresto desta armada”.?º A capital da América portuguesa recuperava-se do sítio posto por Nassau em 1638 e vivia sob o bloqueio da marinha neerlandesa. Não havia com que

/2 João Rodrigues Molinar a Felipe IV, 1.iv.1637, Kroniek van het Historisch Genootschap [Utrecht], 5º série, 5 (1870), p. 177; António de Igual y Castillo a Tomás de Ybio Calderón,

12.x1.1637, AGS, GA, 1240.

7 História dos feitos, pp. 65-6. ?5 Francisco Dias d' Ávila ao conde da Torre, 13.vii.1639, CCT,

Calmon, História da Casa da Torre, 2º ed., Rio, 1958, p. 57.

6 Junta de 23.v.1639, CCT, à.

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i. Vd. a respeito Pedro

OLINDA

RESTAURADA

alimentar o exército de 8.000 homens de mar e guerra, que a tanto montavam os efetivos da armada, do exército de resistência e da guarnição local, a ponto de a tripulação dos navios ver-se na contingência de consumir carne de cavalo, “caso raro e não sucedido jamais em terra povoada, sem estar sitiados”.” Adotou-se um racionamento rigoroso: oficiais e soldados só teriam direito a uma ração diária; e os índios deveriam contentar-se com um alqueire de farinha para 50 dias em vez de 30.8 Tratou-se de organizar o fornecimento de mandioca de Ilhéus, Boipeba e Camamu, peixe do Recôncavo e gado de Sergipe. Para aliviar a pressão de tantas bocas, despachou-se para os rios Itapicuru e Real uma tropa de 800 homens, a que se agregaram os terços de Camarão e Henrique Dias.”? Assim mesmo a armada só pôde velejar contra o Brasil holandês após receber a ajuda do Rio de Janeiro, das ilhas do Atlântico e de Buenos Aires.8º

O ENTRE-GUERRA: O GOVERNO DE NASSAU

O esforço de guerra de 1645 a 1654 não se ressentiu apenas da desorga-

nização da lavoura de subsistência no decurso do conflito anterior. Sofreu

também as repercussões da política nassoviana de abastecimento, inspirada pelo propósito de sustentar o exército neerlandês a menores custos, pois “os soldados holandeses, habituados a comer à saciedade, não toleram os jejuns que facilmente suportam os soldados vindos de lugares confragosos e de terras pobres”.8! Concluída a conquista, a W.1.C. procurou reduzir os custos do

D. Juan de Vega Bazán ao conde da Torre, 21.v.1639, CCT, iii. '8 Junta de 22.i1.1639, CCT, iii. Somente o terço de Henrique Dias continuou a receber

normalmente sua quota, por temor a que desertasse.

9 Junta de 8.viii.1639, CCT, iii. º9 Conde da Torre ao conde-duque de Olivares, 15.x.1639; idem a Diogo Soares, 19.x.1639; e idem a Tomás de Ybio Calderón, CCT, iii. Vd. a respeito Alencastro, O trato dos viventes, pp. 361-3.

“1 História dos feitos, p. 35. Um estudo da alimentação dos efetivos da W.L.C. considerou-

a, com efeito, “biologicamente satisfatória”, O valor nutritivo da ração média (3.407 calorias) si-

240

MUNIÇÃO

DE BOCA

aparato militar, transferindo para a produção local uma parcela substancial do suprimento da soldadesca. Com a queda do Arraial e do Cabo, o exército neerlandês começou a aprovisionar-se na terra, recorrendo a um sistema de contribuições de carne e farinha. No tocante à substituição da farinha de trigo pela de mandioca, houve

resistência da tropa.** Posteriormente, contudo, ela se teria afeiçoado à fari-

nha seca ou “de guerra” por repúdio ao pão dos exércitos das Províncias Unidas, de notória má qualidade devido à prática de se misturarem cereais baratos ao trigo, o que lhe dava, segundo Calado, o aspecto dos “pães de farelo que [em Portugal] se fazem para os cachorros”.º2 A carne verde era também superior à carne salgada da Holanda (que combinada ao calor tropical estimulava a ingestão de líquidos), embora se corrompesse rapidamente a menos de ser tratada com vinagre, ao passo que o leite não podia ser aproveitado para a fabricação de manteiga.* No governo de Nassau, o abastecimento do exército neerlandês enfrentou séria crise, de vez que o abastecimento da colônia, já comprometido pela monocultura canavieira, fora afetado pelo crescimento populacional do Brasil holandês. As medidas obrigando os senhores de escravos a plantarem número fixo de covas de mandioca, tabelando a farinha vendida ao governo e

tuava-se bem acima do nível de 2.400 calorias exigido pelo trabalho penoso, Sua deficiência consistia antes na inadaptação ao clima tropical e na persistência dos hábitos alimentares dos Países Baixos: Michel Morineau, “En Hollande au XVIlême siêcle: rations militaires et rations moyennes”, Pour une histoire économique vrate, Lille, 1985, p. 23. Embora se trate de aproximação valio-

sa a tema inexplorado, o estudo baseou-se em fonte holandesa relativa ao abastecimento da expedição naval enviada ao Brasil em

1647-1648, não correspondendo estritamente às circunstâncias

locais de aprovisionamento das tropas da W.I.C. no Brasil.

82 Fontes, 1, p. 209; Moreau, Histoire des derniers troubles, cit. 85 Fontes, il, p. 255; Memorável viagem, pp. 286 e 289; Lucideno, ii, p. 304; J. A. Gonsalves

de Mello, “Um ministro da igreja calvinista do Brasil holandês”, RIAP, 57 (1984), p. 333. Note-

se que a reação de Calado, português do Alentejo, era a mesma dos seus contemporâneos france-

ses que visitavam as Províncias Unidas: Paul Zumthor, La vie quotidienne en Hollande au temps de Rembrandt, Paris, 1959, p. 90. Sá Jaerlyck verhael, iv, p. 236; Memorável viagem, p. 46; Moreau, Histoire des derniers trou-

bles, cit.

24]

OLINDA RESTAURADA

interditando o corte doméstico de criação graúda (que só poderia ser feito nos açougues, a preço reputado baixo pelos criadores), foram sabotadas pelo colonato luso-brasileiro de maneira razoavelmente eficaz: quase dois anos depois de serem tomadas, não havia “um só lugar onde o exército possa encontrar o alimento necessário”.8º Com o ataque da armada do conde da Torre, a situação tornou-se das mais precárias.8º Só por meios violentos era possível obter carne e farinha para a tropa, devido ao prejuízo de 30% incorrido pelos pro-

dutores, pagos em vales que trocavam com ágio junto aos comerciantes. Por vezes, os soldados passaram duas semanas “sem carne e até sem carne e sem farinha”. A escassez era tal que mesmo as pessoas abastadas viam-se forçadas a consumir milho e abater os bois de trabalho.” O meio rural considerou-se

hostilizado; e ao justificar o movimento restaurador, Calado invocaria a in-

satisfação que tal política havia causado no campo.8 Nos primeiros anos quarenta, o Brasil holandês continuava dependente

das importações de alimentos da metrópole.º? Mas a partir de 1642, elas se reduziram ainda mais devido à crise comercial e à deterioração financeira da

W.I.C., simultaneamente com a ocupação neerlandesa de Angola, Maranhão e Sergipe, que aumentava as exigências de fornecimentos do Recife. Até mesmo o toucinho, cujo lugar privilegiado na dieta batava ficou consagrado no apelido de “Jan Spek”, ou João Toucinho, dado ao cidadão das Províncias Unidas, foi substituído pelo envio de porcos vivos para engorda.” Em meados de 1642, os víveres armazenados nos depósitos da empresa compreendiam uma quantidade irrisória de carne, farinha de trigo e centeio, queijo, vinho, etc., muito abaixo dos estoques para seis meses considerados o mínimo indispensável à segurança da colônia.?! As economias não pouparam sequer 9 Lucideno, à, pp. 315 e 325-6; Fontes, i, pp. 212-3; Gonsalves de Mello, Tempo dos flamengos, pp. 175-87, 86 Nassau aos Estados Gerais, á.viii.1639, IHGB, DH, 2.

87 Ao.So.Co. aos XIX, 2.1ii.1640, “Batalha naval de 1640”, RIHGB, 58 (1895), pp. 29-32. 8 Lucideno, i, p. 315. 8) Memorável viagem, p. 48; Fontes, ii, 229. 90 J. €. Tolner aos Estados Gerais, 15.vii.1642, IHGB, DH, 2; Fontes, ii, p. 235.

2! Nassau aos Estados Gerais, 25.vi.1642, IHGB, DH, 2.

242

MUNIÇÃO DE BOCA

a mesa do governador, que protestou contra a redução da mordomia.?? Como assinalou Gonsalves de Mello, “apesar de todos os esforços de Nassau e do Álto Conselho, nunca se chegou a um período de equilíbrio, em que o Nordeste pudesse atender às suas próprias necessidades” .?>

DA MÃO À BOCA

Quando dos preparativos da insurreição de 1645, Fernandes Vieira estocou grande volume de farinha da terra, arroz, favas, feijão, milho, peixe

salgado, carne de salé, fumo, vinho, azeite, vinagre, sal e aguardente, além de dispor das cabras e ovelhas dos seus engenhos e do gado dos seus currais da mata do Brasil, onde pastariam mais de 1.000 bois mansos e 4.000 vacas parideiras.”* Não sendo fácil reunir tal quantidade sem dar na vista, mandou guardá-la em celeiros secretos.” Deflagrada a rebelião, ele tratou de obter gado e farinha na ribeira do Capibaribe.” Nestes meses iniciais, os movimentos dos restauradores pautaram-se pelo objetivo de evitar um choque prematuro com a tropa holandesa, devido não só à modéstia dos seus efetivos, como já acentuado, mas também à necessidade de angariar os víveres da freguesia de São Lourenço, a “parte mais abundante de mantimentos”. As necessidades se haviam agravado em face do número de escravos que acompanhavam os senhores que tinham aderido à revolta, ademais da “muita gente inútil que, com temor, se vinha amparar do exército”, ou das famílias dos insurretos, coagidas

pelo governo neerlandês a acompanhar seus chefes, no intuito de complicar as dificuldades logísticas, forçando-os a se embrenharem pelos matos.” Uma vez estabilizada a frente, com o domínio do interior pelos insurretos e com as tropas holandesas recolhidas ao Recife e aos presídios litorâneos, 22 Idem a idem, 24.ix.1642, ibid. 23 Gonsalves de Mello, Tempo dos flamengos, p. 182.

94 Lucideno, i, p. 338, e ii, p. 120; História da guerra, p. 195. 22 Memorável viagem, p. 119. %6 Lucideno, i, p. 395. 2 História da guerra, pp. 218 e 220; Memorável viagem, pp. 131-2.

243

OLINDA

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Fernandes Vieira buscou regularizar o suprimento, propondo que cada colono se obrigasse a ocupar no plantio de mantimentos a terça parte dos seus escravos. A proposta não vingou, tanto mais que ainda estava por resolver o dilema entre paralisar ou operar o sistema açucareiro. Para a indecisão contribufa também a ordem régia, que será posteriormente derrogada, mandando evacuar a população do Nordeste e incendiar os canaviais. A desorganização

era geral, já não se plantando mandioca, “por não darem as inquietações lugar e todos largam as suas casas e fazendas ao desemparo”.?? Em dezembro de 1645, o exército restaurador carecia de tudo.!ºº E em março, o Arraial passou por momentos difíceis. Na esteira da fome causada pelas grandes chuvas e enchentes, que estorvaram o transporte de víveres, por pouco não se verificou um levante ou deserção em massa. Como se temia recorrer ao confisco de víveres, que poderia aumentar o descontentamento dos colonos pondo tudo a perder, resolveu-se que Fernandes Vieira percorreria as freguesias meridionais a fim de solicitar contribuições voluntá-

rias. À missão rendeu quantidade de farinha, gado e açúcar.!º! E para surpresa geral, a evacuação das capitanias de cima veio aliviar a penúria, provocando a queda do preço da farinha. Embora um cronista enxergasse no episódio o favor especial da Providência Divina, ele mesmo alude a que os evacuados e seus escravos, estabelecendo-se no sul de Pernambuco, cultiva-

vam seus roçados e criavam seus animais. Houve, é certo, quem arrendasse engenho ou partido de cana, porém a maioria dedicou-se à lavoura de mantimentos, donde ter-se verificado “tanta abundância das coisas que dá e produz a terra”.102 Nem por isso o exército restaurador ficou a salvo de sobressaltos. Em outubro de 1646, a “grande falta de tudo” era instrumentalizada pelos inimigos de Fernandes Vieira: no Recife circulavam boatos de motins entre os soldados da Bahia, os quais “já andaram às vias de fato com os moradores, 98 Lucideno, il, p. 234.

?2 Jerônimo do Vale ao marquês de Cascais, 31.11.1646, AHU, PA, Pco., iii.

100 “Diário ou breve discurso”, p. 146.

101 Lucideno, ii, pp. 339-40 e 342.

02 História da guerra, pp. 426-8.

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MUNIÇÃO

DE BOCA

seguindo-se daí ferimentos e mortes”.!0 O Arraial provia-se sobretudo da farinha que vinha de Muribeca, São Lourenço e da mata do Brasil além dos roçados existentes em engenhos circunvizinhos de fogo morto. O produto podia faltar, como na primeira Guararapes: enquanto os holandeses “traziam suas mochilas bem providas de mantimentos e sua bagagem copiosa e abundante deles”, os luso-brasileiros marchavam para a grande vitória “mortos de fome” e somente com uma pouca de farinha da terra, e essa tão pouca que não lhes

bastava para satisfazer a fome”, pois os lavradores das redondezas se haviam retirado por temor às manobras do exército neerlandês. Outra ocasião de rebate resultaria, contudo, propícia: a tropa ocupou os mandiocais abandonados, fabricando ela mesma boa quantidade de farinha. !0“ Em 1649, porém, o exército achava-se “regularmente aprovisionado de farinha, que os próprios habitantes trazem aos quartéis”, tanto mais que “a ração dos soldados é bem sóbria, consistindo ou de carne, mas muito pouca, ou de sardinhas e baca-

lhau com farinha”.!9>

CURRAIS DE MARTE

Em setembro de 1646, o gado estava “destruído por quase toda parte”;

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um ano da guerra consumira a maior parte do existente no Rio Grande. Inicialmente, Camarão trouxera dali apenas 200 reses, de vez que os rebanhos haviam-se dispersado por motivo das refregas com as tropas holandesas, que procuravam impedir o acesso dos luso-brasileiros a uma área que, com a perda do Penedo, tornara-se a última fonte de suprimento de carne ao Recife; posteriormente, mais 400 cabeças haviam chegado ao Arraial. Recebendo-se outras 500 do São Francisco, num total de 900 animais, concluiu Varnhagen pela fartura que, ao longo do conflito, teria prevalecido no Arraial em contraste com a extrema penúria a que estavam reduzidos os holandeses, sitiados

|

'05 “Diário ou breve discurso”, pp. 2089. 104 Depoimento de Domingos da Costa, 13.i11.1649, ARA, OWIC, 64; História da guerra, pp. 488 ec 528.

105 Depoimento do escravo Antônio, 29.vi.1649, ARA, OWIC, 65.

245

OLINDA RESTAURADA

na capital e nas praças-fortes.!ºº Na realidade, a abastança foi de pouca dura, de vez que o exército restaurador consumia cerca de 600 cabeças cada dois a

três meses. 107

O resto de gado que existia no Rio Grande estava alçado ou em poder

do inimigo encastelado em Natal ou no engenho Cunhaú. Quando Vidal

de Negreiros jornadeou por aqueles contornos, não topou com rebanho algum.!98 As 200 ou 300 cabeças que se comboiaram em 1647 haviam sido tomadas aos holandeses e outras 700 eram de gado selvagem. A derradeira alusão ao gado do Rio Grande reporta-se aos 80 animais que chegaram ao Arraial em 1648, altura em que os holandeses já não contavam com ele. !º? Estorvos de toda espécie dificultavam tanger os animais de tão longe, !!º sendo fácil imaginar as condições em que chegariam ao destino. Não surpreende assim o consumo do exército luso-brasileiro, que poderia parecer gargantuesco quando, na realidade, ele se alimentava apenas de gado magro (para não mencionar o pequeno tamanho das reses da época), e excepcionalmente do que capturava nas imediações das fortalezas batavas.!!! Por outro lado, a Câmara de Olinda reportava o abate de bois empregados no transporte do pau-brasil, em dano da exportação da madeira, ao passo que, nos engenhos,

!!2 os senhores optavam por matar as vacas, agravando a prazo a situação. Para os soldados luso-brasileiros, o baixo São Francisco tornou-se um verdadeiro “pays de Cocagne”. Os homens da companhia de Nicolau Aranha lhes terão narrado o excelente trato q que lhes dispensaram os colonos da região: “nunca nos faltou, antes sempre sobejou, o mantimento de vacas, vite-

106 Memorável viagem, p. 265; Lucideno, ii, pp. 272 e 320; Varnhagen, História das lutas, p. 218.

107 Lucideno, ii, p. 308. 108 Tbid., ibid.; História da guerra, pp. 440.

109 Flistória da guerra, pp. 443, 447 e 459; Ao.Go. aos XIX, 26.11.1648, CJH, BPB. HO Fistória da guerra, p. 424. HH Lucideno, ii, pp. 283-4. 112 Câmara de Pernambuco a D. João IV, 28.v.1647; Cosmo de Castro Passos a D,. João IV, 30.v.1647; representação dos colonos de Pernambuco, anexa a Co.Uo., 14.11.1646, todos em AHU, PA, Pco., ui.

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MUNIÇÃO

DE BOCA

las, perus, patos, galinhas e carneiros, farinha, leite, doce e as frutas que a terra dava”, Não satisfeitos da acolhida, que em qualquer parte da América portuguesa se teria feito notar pela fartura e variedade, eles ainda fizeram à tropa “muitos donos e mimos de bois, vacas e novilhos”.!!º Em 1646, chegavam

dali 200 reses ao Arraial, mas como os neerlandeses reocupassem a região, os

moradores retiraram-se para Sergipe até que, vindos da Bahia, os soldados de Rebelinho se assenhoreassem definitivamente da área, tangendo até mesmo a vacaria da margem norte pata Salvador e seu Recôncavo, tão dependentes do gado são-franciscano que, em Lisboa, um dos argumentos contrários à cessão do Nordeste era o de que perder o São Francisco equivaleria a perder a Bahia, pois sem seus rebanhos a cidade morreria de fome.4 A Câmara de Salvador não via com bons olhos o abastecimento do Arraial nos currais da região. Em

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1647, o bloqueio naval holandês sextuplicou

os preços dos víveres na cidade, e não havendo dinheiro para sustentar a guarnição, lançaram-se contribuições extraordinárias: mesmo assim houve ocasião em que ela só dispunha de mantimentos para três dias. Francisco Barreto tentou garantir suprimento regular do São Francisco para o exército de Pernambuco, reservando a este fim a receita da redízima e da pensão dos engenhos. O emissário que enviara à Bahia regressou “muito carregado de esperanças" mas sem resposta da Câmara, !! cujo particularismo não diferia, aliás, do que caracterizava a gestão municipal no Reino e no Ultramar. Só a intervenção

do governador-geral, conde de Vila Pouca, permitiu que se comboiassem de Sergipe 500 cabeças para o Arraial, ajuda isolada, como se depreende da queixa de Barreto segundo a qual “da Bahia não me acodem com coisa nenhuma”, embora haja referência meses depois a gado daquela procedência trazido por

13 Lucideno, ii, pp. 153-4. 14 Tbid., p. 308; História da guerra, p. 439; Ao.Go. aos XIX, 9.x11.1647, CJH, BPB. No

lado oposto, o padre Antônio Vieira também invocou a precariedade do aprovisionamento do exército restaurador para justificar o fim de uma guerra que lhe parecia insustentável: “Papel a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses”, Obras várias, à, p. 46. 115 História da guerra, p. 463; “Origineele brieven van Hendrick Doedens aan Anthonio van

Hilten”, p. 477; AUC, CA, 31, fls. 3-3v.; Tales de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, 2º ed., São Paulo, 1955, p. 336.

247

OLINDA RESTAURADA

mar. Em 1649, vieram outras 300 reses a título de finta; e em 1650-1651, o

período de aprovisionamento mais precário em vista do ocorrido com as “naus





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do assento”, o sucessor de Vila Pouca, conde de Castel Melhor, despachou

novo socorro, continuando esporadicamente a fazê-lo até o fim da guerra, embora a Bahia não estivesse em condições muito melhores, de vez que “a tardar mais a frota [da Companhia de Comércio], não haveria farinha nem vinho para as missas”. 16 Ao longo da restauração, o alimento da soldadesca piorou. De início, cada homem recebia diariamente meio quilo de carne e meio litro de farinha,!! quota reduzida nos momentos

de crise que, como assinalado, não

foram raros. Pelos engenhos, já se viu, restava apenas o gado de tração estritamente necessário à produção, que Francisco Barreto tinha a preocupação de poupar para o caso de revés que o obrigasse a retirar o exército para a Bahia.

Em fins de 1648, os soldados estavam reduzidos a um quilo de carne e três

litros de farinha por semana.!!8 É certo que tais informações só dizem res-

peito ao aprovisionamento em produtos locais, mas era ainda mais incerta a importação de gêneros do Reino, donde se esperava ajuda em “peixe, carne,

biscoito e legumes, porque a terra no estado presente não pode acudir com

mais que farinhas”, assim mesmo precariamente.!?

Com a retomada da navegação, vieram gêneros reinóis. Em 1648, Fran-

cisco Barreto encontrou no Arraial sustento para dois meses e meio, adquirido às caravelas do comércio livre. Mas a ofensiva do corso zelandês elimi-

nou esses suprimentos modestos. Devido à cessação das comunicações com Portugal de dezembro de 1648 a abril de 1649, Barreto autorizou as unida-

Hó História da guerra, p. 526; Atas da Câmara da Bahia, ii, pp. 144 e 148-9; Francisco Barreto a Antônio Cavide, 8.111.1649, BA, 61-X-16; depoimento do escravo Antônio, 29.vi.1649, ARA, OWIC, 65; Cristóvão de Almeida a D, João IV, 15.xi.1652, BNL, FG, 218, n. 134; Francisco Barreto a Castel Melhor, 5.1.1654, BA, 51-VI-19.

17 Memorável viagem, p. 229. H8 Francisco Barreto a Antônio Cavide, 8.111.1649, BA, 5-X-16; Co.Uo., 8.vii.1649; Francisco Barreto a D. João IV, 28.11.1650, AHU, PA, Pco., iii; “Pernambuco afligido” a D. João IV, 26.11.1650; “Diário ou breve discurso”, p. 211.

H9 Câmaras de Pernambuco a D. João IV, 20.11.1647, AHU, PA, Pco., iii.

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DE BOCA

des da “infantaria da terra” a permanecerem em suas casas por cerca de um ano, consoante o regime de rodízio.!'?º Por sua vez, o “assento de Pernambuco” não solucionou as dificuldades do abastecimento, levando os soldados a se amotinarem.'2! Estando Francisco Barreto no Cabo a receber os navios do primeiro comboio, sublevaram-se três companhias da “infantaria de fo-

ra”, que não tinham família de quem se valer, por não lhes darem a ração e o fardamento recebidos nas naus inglesas, atentando mesmo contra a vida do mestre-de-campo Francisco de Figueiroa. Fernandes Vieira só conseguiu controlar a situação com a promessa de atendê-los, mas, de regresso ao Arraial, Barreto castigou com pena de morte sete dos cabeças e dissolveu as uni-

dades onde se iniciara o levante, redistribuindo seus efetivos pela “infantaria

| da terra”.122 O ocorrido, segundo Francisco Barreto, era merecedor de castigo ainda mais severo mas ele tivera de moderá-lo devido à seriedade da situação alimentar. Já não havendo donde tirar mantimentos e não vindo ajuda da Bahia, temia o que pudesse ocorrer, caso o segundo comboio não aportasse pontual-

HO História da guerra, p. 529.

21 Gonsalves de Mello datou o motim em abril de 1649: João Fernandes Vieira, ii, p. 114. A primeira menção ao episódio, a que não aludiu a crônica de Diogo Lopes de Santiago, encontra-se na consulta do Conselho Ultramarino de 14.vii. 1649: o mestre de um barco de aviso procedente de Pernambuco compareceu naquela data ao Conselho, a quem narrou o sucedido, fazendo entrega de um papel sobre “as causas que deram ocasião às inquietações e motins dos soldados do presídio contra a pessoa do mestre-de-campo Francisco Barreto”, AHU, 14. Tendo a alteração se verificado por ocasião da chegada do primeiro comboio do “assento”, ela terá ocorrido na segunda quinzena de março, pois as naus entraram no Cabo a 17 daquele mês.

122 Co.Uo., 21.viii e 14.x11.1649, AHU, 14; Antônio Teles da Silva a D. João IV, 3.v1.1649,

ARA, OWIC, 65. A Antônio Teles da Silva, Francisco Barreto deu versão comprometedora para Fernandes Vieira e condizente com a animosidade que reinava entre os chefes restauradores. Vieira, que se estomagara com ter de dividir a chefia do Arraial durante a ausência de Barreto com Francisco de Figueiroa, fora aclamado pelos amotinados, que diziam não querer outro governador; e pressionara Barreto para que voltasse imediatamente, o que este só não fizera devido ao aviso de que “o haviam de matar no caminho”. Em seu lugar, Barreto enviou Vidal de Negreiros, “levan-

do as carregações do que vinha nas naus inglesas”. Uma das companhias de Fernandes Vieira que servia no Cabo também se amotinara na mesma ocasião.

249

OLINDA RESTAURADA

mente.!23 Fazendo escala no Cabo em começos de 1650, o conde de Castel

Melhor reconheceu ser a situação “miserável”, pelo que mandou desembarcar, da carga destinada a Salvador, quantidade de bacalhau, farinha de trigo, azeite e vinho, comprometendo-se pessoalmente a reembolsar a Companhia de Comércio no montante de 20.000 cruzados. A decisão será criticada pela Câmara de Salvador, que embora admitisse haver sido inspirada pela “natural pieda-

de e experiência militar” do novo governador-geral, teria prejudicado grandemente a Bahia.!2é Castel Melhor surgira na undécima hora: sem os gêneros que deixara, os temores de Barreto se teriam provavelmente realizado, com

a debandada do exército.

PESCADO DA TERRA E DO MAR EM FORA

O domínio naval holandês impedia que o comando luso-brasileiro se valesse plenamente da pesca litorânea, que o provedor da Fazenda Real já estimava incapaz de “sustentar tanta infantaria”. 125 Ao partir para Pernambuco, Erancisco Barreto solicitara 6.000 braças de redes de arrasto a serem utilizadas nos portos mais distantes, como os de Alagoas, onde se pescava com menor risco.126 Em 1649 a “vintena do pescado” só fornecia o suficiente para alimentar os soldados durante três meses,!2” devido à falta de mão-de-obra escrava, de que a pesca dependia quase tanto quanto os engenhos de açúcar; e também à penúria de sal. No papel, a importação de sal do Reino regularizou-se a partir de 1648, quando D. João IV ordenou que os navios com desorA uto. prod do ível poss e dad nti qua r maio a ssem leva o buc nam Per a tino

123 Co.UO., 21.viii e 14.xii.1649, AHU, 14. 124 Castel Melhor a D. João IV, 27.11.1650, AHU, PA, Pco., iii; “Pernambuco afligido” a da D. João IV, 26.11.1650, AHU, PA, Pco., iv; CoUOo., 30.iv.1650, AHU, 14; Atas da Câmara

Bahia, iii, p. 67. Em 1652, a Companhia Geral ainda não fora reembolsada: Documentos históricos da BNRJ, iii, pp. 154-5 e 160-1. 125 Cosmo de Castro Passos a D. João IV, 30.v.1647, AHU, PA, Pco., in.

126 Representação de Francisco Barreto, 1647, AHU, PA, Ba., v. 127 “Pernambuco afligido” a D. João IV, 26.11.1650, AHU, PA., Pco., 1v.

98

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dem não foi cumprida e o suprimento permanecerá irregular e escasso. Ade-

mais, não se podia contar com as salinas naturais do Rio Grande e do Ceará

devido às enormes distâncias a vencer e à vigilância do inimigo, que já se abastecia naquelas paragens.!2º O sal de Itamaracá achava-se também sob controle batavo. Não podendo a produção pesqueira local satisfazer as necessidades do exército, a alternativa foi trazer pescado de Cabo Verde. A Câmara de Olinda aludia em 1651 às caravelas que dali costumavam vir “trazendo peixe para ajuda do sustento da infantaria” e até comunicações oficiais.!?? Do Reino, elas

velejavam para a ilha onde carregavam o gênero que revendiam em Pernambuco, regressando a Portugal com carga de açúcar e pau-brasil. Da sua utili-

dade, testemunhava a Câmara, ao solicitar o envio mensal de uma ou duas; e

El Rei atendeu a sugestão do Conselho Ultramarino no sentido de que, a título de incentivo, só se lhes cobrasse “o tributo costumado”, ou seja, o im-

posto pago à saída de Cabo Verde, isentando-as dos direitos devidos no Brasil e à Companhia de Comércio. Os barcos que fossem pela segunda vez ficariam automaticamente autorizados para futuras viagens, dispensando-os de encetar os trâmites de obtenção de licença.!?º

O exército restaurador também alimentou-se de sardinha do Reino e de bacalhau da Terra Nova. Em 1649, informava-se que, embora a carne fosse pouca, ele estava “razoavelmente abastecido de bacalhau e sardinha”.!?! De uma vez, prepararam-se em Setúbal nada menos de 2.000.000 de sardinhas. Comerciantes de Lisboa, como João Nunes Santarém, despacharam caravelas

carregadas do produto. Quanto ao bacalhau, Francisco Barreto estimava por baixo a demanda anual do exército em 4.000 quintais.!?> Ao menos numa ocasião, a Coroa comprou a carga de bacalhau da nau inglesa “The merchant

128 Co.Uo., 17.vii.1651, AHU, 14; Nassau aos Estados Gerais, 16.xi.1637, IHGB, DH, 2. '22 Câmara de Pernambuco e povos das capitanias do norte do Estado do Brasil a D. João [V, 10.11.1651, BA, 51-IX-6.

150 Co.UO., 8.xi.1651, AHU, PA, Pco., iii.

131 Depoimento do escravo Antônio, 29.vi.1649, ARA, OWIC, 65.

32 Co.Uo., 24.xi.1651, AHU, 14; Co.Uo., 13.11.1653, AHU, 15; Co.Uo,, 28.1.1654, AHU,

PA, Pco., iv.

251

OLINDA RESTAURADA

of Venice”, enviando-a a Pernambuco.!?? Se os derradeiros anos de guerra coincidiram com prolongada estiagem, em compensação a melhoria nas comunicações marítimas, decorrente do declínio naval da W.1L.C. e da guerra

anglo-holandesa, aliviou palpavelmente o aprovisionamento em artigos importados. Em 1652, D. João IV congratulava-se com o fato de que, graças ao Conselho da Fazenda e à Companhia de Comércio, os restauradores estariam sendo providos de todos os gêneros de origem metropolitana, o que era confirmado por frei Mateus de São Francisco. !3

PARA FINS DE COMPARAÇÃO: ENTRE OS NEERLANDESES

Por sua vez, o exército neerlandês revertia às condições, que conhecera

em 1630-1632, de completa dependência dos víveres importados. Em 1646, a população sob controle da W.1.C. compreendia 11.000 pessoas, das quais 8.000 no Recife.!?? A perda de Penedo foi um pesado golpe, de vez que o baixo São Francisco “era o viveiro do nosso gado”.!3º Por outro lado, não foi possível, como vimos, impedir as excursões luso-brasileiras no Rio Grande. Em 1646 a guarnição de Natal alimentava-se quase só de pescado. Agravando-se a situação, os aliados índios foram transferidos de Itamaracá para o Rio Grande, aonde “chegaram tão famintos e desolados” que, para matar sua

fome, apanhavam tudo o que podiam, de pitania ficou na maior parte sem animais Tudo que se pôde fazer foi contratar com çado.!>8 Tardando socorro da metrópole,

modo que em breve tempo a cae sem roçados de mandioca”.!*” particulares a captura de gado alo Recife conheceu a grande fome

133 Depoimentos de diversos, 7, 8 e 19.xi.1652, ARA, OWIC, 67. 134 Co Uo., 28.ix.1652, e frei Mateus de São Francisco a D. João IV, 1653, AHU, PA, Pco.,

iv; € Co.UO., 23.viii. 1653, AHU,

15.

135 Ao.So.Co. aos Estados Gerais, 17.iv.1646, IHGB, DH, 2; Gonsalves de Mello, Tempo dos Famengos, pp. 60-2.

136 “Diário ou breve discurso”, pp. 145 e 221; Moreau, Histoire des derniers troubles, cit.

137 Fontes, ii, pp. 265-6; Memorável viagem, pp. 237 e 248-51. 138 Ao.Go. aos XIX, 9.ix.1648, CJH, BPB.

252

MUNIÇÃO DE BOCA

de 1646. Deve-se ao testemunho ocular de Nieuhof a descrição mais gráfica do flagelo: a penúria se acentuava diariamente no Recife, a tal ponto que tudo quanto

se considerasse comestível, quer nos armazéns [da W.1.C.], quer na posse de particulares, era requisitado para uso comum. Contudo, não sendo de mais de uma libra per capita a ração semanal de pão, muita gente morria de inanição. O indício de morte próxima consistia na inchação das pernas. Os

gatos e cachorros, dos quais tínhamos então abundância, eram considerados finos petiscos. Viam-se negros desenterrando ossos de cavalo, já meio

podres, para devorá-los com incrível avidez. Não era menos suportável a falta de água potável devido ao rigor do verão [sic] e ao uso constante de carnes salgadas; todos os poços que se abriam minavam água salobra. Os miseráveis escravos, que só conseguiam a pior parte das sobras, tinham o olhar tão esgazeado e o queixo tão trêmulo, que causavam pavor mesmo aos mais destemidos [...] Finalmente, quando já tínhamos atingido ao auge da penúria e devorado todos os cavalos, gatos, cachorros e ratos, e um alqueire de fari-

nha chegou a ser negociado à razão de 80 e 100 florins cada um, sem que a quantidade total fosse suficiente para mais que dois dias de consumo, finalmente, a 22 de junho [de 1646] (data de que jamais nos esqueceremos), avistamos dois navios desfraldando o pavilhão do príncipe [de Orange], que rumavam para o Recife a todo o pano [...) Ninguém mais se podia firmar sobre as pernas, tal a fraqueza a que nos reduzira a falta de alimentação; mesmo assim, porém, todos se arrastavam até o cais onde, de longe, se podia perceber que o povo chorava de alegria. !??

Na Paraíba, os neerlandeses procuraram estender seu controle da cidade e das fortalezas às margens norte do rio. Ao evacuá-la em 1646, os luso-

brasileiros haviam destruído os engenhos mas poupado as roças e os pomar es.

140

Embora as marchas e contramarchas do exército restaurador tornas-

sem inseguras as atividades produtivas, um reduto instalado no Gargaú pro-

39 Memordvel viagem, pp. 255-6.

140 “Diário ou breve discurso”, p. 210.

253

OLINDA RESTAURADA

tegia o cultivo de víveres destinados às guarnições locais.!4! Itamaracá e a terra firme eram mais seguras. Outrora, os colonos se haviam iludido com a fera-

cidade do distrito, propondo-se mesmo que desembarcasse ali a expedição do conde da Torre: ele estaria tão bem cultivado que sustentaria facilmente 3.000 soldados,!4? conselho em boa hora descartado. Os chefes holandeses haviam

cogitado de construírem ali uma “segunda Rochela”, tão inexpugnável quanto

a outra, sugerindo Arciszewski, que conhecia bem o interior da colônia, ins-

talar na ilha a capital do Brasil holandês.!*2 O governo nassoviano, mais rea-

lista, admitia que embora as várzeas na terra firme nada ficassem a dever às

paragens mais favorecidas do país, Itamaracá só dispunha de “poucas terras férteis”, todas ocupadas na lavoura da cana: “o resto é devastado pelas formigas, de modo que muito pouco se consegue colher e o lavrador tem sempre prejuízos; somente melões e culturas semelhantes encontram-se ali em abundância e também as mais belas uvas do Brasil”. 144 Durante a insurreição restauradora, o governo holandês verificaria que

os roçados da ilha não davam sequer para alimentar o contingente de índios refugiados de Goiana, que, acossados pela fome, derrubavam os coqueirais.!* Mas como não houvesse alternativa a Itamaracá, devido à sua proximidade do Recife e às facilidades de comunicação marítima, o Alto Conselho procurou transformá-la em “uma espécie de celeiro do Brasil holandês”.!4º Em 1648, contratou-se com particulares o cultivo da mandioca, embora o lugar fosse “muito bravio e cheio de espinheiros e toda a sorte de árvores”. À qualidade do solo requeria nove ou dez meses entre plantio e colheita, sem falar na profusão de formigas, as devastadoras formigas de Itamaracá, celebrizadas no brocardo colonial: “Ilha, quem te persegue? Ilha, formigas e os Guedes”. Não podendo sustentarem-se e a seus escravos, os colonos arrancavam as roças antes do tempo. O projeto gorou antes mesmo da estiagem dos primeiros anos cin141 Gonsalves de Mello, 4 rendição dos holandeses no Recife, p. 59. 142 Salvador Pinheiro, “Papel que se fez na preparação da armada, s.d., BA, 51-11-33.

143 “Memorie door den kolonel Artichofsky”, p. 268; Memorável viagem, p. 50. 144 Fontes, i, p. 164.

145 Memorável viagem, p. 246. 146 Gonsalves de Mello, Tempo dos flamengos, pp. 181-2.

254

MUNIÇÃO DE BOCA

quenta, bastando dizer que, às vésperas da capitulação neerlandesa, os mandiocais já haviam sido seis ou sete vezes devorados pelos insetos.!4” Também tentou-se fazer da ilha um centro pesqueiro capaz de suprir as necessidades do Recife, mas na falta de escravos não apareceram contratadores.!48 Para a terra firme da capitania, previra-se explorar as roças abandonadas, reforçando-se a guarnição do forte de Orange para impedir as excursões luso-brasileiras em busca da mandioca de Tejucopapo, outrora uma das áreas principais de lavoura de subsistência.!*? Mas reduzido a uma no man's land, o distrito não se prestava à exploração regular. À batalha que ali se travou em 1646 constituiu o único episódio memorável desta guerra de farinha colonial. Por fim, o governo holandês tentou utilizar Fernando de Noronha, tendo

também de desistir, dessa vez devido à quantidade de ratos que a infestava,

embora esporadicamente se enviassem ao Recife carregamentos de milho e criação miúda, para não mencionar a piscosidade das suas águas, que permi-

tia despachar barcos “abarrotados de peixe”.!20 A presença da armada de De With e dos corsários zelandeses havia com-

plicado o problema, se bem que suas operações tivessem contribuído com os

víveres apresados nos porões de embarcações luso-brasileiras. É certo que o almirante passou quase todo seu tempo brigando com o governo a respeito do abastecimento da força naval, Di que desejava manter a níveis europeus. No segundo trimestre de 1648, não se abateu uma só rês para consumo da cidade, restando cinco vacas magras no curral da W.1.C. Era difícil obter uma galinha mesmo ao preço de 8 ou 10 florins. O único alimento fresco era o pescado que, em face da carestia, não estava ao alcance dos soldados.!2 Ainda em 1652, deu-se-lhes um pão por dia, sem carne nem toucinho.!?2 Em compen147 Ao.Go. aos Estados Gerais, 9.vii.1648, IHGB, DH, 4; idem aos XIX, 2.xi.1649 e 13.vi. 1653, CJH, BPB. 148 Memorável viagem, p. 246.

149 Tbid., p. 244; Ao.Go. aos Estados Gerais, 9.vii. 1648, IHGB, DH, 4. 50 Memorável viagem, p. 7; “Diário ou breve discurso”, p. 206. Ê

Si Hoboken, Witte de With, passim. 52 Ao.Go. aos Estados Gerais, 9.vii. 1648, IHGB, DH, 12: 10, 4.

153 Schkoppe aos Estados Gerais, 6.vii.1652, ibid., 5.

255

OLINDA RESTAURADA

|

|| |) |

sação, nos meses finais do Brasil holandês e “ao contrário do que se supõe, a gênede vinda à s graça boa”, nte ivame relat era e Recif do situação alimentar

ros da metrópole, malgrado a crise financeira da W.1.C. e a guerra anglo-neer do a o lv Sa . s” to en im nt ma os m va ja be so da in landesa. Após a capitulação, “a 4 . s” da ci te as e ab nt me ia or at sf ti sa am av st “e s ra ei st co s Ceará, as praças-forte

154 Gonsalves de Mello, A rendição dos holandeses no Recife, pp. 97 e 59.

256

P

Guerra de Flandres e guerra do Brasil

Guerra de posições e guerrilha: eis os pólos entre os quais se moveram

ambiguamente a resistência e a restauração, sem nunca serem inteiramente uma ou outra; eis, lado a lado, em embaraçosa convivência, a guerra européia

ea guerra brasílica”, o veterano de Flandres e o capitão de emboscadas, o soldado do Reino e o soldado da terra. A guerra contra as tropas da W.L.C. consistiu numa combinação ou mistura das técnicas de guerrilha e da arte mili-

tar. Esta, que pressupunha uma ecologia, uma sociedade e uma economia distintas, achou-se, uma vez transplantada para o Brasil, obrigada a compactuar com circunstâncias bem diversas das do Velho Mundo, quais sejam as de uma sociedade colonial implantada em meio tropical. Aos portugueses, não doeria, aliás, o esforço, tendo em vista a marginalização em que se achavam rela-

tivamente à tecnologia militar, o que os predispunha a um inconvencionalismo saudável. Marginalização que, contudo, não era só lusitana, dela comparti-

cionais, não ocorriam com fregiiência, verificando-se via de regra quando o exército inimigo corria em ajuda à praça sitiada para forçar o adversário a levantar o cerco que havia posto.

Z5/

e e — e ie

fundamental, a artilharia e a minagem. As batalhas campais, sem serem excep-

O

das praças-fortes ao longo dos eixos fluviais que sulcam a região; e sua arma

2

fisticado modelo, a guerra de Flandres foi uma guerra de sítio pelo controle

e q

lhando, por diferentes motivos e em graus diversos, outras nações européias. O que se entendia por guerra de Flandres, isto é, a guerra dos Países Baixos entre a Espanha e as Províncias Unidas, não esgotava obviamente as formas de conflito bélico na Europa da primeira metade de Seiscentos. A guerra de sítio das posições estratégicas constituía o privilégio das áreas mais desenvolvidas, como os citados Países Baixos ou a Lombardia, que eram também os pontos quentes do equilíbrio continental. Representando seu mais so-

OLINDA RESTAURADA

te en et mp co da s da ta do s ea ár em o ad us O figurino só podia, portanto, ser a, sej ou ”, na ia al it ça ra “t à o nd gu se s da uí tr infra-estrutura de fortificações cons sédo is na fi de ir rt pa a o nd po im a er vi se o estilo de engenharia militar que iem ão nç fu a ir tu ti bs su em ra ti is ns co a nç da culo XV e começos do XVI. À mu mu e s ma ar de to si pó de o om (c s te or -f as aç pr s nentemente logística das antiga

nco a do mo de a, iv ns fe de ão aç iz il ut nição e alojamento de soldados) pela sua

, es dr an Fl de ra er gu a , te ar st De . ia ar lh ti traporem-se ao desenvolvimento da ar oec da ro nt ce o am er e qu s na zo às te guerra de ricos, limitou-se praticamen for a, ni nâ Re da o çã ce ex e, qu , ha an em Al nomia européia. Por exemplo, na de o ns de a em st si de e nt re ca , to an rt po e, mava uma área subdesenvolvida, a nh zi vi a su da io it fe o u mi su as o nã os An ta fortificações, a Guerra dos Trin la pe e s ai mp ca as lh ta ba as nt ue cr r po de Flandres, caracterizando-se antes estratégia de terra devastada. rfo s “a e qu r di pe im em e ss re te in ve te É claro que o domínio espanhol nma se e r ta li mi te ar da ão uç ol ev a m se ças armadas lusitanas acompanhas rpo ão aç iz al in rg ma a s Ma .? s” da ha el ar ap e tivessem sempre bem instruídas ve as ou id qu li e qu , 9) 47 (1 s va ço cá tuguesa era mais antiga. Da paz das Al 68),

0-16 64 (1 o çã ra au st Re da ra er gu à V, so on Af leidades castelhanas de D. ra er gu a er ec nh co m ne o in Re o a, el st Ca que pôs fim à união dinástica com 1580, de na ha el st ca o sã va in À . us pe ro eu s civil nem participara dos conflito

rços te s do r ta li mi e il sf de um is ma foi II, pe li que pôs a coroa na cabeça de Fe ro va Ál D. de da ma ar da ro ei uz cr s Açores, um do duque de Alba, e salvo no

is ma o nt ta é ia pé ro eu de da vi ti li nf co de Bazán. A imunidade portuguesa à ôon ec s to en am oc sl de s so no pe eu ec nh co surpreendente quanto O século XVI E . as rn te ex e as rn te in s ra er gu de o ej rt co u micos, políticos e sociais, com se ên ol vi da u po ca es al ug rt Po , es ad culd contudo, mesmo passando por tais difi

” 60 16 de da ca dé da l ra ge e is cr “a cia. Mesmo ao que J. H. Elliott chamou cócia e na na Es , os ix Ba es ís Pa s no as lt vo re , ça an Fr (conflitos religiosos na

À . ne de in eu ec an rm pe al ug rt Po ” a) nh pa Inglaterra, levante mourisco na Es -1660: a myth?”, 60 15 n, tio olu rev ry ita mil e Th e“ 68; 331 Parker, La révolution militaire, pp-

236. 4, 93pp. , 90 19 s, re nd Lo s, nd la er th Ne the d an in Spa

159. p. ., s.d , Rio , ed. 2º , es ap ar ar Gu aos o av 2 Antônio de Souza Júnior, Do Recônc 1968, p. 107. k, Yor va No , 598 9-1 155 d, ide div ope Eur t, iot Ell 3 7. H.

