Olhar avesso: Quando a vida é vista de dentro para fora 9788576775386, 8576775387

Onde há significado não há impossibilidade! Márcia Ribas fez essa feliz descoberta em meio ao processo de reeducação ali

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Olhar avesso: Quando a vida é vista de dentro para fora
 9788576775386, 8576775387

Table of contents :
Folha de rosto
Créditos
Prólogo
Introdução O homem, caminho da Igreja; o amor, caminho do homem
No princípio, a maravilha
O amor, o berço onde nasce a maravilha
Para unir a fé e a vida
Qual é o caminho da Igreja?
Primeira Parte O amor, revelado no corpo
Capítulo 1 O mistério do corpo
Uma bússola para as experiências
A solidão do princípio
O corpo, testemunho e expressão da pessoa
Eu sou o meu corpo
Corpo e lar
Deus fala com o homem em seu corpo
Deus confia o corpo ao homem como uma tarefa
Capítulo 2 A diferença sexual: uma vocação ao amor
Encontrar o amor: “Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!”
O amor, uma nova criação
Identidade e diferença
Sexo e “gênero”
A ascensão do amor
O amor os libertará
Capítulo 3 O mistério nupcial: do dom original ao dom de si mesmo
Para entender o dom
O Doador original
O corpo: uma testemunha do dom originário
Do dom originário ao dom de si
Maternidade e paternidade
O masculino e o feminino à luz do dom originário
Capítulo 4 A comunhão de pessoas, imagem da Trindade
A imagem do filho
A imagem de Deus se forma no tempo
A imagem se revela na comunhão
A imagem de Deus no corpo: nudez originária
Entrar na comunhão de Deus
Segunda Parte A redenção do coração
Capítulo 5 Um coração ferido: a fragilidade do amor
Um abismo começa a se abrir entre Deus e o homem
O corpo: o lar que se transforma em prisão
Uma fissura no interior do homem
A fissura que separa o homem e a mulher
A fissura que passa de pais para filhos
Um chamado ao coração humano
Capítulo 6 Cristo: Redentor do coração e plenitude do amor
Renasce a paternidade
Cristo, o Filho
Cristo, o Esposo
“Isto é o meu corpo que é dado por vós” (Lc 22,19)
Somos frutos do amor de Cristo
A vida de Cristo e o caminho da imagem
Capítulo 7 Amadurecer no amor
A Lei no coração do homem
A virtude: um amor ordenado
A amizade com Cristo no Seu Espírito
A pureza, ou a arte de amar
O dom da piedade
Terceira ParteA beleza do amor: o esplendor do corpo
Capítulo 8 Amar do amor de Cristo: o sacramento do matrimônio
O sinal do corpo
A nova medida do amor
Fidelidade para sempre
O dom de uma nova vida
Educar no amor
O problema dos anticoncepcionais
Métodos naturais para regular a fertilidade
A caridade conjugal e o chamado à santidade
Capítulo 9 Testemunhas da plenitude do amor: a virgindade cristã e o destino final do corpo
O corpo: testemunho de vida e de morte
Mais forte que a morte é o amor
Filhos para sempre
Um amor ressuscitado
Não se casarão…
O chamado à virgindade
Filhos, esposos, pais: o caminho da virgindade consagrada
Mãe e Virgem
Capítulo 10 A família e a civilização do amor
A vida em sociedade e o bem comum
O bem comum dos esposos
O bem comum que é o filho
A fonte última do bem comum
Família, sê o que és!
Missão da família, missão da Igreja

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PRÓLOGO “Foste tu que criaste minhas entranhas e me teceste no seio de minha mãe. Eu te louvo porque me fizeste maravilhoso; são admiráveis as tuas obras; tu me conheces por inteiro.” (Sl 139,13-14)

A maravilha do salmista diante do próprio corpo o conduz ao louvor do Criador, que precisamente no corpo faz-se presente, pois cuida dele com Sua providência e o conhece intimamente. “Profetismo do corpo”, dizia João Paulo II. O corpo fala de Deus, revelanos Sua bondade e sabedoria; fala também de nós, do homem e da mulher, da sua vocação ao amor. É uma palavra profética que o corpo pronuncia em nome de Deus, revelando um caminho a percorrer, caminho de plenitude humana. É o caminho do amor, no qual a imagem original imprimida no homem e na mulher pode se realizar e brilhar numa comunhão fecunda de pessoas, aberta ao dom da vida. Durante séculos, devido ao influxo de uma mentalidade narcisista dominada por tendências maniqueístas e puritanas, o corpo humano foi desprezado ou, pelo menos, não foi suficientemente valorizado. Ele foi visto com desconfiança ou inquietude, como se fosse uma ameaça contra a natureza espiritual do homem e contra o seu destino; teve ainda sua dimensão afetiva ou sexual descuidada ou negada, como se, inevitavelmente, implicasse tentações e perigos. Hoje, o pêndulo parece oscilar para o lado oposto, com um culto do corpo, que o exalta enquanto é jovem, belo e fonte de prazer, mas depois, quando testemunha a decadência inevitável, a doença, a morte, o rejeita. Além de sua aparente contradição, na verdade, as duas visões compartilham uma idêntica redução antropológica, que não permite integrar o corpo na realidade da pessoa nem valorizá-lo adequadamente na sua subjetividade. O corpo se torna, assim, uma coisa banal e perde todo seu mistério. Dentre os maiores dons que João Paulo II deixou como herança para a Igreja e para a humanidade está, sem dúvida, a sua “teologia do corpo”, que permitiu a redescoberta da riqueza plena da antropologia bíblica e da grande tradição cristã, superando visões

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reduzidas e marginais, para integrá-la em uma visão que se harmoniza com a experiência vivida, percebida como nova vivacidade fenomenológica. Para uma adequada valorização do corpo é preciso cultivar um olhar contemplativo, capaz de perceber seu mistério em relação à pessoa e à sua vocação ao amor, que encontra luz definitiva e realização plena em Cristo Ressuscitado. Eis aqui a importância deste volume, que não se contenta com um entusiasmo superficial pela novidade da teologia do corpo, mas que ilustra seus fundamentos antropológicos com uma linguagem que é, ao mesmo tempo, simples, poética e profunda. Os autores desta obra conseguiram tornar acessível, sem com isso banalizá-lo, o conteúdo das grandes catequeses de João Paulo II sobre o amor humano no plano divino, feitas entre 1979 e 1984. A contribuição deste livro se manifesta em algumas de suas características, que o tornam original e rico: 1) Apresentação do conteúdo essencial da “teologia do corpo” feita com a ajuda da obra poética de Karol Wojtyla, recorrendo, com frequência, a grandes obras da tradição literária, poética e filosófica. Isso torna ainda mais sugestiva a leitura, pois permite a relação com a própria experiência do leitor. 2) Inserção da “teologia do corpo” de João Paulo II no contexto da “teologia do amor” de Bento XVI, que consente a ampliação do horizonte teológico da antropologia, fundamentando-a sobre uma visão cristológica e trinitária. 3) Enfatização da dimensão social: a teologia do corpo ajuda a ver a comunhão de pessoas como um autêntico bem comum, que serve de alicerce para a construção da sociedade e torna possível a civilização do amor. 4) Através de referências iluminadoras, mostra o vínculo com a grande tradição patrística e teológica da Igreja. Deste modo, a novidade da “teologia do corpo” é recolocada no horizonte da história, sem dar lugar a descontinuidades ou contraposições. Com efeito, a verdadeira novidade do cristianismo não é a ruptura com a tradição, mas sim o renovado frescor do princípio que, na sua verdade, demonstra-se sempre capaz de despertar admiração e de conduzir a vida a uma conversão que a torna mais bela. Tenho certeza de que a leitura deste ágil e rico volume, fruto da reflexão de dois ilustres professores da seção norte-americana do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família, contribuirá para mostrar a beleza humana da proposta cristã que, à luz da fé, é capaz de fazer brilhar com luz sempre nova o amor entre o homem e a mulher. MONSENHOR LIVIO MELINA 5

Diretor do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família

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INTRODUÇÃO O HOMEM, CAMINHO DA IGREJA; O AMOR, CAMINHO DO HOMEM

“Vossa Santidade deixou de escrever poesias?” Foi a pergunta que alguém fez a João Paulo II quando se aproximava dos oitenta anos. Não sabemos qual foi a resposta, mas com certeza a sua veia poética não estava esgotada. A prova disso é que pouco depois ele redigiu uma de suas últimas obras, a coleção de poemas intitulada o Tríptico Romano. Nessas páginas, o Pontífice dirige o olhar, do alto de sua ancianidade, ao passado e ao futuro da história. As primeiras linhas evocam a visão da natureza. O poeta contempla a criação em movimento. Cada coisa busca, sem descanso, seu próprio lugar, como “a cachoeira prateada da torrente, que do monte cai cadenciada, levada por sua própria correnteza”1. O Papa se sente incluído neste movimento, arrastado, ele também, pelo fluxo do tempo, como o ribeiro que desce a encosta da montanha.

No princípio, a maravilha Existe, todavia, uma diferença crucial entre a descida da correnteza e o caminho que o ser humano percorre na vida. Que disseste ribeiro da montanha? Em que lugar te encontras comigo? Com aquele que passa tal e qual passas tu?2

O poeta percebe que o seu caminho não pode ser comparado ao do ribeiro. A cachoeira desce com seu próprio peso, que a leva ao rio, alargando-a no grande delta, desaguando no oceano. Mas ao homem não basta o deixar-se levar, seguindo percursos já traçados. Ele precisa saber qual é o sentido, a meta final para onde tudo avança; precisa descobrir como dirigir seus próprios passos para ela. 7

Deste modo, a pergunta do homem não se refere somente ao espetáculo da natureza. A mesma questão que ele dirige ao mundo, sonda, por sua vez, a profundidade de seu coração. Ele a lança no ar, mas como um bumerangue, volta a ele3. “Mundo, onde te encontras comigo?”, diz Karol Wojtyla. Qual o sentido dos meus passos na vida? O mesmo, com veemência, já havia confessado Santo Agostinho: “Tornei-me um enigma para mim mesmo”4. Os versos de João Paulo II revelam a inquietude perene do ser humano. Dizem respeito, especialmente, ao homem de hoje, que colocou a busca da própria identidade no centro de suas preocupações. No oceano anônimo da grande cidade, sente dissolver seu eu e se encontra sem bússola ou mapa para se orientar. O único lugar que parece lhe restar é a sua própria experiência de vida, onde cada um tenta encontrar um pouco de luz para o caminho. João Paulo II seguiu este mesmo caminho da experiência do homem. Parecia-lhe que a única forma de encontrar o homem e de acompanhá-lo era estando dentro de seu próprio drama5. Como escreveu em sua primeira encíclica: “O homem é a primeira e fundamental via da Igreja”6. Como resolver a questão que o homem é para si mesmo? São muitos os obstáculos que aparecem no caminho. Em primeiro lugar, podemos nos perguntar se, por acaso, esta pergunta não irá terminar num beco sem saída ou se não é um enigma impossível de solucionar. Karol Wojtyla colocou-se esta objeção nas obras teatrais escritas na Polônia, quando era um jovem sacerdote. Na obra A Loja do Ourives, por exemplo, publicada em 1960, indaga sobre o significado do matrimônio por meio da história de vários casais em momentos decisivos de sua relação. A primeira parte fala do noivado de Teresa e André. A jovem lembra um momento de crise, durante uma caminhada na montanha com amigos. Rodeados pela harmonia e a beleza da natureza, não conseguiam encontrar este mesmo equilíbrio na relação deles, e ao comparar a ordem do mundo que a circundava com a insegurança que a perseguia interiormente, Teresa exclama: “Só o homem parece descentrado e perdido”7. Em outra obra, Raios de Paternidade, o personagem Adão, símbolo de todo homem, confessa sentir uma sensação parecida com aquela de Teresa. É como se ele estivesse exilado num lugar estranho: “Há muitos anos vivo como homem exilado do mais profundo de minha personalidade e, ao mesmo tempo, condenado a procurá-la profundamente”8. Quem não passou por momentos parecidos como estes, em que parece impossível encontrar a resposta à grande pergunta que temos dentro de nós? Surge, então, uma tentação: reduzir a pergunta, limitar seu horizonte. Não seria possível encontrar um método claro de resolução da dúvida, descobrindo, de uma vez por todas, a nossa 8

identidade? Ao nosso alcance estão as ciências experimentais, que pretendem dar leis concisas, capazes de explicar os fenômenos em profundidade, sem deixar ambiguidades ou sombras. Elas nos dizem que a nossa vida se explica com as leis da física ou da química, que o nosso destino se realiza no ritmo da evolução. Poderíamos usar estes dados para descobrir, de uma vez por todas, o valor da vida humana? João Paulo II compreendeu que tal perspectiva leva à abolição do homem, pois o reduz a mero objeto de experimentação e de medida. A sua resposta pode ser ilustrada nas palavras de Adão Chmielowsky, o protagonista da obra de Wojtyla, Irmão de Nosso Deus. Adão, artista talentoso que deixou a pintura para se dedicar aos pobres, conversa com um estranho que lhe oferece uma solução simples para os problemas da humanidade. Basta saciar as multidões com bens materiais. Adão não ignora a necessidade do homem de alimento ou teto. Mas acrescenta que tudo isso não basta para satisfazer o seu desejo de dimensões infinitas. Com efeito, ele diz: “A miséria do homem é mais profunda que todos os bens disponíveis”9. “A pobreza do homem é mais profunda que todas as suas posses”. Tão logo se compreende esta verdade e se recusa a redução materialista, surge imediatamente outro obstáculo no caminho. A própria imensidão da pergunta pode desanimar nossa busca. Afinal, a solução não é demasiadamente elevada para nós? Por acaso não está numa altura inalcançável para os braços curtos do homem? Não corremos o risco de iniciar discussões intermináveis sobre temas impossíveis de serem esclarecidos? Apesar das dúvidas, João Paulo II não teve medo de abordar a questão. É certo que a experiência humana faz surgir no homem a pergunta sobre a sua própria identidade, e que tal pergunta o supera infinitamente. O que fazer para não se desesperar diante de tal enigma? A pista deve ser procurada no mesmo ponto de partida do caminho do homem. A diferença entre o ser humano e os animais não reside primeiramente na capacidade de fazer perguntas. Há no homem, segundo João Paulo II, algo que precede a questão sobre a própria vida. É algo que antecede a própria busca de identidade e destino e que lhe dá a certeza de que a pergunta não é um enigma indecifrável. Mas o que poderia ser anterior à inquietude pelo sentido de tudo? Assim lemos no Tríptico Romano: Que disseste ribeiro da montanha? Em que lugar te encontras comigo? Com aquele que passa tal e qual passas tu? (Deixa-me parar aqui deixa-me parar aqui – deixa-me parar no umbral aqui numa dessas simples maravilhas.) Nenhuma maravilha quando escorre a torrente,

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nem nos bosques que acompanham silenciosamente o ritmo da torrente – porém, o homem se maravilha. O umbral em que o mundo atravessa o homem é o umbral da maravilha (outrora esta maravilha foi chamada “Adão”)10.

Aqui está a resposta: o umbral que a criação atravessa no homem não é, em primeiro lugar, a capacidade de fazer perguntas, mas a possibilidade de maravilhar-se. O fato de que a maravilha tem a primeira palavra muda radicalmente todo o sentido da busca. Vejamos um exemplo para mostrar a diferença. Um aluno deve fazer uma prova de uma matéria que não estudou. Senta-se, caneta na mão e uma folha em branco diante dos olhos. Trata-se de um difícil problema de cálculo, começando já com uma complicada formulação. O professor, atento, impede qualquer olhar para a carteira do vizinho... Ninguém gostaria de se encontrar em situações deste tipo e qualquer um fugiria da sala de aula, se pudesse. Imaginemos agora outro tipo de pergunta bem diferente. Alguém chega a sua casa e encontra um presente inesperado de um amigo ou de um parente. Não sabendo o porquê do presente, começa a indagar-se sobre o motivo. Será um presente de aniversário? Celebra-se hoje algo de importante? Fiz algo de especial para um amigo? De novo encontra-se diante de uma pergunta difícil de responder, mas neste caso a questão é bem diversa, e o motivo é o fato de que existe algo que precede a pergunta. Trata-se do amor do amigo, que se manifesta no presente. Por isso, sem saber ainda o porquê do presente, já se conhece uma explicação: uma amizade, uma comunhão. A pergunta agora não paralisa nem provoca o desejo de fugir, mas abre horizontes e novas possibilidades de crescer no amor. A fadiga de entender o porquê já tem sentido desde a sua origem, muito antes da formulação de uma resposta. A pergunta da qual falamos até agora – a pergunta a respeito da própria vida, da própria origem e destino – é similar àquela que nos fazemos diante de um presente inesperado. Em ambos os casos há algo que precede a pergunta: é a maravilha diante de um dom recebido, a certeza de que a existência nos foi dada. Uma pergunta que vinda do nada imobiliza o fluxo da vida, como acontece com Hamlet em seu “ser ou não ser”. Mas a coisa muda quando a pergunta nasce da maravilha. Se surgem perguntas, não é porque falta sentido, mas porque este está sobrando. Desta forma, o homem pode ficar tranquilo quanto ao fato de que existe uma resposta, mesmo sabendo que não pode alcançá-la sozinho e que ela sempre irá além das suas expectativas. Em vez de dificultar o caminho, a maravilha representa uma força que sustenta e anima o homem a prosseguir, como se fosse levado pela correnteza de um rio copioso: 10

O homem passava junto com eles na onda das maravilhas. Maravilhando-se, sempre mais emergia na onda que o transportava, como se quisesse dizer ao mundo todo: “Alto!” “Alto! Este transcurso tem sentido” “Tem sentido... tem sentido... tem sentido...!”11.

Agora temos que introduzir um novo termo. Trata-se da palavra “mistério”, que aparecerá com frequência nestas páginas. Com esta palavra não se pretende indicar algo de obscuro, de tenebroso, que impede a visão. Ao contrário, dizer que o mundo é misterioso significa confessar que ele transborda tanto significado, que é impossível abarcá-lo com o olhar. O mistério diz respeito à grande riqueza da realidade, sempre capaz de despertar a maravilha: maravilha diante de um rosto humano querido de modo especial, diante de um lindo pôr do sol, diante do amor que outros nos revelam com suas obras... Se o mistério inclui perguntas sem respostas, não é por falta de clareza, mas por excesso de luz. Os olhos não podem encará-lo, pois ficariam cegos com seu excessivo fulgor. Dissemos, com Santo Agostinho, que o homem torna-se, para si mesmo, uma grande pergunta. Agora podemos compreender melhor o sentido dessa afirmação. O homem é uma grande pergunta, pois experimenta a sua vida como um grande mistério, um mistério que desperta a maravilha. Esta maravilha abre, por sua vez, um caminho: tornase um convite para uma viagem. Uma viagem para saber até onde e por quais caminhos é possível perguntar-se: onde é que o homem experimenta esta maravilha? Em que lugar se manifesta o mistério de sua vida?

O amor, o berço onde nasce a maravilha Muitos hoje se dão conta do risco de perder um horizonte importante para a sua existência. E não querem que a atividade sem fim, de um mundo governado por tecnologias sem rosto, dirija a sua história. Entendem que há uma dimensão da experiência humana que se abre ao mistério, que ficou obscurecida na nossa cultura e que deve ser recuperada. Há, na vida do homem, alguma janela através da qual podemos avistar este mistério? Assistimos, de fato, a um renascer da inquietude religiosa. Florescem as espiritualidades exóticas, abundam os movimentos em busca do divino. Sem dúvida, em muitos casos, esta experiência do mistério é considerada apenas um anseio místico que 11

afasta o homem do viver cotidiano. É como uma repentina iluminação com a qual se aprende a escapar de um mundo complicado. Para os que pensam assim, Deus não se encontra na correria desta terra, no vai e vem cotidiano da casa para o trabalho e do trabalho para a casa. O problema desta abordagem é que transforma a experiência do mistério em algo estranho ao que acontece no dia a dia. Assim, acaba por se estabelecer uma separação: de um lado se coloca a fé religiosa e, de outro, a vida cotidiana. A fé, neste caso, torna-se escapatória, caminho de ilusões que se afasta do caminho mundano. João Paulo II, por sua vez, oferece uma resposta diferente, fiel à tradição cristã. Ele recorre à Palavra de Deus, que diz: Ele não está no céu, para que fiquemos dizendo: “Quem subirá por nós até o céu, para trazê-lo a nós, para que possamos ouvi-lo e pô-lo em prática?” E não está no além-mar, para que fiques dizendo: “Quem atravessaria o mar por nós, para trazê-lo a nós, para que possamos ouvi-lo e pô-lo em prática?” (Dt 30,12-13)12.

Aqui aparece a grande surpresa, a boa notícia do Evangelho: a janela para o mistério se abre na própria sala de estar, no próprio local de trabalho. Como é possível? Já mencionamos antes um dos lugares em que se manifesta a maravilha, isto é, no encontro com a natureza. Mas a surpresa que nasce diante da visão das montanhas ou do imenso oceano não é a primeira nem a mais importante. Existe uma experiência mais básica que revela o mistério com maior clareza. Voltemos, por um momento, a um trecho de A Loja do Ourives, citada há pouco. A jovem relembra a beleza de certa noite nas montanhas. Compara a ordem daquele cosmos silencioso à sua relação com André. O jovem está com ela, mas o relacionamento deles atravessa um momento difícil, pois a comunicação entre os dois tornou-se complicada. Teresa relembra seus pensamentos daquela noite: Aí senti quanto é difícil viver. Aquela noite foi terrível pra mim, mesmo se foi uma noite fantástica, cheia de beleza e de mistério em plena harmonia com o mundo todo, só o homem parecia descentrado e perdido13.

Naquele momento, Teresa era incapaz de se admirar com a natureza que estava a sua volta. A gloriosa noite nas montanhas lhe evocava apenas medo e ansiedade. Era a confusão própria de quem não consegue achar seu caminho. Tudo estava em ordem: os planetas, o bosque, os animais e as plantas... Por que só ela não encontrava paz? 12

Acontece que a grande diferença entre o homem e o resto da criação, sua capacidade de interrogar-se sobre o sentido de tudo, está ligada à experiência da comunicação pessoal e do amor. Quando falta isso, como acontecia com Teresa naquela noite, é impossível que a grande questão se ilumine. Mais tarde, quando André pede a mão de Teresa em casamento, ela vive o contraste entre esse momento de felicidade e a incerteza angustiante daquela noite nas montanhas. Então, finalmente, no diálogo com André, aquele que se tornará seu marido, e no mútuo entendimento, Teresa encontra o equilíbrio que lhe faltava. Foi aqui que ela recebeu o sinal do amor, mais poderoso que todo o simbolismo da natureza. Na experiência do amor nasce a maravilha e se abre um novo caminho que leva, com o passar do tempo, à plenitude. Pode-se dizer, portanto, que para João Paulo II, o encontro com o mistério acontece na experiência do amor. Se quiséssemos descrever com uma imagem a maravilha experimentada diante do mistério da existência, poderíamos escolher o rosto de uma criança ao abrir os presentes que seus pais lhe trouxeram no dia de Natal; ou, ainda, aquele de uma mãe que carrega no colo, pela primeira vez, seu recém-nascido. Na realidade, a maravilha surge em nossa vida somente porque existe o amor. Mesmo a maravilha diante da natureza só tem sentido porque na origem da vida está uma experiência de amor. O mistério, então, não está longe de nós, encontra-se na nossa existência cotidiana; faz-se presente, de uma forma ou de outra, na vida de cada pessoa. E brota da experiência do amor, que nos acompanha, de formas distintas, do nascimento até a morte. Por isso, só quem experimenta o amor pode encontrar a resposta à pergunta sobre o seu próprio ser; somente assim se pode alcançar a felicidade. “O homem” – escrevia João Paulo II em sua primeira encíclica – “permanece um ser incompreensível para si mesmo; sua vida não tem sentido se o amor não lhe é revelado, se não o encontra”14. Estas palavras são eco de outras dirigidas a Ana, personagem de A Loja do Ourives. Trata-se de uma mulher de meia-idade, que enfrenta problemas em seu casamento: Tu, por exemplo, não consegues viver sem amor. De longe observei como caminhavas pela estrada e como procuravas despertar o interesse dos homens. Quase conseguia ouvir tua alma. Invocavas desesperadamente o amor que te falta. Buscavas alguém que te tomasse pela mão e te levasse consigo…15

Não sentimos todos, ainda que veladamente, que o amor é a verdadeira substância da qual se alimenta nossa vida? O amor se mostra ao homem como uma riqueza que o invade e, ao mesmo tempo, revela-lhe o mais íntimo de si mesmo. “No amor” – diz Karol Wojtyla – “há o sabor do homem inteiro. Contém seu peso específico e o peso de 13

todo o seu destino. Não pode durar somente um instante”16. Com efeito, o amor toca todas as dimensões da vida. O amor se descobre no corpo enquanto movimenta instintos e sentimentos, mas possui, ao mesmo tempo, uma dimensão espiritual, que manifesta a dignidade singular da pessoa amada e conduz o homem para além de si mesmo, para a transcendência, para Deus. Desta forma, o amor se torna o fio condutor que pode unir todos os compartimentos em que a cultura moderna dividiu a vida humana. A experiência do amor é o ponto de partida da visão do homem defendida por João Paulo II. Aqui temos a chave que nos permite responder à pergunta sobre o que cada um é para si mesmo. A partir daqui, o Papa pode dialogar com o homem moderno em seu próprio terreno de jogo: o da experiência humana e da busca por sua própria identidade. Mas, ao mesmo tempo – este é o toque de mestre de João Paulo II –, partir da experiência do amor evita o isolamento e o subjetivismo para o qual desliza o pensamento contemporâneo, pois se a experiência humana fundamental é a do amor, então esta experiência me faz sair continuamente de mim mesmo. O amor, onde encontro a minha identidade, abre-me ao encontro com o outro e me conduz a Deus, à Sua transcendência. Em outras palavras, João Paulo II está disposto a percorrer o caminho do homem moderno, o caminho da experiência humana, a condição em que lhe é permitido começar partindo de seu verdadeiro núcleo: a maravilha diante da revelação do amor.

Para unir a fé e a vida João Paulo II chama a atenção sobre o perigo de separar fé e vida. Acontece que, quase sem notarmos, tendemos a ver a fé como simples adição à existência cotidiana, um elemento decorativo do qual se pode prescindir. E assim, a experiência religiosa se torna um corpo estranho que não se encaixa bem no quebra-cabeça que o homem se esforça para recompor em cada jornada de trabalho ou em família. A vida real se desenvolveria na terra, enquanto que a fé fica absorta, contemplando o Céu. Ao observar esta separação, alguns críticos – entre eles, o filósofo alemão Nietzsche – acusaram a revelação cristã de destruir a felicidade, fazendo perder a alegria pela vida e desviando a atenção para um paraíso além-túmulo. Todavia, tal objeção perde força quando a pergunta do homem se focaliza à luz do amor. Em primeiro lugar, se o amor for o ponto de partida de sua busca, o homem precisa de uma revelação para percorrer o seu caminho. Com efeito, ninguém pode produzir o amor sozinho, sem o encontro gratuito com a pessoa amada e sua livre resposta. A nossa vida cotidiana, do nascer ao pôr do sol, está aberta a esta revelação do 14

amor, vai a sua direção, aguarda-a ansiosamente. Mais do que isso, a revelação do amor ocorre precisamente no dia a dia, no lugar em que cada um encontra o mundo e os outros homens. Para encontrar a luz do amor, não é preciso abandonar a dimensão terrena onde se situa a vida humana. Ora, se o destino da vida humana se joga diante do amor, então a chegada de uma revelação não destrói o homem, mas o abre à felicidade. E o cristianismo é precisamente uma revelação, que o pega de surpresa e o leva muito além de suas fronteiras. Mais ainda, a revelação cristã, como ocorre com a revelação do amor, acontece precisamente em nosso aqui e agora, dado que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Tudo o que dissemos pode ser resumido confrontando dois textos muito importantes de João Paulo II. O primeiro, no qual o Papa se refere à experiência humana, ao nosso viver de cada dia, se encontra na sua primeira encíclica: “O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si mesmo um ser incompreensível, a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se não se encontra com o amor”17. O segundo texto, uma frase que João Paulo II citava com frequência falando da revelação de Cristo, se encontra nos documentos do Concílio Vaticano II: O mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. […] Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e lhe manifesta a sua vocação sublime18.

A primeira frase nos diz que o homem encontra seu sentido no amor, enquanto a segunda afirma que o homem encontra seu sentido em Cristo. As duas não se contradizem: Cristo explica quem é o homem, revelando-lhe a plenitude do amor. O cristianismo, com efeito, concebe-se como a máxima revelação do amor. Com o apóstolo João podemos dizer que: “Temos reconhecido o amor de Deus por nós, e nele cremos” (1Jo 4,16). Tal manifestação do amor se realiza na vida, morte e ressurreição de Cristo. É por isso que o Papa Bento XVI pôde escrever em sua primeira encíclica: “E começando de lá [da contemplação do lado aberto de Cristo], pretende-se agora definir em que consiste o amor”19. Assim, a maravilha de que se falou até agora chega a seu ápice, na maravilha diante do Evangelho de Jesus: Na verdade, aquela profunda maravilha a respeito do valor e da dignidade do homem se chama Evangelho, isto é, uma Boa Notícia. É também chamada de cristianismo. Esta maravilha determina a missão da Igreja no mundo, até mesmo, e talvez ainda mais, “no mundo contemporâneo”. Esta maravilha enquanto persuasão e certeza [...] está intimamente ligada a Cristo20.

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Bento XVI enfatizou uma consequência importante de tudo isso: para receber o Evangelho não é preciso deixar de lado tudo o que a vida tem de belo e precioso. Não é necessário dizer “não” à experiência humana e à busca humana da felicidade. Pelo contrário, o cristianismo é o caminho do amor e, portanto, o grande “sim” a todas as perguntas do homem e aos seus desejos mais profundos. João Paulo II afirmou em sua primeira encíclica, Redemptor Hominis (O Redentor do Homem), que o homem é o caminho da Igreja. E se nos perguntássemos: em que consiste este caminho? Já poderíamos responder: o caminho do homem é o caminho do amor. Este caminho do amor é precisamente o que Bento XVI propôs à Igreja em Deus Caritas Est (Deus É Amor) continuando, assim, o caminho aberto por seu predecessor.

Qual é o caminho da Igreja? Neste livro, é nosso objetivo mostrar como unir a experiência humana do amor e a revelação cristã. Veremos que o amor é o caminho do homem e que a missão da Igreja consiste, precisamente, em manifestar ao mundo a verdade do amor. Esta tarefa, simples na aparência, não é, na realidade, tão fácil. O primeiro obstáculo consiste em darmos à palavra “amor” sentidos muito diferentes, às vezes contraditórios. Usamo-la para louvar o mais nobre dos sacrifícios, quando um homem demonstra fidelidade aos seus doando-lhes sua vida. Mas com a mesma palavra nos referimos ao ato do marido que abandona esposa e filhos por outra mulher: “Fez isso por amor”. Na obra de Georges Bernanos, Diário de um Pároco de Aldeia, o protagonista nos alerta contra esta perigosa ambiguidade. Estas são as palavras que ele, um sacerdote, dirige a uma paroquiana quando esta, para se justificar, fala de amor: “Não pronuncies a palavra ‘amor’, pois perdeste não só o direito, mas também o poder de fazê-lo”21. Ao problema da ambiguidade da palavra amor, acrescenta-se a escassez de uma reflexão séria sobre o tema. Muitos continuam pensando que o amor é simplesmente um tema privado, irrelevante para explicar quem somos e para ajudar-nos a construir o tecido social. Pode o amor ser, de verdade, a solução para a pergunta da minha existência? Podemos dizer que o amor é a explicação última de toda a história humana e o fundamento da realidade? Ou tal projeto é apenas uma tentativa ingênua de explicar tudo a partir de uma emoção romântica? As dificuldades para a compreensão do amor explicam porque, frequentemente, interpreta-se mal a fé cristã. Exatamente porque a fé consiste na revelação do amor, a

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sorte do amor está ligada à sorte do cristianismo. Isto quer dizer, em primeiro lugar, que quando o significado e a importância do amor se obscurecem na vida ou na cultura, torna-se muito difícil mostrar a presença do Deus cristão em nossa existência. Ele se torna um intruso, alheio às preocupações dos homens, incapaz de entrar em suas vidas. Em segundo lugar, deduz-se também que, sem a luz do amor de Deus revelado por Cristo, não se pode compreender a grande riqueza e plenitude da própria existência: perdemos a orientação nos mapas do amor e nos perdemos em seus complicados caminhos. Da mesma forma, quem recupera a conexão entre o amor e o cristianismo tem um método para abordar as perguntas que surgiram até agora. É o método que usou João Paulo II e que consiste em relacionar continuamente a experiência humana do mundo à revelação que nos traz Jesus. Por um lado, vai-se da figura de Cristo à vida do homem: contemplando Jesus compreendemos quem somos, entendemos o sentido mais profundo do que acontece conosco. Por outro, parte-se da nossa experiência de vida para chegar a Jesus: as perguntas e inquietudes do homem, o que acontece com ele todos os dias, ajuda-o a entender melhor como Cristo é o seu Salvador. Com este método, quer se desenhar nestas páginas um mapa que permita ao amor encontrar o seu caminho. Começar-se-á com a primeira aparição do amor na vida, e se seguirá por seus ir e vir até a plenitude que promete e que todo homem anseia. Na primeira parte deste livro (O amor, revelado no corpo), examinaremos como o amor se revela, abre um caminho para o homem e o convida a segui-lo. A segunda parte (A redenção do coração) tratará das dificuldades que surgem no caminho do amor e como encontrar, no amor revelado por Cristo, a força para superá-las. A terceira parte (A beleza do amor: o esplendor do corpo) mostrará como o amor de Jesus não só permite amar como Ele ama, mas também leva o caminho do homem à sua meta. Este caminho, seja no casamento ou na virgindade consagrada, conduz à plenitude final, à vida eterna na carne ressuscitada. E à luz desta esperança, podemos construir a cidade terrena, segundo a civilização do amor.

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PRIMEIRA PARTE O AMOR, REVELADO NO CORPO

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CAPÍTULO 1 O MISTÉRIO DO CORPO “A torrente que desce não assusta [...] – porém, o homem se maravilha!”22. Nossa introdução mostrou que a maravilha é o início da viagem da vida. Como se desperta em nós a maravilha? Já sabemos que brota da nossa experiência pessoal cotidiana – a experiência gaudiosa de quem se torna pai, a experiência extraordinária do amor, a experiência aliviante da ofensa perdoada. Poucas vezes o homem se detém a pensar na maravilhosa riqueza de viver. Sua vida é como uma planta que cresce num terreno fértil, tão fértil que, mesmo que as raízes se encontrem na superfície, a vegetação cresce abundante. Não faltam motivos de admiração, mesmo numa vida sem cor. Pode acontecer, entretanto, que tanta abundância cause desconcerto. O risco que se corre é aquele de perder-se num labirinto cheio de sinais que não se sabe interpretar. Basta tomar como exemplo a pesquisa feita por estudiosos britânicos com alguns adolescentes de Southampton, na Inglaterra. Os resultados revelaram uma carência significativa entre os rapazes, que dispunham de poucas palavras para exprimir seus sentimentos e emoções: eles encontravam sérias dificuldades para comunicar aos demais seu modo de reagir diante da vida. Assim, os moços pesquisados foram chamados de “analfabetos afetivos”. A pesquisa revelou que eles eram incapazes de ler e escrever no livro do próprio mundo emocional e que ignoravam o que acontecia dentro deles mesmos quando entravam em contato com o ambiente e com outras pessoas23. Isso significa que não basta ter experiências, mas é necessário perceber sua profundidade e medir sua grandeza. Como é possível fazer isso? Naturalmente, não é suficiente multiplicar o número ou a intensidade dos estímulos. Para quem não entende a beleza de uma melodia, de nada serve aumentar o volume dos alto-falantes. Melhor seria perguntar-se: é possível distinguir as experiências que constroem uma vida e abrem um futuro frutuoso daquelas que dificultam nossos passos? Podemos encontrar em nossa experiência uma bússola que oriente nossos passos? Em outras palavras, somos capazes de encontrar o significado de nossas experiências? 19

A pergunta que busca o significado, isto é, o sentido da experiência, pode parecer estranha. Com efeito, só refletindo se encontra o sentido. Mas as palavras “experiência” e “reflexão” parecem opor-se reciprocamente, de modo que podemos pensar que uma coisa seja a experiência, isto é, o encontro com a vida: viajar, ver o mundo, conhecer pessoas; e outra coisa seja a fria, abstrata e distante reflexão do pensador. Pois bem, temos que abandonar este esquema simplicista. Com efeito, lembremo-nos de que o homem não pode fazer experiência do mundo que o rodeia sem, ao mesmo tempo, experimentar a si mesmo, isto é, sem colocar-se diante da pergunta fundamental a respeito do sentido de sua própria vida: quem sou eu? De onde venho? Aonde vou? A vista dos altos cumes das montanhas não só desperta admiração diante das maravilhas da criação, mas também recorda ao homem sua própria grandeza, que se manifesta na capacidade de contemplar a beleza e recriar-se nela. Por isso a experiência, quando é verdadeiramente humana, não pode separar-se da reflexão e da busca de um sentido. O poeta T. S. Eliot exprime essa ideia na sua obra Quatro Quartetos: “Tínhamos a experiência, mas tínhamos perdido o sentido. Mas aproximar-se ao sentido restabelecia a experiência de modo diferente”24. Tínhamos a experiência, mas era incompleta, pois faltava uma reflexão, uma luz; somente a compreensão do sentido consente uma real experiência da vida e do mundo. Assim, podemos concluir que experiência e a reflexão sobre o significado não se opõem; antes, o significado faz parte da experiência e a faz plenamente humana. Como é diferente um peregrino de alguém que caminha dando voltas, debaixo do mesmo sol, com o mesmo peso nas costas; o primeiro conhece a casa de onde partiu e pensa no santuário que o acolherá no final da caminhada! Foi o desejo de abrir a todo homem o sentido profundo de sua experiência que guiou João Paulo II nas suas reflexões sobre o amor humano. Existem milhares de experiências ligadas ao amor, ao encontro entre pessoas, à união de homem e mulher. Como fazer para que estas experiências sejam verdadeiras e conduzam a vida a um porto seguro? Como fazer para que o barco não naufrague na espuma de experiências vazias? Para orientar o homem no labirinto de suas experiências, João Paulo II fala de “experiências originárias”. Vejamos ao que se refere.

Uma bússola para as experiências O Papa João Paulo II convida o homem a entrar no profundo de suas próprias experiências para compreender seu significado. Esta foi uma tarefa que o próprio Cristo nos confiou. Uma vez os fariseus lhe perguntaram: é lícito a um homem repudiar a própria mulher por qualquer motivo? (cf. Mt 19,3). É uma pergunta importante que 20

manifesta uma inquietação. É possível amar para sempre uma pessoa? Quão profundas são as raízes do amor? É possível realmente construir sobre elas uma vida inteira, até que a morte os separe? Os fariseus, porém, reduzem o alcance da pergunta a uma dimensão meramente legal: existe uma razão mínima para repudiar a própria mulher? É necessário que haja um motivo grave ou basta uma leve culpa? É daqui que Jesus denuncia a dureza do coração deles, sua incapacidade de ir à raiz da experiência amorosa e de seguir com decisão seu curso. O Mestre lhes responde: “No princípio não era assim”. E cita imediatamente Gênesis: “O homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne” (Gn 2,24). Referindo-se ao princípio da história, Jesus convida a recuperar a profundidade da experiência humana do amor. O Senhor não perde tempo com questões menos importantes, mas vai direto à raiz do problema: é possível amar para sempre? A vida de Jesus aqui na terra abriu novamente o caminho para recuperar a experiência do princípio e, desta forma, levá-la à plenitude. Seguindo o conselho de Cristo, João Paulo II volta ao livro do Gênesis para descrever este início primordial, no qual a experiência do amor se oferece ao homem em toda a sua grandeza. Ele usa os dois relatos distintos da criação. O primeiro (Gn 1,1-2,3) narra a aparição do mundo. Os Céus e a terra emergem pouco a pouco como resposta à Palavra criadora de Deus. A Bíblia nos mostra a riqueza da criação, cheia de cores e rica de variedades. No vértice de todas as criaturas aparece o homem e, com ele, uma grande novidade em relação aos demais seres: é criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26). Estas palavras – imagem e semelhança – abrem já a perspectiva da aliança entre o Senhor e o homem que percorre todo o Antigo Testamento. Desde o princípio o ser humano se define como aquele a quem Deus dirige Sua palavra; como o único que pode escutar Seu chamado e articular uma resposta em diálogo com seu Criador. Sabemos, com efeito, que o Senhor, ao cair da tarde, passeava pelo jardim e conversava com Adão. Deste modo, sendo que o homem é a resposta à Palavra criadora do Pai, o primeiro capítulo do Gênesis deixa o final aberto. Com efeito, temos escutado as palavras de Deus que cria o mundo, porém, falta-nos a resposta do ser humano. Disso se ocupa o segundo relato da criação, que começa no segundo capítulo do Gênesis. É aí que se abre para nós o acesso à experiência de Adão. Este segundo relato adota um ponto de vista diferente do primeiro: aqui é o próprio homem que fala. Escutando sua voz se aprende muito sobre seu mundo interior. Encontramo-nos aqui com a linguagem da subjetividade humana, da sua própria experiência da realidade: Adão se sentirá sozinho, alegrar-se-á com a chegada de Eva, sentirá vergonha de seu pecado. Tudo isso interessa muito a João Paulo II, que afirmou que o caminho do homem é o caminho da Igreja. E para seguir este 21

caminho do homem, não basta contemplar o ser humano externamente, mas é necessário prestar atenção às palavras de maravilha que nele crescem quando se encontra com a vida. Assim, o segundo relato da criação nos faz perceber e contemplar as experiências originais do homem, como descritas por João Paulo II. Já se pode antecipar que se trata de um trio: solidão, unidade e nudez originárias. Nestas três dá-se ao homem a pedra de toque para descobrir se está construindo seu amor sobre a rocha ou levantando um castelo no ar. Antes de tentar descrever estas experiências originárias, temos que nos perguntar se tal projeto é realizável. Com efeito, como se pode recuperar algo que aconteceu no princípio da história? E ainda: não eram as primeiras experiências do homem permeadas de uma pureza e de uma inocência que não possuímos mais, pois as perdemos por causa do pecado? Como elas podem nos ajudar a construir a felicidade numa situação tão diferente como esta em que nos encontramos hoje? Podemos responder dizendo, em primeiro lugar, que Cristo recupera para o homem a possibilidade de viver novamente tais experiências. É Ele quem responde aos fariseus e os convida a olhar para o princípio (abordaremos esta questão no sexto capítulo do nosso livro). Em segundo lugar, é preciso acrescentar que estas experiências do princípio não se perderam totalmente. Ainda é possível recorrer a elas, utilizando algumas imagens. Vejamos como isto é possível. a) O escritor inglês J.R.R. Tolkien descreve a criação do mundo em seu O Silmarillion, como se fosse uma obra musical composta pelo próprio Deus25. Quando o Criador dirigia a orquestra dos anjos, Melkor, o anjo do mal, invejoso do poder divino, quis introduzir suas próprias notas, discordes com a sinfonia divina. Esta imagem nos ajuda a pensar nas experiências originárias como uma música, cuja primeira harmonia foi distorcida pelo pecado. No princípio, Adão e Eva escutavam os acordes que o compositor queria, mas o pecado introduziu no coração do homem notas que desafinam, ruídos de fundo que ameaçam cobrir a música. Se não se presta atenção, ouve-se apenas ruído sobre ruído; mas quando se faz silêncio e se afina o ouvido, pode-se descobrir a beleza original da melodia. Essa imagem também ensina que quando se fala de experiências originárias, não se fala somente de coisas que aconteceram no passado, no começo dos tempos. “Originário” também significa fundamental: são experiências que estão na base de qualquer outra experiência. Poderíamos dizer que temos nelas o tema musical para compor qualquer outra melodia que se queira tocar na vida. Os gregos tinham a palavra 22

arché, que encerrava perfeitamente esta ideia. Arché significa o princípio do tempo, isto é, a primeira coisa que acontece. Mas também significa o fundamento, as fundações de um grande prédio que estão ali para sustentar cada tijolo da construção. Portanto, as experiências originárias são a rocha sobre a qual podemos construir o verdadeiro amor, distinguindo-o de seus substitutos. b) Passemos à segunda imagem. Estávamos no Vaticano e se preparava a comemoração do Grande Jubileu do ano 2000, convocado por João Paulo II. Entre as obras executadas para dar brilho à Cidade Eterna, havia uma de primeira grandeza: a limpeza da fachada da Basílica de São Pedro. Era preciso retirar a grossa camada de poeira acumulada com o passar dos séculos e com a poluição moderna. Os técnicos iniciaram seu trabalho com grande delicadeza, pois se tratava de manusear pedras muito antigas e de grande valor. Por esse motivo, ficaram consternados quando, depois da aplicação de seus produtos químicos, surgiu um mármore de cor verde nas janelas da fachada central. Tinham errado o tratamento, deteriorando para sempre tamanha obra de arte? Não foi bem assim. De fato, consultando os antigos mapas da basílica, deram-se conta de que haviam encontrado a cor original da pedra, que esteve coberta por tantas camadas de pó que nem mesmo os mais antigos do lugar lembravam sua beleza original. Esta perda da cor original e da sua memória nos ajuda a entender as experiências mencionadas por João Paulo II. Todo homem se lembra de ter vivido um frescor original em seu encontro com as coisas. Com o tempo, no entanto, pouco a pouco, vai se perdendo a vivacidade e a inocência do princípio, próprias de uma criança que convida a sorrir diante do mundo, e aquela maravilha original é coberta com sucessivas camadas de rotina. O filósofo Gabriel Marcel disse, com razão, que vamos nos tornando burocratas da nossa própria existência, como homens que lidam apenas com papéis, distantes dos assuntos reais que movem a vida. E, assim, um casal acaba esquecendo o amor que os motivou a decidir-se pelo casamento; ou pais acabam perdendo o entusiasmo com que começaram a educar os filhos. Termina-se por preferir a segurança de uma vida de rotina ao invés do risco de um encontro cotidiano e suas aventuras. Pouco a pouco se perde de vista a intensidade do drama que se desenvolve diante de nossos olhos e, sem querer, a vida escapa de nossas mãos26. Poderíamos comparar as experiências originais àquelas de uma criança. É por isso que o esforço feito para recuperá-las pode ser chamado também de “esforço de memória”. O homem se esqueceu de quem é, da grandeza de sua vida, dos dons de Deus que estão no começo de seu caminho. E é preciso lutar para reavivar aquela surpresa originária diante do presente da existência. Entende-se, assim, o sentido do mandamento 23

de Jesus: “Se não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos céus” (cf. Mt 18,3). Aqui não se favorece, obviamente, o infantilismo, mas a recuperação do contato original com a vida. É um convite a mergulhar na riqueza do mundo, revivendo agora, de forma madura, a capacidade de admiração da criança. Já dissemos que para João Paulo II, esta recuperação das experiências originárias só é possível no encontro com Cristo. O Redentor veio abrir o caminho de retorno. No encontro com Ele podemos recuperar o nosso passado, olhar outra vez para o mundo com olhos de criança. Isso porque o Senhor nos ajuda a recordar quem somos, nossa dignidade de filhos de Deus, amados pelo Pai. Por isso a Igreja, lugar de encontro com Cristo, pode ser vista como o lugar da memória: ela mantém viva a lembrança da presença de Jesus e, desta forma, mantém aberto o acesso à origem. No seu último livro, Memória e identidade, João Paulo II escreveu: O que aqui está em jogo não é somente o mistério de Cristo. É o mistério do homem que Nele se revela desde o princípio. Provavelmente não existe outro texto tão simples e tão completo sobre a origem do homem, como aquele contido nos três primeiros capítulos do livro do Gênesis. Não se trata somente de um relato da criação do homem como homem e mulher, mas de um esclarecimento a respeito de sua vocação específica no universo. […] A Igreja preserva em si mesma a memória da história do homem desde o princípio: a memória de sua criação, de sua vocação, de sua elevação e de sua queda. Neste quadro essencial se escreve toda a história humana, a história da Redenção. A Igreja é uma mãe que, como Maria, guarda em seu coração a história de seus filhos, fazendo próprios todos os seus problemas27.

Estas são, portanto, as experiências originais que João Paulo II convida a buscar para compreender a riqueza de nossa existência. São elas que sinalizam a direção a ser seguida no caminho da vida. O Papa apresenta estas experiências na forma de viagem e nos encoraja a acompanhar Adão na busca de sua identidade. O Tríptico Romano descreve este caminho como uma viagem rio acima, até o lugar da montanha em que nasce a fonte: Se queres encontrar a fonte Tens que subir, contra a correnteza. Persevera na busca, não desiste, Tu sabes que tem que estar aqui – Onde estás, ó fonte? Onde estás, ó fonte?28

A Teologia do Corpo de João Paulo II é um convite a esta subida, para molhar os lábios com o frescor inesgotável desta fonte.

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A solidão do princípio Vamos voltar agora ao relato do Gênesis e tratar de descobrir, à luz da revelação bíblica, o significado profundo e o sentido das experiências humanas. Após formar Adão com o barro da terra e soprar-lhe a vida, Deus diz: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Apesar de encontrar-se rodeado de muitos seres vivos, o homem sente uma grande solidão, e é esta experiência que João Paulo II chama de “solidão original”. Em que ela consiste? Poderíamos pensar que Adão estava só porque sua mulher, Eva, ainda não tinha sido formada. Uma coisa é certa: o homem não encontra nenhum auxílio que lhe corresponda nas plantas e nos animais. Nenhum deles é, para Adão, uma verdadeira companhia. Somente quando aparece Eva, pode exclamar: “Esta, sim, é carne de minha carne!” (Gn 2,3). Para João Paulo II, porém, a solidão não se reduz ao fato de que Adão não tinha ainda encontrado Eva. Se assim fosse, esta experiência seria um defeito remediado com o formar a mulher de sua costela. Ao invés, a experiência da solidão, tal como a concebe João Paulo II, continua depois do surgimento de Eva e trata-se de uma experiência fundamental de todo ser humano, homem e mulher, que os acompanha ao longo da vida. Então, como podemos entender esse sentimento, visto que não consiste apenas na ausência temporal do cônjuge? O homem experimenta a solidão original porque não encontra no mundo nada que sacie a sua inquietude. As plantas e os animais, mesmo na sua variedade de formas e cores, não conseguem satisfazer o seu desejo; por isso Adão se encontra sozinho no jardim. Falar de “solidão original” é exprimir esta condição singular do homem. É uma expressão que contém um aspecto negativo: a ausência, o horizonte aberto e incompleto. Mas o que importa é o seu lado positivo: a vida humana é dirigida para o mistério da transcendência, para o próprio Criador. Nisso consiste a solidão: o homem é criado à imagem e semelhança de Deus e é chamado a tornar-se Seu companheiro. Entre todos os seres vivos, Deus se dirige somente ao ser humano, de igual para igual, como um pai faz com seu filho ou um amigo com seu amigo. Portanto, “solidão”, segundo o Papa, não significa “isolamento”, mas abertura para o sagrado, abertura para Deus. João Paulo II se refere de outra forma a esta solidão em seu Tríptico Romano. Ele afirma que não é suficiente ao homem existir e seguir seu caminho: ele “estava sozinho em sua maravilha, entre seres que não se maravilhavam de nada”29. Já vimos como a maravilha faz com que o homem saia de si mesmo e o convida a buscar sua própria 25

identidade, a iniciar uma viagem de vastos horizontes. Agora podemos acrescentar que a solidão original é o que se encontra no início deste caminho. Santo Agostinho expressou isto com palavras muito conhecidas: “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração será inquieto enquanto não descansar em ti”30.

O corpo, testemunho e expressão da pessoa De que modo o homem descobre sua solidão original e a abertura de sua vida a Deus? Poder-se-ia pensar que para conseguir tal objetivo, o homem teria que olhar para dentro de si mesmo, fechando os olhos e isolando-se na sua intimidade, afastando-se de tudo o que é terreno. Só assim ele se daria conta de superar tudo o que não é espiritual. Não seria isto que o distingue dos animais? A resposta de João Paulo II, porém, é bem diferente. Não descobrimos nossa dignidade quando nos afastamos do mundo, mas precisamente em nosso encontro com ele, por meio de nosso corpo. De fato, a primeira experiência de Adão não consiste num isolamento em si mesmo. Ao contrário, o primeiro homem vai à descoberta do mundo que o rodeia e se dá conta de sua grande pergunta enquanto cultiva o jardim e dá nome aos animais que passam diante dele. A partir deste contato com o mundo material, começa a conhecer sua solidão original diante Deus e chega à conclusão de que a experiência dessa solidão se revela através do corpo, pelo qual o homem entra em contato com o mundo. Deste modo, para experimentar a dimensão transcendente da vida, não é preciso afastar-se do corpo ou deixá-lo de lado; ao contrário, o corpo humano é testemunha da dignidade sagrada da vida do homem. A essa altura, o Papa se apoia na concepção da própria Escritura. No livro do Gênesis, Deus modela o homem com o barro que toma da terra, umidecido com a água dos rios do Paraíso. Depois, o Senhor põe o homem no jardim do Éden, onde o cerca com uma exuberante vegetação. A Bíblia ensina, com estas imagens, que o homem pertence à criação material, que vive inserido no mundo, e sem esta relação com a terra, não pode entender a si mesmo. A Escritura designa esta sua dimensão material com o termo “carne” (que em hebraico se diz basar). “Carne” não se refere exclusivamente a uma parte do homem, mas à sua existência como um todo. Dizer que o homem é carne é afirmar que ele está em relação com a natureza e com os outros seres humanos. O homem é um ser corpóreo e através do seu corpo ele se integra na inteira criação.

Eu sou o meu corpo 26

O nosso corpo, mesmo sendo semelhante ao resto dos objetos que nos circudam, apresenta, ao mesmo tempo, uma grande diferença em relação a eles. Houve quem tentasse reduzir a vida do homem ao desenvolvimento de simples processos naturais. Em sua obra Raios de Paternidade, Karol Wojtyla põe estas palavras na boca de Adão, representante de todo ser humano: Ao longo desses anos me submergi [na busca de minha identidade] a custa de incensantes esforços, pensando, em mais de uma ocasião, cheio de angústia, que a teria perdido, que desapareceria no meio dos processos da história em que quem a decide é a quantidade ou a massa31.

O homem, porém, é muito mais que números e massa. Como afirma Wojtyla em um de seus poemas: “Os números se retiram diante do homem”32. É verdade que alguém poderia pensar que seu corpo parece muito com os demais objetos materiais. Posso dizer, por exemplo, “meu corpo” quase do mesmo modo que digo “meu carro” ou “meu cachorro”. E também posso usar meu corpo como se fosse uma ferramenta: posso apertar um parafuso com uma chave de fenda ou com minha mão. Mas isto não deve fazer-nos esquecer uma grande diferença: podem roubar nossas posses e nossas ferramentas, mas ninguém poderá jamais roubar nossos corpos. Isso porque o corpo não é um objeto nem um utensílio como tantos. Pelo contrário, é graças ao corpo que se pode possuir coisas, que se pode usar ferramentas e, com elas, transformar o mundo. O homem é capaz de usar o martelo porque tem mãos e usar o microscópio porque tem olhos. Tudo isto quer dizer que não basta afirmar que o meu corpo me pertence ou que faço uso do meu corpo, mas tenho que acrescentar: Eu sou o meu corpo33. Isto não significa que sou mera matéria ou que posso ser reduzido a processos físicos, mas que meu corpo é pessoal, que faz parte da definição mais profunda de mim mesmo. Somente tendo consciência de seu corpo o homem poderá responder à pergunta sobre sua própria identidade. A sociedade contemporânea corre o risco de esquecer a importância do corpo. É verdade que hoje se fala muito dele, da necessidade de cuidá-lo, de mantê-lo em forma. Parece que, de alguma forma, ele é idolatrado. Mas, ao mesmo tempo, ele foi reduzido a um objeto com o qual se deseja somente obter prazer. Ouve-se dizer: “Eu, com o meu corpo, faço o que quero”. Desta forma, reduz-se o corpo a uma posse, a um instrumento. Reduz-se ao silêncio sua linguagem, uma linguagem que, como veremos, orienta o homem em seu caminho. O corpo fala, diz coisas fundamentais para a existência. Hoje em dia se estuda a linguagem do corpo: o homem exprime muitas coisas sem palavras, com a postura e com os gestos. Cruzar os braços é sinal de que se quer 27

distância de um interlocutor, bem como olhar muito para o relógio demonstra impaciência. Da mesma forma, pode-se dizer que o corpo tem uma linguagem que revela ao homem o sentido de sua vida. Se ele não considera seu corpo, não poderá entender seu caminho pelo mundo. A intenção de recuperar a experiência original e de encontrar o mapa da felicidade requer que o ouvido seja treinado para reconhecer essa linguagem. O que nos diz o corpo quando estamos atentos? Para responder, fixemos novamente nossa atenção na grande diferença entre o nosso corpo e os demais corpos que nos rodeiam. Suponhamos que eu tenha diversos objetos diante de mim: um computador, um telefone, um quadro pendurado na parede. Em que eles se distinguem do meu corpo? À diferença dos objetos inanimados, o corpo humano é capaz de sentir o mundo. O quadro está pendurado na parede, mas não sente que a parede está ali; eu me apoio na cadeira e, ao fazê-lo, sinto-a. Os demais objetos têm um exterior e um interior, e podemos quebrálos e descobrir o que eles têm por dentro. Somente o corpo vivo, porém, tem interioridade, isto é, pode sentir intimamente o mundo. É por isso que o corpo é como uma ponte que faz com que o ser humano se envolva com o que o rodeia e, de modo especial, com os demais seres humanos34. Chegamos, assim, à primeira palavra que nos diz a linguagem do corpo, quando estamos atentos a ele. O corpo é, por um lado, o meio por qual participo do mundo: graças a ele, estou presente entre as coisas e as pessoas. Por outro lado, ele é também parte de minha própria identidade, da resposta à pergunta: quem sou eu? Daqui segue algo muito importante: graças a meu corpo, nunca posso definir-me como indivíduo isolado do mundo. O corpo nos vacina contra o egocentrismo que nos separa da realidade e dos demais homens. Com efeito, sua linguagem me ensina que, desde sempre, estou aberto ao mundo e em relação com ele. Diz-me que estou sempre exposto aos outros e que esta relação pertence ao núcleo mais íntimo da minha pessoa. Graças ao corpo, portanto, o homem é imerso na realidade e pode maravilhar-se diante da presença de um universo tão rico que ultrapassa sobremaneira suas expectativas. Quem diz “eu sou meu corpo” nunca pode viver como uma ilha, separado dos outros e das suas preocupações.

Corpo e lar Dado que o corpo é muito mais que uma posse ou um instrumento, é necessária uma imagem mais adequada para descrevê-lo. Podemos compará-lo com a casa onde moramos, por exemplo. Não se trata, porém, da casa como a construção de tijolos ou de

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madeira, mas sim de uma casa com a concepção de lar, de lugar onde cada um é si mesmo. No lar estamos à vontade, porque nos sentimos aceitos e acolhidos, e é por isso que o lar nos torna capazes também de receber os outros e de hospedar os amigos. Por conseguinte, a pessoa que tem um lar leva-o consigo para onde quer que vá, porque este faz parte de si mesma, do seu ser. Quantas pessoas que conhecemos criam lares por onde passam, são acolhedoras e sempre oferecem, com sua simples presença, um lugar onde sentir-se à vontade? Pois bem, temos que nos acostumar a entender o corpo como nosso primeiro lar. Como em sua própria casa, em que cada um se sente acolhido, assim também, em seu corpo, o homem experimenta como o mundo o recebe e acolhe. Com seu corpo, cada criança foi recebida no ventre materno e abraçada, em seguida, por seus pais e irmãos. E assim como na própria casa, podemos receber nossos amigos, acolher, dentro de nós mesmos, o mundo que nos rodeia, deixando que ele nos influencie, enriqueça e transforme. Ter um corpo é ser presente, relacionar-se com o outro e estar aberto a ele, ser capaz de sentir-se acolhido e de acolher na própria intimidade. Por isso, somente quem compreende a linguagem do próprio corpo pode entender que o mundo é um verdadeiro lar. Alguém disse que o homem moderno é um homem sem lar, ainda que viva num apartamento de luxo. Perdido no anonimato da grande cidade, encontra-se sempre fora de si mesmo. Isto coincide com a sua dificuldade de entender o sentido de seu corpo, que é visto como um mero objeto com o qual pode obter prazer e que pode transformar conforme seu gosto. Somente quem aceita seu corpo como parte de si mesmo, como um dom a ser cuidado com respeito e gratidão, pode se sentir à vontade no mundo. Ao contrário, quem trata seu corpo como um instrumento acaba fazendo de todas as coisas um meio para obter prazer e satisfação. A falta de lar é o que está na raiz da crise ecológica na qual o nosso mundo se encontra. Na verdade, a palavra “ecologia” vem de um termo grego que significa “casa”. O problema nasce quando o homem deixa de ver o mundo como um lar e o transforma em uma grande fábrica. Por isso, para fazer frente ao desafio de uma natureza degradada, não são suficientes novas tecnologias. É necessária uma verdadeira conversão que permita escutar de novo a linguagem do corpo, primeiro lar do homem. Somente quem se sentir à vontade e presente no mundo com seu corpo será capaz de entender que a natureza é sua morada e aprenderá a respeitá-la como tal. O corpo nos revela, quando sabemos escutá-lo, que estamos no mundo como em um lar. E isto quer dizer que nossa vida é aberta aos outros homens e que não somos 29

autossuficientes, que pertencemos a outros e devemos nos abrir a eles para acolhê-los em nossa intimidade. Quem aceita seu corpo como parte de si mesmo já não se sente isolado. Graças ao corpo, desde o início da sua vida, o homem se encontra no meio do mundo, que descobre com surpresa e ao qual deverá responder. A seguir veremos como o corpo, misteriosamente, ajuda o homem a abrir-se a Deus e a escutar Sua palavra. Precisamente o corpo, que parece a coisa mais terrena e afastada do divino que existe.

Deus fala com o homem em seu corpo Temos dito que o corpo permite ao homem romper o isolamento com seu ambiente e com as demais pessoas. Quem aprende a linguagem do corpo é convidado a abrir os olhos e as mãos, a deixar-se surpreender pelo mundo e a participar dele. Mas isso não é tudo. Sabemos que, como explica Gênesis 2, o homem supera, em muitas coisas, os animais. Nada do que Adão encontra no jardim consegue satisfazer totalmente a sua inquietude nem completar a sua busca pelo sentido da vida. Esta experiência fundamental – de não saciar nossa sede com o que nos circunda – é o que temos chamado de “solidão original”. Ao contrário do que acontece com os animais, o caminho humano se abre à transcendência, ao próprio Criador, único lugar onde o coração do homem encontra repouso completo. Se isto é verdade, então o corpo, como ponte que une o homem ao mundo, terá que falar também a linguagem do divino. É preciso dizer que o encontro de Adão com as coisas não termina nelas, mas o convida a olhar mais além, rumo ao próprio Criador. Façamos um exemplo concreto de como o corpo nos dirige para Deus. Graças a seu corpo, o homem sabe que nasceu, que seus pais o trouxeram à existência. Este corpo, que contempla cada manhã diante do espelho, formou-se lentamente no ventre de sua mãe e veio à luz após nove meses de paciente gestação. Pois bem, nenhuma mulher possui o mistério do ser de seu filho: esta formação prodigiosa nos encaminha, portanto, a um início transcendente, rumo ao Criador de tudo. Segundo a Escritura, assim como o oleiro modela o barro, Deus forma o corpo do homem no ventre materno (cf. Jr 1,5). O corpo testemunha que ninguém deu origem a si mesmo. Se escutarmos com atenção sua linguagem, ele revela que Deus é o princípio da vida humana: “Pois Tu formaste meu ser profundo, Tu me teceste no ventre de minha mãe” (cf. Sl 139,13). Por outro lado, temos a experiência de sermos mortais. Aqui se confirma, no outro extremo do espectro vital, a mesma verdade. A experiência da morte é outro modo de

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exprimir não só a diferença fundamental entre o homem e os animais, mas também a forma diversa deles participarem no mundo. Somente para o homem a morte é um problema, uma questão que não se pode ignorar. Por isso, quando se encontram monumentos funerários em escavações arqueológicas, sabe-se que o homem esteve ali. É precisamente o corpo, em sua debilidade e pobreza, que testemunha a incapacidade do homem de derrotar a morte e obter, por si mesmo, a vida sem fim que deseja. O corpo testemunha essa verdade por meio das doenças, do cansaço, da fragilidade própria da carne. A consciência da morte que o corpo continuamente recorda ao homem mostra sua solidão original e que seu último destino está nas mãos de Deus. Podemos dizer, então, a partir desses exemplos de nascimento e morte, que assim como o corpo nos abre à realidade, ele nos revela também nossa conexão com o mistério absoluto, com o próprio Deus. Descobrimos, assim, que a linguagem do corpo tem um sentido transcendente, que vai além de si mesmo. Quando digo “sou meu corpo”, estou dizendo ao mesmo tempo: meu próprio ser é algo que está além de mim, uma referência ao mistério que contém todas as coisas, uma relação com Deus. Graças ao corpo, entendemos que recebemos a existência de outro e que somente este outro pode sustentar nossos passos. Graças ao corpo, sabemos que nossa vida é uma viagem, cuja primeira origem e último destino estão no Pai, o Criador do Universo. Dissemos que o corpo é como um lar onde acolhemos a realidade que nos rodeia. Refletindo sobre como nossa vida se abre a Deus, podemos acrescentar que este lar nunca se preenche completamente, mas se revela sempre maior para receber ainda mais. A casa do corpo tem seus horizontes na transcendência, no próprio Deus. Por isso, esta casa é, na realidade, um templo, como diz São Paulo na Carta aos Coríntios: “Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós?” (1Cor 6,19). O corpo nos permite, assim, entender melhor a busca que Adão iniciou para encontrar o sentido de seu caminho. “Conhece-te a ti mesmo”, dizia o oráculo grego. Este conhecimento passa através de nosso corpo. Quem aceita o próprio corpo, dá-se conta de que o segredo de sua vida não está em suas próprias mãos, mas que deve recebê-lo a cada dia no encontro com o mundo e com os outros. Dá-se conta, sobretudo, de que sua vida se abre para um mistério que o supera, o mistério do Criador. Poderei dizer “eu”, poderei ter um nome, somente quando Deus me dirigir a palavra e eu Lhe responder. O homem descobre-se somente quando entra em diálogo com Deus, quando Deus se dirige a ele e lhe fala, assim como falou com Adão no Jardim do Éden. Ao aceitar nosso corpo com gratidão como primeiro dom do Criador, já estamos pronunciando as primeiras sílabas de uma resposta. 31

Deus confia o corpo ao homem como uma tarefa Vamos continuar escutando a linguagem do corpo. Veremos que ele também nos dá oportunidade para entendermos a liberdade humana, outro elemento que distingue o homem dos animais. Mas ela tem algo a ver com o corpo? Há quem diga que o homem, para ser livre, precisa eliminar as limitações de espaço e de tempo em que o corpo o encerra. Com as manipulações genéticas e as novas cirurgias, poderá finalmente modelar o corpo como desejar e gozar de liberdade sem limites. Entretanto, quem tiver os ouvidos afinados para ouvir a linguagem corporal perceberá logo o erro dessa perspectiva: somente no corpo é possível ter a verdadeira liberdade. Um exemplo nos ajudará a compreender melhor o que estamos dizendo. Pensemos em um compositor que, com sua arte, exprime seu mundo interior a outras pessoas e lhes comunica a beleza. Imaginemos dizer a este músico: “Estás escravizado pelas leis físicas do som; o ar que transmite às notas musicais é um obstáculo para a tua música”. Imaginemos que o encorajamos a buscar outros meios de transmissão mais rápidos, que ofereçam menos resistência ao som. Este músico nos responderá: “O que vocês chamam de obstáculos não o são para mim. Ao contrário, a resistência do ar, a forma concreta com que os instrumentos vibram, o fato de que tenho que me esforçar para movimentar as cordas do violão ou as teclas e pedais do meu órgão... Tudo isso é precisamente aquilo que me consente exprimir minha música e, assim, estar em comunhão criativa com o mundo”35. O que dissemos do músico pode se aplicar a qualquer artista: ao escultor que trabalha o mármore, ao pintor que mistura as cores; o escultor nunca falaria da pedra como uma limitação, uma prisão que lhe rouba a liberdade; o pintor jamais diria que a sua paleta o impede de expressar sua arte. Como a liberdade do artista, a liberdade humana é a capacidade de comunicar de modo criativo. Pois é exatamente o nosso corpo, como vimos, que nos torna aptos a participar da realidade e nos comunicar com os outros homens. Se a liberdade humana não fosse encarnada, sem dúvida nenhuma poderíamos jogar com mil possibilidades hipotéticas, mas não seríamos capazes de criar nada de belo ou de compartilhar nossa expressão de beleza com nossos irmãos. Tenhamos presente o que dissemos antes: o corpo, ao se abrir ao mundo, abre-se também ao infinito, abre-se ao próprio Deus. Com efeito, foi o Criador quem formou cada homem no ventre materno, e é o Único que pode sustentá-lo além da morte. Por isso podemos dizer que há um chamado de Deus escrito no corpo e que a liberdade humana é sempre uma resposta à Sua voz. Assim como o artista recebe do Alto a

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inspiração e logo a plasma nas notas da escala, assim o corpo ajuda o homem a receber sua vida como dom de Deus e a responder com gratidão a Seu convite ao amor. O corpo ensina, portanto, que ser livre não é viver sem limitações, fazendo tudo o que se tem vontade, mas sim ser capaz de receber nossa vida como um dom do Pai e responder-Lhe com gratidão e amor. Assim, o caminho da nossa liberdade se transforma numa viagem para a transcendência, para Deus. Fecisti nos ad te, diz Santo Agostinho em suas Confissões: “Tu nos fizeste para Ti”36. Seguindo a vereda da liberdade, o homem se aproxima de Deus e cresce na amizade com Ele. Isso é o que entende Bento XVI quando fala do corpo como “região da liberdade”37, ou seja, para sermos livres, não precisamos escapar do corpo, como se ele fosse uma prisão. Ao contrário, temos que acolhê-lo, aceitá-lo como um presente que permite nos comunicarmos criativamente com os outros homens, usando a linguagem do amor. E é João Paulo II que nos recorda que o Criador deu ao homem o corpo como tarefa38. Dizem que aos quinze anos ainda não somos responsáveis por nosso rosto, mas aos cinquenta, sim. De fato, nosso rosto encerra todas as decisões que vamos tomando na vida: tristeza ou alegria, esperança ou desespero, assim como o tronco de uma árvore tem gravado em cada anel os anos de seca ou de chuva. Nosso corpo nos foi dado para que o modelemos, como é dada a pedra ao escultor ou o som ao músico. Seguindo o convite escrito no corpo, podemos fazer dele uma expressão de nosso amor a Deus e aos demais homens. Uma forma importante por meio da qual o homem experimenta a liberdade no seu corpo é o trabalho, e a primeira tarefa que Deus dá ao homem no Jardim do Éden é a de cuidar da terra. Graças ao corpo, ele pode trabalhar e entender seu esforço como uma bênção. Como o corpo é o primeiro lar do homem, seu trabalho, por sua vez, converte o mundo que o rodeia em um grande lar e o torna habitável. Além disso, trabalhando o homem transforma a si mesmo. João Paulo II, que experimentou a dureza do trabalho manual em uma fábrica da Polônia, dá grande importância ao que ele chama de “lado subjetivo do trabalho”. Com este conceito, refere-se ao impacto que o trabalho exerce sobre o próprio trabalhador, no desenvolvimento do seu caráter e da sua identidade39. Isto quer dizer que a qualidade do trabalho não pode ser medida pelo número ou pelo valor dos objetos produzidos. Precisamente porque o homem trabalha com seu corpo, o trabalho não pode ser totalmente externo a ele, nem ser avaliado pelo preço de mercado. Ao transformar o mundo, o homem mesmo se transforma, se enriquece ou se empobrece segundo a qualidade de sua ação.

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Não devemos esquecer que a vida do homem é uma viagem rumo a Deus e que seu contato com o mundo está aberto ao mistério do Pai. Então, podemos dizer que todo trabalho humano – atividade corporal pela qual o homem dá forma ao mundo e a si mesmo – é uma liturgia, um serviço divino. Trabalhar, então, será dar ao mundo a forma da nossa relação com Deus e incluir tudo o que fazemos no louvor ao Criador. Tudo o que dissemos sobre a dignidade do corpo é resumido nesta frase de São Paulo: “Glorificai, portanto, a Deus, em vosso corpo” (1Cor 6,20). O corpo foi dado ao homem para que nele glorifique a Deus. Precisamos aprender a recebê-lo cada dia como um dom Seu e como oportunidade para responder a todos os Seus presentes. Por meio do corpo, compreendemos que nossa vida vem do amor e é feita para o amor. O místico oriental Simeão, o Novo Teólogo (949-1022), evidencia esta maravilha diante de seu próprio corpo: Vejo a beleza de tua graça, contemplo seu fulgor e o reflexo de sua luz; arrebata-me seu esplendor indescritível; sou impelido fora de mim enquanto penso em mim mesmo; vejo como era e o que sou agora. Ó prodígio! Estou atento, cheio de respeito para comigo, de reverência e de temor, como se estivesse diante de Ti; não sei o que fazer porque a timidez me domina; não sei onde sentar-me, por onde aproximar-me, onde reclinar estes membros que são teus; em que obras ocupar estas surpreendentes maravilhas divinas40.

Neste capítulo nos interrogamos sobre o caminho do homem. Há, em nossa vida, mil experiências que nos cativam e atraem: como encontrar o mapa que nos oriente no meio elas? João Paulo II responde falando das experiências originárias. A primeira é a solidão, vivida por Adão no Paraíso. Esta solidão nos acompanha sempre: é a experiência que nos recorda que viemos de Deus e fomos feitos para Ele. A isto, acrescentamos que, para viver a solidão originária, não precisamos nos afastar do corpo. Ao contrário, o corpo nos diz que nossa origem e destino estão em outras mãos, nas mãos do Criador, e que a nossa vida consiste numa viagem em Sua direção. O próximo capítulo explorará o modo com que o corpo revela o amor no encontro entre o homem e a mulher. Somente quando se encontra face a face com Eva, Adão consegue compreender a alegria de sua existência e se esclarece para ele por que seu corpo lhe abre um caminho para Deus.

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CAPÍTULO 2 A DIFERENÇA SEXUAL: UMA VOCAÇÃO AO AMOR

Adão, como nos mostrou o primeiro capítulo, vai à procura da sua própria identidade, deseja saber quem é, qual é o seu nome. Descobre a maravilha que o move, quando encontra o mundo e sua riqueza. Sabe que sua viagem começa em Deus e vai rumo a Ele. Todavia, perguntas ainda ficam no ar. De que forma poderá viver sua aliança com um Deus que não pode ver nem tocar? Que caminho seguir, no mundo sensível, para encontrar o Criador inefável e escondido? Não devemos esquecer que é no seu corpo que o homem se abre ao encontro com o mundo e descobre nele uma promessa de felicidade. Seu corpo lhe faz experimentar a maravilha e escutar o convite para ir além de suas próprias fronteiras. Por isso, toda experiência que ilumina seu caminho rumo a Deus deve dar-se também no corpo, fronteira do homem com seu mundo. Que nova maravilha lhe apresenta a vida corpórea? Não há dúvida de que se trata do encontro entre Adão e Eva, a primeira mulher. Só agora será revelada ao primeiro homem a profundidade de sua existência. A este propósito, João Paulo II fala de outra experiência basilar: a “unidade originária”. Descobrimos aqui o quadro que orientará a viagem de Adão na busca da fonte da qual tudo provém.

Encontrar o amor: “Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!” Bem sabemos que o amor não pode ser produzido pela nossa vontade. Aparece como uma revelação e tem sempre um elemento inesperado, surpreendente. Acontece de forma gratuita, pegando-nos de surpresa. Isso vale também para Adão, que não pôde criar seu encontro com Eva. O primeiro homem, sozinho, não poderia ter imaginado a mulher, e

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muito menos fazê-la aparecer. O texto bíblico, usando uma imagem, o mostra claramente: antes de criar Eva, relata o livro do Gênesis, Deus fez Adão cair num sono profundo. E assim, enquanto ele dormia, o Criador formou o corpo da mulher a partir de uma de suas costelas. É Deus mesmo que apresenta a mulher a Adão como auxílio adequado para o seu caminho. Por isso, não surpreende que, ao encontrá-la, o homem exulte de alegria: “Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!” Diante de Eva, o primeiro homem descobre uma superabundância de bondade, uma promessa que o invade e plenifica. É uma nova descoberta, que alarga e enriquece o horizonte de sua viagem vital. “Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!” (Gn 2,23). Observemos que Adão se refere aos ossos e à carne. Isto quer dizer que o corpo humano é o lugar próprio onde o amor se revela. Como vimos antes, existir no corpo significa estar aberto ao mundo e participar dele. Pois é precisamente esta abertura que permite o encontro com a pessoa amada, carne da própria carne, e dá a possibilidade de compartilhar com ela um mundo comum. Um mundo comum. Já temos explicado como Adão, graças a seu corpo, é presente no mundo e entra em contato com aquilo que o rodeia. Agora podemos dizer que o corpo, através dos sentimentos e da afetividade, oferece a possibilidade de entrar no mundo da outra pessoa e de ver a realidade com os olhos dela. Não se diz que os namorados são capazes de intuir o que acontece dentro da outra pessoa? Pois o corpo é uma ponte que une Adão a Eva, e Eva a Adão. Karol Wojtyla, na sua obra A Loja do Ourives, coloca na boca de André – que acaba de receber o sim de Teresa para se casar com ele – as seguintes palavras: “Vejo hoje que seu mundo é também o meu, e o que eu sonhava era lançar uma ponte”41. Certamente, o corpo pode também se tornar uma barreira que isola o homem em si mesmo e o torna inacessível aos outros. Aprende-se, por exemplo, a mentir com o corpo, do mesmo modo que se mente com as palavras. Mas isso é algo que vai contra sua natureza, e, desta forma, ele é amordaçado para não usar sua linguagem de abertura e de participação. Segundo Gênesis, o corpo foi feito por Deus para ser uma ponte que une as pessoas, e não uma barreira que as separa; ele não foi dado ao homem para excluir os outros de sua vida, mas para permitir-lhes entrar nela. Pois bem, é esta experiência compartilhada do mundo que João Paulo II chama de “unidade originária”. O Papa descreve o amor como o modo com que uma pessoa habita o espaço interior de outra. Em A Loja do Ourives, por exemplo, André fala de sua relação com Teresa como “uma estranha persistência de Teresa em mim”, “uma estranha 36

ressonância”. Na mesma obra, Ana fala nestes termos de seu amor por Estevão, um amor atormentado e em perigo de ruptura: “Não é algo terrível condenar as paredes do próprio coração a acolher outro morador, que poderia deserdar-te e roubar, de certo modo, teu lugar dentro de ti mesma?”42. Para entender esta participação no mundo do outro, basta pensar em nossas emoções e afetos. Através deles, o homem se torna vulnerável ao que o rodeia, a tal ponto que o que acontece ao seu redor pode tocá-lo no íntimo e modelar sua identidade. Esta abertura não é algo negativo, um inconveniente que se deve evitar a todo custo, pois, ainda que às vezes provoque sofrimento, possui uma vertente valiosa: a união afetiva com a pessoa amada enriquece a existência e nos faz participar de seu mundo, ampliando ainda mais o alcance da vida.

O amor, uma nova criação O corpo nos revela, portanto, outro modo de estar no mundo, por meio da nossa união com a pessoa amada. Nossa vida se expande ao tornar-se também vida do outro. Agora o mundo já não está diante de mim só para ser explorado e dominado, mas, através do amado, tornou-se um mundo para mim, foi-me oferecido, foi-me presenteado. Tal descoberta tem um grande impacto na busca do homem por sua identidade. De fato, João Paulo II a compara com uma segunda criação. Podemos usar, novamente, a imagem do sono no Paraíso. Fazendo Adão adormecer, é como se Deus dissesse: é preciso recomeçar a obra da criação, vamos ter que recuar, pois o projeto não ficou pronto. Em outras palavras, a criação do homem não está terminada enquanto este não existe como homem e mulher, para que se tornem uma só carne. Enquanto Adão existir sozinho, não chegará a ser ele mesmo. Antonio Machado intuiu isto, quase sem querer, quando disse: “Dizem que o homem não é homem enquanto não ouve seu nome dos lábios de uma mulher”43. Agora Adão consegue pôr fim à única coisa que não ia bem no Jardim do Éden: “Não é bom que o homem esteja só”44. As mãos divinas terminaram Sua obra-prima, modelando o homem como uma unidade de dois seres, a caminho do que João Paulo II chamará de “comunhão de pessoas”. A nossa experiência nos confirma esta interpretação do livro do Gênesis: encontrar-se com o amor significa ser criado de novo, transformar-se em nova criatura. Portanto, quando amamos alguém, nós o estamos criando de novo. Isso fica claro quando pensamos que amar não é só apreciar as qualidades do amado ou a utilidade dele pra mim, mas significa também alegrar-se com o seu próprio ser. Amar é dizer ao outro,

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como o filósofo Josef Pieper: “Que bom que tu existas!”. E se isto é verdade, então o amor tem um poder criativo, participa do ato próprio de Deus. O Senhor, com efeito, ao criar, viu que “tudo era bom” e, depois de modelar o homem e a mulher, declarou que “tudo era muito bom”. Da mesma forma, o poder do nosso amor cria de novo a pessoa que amamos, quando diz “que bom que tu existas!”45 Em A Loja do Ourives, Karol Wojtyla usa uma bela imagem para exprimir esta nova criação de duas pessoas em uma. Ana, cujo casamento atravessa uma crise profunda, procura o ourives (símbolo de Deus) para devolver sua aliança de casamento. Nas palavras de Ana entendemos o que acontece: O ourives examinou o anel, pesou-o demoradamente na palma da mão e me fixou nos olhos. Leu devagar a data do nosso casamento, gravada na parte interna da aliança. Voltou a olhar-me nos olhos e colocou o anel na balança... Depois disse: “Esta aliança não pesa nada, a balança indica sempre o zero e eu não posso obter dela nem sequer um miligrama. Sem dúvida alguma seu marido ainda vive – pois nenhuma aliança separadamente pesa alguma coisa, mas somente as duas juntas. Minha balança de ourives tem a peculiaridade de não pesar o metal, mas toda a existência humana e seu destino”46.

Antes de continuar na companhia de Adão em sua busca, façamos uma pausa para recordarmos onde o levou seu caminho até agora. Resulta que Adão só consegue responder à pergunta sobre sua própria identidade quando relacionado a Eva, sua mulher. E assim, com este novo encontro, o horizonte de sua busca, ao invés de reduzir-se, ampliou-se ainda mais, pois abraçou também o caminho dela, à sua vez, cheio de inquietudes. Adão aprendeu uma grande verdade: o amor é “um dos processos do universo que produzem síntese, que unem o que está separado e que ampliam e enriquecem o que é estreito e limitado”47. Podemos agora traçar as linhas do retrato da união do amor, esboçado acima? Para fazê-lo, é necessário voltar novamente o olhar para a linguagem do corpo, que nos revela a complementaridade do homem e da mulher. Em seu ser masculino e feminino, ambos tornam-se auxílio adequado para o outro no caminho rumo ao horizonte último.

Identidade e diferença 38

No primeiro capítulo falamos do corpo como a forma humana de estar no mundo, como se este fosse um lar. No corpo, cada um está aberto a seu ambiente e o recebe em si, como se recebe um hóspede em sua própria casa. Agora podemos acrescentar que, graças ao corpo, o mundo pessoal se transforma num mundo compartilhado com a outra pessoa. De fato, para que haja um lar, é necessário um encontro entre homem e mulher, que formam uma casa comum. É como os edifícios de uma cidade medieval que, circundados de uma muralha, tornam-se uma única fortaleza. Como diz Ana em A Loja do Ourives, o amor é o ato de confiar “as paredes do próprio coração a outro morador”48. E assim, o amor entre homem e mulher aponta para uma comunhão em que os dois se tornam uma só carne. Para construir esta comunhão, é preciso levar em conta duas dimensões, que chamaremos de “identidade” e “diferença”. Trata-se de elementos que constituem qualquer relação com outras pessoas e que são, por isso mesmo, essenciais para entender o significado do amor em geral. Mas ambas se revelam singularmente no amor entre homem e mulher, onde aparecem a masculinidade e a feminilidade. Analisemos estas duas dimensões do amor humano: a) No livro do Gênesis, lemos que Eva foi formada por iniciativa de Deus, sem que Adão participasse de sua criação. Deste modo, evidencia-se a igual dignidade de Adão e Eva: Eva vem de Deus, do mesmo modo que Adão foi plasmado por suas mãos. Esta idêntica dignidade se manifesta na forma em que o livro do Gênesis se refere a eles quando se encontram. O nome “Adão” contém em si o termo hebraico hā’adāmāh, que significa “terra”. Assim, Adão é definido, inicialmente, como aquele que vem do solo, referido ao barro do qual foi criado. Porém, quando encontra a mulher, Adão é denominado homem, que em hebraico se diz ’iš. A mulher é chamada ’iššāh porque foi tirada do homem ’iš49. É como se Adão, até então alguém vindo da terra, tivesse aprendido seu verdadeiro nome no encontro com a mulher, sua existência como homem só tem sentido porque há um correspondente ser feminino, a mulher. Por isso, longe de relegar à mulher um estado inferior, a história de Gênesis nos faz ver que os primeiros pais, macho e fêmea, são idênticos em sua dignidade e em sua comum humanidade. Qual é o significado desta identidade entre Adão e Eva? Voltemos novamente à experiência da solidão originária, da qual falamos no capítulo anterior. Acontece com Eva o mesmo que aconteceu com Adão: seu corpo não pode ser comparado a nenhum dos corpos que a rodeiam no jardim do Éden, sejam plantas ou animais. Ora, o que diferenciava Adão dos seres ao seu redor? João Paulo II menciona aqui a solidão original: no seu encontro com o mundo, o homem se abre à transcendência, a Deus. Podemos, então, deduzir que, quando Adão exclama: “Esta, sim, é carne de minha 39

carne!”, afirma a solidão originária de Eva, sua dignidade única no meio dos outros corpos que a circundam. Em outras palavras, Adão reconhece em Eva alguém com quem finalmente pode compartilhar um mundo aberto para Deus. A busca de Adão, até agora solitária, tornou-se, de repente, uma busca comum com Eva: cada um se transforma no auxílio adequado para o outro na viagem rumo à fonte. b) Consideremos agora a segunda dimensão do amor, a diferença. A união de Adão e Eva, o mundo compartilhado, não elimina a distinção entre os dois. Unidos no amor, são, por um lado, idênticos em sua dignidade de criaturas abertas a Deus. Mas, ao mesmo tempo, cada um exprime sua dignidade de forma diversa. Esta diferença é crucial, pois lhes dá a consciência de que um necessita do outro e os lembra que eles não têm, em si mesmos, o que necessitam para serem felizes. E isso se torna um convite a enriquecer a própria experiência, a ver o mundo do ponto de vista do outro. Por isso, a diferença entre o homem e a mulher, inscrita em seus corpos, é o começo de um movimento, de uma viagem, que conduz cada um deles para além de si mesmos. Esta diferença entre Adão e Eva os salva do trágico destino do personagem mitológico chamado Narciso. Sobre ele caiu a maldição de uma deusa ressentida por um amor não correspondido. O castigo foi cruel: Narciso se apaixona por sua própria imagem refletida numa lagoa. Era como estar encerrado numa prisão, condenado à vã tentativa de abraçar a si mesmo. Quanta diferença com Adão e Eva, chamados cada um a colocar-se a caminho, rumo a algo maior, na maravilha de um encontro rico de horizontes! O poeta Ovídio assim fala a Narciso: Ingênuo, a que serve ir atrás de vãos fantasmas fugitivos? O que buscas não existe; o que amas, tu o perde, enquanto te voltas. Esta sombra que vês é somente um reflexo E não possui nada que lhe seja próprio: como te segue também para contigo, vai para onde vais, se é que consegues ir para algum lugar50.

Com Adão e Eva dá-se algo diferente do que acontece com Narciso. Eles não ignoram sua mútua diferença, e isso, além de libertá-los de uma visão centrada em si mesmos, leva-os para além de suas fronteiras: movendo-se um para o outro, podem avançar juntos para um horizonte comum. O livro do Gênesis usa a palavra hebraica kenegdô para referir-se a Eva como um auxílio similar a Adão. Literalmente kenegdô significa: estar face a face, olhando para a outra pessoa. Este termo bíblico capta, assim, a humanidade idêntica de Adão e Eva e, ao mesmo tempo, deixa-nos ver a diferença entre os dois.

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Se o corpo é sempre masculino ou feminino, é nele que temos que nos concentrar para estabelecer a diferença entre o homem e a mulher. Antes de tudo, devemos insistir que esta diferença não quer dizer simplesmente diversidade. Os seres humanos são diferentes devido à sua raça, classe social ou devido aos variados talentos e dons. Esta diversidade não significa, necessariamente, referência à outra pessoa, não inclui aquele “face a face”, que exprime a palavra kenegdô. Um homem de grande estatura não precisa de um baixinho para medir sua altura. Analogamente, podemos compreender os costumes de uma tribo africana sem precisar compará-los com o modo de viver dos habitantes da Ásia ou da Europa. As coisas mudam, radicalmente, quando consideramos a sexualidade, pois ela não tem sentido sem uma relação face a face. O masculino e o feminino não são somente diversos, mas também complementares: complementaridade significa que é impossível entender um dos sexos sem conhecer o outro. O cardeal Angelo Scola explica que a palavra “diferença” vem do latim differre, que significa “levar para outro lugar a mesma coisa”51. Esta ação de transportar algo a outro lugar não cria simplesmente uma diversidade, mas confere um toque variegado a uma mesma coisa, como uma forma distinta de ser o mesmo. Pois bem, este toque diferente se refere, no homem e na mulher, ao seu modo de dirigir-se ao absoluto, a Deus. Na realidade, masculino e feminino são duas formas diferentes de viver a abertura do corpo humano à transcendência, duas formas de experimentar o corpo como abertura à fonte do amor. Assim, João Paulo II pode afirmar que o masculino e o feminino são duas diferentes encarnações da solidão originária, quer dizer, duas formas em que o mesmo ser humano, criado à imagem de Deus (cf. Gn 1,27), é um corpo52. Segundo esta lógica, o masculino e o feminino, sugerem-nos o modo com que o homem deve seguir o seu caminho para entender plenamente sua vocação ao amor.

Sexo e “gênero” Conseguimos dar uma primeira olhada na conexão entre identidade e diferença na relação entre homem e mulher. Esta diferença não fica apenas na superfície de nossa vida, mas alcança a profundidade do que somos. Muitos promovem hoje uma distinção entre sexo e gênero (palavra derivada do inglês “gender”), com tendência a contrapor os dois conceitos. Assim, virou moda, por exemplo, falar de “violência de gênero”. Por trás deste modo de falar, esconde-se uma ideologia, uma certa visão do homem, que entende sexo como as características biológicas do homem e da mulher. Assim, o sexo indicaria um simples fato: somos macho e fêmea e possuímos órgãos reprodutivos diferentes. Gênero, por sua vez, refere-se à forma concreta com que cada cultura, ou cada pessoa, 41

vive o ser homem ou mulher: como, por exemplo, quando se distribuem diferentes papéis femininos ou masculinos. A teoria defende que as duas dimensões (biológica e cultural) não têm relação intrínseca. O sexo, o ser homem ou mulher, é visto como uma propriedade a mais do corpo, sem ter muito a ver com a decisão pessoal e livre. O gênero seria o humano verdadeiro, aquilo que é determinado culturalmente e que varia de um lugar para o outro, de um povo para o outro. O problema desta visão é que ela separa duas dimensões intimamente unidas. Não existe, na realidade, uma “mera biologia” humana. Pelo contrário, a masculinidade e a feminilidade (dimensões do ser encarnado), são parte integrante da própria identidade do ser humano. Como vimos no primeiro capítulo: é no corpo que nos situamos no mundo e participamos dele, e é o corpo que nos ensina a conceber a vida como uma viagem rumo à transcendência. O corpo não é um simples dado sem significado, que cada um pode modelar como quer, segundo um projeto próprio de autorrealização. É um dom fundamental que traz consigo uma mensagem, um chamado, uma orientação para a felicidade, que faz com que seja possível a liberdade humana. Somente a partir daqui se pode criar uma verdadeira cultura. Esta visão nos conduz a um modo diverso de ver a sexualidade. O ser homem ou mulher diz respeito à participação humana no mundo, às ações e ao modo de construir a cultura. Em outras palavras, a voz do eros, da atração sexual pelo sexo oposto, é um dom que precede o homem, é um chamado primordial. A liberdade consiste em responder a esse chamado de forma criativa, construindo, assim, uma cultura autenticamente humana. Como disse Bento XVI, “o eros está de certo modo enraizado na própria natureza do homem”53. É o ponto de vista do amor que nos ajuda a ver a unidade entre estas dimensões da vida humana. O amor “toma o sabor da pessoa”, lemos em A Loja do Ourives54. Por isso mesmo, ele nos impede de dividir o nosso ser em elementos sem conexão. Bento XVI analisou esta tendência à fragmentação em sua primeira encíclica, Deus Caritas Est: “O epicureu Gassendi, brincando, dirigia-se a Descartes com a saudação: ‘Ó, Alma!’. E Descartes replicava dizendo: ‘Ó, Carne!’. Mas, nem o espírito nem o corpo amam sozinho: é o homem, a pessoa, quem ama”55. A chave de leitura desta passagem é clara: não se ama só com o corpo nem só com a alma. A pessoa inteira ama, corpo e alma. O amor, portanto, é como uma garantia da unidade da pessoa humana. O homem poderia duvidar da unidade de seu ser; pensar que é uma alma prisioneira no corpo ou um corpo que engana a si mesmo e se crê dotado de alma imortal. Mas quem experimenta o amor percebe que esta divisão é ilusória. Se existe amor, se a experiência do amor é verdadeira, significa que o homem é um, pois o amor atravessa todas as dimensões do 42

seu ser, assegura sua unidade e lhe mostra como levá-la à plenitude. Abre-se um caminho diante do homem e da mulher, que consiste em integrar, pouco a pouco, todas as dimensões que o amor abre em suas vidas56.