Jau

GUERRA

DE FLANDRES

E GUERRA DO BRASIL

concentração de esforços na exploração e defesa do Império colonial permitiu-lhe abrandar as tensões que, na metrópole, tendiam a desafiar a ordem estabelecida, embora as guerras ultramarinas tenham cobrado um alto preço. Consoante D. Francisco Manuel de Melo, os portugueses foram os últimos a aderirem às novidades da arte militar, inclusive “aquele louvável costume de repartir em determinadas porções toda a infantaria do exército”, isto é, O terço de piqueiros que desde inícios de Quinhentos explicava o sucesso das armas castelhanas na Itália e alhures. Somente no reinado de Felipe II, estes

regimentos foram introduzidos em Portugal, mesmo assim esporadicamente, de maneira que jamais podíamos conservar nem capitães nem soldados velhos”, ou seja, experientes. Para a guerra colonial, o modelo da guerra européia era irrelevante: “nas guerras particulares de nossa gente, que se reduziram a conquistas da Índia e praças da África, não parecia de grande conve-

niência mudar a forma primeira com a qual elas se ganharam e foram conservadas”. No entanto, a rivalidade ultramarina com holandeses e ingleses mudara radicalmente a situação, pois havendo trazido para o Oriente “as or-

dens e rigorosa disciplina da Europa”, em vão os portugueses tentaram opor “nosso valor, regulado pelos antigos preceitos e esses, mal observados”. A Restauração em 1640 surpreendeu Portugal numa situação de despreparo militar que só não resultou em consegiiências mais danosas graças a que, nos primeiros anos quarenta, Madri optou por sufocar a insurreição da Cata|

| |

lunha, que vulnerava seriamente sua fronteira com a França, adiando a tare-

fa de esmagar a secessão lusitana, estrategicamente menos ameaçadora. Face aquele despreparo, tornou-se valioso o traquejo de soldados e oficiais que haviam participado tanto da resistência no Nordeste quanto da guerra de Flandres ou da Catalunha como ex-súditos do Rei Católico. Papel intitulado “Males que Deus permitiu para bem de Portugal”, redigido nos anos da guerra com a Espanha, menciona “a guerra dos holandeses no Brasil”, que proporcionara capitães e soldados práticos neste Reino, que soubessem pelejar contra

4 A utilidade da expansão colonial para a estabilidade das nações que nelas se engajavam não passou despercebida na Inglaterra e na França. Aí, um huguenote, La Popeliniêre, preconizou a colonização ultramarina como remédio para as guerras civis: J. H, Ellior, The Old World and the New, 1492-1650, Cambridge, 1970, pp. 83-4. ? Francisco Manuel de Melo, Epanáforas de vária história portuguesa, p. 141.

259

OLINDA RESTAURADA

D. nte infa o , iana ital ra mor mas da do fun do E .º os” han tel cas dos cia milí 1 Duarte, que militara na Guerra dos Trinta Anos, aconselhava D. João IV a aproveitar os veteranos do Brasil como capitães de infantaria, reservando os de Flandres à cavalaria.” ama acl sua da is depo que os dad sol os ir atra a cav bus Rei El 1 164 Já em hes o-l end ced con es, part las aque s toda de no Rei ao o sad res reg iam ção hav o”. vid ser iam hav que o post imo últ ao me for con o sold seu de a mei e “paga A embaixada portuguesa em Haia tratou de recrutar não só os veteranos portugueses do exército espanhol dos Países Baixos como os soldados luso-brasileiros que, feitos prisioneiros no Nordeste, eram mandados à Holanda.?

exér do ivos efet os -se ram uzi red s, ese and hol os e sobr ria vitó a Quando, após aern gov do stão suge u nho ami enc no ari ram Ult ho sel Con o dor, aura cito rest os zad ili mob des os dad sol os se emjar ora enc de ido sent no o buc nam Per de dor a servir no Alentejo.!º E em algumas das táticas empregadas por Matias de Albuquerque nas campanhas do Alentejo, um historiador português vislum-

brou “reflexos da luta contra os holandeses no Brasil, em que Albuquerque, com poucas forças, manteve em constante alerta um inimigo forte, bem instalado e com bases marítimas livres”. Falta estudar a experiência bélica do Reino decorrente dos seus contano tar mili ra ratu lite da a rez pob a é des lda icu dif das Uma ar. ram Ult no tos Portugal de Quinhentos e Seiscentos.!2 Em

1631, o Abecedário militar, de

Faria Severim, o pa6 Os manuscritos da Casa de Cadaval, i, p. 414. Atribuído a Manuel de

pel foi publicado no Arquivo Bibliográfico, 18 (1878), pp. 341-3. 495. p. 1, 0, -189 1889 oa, Lisb , vols. 2 te, Duar D. nte infa do ória Hist , lho Coe os7 José Ram

Cartas e outros 8 Junta dos Três Estados, 1 1.ix.1641, Horácio Madureira dos Santos (ed.), documentos da época da guerra da aclamação, Lisboa, 1973, p. 431.

e 245. 9 Correspondência diplomática, à, pp. 46, 82 e 195, ii, pp. 109 e 254, e iii, pp. 123 militar 10 Co.Uo., 7.xi.1663, AHU, 14. Um deles, João Soares de Albuquerque, depois de Domingos com distinção, regressou a Pernambuco como mestre-de-campo do terço de Olinda: do Loreto Couto, Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, Recife, 1981, p. 87. Geral 11 Belisário Pimenta, “Memorial de Matias de Albuquerque”, Boletim da Biblioteca da Universidadede Coimbra, 16 (1944), p. 310.

D, XVII XVI(sécs. pa Euro na e ugal Port em ra guer da ta Escri e. Mart de pena A ano, Bebi 2 Rui Coimbra, 2000, pp. 395-406.

260

Cd

DE FLANDRES E GUERRA DO BRASIL

João Brito de Lemos, visou precisamente a preencher a grave lacuna da falta de compêndios militares atualizados, de vez que só existia até então a obra de Luís Mendes de Vasconcelos, intitulada Arte militar, publicada em 1614. Lacuna que não só estimulara a teorização de um simples alferes como Brito de Lemos mas que era motivo de justificado espanto de sua parte em vista de viverem no país “muitos e valorosos soldados da Índia, Flandres, Brasil e de outras conquistas”.!? Parte da explicação devia encontrar-se na noção generalizada segundo a qual a experiência dispensava o estudo da doutrina, se é que esta era realmente possível, noção reforçada pelo empirismo predominante. D. Sebastião, por exemplo, fora dos que acreditavam na impossibilidade de reduzir a guerra a um corpo de regras, o que, como se sabe, não será irrelevante no desastre de Alcácer El Kibir.!4 Brito de Lemos insurgia-se contra semelhante concepção, parecendo-lhe que “o militar não é arte que com a continuação de andar na guerra se sabe, antes é arte que consta de regras e preceitos que ensinam a fazer a guerra ordenadamente”.!? Malgrado disporem os portugueses de uma rica experiência colonial, deve-se não a um deles mas a um espanhol a autoria do “primeiro manual de guerra de guerrilha jamais publicado”, a Milícia y descripción de

las Índias, de Bernardo de Vargas Machuca, impresso em Madri em 1599.1º

O preconceito antiteórico não era, contudo, especialidade lusitana, originando-se numa ética senhorial que tinha interesse corporativo em reduzir a atividade militar à prática e à bravura inata da aristocracia. Basta lembrar o ceticismo com que foram recebidas na Europa as primeiras academias milita-

res, como, entre outras, a célebre escola de Siegen, na Alemanha, fundada pelo

pai do conde de Nassau.

'º João Brito de Lemos, Abecedário militar do que o soldado deve fazer até chegara ser capitão e sargento-mor, Lisboa, 1631, fl. 3.

lá J. M. de Queiroz Velloso, D. Sebastião, 1554-1578, 34 ed., Lisboa, 1945, p. 195. 5 Abecedário militar, fl. 4.

16 Parker, La révolution militaire, p. 150. 1 Cardini, La culture de la guerre, p. 211; M. E. H. N. Mout, “The youth of Johan MauHts and aristocratic culture in the early Seventeenth century”, A humanist prince in Europe and

Brazil, pp. 31-4.

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GuERRA

261

OLINDA RESTAURADA

Em vão procurar-se-á nos escritos lusitanos a descrição de modelos que da ção fun em não s ado mul for mo mes m assi us, ope eur nte ame não os estrit iam hav que os, ern mod € gos anti res, auto dos luz à mas , tana lusi ia experiênc ara icip part que os, cel con Vas de des Men de esse nter desi O . tema o o versad

e pod ra, guer de nos ari ram ult los esti s pelo IV, pe Feli de s iana ital ras guer das

ser atribuído à convicção da sua irredutibilidade à formulação teórica, pois « « emboscadas e melhoramentos de sítios são coisas tocantes à especulativa,

em pod não lhe se que e dad ili bab pro ca pou tão tem ] itar [mil arte a qual nesta

dar regras certas € infalíveis como aos preceitos da prática, porque ainda que

sso suce o e pod ma, age rat est o e ada osc emb a o lad ecu esp bem to mui ha se ten ser diferente do que se esperava”.!8 Tampouco está alheio a este descaso o cona que de os, cel con Vas de des Men de obra a outr em so res vencimento, exp expansão portuguesa na Ásia não acarretara qualquer benefício à milícia do Reino, a tal ponto divergiam a guerra da Europa das guerras do Oriente, que

meaco do ena ord des “o s nela que vez de a, gic agó ped e idad util ssa esca tinham e na ipli disc a ece val pre só cá e , rias vitó s nde gra s veze tas mui o dad tem ter ordem militar”.!?

(GUERRA E ECOLOGIA

A assimilação das práticas indígenas ora designadas por guerra brasílica”, ora por “guerra volante” e por “guerra do mato”, havia implicado uma muem -se tar edi acr A dia. o a par te noi da a izar real se não que al tur dança cul suas da ain il Bras do s ono col os XVI ulo séc do a ent set s ano nos o, Gândav ima tra con tava aler ta nis cro o que pelo o, dan o pri pró seu em m ava tim bes

II ! II] |

O trato dos vio, str nca Ale r, auto o Para . 109v fl. tar, mili Arte os, cel con Vas 18 Mendes de ventes, pp. 357-9. , significaaliás É, 88. e 83-4 pp. oa”, Lisb de sítio do gos álo “Di os, cel con Vas de des Men 19

| ||

ainda mas , úteis só “não são ” emas atag estr e s “ardi os que er nhec reco a obra eira prim a que tivo e do pedat , 4) 64 (1 o ed ev Az de o nh ri Ma s Luí de r”, honrosos”, a “Doutrina política, civil e milita

|

Rui Bebiano, 4 pena de Marte, p. 404.

|

| 4]

|||

| ||

de Albuquerque: ríodo seguinte à perda do Nordeste e tenha sido dedicada precisamente a Matias

262

= kal

DE FLANDRES

E GUERRA

DO BRASIL

a

GUERRA

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prudência da atitude etnocêntrica.?? Aprendida dos índios no convívio e no conflito ao longo da marinha ou no sertão, a guerra volante já se havia incorporado em começos do século XVII à prática dos sertanistas e soldados, a quem proporcionava os meios de se oporem a estrangeiros, como na conquista do Maranhão. Somente no século XVIII a guerra brasílica tenderá a tornarse vergonhoso arcaísmo, identificando-se com o sertanismo, com o banditismo e com a autodefesa da gente mais miserável, negros aquilombados ou índios remotos. O mesmo Gândavo descrevera o estilo de guerra dos índios do litoral. Impressionara-o sobretudo a falta de disciplina: “Não andam todos juntos, derramam-se por muitas partes, e quando se querem ajuntar assobiam como pássaros ou como bugios”. Era, com efeito, “coisa estranha ver dois, três mil homens nus de uma parte e de outra, com grandes assobios e grita, flechando uns aos outros”. Inusitada também a ausência de batalhas campais: “não pe-

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lejam em campo nem têm ânimo para isso, pôem-se entre o mato junto de

algum caminho e tanto que passa alguém, atiram-lhe ao coração ou a parte onde o matem e não despedem flecha que não na empreguem”, isto é, que não acertem no alvo. Igualmente insólita era a mobilidade dos contendores: “enquanto dura esta peleja nunca estão com os corpos quedos, meneando-se duma parte para outra com muita ligeireza para que não possam apontar nem fazer tiro em pessoa certa”. Ele adverte, porém, que os riscos da indisciplina (“pelejam desordenadamente e desmandam-se muito uns e outros em semelhantes brigas, porque não têm capitão que os governe nem outros oficiais de guerra a quem hajam de obedecer”) eram como que supridos pela “grande manha” e astúcia militar.?! A luta indígena, como acentuou Georg Friederici, era apenas o somatório de duelos,

no qual cada combatente atendia em primeiro lugar à sua própria pessoa e à de seu contrário. À este procurava-se obstar, por meio de negaças e de saltos desencontrados que acertassem no alvo, e mesmo quando os adversários eram muitos [...] o constante movimento dificultava-lhes a pontaria. Os descobridores europeus geralmente compreenderam logo a significação desses

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20 Pero de Magalhães Gândavo, Tratado da terra & história do Brasil, Recife, 1995, p. 26.

21 Tbid., pp. 9-10, 25-6 e 108.

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saltos singulares e, por vezes, queixam-se de que os impediam de apontar € de acertar.

Às guerras holandesas foram, de um lado, guerra de sítio, de outro, guer-

ra volante. Batalhas campais só se verificaram excepcionalmente: Mata Redonda, Tabocas (mas não Casa Forte, que constou do assédio e investida de casa-grande de engenho) e as duas Guararapes. A preferência holandesa pela guerra de sítio e a luso-brasileira pela volante, em que cada lado enxergava sua vantagem, explicam por que, grosso modo, não tenha havido maior interesse em buscar a batalha campal. Como vimos, a iniciativa de Mata Redonda foi tomada por Rojas y Borja por conveniências logísticas, tendo de ser imposta 10 comando luso-brasileiro que a reputava fruto da inexperiência brasileira do general, como ao próprio comando holandês, que teve de vencer a relutância dos soldados em travar um combate a que não estavam habituados. Basta por só ês land neer cito exér o , Anos nta Oite dos ra Guer da o long ao que, dizer duas vezes se batera em campo aberto, em Turnhout em 1597 e em Nieuw-

poort em 1600. Cristóvão Álvares, que vivera em Pernambuco o quarto de século de | que 1655 em mar afir a podi vo, bata domínio as guerras destas nossas partes da Europa são em campinas mui rasas e descobertas, e as do Brasil e toda América são por entre matos, donde se não guarda ordem nenhuma das que cá se usam; e é força que donde varia o objeto, varia a ciência. E a experiência nos mostrou que os mais práticos que desta parte foram, se perderam, por quererem seguir o estilo de cá, desprezando o parecer dos práticos daquelas partes.Z

A idéia do condicionamento da atividade militar pela vegetação tropical recorre com freqiiência em escritos do século XVII. No período ante bel22 Georg Friederici, “À eficácia do arco dos índios”, RIAP, 12 (1905-1906), p. 489.

23 Parker, La révolution militaire, p. 48.

24 Cristóvão Álvares a D. João IV, 3.ix.1655, J. A. Gonsalves de Mello, “Cristóvão Álvares,

engenheiro em Pernambuco, 1608-1663", Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional, 15 (1961), p. 54.

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lum, assinalava-se que “o melhor meio para fortificar a pouco custo estas capitanias | Pernambuco, Itamaracá e Paraíba] é mandar poupar os mangues, que lá são árvores quase como salgueiros mas de pau muito duro”, propondo-se que fossem plantados ali onde não existissem, pois em dois ou três anos proporcionariam um baluarte detrás do qual “as espingardas e flechadas seguramente defenderão os moradores”.?> O emprego da cavalaria e da artilharia, a engenharia militar e a seleção das armas mais apropriadas constituem aspectos importantes da adaptação da guerra européia às condições ecológicas do Nordeste. Se a cavalaria só foi utilizada em escala anódina, não se deveu à carência de animais. “Aqui não faltarão cavalos, escrevia de Porto Calvo um oficial espanhol.?º Segundo os Diálogos das grandezas do Brasil, sua quantidade superaria à dos rebanhos do Prata, caso os africanos não apreciassem tanto a carne do animal que o abatiam onde quer que o encontrassem, inclusive os animais finos das estrebarias dos engenhos. O mesmo autor calculava que em 1618 Pernambuco poderia pôr em campo oitocentos cavalarianos.”” O serviço das lavouras e fábricas bem como o sistema de transporte absorviam número considerável de egiiinos, além da exportação regular para Angola, incentivada pelas autoridades lusitanas por motivos de segurança.? Se a utilização da cavalaria nas guerras holandesas primou pela modéstia, é que outras considerações entraram em jogo. Elas não tiveram a ver, porém, com a qualidade das montarias, pois elas eram reputadas tão boas quanto as espanholas,?? os célebres cavalos andaluzes de origem árabe. As éguas 2 “História da capitania da Paraíba”, manuscrito sem data mas de começos do século XVII,

Academia de Ciências de Lisboa, Fundo Geral, 133.

26 Alonso Jiménez de Almirón a Felipe IV, 27.111.1636, AGS, GA, 1173. * Diálogos das grandezas do Brasil, p. 27.

28 A exportação de cavalos de Pernambuco para Angola já é mencionada por Johannes de Laet na sua Histoire du Nouveau Monde: Gonsalves de Mello, Tempo dos flamengos, p. 171. Atividade que recomeçou após a Restauração portuguesa: Co.Uo., 23.xi.1656, AHU, 14, Co.Uo., 11.x.1664, AHU, 46; provisão de 6.xi.1664, AHU, 92; D, Afonso VI a Bernardo de Miranda Henriques, 22.x11.1666, AHU, 275; “Informação geral da capitania de Pernambuco”, ABN, 28 (1906), p. 212.

2) Moreau, Histoire des derniers troubles, p.t9;

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baianas, por exemplo, se comparariam às “melhores da Espanha”, parindo

“formosos cavalos e grandes corredores”, que eram vendidos em Pernambuco, onde consideravam-nos mais fortes e resistentes do que os peninsulares e mais longevos que os portugueses, com a vantagem de dispensarem ferradura, “por serem mais duros dos cascos ou por a terra ser menos pedregosa”.?? Nassau, oficial de cavalaria, apreciava especialmente o cavalo de Sirinhaém, que fez

representar no escudo de armas da vila e de que levou vários ao retornar às

Províncias Unidas.”!

Mas não é crível que, embora ágil, o cavalo do Nordeste possuísse a resistência e o vigor físico do animal europeu, tanto mais que sua alimentação baseava-se não na aveia mas no capim, no melaço e no milho. Na Paraíba, onde se pretendia haver “os melhores cavalos de sela do Brasil”, o milho era

a principal ração, graças à abundância deste produto; e em Pernambuco, já

se generalizara o uso do melaço, a cuja predominância se atribuíram as características físicas dos seus egiinos.?? Ademais, eles foram “aristocratizados” ou transformados em símbolos do poder senhorial, passando assim por um pro-

cesso de seleção que acentuava as qualidades antes estéticas e lúdicas, de cavalo de sela, do que as utilitárias e práticas de força de tração, requeridas pelos

trapiches, em cuja faina os bois revelaram-se mais resistentes. O provável é

que se o animal brasileiro tivesse sido prestante do ponto de vista bélico, a Co-

roa não se teria dado ao trabalho, durante a guerra contra a Espanha, de adqui-

rir cavalos nas Províncias Unidas. Nem é crível que se o cavalo andaluz fosse adequado à guerra, a Espanha tratasse de comprá-los até na Dinamarca.?º A utilização bélica do animal devia naturalmente variar de acordo com a natureza das operações em que se veria empregado, nem se devem esquecer

30 Gabriel Soares de Souza, Tratado descritivo do Brasil em 1587, 4º ed., São Paulo, 1971,

p. 164; Diálogos das grandezas do Brasil, p. 170; “O machadão do Brasil”, RIAP, 13 (1908), p. 128; Gonsalves de Mello, Tempo dos flamengos, p. 171. 31 História dos feitos, p. 330. 32 Fontes, ii, p. 96; “Journal”, fl. 4r.

33 Gilberto Freyre, Nordeste. Aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nor-

deste do Brasil, 3º ed., Rio, 1961, pp. 73 e 77.

34 Correspondência diplomática, ii, pp. 132 e 212; Parker, La révolution militaire, p. 100.

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BRASIL

os usos logísticos do animal, no transporte da artilharia, do trem de guerra e do oficialato. Como adverte Geoffrey Parker, “a cavalaria desempenha um papel desigual na conduta da guerra, segundo as épocas e os teatros de operação”. No derradeiro quartel de Quinhentos, a função da cavalaria fora enormemente reduzida na Europa, sendo readaptada às novas condições da guerra, especialmente à introdução das armas de fogo e à substituição da cavalaria pesada pela ligeira, reduzindo assim os efetivos da arma, teoricamente correspondentes a 1/4 ou a 1/5 dos efetivos de um exército, o que ainda assim tornava-a onerosa uma vez que, em tempo de guerra, o cavalariano, em média, podia montar até três deles, sem falar no problema da forragem. Os custos também desencorajaram o uso da cavalaria.” O preço do animal da terra girava em torno de 200 a 300 cruzados, podendo chegar a 500, o que explica o interesse dos soldados luso-brasileiros em capturá-los para revendê-los, à maneira do que faziam com os escravos.? Entre nós, pesaram decisivamente as características da zona canavieira,

traduzindo-se na precariedade dos caminhos: a inexistência de grandes espaços abertos, engolidos pelas matas, canaviais e mangues, o solo de massapê onde até a alma se atola nos meses de chuva.?” Por fim, os campanhistas preenchiam menos dispendiosamente várias das funções militares que exigiam

mobilidade, asseguradas na Europa pela cavalaria, do mesmo modo pelo qual a rapidez do mameluco desincentivou o uso do cavalo nas bandeiras paulistas.?8 (Tem sua ironia o episódio em que célebre guerrilheiro, em perseguição a uma unidade de cavalarianos neerlandeses, “degolou vinte e oito, salvando-se os outros que seriam quarenta”,?? provavelmente ajudado pela vege-

tação.) Além do que os serviços de tração ficaram exclusivamente a cargo de índios e bois. Brito Freyre é que lamentará não se haver lançado mão do que

seria “a única vantagem em que então poderíamos preferir os holandeses, aos

35 Cardini, La culture de la guerre, p. 134; Parker, La révolution militaire, pp. 98-100 e 106.

36 Diálogos das grandezas do Brasil, p. 171; História da guerra, p. 383. 3 Moreau, Histoire des derniers troubles, p. 19. *8 Sérgio Buarque de Holanda, O extremo oeste, São Paulo, 1986, pp. 35-6.

32 Memórias diárias, p. 226.

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quais ainda não era menos impossível fazer cavalaria na América do que conduzi-la na Europa”. As companhias de ordenanças montadas já existentes no Nordeste entraram em ação quando do desembarque holandês. Uns poucos cavalarianos participaram também das escaramuças ao longo do istmo entre a vila e o Recife.“! Em 1632, havia cinco unidades de cavalaria miliciana, perfazendo

500 homens e operando por turnos em esquadrões de 40 a 50 soldados, quase todos “filhos dos grandes senhores e demais gente rica” e a quem Calado se refere rancorosamente como “ricaços e de inchadas barrigas”, que acompanhavam a tropa “não para pelejar senão para ver touros de palanque”.“? Constituindo um estorvo por falta de treinamento militar dos cavaleiros e das cavalgaduras, as milícias montadas foram extintas em 1633, embora ainda houvesse colonos que servissem a cavalo, como os homens principais de Por-

to Calvo que se juntaram a Matias de Albuquerque em 1635. Mas a decisão de substituí-las por uma companhia regular não teve êxito, por falta de dinheiro.?? Contudo, as patentes continuaram a ser usadas a título honorífico

e Bagnuolo conferiu títulos de capitão e de comissário da cavalaria quando

não se contavam sequer 20 cavalos.*“

Esses cavalarianos não se serviam, aliás, de armas de fogo à européia, mas

de adargas e de lanças à moda da guerra do Marrocos. A cavalaria que partici-

pou da segunda batalha dos Guararapes estava também armada de lanças, não de pistolas.“ Destas dispunha a cavalaria neerlandesa, e também de carabinas e de arcabuzes, como a tropa de arcabuzeiros montados que acompanhou

Nassau na conquista de Porto Calvo.” Embora mais moderna que a cavala-

ria luso-brasileira, a holandesa tampouco teve papel de relevo. Ao ser dissol40 Nova Lusitânia, p. 253.

“1 Memórias diárias, pp. 16 e 19-20.

“2 “Informatie genomen den 29 juni 1632”, CJH, BPB; Lucideno, i, pp. 25, 39 e 72.

13 Memórias diárias, pp. 40, 107 e 116. *é Arciszewski aos XIX, 13.vi.1636, CJH, BPB. 5 Memórias diárias, p. 20. 46 História da guerra, p. 551. 47 Fontes, À, p. 206; Memórias diárias, p. 254.

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vida ao final da resistência, compunha-se de 80 efetivos sob o comando de Gaspar van der Ley.*8 No governo de Nassau, os únicos cavalarianos pertenciam à milícia urbana que, como nas Províncias Unidas, destinava-se à manutenção da ordem pública.“ Durante a restauração, a cavalaria batava foi

recriada, sem, contudo, ter desempenho marcante. Após a rendição do Recife, encontravam-se nos armazéns algumas “pistolas francesas de cavalgar”, uns poucos arreios, “estribeiras flamengas” e uma centena de esporas. O exército restaurador tampouco foi além da utilização limitadíssima da cavalaria. Entre os colonos que participaram da insurreição de 1645, achavase Antônio da Silva, capitão de cavalarianos, em torno de quem se formou pequena companhia encarregada de vigiar Olinda. Eles também aparecem vadeando o Capibaribe ou escaramuçando junto ao forte dos Afogados. Mas eram bem poucos. Ocupando-se da resenha de abril de 1648, o cronista não se dá ao trabalho de contá-los, mencionando apenas “alguma gente de cavalo” com seu capitão e tenente. Ao narrar a primeira batalha dos Guararapes

alude à “pouca cavalaria”, que não tinha mais de 20 homens, pois se em fe-

vereiro do ano seguinte já os havia em número de 40, é que neste ínterim agrupara-se outra companhia.?!

Foram estes os contingentes que, na segunda ba-

talha, realizaram “maravilhas”, rompendo um esquadrão da infantaria holandesa e cavalgando no encalço do inimigo que batia em retirada.*2 A performance levou a cogitar-se de expandir a arma, com quatro novas unidades, sem

despesa para a Coroa ou inconveniente para os colonos.) Como era impossível atender tais requisitos, ao fim da guerra existiam apenas as companhias

anteriores!

=

48 Francisco José Moonen, Gaspar van der Ley no Brasil, Recife, 1968, pp. 38-9.

2 Fontes, ii, p. 219.

O Inventário das armas e petrechos bélicos que os holandeses deixaram em Pernambuco e dos prédios edificados ou reparados até 1654, 22 ed., Recife, 1940, pp. 9-10, 1 História da guerra, pp. 211, 294, 359, 380, 472, 500, 539 e 550-1.

52 Ibid., pp. 551-2, ?3 Gonsalves de Mello, Felipe Bandeira de Mello, pp. 42-3. *4 “Breve relação dos últimos sucessos da guerra do Brasil”, ABNRJ, 20 (1899), p. 168.

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No tocante à artilharia, regimento espanhol de 1609 distinguia a artilharia de campanha, como as colubrinas, da de sítio, que compreendia os canhões ou “peças de bater”, e as peças curtas, de boca larga, que disparavam projéteis de pedra, ou “canhões pedreiros”. A artilharia empregada entre nós foi quase exclusivamente a pesada, de maior alcance, de vez que na Europa a artilharia ligeira, de campanha, ainda engatinhava tecnologicamente.?é Frente à agilidade e à malícia do soldado da terra, ela se tornava ineficaz, devido à dificuldade de alvejar bandos que atacavam em ordem dispersa.” Havia ademais as dificuldades de tração, naturalmente maiores em meio tropical. Embora mais dispendiosos, os cavalos eram preferidos por gastarem metade do tempo dos bois, que deviam ser reservados à carga de mantimentos e que, na falta destes, podiam ser abatidos. Condenados pela supremacia naval holandesa às linhas interiores ou terrestres, os luso-brasileiros não se podiam valer do mar e dos rios; o boi e o índio e, em menor grau, devido a seu preço, o africano, é que constituíram os meios de transporte. A artilharia trazida por Oquendo levou 60 dias para percorrer as 40 léguas da Barra Grande ao Arraial. Matias de Albuquerque opinou em vão contra o desembarque das peças vindas com Lope de Hoces, pois só causaríam embaraços. Elas terão de ser abandonadas na Alagoa do norte, divertindo-se para sua guarda cerca de 700 soldados que poderiam ter decidido em favor do Rei Católico a batalha da Mata Redonda. Bagnuolo mandou depois transportá-las por via marítima e fluvial para Porto Calvo, com risco de serem apresadas pelos navios inimigos.?? A artilharia podia ser assim outro sério obstáculo. Ao desistir do ataque a Itamaracá, Bagnuolo teve de largar na ilha os canhões de bronze com que planejara bater o forte de Orange. E a decisão de manter o Arraial quando já era uma posição condenada deveuse em parte à necessidade de impedir que os holandeses se apossassem da ar55 Ulysses Pernambucano de Mello neto, “Artilharia do século XVII em Pernambuco”, RIAP,

47 (1975), p. 202.

56 Cardini, La culture de la guerre, p. 245. 57 Michiel van Goch aos Estados Gerais, 22.11.1649, IHGB, DH, 4.

58 Mendes de Vasconcelos, Arte militar, fls. 217v. e 219v.

59 Memórias diárias, pp. 65-6, 220, 222, 227, 238, 242 e 259.

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tilharia, para cujo transporte não se dispunha de meios, uma perda que, capitulada a praça, não se veio a evitar. Os exércitos d El Rei e da W.I.C. estavam equipados sobretudo de peças de ferro. Embora os dados oficiais do governo neerlandês indiquem paridade com as de bronze, a artilharia batava, ao tempo da capitulação do Reci-

fe, compunha-se especialmente das de ferro, 61 muitas tomadas durante a resistência na esteira da rendição das principais praças-fortes. À artilharia lusobrasileira achava-se em idêntica situação: nas capitanias de cima era notável a desproporção entre ambas as categorias, embora em Pernambuco tanto o Arraial quanto o Cabo estivessem guarnecidos de maior número de canhões de bronze.º? Desproporção que datava do período ante bellum, em que já se alertara para que “só [os] de bronze lá servem”, devido ao clima tropical.? Mas as peças de ferro, apesar de mais vulneráveis à corrosão, eram mais bara-

tas,º* o que explica que fossem as preferidas na guerra colonial. Quanto ao exército restaurador, estava tão falto de artilharia, em particular de grosso calibre, que iniciou o assédio final do Recife com apenas nove canhões.” À artilharia pesada só foi empregada entre nós nas suas versões maneiras: o meio canhão ou brecante, o quarto de canhão ou perseguidor, e o oita-

vo de canhão, mas não o dobre ou quebranta-muro ou o comum ou batemuro. Os meios canhões foram os mais usados pelos invasores, que dispuseram também, muito mais que os luso-brasileiros, de artilharia de campanha,

como a que desembarcou em Pau Amarelo ou se arrastou até Mata Redonda: “canhõezinhos leves de bronze, de nova invenção” ou “de novo formato”, 90 Tbid., p. 186; História da guerra, pp. 54-5 e GL. 61 Fontes, ii, pp. 275-90; Gonsalves de Mello, A rendição dos holandeses no Recife, pp. 78, 117 6 190. 62 laertyck verhael, iii e iv, passim.

63 “Relação das praças-fortes”, pp. 190 e 201.

64 7, R. Hale, “Armies, navies and the art of war”, The New Cambridge Modern History, hi, Cambridge, 1965, p. 491; A, R, Hall, “Military technology”, Charles Singer (ed.), A history of technology, ii, Oxford, 1957, p. 361.

95 “Relação diária do sítio e tomada da forte praça do Recife” (1654), Gonsalves de Mello, A rendição dos holandeses no Recife, p. 111.

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usados na Paraíba e em Alagoas.*º Nos iates que cruzavam o litoral, preferiamse os canhões pedreiros, municiados com metralha.”” O suprimento de morrão para as mechas indispensáveis ao disparo das peças foi resolvido pelo uso da embira, na falta do similar europeu, feito de linho e designado por “morrão

de Flandres”, mas o sucedâneo brasileiro era de qualidade inferior, apagando-se com facilidade.“ O emprego da artilharia dependeu das trilhas e veredas abertas na vegetação tropical, de vez que a rede fluvial drena a zona da mata em sentido leste-oeste, ao passo que as operações militares requeriam comunicações nortesul. Daí que “ordinariamente, por ser a terra tão coberta, se fazem quase todas as estradas do Brasil das praias do mar”. À partida de Jaraguá, o exército de Rojas y Borja marchou pela praia quatro ou cinco léguas, para só então internar-se no campo, o que só conseguiu fazer graças a que os holandeses se haviam retirado de Peripueira.”º Ao evacuarem a região, os habitantes de Porto Calvo seguiram também pela praia, “por ser mais fácil para carros”.”! Mas a segurança era duvidosa devido aos cruzeiros holandeses que logravam impedir o deslocamento terrestre das forças luso-brasileiras pelo litoral, relegandoas ao interior, além de dar à tropa da W.I.C. a vantagem de movimentar-se desimpedidamente pela marinha, ocupando à vontade os pontos de onde inibir as operações inimigas. Em teoria, a marcha da infantaria luso-brasileira, armada de piques, necessitaria fileiras separadas por espaços de 20 a 24 pés, enquanto entre cada

soldado da mesma fileira devia-se manter distância de quatro a seis pés, de modo a manejar a arma comodamente.? Era impossível obedecer-se a tal 66 DH, p. 28; Jaerlyck verhael, iii e iv, passim; Ulysses Pernambucano, “Artilharia do século XVII”, p. 206. 67 Jaerbyck verhael, iv, p. 19.

68 História dos feitos, p. 35; Gabriel Soares de Souza, Tratado descritivo do Brasil, p. 217; Gonsalves de Mello, Gente da nação, p. 346. 99 Nova Lusitânia, p. 173.

70 Memórias diárias, p. 244; laerlyck verhael, iv, p. 219.

71 Memórias diárias, p. 255. 72 Mendes de Vasconcelos, Arte militar, fl. 126.

id,

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regra em áreas onde, fora dos distritos populosos, como a Várzea, Porto Calvo; Itamaracá ou a cidade da Paraíba, inexistiam caminhos para carros de boi. À estrada de Olinda a Igaraçu, que, segundo se dizia, comportava alas de quatro soldados, segundo fontes holandesas só daria passagem a dois homens e, em muitos pontos, apenas a um.” Em condições tais, não surpreende que os soldados de Francisco de Bittencourt e Sá gastassem três meses para percorrer as 48 léguas entre o porto dos Franceses, na Alagoa do sul, e o Arraial./é Reciprocamente, a estreiteza dos caminhos permitia estorvar o avanço inimigo mediante a derrubada das árvores próximas, tática que, aliás, também se praticava nos pequenos rios para estorvar o acesso de iates e chalupas neerlandesas.”? Freqientemente, tinha-se de abrir novos caminhos, embora os campanhistas luso-brasileiros, operando a oeste, pudessem se limitar a golpear as picadas na vegetação menos densa do agreste.º Por ocasião da grande retirada de 1635, a tropa luso-brasileira e a multidão de retirados que a acompanhava viram-se forçados a passar por Porto Calvo, de vez que estava aí “o caminho próprio para carros”, tendo-se depois de fazer um prolongamento acima de São Miguel até Coruripe, estrada que Bagnuolo estenderá à margem do São Francisco, bem mais comprida que o trecho que ficou registrado na cartografia holandesa como “caminho do conde”.”” Um roteiro do percurso

73 Memórias diárias, p. 97; Conselho Político aos XIX, 8.v.1632, CJH, BPB. Tá Memórias diárias, p. 98,

> Iaerlyck verhael, iii e iv, passim,

6 Memórias diárias, pp. 193, 214, 224 e 234. Em 1802, o caminho que o bispo governa-

dor Azeredo Coutinho mandou abrir do Recife a Cabrobó, no São Francisco, confirma a disparidade natural entre a largura das estradas na mata e no agreste e sertão. O trecho até à altura do

atual município do Moreno não tinha mais de 20 palmos de largo, ao passo que mais adiante o caminho alargava-se até 30 ou 40 palmos: “Mapa da estrada real que vai aos sertões da repartição do sul”, J. A. Gonsalves de Mello, Três roteiros de penetração do território pernambucano, Recife, 1966, pp. 21-37. 77 BNL, FG, 1555, fls. 199, 214v. Supunha Luís da Câmara Cascudo que o “caminho do conde” referir-se-ia não a Bagnuolo mas a Nassau, que por ele marchara em 1637: Geografia do Brasil holandês, Rio, 1956, p. 171. O que a cartografia holandesa designava por “caminho do con-

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entre o Recife e Penedo deixa entrever o que significava o deslocamento por terra, mesmo nas condições de trangiilidade relativa do governo nassoviano: lista-se a travessia de nada menos de 50 rios, dos quais apenas 15 tinham pontes, na realidade toscos pontilhões de madeira, enquanto os restantes eram cruzados a vau, em jangadas e balsas ou na baixa-mar.?* Eis o mesmo trajeto feito por autoridade holandesa. Nos arredores do Recife, topou com “caminhos em mau estado e que precisam de consertos”.

Mas a travessia dos rios foi o grande percalço da viagem do conselheiro Bullestraet, que anotou tudo que viu ou ouviu com minúcia burocrática. Para atravessar o Sirinhaém, dispôs apenas de “uma péssima canoa”, não havendo serviço regular mesmo em freguesia tão rica. O rio Una, teve de cruzá-lo em jangada. A ponte sobre o rio das Pedras achava-se completamente destruída. De Porto Calvo ao São Francisco, a jornada se fez por mar mas o regresso à vila deu-se por terra. No Pitauí, foi necessário construir uma canoa; as alimárias

cruzaram a nado. No Coruripe e no Poxim, esperou-se a vazante. No São Miguel, tudo que havia era “uma péssima canoa e uma embarcação minús-

cula”. Mais ao norte, “as pontes sobre os rios que levavam à povoação [da Alagoa] do sul estavam destruídas ou arruinadas”. Em certa ocasião, meteramse os cavalos ao rio e Sua Senhoria e comitiva atravessaram com água pelo pescoço. Mesmo na região mais povoada dos engenhos alagoanos, os caminhos haviam sido engolidos pelo mato.” Quando, em tempo de paz, o deslocamento de um membro do Alto

Conselho passava por tais peripécias, pode-se imaginar o que seria o transporte de tropas, armas e víveres em tempo de guerra. O exército de resistência em

de” era, aliás, apenas o trecho entre os rios Jetitiba e o Santo Antônio Pequeno e não o prolongamento até o São Francisco: vd. o mapa intitulado “Praefecturae Paranambucae Pars Meridionalis”, reproduzido em J. A. Gonsalves de Mello (ed.), O Brasil que Nassau conheceu, Recife, 1979. É plausível que o caminho mandado abrir por Bagnuolo até o São Francisco correspondesse ao que registra o mapa citado como “caminho de Camarão”, por ele utilizado ao se retirar para a Bahia e

nas excursões campanhistas contra o Brasil holandês.

78 “Itinerário desde a cidade Maurícia até o forte Maurício situado junto ao rio São Francisco”, RIAP, 31 (1886), p. 311.

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?2 Fontes, ii, pp. 147-90.

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retirada para a Bahia atravessou o São Francisco em jangadas. No ataque a Olinda em 1630, os holandeses cruzaram o rio Doce a vau, mas muitos cursos d água da mata, mesmo na estação seca, exigiam barcos ou soldados que soubessem nadar, a menos que fossem carregados nas costas dos índios, como era comum, mas molhando armas e munições. No célebre ataque neerlandês

a Igaraçu, vadearam-se os córregos de Paratibe com água pela cintura e uma

ponte das cercanias da vila só dava passagem em fila indiana. Empregavamse pinguelas feitas de troncos. No rio Jaboatão, os soldados de estatura elevada puderam atravessar a pé mas os outros o fizeram a nado. Havia também o perigo dos jacarés, embora os do rio Peripueira fossem inofensivos se comparados às terríveis piranhas são-franciscanas, pesadelo da virilidade colonial. Não

era só a pluviosidade mas os contratempos associados à travessia dos rios que desaconselhavam as operações militares no inverno.ºº A engenharia militar oferece outro caso interessante da interação entre

a tecnologia militar européia e as condições regionais. À “traça italiana”, triunfante na Europa, contra-arrestava a eficácia da artilharia mediante a expansão horizontal das fortalezas, dotadas de grossos muros, esplanadas extensas e dispositivos como bastiões e salientes, flancos duplos ou triplos, revelins, meias-luas e tenalhas, de modo a permitir a defesa oblíqua e o fogo cruzado. Havendo o progresso da artilharia tornado mortífero o assalto das praças-fortes, procurava-se reduzi-las pelo sítio, pela fome, pelo bombardeio e pelas mi-

nas. Ao tempo da ocupação do Nordeste, os holandeses eram os mestres incontestáveis da engenharia militar. Ao importar a “traça italiana”, eles a haviam adaptado à ecologia dos Países Baixos, tirando partido da topografia caracterizada pelas extensões de terras baixas e de rios deltaicos.º! Da segurança do Recife, a Coroa só começara a cogitar depois do ataque de James Lancaster em 1593: até então o porto só possuíra “uma casa terreira sem taipas, que servia de cobrir as peças de artilharia que o senhor da

SO História dos feitos, p. 43; Iaerlyck verhael, iii e iv, passim; DH, pp. 28 e 102; Moreau, Histoire des derniers troubles, cit.

81 Parker, La révolution militaire, pp. 37-42; Ulysses Pernambucano de Mello neto, O forte das Cinco Pontas, Recife, 1983, pp. 18 e 33.

275

OLINDA RESTAURADA

terra ali tinha plantadas”.º2 Do assunto só se voltará a tratar no primeiro governo de Matias de Albuquerque, com o fim da trégua dos Doze Anos.º? Mas as fortificações coloniais continuaram inaptas a resistir à artilharia, não ten-

do sido feitas “para defender-se dos inimigos da Europa e modo de guerra que agora se há; e é sem dúvida que em todas as praças daquela costa não há nenhuma que se possa defender quinze dias”.8º A exceção que confirmava a regra era o forte dos Reis Magos na foz do Potengi, projetado pelo jesuíta Gaspar

de Samperes e tido na conta de o mais bem traçado do Brasil.º” As outras influências italianizantes foram todas identificadas em fortificações posteriores à invasão holandesa: o Castelo do Mar e o forte de Nossa Senhora de

Nazaré, erguidos pelos luso-brasileiros no Cabo de Santo Agostinho, cuja traça atribuiu-se à influência de Bagnuolo.8º O caso também do forte de Santo Antônio na Paraíba, segundo fonte neerlandesa, edificado “com muita arte e à moda moderna”. O objetivo das fortificações ante bellum era impedir a investida e a escalada por índios ágeis, mediante altos muros e torres: as paredes do forte de São Jorge no Recife, por exemplo, eram tão elevadas que as escadas holandesas não permitiam escalá-las.ºº (O Arraial, edificado à raiz da invasão, impres-

sionou os holandeses pela altura das muralhas.º? No interior, bastavam as edificações civis erguidas à época do povoamento para oporem-se aos ataques da indiada, como a célebre casa-grande do engenho Megaípe ou certa viven52 “Relação de Ambrósio de Siqueira”, p. 135.

83 Dutra, “Matias de Albuquerque”, pp. 95-7; Gonsalves de Mello, “Cristóvão Álvares, engenheiro em Pernambuco”, pp. 13-5. 84 Co.Eo., 29.iv.1630, BNRJ, 1-1-22-44, fl. 136. O padre Antônio Vieira faria idêntica asserção a respeito das fortalezas portuguesas no Oriente: Obras várias, 1, pp. 98-9. 85 “Descrição do Rio Grande por Domingos da Veiga”, c, 1627-1628, Studart, Documentos para a história do Brasil, iv, pp. 33-4. 86 Ulysses Pernambucano de Mello neto, “O Cabo de Santo Agostinho e a baía de Suape”, RIAP, 53 (1981), pp. 50, 56, 69-70 e 101; e “O Arraial Velho do Bom Jesus”, p. 157.

“ Iuerlyck verhael, iv, p. 88.

88 Ibid., ii, p. 133; “Journal”, fl, 10v. 89 Jaerlyck verhael, iv, p. 25.

276

a com ——

GUERRA DE FLANDRES E GUERRA DO BRASIL

da do médio Capibaribe que tinha no topo quatro guaritas com seteiras, “por estarem aí na fronteira dos tapuias”.?º A pedra do Reino sendo rara e cara,” apenas havia sido empregada nos fortes do Mar, no de Cabedelo e nos Reis Magos; e a pedra dos arrecifes costeiros não dava garantias de solidez. Ão fortificar o Recife, Waerdenburch observaria que “o maior obstáculo que [se] nos apresenta é que há pouca cal e pouca pedra aqui, e nada mais senão areia e molhos de lenha”.?2 Até finais do século XVII, quando a pedra

se generalizou na engenharia militar da colônia, a taipa dominou, mercê da

edificação rápida, fácil e barata. Assim como as fortificações erguidas pelos

portugueses, as dos holandeses, o forte do Brum, do Buraco, o Ernesto, o das

Cinco Pontas, foram igualmente de taipa.> Desta eram a fortiori as construções internas, como no Arraial a capela, a casa de farinha, o paiol, as cavas, o quartel dos soldados e os depósitos; bem como os redutos que se erguiam durante o assédio das praças-fortes e em outras ocasiões.?* As defesas externas, esplanadas e paliçadas construfam-se de pau-a-píque. O massapê da zona da mata proporcionava material bem singular: o forte dos Afogados só faltava desmanchar-se quando chovia mas endurecia como pedra nos estios.”? A “chu-

va contínua”, o “calor excessivo”, as “grandes enchentes”, as “marés altas”

estorvavam seriamente as obras de defesa. O inverno de 1633 foi tão pluvioso que as fortalezas correram o risco de se desmantelarem; e o forte levantado no São Francisco ruiria após cinco ou seis dias de águas torrenciais.

0 Ibid., iv, p. 234. 2! L, L. Vauthier, “Casas de residência no Brasil”, Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 7 (1943), carta ii; Ulysses Pernambucano, “O Cabo de Santo Agostinho”, p. 102. Em Pernambuco, o uso generalizado do tijolo, que Vauthier notou no século XIX, data do

período holandês: ibid., p. 103.

2 DH, p. 35. 3 Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, ii, pp. 283-4 e 303; Ulysses Pernambucano,

“O Arraial Velho”, p. 174, e O forte das Cinco Pontas, pp. 34-5.

*4 Ulysses Pernambucano, “O Arraial Velho”, p. 161.

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277

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96 Tbid., p. 175; DH, pp. 54, 104 e 155; Moreau, Histoire des derniers troubles, cit.

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2» Jaerlyck verhael, iii, p. 145.

OLINDA RESTAURADA

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Escasseavam técnicos. O Arraial Velho foi edificado por mestre-de-obra, Cristóvão Álvares, sem conhecimento de engenharia militar, o qual, tendo de

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acabar a obra com brevidade, não fez o levantamento do terreno e nem tra-

çou planta.” Daí que fonte holandesa o descrevesse como “grosseiramente feito e irregular do ponto de vista da arte mas obra de extraordinária solidez” ,?8 como eram via de regra as construções dos pedreiros lusitanos. Embora os neerlandeses estivessem melhor servidos, também se queixavam da falta de artífices.? Entre os luso-brasileiros, havia o engenheiro Juan del Olmo e o capitão de engenharia Diogo Pais,!ºº embora, de partida para o Brasil, Rojas y Borja alegasse não os haver ali, pelo que foi designado Bartolomé de Rojas, ajudante de mestre-de-campo general.!º! Durante a guerra de restauração, graças à estabilidade da frente militar, o problema teve menor acuidade. O Arraial Novo foi projetado por Diederick van Hooghstraten, o oficial batavo que se bandeara para os luso-brasileiros após vender-lhes o Pontal, e por mestre-de-obra também estrangeiro. Uma vez expulso o contingente de merce-

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nários comandado por Hooghstraten, só havia “dois mancebos mestres-de-

obra”.!02 Mas ao projetar-se o ataque final ao Recife, dispunha-se de dois

engenheiros, “um português que sabia pouco e um estrangeiro que entendia

melhor”.192 Da falta de pessoal qualificado decorriam as deficiências técnicas. Ão primitivo Cabedelo, não se podia dar o nome de fortaleza, “porque nem forma nem semelhança tem de fortificação”, não passando de “uma pouca de faxina, terra e areia amontoadas, que ainda para se defender das flexas dos

* Ulysses Pernambucano, “O Arraial Velho”, pp. 158-9.

*8 Iaerlyck verhael, iv, p. 143. 2 DH, p. 47.

100 Memórias diárias, pp. 83 e 131. 101! Tbid., p. 255; memorial de D. Luís de Rojas y Borja, 20.xii.1634, AGS, GA, 1111.

102 Lucideno, ii, pp. 170 e 217. dos navios da Companhia Geral de Comércio mas ficou retido em Pernambuco de ordem de Fran-

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cisco Barreto, que o nomeou engenheiro do exército: AUC, CA, 31, fl. 11v.; Gonsalves de Mello,

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103 História da guerra, p. 580. O estrangeiro era Pedro Garcin, que embarcara no Reino num

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João Fernandes Vieira, li, p. 126.

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DE

FLANDRES

E GUERRA

DO

BRASIL

índios será milagre”.!º4 No Bom Sucesso, em Porto Calvo, o fosso era raso c havia “canhões sem reparos nem abustes nem esplanadas necessárias”, defeitos que os holandeses corrigirão.'? Embora Brito Freyre refira-se a Bagnuolo como “muito prático na fortificação”, o forte de Nazaré era duramente criticado: sua ermida seria a única coisa a recomendá-lo, pois fora edificado em terreno arenoso e em local que não defendia nem a entrada da barra nem o Pontal.!ºé Malgrado ser o dernier cri em engenharia militar, o forte dos Reis Magos tinha cortinase bastiões exíguos e nas proximidades cresciam dunas de onde se dominavam as passagens da muralha, problema que os holandeses também procuraram resolver.!º” Estes, aliás, tampouco escaparam de

cometer deslizes: em Porto Calvo, tiveram de interromper a construção de um fortim situado à distância de apenas um tiro de mosquete das colinas circundantes. !98

Muito se debateu acerca das armas apropriadas ao Brasil. O regimento de Gaspar de Souza (1612) previra o arsenal das guarnições e milícias: falcões, berços, meio-berços, arcabuzes, bestas, lanças, chuços e espadas.!º? Certa es-

pecialização esboçava-se: o pesado mosquete ao soldado; o leve arcabuz ao

colono. Nos anos vinte, Matias de Albuquerque, calculando que apenas 1/8 dos habitantes estaria adequadamente apetrechado, solicitava à Coroa 2.000 arcabuzes a serem vendidos a particulares.!!º Entre as armas brancas, a espada era a preferida dos luso-brasileiros, HH seguramente sob a forma do espadim

e do estoque. Um memorial de 1647 explicava: “entre todos os soldados, os

mais deles não têm espada; e sendo esta falta tão grande em todas as partes donde se guerreia, é no Brasil de muito maior consideração, porque como a 104 Informação de Antônio de Araújo de Mogueimes, 9.,1.1633, BNRJ, 1, 2, 35, fl. 201v. 105 Memórias diárias, pp. 252-3 e 256; Fontes, i, p. 205; Memorável viagem, p. 14. 106 Nova Lusitânia, pp. 237-8; Memórias diárias, p. 83. 107 Fontes, 1, p. 204.

108 Memorável viagem, p. 14. 109 “Cartas d'El Rei escritas aos senhores Álvaro de Souza e Gaspar de Souza”, n. 40.

HO Dutra, “Matias de Albuquerque”, p. 59. 1 Souza Júnior, Do Recôncavo aos Guararapes, p. 144; ]. A. Gonsalves de Mello, “Um li-

vro sobre as batalhas dos Guararapes”, Diário de Pernambuco, 28.v.1950.

279

OLINDA RESTAURADA

mais continuada guerra se faz por assaltos [i.e., emboscadas], em que de or-

dinário se vem às mãos com os inimigos, ficam os homens sem espada incapazes de ganharem grande honra e reputação”.!!2 Soldados havia que se desfaziam de suas armas de fogo, as quais, na falta de metal, vendiam por bom preço a ferreiros e serralheiros.!!?

O predomínio do combate pessoal sobre a arregimentação explica também a predileção pelos piques curtos ou meio-piques em detrimento dos longos, que podiam chegar a quatro metros mas só eram úteis em operações convencionais em campo aberto, como em Mata Redonda. Embora não se possa dar resposta taxativa, é provável que os luso-brasileiros tenham satisfeito com madeira da terra sua reduzida demanda por este tipo de armamento, ao passo que o componente metálico podia ser encontrado pelas oficinas dos engenhos. Ambrósio Fernandes Brandão, consultado no começo do século sobre a possibilidade de lavrá-los no Brasil, respondera afirmativamente, man-

dando-os fazer e os enviando a Lisboa, onde, contudo, não se voltou a falar

no assunto.!!é Na Bahia, em fins de Quinhentos, fabricavam-se de ubiratinga hastes de lança, arremessões e dardos, “mais pesados que os de Biscaia”, e se produziam de copaíba paveses e rodelas de escudos, tão boas quanto as de

couro procedentes do Reino.!!

No tocante às armas de fogo, a guerra volante e o combate individual privilegiaram a espingarda sobre o mosquete e o arcabuz. Como esclarece Luís Felipe de Alencastro: Diferentes tipos de armas de fogo manuais eram usados no Atlântico português em meados de Seiscentos. O arcabuz, arma de boca larga; o mosquete, arma de boca estreita, com maior alcance e precisão que o arcabuz, mas pesando cerca de 11 kg e por isso necessitando de forquilha de apoio; a espingarda (designação que também inclui a carabina e a clavina), de boca estreita como o mosquete, mas com um cano mais curto, mais leve e uma co-

12 Representação das capitanias do Nordeste, s.d. mas de 1647, AHU, PA, Pco., iii.

H3 AUC, CA, 31, fls. 9v.-10. Há Diálogos das grandezas do Brasil, pp. 109-10.

!H15 Gabriel Soares de Souza, Tratado descritivo do Brasil, pp. 222 e 348.

280

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DO BRASIL

ronha mais longa, dispensando a forquilha; a escopeta, de cano curto, usada para atirar de perto, assim como a pistola.!!º

As armas de fogo dos luso-brasileiros eram majoritariamente arcabuzes e espingardas de pederneira,!!” mais leves que os mosquetes, de que, via de regra, armavam-se índios e africanos. Mas mosquetes e arcabuzes (estes reser-

na

|

Sus rm

vados na Europa aos soldados mais fracos),!!8 eram tidos por inconvenientes em face da necessidade de mecha, que devia ser trazida do Reino, de vez

que as de fibra de coco exigiam que se acendessem a cada disparo.!!? A espingarda de pederneira dispensava-a, graças a um mecanismo de percussão que tinha, ademais, a vantagem de habilitar o soldado a empunhar a arma com

as duas mãos, aumentando a precisão do tiro e obviando outras desvantagens da mecha decorrentes do mofo e da chuva, que obrigavam os luso-brasileiros

a sincronizarem seus ataques de surpresa com os aguaceiros tropicais.!20 Por

| II!

fim, o clarão denunciava o atirador.!?! Destes problemas estava isenta a espingarda, cuja manutenção era bem mais fácil. Além de adaga, o guerrilheiro pintado por Eckhout carrega espadim, espingarda de pederneira e saquitel de pólvora. Tanto o espadim quanto a espingarda correspondem a modelos ibéricos dos anos vinte e trinta do século XVII. !22 É certo que a espingarda também podia ter o inconveniente de arrebentar em função do calor excessivo e de se quebrar a pedra do fecho. À vitória das Tabocas foi obtida por tropa luso-brasileira com apenas 300 espingardas, estando na maioria equipada somente com espadas, estoques, facões, dardos e sobretudo paus tostados, armas inconvencionais que permitiram equipar o maior número de efetivos, pois nem mesmo o exército espanhol de Flandres, o mais poderoso do seu tempo, lograva armar todos os seus 6 Alencastro, O trato dos viventes, pp. 371-4.

117 “Tournal”, fl. 12r. 118 Parker, La révolution militaire, p. 88.

!!9 D, Fernando Henriques de Toledo a Felipe IV, 1.xi.1634, AGS, GA, 1118.

120 Cardini, La culture de la guerre, p. 257; Iaerlyck verhael, ii, pp. 145 e 157; DH, p. 87. !21 Manuel de Souza d'Eça, “Sobre as coisas do Grão Pará”, ABNRJ, 16 (1905), p. 347.

'22 Whitehead e Boeseman, 4 portrait of Dutch 17th century Brazil, pp. 71-2.

281

OLINDA RESTAURADA

homens.!23 E quando Francisco Barreto assumiu em 1648 o comando do

exército restaurador, Fernandes Vieira e Vidal de Negreiros se podiam gabar de que o interior do Nordeste fora restaurado “sem artilharia, que a não havia, senão com espingardas, arcabuzes, paus tostados e à espada”, embora o mesmo trecho de crônica alegue contraditoriamente que por então já se havia tomado ao inimigo nada menos de “setenta e tantas peças de artilharia em que entraram muitas de bronze”. !24

Já em 1630 debatera-se no Conselho de Estado o envio de espingardas de pederneira para uso dos cavalarianos.!?? Ao desembarcar em Jaraguá, Rojas y Borja julgava o arcabuz “a arma mais a propósito nesta guerra” mas pedia a remessa urgente de 300 ou 400 espingardas, muito importantes devido aos muitos aguaceiros que há, para que se possa enviar com segredo a uma emboscada”. Os holandeses já se valiam da arma, “do que recebe nossa gente

grande dano”.!26 A modéstia da quantidade pedida leva a crer que se tinha em vista o emprego exclusivo da arma pelos guerrilheiros. Dez anos depois, Francisco Barreto pedia arcabuzes, piques e espingardas; e estas são de muita utilidade aí, por escusarem o gasto de morrão como por serem mais cômo-

das para as emboscadas, mais reparadas das chuvas e menos sujeitas aos desconsertos que, de ordinário, têm os arcabuzes, marchando por entre os matos, como é ordinário, sem haver quem os conserte”.!2” Memorial coevo insistia na remessa de 2.000 armas de fogo, “as mais delas boas espingardas, o resto arcabuzes”.'28 Nenhuma palavra sobre o envio de mosquetes, julgados inúteis na guerra brasílica,!?? e cujo porte ficou associado exclusivamente seja às tropas européias, seja aos índios e africanos. 123 Lucideno, ii, p. 15; Antônio da Silva e Souza, “Relação sobre a rebelião de Pernambuco,

1645”, ABNRJ, 57 (1939), p. 92; Parker, The army of Flanders, pp. 48-9. 124 História da guerra, p. 480.

125 Co.Fo., 29.iv.1630, BNRJ, 1, 22, 44, fl. 135. 126

Rojas

y

Borja

q Felipe IV,

31

x11.1635,

AGS,

GA,

1 173

127 Representação de Francisco Barreto, 1647, AHU, PA, Ba, v. Sobre a falta de serralheiros “para o aprontamento das armas”, Memórias diárias, p. 252. 128 “Memória do que necessita a capitania de Pernambuco”, AHU, PA, Pco., ti.

129 A preferência pela espada e pela espingarda permanecerá viva em Pernambuco. À gran-

40

GUERRA DE FLANDRES E GUERRA DO BRASIL

À escolha da espingarda como arma de fogo mais apropriada à guerra colonial, corresponde o desinteresse dos compradores pelos mosquetes, arcabuzes e pistolas despachados por comerciantes do Reino. No caso das pistolas, ele ainda poderia ser imputado à modéstia da cavalaria, mas o Conselho Ultramarino não conseguia compreender a recusa dos mosquetes e arcabuzes, a menos que se tratasse de armas defeituosas ou rejeitadas no Reino, como costumavam geralmente ser as armas destinadas às guerras coloniais. "20 A irregularidade dos calibres, numa era de escassa estandardização do equipamento bélico, era outro motivo de desapreço, de vez que ela causava perda de tempo, ao obrigar os soldados a limar os projéteis para ajustá-los aos canos.!2! A escassez de balas levou mesmo a situações em que se teve de confiscar aos pescadores o chumbo das suas redes.!?2 Mas era a conservação destas armas que criava maiores problemas, pois elas fendiam com fregiiência e os arcabuzes de Flandres podiam arrebentar como se feitos de vidro.!2º Devido ao clima, as armas não duravam a metade da vida útil que tinham na Europa.!3 Os holandeses utilizaram granadas disparadas de morteiros; e os lusobrasileiros também as arremessaram, ao menos num assalto ao Recife.!*> O jesuíta Leonardo Mercúrio assistiu ao seu emprego contra o Arraial: “um gêde maioria dos crimes no período post bellum foram cometidos com uma ou outra, embora não faltassem as facadas, punhaladas, estocadas e o uso de chuços, adagas e, raramente, pistolas. Predileções que resistiriam à gana de profissionalização das autoridades régias e de modernização interesseira dos negociantes do Reino. Em 1661, sustentava-se a conveniência de proibir às milícias que servissem com espingarda e de exigir dos matutos que se armassem de mosquetes e arcabuzes: D. Afonso VI a Brito Freyre, 2.vi.1661, AHU, 275; Brito Freyre a D. Afonso VI, 23.111.1663, BA, 51-V1-1; Câmara de Olinda ao Regente D. Pedro, 16.v.1671, AHU, PA, Pco., vi; Anais do IV

Congresso de História Nacional, x1, pp. 123-9. 150 Co.Uo., 28.1653, AHU, PA, Pco., iii; Parker, La révolution militaire, p. 161. 131 Schkoppe aos Estados Gerais, 15.vi.1648, IHGB, DH, 4; Parker, La révolution militaire, p. 97.

52 Memórias diárias, p. 39. 133 Yan den Brande aos Estados Gerais, 23.1v.1648, IHGB, DH, 4; Souza d'Eça, “Sobre as

coisas do Grão Pará, p. 347.

154 DH, p. 87. 135 Memórias diárias, p. 143.

283

OLINDA RESTAURADA

anesp e a nh do me sa coi o, buc tra am am ch que a [...] o fog de nero de artifício a cas a um ava lev que o chã no ndo cai ia fúr ta tan com va nta ebe tosa, porque arr a par te noi de es vez tas mui am tav dei os s mai tar uie inq nos a par e ; pelos ares lavam exa as nad gra sas des tas Mui 6 .!3 am” caf e ond os sem vís não im ass que

e ond ar lug ou ito ape par no gar che ia pod m ué ng ni que “fumo tão hediondo

s, iro ile ras o-b lus aos am sav cau elas que or pav o m me it nf co ra cata” 137 Embo odem só não ia: các efi sua com e m-s ara ion epc dec sas nde rla nee as autoridades os, had fec os int rec a do qua ade s mai o reg emp seu do sen mas ir, lod ravam a exp traseu ver pre uia seg con dia, de o, mig ini o as nel o sm me s, rte como praças-fo alcaes hot arc ou es lot bru aos m era orr rec ém mb ta s iro ile ras o-b lus jeto.!38 Os m ava est ” ios iár end inc ios “me es ess re Ent al. nav rra gue na s ado liz uti s, ado tro

apic sal e he pic de s ado unt a, can de ha pal e aço bag a, sec os feixes de madeira a tra Con ? .!? cia tân dis à os rad ati m era , sos ace vez a um , que dos de pólvora,

ão diç ren a a par vos isi dec m ara ult res te, For a Cas da o enh eng casa-grande do . da tropa holandesa encurralada no andar superior!40 ex, esa and hol rra gue na s ado reg emp am for não se qua cha fle a e o O arc ser a gou che pe kop Sch mo co l cia ofi um ndo qua , pos ceto nos primeiros tem os m-n ava liz uti o rã ma Ca de ios índ OS ia, ênc ist res a e r-s atingido. Ao inicia de as arm de nto ime nec for do oa Cor a pel ção ibi pro à ido dev te, exclusivamen rgue da o açã dur a com la têman el sív pos o, tud con era, Não a. iad ind à fogo tam iam faz mo co , tes que mos vam usa já 100 es, arõ cam 300 em 2, 163 ra: e em mo co , ios índ os ão, raç tau res Na f! s.! ese and hol dos o viç ser bém os índios a s, nho cai bis tes que mos s ado pes dos s do ni mu gem sur , ues riq também os hen s ido met sub s, mai Ade !42 co. Vas s Paí no o açã ric fab sua a pel assim designados

iga ant a o did per iam hav os ead ald ios índ os ão, raç ltu acu des de so ces ao pro na al ger foi no me nô fe O . cha fle da e o arc do o eg pr em no e o ric fab perícia no 136 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus, vw, p. 355.

137 Memórias diárias, p. 26. 138 Jaerlyck verhael, ii, p. 133, lit, p. 213, tv, pp. 25, 79 e 145. 139 Tbid., iv, pp. 22-3, 168; DH, p. 46.

140 Lucideno, li, pp. 55-7. 141 Memórias diárias, p. 95, “Journal”, fl. 3r.

142 Memórias diárias, p. 25; Lucideno, à, p. 410, ii, pp. 46 e 55. a84

(GUERRA DE FLANDRES E GUERRA DO BRASIL

América e o colonizador espanhol regozijava-se, e não só por motivos comerciais, com o fato de eles haverem abandonado suas armas tradicionais pelas de fogo. !“3 A superioridade desta última ainda fora duvidosa na própria Europa quinhentista, ao verificar-se a progressiva substituição das bestas e arbaletas por arcabuzes e mosquetes: a precisão e a rapidez de um arqueiro levou praticamente a melhor até o predomínio das concorrentes na segunda metade do século.!4 No Novo Mundo, como salientou Georg Friederici, “até a descoberta da espingarda de agulha, um bom arco indígena nas mãos de um arquei-

ro americano em pleno vigor primitivo era superior, como arma de ataque à distância, ao arcabuz, ao mosquete ou à espingarda de pederneira”.!$ Os ín-

dios da Guanabara podiam disparar entre cinco e seis flechas durante o tempo necessário a recarregar um arcabuz.!40 A observação é igualmente válida para a azagaia e o tacape.!4” Os dardos e cacetes, incrustados de dentes ou ossos

agudos, que constituíam o arsenal dos tapuias aliados dos holandeses (que, aliás, recusavam as armas de fogo em que enxergavam invenção diabólica), re-

velavam-se mortíferos quando atirados com precisão à cabeça do inimigo. !48 Ironicamente, os colonos é que apelaram, em ocasiões extremas, ao armamento não convencional. Havendo o governo holandês recolhido as armas de fogo em poder dos colonos, os insurretos de 1645 viram-se na contingência de fabricar facões, dardos e chuços. Inclusive os escravos de Fernan-

p. 162.

143 Georg Friederici, Caráter da descoberta e conquista da América pelos europeus, Rio, 1967, 144 Parker, La révolution militaire, p. 44, Já vimos que a besta ainda devia fazer parte dos

arsenais da terra segundo o regimento do governador-geral Gaspar de Souza.

145 Friederici, Caráter da descoberta e conquista da América, p. 162, e “A eficácia do arco dos índios”, RIAP, 12 (1905-1906), p. 478.

146 Jean de Léry, Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil, Genebra, 1972, p. 169. Ele assinalava também a superioridade do indígena brasileiro sobre o arqueiro inglês (ibid., p. 168), considerado então o mais eficiente.

147 Sérgio Buarque de Holanda, O extremo Oeste, p. 55. 148 Memorável viagem, p. 320; Gerrit G. Hulck, “Uma breve descrição dos tapuias no Brasil”, RIAP, 58 (1993), pp. 322-3.

285

OLINDA RESTAURADA

des Vieira, portavam “arcos, flechas, zagunchos e facões”, e no levante de Porto Calvo, onde só dispunham de “doze espingardas e quatro mosquetes ferrugentos”, fizeram uso de “paus tostados, dardos, espadas velhas e facões, foices e alguns arcos e flechas”. Os volantes de Domingos Fagundes só manejavam cinco armas de fogo e quatro dardos “e os mais levavam bordões tostados por falta de armas que as não havia”. Outros caíram em campo “com um bordão ferrado e uma foice roçadoura”. Somente a partir das vitórias de

Tabocas e da Casa Forte, é que os luso-brasileiros lograram aperceber-se de boa quantidade de armas de fogo apreendidas aos holandeses, cerca de 1.500 14 no total.

À ORDEM DA DESORDEM

À influência militar do indígena exerceu-se não através do equipamen-

to mas da assimilação das suas táticas. Já no período ante bellum, afirmava-se

a noção de uma arte ou estilo próprio da terra, mais adequado às suas condições. O conflito entre a guerra européia e a guerra do Brasil já se fez sentir na

conquista do Maranhão (1614), realizada por contingente dos 280 soldados

de Diogo de Campos Moreno e dos 200 índios flecheiros de Jerônimo de Albuquerque. O mameluco pernambucano rejeitou de entrada as opiniões do traquejado oficial, advertindo-o solenemente contra sua experiência limita-

damente européia: “Senhor, isto não é guerra de Flandres. Vosmecê me deixe com os índios por me fazer mercê, que eu sei como me haver com eles”. Quando Albuquerque, no seu descaso sertanista pela posição fortificada, resolveu abandonar o forte de Perejá, foi a vez de Campos Moreno admoestálo: “olhasse que aquilo não era jornada do sertão senão de Sua Majestade, e que já agora tinham obrigação de lha [fortificação] sustentarem” para não perder a reputação. Discutindo-se a construção da fortaleza de Guaxenduba,

“teve Jerônimo de Albuquerque alguns debates com o engenheiro Francisco de Frias, querendo que se fizesse entre o mato uma casa, como fazem os ín-

dios no sertão, que é uma cerca de mato cortado com a rama para fora, com

149 Lucideno, i, pp. 365, 368, 385 e 395, ii, pp. 12, 19, 55, 62, 84 e 137-8. 286

GUERRA

DE FLANDRES E GUERRA

DO BRASIL

folha e tudo, como quem cerca o gado, dizendo que bastava aquilo, que cá

nestas partes não se usavam outras fortalezas”.!>0

O forte foi construído por fim de acordo com o projeto de Francisco de Frias, a quem seguramente irritou o desprezo do interlocutor pela engenharia militar. Desprezo que Jerônimo de Albuquerque voltou a manifestar pois, conquistado o Maranhão, foi acusado de negligenciar a reedificação da for-

taleza de São Felipe e a conservação das outras fortificações deixadas pelos franceses.'”! Que as concepções da “guerra do mato” já eram compartilha-

das por autoridades e gente da terra, indica o exemplo do ex-capitão-mor de Pernambuco, Alexandre de Moura, que também participou da luta contra La Ravardiêre, governando posteriormente a conquista. Ele também punha em

dúvida a utilidade de fortificar o Maranhão, onde “tudo são braços de mar”,

nos quais os inimigos podem entrar e sair por onde quiserem e assim são de pouco efeito as fortalezas”. Para ele, a melhor fortificação “é os grandes matos e o estar bem com os naturais”.!22 Ainda em fins do século XVII, a guerra volante permanecia viva no Maranhão, onde as lutas eram “muito diferentes das da Europa, porque se não briga com formatura, e só cada um o faz como lhe parece, detrás das árvores [deslocando-se] de umas em outras”.! É no âmbito da estratégia de guerra lenta que se deve compreender o

sistema de defesa adotado por Matias de Albuquerque de 1630 a 1633, a fim de impedir o acesso do inimigo à Várzea, mantendo-o encurralado no eixo

Olinda-Recife e, após o incêndio da vila, reduzindo-o ao Recife e suas fortificações. Para tanto, aplicou-se um regime misto que combinava as forças con-

50 “Tornada do Maranhão por Diogo de Campos Moreno”, pp. 240, 245, 251 e 257. Tratava-se da 'caiçara”, único tipo de posição fortificada conhecida pelos indígenas e descrita por Gândavo, Tratado da terra & história do Brasil, p. 108; e por frei Vicente do Salvador, História do Brasil, p. 83, o qual também informa que Campos Moreno servira em Flandres, ibid., p. 365.

21 “Capítulos que o capitão Bento Maciel Parente apresentou contra o capitão Jerônimo de Albuquerque”, Studart, Documentos para a história do Brasil, à, pp. 145-6.

152 Alexandre de Moura a Felipe III, 24.ix.1616, ABNR]J, 26 (1905), p. 201. Na mesma linha, opinará muitos anos depois o padre Vieira: Cartas do padre António Vieira, à, p. 419. 153 Miguel da Rosa Pimentel, “Informação do Estado do Maranhão”, 4.ix. 1692, BA, 50V-34, fls. 200v.-201.

287

OLINDA

RESTAURADA

vencionais concentradas numa praça-forte, o Arraial, guarnecido pela artilharia

e pela tropa regular, com o emprego de contingentes irregulares que ocupavam a linha de estâncias ou postos avançados, que, sob a forma de meia-lua, estendia-se de Olinda ao sul do Recife. Nos espaços intermediários, vagavam incessantemente estas companhias volantes, cujas emboscadas e assaltos visavam repelir as sortidas neerlandesas. Enguanto o Arraial preenchia uma função estratégica, as tropas volantes desempenhavam um papel tático, conciliando-se a guerra européia e a guerra do Brasil. Ao iniciar-se a resistência, mais do que uma concepção militar, a guerra volante atendia uma conveniência prática. Sem exército profissional nem gente

treinada, a guerrilha era a única forma de utilização bélica da camada marginalizada da população colonial, jovens sem eira nem beira ou simplesmente ociosos (as fontes luso-brasileiras referem com freqiiência a presença de “mancebos” entre os guerrilheiros), mestiços, índios desaculturados, malfeitores, foragidos da justiça d'El Rei, toda ela gente inadaptada à disciplina das guarnições, da mesma maneira pela qual já se tinha revelado refratária à rotina da produção açucareira. Havendo acorrido antes pela novidade do que pelo serviço, Matias de Albuquerque, acenando-lhes com os despojos inimigos, os persuadiu a formar bandos que corressem a planície de matos e mangues entre Olinda e o Recife.!5í Logo reuniram-se 264 paisanos em 22 esquadras de 12 homens,!55 havendo casos em que tais unidades compunham-se apenas de parentes. A eles, se juntariam em breve os índios trazidos pelo padre Manuel de Morais e por Martim Soares Moreno. 156 Foi este Lumpenproletariat colo-

nial que ironicamente revelou-se, senão mais fiel, pois também produziu seus

Calabares, ao menos mais útil ao serviço d'El Rei do que a gente principal, cujos vazios foi ocupando quando ela aos poucos afastou-se da luta para regressar aos engenhos. A experiência militar de Matias de Albuquerque era de molde a encorajálo a adotar métodos inconvencionais. Ele não militara em quaisquer dos tea-

154 “Opúsculos de la guerra de Pernambuco”, BNL, FG, 1555; governadores de Portugal a Felipe IV, 18.x1.1631, “Livro segundo”, p. 172; Memórias diárias, p. 27. > Nova Lusitânia, p. 185.

156 Memórias diárias, pp. 29 e 59.

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(GUERRA DE FLANDRES

E GUERRA DO BRASIL

tros da Guerra dos Trinta Anos, sua formação se tendo feito basicamente na guarda costeira e no norte da África. Naquela, tratava-se de patrulhar o Mediterrâneo ocidental, garantindo a segurança da navegação hispano-portuguesa contra os corsários barbarescos; em Ceuta e Tânger, de rechaçar os ataques dos mouros contra as fortalezas lusitanas e suas circunvizinhanças, numa rotina de escaramuças contínuas e inglórias. Como governador de Pernambuco (1620-1627) e como comandante a partir de 1630, ele confrontara-se nova-

mente com a guerra colonial embora em meio físico diverso: usura das forti-

ficações, dificuldades de aprovisionamento, falta de armas, escassez de efeti-

vos, com a diferença que passara de sitiado a sitiador. Quando da ocupação

neerlandesa da Bahia, recaíra sobre ele a responsabilidade do governo-geral, cabendo-lhe organizar a ajuda militar pernambucana à resistência baiana e canalizar os socorros de armas, homens e munições enviados do Reino.!” Quando da invasão holandesa, encontravam-se a seu lado veteranos do norte da África, como André Dias da Franca; da conquista da costa leste-oeste,

como Antônio de Albuquerque ou Martim Soares Moreno;!8 da restauração da Bahia, que ao longo de todo um ano haviam encurralado o exército neerlandês em Salvador; e por fim da campanha de 1625 contra a armada batava na baía da Traição (Paraíba), como Vidal de Negreiros, cuja estrela começou então a brilhar, e como o inaciano paulista Manuel de Morais, que

se conduzira com proficiência à frente dos índios da sua aldeia. Conhecendo a fama do jesuíta, Matias de Albuquerque intercedeu junto ao reitor do Colégio de Olinda para que o autorizasse a ocupar uma das estâncias que sitiavam o Recife, em que pelejou “com tão notável zelo e ardis como se fora a sua profissão a guerra e milícia”.!2? Residente em Alagoas, Calado foi outro

27 Dutra, “Matias de Albuquerque”, pp. 27-32. 128 Martim Soares Moreno, apesar de sobrinho e protegido de Diogo de Campos Moreno, confessava que nas guerras com o gentio do Ceará, onde degolara “mais de 200 franceses e flamengos”, “me despia nu e me raspava a barba, tingido de negro com um arco e flechas, ajudando-me dos índios, falando-lhes de contínuo a língua e pregando-lhes o que já sabia bem fazer”: “Relação do Ceará”, Studart, Documentos para a história do Ceará, 1, p. 135 29 Certidão de Matias de Albuquerque, 1.iv.1631, AHU, PA, Ba., v. Entre os índios do padre Morais, encontrava-se o futuro herói, Antônio Felipe Camarão, que iniciou sua carreira militar

289

OLINDA RESTAURADA

religioso que se tornou excepcionalmente capitão de emboscadas, registran!9º do minuciosamente suas experiências. A eficácia da guerra de emboscadas revelou-se de início ao longo do ist-

mo Olinda-Recife, onde

muitos e valorosos mancebos [...] divididos em estâncias, entre o Arraial, vila

e Recife, tinham tão encurralado o holandês, que não era senhor nem de sair a buscar água para beber, nem faxina para suas fortificações, porque em saindo de suas trincheiras, logo davam sobre eles e os matavam, e nem senhores eram de sair da vila para o Recife nem do Recife para a vila, senão

em grandes tropas, porque os nossos se deitavam a nado, e se era ocasião de maré vazia, passavam o rio; e postos em emboscadas, cada dia lhe faziam

tanto dano, que andavam assombrados.!º!

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Nestes primeiros tempos, quando as guerrilhas atreviam-se até aos arrabaldes de Olinda, cujos extensos pomares proporcionavam a cobertura indispensável à surpresa dos ataques, as perdas incorridas pelos holandeses foram

sob a orientação e a proteção do inaciano, a quem serviu de lugar-tenente. Os êxitos bélicos de Manuel de Morais, consagrados pela patente de capitão geral dos índios, valeram-lhe, aliás, grandes invejas e animosidades tanto de eclesiásticos quanto de oficiais do exército e capitães da terra.

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Afastado do comando, em que foi substituído por Camarão, seguiu para a Paraíba, onde conti-

nuou a participar da luta e a exercer, segundo reconheciam os holandeses, “a maior autoridade sobre todos os selvagens daquela região”, não tivesse ele o perfil que traçou uma informação jesuítica de “grande talento, juízo e prudência mediana”, além de “compleixão colérica”, Quando a Paraíba capitulou, Morais passou-se de armas e bagagens para o inimigo. No seu processo pela Inquisição de Lisboa, ele alegará ter sido o único jesuíta preso a quem as autoridades neerlandesas proibiram regressar ao Brasil, por temerem que levantasse o gentio. Na realidade, ele retornara a Pernambuco pouco antes da insurreição de 1645: “Processo de Manuel de Morais”, pp. 11, 56, 86 e 142; Jaerlyck verhael, iv, p. 128; Serafim Leite, História da Companhia de Jesus, v, pp. 363-9; e Boxer, The Dutch

in Brazil, pp. 267-9. Em 1631, Morais escrevera a Felipe IV com várias sugestões sobre a utilização dos índios na guerra: Felipe IV aos governadores de Portugal, 9,xi.1631, “Livro segundo”, p. 138. É pena que se tenha perdido este papel como também outros escritos seus, inclusive uma história do Brasil redigida na Holanda,

160 Lucideno, i, pp. 61-4.

161 Ibid., i, p. 28.

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GUERRA DE FLANDRES E GUERRA DO BRASIL

assustadoras, e as baixas luso-brasileiras, mínimas.!º? Mas a adoção pelo comando holandês da contra-guerrilha contribuiu para atenuar a vantagem dos contrários. Consoante mercenário inglês a soldo da W.1.C., no começo, esta guerra do mato era algo estranha para nossos homens, devido às emboscadas que o inimigo propositadamente nos armava nas matas, invenção assassina que

nos matava muitos soldados”. Quando se conseguia guardar o sangue frio e pôr-se em ordem de combate, ainda era possível repelir os atacantes, mas “tendo pago um alto preço, reforçamos nossas companhias com espingardas, tornando nossos homens peritos no uso delas, de modo que em breve tempo nos

pudemos vingar do inimigo, dispondo ademais de negros que conheciam bem 163 o interior e que guiavam nossos passos”. Em 1632, registrava o donatário: “em 19 de outubro, armou-nos o inimigo uma emboscada na Tocoarana [i.e., Tacaruna, entre Olinda e o Reci-

fe] [...] foi a primeira que nos fez, porque já o tempo o ensinava a imitar O nosso modo de fazer-lhe a guerra até então, aprendendo tanto à sua custa que se tornaram mui bons mestres como depois o experimentamos”.!% Na confissão de oficial lusitano, “há morto bastante gente nossa como nós a eles e nos hão tomado nestas saídas e em outras emboscadas que hão feito por vezes a três capitães de assaltos [...] dos quais capitães de assaltos não há hoje nenhum, que é grande perda para a guerra pelo tais serem descobridores do campo e serem muito práticos nas entradas e saídas dos matos”.!9 Arciszewski empregou a guerrilha contra Camarão e seus índios, por cujas táticas demonstrou grande admiração. E tudo indica ter sido Calabar quem familiarizou os holandeses com um estilo de luta em que ele mesmo se distinguira ao lado dos conterrâneos.!ºº Embora, por um lado, fontes holandesas creditem-lhe apenas os “bons serviços” prestados como guia,'º” 167 enquan162 Memórias diárias, passim.

163 “Tournal”, fls. 12r. e 18r.

164 Memórias diárias, p. 90. 165 Informação de Antônio de Araújo de Mogueimes, 19.i1.1633, 1, 2, 35, fl. 199v.

166 Souza Júnior, Do Recôncavo aos Guararapes, pp. 111-2. 167 DH, pp. 103, 125; Jaerbyck verhael, iii, p. 95, tv, pp. 39, 162, 164-5, 171; “Journal”, fl, I4v.

291

OLINDA RESTAURADA

to, do outro, o comando da resistência tinha interesse em transformá-lo em

bode expiatório da perda do Nordeste, o protagonismo de Calabar é inegável. Mercê do seu grande conhecimento da região litorânea, ele teria persua-

dido o comando holandês a fazer não só o ataque precursor a Igaraçu: segundo o donatário, “de quase todas as sortidas [...] foi Calabar o motor príncipal”, donde Matias de Albuquerque ter tentado fazê-lo voltar ao aprisco com promessas de perdão e de mercês, e, não conseguindo, procurado eliminá-lo

fisicamente.!S8 O que não impede que sua execução tenha configurado não um mero ato de vingança mas também o que hoje se designa por queima de arquivo. Devido à sua atuação, Calabar estava informado dos contatos compromete-

dores de pessoas gradas da terra com as autoridades neerlandesas. Calado, que

o confessou no momento final, dele ouviu que “muito sabia e tinha visto nesta matéria, e que não eram os mais abatidos do povo os culpados”. Na crônica,

o frade absteve-se prudentemente de referir nomes, mas informa haver transmitido a Matias de Albuquerque “algumas coisas pesadas” que escutara, tão pesadas que o general “mandou que não se falasse mais nesta matéria, por não se levantar alguma poeira, da qual se originassem muitos desgostos e trabalhos”. Calabar foi enforcado com uma urgência suspeita pois “nem lugar lhe

deram a se despedir e pedir perdão aos circunstantes, como queria”, face ao

receio de que abrisse a boca, “o que ele não tinha intenção de fazer, segundo o havia prometido ao padre”.!9?

Contudo, longe do Recife ou das fortificações costeiras, a emboscada

pressupunha o conhecimento do terreno de que careciam os soldados da W.1.C. há pouco na terra ou os veteranos isolados nas guarnições, a quem

não valeriam muito as bússolas de que eram munidos, como se infere de um trecho de Moreau.!”º Conhecimento das matas, oiteiros, veredas, ribeiras e várzeas como também do espaço organizado dos engenhos. Era sobretudo

difícil orientar-se entre os canaviais, sítio ideal para ataques de surpresa mercê

168 Memórias diárias, pp. 84, 90, 91, 99-100, 102, 108, 109, 112, 120-1, 147, 153 e 212. 169 Lucideno, i, pp. 47-9. 170 Moreau, Histoire des derniers troubles, cit.

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DO

BRASIL

da sua geometria uniformizadora, do afiado da palha e da densidade e altura das canas, que permitiam ao atacante desaparecer rapidamente. Ainda durante a guerra de restauração, os neerlandeses não desembarcavam na terra firme de Itamaracá sem caírem em alguma emboscada, o que acontecia “muitas vezes porque os portugueses moram nos matos como lobisomens, e os nossos, sendo apanhados desprevenidos, raramente escapam às suas garras”. A mesma fonte relata como fora trucidado no São Francisco o contingente comandado por La Fleur.!?! O acordo sobre concessão de quartel assinado com os holandeses em

1633 reconheceu a legitimidade da emboscada ao prever que o prisioneiro dela fosse igualmente beneficiado, embora pudesse perder as armas e o mais que portasse, salvo o vestuário. O acerto contara, aliás, com opositores, inclusive Matias de Albuquerque. Contudo, com a queda do forte dos Afogados, assinou-se convênio com base no precedente do que vigia em Flandres, que teve de ser adaptado de modo a interditarem-se as “balas envenenadas, mastigadas, entrançadas ou encadeadas”, bem como o disparo de “pedaços de ferro ou chumbo”. Previu-se também que índios e africanos aprisionados pagassem metade do resgate de um soldado, a menos que tivessem feito uso de armas

proibidas, que, porém, não se definiu quais fossem: apenas estabeleceu-se a legalidade das armas de fogo, silenciando-se acerca das armas brancas, tam-

bém essenciais à guerra volante.!

À Coroa, contudo, desautorizou o acordo em consegiiência da oposição

do Conselho de Guerra, que desaconselhou dar quartel aos holandeses no Brasil, mesmo com base na reciprocidade, de modo a desencorajar suas intrusões no ultramar. O quartel seria pretexto ademais a contatos nocivos, domesticando o conflito que convinha tornar ainda mais feroz para que os soldados não se rendessem facilmente como em Flandres, vendendo caro as vidas.

Sustentava o marquês de Leganés ser o quartel a causa da longa duração da

1 “Diário ou breve discurso”, pp. 213 e 219. V2 Jaerlyck verhael, iii, pp. 153-5; Parker, The army of Flanders, pp. 169-70. A execução de Calabar daria margem, aliás, a protesto neerlandês contra a violação do acordo, mas Matias de Albuquerque alegou que, até a ratificação por El Rei, ele não tinha validade: Jaerlyck verhael, iv, p. 171.

293

T OLINDA RESTAURADA

m so o m co m va ta lu o nã já s no ha el st ca os rç te os de on , os ix Ba es ís Pa s no guerra de ho el ns Co O . ba Al de e qu du do os mp te s no a ar iz br le ce os e a fúria que e e; qu er qu bu Al de as ti Ma se es nd ee pr re se e qu o nd ri ge su iu lu nc Guerra co de o ci gó ne em e qu o nd ha an tr es o; at tr O se es mp ro e qu e lh uno de or Felipe IV a! ri óp pr a nt co r po o id ag se es uv tanta monta ho

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um de o çã na eg pr im m é b m a t s ma s Oposição entre os dois modelos bélico s õe aç er op s na r la ci an l pe pa um m a r ha n e p m e s e d as ad sc bo em Às o. tr ou pelo Ar o ar di se as de as iv at nt te s ra ei im pr as du as am ar tr us fr as El s. ai convencion as a, ez al rt fo da or ri te in no ia ec an rm pe al on si is of pr a op tr a to an raial: enqu te en am rt se do an rv to es , os nh zi vi un rc ci s to ma os m ia rr co es nt la vo as companhi na ca de s vé ra at a rr te r po já , ia ar lh ti ar da te or sp an tr o e o ig im in do ha a marc treito e [as

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mo re a as [m la ve a m ia o nã s] ha nc la ho s ao el ív ss po i fo 35 16 em a iv at nt te ra ei rc re na Só . o” nt me di pe baraço e im sce ne ra er gu de al ri te ma o ir uz nd co o, lg da Fi do o ss pa o o nd ma to , landeses s foi uma ope-

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ração de guerra volante de o çã ma ar a e r ga lu do s no lo co s lo pe do ca di in o ti sí um de a lh co es a , os ir sile as ei ch s da to € s sa os gr , as av br anas “c de ta ma l, ca bo ra o en pl em a emboscad a ss po e qu o id st ve há o nã am eg ch e nd ao e qu , os nh pi es os ud ag e s do de rígi ? !7 ”. as pu e os nh da ga us Se a resistir

a , 6) 63 (1 a d n o d e R ta Ma em já e, Fonte luso-brasileira pretenderia qu iim in io pr ró “p ao e -s ra se pu im il as Br no ra er gu a r ze fa de o d o m o e m de or am vi ha os ss no os e qu o u mo es e to dr an El em a us e qu o ou ix de ] go lo qual s õe aç er op a e nt ca to no do ri or oc a nh te to is e qu l ve sí au pl É 76 .1 ” do deduzi opr ão aç rm fo à e qu de r da vi du be ca s ma , ro nt co re do o rs cu de no is pontua de lo ti es um o ig im in ao or op se is it rm pe e lh u pe ro eu o ad ld so do al on si Ec AGS, 3, 63 .1 11 v1 3, , ra er Gu de ho el ns Co e , 21 v.1633 173 Matias de Albuquerque a Felipe IV, erqu bu Al de as ti Ma a IV pe li Fe ; 91 S, GA, 10 AG 3, 63 .1 vi 3. , IV pe li Fe a lo uo gn GA, 1073; Ba que, 13.viii.1633 AGS, GA, 1079. 174 Memórias diárias, Pp- 116, 118, 18/ e 200, 175

Lucideno,

l,

PP.