A ascensão do amor “Meu amor é meu peso. Aonde quer que eu vá, é ele quem me leva”57. Estas palavras de Santo Agostinho confirmam o que temos dito: o amor é uma atração, um chamado que ilumina a nossa existência e nos convida a começar uma nova viagem. Para onde nos leva este caminho do amor? Para responder a esta pergunta, vamos nos concentrar primeiro nos impulsos mais elementares que nos movem no caminho do amor: a atração sexual, as emoções e os sentimentos, todos enraizados em nosso corpo. Descobriremos neles uma força que nos empurra para além de nós mesmos e nos ajuda a descobrir dimensões sempre mais profundas de nossa identidade. O encontro corpóreo entre Adão e Eva abre diante deles um caminho que os conduzirá, pouco a pouco, aos braços do Pai, ao seu destino definitivo. Karol Wojtyla descreveu estes movimentos do amor em seu livro Amor e Responsabilidade. A partir de suas palavras, analisaremos a linguagem contida na atração sexual (a) e nas emoções (b), para descobrir, a partir delas, o valor sagrado da pessoa (c), que se baseia, por sua vez, na relação da pessoa com Deus (d). a) Sensualidade Experimenta-se a atração física ou sexual como um impulso para a pessoa do outro sexo. Karol Wojtyla chama esta atração de primária, de sensualidade, e a define como “a faculdade de reagir aos valores sexuais do corpo, possível objeto de prazer”58. À primeira vista, pode parecer que este desejo é semelhante à atração que se sente pela comida ou pela bebida, ou ainda por tudo aquilo que satisfaz as nossas necessidades. Como os nossos desejos mais elementares, a atração sexual revela uma abertura para o mundo e testemunha que a pessoa precisa de relações, que a felicidade está sempre além de si mesmo. Por outro lado, este impulso, enquanto tal, não é capaz de levar além do próprio “eu” ou da preocupação com as próprias necessidades e interesses. Como diz Karol Wojtyla, “a sensualidade, em si, não tem em conta a pessoa” do sexo oposto, mas “se dirige somente aos valores sexuais do corpo”59. Portanto, equiparar este desejo sexual com os outros impulsos (como a fome ou a sede) seria um grande mal-entendido, uma vez que ele se distingue dos demais desejos que experimentamos. Com efeito, embora o desejo sexual, como as demais atrações, seja 43

cego para o valor da pessoa, ele nos leva à relação pessoal; sua realização é impossível sem envolver o outro. Eis porque a sexualidade tem este caráter misterioso, é uma espécie de êxtase, no sentido etimológico da palavra (do grego ek-stasis, que significa “sair de si mesmo”): ela se refere ao amado com toda a riqueza de seu mundo pessoal e, assim, convida a entrar numa dimensão mais profunda da relação. Por isso, podemos dizer que a sensualidade, a atração sexual, revela-nos uma promessa de plenitude que sozinha não pode manter-se. Ela promete muito, mas, sozinha, realiza muito pouco60. O êxtase que se percebe no impulso sexual fica sufocado quando é reduzido à mera busca do prazer. Por conseguinte, todo aquele que persegue o prazer sexual como seu fim principal ficará sempre decepcionado. Ou melhor, quando se busca este prazer por si mesmo, ele vai diminuindo ainda mais rapidamente, levando-nos a tentar novas experiências, sempre decepcionantes. Com efeito, a sensualidade alcança sua plenitude somente quando é integrada numa dimensão mais profunda: a relação de amor com outra pessoa. Vimos, portanto, que o “peso” próprio da sensualidade, sua tendência natural, guia o homem para além de si mesmo. O desejo sexual abre um caminho e nos convida a seguilo. Como é este caminho e como podemos progredir nele? Para sabê-lo, teremos que ir à busca de uma dimensão mais profunda, aquela dos sentimentos e afetos. b) Afetividade Além da sensualidade, no amor entre o homem e a mulher há outro elemento fundamental: a união afetiva. A ela nos referimos, por exemplo, quando dizemos que duas pessoas estão apaixonadas. Na realidade, a atração sexual tende a esta outra esfera, na qual encontra uma certa plenitude. Enquanto a sexualidade, por si só, não consegue alcançar a outra pessoa na sua interioridade, as emoções conseguem isso, pois com elas o rosto da pessoa amada torna-se importante e a descobrimos como única, como alguém que não pode ser trocada por outro. Além disso, mediante a simpatia e o afeto, compartilhamos o mundo interior do amado: aqui não estamos mais na esfera isolada do “eu”. O sentimento de simpatia, diz Karol Wojtyla, “aproxima duas pessoas, faz com se movam sempre uma na órbita da outra, mesmo quando estão distantes fisicamente”61. Quando um homem e uma mulher se apaixonam, um novo mundo, um mundo que podem compartilhar, abre-se diante deles. Por conseguinte, a simpatia conduz o homem mais além na busca solitária pela satisfação de seus próprios impulsos que, isolados em si mesmos, constituem, na

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realidade, uma prisão. O valor que o atrai não se reduz ao corpo como fonte de prazer, mas “a percepção leva à pessoa na sua totalidade: mulher ou homem que seja”62. Apesar disso, ainda não podemos dizer que chegou-se a um amor pleno, pois os sentimentos não conduzem à outra pessoa em toda a sua profundidade. Enquanto o amado for considerado só pelos efeitos que uma atração desperta (como, por exemplo, a necessidade de ternura, proteção e carinho, sentimento de segurança junto ao outro), não se terá descoberto o verdadeiro caminho do amor e se continuará girando nos círculos concêntricos do “eu”. De qualquer forma, a simpatia é um papel crucial no amor, pois é um passo indispensável para a comunhão com o outro: A simpatia introduz uma pessoa na órbita de outra pessoa enquanto próxima de nós, faz com que se “sinta” sua personalidade toda, que se viva na sua esfera, encontrando-a, ao mesmo tempo, na própria. É precisamente graças a isso que a simpatia testemunha o amor empírico e verificável, tão importante nas relações entre homem e mulher. Graças à simpatia, estes sentem seu amor recíproco e, sem ela, extraviam-se e se encontram num vazio que também é sensível63.

A atração sexual, portanto, alcança uma certa plenitude no novo âmbito dos sentimentos. Façamos um exemplo para esclarecer a relação entre estas duas esferas. A sensualidade pode comparar-se com a água que fica nas raízes da videira, e o sentimento, com o suco da uva produzido pela planta. A água é boa em si mesma, e necessária, mas se ficar no solo, estagna-se e apodrece, perdendo sua utilidade. Ela deve ser absorvida pela planta e elevada acima de si mesma, para fazer parte da videira e penetrar no fruto da uva, rico em sabor e cor. Analogamente, a atração sexual, como a água do nosso exemplo, precisa ser integrada no mundo dos sentimentos. E, mesmo assim, estes não são o ponto final do caminho. Uma pessoa não pode basear-se somente na simpatia que as emoções produzem, do mesmo modo que não se pode iluminar uma estrada escura com fogos de artifício, nem construir uma casa sobre a areia movediça. “Por isso, aos que amam, parece que o amor termina assim que desaparece a simpatia”64. Acontece que eles ainda não chegaram à verdadeira maturidade do amor. O fato é que os sentimentos, enquanto tais, são cegos para o valor mais profundo da pessoa. Basta pensar como os namorados tendem a idealizar a pessoa amada. A incapacidade de ver os defeitos do outro é sintoma de uma cegueira mais profunda, que consiste em amar um objeto cujo valor se mede unicamente através das próprias reações diante dele. Deste modo, longe de fazer da pessoa amada alguém perfeito, na realidade, degrada-se a sua verdadeira dignidade. Pois cada pessoa vale muito mais que todos os sentimentos ou emoções que possa despertar no outro, por mais elevados que sejam.

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Na verdade, se o amor fosse apenas uma questão de sentimentos, os amantes permaneceriam fundamentalmente separados um do outro. O sentimento, como a sensualidade, também se dirige para lá de si mesmo, para um âmbito mais profundo da realidade que nos revela, mas que, sozinho, não pode promover. É o que Karol Wojtyla chama de “a afirmação da pessoa”. c) Afirmar o valor da pessoa Os sentimentos nos impulsionam para a outra pessoa, mas com eles não percebemos ainda a plenitude do amor. O amor precisa amadurecer até afirmar o verdadeiro valor do outro, para além das emoções. O que significa afirmar o valor da pessoa amada? Quer dizer que a amamos não só pelas boas qualidades que possui e que são capazes de despertar em nós uma grande riqueza de sentimentos, mas porque ela é ela, esta pessoa única e insubstituível, com suas qualidades e também com seus defeitos. Só então estaremos prontos a amá-la tanto nos dias ruins como nos bons, quando estamos alegres e quando estamos deprimidos. Este amor que afirma a pessoa incorpora em si o desejo sexual e o afeto, as duas dimensões tratadas anteriormente, e os faz amadurecer numa esfera mais interior e profunda. Somente quando se alcança este ponto, toca-se a rocha firme, sobre a qual se pode construir uma relação sólida com outra pessoa. Enquanto o amor se basear apenas no sentimento, não se pode dizer um sim sem reservas, pois ainda se está sujeito à flutuação das emoções, que vão e vêm como as ondas do mar. Mas quando o amor descobre a outra pessoa e a afirma em si mesma, aí então é possível dizer um sim para sempre. Permanecer somente no terreno dos sentimentos é estar fechado em si mesmo, prisioneiro da própria visão da realidade e da própria reação diante dela. Enquanto considerarmos o afeto como regra absoluta da relação, viveremos o que Karol Wojtyla chama de “egoísmo dos sentimentos”. Ao contrário, quando rompemos o cerco da mera afetividade e afirmamos o valor único da outra pessoa, amada em si mesma, tudo muda. Começamos a aceitar alguém que é diferente de nós mesmos e que, por sua vez, toca o centro da nossa existência por meio do amor. Somente neste momento a vida se enriquece com uma presença nova que se deixa entrar no próprio mundo. Nasce, então, uma nova criatura, o “nós” do amor, que é mais que o “tu” e o “eu”, no qual o “tu” e o “eu” encontram, finalmente, a si mesmos. Nasce o casal como realidade que supera os amantes. Chegar a este nível mais profundo do amor é alcançar o que Wojtyla chama de

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“amor esponsal”. O que acontece, neste caso, é que cada um encontra a si mesmo somente quando se doa, sinceramente, à outra pessoa. O paradoxo aqui é duplo e vai em dois sentidos: primeiramente, que se possa sair do próprio “eu” e, em segundo lugar, que fazendo isso, não se destrua ou desvalorize o “eu”, mas que, ao contrário, seja enriquecido em sentido metafísico, moral. O Evangelho é muito claro a esse respeito: “quem perder [...] vai encontrar”, “quem salvar [...] vai perder”65.

Já dissemos que os sentimentos abrem a perspectiva de um “nós”, de um mundo comum que se compartilha com o amado. Mas só a afirmação do valor da pessoa consolida este mundo comum, confere-lhe estabilidade duradoura. Os dois seres passam a se afirmar reciprocamente, para além de si mesmos, dando-se uma nova existência na unidade de seu amor; passam a poder colocar em comum muito mais do que antes: não apenas seus recíprocos sentimentos, mas tudo o que os faz ser pessoas. Somente quando alcançarem este nível profundo do amor, o homem e a mulher poderão compartilhar a vida inteira no casamento. Bento XVI descreve essa ascensão ao amor com a ajuda do Cântico dos Cânticos. A Bíblia emprega ali duas palavras hebraicas para descrever o amor: Primeiro, aparece a palavra “dodim”, um plural que exprime o amor ainda inseguro, numa situação de procura indeterminada. Depois, esta palavra é substituída por “ahabà”, que […] exprime a experiência do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o caráter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o66.

É supérfluo dizer que amar outra pessoa pelo que é não elimina as outras dimensões do amor (a atração sexual e o afeto). Pelo contrário, ambas continuam sendo necessárias para descobrir e alimentar o amor autêntico. Pouco a pouco, porém, é preciso fazê-las amadurecer para que ajudem na tarefa de descobrir, a cada dia, o valor do amado: “Deste modo, em qualquer situação em que sentimos os valores sexuais de uma pessoa, o amor exige sua integração no valor da pessoa, inclusive sua subordinação a este valor”67. Voltemos ao exemplo da videira usado antes. Dissemos que a sensualidade é como a água que a planta absorve pelas raízes e transforma no suco de uva. Mas as uvas, por sua vez, podem ser transformadas em vinho. Esta segunda transformação requer o trabalho do homem e vai além das simples forças da natureza. Isso ilustra o sentido da afirmação da pessoa, onde o especificamente humano se manifesta. Mais ainda, o vinho é símbolo do banquete nupcial, que coroa o que João Paulo II chama de “amor esponsal”.

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Este exemplo enfatiza o papel indispensável das três dimensões – sensualidade, sentimento, afirmação do valor da pessoa – na construção do amor. O vinho, com efeito, contém água, que foi, por sua vez, transformada em suco de uva. Por um lado, se o amor é reduzido a mero afeto, acaba isolado na própria prisão egoísta; por outro, se os sentimentos não são levados em conta, o amor se torna frio, incapaz de uma união real com a outra pessoa: Por conseguinte, a simpatia deve amadurecer para chegar a ser amizade, e este processo exige normalmente reflexão e tempo [...]. Todavia, é mister completar a amizade com a simpatia; sem esta a amizade seria fria e pouco comunicativa. Este processo é possível porque, apesar de nascer no homem de maneira espontânea e manifestar-se nele de modo irracional, a simpatia gravita para a amizade, manifesta uma tendência a tornar-se amizade. Esta é uma simples consequência da estrutura da interioridade humana da pessoa, cujo pleno valor se adquire somente em virtude daquilo que se funda na convicção e no livre arbítrio68.

d) Na outra pessoa, o caminho para Deus Vimos, até agora, que amar outra pessoa é afirmá-la por si mesma. Contudo, se olharmos com mais atenção, perceberemos nisso um certo mistério. Por um lado, o amado é um ser humano, finito como nós; por outro, afirmá-lo por si mesmo significa atribuir-lhe um valor absoluto, infinito. Como é possível dizer um sim infinito a este ser finito? Como fará, Teresa, a permanecer em André para sempre? Como fará, André, a permanecer em Teresa para sempre? Como farão, uma vez que o homem não perdura no outro e o homem não basta?69

A pergunta que o ourives faz a Teresa e André parece colocar-nos diante de uma escolha difícil. Pode-se fazer da outra pessoa um ser absoluto, submetendo-a, assim, a uma expectativa exagerada, a qual nenhum ser humano pode responder? Ou se deve afirmá-la só de forma condicional, recusando o sim incondicional que requer o verdadeiro amor? O Concílio Vaticano II nos oferece, numa frase importante, a solução para este dilema: o homem tem uma dignidade especial porque é a única criatura terrena que Deus quis por si mesma70. Isso quer dizer que a dignidade da pessoa é absoluta, porque se funda no próprio Senhor, fonte de toda a bondade. Os próximos capítulos nos permitirão ver com mais detalhes como a pessoa recebe este valor único por ter sido criada à imagem Dele. Por enquanto, bastará estudar como se resolve o dilema que nos

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ocupa. Pode-se dizer um sim total ao amado precisamente porque o amado é imagem de Deus. Por isso, se este “sim” for dito de forma adequada, o amado não se torna um ídolo. Assim, estaremos liberando-o de um peso excessivo que prejudica sua dignidade, em vez de exaltá-la. Podemos deduzir da afirmação acima o seguinte corolário: não se pode colocar sobre os ombros da pessoa amada uma expectativa exagerada, pedindo-lhe para preencher plenamente nosso coração. Somente Deus é capaz de tal coisa. É neste aparente limite do amor humano que reside sua verdadeira grandeza: o peso do amor nos move em direção a Deus, ao encontro com Ele. Como diz Bento XVI: Sim, o amor é “êxtase”; êxtase, não no sentido de um instante de inebriamento, mas como caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus71.

Seria um erro concluir, então, que é preciso afastar-se da pessoa amada para poder chegar a Deus; ou que o outro se reduz a mero instrumento, escada pela qual se chega a esferas mais altas. Acontece exatamente o contrário: é na pessoa amada, na nossa relação com ela, que resplandece o rosto do Pai. Não avançamos para Deus afastando-nos do outro, mas nele e com ele. O próximo capítulo nos ajudará a aprofundar este importante vínculo. Concluímos que os aspectos do encontro de amor considerados até agora (a sensualidade, os sentimentos, a afirmação da pessoa) apontam para o fim último da vida, que é a comunhão com Deus. Assim, podemos perceber a grande importância de todas as dimensões do amor, incluindo o desejo sexual e o afeto. Todas elas fazem parte de um único movimento que leva para além de si mesmo, para Deus. A tarefa do homem consiste em integrar todas numa única dinâmica do amor. Não é que a afetividade e os desejos corporais desapareçam depois que nos ajudam a descobrir o valor da pessoa. Ao contrário, são integrados num dinamismo mais amplo, que é a viagem do homem rumo ao Pai. Precisamente porque a sexualidade foi criada para se incorporar neste movimento, contém esta promessa que se parece com um êxtase divino de plenitude. Tinha razão Santo Agostinho quando chamava os afetos de “pés da alma”, com os quais caminhamos para Deus ou nos afastamos Dele72. Karol Wojtyla diz algo parecido em sua obra Raios de Paternidade. Os sentimentos precisam ser inundados de luz, a luz da pessoa, a luz de Deus: Só quero que não se desenvolva cegamente o que flui na onda do coração, conduzindo a becos sem saída.

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Minha filha, é mister iluminar primeiro o sentimento; para não sentir o escuro e logo voltar a sentir – já na luz – faz-se necessário o raio do pensamento73.

O amor os libertará Nosso primeiro capítulo descrevia a existência do homem como um chamado. Acompanhamos Adão – símbolo de cada homem e cada mulher – enquanto respondia ao maravilhoso convite do mundo e caminhava, assim, na busca do próprio mistério. Neste segundo capítulo, vimos que o encontro de amor entre o homem e a mulher responde a esta busca, mas não a esgota. Em vez de diminuir a maravilha, o amor a faz crescer e, com ela, cresce também o desejo de seguir avançando na busca de uma resposta. Com efeito, o próprio amor passa a ser a maior surpresa, que lança nova luz sobre o significado do convite que o homem escutou em seu primeiro encontro com o mundo. Enquanto o primeiro capítulo apresentava a existência do homem como um chamado, uma vocação (do latim vocare, chamar), este segundo capítulo traçou seus contornos: o homem é chamado ao amor. Foi novamente o corpo que nos ajudou a descobrir este chamado. Vimos que o corpo, forma humana de estar no mundo, revela-se, no encontro do homem e da mulher, como um convite para ir além de si mesmos, a fim de construir um mundo compartilhado. Adão e Eva experimentam uma união que se torna possível conciliar a sensualidade e os afetos mútuos; a partir de então, eles vão caminhando lentamente no amor, pelo caminho que vai desde a união afetiva até a comunhão total da existência. João Paulo II disse que Deus deu ao homem seu corpo como uma tarefa. Neste capítulo, lançou-se uma luz sobre a natureza desta tarefa, que consiste em construir e exprimir o amor pessoal no corpo e através dele. Levar esta tarefa à plenitude é uma obra comum do homem e da mulher, através da qual se recria o amado e se é recriado por ele, colaborando com a ação criadora de Deus. Por conseguinte, o amor é uma recriação recíproca; consiste em conferir-se mutuamente um nome que só os amados conhecem. Entende-se, então, a relação entre amor e liberdade: a liberdade não é mera autonomia e independência, mas é capacidade de exprimir o amor e de caminhar para uma comunhão sempre mais completa. Enfim, podemos dizer que a experiência humana parte de um chamado. Diante desta afirmação surge logo uma pergunta: quem é que chama? De um lado, trata-se, claramente, do próprio amado, diante de quem o amor se desperta. Mas esta resposta inicial não basta. Com efeito, vimos que a dignidade da outra pessoa se deve à sua 50

conexão especial com o Criador, com Deus Pai. No próximo capítulo vamos tentar discernir a voz primordial e originária que se dirige ao homem na pessoa amada.

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CAPÍTULO 3 O MISTÉRIO NUPCIAL: DO DOM ORIGINAL AO DOM DE SI MESMO

Adão caminha em busca de sentido. Tudo começou com a maravilha: maravilha diante da riqueza de um mundo que convidava a ser descoberto. O primeiro homem começou sua marcha, tentando encontrar um caminho para a plenitude. Foi então que encontrou Eva: “Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne”. E assim, ao dar nome à mulher, Adão descobriu a si mesmo: “Ela será chamada mulher (’iššāh), porque foi tirada do homem (’iš)” (Gn 2,23). Só então a palavra homem aparece no relato; só então, diante de Eva, Adão entende quem ele é e qual é o seu chamado, a sua vocação ao amor. Embora o encontro entre Adão e Eva seja um momento chave no caminho dos dois, não se trata ainda de sua meta final. De fato, em vez de diminuir, o encontro com Eva faz com que a maravilha aumente: “Esta sim é osso de meus ossos e carne de minha carne”, exclama Adão, cheio de júbilo. Com efeito, de todas as coisas que causam maravilha, o amor é a maior delas. A presença de Eva não é tanto o porto em que se chega depois de uma viagem difícil pelos mares da vida, mas é o momento em que as nuvens se dissipam para mostrar um mar novo e misterioso, cuja beleza convida a navegá-lo. Como diz Teresa em A Loja do Ourives, depois do “sim” a André: Lembro-me que André demorou a voltar-se para mim, e passou muito tempo com o olhar fixo pra frente, como se perscrutasse o caminho que se abria diante nós74.

A maravilha de cada novo encontro abre diante de Adão e Eva uma nova estrada. Como João Paulo II, pode-se dizer: “Se queres encontrar a fonte / Tens que subir contra a correnteza / Persevera na busca, não desiste. / Tu sabes que tem que estar aqui. / Onde 52

estás, ó fonte? Onde estás, ó fonte?”75. Do mesmo modo, o encontro entre Adão e Eva abre um novo horizonte de maravilha no qual ambos continuarão buscando a fonte. Para explorar esta nova etapa, João Paulo II usa o que ele chama de “hermenêutica do dom”. Em palavras mais simples, isto significa que é preciso interpretar nosso encontro com o mundo como a oferta de um dom, como o recebimento de um presente. A partir daí, lança-se nova luz sobre a meta última do caminho, descobre-se o nome desta Fonte de onde tudo procede e para onde tudo flui.

Para entender o dom Falamos antes da maravilha que nasce no homem quando se encontra com o mundo. Chegou o momento de dar um passo importante: afirmar que a maravilha está ligada ao dom. Qual é o vínculo que os une? Em primeiro lugar, o dom representa algo que não se pode produzir sozinho, algo que não se pode pagar do próprio bolso. É assim que ele tem força real para surpreender: quem se maravilha com aquilo que já tem e conhece? Podemos, então, dar um segundo passo: o dom se refere sempre a um encontro entre pessoas. Quando Adão explorava o Jardim do Éden, recém-saído das mãos de Deus, experimentava, sem dúvida, maravilha com o que via. Todavia, não se exclui a possibilidade de que o primeiro homem tenha acreditado-se capaz de medir o valor de todas as coisas e, assim, progressivamente, perder sua maravilha diante delas. Afinal, ele não era imensamente superior ao resto do que foi criado? Quando, porém, o primeiro homem se encontra com a primeira mulher, esta falsa impressão desaparece. Adão se encontra diante de uma criatura que, assim como ele, só pode ser medida em relação ao mistério último, que é Deus. Por isso, ele atravessa um novo limiar da maravilha, justamente nesse encontro com Eva. Podemos dizer, como João Paulo II, que a sua maravilha recebe agora um nome, pois se torna maravilha pessoal76. Deste modo, podemos compreender porque o dom só é possível entre pessoas: só a pessoa faz nascer uma verdadeira maravilha diante daquilo que nos supera infinitamente, pois ela tem um valor sagrado. Dado que o dom requer o encontro entre pessoas, João Paulo II pode dizer: “O conceito de ‘doar’ não pode referir-se a um nada. Este indica aquele que doa e aquele que recebe o dom e, também, a relação que se estabelece entre eles”77. Percebe-se claramente neste texto que o dom requer sempre vários elementos: alguém que oferece o dom, alguém que o recebe e a nova relação que ele cria entre as duas pessoas. Notemos a diferença em relação a uma compra, em que não é necessário nenhum vínculo estável

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com o vendedor. Quando se adquire um objeto, manipulam-se qualidades e preços, e uma pessoa pode se negar a comprar algo caro ou pouco útil, sem que o comerciante se sinta ofendido. Mas o mesmo não acontece com o dom: recusá-lo significa ferir quem o oferece. O que nos revela esta diferença entre o comércio e o dom? A resposta é a seguinte: o dom não é apenas um objeto, mas contém algo do próprio doador. Quando doamos algo, oferecemos muito mais que uma mercadoria cujo valor se estabelece pelo preço de mercado. Dar um dom é sempre, de uma forma ou de outra, darse a si mesmo. Um dom estabelece ou reforça uma relação que, em diferentes graus, toca o núcleo pessoal de quem dá e de quem recebe. Ralph Waldo Emerson exprimiu isto da seguinte forma: O único dom é uma parte de ti mesmo. Tens que derramar sangue por mim. É assim que o poeta oferece seu poema; o pastor, a sua ovelha; o agricultor, o trigo; o garimpeiro, uma gema; o marinheiro, coral e conchas; o pintor, sua pintura; a moça, o lenço que ela mesma teceu. Há aqui algo de bom que nos deleita, pois restitui a sociedade a seus fundamentos mais primitivos, quando a história de um homem se oferece mediante o dom que oferece...78

Um episódio da vida do poeta alemão Rainer Maria Rilke ilustra as possibilidades criativas do dom. Rilke caminhava com um amigo pelas ruas de sua cidade quando passaram por uma igreja, diante da qual uma mulher pedia esmolas. O companheiro de Rilke deu-lhe alguns trocados. A mendiga, acostumada aos gestos impessoais dos transeuntes, reagiu mecanicamente diante da oferta. Rilke, verdadeiro poeta, comprou, então, uma rosa e, quando passaram novamente na frente do templo, entregou-a à mulher. Sua resposta a esta outra oferta, aparentemente sem valor algum, foi completamente diferente: levantou os olhos e sorriu. Por uma semana não foi vista mendigando diante da igreja. Quando o amigo perguntou ao poeta: “Mas de que ela viveu todos aqueles dias?”, Rilke respondeu: “É claro, ela viveu da rosa...”79 O que distinguia a rosa de Rilke do dinheiro dado pelos outros passantes? A rosa era um dom singular, que representava a dignidade especial da pessoa que o recebia. Os trocados, ainda que valessem mais, eram incapazes de evocar qualquer resposta humana na alma da pobre mulher. O dom de Rilke despertou na velha mendiga esta dimensão sagrada da vida que a riqueza anônima não era capaz de revelar. Pois bem, se todo dom contém algo do próprio doador, quem o doa corre um risco: que seu dom seja recusado. E notemos que a recusa do dom não é só a recusa de um objeto, mas da própria relação que ele queria estabelecer. De certo modo, a rejeição se estende ao próprio doador. Quem despreza nosso presente, despreza a nós mesmos. É verdade que pode ocorrer também o contrário: se o dom é aceito, surge uma nova 54

relação, uma relação que enriquece também quem doa. Segundo Santo Irineu de Lyon: “Aquele que doa é glorificado na sua oferta, se seu dom é aceito”80. Segundo essa visão, não existe verdadeiro dom sem reciprocidade, ou seja, sem que as duas pessoas sejam envolvidas de forma ativa. Certamente, um dom não precisa receber algo em troca, mas requer livre aceitação. Quem recebe um dom, quando o aceita com gratidão, não é um simples espectador passivo: torna-se, por sua vez, cocriador da nova relação que o dom estabelece. Tal reciprocidade enriquece, ao mesmo tempo, quem dá e quem recebe. É um intercâmbio real, mesmo diferenciando-se radicalmente de uma operação de compra e venda. Esta última, ao contrário do que ocorre com o dom, não toca o centro das pessoas que participam dela. Como escreve João Paulo II: “O dar e o aceitar o dom se compenetram, assim que o próprio dar torna-se aceitar, e o aceitar transforma-se em dar”81. Resumindo o que foi dito até agora a respeito do dom, constatamos que se trata de algo que só pode ser dado gratuitamente. A razão não é que o dom seja barato, muito pelo contrário: seu preço não se mede com o dinheiro, pois exprime o valor único da pessoa que o oferece. Com efeito, o que o doador espera de quem o recebe, não é que lhe seja dado algo em troca, mas ser acolhido em sua pessoa. Por isso, aceitar um dom cria uma nova relação entre quem dá e quem recebe, uma relação que enriquece ambos. “O amor – observa Santo Inácio de Loyola, em seus Exercícios Espirituais – consiste na mútua comunicação, na qual o amante dá ao amado e compartilha com ele o que tem [...] e o amado, por sua vez, faz o mesmo pelo amante”82. São João da Cruz resume o poder criativo do dom quando escreve: “Onde não há amor, põe amor e colherás amor”83.

O Doador original Voltemos agora à história de Adão e Eva. O encontro entre o primeiro homem e a primeira mulher confirma o que dissemos sobre o dom e nos ajuda a aprofundar seu sentido. Em Eva, Adão recebeu um dom capaz de despertar sua maravilha e gratidão. Pois bem, este presente é especial: não consiste em algo que Eva dê a Adão ou que faça por ele, mas em sua própria presença. Sua pessoa é um dom para ele. Com efeito, reconhecer que o amado é um dom faz parte da essência de todo amor verdadeiro. A escritora inglesa Elizabeth Barrett Browning exprime isso em um de seus sonetos de amor: Não digas nunca “Amo o sorriso dela,

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Seu rosto, ou o jeito de dizer aquela Palavra murmurada de repente Que faz meu pensamento confidente Do seu, e torna a tarde ainda mais bela”. Tudo pode mudar, meu bem, cautela, Pois pode ser que o amor de nós se ausente84.

O verdadeiro amor não se detém num modo gentil de conversar ou num ar de prazer, mas vai ao valor da pessoa que se revela nestes traços. Isso quer dizer que o amor recebe como um dom o próprio ser da pessoa amada. Adão se compraz na bondade de Eva, assim como se alegra de sua própria existência. É como se um dissesse ao outro: é bom que existas e que existamos juntos. Só assim o seu amor pode ser forte o suficiente para resistir às mudanças de sentimento ou de caráter, inevitáveis na vida humana. O que conta para os amantes, não é somente o poder entregar-se totalmente um ao outro, mas perceber que existe algo que precede esse ato, que lança as bases do amor. Antes do dom que o amante faz de si, deve-se compreender que já o seu ser é um dom, o mais fundamental de todos. O amor é maduro só quando se entende que a própria existência do amado é um presente surpreendente que enriquece a existência. Com isso, chegamos a um ponto já abordado no capítulo anterior: o chamado do amor é anterior à nossa resposta e, por isso, precede aos próprios amantes. Adão e Eva são capazes de reconhecer que foram entregues um ao outro e que só por isso podem-se doar e receber reciprocamente. Podemos dizer que a masculinidade e a feminilidade deles é um modo concreto em que isso se manifesta. Como homem e mulher, com a corporeidade concreta em que se encontram ao vir à existência, são chamados a uma entrega mútua. Eles não escolheram sua sexualidade, nem a atração que os une, mas isto não quer dizer que não sejam livres: ao contrário, encontrar-se como homem e mulher propicia seu amor e a liberdade de sua entrega e os põe no caminho de uma plenitude feliz. É neste momento que surge a pergunta: quem coloca a existência de Eva nas mãos de Adão e a de Adão nas mãos de Eva? Quem os chama a aceitar-se e dar-se mutuamente um ao outro? No contexto do livro do Gênesis, a pergunta é: a quem Adão se dirige quando exclama, cheio de alegria: “Esta sim é osso de meus ossos!” (Gn 2,23)? Como estamos vendo desde o início deste livro, a busca de Adão começa com a maravilha: o primeiro homem se encontra com o mundo e começa a se perguntar sobre o sentido de tudo. Recebe, então, um convite para caminhar rumo ao mistério absoluto, Deus mesmo. Ele é guiado pela pergunta: “Onde estás, ó fonte? De onde brotas?”85. É em seu corpo que Adão vive esta busca de sentido, pois o corpo é a sua forma de estar 56

aberto ao mundo e de participar dele. É aí que o primeiro homem encontra a primeira mulher. Esse encontro põe às claras a mensagem última do corpo: Adão sente-se chamado a abrir-se a uma pessoa semelhante a ele, a alguém que, como ele, só pode ser medido na perspectiva da transcendência, na perspectiva de Deus. Isto significa que para aceitar a existência de Eva como um dom, Adão deve reconhecer a relação dela com Deus. É o Criador que confia a ele o dom de Eva, quando faz com que o primeiro homem caia num sono profundo e modela a mulher a partir de uma de suas costelas. Então, devemos recordar que Eva é algo precioso para Deus, alguém que, diferente dos demais animais, é amada por si mesma. Entendemos, então, o grande dom que o primeiro homem recebe com a primeira mulher: o Senhor dá a si mesmo a Adão quando lhe comunica o dom de Eva. A solidão originária de ambos como homem e mulher os orienta para a fonte original do dom: o Criador, que chamou ambos à existência. Com isto já demos uma primeira resposta às nossas perguntas: é Deus quem confia Adão a Eva e Eva a Adão. Deus é o doador original que forma a mulher da costela do homem e a apresenta como sua companheira. “No mistério da criação, o homem e a mulher foram ‘dados’ pelo Criador”86. A mulher, que no mistério da criação “é dada” ao homem pelo Criador, graças à inocência original é “acolhida”, ou seja, aceita por ele como dom […]. Simultaneamente, a aceitação da mulher por parte do homem e o modo mesmo de aceitá-la tornam-se quase uma primeira doação, de modo que a mulher dando-se […] “descobre-se” ao mesmo tempo “a si mesma”, graças a ter sido aceita e acolhida e graças ao modo como foi recebida pelo homem87.

Gaudium et Spes, 24 ensina que “o homem, a única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode se encontrar plenamente senão por um dom sincero de si mesmo”. João Paulo II deu grande importância a estas palavras do Concílio Vaticano II, que, segundo ele, resumiam o que temos dito sobre o dom. O texto conciliar articula este dinamismo em duas frases. Primeiro, exprime com força o amor de Deus pelo homem, sua paixão pelo ser humano, “a única criatura na terra que Ele quis por si mesma”. Depois, fala da entrega sincera que o homem faz de si mesmo. Os dois aspectos estão relacionados: o homem só pode entregar-se aos demais se reconhecer que o amor de Deus abraça a sua existência desde suas raízes. Daí deriva a conclusão de João Paulo II: Adão pode aceitar Eva somente se reconhece nela um dom do Criador, em quem reside a fonte da existência da mulher. Karol Wojtyla se refere várias vezes a este amor originário de Deus em A Loja do Ourives. Por exemplo, quando o personagem chamado Adão exclama: “Ó, Ana, preciso 57

te convencer que acima de todos estes nossos amores, que preenchem nossas vidas, está o Amor!”88. Este amor primordial é representado na obra pelo caráter do ourives. É diante dele que se mede o projeto do amor humano. E, assim, um jovem casal que parece não reconhecer esta conexão entre seu amor e o amor divino escuta: “O que estais construindo, meus filhos? Que coesão terão vossos sentimentos sem o conteúdo das palavras de um velho ourives, através das quais passa o peso de todos os matrimônios do mundo?”89. E Wojtyla acrescenta: É o amor que, despojado de dimensões absolutas, arrebata os homens como se fosse um absoluto. Deixam-se levar pela ilusão e não procuram fundar seu amor no Amor, que tem a dimensão absoluta. Nem sequer suspeitam desta exigência, porque lhes cega não tanto a força do sentimento, mas a falta de humildade90.

Encontrando-se um com o outro, Adão e Eva encontram “o Amor que tem a dimensão do Absoluto”. O tópico seguinte explicará como o corpo ajuda a descobrir esta relação do amor humano com o amor divino.

O corpo: uma testemunha do dom originário Como temos visto, é graças ao corpo que homem e mulher descobrem um mundo comum que ambos podem compartilhar. No corpo, os dois ouvem o chamado à doação mútua; recebem uma existência mais rica e mais plena e um caminho de vastos horizontes se abre diante deles. João Paulo II descreve este chamado, inscrito na masculinidade e na feminilidade, como o “sentido esponsal” do corpo. O adjetivo esponsal, que evoca a ideia do matrimônio, coloca em evidência que a linguagem do corpo contém um convite ao amor. O corpo é esponsal porque convida Adão a dar-se a Eva e a recebê-la como dom, e o mesmo acontece com Eva em relação a Adão. Para João Paulo II, este sentido nupcial do corpo não só une Adão e Eva numa dimensão horizontal, mas os vincula também – em sentido vertical – com o Doador original. Com efeito, o convite ao amor foi inscrito na masculinidade e na feminilidade do corpo por Deus Criador. Ele é a fonte graças a qual Adão e Eva são um dom para eles mesmos e para o outro: Este é o corpo: testemunha da criação como de um dom fundamental, portanto, testemunha do Amor como origem de que nasceu este mesmo doar. A masculinidade-feminilidade – isto é, o sexo – é o sinal original de uma doação criadora e de uma tomada de consciência por parte do homem, macho e fêmea, de um dom vivido, por assim dizer, de modo original91.

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Portanto, o sentido nupcial do corpo é um convite a reconhecer que tudo o que temos e somos é um dom. A nupcialidade estabelece uma relação com o mistério absoluto do Pai, que nos dá vida e nos situa no mundo. Por isso, a nossa primeira tarefa nesta vida não é o dever de fazer alguma coisa, mas a aceitação do dom original da nossa própria pessoa e da nossa vida. O cardeal Ersilio Tonini exprimiu esta verdade contando uma história de sua infância: “Até agora”, sua mãe lhe disse quando fez sete anos, “todas as manhãs dei graças a Deus pelo dom de tua vida e te recebi como um dom de Deus. Agora tens que fazer o mesmo: deves receber-te como um dom de Deus, cada manhã de tua vida”92. Isto quer dizer que existe outra forma de descrever a solidão originária – a dignidade especial do homem, que o diferencia dos animais. Somente os seres humanos são capazes de considerar sua existência como um dom, vista à luz da esponsalidade do corpo –, ou seja, do chamado ao amor inscrito nele. A diferença entre o homem e o resto da criação não é uma força especial para agir de forma autônoma, mas uma capacidade para descobrir, por meio do testemunho do corpo, o dom que cada pessoa é. Assim, a solidão originária se transforma na experiência na qual, como disse São Irineu de Lyon, “no princípio Deus formou o homem para ter em quem depositar seus benefícios”93. Esta visão do próprio corpo ensina o homem a olhar de modo novo para os outros “corpos” entre os quais vive. Existe uma tendência a medir o próprio corpo em relação aos demais objetos do mundo, tal como os estuda a física ou a biologia. Mas a teologia do corpo é um convite a mudar o ponto de vista. Ao invés de medir o significado do nosso corpo a partir dos outros corpos, precisamos fazer o contrário: o significado de todos os corpos deve ser medido a partir do significado esponsal do corpo humano, pois é neste que se encontram todos os elementos inferiores da realidade material. É só partindo do ponto mais alto que se obtém uma visão de conjunto da disposição de todas as coisas. Sobre a importância do ponto de vista do homem, Santo Agostinho dizia: “Viajam os homens para admirar as alturas dos montes, as grandes ondas do mar, as largas correntes dos rios, a imensidão do oceano, a órbita dos astros, e se esquecem de si mesmos!”94. A possibilidade de maravilhar-se diante dos cumes das montanhas e da imensidão dos mares baseia-se na consciência de sermos um dom primordial. E o corpo é a primeira testemunha desta consciência. A maravilha experimentada ao observar um pôr do sol só se explica por meio da experiência fundamental de saber que o amor de Deus nos trouxe à vida e nos formou no seio materno.

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Falamos da distinção entre o homem e o resto das criaturas terrenas. Agora devemos acrescentar que, se aceitamos que toda a criação é um dom, a própria natureza não pode ser tratada como um mero objeto que se usa e se joga fora. Assim, o domínio que o homem tem sobre a criação consiste na administração dos bens recebidos em resposta grata ao amor criador. Em cada ser se encontra um sinal constante da providência paterna de Deus. É por isso que a presença de Eva abre os olhos de Adão, para que ele veja de modo novo o resto do mundo. Então, percebemos que não é verdade que o amor é cego, como afirma o dito popular. Ao contrário, o amor tem seus próprios olhos, os olhos de um coração que vê, que percebe cada objeto que tocamos e cada momento que vivemos como um dom do Criador95. Na obra teatral Nossa Cidade, do escritor americano Thornton Wilder96, é oferecida a Emily, uma jovem que acaba de morrer, a oportunidade de reviver um dia qualquer da sua vida passada. Emily escolhe um dia de festa, o dia em que completava doze anos de idade. Agora que, do outro lado, compreende a beleza a vida, quer desfrutar cada momento disponível. Para seu desencanto, todos os seus parentes e amigos estão tão atarefados que não conseguem compartilhar plenamente a alegria de sua presença. Quando Emily se pergunta se alguém se dá conta de como é precioso cada momento vivido, uma das pessoas que está com ela no cemitério responde: só o percebem, às vezes, os poetas e os santos. Na realidade, ninguém está excluído desta prerrogativa de santo e de poeta. Adão e Eva usufruiram deste dom, isto é, do dom de ver em cada instante um chamado à plenitude, de viver voltados para o amor total de Deus, experiência que, de certo modo, todos fizeram na infância. O homem nasce com a capacidade de experimentar seu encontro corpóreo com o mundo como um presente que inaugura uma relação de amor com o Doador original.

Do dom originário ao dom de si Deus é a fonte primitiva de onde brota o dom da existência. Saber disso nos ajuda a ver sob nova luz a entrega mútua de Adão e Eva, de que falamos no capítulo anterior. Na sua primeira encíclica, Deus Caritas Est, Bento XVI se pergunta, antes de tudo, se é possível amar e dar-se a outra pessoa. O Papa responde que sim, mas acrescenta logo: só podemos amar-nos uns aos outros porque antes fomos amados por Deus. Quer dizer que, só podemos tornar-nos fonte de amor para outros porque primeiro bebemos da fonte do amor do Pai97:

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Ele amou-nos primeiro, e continua a ser o primeiro a amar-nos; por isso, também nós podemos responder com o amor. Deus não nos ordena um sentimento que não podemos suscitar em nós mesmos. Ele nos ama, faz-nos ver e experimentar o seu amor, e deste “antes” de Deus pode, como resposta, despontar também em nós o amor98.

Esta primazia do amor de Deus explica por que a Bíblia pode nos ordenar que amemos, o que, à primeira vista, parece desconcertante. Com efeito, como se pode comandar o amor? Não é verdade que, se formos obrigados a amar, este amor se torna impossível? Mas, então, por que Jesus diz que o amor de Deus e o amor ao próximo são os mandamentos mais importantes? A Bíblia responde a estas perguntas inserindo os mandamentos num contexto mais amplo, aquele do dom de Deus que os precede. Com efeito, uma breve frase introduz a tábua do Decálogo: “Eu sou o Senhor teu Deus que te fez sair da terra do Egito” (Ex 20,2). Em outras palavras, o mandamento do amor só tem sentido em termos de um prévio dom, que se faz presente nas ações divinas em favor de Seu Povo: Yahweh mostrou Seu amor por Israel com provas concretas, libertando-o do Egito e fazendo-o atravessar o Mar Vermelho. Por isso, Seu mandamento não é como uma ordem a qual devemos nos submeter, mas segue a mesma lógica do dom. O mandamento liberta o homem para que acolha com gratidão o amor que Deus por primeiro lhe ofereceu, muito antes de qualquer coisa que o homem possa ter feito para merecê-lo. O ato final de A Loja do Ourives, apresenta a história de outro noivado: trata-se de Cristóvão, filho de André e Teresa, e Mônica, a filha de um casal em dificuldades, Ana e Estevão. Os dois noivos, que acabaram de se comprometer com as bodas, ainda não descobriram a profundidade de seu chamado, ou seja, o fato de que as raízes da união deles estão em outro amor, muito maior. Karol Wojtyla descreve esta falta de maturidade como a incapacidade de dar-se conta da arte do ourives, que dá forma às suas alianças nupciais. É Mônica que declara: Nada fez para facinar-nos... Simplesmente mediu, primeiro os dedos, depois as alianças, como um artesão qualquer. Não é que nele houvesse alguma arte. Nada fez para aproximar-se de nós. Toda a beleza ficou no nosso próprio sentimento99.

Mas Teresa, a mãe de Cristóvão, conhece, por experiência própria, a profundidade e a maturidade do amor, que se baseia no reconhecimento do ourives. Conhece sua habilidade para forjar os anéis, símbolo do destino do ser humano: 61

Aproximar-me-ei deles e lhes direi: meus filhos, não aconteceu nada, o homem há de voltar ao lugar onde viu a luz a sua existência – e deseja tanto que esta nasça do amor! Sei que também o velho ourives [...] vos contemplava hoje com o mesmo olhar de quando perscrutava vossos corações e com aquelas alianças definia o novo nível da vossa existência...100.

Esta cena de A Loja do Ourives ilustra uma convicção de João Paulo II: Adão e Eva podem amar-se um ao outro só na medida em que deixem o ourives “definir para eles um novo nível da existência”. Esta relação com o ourives põe o amor deles no contexto do mistério último de onde emanam suas vidas, o próprio Deus. O amor deles resulta em algo muito mais profundo do que pensavam, pois os chama a receber um ao outro como dom de Deus e, assim fazendo, a entrar numa relação concreta com o Pai. Deus revela Seu amor pelo primeiro homem e pela primeira mulher ao confiá-los um ao outro, como dons preciosos para Ele mesmo. Por isso, o amor que Adão e Eva compartilham não seria amor verdadeiro se recusasse esta dimensão transcendente. Desfrutam a maravilha do amor humano somente porque sua relação mútua é, ao mesmo tempo, uma relação com Deus. Os dois se amam de verdade quando, ao dar-se e receber-se mutuamente, dão-se a Deus e se recebem Dele como Pai.

Maternidade e paternidade Descobrimos, agora, por que Adão e Eva são ajuda adequada um para o outro: abrem mutuamente o horizonte, na busca de sua própria identidade. Cada um mostra ao outro como o seu caminho aponta para a mesma fonte de amor e dom divinos. É esta dimensão, enriquecida de um novo elemento, que queremos analisar agora. A presença do Doador original no amor que une Adão e Eva não apenas os leva além de um novo limiar da maravilha, mas também completa o seu amor, abrindo-lhes ao mistério da fecundidade. A Bíblia conta que “Adão conheceu Eva, sua mulher” (Gn 4,1). A palavra “conhecer” é usada para indicar a união numa só carne, enfatiza que ambos os esposos descobrem quem são e chegam a conhecer seu próprio nome, precisamente na relação conjugal. Por sua vez, este conhecimento está unido à fecundidade, ao nascimento de um novo ser humano, que os esposos formam conjuntamente com Deus, o Doador original. O Senhor é, com efeito, a fonte da comum humanidade deles, o Criador de seus corpos e da capacidade que possuem de doar vida. Unindo-se no amor conjugal, unem-se à mesma força criadora de Seu amor. Assim, podemos dizer que o amor é fecundo, pois afunda no próprio Deus as suas raízes. “A procriação está radicada na criação e cada vez, em certo sentido, reproduz o mistério criativo”101. Eva, a primeira mãe, reconheceu a Deus como fonte última de vida quando deu à luz Caim: “Adquiri um homem com a ajuda de Iahweh” (Gn 4,1). João Paulo II comenta: 62

E quando se tornam “um só corpo” – admirável união – por detrás de seu horizonte se revela a paternidade e a maternidade. - Alcançam, então, a fonte da vida que existe neles. - Alcançam o princípio. - Adão conheceu sua mulher. - E ela concebeu e deu à luz. Sabem que passaram o limiar da maior responsabilidade!102

O limiar da maravilha atravessado por Adão ao encontrar-se com a riqueza da criação103 transforma-se, na união conjugal, em um novo limiar: o da responsabilidade. Para que o amor seja fecundo, é preciso ser responsável, isto é, capaz de responder ao dom primeiro de Deus, que confia os amantes um ao outro. Por essa razão, é mais apropriado falar da fecundidade humana como “procriação” e não como “reprodução”, pois deste modo se destaca a participação do homem na obra de Deus, a presença da própria fonte da vida na união conjugal. Deste modo, mantém-se a diferença entre a produção de um objeto e a comunicação da vida. Só esta última é adequada ao ser humano, dotado de dignidade única e irrepetível, pessoa insubstituível, que Deus quis por si mesma. A presença do amor divino no amor humano enriquece nossa forma de entender e viver a liberdade. A liberdade floresce apenas quando se compreende que toda a nossa existência nos foi doada. Pensemos na cena de A Divina Comédia, de Dante, quando o cair da noite interrompe a subida do poeta ao monte do Purgatório. Continuar caminho acima é ir ganhando em liberdade, ir purificando-a, para que seja capaz de entrar no Céu. Por isso, quando anoitece, só é possível descer do monte ou permanecer na mesma altura. Para seguir subindo, é preciso esperar a aurora, pois a luz simboliza o auxílio divino, é o Seu amor que nos capacita a crescer na liberdade. Somente nesta claridade luminosa e libertadora se pode crescer além de nossos rígidos limites, escalando a montanha do amor de Deus e do próximo, até a meta que coroará todo o esforço104.