4] 0-11.

176 BNL, EG, 1555, papel sem numeração.

GUERRA

DE FLANDRES E GUERRA DO BRASIL

guerra para o qual não fora treinado, como demonstram ambas as Guararapes, que constituíram o triunfo da desordem nativa sobre a ordem européia. Por ocasião da segunda batalha, “duas particularidades” prenderam a atenção do conselheiro Van Goch: em primeiro lugar, as tropas do inimigo saindo do mato e por detrás dos pântanos e de outros lugares, tinham a vantagem da posição, atacavam sem

ordem e em completa dispersão e aplicavam-se a romper diferentes quadrados. Em segundo lugar, as tropas do inimigo são ligeiras e ágeis de natureza para correrem para diante ou se afastarem, e por causa de sua crueldade inata são também temíveis. Compõem-se de brasilianos, tapuias, negros, mulatos, mamelucos, nações todas do país, e também de portugueses e italianos que têm muita analogia com os naturais da terra quanto à sua constituição, de modo que atravessam e cruzam os matos e brejos, sobem os morros tão numerosos aqui e descem tudo isso com uma rapidez e agilidade verdadeiramente notáveis. Nós, pelo contrário, combatemos em batalhões formados

como se usa na mãe-pátria e nossos homens são indolentes e fracos, nada afeitos à constituição do país. Disso resulta que essa espécie de ataques com armas de fogo [...] devem inevitavelmente ter bom resultado e rompendo

nossos batalhões e pondo-os em fuga, matando-nos um maior número de

soldados na perseguição do que teriam feito no combate mesmo [...] Além disto, as peças de artilharia de campanha, não podendo ser apontadas sobre bandos ou grupos dispersos, tornam-se inteiramente inúteis, ou para melhor dizer, transformam-se em verdadeiras charruas para o nosso exército, sem

contar uma multidão de outros inconvenientes.

Donde ponderar Van Goch a necessidade de “seguir no futuro um processo de combate igual ao deles e servirmo-nos de armas e tropas semelhantes às deles, ao menos em parte e tantas quantas pudermos obter”.!”” Destarte, a W.I.C. deveria utilizar neste gênero de combate tropas locais guerreando à maneira luso-brasileira, de vez que contingentes europeus, lutando em formação convencional de quadrados ou de linha de fogo, não poderiam opor-

177 Relatório de Michiel van Goch, 22.11.1649, IHGB, DH, 4.

295

OLINDA

RESTAURADA

se com êxito à combinação de ordem dispersa, agilidade física e impetuosidade no ataque que era a marca dos adversários. Assim, a indisciplina ou meiadisciplina daqueles em quem os oficiais neerlandeses enxergavam apenas “homens bárbaros e desesperados”, e não “soldados que professam a guerra política”?,!?8 destroçou a ordem militar que fizera do exército das Províncias Unidas, desde os tempos do stathouder Maurício de Nassau, o mais bem treinado do Ocidente. Não cabe dúvida de que a guerra volante ceifou número muito maior de vidas do que a soma das perdas incorridas nos sítios de posições fortificadas ou em batalhas campais. Enquanto na resistência, como assinalou Francisco Guerra, ocorreram “poucas baixas na guerra regular, números consideráveis (especialmente do lado holandês) na guerra de guerrilha e alta mortalidade

de ambos os lados devido às enfermidades”, na restauração baixas substanciais só tiveram lugar nas batalhas dos Guararapes.”

PRÓ E CONTRA A GUERRA VOLANTE

No comando luso-brasileiro, cedo manifestou-se o antagonismo entre soldados europeus e luso-brasileiros e o conflito entre partidários da guerra convencional e da guerrilha. O argumento contra esta última era o de que, não se dispondo de efetivos suficientes para a defesa da capitania, não se podia passar à ofensiva nem manter as posições eventualmente ganhas nesse tipo de operações. À guerra volante acarretaria baixas intoleráveis que cumpria evitar com vistas ao bloqueio do Recife pela prevista armada luso-espanhola e ao ataque irresistível que se deveria então levar a cabo pelo lado da terra. Tais

críticas indicavam incompreensão da natureza da guerrilha, cuja eficácia se

buscava avaliar pelos critérios, que lhe eram alheios, da guerra européia, julgando-se a utilidade das suas táticas sob o prisma da conquista e manuten-

''8 Felipe Bandeira de Melo a D. João IV, 19.v.1648, AHU, PA, Pco., iii.

17) Francisco Guerra, “Medicine in Dutch Brazil”, A humanist prince in Europe and Brazil,

p. 473. Dos dois lados, pereceram, na primeira, 580 homens, cerca de 1.000 na segunda, não se conhecendo evidentemente o número dos feridos que viriam a sucumbir posteriormente.

296

GUERRA

DE FLANDRES

E GUERRA

DO

BRASIL

ção de posições. Respondiam seus adeptos que ela oferecia a única maneira de encurralar os inimigos no Recife, além de fazer de colonos inexperientes,

soldados práticos.!8º

A divergência subiu de tom em 1631, com a chegada dos contingentes portugueses, castelhanos e napolitanos, que passaram a impor suas opiniões,

e com os primeiros êxitos das armas holandesas. Para os capitães da terra, a

resposta à ofensiva batava devia consistir em transformar a guerrilha de táti-

ca em estratégica, descentralizando a defesa, de modo a melhor atender à segurança do interior diretamente visado pela nova estratégia inimiga. A “Carta ou papel em que um capitão desta guerra responde a outro o que lhe parece do estado presente desta capitania, discursando a matéria com algumas razões em ordem ao remédio dela” está datada do Cabo de Santo Agostinho,

25 de abril de 1633.!º! O missivista anônimo dá por sabida a fórmula da guerra volante: evitar confrontações decisivas sob a forma de batalhas e sítios. Em

vez de ficarem imobilizados nas praças-fortes, os efetivos seriam empregados

em contingentes móveis que repelissem os ataques holandeses ao interior, pois

“a maior substância desta guerra consiste na velocidade da nossa gente” e na surpresa dos ataques que desgastavam o moral dos contrários. Com a perda dos Afogados, o Arraial já não ocupava posição estratégica, nem se podia alegar para mantê-lo o argumento da “reputação”, de vez que a guerrilha não tinha relação com a honra, tanto assim que muitas vezes a vitória residia na fuga. Manter no Arraial o grosso do exército era oferecer aos holandeses a oportunidade de desferir um golpe definitivo na resistência. Destarte, sua guarnição deveria ser reduzida a 300 soldados que, somados aos vivandeiros, bastariam para guardar a artilharia, caso fosse impossível transportá-la para o Cabo. Liberar-se-iam assim 500 ou 600 homens, aos quais se juntariam 500 soldados da terra, a serem recrutados e pagos por rateio entre as freguesias, graças ao que se disporia de um contingente de 1.000 ou 1.100 homens a serem divididos em esquadrões que defenderiam os engenhos e portos de mar, indispensáveis às comunicações com o Reino. Este

80 Memórias diárias, p. 52; “Relação verdadeira e breve da tomada da vila de Olinda e lugar do Recife na costa do Brasil pelos rebeldes de Holanda”, ABNR]J, 20 (1899), p. 130.

181 Livro primeiro, pp. 425-34.

297

OLINDA RESTAURADA

seria “o nosso infalível remédio”, como era de esperar da notável eficácia demonstrada pela guerra volante. Opinião compartilhada por ex-oficiais com longa experiência da terra, como Vicente Campelo, para quem urgia levantar 12 ou 15 companhias de soldados da terra, pois, contentes e bem pagas,

certo será que nunca o inimigo entra pela nossa terra a dentro, dando-se aos capitães o soldo de alferes e a promessa de patente mais alta. 182 O comando da resistência, que Felipe IV recheara de veteranos de Flandres e da Itália,!82 não podia concordar com uma fórmula que reduziria a nível ínfimo guarnições que, consoante sua formação militar, deviam corresponder 182 Ibid., p. 53; Fontes, ii, p. 193. 183 A começar por Giovanni Vicenzo de San Felice, conde de Bagnuolo que, capitão de in-

fantaria, passara aos Países Baixos em 1602, servindo sob o comando de Spínola; feito sargentomor da Calábria, seguira para a Espanha, participando da restauração da Bahia e sendo promovido a mestre-de-campo no seu regresso à Europa: Conselho de Guerra, 2.vi.1634, AGS, GA, 1095. Rojas y Borja iniciara sua carreira sob a proteção do parente, o duque de Lerma, poderoso valido de Felipe III, tendo 36 anos de serviço em Nápoles, Milão e Flandres, onde militara nove anos, antes de assumir o governo da Flórida e de se embarcar na armada das Índias: patente de nomeação de D. Luís de Rojas y Borja, 30.1.1635, BNRJ, 1, 34, 32, 12. O mestre-de-campo Juan de Ortiz servia há mais de 40 anos, dos quais 30 contínuos em Flandres: “Regimento do mestrede-campo Juan de Ortiz”, 1635, AGS, GA, 1135. O capitão Andrés Marín servira mais de 18 anos na capitania geral de artilharia na Espanha, trabalhando na fortificação de Larache, Mamora e Perpignan: requerimento de Andrés Marín, 1630, AGS, GA, 1085. O capitão Alonso Jimé-

nez de Almirón servia há 20 anos, dos quais 15 em Flandres, participando dos sítios de Julich, Breda e Maastricht, e o restante na Armada Real e na Lombardia: junta da armada, 26.11.1635,

AGS, GA, 1126. O capitão Miguel Giberton durante 40 anos estivera na França, Itália e Flandres, havendo encetado a carreira ainda no reinado de Felipe II: Miguel Giberton a Felipe IV, 1 vii. 1635, AGS, GA, 1139. O sargento-mor Francisco Serrano lutara no sítio de Antuérpia, sob o duque de Parma: Memórias diárias, p. 156. O sargento-mor Ettore de la Calce militara na Itália é Catalunha: Gino Doria, “I soldati napoletani nelle guerre del Brasile contro gli olandesi”, Archivio storico per le province napoletane, 57 (1932), p. 232. Vários oficiais portugueses eram também veteranos dos Países Baixos ou da Espanha e da Itália, como o sargento-mor Martim Ferreira

ou o capitão Francisco de Almeida: Jaerlyck verhael, iii, p. 182, iv, p. 217. Ou ainda Pedro Cor-

reia da Gama, sargento-mor do Estado do Brasil, “soldado mui antigo na guerra e mui prá-

tico nas coisas dela, e sobretudo inteligente na matéria de fortificações e bem afortunado em muitas ocasiões em que se achou por espaço de sessenta anos que servira a El Rei em diversas partes": Lucideno, à, p. 24.

298

GUERRA

DE FLANDRES

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DO BrasIL

ao menos à metade do exército.!8é E, o que era ainda mais inaceitável, a des-

coordenação das operações decorrente da guerra volante e a inexperiência da tropa européia neste gênero de combate subordinaria na prática aos capitães da terra a elite de oficiais, que teria seu profissionalismo e suas chances de

promoção comprometidos perante a Coroa. À ética militar, ainda tão ideologicamente devedora dos valores aristocráticos, a guerrilha representava a

substituição da coragem e da lealdade pela esperteza e malícia dos plebeus. Aliás, à vigência destas noções, herdadas do passado feudal, devera-se inclusíve a prevenção inicial que reinara na Europa contra a arma de fogo ou mesmo o arco e a arbaleta, que todas feriam à distância. !8> Aos olhos dos veteranos de tantas campanhas ilustres do Velho Mundo, as táticas dos soldados da terra eram desprezíveis e boas só para selvagens e colonos. Rojas y Borja exprimiu melhor que ninguém a atitude destes indivíduos, se é que realmente proferiu a frase, que lhe atribuirá documento setecentista, segundo a qual “não era macaco para andar pelo mato”.!8º Outro exemplo revelador do preconceito corporativo: o do holandês que chamou um capitão da terra de covarde que só brigava de emboscada como ladrão, injúria que lhe custaria a vida.!8” Outros soldados batavos costumavam desafiar os luso-brasileiros a saírem em campo aberto, pretendendo que só saberiam

pelejar no mato. !88

Na atitude de Bagnuolo como na de outros oficiais, pesava também a militância em obscura guerra colonial. Já a bordo do galeão que o levava a Per-

184 Felipe IV aos governadores do Reino, 10.ii e 21.iv.1632, BA, 51-X-2, e 17.iii.1632, “Livro segundo”, p. 155; Parker, La révolution militaire, p. 63. 185 Cardini, La culture de la guerre, pp. 111-2.

186 Memorial a El Rei, sem indicação de autor ou de data, coleção Alberto Lamego, Insti-

tuto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 4 A 25. O autor deve a J. A. Gonsalves de

Mello a comunicação deste documento, que encontrou em 1949 durante suas pesquisas naquele acervo e cuja importância para os estudiosos assinalou em “O período holandês”, Sérgio Buarque de Holanda (ed.), História geral da civilização brasileira. Época colonial, 22 ed., 2 vols., São Paulo, 1963, 1, p. 238. 187 Lucideno, i, p. 366.

186 História da guerra, p. 434. No século XVIII, a acusação também será feita pelos emboabas contra os paulistas: C. R. Boxer, The Golden Age of Brazil, 1695-1750, Los Angeles, 1962, p. 70.

299

OLINDA

RESTAURADA

a um nh ne de que a nad jor a um a vou que i “Se : -se ava nambuco, ele lamuri har gan e pod se e ond ar lug um a vou que por ir, de m be maneira me estava

mis é que em o siã oca em e do ra pe em st de tão ma cli um a , pouca reputação

cor Sua ? .!* ta” vol a á ser do an qu de eza ert inc m co ho, ten não que o ter gastar Bra de ano um ido orr dec o; ism sim pes oz fer s mai o ira nsp tra cia respondên da a sav pen que do io tér mis fez a nc Nu ?º a.! did per sil, dava a resistência por con ser a rav eve ass , tas fei as mal de já mas , boa Lis em guerra brasílica. Ainda maos a par e r-s ira ret e ças pra as er end def o “nã s poi io, rég trária ao interesse Nor do esa def A 1?! ”. ade est Maj sa Vos de as arm das ção uta tos é contra a rep síde rra gue a um mo co es, ndr Fla de a eir man à pre sem eu eb nc deste, ele a co o and orç ref e l áve ent ust ins o o nd na do an ab s, rte -fo ças pra das se pos tios pela gen sem que a, alm sem pos cor são s çõe ica tif for “as as guarnições, de vez que !?+ te não se defendem”. a a ad st ui nq Co 5. 163 em o tic crí to pon ou anç alc co égi rat O debate est nia ita cap da s avé atr co bu am rn Pe re sob u ço an av ês and hol to Paraíba, o exérci l, aia Arr do ão vaç ser pre a ra iti adm da ain el” pap ou rta “Ca a Se . de Itamaracá

de s, rte -fo ças pra das s ple sim € o pur no do an ab o foi ra ago pôs pro o que se a o sm me m ne s Ma ?? e.! ant vol rra gue na os tiv efe os modo a utilizar todos de o açã ign ind a par ia, ênc ist res da o nd ma co o u ve mo de és -minência do rev em , ndo qua s çõe rni gua das s uro ram int ão nç te nu ma a m ava tic muitos que cri lé30 das go lon ao as çad lan o sid ter am ri de po elas es, ant vol ajuda aos 200 de don , dos ore arv e as mat te par or mai a do sen | l, aia Arr o e a aíb Par a guas entre do e tud ati a ra, ter da te gen À !é ”. as ad sc bo em tas mui se lhes podiam fazer de ta fal de mas nal sio fis pro xia odo ort de o cas um não -se comando afigurava a. Bahi na cer fale a virá lo nuo Bag 6. 315 GA, , AGS 31, .16 3.v IV, pe 189 Bagnuolo a Feli 190 Livro primeiro, p. 425.

191 Bagnuolo a Felipe IV, 16.11.1631, AGS, GA, 1048. 192 Tdem a idem, 1.viii. 1632, AGS, GA, 1070.

193 Memórias diárias, p. 186.

isão de dec a á icar crit yre Fre o Brit 182. p. ias, diár as óri Mem 77; p. ra, guer da ia tór 194 Fis

Albuquerque à prade ias Mat de go ape o a erg enx qual na és, mar e tos ven tra con ial Arra o manter do que il inút e dad sau “a ele com s mai o end pod , anos os tant por era end def ça-forte que fundara e a razão evidente”: Nova Lusitânia, p. 325.

300

GUERRA DE FLANDRES E GUERRA DO BRASIL

diligência ou traição, donde as acusações a Bagnuolo, embora elas pareçam

certas no tocante à sua cobiça e improbidade. É indicativo desta hostilidade o interpretar-se como indícios de seu conluio com os neerlandeses até mesmo as comunicações e gentilezas protocolares.!*> O comando manteve-se aferrado à sua concepção da guerra, com o mesmo argumento da reputação, da impossibilidade de transportar para lugar seguro a artilharia das praças-fortes e da necessidade de preservá-las para a armada espanhola. Sitiados o Arraial e o Cabo, Matias de Albuquerque marchou, com parte da tropa, para Sirinhaém, de onde esperava socorrê-los, e Bagnuolo ocupou Porto Calvo, de modo a garantir os víveres locais, apoiar

eventual desembarque da força naval e anular a vantagem obtida pelos holandeses com a fortificação da Barra Grande.!é Em face da superioridade inimiga e da obstinação dos chefes em jogar segundo as regras do seu jogo, a resistência reduziu-se a uma retirada constante a partir da capitulação do Arraial e do Cabo em 1635, só restando ao exército seguir para Alagoas, onde repetirá o minueto desastroso da guerra de posições. Quando dos ataques holandeses a Porto Calvo, Bagnuolo repeliu a pro-

posta de se armarem emboscadas pelo caminho da Barra Grande, preferindo

esperá-los por trás das fortificações da vila. Sob a pressão de um punhado de 195 Lucideno, i, pp. 32 e 35. Houve quem jurasse haver lido carta sua escrita por ocasião da queda da Paraíba, na qual Bagnuolo declarava aos destinatários holandeses: “Bom proveito faça a terra a Vossas Senhorias. Aí vão cinco prisioneiros. Parto para o Cabo de Santo Agostinho. Guarde Deus a Vossas Senhorias”. É bem de ver que não havia traição, apenas felicitações pela vitória num tom entre jocoso e polido, restituição de prisioneiros e a informação de seguir para o Cabo,

que não era militarmente sensível. Assim pensou o próprio Felipe IV, a quem a duquesa de Mântua, governadora de Portugal, transmitiu a denúncia, com a sugestão de que se investigasse o comportamento do oficial italiano. Como responderá El Rei com seu bom senso e serenidade habituais: “se tudo que há contra o conde de Bagnuolo é o que diz este homem, seria grande leviandade mandálo voltar”. Bagnuolo tornara-se, porém, a béte noire dos colonos, o que terminou vencendo o ânimo régio, sensibilizado pela acusação de peculato e de extorsão. Em meados de 1638, anunciou-se uma devassa a seu respeito, mas seu procedimento inatacável quando do sítio de Salvador por Nassau terá posto uma pá de cal no assunto, de vez que em 1640, à altura do seu falecimento na Bahia,

recebia o título de príncipe na Itália e um feudo vitalício em Nápoles: Co.Po., 10.1.1636, AGS, SP, 1478 e 1536. 196 Memárias diárias, pp. 185-7.

301

(OLINDA RESTAURADA

veteranos da resistência, Manuel Dias de Andrade propôs que se improvisas-

sem estacadas ao longo do percurso, “e viéssemos fazendo emboscadas por

todo o caminho, brigando sempre com ele e retirando-nos de uma em outra trincheira, e que deste modo o desbarataríamos; e que de nenhum modo o deixássemos chegar à vista da povoação e da nossa fortaleza, porque se [a] via com os olhos, a havia de tomar e render sem remédio”. Bagnuolo ignorou a recomendação, dando motivo a uma conjura para depô-lo, a qual só não prosperou devido à recusa do mestre-de-campo lusitano em assumir o comando.!97 O donatário, que apoiou a opinião de se evitar confrontação em condições de marcada inferioridade numérica, não alude a tais divergências, mas

refere a própria sugestão, tampouco aceita, de reduzir a guarnição de Porto

Calvo para concentrar efetivos na passagem do rio Una, caso Nassau surgisse pelo norte; e caso viesse por leste, deslocá-los para o norte, obrigando o ini-

migo a desistir do assédio a Porto Calvo a perda de Porto Calvo em 1637, ainda cabeça-de-ponte no sul de Alagoas, mas parecer do donatário, preferiu atravessar

para defender a retaguarda.!?8 Com havia a opção de tentar manter uma Bagnuolo, que voltou a descartar o o São Francisco.!?? Em Sergipe, re-

petiu-se o dilema, mas novamente Bagnuolo resolveu partir, contando com

a maioria do conselho de guerra.?0º No debate sobre os prós e os contras da guerra volante, a posição de Matias de Albuquerque foi uma incógnita. No começo da guerra, ele estimu-

lara, como vimos, a formação das companhias volantes, encorajado pelos seus

anos no norte da África e pelo que se passara na Bahia. Contudo, com a mudança na relação de forças no comando, decorrente da vinda dos contingen17 Lucideno, à, pp. 78-9. 198 Memórias diárias, p. 252; Lucideno, 5, p. 38.

'22 BNL, EG, 1555, fl. 211. 200 BNL, EG, 1555, fl. 219; Memórias diárias, pp. 267-8. Duarte de Albuquerque Coelho, que permaneceu em Pernambuco após o regresso do irmão, partilhou muitos dos pontos de vista dos capitães da terra. Nas Memórias diárias, redigidas no exílio castelhano, ele compreensivelmente absteve-se de criticar diretamente as decisões tomadas pelo comando da resistência, mas nas entrelinhas exprime-se sua insatisfação ao encampar a queixa local contra Rojas y Borja, de faltarlhe conhecimento do país e do modo de fazer a guerra nele, ou ao reprochar a imobilização da

infantaria nas praças-fortes: Memórias diárias, pp. 222, 226 e 254.

302

E ———— E

GUERRA DE FLANDRES E GUERRA DO BRASIL

tes de espanhóis e napolitanos, sua tarefa passará a ser a de acomodar divergências, inclusive as próprias com Bagnuolo, de acordo com o feitio contemporizador que se lhe reconhecia.?”! Na medida em que a guerra volante tendia a reduzir a autoridade do corpo de oficiais, Matias não poderia defendêla. Ele acreditou na guerrilha como subsidiária da guerra européia, consoante o esquema estratégico vigente até 1633, mas quando o equilíbrio rompeu-se, não se podia esperar que se decidisse pelo abandono do Arraial e se convertesse à guerra 4 outrance, que, com a aniquilação do controle régio, aniquilaria a autoridade donatarial. A estratégia luso-brasileira de 1645-1654 foi a estratégia de 1630-1633 que deu certo: a contenção dos holandeses no Recife e nas praças-fortes, com base no Arraial Novo e na linha de estâncias que lhes cerrava o passo. Com uma diferença importante: a função do Arraial Novo é subsidiária dos redutos. Às primeiras decisões previam apenas a linha de estâncias, consoante a proposta de Fernandes Vieira, que se opôs à reconstrução da antiga praçaforte ou à edificação de nova em diferente lugar, com o mesmo argumento usado outrora pela “Carta ou papel”, de que não se devia imobilizar a infantaria. Quando finalmente resolveu-se construir o Arraial Novo, foi no entendimento de que serviria apenas de “fortificação aonde nos recolhêssemos no tempo de alguma opressão e aonde estivesse segura a pólvora e as mais munições de guerra” 202 O comando do exército restaurador não tinha o cosmopolitismo do seu antecessor, pois a experiência dos seus oficiais era exclusivamente brasileira; apenas Felipe Bandeira de Melo militara em Flandres.”* Para não referir Fernandes Vieira, cujos conhecimentos militares têm sido postos em dúvida desde Varnhagen, tratava-se quase todos de veteranos da resistência. Mesmo quem era originário do Reino, como Antônio Dias Cardoso, tinha formação local por ter servido sob as ordens de Sebastião do Souto, “o mais extraordinário mestre da guerra de emboscada e do ataque de surpresa” 204 201 Nova Lusitânia, p. 164. 202 Lucideno, ii, pp. 110-1 e 169. 203 Gonsalves de Mello, Felipe Bandeira de Melo, p. 10. 204 J. A. Gonsalves de Mello, Antônio Dias Cardoso, Recife, 1954, pp. 11-2.

505

OLINDA RESTAURADA

que é o os rd Ca s Dia de ” na ri ut do ar lit “mi à que ia sar O próprio Vieira confes

fase es ec nh co re que o du ví di in era não ele e s; ca bo Ta se devera a vitória das

e ess tiv ra bo em , roa uei Fig de o sc ci an Fr a to an Qu . eio alh to cilmente o méri

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s ro ei im pr os de des sil Bra no a vir ser ta, cos da da celino na infantaria da arma de ha an mp ca na há que o ad ld so igo ant s mai “o 53 anos trinta, sendo em 16 s ze ne Me de o et rr Ba o sc ci an Fr de ão aç gn si de a ra Pernambuco”.2ºº Embo prá ser não de rão ref o m co da lhi aco se fos l era gen o como mestre-de-camp e nd co do da ma ar na ra rei car sua ra eta enc ele al, loc rra tico no estilo de gue

Rio do a, err Bez ho al rb Ba s Luí de ha tc ma sa mo fa na te par da Torre e tomara

mo ho a o, ern alt sub el nív A 06 .2 te es rd No do or eri int o pel a Grande à Bahi s de an rn Fe de ço ter do es itã cap 16 De or. mai da ceneidade brasileira era ain

o vid ser am vi ha s doi as en ap to an qu en ia, ênc ist res a Vieira, 14 haviam feito

veam er ios vár to, rci exé o o tod de s do ia em pr es itã cap fora do Brasil. Em 16 teranos da resistência .207

ENTRADAS E CORRERIAS

rte Dua s, goa Ala a par ia ênc ist res de to rci exé do a tid par a Consumada sil Bra o tra con har pac des a lo uo gn Ba diu sua per ho el Co e de Albuquerqu o nd da o, fog a e ro fer a m ra se pu o que tes gen tin con ros mei pri holandês os meAo 8 20 1. 64 -1 36 16 o íod per do s” ria rre “co e ” das tra “en às im início ass desem m re ma ei qu se de o tid sen no ia rég m de or a sti exi 4, 163 de nos des o pel dos sta qui con tos tri dis nos ” um nh ne ar fic sem , ais avi mora “todos os can

rus rio etá pri pro dos mo is on ci ra bo la co O jar ora enc des a do inimigo, de mo em acá mar Ita de nia ita cap na ar cut exe era fiz a e qu er qu bu Al de rais. Matias 205 Gonsalves de Mello, Francisco de Figueiroa, pp. 11-3, 23 e 31. 206 Elistória da guerra,

p. 479: Boxer,

The Dutch in Brazil, Pp.

183.

poetas e ns algu de as rafi Biog o, Mell de m qui Joa o ôni Ant por s ado lic pub s 207 Documento

1, pp. 114-43 e 164-85. , 859 6-1 185 fe, Reci .; vols 3 o, buc nam Per de cia vín pro da homens ilustres mória do que sucedeu em Per“Me 201: fl. , 1555 EG, , BNL 231; p. ias, diár as óri Mem 208

. nambuco depois que dele se partiu Matias de Albuquerque”, BNL, FG, 1555

(GUERRA DE FLANDRES E GUERRA DO BRASIL

1635.2909 Neste mesmo ano, El Rei voltou a recomendar a medida.?!º Como

as autoridades holandesas, a partir da conquista do Arraial e do Cabo, procurassem reativar o sistema produtivo, as entradas começaram para valer, tão logo a derrota de Mata Redonda em janeiro de 1636 aniquilou as últimas

esperanças da resistência. A primeira campanha durou até à rendição de Porto Calvo. Outras excursões foram realizadas em conexão com o ataque da ar-

mada do conde da Torre em 1640 e por iniciativa do vice-rei conde de Montalvão, só terminando em junho de 1641, com o acordo de trégua entre os governos do Recife e de Salvador.?!!

A primeira entrada, em abril de 1636, sob a chefia de Francisco Rebelo, o famoso Rebelinho, contava com nada menos de 450 homens, dos quais 200 índios; em maio, outra excursão levava 350, sendo 100 índios destina-

dos em sua maioria ao transporte de víveres, pólvora e munições. Em junho, da correria de Camarão a Goiana 300 participaram, gastando três meses e meio para percorrer 60 léguas, tanto mais que no regresso comboiaram-se os emigrados do distrito. Outra excursão de Rebelinho à frente de 200 homens gastou 19 dias para andar 80 léguas. Como se tornassem evidentes os empecilhos à mobilidade e ao aprovisionamento de tropas destas dimensões, Sebastião do Souto inaugurou a prática de atacar com contingentes de não mais de 30 soldados e 10 índios. Posteriormente, as operações a partir de Sergipe e da Bahia congregaram número maior de campanhistas que, contudo, ao pisarem no Brasil holandês, dividiam-se em pequenas unidades, tomando rumos diferentes.”!2 Deles escreverá Brito Freyre que “só o ombro e a mochila eram o alforje e carruagem com que em marchas tão largas penetravam [...] o sertão da América, com maravilhosa diferença do estilo de Europa, onde as grandes baga-

gens de pequenos exércitos parecem transmigrações de povos e cidades por-

209 Memórias diárias, p. 182. 210 Co.Fa., 8.v.1635, AHU, 504, 211 “Lista dos prejuízos que nos causaram os da Bahia desde que tiveram conhecimento da Restauração portuguesa”, anexa a Johannes de Laet e Frederick Schulenborch aos Estados Gerais, s.d., mas de 1643, ARA, OWIC, 15.

212 Memórias diárias, pp. 234, 237, 239-40, 265 e 268; Lucideno, 1, p. 157.

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ÓOLINDA RESTAURADA

táteis”.2!2 Em 1638, por exemplo, uma entrada, partindo de Sergipe com a

missão de incendiar os canaviais entre Sirinhaém e a Várzea, compreendia cinco unidades de 30 homens cada, com seu próprio capitão. O corpo contra o alvo mais próximo, Sirinhaém, era exclusivamente de luso-brasileiros; os demais incluíam negros e mestiços, cujo número aumentava proporcionalmente à distância: na tropa enviada contra os canaviais da Várzea e da Mutibeca, havia apenas sete luso-brasileiros.?!4 É possível que tais diferenças tivessem a ver com a disponibilidade de indivíduos que conhecessem na palma da mão o distrito a ser atacado, como também com a necessidade de carregar volume maior de víveres. O imperativo de ingressar no Brasil holandês a oeste da região povoada, de modo a garantir a surpresa dos ataques, em especial a necessidade de abrir “novos caminhos entre as matas virgens e algumas léguas mais acima donde houvesse moradores”,2! também explica a duração destas correrias. Era preciso cruzar o São Francisco 20 léguas acima do Penedo.?!º As unidades de 20 a 30 homens podiam cumprir suas missões em menor tempo e escapar facilmente da tropa holandesa, pois mudavam “cada dia de sítio e alojamento, o qual era os pés das árvores”.?!” Rebelinho e seus homens tinham “por hábito marchar um dia e descansar no outro junto a uma aguada”.?!8 Os de Paulo da Cunha Souto Maior “eram muito fragueiros” e, “acostumados a andar pelos matos,” era impossível apanhá-los, “porquanto amanheciam em uma parte e anoiteciam dali seis ou sete léguas, e quando os holandeses tivessem novas deles, já estavam postos em salvo no meio dos matos”.?!? De um des-

213 Nova Lusitânia, p. 387. 214 DN, 5.1.1638, CJH.

215 Memórias diárias, p. 234.

216 “Memória do que sucedeu no exército de Pernambuco desde 6 de junho de 1637”, BNL,

EG, 1555. A travessia dos rios, inclusive o São Francisco, era feita a nado, utilizando-se jangadas e

balsas que os campanhistas construfam tão-somente para transportar roupas, víveres e petrechos de guerra: DN, 5.1.1638, CJH.

217 Lucideno, à, p. 158. 218 Iuerlyck verhael, iv, p. 229. 29 História da guerra, p. 138.

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GUERRA DE FLANDRES E GUERRA DO BRASIL

tes capitães de guerrilha, contava-se que, ferido gravemente, escondera-se dois

dias no campo, “não comendo outra coisa senão as postas de seu mesmo sangue, que pelo buraco da ferida lhe safa”. “Matavam[-se] muitos holandeses que, não esperando nossa entrada, divagavam de engenho em engenho supondo-se seguros.”22! No ataque de Rebelinho ao Engenho Velho, no Cabo, 30 sucumbiram e outros 40 entregaram-se.222 O próprio diretor, ou governador, da Paraíba, Ippo Eyssens, surpreendido a moer o engenho do Espírito Santo, pereceu com 40 soldados e 19 índios, ao passo que os contrários tiveram apenas seis mortos e 16 feridos.?22 Em 1640, a tropa de Vidal de Negreiros atacou o engenho das Barreiras, matando seu proprietário holandês e mais quatro soldados.??4 Embora os campanhistas fossem instruídos no sentido de só hostilizarem os engenhos de neerlandeses e de colaboracionistas, muitos soldados eram subornados, “e por este caminho ficaram muitos [canaviais] intactos e outros lhes punham fogo de contravento e fugiam, [e] acudindo os lavradores com seus

escravos o apagavam em breve”.22>

As entradas alienaram muitos colonos, sobretudo os de mais cabedal, o

que explicaria sua atitude pouco cooperativa quando das correrias sincronizadas com o ataque da armada do conde da Torre. No registro de Calado, “houve grande perturbação”: entre os luso-brasileiros, “porque viam arder suas fazendas e porque não sabiam o intento desta obra”; e entre os holandeses, “porque se viam perdidos de remate sem ter [o] que levar de Pernambuco, e que se lhes acaba[va]m suas ganâncias: se acudiam a uma parte para

impedir este mal, viam que não somente não achavam os malfeitores, mas antes se ateava o fogo em dez e vinte partes, e que não lhe podiam dar remédio humano, e assim andavam pasmados”.2?º A eficácia das entradas, per20 Lucideno, 1, p. 83.

21 Memórias diárias, p. 235. 222 Ibid., p. 234.

225 Ibid., p. 242. 224 DN, 19.,.1640, CJH. 225 Lucideno, 1, pp. 163-4.

226 Tbid., i, p. 163.

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OLINDA RESTAURADA

turbando a normalização do sistema produtivo durante cinco anos, foi o verdadeiro motivo da convocação da Assembléia de 1640, com a qual Nassau visou sobretudo obter a cooperação dos senhores de engenho no combate aos incendiários. As entradas fizeram compreender às autoridades portuguesas a vulnerabilidade do Brasil holandês e a vantagem estratégica que tinham para realizar este gênero de operações. Na avaliação do marquês de Montalvão, “maior dano [...] pode receber Pernambuco do que se pode recear na Bahia”, de vez que poderia meter ali “sem custo nem risco as tropas que me parecerem”, opinião em que Nassau concorria ao alertar seus sucessores para “a vantagem que ele [o governador-geral da Bahia] tem sobre este Estado; quão inclinados se mostram os seus soldados para correias e pilhagens nestas capitanias; quão

grande é o seu poder e que em um momento e com uma palavra pode formar com os nossos moradores um exército, ao qual não faltarão nem a neces-

sária munição nem o sustento”.227

Quando, em ocasiões críticas da guerra de restauração, Portugal cogitou de livrar-se do problema, abandonando o Nordeste aos holandeses, não tencionava fazê-lo sem antes devastá-lo sistematicamente por bandos de incen-

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diários. Por então, Gaspar Dias Ferreira procurava demonstrar aos neerlan-

deses que uma vitória sua seria contraproducente: o incêndio de um partido de cana destruía socas e ressocas, “de maneira que os canaviais de um engenho se podem extinguir num ano e não tornar a plantar-se em seis”. Ademais, “como os matos do Brasil são tão largos e a terra tão fácil de mantimentos, não há impedimento para que desta maneira [os campanhistas] se conservem, sem os poderem extinguir por guerra, retirando-se dela quando os buscarem,

como se tem visto e sempre fizeram em muitas ocasiões”.228

Via de regra, incendiavam-se apenas os canaviais e as casas de purgar onde

se estocava O açúcar, poupando-se as instalações fabris, plausivelmente para

evitar danos excessivos no dia em que a sorte da guerra passasse a favorecer os luso-brasileiros. À Paraíba parece, aliás, ter sido mais duramente castiga-

227 Marquês de Montalvão a D. Pedro da Silva, “Uma negociação diplomática”, RIAP, 35 (1888), p. 63; Fontes, ii, p. 400. 228 “Cartas e pareceres de Gaspar Dias Ferreira”, RIAP, 31 (1886), p- 338.

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GUERRA DE FLANDRES E GUERRA DO BRASIL

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da: em 1637, Sebastião do Souto queimara “todas as canas” da capitania, “dizendo que nem para semente ficavam”, além de 20.000 pães de açúcar e

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cerca de 50.000 quintais de pau-brasil.??? Em 1640, a entrada de Vidal de

Negreiros em sua terra natal destruiu 7/8 das canas a serem colhidas naquele ano e dois armazéns de açúcar.?º A queima, aliás, podia ser seletiva: na Vár-

zea, Henrique Dias limitara-se a queimar a cana madura para a moenda, dei-

xando “algumas plantas novas para semente”.?! O fogo era posto ou de dia, aproveitando o calor tropical, ou ao anoitecer, de maneira a complicar as ações

para controlá-lo, que podiam durar toda a noite, mesmo quando o orvalho e a umidade favoreciam a tarefa.??2 Escravos também podiam ser tomados pe-

los campanhistas e os bois mansos, jarretados, de maneira a privar o inimigo de meios de transporte.?

Ás entradas serviam subsidiariamente de fonte de para resgatar bens valiosos que haviam sido escondidos, pelos seus proprietários, em especial as ordens religiosas. por exemplo, traria em 1637 a prata e ornamentos dos

informação 234 e até quando da retirada, Estêvão de Távora, conventos do Brasil

holandês que, por motivo de segurança, haviam sido reunidos na casa francis-

cana de Ipojuca.” No engenho de um colaboracionista, Sebastião do Souto “achou muita prata do Colégio [da Companhia de Jesus] |...] e dando em uma

emboscada do inimigo a perdeu e se salyou um cofre de prata com a relíquia

de Santa Úrsula e dois cálices dourados e um vaso dourado em que se põe o Santíssimo Sacramento no sacrário”, relíquias que foram recebidas com procissão e missa.2>0

29 BNL, FG, 1555, fls. 202, 211; Memórias diárias, p. 247. 230 DN, 19.:.1640, CJH.

231 BNL, EG, 1555, fl. 201.

232 DN, 1l.i e 14.x1.1640, CJH. 255 História da guerra, pp. 137-8; “Lista dos prejuízos que nos causaram os da Bahia”, ARA, OWIC, 15.

234 Memórias diárias, p. 245. 255 BNL,

FG, 1555, fl. 211.

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236 Tbid., fl. 202.

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OLINDA RESTAURADA

Só excepcionalmente, o exército holandês conseguia alcançar os campanhistas, malgrado o governo do Recife ter dispersado inúmeras patrulhas

para guardar engenhos e partidos de cana, as quais, assistidas por auxiliares

indígenas, deviam acorrer ao lugar do ataque ao primeiro sinal.?2” Outra pro-

vidência foi multiplicar os aceiros, de modo a evitar a propagação do fogo, que “em canaviais é como se fora em estopas” (Calado), e facilitar o deslocamento dos soldados em perseguição aos incendiários.?28 Nassau também baixou edital encorajando as deserções com a ameaça de queimar vivos todos aqueles, de qualquer grau, classe ou patente”, que botassem fogo às escondi-

das, sem se comportarem “como um verdadeiro soldado”, a quem era lícito fazê-lo desde que “todos possam ver e se defender de acordo com as regras da guerra” e não como vagabundos e ladrões que fugiam “como coelhos” quando detectados.?>? Era através da área designada por “sertão”, e, na capitania de Itamaracá, por “terra nova”, e não da zona açucareira, mais povoada e policiada, que os campanhistas luso-brasileiros penetravam no Brasil holandês. Por esta razão, as autoridades neerlandesas resolveram em 1635 evacuar a região, obrigando os habitantes a passarem para a marinha com seus bens móveis e animais no prazo de 15 dias, ordem que nem sempre foi obedecida. Na segunda quinze-

na de outubro, devastou-se o setor norte, de São Lourenço a Goiana; e no mês seguinte, destruíram-se os roçados e currais da bacia do Capibaribe. Esperava-se que, já não contando com colonos para aprovisioná-los, eles teriam de

reduzir sua mobilidade ou mesmo, acossados pela fome, de surgir pelos en-

a

sa

senhos, onde julgava-se que poderiam ser facilmente capturados.?40

237 DN, 24.i e 3.x.1640, CJH.

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238 DN, 14.x1.1640, CJH; Lucideno, 1, p. 163. 239 DN, 9.xii.1640, CJH. Nassau tinha aqui em vista a prática européia do “brandschatting, que legitimava as extorsões exercidas pelos exércitos contra comunidades localizadas em território TSE DEE

240 Juerlyck verhael, iv, pp. 245, 247, 250, 255 e 255.

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inimigo,

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GUERRA

DE FLANDRES

E GUERRA

DO BRASIL

TRISTE FIM DA GUERRA BRASÍLICA

Confirmando a alergia lusitana à teorização, é só entrado o século XVIII que se tentará formular os princípios daquela “ciência experimental dos na-

turais da terra” que era a guerra volante. Trata-se de memorial posterior a 1710, pois alude à presença francesa no Rio de Janeiro. O autor, que diz haver conquistado aos índios a campanha ou interior do Rio Grande do Norte na chamada “guerra dos bárbaros”, expõe, para governo de D. João V, “a di-

ferença que vai da guerra da Europa à da América”, diferença tanto mais lógica quanto “esse novo mundo, assim como é o antípoda do velho no sítio e calculação, assim também o é em tudo o mais”. Na Europa, “segundo a natureza do terreno, se peleja em campanha rara e a peito descoberto, mas na

América, “por ser toda coberta de mato, se deve fazer de detrás dos paus, como

fazendo deles trincheira” 24! Na Europa, a segurança das populações consistia nas praças-fortes, mas sua proteção no Brasil residia no interior onde podia comodamente refugiarse. “E se lá, andando exércitos em campanha, se costuma recolher o precioso às praças por serem fechadas e seguras, cá se há de observar o contrário, mandando-o retirar para fora, por serem abertas e ficar assim mais seguro no asilo dos matos.” Donde a conveniência, em caso de ataque estrangeiro, de “fazer logo evacuar as praças de todos os bens que nelas houver” para que aos inimigos não aproveite o saque, como ocorrera ao tempo dos holandeses, que “com a nossa mesma fazenda nos fizeram a guerra”. Lamentava o autor do memorial que as autoridades reinóis não compreendessem tais diferenças, por não terem a ciência experimental que eu e os naturais da terra temos. E lembrava precedentes do tempo dos holandeses: por não se ouvir o parecer dos “expertos na guerra brasílica”, é que teriam ocorrido a derrota de Mata Redonda, a retirada do exército de resistência e o desastre da incursão contra a tropa de Sckoppe em Itaparica, determinada pelo governador-geral Antônio Teles da Silva contra a opinião de Rebelinho e dos capitães da terra 242

241 Memorial a D. João V, sem assinatura nem data, coleção Alberto Lamego, Instituto de

Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 4 À 25.

242 Ibid. Escrevendo na segunda metade do século XVII, D. José de Mirales dará para estes

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OLINDA

RESTAURADA

A afirmação da irredutibilidade local às práticas européias, a que corresponde essa recusa da aplicabilidade da arte militar às nossas circunstâncias, exprime, aliás, uma faceta da mentalidade nacional e do seu arraigado conservadorismo. Contra mudanças corriqueiras ou transformações radicais, sem-

pre se utilizou o argumento da sua inadequação à realidade colonial e depois nacional, condenadas assim como artificiais e postiças. O viço dessa mentalidade, que pode ser mapeada em outras áreas da prática brasileira até hoje, justificava-se na época pela defesa que proporcionava aos mazombos frente aos reinóis na concorrência pelas oportunidades econômicas e sociais, a qual

se aguçou na segunda metade do século XVII, com a intensificação das correntes migratórias de Portugal. Isto é especialmente válido para as oportunidades de natureza urbana, ralas por definição numa sociedade agrária, tais como a burocracia, a carreira militar, a medicina, o ensino laico.

Invocando o clima da terra, também pretendiam os “empíricos” do século XVII não existirem regras gerais para a cura das enfermidades. Ora, segundo o Dr. Simão Pinheiro Morão, médico reinol que clinicava em Pernambuco, o clima “não faz variar o método geral da cura das doenças”, pois a medicina é uma só e suas regras são universalmente válidas. Escrevendo nos anos setenta, ele se queixava de que, “sendo a verdadeira ciência da medicina

composta da razão e da experiência”, a gente da terra fiava-se mais nesta do que naquela, antes nos “experimentados empíricos” do que nos “cientes experimentados”. Ele mesmo lera em cartas de pró-homens da terra o conselho de que “nas tábuas e nos paíns [i.e., no câncer do estômago e no do fígado], se não curassem com médicos nem cirurgiões”. Até colegas seus recomendavam curandeiros e mesinheiros a seus doentes.?*

insucessos explicação oposta à do autor do memorial: a de que, “ainda naquele tempo ignoravam os nossos não pequena parte do conhecimento e prática das regras militares científicas”, “História militar do Brasil”, ABNRJ, 22 (1901), pp. 35-6. 243 Simão Pinheiro Morão, Queixas repetidas em ecos dos arrecifes de Pernambuco, pp. 5-15. Entre a gente do Nordeste de Seiscentos ainda prevaleciam aquelas concepções paradisíacas asso-

ciadas à mitologia da conquista e da colonização, estudadas por Sérgio Buarque de Holanda: Vi-

são do paraíso, pp. 277 ss. Ignorava-se o próprio clima da terra, na realidade “quente e úmido”, como salientava o Dr. Morão.