O masculino e o feminino à luz do dom originário Descobrir Deus como a base em que o amor se edifica e a fonte última de sua fecundidade ajuda-nos a entender melhor o significado da diferença sexual, do que significa ser homem e mulher. A diferença sexual se entende melhor considerando o mito do Andrógino, que o filósofo grego Platão põe na boca de um personagem de seu Banquete. Este mito explica a origem da sexualidade como um castigo. O homem, que originalmente era uma 63

unidade assexual, uma esfera perfeita e completa em si mesma, é dividido pelos deuses em duas partes (masculina e feminina) que, desde então, conclui a narrativa, estão condenadas a buscar-se mutuamente para encontrar a unidade perdida. João Paulo II – seguindo o testemunho bíblico – entende de outro modo a diferença entre os sexos. O Papa sabe que cada sexo se refere ao outro e só pode ser entendido em relação ao outro. Mas recusa a ideia de que homem e mulher sejam duas partes incompletas de humanidade, duas metades de um todo dividido pelos deuses vingativos do mito de Andrógino. Na visão cristã, o homem e a mulher são ambos uma forma completa de ser humano, embora vivam sua humanidade de forma diferente. A diferença os torna complementares, não porque lhes falte uma parte, mas porque cada um é chamado pelo outro a sair de si mesmo e a crescer além de suas próprias fronteiras. Uma imagem do mundo da música pode nos ajudar a entender esta complementaridade. Imaginemos que um diretor de orquestra chame dois violinistas de talento para executar um dueto. Ambos deverão treinar para unir seus instrumentos em um todo harmônico, e cada um precisará do outro para exprimir o significado do trecho musical. Esta exigência, entretanto, não significa que falte maestria a algum dos dois. Não se trata de dois “meio músicos” que se usam mutuamente para cobrir seus defeitos. São, na realidade, artistas consumados, cuja arte consiste em mostrar a própria habilidade no contexto de um dueto, em que cada um deles tem um papel inseparável do outro. O exemplo acrescenta ainda um dado essencial: ambos os músicos triunfarão apenas se forem capazes de inspirar-se na beleza transcendente da obra que tocam em uníssono. Esta ilustração, dentro dos seus limites, ajuda-nos a entender a sexualidade. Esta, como a música de dois violinos, faz da vida humana uma relação em que cada membro do casal se dirige ao outro e recebe dele um dom inestimável. Ao mesmo tempo, esta relação procede de uma inspiração comum, ou seja, do chamado do Criador, que está na origem da existência humana. Por isso, a relação entre o homem e a mulher adquire pleno significado somente se ambos se compreendem em sua abertura ao Criador. Homem e mulher, masculino e feminino, são dois caminhos para descobrir a nossa identidade no encontro com Deus. Trata-se, como diz João Paulo II, de duas encarnações da mesma “solidão originária” diante de Deus e do mundo: O conhecimento do homem passa através da masculinidade e da feminilidade, que são como duas “encarnações” da mesma solidão metafísica, diante de Deus e do mundo – como dois modos de “ser corpo” e ao mesmo tempo homem, que se completam reciprocamente – como duas dimensões complementares da autoconsciência e da autodeterminação e, ao mesmo tempo, como duas consciências complementares do significado do corpo. Como já mostra o Gênesis 2,23, a

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feminilidade encontra-se, em certo sentido, a si mesma, diante da masculinidade, ao passo que a masculinidade se confirma através da feminilidade105.

Tiremos disto uma última conclusão. Exatamente porque o ser masculino ou feminino são duas formas básicas de estar aberto aos outros – a Deus e ao nosso próximo –, os amantes que procuram criar um mundo somente para eles, do qual excluem todos os demais, distorcem a natureza do amor verdadeiro. A relação que une Adão e Eva se situa num contexto mais amplo: a relação que vincula ambos a Deus, o mistério absoluto que abre, à sua vez, o amor humano ao resto do mundo. Por isso, masculinidade e feminilidade tendem, por sua própria natureza, à paternidade e maternidade, e, que a relação do homem com a fonte do amor se faz patente e seu amor se abre em um fruto novo. Prosseguindo nestas páginas poderemos acrescentar algo mais sobre a tarefa de ser pais. Por enquanto, concluímos este capítulo lembrando que a vocação ao amor procede não somente da pessoa amada, mas também de Deus, fonte primeira do amor, que nos convida a uma plena comunhão com Ele. Ao construir sua mútua relação, Adão e Eva entram numa relação com o Pai. Poderíamos até dizer que os dois juntos, em seu amor, refletem a Sua imagem.

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CAPÍTULO 4 A COMUNHÃO DE PESSOAS, IMAGEM DA TRINDADE O caminho de Adão e Eva na busca da sua identidade deu uma volta imprevista. Eles pensavam estar buscando Deus, a origem primordial, a fonte de onde se origina a vida. Mas agora descobriram que era Deus quem os buscava, para revelar-se como primeiro Doador de todo bem, o Criador e Pai. Adão e Eva compreendem finalmente que Ele confiara a cada um o cuidado do outro; convidou-os a entrar em diálogo com Ele e caminhar juntos para Ele. Teresa e André também se dão conta desse mistério quando chegam diante da loja do velho ourives: Toda a nossa existência estava diante Dele. Seu olhar emitia sinais que naquele momento não éramos capazes de perceber na sua plenitude, como na vez em que não soubemos interpretar as vozes na montanha – que, porém, penetraram no mais profundo de nossos corações. Mesmo assim caminhamos na sua direção, pois se transformaram, imediatamente, na trama de toda a nossa existência106.

Os dois jovens, atraídos pelos gestos do ourives, contemplam a própria imagem na vitrine da loja107. Ao vê-la, ambos descobrem que, como Adão e Eva no início do mundo, eles são capazes de refletir a imagem de Deus: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus Ele o criou, homem e mulher Ele os criou” (Gn 1,27). “O Princípio e o Fim são invisíveis”, diz João Paulo II em seu Tríptico Romano. E é verdade: origem e destino do homem lhe são ocultos, fogem à sua vista. No entanto, nem tudo é escuridão no caminho, uma vez que entre o fim e o princípio existe uma marca visível: a imagem de Deus se mostra ao longo do caminho do amor humano. O nosso percurso nos trouxe ao ponto em que Adão e Eva, Teresa e André, todo casal, descobrem este reflexo. E nos perguntamos: em que consiste a imagem de Deus? Como pode a fonte infinita de onde tudo se origina refletir-se no sinuoso rio do amor humano? É possível que homem e mulher tornem visível a origem e o destino de tudo?

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A imagem do filho A obra de Karol Wojtyla, Irmão de Nosso Deus, oferece-nos um ponto de apoio para buscar a imagem divina no homem. A obra conta a história de Adão Chmielowski, um pintor que abandona suas telas para seguir Cristo, dedicando-se aos mais pobres. Adão é um nome simbólico, que Karol Wojtyla utiliza com frequência para falar do caminho de todo homem e de toda mulher. O motor da ação é a busca contínua de Adão pela beleza perfeita. Ao longo do caminho, o protagonista deve enfrentar uma voz interior, que representa um ser misterioso: “o Outro”. Esta voz sussurra continuamente em seus ouvidos: “A tua dignidade especial é a tua inteligência”. “O Outro” representa aqui uma visão concreta do homem como ser autônomo, capaz de alcançar, sozinho, a sua própria felicidade e plenitude, que vê toda oferta de ajuda externa como um insulto à sua dignidade autossuficiente. À medida que a obra se desenvolve, Adão responde à voz de “o Outro” com uma lógica mais profunda: é a perspectiva da imagem e semelhança. Vendo um homem pobre, que se apoia em um poste de iluminação, Adão diz: “Há nele algo mais que um mendigo apoiado num lampião [...]. Há nele uma certa imagem [...] e semelhança”. Mais adiante, Adão explicará o que significa esta imagem e semelhança: “Espera: imagem e semelhança. Vês? És uma criatura. És um filho. E eu também”108. A frase chave (“és uma criatura; és um filho”) refere-se à imagem como uma relação filial. A dignidade especial do homem não vem simplesmente de sua inteligência e de sua capacidade de autonomia, mas de sua relação filial com um Pai que o trouxe à existência e que o chama a uma vida de amizade e comunhão. Esta interpretação concorda com aquela do primeiro capítulo do Gênesis, que diz que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26-27). Para alguns exegetas, o homem é imagem a causa da tarefa que o Senhor lhe confiou: dominar a terra e deste modo prolongar o domínio divino. Como veremos, Wojtyla está de acordo com esta leitura, mas, ao mesmo tempo, coloca-se num contexto mais amplo, o da relação entre o homem e o Criador. É verdade que Deus o chama para ser o Seu representante e administrador no mundo, mas este papel é também o resultado de um chamado mais profundo, um convite à aliança com o Criador. O homem é, antes de mais nada, aquele com quem Deus estabelece uma amizade, e é esta relação com Ele que faz com que Adão seja superior ao resto das criaturas. Daqui deriva o seu domínio sobre o mundo, como um modo de manifestar nele o Criador. A imagem de Deus se associa, assim, ao

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que João Paulo II chama de “solidão original”, isto é, a capacidade do homem de responder à voz do Senhor, que o chama à vida. Além disso, Adão Chmielowski relacionava a imagem de Deus com o chamado a ser Seu filho: “Ah, espera: imagem e semelhança. Vês? [...] És um filho”. Esta relação encontra respaldo também na Bíblia. Isaías, por exemplo, compara Deus com o oleiro que modela o barro para dar-lhe forma e, também, com o pai e a mãe que concebem e dão à luz um filho: Ai daquele que contende com o que o moldou, vasos entre os vasos de terra! Por acaso dirá a argila àquele que a molda: Que estás fazendo? [...]. Ai daquele que diz a um pai: Por que geras? E a uma mulher: Por que dás à luz (Is 45,9-10).

O Gênesis completa o pensamento de Isaías quando afirma que Adão e Eva transmitem a seus filhos a imagem de Deus (cf. Gn 5,3). Com isso se está dizendo que a paternidade humana é um reflexo da própria paternidade divina. Não é surpresa, então, o fato de que João Paulo II fala do primeiro dom que recebem Adão e Eva no Paraíso em termos de filiação divina: Este dar coerente, que sobe até as raízes mais profundas da consciência e da subconsciência, até os estratos últimos da existência subjetiva de ambos, homem e mulher, e que se reflete na recíproca “experiência do corpo”, testemunha a radicação no Amor [...]. Na linguagem bíblica, isto é, na linguagem da Revelação, dizer, “primeiro” significa precisamente “de Deus”: Adão, filho de Deus (cf. Lc 3,38) [...]. A seu tempo, Cristo será testemunha deste amor irreversível do Criador e Pai, que fora já expresso no mistério da criação109.

Neste trecho, João Paulo II une suas reflexões sobre a solidão original à ideia da filiação. Assim, confirma-se que, para ele, a solidão original não tem a ver com o isolamento do indivíduo. À luz da imagem de Deus, entendemos que a solidão é o contrário da autonomia: representa a condição do homem face a face com o Doador original, que criou o universo. Em sua solidão primeira, Adão e Eva experimentam que Deus, como diz Santo Atanásio, “é bom, ou melhor, é a fonte de todos os bens”110. Este tema da filiação esclarece outro aspecto da imagem de Deus: a liberdade do homem. A Bíblia relaciona esta liberdade com o tema da filiação e não com aquele da autonomia autossuficiente do indivíduo, que a nossa cultura tende a exaltar. Para os antigos, o homem livre era aquele que pertencia à sua casa como membro da família, à diferença dos escravos, que não tinham uma morada própria. Ser livre, portanto, significa ser filho na casa de nosso pai. São Paulo opõe a escravidão não à ausência de limites, mas à existência filial (Gal 4,7). E São João diz: “Se, pois, o Filho vos libertar, sereis realmente livres” (Jo 8,36). 68

A imagem de Deus se forma no tempo Como temos visto, a imagem de Deus significa muito mais que a efígie de um rei numa moeda ou a figura de um homem que se reflete no espelho. Sem dúvida, estas imagens se parecem com o original, mas não têm nenhuma relação viva com ele. A perspectiva é muito diferente quando se trata da imagem de um filho gerado por seu pai. Esta imagem estará sempre em diálogo com o original, pois o filho nasce do pai e tende para ele. A imagem de Deus no homem pertence a este segundo tipo e, por isso, é capaz de revelar também a origem e o destino. É uma imagem em movimento, que vai se formando à medida que cada um caminha pela estrada da vida. O livro do Gênesis ensina que Deus criou o homem à Sua “imagem e semelhança”. Os padres da Igreja viram uma diferença importante entre os dois termos. Segundo eles a imagem se refere à dignidade do homem, por ter sido formado pelas mãos de Deus e por ser chamado à comunhão com Ele. Trata-se de uma dignidade que possuímos desde o início da nossa existência e que nunca poderemos perder. Enquanto que a semelhança, de seu lado, mede a nossa proximidade com Deus, os nossos passos para nos aproximarmos Dele. Por isso, a “semelhança” vai aumentando com o tempo, na medida em que for maior a correspondência com o original. Como escreveu São Máximo, o Confessor: “À bondade originária da imagem acrescenta-se a semelhança, adquirida pela prática da virtude e pelo exercício da vontade”111. Segundo este esquema, imagem e semelhança são contemporaneamente um dom e uma tarefa. A resposta humana leva à plenitude o dom divino e aperfeiçoa o homem, aproximando-o do seu original. João Paulo II usa um esquema parecido quando, em sua Carta Apostólica Mulieris Dignitatem, diz que “esta semelhança foi inscrita como qualidade do ser pessoal dos dois, do homem e da mulher, e, conjuntamente, como um chamado e um empenho”112. O significado da imagem também pode ser entendido considerando a ação da palavra divina (cf. Jo 1,3). Para criar todo o universo basta a Deus a Palavra, mas no caso do homem, é necessário algo mais: é necessário que esta palavra encontre uma resposta, que o homem dialogue com seu Criador. O homem se distingue dos animais como único ser na terra capaz de responder à Palavra de Iahweh. Nisto consiste precisamente a imagem de Deus no homem. Por isso, essa imagem se mantém íntegra somente enquanto continuar o diálogo com seu original. O homem se torna semelhante a Deus quando escuta e obedece à Sua palavra, quando está em diálogo contínuo com Ele. Uma consequência importante destas reflexões é esta: podemos contemplar a imagem de Deus no homem somente considerando a sua vida inteira. Podemos dizer que se trata

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de uma imagem em movimento, uma imagem que se forma ao longo de um caminho, de uma resposta vital ao chamado fundamental de Deus. A imagem se parece mais com uma peça de teatro que conta uma história do que com uma fotografia que mostra apenas um momento feliz da vida. Qual é este caminho no qual o homem reflete a imagem de Deus? Já vimos a primeira etapa desta viagem: trata-se da experiência de saber-se filho do Criador, que cada um vivencia por meio de seus pais. O homem é imagem de Deus porque vem de um amor pessoal, de uma relação de amor em que Ele é presente e que abençoa com o dom de uma nova vida. Por conseguinte, a família, ambiente em que entra no mundo o ser humano, torna-se o primeiro lugar em que a imagem de Deus se revela. É aqui que cada um descobre que a própria vida vem de Deus e aprende a recebêla de Suas mãos. Aqui começamos a ser pessoa, ou seja, um ser que vem do amor de outro e que, ao nascer, é amado por si mesmo. No entanto, esta filiação não reflete ainda a totalidade da imagem. Como vimos, a imagem deve ser completada durante a vida humana até se tornar semelhança perfeita. Não basta ter nascido e reconhecer que a nossa origem está em Deus, que somos Seus filhos e, por isso, feitos à Sua imagem. Temos também que responder a Seu amor, temos que aceitar livremente o dom divino da existência e fazê-lo frutificar em nossa vida. Por isso, ainda devemos perguntar-nos em que modo a imagem, que começa na filiação, cresce e aproxima-se do original. Como retorna o filho à fonte de todos os dons, de onde vem? Conhecemos a resposta: é por meio do amor, entrando numa comunhão de pessoas, que a imagem de Deus chega à plenitude na existência humana.

A imagem se revela na comunhão Na obra Irmão de Nosso Deus, de Karol Wojtyla, descreve-se numa cena o fracasso da inteligência autônoma, no intuito de explicar a relação do homem com seu próximo. A voz de “o Outro”, símbolo de independência, identifica a dignidade humana com sua capacidade de raciocínio. Mas “o Outro” excluiu de seus cálculos um elemento fundamental: esqueceu-se de que estas capacidades são dons recebidos de Deus para que o homem se torne capaz de conhecê-Lo e de amá-Lo em comunhão com outros. Em outra cena, em que Adão encontra um mendigo abandonado na estrada, Wojtyla nos mostra um caminho para sair da lógica asfixiante de “o Outro”: Adão: Não vês esse homem apoiado no lampião? O Outro: Não diz nada à minha inteligência. Deixou de ser um problema pra mim. Posso ignorá-lo.

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Adão: Quantas coisas, quantas coisas te faltam! [Ao redor de Adão se estende agora a escuridão da estrada, uniforme e compacta. Deixou para trás a luz do lampião que gerava sua sombra. “O Outro” já não existe. Adão sustenta o mendigo com seu braço. Ajuda-o a caminhar e o esforço lhe faz coxear da perna direita]. Vamos, amigo. Não dizes nada? Tuas mãos... estás aterrado... Não podes caminhar... Vamos, caminha! [...]. Vamos, adiante! Tu me salvaste113.

“Tu me salvaste”. Adão foi salvo porque evitou a tentação de viver na solidão sob a tirania estéril de uma razão calculadora e sem amor. A dependência do pobre mendigo, que conta só com a ajuda de Adão, lembra que também Adão depende de outros. Finalmente ele abre os olhos para descobrir seu próprio mistério: é, primeiramente, um filho. Sua filiação lhe foi revelada no encontro com aquele homem pobre e desvalido. Esta cena de dor e compaixão nos lembra outra, mais alegre, da qual já falamos. No princípio do mundo, também Adão e Eva descobriram que eram filhos de Deus quando se encontraram. Adão recebeu Eva como um dom de Deus e, ao doar-se a ela, transformou-se em sinal do amor de Deus para a mulher. Isso quer dizer que o amor do primeiro casal se realiza na relação com Deus, a fonte da vida. Sabemos que esta é uma relação filial, uma relação com Deus como Pai Criador. Por isso, ao receber-se mutuamente como dom de Deus, e ao dar-se mutuamente, Adão e Eva testemunham que são filhos de Deus e caminham juntos rumo ao Pai, de quem provêm. Perguntávamo-nos como o homem pode levar à plenitude a imagem de Deus e exprimir de forma visível o amor do Pai em sua vida. Agora já temos a resposta: através do dom mútuo que o homem e a mulher fazem de si mesmos. Como explica João Paulo II em sua Carta Apostólica Mulieris Dignitatem, Deus se revela na comunhão de pessoas. Por isso, a união entre homem e mulher é reflexo do amor que Deus mesmo é. O Papa Bento XVI dizia, num dos primeiros discursos do seu pontificado: “O homem foi criado à imagem de Deus, e Deus mesmo é amor. Por isso, a vocação ao amor é aquilo que faz do homem uma autêntica imagem de Deus: ele torna-se semelhante a Deus na medida em que se torna alguém que ama”114. Portanto, segundo Bento XVI e João Paulo II, a chave para entender a imagem e semelhança com Deus é o amor mútuo dos esposos, um amor que os supera, pois quando se amam, eles participam do mesmo amor Criador que os trouxe à existência. O dom originário do amor de Deus, por sua vez, abraça-os e lhes dá a capacidade de doar-se um ao outro, como resposta grata ao que por primeiro deu-lhes a vida. O amor dos esposos transforma-se, assim, em presença visível do Senhor no mundo: os dois se tornam Sua imagem. 71

Como dissemos antes, a imagem de Deus é uma relação dinâmica entre um filho e seu Pai. Agora podemos acrescentar que este dinamismo continua no amor que une o homem e a mulher. O amor do filho que sabe que recebeu tudo do Pai evolui, por sua própria natureza, ao amor esponsal. Graças a esta união, o homem e a mulher caminham juntos para Deus, levando a imagem à plenitude e alcançando a semelhança, segundo a distinção usada por vários padres da Igreja. Todavia, temos que acrescentar ainda um aspecto importante: dado que se amam numa dimensão que os supera, a do abraço do Pai, os esposos podem dar um fruto que vai muito além de suas expectativas e possibilidades. O sinal visível desta fecundidade é o filho. “Adquiri um homem”, exclama Eva, “com a ajuda do Senhor” (Gn 4,1). Adão, o filho de Deus, que recebeu tudo de seu Pai, mostra seu amor por Ele ao entregar-se a Eva, sua esposa, que recebe como filha de Deus e Seu presente. Esta bênção de Deus confirma-se na fecundidade, como prova da presença do amor divino no amor humano, de geração em geração. As palavras que Karol Wojtyla coloca na boca de Adão, o primeiro homem, em sua poesia Raios de Paternidade, enfatizam este vínculo entre ser filho e transformar-se em pai: Acolher em si o esplendor da paternidade não significa somente “ser pai”, mas, em primeiro lugar, significa “ser criança” (ser filho). Sendo pai de tantos, tantos homens devem ser crianças: quanto mais pais, tanto mais crianças115.

Como já dissemos, para poder compreender a imagem de Deus, é necessário ver sua realização no tempo. O homem é imagem de Deus na sua história, na qual manifesta sua origem e seu destino invisíveis. Somos quem somos porque outro nos amou, deu-nos a existência, e fez-nos capazes do dom mútuo através do amor esponsal e fecundo. Assim compreendemos porque a pessoa nasce na família. E não nos referimos ao sentido óbvio de ali vir à existência, mas ao fato de que a pessoa se constitui como tal no tecido das relações familiares. Pessoa é quem procede de outro e, por ter recebido este amor filial, é capaz de doar-se a outros (amor esponsal) e transmitir vida (amor fecundo). É este processo – que João Paulo II chamou “genealogia da pessoa” em sua Carta às Famílias – que transmite no tempo a imagem de Deus116. A família nos fala de filiação, esponsalidade e paternidade, e estas coordenadas são precisamente aquelas que dão forma à imagem e semelhança divina no homem117. Somos imagem de Deus quando, reconhecendo-nos filhos, tornamo-nos esposos e pais. Para aprofundar esta trajetória da imagem, precisamos levar em conta como ela se revela no corpo humano.

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A imagem de Deus no corpo: nudez originária Parece natural supor que a imagem de Deus resida na alma humana. Afinal, a alma é a sede da inteligência e da vontade livre, que diferenciam o homem dos animais. João Paulo II aceita este pressuposto: na alma do homem está a imagem divina. Mas acrescenta algo importante: esta imagem também resplandece no corpo humano118. Ao considerar o corpo como imagem de Deus, João Paulo II reaviva a antiga tradição dos padres da Igreja. Os primeiros cristãos escreviam que o Criador “formou [a carne do homem] com suas próprias mãos segundo a imagem de Deus”119. Diante desta afirmação surge uma pergunta: o corpo, vindo da terra, pode conter a imagem de Deus invisível e transcendente, um Deus que é espírito e imaterial? Para responder, precisamos, primeiramente, lembrar o que já sabemos sobre o corpo. Vimos que ele é a forma com que o homem participa do mundo e está aberto aos outros. É como a primeira casa, onde cada um encontra as coisas e as pessoas que o cercam e as acolhe como parte dele mesmo. E ainda em sua abertura aos outros, o corpo descobre também que a existência humana está aberta a Deus, a este mistério infinito do qual viemos e para o qual vamos. Neste sentido, podemos falar de um significado filial do corpo: ele nos revela que viemos de outros, que somos seus filhos. Mas o corpo também tem um significado esponsal, pois mostra que Deus, Doador original, enriquece a existência com o dom da outra pessoa e, ao mesmo tempo, confia-nos a seus cuidados. A linguagem do corpo nos diz que o amor esponsal entre homem e mulher é um caminho para Deus e que cada pessoa é filho chamado a transformar-se em esposo. O corpo fala esta linguagem e assim revela o nosso destino, um destino tão elevado como o Deus para o qual nos encaminha. Assim, o corpo testemunha a capacidade de crescer além de si mesmo, até chegar à comunhão com o próximo e com Deus: o corpo reflete o Criador, que ama e é amor. Obviamente, o corpo também nos expõe à vulnerabilidade e à dependência; porém, longe de ser obstáculo à capacidade de refletir Deus, esta pobreza é parte da dignidade da imagem divina. O Senhor, poderíamos dizer, revela-se como Deus amor precisamente na humildade do corpo. Não há dúvida de que este é um verdadeiro paradoxo do amor: cria sempre um espaço para o amado, chamando o amante a aceitar com alegria a novidade que ele traz. Assim, o amor é capaz de se tornar pequeno, de humilhar-se para deixar espaço ao amado, para fazê-lo crescer. É exatamente o que Deus fez com o homem, revelando o seu rosto.

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É claro que tudo isto não nega que a liberdade e a inteligência sejam parte da imagem de Deus no homem e da superioridade humana sobre o resto da criação. Demonstra-nos, ao invés, que só se vivermos estes atributos na humildade do corpo é que eles nos revelarão o verdadeiro rosto de um Deus que quer fazer aliança com a Sua criatura e que se abaixa para que ela possa subir até Ele. Esta habilidade de perceber a imagem do Pai presente no corpo humano é, para João Paulo II, uma das experiências originais do homem que devemos acrescentar à solidão e à unidade. Baseando-se em Gn 2,25 (“os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam”), ele chamou esta experiência de “nudez original”. A falta de vergonha – segundo o Papa – não dependia de um escasso desenvolvimento psicológico, fruto da imaturidade dos primeiros pais. Ao contrário, na nudez, como em todas as experiências do princípio, há uma plenitude. Se o homem a perdeu, não é porque finalmente se tornou adulto, mas porque esqueceu as verdadeiras raízes de seu ser, a verdadeira fonte de onde nasce a sua maturidade enquanto ser humano. Esta nudez original é a capacidade de ler no corpo humano a expressão da solidão e da unidade próprias do princípio, quando o homem saía das mãos de Deus. Adão e Eva estavam nus e não se envergonhavam, porque podiam discernir a dignidade do corpo e reconheciam sua diferença das outras coisas d,o mundo visível, animado e inanimado. A nudez original consistia em ter olhos puros para descobrir que o homem e a mulher, em seu ser masculino e feminino, tinham sido dados um ao outro, e em sua mútua entrega completavam sua viagem até a fonte de todo dom. Assim como a nudez original nada tem a ver com uma falta de desenvolvimento do senso moral, tampouco significa falta de roupas. A roupa é uma expressão da diferença entre o homem e os animais e indica o respeito que devemos ao corpo humano. Viver em harmonia com a nudez original significa vestir-se de tal forma que o nosso traje esteja de acordo com o mistério do nosso ser: “Homem e mulher os criou”. E ficou-lhes o dom que Deus lhes deu. Tomaram para si – à medida humana – esta doação mútua que há Nele. Os dois nus... Não sentiam vergonha, enquanto conservavam o dom – a vergonha virá com o pecado, mas agora permanece a exaltação. Vivem conscientes do dom, mesmo se, talvez, nem saibam nomeá-lo. Mas o vivem. São puros120.

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João Paulo II admirava os afrescos da Capela Sistina, em que Michelangelo retratou o corpo humano como lugar onde Deus se torna visível. O Papa sabia que Deus é invisível: “O final”, escreveu no Tríptico Romano, “é tão invisível como o princípio. O Universo foi criado pelo Verbo e ao Verbo retorna”121. Apesar disso, João Paulo II era convicto de que o princípio e o fim do mundo, embora invisíveis em si, tornam-se visíveis no corpo humano, em sua viagem desde o nascimento até a morte. A nudez original é, em última análise, a capacidade humana de ser imagem de Deus Amor. Viver nesta pureza original quer dizer aprender a ver as coisas com os olhos do Criador, que sempre vê o corpo em conexão com toda a pessoa e com Seu chamado ao amor. Significa, portanto, viver outra vez a experiência original do corpo como um “sacramento primordial” ou “présacramento”, no qual o mistério do amor de Deus se faz presente e ativo. Como escreve João Paulo II em seu Tríptico Romano: Via, descobria as pegadas de sua Essência – Encontrava seu esplendor em todo o visível. O Verbo Eterno é como se fosse um limiar no qual vivemos, nos movemos e existimos122. O pré-sacramento – o único ser do sinal visível do Amor eterno123.

Entrar na comunhão de Deus Começamos este capítulo com a história de Teresa e André, quando os dois olhavam para a própria imagem refletida na vitrine da loja do velho ourives. Agora sabemos que a imagem que os olha desde o espelho é a sua história de entrega mútua, transformada num “sinal visível do amor eterno”. Teresa e André percebem a presença do ourives, que representa Deus, dentro de seu amor. Ambos são abraçados pelo amor divino: A vitrine do ourives [...] se tornava um espelho para nós dois, para Teresa e para mim. [...] Éramos não somente refletidos, mas absorvidos. Sentia-me como se fosse observado e reconhecido por alguém escondido no fundo daquela vitrine124.

Mas como é possível que o amor de Teresa e André, sua história de entrega mútua, do início até o fim, consiga manifestar a fonte infinita e transcendente do amor? Como pode o amor humano, tão frágil e breve, conter o amor eterno de Deus? Somente a Boa Nova, o Evangelho cristão, responde plenamente a estas perguntas. A vida e a morte de Cristo revelam que Deus é Amor em si mesmo, é uma comunhão em que o Pai e o Filho são um com o Espírito Santo. Isso significa que o Deus cristão, sendo

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um Deus Amor, tem espaço dentro de si para o homem: o amor humano pode habitar em Deus, pode ser acolhido por Ele e transformado Nele. A revelação ilumina o caminho da imagem de Deus que acabamos de descrever. Cada homem descobre, por meio de seus pais, sua origem, advinda de Deus Pai, o Criador; descobre ser filho de Deus e, portanto, Sua imagem. Agora poderíamos nos perguntar: até que ponto esta filiação importa para Deus? Até que ponto toca Seu coração? É aqui que Cristo introduz uma novidade: Jesus nos mostra que Deus não começa a ser Pai quando cria Adão e Eva. A Sua paternidade é parte de Seu ser desde a eternidade, desde muito antes que o homem aparecesse na terra. Com efeito, Deus sempre foi Pai, porque desde a eternidade tem um Filho, que recebe tudo Dele. Este Filho é o Filho Amado, que está sempre junto do Pai: é Ele quem abre um espaço no seio do Criador para que possamos entrar, para que Adão e Eva possam ser chamados verdadeiramente de filhos de Deus. A filiação do homem alcança o coração do ser divino, pois o homem é destinado a compartilhar a filiação de Seu Filho eterno, a ser filho no Filho. Um segundo elemento, que se refere ao Espírito Santo, deve ser acrescentado. Deus não é presente em Adão e Eva só como o Pai do qual procedem. Adão e Eva também experimentam o amor de Deus dentro de seu amor esponsal, como vínculo que os abraça e os une mutuamente. Os esposos, portanto, estão unidos numa dimensão que os supera. Como diz o filósofo Jean Guitton: Amamos realmente só se amamos numa esfera que seja superior a nós, numa unidade mais nobre e mais plena, numa dimensão que assegure a união dos dois amantes. Assim como a respiração precisa da atmosfera, o amor requer uma “erosfera” [...] A verdadeira dimensão que une os amantes, que os consolida [...] é o que os homens chamam Deus125.

Poderíamos nos perguntar ainda: até que ponto esse amor que nos une e nos transporta tem relação com Deus? Afinal, não se trata de um amor frágil, indigno do ser perfeito que é o Senhor? Como pode o Deus infinito abaixar-se ao nível do homem, feito de barro? Mais uma vez precisamos voltar ao Evangelho de Cristo. Jesus traz uma integração inesperada à experiência humana fundamental, ou seja, amar-se na dimensão do mistério absoluto que é Deus. Ele mostra que este amor que une os esposos é uma participação no Espírito Santo, no mesmo amor que une eternamente Pai e Filho na comunhão da Trindade. O amor de Deus pode introduzir Adão e Eva no mistério profundo de Seu ser, pois este amor é o mesmo Espírito de amor que perscruta as profundezas de Deus. João Paulo II descreve o Espírito como a pessoa dom, na qual o homem pode aceitar o dom que é Deus e, assim, pode entrar na comunhão divina126. A presença do Espírito no amor humano transfigura o corpo do homem e da mulher, 76

levando a cumprimento a pureza original. Uma história da vida do grande místico ortodoxo São Serafim de Sarov ilustra perfeitamente esta transfiguração: O padre Serafim me tomou pelos ombros e, apertando-me fortemente, disse: “Agora nós dois estamos na plenitude do Espírito de Deus. Por que não me olhas?” Respondi: “Não posso olhar-te, padre, porque como relâmpagos brilham teus olhos. Teu rosto tornou-se mais luminoso do que o sol…” O padre Serafim replicou: “Não tenhas medo, homem de Deus. Tu também te tornaste tão luminoso quanto a mim. Agora também tu estás na plenitude do Espírito de Deus; do contrário, não serias capaz de ver-me…”127.

O Deus cristão é Pai, Filho e Espírito Santo, “o que ama, o amado e o próprio amor”128. O Filho recebe tudo do Pai e Lhe restitui tudo na unidade perfeita do Espírito Santo, vínculo da união entre eles. Este dinamismo de amor se realiza no centro do ser divino. Jazem aqui os fundamentos pelos quais a história temporal do homem, no seu movimento do amor para o amor, pode ser introduzida no seio de Deus. A nossa viagem tem suas raízes em Deus e volta a Ele através do amor. Trata-se de um caminho que toca o ser de Deus e, por isso, há em si Sua imagem sagrada. E assim, embora “o princípio e o fim sejam invisíveis”, eles se tornam visíveis na trajetória temporal do amor humano, que resumimos em três passos. Em primeiro lugar, Adão percebe que, mesmo já adulto, continua sendo um filho que nunca deixa de vir do Pai. Em segundo lugar, Adão descobre ser chamado a voltar ao Pai precisamente aceitando o dom de Eva e fazendo-lhe dom de si mesmo. Em terceiro lugar, a fecundidade da união de Adão e Eva testemunha que o amor que compartilham os transcende: “Adquiri um homem com a ajuda do Senhor” (cf. Gn 4,1). Ao considerar estes três passos, chegamos a uma surpreendente conclusão: a família, que contém toda a genealogia da pessoa desde a infância – onde aprende a ser filho – até o dom esponsal e fecundo, é chamada a ser imagem da Trindade. A imagem completa de Deus não está só na alma, nem só no indivíduo, composto de alma e corpo, mas está na comunhão de pessoas que participam e dão testemunho da própria comunhão trinitária de Deus. A família possui a imagem, porque nela somos filhos, doamo-nos como esposos e tornamonos pais. Como diz Karol Wojtyla em sua poesia Raios de Paternidade: “Se eu pudesse imergir-me Nele, enxertar-me Nele, poderia extrair de mim esse amor que o Pai revela no Filho; e no Pai, pelo Filho, engendrar ao Esposo”129. A viagem de Adão e Eva para alcançar a plenitude do chamado ao amor os leva ao centro da comunhão trinitária. Assim concluímos a primeira parte do nosso caminho, que nos convida a fazer uma pergunta: somos realmente capazes de completar esta viagem e chegar à meta? Ainda que os nossos corpos nos revelem o mistério de Deus, não 77

permanecem infinitamente distantes da transcendência do ser divino? Não é verdade que o caminho do amor foi obstruído pela nossa rejeição ao amor, pelo nosso pecado e infidelidade? A solução a estas dificuldades, como todas as respostas que nos foram dadas ao longo do caminho do amor, só pode vir lá de cima. Com efeito, vimos que o amor, desde seus primeiros passos, consiste precisamente numa revelação, numa surpresa que ilumina os passos de Adão e Eva, ou seja, algo que eles não poderiam produzir sozinhos. Será a consideração do mistério de Cristo, plena imagem que manifesta a verdade sobre o homem, que nos orientará na segunda parte do livro.

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SEGUNDA PARTE A REDENÇÃO DO CORAÇÃO

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CAPÍTULO 5 UM CORAÇÃO FERIDO: A FRAGILIDADE DO AMOR

A água flui montanha abaixo; o próprio peso da correnteza a conduz ao oceano. “Que disseste ribeiro da montanha? Em que lugar te encontras comigo?”130. Estas perguntas se referem ao caminho do homem pelo mundo, tão diferente daquele seguido pelas outras criaturas da terra. Como diz Santo Agostinho, Cada corpo, por causa do seu peso, tende ao seu lugar próprio [...] A água vertida sobre o óleo vai para baixo dele. [...] Cada líquido se comporta segundo a sua densidade e busca o seu lugar [...] O meu peso é o meu amor; onde quer que sou levado, é meu amor que me leva131.

Eis aqui o peso do homem, o que o arrasta e move: o amor é meu peso. O amor, quando o encontramos, faz nascer em nós a maravilha, abre-nos horizontes insuspeitáveis para os quais nos impulsiona. Então não há mais riscos no caminho? Podemos percorrê-lo sem preocupações, como a corrente desliza montanha abaixo, certa de chegar à sua meta? Escutemos Karol Wojtyla, que nos fala com a voz de Adão, voz de todo o homem: Dei-me conta de onde parte e onde chega o amor humano e quão íngremes são suas bordas. Quem escorrega de tal precipício, dificilmente conseguirá subir de novo e ficará lá embaixo, caminhando sozinho132.

O homem conhece bem os precipícios que flanqueiam o caminho do amor humano. Tudo parece fácil no início, e os sentimentos indicam o caminho a seguir. O amor parece algo simples e claro, “um cântico entoado com todas as cordas do coração”133. Só mais tarde os problemas aparecem, quando se aprende a conhecer a própria fragilidade e a fragilidade da pessoa amada. E então, “as cordas pouco a pouco silenciam”, e os amantes se sentem “sempre mais distantes do puro sabor do entusiasmo”134. Quando se chega a tal ponto, ainda é possível continuar caminhando na estrada do amor? Ou sua luz torna-se

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como fogos de artifício que iluminam a noite por um instante, mas não podem oferecer luz e calor? Ninguém se aventuraria de noite por um caminho desconhecido tendo nas mãos somente alguns foguetes, que produzem belas luzes, mas que duram pouco. O que podemos dizer, então, sobre esta promessa grandiosa do amor, que parecia tão rica de possibilidades? Para decifrar a música do amor, que está na origem do nosso caminho, temos que prestar atenção a outras vozes que também ressoam dentro de nós. São, na verdade, ruídos que interferem na melodia original. Em seu livro A Pérola, John Steinbeck descreve a vida de uma família pobre de pescadores135. Ele fala de diversas músicas que o jovem protagonista percebe de acordo com o momento em que vive. Há a canção da família, em que se alegra em sua casa, com sua mulher e seu filho; a canção do trabalho, com notas firmes, que refletem energia e esforço. Mas há também outras melodias que aparecem quando sua família se sente ameaçada: a canção da morte, do perigo repentino, do medo de perder tudo. Pois bem, algo parecido acontece em toda a experiência humana: junto com a canção do dom e a canção da família, ouvimos também os ruídos da ruptura, da perda, do pecado, que querem encobrir o chamado do amor. Temos que prestar atenção a estes sons desafinados, pois só quem tem consciência dos perigos do caminho será capaz de chegar ao destino. Em A Loja do Ourives, Ana descreve uma fissura que está crescendo entre ela e Estêvão, seu marido. Trata-se da “fissura do nosso amor, que eu já sentia tão dolorosamente”136: Não podia resignar-me, mas não sabia como evitar a primeira fissura (por enquanto suas bordas se mantinham imóveis, mas a qualquer momento podiam se separar)137.

Esta fissura, como veremos, abre-se e ramifica-se pelos diversos setores da nossa vida. É uma força que tenta separar tudo o que o amor uniu: o ser humano de seu Criador, a mulher do homem, os pais dos filhos, a alma do corpo. As paredes do amor, que sustentavam a casa da felicidade, tornam-se frágeis. Será ainda possível edificar sobre elas uma morada duradoura? Vamos procurar descrever as diferentes ramificações desta fissura que ameaça a estrutura do edifício. O que a Bíblia revela sobre esta ruptura vai iluminar a nossa experiência na travessia das regiões dos desencantos e da fragilidade.

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Um abismo começa a se abrir entre Deus e o homem Os ruídos de que falamos, que ressoam dentro de nós e nos impedem de escutar a sinfonia do amor, estão relacionados, segundo o apóstolo João, com a concupiscência. Trata-se da concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e do orgulho da vida (cf. 1Jo 2,16). São vozes que não vêm do Pai, mas do mundo (cf. 1Jo 2,17). Mas não dissemos que o mundo inteiro foi criado por Deus e que o Criador viu que todas as coisas eram boas? Então por que esta diferença entre o que vem do Pai e o que procede do mundo? A resposta se encontra voltando ao livro do Gênesis, ao ponto em que a aliança com o Pai se rompe pela primeira vez no coração do homem. A fissura que percorre as paredes do amor humano surgiu porque Adão e Eva quiseram cortar os laços que os unia a Deus, fonte de todo bem. De fato, a tentação da serpente consistiu em duvidar da bondade divina. “Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?” (Gn 3,1). A pergunta esconde uma mentira descarada. Na verdade, Deus não proibiu de comer de todas as árvores, senão de uma só. Pelo contrário, na Sua grande benevolência, Ele deu ao homem o resto das árvores para que se alimentasse e gozasse de saúde. Só a partir deste primeiro dom se entende o sentido da proibição. Todavia, na boca da serpente, o Criador aparece como alguém que impede o homem de alcançar a vida verdadeira, um invejoso de sua felicidade. Portanto, a pergunta do Tentador diz respeito ao amor divino: Deus ama realmente o homem? “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nem o tocareis, sob pena de morte” (Gn 3,2-3). Eva parece querer corrigir as palavras da serpente. Mas, na realidade, ela já aceitou, de certo modo, sua mensagem de desconfiança. Dois detalhes nos mostram isso. Primeiro, Deus não tinha proibido o homem de tocar na árvore, mas somente de comer dela. As palavras de Eva exageram a ordem divina: até parece que Deus vigia o homem para pegá-lo de surpresa, aproveitando de um simples descuido. Em segundo lugar, o detalhe mais importante, é que Deus não tinha proibido a Adão e Eva de comerem da árvore que estava no meio do jardim, isto é, da árvore da vida, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal. Estas duas árvores são bem diferentes, segundo o relato bíblico (cf. Gn 2,9)138. A árvore da vida simboliza o presente de Deus: Adão e Eva possuiriam a vida eterna desde que aprendessem a recebê-la como dom do Pai. Quanto à árvore do conhecimento do bem e do mal, ela representa a independência e a autonomia. Comer de seu fruto é querer determinar sozinho o sentido da vida, o bem e o mal; é tornar-se autossuficiente, como um riacho que pensa não precisar de sua fonte. Trata-se

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de uma trágica ilusão: a corrente logo secará; o fruto desta árvore, ao separar o homem de seu Pai, trará consigo doenças e morte. Agora entendemos em que consiste a tentação. A visão de Eva se embaça, ela identifica as duas árvores e confunde uma com a outra. Pensa que a vida só será possível se puder determinar por si mesma o que é bom e o que é mau, que valha a pena viver somente quando se é independente e autônomo. Consequentemente, a ordem de Deus nega a felicidade e a plenitude. Como pode ser bom um Criador tão invejoso da felicidade do homem? Podemos chamar o pecado original de Adão e Eva de negação do Pai. Eles sucumbem à tentação de pensar que Deus não está na origem da sua vida e do seu mundo. Trata-se de um Deus distante, feliz de sua onipotência, que quer guardá-la para si. Assim sendo, para ser igual a Deus, é preciso isolar-se em si mesmo. Como diz Adão na obra de Wojtyla, Raios de Paternidade: “‘Está ele sozinho?’, perguntava-me. O que me fará símile a Ele, independente de tudo? Ah, situar-me acima de tudo, para ficar sozinho em mim mesmo! Só então, estarei mais perto de ti”139. A partir deste momento, entra em cena a dúvida, a desconfiança. Adão e Eva perguntam-se: o mundo é realmente um dom, um presente? Não será melhor apropriar-se dele e dominá-lo para extrair dele todos os frutos? E assim, antes mesmo que o homem seja expulso do Paraíso, ele já expulsou o Criador de seu coração: Pondo em dúvida, no seu coração, o significado mais profundo da doação, ou seja, o amor como motivo específico da criação e da aliança original (cf. em particular Gn 3,5), o homem volta as costas ao Deus-Amor, ao “Pai”. Em certo sentido, expulsa-O do próprio coração140.

Dizem que na Polônia, quando se pergunta a uma criança como se chama, ela indica com o dedo a sua casa. A casa é o lugar onde se sente acolhida, onde reconhece quem é. Pois bem, podemos dizer que, depois do pecado, Adão e Eva perdem a sua casa; deixando o Paraíso, já não percebem mais o mundo todo como um lar. Seguindo a primeira carta de São João (1Jo 2,16), entendemos porque João Paulo II fala de uma voz insidiosa que não vem do Pai, mas do mundo. O que aconteceu é que o homem separou o mundo do Pai e deixou de entender que toda a criação é um presente de Deus. E agora o mundo já não é recebido como um dom, mas como algo que se deve conservar ciosamente. De repente, o homem descobre que está rodeado de objetos sem nome e sem rosto; perdida a referência do Pai, ele deverá medir-se a partir das coisas existentes. É aqui que aparece esta nova voz que o apóstolo João chama de concupiscência. É uma voz que surge no coração humano e tenta convencê-lo da inexistência do dom. Trata-se de uma força que leva o homem a comportar-se como se o mundo não fosse um 83

lar acolhedor, como se as coisas não fossem dadas pelo Pai. As consequências deste esquecimento são muito graves. Já sabemos que o movimento do dom é o que dá unidade à nossa vida inteira: explica-nos nossa origem, situa-nos no mundo presente, mostra-nos a meta final do caminho. Por isso, esta fissura que separa o homem de Deus, ao fazer desaparecer a consciência de Seus dons, tende a fraturar todo aspecto da vida humana, como veremos em seguida.

O corpo: o lar que se transforma em prisão Provavelmente todos já vimos um destes circuitos construídos com pedras de dominó: quando a primeira pedra cai, as outras a seguem, uma após a outra. Pois bem, o que acontece no nosso caso é algo parecido: ao empurrar a primeira pedra, a que une o homem a seu Pai, as seguintes começam a cair. Assim, a rejeição da consciência dos dons do Criador muda a visão do próprio eu, precisamente no que se refere ao corpo. É importante lembrar que o corpo representa o modo com que estamos no mundo, o modo com que entramos na realidade e participamos dela. Estar no corpo significa aceitar que somos vulneráveis e dependentes; mas também que, graças a isto, podemos crescer para além de nossas próprias fronteiras. No corpo aprendemos, por exemplo, que procedemos de outros e que não demos a existência a nós mesmos; no corpo descobrimos que herdamos tudo o que temos. Por isso, quando entendemos a linguagem do corpo nasce em nós a gratidão, pois descobrimos que a nossa existência é um presente. Diz João Paulo II: “Este é o corpo-testemunha da criação como de um dom fundamental, portanto testemunha do Amor como origem de que nasceu este mesmo dar”141. Por conseguinte, é impossível separar estas duas coisas: o significado do nosso corpo e a consciência da nossa vida como um dom. Se não aceitamos a nossa vida no corpo, se não aprendemos a decifrar sua linguagem, então o mundo não pode ser recebido como um dom. Tendo presente esta ideia, voltemos ao primeiro pecado de Adão e Eva. Os dois querem negar o dom, rejeitar que Deus seja seu Criador e Pai. Mas para fazer isso, terão que fazer cessar a voz do corpo, fazer com que ele não continue a lembrá-los de que vivem imersos neste dom primário. Isso quer dizer que, a partir daquele momento, para não escutar a linguagem do dom, o homem tratará de manipular a de seu próprio corpo. Hoje muitos aceitam o corpo só na medida em que produz prazer e o rejeitam quando se transforma em fonte de dor e em aparente obstáculo para a satisfação dos próprios desejos. Diante desta perspectiva, o

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corpo não é vivido como lugar aberto ao amor, como forma de se relacionar com os outros homens e com Deus. Ao contrário, ele se torna uma prisão que impede a verdadeira liberdade. Parece que o corpo nos limita, que nos impede de acelerar o ritmo de nossa vida, de nos movermos com maior rapidez, de viver uma vida mais longa, de gozar das diversas experiências... O corpo não é mais, como disse o Papa Bento XVI, a região da liberdade142, mas nossa cela na grande prisão do mundo. O livro do Gênesis exprime esta nova consciência do corpo quando narra o momento em que Adão e Eva descobrem sua nudez: As palavras “tive medo, porque estou nu, e me escondi” (Gn 3,10) testemunham a mudança radical [...]. O homem perde, de alguma maneira, a certeza original da “imagem de Deus”, tal como expressa no seu corpo143.