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DE FLANDRES

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DO

BRASIL

Findo o domínio holandês, a guerra volante arcaizou-se, mercê para-

doxalmente do “processo de formalização [...] que a enquadrava em sua espe-

cificidade no sistema militar do Império português” 24“ Na segunda metade

de Seiscentos, ela transformou-se em “guerra do mato”, boa apenas para ser-

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tanistas e válida somente em áreas interiores, afastadas da marinha e das pra-

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ças-fortes litorâneas, no fito de conter bugres insubmissos e negros aquilombados.?*? Entre os colonos do Nordeste, a guerra volante não sobreviveu à geração que a empregara contra o invasor. No fim da vida, escrevendo da Bahia a Brito Freyre, o padre Antônio Vieira observaria melancolicamente que “todos os que Vossa Senhoria na sua história canonizou de heróis acabaram, e também não existem já as memórias daquela arte ou desconcerto militar com que defendemos esta praça e restauramos tantas de Pernambuco246 ” Velhos e estropiados, os raros veteranos da guerra holandesa que ainda não haviam passado desta para melhor eram apenas relíquias gloriosas e inúteis,

de quem informava em 1685 o governador de Pernambuco que “o mais do tempo estão em uma cama, por se acharem mui carregados de anos e acha-

ques causados na guerra e defesa deste Estado, em que foram passados de balas

e outras feridas” 247

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Na Bahia e em Pernambuco, idêntica foi a solução encontrada, a de re-

correr aos sertanistas de São Paulo, como Domingos Jorge Velho, que se vaneloriava de que só os paulistas podiam defender a população da marinha contra “o gentio bravo de cima”, isto é, do sertão, e contra “o negro fugido de baixo”,

ou seja, das áreas canavieiras. À concessão de sesmarias a tais homens ofere-

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, |

244 Pedro Puntoni, A guerra dos bárbaros. Povos indígenas e a colonização do sertão. Nordeste do Brasil, 1650-1720, São Paulo, 2002, p. 202; e do mesmo autor, “À arte da guerra no Brasil: tecnologia e estratégia militares na expansão da fronteira da América portuguesa (1550-1700)”, Celso Castro (ed.), Nova história militar brasileira, Rio, 2005, pp. 43-66.

245 Da expedição comandada por Salvador Correia de Sá e que restaurou Angola, participaram veteranos da guerra do Brasil, Suas táticas serão também utilizadas ali, inclusive na batalha de Ambuíla em 1665, em que os portugueses e aliados foram capitaneados pelo governador André Vidal de Negreiros: Alencastro, O trato dos viventes, pp. 294-7, 369-70. 246 Curtas do padre António Vieira, iii, p. 609, 247 João da Cunha Souto Maior a D. Pedro II, 7.x1i.1685, e Co.Uo., 8.viii.1685, Ernesto

Ennes, As guerras nos Palmares, São Paulo, 1938, pp. 142 e 151.

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cia a melhor garantia de que ela ficaria protegida por um muro “mais forte e permanente que aquele tão afamado de entre a Tartária e a China, o qual, apesar de sua muita fortaleza, está sujeito às ruínas do tempo, e este, pelo contrário, o mesmo tempo o acrescentará e o fará cada dia mais forte e permanente”. Em Lisboa, concordou-se com esta retórica inesperada da parte de paulistas lacônicos. O procurador da Fazenda vinha insistindo havia muito em que eles ofereciam a única defesa contra os bugres, pois suportavam dificuldades intoleráveis para a gente do Recôncavo baiano ou da mata pernambucana, já estragada pela vida sedentária. Em Pernambuco, tampouco duvidava-se do valor dos sampaulistas, apenas temia-se que a nova muralha da China resultasse ainda mais prejudicial, pois sendo eles “gente bárbara e indômita que vive do que rouba”, já causavam maiores prejuízos que Os infligidos pelos próprios quilombolas.?º Os obstáculos enfrentados pelas expedições contra os Palmares, duas das quais comandadas por veteranos da guerra holandesa, são ironicamente os mesmos de que se haviam lamentado outrora os holandeses frente aos lusobrasileiros. Papel da época, atribuído ao sertanista Fernão Carrilho, indagava o motivo pelo qual um exército que “pôde domar o orgulho de Holanda naquele tempo já formidável a todo o mundo”, fracassara repetidamente diante do grande quilombo; e as razões apontadas parecem sair de relatório militar neerlandês de 40, 50 anos antes. Enquanto na guerra holandesa “peleja-

va-se contra homens”, nos Palmares a luta era contra “o sofrimento”: “a fome do sertão”, “o inacessível dos montes”, “o impenetrável dos bosques”, “os brutos que os habitam”. Nos começos do século XVIII, impusera-se a especialização. Para conter índios ou africanos, a guerra do mato; para repelir estrangeiros, as regras eos núcl des gran aos es cent adja es regiõ as das fica Paci s”. ífica cient ares milit populacionais e insuladas as tribos bravias no sertão, a clivagem aprofundou-

248 Requerimento do terço de infantaria paulista e parecer do procurador da Fazenda, c. 1695; 197-8, e Caetano de Melo e Castro a D. Pedro II, 4.viii.1694, Ennes, As guerras nos Palmares, pp. 311 e 326.

249 “Papel que se deu a Sua Majestade sobre a extinção dos negros dos Palmares”, 1687, ibid.,

p. 160.

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GUERRA

se devido à composição majoritariamente reinol do oficialato colonial, formado em período de participação portuguesa, ao lado da Inglaterra, da Holanda e da Áustria, na Guerra de Sucessão da Espanha, que obrigara o Reino a cer-

to esforço de modernização e profissionalização da sua defesa. Típico da men-

talidade setecentista é o tratamento da história militar brasileira por José de Mirales. Segundo pensava, ela não existira antes da restauração da Bahia em 1625, pois nem as tropas eram profissionais nem praticavam a arte militar “científica”.220 Para muitos coloniais, a guerra dos emboabas terá demonstrado definitivamente a superioridade das “regras militares científicas” sobre a “ciência experimental dos naturais da terra”. Malgrado a espessura do mato, de onde, escondidos, disparavam suas escopetas, os paulistas foram derrotados por reinóis alinhados em formação militar, com a infantaria no centro e a cavalaria nas alas, como por ocasião da refrega com a tropa do governador Fernando Martins Mascarenhas.?>!

250 “História militar do Brasil”, pp. 14-21 e 31.

21 Rocha Pita, História da América portuguesa, p. 548.

515

A querela dos engenhos

A quem lê as crônicas da restauração pernambucana não escapa a cisão

entre partidários e adversários de Fernandes Vieira. Insatisfatória, contudo,

foi a versão dada ao conflito por Calado e por Diogo Lopes de Santiago, para quem tudo se resumiu à falta de ânimo restaurador ou à traição pura e simples da facção contrária à liderança de Vieira. Explicação naturalmente suspeita por se originar em obras encomendadas por ele mesmo, embora se tivesse abstido de acusar frontalmente os rivais quando, anos depois, historiou a seu modo as origens da revolta de 1645.! Somente em 1907, no estudo em que Pereira da Costa prosseguiria a tarefa, encetada por Varnhagen, de des-

mitificar o madeirense, é que se buscou compreender os motivos reais do

antagonismo.

Pereira da Costa distinguiu três “partidos” no Brasil holandês. O primei-

ro, um “partido nacional”, ao qual se vinculava “a gente da primeira plana

da colônia, as velhas casas solarengas e tanta outra mais, de prestígio, fortuna e influência”, e cujo objetivo era “a restauração por amor da liberdade”, arrancando ao batavo “a terra querida do seu berço”. O segundo grupo era “o partido dos devedores remissos”, que reunia “a gente alcançada nas contas dos seus negócios com os holandeses, quer perante a Companhia, quer perante a particulares das praças do Recife e da Holanda, por contratos e transações mercantis, cujas dívidas atingiam a uma soma considerável”. O propósito que o animava era evidentemente o de se livrar dos débitos mediante a restauração

da soberania portuguesa. Por fim, “o partido antinacional”, composto de co-

| João Fernandes Vieira ao regente D, Pedro, 22.v.1671, BNL, FG, n. 76.

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RESTAURADA

laboracionistas impenitentes, em especial de “abastados judeus portugueses,

o único vitalmente interessado na continuação do domínio holandês. A despeito da louvável intenção teórica, o esquema de Pereira da Costa não escapou às deformações nativistas que vincam boa parte da historiografia pernambucana. Ao lê-lo, ainda se ouvem os ecos das lutas civis entre mazombos e reinóis que ensangiientaram Pernambuco em 1710-1711, 1817, 1824 e 1848. A elevação de motivos que ele atribuía ao “partido nacional” não resiste à análise, de vez que alguns dos grandes devedores da W.I.C. faziam parte

da chamada “nobreza da terra”. A diferença entre eles e o “partido dos devedores remissos” é, em grande parte, ilusória. A distinção proposta por Gonsalves de Mello entre moderados e radicais? é mais simples e lógica por ter a vantagem de corresponder à realidade dos processos revolucionários. Restaria explicar, contudo, as razões da moderação de uns e do radicalismo de outros.

Parece preferível, entretanto, a classificação que sugeriu Salvador Correia de Sá, ao propor a El Rei que mandasse pôr em boa ordem a defesa, a justiça e a fazenda do Nordeste, conciliando os interesses e os espíritos dos três gêneros de gente” que ali viviam: “os que se retiraram por ordem dos ministros de Vossa Majestade, os que ficaram com os holandeses e os que o restauraram”.é Pois embora não se deva negar o papel, então subsidiário, das rivalidades entre mazombos e reinóis ou entre a nobreza da terra e os recém-chegados de Portugal, o conflito que lateja debaixo do movimento restaurador e do período de reconstrução que se seguiu à derrota holandesa tem a ver fundamentalmente (mas não pura ou exclusivamente) com o choque de interesses entre os senhores de engenho e de outras propriedades confiscadas pela W.L.C. e os novos proprietários luso-brasileiros a quem ela os vendeu. É o que evidencia a carta que Francisco Barreto dirigiu a D. João IV à raiz da vitória lusitana: Desde que assisto nesta campanha, ouvi dizer que quando Matias de Albuquerque governou estas capitanias, retirando-se para à Bahia fizera publicar um bando para que todos os moradores o seguissem sob pena de in67 2 F. A. Pereira da Costa, “João Fernandes Vieira à luz da história e da crítica”, RIAP, (1907), pp. 225-6.

3 Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, à, pp. 145-7.

É Co.Uo., 28.ix.1655, AHU, 15.

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tugueses que ficaram nestas capitanias. Procuram os retirados haver restitui-

ção dos ditos seus engenhos, alegando que não devem perder suas fazendas por haverem sido leais vassalos e obedientes a um preceito real. Dizem os moradores que os possuem que eles ajudaram a sustentar esta guerra com suas fintas e donativos e alguns se defendem com a razão de haverem comprado os tais engenhos aos holandeses, debaixo dos acordos que fez Tristão de Mendonça com eles no tempo da feliz aclamação de Vossa Majestade. E porque agora que Pernambuco está restaurado e hão de crescer as diferenças sobre estes pleitos, de modo que receio que haja uma guerra civil entre estes motadores sem respeito da justiça, porque se fundam em que têm acolhimento nos interiores do sertão que é mui dilatado, me pareceu dar conta a Vossa Majes-

tade desta matéria, para que possa mandar acudir-lhe como Vossa Majestade tiver por conveniente de seu Real Serviço e conservação destes vassalos.”

CGZUERRA E PROPRIEDADE

Já um historiador oitocentista, J. B. Fernandes Gama, vira na emigração o reflexo da oposição, que já supunha cristalizada, entre o sentimento nativista, de feição aristocrática, e o pragmatismo reinol, de cunho plebeu. A metade ao menos dos açucarocratas emigrados pertencia efetivamente às famílias de primeira plana, mas a realidade não foi assim tão simples. Entre elas como entre as demais, houve quem partisse e quem ficasse. Na maioria

dos casos, a decisão teve seguramente menos a ver com os desejos individuais

do que com as circunstâncias bélicas. Em cerca de 150 engenhos existentes no Nordeste em 1630, quase a

metade (65) foi abandonada pelos proprietários. Não são apenas os documentos holandeses que acusam Matias de Albuquerque de coagi-los a emigrar. O próprio donatário assinala haver o irmão procurado “muito fazer [com] que à Francisco Barreto a D. João IV, 12.111.1654, AHU, PA, Pco,, iv.

6 7. F. Fernandes Gama, Memórias históricas da província de Pernambuco, 4 vols., Recife,

1844-1847, à, pp. 224-5, ii, pp. 140-2.

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confidentes, o que muitos fizeram, deixando seus engenhos e fazendas que os holandeses tomaram por ausentes e os venderam a outros moradores por-

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À QUERELA DOS ENGENHOS

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OLINDA

RESTAURADA

estes [os retirados] fossem os de mais consideração, pelo que poderiam servir

o inimigo se os achasse em suas casas”; e Francisco Barreto, como vimos, re-

feriu-se a um “bando”, isto é, a uma ordem oficial neste sentido, donde a observação, anos depois, de Salvador Correia de Sá para quem a gente de

Pernambuco não seria da “mais escolhida do Reino”: a melhor havia-se refugiado na Bahia e a que ficara parecia-lhe “amiga de novidades”.” Matias usou inclusive confessores jesuítas para persuadir os pró-homens, embora vários se esquivassem, preferindo ficar a perder os bens. À afirmação de um colono de Goiana correspondia ao que se passara geralmente: ele e muitos outros haviam, “contra a sua vontade”, partido com a tropa de Camarão, e embora alguns o tivessem “acompanhado voluntariamente”, “outros tinham sido levados à força”, até mesmo quem pegara em armas contra os holandeses.

A emigração variou portanto geograficamente.” Em Ipojuca e no Cabo,

por exemplo,

ela atingiu mais de 2/3 dos senhores de engenho. Que tal se ve-

rificasse ao sul do Recife em proporções mais elevadas que na Várzea, São Lourenço ou Igaraçu, confirma que foi a intimidação, não a adesão espontânea,

o motivo principal do êxodo, de vez que os distritos meridionais constituítam o corredor natural para a retirada do exército na fase final da resistência. Se a maioria dos senhores da Várzea ficou, deveu-se a que, se tendo acolhido ao Arraial no calor dos combates, caíram prisioneiros dos holandeses, os quais lhes permitiriam regressar às propriedades. Se na área de Goiana oito fábricas em nove foram abandonadas, imputava-se ao poder de Lourenço Cavalcanti, descrito por fonte holandesa como “o instigador de Albuquerque e de outros grandes”.!º A solidariedade clânica também foi importante. Muitas famílias acharam-se na contingência de acompanhar parentes próximos ou temiam represálias pela sua participação na luta. Por outro lado, não se deve

subestimar a repulsa que amalgamava ódio ao invasor, horror ao herege e fidelidade a El Rei.

? Memórias diárias, p. 207; Francisco Barreto a D. João IV, 12.11.1654, AHU, PA, Pco.; iv.; Co.UOo., 30.1.1647, AHU, PA, Pco., 111-A.

8 DN, 10.ix.1636, CJH. 2 Fontes, À, pp. 80-95, 141-76.

0 Gisselingh aos XIX, 20.vii.1633, CJH, BPB.

320

À QUERELA DOS ENGENHOS

Os momentos principais da emigração situaram-se à raiz da queda da

Paraíba (1634), quando vários proprietários da capitania passaram a Pernambuco, tomando depois outros rumos; da rendição do Cabo e do Arraial (1635), quando os colonos pernambucanos puseram-se em marcha sob a proteção do exército de resistência, em rota batida para Alagoas e depois para a Bahia; e da perda de Porto Calvo (1637).!! Transferindo-se Matias de Albuquerque para a povoação, à espera da força naval de Lope de Hoces, seguiram-no proprietários de Ipojuca e Sirinhaém.!2 Mas antes e depois, houve

as partidas individuais: as prematuras, dos pessimistas, que desde o começo

viram as coisas malparadas; e as tardias, dos otimistas, que na expectativa da

armada restauradora esperaram até o amargo fim por uma recuperação militar que não veio. Vários emigrados não se resignaram, aproveitando-se de qualquer oca-

sião para retornar;!? e como durante a ausência as propriedades tivessem sido

confiscadas, procuraram adquiri-las à W.I.C. Entre os irmãos do morgado do

Cabo, fê-lo Felipe Pais Barreto, que regressou ao Garapu e negociou também com as autoridades holandesas a restituição à cunhada do Nossa Senhora da Guia, obtendo mesmo um preço “ameno”, tendo em vista que a família já incorrera muitos prejuízos e “por caridade não queremos fazê-la sofrer mais”. 14 Miguel Pais Barreto, contudo, foi encontrar seu engenho dos Algodoais destruído pela tropa neerlandesa que o ocupara quando do cerco do Cabo, ou talvez já revendido a Gaspar van der Ley.!? Casos semelhantes: os de João Pais Cabral, que readquiriu Santa Luzia, mas não Utinga, “muito arruinado e sem

canas”; e de João Tenório de Molina, que recomprou Maranhão e Bertioga, mos

E provável que o fracasso da armada restauradora de 1640 também tenha provocado

outras emigrações, embora sem o vulto das anteriores. Naquele ano, o governo do Recife tratava de verificar os rumores de que vários proprietários se teriam recentemente mudado para Portugal

e Bahia: DN, 22.xii.1640. Mas nem se conhece o resultado da averiguação nem há notícia de novos confiscos. 2 Memórias diárias, pp. 179-80, 203-4 e 207. '> BNL, FG 1555, fl. 215. 1á Fontes, i, p. 60; DN, 19.v.1638, CJH. > Fontes, i, p. 60; Moonen, Gaspar van der Ley, pp. 37-8.

321

OLINDA

RESTAURADA

alegando haver sido obrigado a partir. 16 Notável foi a pertinácia de D. Adriana de Holanda, viúva do senhor de Trapiche. Na marcha para a Bahia, ela desvencilhou-se do exército de resistência em Alagoas, obtendo salvo-conduto batavo. De regresso ao Cabo, gestionou a devolução do engenho, encontrando il, host a eir man de e a-s tar por com e ent orm eri ant que vez de al, ofici ição opos Contudo, sendo-lhe dada autorização para reaver 50 caixas de açúcar que deixara na casa de purgar, ei-la que, em 1636, consertara Trapiche e o repusera a moer.!”

Laços de família foram instrumentalizados. Pedro Cadena de Vilhasante, provedor-mor do Brasil em Salvador, possuía na Paraíba o São João Batista, acuid aos o aradeix , 1623 em o buc nam Per de ir part Ao ito. créd a o irid adqu dos do irmão, Jerônimo, como sócio ou como administrador. O engenho fora inicialmente confiscado, o que permitira a Pedro Cadena alegar o fato no

processo que, em Lisboa, lhe movera o credor por falta de pagamento, mas Jerônimo chegou a acordo com as autoridades holandesas, que reconheceram , azes efic eram bém tam s nova táscris es exõ Con !8 ade. ried prop de los títu seus devido à sua dispersão geográfica. Em 1623, Manuel Saraiva de Mendonça comprara o Madalena, viajando depois para Portugal. Com a ocupação, seu parente, Duarte Saraiva, membro da comunidade sefardita de Amsterdã domi-

ciliada na capitania, invocou ser Manuel seu devedor, entrando na posse do do r faze pôde se nada mas óia, tram de e ou-s onfi desc fe Reci No na. ale Mad momento em que a pretensão fora aceita pela W.LC. na metrópole. !?

O regimento de 1629 sobre a administração da colônia previra que, conquistado o Nordeste, o governo colonial confirmaria a propriedade dos bens

dos luso-brasileiros que se submetessem à nova ordem de coisas, confiscando riespí te Nes ?? es. ent sid -re não es ues tug por tos súdi a tes cen ten per os nas ape

16 Fontes, 1, p. 84; DN, 26.vi.1637, ARA, OWIC, 68. 17 Fontes, i, pp. 53-4; DN, 16.ix.1635, CJH. 11; Fon18 Vilhasante, Relação diária, pp. 96-7; idem ao conde da Torre, 5.111.1639, CCT, tes, 1, pp. 32, 93, 171, 11, pp. 49 e 75.

19 DN, 1.vi.1635, CJH; Gonsalves de Mello, Gente da nação, p. 224. s 20 “Regimento do governo das praças conquistadas ou que forem conquistadas nas Índia

Ocidentais”, RIAP, 31 (1886), p. 295.

322

À QUERELA DOS ENGENHOS

to, firmou-se o acordo de capitulação da Paraíba, mas na W.I.C. a medida encontrou oposição, sustentando-se que, presentes e ausentes, todos deveriam

ser expropriados, confiando-se a gestão dos engenhos a feitores que os dirigissem por conta e lucro exclusivos da Companhia, Um dos administradores, Servaes Carpentier, que se tornaria, aliás, proprietário rural, lembrava que,

em caso de emergência, um engenho poderia pôr em campo 30, 40 ou mais homens armados.?! Controvérsia conexa à questão da liberdade de comércio, que setores na metrópole, sobretudo os zelandeses, desejavam monopolizar em proveito da W.1.C., mas que outros, tendo à frente o poderoso /obby de Amsterdã, insistiam em abrir a todos os cidadãos das Províncias Unidas. Em ambos os temas, prevaleceu o pragmatismo visando a pôr a colônia a render no mais breve prazo. Enquanto nas Províncias Unidas não se chegava a uma decisão, o governo do Recife tratou de reativar o sistema produtivo. Em 1635, as fábricas em condições de safrejar foram concedidas a título temporário. Ora os engenhos foram confiados a um dos lavradores, geralmente o de maiores recur-

sos, que se prontificava a operá-lo contra promessa de compensação; ora os

feitores luso-brasileiros assumiram a responsabilidade. Quanto aos rendeiros que não haviam emigrado, tiveram seus contratos reconhecidos.” Mesmo os

engenhos cuja destruição os impedia de moer foram colocados sob a vigilância de luso-brasileiros.”” O governo do Recife absteve-se, porém, de adiantar recursos, rejeitando a sugestão dos senhores de engenho do sul de Pernambuco, que prometiam reembolsá-los na primeira safra, de vez que, havendo “ficado muito pobres por causa da guerra [...] não poderiam realizar tal tarefa sozinhos”, nem seria possível preservar canaviais e fábricas. O Conselho Político julgou desaconselhável “emprestar [...] aos portugueses”. É óbvio,

21 Relatório de Servaes Carpentier, 2º parte, 1636, CJH, BPB. Quando o Maranhão for

ocupado, propor-se-á a mesma política para a nova conquista: Gedeon Morris de Jonge à Câmara da Zelândia, 7.iv.1642, “Relatórios e cartas de Gedeon Morris de Jonge”, RIHGB, 58 (1895), pp. 290-1. 22 Fontes, i, pp. 62-3, 67, ii, p. 49.

23 DN, 3.xi.1635, CJH.

24 DN, 4.ix.1636, CJH.

323

OLINDA RESTAURADA

contudo, que nos engenhos confiados a feitores, teve-se de avançar recursos para compra ou aluguel de escravos e de bois, pagamento de salários, compra de lenha, reparos dos tachos e caldeiras, etc., desde que tais despesas fossem modestas.?? Da cessão interina, aproveitaram-se autoridades civis e militares a quem foi dada preferência na futura aquisição das propriedades; e também comerciantes particulares. O próprio diretor da Paraíba, Ippo Eissens, foi assassinado, como vimos, por ocasião de um assalto de campanhistas à fábrica que

se aprestava a moer.?é Associado a oficial do exército, o conselheiro Balthasar Wijntgis obteve a posse do Cunhaú, no Rio Grande, com o argumento da sua posição estratégica na baía Formosa.?” Dois dos melhores engenhos, o Velho e o Guerra, outrora pertencentes ao morgado do Cabo, foram entre-

gues a Schkoppe e ao fiscal Nicolaes de Ridder.?2 Encarregado do confisco

dos bens, que conhecia de visu, de Ridder preteriu concorrente particular, que

não tinha apoio governamental.?? Partidos cujos rendeiros haviam militado na resistência foram cedidos a autoridades.” Terras incultas, correspondendo à metade de Itamaracá, foram cedidas ao comissário de víveres da Companhia.1 O favorecimento de funcionários da W.I.C. repercutiu na metrópole, onde se inquiriu, em 1637, acerca dos negócios de Schkoppe e de Jacob

Stachouwer, que, havendo arrendado vários engenhos, “puseram-nos para

operar com escravos e empregados da Companhia”, sendo os africanos sustentados por conta da W.L.C.*? 2 DN, 26.v.1637, CJH.

26 Fontes, ii, p. 74. 27 DN, 30.i e 4.11.1636, CJH; Fontes, pp. 95 e 176. Wijntgis estará entre as autoridades

acusadas de malversações investigadas por Nassau: Fontes, ii, p. 485. *8 DN, 8.x1.1635.

29 DN, 17.ix, 8 e 12.x, 8.x1.1635, CJH. 3% DN, 22.x e 17.x1.1635, CJH. 31 DN, 3.x.1640, CJH. O comissário argumentará, aliás, que só se beneficiara da prática ante bellum pela qual os donatários cediam terras incultas em troca de percentagem do açúcar que produzissem.

32 Resoluções da Câmara da W.I.C. na Zelândia, 23.1.1637, ARA, OWIC, 34.

324

À QUERELA DOS ENGENHOS

Ao assumir o governo da colônia, Nassau trazia finalmente a decisão relativa à venda em leilão dos engenhos confiscados. Segundo Barleus, a ope-

ração rendeu à W.I.C. 2.000.000 de florins.?? Na realidade, o montante fo;

inferior, cerca de 1.500.000 para 1637-1638, resultando no preço médio de 34.000 florins. Os valores oscilaram entre 12.000 e 70.000 florins. Os preços mais baixos variaram entre 20.000 e 18.000 florins: o Marapatagipe, malgrado achar-se moente e corrente, possuía apenas meia milha de terra, na maior parte de montes, não passando sua produção de 2.000 a 3.000 arrobas: e o Salgado estava com as instalações fabris inteiramente destroçadas.3 Nos leilões, que tiveram lugar em 1637 e 1638, concederam-se, salvo exceções, prazos de seis anos, com um ou dois de carência. Das 65 fábricas confiscadas,

apenas 44 foram revendidas: 21 a holandeses, 17 a luso-brasileiros e 6 a sefarditas de Amsterdã; e a despeito de vendas esporádicas entre 1639 e 1644,

não se logrou dispor de todos os restantes 21 engenhos.

Entre os holandeses, houve, em primeiro lugar, um subgrupo de altos

funcionários civis e militares, sendo que dois deles, Stachouwer e Servas Carpentier, compraram cada qual três fábricas; e de autoridades menores como o capitão de cavalaria Gaspar van der Ley e o comissário dos víveres Jan Wynants. Outro subgrupo compunha-se de comerciantes livres, como Josias Marischal, mercador em Amsterdã, ou Isaac de Rasiêre, que servira a W.L.C. na costa leste da América do Norte e que adquiriu três engenhos na Paraíba3º 35 História dos feitos, p. 50. É provável que o montante registrado por Barleus incluísse também o valor dos outros bens luso-brasileiros confiscados pela W.L.C. 34 Fontes, 1, pp. 58 e 61. Não se levaram em consideração os engenhos vendidos a preços

inferiores, ou por se tratar de molinotes ou por estarem há muito reduzidos apenas às suas terras, como o engenho Velho de Beberibe, que fundado no século XVI por Jerônimo de Albuquerque, foi arrematado por 10.000 florins com vistas à exploração das suas caieiras. 35 Gonsalves de Mello, Gente da nação, pp. 225 e 416-8. No tocante aos judeus, nada me-

nos de quatro engenhos foram comprados por Duarte Saraiva, que já possuía interesses em Per-

nambuco anteriormente à conquista holandesa,

36 Caso atípico é o do capitão da guarda de Nassau, Charles de Tourlon, que pelo casamento com uma herdeira luso-brasileira, tornou-se senhor do engenho posteriormente chamado da Casa Forte, que reconstruiu com o equipamento fabril pilhado no Recôncavo baiano por ocasião do sítio de Salvador em 1638: F. A. Pereira da Costa, Arredores do Recife, Recife, 1981, p. 53.

325

ÓOLINDA RESTAURADA

Entre os compradores luso-brasileiros, 6 em 17 já eram senhores de engenho

e os demais comerciantes, rendeiros e lavradores de cana. Como medida de segurança, ter-se-ia preferido reservar o favor aos nacionais das Províncias Uni-

das, mas, como carecessem de experiência no ramo, a política de Nassau fo-

mentou a ascensão de novos proprietários luso-brasileiros, na expectativa de

que viriam a constituir um esteio da dominação holandesa.

Este grupo, ademais, cresceu no período 1640-1643, de vez que “pou-

co a pouco a lavoura canavieira foi voltando para as mãos dos velhos senhores de engenho, dos feitores, dos administradores brasileiros ou lusos”.?” A eles foram revendidas várias das fábricas inicialmente adquiridas por holandeses que visaram apenas aproveitar a ocasião ou que se convenceram do seu despre-

paro para geri-las, tanto mais que a inversão das expectativas otimistas preva-

lecentes em 1637-1638 passou a anunciar prejuízos. É conhecido o caso de Fernandes Vieira: feitor de Stachouwer, comprou os engenhos do patrão,

não sendo, aliás, o único a fazê-lo, pois Moreau observou que os ótimos salários pagos à categoria permitiam acumular cabedais razoáveis.” Destarte, a

ocupação estrangeira cindiu os senhores de engenho em emigrados e colaboracionistas, criando-se um grupo de novos proprietários luso-brasileiros que, em princípio, deveria ser não menos interessado que os seus pares neerlandeses e judeus na preservação do Brasil holandês. Aquela altura, muitos holandeses que persistiam na atividade açucareira já se encontravam consideravelmente atrasados em suas dívidas com a W.I.€. Fulano saldara apenas a primeira prestação do engenho, que deveria ter sido paga três anos antes, prometendo “entregar à Companhia todo o açúcar que moer nesta safra [1643-1644]”, mas tinha ao menos a desculpa das grandes

despesas não só na construção das moendas como na de uma nova levada e outras coisas”. Beltrano saldara até a segunda prestação. Sicrano ainda devia

o total de seis anos antes.“? O genro do predicante Soler viria a se suicidar,

7 Gonsalves de Mello, Tempo dos flamengos, p. 154. 38 Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, 1, pp. 92-3.

3? Moreau, Histoire des derniers troubles, p. 36.

40 Fontes, ii, pp. 147 ss.

326

À QUERELA

DOS ENGENHOS

quando os campanhistas tomaram-lhe 19 escravos, “obrigando-o, como também diversos outros, a abandonar seu engenho de açúcar”*! A posição dos compradores luso-brasileiros não era muito melhor. Jornadeando pelo sul de Pernambuco em 1643, Bullestrate ouviu as queixas dos que alegavam não poderem saldar simultaneamente as dívidas com os primeiros compradores, a quem deviam reembolsar as prestações pagas à W.L.C.; e com esta, pelas prestações que ainda estavam por amortizar.“? Veja-se o caso dos dois maiores devedores da Companhia: Fernandes Vieira e Jorge Homem Pinto. Além dos três engenhos do patrão, Vieira adquirira outros dois a particulares, endividando-se em 190.000 florins. Além do mais, tomara emprestados 39.000 florins no Recife para pô-los em condições de funcionar. Na

realidade, sua dívida era bem maior, passando dos 500.000 florins, devido a

compromissos incorridos em outros negócios, como contratos de cobrança de impostos, aquisição de escravos e de partidos de cana.*? Quanto a Jorge Homem Pinto, que adquirira seis engenhos na Paraíba e na capitania de Itamaracá, tinha um passivo de 257.356 florins.“* Se a recuperação do sistema produtivo nunca foi completa, de vez que

não se logrou voltar aos níveis de produção ante bellum, ao menos foi rápida. Para 109 engenhos que voltaram a moer nas primeiras safras, 86 fizeram-no já na de 1637-1638, enquanto 18 outros na de 1638-1639.% A reativação foi mais célere na mata norte (Igaraçu, Itamaracá e Paraíba), menos atingida pelos desastres da guerra, e nas freguesias interiores (Jaboatão, Muribeca e São

Lourenço). No extremo sul, os engenhos alagoanos, que haviam recomeçado a moer, sofreram às mãos dos campanhistas um grau de destruição que foi além da queima dos canaviais ou da matança dos animais de serviço.“6 “1 B. N. Teensma (ed.), Dezessete cartas de Vicente Joaquim Soler, 1636-1643, Rio, 1999,

p. 68.

42 Fontes, ii, p. 154. 43 Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, à, pp. 52-3 e 60-2.

44 Tbid., à, p. 58. 45 Fontes, à, pp. 80-175.

16 Em 1643, às vésperas da partida de Nassau, quando a situação ali ainda era desanimadora (“pela pobreza dos donos, ainda este ano não poderão ser postos em condições de moer”),

327

(OLINDA RESTAURADA

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A situação dos rendeiros de engenho surpreendidos pela ocupação holandesa pode ser ilustrada pelo caso do engenho Nossa Senhora do Rosário em Ipojuca. Pertencente a um fidalgo residente na Galícia, ele fora arrendado a João Carneiro de Mariz, que permanecera sob o domínio estrangeiro.

Em 1636, o governo do Recife confirmou os direitos de Mariz, que deveria

passar a satisfazer o arrendamento à W.I.C., a qual no ano seguinte lhe venderá a propriedade.“” A mesma orientação foi adotada para os partidos de cana cujos rendeiros haviam-se retirado, tanto os partidos “livres”, isto é, pertencentes ao próprio lavrador que podia, portanto, contratar a moagem no engenho que lhe aprouvesse, quanto os partidos “obrigados”, isto é, que pertencendo a senhores de engenho, eram por eles arrendados, geralmente pelo prazo de nove anos, contra a obrigação do lavrador de moer na respectiva fábrica. Também nestes casos, as autoridades neerlandesas tinham todo interesse em confirmar os contratos firmados no período ante bellum, embora procurassem sempre preservar o interesse da W.I.C. No caso de partidos cujo rendei-

ro deveria pagar parte do rendimento a terceiro ausente, a W.I.C. confirmou

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o antigo contrato, reservando, contudo, para si o açúcar correspondente à

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contribuição.* No tocante a partidos de cana vendidos à prestação por proprietários de engenho que haviam emigrado, o direito do comprador foi reconhecido, revertendo à W.1.C. o crédito devido ao antigo dono.*

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um deles achava-se reduzido à casa de purgar, “tudo mais está inteiramente arruinado”; noutro,

“somente está em pé a capela”. O Novo, que em 1639 era “um belo e valioso engenho, que pode moer com duas moendas e conta com cerca de 80 negros, 70 ou 80 bois de carro, com largas terras para canaviais e todo o material de cobre e tachos”, fora completamente incendiado por Luís Barbalho Bezerra a caminho da Bahia em 1640. O engenho Velho decaíra por falta de mãode-obra e também por este motivo o Nossa Senhora da Encarnação, embora inteiramente reparado, ainda não pudera safrejar. Outro que não encontrara comprador havia sido ocupado pelo comandante da guarnição que arrendara um dos melhores partidos a um subordinado e tentara anexálo a outro engenho, de propriedade de um neerlandês, “sem conhecimento” do governo do Recife: Fontes, 11, pp. 123 ss.

À

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47 Fontes, 1, p. 62.

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48 DN, 30.iv.1638, CJH.

| |

“ DN, 28.1.1641, CJH.

328

À QUERELA

DOS ENGENHOS

É impossível determinar, como se fez para os engenhos, o número de partidos pertencentes a lavradores que se ausentaram e dos partidos que continuaram a ser explorados por luso-brasileiros. Um índice deve, entretanto, dar uma idéia aproximada: a antroponímia lusitana e neerlandesa na relação dos lavradores constante de documento oficial, relação que, contudo, não é completa, de vez que, em cerca de 150 engenhos, apenas 90 têm seus lavradores listados, num total de 444 indivíduos. Destes, 381 (ou 86%) têm

patronímicos lusitanos, enquanto apenas 63 (ou 14%) têm patronímicos neerlandeses e/ou estrangeiros.” Destarte, a camada dos lavradores de cana permaneceu maciçamente luso-brasileira. Foi vasqueiro, em vista da sua inexperiência na gestão de engenhos, o número de holandeses que se propuseram a arrendar partidos, tanto mais que os senhores, inclusive neerlandeses e judeus, preferiam, pelo motivo oposto, os lavradores luso-brasileiros. O confisco de engenhos não representou, aliás, a única forma de trans-

ferência da propriedade, Escravos, animais, estoques de açúcar, apetrechos e equipamento agrícola e fabril passaram de mãos em condições as mais diversas, de vez que a ausência dos proprietários expuseram-nos ao roubo e à depredação.! Na impossibilidade de vender os bens ou de levá-los consigo, muitos emigrados confiaram-nos a parentes, amigos e vizinhos, ou estes mesmos se encarregaram de reivindicá-los em seus nomes.2 A título de exemplo: com a partida do senhor de Maciape, seu sogro, grande proprietário na Paraíba, subtraiu onze bois de trabalho com a cumplicidade de outros luso-brasi-

leiros. Se o caso chegou até nós é que a propriedade ainda pertencia à W.1.C., que se apressou em condenar o culpado a pagar a soma equivalente ao valor

dos animais. Quanto aos cúmplices, foram condenados a devolver cada um o duplo do número de animais que haviam escamoteado.?? Os esbulhos foram fregientes, particularmente no tocante às ordens religiosas, às confrarias e à Santa Casa da Misericórdia. Neste particular, o grande golpe foi dado por Gaspar Dias Ferreira, valido de Nassau. Sua primeira ví20 Fontes, i, pp. 142-75. 21 Ibid., , pp. 51-69.

*2 Co.Uo., 16.xii.1656, AHU, 15. > DN, 19.1.1640 e 3.x.1640.

PA,

OLINDA RESTAURADA

tima foi o mosteiro de São Bento da Paraíba, de cujos bens apossou-se, alegando que os frades lhos haviam doado ao serem expulsos do Brasil holandês. Bois, cavalos, escravos e um barco “se tomaram e se venderam por conta

do dito Gaspar Dias, sem título que válido fosse”, segundo o procurador da Ordem, ao processar os filhos do esperto lusitano.*é Pela mesma ocasião,

Gaspar apossou-se também dos bens dos conventos franciscano e carmelita da Paraíba. Conhece-se sua instrução ao procurador para assenhorear-se de “todos os bens imóveis e semoventes das três religiões [i.e., ordens] que havia na dita Paraíba”, embora os carmelitas lhos houvesse transferido para pô-los a salvo da cobiça holandesa. Ademais, Gaspar obteve ordem da autoridade religiosa para receber os rendimentos do engenho Mussurepe e dos partidos de cana pertencentes aos beneditinos de Olinda. Aumentando a confusão, os cartórios de Olinda haviam-se perdido ou destruído durante a tomada e o incêndio da vila. Roçados, sítios de pescaria, fornos de cal, casas e terrenos de Olinda, do Recife e de burgos menores, também mudaram de dono. Em Alagoas, como sempre, a situação era caótica: ninguém sabia direito o que pertencia a quem e até onde. Havendo certos sesmeiros parcelado entre colonos a extensa data de terra que lhes concedera

outrora o donatário, muitos deles se haviam retirado, levando suas cartas de

doação, o que estorvava a tarefa das autoridades holandesas de apurar a vera-

cidade das pretensões de quem ficara.” Os bens vinculados ao morgadio do Cabo, o mais rico do Nordeste, foram seriamente comprometidos pelas usur-

54 «Tivro do tombo do mosteiro de São Bento da Paraíba”, Revista do Arquivo Público de Pernambuco, 2 (1946), pp. 166 e 176; Joaquim José da Silva Castro, “Crônica do mosteiro de N.

S. do Monte-Serrat da Paraíba do Norte”, RIHGB, 27, i (1864), pp. 124-7. 5 Correspondência diplomática, i, pp. 232-3.

56 Lucideno, i, p. 276. Após a insurreição restauradora, o clero calvinista sabotou à tentativa de Louis Heyns, comerciante francês no Recife, no sentido de se entregarem os bens dos beneditinos

aos capuchinhos franceses, que se haviam instalado em Pernambuco graças à intervenção de Luís

XIII e de Richelieu junto a Nassau: Frans Leonard Schalkwijk (ed.), “A Igreja Cristã Reformada

no Brasil holandês. Atas de 1636 a 1648”, RIAP, 58 (1993), p. 247. Para os bens da Misericórdia

de Olinda, ibid., p. 258.

57 Fontes, ii, pp. 124 e 127-8; Co.UO., 6.iv.1655, AHU, PA, Pco., iv.

330

À QUERELA

DOS

ENGENHOS

pações do tempo da guerra, tanto mais que suas terras não haviam sido devidamente demarcadas.?º

No Rio de Janeiro, os retirados também se estabeleceram, inclusive com

lavoura e engenho de açúcar, como fez o senhor do Cunhaú, em sociedade com o irmão, que se fixara em Portugal.? A nova prosperidade fluminense já não se devia ao comércio do rio da Prata, que se reduziu a partir de 1640, mas aos emigrados que, levantando seus engenhos, teriam feito da capitania

8 Co.UO., 29.x1.1672, AHU,

PA, Pco., vi.

?2 Borges da Fonseca, Nobiliarquia pernambucana, à, pp. 108, 277, 280, 333 e 416; requerimento de Sebastião da Rocha Pita, 1644, AHU, PA, Ba., iv; Co.UO., 6.x.1656, AHU, PA, Pco.,

iv; "Memória de los retirados de Pernambuco”, s.d., CCT, ii; Afonso Costa, “Genealogia baiana”,

RIHGB, 191 (1946), passim.

60 Azas da Câmara de Salvador, À, p. 401, 61 Requerimento do capitão Domingos de Brito Bezerra, s.d., AHU, PA, Pco.., iii.

62 Bando de 11.11.1639 e “Lista da leva da gente que fez o Sr. Conde de Óbidos”, s.d., CCT, tt; Atas da Câmara de Salvador, à, p. 401.

63 A. J. de Mello, Biografias, iii, pp. 135-6.

331

= " o 5 —— -———— —- — =— = =

pectativa de restauração do domínio português. Muitos dedicaram-se às atividades agrícolas no Recôncavo, arrendando partidos e engenhos; ou trataram de refazer as vidas casando em famílias baianas de posse, ingressando na carreira militar ou na burocracia.”? Outros ficaram vivendo em Salvador, à custa do aluguel e venda dos escravos que haviam podido trazer consigo, aproveitando o aumento do preço da mão-de-obra africana na esteira da perda da Mina e de Angola.” Houve também quem utilizasse seus pretos no corte de pau-brasil! ou quem vivesse de expedientes, como o de tomar empréstimos a juros escorchantes. O conde da Torre procurou recrutá-los para a expedição e obrigá-los a empregar metade dos escravos no cultivo da mandioca, de modo a paliar a carestia provocada pela presença da armada.*?