“Tive medo”, disse o homem quando Deus lhe pergunta onde está. A relação com o Pai desapareceu; o homem passa, ao olhar para Deus, a ver alguém que inspira temor. Esta primeira pedra de dominó faz cair a segunda: Adão perde a harmonia com seu corpo, pois deixa de tratá-lo como obra e dom do Pai. Logo depois, cai a terceira pedra: não escutando a linguagem do corpo, a nossa visão do mundo se transforma. O homem já não vive na terra como em sua própria casa, onde se sente à vontade e protegido. Ao contrário, aparece o medo diante de um mundo cheio de ameaças. Uma vez desaparecida a certeza de que a imagem de Deus é imprimida em seu corpo, [o homem] perde também, em certo modo, o sentido do seu direito a participar na percepção do mundo, da qual gozava no mistério da criação. [...] As palavras de Gn 3,10 “tive medo, porque estou nu, e me escondi” confirmam a decaída da aceitação original do corpo como sinal da pessoa no mundo visível144.

Em outras palavras, quando o nosso corpo nos parece estranho, também o mundo que nos rodeia se volta contra nós. João Paulo II fala a este propósito, de uma “vergonha cósmica”: a vergonha que Adão e Eva descobrem quando pecam não se refere somente aos dois, mas a todo o universo. O homem passa a sentir-se deslocado no mundo, sem defesas, com tantas inseguranças “diante dos processos da natureza, que operam com determinismo inevitável”145. Como ocorre com o corpo, também o mundo se transforma num lugar perigoso e deixa de ser sua casa. Consequentemente, o homem entenderá seu domínio sobre a criação, não em termos de amor e cuidado responsável, mas segundo a lógica da tirania e da exploração, da forma como se reage diante de um inimigo que deve ser subjugado.

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A aceitação original do corpo era, em certo sentido, a base da aceitação de todo o mundo visível. E, por sua vez, era para o homem garantia do seu domínio sobre o mundo e sobre a terra, que deveria sujeitar (cf. Gn 1,28)146.

Uma fissura no interior do homem Começamos a ver como o homem, separado de Deus, perde a possibilidade de encontrar uma casa. Como diz João Paulo II, o Criador é “o lugar da totalidade, o lar de todos os encontros e de todos os homens. Fora deste lugar, são homens sem lar”147. O mundo, portanto, já não acolhe o homem: onde poderemos nos esconder, quando deixamos Deus de lado? “Para onde ir, longe do teu espírito? Para onde fugir, longe da tua presença?” (Sl 139,7). Sentimos, então, a tentação de nos fecharmos em nós mesmos. Terá o homem alguma chance de isolar-se na sua própria fortaleza, para buscar refúgio desta relação rompida com Deus, a fim de definir sua própria identidade sem relação com o Criador? O fato é que a tragédia do homem é tamanha, que nem mesmo dentro de si ele pode encontrar um lugar para fugir. Com efeito, o Salmo que acabamos de citar continua: “Conhecias até o fundo do meu ser: meus ossos não te foram escondidos” (Sl 139,15). Nem mesmo isolando-se dentro de si, o homem pode afastar-se de Deus, porque a fissura que o separa de Deus atravessa todo o seu ser. Já que o centro de sua vida consiste numa resposta ao Pai, ao negar Sua presença, rompeu-se por dentro. Aonde quer que vá, levará a ferida da separação de Deus. A relação com o próprio corpo, mais uma vez, ilustra o que estamos dizendo. Afastar-se do Criador significa também negar o vínculo entre o corpo e o dom, entender o corpo como um objeto que posso usar ou manipular. Mas ele não é um simples objeto possuído ou um instrumento. Como vimos, eu sou o meu corpo. Por isso, separar-me dele é separar-me de mim mesmo, transformar-me num ser fragmentado. A fissura que separa o homem de Deus vai até o ponto mais profundo de seu ser, com a linguagem bíblica diríamos até o coração. Esta palavra diz respeito ao centro da pessoa, um centro que é, não esqueçamos, relação com Deus e com o próximo. O mais profundo do homem é também o que vai além dele, é o amor que o une aos demais e ao Pai. Podemos dizer que o coração é o que nos permite entender a linguagem do corpo: ter um coração é saber-se aberto ao mundo, em relação com os outros e com Deus148. O coração nos revela que o corpo é o lugar onde se manifesta o amor; ter um coração puro é saber exprimir o amor no próprio corpo. Por isso, toda vez que se obscurece o sentido do corpo, ocorre uma divisão no coração do homem. E quando o homem se encontra 86

dividido em seu coração, em seu centro íntimo, ele não é mais capaz de amar com todo o seu ser; envolve-se numa luta sem trégua consigo mesmo. Santo Agostinho exprime isso com vigor: “Estava em conflito comigo mesmo, separado de mim mesmo”149. E noutro lugar diz: “Ai da alma temerária que, afastando-se de ti, esperava achar algo melhor! Dá voltas e mais voltas, para todos os lados […] mas tudo lhe é duro, porque só tu és seu descanso”150. Esta ferida que o homem infligiu a seu próprio coração gera o que João Paulo II chama de “vergonha imanente”, ou seja, uma vergonha dentro do próprio homem. Em sua obra Raios de Paternidade, um dos personagens a descreve assim: Oh, Adão! [...] os homens que nascem dele jazem na trevas interiores. Não esperam [...] Cobrem-se por fora com a imensa riqueza da criação e de suas próprias obras, mas por dentro estão nus. Restalhe somente a vergonha. Por isso fogem gritando: escondi-me porque estava nu”151.

“Por dentro estão nus”. Estas palavras condensam o sentido da vergonha imanente (ou interior) que surge quando o homem se torna estranho ao próprio corpo, aos próprios sentimentos e desejos. Sente-se nu por dentro porque não consegue controlar suas reações diante do mundo, reações que, muitas vezes, não estão em sintonia com sua dignidade. Seus impulsos limitam a liberdade, colocando em perigo o domínio próprio, que lhe permitiria estar em paz consigo mesmo: O corpo, que não está sujeito ao espírito como no estado de inocência original, tem em si um foco constante de resistência ao espírito e ameaça de algum modo a unidade do homem-pessoa, isto é, a natureza moral, que mergulha solidamente as raízes na constituição mesma da pessoa. A concupiscência, e em particular a concupiscência do corpo, é ameaça específica à estrutura da autoposse e do autodomínio, por meio da qual se forma a pessoa humana152.

Esta vergonha interior provoca, por sua vez, outra fissura no edifício do amor humano. Pensemos novamente nas pedras de dominó: cada pedra faz cair a seguinte. Por isso, quando desaparece a unidade com nós mesmos, rompe-se também a unidade com o próximo. Antes do pecado, a presença de Eva revelava a Adão um chamado ao amor; mas depois do primeiro pecado, o homem e a mulher se encontram num mundo que não sentem mais como presente do Criador. Relutantes a receberem-se das mãos de Deus, já não possuem totalmente a si mesmos. Como, então, poderão doar-se à outra pessoa? Não é possível, pois ninguém dá o que não tem. A perda da consciência de um doador primordial não só rompe o homem por dentro, mas também o impede de abrir-se aos outros.

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A fissura que separa o homem e a mulher O corpo é o lugar de encontro entre Adão e Eva: “carne de minha carne”, diz o primeiro homem quando vê a primeira mulher. O amor mútuo lhes revelava que ambos eram dons do Criador, confiados por Deus um ao outro. O que acontece depois do pecado? Tratam de esquecer o Doador original e, assim, perdem a harmonia com seu próprio corpo, que era a forma de presença e abertura ao mundo. Isso influencia também na unidade entre os dois: homem e mulher, que já não percebem o mundo como um lar, encontram dificuldades para construir o lar comum de seu amor. Tratemos de analisar este processo. a) O amor conjugal, separado da fonte primária do amor A primeira consequência do pecado é separar o amor dos esposos do amor do Doador original, que é Deus. No profundo da relação deles, até agora plena de confiança no Criador, nasce, de repente, a dúvida e o medo diante do Senhor153. Assim, surge a tentação de afastar Dele o seu amor mútuo. O resultado é que os dois amantes se concentram exclusivamente sobre si mesmos. Transformam sua relação num ídolo que não se refere mais à fonte primária de todo o bem. O casal passa a ser o centro do universo e pensa bastarem-se a si mesmo para alcançar a felicidade. Distantes da fonte do amor, isolam-se também do resto do mundo. Se no princípio eram ambos a ajuda adequada na busca comum pelo Pai, Adão e Eva passam a preferir encerrarem-se numa bolha, dentro da qual só têm olhos um para o outro. Como diz um dos personagens de A Loja do Ourives: “Não sentes a fonte, mas a chama te consome”154. Já não se bebe água pura da fonte; ficou só um fogo que devora os amantes. É como uma fogueira sem ar que, pouco a pouco, acabará se extinguindo, deixando inutilizada a lenha. Em outra passagem, Wojtyla usa como imagem o contraste entre a superfície de um rio e a correnteza que forma sulcos no fundo. Ao separar-se da fonte do amor, o casal esquece a profundidade de sua própria união: A diferença entre o que se encontra na superfície e o que está escondido no amor – eis a fonte do drama. Esse é um dos maiores dramas da existência humana. A superfície do amor tem sua corrente própria, rápida, cintilante, susceptível de mudanças. É um caleidoscópio de ondas e de situações fascinantes. Às vezes, essa corrente se torna tão vertiginosa que arrebata as pessoas, homens e mulheres. Os que se deixam arrastar, imaginam ter abarcado o mistério do amor, quando, na verdade, nem sequer de leve o tocaram. São felizes por um instante, porque acreditam ter chegado aos confins da existência e ter arrancado todos seus segredos155.

b) Os esposos se afastam entre si 88

Uma vez que o homem não recebe mais da fonte de onde brota o dom, ele não pode mais doar-se à outra pessoa na verdade do amor. O que aconteceu? Em primeiro lugar, seu corpo, por assim dizer, esqueceu a linguagem do dom e começou a ser visto mais como barreira que separa do que como ponte que une. A consequência disso é que os sentimentos corporais não servem mais para conhecer interiormente a outra pessoa, para compartilhar com ela o mesmo mundo. Ao invés, tendem a distorcer a percepção do amado, idealizando-o como se fosse um semideus ou rebaixando-o à condição de objeto. Sem este conhecimento mútuo e confiante, o homem e a mulher não chegam à plenitude de sua união e fecham a porta ao amor verdadeiro. Ambos continuam percebendo a promessa que se encontra em seu desejo de amar, mas não sabem mais como realizar este desejo por meio de um amor autêntico pela outra pessoa. Wojtyla ilustra este aspecto numa cena de A Loja do Ourives, em que Ana se queixa da indiferença do marido, Estêvão, diante da dor de sua solidão. “[Ele] não sabia cicatrizar a ferida, que se abriu na minha alma. Não a sentia, não lhe doía de modo algum. Cicatrizaria sozinha? Mas se cicatrizar sozinha, acabará por nos separar ainda mais”156. Adão dá voz ao mesmo lamento na obra Raios de Paternidade: “É externo demais o vínculo que nos une e frágil demais o laço interior [...] vives muito pouco enraizada em mim, ainda que estejas tão próxima”157. c) O eclipse do dom de si Separados da fonte do amor e incapazes de compartilhar um mundo comum, a relação entre homem e mulher continua a deteriorar-se. A voz da serpente instila em seus ouvidos, pouco a pouco, a tentação de tratar o outro como objeto, como meio de satisfação de seus desejos egoístas. A outra pessoa se torna estranha ao próprio ser e começa a assemelhar-se com as demais coisas do mundo, que podem ser usadas para próprio deleite. Adão já não é capaz de perceber com clareza quão distinta é Eva do resto da criação. Estas tentações fazem surgir a vergonha na relação entre homem e mulher, sentimento que não existia no início da criação. Podemos distinguir vários tipos de vergonha, mas, neste momento, interessa-nos a seguinte: a vergonha que o homem sente de seus próprios sentimentos, que o levam a tratar a mulher como objeto (e vice-versa). Esta vergonha tem seu lado positivo: atua como proteção contra os movimentos interiores que degradam o chamado ao amor verdadeiro. Ainda assim, é um sinal da incapacidade do ser humano de possuir-se. A raiz disso deve ser buscada na perda da consciência do dom, na incapacidade de aceitar-se como alguém que procede das mãos

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do Criador. Quando o homem deixa de receber-se, torna-se incapaz de possuir-se: a perda da consciência do dom de Deus traz consigo a perda da capacidade de dominar a si mesmo. Mas se não nos possuímos, é impossível nos doarmos a quem amamos. Desta falta de harmonia nasce e cresce esta primeira forma de vergonha no coração humano. d) À lógica do dom opõe-se a do domínio João Paulo II distingue esta vergonha, típica das inclinações desordenadas da pessoa, de um segundo tipo de vergonha. A primeira é uma vergonha interior ao ser humano, a segunda é uma vergonha própria da relação entre homem e mulher. Esta última nasce de um medo diante do olhar do outro, que tende a nos tratar como um objeto. Com a vergonha, tecemos um véu, uma proteção diante do olhar daqueles que querem nos usar para seu prazer. Não estamos mais diante de uma vergonha devida aos nossos sentimentos, mas aos sentimentos possessivos do outro. Esta segunda face da vergonha defende a pessoa contra a lógica do domínio que o pecado introduz no mundo, de acordo com o livro do Gênesis: “Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará” (Gn 3,16). João Paulo II comenta esta passagem em sua carta apostólica Mulieris Dignitatem: O “conhecimento” bíblico realiza-se segundo a verdade da pessoa só quando o dom recíproco de si não é deformado nem pelo desejo do homem de tornar-se “senhor” da sua esposa (“ele te dominará”), nem pelo fechar-se da mulher nos próprios instintos (“teu desejo te impelirá ao teu marido”: Gn3,16)158.

O que João Paulo II quer dizer? O pecado introduz uma desordem na forma de viver a sexualidade; homem e mulher experimentam esta desordem em modos diversos, segundo o seu modo diferente de ser no corpo. O homem, por exemplo, procura dominar a mulher, apreciá-la somente segundo o prazer sexual. Esta tentação ameaça sobretudo a sexualidade masculina, porque a sua constituição se inclina mais facilmente a ignorar a conexão entre o desejo sexual e o valor da pessoa. Para ilustrar este ponto, podemos dar um exemplo: a conexão entre a sexualidade e a geração da vida é exterior à experiência masculina. Podemos dizer o mesmo no que diz respeito ao vínculo entre a sexualidade e o mistério da pessoa associado a cada novo nascimento. Para a mulher, ao contrário, que sente em seu corpo esta conexão entre sexualidade e vida, é muito mais difícil separar a sexualidade do mistério da pessoa. Se o homem cede a esta tentação que lhe é própria, liquida o amor conjugal, suplantando-o com a lógica do patrão e do escravo, e faz com que o corpo se torne “um ‘terreno’ de apropriação da outra pessoa”159.

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Por outro lado, também a mulher deve combater uma tentação que lhe é própria. O homem corre o risco de separar a sensualidade do valor da pessoa, transformando-a em absoluto. A mulher, por sua vez, supera mais facilmente a tentação de reduzir o homem a objeto de prazer, porque capta melhor o mundo dos afetos e do sentimento, no qual descobre o valor único do amado. Todavia, ela se expõe ao risco de ficar presa nesta esfera, separando o mundo das emoções da sua referência à pessoa e a Deus. Naturalmente, isto não quer dizer que a afetividade seja danosa: graças a ela, supera-se o perigo de medir a relação só pelo prazer sexual. Mas se os sentimentos tornam-se a medida da relação entre homem e mulher, acabam por aprisionar a pessoa em seu próprio egoísmo, que mede tudo de acordo com seu afeto. Ana, uma personagem de A Loja do Ourives, assim resume esta tentação: “Não é a verdade aquilo que sentimos com mais força?”160. Quem não vai além deste horizonte, abandona a tarefa de construir uma casa estável para o amor e se deixa levar pelas marés, altas e baixas, das emoções. Estas, por sua própria constituição, não podem oferecer um terreno firme sobre o qual o amor possa colocar seus fundamentos161. Mas isso não é tudo. A substituição da lógica do dom pela lógica do domínio não afeta somente o homem e a mulher separadamente, mas tem consequências também sobre a união deles. Não acontece só de os dois se aproveitarem um do outro, mas também de se deixarem tratar como objetos. O “prazer” conferido por esta manipulação recíproca é, na realidade, um calor superficial, que não consegue esconder a amargura que se move no íntimo: Se o homem se relaciona com a mulher, a ponto de considerá-la apenas como objeto para dela se apropriar e não como dom, ao mesmo tempo condena-se a si mesmo a tornar-se também ele, para ela, apenas objeto de apropriação, e não dom162.

e) O amor torna-se uma desculpa para justificar tudo A tentação de reduzir a outra pessoa a uma desculpa para o próprio prazer é comum ao homem e à mulher, ainda que cada sexo o faça de modo diferente. Uma consequência é que ambos perdem sua verdadeira liberdade. Com efeito, quando se identifica o amor com o impulso sexual ou com as emoções, ele aparece como um sentimento absoluto imposto a nós, privando-nos da livre iniciativa. Os amantes encontram, assim, uma desculpa para justificar todas as suas ações: foram movidos pela irresistível força do amor. Assim, o adúltero dirá que abandonou a sua esposa forçado pelo poder do amor. É paradoxal que, numa sociedade em que se tende a exaltar a liberdade sem limites do homem, reconheça-se, imediatamente, a ausência total de liberdade diante das exigências do instinto e do sentimento. 91

O poeta italiano Dante Alighieri ilustra muito bem este abuso do amor em sua Divina Comédia. Viajando pelo primeiro ciclo do Inferno, o peregrino encontra Paolo e Francesca, um casal de amantes adúlteros, unidos para sempre no mesmo abraço que foi a causa de sua perda na vida. Os dois tentam justificar seu pecado, referindo-se à incapacidade de resistir à poderosa atração que os impulsionou. Nas palavras de Francesca, “Amor, que a nenhum amado amar perdoa, prendeu-me, pelo seu [Paulo] desejo com tanta força que, como vês, ele ainda não me abandona”163. O castigo de Paulo e Francesca consiste em estar unidos para sempre e serem levados de um lado para o outro sem poder fazer nada, como as folhas de outono arrastadas pelo vento do desejo164. Quando nos domina a pulsão e a atração dos impulsos, nosso amor não é verdadeiro: somos escravos do desejo. Movem-nos os ventos mutáveis da paixão, que impedem de construir um amor estável ou pronunciar uma promessa de fidelidade. Uma vez que as cordas da música do sentimento “começaram a calar”,165 os amantes entregam-se ao capricho de novidades contínuas. Esta ansiedade impede que o amor ponha raízes firmes em nosso coração, como acontece com Ana em A Loja do Ourives. Cansada de seu marido Estevão, ela vaga sem rumo, levada pela “saudade de um homem [...] diferente, diferente”166. Ana é como uma mulher doente, agitada por uma febre que não a deixa descansar; seu amor está em movimento contínuo, mas esta atividade não produz nenhum fruto.

A fissura que passa de pais para filhos Esta fissura que atravessa o coração humano, a mesma que divide o homem e a mulher, também atingirá os filhos nascidos do seu amor. Em A Loja do Ourives, Ana, ferida pela distância do marido, olha para seus filhos com a dolorosa certeza de que, cedo ou tarde, a ferida também lhes atingirá: Sou mãe. No quarto ao lado todas as noites dormiam nossos filhos. Marcos, o maior, Mônica e Juan. No quarto dos meninos reinava o silêncio, pois na alma deles ainda não se tinha insinuado a fissura do nosso amor [entre ela e seu marido], que eu sentia já tão dolorosamente167.

Infelizmente, a fissura acabará por estender-se. Mais adiante, na mesma obra, a filha de Ana, Mônica, lamenta-se de que a falta de amor de seus pais tenha deixado uma ferida em sua alma: a do medo e da solidão. Meus pais vivem como estranhos, não existe entre eles aquela unidade que todos sonhamos, quando aceitamos a vida compartilhada e desejamos doá-la.

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[...] Pode o amor humano perdurar ao longo de toda uma vida? [...] Invade-me uma certa apreensão pelo futuro – chama-se medo168.

Estes monólogos de A Loja do Ourives nos lembram de que os filhos nascem do amor dos pais. Por isso, qualquer fissura no amor paterno deixa também uma marca na alma deles, influenciando a sua atitude diante do amor e da vida. Não é preciso dizer que o plano original de Deus era muito diferente. A intenção do Criador, como sabemos, consistia em mostrar claramente a Sua presença por meio do amor dos pais, de forma que o filho pudesse perceber a paternidade divina através de seu pai e sua mãe. Infelizmente, Adão e Eva rejeitaram a grande responsabilidade de manifestar o amor divino por seu amor. Assim, ainda que os pais continuem transmitindo a imagem de Deus a seus filhos depois do primeiro pecado, tal imagem ficou ofuscada por um germe de solidão que se perpetua de geração em geração: Adão, lembras? No princípio Ele te perguntou: “Onde estás?” E tu respondeste: “Porque estou nu, eu me escondi” [...] Todos os que povoam a parede central da policromia sistina, trazem em si a herança da tua resposta de então! Desta pergunta e desta resposta! Este é o fim do vosso caminho169.

Isto quer dizer que a paternidade humana foi ferida e já não é capaz de comunicar em plenitude a paternidade de Deus. Os pais não transmitem mais aos filhos a plena consciência de que a vida é um dom magnífico do Criador. A fissura no coração do homem completou o seu percurso e passa agora à geração seguinte. Adão “tornou-se um solitário”, que transmite a outros “o germe da solidão”170. Quando se impede a propagação da paternidade divina, produz-se uma ausência da graça e do amor originais do Criador em cada criança que vem ao mundo. Como diz João Paulo II, “a perspectiva da procriação, em vez de ser iluminada pela herança da graça original, [...] foi ofuscada pela herança do pecado original”171. Surge, então, uma pergunta angustiante: onde podemos encontrar a luz para iluminar este cenário tenebroso que acabamos de traçar?

Um chamado ao coração humano Nosso capítulo focalizou, até agora, os aspectos negativos, ou seja, a ferida no coração humano e as múltiplas fendas que produz. Esta ferida não é só um tropeço ocasional ou uma debilidade que nos leva a ceder à força das paixões. Na raiz de todas as 93

divisões que ferem o coração humano se descobre a ameaça de uma enfermidade ainda maior: o desejo do homem de ocupar o centro do universo sem reconhecer o dom original que recebeu de Deus, único centro verdadeiro. O homem sofre por falta de humildade diante da verdade do amor, por não reconhecer que o nosso amor mútuo é um dom que recebemos da fonte de tudo172: Não procuram fundar seu amor no Amor, que tem a dimensão absoluta. Nem sequer suspeitam desta exigência, porque lhes cega não tanto a força do sentimento, mas a falta de humildade. É a falta de humildade diante daquilo que o amor deve ser na sua verdadeira essência173.

A rejeição do dom original de Deus comporta, por sua vez, aquela desordem que o apóstolo João chama de concupiscência. A concupiscência é uma consequência do primeiro pecado, que se transmite de geração em geração, devido à falta de propagação da paternidade divina na paternidade humana. Todos experimentamos uma espécie de sonolência que reduz nosso olhar diante do dom da nossa vida, da vida dos outros e do mundo que nos rodeia. Os olhos do homem, inchados de orgulho, não veem com clareza o seu caminho. Mas é possível que a concupiscência cubra todo o horizonte? Sua força é tão grande assim para nos tornar incapazes de amar? Será que devemos nos render a ela e renunciar à nossa vocação original? João Paulo II, com toda a tradição cristã, responde a esta pergunta com um sonoro “não”. A experiência negativa do pecado, ensina o Papa, não chega à profundidade das experiências luminosas que examinamos na primeira parte do presente livro. A solidão, a unidade e a nudez, segundo a visão de João Paulo II, são mais originais que o pecado original. A experiência do amor e da graça é a única totalmente original; o mal, ao contrário, entrou em cena só num segundo momento, tentando imitar o bem, sem jamais o destruir totalmente. O que João Paulo II viveu, sofrendo os horrores do totalitarismo do século XX, nunca o fez vacilar nesta convicção profunda, nesta confiança no fato de que o poder do bem é sempre maior: Por que precisamente daquele dia se disse: “Deus viu tudo o que tinha feito e era muito bom”? Os fatos não negam tal afirmação? Por exemplo, o vigésimo século! E não somente o vigésimo! Apesar de tudo, nenhum século poderá ocultar a verdade da imagem e semelhança174.

O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e esta verdade não pode ser totalmente eliminada. O mal é, na realidade, um parasita que não poderia existir se a 94

bondade não o precedesse; a bondade, por sua vez, não precisa do mal para ser compreendida. Da mesma forma, nunca poderíamos reconhecer nossa queda se não tivéssemos pelo menos uma intuição do caminho de salvação que nos conduz à meta. Até os passos de Ana em A Loja do Ourives – uma mulher em busca de amores fáceis, muito próxima da infidelidade – são repletos de ansiedade por alguém que deve chegar: o Esposo. E, como nos relata Adão na mesma obra, Ana encontrará finalmente este Esposo, e esse encontro marcará um novo início em sua vida de amor: Voltei a ver Ana naquela tarde. Depois de tantos anos, o encontro com o Esposo ainda estava vivo nela. Ana entrou no caminho do amor que aperfeiçoa. Tinha que aperfeiçoar dando e recebendo em proporção diversa de antes. A crise teve lugar naquele anoitecer, há tantos anos atrás. Na ocasião, tudo parecia naufragar. Só do encontro com o Esposo podia nascer um novo amor175.

Sim, veio o Esposo. E não para condenar o coração do homem, mas para renovar o chamado original do amor e para inaugurar uma resposta. Com efeito, o próprio Esposo respondeu a este chamado, dando-nos a esperança de que também nós seremos capazes de fazer o mesmo. No capítulo seguinte aprofundaremos este aspecto.

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CAPÍTULO 6 CRISTO: REDENTOR DO CORAÇÃO E PLENITUDE DO AMOR

O caminho do amor pode passar por bosques escuros e ladear precipícios. Não obstante, quando o inspecionamos, nosso olhar descobre horizontes de esperança: percebe-se a presença de alguém disposto a nos ajudar a percorrê-lo. Em A Loja do Ourives, Karol Wojtyla reconhece o Seu rosto: é o Esposo. Num momento da obra, Adão se dirige a Ana – mulher tentada a abandonar seu marido para buscar um amor barato – a fim de despertá-la do sono em que se encontra: “Vim para te acordar”, diz Adão, “porque por esta rua deve passar o Esposo. As virgens prudentes querem sair ao seu encontro com as lâmpadas [...] O Esposo está para chegar. É a sua hora”176. Mais tarde, recordando esta cena, Adão comenta: “[Para Ana] tudo parecia naufragar. Só do encontro com o Esposo podia nascer um novo amor”177. Quem é este Esposo que quer nos devolver a lucidez? Não se trata de um personagem de ficção. É alguém de carne e osso que nos ajuda a seguir até o fim o chamado do amor, além de nos auxiliar a passar por toda a expectativa que ele gera. Por que é tão necessária a presença do Esposo? Em primeiro lugar, porque há muitos obstáculos que dificultam nosso passo no caminho do amor. No capítulo anterior examinamos a dificuldade mais evidente: trata-se da ferida da concupiscência, que atravessa o coração do homem por causa do pecado e enche de buracos as trilhas do amor. Mas este não é o único problema. Imaginemos, por exemplo, que aplainamos o caminho e endireitamos as curvas perigosas. Então, nos perguntamos: será que esta estrada nos levará até o fim, até o nosso destino? A coisa não parece fácil, pois o fim desta viagem do amor é a união com o Deus invisível e transcendente, infinito em Sua glória e poder. O coração humano não seria um recipiente pequeno demais para receber uma presença tão grande? Em outras palavras: se é o nosso corpo que nos ajuda a

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descobrir o amor, ao abrir-nos ao mundo e aos demais homens, como poderia algo tão frágil e perecível – a nossa carne – tocar o Deus invisível e eterno? Karol Wojtyla resume assim esta dificuldade: Como fará, Teresa, a permanecer em André para sempre? Como fará, André, a permanecer em Teresa para sempre? Como farão, uma vez que o homem não perdura no outro e homem não basta?178

Como era de se esperar, o homem não pode encontrar a resposta para estas perguntas em si mesmo: ela deve vir de fora, lá de cima. Na verdade, isso ocorre com todas as respostas que o homem recebe desde o início de seu caminho. Recordemos que a maravilha diante do inesperado era a primeira palavra da experiência humana, uma maravilha que crescia na medida em que se abria, passo a passo, o caminho de Adão: quando encontrou Eva, quando ela concebeu um filho, quando ambos descobriram que seu amor se abria a Deus. Agora, mais do que nunca, quando os obstáculos parecem intransponíveis, somente uma nova revelação e uma nova maravilha podem oferecer a resposta. Com efeito, o chamado ao amor tem sempre esta forma: uma surpresa cuja origem está além de nossas fronteiras e que nos tira do beco sem saída em que nos fechamos. Só a chegada do Esposo poderá esclarecer as nossas dúvidas. Quem é este Esposo? “Muitos falaram do amor”, dizia São Máximo, o Confessor, “porém os discípulos de Cristo são privilegiados por terem o próprio Amor como mestre do amor”179. O Esposo é Cristo, cuja vida, morte e ressurreição manifestam a plenitude do amor. Como diz o Papa Bento XVI, é do olhar para o lado aberto de Cristo que a nossa definição do amor deve partir. Nesta contemplação, o cristão descobre o caminho que percorrerá sua vida e seu amor180. Qual é o caminho do amor que Cristo abre diante de nossos olhos?

Renasce a paternidade Recordemos: o primeiro obstáculo no caminho do amor é a rejeição do dom original que vem do Pai. Adão e Eva disseram um não à paternidade de Deus. Preferiram tomar posse do mundo sozinhos, antes que recebê-lo das mãos do Criador. Eis as palavras que Karol Wojtyla faz Adão dizer:

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Depois de tudo isso, posso te pedir que me perdoes por executar meu plano com tanta obstinação? Por evitar continuamente tua paternidade e gravitar para meu isolamento, de modo que te devas revelar num vazio exterior?181

O plano divino consistia em revelar Sua paternidade por meio do amor dos primeiros pais: Adão e Eva deveriam dar testemunho da presença de Deus; seu amor recíproco deveria tornar transparente o rosto do Criador para seus filhos. Mas, quando excluíram Deus de seu amor, o Pai não pôde mais brilhar através da paternidade humana. É claro que Deus não deixa de se fazer presente no mundo; mas agora o prisma que O reflete – o amor humano – distorce o Seu rosto. O que aparece é uma caricatura de Deus: um legislador anônimo que impõe ao homem normas que reprimem seus desejos. Não é que Deus tenha se retirado ou tenha se escondido: Sua paternidade ainda resplandece na existência e na vocação do homem. Mas nossos olhos já não enxergam com a nitidez necessária para compreender que o Criador é bom, fonte de todo o bem. Por isso, deve agora revelar-se – segundo Karol Wojtyla – “como num vazio exterior”. É certo que a imagem de Deus no homem não desaparece totalmente. “Nenhum século poderá ocultar a verdade da imagem e semelhança”182. Deus age para imprimir a Sua imagem no coração do homem e revelar a Sua paternidade nos séculos. Continua buscando o homem, como testemunha a Bíblia, ao longo de uma história de salvação. Para João Paulo II, uma das etapas mais importantes nesta história é o chamado de Abraão: Sabemos somente que ouviu a voz, que dizia: “Vai!” Abraão decidiu seguir a voz. A voz dizia: “Serás pai de uma multidão de povos, tua descendência se multiplicará como a areia da praia”183.

O chamado de Deus – sai da tua terra – indica a Abraão um novo começo. E não só para ele: quando o patriarca confia na voz divina, é toda a raça humana que responde novamente ao chamado do amor. Com efeito, não somos seres isolados: nossas histórias e destinos se entrelaçam e influenciam mutuamente. Assim, em Abraão, o homem começa seu retorno à obediência filial, reconhecendo novamente o amor original do qual brota a sua existência. Como resposta à obediência de Abraão, Deus lhe promete uma nova paternidade: “‘Ergue os olhos para o céu e conta as estrelas, se as pode contar’, e acrescentou: ‘Assim será a tua posteridade’” (Gn 15,5). “Eu a abençoarei [Sara, tua mulher], e dela te darei um filho” (Gn 17,16). João Paulo II recorda o diálogo de Deus com Abraão em seu Tríptico Romano:

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Filho – isto significa: a paternidade e a maternidade. Serás pai, Abrão, serás pai de uma multidão de povos184.

O Papa continua descrevendo, em forma de drama, a reação de Abraão diante da promessa divina: Como se realizará esta promessa – pensava Abrão – se a natureza negou-me o dom da paternidade? A esposa que eu amava desde os dias da minha juventude não me deu um filho. Por esse motivo ambos sofremos. No entanto, a voz dizia: Serás pai. Serás pai de uma multidão de povos. Tua descendência se multiplicará como a areia da praia185.

Embora parecesse impossível para Abraão tornar-se Pai, o patriarca acreditava que Deus, o Criador de toda a vida, podia realizar este milagre: dar-lhe uma descendência em sua velhice. Abraão pode tornar-se pai porque é um homem de fé, fiel ao Deus da Aliança. Em outras palavras, na paternidade de Abraão não há, como ocorreu com Adão, uma rejeição da fonte original, mas sim a aceitação de Deus Criador e doador de vida. Graças a Abraão, “o começo visível de um novo Adão”186, Deus pode propagar novamente Sua paternidade a partir da paternidade humana. E será Cristo que levará à plenitude a aliança de paternidade que Ele ofereceu ao homem em Abraão.

Cristo, o Filho O Antigo Testamento é uma grande preparação para aquilo que São Paulo chama de “plenitude dos tempos”, quando “Deus enviou o seu filho” (Gl 4,4), cumprindo assim inteiramente as promessas feitas a Abraão. De fato, existe uma profunda conexão entre a vinda do Filho e a plenitude dos tempos, pois os tempos se cumprem quando se recupera a propagação da paternidade, perdida desde o primeiro homem e buscada, a partir de Abraão, ao longo da história da salvação. A vida de Abraão demonstra que para tornar-se pai é preciso, primeiro, aprender a ser filho. Isso quer dizer que somente acreditando na força de Deus Pai e confiando Nele como filhos, Sua paternidade se torna visível no mundo. Somente se recebemos em nós, como filhos de Deus, o amor do Pai, podemos transmitir este amor à nossa descendência. Como diz Karol Wojtyla: Depois de muito tempo consegui entender que Tu não queres que eu seja pai sem ser ao mesmo tempo filho. Foi precisamente para isso que teu Filho veio ao mundo. Ele é totalmente Teu187.

Esta passagem de Raios de Paternidade identifica o elemento que diferencia Jesus do resto dos homens. Jesus pertence totalmente ao Pai: “Ele é totalmente Teu”. Sua 99

existência consiste em um puro vir do Pai e num referir-se totalmente a Ele: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra” (Jo 4,34). Estas palavras de São João resumem a identidade de Jesus e exprimem o núcleo da confissão de fé. Cristo é o Filho de Deus, nascido eternamente do Pai, consubstancial a Ele. Desde toda a eternidade, o Pai comunica tudo o que tem, toda a Sua essência de Deus, a Seu único Filho, que é um com o Pai, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. O que acontece na plenitude dos tempos é que este Filho se faz homem. Ele vem realizar Sua missão de Filho, missão de revelar o mistério do Pai e de Seu amor188. Com Sua vinda, Cristo cura a cegueira do homem, incapaz de reconhecer a paternidade de Deus. Na obra Raios de Paternidade, de Karol Wojtyla, o personagem Adão acredita que Deus “está só” e se pergunta: “O que me fará símile a Ele, independente de qualquer coisa? Ah, situar-me acima de tudo, para ficar sozinho em mim mesmo! Só então, estarei mais perto de ti”189. Exatamente o contrário acontece com Cristo, o novo homem e o Filho eterno. Ele diz: o Pai “não me deixou sozinho, porque faço sempre o que lhe agrada” (Jo 8,29). Jesus nos mostra que Deus não vive na solidão, como imagina o Adão de Wojtyla. Ele desde sempre é Pai, porque desde sempre tem um Filho eterno, que é um com Ele em plena comunhão. É este Filho que abre o espaço de filiação para o homem, o lugar em que o homem pode entender sua existência como um dom. Deus pode criar o homem, pode lhe dar o mundo, pode dar si mesmo ao homem na aliança, pois o dom existe Nele desde sempre, em Seu próprio ser divino. Isso quer dizer que, em Seu Filho, Deus tem um lugar para o homem; em Seu Filho, o Criador encontra Suas criaturas190. Continuemos agora com nossas perguntas: como é possível que o Filho, coeterno com o Pai e de Sua mesma substância, assuma um corpo humano modelado com o pó da terra? Não se corre o risco que este corpo impeça aos homens de contemplar o verdadeiro ser de Cristo? Para responder, temos que recordar o que já sabemos sobre o corpo e seu significado. Em primeiro lugar, o corpo fala a linguagem da nossa presença entre as coisas: no corpo estamos abertos à realidade e aos demais homens. Graças a ele descobrimos o mundo e a nossa existência se enriquece de novos encontros. Além disso, no corpo o homem se abre à transcendência, pois é ele quem revela que Deus nos teceu no ventre materno, que somos frágeis e que necessitamos de Sua ajuda para continuar caminhando para Ele. João Paulo II afirma que o corpo é testemunha de que a criação é um dom de Deus e, por isso, testemunha da paternidade divina. No corpo podemos experimentar a gratidão, isto 100

é, que cada objeto do mundo e cada momento da vida são um presente de Deus, doador de todo o bem. Tudo isso nos ajuda a nos aproximarmos do grande mistério da encarnação do Filho de Deus. O Verbo assumiu a carne, Deus se fez homem. Mas tal afirmação não é contraditória, como aquela da existência de um “círculo quadrado”? O Filho de Deus, eterno e invisível, não é o contrário do nosso corpo material? Pensa assim quem não entende o significado do corpo humano. Mas do nosso ponto de vista sabemos bem que não há contradição entre o Filho de Deus e o corpo. Ao contrário, por um lado, o próprio Filho é abertura total ao Pai. Seu ser consiste em referir-se a Ele, de quem tudo recebeu e cuja vontade deseja fazer. Por outro lado, também o corpo é abertura a Deus, humilde reconhecimento de Seus bens. Nele entendemos o dom divino e nos colocamos em contato com o Pai. Daí podemos concluir que não existe oposição entre o Filho, Aquele que sempre olha para o Pai, e o corpo assumido por ele em Nazaré, que também nos orienta para Deus. Em síntese: a carne não é um véu que ofusca a revelação do Filho eterno, mas o lugar propício em que se mostra a comunhão com o Pai. Do mesmo modo, a encarnação, ato pelo qual o Filho de Deus se faz carne, não destrói a corporeidade humana. Ao contrário, aperfeiçoa a linguagem do corpo e mostra a sua plenitude: o corpo tem um sentido filial porque aponta para Deus, e Jesus vive em plenitude este sentido filial. Enfim, Cristo revela em todo o Seu esplendor a linguagem do corpo como relação com o Pai, dependência Dele e aceitação de Seus dons. É importante entender a relação destas ideias com a solidão original, da qual falamos no primeiro capítulo. A solidão do primeiro homem no jardim não era apenas algo negativo, uma ausência dolorosa, mas também um chamado a entrar em diálogo com Deus. Adão se sente só porque somente Deus pode preencher seu coração: solidão é, na realidade, referência ao Pai. Dissemos também que esta solidão é possível porque o corpo é capaz de indicar Deus como origem primária e destino último da vida. Ao olhar para seu corpo, o homem reconhece que recebeu a vida das mãos de outro e que não tem em si a fonte da existência. Pois bem, com a Encarnação, Jesus nos mostra em Seu corpo o rosto paterno deste primeiro doador: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). Portanto, Cristo devolve ao homem o sentido original do corpo como referência total a Deus no novo contexto de Sua relação com o Pai e, assim, revela plenamente o verdadeiro rosto da solidão original, que alcança a plenitude na filiação191. A Bíblia nos assegura que o corpo de Cristo foi preparado pelo Pai, que lhe deu forma no seio materno de Maria. Quando entra no mundo, Jesus diz: “Formaste-me um 101

corpo [...] Eis que venho […], ó Deus, para fazer tua vontade” (Hb 10,5-7). A conexão destas duas frases é importante. As palavras com as quais o Filho declara Sua obediência ao Pai – “Eis que venho, ó Deus, para fazer tua vontade” – revelam a autêntica dignidade do corpo. Como diz João Paulo II, “pelo fato do Verbo de Deus se ter feito carne, o corpo entrou, eu diria, pela porta principal na teologia, isto é, na ciência que tem por objeto a divindade”192. O corpo nos ajuda a valorizar a especial dignidade de Maria, a Mãe de Deus. Ela concebeu virginalmente Jesus, Filho de Deus, nascido do Espírito Santo, e assim nos lembra de que ser mãe significa estar aberta a uma especial ação de Deus, que confia à mulher o dom de cada nova vida. Em Maria, a paternidade divina se irradia novamente do interior da história humana. Por isso, com razão ela é chamada a nova Eva, pois sua história nos dá a possibilidade de voltar ao princípio, ao Paraíso. Maria é a nova Mãe dos viventes que exclama jubilosa: “Adquiri um homem com a ajuda do Senhor” (Gn 4,1). Wojtyla insiste que esta maternidade revela a verdadeira natureza de Deus como Pai e origem de tudo: “A maternidade”, escreve, “é expressão da paternidade. Precisa sempre voltar ao pai para dele tomar tudo aquilo de que é expressão. Nisto consiste o esplendor da paternidade”193. É assim que Cristo nos abre novamente o caminho da filiação. Ele nos faz capazes de transformarmo-nos em filhos. “Se retorna ao pai através do filho”, diz Wojtyla em Raios de Paternidade194. Este retorno dá aos esposos a oportunidade de começar a curar as feridas de sua relação, causadas pelo esquecimento do dom original de Deus. Com efeito, o caminho para recuperar a unidade do amor passa pela lembrança do dom inicial. E esta lembrança está unida à presença do Filho, que tudo recebe do Pai. Em A Loja do Ourives, o Esposo, para reconciliar Ana e Estevão, renova a sua condição de filhos de Deus. Assim diz Estevão: “É uma pena não termos nos sentido como duas crianças durante tantos anos! Ana, Ana, quanto tempo perdido!”195. Pois bem, Cristo não é apenas o Filho. É também chamado Esposo. Que significado tem este último nome e como se une ao primeiro?

Cristo, o Esposo O corpo é testemunha do dom que nos faz o Pai: Dele viemos e para Ele caminhamos. A linguagem do corpo, porém, comunica ainda outras coisas. Recordemos o encontro entre Adão e Eva. Nele aprendemos que o corpo possibilita a comunhão com outros, permitindo-nos compartilhar sua experiência. É assim que nos unimos a eles na

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construção de uma morada comum. Nosso mundo, graças ao corpo, passa a ser um mundo compartilhado. Pois bem, na Encarnação, o Filho de Deus assume um corpo. Nascendo de Maria, a Palavra se fez carne de nossa carne. Como diz a Carta aos Hebreus, “Uma vez que os filhos têm em comum carne e sangue, por isso também ele [Cristo] participou da mesma condição” (Hb 2,14), “convinha, por isso, que em tudo se tornasse semelhante aos irmãos” (Hb 2,17). Cristo, o Filho, fez-se nosso irmão. Assim Ele é capaz de encontrarnos onde quer que estejamos e de compartilhar nossas experiências mais profundas. Para compreender a importância desta identificação de Cristo com os homens – e entender por que é chamado de Esposo – precisamos recordar o encontro entre Adão e Eva. Eles descobriram Deus como Pai e origem de todos os dons somente quando se encontraram face a face. Deus apareceu, então, como Aquele que os confiava um ao outro para que juntos caminhassem para Ele. A unidade original de Adão e Eva (a relação entre os homens) não suprime a solidão original (a relação dos homens com Deus), mas nela se aprofunda: quando descubro o dom do irmão, dou-me conta que nós dois somos filhos de Deus. A solidão e a unidade do princípio são dois elementos de um mesmo dinamismo, que nos revelam em que consiste ser pessoa. Agora podemos voltar a Cristo. Dissemos que o Filho veio para recuperar as experiências originais do homem, para despertar nele o chamado ao amor. Para fazer isso, Cristo deve assumir a solidão e a unidade originais, pois só assim Ele restabelece nossa relação com Deus e nossa comunhão mútua. Cristo mostra Seu amor ao Pai precisamente quando ama os Seus que estão no mundo, e os ama até o fim (cf. Jo 13,1). De que modo a vida de Cristo une a solidão original (a referência ao Pai) e a unidade original (sua união com os fiéis)? Num de seus poemas, Karol Wojtyla nos dá uma pista importante. Ele se refere ao corpo de Cristo como o “espaço” em que Ele se entrega a nós e nos aceita Nele como um dom do Pai.196 Vejamos estes dois momentos: o modo com que Jesus nos recebe e o modo com que se entrega a nós. a) “Aos homens que do mundo me deste” (Jo 17,6): Cristo nos recebe em Si Na última Ceia, Cristo diz ao Pai: “Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste. Eram teus e os deste a mim” (Jo 17,6). Jesus tem consciência de ter recebido os discípulos da mão do Pai. Sua relação com o Pai Lhe consente vê-los como confiados a Ele por Deus. Isso nos é familiar. Podemos, com efeito, recordar a história do Gênesis. Deus convidava Adão a receber Eva como um dom Seu e fazia o mesmo com Eva. Somente 103

aceitando-se reciprocamente das mãos de Deus, Adão e Eva podem afirmar a dignidade um do outro. Assim, dizem ao cônjuge algo parecido ao que Jesus dirá depois aos Seus discípulos. Podemos imaginar as palavras que disseram um ao outro: “Tu, que és tão precioso aos olhos de Deus, foste confiado aos meus cuidados. Tu, uma criatura que Deus amou por si mesma197, foste-me entregue. Agora percebo que Deus não somente me dá coisas, mas quer também dar a si mesmo, já que me entrega algo tão precioso para Ele. O dom da tua pessoa me demonstra que Deus é meu Pai”. Cristo, por Sua vez, vai ainda mais além. Ele não se limita a recuperar a experiência dos primeiros pais, mas a leva a uma plenitude inesperada. Com efeito, Jesus é o Filho eterno do Pai, o mais capacitado a descobrir e afirmar os dons de Deus como fundamento de tudo. Jesus nunca esquece que “O Pai ama o Filho e tudo entregou em sua mão” (Jo 3,35). Por isso, pode chegar até o extremo na afirmação da dignidade pessoal do homem, ou seja, do amor imenso com que Deus olha para ele. E supera, assim, a forma com que Adão e Eva, mesmo antes do pecado, podiam se afirmar reciprocamente como dons do Pai, dando-se e recebendo-se de Suas mãos. O amor de Cristo chega ao extremo porque não volta atrás, nem mesmo diante daquilo que parece denegrir a dignidade do homem. Continua recebendo-o como dom do Pai, apesar de seu pecado, de seu desprezo pelo outro e de seu ódio. “Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). b) “Deus entregou seu Filho único” (cf. Jo 3,16): Cristo se entrega a nós Cada homem é dom do Pai a Cristo. Esta afirmação favorece nossa compreensão da grandeza e do grande valor do ser humano. Ao nos acolher, Jesus nos ajuda a olhar nossa própria vida com estima. A isso acrescenta-se outro aspecto importante: Cristo é também o dom que o Pai concede ao homem. Como afirma São João: “Pois Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único” (Jo 3,16). Cristo é o Amado, o Primogênito do Pai. Este dom nos leva a compreender o quanto vale o homem para Deus, a tal ponto de enviar-lhe Seu próprio Filho. Por isso, contemplando Cristo entregue por nós, descobrimos o amor que Deus tem pela humanidade. Tudo isso está relacionado à experiência de Adão e Eva no Éden. Com efeito, a primeira mulher, depois de ser sido aceita por Adão como dom precioso, deveria reconhecê-lo também como dom de Deus e alegrar-se pela sua existência. Recebendo-se mutuamente como dons de Deus, como ajuda adequada para a sua comum viagem, entravam numa corrente de amor que os elevava ao Pai. Como Adão e Eva souberam receber-se como dom recíproco, entre Cristo e Sua Igreja se dá o mesmo. Após termos 104

sido recebidos e acolhidos por Jesus, que nos vê como um presente de Deus, também nós devemos acolher Cristo, dom de Deus para o mundo. Podemos observar que o modo de Cristo levar à plenitude o encontro entre Adão e Eva é sem medida, devido a Sua condição de Filho eterno de Deus. Ele não apenas regenera a beleza do Paraíso, mas a supera infinitamente. De fato, no Filho se encontra tudo o que o Pai pode dar ao homem. Uma vez que entregou o Filho, não Lhe resta nada mais a oferecer. Assim, Cristo manifesta o amor do Pai na forma mais elevada. A dinâmica do dom traça agora uma espiral que chega ao próprio Céu. João Paulo II usará a imagem do sacrifício de Abraão para ilustrar esta plenitude do dom paterno: Porque Deus revelou a Abraão o que para um padre, é o sacrifício de seu próprio filho: morte de sacrifício. Oh, Abraão; porque Deus tanto amou o mundo. que lhe entregou seu Filho para que quem nele crer tenha a vida eterna198.