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Entre os senhores emigrados, a maioria deixou-se ficar na Bahia, na ex-

-

UMA DIÁSPORA COLONIAL

ÓLINDA

RESTAURADA

a mais opulenta do Brasil, manifesto exagero. O Rio ofereceria maiores vantagens que a Bahia, onde a terra de massapê era mais cara e onde quem quisesse viver da cana via-se na contingência de ir desbravar sítios remotos, ameaçados de índios e privados das comunicações rápidas e baratas do Recôncavo. O provável, contudo, é que esta segunda prosperidade do Rio se devesse so-

bretudo ao fato de ter sido relativamente poupado dos prejuízos que a guerra naval trouxera ao açúcar brasileiro. Gente principal passou também ao Reino, a buscar compensação pelos danos sofridos por sua fidelidade a El Rei ou pelos serviços prestados na guerra. Alguns obtiveram tenças e pensões, o foro de moço fidalgo e, os mais afortunados, hábitos e comendas das ordens militares. Houve quem conseguisse a nomeação de governador de Cabo Verde ou do Maranhão, quem se arrumasse através do casamento ou quem fosse servir em Castela ou na guerra de Flandres; deles, vários permaneceriam na Espanha após a separação de Portugal, como o próprio donatário de Pernambuco e os filhos de Ambrósio Fernandes Brandão.” No século XVIII, o genealogista Borges da Fonseca sustentará que o monarca castelhano fora muito mais generoso com os seus vassalos pernambucanos do que D. João IV,ºº o que é compreensível em termos dos maiores recursos clientelísticos de que dispunham os Habsburgos. Alguns dos senhores de engenho expropriados alcançaram na Corte ou no Brasil posições de influência. A tradição pretendia que o primeiro morgado do Cabo e cabeça da família mais rica do Nordeste, teria sido em Madri capitão da guarda de Felipe IV e que houvesse servido em Flandres.” E D. S4 Representação dos homens nobres da governança da Bahia, 20.vi. 1662, Pinheiro da Silva, À capitania da Baia, p. 342. 65 Vilhasante, Relação diária, p. 240; requerimento de Cristóvão Botelho de Almeida,

17.x1.1638, AHU, PA, Pco., iii; portarias de 11.x1.1636, 29,1 e 10.11.1637 e 16.x1.1640, AGS, SP, 1533; provisão de 3.x.1641, AGS, SP, 1536; junta do despacho de Fuenterrabía, 18..1639, AG,

GA, 1258; requerimento de Jorge e Luís Brandão, 27.11.1641, AGS, SP, 1536; Francisco Barreto a D. João IV, 7.viii.1654, AHU, PA, Pco., iv.; Borges da Fonseca, Nobiliarquia pernambucana, 1,

pp. 108 e 416, e ii, p. 400. % Borges da Fonseca, Nobiliarquia pernambucana, ii, p. 326. 67 Bagnuolo à duquesa de Mântua, 6.x1.1637, AGS, GA, 1214; Borges da Fonseca, Nobiliarquia pernambucana, ii, p. 27; Loreto Couto, Desagravos do Brasil, pp. 435-6. De concreto, sabe-

332

À QUERELA

DOS

ENGENHOS

Francisco de Moura, proprietário absenteísta do engenho Cocaú, foi a verdadeira eminência parda da armada do conde da Torre, de ordem do monarca espanhol: devido à experiência militar e conhecimento da terra, o conde deveria consultá-lo nas grandes decisões, ajustando-se a seu parecer e cultivando-o pessoalmente. O conde dobrou-se às ordens, que tinham a vantagem de lhe permitir dividir responsabilidades pelo eventual insucesso da armada. Já por ocasião do Conselho de Guerra levado a efeito em Cabo Verde, ele invocou sua experiência militar exclusivamente norte-africana para transferir a D. Francisco a decisão sobre se deveria atacar Pernambuco diretamente,

como previsto, ou navegar primeiro para a Bahia.” Malgrado as recomendações régias, o ano transcorrido em Salvador bastou para incompatibilizá-los. Ao rumar contra o Brasil holandês, o conde reivindicou todo o mérito da empresa, “porque D. Francisco de Moura, que o Senhor Conde-Duque me deu por companheiro, não tem talento nem ação de homem mais que só aquela aparência [...] e como cá [na Bahia] deu com

suas irmãs e tia”, refugiadas pernambucanas, “não tratou mais que de as visitar e regalar, fazendo novenas em sua casa e erguendo-se ao meio dia”.º Após o fiasco da expedição, o conde confessará haver temido “mais as malícias e cautelas de D. Francisco de Moura e do conde de Óbidos que aos holandeses com quem pelejei”.”! Fora do Brasil holandês, os emigrados mantinham um interesse perma-

nente pela sorte das suas antigas propriedades, obtendo recomendações no se que João Pais Barreto viajara para a Espanha em 1637 mas já se encontrava na Bahia depois de 1640: Memórias diárias, p. 263; Lucideno, à, p. 275. 68 “Instrução secreta que Sua Majestade manda dar ao conde da Torre”, 21.vii. 1638, CCT, li. À indicação de D. Francisco partira do conde-duque de Olivares, provavelmente por sugestão do secretário Diogo Soares e do factotum Miguel de Vasconcelos, ambos amigos dos Moura. Quando em 1638 Madri cogitou de atrair Nassau para o projeto de entrega do Brasil holandês em troca de compensações financeiras, a execução foi confiada ao conde da Torre ea D. Francisco de Moura: conde da Torre a Francisco Vaz de Gouveia, 15.vil.1639, CCT, iii; Max Justo Guedes, “Às guerras holandesas no mar”, p. 235. 69 Junta da armada, 19.x1.1638, CCT, iii. 70 Conde da Torre ao duque de Villa Hermosa, 24.x1,1639, CCT, iii. 71 Idem a idem, 29.111.1640, CCT, iii.

353

OLINDA RESTAURADA

sentido de serem poupadas pelos campanhistas.? Em Salvador, o conde da Torre e seu Estado maior foram pressionados para que se desembarcasse o exército no Cabo, que se inculcava como o local mais apropriado em termos do sustento da tropa. À manobra, opôs-se o capitão Francisco Teixeira, que frisou a necessidade de se ouvir a opinião de pessoas que não fossem patrimonialmente interessadas, “porque alguns tratam de seu particular [interesse], parecendo-lhes que logo entrarão nestas capitanias e se aproveitarão de algumas coisas, sendo que se entende o contrário, que quando o inimigo largue alguma a há-de deixar abrasada para que de nada nos aproveitemos”.”? Contra o parecer dos que defendiam a descida em Alagoas, alegando também as facilidades de aprovisionamento, ou na Paraíba ou em Itamaracá, prevaleceu

o projeto do desembarque entre o Cabo e a barra de Sirinhaém, o que só não se verificou devido às condições de navegação que estorvaram a armada. Contudo, mesmo quando ela foi empurrada contra a costa paraibana, persístia o intento de atacar ao sul do Recife, descumprindo-se a decisão de descer na baía da Traição.“ O jesuíta Francisco Pais, testemunha ocular, atribuirá o fiasco aos emigrados do sul de Pernambuco que participavam das operações e que torpedearam a idéia de atacar no Cabo Branco ou em Goiana.”? As esperanças frustradas pelo fracasso da armada renasceram com a restauração de Portugal, que abriu caminho para os entendimentos entre Nassau

e o vice-rei, marquês de Montalvão, visando o estabelecimento da trégua. No

Brasil holandês, tentou-se abrir o problema da sucessão de proprietários luso-

brasileiros cujos herdeiros estivessem domiciliados em território português. Na Assembléia de 1640, a Câmara de Igaraçu propôs que aos testadores se per-

mitisse disporem livremente dos seus bens. Nassau indeferiu a pro posta.” Na Bahia, também esperou-se inutilmente que a reconciliação dos governos de 72 Luís Barbalho Bezerra a João Lopes Barbalho, 16.xi.1639, “Documentos pela maior parte em português sobre vários assuntos”, RIAP, 34 (1887), pp. 33-4.

/3 “Proposta que o capitão Francisco Teixeira fez”, 28.ix.1639, BA, 51-X-7. 7á Max Justo Guedes, “As guerras holandesas no mar”, pp. 280-7. 75 Padre Francisco Pais ao padre Paulo da Costa, 11.11.1640, Varnhagen, História das lutas,

p. 328. 76 Fontes, ii, p. 374.

334

À QUERELA DOS ENGENHOS

Haia e Lisboa possibilitasse uma composição. Provavelmente por insistência dos emigrados, Montalvão tentou incluir a restituição dos bens na agenda das negociações sobre a cessação das hostilidades: as instruções dadas pelo governo do Recife aos delegados que viajaram a Salvador continham a recomendação de não se admitir o assunto, tendo em vista que tais bens já haviam sido

alienados pela W.I.C.”” O tratado de trégua concluído em Haia em 1641 pôs a pá de cal nas veleidades de recuperação ou indenização dos engenhos por via diplomática. O

artigo 22 congelava a situação existente à época da aclamação de D. João IV, impedindo a instauração de processos e prevendo que as partes contratantes ficariam na posse dos bens que detinham na ocasião.” Embora o relatório da missão de Tristão de Mendonça Furtado não esclareça a história do artigo 22, suas instruções ordenavam-lhe pleitear do governo neerlandês as conquistas feitas às custas do ultramar português. Em vista da recusa oposta pelos interlocutores, o embaixador vira-se na contingência de limitar os entendimentos

a um mero tratado de trégua, de modo a salvaguardar no futuro os direitos de Portugal àqueles territórios. Destarte, a questão dos bens foi deixada para o futuro tratado de paz. O tratado de trégua foi recebido com frieza pela comunidade luso-brasileira do Brasil holandês; e os emigrados tiraram a conclusão de que só restava a solução da guerra. Já sendo este o raciocínio feito em Lisboa, data do insucesso diplomático o projeto visando fomentar uma insurreição contra o domínio batavo.

NAS ORIGENS DE 1645

A insurreição pernambucana engendrou-se numa constelação de interesses no Reino, na Bahia e no Brasil holandês. Em Portugal, o problema consiste em averiguar de onde partiram os incentivos que induziram um mo7 “Instruções dadas aos deputados que vão para a Bahia”, 20.i11.1641, RIAP, 35 (1888), p. 76.

/8 Vd. o texto do tratado de 1641 em J. F. Borges de Castro (ed.), Coleção dos tratados, convenções, contratos e atos públicos celebrados entre a Coroa de Portugal e as mais potências desde 1640 até ao presente, à, Lisboa, 1856, pp. 24-49.

335

OLINDA RESTAURADA

narca tão hesitante ou cauteloso como D. João IV a tomar a decisão temerá-

ria de fomentar a revolta contra o aliado neerlandês, que era também a maior potência naval do período, em momento já extremamente crítico para a dinastia de Bragança, acossada nas fronteiras pelas tropas do Rei Católico. É certo que o plano insurrecional previa um rápido golpe de força contra o Recife: uma operação conjunta terrestre e marítima a pretexto de ajudar os holandeses a sufocarem a rebelião. Mas a Coroa não podia ignorar a eventualidade de um meio sucesso como o que se veio a verificar, sobretudo nas suas consegiuências para as relações com Haia. Em todo caso, a decisão de abrir uma segunda frente na guerra da restauração, que a tanto montou a ajuda dispensada aos insurretos, revela não apenas certo gosto do risco e certa au-

dácia de concepção, pouco característicos de D. João IV, como também a

percepção realista das novas bases materiais da independência lusitana, o açúcar brasileiro. Não se pode assim ignorar a influência de interesses ligados ao comércio

do açúcar no levante de 1645, mediada por personalidades da Corte cujas vinculações com tais interesses podem ser dadas por assentes. À correspondência de D. Vasco Luís da Gama, marquês de Niza, membro do Conselho de Estado e embaixador em Paris, permite identificar o grupo que vendeu a El Rei o plano insurrecional. Em março de 1647, quando já se haviam manifestado suas desastrosas consegiiências internacionais, Niza reafirmava seu apoio

às negociações de paz com os neerlandeses em troca da devolução do Nordeste à W.1I.C., receando, porém, a oposição que elas encontravam em Lisboa, e que nos arrisquemos a perder tudo por um nada, que assim podemos chamar o que se ganhou. E isto por quererem fazer a sua obra aqueles que foram causa de nos vermos nessas revoltas. E foram o mesmo governador do Brasil [i.e., Antônio Teles da Silva] e o conde camareiro-mor [i.e., o conde

de Penaguião], seu amigo, moço sem experiência, e Antônio Pais Viegas, que Deus tem, que às vezes tinha opiniões terríveis; e se diz que o marquês de Gouveia e Pedro Vieira [da Silva], todos em junta particular, mas dos dois

últimos não tenho certeza. E quando se propôs no Conselho de Estado a matéria, foi todo ele contra se cometer e sem embargo disso se executou.”

79 Marquês de Niza a Vicente Nogueira, 5.iii.1647, BNL, EG, 7164.

336

À QUERELA

DOS

ENGENHOS

O marquês voltava a negar qualquer responsabilidade do Conselho de Estado. “Não fui eu dos que aprovaram as revoltas de Pernambuco, nem os

conselheiros de Estado; e nisto tem havido tantas coisas que são largas para cartas.”*º Um mês depois, Niza tirava pretexto da rebelião de Nápoles contra o domínio espanhol para voltar à insurreição pernambucana: “Isto faz o muito apertar com os povos, e não sei se bastará este exemplo para o conde camareiro-mor, grande ministro, pois também dispôs os negócios do Brasil”.º! Infere-se destas afirmações que um punhado de áulicos e de funcionários da Coroa, tendo à frente João Rodrigues de Sá e Menezes, 3º conde de Penaguião e camareiro-mor d'El Rei, conspiraram para desencadear a revolta pernambucana ao arrepio da opinião do Conselho de Estado, que era o órgão de cúpula do sistema conciliar português. A participação de Antônio Teles da Silva, governador-geral,º2 era conhecida na época, inclusive em Haia: ele assumira em 1642 e passara imediatamente a articular a insurreição, embora o sinal verde de D. João IV só fosse dado em começos de 1644. A historiografia ignorou, contudo, o papel de Penaguião, a que não estaria alheio interesse seu ou de família no engenho do Moreno, em Pernambuco.º” O embaixador em Haia, Souza Coutinho, tampouco deixa dúvida

80 Tdem a Francisco Taquete, 22.vii. 1647, BNL, FG, 2667. 81 Idem a Cristóvão Soares de Abreu, 23.viii.1647, BNL, FG, 2667. 52 Na Bahia, ele dedicou-se ao negócio do açúcar, mantendo relações comerciais inclusive com Fernandes Vieira: Virgínia Rau, “Fortunas ultramarinas e a nobreza portuguesa”, Revista Portuguesa de História, 8 (1961), pp. 1-8.

53 O engenho que ficará conhecido por Moreno (Jaboatão) já existia em 1593, pertencendo a Duarte Dias Henrique, comerciante em Olinda e membro de uma família cristã-nova com ramificações comerciais na Península Ibérica e no ultramar. Em 1623, o engenho aparece listado no nome de Baltasar Gonçalves Moreno, altura em que Duarte Dias regressara à Europa, onde fará

parte do grupo de banqueiros portugueses da Coroa espanhola, ali falecendo em 1631, Baltasar, provavelmente rendeiro ou administrador, permaneceu à frente da propriedade sob o regime holandês. Em 1654 Francisco Lopes Henrique alegava os direitos de sua mulher à propriedade, na condição de prima dos herdeiros já desaparecidos do antigo senhor. El Rei deferiu o requerimento mas a reintegração ficou na dependência da decisão final sobre os engenhos confiscados. Em 1689, o engenho pertencia à condessa viúva de Penaguião, que o vendeu. Ela fora sogra de Francisco Barreto, já falecido àquela data, o qual, de regresso a Lisboa em 1665, casara-se com filha

337

ÓLINDA RESTAURADA

sobre a atuação do camareiro-mor e dos seus amigos na oposição à paz com as Províncias Unidas. De Lisboa, chegavam-lhe notícias de que Penaguião desejaria substituí-lo para mudar o rumo da negociação.é Também chegara

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aos ouvidos do governo do Recife que seu parecer contra a restituição do Nordeste teria sido decisivo.º? E Ericeira alude à estima em que El Rei o tinha.ºº Os outros nomes citados por Niza são, exceto o de Antônio Teles, de

indivíduos do círculo imediato de D. João IV, sendo que alguns deles, como Antônio Pais Viegas, secretário particular, e o marquês de Gouveia, D. Henri-

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também viúva da condessa. O casamento, que subentendia a existência prévia de relações estreitas entre a casa de Penaguião e Barreto, esclarece a surpreendente designação deste último para mestre-de-campo general do exército de Pernambuco em 1647, designação que tivera de vencer a oposição do Conselho de Estado, As hipóteses segundo as quais Moreno teria ido às mãos da condessa em data posterior à restauração pernambucana não parecem convincentes. Joaquim de Souza Leão filho sugeriu que ela podia ter herdado do genro, que o teria adquirido durante seu governo de Pernambuco. Mas nem a lista de proprietários em 1655 nem o testamento de Francisco Barreto registram o fato, podendo ser afastada também a possibilidade de que Barreto se tenha beneficiado de doação régia. Por outro lado, é plausível que Duarte Dias tenha tido negócios com a Casa de Penaguião. Outra pista: a filha de Penaguião que casará com Francisco Barreto fora consorciada em primeiras núpcias com Antônio de Castro, filho do conde de Basto e cunhado do donatário

Duarte de Albuquerque Coelho. Em função de parceria de Antônio o engenho poderia ter passado à sua viúva e, falecida esta, à sua mãe, fim, hipótese mais provável, Moreno teria sido doado por D. João quando, à raiz da Restauração portuguesa, a Coroa confiscou os bens

de Castro com Duarte Dias, condessa de Penaguião. Por IV ao conde de Penaguião, dos vassalos que haviam per-

manecido na Espanha (o caso precisamente dos herdeiros de Duarte Dias), entregando-os a ter-

ceiros em pagamento de dívidas: Denunciações e confissões de Pernambuco, pp. 82 e 205; Fontes, à, pp. 29, 85, 146 e 237; Joaquim de Souza Leão filho, Morenos. Notas históricas sobre o engenho no

centenário do atual solar, Rio, 1959, pp. 8-9; Co.UO., 16.vi.1654, AHU, PA, Pco., iv; Os manuscritos da Casa de Cadaval, 1, p. 54; Gonsalves de Mello, Testamento do general Francisco Barreto de Menezes, pp. 11 e 15; J. A. Gonsalves de Mello, “Os livros das saídas das urcas do porto do Reci-

fe”, RIAP, 58 (1993), pp. 45-6; James C. Boyagian, Portuguese bankers at the court of Spain, pp. 34 e 128.

84 Correspondência diplomática, iii, pp. 103, 122, 132, 168 e 172. 83 Ao.Go. aos XIX, 20.xii.1652, CJH, BPB. 86 Conde da Ericeira, História de Portugal restaurado, 4 vols., Porto, s.d., 1, p. 137, ii, p.

392.

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A QUERELA

DOS

ENGENHOS

que da Silva, mordomo-mor, o serviam desde antes da sua elevação ao trono. Quanto a Pedro Vieira da Silva, era secretário de Estado. Tem-se, pois, a impressão de estar em presença de uma espécie de kitchen cabinet que, se valendo da proximidade ao monarca, atuasse por conta própria, à margem da maquinaria institucional dos conselhos. A atuação dos emigrados na Bahia permaneceria impressentida pela historiografia devido à circunstância de que as fontes narrativas da restauração

pernambucana

reivindicaram todo o mérito para Fernandes Vieira, tendo

ademais o cuidado de preservar, para consumo internacional, a versão segundo a qual os sucessos do Nordeste haviam constituído uma resposta espontânea e local aos desmandos das autoridades neerlandesas, sem envolvimento da Coroa ou de seus representantes em Salvador. À realidade é que vários emi-

grados participaram da articulação do levante de 1645 ou voltaram a Pernambuco para dele participar. Como dirá um deles: do restabelecimento do domínio lusitano dependia “o remédio de minha casa e família, pois não tenho em Portugal fazenda nenhuma com que me sustente e remedeie meus filhos, que totalmente ficarão perdidos se o Brasil se não restaurar”. Veja-se o caso de Simão Álvares de la Penha Deusdará, que Nassau des-

creverá como “o maior velhaco de todo o Brasil e indubitavelmente o único causador e instigador de todos os rebeldes”, “um homem de grandes recursos e que tem o governo da Bahia inteiramente na sua mão, opinião em que

concorriam as autoridades do Recife, considerando-o “um dos principais e

primeiros responsáveis desses tumultos”.88 Simão Álvares herdara do pai as rendosas provedorias da Fazenda e da Alfândega de Pernambuco e tendo emigrado para Salvador em 1635 casara-se ali com uma irmã do padre Antônio Vieira.” Em 1641 e 1643, a pretexto de missão oficial, veio ao Brasil holan-

dês a fim de articular a insurreição. Deflagrado o movimento, foi nomeado ouvidor em Pernambuco, para onde viajou na companhia de Francisco Barreto, sendo ambos capturados no mar e levados para o Recife, de onde conse-

87 Pedro Cadena de Vilhasante ao conde da Torre, 5.111.1639, CCT, ii.

88 Ao.Go. aos XIX, 25.v.1647, CJH. BPB; XIX ao Alto Governo, 29.viii.1647, CJH, RUB.

2 Borges da Fonseca, Nobiliarquia pernambucana, 1, pp. 333-4; Cartas do padre António Vieira, ii, p. 247.

339

OLINDA RESTAURADA

guiram evadir-se. Como prêmio dos seus serviços, será nomeado desembargador da Relação, podendo orgulhar-se de ter sido o primeiro membro do tribunal nascido no Brasil. À outro pernambucano expropriado, D. João de Souza, que militara com distinção na campanha do Alentejo, participando da batalha de Montijo (1644),?! coube subornar o comandante holandês do Cabo, aproveitando-

se de missão do governo do Recife em Salvador para obter a entrega da fortaleza, condição sine qua non do êxito do plano insurrecional.?2 D. João era neto do ex-governador-geral, D. Francisco de Souza, que falecera como superintendente das minas de São Paulo. Seu paí, D. Luís de Souza (que não deve ser confundido com o primo homônimo que também governou o Brasil

no segundo decênio de Seiscentos), casara-se em Pernambuco com uma filha de João Pais Barreto, o Velho, recebendo em dote o engenho Jurissaca, D. João era também interessado no engenho Jacaré, que viria a herdar do

morgado do Cabo, o segundo João Pais Barreto.?? Ele pertencia assim à família que representara a maior concentração de poder econômico no período ante bellum, já que seus parentes haviam possuído nada menos de nove

ou dez engenhos no Nordeste, sendo o exemplo conspícuo dos familiares dos

senhores de engenho confiscados que, havendo seguido a carreira militar, regressaram a Pernambuco como oficiais do exército restaurador.?* “º DN, 21, 22 e 23.v.1647 e 13.vii.1648, CJH; Stuart B. Schwartz, Sovereignty and society in colonial Brazil, Los Angeles, 1973, p. 347-8. 21 Loreto Couto, Desagravos do Brasil, p. 90. 22 Memorável viagem, pp. 146-8.

25 Pereira da Costa, Anais pernambucanos, iii, p. 64. D. João de Souza achava-se em Pernambuco em 1648 à frente de uma companhia do terço de Francisco de Figueiroa: História da guerra, p. 561. 24 Este foi também o caso de Manuel de Moura Rolim e de Felipe de Moura e Albuquerque, filhos do senhor dos engenhos São João Salgado e Tabatinga em Ipojuca; de Afonso de Albuquerque Melo, filho do antigo proprietário do Nossa Senhora do Rosário em Sirinhaém; o de Antônio de Ataíde de Albuquerque, filho do senhor do engenho Jaguaré, também em Sirinhaém; o de Lopo de Albuquerque, filho da proprietária do Nossa Senhora da Palma, na mesma freguesia; o de Alexandre de Moura, filho da senhora do engenho Guararapes (Muribeca); o de João do Rego Barros, filho do dono de Maciape (São Lourenço): Borges da Fonseca, Nobiliarquia pernambucana, à,

340

A QUERELA DOS ENGENHOS

À preparação do levante de 1645 não foi tampouco estranha a necessi-

dade de aliviar a Bahia do sustento da gente de guerra de Pernambuco, que

dava azo a intermináveis querelas administrativas entre a Câmara, 0 governogeral e o exército. À situação da capitania, já precária devido à ofensiva naval holandesa, deteriorara-se a partir de 1641 com a interrupção do comércio do rio da Prata e com a perda de Angola, seu principal mercado de mão-de-obra. Um senhor de engenho do Recôncavo lamentava-se de que “as coisas da Bahia vão em grande declinação”, o que atribuía à maneira inconsiderada com que se haviam criado novos tributos.” Apesar dos riscos a que se exporia Salvador, a insurreição em Pernambuco permitiria atenuar os ônus da manutenção de 1.500 soldados das capitanias de cima, cujos motins e assuadas eram

de temer, dado o descontentamento reinante entre eles devido à má alimen-

tação e ao fim das cotrerias contra o Brasil holandês, de que se beneficiavam as custas da população.é Por óbvio que fosse o desejo dos senhores expropriados de reaverem seus bens, no Brasil holandês não pareciam tão evidentes assim os motivos que levaram proprietários de engenhos confiscados, a começar por Fernandes Vieira, a empresarem uma revolta destinada a restaurar o domínio da Coroa portuguesa, isto é, da ordem jurídica que legitimara os direitos dos anteriores donos. Já foi analisado o endividamento da açucarocracia com a WI.C. e o

papel fundamental que teve na eclosão do movimento restaurador7 argumento utilizado na época pelos que, como o padre Antônio Vieira, opunhamse ao movimento e desejavam torná-lo suspeito a D. João IV, Caberia, porém, averiguar a relação entre endividamento e aquisição de engenhos confiscados. Em 17 senhores luso-brasileiros devendo à W.I.C. quantias superiores

pp- 149, 492-3, ii, pp. 401, 422; Fontes, i, passim; F. A. Pereira da Costa, Dicionário biográfico dos pernambucanos célebres, Recife, 1887, pp. 2 e 296. Os exemplos acima são, portanto, limitados aos parentescos de primeiro grau, de vez que se o exame genealógico fosse estendido, resultaria numa teia de interesses muito mais densa e complexa. 25 Papel de Gaspar de Brito Freire, 1644, AHU, PA, Ba., Iv.

%6 Sebastião de Brito a D., João IV, 30.,.1643, AHU, PA, Ba., iv; Co.Uo,, 28.xi . 1648, AHU, PA, Ba., v.

?/ Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, 1, pp. 105-27.

341

OLINDA RESTAURADA

a 10.000 florins, 11 eram proprietários deles. O total das dívidas desse subgrupo, de 2.000.000 de florins, coincidia grosso modo com o prejuízo incor-

rido pela W.L.C. com a venda dos engenhos, avaliado por folheto neerlandês

da época em 1.829.602 florins. Enquanto isto, no montante de 22.000.000 de florins a que ascendiam as dívidas, de toda natureza, de holandeses, judeus e luso-brasileiros, as destes últimos totalizavam apenas 4.642.196 florins.? O endividamento dos luso-brasileiros que haviam adquirido engenhos confiscados equivalia a menos de 10% da dívida à W.I.C. e a cerca de 40% da dívida de luso-brasileiros. Este passivo, mais do que prejuízo intolerável para a W.I.C., tornara-se insuportável para os devedores, de vez que a ele

somavam-se os demais compromissos incorridos com maquinaria, escravos e

animais no reequipamento das fábricas. A documentação não permite discriminar entre endividamento à W.I.C. e a comerciantes particulares, mas sabe-

se que no caso de Fernandes Vieira, cujas finanças foram esmiuçadas por Gonsalves de Mello,?? os débitos contraídos na aquisição de quatro engenhos equivaliam a pouco mais de 40% do total da sua dívida. Seu exemplo, contudo, não pode ser considerado médio ou típico, de vez que, como assinalado, suas obrigações originavam-se também de atividades financeiras, como a arrematação da cobrança de impostos.

Deste ângulo, a insurreição restauradora teria sido não só uma revolta de devedores como também de colaboracionistas dispostos a matarem dois

98 «Generale staet vande Geoctroyeerde West Indische Compagnie getrocken uit de balance van de generale boecken gesloten ultimo Dec. 1645”, ARA, OWIC, 62, transcrição gentilmente fornecida por J. A. Gonsalves de Mello; “Lista dos devedores portugueses da Companhia das

Índias Ocidentais”, Adriaan van der Dussen, Relatório sobre as capitanias conquistadas no Brasil pelos holandeses (1939), tradução e notas de J. A. Gonsalves de Mello, Rio, 1947, pp. 149-57; “A bolsa do Brasil”, RIAP, 28 (1883), p. 164. Diga-se em favor dos luso-brasileiros que os compradores holandeses e judeus de engenhos confiscados mostraram-se igualmente remissos para com a W.LC. Dos 23 holandeses que os adquiriram, 12 não pagaram um único florim e o restante não chegou a

satisfazer a metade dos seus débitos, salvo os irmãos Olen. Houve ademais quem, como Gaspar van der Ley, não havendo pago, ainda logrou hipotecar o engenho por montante superior ao duplo da soma pela qual se havia engajado: Van der Dussen, Relatório, pp. 157-61; e Moonen, Gaspar van der Ley, pp. 37-43. 99 Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, 1, pp. 59-62.

342

À QUERELA DOS ENGENHOS

coelhos de uma só cajadada: livrarem-se das dívidas e garantirem a posse dos engenhos vis-à-vis dos antigos proprietários, à custa dos quais poderiam alegar o mérito maior de terem restaurado o Nordeste com o seu sangue e os seus bens. À estes homens novos, o dilema devia apresentar-se desta maneira: ou participar do movimento que a Coroa tencionava fomentar no Brasil holandês, ganhando a chance de preservar seus bens na eventualidade de éxi-

to, embora perdendo-os em caso de insucesso; ou serem marginalizados pelos antigos proprietários que, vitoriosa a empresa, seriam reintegrados na pos-

se dos engenhos. Enquanto Fernandes Vieira ou Amador de Araújo, por exemplo, optaram pela primeira alternativa, o maior devedor de todos, Jorge Homem Pinto, senhor de vários engenhos na Paraíba, fez inicialmente o outro cálculo. Por sua vez, a Coroa estava perfeitamente consciente de que era indispensável obter o apoio dos pró-homens luso-brasileiros do Brasil holandês, pois a insurreição não poderia ser imposta de fora. A questão já se colocara quando da expedição do conde da Torre, que recebera o poder de anistiar os antigos vassalos, do qual deveria fazer uso no momento oportuno e com a mira “em alguma facção grande”, entenda-se, num movimento armado contra os holandeses. No Brasil, ele procurara sincronizar o ataque naval com uma re-

volta no interior, mas como não obtivera reação favorável, desistira da idéia,

embora mantendo a esperança de que, desembarcadas as tropas, ela ocorreria espontaneamente.!ºO Em 1640, os novos senhores ainda não tinham razões de queixa e os antigos estavam escarmentados pela repressão da conjura em que alguns se haviam envolvido dois anos antes. Todos estavam cientes,

inclusive em Portugal, de que enquanto Nassau permanecesse à frente do

governo do Recife, a revolta teria possibilidades escassas. O punhado de indivíduos que a empresou, inclusive Fernandes Vieira, jogou até o último minuto a carta da permanência do conde governador no Nordeste.!º1

100 “Instrução secreta que Sua Majestade manda dar ao conde da Torre”, 21.11.1638, CCT, 1; conde da Torre ao duque de Villa Hermosa, 15.1v.1639, CCT, iii.

101 Evaldo Cabral de Mello, Nassau, São Paulo, 2006, pp. 184 ss,

343

OLINDA RESTAURADA

A QUEDA DO PREÇO DO AÇÚCAR E A CRISE DO BRASIL HOLANDÊS

A relação entre compra de engenhos confiscados e endividamento lusobrasileiro é particularmente visível no pequeno grupo que organizou a in-

surreição restauradora. Quanto à grande maioria dos luso-brasileiros que ha-

viam permanecido no Brasil holandês, continuando a gerir suas fábricas e canaviais, o endividamento à W.L.C. e ao comércio do Recife, sobretudo em

função da compra financiada de escravos, também se tornara insustentável

com a queda do preço em Amsterdã. As séries compiladas por N. W. Post-

humus na sua obra monumental sobre a história dos preços na Holanda! permitem acompanhar de perto este declínio, que, usando o jargão econômico, reverteu bruscamente as expectativas ao incidir sobre a falsa euforia criada no Brasil holandês pelo fim da guerra e pelo programa nassoviano de reativação econômica, que além da venda a crédito dos engenhos confisca-

dos, promovera crédito abundante e fácil por parte da W.I.C. e do comér-

cio particular.

Ao cabo de um período secular de alta do preço do açúcar, ocorreu entre 1638 e 1643 a redução significativa dos preços dos vários tipos do produto negociados em Amsterdã, seguindo-se recuperação parcial a partir de 1645,

devido precisamente ao início da insurreição, que o tornou relativamente es-

casso. Entre 1634 e 1637, a média anual da libra do açúcar mascavado passou de 0.50 florins a 0.67 florins; em 1638, porém, caiu para 0.54 e desde então até atingir 0.31 em 1643. O mesmo aconteceu ao açúcar branco. Em

1636, seu preço caíra a 0.60 florins, recuperando-se em 1637 mas caindo no-

vamente a 0.44 em 1643. Movimento idêntico descrevem as curvas das médias anuais do açúcar cristalizado, do retame e do açúcar refinado nas Províncias Unidas: queda pronunciada a partir de 1638, nível mais baixo em 1643; recuperação parcial a partir de 1645.1903

102 N,. W. Posthumus, An enquiry into the history of prices in Holland, 2 vols., Leiden, 1946-

1965, 1, pp. 119, 122, 130-1, 134, 139 e 503.

103 As séries de Posthumus não incluem dados referentes ao ano crucial de 1644, mas não

há motivos para pensar que a tendência declinante se tenha invertido antes de 1645.

344

À QUERELA DOS ENGENHOS

No Recife, os preços também caíram.!“ O ano de 1638 ainda foi de alta mas em 1639 o declínio se manifestou. Por outro lado, sem correspondência

com as séries de Amsterdã, houve aumento em 1642, provocado pela redução do volume exportado em vista de enchentes e de uma epidemia entre os escra-

vos. É expressivo também o paralelismo entre os preços na Holanda e o volume das exportações do produto.!?? Ao aumento constante dos preços entre 16311636 corresponde o incremento contínuo do açúcar exportado, notável naquele último ano devido ao escoamento de safras anteriores que, por causa

da guerra, haviam sido retidas pelos engenhos e trapiches, donde o retorno em 1637 ao nível real das possibilidades de um sistema produtivo desorganizado pelo conflito. Em meados deste ano, já não existiam estoques: “os açúcares que os particulares ainda acharam aí nos dois últimos anos [...] já se aca-

baram e com eles todos os açúcares velhos foram levados para fora da terra”.106 A queda do preço do açúcar seria meramente conjuntural ou deve ser

encarada em termos de uma incipiente crise de superprodução, como a que,

alguns anos depois porém em maior escala, resultará do ingresso das colônias antilhanas no mercado internacional? O aumento das exportações do Brasil holandês de 1638 a 1641 terá desempenhado seu papel; pela primeira vez, as Províncias Unidas tinham acesso direto às fontes de produção brasileira. Mas no biênio 1642-1643 (e certamente em 1644), volume exportado e preços

caíram simultaneamente em Amsterdá. É só a partir de 1645 que as variáveis descolam: enquanto o volume exportado continua a decrescer devido à insurreição, os preços em Amsterdã recuperam-se. O provável é que os grandes estoques em mãos dos comerciantes da metrópole expliquem o declínio paralelo. Com a Restauração portuguesa e o reinício das relações comerciais com o Reino, as Províncias Unidas voltaram a receber açúcar da Bahia ou do Rio 104 Como se vê da tabela compilada por Watjen, O domínio colonial holandês no Brasil, pp. 437.

105 Tbid., pp. 494-509. 106 Arciszewski a Nassau, 24.vii. 1637, “Documentos pela maior parte em português”, p. 7. No caso do pau-brasil ou “madeira de Pernambuco” como era conhecido nas Províncias Unidas, o movimento é ligeiramente distinto, a queda do seu preço antecipando-se à do açúcar, pois já se acusa em 1632, atingindo seu fundo em 1640, sem que uma recuperação substancial venha a se verificar até pelo menos 1645: Posthumus, An enquiry, i, p. 522

345

OLINDA RESTAURADA

de Janeiro através de Lisboa, provocando a saturação do mercado neerlandês, de vez que o produto importado e, em boa parte, reexportado para o norte

da Europa, procedia também da Ásia, que supria cerca de um quarto das im-

portações do país, donde ter-se também reduzido sua entrada, na esteira da crise.*2” Barleus, por exemplo, culpou o similar oriental pelas dificuldades do açúcar brasileiro. !º8 Noutra perspectiva, a queda do preço do açúcar poderia ser encarada como sintoma da reversão da tendência secular à expansão. Que houve causas duradouras, indica-o a moderação com que se recuperaram os preços entre 1645 e 1654, a despeito da perda da produção do Nordeste, que só continuou a chegar às Províncias Unidas nos porões dos corsários. O processo de reversão na Europa seiscentista é, aliás, questão particularmente controversa,

inclusive em função de não se haver uniformemente deflagrado, antecipando-se na Espanha em dois ou três decênios relativamente à Europa do norte.102 Os dados referentes ao preço do trigo, que ocupava posição predominante na economia do Antigo Regime, indicam que, nas Províncias Unidas,

“a grande crise do século XVII” manifestou-se a partir de 1640, embora, em

termos nominais, não ocorra antes de 1651-1652.!19

107 Israel, The Dutch republic and the Hispanic world, p. 332; Niels Steensgaard, “The growth

and composition of the long-distance trade of England and the Dutch republic before 1750”, James Tracy (ed.), The rise of the merchant empires. Long-distance trade in the early modern world, 13501750, Cambridge, 1990, pp. 133-4,

108 Flistória dos feitos, p. 338. 109 Na Espanha, de que dependia a economia européia para o suprimento de metais preciosos do México e do Peru, os anos 1593-1622 assistiram aos primeiros sinais de recessão. Para a área mediterrânea, Braudel, que pensara originalmente em termos de 1610 a 1620, veio a rever sua posição, recuando para o decênio de 1650 o início do grande retrocesso. Pode-se, contudo, afirmar sua vinculação à crise conjuntural de 1619-1623 e, grosso modo, datar sua fase mais aguda do período 1640-1670, a qual, não fosse a combinação da Guerra dos Trinta Anos com as políticas de desvalorização monetária, teria possivelmente ocorrido desde o segundo decênio do século: Braudel, La Mediterranée et le monde mediterranéen, ii, p. 215, e juntamente com Frank Spooner,

“Prices in Europe from 1450 to 1750”, The Cambridge economic history of Europe, iv. The economy ofexpanding Europe in the 16th and 17th centuries, Cambridge, 1967, p. 405. HOT. G. van Dillen, Van rijkdom en regenten, Handboek tot de economische en sociale geschiedenis van Nederland tijdens de Republiek, Haia, 1970, p. 496.

346

À QUERELA DOS ENGENHOS

Como a pimenta, tão importante quanto o açúcar, alcançou o pico em 1638, Chaunu sugeriu que a reversão dos preços dos produtos coloniais situou-se em 1637 e 1638, anos que “marcam, com efeito, o ponto de partida de uma fase de século e meio de baixa que [...] se prolonga até um ponto mal determinado da década de oitenta do século XVIIP. E aduz o historiador fran-

cês: “em geral, os preços alcançados em 1637 [...] não serão igualados antes de 1765 para a pimenta (a prosperidade do pós-Guerra dos Sete Anos) e antes do começo do século XIX para o açúcar”. A maior sensibilidade conjuntural dos produtos coloniais dever-se-ia a que são “os mais amplamente integrados numa economia de grandes trocas marítimas”. A queda do preço do açúcar incidiu em plena fase de expansão no Brasil

holandês, provocando a brusca contração do crédito e das atividades produti-

vas, embora na época se atribuíssem as dificuldades a causas puramente locais ao nível da produção, enchentes, estiagens, epidemias e destruições dos campanhistas, que poderiam ter sido superadas caso a conjuntura internacional hou-

vesse sido favorável. Era, aliás, característico da mentalidade econômica da

época a explicação de problemas econômicos por fatores exógenos.!!2 Pierre Chaunu teve a intuição das raízes da crise que levou à insurreição restauradora, ao afirmar que “o colapso do preço do açúcar em Amsterdã [...] destruiu este muro frágil de contentamento” que foi o governo de Nassau.!!? Realmente, nada mais precário que a Idade de Ouro do Brasil holandês, pois apenas iniciada, já se deterioravam na metrópole as condições que a possibilitavam. De imediato, contudo, não se percebeu a defasagem entre as expectati-

vas comerciais de lá e de cá, malgrado se terem feito sentir desde 1630-1634

“as primeiras viragens dos preços em Amsterdá”.!“ Ao contrário, com a expulsão do exército de resistência para o sul do São Francisco, uma grande euforia prevaleceu no Brasil holandês. O governo nassoviano revendeu a prazo os engenhos confiscados; negociantes particulares e a própria W.I.C. passa-

!H Chaunu, Séville er PAtlantique, viii, pp. 1.788-9. 12 Charles Wilson, England's apprenticeship, 1603-1763, Londres, 1965, p. 53. '!3 Pierre Chaunu, L'Amérique et les Amériques, Paris, 1964, pp. 138 e 148. A conjuntura dos anos quarenta também abalou as feitorias da W.I.C. no vale do Hudson. H4 Chaunu, “Brésil et Atlantique au XVIlême siêcle”, p. 1198.

347

eg

ET

OLINDA

RESTAURADA

ram a financiar a produção de açúcar; e o governo neerlandês adotou para a colônia uma política que restringiu o monopólio da Companhia ao tráfico de

escravos, pau-brasil e munições, e abriu o comércio, inclusive o do açúcar, a

todos os acionistas, o que não era propriamente uma exigência discriminatória

de vez que as ações da empresa estavam amplamente disseminadas na metrópole. A favor do “comércio livre”, que não se deve, portanto, confundir com

o livre-cambismo do século XIX, haviam-se manifestado Nassau, os senho-

res de engenho e os lavradores de cana, embora aos interesses de Amsterdã se devesse o impulso determinante. Ao otimismo não corresponderam, porém, antes de 1641, as condições de segurança no interior do Brasil holandês. Só

com a trégua então concertada é que se verificou “um rápido desenvolvimento comercial”, a ponto de se concluírem “transações de muitos milhões em curto espaço de tempo”.!> Mas o artificialismo da situação era palpável. Endividados com a W.L.C. e os negociantes particulares na aquisição de escravos, cobres e ferramentas, os devedores rurais não pagavam. Em 1641, na sua viagem pelo sul de Pernambuco, o conselheiro Bullestrate ouviu queixas sobre a invernada braba, a mortalidade dos escravos, os incêndios ateados pelos campanhistas, regressando ao Recife com promessas, aqui de entregar 30 caixas no fim da safra, ali a metade do açúcar produzido, ou então recebendo a desculpa do devo, não nego, pago quando puder, e até mesmo pedidos de créditos adicionais. Se o devedor estava ausente, o funcionário não hesitava em tocar no assun-

to com a senhora do engenho, o que podia ser costume holandês mas era im-

perdoável falta de tato entre portugueses. E havia o clamor geral contra o preço dos africanos que os judeus do Recife adquiriam à W.I.C. para reven-

der por valores tão elevados que inviabilizavam a produção de açúcar. Particularmente onerados achavam-se os proprietários de segunda mão dos engenhos confiscados, tendo de pagar ao mesmo tempo à W.I.C. e ao primeiro comprador.! 6 Em fins de 1642 e começos de 1643, a crise atingiu um ponto insuportá-

vel, quando o governo do Recife, falto de meios, teve de recorrer à cobrança

15 Memorável viagem, p. 7/9.

16 Fontes, ii, pp. 149-155, 163 e 183.

348

À QUERELA

DOS

ENGENHOS

de dívidas de modo a suprir as guarnições e pagar o funcionalismo.!!” Os comerciantes da metrópole, que detinham 75% das exportações de açúcar, “passaram a exigir de seus representantes e comissários no Brasil importantes somas em pagamento do que lhes haviam fornecido”, provocando “grande escassez de numerário” e encarecendo o crédito, a ponto de se cobrarem juros mensais de 3% a 4%.!!8 Os negociantes recifenses cobraram dos mercadores do interior e ambos executavam os devedores, que, por sua vez, recorriam à justiça ou se ausentavam, colocando-os na contingência de abandonar seus afazeres comerciais para gerir a propriedade; se o devedor era preso, sua manutenção tornava-se tão dispendiosa que o próprio credor vinha pedir a libertação.!!” Em agosto de 1643, quando Nassau ainda estava no governo, notíciava-se na Holanda a quebradeira de comerciantes do Recife e o retorno de 15 ou 20 chefes e agentes de estabelecimentos comerciais. Em meados de 1644, a crise brasileira teria levado à bancarrota “muitos mercadores de Amsterdã e alguns deles, os de maior cabedal que ali havia”.!20 É possível que haja exagero da parte do informante, como também da parte de Moreau, ao mencionar que “mais de duas mil famílias opulentas” teriam ficado arruinadas pela insurreição luso-brasileira.!2! Outros índices repetem a história: o valor dos imóveis no Recife baixou de um terço;!22 a receita fiscal, que em 1639 atin-

gira o pico (401.000 florins), caiu em 1644 para 284.000 florins; os dízimos

do açúcar de Pernambuco, de 154.000 florins em 1641, declinaram regularmente no triênio seguinte para 105.000 florins; a venda de escravos decres-

17 O relato coevo da crise econômica foi feito pelo Alto e Secreto Governo (que substituiu a administração nassoviana) para justificar-se diante dos ataques que lhe eram feitos nas Províncias Unidas; Nieuhof seguiu de perto sua versão: Fontes, ii, pp. 201-2, e Moonen, Gaspar van der Ley, pp. 97-100, A análise de Watjen não ultrapassou, aliás, tais fontes, nem privilegiou o papel da queda do preço do açúcar, a despeito de citar as reclamações relativas “às condições desfavoráveis do mercado do açúcar: O dominio colonial holandês no Brasil, p. 329.

8 Memorável viagem, pp. 79-80; Van Dillen, Van rijkdom en regenten, p. 155. 19 Fontes, ii, p. 237. 120 Correspondência diplomática, 1, pp. 86 e 162.

121 Moreau, Histoire des derniers troubles, p. 201.

22 História dos feitos, p. 335.

349

OLINDA

RESTAURADA

ume vol o ora emb e, ent alm nci sta sub xou bai o preç o e 3 164 de ir part a ceu

importado tenha subido até o ano seguinte, em prejuízo da W.I.C. e dos intermediários; o tráfego marítimo contraiu-se de 56 embarcações em 1641 para

29 em 1642, 27 em 1643 e 14 em 1644.!*

Outro indício da crise é a queda das ações da W.1.C. na bolsa de Amsinom r valo do % 134 e % 120 de caiu r valo seu , 1650 e 1640 e Entr á. terd nal para 14% e 16%.!2* Em julho de 1643, quando Souza Coutinho chesou a Haia, o preço equivalia a 95%. Em novembro estava a 80% e mesmo ao se conhecer a derrota inflingida à resistência portuguesa em Angola, ele não se recuperou, achando-se a 77%. Em abril de 1644, batia em /0%; em

julho, em 50%, atingindo em seguida o nível mais baixo do período, 37%,

de ara pass o açã cot a s, mese 14 Em . ole róp met à sau Nas de rno reto o com

de s eço com , 1644 de fins em nte ame est mod se doran upe rec , 37% 95% a

1645. Quando a insurreição rebentou, ela se fixava em 48%. Mas confirmadas em outubro as notícias do levante, os títulos voltaram ao nível de 37%. Em abril de 1647, roçavam 30% e se não caíram mais ainda é que a W.I.€.

a iri mit per h Wit De de ada arm da o envi o Só . -los entá sust para o rvei inte elevá-los a 41%. 122 O colegiado que fez a transição entre Nassau e o Alto Governo procurou encontrar uma saída, promovendo acordos tripartites pelos quais a W.L.C. encampou as dívidas dos senhores de engenho junto aos comerciantes particulares. Estes teriam seus débitos junto à Companhia cancelados na proporção de 72% das dívidas vencidas havia mais de um ano e de 58% das dívidas

de prazo inferior; caso nada devessem a ela, receberiam apenas 587 das dívidas

velhas e novas. A W.1.C. tornou-se assim a única credora dos senhores de engenho, que se comprometeram a destinar à quitação toda a safra anual.!26

123 Watjen, O domínio colonial holandês no Brasil, pp. 320-1, 487, 524; História dos feitos,

baip. 335; Postma, The Dutch in the Atlantic slave trade, p. 21. As cifras do tráfego pareceram tão

xas a Watjen que ele só soube atribuir a anormalidade a uma lacuna documental. 24 Van Dillen, Van rijkdom en regenten, p. 169.

135 Correspondência diplomática, à, pp. 78, 128, 131, 139, 162, 181, 282, 312, 321; ii, Pp104 e 388.

126 Moreau, Histoire des derniers troubles, p. 51.

350

À QUERELA DOS ENGENHOS

Quando o governo do Recife acreditava haver resolvido o problema, foi sur-

preendido pelos primeiros rumores da revolta que se urdia.

À QUERELA DOS ENGENHOS

Com a reconquista luso-brasileira, nos primeiros meses da insurreição, do interior do Brasil holandês, a posição dos senhores de engenho holandeses e judeus ficou insutentável. O governo do Recife ordenou a seus nacionais que se recolhessem à capital e às praças-fortes da marinha, ordem que parece ter sido acatada, salvo em Sirinhaém e na Paraíba. Embora os acordos de capitulação do Cabo, Sirinhaém e Porto Calvo houvessem garantido o gozo das suas propriedades aos holandeses desses distritos, tais concessões foram logo violadas, obrigando-os a abandonar os engenhos. Em Sirinhaém, dois deles foram deportados para a Bahia; e no Cabo, mesmo Gaspar van der Ley, que casado em família da terra aderira à rebelião, foi coagido a partir para Salvador, onde terminará seus dias.!2 Já nas caravelas que trouxeram a tropa de Vidal de Negreiros e de Martim Soares Moreno retornaram vários dos proprietários confiscados não só na qualidade de oficiais do exército como na de simples vassalos d'El Rei. Moreau asseverava que, em fins de 1645, “diversos senhores de engenho que se tinham retirado na Bahia [...] haviam sido reintegrados na posse de todos os seus bens”, o mesmo assegurando uma representação ao governo de Haia.!28 Os jesuítas, por exemplo, haviam-se reinvestido nas suas propriedades e escravos; e ao mosteiro de São Bento da Paraíba restituíram-se os africanos de que havia sido esbulhado.!?? As restituições abrangeram inclusive um sítio de pescaria em Maracaípe, de nada servindo ao proprietário

127 Memorável viagem, pp. 181-2, 307; alvará de 29.11.1650, Arquivo Público da Bahia,

Alvarás, 1650-1681; Moonen, Gaspar van der Ley, pp. 67-8. 128 Moreau, Histoire des derniers troubles, p. 94; “Resposta às razões com que os da Companhia Ocidental encontram o efeito da paz”, s.d., BNL, FG, 199, n. 62. 129 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus, vs p. 399; “Livro do rombo do mosteiro

de São Bento da Paraíba”, p. 167.

351

OLINDA RESTAURADA

neerlandês a ordem do governador-geral para que o mantivessem na posse do pesqueiro. !30 A reintegração pela força é, aliás, indiretamente confirmada pelo levantamento a que em 1654 procedeu Francisco Barreto, o qual não faz referência a engenhos pertencentes a holandeses e a judeus, confirmação de que já teriam sido recuperados pelos primitivos donos. Consultado pela Coroa sobre a existência de bens de raiz devolutos de que lançar mão para premiar os

oficiais do exército restaurador, Barreto, após minuciosa investigação, con-

cluiu serem muito poucos: uma data de terra na Várzea, onde se erguera o

Arraial Novo, a qual era parte do engenho São Tomé ou Bierboom, nome do dono holandês, aportuguesado em Brilão; outra data, a Miroeira, também

nas cercanias do Recife; as terras de dois engenhos na Paraíba, outrora pertencentes aos irmãos Brandão, domiciliados em Castela, e que serão arrendadas a Fernandes Vieira; o engenho São Brás (Cabo), que estava arrendado à Fazenda Real; e o engenho de Carlos Francisco (Várzea), que também vivia

na Espanha. !º! Obviamente, ao contrário dos engenhos vendidos a holandeses e judeus, os adquiridos por luso-brasileiros suscitavam problemas delicados, dada a adesão destes indivíduos à insurreição e a necessidade do seu apoio para o prosseguimento da guerra.!*? Governador da “guerra da liberdade divina”, Fernandes Vieira estava, aliás, na posição de impedir as manobras de reintegra-

ção da parte dos primeiros donos dos engenhos vendidos a luso-brasileiros. Dentro e fora do exército, os retornados agitavam a melindrosa questão, dando

vigor à campanha que se fazia contra a liderança de Vieira. Assim como aos

compradores luso-brasileiros fora essencial evitar que a insurreição se articulasse exclusivamente na Bahia, sem eles e, portanto, contra eles, aos retornados cumpria reduzir ou liquidar a ascendência de Vieira, cuja participação

150 Studart, Documentos para a história do Brasil, iv, pp. 152-6. 131 Francisco Barreto a D. João IV, 7.v11i.1654, AHU, PA, Pco., iv.

132 Havia a complicação adicional consistente em que os proprietários absenteístas domiciliados na Espanha antes da Restauração portuguesa haviam sido atingidos pelo confisco decretado por D. João IV contra os bens dos vassalos residentes no reino vizinho. Como mencionado, estes bens haviam sido doados pela Coroa a terceiros em pagamento de dívidas.

352

À QUERELA DOS ENGENHOS

no comando, mesmo se partilhado com Vidal de Negreiros, deixava prever a legitimação pela Coroa dos direitos de propriedade adquiridos sob o domínio holandês. Em julho de 1646, a hostilidade a Fernandes Vieira desembocou num atentado contra sua vida. O episódio é obscuro mas aparentemente os retornados contavam com o favorecimento de magistrados vindos de Salvador, a cuja atuação Vieira procurou obstar, designando o sogro para a Ouvidoria de

Pernambuco. Como prova de que havia maquinação de emigrados na Bahia, ele citava a circunstância de que os implicados viriam a ser soltos por lá, malgrado os protestos do seu advogado.!?? A despeito das denúncias a El Rei contra o comportamento despótico de Vieira e da sua implicação em entendimentos visando obter o apoio da França à insurreição, ele será mantido à frente do terço de Pernambuco mas afastado do comando, que foi unificado na pessoa de Francisco Barreto. D. João IV aproveitava as disputas entre restauradores para impor sua autoridade direta sobre a condução da guerra, até então relegada às decisões locais, em decorrência mesmo das aparências diplomáticas que fora necessário preservar perante o aliado holandês. Não foi por acidente que se reabriu então a controvérsia que vinha da resistência sobre os méritos da emigração, cuja relevância é visível para a querela dos engenhos. Em Calado, que, como Fernandes Vieira, patrocinador da

sua crônica, optara por viver sob o domínio neerlandês, é clara a intenção de justificar os proprietários que haviam permanecido na terra. A emigração resultara em “ficarem os portugueses pobres e desterrados e os holandeses, ricos e prósperos”. Maior serviço fora prestado a El Rei por quem havia ficado “a beneficiar seus canaviais, moer com seus engenhos, fazer açúcar, plantar

roças, conservar suas vacas e bois”, reunindo assim “cabedal e mantimentos

para ajudar a nossa gente tanto que chegasse socorro do Reino”. Para legitimar a desobediência à ordem de Matias de Albuquerque, o cronista invocava a opinião de Rojas y Borja, segundo o qual “os que deixaram suas casas e fa-

zendas [...] esses são os traidores, e os que ficaram em suas casas, esses são os

leais vassalos de Sua Majestade”; bem como os conselhos de Manuel Dias de

'35 Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, ii, pp. 40-50, 61-4; Pereira da Costa, Anais pernambucanos, i, pp. 584-5, 587.

353

OLINDA

RESTAURADA

Andrade: “mais valia o estarem eles em suas casas, grangeando suas fazendas e plantando mantimentos para se sustentarem e ajudar a infantaria d El Rei quando chegassem, do que irem a morrer por brenhas desabitadas e caminhos desusados”.!34 Malgrado as pressões dos retornados, o assunto foi prudentemente congelado até a capitulação do Brasil holandês. Fernandes Vieira apressou-se em propor à Coroa a proibição de litígios e demandas pelo decurso da guerra e no mesmo sentido pronunciou-se a representação da capitania a El Rei em

1647.1332 O governador-geral, conde de Vila Pouca de Aguiar, que sucedeu a Antônio Teles da Silva, ordenou que as propriedades permanecessem “no estado em que estavam ao tempo em que os holandeses as largaram”.!36 Ao passo que alguns possuidores trataram de obter provisões acautelando seus direitos, os antigos senhores recorriam à Relação da Bahia, à Casa da Suplicação de Lisboa ou diretamente ao monarca.!? O Conselho Ultramarino interveio enfaticamente contra as tentativas de se abrir o assunto, mostrando-se francamente antipático à causa dos emigrados. Havendo o procurador da Coroa, Tomé Pinheiro da Veiga, opinado em

favor da reivindicação dos primeiros proprietários, a qual lhe parecia “tão conforme ao direito civil e natural, que para poder haver proibição em contrário será necessário razão superior de governo e Estado”, o Conselho alegou

precisamente que permitir demandas entre os colonos do Nordeste, “no es-

tado em que eles estão, com as armas nas mãos”, seria o mesmo que provocar “guerras civis”. Mesmo quando “a seu tempo”, entenda-se, alcançada a res-

tauração, El Rei viesse a autorizar a abertura de processos, não será para ti-

rar a justiça aos que sustentaram a guerra com sua assistência e sangue, antes

para premiar a estes com o que for seu e com o que se tirar aos que a desem-

pararam e não assistiram nela”. Por enquanto D. João IV limitou-se a recomendar que os novos proprietários não fossem desalojados sem processo.!? 134 Lucideno, i, pp. 52-3, 69 e 87. 135 Representação das capitanias do norte do Estado do Brasil, 1647, AHU, PA, Pco., in. 136 1), João IV a Castel Melhor, 3.ix.1649, AHU, 275.

137 Co.Uo., 7.xii.1651, AHU, 278; provisões régias de 23.viii.1649 e 20.x.1650, AHU, 92.

138 Co.Uo., 7.xii.1651, AHU, 278.

354

À QUERELA DOS ENGENHOS

Como as gestões persistissem, o Conselho reiterou sua posição no sentido de se adiar o assunto para tempo oportuno !3.? Quando das negociações relativas à capi tulação dos neerlandeses no Recife em 1654, o problema dos engenhos veio à tona no contexto dos bens pertencentes a súditos das Províncias Un idas. Pleitearam os representantes da W.I.C. que eles permanecessem “ha po sse plena [...] pelo tempo necessário a despendê-los, embarcá-los ou vendêlos” Como assinalou J. A. Gonsalves de Mello, a pretensão falava de pert o aos interesses de muitos holandeses e judeus , sobretudo proprietários de imóvei s no Recife; e de um dos

negociadores da rendição, Gijsbert de Wi th, diretamente interessado na condição de marido de D. Ana Pais, senhor a do engenho da Casa Forte. 14º Francisco Barr eto, porém, reconheceu apenas o di reito dos neerlandeses no

tocante aos bens móveis e assim mesmo aos que estivessem em sua posse no momento da assinatura da rendição, abrind o uma exceção para os bens de

139 Co.Uo,, 23,1x.1652, AHU, 45, A at uação de Gaspar Dias Ferreira em Lisboa reforçou a causa dos novos proprietários, que era tamb ém a sua, de vez que adquirira ao governo holandês: os engenhos Novo e Santo André (Muribec a), reivindicados pelos herdeiros do propri etário otiginal, Antônio de Sá da Maia. Tendo sid o testa-de-ferro de Nassau em Pernambu co, Gaspar Dias Ferreira acompa

nhara o conde à Holanda em 1644, não sem antes tentar em vão vender os engenhos, De Amsterdã, onde se naturalizara cidadão holandês, pusera-se em contato com o marquês de Montalvão, presidente do Conselho Ultr amarino, aconselhando a compra do Nordes te, e prometendo contribuir para este fim com im portante soma. Sua correspondência havend o sido apreendida pelas autoridades, foi preso e proc essado por crime de alta traição, malgrado a proteção e o apoio financeiro que D. João IV lhe dispensou através do embaixador em Haia. Em 1649, Gaspar Dias evadiu-se e embarcou para Lis boa, onde passou a ter suas entradas na Co rre e, mexendo seus pauzinhos junto à alta administra ção, tentou substituir Antônio de Albuquer que, senhor de engenho expropriado no Rio Gran de do Norte, no cargo de procurador de Pe rnambuco no Reino. Seu parente, Francisco Ferreira Rebe lo, que trouxera consigo de Pernamb uco, ha vendo neste ínterim desempenhado papel de alguma importância na rejeição pela Coroa do tratad o de entrega do Nordeste negociado por Souza Co utinho, regressara a Haia como secretário da em baixada: “Cartas e pareceres de Gaspar Dias » Ferreira”, p- 324; “Papéis concernentes a Ga spar Dias Ferreira”, RIAP, 32 (1887), pp. 117-8 e 120; Correspondência diplomática, i, p. 233 e iii, p. 197%. “0 Primo do Grande Pensionário, Johan de Wi tte, Gijsbert participará das negociações diplomáticas entre Portugal e as Províncias Un idas que culminarão no tratado de paz de 1661, que previu a indenização dos súditos neerlandes es.

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" OLINDA

RESTAURADA

raiz que a oficialidade batava possuísse na capital e para todos os bens de D. Ana Pais.!4! Com a capitulação holandesa, a querela entrou em nova fase. Na colônia, as reivindicações aumentavam devido ao regresso daqueles emigrados que haviam optado por esperar o fim das hostilidades. Com efeito, logo que se divulgou a nova de Pernambuco restaurado, vieram da Bahia todos os que lá estavam retirados e haviam deixado suas casas e propriedades em poder dos inimigos”.!42 Foi então que Francisco Barreto escreveu a El Rei a carta de 12 de março de 1654, transcrita no início deste capítulo. Abstendo-se de entrar no mérito da questão e de tomar partido, mas expondo os direitos alegados pelas partes, ele manifestou apreensão pelas consegiiências previsíveis do conflito em termos da ordem pública e da segurança das capitanias restauradas. Em Lisboa as preocupações eram outras, dirigindo-se prioritariamente à eventualidade de represálias neerlandesas e à incorporação de Pernambuco e Itamaracá ao patrimônio régio. Quando em maio o Conselho Ultramarino submeteu a carta de Francisco Barreto ao procurador da Coroa, Tomé Pinheiro da Veiga havia revisto sua posição, opinando que o tratado de trégua de 1641 confirmava o direito dos possuidores. O assunto seria demasiado complexo para que se pudesse resolvê-lo segundo regra ou princípio geral, razão pela qual se deveria por enquanto dar resposta interlocutória a Barreto. Sugeria também que se enviasse ouvidor a Pernambuco, mas que não vá logo por que se sosseguem e aquietem os ânimos”. O magistrado deveria julgar caso a caso, buscando acomodar as partes que, na impossibilidade de acordo, po-

deriam apelar à Relação da Bahia.!4

É provavelmente desta fase o rascunho de parecer do conde de Odemira, 141 Gonsalves de Mello, A reneição dos holandeses no Recife, pp. 30, 41 e 81. Pretendeu Pe-

reira da Costa que Gijsbert de With abandonara D. Ana Pais em Pernambuco, o que não ocorreu;

e que o engenho da Casa Forte teria sido confiscado pela Fazenda Real mas que a proprietária conseguira manter-se na sua posse, transmitindo-o por herança a um sobrinho: Pereira da Costa, Arredores do Recife, pp. 55-7. O que se sabe de concreto é que a embaixada em Haia indenizou finalmente seus descendentes em 1692.

142 “Informação que faz ao muito reverendo padre cronista-mor do Reino [...] um criado seu”, s.d., BA, 54-X-9.,

143 Parecer de Tomé Pinheiro da Veiga, 17.v.1654, AHU, PA, Pco., iv. ma

356

À QUERELA DOS ENGENHOS

que presidia então o Conselho Ultramarino. À seu ver, malgrado a justiça da causa dos antigos proprietários, os possuidores haviam prestado maiores ser-

viços à Coroa, ao sustentarem a guerra por tantos anos; ademais, seus direi-

tos estavam ao abrigo do tratado de 1641. Repisando o risco de tumultos e até de “uma guerra civil”, Odemira acentuava que não seria a primeira vez em que a razão de Estado e a conveniência pública justificavam a denegação de direitos de particulares que indubitavelmente os tinham do ponto de vista estritamente jurídico. Contudo, os possuidores, devendo ainda boa parte dos débitos incorridos na aquisição dos engenhos comprados aos holandeses pela metade do que valiam, estavam na obrigação de amortizar não só o saldo devedor como também a diferença entre o montante da compra e o valor de mercado, isto é, o “justo preço”, a ser feito em prestações moderadas. Caso

preferissem restituir os bens, poderiam fazê-lo, recebendo indenização pelas benfeitorias. Por fim, o conde enfatizava a necessidade de se evitarem longos e onerosos pleitos judiciários e de se enviar magistrado que promovesse a conciliação geral dos litigantes.!““ Escusado aduzir que Odemira não expressava a consideração, que também deve ter pesado no seu ânimo ao se definir em

favor dos possuidores, de que o reconhecimento destes direitos habilitaria a

Coroa cronicamente penhorada a fazer excelente negócio. O Desembargo do Paço, que era o mais alto órgão do judiciário portu-

guês mas que se envolvia continuamente com o Conselho Ultramarino em

disputas de toda sorte acerca do exercício de competências judiciárias nas colônias, inclinava-se pelos antigos proprietários, a quem caberia apenas indenizar os possuidores pelas benfeitorias úteis. Estes, por sua vez, seriam ressar-

cidos mediante a concessão de sesmarias e de casas no Recife. Sob o aspecto

processual, contudo, o parecer do tribunal coincidia com os de Odemira e do

procurador da Coroa no sentido de se buscar uma “acomodação geral”.!$ Em outubro de 1655, D. João IV aprovou a consulta do Desembargo, ficando entendido que o rigor da restituição seria mitigado pelo pragmatismo da composição, que tentaria conciliar os interesses do proprietário e do possuidor, segundo as circunstâncias de cada litígio.

144 Parecer do conde de Odemira, s.d., mas entre papéis de 1654, AHU, PA, Pco., iv. 145 CoUo., 23.v1.1654, AHU,

15.

357

ÓLINDA RESTAURADA

Não se tendo, entretanto, nomeado o magistrado respectivo, lembrava

o Conselho Ultramarino que, se encontrando um dos desembargadores da Relação da Bahia de viagem para Salvador, poderia descer no Recife para desincumbir-se da missão. El Rei, porém, resolveu confiar o assunto ao próprio Francisco Barreto, pensando seguramente ser mais indicado alguém com autoridade militar e experiência da terra do que um letrado da Coroa, ainda cru de Brasil. A idéia também tinha inconvenientes, pois malgrado sua posição imparcial na contenda, o prestígio de Barreto sofrera o desgaste inevitável de sete anos de guerra penosíssima. Embora lhe fossem passadas as ordens correspondentes, ele não as executou, ou porque designado governador-geral do Brasil seguisse para Salvador em agosto de 1656, ou porque surgissem dúvidas sobre a restituição de bens móveis e semoventes e de indenização das benfeitorias. O falecimento de D. João IV em novembro também serviu para diferir a questão. Decorrido um ano da indicação de Barreto, o Conselho

Ultramarino insistia na urgência de confiar-se a funcionário régio a solução das desavenças. Doravante, a querela entrará em compasso de espera, malgrado os esforços do procurador de Pernambuco, Antônio de Albuquerque, por sinal antigo senhor do engenho Cunhaú. Em fins de 1656, ele dirigiu comprido memorial

ao Conselho Ultramarino em nome das “Câmarals], povos e moradores das

capitanias de Pernambuco”, reclamando da não-execução do despacho régio do ano anterior e solicitando a derrogação das provisões passadas no tempo da guerra em favor de possuidores, não se excetuando pessoa alguma. Pleiteava também que a restituição determinada pelo Desembargo do Paço compreendesse os bens móveis e semoventes, especialmente o equipamento fabril. Opunha-se à obrigação de os antigos proprietários indenizarem as benfeitorias, de vez que ela já fora satisfeita com o rendimento dos engenhos de que continuavam a usufruir em prejuízo dos primeiros donos, que estavam “pobres e miseráveis”. Relativamente à compensação em imóveis do Recife, assinalava que muitos deles pertenciam aos mesmíssimos indivíduos a que se devia restituir os engenhos, com o que El Rei tiraria com uma mão o que devolvera com outra. Havendo os atuais senhores amortizado somas modestas do valor das aquisições, cumpria determinar o montante do débito ao se proceder à reintegração. Por fim, rogava que o Desembargo do Paço esclare-

cesse o que entendia por “acomodação entre as partes, sem prejuízo da Fa-

358

À QUERELA DOS ENGENHOS

zenda Real”. À luz da representação, o Conselho Ultramarino insist iu na partida de funcionário que compusesse as demandas e que, quando não hou vesse acordo, sentenciasse a causa, dando posse ou deixando nela a quem tivesse melhor justiça. 146 Em começos de 1657, a Regente D. Luísa voltava a consultar o Dese mbargo do Paço. O tribunal endossou o parecer do novo procurador da Coroa, Antônio Pereira de Souza, no sentido de não se alterarem as instruçõe s a Francisco Barreto, que, como governador-geral, as poderia executar, com a assessoria de magistrado da própria Relação da Bahia. Mas os desembargadore s discordaram no tocante à indenização das benfeitorias. De um lado, sus tentou-se que, tendo a ocupação holandesa resultado de guerra injusta, não se devia prejudicar os direitos dos primeiros donos nem invocar o tratado de trégua de 1641, lembrando-se o precedente da restauração de Salvador quando se concedera aos proprietários as benfeitorias feitas pelos neerlandeses. De outro lado, argumentou-se que os possuidores estavam havia muito no gozo de direitos adquiridos “de boa fé e de justo título”, pelo que não convinha fixar princípio geral para a contenda, deixando-se que fosse resolvida caso a caso ao sabor das apelações e agravos.!47 Consultado pela Regente, o Conselho Ultramarino reiterou parecer anterior, ocupando-se de outros pontos que não havia examinado. Quanto à restituição dos bens móveis, ele distinguia os que se achavam com pessoas a quem tinham sido confiados pelos donos, e os que haviam sido confiscados pelos

146 Tbid. 147 Desembargo do Paço, 22.xi.1657, AHU, PA, Pco., iv. 148 Despacho de 4.ii.1658, Co.Uo., 16.xii.1656, e Co.Uo., 8.111,1658, AHU, 15.

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escravos e apetrechos que se encontrassem nos engenhos, pertenciam legitimamente ao primeiro proprietário. O Conselho propôs a derrogação das provisões cautelares e, não sendo possível prever as particularidades de cada disputa, assinalou a conveniência de dar-se certa latitude ao magistrado incumbido da tarefa. Ouviu-se por fim a opinião do Conselho de Estado, que sugeriu majoritariamente a partida imediata. D. Luísa de Gusmão aprovou-a.!48

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holandeses: para aqueles, cabia restituição, não para estes. No tocante aos

OLINDA RESTAURADA

À ESPERA DA SOLUÇÃO

DIPLOMÁTICA

Contudo, nada se fez nos dez anos seguintes em decorrência do impasse verificado nas relações luso-neerlandesas entre a capitulação do Brasil holandês

e o segundo tratado de Haia de 1669. Do ponto de vista da Coroa, era desa-

conselhável resolver o litígio sem a solução prévia do problema das dívidas dos colonos luso-brasileiros com a W.I.C., o qual só podia ser resolvido no contexto do acordo de paz com as Províncias Unidas. Ademais, não só o segiiestro dos bens dos vassalos domiciliados na Espanha dera à Coroa o direito de rei-

vindicar suas propriedades no Nordeste, como também

muitos dos atuais

proprietários de engenhos não haviam pago, ao tempo da ocupação batava,

o imposto da quarentena, que gravava a venda dos bens de raiz, o que significava que, segundo o direito holandês, a aquisição de vários deles não constituíra ato perfeito. Como em função do acordo de paz que se negociava em

Haia El Rei sucederia nos direitos da W.I.C., ele estaria em condições de reivindicá-los.!

Já em 1646, no bojo do projeto de compra do Nordeste, o padre Antô-

nio Vieira alertara para a complexidade do assunto. Cumpria inicialmente

resolver a questão das dívidas dos colonos luso-brasileiros, o que poderia ser feito de duas maneiras. Pela primeira, El Rei, negociando por eles, comporse-ia, pela metade dos débitos, com os credores neerlandeses, enquanto na

outra ponta os devedores reembolsariam a Fazenda Real segundo a possibilidade de cada um ou se prorrogaria a cobrança dos impostos a serem criados para indenizar a W.1L.C. Pela segunda fórmula, a Coroa autorizaria a execução dos devedores pelos meios ordinários da justiça, como faria qualquer estrangeiro no Reino, ou criaria juntas de conciliação de credores e devedores. Não duvidava o jesuíta de que os credores prefeririam a primeira solução pelo temor de não verem a cor do dinheiro; mas caso não se contentassem com a metade, se lhes ofereceria algo mais, de modo a

evitar que torpedeassem os

149 Diogo Lopes Ulhoa, “Carta de Holanda para o conde de [Ode]mira”, 20.ix.1658, e

“Papel sobre as coisas de Holanda que fez Diogo Lopes Ulhoa”, 25.xii.1658, Boletim da Câmara Municipal do Porto, 9 (1948), pp. 235-47.

360

À QUERELA DOS ENGENHOS

entendimentos diplomáticos."º Uma vez assinado o acordo de paz com as Províncias Unidas, Sua Majestade teria as mãos livres seja para ordenar a devolução dos engenhos aos primeiros donos, seja para dar como boas as alienações feitas pela W.I.C. no todo ou na parte que fosse necessária ao pagamento do credor, indenizando os primeiros donos a preço módico.!>! Pelo tratado de 1648, mediante o qual o Reino comprometia-se a restituír o Nordeste à W.1.C. e a indenizá-la pelos prejuízos decorrentes da insurreição restauradora, os súditos neerlandeses seriam reintegrados na posse dos seus bens de raiz, na situação em que estes se encontrassem quando da publicação do acordo, tendo direito inclusive à restituição dos escravos, animais e equipamento de que tivessem sido esbulhados. Os colonos luso-brasileiros que se haviam retirado no decurso da insurreição ou que se retirassem no futuro ficariam obrigados a saldar as dívidas, na forma prevista para o pagamento dos débitos dos compatriotas que optassem por permanecer sob o domínio batavo. Como a própria concepção do tratado, tais cláusulas foram duramente criticadas em Lisboa: os luso-brasileiros não teriam com que pagar as dívidas, pois já estando endividados antes da insurreição, achavam-se em posição ainda mais difícil ao cabo de três anos de guerra. !>2 Observava o conde de Odemira que o pagamento das dívidas seria instrumentalizado pelos holandeses para arrancar a preços irrisórios os bens dos colonos que desejassem abandonar o Brasil holandês. A solução consistiria no cancelamento recíproco das dívidas entre os nacionais de ambos os países. Ciente, contudo, de que ela seria rejeitada pelo governo de Haia tendo em vista que a quase totalidade dos débitos era de luso-brasileiros a neerlandeses, Odemira sugeria que a cobrança não pudesse ter lugar antes da conclusão da venda de bens de qualquer espécie por parte dos que haviam decidido partir.'?? Na defesa do tratado de 1648, o célebre “Papel forte”, retorquia o

150 “Parecer sobre se restaurar Pernambuco e se com prar aos holandeses”, Obras várias, 1, pp. 26-8.

151 Tbid., pp. 25-8. A interpretação dada por António Sérgio a este trecho do parecer de

Vieira complica o assunto em vez de esclarecê-lo; ibid., p. 27, nota 16.

22 BNL, FG, 1551, fl. 65. 3 BNL, FG, 1570, fl. 103.

36]

OLINDA

RESTAURADA

padre Vieira que as modalidades do pagamento das dívidas ainda poderiam ser renegociadas, acordando-se montante global e prazo, devendo ser satisfeitas pelos credores ou pela própria Fazenda Real. Ele pensava também que as demandas não seriam tão numerosas quanto se pretendia; e que, como demons-

trava a experiência, “isto de dívidas [entre Estados] sempre se capitula mas

nunca se executa”. 54 O tratado de 1648 foi repudiado pela Coroa em face do sentimento majoritário dos círculos dirigentes contra a entrega do Nordeste. Portugal, contudo, nunca rejeitou a obrigação de indenizar os credores neerlandeses, como indicam as tentativas de reabrir as negociações com as Províncias Unidas. O princípio foi ponto pacífico desde o começo dos entendimentos que levaram ao tratado de paz de 1661. As dúvidas diziam respeito apenas às modalidades. Os pleitos deveriam ser julgados por comissão paritária luso-neerlandesa ou era preferível combinar uma soma total a ser satisfeita pela Coroa ao governo neerlandês? Um dos negociadores portugueses chamava a atenção para o fato de muitos credores já terem vendido seus títulos por 1/4 do seu valor, o que entreabria a possibilidade menos onerosa seja de se entender diretamente com eles, seja de pagar um montante global às Províncias Unidas, motivo para recear o grande reboliço que as decisões da comissão paritária causariam no Nordeste, a Coroa instruiu seus representantes a explorarem a alternativa de pagamento de soma global de 500.000 até 600.000 cruzados, algo da ordem de 1.500.000 e 1.800.000 florins.!>º Assinado a 6 de agosto de 1661, o tratado de Haia, que reconheceu a Restauração portuguesa do Nordeste em troca de vultosa indenização, estabeleceu no artigo 25 as regras de solução do problema. As dívidas deveriam ser satisfeitas, mas para tal era preciso o reconhecimento de que os bens de raiz cabiam legitimamente a quem os possuía no momento da insurreição.

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ao passo que Sua Majestade se ressarciria junto aos devedores.» Havendo

154 “Parecer sobre se restaurar Pernambuco”, pp. 52-3.

155 Diogo Lopes Ulhoa, “Carta de Holanda” e “Papel sobre as coisas da Holanda”, cit. 156 “Cópia da última carta de Sua Majestade para D. Fernando Teles de Faro”, 28.11.1659,

Boletim da Câmara Municipal do Porto, 9 (1948), pp. 85-9.

362

À QUERELA DOS ENGENHOS

Destarte, para resolver o problema externo, a Coroa aceitava em compromisso internacional princípio oposto ao consagrado pelo Desembargo do Paço. Ão embaixador em Haia, cumpriria “compor amigavelmente todas e quaisquer ações e pretensões” ou mediante contrato com as partes ou mediante acordo que previsse soma global a ser transferida ao governo neerlandês. Caso o diplomata não pudesse, no prazo de seis meses, resolver as disputas, criar-se-ia comissão paritária de seis membros que, reunida em Lisboa, obrigaria as partes a executarem as competentes sentenças ou reparar os danos decorrentes da não-implementação. Em caso de empate, a comissão elegeria um árbitro e, havendo impasse, procederia a sorteio.!” Transmitindo o tratado ao Conselho Ultramarino, El Rei recomendou que nada fizesse no tocante à questão dos engenhos sem consultá-lo previamente.!28 Em Pernambuco, Fernandes Vieira procurou mobilizar os devedores

contra o artigo 25.8? Mas o litígio continuou na estaca zero, devido ao impasse luso-neerlandês quanto à implementação do tratado. Embora houvesse criado imposto especial com que levantar os recursos para o pagamento da indenização de 4.000.000 de cruzados (ou 12.000.000 de florins) às Províncias Unidas e do dote de D. Catarina de Bragança a seu marido, Carlos II, da Inelaterra, a Coroa aplicou a parcela devida aos neerlandeses na guerra com a Espanha; e como entrementes a V.O.C. (Vereenigde Oost-Indie Compagnie, Companhia das Índias Orientais) tivesse conquistado Cochim e Cananor na Índia, alegou violação do acordo de paz para recusar-se a cumpri-lo. Em 1665, o procurador de Pernambuco em Lisboa voltou à carga: os primeiros donos estavam arcando com os ônus fiscais do tratado de Haia sem serem reintegrados nos seus bens, cuja conservação os possuidores negligenciariam, em dano

inclusive da Fazenda Real. Prosseguia vivo, ademais, o risco de desunião e

discórdias, de que se sigam ruínas e desserviços grandes”. E concluía solicitando a partida de magistrado que procedesse à devolução na forma do que

157 Borges de Castro, Coleção de tratados, i, pp. 289-93. O embaixador português, conde

de Miranda, chegou a firmar acordos com três particulares, inclusive Gijsbert de With, pelo qual

159 Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, ii, pp. 246-50.

363

E

158 Co.UO., 7.viii.1663, AHU, PA, Pco. iii.

Cs

a Coroa os reembolsaria nos oito anos seguintes em açúcar, fumo e sal,

OLINDA

RESTAURADA

havia muito ficara resolvido.!9º A ineficácia desta e de outras gestões bem como o falecimento de Antônio de Albuquerque explicam que em 1668 a Câmara de Olinda designasse novo procurador em Lisboa para levar adiante a disputa.!º! A lentidão, excessiva até mesmo para a máquina burocrática lusitana, nada teve a ver, portanto, com a crise política entre D. Afonso VI e o infante D. Pedro que culminou na revolução palaciana que defenestrou El Rei em favor do irmão. O imbroglio luso-neerlandês só foi resolvido pelo segundo tratado de Haia, de 1669, pelo qual o Reino abandonou tacitamente Cochim e Cananor como garantia do pagamento da indenização à W.I.C. Sem prejuízo dos contratos firmados pelo conde de Miranda, o governo neerlandês concordou em

aceitar o montante de 500.000 cruzados (ou 167.000 florins) a ser pago em

sal de Setúbal, a título de indenização dos seus nacionais.!º2 A soma estava

longe de corresponder ao total das dívidas luso-brasileiras, resultando de barganha diplomática que levou em conta a depreciação desses títulos e sua alie-

nação a terceiros a preços bem inferiores. Para Portugal, o acordo acarretava a cessão, por vinte anos, de importante fonte de receita, pois o sal constituía

seu segundo produto de exportação. Mas há que reconhecer com Virgínia Rau que o tratado salvava o Brasil e Angola e que era o menos prejudicial dos que

haviam sido negociados com o governo de Haia.!º

A Coroa investia-se assim nos créditos neerlandeses vis-à-vis dos colonos luso-brasileiros, redobrando as ansiedades dos possuidores.!º“ Desta vez, ela agiu com rapidez. Em 1668, o Regente solicitara ao Conselho Ultramarino indicar magistrado; e no ano seguinte, as câmaras do Nordeste pleitearam a nomeação de membro do próprio Conselho, pois cumpria que o escolhido tivesse conhecimento do assunto, considerando-se com razão que ele seria mais 160 Representação de Antônio de Albuquerque, 1665, AHU, PA, Pco., v.

161 Procuração da Câmara de Olinda, 5.ix.1668, AHU, PA, Pco., vi.

!92 Borges de Castro, Coleção de tratados, à, p. 449.

163 Virgínia Rau, Os holandeses e a exportação do sal de Setúbal nos fins do século XVII, Coimbra, 1950, p. 12.

164 João Fernandes Vieira ao regente D. Pedro, 22.v.1671, Varnhagen, História das lutas,

pp. 346-50.

364

À QUERELA DOS ENGENHOS

simpático à causa dos possuidores do que alguém escolhido pelo Desembargo do Paço nas fileiras da magistratura do Reino. A pretensão seria inicialmente atendida, de vez que foi designado o Dr. João Monteiro de Mendonça, embora não haja indicação da sua presença em Pernambuco. Elaboraram-se também as diretrizes que deveriam pautar a atuação do funcionário, cuja alçada não deveria ser inferior à da Relação da Bahia, de modo a só haver recurso diretamente ao Regente ou ao próprio Conselho. Seu ordenado deveria correr por conta da Coroa, para que não viesse a depender das câmaras municipais. !*> Apontavam-se em seguida as regras gerais para acomodação das demandas. Na hipótese de restituição de propriedade cujo pagamento não fora intetramente satisfeito à W.L.C., o que equivalia à totalidade dos casos, o possuidor ficaria livre de amortizar o saldo devedor, que seria transferido ao proprietário reintegrado, a menos que a Coroa preferisse perdoar a dívida como prêmio à fidelidade do antigo senhorio. Quanto à eventualidade de o possuidor processar o proprietário reintegrado para reaver o montante amortizado

e o valor das benfeitorias, ou de se considerar os lucros auferidos no decutso

da posse como compensação suficiente, era dificuldade a ser resolvida caso a

caso. No tocante aos bens que haviam pertencido a súditos neerlandeses, dis-

tinguir-se-iam duas possibilidades: a primeira, a de bens doados pela Coroa a luso-brasileiros como recompensa por serviços prestados durante a guerra, o que dizia respeito exclusivamente aos bens de raiz situados no Recife, como se verá adiante; a segunda, a de bens de que os luso-brasileiros se tinham apossado ao longo do conflito e que a Coroa tinha o direito de reivindicar não só vis-à-vis dos possuidores como de terceiros que os tivessem adquirido. Neste particular, razões políticas aconselhavam que o magistrado agisse com pru-

dência, procurando acordo mutuamente aceitável.

O nó górdio foi finalmente cortado, embora de maneira diversa da fórmula aprovada onze anos antes. Em vez de promover a acomodação geral por magistrado especialmente designado, a Coroa derrogou a proibição de se levarem os litígios à justiça ordinária, a Ouvidoria de Pernambuco, com recurso à Relação da Bahia e à Casa da Suplicação. Ademais, absteve-se de reivin-

165 “Sobre a instrução e ordem que por este Conselho [Ultramarino] se há-de passar ao ministro que Sua Alteza mandar à capitania de Pernambuco”, s.d., AHU, PA, Pco., iv.

365

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OLINDA RESTAURADA

dicar os direitos que teria à luz dos tratados de Haia, em especial o pagamento do valor previsto na convenção de 1669. De 1672 a 1678, período que coincide com a ouvidoria do Dr. Lino Campelo, resolveram-se as pendências, ao que parece de maneira satisfatória para as partes. É o que leva a crer um porta-voz de Fernandes Vieira, para quem a solução revelara-se a mais acertada, pois “suposto que a causa parecia toda uma, eram diversas as circunstâncias, porque umas fazendas se compraram arruinadas, outras de todo destruídas, alguns pagaram em parte ou em todo, outros nada haviam pagado aos holandeses [...] e na forma em que se resolveu, mostrou cada qual a sua

justiça, e assim foi diversa a forma das sentenças, porém a todos se manda-

ram restituir as suas fazendas e outros se consertaram amigavelmente”. 166 Embora a documentação não permita reconstruir a sorte de cada engenho, o acaso arquivístico preservou o acordo entre os herdeiros de Antônio de Sá da Maia e de Gaspar Dias Ferreira acerca do engenho Novo (1676). O Novo e o Santo André haviam pertencido a Antônio de Sá, que, retirando-se com a família para a Bahia, falecera ali pouco tempo depois. Em 1637, os engenhos, que tinham a reputação de serem dos melhores da terra, foram vendidos a Gaspar Dias em condições de prazo altamente favoráveis. Ao partir com Nassau para as Províncias Unidas, ele confiara a gestão à mulher, Clara

das Neves, e aos filhos, que ficaram na posse das propriedades após a insurrei-

ção de 1645.!97 Em 1649, os herdeiros de Antônio de Sá haviam movido

processo; Gaspar Dias fora citado em Lisboa mas conseguira provisão régia sustando os trâmites. Após a restauração, a querela resultou no assassinato de um filho de Gaspar por parentes de Antônio de Sá, crime que havia ficado

impune. 168

X-9,

166 “Informação que ao muito reverendo padre cronista-mor do Reino, etc.”, s.d., BA, 54-

167 Em ambas as batalhas dos Guararapes, que tiveram lugar na vizinhança desses engenhos, D. Clara destacou-se pela assistência prestada aos feridos do exército restaurador, que “sangrou e curou por suas próprias mãos, com a ajuda de suas criadas, com grande caridade e dispêndio de fazenda”: Co.UO., 26.iv.1651, AHU, PA, Pco., iii.

168 Co.UO,, 6.xii.1655, AHU, PA, Pco., iv. A acreditar-se em Gaspar Dias Ferreira, os herdeiros de Antônio de Sá haviam mandado ameaçá-lo de morte na própria Lisboa: Co.Uo., 17.1.1656, AHU, PA, Pco., iv.

366

oe

dade “com todas suas terras, pastos, matos, logradouros, canaviais, entradas

e saídas, serventias, cobres, casas de engenho e de purgar, vivenda, igreja e

todos os mais a ele pertencentes”, exceto dois partidos de cana. Em troca, a família de Antônio de Sá cedeu a Francisco a soma devida, ao fim da safra de

1676-1677, pelo rendeiro do engenho, cujo contrato chegava ao fim, e desistiu de exigir os rendimentos auferidos a partir da compra de 1637 e a que tinha direito por sentença do ouvidor.!9 O sequestro de bens de portugueses residentes em Castela atingiu alguns engenhos que, à época, haviam sido objeto de confisco pela W.L.C. A estes bens da Coroa, aplicar-se-iam as regras previstas nas diretrizes elaboradas nos anos cinquenta. Tratando-se de restituição, o possuidor não estaria obrigado a satisfazer a dívida, apenas o já previsto para a compensação das benfeitorias e para a parcela amortizada do débito; quanto aos bens originalmente pertencentes à Coroa mas vendidos a terceiros após a restauração do domínio lusitano, caberia restituição, podendo a Fazenda Real reaver os frutos da posse após dedução do valor das benfeitorias e das despesas de manutenção, ficando à terceira parte o direito de retroação contra o vendedor.!'* Conhece-se a sorte de um destes bens, o engenho da Muribara em São Lourenço, que pertencera a Gabriel de Pina e fora adquirido por Fernão Soares da Cunha. À Coroa ordenou o sequestro, arrendando-o em seguida a seu filho Diogo Soares da Cunha, solução que parecia mutuamente conveniente, pois a ela garantia receita e a ele dava tempo para procurar reaver o engenho na justiça. Ao cabo de oito anos, Diogo Soares devia 800 arrobas de açúcar a título de arrendamentos vencidos e quando o provedor da Fazenda Real o

169 “Livro do tombo do mosteiro de São Bento da Paraíba”, pp. 191-201. 0 “Sobre a instrução e ordem que por este Conselho [Ultramarino] se há-de passar ao ministro que Sua Alteza mandar à capitania de Pernambuco”, s.d., AHU, PA, Pco., iv.

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367

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Com a decisão da Coroa de desbloquear o mecanismo judiciário, os herdeiros de Antônio de Sá entraram com libelo de reivindicação junto ao ouvidor de Pernambuco, que lhes deu ganho de causa; os de Gaspar Dias recorreram à Relação mas acabaram optando por acordo, graças ao qual ambos os engenhos voltaram à família do primeiro dono. Conhecem-se os termos da composição referente ao engenho Novo: Francisco Dias Ferreira largou a proprie-

e

=

À QUERELA DOS ENGENHOS

OLINDA RESTAURADA

executou, já não havia açúcar suficiente, nem era possível, nos termos da legislação, sequestrar o equipamento fabril. Diogo Soares pagou fiança, livran-

do-se da prisão; e Muribara foi outra vez arrendado na dependência de solução definitiva do litígio.!”! Esta certamente beneficiou Diogo Soares, de vez que seus descendentes ainda o possuíam em fins do século XIX. Restava o engenho São Brás, no Cabo, que se encontrava em estado lastimável: “de fogo morto, há muitos anos sem fazer açúcar e não há dele mais que as terras, cobres e ferragens”, e, o que era pior, achava-se ocupado por grileiros. A Coroa mandou vendê-lo em hasta pública.!

À QUEM PERTENCEM AS CASAS DO RECIFE?

Não se tratava aqui de conflito entre antigos e novos proprietários lusobrasileiros, de vez que os donos dos imóveis eram seus construtores, parti-

culares holandeses e judeus ou a própria W.I.C.; mas entre os primeiros donos dos terrenos, que reivindicavam as benfeitorias feitas durante o domínio

neerlandês, e as pretensões dos oficiais do exército restaurador. Em princípio, a premiação dos serviços prestados na guerra era feita por meio de comendas e hábitos das ordens militares, mas era óbvio que, nas condições calamitosas das finanças régias, os galardões mais cobiçados iriam parar às mãos dos que defendiam as fronteiras do Reino. O rateio da propriedade imóvel no Recife tornou-se assim objeto mais realista e imediato das reivindicações locais. Em 1652, Francisco Barreto propusera a El Rei conceder seiscentos escudos de vantagem aos soldados que se haviam distinguido nas batalhas dos Guararapes, pedindo que a burocracia lisboeta estivesse atenta aos requerimentos da gente de guerra de Pernambuco, para evitar o que ocorrera a Vidal de Negreiros, que tendo pleiteado a doação de uns cobres de engenho abandonados não recebera sequer resposta. Descaso de sérias consegiiências para o moral da tro-

171 Fontes, i, p. 154; João Gomes de Melo ao regente D. Pedro, 30.viii.1671, AHU, PA, Pco., Iv.

72 João Gomes de Melo ao regente D. Pedro, 1.ix.1671; André Pinto Barbosa ao regente D. Pedro, 19.vii1.1673, AHU, PA, Pco., vii.