Vimos que Cristo se entrega ao homem e que o homem é chamado a recebê-Lo. Jesus restabelece o movimento do dom, a união entre a solidão (filiação) e a unidade (esponsalidade) originais. Nele se associam os nomes de Filho e Esposo. Por um lado, como Adão aceitou e afirmou Eva como dom de Deus, Cristo aceita e afirma a Igreja como presente do Pai, quando diz: “Aos homens que do mundo me deste” (Jo 17,6). Quando sabemos que somos afirmados por este amor, entendemos as palavras de São Leão Magno: “Reconhece, ó cristão, a tua dignidade”199. Nesta entrega, o novo Adão transforma a humanidade inteira na nova Eva, Sua Igreja, uma esposa “sem mancha, nem ruga, ou coisa semelhante” (Ef 5,27). Por outro lado, assim como fomos aceitos por Cristo, precisamos aceitá-Lo como dom do Pai para o mundo, manifestação plena de Seu amor. Quando O recebemos em nossa vida, então se fecha o círculo de amor esponsal entre Cristo e a Igreja. Não se trata de um círculo que dá voltas ao redor de si mesmo, mas de uma espiral ascendente que move o homem para o alto, para o Pai.

“Isto é o meu corpo que é dado por vós” (Lc 22,19) Até agora, estudamos o dinamismo do dom e como Cristo o viveu até o extremo. Um aspecto muito importante ficou à margem de nossas reflexões: o nosso pecado, que obscurece o sentido desta entrega. Como vimos no quinto capítulo, o homem não vive de acordo com a lógica do dom, mas está sujeito a outra lógica, a lógica do domínio possessivo, que o isola numa solidão autossuficiente e o desvia do caminho do amor. Em 105

vez de ouvir no seu próprio corpo a linguagem do dom, o homem decaído abusa do corpo como “terreno de apropriação” da outra pessoa. Naturalmente, o amor se opõe à lógica do domínio, mas como esta última já está tatuada no corpo do homem, quem quiser amar deve estar disposto a experimentar uma ruptura interna, um sofrimento: “A solidão se opõe ao amor. No limite da solidão, precisa transformar o amor em sofrimento: Teu Filho padeceu”200. A experiência corpórea do sofrimento é, por um lado, consequência do pecado, que rompe a harmonia original do princípio. Mas, por outro lado, o sofrimento comunica sua própria mensagem: tem uma capacidade singular para revelar o amor, para torná-lo novamente visível no mundo. Como escreveu Karol Wojtyla num de seus dramas juvenis, “do sofrimento nasce uma Nova Aliança”201. Esta conexão misteriosa entre o sofrimento e o amor é a chave para recuperar a vocação original do homem. No que consiste este vínculo entre o amor e a dor? O homem se afadiga ao viver isolado em si mesmo, pensando que tudo está sob seu controle. Mais cedo ou mais tarde, porém, o sofrimento entra em sua vida: é um acidente, a morte de um amigo, um fracasso profissional, uma doença grave. Então entenderá que o êxito de sua viagem não está em suas mãos: depois de tudo, terá sentido ainda caminhar? E assim reaparecem as grandes perguntas da existência, perguntas sobre a própria identidade. A quem as dirigimos? A quem nos queixamos quando a dor nos aflige? Segundo João Paulo II, é a Deus, em última análise, que devemos dirigir as nossas questões202. Isso quer dizer que o sofrimento é testemunha da solidão original do homem diante de Deus. O corpo que sofre é capaz de aprender, na dor, a relação singular do homem com a transcendência. Uma cena de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, descreve a relação entre a dor e o sagrado. No início do romance, o autor descreve o encontro do ancião stárietz Zossima, um sábio e venerável monge, com os três Karamázov: Ivan, Dmitri, Aliócha. Enquanto discutem, o ancião faz um estranho gesto: “O stárietz [Zossima]”, escreve o autor russo, “caminhou na direção de Dmitri Fiodorovitch e, chegando bem perto dele, ajoelhou-se à sua frente. Aliócha quase pensou que ele tivesse caído de fraqueza, mas não era isso. Uma vez ajoelhado, o stárietz inclinou-se aos pés de Dmitri Fiodorovitch, com a mais completa, nítida e consciente reverência, chegando a tocar o chão com a testa”203. Só mais tarde Zossima explicará o sentido do seu gesto a Aliócha, irmão de Dmitri: “Ontem fiz uma grande reverência ao sofrimento que o espera”204. De fato, o romance nos narrará a terrível provação que Dmitri deverá enfrentar, acusado de um parricídio que não cometeu. Para o santo monge, o sofrimento enfatiza a dimensão 106

sagrada da existência humana; anuncia-nos, outra vez, o mistério do homem e nos convida a ajoelharmo-nos diante dele. Assim, o corpo que sofre fala a linguagem da solidão original. A dor nos ajuda também a recuperar a unidade original, a comunhão entre os homens. Quando vemos o pobre ou o doente que sofre, movidos pela compaixão, somos convidados a participar de alguma forma de sua dor. A isso se refere João Paulo II quando fala de um “mundo do sofrimento humano”205. De fato, sofrer é um modo de compartilhar uma experiência profunda com outros, de associar-nos à sua vida. Tal comunhão no sofrimento é a chave para descobrir um sentido na dor, respondendo, assim, à sua grande interrogação. Em uma frase inspirada, diz João Paulo II: O sofrimento está presente no mundo para desencadear o amor, para fazer nascer obras de amor para com o próximo, para transformar toda a civilização humana na “civilização do amor”206.

Diante do sofrimento do próximo, então, o homem ouve um chamado para acolher a pessoa ferida e unir-se a ela em sua dor. Deste modo, o amor voltará a brilhar no mundo, e esta é exatamente a resposta à pergunta que cada um faz a Deus quando acometido pela dor e pela angústia. Este amor é a resposta de Deus, a prova de que Ele não deixou o homem sozinho. Nesta ótica, o sofrimento pode ser visto – uma vez que nos permitiu redescobrir o amor – como uma bênção, um evento que tem sentido. Podemos, então, afirmar que a dor não é simplesmente uma consequência nociva do pecado, mas é também o primeiro passo para superá-lo, já que ele consiste exatamente na negação do amor. No sofrimento, o corpo fala novamente a linguagem da solidão e da unidade original, na sua íntima conexão: por meio do encontro com o irmão que sofre, aprendemos a redescobrir a presença de Deus em nossa vida. Esta linguagem culmina na vida de Cristo. Ele é, com efeito, o Bom Samaritano, movido de compaixão pelo viajante meio morto à beira do caminho. Cristo aproxima-se para abraçar nossa dor, identificando-se conosco a ponto de morrer numa Cruz: “Me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20), diz São Paulo. Deste modo, Cristo afirma ao extremo a dignidade do homem, considerando-nos dignos de um amor compassivo, pois “pagou alto preço pelo nosso resgate” (1Cor 6,20). Com efeito, só contemplando Cristo Crucificado percebemos o grande amor que o Pai direciona a nós: Ele que “não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós, como não nos haverá de agraciar em tudo junto com ele?” (Rm 8,32). Como escreve João Paulo II em sua primeira encíclica:

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A Cruz no Calvário, mediante a qual Jesus Cristo […] “deixa” este mundo, é ao mesmo tempo uma nova manifestação da eterna paternidade de Deus, o qual por Ele (Cristo) de novo se aproxima da humanidade de cada um dos homens207.

Isso significa que a dor de Cristo não é uma mera restauração da linguagem que o corpo exprimia no Paraíso. Em Seu corpo sofredor, leva-se à plenitude inesperada o significado esponsal, o vínculo entre a solidão e a unidade do princípio. Para ilustrar este ponto, pensemos nas palavras com as quais Jesus institui a Eucaristia: “Este é o Meu corpo, que será entregue por vós”. Ao dizer estas simples palavras, Cristo se entregava totalmente aos Seus, manifestando assim o amor do Pai pelo mundo. Aqui vemos atuarse novamente a lógica do princípio, pronunciada desta vez com a linguagem da dor e do perdão. Cristo realiza a vontade do Pai como Seu Filho quando se entrega pela salvação do mundo como Esposo da Igreja: “Por isso o Pai me ama, porque dou minha vida para retomá-la [...]. Esse é o mandamento que recebi do meu Pai” (Jo 10,17-18). Cristo, Filho e Esposo, revela e plenifica, em Sua ação corpórea, a solidão e unidade originais, o amor pelo Pai e a comunhão com Seus irmãos. A este propósito assim se exprime Karol Wojtyla em seu poema “Meditação sobre a Paternidade”: Esse amor que o Pai revela no Filho, e no Pai, pelo Filho, gera o esposo. Pai e esposo: Ele cuida de cada homem como do maior tesouro que existe, como de um bem insubstituível. Cuida de nós como o amante da amada: Esposo e Filho208.

Somos frutos do amor de Cristo Vimos que Cristo é o Filho e o Esposo que revela o caminho do amor. Ainda um passo deve ser dado. Já que não somos Jesus, como podemos viver como Ele viveu? Poderemos algum dia alcançar Sua plenitude de Filho e Esposo, ou esta ficará numa altura inacessível para nós? É possível participar deste apogeu do amor, tal como o Senhor o faz? Karol Wojtyla põe estas dúvidas na boca de Adão em Raios de Paternidade: Contemplo maravilhado o Esposo, mas não sei transformar-me Nele. Quão repleto está de conteúdo humano! Ele é a antítese viva de toda solidão. Se pudesse enraizar-me Nele, se fosse capaz de habitar Nele, brotaria em mim aquele amor do qual Ele transborda209.

Pois bem, é possível mergulhar nesta experiência de Cristo. Aquele que nos torna capazes disso é o maior dom de Jesus, Seu Espírito Santo. Recebendo-O podemos nos transformar Nele e percorrer, assim, o caminho que Deus abriu para nossos passos desde o princípio. 108

Este Espírito já era presente na vida de Jesus. Vivia dentro Dele e guiava-O e, por isso, agora pode nos guiar também. João Paulo II usa uma comparação para explicar a obra do Espírito em Jesus. Do mesmo modo que um fogo do Céu consumia os sacrifícios que se ofereciam no Antigo Testamento, “por analogia pode-se dizer que o Espírito Santo é o ‘fogo do céu’ que age no profundo do mistério da cruz. Vindo do Pai, oferece ao Pai o sacrifício do Filho, introduzindo-o na divina realidade da comunhão trinitária”210. O Espírito é o amor, a comunhão entre o Pai e o Filho. O Pai envia este Espírito ao coração humano do Filho para que este se entregue em sacrifício pela salvação do mundo. Através de Jesus, o Espírito passa a nós: Cristo deu-O à Igreja em Pentecostes. Quando soprou sobre os discípulos e disse: “Recebei o Espírito Santo”, permitiu-lhes entrar no mesmo espaço do Seu amor. No Espírito, de fato, participamos da mesma relação de Jesus com Seu Pai e os homens. O Espírito Santo pode ser chamado, por isso, como dizia São Irineu de Lyon, “a comunicação de Cristo”211. Observando a obra deste amor, doado por Cristo, Wojtyla escreve: “O Esposo passa por muitas ruas / e cruza com muitas pessoas./ Ao passar, toca o amor que há nelas”212. Tocar o amor que está no coração do homem é sintonizar os corações humanos com o amor do coração de Jesus, graças ao dom do Espírito. Bento XVI o confirma: De fato, o Espírito é aquela força interior que harmoniza seus corações com o coração de Cristo e leva-os a amar os irmãos como Ele os amou, quando Se inclinou para lavar os pés dos discípulos (cf. Jo 13,1-13) e sobretudo quando deu a sua vida por todos (cf. Jo 13,1; 15,13)213.

Ao comunicar o Espírito aos esposos, Jesus lhes dirige palavras parecidas com aquelas de Adão em A Loja do Ourives: Oh, minha amada, tu não sabes quanto me pertences, não sabes quanto pertences ao meu amor e ao meu sofrimento; porque amar significa dar a vida através da morte, amar significa brotar como uma fonte de água viva no profundo da alma, que transformada em chama ou brasa, não pode extinguir-se jamais214.

“Amar significa brotar como uma fonte de água viva no profundo da alma”. Como vimos, este amor tende, por si mesmo, à fecundidade. Assim como o amor entre os esposos transborda para gerar nova vida, também o amor que Cristo compartilha conosco é fecundo no Espírito Santo. “É graças a esse fruto [de Cristo]... que nós existimos”, dizia Santo Inácio de Antioquia, no início do primeiro século215. Ou como exclama a personagem chamada “a Mãe”, em Raios de Paternidade: “O meu esposo não quer ficar sozinho na sua morte!”216. Não, não quer ficar só, quer comunicar o dom de

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Seu amor na Cruz para recriar-nos como filhos do Pai, quer que Seu dom seja fecundo. Só nos resta aceitar este convite para transformar nosso amor e convertê-lo na imagem do amor de Cristo.

A vida de Cristo e o caminho da imagem Já sabemos que a imagem de Deus é o longo caminho no qual se desdobram nossas vidas. Primeiramente, temos que aprender a ser filhos e aceitar nossa existência das mãos do Pai. Em seguida, ao doar-nos reciprocamente como esposos, respondemos ao dom inicial de Deus. E, por fim, tornamo-nos pais, cuja vida está cheia de frutos. Isso quer dizer que a família (onde aprendemos a ser filhos, esposos e pais) é o habitat natural onde se desenvolve a imagem divina impressa no homem. Este capítulo nos ajuda a prosseguir em nossas reflexões sobre a imagem de Deus: Cristo é o Filho, enviado para tornar-se Esposo e assim comunicar à Sua Esposa, a Igreja, a nova fecundidade do Espírito de amor. Deste modo, Cristo aperfeiçoa a imagem de Deus que foi impressa no homem no princípio e o realiza assumindo o dinamismo próprio da família. A surpreendente revelação do amor de Deus em Cristo segue o percurso, ao alcance de todos, da filiação (Cristo é o Filho), da esponsalidade (Cristo é o Esposo) e da paternidade (Cristo doando-se mostra-se cheio de frutos) e, deste modo, coroa o caminho do homem para Deus. Concluímos, então, observando a afinidade entre o caminho de Cristo e o caminho da família: a salvação de Deus é tão grande porque é também tão simples. Tudo parecia fútil e acidental, exceto uma coisa: exceto o pai, o filho e o amor. E então, contemplando as coisas mais simples, todos diremos: não era possível ter conhecido isso antes? Não esteve sempre presente no profundo de tudo o que é?217

A ação de Cristo nos abre novamente o caminho do amor. É verdade que a voz da concupiscência ainda ressoa em nós, mas Cristo toca uma música muito mais forte, que nos dá coragem para superar os obstáculos que surgem em nosso caminho: E eis que, encontramo-nos os dois na história de cada homem: eu, aquele onde começa e nasce a solidão, e Ele [Cristo], aquele onde a solidão desaparece e voltam a nascer filhos218.

Nossa tarefa, no próximo capítulo, será considerar como “a solidão desaparece” neste novo tipo de vida oferecido “aos filhos que nascem de novo”.

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CAPÍTULO 7 AMADURECER NO AMOR O amor coloca o homem em movimento no desejo de encontrar a plena comunhão. “No meio do caminho de nossa vida…”219. Assim Dante, o poeta italiano, começa a Divina Comédia, na qual atravessa Inferno e Purgatório, para elevar-se até o Paraíso. Quando jovem, Karol Wojtyla assistiu a uma encenação desta obra. Um seu amigo a adaptou para o teatro rapsódico, teatro que Wojtyla ajudou a divulgar durante a ocupação nazista da Polônia. Originalmente, eram representações clandestinas, onde o palco e o movimento dos atores se reduziam ao mínimo e o aspecto mais importante era a declamação. Ao assistir a Divina Comédia assim representada, Wojtyla viu nela, não um percurso distante para o mundo do além, mas o drama da experiência do homem, os passos de cada pessoa sobre a terra. Como escreveu, ao sair do teatro: esta é a história “da alma de Dante, [...] que atravessa o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, mas que os atravessa aqui na terra, como um homem que crê e ama”220. O que Dante ilustra na verdade, é a viagem do homem, a viagem do amor. Para onde leva seu caminho? Para o poeta, tudo vai para o alto, rumo ao Paraíso. De fato, cada uma das três partes da Divina Comédia termina com a mesma palavra: “estrelas”. As estrelas são um símbolo do Céu, onde desejamos chegar. Com efeito, a raiz latina da palavra “desejo”, desiderium, significa originalmente aspiração aos astros (sidera). Isso quer dizer que temos que nos desligar da terra, suprimindo o peso de nossos corpos para poder subir ao Céu, como um balão? Muito pelo contrário: a ascensão não nos leva ao esquecimento do nosso corpo, mas é ele que nos ajuda a subir! De fato, depois de atravessar o Purgatório, o poeta se admira que seu peso o arraste para cima, em vez de esmagá-lo no chão. Beatriz, a mulher que Dante amou e que passa a ser sua guia, explica-lhe o porquê deste novo estado: Não seja mais de espanto possuído: Como ao val rio cai de monte altivo, Para a esfera estelífera és erguido.

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De maravilha fora em ti motivo Não subindo; pois estás de estorvo isento; Não fica imoto em terra o fogo vivo221.

Beatriz usa aqui a imagem do riacho, que já utilizamos no início do livro, com uma poesia de João Paulo II. Ali dizíamos que o caminho do homem não é como aquele percorrido por um riacho de montanha, que segue seu curso até o oceano, arrastado por seu peso. É verdade que o corpo do homem, como a água do rio, está sujeito à lei da gravidade. Mas é certo também que tem uma gravidade diferente, a gravidade de seus desejos, que o move continuamente em busca do objeto amado. “O meu peso é o meu amor”, escreveu Santo Agostinho, “onde quer que sou levado, é meu amor que me leva”222. Também Dante descobre que a gravidade do amor é a verdadeira força propulsora: esta gravidade começa no corpo e, a partir dele, leva-nos para cima, para além de nós mesmos. É uma força capaz de vencer qualquer obstáculo que o homem encontra em seu caminho para o alto. Qual a trajetória deste caminho ascendente? Lembremo-nos do que dissemos no segundo capítulo: o amor, em sua ascensão, deve integrar diversos aspectos. A mútua atração do homem e da mulher, que nasce em seus corpos, convida-os a sair de si mesmos, unindo-se na aliança, olhando para o alto. Neste movimento, distinguimos quatro esferas ou dimensões. A primeira esfera de atração entre homem e mulher é o impulso sexual, orientado ao físico do outro e ao prazer da sexualidade. Já sabemos que a sexualidade, longe de ser fim em si mesma, incentiva o homem a descobrir uma esfera mais elevada, a das emoções e dos sentimentos. O impulso sexual deve unir-se ao afeto e ao carinho pelo amado, se quiser ser verdadeiramente elevado. É somente graças a esta segunda dimensão que homem e mulher podem experimentar um mundo comum. Mesmo assim, a nova esfera ainda não é o ponto de chegada, mas indica, por sua vez, um novo horizonte: é preciso descobrir o valor pessoal do outro. Só então, amamos a pessoa pelo que ela é, e não a medimos pelos sentimentos que desperta em nós mesmos. É neste recíproco “sim” que homem e mulher alcançam outro nível de existência: surge uma nova unidade, na qual suas duas vidas se tornam uma. Agora um é capaz de sofrer pelo outro, de ver o bem do outro como o próprio bem e de ajudar o outro a crescer além de si mesmo. Alguém poderia pensar que integrado nesta esfera, o amor chegue à sua perfeição. Mas não é assim: resta ainda uma quarta dimensão a ser explorada, que é o cimento e a coroa de todo o movimento do amor. A dignidade do amado só pode ser reconhecida e 112

mantida contra os ventos e as marés da vida se descobrirmos o nexo entre ele e o Pai, verdadeira fonte do amor. Por isso, aceitar e amar outra pessoa já é o primeiro passo da nossa viagem para Deus. Podemos, então, dar razão a Dante. A atração do amor corpóreo tem sua própria força gravitacional, que orienta nossa viagem para as estrelas. No encontro com a pessoa amada, descobre-se o horizonte da comunhão com Deus. E assim, nossos corpos falam a linguagem de um caminho para a plenitude. Prestemos atenção, pois dissemos caminho, o que significa que não se trata de uma meta definitiva. Será preciso descobrir as sinalizações e aprender a segui-las, tarefa não sempre fácil. Isso quer dizer que, embora o amor nos prometa o êxtase da felicidade, seu caminho está cheio de obstáculos e de dificuldades que o impedem de crescer. O que acontece, na realidade, é que as quatro dimensões que mencionamos não estão integradas desde o princípio, mas precisam amadurecer para que cada uma se dirija para as outras e se faça uma com elas. Isso é necessário, pois muitas vezes os desejos e sentimentos, em vez de olhar para além de si mesmos, parecem conduzir para o círculo fechado do próprio interesse. E isso se deve à força do pecado e à concupiscência, da qual falamos no quinto capítulo. Precisamos agora acrescentar outra dificuldade, que surge em nossa viagem para a meta. Já que somos criaturas frágeis e limitadas, como nossa pobre vida poderá abrigar a plenitude do amor? Com efeito, parece impossível alcançar o destino último da viagem e receber plena comunhão com Deus em cálices de barro. Mas nem tudo está perdido, pois ouvimos a boa notícia da qual falávamos no capítulo anterior. Trata-se da chegada de Jesus, o Esposo, que traz a plenitude do amor. Ele oferece ao homem um novo início para seu caminho rumo às estrelas. Cristo não só nos libera do pecado, mas também abre um caminho que consente ao homem tocar a plenitude de Deus. Como nos dá o Senhor esse novo impulso? Como concede a força necessária para que o amor alcance seu desejo mais profundo, sua aspiração pelas estrelas?

A Lei no coração do homem A nossa pergunta traz um problema ligado à quantidade de desejos que surgem em nosso coração. Aos animais basta seguir seus impulsos para realizar sua vida em plenitude. O mesmo não acontece com o homem: no desejo humano se verifica uma ambiguidade. Com efeito, sabemos que muitos dos desejos que nos movem não nos fazem felizes e que seguir qualquer desejo impede que se cumpram os mais profundos, mais verdadeiros. O dinamismo humano do desejo tem muitas camadas. Como diferenciar um desejo do outro? Como encontrar a luz que ilumina este labirinto? 113

O Antigo Testamento oferece uma primeira resposta a esta pergunta. Para alcançar a plenitude da vida, para poder forjar uma aliança com Deus, o Povo recebeu a Lei. Ao obedecê-la, alcança-se a luz que permite distinguir um desejo supérfluo de outro que leva à meta. Era assim que Israel entendia a Lei, isto é, como uma luz dada por Deus. Através dela, Ele educava Seu Povo para que aprendesse o caminho do amor. Apesar disso, o Antigo Testamento mostra que a Lei não basta para elucidar o desejo e orientálo à perfeição. Mesmo tendo a Lei, o povo muitas vezes se afasta dela, caindo na idolatria e cometendo injustiça. Veio então Cristo, não para abolir a Lei, mas para dar-lhe cumprimento (cf. Mt 5,17). Ele traz uma abundância de justiça, capaz de superar aquela de escribas e fariseus (cf. Mt 5,20). Em que consiste esta plenitude? Há uma cena famosa no Evangelho de João que pode nos ajudar a compreendê-la. Os fariseus conduzem a Jesus uma adúltera e Lhe perguntam: devemos apedrejá-la, como ordena a Lei de Moisés? (cf. Jo 8,1ss). Jesus, então, inclina-se e começa a escrever no chão com o dedo. Muitos tentaram decifrar o sentido deste gesto, e numerosos estudiosos da Bíblia continuam a fazê-lo. A interpretação de Santo Agostinho é iluminante223. Segundo ele, é preciso entender a cena no contexto do Antigo Testamento. Recordemos: Deus escreveu a Lei com Seu próprio dedo em tábuas de pedra. Jesus o que faz, então, é escrever de novo a Lei com Seu dedo, o mesmo dedo de Deus. Mas há uma diferença. Jesus não escreve na pedra, mas no chão que, para S. Agostinho, representa a terra fértil do coração humano. Os judeus entenderam o gesto de Jesus: a Lei, gravada nas pedras que Moisés trouxe do monte, não estava impressa dentro deles, nos seus corações. Por isso se retiraram, um após outro, começando pelos mais velhos. Esta é precisamente a obra que Jesus veio realizar no mundo: inserir a Lei do amor dentro do homem. Jesus leva a Lei à plenitude, não acrescentando outros mandamentos, mas gravando-a nos corações. Assim, seu cumprimento já não vem de fora, mas brota de dentro, como uma nascente que sai das rochas, coincidindo com os desejos e as aspirações mais profundas. O que significa gravar a Lei no coração do homem? Em sua catequese sobre o amor humano, João Paulo II também faz referência ao coração. Ele segue a tradição bíblica, que vê o coração como centro da pessoa, núcleo do que somos, nosso quarto secreto, nossa mais sagrada intimidade. Isso quer dizer que o coração de uma pessoa é invisível, uma realidade meramente interior, oculta aos outros homens? Nada disso: o coração indica a capacidade de relação, de abertura aos outros. De uma pessoa sincera se diz que fala “com o coração nas mãos”; e quem é caridoso e se preocupa com os outros, “tem bom coração”. Por isso, João Paulo II relacionou o coração com a abertura do homem 114

aos outros. Não devemos esquecer que esta abertura é a corporeidade humana, que leva o homem a estar presente e ativo no mundo. Por isso, “o ‘coração’ é esta dimensão da humanidade, com que está ligado diretamente o sentido do significado do corpo humano, e a ordem deste sentido”224. Assim nos encontramos diante de um paradoxo: o coração, o mais profundo do homem, seu centro sagrado, é também o que há de mais externo e visível, é a abertura de sua vida ao mundo e aos outros homens. Como é possível? Como pode o coração ser a dimensão mais íntima do homem e, ao mesmo tempo, a mais externa? É que o coração manifesta a capacidade do homem, escrita em seu corpo, de receber e exprimir o amor. Por isso, é também o centro da pessoa: porque o amor é aquilo de mais profundo que temos e somos. O coração é como uma nascente de montanha: vem da profundidade da rocha, mas sua água refrescante borbulha também na superfície. No coração, portanto, convergem as diversas dimensões do amor das quais falamos anteriormente: a sensualidade, a afetividade, a descoberta e a afirmação da pessoa e, enfim, a aspiração a Deus. Educar o coração é fazer com que estas quatro esferas se cruzem, que cada uma nos conduza à seguinte e que todas se unam em harmonia. Acabamos de dizer que Jesus, escrevendo a Lei no coração humano, leva-a a cumprimento. Agora vamos ver como, para João Paulo II, esta inscrição da Lei no coração comporta a integração de todas as dimensões do amor no seu impulso para o alto. Uma lei escrita na pedra não pode transformar os desejos e sentimentos desde dentro: ficará sempre fora de nós e correrá o risco de ser aceita somente por medo, ou mesmo recusada com decisão. Ao contrário, uma lei escrita no coração, brota dentro do homem. O modo com que Jesus ultrapassa a justiça de escribas e fariseus não consiste no acréscimo de outros mandamentos, mas na capacidade de inscrever esta lei em nossos desejos e em nossa afetividade, para fazer-nos descobrir o valor sagrado da pessoa amada e sua relação com Deus. Karol Wojtyla, assim como o resto da tradição cristã, chama de “virtude” esta integração dos desejos e sentimentos. Concretamente, trata-se da virtude da pureza ou castidade. Para compreendê-la, perguntamo-nos: como Cristo educa o coração? Como dá forma a seus desejos e sentimentos para que descubram a dignidade da pessoa amada no horizonte do amor do Pai?

A virtude: um amor ordenado

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Para começar a explorar o conceito de virtude, podemos pensar na influência positiva que os amigos exercem sobre a nossa vida. Poderíamos dizer, unindo esta ideia ao que foi dito sobre a lei, que um bom amigo se torna uma lei interior e viva. Assim dizia São Gregório Nazianzo sobre a sua amizade com São Basílio Magno, de quem foi amigo de infância: “E se não for presunção minha dizê-lo, éramos um para o outro regra e o modelo para discernir o certo e o errado”225. Todo homem experimenta este influxo de bons amigos: viver ao lado deles é como frequentar uma escola onde se aprende a nobreza, a fidelidade, a constância... A amizade começa justamente com uma união dos afetos. Por meio da simpatia, um bom amigo passa a habitar nosso mundo interior. Por isso, a influência de um amigo não se reduz a um bom exemplo que nos toca exteriormente, mas, ao contrário, consegue tocar nossa experiência interior, dando ordem aos nossos desejos. Para entender isso, vamos usar uma comparação: se colocarmos pequenos filamentos de ferro numa folha de papel e por baixo dela um ímã, produz-se imediatamente um pequeno milagre: as partículas se orientam segundo as linhas do campo de força. Analogamente, podemos dizer que o amor de um amigo é como um campo magnético que, ao aproximar-se do outro, orienta os desejos e a afetividade, dando ordem ao coração. O amor integra assim as diversas dimensões do homem e as fortalece para que, aos poucos, modele os afetos, para que estes se dirijam à construção comum de uma vida feliz. De acordo com São Tomás de Aquino, podemos dizer que as virtudes são o fruto de uma amizade, uma amizade com Deus, que a tradição cristã chama de “caridade”. A caridade significa o próprio amor do Senhor, que “foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Quando chega ao homem, este amor ordena seus desejos, gerando as virtudes, como uma mãe que lhes dá à luz. Karol Wojtyla mostra-se em sintonia com esta tradição quando afirma que o amor é “uma virtude, a maior das virtudes”226. Deste modo, percebemos que para adquirir a virtude – ou seja, a integração das diversas dimensões que o amor descobre dentro do homem – é preciso entrar no campo magnético do verdadeiro amor, da amizade que Deus nos oferece. Sem este dom primordial, qualquer tentativa de integrar as forças que movem o coração é destinada a fracassar. Isso significa que o esforço para conseguir a virtude deve ser precedido pelo amor e tender ao seu fortalecimento. Por esse motivo, a virtude não é somente uma perfeição pessoal, uma realização que eleva o indivíduo acima dos outros. O que está em

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jogo não é um perfeccionismo narcisista, mas a própria capacidade de amar realmente, para poder doar-se totalmente ao outro. Num texto clássico, Santo Agostinho define as “virtudes cardeais” (prudência, justiça, fortaleza e temperança) em relação ao amor. Estas quatro virtudes são importantes por serem a base em que surgem as outras (cardeal vem do latim cardo, que é a dobradiça da porta, o eixo sobre o qual tudo gira). Para o Bispo de Hipona estas virtudes correspondem às quatro formas de amor: Sua quádrupla divisão não exprime senão os vários afetos de um mesmo amor. Por isso eu não hesito em definir essas quatro virtudes [...] como distintas funções do amor. A temperança é o amor íntegro que se dá ao que se ama; a fortaleza é o amor que suporta tudo pelo que se ama; a justiça é o amor que serve exclusivamente ao que se ama e que, por isso, domina todas as demais coisas com retidão; a prudência é o amor que distingue com sabedoria e sagacidade o que é útil do que é nocivo227.

Esta relação entre virtude e amor é ilustrada na história de Adão Chmielowski, o protagonista de Irmão de Nosso Deus. Adão busca o ideal de beleza, a ordem suprema e harmônica que inspire sua obra de pintor. Sua descoberta o surpreenderá: não basta retratar a beleza numa tela; Adão se dará conta que ele mesmo deve ser transformado na imagem do amor. E é nos pobres e nos que sofrem que mais se vê esta imagem. Enquanto luta para responder a este novo chamado, seu confessor o aconselha: “Deixa-te plasmar pelo amor”228. Só o amor tem força para modelar nossos desejos e sentimentos. Quem é o amigo que poderá plasmar a beleza no homem? Qual é esse amor capaz de transformar a vida numa obra de arte?

A amizade com Cristo no Seu Espírito Como descobre Adão Chmielowski, o Amigo capaz de dar um novo amor é Cristo. Sabemos que, como Filho e Esposo, Ele veio dar plenitude ao caminho humano. Sua vida tornou-se a plenitude do amor, que soube receber de Seu Pai e oferecer aos homens para dar-lhes vida. Assim diz Adão Chmielowski em Irmão de Nosso Deus: Trabalhaste duro por cada um deles. Cansaste-te mortalmente. Destruíram-te totalmente. Isso se chama Caridade. E, apesar de tudo, continuas formoso. O mais formoso dos filhos dos homens. Jamais voltou a repetir-se semelhante beleza. Tal beleza se chama Caridade229.

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Como Cristo consegue comunicar Seu amor? Para responder esta pergunta, é preciso falar de outro personagem importante: o Espírito Santo. O Espírito é o próprio amor de Deus, que une o Pai e o Filho e também é capaz de unir os homens, de fazer com que tenham uma mesma vida. Por isso, para que a vida interior do fiel vibre em uníssono com Cristo, o Amigo, ele precisa receber Seu Espírito, por meio do qual participa da obediência de Cristo ao Pai, como Seu Filho e, na entrega de Cristo à Igreja, como Seu Esposo. Compreende-se, então, como Cristo ordena interiormente os corações: Ele comunica Seu próprio amor, para que reproduza Sua imagem no homem. Lembremos que este Espírito deve transformar os corações, inclusive os desejos e as emoções do corpo. Como é possível? Não é um Espírito divino, imaterial? Precisamos buscar a resposta em Jesus, o Filho de Deus, que se fez homem e viveu uma vida plenamente humana. Antes de entregar-nos o Espírito, Jesus O recebeu no rio Jordão e se deixou guiar por Ele, que acompanhou cada um de Seus passos na terra. Em outras palavras, antes de vir a nós, o Espírito já atuava na vida de Cristo, desde Seu nascimento até Sua morte e ressurreição. Por que é tão importante esta presença do Espírito na vida de Jesus? Vamos tentar entender isso com um exemplo. Pensemos na água que se forma quando a neve se derrete na montanha. Esta água é tão pura que não pode ser bebida: faltam-lhe os minerais para que seja retida e assimilada pelo corpo. Somente quando a água passa por entre as rochas da montanha e, aos poucos, adquire os sais minerais, é que o organismo pode absorvê-la e saciar sua sede com ela. Do mesmo modo, não se pode beber diretamente da fonte do amor de Deus, que é o Espírito Santo, pois seria uma água demasiadamente pura e impossível de reter. A água do Espírito deve antes passar através da vida terrena de Cristo, de Sua morte e ressurreição. Só então, torna-se uma água que sulca a experiência humana, como a neve através das rochas da montanha; água que o homem pode assimilar, para que refresque seu caminhar na terra. Em outras palavras, o amor dado ao fiel (o Espírito) é o mesmo amor de Jesus, o Filho e o Esposo, um amor que leva em si a marca das experiências humanas. E, por isso, é um amor capaz de ordenar as diversas esferas da vida, ensinando aos homens a serem filhos, esposos e pais. O caminho humano do amor é possível se o homem se deixa moldar por este amor. O Espírito Santo revela assim um novo modo de dar forma aos corações. Como escreve João Paulo II: “A redenção do corpo comporta a instauração, em Cristo e por Cristo, de um novo padrão da santidade do corpo. Precisamente a esta ‘santidade’ exorta Paulo na primeira Carta aos Tessalonicenses (4,35), quando escreve que se deve ‘possuir o próprio corpo em santidade e respeito’”230. 118

A pureza, ou a arte de amar Diante da mulher adúltera, acusada pelos fariseus, Cristo rabisca no chão palavras misteriosas. Este dedo, dizia Santo Agostinho, é o dedo de Deus, que escreve a Lei nos corações de terra. A tradição cristã, à luz do Evangelho, identifica este dedo de Deus com o Espírito Santo, que Jesus derramou sobre os fiéis.231 O Espírito modela o homem à semelhança de Jesus, o Filho e o Esposo. Por isso, modela a afetividade e os desejos corpóreos para que exprimam o verdadeiro e pleno amor, o amor de Cristo. Para realizar sua obra, este Espírito precisa da nossa livre cooperação. A amizade de Cristo não é apenas um dom, mas também uma tarefa. Como diz João Paulo II: “O mistério da ‘redenção do corpo’, realizada por Cristo, [é] fonte de um particular dever moral, que obriga os cristãos à pureza”232. Quando somos amados, tornamo-nos livres e capazes de agir – da mesma forma que um músico, quando está inspirado, é capaz de criar uma nova música. Lembremos do exemplo do ímã que, debaixo de uma folha de papel, orienta as limalhas de ferro. O amor cria em nós um campo magnético e nos permite colaborar com ele, integrando todos os nossos desejos e afetos de acordo com suas linhas de força. Compreende-se agora porque Deus confiou-nos nossos corpos como uma tarefa: devemos dar a nossos sentimentos a forma do amor pessoal. Através de nossa existência concreta no corpo, devemos exprimir, em nossos afetos e emoções, uma resposta ao chamado do amor. Por isso, nossos afetos devem ser ordenados, para que tendam ao valor da pessoa e ajudem a descobrir e defender a verdade do amor. Deste modo, a redenção do corpo torna-se fonte de uma dignidade excelente e de uma nova obrigação, para que se viva a uma nova altitude: Por meio da redenção, cada homem recebeu de Deus quase novamente a própria existência e o próprio corpo. Cristo inscreveu no corpo humano – no corpo de cada homem e de cada mulher – uma nova dignidade, dado que nele mesmo o corpo humano foi admitido, juntamente com a alma, à união com a Pessoa do Filho-Verbo. Com esta nova dignidade, mediante a “redenção do corpo” nasceu ao mesmo tempo também uma nova obrigação, sobre a qual Paulo escreve de modo conciso, mas muitíssimo comovente: “Fostes comprados por alto preço” (1Cor 6,20). O fruto da redenção é de fato o Espírito Santo, que habita no homem e no seu corpo como num templo. Neste Dom, que santifica cada homem, o cristão recebe novamente o próprio ser como dom de Deus233.

A “obrigação” da qual fala João Paulo II neste trecho, não é um mandamento gravoso, que dificulta o caminho, mas um chamado a integrar as diversas dimensões da vida no amor para que se possa decolar. Integrar os desejos para que respondam a este chamado é o fim da castidade ou pureza de coração. Não devemos confundir esta virtude 119

com o fanatismo, que se deixa levar pelo escrúpulo e o medo. Ao contrário, pureza de coração significa crescer em audácia: requer não só a coragem de receber com gratidão a própria vida e de entregá-la generosamente, mas também a inteligência para conhecer a outra pessoa, respeitá-la, saber fazê-la feliz. Como diz João Paulo II: “A castidade só se compreende em sua relação com a virtude do amor”234. A castidade é a virtude que ensina a arte de amar. A primeira consequência da pureza é o domínio de si. Pode-se descrever este domínio como uma atitude de vigilância diante de tudo o que poderia colocar em perigo o amor. Graças a este elemento de domínio de si, escreve Santo Agostinho em suas Confissões: “Somos recompostos e reconduzidos à unidade perdida...”235. Esta unidade coloca a sensualidade e os sentimentos a serviço da afirmação do amor pessoal. Por isso, somente o homem casto e a mulher casta são capazes de verdadeiro amor. De fato, a castidade liberta a união deles – incluindo a união conjugal – da tendência de usar a outra pessoa, atitude que é incompatível com a ternura do amor. Deste modo, introduz-se na vida de casal e na sua relação sexual, uma disposição especial para a ternura236.

Portanto, a castidade requer vigilância; mas esta última não é seu ingrediente principal. Se assim fosse, ficaria sempre na defensiva, enquanto que a pureza é uma virtude que age, que constrói. O domínio de si, com efeito, só é possível quando se descobre a grandeza do amor e se aprende a maravilhar-se diante dele. Ninguém pode possuir-se a si mesmo sem antes aprender a receber-se das mãos do outro: podemos amar porque alguém nos amou e nos indicou o caminho do amor. O domínio de si mesmo, o possuir a si mesmo, serve somente para dar-se ao amado, para entregar-se a ele. Por isso, a pureza nasce da aceitação do amor e do desejo de oferecer-se totalmente ao outro, atraído por sua beleza. Ser puro de coração é ser capaz de amar com o amor que constrói uma vida em comunhão. A função da pureza […] é não só (e não tanto) a abstenção da “impureza” e daquilo que a ela conduz, portanto a abstenção de “paixões desregradas”, mas, ao mesmo tempo, a posse do próprio corpo e, indiretamente, também do corpo dos outros em “santidade e respeito”237.

A pureza de coração, portanto, é ao mesmo tempo posse e domínio de si, por um lado, e atração para o amor ou desejo de honrar e servir a beleza, por outro. Segundo Santo Agostinho, é “o amor que se conserva íntegro e incorruptível” e é “o amor que se entrega totalmente ao objeto amado”238. Em outras palavras, a castidade é, sobretudo, positiva: a “castidade é […] um ‘sim’ ao qual seguem outros ‘não’”239. Estimula nos

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esposos a capacidade de ver o mundo do ponto de vista do outro e de ajudar-se reciprocamente a integrar desejo e emoção na construção de um amor verdadeiro. É importante acrescentar que a castidade não se refere somente ao próprio corpo, mas também ao corpo da pessoa amada, pois a meta da pureza não é o perfeccionismo, que põe o indivíduo acima dos outros, mas uma maior capacidade de amar, de fazer feliz o amado. Por isso, o homem e a mulher devem compreender como reage o outro no encontro recíproco e ajudar na integração de seus desejos e emoções. E assim, diz João Paulo II, “Cristo […] confia como tarefa a cada homem a dignidade de cada mulher; e contemporaneamente […] confia também a cada mulher a dignidade de cada homem”240. Isso quer dizer que, longe de impedir o amor, a castidade favorece a verdadeira arte de amar. Esta integra nossos desejos e sentimentos para que possamos nos doar ao outro e caminhar juntos para Deus: O amor [...] é uma transformação profunda da simpatia (sentimento) em amizade (amor pessoal). [...] Aí reside a “arte” da educação do amor, a verdadeira arsamandi241.

Pode parecer que a castidade rouba a alegria e a espontaneidade do amor. Certamente, ela não é fácil, pois exige trabalho constante e esforço. Não se oporá assim aos desejos, revelando-se como uma estraga prazeres que reprime a vontade de deleitar-se? E, não obstante, é a pureza que confere a verdadeira espontaneidade. Se pensarmos na diferença entre a criança, que rabisca na folha de papel um boneco qualquer, e o artista, que, na mesma folha, esboça uma obra de arte, podemos dizer que a espontaneidade da castidade é aquela do pintor consumado, que consegue, com naturalidade, exprimir a maior beleza. Com a castidade, o verdadeiro amor flui com a simplicidade da vida, pois foram integrados os desejos e as emoções na unidade de uma comunhão pessoal que nos dá plenitude. O filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard conseguiu recolher, no título de um de seus ensaios, a visão que apresentamos: “A pureza do coração é querer uma coisa só”242. A castidade não divide, mas integra, unindo todos os movimentos, desejos e sentimentos do coração num amor verdadeiro a Deus e ao próximo. Quando isso acontece, a própria luz de nossos desejos é capaz de orientar-nos, como lembra Dante, na Divina Comédia. Seu guia, o poeta Virgílio, levou-o até as portas do Céu. Ao se despedir, Dante mostra sua tristeza pela perda de um guia tão sábio, e Virgílio o consola. Não precisa se preocupar: já não precisa de ninguém que lhe mostre o caminho, pois seu próprio desejo, são e integrado, poderá guiá-lo para a meta: Aqui eu te trouxe com engenho e arte;

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seja ora o teu querer quem te conduz; duras vias já não tens pra fatigar-te […] Não esperes de mim palavra ou gesto; é livre a tua vontade e reta e boa; erro seria impedi-la. Ora eu protesto em ti, por ti, vestir mitra e coroa243.

O dom da piedade João Paulo II aperfeiçoa seu ensino sobre a pureza, falando de um dos sete dons do Espírito Santo, o dom da piedade. De tal modo, a pureza se transforma, diz o Papa, em algo “carismático”, palavra que vem do grego charis (graça). Significa que mais que o resultado de um esforço do homem, considera-se a pureza, sobretudo, como um dom, uma obra do Espírito em nós, com a qual colaboramos. A castidade, como as demais virtudes cristãs, baseia-se sempre no amor. Ela começa quando se recebe o dom do amor, depende continuamente da presença desse dom e somente um dom final a fará chegar à sua meta, ou seja, à configuração com o amor divino. É verdade que a virtude da castidade proporciona um domínio pessoal. Porém, precisamos lembrar que este domínio não é autossuficiência: para possuir-nos a nós mesmos, precisamos poder receber-nos de outros, mas possuímos a nós mesmos para nos entregarmos a outros. Por isso, quanto mais domínio pessoal tivermos, mais precisaremos do dom de Deus e de Seu amor; quanto mais amarmos, mais dependeremos do amor do Amado. Enfim, a nossa perfeição, que requer a colaboração de nossa liberdade, vem sempre do Alto. E não poderia ser de outra forma, pois a última etapa do caminho do homem é Deus, e não podemos alcançá-la se Ele não nos guiar. Antes citamos uma frase conhecida de Santo Agostinho: “Meu peso é meu amor”. O santo explica que esse amor é, na realidade, um dom, o dom do Espírito divino, e por isso pode elevar-nos: “O teu dom nos inflama e nos leva para cima; ele abrasa-nos e nós partimos […] o teu bom fogo nos faz arder e nós vamos, subimos […]”244. Em outras palavras, o Espírito Santo – o fogo de Deus – torna-se o peso que nos leva para Ele. Até agora o dom da piedade pode ter parecido limitado no que diz respeito à relação do homem com Deus. Todavia, devemos lembrar que este dom está unido à virtude da pureza e, por conseguinte, ao amor que nasce no coração do homem, o amor entre homem e mulher, que funda a família. Para João Paulo II, a piedade não cria só um vínculo entre o homem e Deus, mas consiste, mais exatamente, em ver a presença de Deus por meio do amor humano, que se apresenta precisamente na atmosfera da família, das relações entre marido e mulher, pai e filho, irmãos e irmãs. Assim, a piedade nos 122

relaciona com Deus precisamente por ser Ele a fonte e o fundamento sobre o qual se baseia o amor entre as pessoas. “Este dom, com efeito, sustenta e desenvolve nos cônjuges uma sensibilidade particular para tudo o que em sua vocação e convivência leva o sinal do mistério da criação e da redenção: para tudo o que é um reflexo criado da sabedoria e do amor de Deus”245. Sendo uma percepção do sagrado no encontro com os outros, a piedade implica também reverência pelo próprio corpo, dado que este não é somente o lugar onde o homem encontra seu mundo, nem somente o lugar em que se descobre o próximo e sua importância para a vida: a piedade ajuda a ver, acima de tudo, que o corpo humano é destinado a transformar-se em templo: A pureza, como virtude, […] aliada com o dom da piedade, como fruto da permanência do Espírito Santo no “templo” do corpo, realiza nele tal plenitude de dignidade nas relações interpessoais, que Deus mesmo é nisso glorificado. A pureza é glória do corpo humano diante de Deus. É a glória de Deus no corpo humano, através do qual se manifestam a masculinidade e a feminilidade246.