368

À QUERELA DOS ENGENHOS

pa, que descria das suas chances de acrescentamento ao ver oficial tão merecedor ficar de mãos abanando. "2 Com o fim do Brasil holandês, D. João IV já não podia adiar o assunto. A provisão de abril de 1654 mandou repartir pelos militares os ofícios de

guerra, justiça e fazenda das capitanias restauradas bem como as terras incultas da Coroa. 17“ Mas os cargos não eram muitos e os baldios eram remotos,

próprios apenas para soldados pobres. Passada a euforia do triunfo, prevaleceu o espírito de moderação no Conselho Ultramarino, que recomendou “temperar” a liberalidade do ânimo real, reservando a quarta ou quinta parte dos bens de raiz que Sua Majestade possuísse no Nordeste com vistas a financiar os encargos de defesa da região.!”? No Recife, embora existissem edif-

cações do período ante bellum, a quase totalidade era de origem neerlandesa,

tendo sido erguidas sobre chãos confiscados a luso-brasileiros ou sobre terrenos conquistados ao mar e ao rio pelos batavos. Os antigos proprietários dos terrenos, alguns deles poderosos, como a viúva de Matias de Albuquerque e a Misericórdia de Olinda, haviam passado a reivindicar as construções. Em 1654, Francisco Barreto ordenou que se desse posse das casas aos colonos que provassem havê-las possuído antes da ocupação holandesa e aos que houvessem sido donos dos respectivos chãos, desde que, no segundo caso, dessem fiança correspondente ao valor das benfeitorias. Mandou também que se alugassem para a Fazenda Real os prédios levantados em aterros e que se procedesse à preparação do inventário dos imóveis urbanos." A medida gerou descontentamento entre seus subordinados, que o acusavam de avareza por não reparti-los segundo o espírito da provisão de abril. Defendia-se o general com que esta não lhe conferira poderes para tanto, o que sendo verdade não o impedira de doar casas de construção holandesa a protegidos seus. Para sossegar os ânimos, Barreto contentou os cabeças, como Fernandes Vieira

1/3 Co.Uo., 13.11.1653, AHU, PA, Pco., iii.

I7á Provisão de 29.iv.1654, A. ]. de Mello, Biografias, à, p. 185.

'? CoUo., 31.iii.1654, AHU, PA, Pco., iv; Co.Uo., 29.iv.1654, AH U, 275.

76 AUC, CA, 31, . 15; Inventário das armas e petrechos bélicos que os holandeses deixaram

em Pernambuco e dos prédios edificados ou reparados até 1654, 22 ed., Recife, 1940, p. 2.

269

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=

E

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e Vidal de Negreiros, entre outros, dando conhecimento de tudo a El Rei, a

OLINDA RESTAURADA

quem pediu confirmação dessas doações bem como autorização para repartir as edificações pela tropa.'”” Ao mesmo tempo, ordenou ao provedor da Fa-

zenda que sustasse toda restituição de imóvel que comportasse benfeitoria neerlandesa. !/8 Os proprietários dos terrenos recorreram ao governador-geral, conde de

Atouguia, que desautorizou Francisco Barreto ao mandar que se restituíssem

os imóveis, com a condição do pagamento das benfeitorias e aluguéis para a hipótese em que El Rei desaprovasse a reintegração.!?? Já no decorrer de 1654, verificaram-se catorze restituições, embora quase todas se referissem a prédios anteriores a 1630 que não haviam recebido melhoramentos e relativamente aos quais a Coroa não podia alegar direitos. Outras reintegrações, porém, mencionam a condição exigida por Atouguia.!8º O procurador da Coroa, entretanto, punha as coisas em pratos limpos. Tratando-se de fortificações, mu-

ros, obras públicas, inclusive a Cidade Maurícia, construída por Nassau, El

Rei tinha todo direito a reivindicá-las; quanto às benfeitorias de valor moderado, deveriam caber ao proprietário do terreno, mas no tocante às de alto valor, o monarca não devia reivindicá-las, doando aos senhorios as que haviam sido destruídas ou consideravelmente danificadas.!S! Tardando a decisão d'El Rei, o procurador de Pernambuco em Lisboa pleiteou as benfeitorias para os donos dos chãos, invocando precedentes da Bahia em 1625 e de Angola em 1648.182 Neste ínterim, eram feitas várias doações a militares, de

modo que em 1657, ao examinar a lista dos aquinhoados, o procurador da

Fazenda concluía que “o prêmio [fora] dividido entre os cabos [i.e., os oficiais] e mui poucos soldados, sinal manifesto de que ficaram os mais sem coisa alguma”.!º3 77 Inventário das armas, pp. 177-81, 92 e 186-90; Francisco Barreto a D. João IV, 7.viii.

1654, e Co.Uo., 12.viii.1657, AHU, PA, Pco., iv.

178 AUC, CA, 31, fl. 18v. 179 Parecer de Tomé Pinheiro da Veiga, 10.111,1656, AHU, PA, Pco., iv.

180 Inventário das armas, passim. !81 Parecer de Tomé Pinheiro da Veiga, cit.

!82 Co.UO., 16.x11.1656, AHU, 15.

185 Co.UO., 12.vii.1657, AHU, PA, Pco., iv.

370

À QUERELA DOS ENGENHOS

Em 1663, assinado o primeiro tratado de Haia, o governador Brito Frey-

re cobrou uma decisão da Coroa.!84 Inutilmente: ao se procederem em 1674

às últimas restituições conforme a velha provisão de Atouguia, os respectivos termos ainda incluíam a promessa de pagamento das benfeitorias e aluguéis na hipótese de El Rei reivindicá-los. O assunto já fora solucionado de fato. De 1656 a 1659, regularizara-se a maioria dos pleitos: ocorreram então 118 restituições num total de 170 para o período 1654-1674.!º A Fazenda Real passara a ter interesse em desvencilhar-se dos imóveis, face ao estado de deterioração em que se achavam e aos gastos de conservação em que teria de incorrer. Já ao tempo dos governos de Francisco Barreto e de André Vidal, muitos imóveis estavam arruinados, com o que os aluguéis produziam pouco.!8º Entre 1660 e 1666, verificaram-se outras 20 restituições; as derradeiras (12) datam

de 1674. Quanto aos prédios edificados em aterros, foram alienados aos pou-

cos pela Fazenda Real ou cedidos a oficiais por conta de soldos vencidos.!3? Assinado em 1669 o segundo tratado de Haia, a Coroa tratou de ser indenizada pelas benfeitorias. O provedor-mor da Fazenda escusava-se, contudo, de executar a medida impopular em vista do estado miserável da terra,

tanto mais que muitos imóveis já estavam em poder de terceiros e até de quartos proprietários, sugerindo, com o endosso do governador Fernão de Souza Coutinho, que a Coroa abrisse mão dos seus direitos. O Conselho Ultrama-

rino e o Regente concordaram, exigindo o envio prévio da relação dos imóveis. !88 A lista só será remetida quatro anos depois, altura em que o Conselho mudou de idéia, propondo que o pagamento de 1/5 do valor das benfeitorias fosse destinado à guerra dos Palmares.!8? O Regente, porém, deu o assunto por encerrado nos termos da decisão anterior.!?º 184 Francisco de Brito Freyre a D. Afonso VI, 23.11.1663, BA, 51-VI-1. '8> Inventário das armas, passim. 186 Francisco Barreto a D. João IV, 7.viii.1654, e Co.Uo., 2.111.1658, AHU, PA, Pco., Iv. 187 Co.UO., 28.vi.1677, AHU, PA, Pco,, vii.

188 André Pinto Barbosa ao regente D. Pedro, 19.viii.1673, Fernão de Souza Coutinho ao

regente D. Pedro, 26.viii. 1673, e Co.Uo., 13.xi.1673, AHU, PA, Pco., vii. 189

Co.Uo.,

28.v1.

1677, ARU,

PA,

Pco., vil.

90 Provisão de 25.ix.1677, Andrade e Silva, Coleção cronológica, ix, p. 338.

371

OLINDA RESTAURADA

Em Olinda como em outras vilas, a situação dos imóveis assemelhavase à dos engenhos. No governo nassoviano, permitiu-se a reconstrução da velha urbe duartina, incendiada em 1631, mas como os neerlandeses preferissem

habitar o Recife,!?! as transferências de propriedade haviam tido lugar entre gente da terra. Com a insurreição de 1645, foram feitas doações pelos governadores da guerra. 192 A partir da restauração, os proprietários de bens em

Olinda, inclusive as ordens militares, começaram a agitar em favor da reinsta-

lação na vila do governo da capitania, que ficara no Recife. Para este fim, Fernandes Vieira deu grandes esmolas aos conventos e à Misericórdia, ao mesmo tempo em que encarecia a necessidade de fortificar o velho burgo duartino, segundo dizia, a chave da segurança da região.!?? Tamanho empenho nada tinha de surpreendente quando se examina a composição da sua fortuna: ter-

renos, casas e olarias no velho burgo, enquanto no Recife possuía apenas o sobrado que lhe dera a Coroa em satisfação dos seus serviços.!“ Eram interesses suficientemente poderosos para induzir André Vidal de Negreiros a reinstalar em Olinda o governo da capitania, provocando sério conflito de ju-

risdição com o governador-geral Francisco Barreto, que se opunha à medida em favor da permanência no Recife. À Barreto, parecia incompreensível que se desviassem, para fins de consumo conspícuo ou de especulação imobiliária, recursos escassos que deveriam ser aplicados de preferência na reconstrução das fábricas, aquisição de escravos e fundação de partidos de cana, tanto mais que não haveria senhor de engenho em posição tão confortável que se pudesse dar ao luxo de ir viver em meio urbano: “para se sustentarem retirados na pobreza de suas fazendas, se podem

1 Gonsalves de Mello, Tempo dos Famengos, pp. 63 ss. 192 A casa outrora P pertencente a certo Leonardo de Oliveira, “muito formosa, de pedra e P

cal, com seu pomar murado”, passou a Hooghstraeten pela sua adesão Luís da Costa Sepúlveda, amigo de Fernandes Vieira, entregaram-se a da Fonseca: Co.Uo., 23.ix.1652, AHU, 45; “Papéis inéditos sobre João Gonsalves de Mello, “Cristóvão Álvares, engenheiro em Pernambuco”,

X-9.

à causa luso-brasileira. A casa e a olaria de Baltazar Fernandes Vieira”, p. 45; p. 36.

9 “Informação que ao muito reverendo padre cronista-mor do Reino, etc.”, s.d., BA, 54-

é Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira, ii, pp. 216-7.

372

e

À QUERELA DOS ENGENHOS

mal aí manter, como poderão conservar-se na vila e no Recife, com as precisas despesas de morarem nas praças, em que tudo é sempre mais custoso?”. A capitania dependia “das lavouras com que se perpetua o comércio”, não “dos edifícios com que se consomem os frutos das lavouras”. Estando tão atenuada a riqueza particular, cumpria buscar o progresso da terra “pelos meios da

negociação [i.e., do comércio] e não da reedificação [de Olinda], em que inu-

tilmente se dissipam os cabedais”.!9

195 Documentos históricos, iv, p. 308; Co.Uo., 2.111.1658, AHU, PA, Pco., iv.

573

Foo

Indice onomástico

Abreu, Cristóvão Soares de, 337

Abreu, Francisco Gomes de, 108 Abreu, Francisco Soares de,

152 Adonias, Isa, 33 Afonso V, D., 258 Afonso VI, D., 148, 173-5,

190, 216, 265, 283, 364,

371 Afonso, Manuel, 122 Álamo, Jorge Gomes, 119-20 Álamos de Barrientos, Baltazar, 24

Alba, duque de, 258, 294 Albernás, João Teixeira, 33

Albuquerque, Albuquerque, 289, 355, Albuquerque,

Afonso de, 181 Antônio de, 358, 364 Antônio de

Ataíde, 340

Albuquerque, Cleonir Xavier de, 145, 209

Albuquerque, Felipe de Moura e, 340 Albuquerque, Jerônimo de, 83, 325 Albuquerque, Jerônimo de (conquistador do Maranhão), 286-7

Albuquerque, João Soares de, 260 Albuquerque, Lopo de, 340

Albuquerque, Maria Margarida de Castro e, 163 Albuquerque, Matias de, 28-

Álvares, Miguel, 58 Álvares, Simão, 339 Amberg, Albert d”, 99 Andrade, Manuel Dias de, 44,

302, 353-4 Andrade, Pedro da Cunha de,

9, 33, 36-44, 48, 80-1, 84, 86-7, 93, 121, 149-51,

44 Antônio, escravo, 245, 248, 251

13325, 1575 163, 479,

Aranha, Nicolau, 246

184; 185, 193, 2093, 211, 230, 235, 260, 262, 268, 292-4, 300-4, 318-21,

Araújo, Amador de, 191, 343 Arciszewski, Crestofle d'Artischau, 79, 90, 201, 230, 254, 268, 291, 345

353, 369

Ataíde, Antônio de, 28, 30,

270, 276, 279, 287-9,

Alcalá Zamora y Queipo de Llano, José, 22

50, 80-1, 89, 94, 99, 152 Atouguia, conde de, 370-1

Alden, Dauril, 37, 40

Ávila, Francisco Dias d”, 239

Alencastro, Luís Felipe de,

Azevedo, Álvaro de, 86, 133

231, 280

Azevedo, João Lúcio d”, 24,

Almeida, Cosmo de, 203 Almeida, Cristóvão de, 50, 133, 190, 248 Almeida, Cristóvão Botelho de, 332 Almeida, Francisco de, 298

27

Azevedo, Luís Marinho de, 262 Azevedo, Tales de, 247 Bacelar, Domingos Cabral, 35, 82, 157

Almeida, João de, 200

Baeça, Pedro de, 119

Almirón, Alonso Jiménez de, 265, 298

Baers, J., 226

Álvares, Cristóvão, 264, 276, 278, 372

Bagnuolo, conde de, 29-30, 40-2, 44, 61, 85, 89, 150-

3, 155-6, 181, 185-9, 192,

375

OLINDA

198, 201-2, 204, 206-7, 211, 214, 231-3, 235, 239, 268, 270, 273-4, 276, 279, 294, 298-304, 332 Barbalho, Antônio, 132

Barbalho, João Lopes, 334 Barbosa, André Pinto, 368,

3/1

Barleus, Gaspar, 62, 201, 227, 325, 346

RESTAURADA

Botero, Giovanni, 23

Calmon, Pedro, 239

Boxer, €. R., 20-1, 28-9, 56,

Camarão, Antônio Felipe, 63,

63, 80, 112-4, 120-1, 125, 129, 131, 136, 139-41, 156, 181, 217, 230, 290, 299, 304 Boyajian, James €C., 104, 119 Brandão, Ambrósio

Fernandes (Brandônio), 225, 280, 332

181, 188, 196-8, 200-1, 203, 214, 238, 240, 245, 274, 284, 289-91, 305, 320 Caminha, Afonso de Barros,

182 Campanella, Tommaso, 24

Baro, Rouloux, 201

Brandão, Duarte, 198

Campelo, Lino, 366 Campelo, Vicente, 211, 298

Barreiros, Francisco, 133

Brandão, Jorge, 332, 352

Campos, Manuel de, 211

Barrenho, Baltazar dos Reis,

Brandão, Luís, 332, 352

Cardim, Fernão, 217, 226

Brande, Cornelis van de, 67, 283

Cardini, Franco, 187, 214,

168

Barreto, Felipe Pais, 321 Barreto, João Pais (o Velho),

340 Barreto, João Pais (1º

morgado do Cabo), 37, 195, 321, 332-3, 340

Braudel, Fernand, 12, 79, 217, 222, 224, 346

Brito, Domingos de Abreu e, 47 Brito, Sebastião de, 341

Barreto, Miguel Pais, 321

Broeck, Matheus van de, 191,

Barreto, Pedro Ferraz, 182

194, 204 Bromley, J. S., 56

Barreto, Tobias, 82

Bazán, Álvaro de, 258

Buescu, Mircea, 145 Bullestrate, Adriaen van, 327, 348 Burke, Peter, 23

Bebiano, Rui, 260, 262

Burns, J. H., 23

Benavides, Juan de, 40

Cabral, João Pais, 321

Bethell, Leslie, 72

Calabar, Domingos

Barriga, Luís Álvares, 31, 45-

73 DL 190 Barros, João do Rego, 109, 340

Bezerra, Domingos de Brito,

Fernandes, 201, 203, 291-

331 Bezerra, Luís Barbalho, 205, 304, 328, 334

2

Bijma, Balthasar, 87, 115, 236 Bismut, Roger, 98 Blake, Robert, 124-5

Boeseman, M., 213, 281

Boogaert, Ernest van den, 115 Botelho, Diogo, 183 Botelho, Paulo, 152

Calado do Salvador, frei Manuel, 33, 44, 71, 107,

111, 159, 162, 187, 201, 208, 214, 233, 241-2,

268, 289, 292, 307, 310, 317, 353 Calce, Ettore de la, 188, 232, 298 Calf, Joris, 97

376

161, 267, 270, 281, 299 Cardoso, Antônio Dias, 197, 303-4 Cardoso, Fernando, 218

Cardozo, Joaquim, 71 Carlos 1, 95 Carlos II, 174, 363 Carlos V, 22 Caro Baroja, Julio, 218 Carpentier, Servaes, 60, 89, 93, 99, 146, 323, 325 Carrilho, Fernão, 314

Cascais, marquês de, 162-3, 244 Cascudo, Luís da Câmara, 73, Pra Castel Melhor, conde de, 49,

123, 125, 190, 192-3, 248-50, 354 Castelo Branco, Gil Correia,

Ps Castro, Antônio de, 338 Castro, Caetano de Melo e,

314

Castro, Celso, 313 Castro, Diogo de, 29-30, 36,

39, 153

ÍNDICE ONOMÁSTICO

174, 363

Cavalcanti, Lourenço, 320 Cavide, Antônio, 49, 167, 248

Ceulen, Mathias van, 59, 867,93 Chaunu, Huguette, 31 Chaunu, Pierre, 24-5, 31, 75, 347 Cipolla, Carlo M., 23 Coelho, Duarte (1º donatário

de Pernambuco), 83, 148

Coelho, Duarte de Albuquerque (4º donatário de Pernambuco), 29-30, 36,

Souza, 113, 117-8, 178,

997, 990,355 Coutinho, J.J. da Cunha de Azeredo, 273 Coutinho, João de Souza Falcão, 206

Couto, Domingos do Loreto, 260, 332, 340 Cravendonck, Jan ]., 85 Cromwell, Oliver, 101 Cruz, Manuel Fernandes,

138, 178

Cunha, Diogo Soares da, 367 Cunha, Fernão Soares da, 131, 367

Elliotc, J. H., 22, 28, 34, 3940, 56, 158, 258-9

Ellis, Myriam, 156

Emmer, Pieter C., 115 Ennes, Ernesto, 313

Ericeira, conde da, 338

Fagundes, Domingos, 286

Faria, Francisco Leite de, 110, 119, 130, 157, 208-10

Faria, Manuel Severim de, 25-6, 203

Faro, Fernando Teles de, 362

Felipe II, 22-5, 43, 104, 2589, 298

Felipe III, 43, 78,93, 147, 151, 287, 298

Davies, C. L. S., 229

Delden, Elisa van, 16 Deusdará, Simão Álvares de la Penha, 148, 173, 339

Dias, Henrique, 63, 193-5, 211, 216, 240, 309

Felipe IV, 21-2, 25, 29-31, 35-40, 42-3, 46-7, 50, 52, 61, 80-1, 85, 87, 89, 95-9,

149-53, 156, 181, 186-8,

202-4, 206-9, 211, 214, 218, 231, 236-7, 239, 262, 265, 281-2, 288,

38-9, 41, 44, 86, 89, 150, 152, 155, 186, 188, 302, 304, 338 Cohen, Abraham, 131 Coloma, Pedro, 29, 203

Diez del Corral, Luis, 24

Colombo, Cristóvão, 222

Dion, Roger, 224

Corte Real, João Pereira, 87 Cortesão, Jaime, 103-4, 156 Costa, Afonso, 331

Ferreira, Francisco Dias, 367

Doedens, Hendrick, 247 Dominguez Ortiz, A., 31

Ferreira, Gaspar Dias, 64-5, 77, 138, 145-6, 308, 329-

Costa, Domingos da, 245

Doria, Gino, 298

Ferreira, Martim, 298

Dourado, Feliciano, 194

Figueira, João, 108 Figuciredo, Manuel Álvares de, 209 Figueiroa, Francisco de, 191, 204, 249, 304, 340 Flecknoe, Richard, 139

Costa, F. A. Pereira da, 43,

166, 173, 317-18, 325, 340-1, 353, 356 Costa, Leonor Freire, 79, 81, 93, 102-3, 105, 116 Costa, Miguel da, 38

Costa, Paulo da, 96, 334 Coutinho, Fernão de Souza,

172, 371

Dias, Pascoal, 168 Diderot, Denis, 218 Dillen, J. G. van, 346, 349-

50

Dorfonte, Baltazar, 86

Duncan, T. Bentley, 226 Dussen, Adriaen van der, 90, 177, 198, 342 Dutra, Francis A., 37, 149, 185, 276, 279, 289

Eça, Manuel de Souza d”, 281 Eckhouc, Albert, 213, 281 Eissens, Ipo, 324

377

290, 294, 298-301, 332 Fernando, o Católico, 22 Fernandes, José, 161 Ferrão, Bento Machado, 141

30, 355, 366-7

Fleur, La, 293 Fonseca, A. J. V, Borges da, 44, 331-2, 339-40

pa

363-4 Castro, J.J. da Silva, 330 Castro, Martinho de Melo e, 26 Catarina de Bragança, D.,

Coutinho, Francisco de

os

Castro, J. F. Borges de, 335,

OLINDA

RESTAURADA

Fonseca, André de Almeida

Guerra, Francisco, 218, 296

da, 233 Fonseca, Baltazar da, 197, 372

Guerreiro, Bartolomeu, 32,

Fonseca, Estêvão Dias da, 131

Guilherme TI, príncipe de Orange, 69, 124

Franca, André Dias da, 289

Francisco, Carlos, 352

Frederico Henrique, príncipe de Orange, 56 Freire, Gaspar de Brito, 341

Freitas, Gustavo de, 125

Freyre, Francisco de Brito, 35-6, 41, 44, 70, 82, 175, 190, 216, 267, 279, 283, 300, 305, 313, 371

Freyre, Gilberto, 216, 224, 230, 266 Frias, Francisco de, 286-7 Friederici, Georg, 263-4, 285,

377 Furtado, Celso, 72 Furtado, Tristão de Mendonça, 93-5, 319, 335

Gustavo Adolfo, 187 Haat, Gualter, 96 “Haecxs, Hendrick, 124-5, 213

Haus, Hendrick, 190

Hérmadinquer, J. J., 217

Hendricks, Boudewijn, 25 Henriques, Bernardo de Miranda, 265 Henriques, Duarte Dias, 3378 Henriques, Francisco Lopes, 337 Heyn, Piet, 28

225, 262-3, 287

Hoboken, W. J. van, 255 Hoces, Lope de, 30, 97, 152,

Garcin, Pedro, 278

158, 206, 214, 233, 235-

295 Gonçalves, Gonçalo, 154

João IV, D., 11, 24, 39, 4850, 95, 103-4, 108, 110-2,

161-4, 166-8, 170-1, 174,

Gândavo, Pero de Magalhães,

Goch, Michiel van, 212, 270,

João TI, D., 22

Hamilton, Earl J., 12 Haulthain, Willem, 124, 133

Hilten, Anthonio van, 247

320

Janduí, 201

117-20, 122-3, 125-6,

Gama, Pedro Correia da, 298

Gisselingh, Johan, 59, 86-7,

Jameson, J. F.,51

Hale, J. R., 271 Hall, A. R., 271

Heyns, Louis, 330

Giberton, Miguel, 298

81

Ita, Pieter A., 84

84, 222

Gama, J. B. Fernandes, 319

Gemery, Henry À., 115

Israel, Jonathan T., 19-20, 56,

128-30, 132-3, 135-8, 190-1, 194, 210, 216, 246, 248-52, 260, 264, 296,

318-20, 332, 335-8, 341, 352-5, 357-8, 369-71 João V, D., 311 Jong, Joop de, 218

Jonge, Gedeon Morris de, 323 Kossmann, E. H., 56

Laet, Johannes de, 32, 87-8,

90, 98, 158, 179, 265, 305 Lamego, Alberto, 160, 299,

311 Lancaster, James, 183, 275

Leão filho, Joaquim de Souza, 37, 338

6, 270, 321 Hogendorn, Jan S., 115 Holanda, Adriana de, 322

Leganés, marquês de, 293

Holanda, Chico Buarque de,

Lemos, João Brito de, 261

14

Leite, Serafim, 39, 181, 208,

224, 235, 284, 290, 351 Lerma, duque de, 43, 298

Holanda, Sérgio Buarque de,

Léry, Jean de, 285 Ley, Gaspar van der, 168, 269,

333 Gouveia, marquês de, 336, 338

25; 420221, 225, 234, 267, 285, 299, 312 Hooghstraten, Diederick van, 278 Hurtufo de Orizar, 80

Grafian, Antônio, 96

Hulck, Gerrit G., 285

Lima, M. de Oliveira, 61

Guedes, Max Justo, 30, 97, 158, 204, 333-4

Igual y Castillo, António de,

Linhares, conde de, 95 Lipsius, Justus, 23

Goulart, Maurício, 195 Gouveia, Francisco Vaz de,

155, 180, 239

378

321, 325, 342, 349, 351

Lichthart, J. C., 63, 99, 108 Lima, Domingos Vieira de, 210

ÍNDICE ONOMÁSTICO

Menezes, Aleixo de, 78

Loncg, Hendrick C., 71, 84

Maurício de Nassau, príncipe de Orange, 13, 253, 296

Lopes, Rui Correia, 87, 97

Mauro, Frédéric, 71, 75, 77,

Lira, Gonçalo Novo de, 132

Menezes, Diogo de, 78

Luís XIII, 330

79, 82, 91, 105, 135-6,

Menezes, Francisco Barreto de, 48, 130, 304, 338

Luís, Domingos, 138

146, 163, 171

Menezes, João Teles de, 44

Luísa de Gusmão, D. (Rainha

Regente), 195, 359 Macaulay, Rose, 139

Mayenne, Cirilo de, 119

Mercurio, Leonardo, 283

Mejía Bocanegra, Cristóbal,

Mere, Gaspar de, 36-7

206

Mirales, José de, 311, 315

Macedo, Antônio de Souza de, 95, 101, 112

Melo, Afonso de

Madeira, Pedro Álvares de, 185

Melo, Bernardo Vieira de, 12

Magalhães, Pedro Jaques de,

Melo, Felipe Bandeira de,

49, 126 Magalhães-Godinho, Vitorino, 79, 103, 105,

143, 145, 222 Maia, Antônio de Sá da, 355,

366-7 Maior, João da Cunha Souto, 313 Maior, Paulo da Cunha

Albuquerque, 340

124-6, 136, 167, 191, 198, 296, 303 Melo, Francisco Manuel de, 25, 35, 204, 259 Melo, João Gomes de, 168, 368 Mello, A. J. de, 109, 304, 331, 369 Mello, J. A. Gonsalves de, 15,

Miranda, conde de, 363-4

Miranda, Antônio de Abreu de, 216 Miranda, Lydia Combacau

de, 16

Moerbeeck, Jan Andries, 51 Mogueimes, Antônio de

Araújo de, 45, 92, 154-5, 15752794 291

Molina, João Tenório de, 321 Molinar, João Rodrigues, 181, 239

Monsanto, conde de, 35, 82,

Souto, 306 Maior, Pedro Souro, 32

37, 48,53, 62,64, 78, 105,

Malheiro, Gaspar, 178

177, 183, 191-2, 194-5,

Montalvão, marquês de, 50,

Máântua, duquesa de, 36, 43,

201-2, 207, 241-3, 249,

108, 178, 305, 308, 334-

119-20, 124, 126, 130-2,

97, 188, 198, 204, 206,

252, 254, 256, 264-6, 269,

301, 332 Manuel, D. (o Venturoso),

271-4, 276-9, 299, 303-4,

222, 223

Marahión, Gregorio, 24 Marcgraf, Georg, 218 Maria Teresa, infanta de Espanha, 24 Marín, Andrés, 151, 202, 233, 298

Marischal, Josias, 325

Mariz, João Carneiro de, 328 Marques, A. H. de Oliveira, 222-3 Mascarenhas, Fernando Martins, 315

318, 322, 325-7, 338, 3412, 353, 355-6, 363, 372 Mello neto, Ulysses Pernambucano de, 208,

270, 272, 279-8 Mendes, Cristóvão, 109

157

Is 959 Monteiro, John Manuel, 225 Monteiro, Pedro Fernandes, 26, 116, 120, 122, 129, 139, 178

Moonen, Francisco José, 269, 321, 342, 349, 351 Morais, Manuel de, 108, 138,

Mendonça, João Monteiro de,

162, 178, 197, 199, 202-

365 Mendonça, José Furtado de,

3, 288-90

29-30, 203 Mendonça, Manuel Saraiva de, 322

Mendoza, Bernardino de, 23, 25

Morão, Simão Pinheiro, 234,

312 Moreau, Pierre, 62, 68, 197, 199, 215-7, 241, 252, 265, 267, 275, 277, 292, 326, 349-51

5/9

Moreno, Baltazar Gonçalves, 337 Moreno, Diogo de Campos,

RESTAURADA

Oldenbarnevelr, Johan van, 20 Olivares, conde-duque de, 22, 28, 30, 34, 38-40, 43, 46-

74, 85, 149, 179, 184-5,

7, 56, 104, 156, 158, 240,

189, 228-9, 286-7, 289

333

Moreno, Martim Soares, 63, 108, 160, 189, 191, 197,

214, 238, 288-9, 351 Morineau, Michel, 241 Moura, Alexandre de, 287, 340

Oliveira, Diogo Luís de, 36-7,

Pereira, Diogo, 209

Pereira, Francisco, 209

Pereira, José Higino Duarte, 15, dA Pereira, Manuel Rabelo, 154, 231

121, 155 Oliveira, Domingos de, 58

Pereira, Rui, 224

Oliveira, Leonardo de, 231-2,

Pessoa, Jerônimo Gomes, 119

Pérez, Antonio, 23-4

Moura, Francisco de, 333

272 Olmo, Juan del, 278

Phillips, Carla Rahn, 30, 158

Mout, M. E. H. N., 261

Oquendo, Antônio de, 29-31,

Pimenta, Belisário, 215, 260

Muley, John, 139-40 Naber, S. P. "Honoré, 32

Nájera, duque de, 203 Nassau-Siegen, conde João Maurício de, 13, 34,612,

64-7, 74-5, 90-1, 115, 131, 146, 151, 180-1, 207, 213, 218, 238-9, 240-3, 251, 261, 266, 268-9, 273-4, 301-2, 308, 310, 324-7, 329-30, 3334, 339, 343, 345, 347-50, 355, 366, 370 Negreiros, André Vidal de,

12, 63, 108-9, 130, 160, 178, 189, 191, 216, 246, 249, 282, 289, 307, 309, 313, 351, 353, 368-9, 371-2 Netscher, P. M., 237

40, 42, 81, 85, 97, 152, 158, 232, 270

Oropesa, marquês de, 28 Ortigão, Ramalho, 215 Ortiz, Juan de, 44, 298 Osuna, Juan de, 211 Pais, Ana, 355-6 Pais, Diogo, 278 Pais, Francisco, 96, 334 Paiva, Jerônimo de, 202

Paiva, Jerônimo Serrão de, 63, 108, 132 Parente, Bento Maciel, 287

Parker, Geoffrey, 19, 21-2, 58, 96, 145, 149-50, 152, 155, 187-8, 192, 208, 214, 221, 229, 258, 261, 264-

7, 281-3, 285, 293, 299

Parma, duque de, 298

Passos, Cosmo de Castro,

Pimentel, Miguel da Rosa,

202, 215, 287 Pimentel, Rodrigo de Barros, 132 Pina, Gabriel de, 367 Pinheiro, Salvador, 50, 87, 154, 233, 254

Pinto, Jorge Homem, 109, 327, 343 Pita, Sebastião da Rocha,

913,33]

Post, Frans, 37 Posthumus, N. W., 136, 138, 344-5 Postma, J. M., 115, 350 Potter, Thomas, 209 Prado, ]J. F. de Almeida, 83 Price, J. L., 20 Pudsey, Cuthbert, 16, 40, 55, 73-4, 199, 208

Neves, Clara das, 366

110-1, 124-5, 128, 134,

Puntoni, Pedro, 115, 313

Nieuhof, Johan, 74, 109, 112,

136, 163, 167-8, 198,

Quirino, Tarcísio do Rego,

Nogueira, Vicente, 162, 336 Óbidos, conde de, 331, 333 Odemira, conde de, 120, 124, 128, 139, 356-7, 361

210, 246, 250

206

Pater, Adriaen )., 85, 97

Ramalho, Manuel, 58

Pedro Il, D. (regente e rei de

Ramos, Francisco, 200

Portugal), 313-4 Pena Júnior, Afonso, 95 Penaguião, conde de, 336-8

Penaguião, condessa de, 337-8

' Ramos-Coelho, José, 260

Rangel, Orlando, 223 Rastére, Isaac de, 325 Rau, Virgínia, 80, 337, 364 O

199, 201, 227, 253, 349 Niza, marquês de, 117, 11921, 134-5, 162, 336-8

154,

380

e

OLINDA

ÍNDICE ONOMÁSTICO

Ravardiêre, senhor de la (Daniel de la Touche),

Salvador, Vicente do, 54, 225, 287

Silva,J. J. de Andrade e, 170,

184, 227, 287

Samperes, Gaspar de, 276

Silva, Maria Fernanda Gomes da, 80 Silva, Pedro da (governadorgeral da Bahia), 44, 50,

Raynard, Jacques, 98

Rebelo, Francisco (o Rebelinho), 247, 305-7, 311

Rebelo, Francisco Ferreira, 355 Redlich, F., 159

Requião, Antônio Gonçalves, 154 Riba Aguero, Fernando de la, 211

Ribeiro, João Pinto, 205 Richelieu, cardeal de, 330

Richshoffer, A., 226 Ridder, Nicolaes de, 324

Rojas, Bartolomé de, 278 Rojas y Borja, Luís de, 30, 32, 34, 40-1, 43-4, 61, 90-1, 138,

151-2, 188, 204,

206, 209, 232, 235-7, 264, 272, 278, 282, 298-

9, 302, 353 Rolim, Manuel de Moura, 340 Romano, Luís Marques, 164 Romano, Ruggiero, 79

Rosa, André da, 189, 193, 200

Rosas, André de, 95 Roxas, João de Azevedo, 209

Ruiz Escaray, Gaspar, 206

Sá, Constantino de, 28 Sá, Francisco de Birrencourt é, 2739 Sá e Benevides, Salvador Correia de, 63, 106, 119, 136, 313, 318, 320 Saldanha, Antônio Vasconcelos de, 35

Santa Cruz, condessa de, 37,

155 Santarém, João Nunes, 251 Santiago, Diogo Lopes de, 77, 107, 161, 249, 317

Santos, Horácio Madureira dos, 260

São Francisco, Mateus de, 136, 157, 168, 208-10,

252 Saraiva, Duarte, 322, 325 Schalkwijk, F. L., 330

Schama, Simon, 217-9 Schkoppe, Sigismund von,

205, 371

308 Silva, Pedro Vieira da, 119,

336, 339 Silveira, Duarte Gomes da, 179, 196 Singer, Charles, 271 Siqueira, Ambrósio de, 183, 228, 276

Sluiter, Engel, 80

237, 255, 283-4, 324

Smith, David Grant, 119 Soares, Diogo, 29, 43, 206, 240, 333, 368 Soler, Vincent Joachim, 326-7

Armand de, 156, 217

Souza, Álvaro de, 147, 151, 196, 279

65-7, 108, 133, 212, 230,

Schomberg, Frederick

Schorr, Willem, 89-90, 195 Schulenborch, Frederick, 305

Schwartz, Stuart B., 30, 35, 42,72, 75-6, 340 Sebastião, D., 103-4, 261 Sepúlveda, Luís da Costa, 372 Sérgio, António, 24, 203, 361 Serooskercke, Paulus, 85 Serrano, Francisco, 298

Souza Júnior, Antônio de, 215, 258, 279, 291 Souza, Antônio Pereira de, 359 Souza, Antônio da Silva e, 282 Souza, Francisco de, 340 Souza, Gabriel Soares de, 266, 272, 280 Souza, Gaspar de, 147, 151, 184, 196, 228, 279, 285

Serrão, Joaquim Veríssimo, 36, 92, 98

Souza, João de, 206, 340

Serrão, Joel, 223

Souza, Luís de Vasconcelos e,

Silva, Antônio da, 269. Silva, Antônio Teles da, 162, 197-8, 249, 311, 336-7,

354 Silva, João Pereira da, 23] Silva, João Ribeiro da, 154 Silva, José Pinheiro da, 230,

332

Souza, Luís de, 37, 93, 340 26

Souto, Sebastião do, 303,

305, 309

Spínola, Ambrósio, 298 Spooner, Frank, 346

Sprilla, Francisco Gomes de la, 95 Stachouwer, Jacob, 99, 324-6

381

OLINDA RESTAURADA

Steensgaard, Niels, 346 Stols, Eddy, 36, 97 Stradling, R. A., 22, 31, 96 Studart, barão de, 75, 276, 26/2809; 325

Subrahmanyam, Sanjay, 104 Taquete, Francisco, 337

Taunay, Affonso de E., 218 Távora, Estêvão de, 309

Taylor, Harland, 95 Teensma, B. N., 327 Teixeira, Francisco, 182, 2334 Teixeira, Jandira Martins, 16

Teles, Luís da Silva, 168 Teodósio de Bragança, D., 24 Tex, Jan de, 20

Thompson, 1. A. A., 22, 192 Thyssen, Maarten, 85 Toledo, Fadrique de, 25, 29, 32, 38, 42, 47, 95, 221 Toledo, Fernando Henriques de, 151-2, 208, 281

Tolner, J. €., 242 Torgal, Luís Reis, 23 Torre, conde da, 13, 17, 29,

31, 44, 47, 50, 62, 68, 95, 97-8, 155-6, 158, 180-1, 189, 192, 198, 204-5,

211, 222, 232-3, 239-40, 242, 254, 304-5, 307, 522, 331, 333-4, 339, 343

Tourlon, Charles de, 325

Tracy, James, 346

Truchor, Guillaume, 124 Usselincx, Willem, 51 Ulhoa,

Diogo Lopes, 360, 362

Vale, Fernão do, 131-2 Vale, Jerônimo do, 244 Vale, Jerônimo Fernandes do, 162

Varela Marcos, Jesus, 30 Vargas Machuca, Bernardo de, 58, 261 Varnhagen, F. A. de, 29, 96,

161, 194, 196, 245-6, 303, 317, 334, 364 Vasconcelos, Francisco de, 98, 208

Vasconcelos Sobrinho, José de, 77 Vasconcelos, Luís Mendes de, 24, 203, 221, 261-2, 270,

272 Vasconcelos, Manuel de, 188, 204

Vasconcelos, Miguel de, 43,

353 Vauthier, L. L., 277 Vega Bazán, Juan de, 240 Vega Carpio, Lopc de, 202 Veiga, Domingos da, 276 Veiga, Tomé Pinheiro da, 354, 356, 370 Velho, Domingos Jorge, 313 Velloso,J. M. de Queiroz, 261

Verdonck, Adriaen, 73, 75, 61, 83, 177

Viana, Helio, 80, 149 Viegas, Antônio Pais, 336, 338 Vieira, padre Antônio, 24, 27, 112-4, 116-8, 141, 181,

247, 276, 287, 313, 339, 341, 360-2

Vieira, João Fernandes, 48, 63-4, 77, 105-8, 116, 119-20, 138, 160-2, 18992, 194-5, 197, 201, 212-

3, 216, 243-4, 249, 277-8, 282, 285-6, 303-4, 317-8, 326-7, 337, 339, 341-3,

382

352-4, 363-4, 366, 369, 372 Vila Hermosa, duque de, 28

Vila Pouca de Aguiar, conde

de, 25, 49, 115, 117, 125, 202, 247-8, 354

Vilhasante, Jerônimo Cadena de, 322 Vilhasante, Pedro Cadena de, 50, 151, 155-6, 322, 339 Vilhena, Francisco de, 39 Vimioso, conde de, 163 Voorde, Balthasar van de, 66, 106

Waerdenburch, Diederick van, 52-4, 56-8, 60, 62, 65-8, 85, 108, 179, 212,

277 Walbeeck, Johan van, 233 Wallenstein, Albrecht, conde de, 145, 229

Warren, Christopher, 140 Watjen, H., 99, 165, 345, 349-50 Whitehead, P. J. P., 213, 281

Wijnrgis, Balthasar, 324 Wilson, Charles, 118, 169, 347 Winius, George D., 216

With, Gijsbert de, 355-6, 363 With, Witte de, 25, 49, 67-9, 114, 117, 121-4,

140,

21); 229, 990 Witte, Johan de, 355 Wiznitzer, Arnold, 132 Wright, Irene A., 68

Wynants, Jan, 325

Ybio Calderón, Tomás de, 155-6, 180, 233, 237, 239-40

Zufre, Juan de, 151, 202, 233 Zumthor, Paul, 241

Sobre o autor

Evaldo Cabral de Mello nasceu em 1936 no Recife, onde concluiu seus estudos preparatórios. Após estudos de filosofia da história em Madri e Londres, ingressou no Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores, em 1960, sendo nomeado para carreira diplomática em 1962, ao longo da qual serviu nas embaixadas do Brasil em Washington, Madri, Paris, Lima e Barbados, nas missões do Brasil em Nova York e Genebra e nos consulados gerais do Brasil em Lisboa e Marselha. Obteve o título de doutor em história por notório saber pela Universidade de São Paulo em 1992. Sua área predileta de estudo é a história do Nordeste açucareiro, a cujo respeito publicou as seguintes obras: Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654 (1975), O Norte agrário e o Império, 1871-1889 (1984), Rubro veio: o imagi-

nário da restauração pernambucana (1986), O nome e o sangue: uma fraude genealógica no Pernambuco colonial (1989), A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715 (1995), O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669 (1998), A ferida de Narciso: ensaio de história regional (2001), Um imenso Portugal: história e historiografia (2002),

A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824 (2004) e Nassau: governador do Brasil holandês (2006).

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primeiro capítulo, examina as estratégias militares adotadas por ambas as facções e o

modo como elas determinaram a mobilização dos recursos locais. Em seguida, aborda a produção, o comércio e a navegação luso-brasileiras nos anos de guerra. Para dar conta das finanças do conflito, o autor empreende uma abrangente análise do sistema fiscal da capitania, em que se destaca o “donativo do açúcar”, imposto extraordinário que foi o principal responsável pelo custeio da segunda fase da guerra.

Na sequência, o historiador trata do re-

crutamento das tropas, revelando a partici-

pação crescente, e por fim majoritária, de

gente da terra do lado luso-brasileiro; assim como de seu difícil aprovisionamento. Aborda rambém a adaptação da arte militar européia às condições do Nordeste, que

resultaria na chamada “guerra do Brasil”, baseada na estratégia da “guerra volante” ou “guerrilhas” e nos costumes bélicos dos índios brasileiros. Por fim, avalia o impacto da guerra sobre a propriedade, particularmente o conflito de interesses entre os proprietários dos engenhos confiscados pelos holandeses e seus novos proprietários de ori-

gem luso-brasileira.

Como afirmou o historiador britânico Charles R. Boxer ao saudar a publicação de Olinda restaurada, “esta obra pressupõe no leitor algum conhecimento da história narrativa da Mada pernambucana, mas para aqueles que a conhecem, ela é inegavelmente o mais satisfatório e esclarecedor estudo

neste campo.

Capa e contracapa: detalhes colorizados da gravura Villa d Olinda de Pernambuco (1653), reproduzida no

livro de Isaac Commelyn (1598-1676) sobre Frederico Henrique, príncipe de Orange.

Publicado pela primeira vez em 1975 e agora, como frisa o autor, em versão definitiva, Olinda restaurada é a peça inaugural do vasto panorama montado por Evaldo Cabral de Mello, de forma constante e rigorosa, sobre a história do Nordeste açucareiro

no período que se estende do século XVI ao XIX, Ão abordar os anos de dominação holandesa no Brasil (1630-

1654), o autor compreende que estes foram, fundamentalmente. “anos de guerra”. O interesse maior da questão, portanto, não está

na tentativa fracassada de implantar valores europeus na colônia

tropical, como querem alguns, mas sim no impacto da guerra sobre a sociedade colonial.

Partindo dessa constatação, o historiador transita com gran-

de mobilidade entre o quadro local, repleto de informações surpreendentes, extraídas do contato direto com os documentos, e o

jogo mais amplo dos interesses político-econômicos das potências européias, aqui delineado com toda clareza. A mesma habilidade

transparece no plano do estilo, onde o autor combina como poucos as dimensões analítica e narrativa da História, em busca do nexo

mais propício, do ponto de equilíbrio em que método e discurso

se estimulam e se completam mutuamente.

ISBN 978- ê 9-7326-3/4-9

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