Se o corpo é um templo, precisamos tratá-lo com respeito e reverência. A reverência requer, por sua vez, humildade. A pessoa humilde vence uma tentação muito grande do amor: aquela de medir tudo com os próprios sentimentos. Karol Wojtyla descreve este perigo num trecho, já citado, de A Loja do Ourives, quando fala de dois jovens que Não procuram fundar seu amor no Amor, que tem a dimensão absoluta. Nem sequer suspeitam desta exigência, porque lhes cega não tanto a força do sentimento, mas a falta de humildade. É a falta de humildade diante daquilo que o amor deve ser na sua sua verdadeira essência247.

Esta humildade não é alheia ao corpo. Ao contrário, o corpo, feito para olhar além de si mesmo e para servir algo maior de si, é naturalmente humilde. Wojtyla fala desta humildade na sua obra Amor e Responsabilidade: A humildade é a devida atitude de respeito de toda verdadeira grandeza, seja ela minha ou não. O corpo humano deve ser humilde diante da grandeza que representa a pessoa, porque é esta que dá a medida do homem e o corpo humano deve ser humilde diante da grandeza do amor [...]. O corpo deve ser humilde na presença da felicidade humana 248.

O dom da piedade nos ajuda a compreender a humildade do corpo e, ao fazê-lo, leva à plenitude seu sentido. Pois o humilde não é aquele que se contenta com pouco, mas é aquele que de tal modo sabe reconhecer a grandeza que, baseando-se nela, cresce para além de si mesmo. O corpo, na sua humildade, manifesta a própria fonte do amor, que Jesus nos ensinou a chamar de Pai.

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Voltemos à Divina Comédia para mostrar a humildade e a pureza que João Paulo II vê irradiar do corpo humano. Ao chegar à entrada do Purgatório, Dante se maravilha diante de uma bela escultura que representa a Anunciação de Maria, esculpida pelas mãos do próprio Deus249. A figura da Virgem é tão expressiva que Dante quase consegue ouvir seu assentimento às palavras de Gabriel. O corpo de Maria está revelando sua obediência a Deus, sua resposta à vocação do amor. Esta imagem nos indica a tarefa que nos aguarda na terceira e última parte deste livro. Focalizaremos, então, a missão da família: brilhar no mundo com o esplendor do amor redimido por Cristo, presente na vida dos esposos. Veremos como homem e mulher encarnam a transparência do amor, seja no matrimônio (capítulo 8), seja na virgindade consagrada (capítulo 9), e como assim constroem a Igreja e a sociedade (capítulo 10). Preparemo-nos para o trecho final de nosso caminho, sabendo que tudo aquilo que ascende à montanha do Purgatório na Comédia de Dante – um símbolo do caminho cristão de purificação e de amadurecimento –, encontra-se sob o olhar e a mão de Maria. Ela nos educa na liberdade de seu “sim”, capaz de abraçar, em plenitude, o plano divino.

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TERCEIRA PARTE A BELEZA DO AMOR: O ESPLENDOR DO CORPO

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CAPÍTULO 8 AMAR DO AMOR DE CRISTO: O SACRAMENTO DO MATRIMÔNIO

No primeiro ato de A Loja do Ourives, Karol Wojtyla narra o amor entre André e Teresa. Quando se declara a Teresa, André escolhe com cuidado a pergunta: “Queres ser a companheira da minha vida?” O sim da jovem demora um pouco a chegar: não porque tem dúvidas, mas porque quer viver plenamente o momento, captando todo o seu sentido. O casal começa, então, a caminhar até a loja do ourives para escolher as alianças de casamento. Como recordarão mais tarde: As alianças que estavam na vitrine falaram-nos com uma força estranha. Eram ali meros objetos de metal nobre, mas o seriam só até o momento em que eu pusesse uma delas no dedo de Teresa e ela pusesse a outra no meu. A partir daquele instante começariam a marcar nosso destino250.

O primeiro ato da obra se intitula “Os sinais”. Aqui, as alianças têm um papel significativo dentro da trama do amor que une os dois jovens. Com efeito, são símbolos ou sinais do sacramento do matrimônio, pelo qual o homem e a mulher se unem em comunhão até que a morte os separe. O que é a “força estranha” que, segundo a poesia de Karol Wojtyla, está contida nestas alianças? De que modo são capazes de “marcar o destino” do homem? Que lugar ocupam no caminho do amor que percorremos neste livro?

O sinal do corpo Temos insistido numa ideia chave: o corpo tem uma linguagem própria, que é a linguagem do amor. Este não é matéria inerte, mas é pleno de sentido. Com efeito, o 126

corpo fala para dizer que o homem não é um ser isolado, mas que recebe sua identidade no encontro e na relação com outros: com o mundo que o circunda, com os outros homens, com Deus. Podemos considerar o significado do corpo seguindo três coordenadas. Em primeiro lugar, o corpo tem um sentido filial, pois representa a relação do homem com Deus: o corpo é o espaço onde se reconhece que Deus é Pai. Se esta afirmação continua nos parecendo estranha (como é possível que o corpo, humilde e terreno, fale do Deus invisível e imortal?), pensemos que o corpo foi tecido pelo Senhor no seio materno e que a sua fragilidade – a experiência da doença e da morte – faz com que nos dirijamos a Deus, que nos sustenta no caminho da vida. Em segundo lugar, o corpo é nupcial, porque nele se manifesta o amor entre o homem e a mulher, em seu ser masculino e feminino. Assim, o corpo exprime a vocação do ser humano para tornar-se esposo. Em terceiro lugar, o corpo tem um significado procriativo, porque a união dos esposos se abre ao dom de uma nova vida, por meio da qual o Criador abençoa o seu amor e o torna fecundo. Portanto, a vocação e o destino do homem – chamado a ser filho, esposo e pai – estão inscritos no seu corpo. Trata-se de um caminho que começa em Deus, é sustentado por Seu amor e une o homem e a mulher na sua caminhada até Ele. E assim, quando vivemos no corpo a dimensão filial, nupcial e paterna do amor, encarnamos visivelmente a imagem de Deus no mundo: mostramos o lugar onde Ele se manifesta e o caminho que leva até Ele. Com isso, podemos entender por que João Paulo II fala do corpo como sacramento. Normalmente, usamos esta palavra para nos referirmos aos sete sacramentos da Igreja, do Batismo à Unção dos Enfermos. Sabemos que os sacramentos são sinais eficazes da graça de Deus: consentem-nos ver Seu amor invisível e experimentar Sua presença e ação na vida. Pois bem, não acontece algo semelhante em relação ao corpo do homem? Este não nos revela algo invisível, a vocação ao amor, o caminho das mãos do Pai até o abraço definitivo? Em particular, na união do amor entre homem e mulher, o corpo se apresenta como um sacramento do dom divino, pois Deus se faz presente no amor dos esposos. Tal constatação dá a João Paulo II a possibilidade de falar da união de Adão e Eva, tal como Deus a constituiu no princípio do mundo, como “sacramento da criação”. Evidentemente, não se trata de um dos sete sacramentos da Igreja, mas serve para entender a necessidade de todos os sacramentos cristãos. Deus institui os sacramentos como sinais visíveis e corpóreos, porque quer salvar o homem em corpo e alma. Esta 127

salvação consiste na entrega de seu amor, no doar-se aos homens e mostrar-lhes o caminho para Ele. É algo que Ele já começa a fazer no princípio, quando abençoa o homem com a presença da mulher, quando abençoa a ambos com a vinda de um filho. O corpo torna visível e eficaz este projeto de comunhão. A partir disso podemos nos concentrar no sacramento do matrimônio.

A nova medida do amor Já dissemos que a vida, morte e ressurreição de Cristo revela plenamente o amor de Deus pelo homem e também o caminho do homem para Deus, sua resposta ao amor primário do Criador. De fato, Cristo é o Filho e o Esposo, que segue a senda do amor filial, esponsal e paterno. Deste modo, Jesus leva à plenitude a tripla dimensão do amor que o corpo revela: somos filhos, chamados a doar-nos como esposos e a gerarmos frutos com o amor mútuo. Assim, por um lado, Cristo recupera o antigo modelo que Adão e Eva viviam no paraíso e que João Paulo II chama de “sacramento da criação”. Por outro, Cristo vai além, inserindo na estrada do homem um fator novo, inesperado: Seu eterno amor pelo Pai no Espírito. Cristo ensina o homem a ser filho de Deus e, morrendo na Cruz por Sua Igreja, abre-a a uma nova vida: é Seu caminho de Filho e Esposo que se cumpre por meio da entrega de Seu corpo. Assim, percebe-se uma sintonia harmônica entre estes dois momentos, a criação e a redenção. De fato, na carta aos Efésios, São Paulo ilustra a obra de Cristo à luz do amor dos esposos. O apóstolo começa lembrando o ensinamento do Gênesis: “Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher, e serão ambos uma só carne” (Gn 2,24). Em seguida, aplica a imagem a Cristo e à Igreja: “É grande este mistério”, afirma sobre esta união, “refiro-me à relação entre Cristo e sua Igreja” (Ef 5,32). A palavra mistério, embora não seja sinônimo de sacramento, está relacionada a ele. O mistério também se refere à manifestação visível de uma realidade invisível: o amor eterno e escondido do Pai se mostra ativo e eficaz na história terrena de Jesus. O que São Paulo quer dizer com esta comparação? O apóstolo fala da união de Adão e Eva numa só carne. Como sabemos, aqui já se revela o amor divino, pois o amor entre o homem e a mulher é sustentado pelo amor primário do Criador e aberto à transcendência. Por isso, falamos desta primeira união como uma espécie de “sacramento”, que João Paulo II chama de “sacramento da criação” e “sacramento primordial”. A carta aos Efésios ressalta que esta união entre Adão e Eva tende para a união entre Cristo e a Igreja. Entendemos, assim, que o amor entre o homem e a mulher esconde um mistério ainda 128

maior, uma relação com o amor de Jesus pelos Seus: é o que João Paulo II chama de “sacramento da redenção”. O amor entre o homem e a mulher passa a referir-se a esta entrega total de Cristo por Sua Igreja. A revelação do amor de Deus em Seu Filho abriu horizontes inesperados para o amor humano. De fato, esta união entre Cristo e a Igreja é o modelo primordial para entender o matrimônio entre o homem e a mulher. Podemos nos perguntar como isso é possível. Não existiram antes Adão e Eva e só depois, muito mais tarde, veio Jesus e entregou-se pela Igreja? Acontece que na carta aos Efésios, Paulo nos convida a ver as coisas desde outro ponto de vista, adotando o olhar de Deus. Segundo a perspectiva divina, diz o apóstolo, Cristo é princípio e fim de tudo o que existe: Ele é o Filho eterno chamado a tornar-se Esposo para levar toda a criação à plenitude. Isso quer dizer que a união entre Adão e Eva vem primeiro no tempo, mas não no projeto que Deus tem para a história: o mais importante é a união de Cristo com Sua Igreja. Do ponto de vista de Deus, o “sacramento da criação” recebe sua luz e força a partir do “sacramento da redenção”. Diz João Paulo II: A realidade da criação do homem era já permeada pela perene eleição do homem em Cristo: chamada para a santidade mediante a graça de adoção como filhos […]. Tal gratificação foi dada em consideração d’Aquele, que desde a eternidade era “amado” como Filho, embora – segundo as dimensões do tempo e da história – ela tenha precedido a encarnação deste “amado Filho”251.

Uma vez que Cristo é o verdadeiro começo da história da criação do mundo, Ele tem a chave para reabrir a porta do Paraíso e recuperar a união original de Adão e Eva. Jesus devolve ao amor humano o esplendor que tinha quando saiu das mãos do Criador. Ele entrega a pureza desta união aos esposos cristãos como presente de casamento. Neste sentido, o matrimônio cristão é a recuperação do “sacramento do princípio”, o “sacramento da criação” que se rompera com o pecado. No entanto, este não é o único efeito provocado pelo encontro dos esposos com Cristo no sacramento do matrimônio. Com efeito, Cristo não só recupera o princípio, mas também o situa na esfera do “sacramento da redenção”, onde se realiza o amor do Esposo pela Igreja. Em outras palavras, Jesus eleva o amor entre os esposos para transformá-lo num sacramento de Sua nova aliança, um sinal visível e eficaz de Seu amor infinito. É necessário insistir que o sacramento da redenção não elimina a tríplice dimensão do amor humano, revelado no corpo, em seu aspecto filial, esponsal e procriativo. Ao contrário, ele vem para completá-la e torná-la um veículo de comunicação da própria vida divina. Em ambos os casos, o corpo – corpo de homem e

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mulher, corpo de Cristo em Sua entrega pela Igreja – transforma-se no lugar da manifestação do amor de Deus no mundo, segundo sua vocação de ser filho, esposo, pai. Portanto, podemos dizer que a vida, morte e ressurreição de Cristo traz uma nova medida ao amor conjugal. Os esposos cristãos são chamados a amar-se reciprocamente, de acordo com o mistério de Cristo, “no temor de Cristo” (Ef 5,21). É lícito, então, perguntar-se: em que consiste esta nova medida? Respondemos: é a medida de Cristo como Filho e Esposo, a medida Daquele que leva à plenitude Seu amor filial pelo Pai e Sua dedicação esponsal à Igreja. O que acontece no sacramento do matrimônio é que este amor do Filho e do Esposo torna-se acessível aos cônjuges. Cristo confia a eles, por assim dizer, Seu próprio amor, para que possam viver dele. Por isso, podem se tornar sinal vivo do amor entre Cristo e a Igreja: Maridos, amai vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de purificála com o banho da água e santificá-la pela palavra, para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa, sem mancha nem ruga, ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível (Ef 5,25-27).

É uma tarefa gravosa, aquela que Paulo confia aos esposos cristãos. Não será demais para eles? Para não desanimarmos, precisamos nos lembrar do dom que Cristo direciona ao fiel. Ele comunica o Seu amor que percorreu nossos mesmos passos na terra, que também viveu como Filho e Esposo. Tendo em mente isso, não surpreende que Seu amor possa acompanhar os cônjuges ao longo do caminho. Este amor que Cristo compartilha com o casal não é uma coisa, mas uma pessoa viva, o Espírito Santo. O Senhor Ressuscitado sopra e envia Seu Espírito sobre eles para que não se angustiem no afã de viver segundo esta nova medida do amor. Este Espírito transformará o frágil amor dos esposos na plenitude da caridade conjugal: O Espírito, que o Senhor infunde, doa um coração novo e torna o homem e a mulher capazes de se amarem, como Cristo nos amou. O amor conjugal atinge aquela plenitude para a qual está interiormente ordenado: a caridade conjugal, que é o modo próprio e específico com que os esposos participam e são chamados a viver a mesma caridade de Cristo que se doa sobre a Cruz252.

No sacramento do matrimônio, Deus confere aos esposos esta graça: a caridade conjugal. Assim é chamada porque se realiza na relação entre marido e mulher. Através do dom de Seu Espírito, Cristo capacita os esposos para que se comuniquem reciprocamente com o mesmo amor divino de Jesus, por meio de sua união numa só carne. Como afirma Tertuliano: “Ambos filhos de um mesmo Pai, servos de um mesmo Senhor. Nada pode separá-los, nem no espírito, nem na carne; ao contrário, eles são verdadeiramente dois numa só carne. Onde a carne é uma só, um também é o

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espírito”253. O Espírito permeia a união corporal dos esposos e transforma sua comunhão de vida em um sinal da presença e do amor de Deus. Juntos serão capazes de viver a vida do Espírito, que se caracteriza pela virtude da castidade e o dom da piedade, vistos no capítulo anterior. Aqueles que, como cônjuges, segundo o eterno desígnio divino, se uniram a ponto de se tornarem, em certo sentido, “uma só carne”, são também por sua vez chamados, mediante o sacramento, a uma vida “segundo o Espírito”, de modo correspondente ao “dom” recebido no sacramento. Em virtude daquele “dom”, conduzindo como cônjuges uma vida “segundo o Espírito”, são capazes de redescobrir a particular gratificação de que se tornaram participantes. Enquanto a “concupiscência” ofusca o horizonte da perspectiva interior, tira aos corações a limpidez dos desejos e das aspirações, assim também a vida “segundo o Espírito” (ou seja a graça do sacramento do matrimônio) consente ao homem e à mulher encontrar a verdadeira liberdade do dom, unida à consciência do sentido esponsal do corpo na sua masculinidade e feminilidade254.

A vida no Espírito, compartilhada pelos esposos, os torna capazes de se manterem fiéis e lhes abre ao dom e à tarefa da procriação. São duas dimensões muito importantes do amor esponsal: a fidelidade e a fecundidade. As duas são partes da linguagem do corpo no matrimônio. Vamos estudá-las agora detalhadamente.

Fidelidade para sempre Os esposos pronunciam seu “sim” não somente com os lábios, mas também com os corpos. A linguagem da união conjugal é a linguagem da plena entrega, que abrange a vida inteira. João Paulo II diz a esse respeito: As palavras “Eu te recebo como minha esposa – como meu esposo” levam em si precisamente aquela perene, sempre única e irrepetível “linguagem do corpo” e, ao mesmo tempo, colocam-na no contexto da comunhão das pessoas: “E te prometo ser fiel, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-te e respeitando-te todos os dias de minha vida”255.

Quem ama de verdade quer dizer um sim para sempre. Não existem pessoas apaixonadas que não se jurem amor eterno. No entanto, há dificuldades que nos levam a questionar se este “sim” é possível. Pode-se tomar uma decisão para um futuro que ainda não se conhece? Não iremos mudar ou ver mudar a pessoa amada? Não seria melhor deixar uma porta aberta, para o caso de algo não funcionar? Além disso, uma promessa feita pra sempre não elimina a nossa liberdade, como uma corrente que nos impede de voar e fazer outras escolhas? Não seria melhor não comprometer-se? Comecemos com a primeira dificuldade, que George Bernard Shaw exprimiu em chave de humor. O escritor inglês definiu o matrimônio como a união de duas pessoas 131

“sob a influência da mais violenta, insana, enganosa e efêmera das paixões; elas precisam jurar que permanecerão continuamente nesse estado eufórico, anormal e exaustivo, até que morte os separe”256. De forma mais séria, poderíamos dizer: se não sabemos o quanto mudaremos em um, cinco ou dez anos, como podemos assegurar nosso amor e nossa entrega para toda a vida? Além disso, a outra pessoa também poderá mudar, revelando aspectos que agora não conhecemos e que podemos não gostar. Como prometer que seguiremos amando o cônjuge quando ele não for mais como é agora? Para responder, podemos lembrar nossa discussão sobre os diferentes níveis do amor, do segundo capítulo deste livro. Contra o parecer de Bernard Shaw, o casamento não se fundamenta somente em sentimentos, que vêm e vão como as ondas do mar, mas se apoia num fundamento sólido: a afirmação da pessoa amada, que se ama por si mesma e que tem dignidade eterna. Quando nos apaixonamos, nossas emoções trazem consigo uma promessa de felicidade, e, durante o noivado, procuramos nos assegurar de que esta promessa tenha fundamento. Trata-se de verificar se o amor amadureceu suficientemente e se já é possível construir uma vida juntos sobre uma base sólida. Este momento chega quando a sensualidade e o afeto já não são somente movimentos passageiros, mas indicam com segurança o bem da pessoa amada e revelam nela alguém digno de ser amado por si mesmo. Somente então podemos dizer um sim para sempre, pois encontramos uma âncora firme que mantém o barco em um porto. Por mais ondas que surjam, sabemos que seguiremos amando, ainda que o futuro não esteja totalmente sob controle. Existe algo que jamais mudará: a pessoa do amado e sua vocação para um amor eterno. É este o momento em que os corpos também podem dizer o “para sempre” da união conjugal, pois aprenderam a perceber e exprimir – por meio dos desejos e dos afetos – a dignidade infinita da outra pessoa. Tornar-se uma só carne antes de pronunciar este sim seria como mentir com os corpos, exprimindo através deles algo que não é verdadeiro. Este fundamento, no qual os esposos se apoiam para entregar seu futuro, vai muito além dele mesmo. Se descobrimos algo eterno na pessoa amada é porque a vemos à luz do amor de Deus. Amar é entrar numa esfera maior que os dois amantes, uma espécie de atmosfera divina onde seu amor mútuo pode respirar. Somente ao alcançarem esta fonte primária de amor, os esposos serão capazes de doar-se reciprocamente. Por isso, a promessa de felicidade não se baseia somente nas forças dos amantes, mas no amor transcendente no qual ambos se saciam. Em A Loja do Ourives, Karol Wojtyla exprimiu esta verdade com uma imagem: os anéis são forjados pelo ourives, que representa Deus. Quer dizer que os anéis não simbolizam somente a decisão dos esposos de 132

permanecerem juntos. O seu amor é estável porque se apoia no amor primário do Pai, e por isso podemos dizer que as alianças mantêm os esposos unidos e sustentam o amor compartilhado por eles. Não são só os esposos que guardam a aliança do matrimônio: a mesma aliança os protege e os mantém unidos. Em outras palavras, a liberdade para dizer um sim que dure a vida toda baseia-se num amor que precede os cônjuges e os leva além de suas expectativas: o amor primário do Criador. Apoiados neste amor, são capazes de superar o medo do futuro e a ansiedade que os acompanha e que ameaça paralisá-los. Escutemos novamente André e Teresa em A Loja do Ourives: André: Tive a impressão que buscava com seu [do ourives] olhar nossos corações, adentrando-se no seu passado. Consegue abraçar também o futuro? A expressão de seus olhos era uma mistura de bondade e firmeza. O futuro continuava sendo uma incógnita que agora aceitávamos sem inquietude. O amor vence a inquietude. O futuro depende do amor. Teresa: O futuro depende do amor.257

No que diz respeito à segunda dificuldade anteriormente mencionada, trata-se do medo de permanecer ligados e de perder a liberdade, caso comprometam-se para sempre. Este compromisso não se parece com uma prisão ou com uma porta fechada que elimina qualquer opção futura? Quem pensa assim tem uma visão muito pobre da liberdade. A verdadeira liberdade, com efeito, está enraizada no amor, e só é possível alcançá-la quando alguém nos ama e nos convida a nos entregarmos; é uma resposta ao amor que convida a participar de uma nova vida, sempre maior que nós mesmos. Bento XVI explicou esta mesma conexão, falando de liberdade e dom: A maior expressão da liberdade não é, então, a busca do prazer, sem jamais alcançar uma verdadeira decisão. Aparentemente, esta abertura permanente parece ser a realização da liberdade, mas não é verdade: a verdadeira expressão da liberdade é a capacidade de se decidir por uma doação definitiva, na qual a liberdade, doando-se, reencontra-se plenamente a si mesma258.

De fato, somente quem pode prometer para sempre demonstra ser dono do próprio futuro, tê-lo em suas mãos e assim poder entregá-lo à pessoa amada. O que realmente escraviza não é o compromisso, mas o medo, que não deixa que sejamos donos do nosso destino e nos impede de fazer uma entrega fecunda. Podemos usar uma imagem para compreender esta conexão entre liberdade e dom de amor. Quando os alpinistas escalam uma montanha, fazem-no em cordada, ou seja, amarrados uns aos outros. Esta corda, ao invés de ser um obstáculo para a liberdade deles, é o que lhes dá a oportunidade de caminharem unidos, apoiarem-se mutuamente, 133

segurarem-se quando há risco de queda, chegar juntos à meta. Sem a corda, que representa a promessa de felicidade, os alpinistas não são livres, vagam sem direção e correm o risco de cair. Quando falta o vínculo da fidelidade, não se tem uma vida livre, mas uma “queda livre”, que acaba destruindo a existência. Porém, se considerarmos que a cordada é precedida de um guia especializado, que conhece bem o caminho e que pode orientar os nossos passos, podemos completar a imagem: estar unidos é o que orienta nossa caminhada e nos permite chegar à meta. Cristo mesmo torna-se o guia do amor humano, aquele que dirige os passos dos esposos para a pátria definitiva. Por isso, a indissolubilidade do matrimônio é o contrário de estar acorrentados. O que une o casal é o vínculo do amor, que se renova sempre, pois está sempre a caminho da meta: crescemos juntos até o infinito eterno de Deus. Longe de ser um obstáculo para a liberdade, o nó da fidelidade conjugal liberta os esposos para que possam crescer continuamente um para o outro, rumo ao horizonte que os envolve e que é maior do que eles. “Secretamente nos unimos / até formar uma coisa só / por obra destas alianças”, diz sabiamente André, em A Loja do Ourives259. Podemos concluir dizendo que o vínculo que une os esposos é irrompível porque se baseia na fidelidade mútua que afunda suas raízes no amor eterno do Criador: só assim o casal pode prometer um sim para sempre. Esta solidez do vínculo existe já no “sacramento da criação”, uma dimensão em que vivem todos os homens e mulheres. Mas no matrimônio cristão, este vínculo de indissolubilidade se reforça extraordinariamente. Com efeito, Cristo, o Esposo, assumindo em si o amor humano, leva-o à plenitude. Jesus pronuncia um “sim” à Igreja, Sua esposa, que supera infinitamente toda entrega de homem e mulher. Este amor de Cristo, com efeito, não vacila nem volta atrás. Ele não espera ser amado, mas ama por primeiro; ama até quando encontra não só indiferença, mas também ódio e rejeição. É um amor capaz de morrer por quem o persegue, de dar a própria vida pelos inimigos. É um amor que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”, um amor que nunca falha (cf. 1Cor 13,7-8). Quando dois cristãos fazem os votos nupciais, começam a participar deste amor indestrutível. A estabilidade deste vínculo, participação no vínculo indissolúvel do amor entre Cristo e a Igreja, é a verdadeira base que sustenta a fidelidade dos esposos. Isso significa que os esposos, como num passe de mágica, tornam-se seres incapazes de rejeitar, trair ou ser infiéis? Seria uma ingenuidade supor tal coisa. Não é que os esposos cristãos não devem trabalhar, unidos, para vencer as dificuldades. Acontece que passam a poder confiar na fidelidade insondável de Cristo e a nunca perder a esperança 134

de poder amar um ao outro com o Seu amor. E no sacramento da Confissão e da Eucaristia, a presença do amor de Jesus torna-se viva e concreta. O maior medo de quem ama é que seu amor seja rejeitado, é amar sem ser correspondido. Por isso, poucos se arriscam a ser o primeiro a dar, sem esperar nada em troca; não se ousa perdoar por medo de que o perdão seja rejeitado ou de que a outra pessoa volte a machucar ou trair. Por conseguinte, o amor recíproco corre o risco de bloquear-se, pois ambos os esposos esperam que o outro dê o primeiro passo, e nenhum deles deseja abandonar sua posição. Mas deste modo, como se poderá construir uma união estável que resista aos embates do tempo? O cristão tem uma resposta para esta dificuldade. Ele sabe que seu dom será sempre recebido por alguém: por Jesus, que subiu na Cruz, lugar de onde sempre nos amou mesmo sendo pecadores, de onde derramou amor em abundância sobre aqueles que O rejeitaram. Assim, podemos ousar dar o primeiro passo no amor, pois já fomos acolhidos de antemão pelo amor de Jesus. Nenhum ato de amor ficará sem resposta: Cristo estará ali para acolher e responder. Assim, podemos dizer que os esposos não se amam a partir da própria carência; seu amor mútuo nasce de uma plenitude transbordante: o dom recebido de Cristo. Agora podem amar generosamente, sem esperar que o outro os ame primeiro, assegurando, assim, a continuidade de sua aliança.

O dom de uma nova vida Além de ser para sempre, o sim dos esposos no matrimônio é um sim fecundo, aberto à vida. Para entender esta fecundidade, podemos considerar a diferença entre um fruto e um produto. O produto provém dos próprios recursos; é algo que se elabora a partir do que já se possui. Produzir é modelar o material e juntar suas partes: aqui tudo depende do produtor. O fruto, por sua vez, supera a capacidade daquele que o oferece. No fruto acontece um certo milagre: pensemos na árvore que, sendo madeira e folhas, oferece-nos frutos saborosos. O exemplo ajuda a compreender que, para poder dar frutos, é preciso participar de algo maior que si mesmos, da mesma forma que uma árvore dá frutos somente se afunda suas raízes em terreno fértil e recebe do Céu água providencial e luz abundante. O que significa isso para os esposos? Um ato de amor é fecundo somente se suas raízes se estendem não só além do próprio eu, mas também do próprio casal. O ato conjugal oferece um exemplo claro: os esposos dão um fruto que os supera infinitamente, que jamais poderiam produzir por si mesmos: o dom de uma nova vida. A

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maravilha dos pais diante de cada novo filho lembra que seu amor está enraizado no amor de Deus e que só assim poderá ser fecundo. Como afirma João Paulo II: Na verdade do sinal e, consequentemente, no ethos do comportamento conjugal, está inserido, em uma perspectiva relacionada ao futuro, o significado procriativo do corpo, isto é, a paternidade e a maternidade […]. À pergunta: “Estais dispostos a acolher com responsabilidade e amor os filhos que Deus vos quiser dar, educando-os segundo a lei de Cristo e da sua Igreja?” – o homem e a mulher respondem: “Sim”260.

Aprofundemos este ponto: o amor dos esposos dá frutos porque participa do amor de Deus. Já abordamos o assunto quando estudamos a história do Gênesis e o amor entre Adão e Eva: somente podemos amar o outro se o recebemos como presente de Deus e se sabemos que fomos confiados a ele por nosso Pai comum. Agora, com a vinda de Cristo, esta fecundidade eleva-se a um novo nível. Na redenção, realizada por Cristo e oferecida aos esposos cristãos, isso alcança a sua plenitude: marido e mulher entraram na esfera do amor que une Cristo e Sua Igreja e participam de uma entrega maior de vida. Por isso, o fruto de seu amor será sempre maior que sua contribuição e a superará radicalmente. Isso acontece mesmo quando o casal não tem filhos: o amor sempre dá um fruto, ainda que muitas vezes não seja visível. Por esse motivo, ninguém jamais poderá dizer-se “dono” de seus filhos. Assim seria se eles fossem só resultado de uma decisão dos pais, mas como o filho vem de um amor maior, que abraça os esposos e os leva para além de si mesmos, ele nunca poderá ser considerado como totalmente proveniente deles, como se só a eles devesse a sua existência. A nova vida começa numa esfera que transcende os pais. A alegria da primeira mulher – “Adquiri um homem com a ajuda do Senhor” (cf. Gn 4,1) – exprime esta verdade essencial sobre a procriação. As palavras que a mãe dos mártires Macabeus diz a um de seus filhos têm o mesmo sentido: “Não sei como é que viestes a aparecer no meu seio, nem fui eu que vos dei o espírito e a vida, nem também fui eu que dispus organicamente os elementos de cada um de vós” (2Mc 7,22). Precisamente porque a fecundidade é tão importante no amor, entendemos porque os casais que não puderam ter um filho recorrem a técnicas de reprodução artificial, como a fecundação in-vitro. É preciso respeitar a dor vivida por estes casais. No entanto, devemos explicar-lhes que estas técnicas não curam a ferida da infertilidade, mas a tornam ainda mais profunda. Por quê? A verdadeira fecundidade, dissemos, é possível quando entramos numa esfera que nos supera. É como a árvore que dá frutos porque absorve seu alimento de um solo fértil e recebe a luz do Céu. Isso é exatamente o que acontece na união conjugal: os esposos 136

entram em contato com a fonte do amor e da vida, usando uma linguagem que o Criador lhes deu; unem-se porque se recebem mutuamente das mãos de Deus. A fecundidade da união corporal revela aos esposos a presença de Deus em seu amor e lhes ensina que devem receber o filho como um presente, como um dom. Os pais não obtêm o filho como o produto de uma decisão, mas o acolhem como o fruto de um amor que é maior que eles. O que fizeram os esposos foi entregar-se um ao outro, amando-se de verdade e desta união provém o filho. Esse modo de receber o filho é o único que respeita sua dignidade pessoal, pois não o torna totalmente dependente de seus pais, como se eles o tivessem criado. A fecundação in-vitro, ao contrário, introduz uma lógica diferente na geração do filho. Tudo se realiza como se ele dependesse somente da decisão de seus pais e do desejo deles de ter uma descendência. Por conseguinte, a conexão entre ele e o Criador, fonte última do amor e da vida, não parece estar presente na ação paterna. Por isso, os pais serão tentados a tratar o filho como um produto escolhido, que vem satisfazer sua carência, e não como um dom que brota da plenitude do amor que vivem como esposos. Além disso, já que os pais tendem a considerar-se como os únicos que originaram a nova vida que geram, carregam uma responsabilidade fora do comum. Como pode um ser humano garantir a felicidade futura de sua descendência? Como poderia um pai responder à queixa de seu filho, se este lhe dissesse como Jó: “Pereça o dia em que nasci” (cf. Jó 3,3). Ao contrário, quando o filho é fruto da união conjugal, os pais têm consciência da presença divina em seu amor e podem confiar o futuro do filho à fonte da qual ele veio, sem ter que carregar o peso total da responsabilidade pelo êxito de sua vida. Deus, que deu o fruto, também cuidará para que ele cresça e amadureça. Os casais que não podem ter filhos sofrem profundamente. É preciso assegurá-los de que podem ser fecundos de forma diferente, não menos real. Com efeito, a chave da fecundidade está em aceitar o solo fértil do qual o amor dos esposos se alimenta: o amor de Deus, que sustenta sua relação. Se estes casais sem filhos permanecem em comunhão profunda com a fonte última do amor e da vida, podem entender que sua união – incluindo nela os sofrimentos – será sempre fecunda de mil e um modos. Esta fecundidade assumirá formas concretas, como, por exemplo, o modo de exercer a hospitalidade, ou a missão de assistência social, o trabalho na sociedade ou a adoção de filhos.

Educar no amor A missão dos pais não termina quando nasce o filho. O fruto de seu amor deve 137

crescer e ser educado no seio deste mesmo amor261. O homem e a mulher são chamados a desempenhar papéis distintos, ambos imprescindíveis, na vida de seus filhos. Karol Wojtyla fala desta colaboração em sua obra Raios de Paternidade: A mulher sabe muito mais sobre a geração do que o homem. Este saber lhe vem sobretudo da experiência de dor que acompanha o parto. Ambos encerram seu mistério. E, apesar disso, a maternidade é expressão da paternidade. Precisará sempre voltar ao pai para tomar dele tudo aquilo de que é expressão262.

Nesta passagem, Karol Wojtyla supõe que o vínculo de uma mulher com a nova vida esteja inscrito em seu próprio corpo. É então que se manifesta a consciência de que esta vida é especial: o filho tem uma dignidade que não pode ser reduzida aos demais bens deste mundo, um laço especial com o Criador. Assim diz a primeira mulher, a mãe de todos os viventes: “Adquiri um homem com a ajuda do Senhor” (cf. Gn 4,1). Preservar esta união entre a sexualidade e a fonte primária da vida é, de fato, tarefa confiada especialmente à mulher. Diz João Paulo II: Este modo único de contato com o novo homem que se está formando cria, por sua vez, uma atitude tal para com o homem – não só para com o próprio filho, mas para com o homem em geral – que caracteriza profundamente toda a personalidade da mulher. Considera-se comumente que a mulher, mais do que o homem, seja capaz de atenção à pessoa concreta, e que a maternidade desenvolva ainda mais esta disposição263.

O Papa acrescenta em seguida que o pai vive a relação com seu filho de forma distinta da mãe. Trata-se de uma relação, por assim dizer, exterior, pois não sente no próprio corpo a união com a nova vida. “O homem – mesmo com toda a sua participação no ser pai – encontra-se sempre ‘fora’ do processo da gestação e do nascimento da criança e deve, sob tantos aspectos, aprender da mãe a sua própria ‘paternidade’”264. Tal distância torna-se algo imprescindível na tarefa de ser pai. O pai deve estar a uma certa distância para dar ao filho a possibilidade de crescer, de abandonar o colo materno para amadurecer e seguir adiante na vida. Naturalmente, não se trata de uma distância indiferente, mas de um espaço aberto no amor, para que o filho possa crescer, caminhando por si mesmo na senda da existência. Um quadro de Van Gogh com uma cena da vida familiar ilustra esta complementaridade entre pai e mãe. A tela apresenta uma menina que está aprendendo a dar seus primeiros passos265. Num lado do quadro está a mãe, que abraça a filha; no outro, distante alguns metros, o pai, com os braços estendidos, espera para receber a menina. Esta obra de Van Gogh ilustra o que estamos dizendo: toda criança é chamada a percorrer o espaço entre estes dois abraços: o da mãe, que a sustenta desde que entra na 138

existência, e o do pai, que a espera à distância. Notemos que, em ambos os casos, tratase de um verdadeiro abraço: um próximo e outro distante. Quer dizer que não há indiferença no pai, mas abertura que sustenta, protege e ajuda a criança a caminhar, confiante de que, uma vez crescida e amadurecida, encontrará o amor paterno no final do caminho. A fecundidade do matrimônio e a tarefa da educação que temos descrito até agora é a participação na obra do Criador, segundo o que João Paulo II chama de “sacramento da criação”. Já no “sacramento da redenção”, quando os esposos se unem em Cristo, confiase aos pais um dom que aperfeiçoa sua capacidade de dar frutos. Podem agora participar do mesmo amor fecundo com o qual Cristo dá vida a cada cristão. E por isso, não só cooperam com Deus no dar à luz e educar uma criança, mas também transmitem a vida divina que começa aqui na terra e floresce no Céu. Os esposos cristãos tornam-se, portanto, frutíferos na vida eterna: Se depois se trata do matrimônio pode deduzir-se que – instituído no contexto do sacramento da criação na sua globalidade, ou seja, no estado da inocência original – devia servir não só para prolongar a obra da criação, ou seja, da procriação, mas também para difundir sobre as gerações ulteriores dos homens o mesmo sacramento da criação, isto é, os frutos sobrenaturais da eterna eleição do homem por parte do Pai no eterno Filho: aqueles frutos com que o homem foi gratificado por Deus no ato mesmo da criação”266.

O problema dos anticoncepcionais A união entre homem e mulher se abre ao dom de uma nova vida. Todavia, pode acontecer que, por motivos graves, seja aconselhável que os esposos não acolham um novo filho em sua família, por um período de tempo mais ou menos longo. O que podem fazer diante desta situação? Uma solução muito difundida é o uso de métodos anticoncepcionais. Assim como modificamos o nosso ambiente para tornar a vida mais confortável, por meio da tecnologia, por que não aplicar a mesma técnica a nossos corpos e evitar consequências indesejáveis do ato conjugal? Para responder a isso, precisamos recordar o que dissemos sobre o corpo e seu significado. O corpo tem um significado unitivo (ordenado à união dos esposos), procriativo (aberto a gerar uma nova vida) e filial (o corpo exprime a relação do homem com seu Criador e Pai). Estas três dimensões são inseparáveis, pois, em sua unidade, constituem o dinamismo do amor. O homem e a mulher se amam verdadeiramente só quando vão além de si mesmos num dom recíproco (significado unitivo); este dom é possível porque os esposos enraízam seu amor no Criador comum, fonte do amor e da 139

vida (significado filial). Deste modo, uma vez que o amor esponsal está conectado à fonte do amor, como se fosse um solo fértil de onde ele brota, a união dos esposos pode dar um fruto que vai além dos cônjuges (significado procriativo). O que acontece, então, quando um casal decide tornar infértil o ato conjugal mediante o uso de anticoncepcionais? O homem e a mulher eliminam o significado procriativo do corpo, pensando que assim poderão unir-se sem dificuldades e exprimir seu amor conjugal. Ambos acreditam que haja um conflito entre o significado unitivo e procriativo do corpo e pensam que só eliminando a abertura à vida podem manter viva sua união. Assim fazendo, porém, não percebem que os significados do corpo não podem ser separados, porque juntos formam um único dinamismo, o dinamismo do amor. Eliminar um dos significados do corpo significa, por sua vez, agir contra os outros, dificultando o movimento do amor. De fato, quando se elimina o significado procriativo do corpo, o dom total de si mesmo a outra pessoa torna-se impossível. Então, aparece algo que os esposos não querem compartilhar, algo que não querem dar nem receber do outro. É o dom da fecundidade, a capacidade do homem de tornar a mulher mãe e da mulher de tornar o homem pai. Na contracepção, os esposos não querem dar à outra pessoa (nem receber dela) este presente. Não é que todo ato conjugal deve levar ao nascimento de um filho, mas deve estar aberto a receber este dom, a paternidade ou a maternidade. Quando os esposos não querem compartilhar este dom, a totalidade do amor, própria da vida conjugal, desaparece de sua união. A partir daí podemos ver como todas as dimensões do amor esponsal são chamadas em causa. Em primeiro lugar, suprimir o significado procriativo significa eliminar também o significado filial do corpo, sua ligação com o Criador, que é a fonte do amor mútuo, o dom original que faz com que os esposos possam doar-se um ao outro. Sabemos, com efeito, que Deus está presente no amor dos esposos por meio da linguagem escrita em seus corpos. Esta linguagem não é invenção absoluta dos esposos, mas resposta à voz de Deus, que lhes chama ao amor. A aceitação da linguagem do corpo, portanto, implica que os esposos estejam enraizados no amor do Criador e, por isso, é uma condição indispensável para uma verdadeira união. Ao suprimir o significado procriativo do corpo com a intenção de tornar infecunda a união, os esposos se separam também do amor original, do Criador, no qual se baseia seu amor mútuo. É como um agricultor que, para evitar que a árvore dê frutos, decide cortar suas raízes: sem raízes a árvore perde sua fonte de alimento e de água. Da mesma forma, quando os esposos

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excluem o significado procriativo do corpo através da contracepção, tendem a excluir também a presença de Deus de sua relação, ainda que não tenham consciência disso. Com tal escolha, também a comunhão entre os esposos é prejudicada. Isso porque o amor entre o homem e a mulher permanece vivo somente se não se fecha em si mesmo, mas se abre à esfera transcendente que os abraça e torna frutífera sua união. De fato, quando a relação com Deus Criador é comprometida, torna-se mais difícil entender a dignidade da outra pessoa, e cresce a tentação de tratá-la como objeto. Também se torna mais árduo doar-se ao cônjuge, pois todo dom de si mesmo baseia-se na prévia aceitação de si mesmo das mãos do Criador. Pode-se concluir dizendo que, uma vez que se põe em dúvida a união com o Criador, o amor dos esposos tende a transformar-se num amor egoísta, voltado para si mesmo. Isso leva os esposos, pouco a pouco, a mover-se segundo o desejo de satisfazer o próprio impulso sexual, agindo segundo uma lógica interna de necessidade instintiva e não de dom recíproco.

Métodos naturais para regular a fertilidade Os esposos podem ter razões sérias para retardar a acolhida de um novo filho na família. A resposta para este problema, porém, não é a contracepção, mas os métodos naturais para regular a fertilidade. Estes métodos não são somente uma alternativa técnica para alcançar o mesmo objetivo dos anticoncepcionais, como falássemos de um método ecológico (e, neste sentido, “natural”) em vez de um artificial. Não: se falamos de um método natural não é porque se desconfie da tecnologia (capacidade própria do homem e de seu modo de reger a criação), mas porque se respeita a verdadeira natureza do amor humano, ou seja, a verdade da comunhão pessoal entre os esposos. Para entender melhor, recordemos algo já mencionado. Primeiramente, os amantes não podem respeitar sua mútua dignidade se não percebem a verdade do amor, que consiste no dom total de si mesmo. Por isso, somente se os amantes se recebem mutuamente como dom do Pai são capazes de dar-se totalmente um ao outro. Sendo assim, receber o amor humano como dom de Deus implica o respeito da linguagem do corpo com que Ele, o autor desta linguagem, exprime a si mesmo e Seu amor fecundo. Os casais que têm dificuldades de acolher mais filhos em sua família encontram-se diante de uma situação nova em sua relação, que requer uma mudança na forma de exprimir seu amor. O problema da contracepção é que nela não se respeita a verdade do amor, ou seja, a totalidade do dom recíproco. Os esposos não se doam totalmente, pois

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não querem entregar ao outro o dom da fecundidade. Por isso, devem silenciar a linguagem do Criador em seus corpos, suprimindo o significado procriativo de sua sexualidade. Por conseguinte, a contracepção não permite integrar o desejo sexual na verdade total do amor e acaba distorcendo o dom recíproco dos esposos. Com os métodos naturais, ao contrário, os esposos mudam a forma de exprimir seu amor, mas sem negar a totalidade da entrega. O que fazem não é tornar estéril a união, mas mudar seu comportamento sexual: adaptam a expressão de seu amor ao ciclo de fertilidade da mulher, aceitando períodos de abstinência. Deste modo os esposos são capazes de doar-se totalmente um ao outro, assim como são, sem eliminar nenhum elemento próprio do dom de si mesmo. Os esposos que usam métodos naturais denotam verdadeira reverência pela linguagem do corpo e por seu Criador. Deste modo, os métodos naturais mantêm o contato dos esposos com a fonte do amor, que propicia o verdadeiro amor entre eles. Agora entendemos por que João Paulo II fala de uma diferença antropológica e moral entre a contracepção e os métodos naturais267. A diferença antropológica refere-se ao significado da sexualidade: nos métodos naturais, a sexualidade é vista como ocasião de doação total ao outro. Por isso, ao usar este método, os esposos estão dispostos a mudar seu comportamento sexual, adaptando-o aos ritmos da fecundidade para salvaguardar a totalidade do dom, que reconhecem como o significado central da sexualidade humana. Ao contrário, a contracepção promove uma mentalidade de que a sexualidade não é tanto a ocasião de um dom de si, mas uma necessidade a que estão sujeitos o homem e a mulher. Por isso, os casais que decidem pelos anticoncepcionais não querem mudar seu comportamento sexual e insistem em manter relações, ainda que para isso tenham que eliminar uma dimensão do dom total de si mesmos. Esta diferença antropológica entre os métodos naturais e os anticoncepcionais traz consigo uma profunda diferença moral, referida ao modo em que os esposos constroem sua ação. Os esposos que usam anticoncepcionais têm grande dificuldade em mudar seu comportamento sexual porque vivem sua sexualidade como uma necessidade imposta sobre eles. Com os métodos naturais, o casal é capaz de mudar a expressão sexual de seu amor porque seu desejo sexual não os domina, já que foi integrado na verdade do amor pela outra pessoa. Desta forma, a relação sexual não se apropria de todo o espaço interno da relação; os esposos são capazes de chegar a uma maturidade que cresce numa verdadeira comunicação pessoal. Em outras palavras, o uso de métodos naturais salvaguarda o dom total de si mesmo e comporta uma educação na castidade. Assim, os

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esposos se capacitam para dar forma à sua relação segundo a verdade do amor, em qualquer situação da vida em que se encontrem. Vemos assim que os métodos naturais não são somente aplicação de uma técnica, mas incluem uma educação integral dos esposos em sua capacidade de perceber a verdade do amor e a necessidade da entrega total da pessoa. A prática destes métodos transforma os esposos e seu amor, ajudando-os a amadurecer no mútuo respeito e na compreensão de sua vocação. A educação sexual se torna um assunto muito mais rico e valioso que um simples aprendizado da mecânica do ato sexual. A verdadeira educação sexual não consiste em conhecer uma série de técnicas, mas em integrar todas as dimensões da pessoa de acordo com a verdade do amor. Esta educação promove a pureza e a reverência pelo próprio corpo. Ao unir esta virtude com o dom de piedade, João Paulo II nos faz entender que o nosso corpo é sagrado, porque é templo de Deus. Este dom da piedade, conforme escreve o Papa: Sustenta e desenvolve nos cônjuges uma sensibilidade particular para tudo o que em sua vocação e convivência leva o sinal do mistério da criação e da redenção: para tudo o que é um reflexo criado da sabedoria e do amor de Deus. Portanto, esse dom parece iniciar o homem e a mulher, de modo particularmente profundo, no respeito aos dois significados inseparáveis do ato conjugal268.

A caridade conjugal e o chamado à santidade Este capítulo nos mostrou que o caminho do matrimônio, caminho de entrega fiel e fecunda, é um caminho para Deus, em que Ele está sempre presente. Por isso, é um caminho de santidade. De fato, a santidade consiste precisamente na comunhão com Deus, o único que é santo. Os esposos podem percorrer esta via precisamente por meio da entrega recíproca, na qual se dão e recebem como dom do Criador. Deste modo, uma das consequências mais importantes do ensinamento de João Paulo II sobre o matrimônio é que os casais não precisam buscar o caminho da santidade fora de sua própria relação. Para o Papa, o amor recíproco dos esposos é já uma estrada para o Pai. O dom total que o matrimônio requer deles é seu modo específico de viver o Evangelho e de se tornarem partícipes da natureza divina. Como temos visto, quando se amam “no temor de Cristo”, os esposos não só se dão um ao outro, mas se comunicam o Espírito Santo, o próprio amor de Cristo, Filho e Esposo, que une os cônjuges entre si e a Deus. Em seu romance Kristin Lavransdatter, a escritora norueguesa Sigrid Undset, Prêmio Nobel de literatura, retrata este aspecto sacramental do amor humano com uma imagem muito evocativa. Nele a autora ilustra como o amor humano contém em si a presença de 143

Deus e como Deus conduz o homem a Ele mediante este sacramento. Antes de morrer, Kristin, a protagonista do romance, tira do dedo sua aliança de casamento. O anel é para ela um símbolo da relação com seu marido, Erlend, e a faz recordar todas as dores e alegrias de sua vida como esposa e mãe de sete filhos. Enquanto Kristin espera o sacerdote que lhe traz a comunhão, medita sobre a marca que o anel deixou em seu dedo: O último pensamento que veio à sua mente foi que iria morrer antes que a marca pudesse desaparecer: isso a fazia feliz. Parecia-lhe um mistério que não podia compreender, mas tinha a certeza de que Deus a sustentara com firmeza no pacto feito com ela [...], com o amor que fora derramado sobre ela; e [...] esse amor que lhe permaneceu dentro, trabalhara nela como o sol sobre a terra [...] debaixo do brilhante anel de ouro, uma marca tinha sido imprimida misteriosamente em seu dedo, mostrando que era serva de Deus, propriedade do Senhor e Rei, que viria agora, pelas mãos consagradas do sacerdote, para libertá-la e salvá-la269.

Começamos este capítulo com a imagem das alianças de casamento. Elas são o selo real da presença e da ação de Deus que o vínculo matrimonial grava na vida dos esposos. Terminamos com uma imagem complementar: a da marca imprimida na carne por uma aliança nupcial, como o sinete deixa sua marca na cera. Através desta aliança, os traços de Deus foram gravados no corpo do homem e da mulher. É um sinal da ajuda que os esposos deram um para o outro, ao longo do caminho rumo à casa do Pai. Esta imagem prepara o nosso próximo capítulo, no qual estudaremos a ressurreição da carne e suas consequências para a teologia do corpo.

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CAPÍTULO 9 TESTEMUNHAS DA PLENITUDE DO AMOR: A VIRGINDADE CRISTÃ E O DESTINO FINAL DO CORPO

Começamos este livro comentando as primeiras páginas do Gênesis, nas quais se encontram o plano inicial de Deus para o homem e as experiências originais de Adão e Eva. Nelas encontramos também o fundamento de toda experiência com a qual o homem edifica sua vida. Sem dúvida, ainda há muitas perguntas sem respostas, pois não basta voltar às origens para contemplar todo o projeto de Deus para o homem. É necessário olhar também para o fim, para o ponto onde seus passos alcançam o destino definitivo. Podemos, de algum modo, conhecer nossa meta, assim como conhecemos o princípio? À primeira vista, a resposta parece negativa, pois o futuro parece mais oculto e misterioso que o passado. Estamos certos de que houve uma origem e de que seus efeitos estão presentes em nossa vida, do mesmo modo que, ao tocar no tronco de uma árvore, temos certeza de que suas raízes estão firmes no solo. Mas o fim, o destino último, parece-nos etéreo, intangível, assim como no inverno é difícil imaginar os frutos de uma planta. No entanto, como afirma João Paulo II, o futuro está tão presente em nossa experiência de vida quanto o princípio. Segundo o Papa, que fala da cena do juízo final, representada por Michelangelo na Capela Sistina, a nossa meta não está completamente escondida, mas desde já projeta sua luz sobre a viagem do homem, sobre o caminho do amor. Exatamente no centro da Sistina, o artista exprimiu este fim invisível no visível drama do Juízo. E este invisível fim tornou-se visível como o auge da transparência270.

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João Paulo não era ingênuo. Ele bem sabia que este “fim invisível” não é só “o auge da transparência”, mas também a região do desconhecido, que projeta sua sombra sobre nossa viagem: por acaso nosso percurso não nos conduz para a morte desfigurante? Por isso, o Papa acrescenta: E assim passam as gerações. Chegam nus ao mundo e nus voltarão à terra da qual foram tirados. “Pois tu és pó e ao pó tornarás”. O que teve forma, tornou-se sem forma. O que era vivo, eis aqui morto. O que era belo, eis aqui reduzido à feiura do despojo271.

Portanto, não devemos nos iludir sobre a última fronteira que nos aguarda: a morte. Todavia, é bom lembrar que este destino não exprime toda a verdade sobre o homem e sobre seus passos no tempo. Por esse motivo, o poema faz ressoar, em seguida, uma nota de esperança: Mas não morro completamente, pois o que é indestrutível em mim permanece!272

Sempre que refletimos sobre nosso destino, perturbam-nos perguntas que podem provocar ansiedade. O que restará dos esforços feitos para percorrer a estrada do amor? O que ficará da alegria que os amantes encontram em sua união, do prazer da mãe diante do dom de uma nova vida, da felicidade que sentimos e das provas que superamos? “O que é indestrutível em mim, permanece”. Existe uma resposta, uma esperança, pela qual vale a pena empreender a viagem da vida: o nosso corpo – e com ele o nosso amor – é chamado à ressurreição. O que significa esta promessa?

O corpo: testemunho de vida e de morte No livro do Gênesis, Deus adverte o homem de que morrerá se comer da árvore do conhecimento do bem e do mal (cf. Gn 2,17). Esta consciência de ser mortal acompanha Adão desde seus primeiros passos na terra, e é aquilo que o diferencia dos animais. Onde se encontram tumbas, sabe-se que viveram homens. A pergunta sobre a morte entra na experiência original da solidão diante de Deus, da qual falamos. E o testemunho principal desta experiência é o corpo humano: a doença e o envelhecimento nos lembram de que iremos morrer e de que não temos em nós mesmos a fonte da vida. A Bíblia diz que o homem é “carne, vento que vai, sem nunca voltar” (Sl 78,39). 146

A experiência do amor parece evidenciar ainda mais a fragilidade de nossa vida no corpo, pois o amor duplica nosso medo: agora não tememos somente por nós mesmos, mas também pela pessoa amada. Esta dupla ansiedade faz surgir a pergunta que o Coro dirige a André e Teresa em A Loja do Ourives: Como fará, Teresa, para permanecer em André para sempre? Como fará, André, para permanecer em Teresa para sempre? Já que o homem não perdura no outro e o homem não basta?273

O corpo, portanto, lembra ao homem que ele deve morrer. Testemunha esta verdade a cada doença e a cada novo mal-estar. Mas é esta a única mensagem que comunica? De modo algum: o corpo não fala só de morte, mas principalmente de vida. Para entender o porquê, recordemos o que já falamos sobre sua linguagem. Graças a ele, a vida é abertura e relação, incapaz de se fechar numa atitude de autossuficiência. O corpo nos diz que estamos no mundo e que somos capazes de compartilhar a vida com outras pessoas, criando laços de unidade. E é precisamente por meio desta comunhão com os outros que a existência pode crescer e ser desfrutada mais abundantemente. Em suma, o corpo fala do amor, no qual consiste a vida verdadeira. A sua mensagem não é só morte e debilidade, mas também abertura para a plenitude. Esta visão da vida como comunhão é parte da herança do Antigo Testamento. Com efeito, viver, para os hebreus, era entrar numa rede de relações: com o mundo, com os outros, com Deus. E já que entendiam o corpo como a base desta relação, parecia-lhes difícil, num primeiro momento, conceber uma vida depois da morte. O raciocínio deles não é difícil de seguir: se a vida é a relação através da qual nos abrimos ao mundo e aos demais homens, e esta relação se consolida em nossos corpos, então sua morte parece pôr fim à relação com os outros e com Deus e eliminar todo possível sentido de uma verdadeira vida no além: “Não é o Xeol que te louva, nem a morte que te glorifica” (Is 38,18). Não surpreende, portanto, que a Bíblia comece imaginando a vida no além como um lugar, o Xeol, onde as sombras dos homens pululam dotadas de uma existência à metade, sem poder ver a luz nem louvar a Deus. Entretanto, deve-se lembrar que a abertura do corpo para os outros e para o mundo é, em última análise, uma abertura para Deus. Como dissemos, a solidão original do homem não lhe consente encontrar descanso em nenhuma das criaturas que o rodeiam. Isso acontece porque o homem, ao contrário dos animais, é chamado a uma amizade com 147

Deus, o verdadeiro início e fim de sua viagem vital. Pois bem, se a vida do homem é relação, e a relação que funda todas as demais é a amizade com Iahweh, então se abre para o homem a possibilidade de uma vida duradoura, que vai além da última palavra da morte, pois Deus é imortal e fonte de vida. Por isso, tem que ser verdade o que diz o Salmo: “Minha carne e meu coração podem se consumir: a rocha do meu coração, a minha porção é Deus, para sempre!” (Sl 73,26). Assim, o corpo testemunha a relação indestrutível com Deus, que anuncia o triunfo da vida sobre a morte. Vemos de novo que na carne não se encontra só um indício de debilidade, mas também uma esperança de vida para sempre. Refletindo sobre esta relação com Deus, que confere ao homem a vida, o Antigo Testamento descobriu pouco a pouco a verdadeira natureza da imortalidade: a ressurreição do corpo propiciada pela fidelidade do Deus da Aliança. Em resposta aos saduceus e à tentativa deles de desacreditar a esperança bíblica, Jesus reafirma esta esperança: “Quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o que Deus vos declarou: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó? Ora, ele não é Deus de mortos, mas sim de vivos” (Mt 22,31-32). Por detrás da resposta de Jesus se encontra, de novo, a ideia bíblica de vida. Se Deus estabeleceu uma aliança com os patriarcas é porque ligou Sua própria identidade, Seu próprio nome, à história destes homens concretos, Abraão, Isaac e Jacó. Ora, sendo Ele o Deus da vida, estes homens não podem morrer, já que estão em relação com Ele. Como diz João Paulo II em seu Tríptico Romano, o fim do homem é retornar à fonte de onde veio: “O fim é invisível, como o princípio. / O Universo foi criado pelo Verbo e ao Verbo retorna”274.

Mais forte que a morte é o amor Vimos, no terceiro capítulo, que o amor de Adão e Eva revela uma terceira presença, a do próprio Deus. É o doador primário, Aquele que confiou a mulher ao homem e o homem à mulher. Sendo assim, o amor humano traz consigo uma promessa de imortalidade; se é Deus quem une os amantes entre si, então o amor, quando assediado pela corrupção, pode contra-atacar para romper o cerco que tenta oprimi-lo: “O amor é forte como a morte […], é uma chama de Iahweh” (Ct 8,6). Como escreveu Karol Wojtyla, “o amor não corre par a par com a morte, mas a ultrapassa”275. Eis aqui de novo o paradoxo do corpo: enquanto fala de fragilidade, dá esperanças de triunfar sobre a morte: “O corpo esconde em si a perspectiva da morte, a qual o amor não quer submeterse. O amor é, de fato, […] ‘uma chama divina’ que ‘as torrentes não podem apagar’, ‘nem os rios afogar’” (Ct 8,6-7) . 148

O livro de Tobias nos oferece uma dramática descrição desta luta entre amor e morte. O protagonista, Tobias, casa com Sara, cuja história é marcada por uma maldição. Com efeito, seus sete maridos anteriores haviam morrido, assassinados pelo demônio Asmodeu na noite de núpcias. Tendo entendido que seu amor está ameaçado por forças destrutivas, Tobias e Sara invocam a proteção de Iahweh, confiando que Aquele que no princípio do mundo abençoou o matrimônio manteria para sempre Sua promessa: Tobias levantou-se do leito e disse a Sara: “Levanta-te, minha irmã! Oremos e peçamos a nosso Senhor que tenha compaixão e nos salve.” Ela se levantou e começaram a orar e a pedir para obterem a salvação. Ele começou dizendo: “Bendito sejas tu, Deus de nossos pais, e bendito seja teu Nome por todos os séculos dos séculos! Bendigam-te os céus e tua criação inteira em todos os séculos! Tu criaste Adão e para ele criaste Eva, sua mulher, para ser seu sustentáculo e amparo, e para que de ambos derivasse a raça humana. Tu mesmo disseste: não é bom que o homem fique só; façamos-lhe uma auxiliar semelhante a ele. E agora, não é por prazer que tomo esta minha irmã, mas com reta intenção. Digna-te ter piedade de mim e dela e conduzir-nos juntos a uma idade avançada!” E disseram em coro: “Amém! Amém!” E se deitaram para passar a noite (Tb 8,4-9).

Tobias e Sara nos recordam que a bênção original de Deus sobre o amor é mais poderosa do que as forças que procuram destruí-lo. O selo de Deus confere ao amor humano uma força capaz de vencer a morte. Assim dizia João Paulo II: “O que é indestrutível em mim, permanece”276. Entendemos agora o que isso significa: o indestrutível no ser humano é sua relação com a fonte da vida, descoberta no encontro amoroso entre o homem e a mulher. O amor aparece assim como uma participação no Deus eterno. Eis porque, como diz Gabriel Marcel: “Amar é dizer ao outro: tu não morrerás”277. No entanto, surge logo uma objeção. Se a bênção e a promessa de Deus fortalecem o amor para que desafie a morte, não parece que esta termina por vencer sempre a batalha e por pronunciar a última palavra? Não nos separa brutalmente daqueles que amamos? O corpo, que nos momentos mais felizes de comunhão pressente a eternidade em que desemboca nossa vida, também nos revela o inevitável da nossa doença e morte: a nossa separação. O corpo parece um recipiente frágil demais para conter em si a imortalidade que nos promete. Existe algum modo de escapar deste dilema? Temos que admitir que o amor humano é incapaz de resolver o problema que ele mesmo nos propõe. Isso, porém, não deveria admirar-nos. Não é parte integrante da essência do amor? De fato, trata-se de uma lei que descobrimos pouco a pouco: em cada momento crucial do percurso, o crescimento do amor depende de um encontro surpreendente que nos leva para além de nós mesmos. Se a existência do homem é abertura para o mundo e para os outros, escuta atenta da realidade que convida a 149

descobri-la, é normal que seu último passo pela terra dependa também desta abertura para o Alto. Diante da morte, só nos resta olhar para o Céu, confiando que de lá nos virá o auxílio. Mas este olhar seria só um simples desejo, uma última atitude desesperada para não ter que enfrentar o vazio e o nada? Ou a esperança tem uma base sólida que a sustenta, como a âncora que é lançada para cima e sustenta a escalada do alpinista?

Filhos para sempre Para um cristão, a resposta é clara: a fonte da nossa esperança é a ressurreição de Cristo. Os padres da Igreja sabiam que a boa notícia do Evangelho cristão não é apenas a sobrevivência da alma. Os antigos filósofos, como Platão e Pitágoras, já tinham defendido esta doutrina, sustentada também pelos cristãos. A novidade celebrada pelos padres era a ressurreição do corpo. Assim como Jesus ressuscitou dos mortos, nossos corpos frágeis e humildes também ressuscitarão com Ele na glória. É esta a alegria cristã: o caminho do amor, que o nosso corpo nos revela e abre, não é truncado pela morte, mas é chamado a ressuscitar e tornar-se perfeito. A ressurreição de Cristo remove a pedra do sepulcro para que possamos respirar um ar puro. Como é possível esta nova esperança? Voltemos por um momento à vida terrena de Jesus. Já no Antigo Testamento, Deus mostra Seu desejo de fazer uma aliança eterna com o homem. O que ninguém suspeitava era que, para fazer isso, chegaria ao extremo de enviar Seu próprio Filho, Seu Filho único, que pertence ao Seu mesmo ser divino. Até agora, Iahweh era o “Deus de Abraão, Isaac e Jacó”, que unia Sua essência com a história daqueles homens. A partir de agora, chamar-se-á “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Cor 1,3). A decisão de Deus, que quis vincular Sua identidade aos nomes dos patriarcas, ratifica-se agora com o envio de Sua própria Palavra. Através da Encarnação, Deus se vinculou para sempre com a história humana, que uniu à sorte de Seu próprio Filho. Em que consistiu a vida de Jesus na terra? Sua história é a história do Filho de Deus, Aquele cujo mistério mais profundo é cumprir a vontade de Seu Pai. Todo Seu ser se concentra no Pai, olha para Ele, depende Dele. Pois bem, agora esta mesma vida de relação, esta vida filial, realiza-se num corpo humano; o Filho caminhará sobre a terra, cansar-se-á no caminho, sentar-se-á fatigado para beber junto a um poço. Isso contradiz Seu ser eterno de Filho de Deus? De modo algum, pois o corpo tem em si um significado filial; o corpo indica o Pai e O faz presente. É por isso que Cristo pode entrar neste espaço. Em Jesus, o corpo do homem falará com insuperável clareza sua linguagem de comunhão com Deus e com os homens. 150

Vamos agora dar mais um passo em nosso caminho. A vida verdadeira só é possível para quem permanece em relação com Deus, como Seu filho. Isso nos garante que a imortalidade é possível e não só um sonho inacessível. Pensemos como foi isso para Jesus. Cada passo Seu no mundo, à medida em que realizava o que o Pai pedia, era um passo a mais para a vida eterna. O Filho vivia no corpo Sua obediência e, deste modo, tornava imortal Sua carne. É verdade que Cristo compartilhou nossos sofrimentos e nossas dores; que Seu corpo foi sujeito à paixão e à morte. Os golpes e as chicotadas dos soldados tiravam aos poucos o hálito vital de Seu corpo. Mas, ao viver o Seu suplício como obediência ao Pai e como amor aos homens, cada golpe O aproximava ainda mais à vida, pois tornava Sua existência terrena mais relacional, mais aberta a Deus, mais eterna... A cruz, sobretudo no momento de máxima dor e morte, também é a culminância da obediência de Jesus, o ponto em que Sua vida floresce para a eternidade. O corpo fala, portanto, duas linguagens: a da decadência até a tumba e a da ascensão ao Pai. E como Cristo era o Filho eterno de Deus, somente este último idioma poderia triunfar: o Pai ressuscitará Jesus. Então, podemos dizer, que a obediência filial de Cristo ao Pai era como um semear de imortalidade em Sua própria existência corpórea, um semear que se estendeu por toda a Sua vida. A ressurreição pôs o selo definitivo sobre esta ascensão de Cristo ao Pai. A Páscoa trouxe o fruto maduro do que foi Sua vida. Ao ressuscitar Seu Filho dos mortos, o Pai selou a filiação em Seu corpo, feito agora transparência de Deus. Por isso, São Pedro pôde interpretar o Salmo 2, que fala de um nascimento, como profecia da ressurreição de Jesus. Tratava-se de uma nova vinda do Filho de Deus na carne: “Quanto a nós, anunciamo-vos a Boa Nova: a promessa, feita a nossos pais, Deus a realizou plenamente para nós, seus filhos, ressuscitando Jesus, como também está escrito nos Salmos: Tu és meu filho, eu hoje te gerei” (At 13,32-33). Como afirma Tertuliano, falando da ressurreição final, “chamou-os de ‘filhos da ressurreição’, pois, de algum modo, pela ressurreição, haveriam de nascer”278. Agora entendemos a razão de tudo isso. Na ressurreição, a carne de Cristo torna-se a fonte de onde brota, sobre toda a raça humana, o amor vivificante que habita Seu corpo filial. O que acontecerá, realmente, quando Cristo ressuscitar nossos corpos? De acordo com São Paulo, receberemos um “corpo espiritual” (cf. 1Cor 15,44). Estamos acostumados a considerar o espírito como oposto à matéria, e o corpo como meramente material. Eis porque não entendemos a frase de Paulo: a expressão “corpo espiritual” nos parece uma contradição, como se falássemos de um fantasma em estado gasoso. Não é este o pensamento de São Paulo. Em primeiro lugar, o espírito refere-se ao Espírito 151

Santo, que é o amor de Deus, Sua presença entre os homens. Em segundo lugar, o corpo é abertura, relação, convite a entrar em comunhão com os outros e com Deus. Deste ponto de vista, a contradição desaparece. Espírito e corpo estão de acordo, pois o Espírito é o amor divino, e o corpo é a abertura a este amor. Por isso, a vinda do Espírito sobre nosso corpo não o destrói, mas o leva à perfeição e completa seu significado original. Um corpo espiritual é um corpo pleno, de máxima beleza e solidez; sua capacidade de amar é elevada ao mais alto grau279.

Um amor ressuscitado Na ressurreição, o corpo de Jesus nos mostra totalmente o Pai: é a plenitude do sentido filial do corpo. Porém, Jesus também é o Esposo: Sua entrega a Deus acontece através de Sua entrega à Igreja, no ato de morrer por aqueles que o Pai Lhe confiou. Por isso, Seu corpo ressuscitado torna-se também expressão de Seu amor pelos homens. O próprio Senhor no-lo assegura, na manhã de Páscoa, dizendo a Madalena: “Vai, porém, a meus irmãos e dize-lhes: Subo a meu Pai e vosso Pai; a meu Deus e vosso Deus” (Jo 20,17). Jesus, filho de Deus, chama os homens de irmãos. Ao revelar a paternidade de Deus, Cristo estabelece também a fraternidade entre os homens. Por isso, João Paulo II diz que com a ressurreição se dará a comunhão perfeita. Cada um será si mesmo por estar totalmente aberto aos outros: Devemos pensar na realidade do “outro mundo”, nas categorias da redescoberta de uma nova e perfeita subjetividade de cada um, e ao mesmo tempo da redescoberta de uma nova, perfeita intersubjetividade de todos. De tal modo, esta realidade significa o verdadeiro e definitivo complemento da subjetividade humana, e, nesta base, o definitivo complemento do significado “esponsal” do corpo280.

As duas dimensões, a do corpo filial, que indica o Pai, e a do corpo nupcial, que se abre ao cônjuge, estão interligadas. Tendo recebido tudo do Pai, Jesus é, por sua vez, capaz de entregar tudo à Igreja, Sua Esposa. Precisamente porque o corpo ressuscitado de Jesus é totalmente filial, pode tornar-se também totalmente nupcial. Deste modo, a ressurreição de Cristo leva à plenitude o significado nupcial do corpo. Além disso, Cristo levará a experiência nupcial de Adão e Eva a níveis inesperados e, assim fazendo, a transformará. O primeiro casal foi chamado a viver o dom esponsal como entrega exclusiva a uma só pessoa. Deveriam dar-se totalmente um ao outro, e isso impedia que outros participassem na mesma relação. Por meio desta exclusividade, cada esposo exprimia que a outra pessoa era única e irrepetível, assim como exprimia que

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Deus, mistério absoluto para o qual caminham unidos, é um só. A novidade de Cristo está no ser capaz de oferecer Seu dom nupcial “por muitos”, sem por isso deixar de entregar-se por cada um, em Sua irrepetível originalidade. Na Eucaristia, com efeito, o corpo de Cristo é entregue “por mim”, como pessoa única e irrepetível (cf. Gl 2,20) e, ao mesmo tempo, “por todos os homens”, que se convertem em irmãos, por participarem no mesmo corpo. Através da Eucaristia, o Senhor Ressuscitado comunica Sua vida a todos os cristãos, como uma chama acende outras chamas. Um dos padres da Igreja exprimiu isso deste modo: Assim como o corpo do Senhor no Monte Tabor foi glorificado, transfigurado em glória divina e em infinita luz, também os corpos de todos os santos serão glorificados e luminosos […] “Eu lhes dei a glória que me deste” (Jo 17,22). Assim como de um só fogo se acendem muitas velas, todos os corpos dos santos membros de Cristo, tornar-se-ão como Ele [...]. Nossa natureza humana se transforma na plenitude de Deus; faz-se totalmente fogo e luz281.

Não se casarão… Como dissemos, a relação do homem com Deus, no Céu, chegará a um sumo grau. Poderíamos pensar que a pessoa ressuscitada fica tão absorvida pela presença do Senhor que as demais criaturas perdem todo o interesse para ela. Jesus mesmo anuncia que o matrimônio desaparecerá na vida futura: “Mas os que forem julgados dignos de ter parte no outro mundo e na ressurreição dos mortos, não tomam nem mulher nem marido” (Lc 20,35). Como entender este ensinamento? O que acontece com a relação dos esposos no Céu? Em primeiro lugar, a ressurreição não elimina a natureza corpórea do homem, mas a transforma. Isso significa que não desaparecerá a diferença sexual entre homem e mulher, e o ser humano não deixará de ser masculino e feminino. Mas o modo de viver a sexualidade mudará: Os corpos humanos, recuperados e também renovados na ressurreição, manterão a sua peculiaridade masculina ou feminina, e o sentido de ser, no corpo, varão ou mulher será no “outro mundo” constituído e entendido de modo diverso daquilo que foi “desde o princípio” e depois em toda a dimensão da existência terrena. […] A dimensão de masculinidade e feminilidade – isto é o ser, no corpo, de varão e de mulher – será de novo constituída juntamente com a ressurreição do corpo no “outro mundo”282.

Em que consiste a transformação a qual se refere o Papa nesta passagem? Para entendê-la, recorramos a um texto da Divina Comédia, de Dante. O poeta, no seu caminho para o Paraíso, descobre que não existe inveja entre os bem-aventurados. Ali 153

não se compete pelo bem, pois o bem de cada um faz crescer o bem de todos: “Lá quanto mais se diz ‘nosso’, maior bem possui cada um”283. O poeta pergunta: “Como admitir que um bem, distribuído entre mais donos, torne-os mais ricos que se fosse por poucos possuído?” Respondem-lhe com uma imagem. O amor de Deus é como a luz refletida em muitos espelhos. Quanto mais limpo for cada espelho, mais luz refletirá, não só para si mesmo, mas também para os outros. E assim: “Quanto mais gente lá em cima se entende, mais há pra bem amar e ama-se mais; tais como espelhos que um do outro esplende”284. Apliquemos isso à relação entre os esposos mencionada. Podemos dizer que quando os dois recebem plenamente o amor primário de Deus, possuem uma maior capacidade de se doarem um ao outro. A comunhão com Deus nos faz transbordar, como um recipiente cheio que se derrama sobre os outros, unindo-nos no que o Credo chama “comunhão dos santos”. Por isso, a nova relação entre os esposos não destrói o amor vivido por eles na terra, mas revela sua plenitude. Recordemos que o amor conjugal está sempre unido à solidão original do homem diante de Deus (sua relação com o Pai). Esta presença do amor divino na união dos cônjuges, João Paulo II chama “dimensão virginal” da relação. Adão pode amar Eva, sua mulher, somente se a respeita como filha de Deus; da mesma forma, pode entregar-se a ela somente se compreende a si mesmo como um dom do Pai a ela. A partir disso, podemos vislumbrar a vida no Céu: florescerá a dimensão virginal que constitui, já agora na terra, a pedra angular do amor esponsal. Recordemos que o homem e a mulher não são chamados simplesmente a olhar um para o outro, mas a caminhar unidos para Deus, fonte primária e último destino do amor. Por isso, a experiência virginal de nosso corpo no Céu não se opõe ao seu sentido esponsal, mas leva-o à perfeição 285. Poderíamos dizer que, no Céu, o homem e a mulher alcançam a paz que aparece no Cântico dos Cânticos, onde o amado se refere à sua amada como “irmã”. A relação entre os esposos como irmão e irmã, diz João Paulo II, “é o sentido comum de pertença ao Criador como Pai comum”286. Estando agora mais próximos da fonte de todos os dons, os esposos experimentam a comunhão e paz perfeitas. O esposo do Cântico dos Cânticos primeiro diz: “És toda bela, minha amada” (Ct 4,7) e no mesmo contexto se dirige a ela: “minha irmã, noiva minha” (Ct 4,9). Não a chama com nome próprio (somente duas vezes aparece o nome “Sulamita”), mas usa expressões que dizem mais que o nome próprio287.

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O amor [...] impulsiona ambos a procurar o passado comum, como se descendessem do círculo da mesma família, como se, desde a infância, estivessem unidos pelas recordações do mesmo lar. Deste modo, sentem-se reciprocamente próximos como irmão e irmã que devem a sua existência à mesma mãe. Resulta, assim, um sentido específico de pertença comum. […] Daqui nasce aquela paz de que fala a esposa. Esta é a “paz do corpo”, que na aparência se assemelha ao sono (“não desperteis nem acordeis a amada, antes que ela o queira”). Esta é, sobretudo, a paz do encontro na humanidade como imagem de Deus – e o encontro mediante um dom recíproco e desinteressado (“sou aos teus olhos como aquela que encontrou a paz”)288.

Chegados a este ponto podemos ressaltar a relação entre a vida plena no Céu e a pureza da relação entre os esposos, que estudamos no sétimo capítulo. Recordemos que o dom da piedade, que torna perfeita a pureza, é a capacidade de ver a presença de Deus na união de amor entre homem e mulher. Portanto, podemos entender a ressurreição como a continuação lógica do caminho da castidade conjugal. De fato, a ressurreição equivale à integração suprema de todas as dimensões do amor humano: os desejos, as emoções, o amor pessoal, a abertura para Deus. Uma consequência disso é que cada passo que os esposos dão rumo à pureza em sua vida terrena, prepara-os para a ressurreição, tornando seus corpos imortais. Viver a virtude da pureza é lançar sementes de ressurreição em nossa carne mortal. Tudo isso nos ajuda ainda a entender o caminho de quem sofreu a dor da morte de seu cônjuge. A morte não é a separação final ou a última palavra da relação conjugal. O amor dos esposos continua vivo, embora tenha sido transformado. Esta transformação consiste no fato de que o amor de Deus, que foi sempre parte essencial do amor na terra, tem agora a primazia em um modo novo. O desafio que devem enfrentar consiste em aprender a viver esta nova presença do cônjuge, que agora vive em Deus e em Sua promessa de ressurreição. Deste ponto de vista, a vida na terra é uma preparação para um novo encontro em que o amor terreno será transformado, purificado e fortalecido no abraço de Deus, quando Ele será tudo em todos (cf. 1Cor 15,28).

O chamado à virgindade Cristo transforma o amor humano: “Nosso Senhor”, escreve Karol Wojtyla, “realiza muitas coisas através do amor, muitas coisas boas. O amor nos une a Ele mais que qualquer outra coisa, porque o amor tudo transforma”289. A transformação que Cristo traz com Seu amor não é somente algo que os cônjuges esperam encontrar no além. Vimos que já na vida terrena ela influencia a vida do casal: Cristo os chama a viver o amor numa nova dimensão, segundo Sua própria medida, que é aquela de Filho e Esposo. E

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mais, além de oferecer essa nova dimensão aos casados, Jesus também inaugura outra forma de caminhar no amor: a virgindade consagrada. O Antigo Testamento via no matrimônio o caminho para aproximar-se de Deus. A união dos cônjuges tinha para Israel um grande valor religioso: Deus dava aos esposos Sua bênção e, por meio da descendência do casal, graças à qual chegaria o Messias, prometia a salvação ao Povo. Eis porque não encontramos aqui uma valorização positiva da virgindade, vista mais como uma desgraça. Como diz São Metódio de Olimpo: Coube ao Senhor ser o primeiro a ensinar esta doutrina [da virgindade], já que só ele mostrou a via dos homens a Deus. Era conveniente que aquele que era o Príncipe dos sacerdotes, dos profetas e dos anjos, fosse também chamado Príncipe das virgens290.

Há, porém, um caso que parece contradizer esta afirmação: o profeta Jeremias, que permaneceu celibatário. No entanto, esta exceção confirma a regra, pois Jeremias representa em sua carne a situação de Israel, afastado do Senhor e convertido em povo sem vida, em cujas ruas não ressoam mais os gritos alegres dos recém-casados. A virgindade de Jeremias é, portanto, uma carência. Cristo, ao contrário, não viveu a virgindade como mera privação, mas como plenitude transbordante. Em Cristo, Filho e Esposo, a virgindade alcança o cume do significado esponsal do corpo: À luz das palavras de Cristo […] é possível deduzir que tal renúncia é ao mesmo tempo uma particular forma de afirmação daquele valor, de que a pessoa não desposada se abstém coerentemente, seguindo o conselho evangélico. […] [A virgindade] serve também – e de modo particular – para a confirmação do significado esponsal do corpo humano na sua masculinidade e feminilidade. A renúncia ao matrimônio por amor do reino de Deus coloca em evidência ao mesmo tempo aquele significado em toda a sua verdade interior e em toda a sua pessoal beleza291.

Cristo, o Filho de Deus cuja missão é entregar-se totalmente como Esposo da Igreja, levou à plenitude o sentido do corpo. Mas como é possível que as pessoas consagradas possam participar desta dimensão de sua vida? Deve-se fixar no ponto final do caminho de Jesus: a ressurreição da carne. Na Páscoa, o corpo de Cristo, transbordante do espírito de amor, é capaz de comunicar a Seus discípulos uma plenitude de significado. Por isso, João Paulo II chama de “escatológico” (palavra derivada do grego eschaton, “fim”) o sentido que o corpo adquire na virgindade. A virgindade, quer dizer o Papa, antecipa o fim da história, pois é participação e testemunho da plenitude de amor que flui do corpo ressuscitado de Cristo e que inundará o cosmo quando Ele retornar no final dos tempos. É o que afirma São Máximo, o Confessor: “A Palavra vem viver nos santos, imprimindo neles, antecipadamente, como um mistério, a forma de sua vinda futura, como se fosse um ícone”292. Como veremos, este impulso escatológico confere à virgindade a tríplice 156

dimensão do caminho do amor de que falamos nos capítulos anteriores: o filho que se entrega como esposo para se tornar pai.

Filhos, esposos, pais: o caminho da virgindade consagrada O caminho do amor é percorrido segundo três coordenadas: reconhecer-se como filhos para poder doar-se como esposos e, assim, chegar a ser pais na fecundidade do amor. Cristo, em Seus passos pela terra, não seguiu um percurso diferente: a Sua vida foi a do Filho que dá Seu corpo à Igreja Esposa para assim gerar vida nova nos homens. A novidade é que Jesus transformou o modo de percorrer esta via, pois ela adquiriu Nele caráter virginal. Só assim estas dimensões da vida humana podiam alcançar sua plenitude. Em primeiro lugar, esta transformação se baseia na dedicação exclusiva de Jesus à vontade do Pai. A carne de Cristo é virginal, antes de tudo, porque é filial, segundo a medida de Filho eterno de Deus. Seu corpo indica de modo novo o Pai, de cuja vontade se alimenta. Em segundo lugar, longe de eliminar o sentido esponsal do corpo, a virgindade de Cristo O reafirma e Lhe dá plenitude. Assim se transforma o modo com que Adão e Eva experimentaram sua união na carne. Agora se trata de uma esponsalidade virginal, por meio da qual Cristo pode se entregar de modo único por todos e por cada um dos homens. Com efeito, o Filho é o Esposo, que dá à luz a Igreja e se une a Ela na cruz. Enfim, esta união é extremamente frutífera: por meio do batismo Ele gera, no seio da Igreja, filhos e filhas para Deus, Seu Pai. Este tríplice ritmo (do filho, do esposo, do pai) inscrito no corpo humano desde o princípio alcança aqui uma riqueza inaudita. A virgindade de Cristo, enraizada na Sua obediência filial, leva ao cumprimento do sentido nupcial do corpo e, ao fazer isso, torna-se plenamente fecunda. Agora entendemos melhor a vocação à virgindade consagrada. Nas palavras de Santo Inácio de Antioquia, sua tarefa consiste em “honrar a carne do Senhor”293. É, portanto, um chamado a configurar-se ao modo com que Cristo viveu Sua corporeidade e, deste modo, saciar-se de Sua plenitude, segundo as três dimensões do amor que Ele concretizou na cruz e ressurreição: filhos, esposos, pais, no modo virginal. a) Em Cristo, o Filho, a plenitude da solidão original O centro da virgindade é uma nova relação filial com Deus, inaugurada por Jesus, Seu Filho. A pessoa consagrada é chamada a seguir o Filho e a participar de Sua forma de dirigir-se ao Pai, vivendo de Sua vontade. A virgindade, portanto, é a plenitude da 157

solidão original, entendida como relação filial com Deus. O Filho, com Sua Encarnação, trouxe uma nova medida da corporeidade humana, uma nova capacidade de exprimir na carne a presença de Deus. Assim, o corpo da pessoa consagrada transforma-se num sinal do primado do amor divino no mundo. b) Em Cristo, o Esposo, a plenitude da unidade original A pessoa consagrada participa também da plenitude que Cristo confere ao significado esponsal do corpo. Com Sua vida virginal, faz-se presente no mundo o mesmo amor de Jesus, que se entrega totalmente a todos os homens, não como se fossem uma massa indiferenciada, mas levando em conta o que é genuíno e próprio de cada pessoa. Esta plenitude e afirmação do significado esponsal do corpo que acontece na cruz participa também da dor. Este tipo de sofrimento, que segue a renúncia a constituir uma família, é um modo de configurar-se corporalmente a Cristo. É a forma com que Ele leva à plenitude o significado nupcial do corpo, a partir de Seu amor pelo Pai. Precisamos ressaltar que esta plenitude da vida filial e esponsal está enraizada no corpo e inclui afetividade e paixões. A virgindade não consiste, portanto, numa renúncia ao corpo, mas numa forma distinta de viver na carne as experiências originais (a solidão e a unidade do princípio). São Paulo descreve bem este vínculo com a corporeidade. Assim como o homem casado se preocupa em agradar a sua mulher, diz o apóstolo em 1Cor 7,32, aquele que escolhe a virgindade se preocupa com as “coisas do Senhor e com o modo de agradar ao Senhor”. O consagrado, portanto, não está livre de ansiedades nem se refugia num paraíso distante e frio, estranho a este mundo. Acontece exatamente o contrário: ele é movido pelo desejo de servir o Senhor e compartilha o zelo de Jesus pela salvação do mundo, com as alegrias e dores que isso comporta. O amor esponsal pelo Senhor, identificado com o coração de Cristo, leva a pessoa consagrada a abraçar a angústia e a esperança de todos os homens. São Paulo diz que compartilha a preocupação e solicitude por todas as Igrejas (cf. 2Cor 11,28). Naturalmente, esta solicitude não é angústia nem falta de sossego, mas, como atitude filial, está enraizada na paz de Deus, na certeza de que o amor do Pai nunca falha, pois “Quem que não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós, como não nos haverá de agraciar em tudo junto com ele?” (Rm 8,32). c) Paternidade e maternidade espiritual Na virgindade, como era no matrimônio, a relação entre a solidão e a unidade originais faz com que seja fecundo o amor humano. Como disse Santo Agostinho, a

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virgindade não é estéril, mas floresce em paternidade e maternidade espirituais. É a visão que lhe oferece sua conversão: Encontravam-se aí meninos e meninas, grande número de jovens e pessoas de todas as idades, dignas viúvas, virgens, idosas. Em todas elas não era estéril a continência, e sim mãe fecunda de filhos, nascidos das alegrias geradas de ti, Senhor seu esposo294 .

Paul Claudel retratou esta fecundidade singular em sua obra O Anúncio Feito a Maria. O personagem principal do drama, Violaine, contrai lepra cuidando de um doente e, a partir daquele momento, precisa viver isolada de sua família. A jovem, sobre a qual recai uma vil suspeita, aceita a situação com fé e obediência a Deus. A única pessoa que entende o segredo da santidade de Violaine é, paradoxalmente, aquela que mais a despreza, sua irmã Mara. Assim, quando a filha recém-nascida de Mara morre, ela pede a Violaine que faça um milagre e a ressuscite. O abraço de Violaine devolve a vida à menina, mas, ao mesmo tempo, a transforma: seus olhos agora têm a cor dos olhos de Violaine. Sua irmã exclama: “Violaine! O que significa isso? Seus olhos eram negros. Ei-los agora azuis como os teus! (Silêncio) Ah! O que é esta gota de leite que vejo em seus lábios?”295. Desta forma, Claudel intui que Violaine transformou-se em mãe, num modo diverso, mas não menos real, e que sua dor foi fecunda, capaz de dar à menina um segundo nascimento. Com efeito, no final da obra, o pai de Violaine interpretará o sacrifício de sua filha à luz do sim de Maria na Anunciação: “Faça-se em mim segundo tua palavra”. A mãe de Jesus nos mostra a forma concreta com que a pessoa consagrada alcança fecundidade em sua vida.

Mãe e Virgem Em Maria se vê como a virgindade traz consigo um novo significado do corpo, que é plenitude de seu sentido original. Seguiremos as três etapas – ser filho, esposo, pai – que nos inspiraram até agora. a) Cada vez que uma mãe concebe uma vida, dá testemunho da ação de Deus, que forma um novo ser humano no seu ventre. Mas Deus nunca esteve tão presente como no momento em que Maria concebeu Jesus, “filho da Virgem, que era Ele mesmo virgem”296, sem intervenção de homem. Enquanto tal, a maternidade virginal de Maria manifesta o Pai como origem absoluta e fonte primária da vida. Por isso, ela participa de modo primordial, em sua feminilidade, do significado filial do corpo que seu filho inaugurou na terra. Isso lhe permitiu viver totalmente para a pessoa e a obra de Jesus, seguindo Suas pegadas como discípula perfeita. 159

b) Maria, por participar plenamente da filiação, vive também o sentido nupcial do corpo. Seu caminho, através do Filho, rumo ao Pai, abraça no amor o sofrimento dos homens: “Uma espada traspassará tua alma!”. Aos pés da cruz, a Mãe participa das dores de seu Filho em nosso favor e se transforma, assim, em ícone da Igreja, Esposa de Cristo. c) A virgindade de Maria torna-se vitalmente fecunda. Ela é Mãe, seja em Nazaré, seja no Calvário, com uma maternidade que se estende a todos os homens. Por isso, ela é bendita entre todas as mulheres. E Dante pôde dizer-lhe: “Reacende-se no ventre teu o amor”297. Maria, com sua maternidade concreta e seus concretos sofrimentos ao pé da Cruz, ensina-nos que a paternidade ou maternidade virginais não são realidades meramente “espirituais”, no sentido etéreo que costumamos dar a esta palavra. Ao contrário, esta fecundidade se refere ao corpo, dá resultados concretos, tangíveis, que transformam o mundo em que vivemos. A maternidade virginal de Maria, ao gerar Jesus, marca o início de uma nova criação. Do mesmo modo, a virgindade consagrada, que vive antecipadamente a plenitude final, colabora no processo em que a criação geme e sofre “as dores de parto” e aguarda impaciente “a redenção do nosso corpo” (cf. Rm 8,22-23). A virgindade trabalha para transformar a criação material em expressão do amor, fazendo chegar assim, em plenitude, o Reino dos Céus. A pessoa consagrada, portanto, segue o ritmo vital de Jesus como Filho, Esposo e Pai e antecipa a forma definitiva que o corpo tomará no outro mundo. Assim, o chamado à filiação, à esponsalidade e à paternidade (o chamado inscrito na família), dirige-se a todos os cristãos. O ritmo familiar que acabamos de descrever, levado à plenitude na união entre Cristo e Sua Igreja, implica que os dois estados de vida (o matrimônio e a virgindade consagrada) são complementares. Para o homem e a mulher virgens, a vida dos casados testemunha que seu amor pelo Senhor e por sua Igreja está a caminho do Pai e deve impregnar o mundo concretamente. Por sua parte, a vida consagrada relembra aos casais que sua meta última e definitiva é o amor de Deus e os ajuda a se amarem reciprocamente no mistério de Cristo e de Sua Igreja. O que dissemos neste capítulo ilumina também o caminho daqueles que, sem nenhuma culpa, não se encontram em nenhum dos dois estados acima descritos e permanecem solteiros. Como todo homem e toda mulher, também eles participam na única vocação comum do ser humano: a vocação do amor. Eles também são chamados a seguir o caminho do Filho, do Esposo, do Pai. Deus lhes mostrará os modos concretos em que sua vida – por meio de seu trabalho na sociedade e de seu serviço aos irmãos – 160

pode tornar-se dom frutífero para os outros e, assim, caminho para Deus. “Ninguém está privado da família neste mundo: a Igreja é casa e família para todos...”298. A Igreja é, com efeito, a grande família em que todos encontram um lugar para viver; é “o sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”299. Deste mistério de unidade, estruturado segundo o mistério da família, surge uma missão: a ela dedicaremos o último capítulo deste livro.

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CAPÍTULO 10 A FAMÍLIA E A CIVILIZAÇÃO DO AMOR Nenhuma família pode permanecer fechada em si mesma. Se isto acontecesse, ou seja, se começasse a interessar-se somente por seus objetivos particulares, deixaria de ser uma verdadeira família. De fato, a família é construída sobre um amor sempre maior que ela e orientada a grandes horizontes que ultrapassam os limites do lar. Em primeiro lugar, homem e mulher são capazes de amar porque receberam de outros (de seus pais, primeiramente) uma educação ao amor. Assim, tornam-se partícipes de uma herança própria de toda a humanidade: eles não inventaram a linguagem do amor, mas a receberam e podem com ela forjar sua recíproca união. Esta linguagem inscrita em seus corpos provém, em última análise, de Deus mesmo. Homem e mulher só podem amar-se se entrarem na esfera do Criador, cujo amor os abraça e sustenta. Uma prova desta abertura do amor familiar é a chegada de um filho: quando marido e mulher tornam-se pais, passam o limiar da mais elevada responsabilidade no que diz respeito às futuras gerações. O seu amor, herança recebida do passado, projeta-se agora para o futuro. O dinamismo do amor, fundamento da família, vai além dos membros individuais para tornar-se ativo no coração do mundo, da sociedade, da história. Por isso, a família tem uma missão social, que é, como veremos, decisiva. Em que consiste?

A vida em sociedade e o bem comum Uma premissa fundamental da doutrina social da Igreja é que a vida de uma sociedade é voltada para o bem comum300. Como definir isso? Para respondermos, precisamos fazer antes outra pergunta: por que é bom que as pessoas vivam juntas, em sociedade? De imediato nos vem à mente uma primeira resposta: é bom viver juntos para dividir as tarefas e benefícios que a vida comporta. Por exemplo, toda cidade precisa de cabeleireiros, taxistas, professores... Com efeito, cada profissão se beneficia das demais,

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pois proporciona vantagens que os outros não poderiam ter se vivessem sozinhos. Deste ponto de vista, o bem que comporta a vida em comum se mede através dos serviços prestados pelos demais, pelo conjunto de vantagens práticas que recebemos e que geramos quando vivemos com outros. Esta resposta não está errada, mas falta nela algo fundamental sobre o bem comum. Para explicar o que mantém a sociedade unida, não basta saber o que cada um obtém do outro. Com efeito, esta lógica, em si mesma, acaba medindo os demais pelos benefícios que proporcionam. Assim viveríamos juntos só porque a presença recíproca nos parece cômoda. Ou, talvez, porque não temos escolha, mas, no fundo, preferiríamos estar sozinhos. O que escapa deste enfoque? O que esta ótica não capta é a dignidade da pessoa, que não pode nunca ser considerada um meio para alcançar fins pessoais nem reduzida à função de interesses privados. É necessário, portanto, aprofundar a questão, desenvolvendo uma visão mais profunda do bem comum. Para isso, temos que ir à raiz do problema: é realmente bom participar de uma vida comum? A resposta é sim, pois sabemos que estar juntos já é um bem em si. O bem comum é o bem de viver em comunhão. Isso significa que participamos da sociedade não só pelos benefícios que recebemos dela, mas porque só assim chegamos a ser pessoa. É na relação com os outros que se constitui a própria identidade e se pode encontrar um sentido no caminho da vida. Se a nossa vida em comum não fosse baseada nesta convicção (de que estar com os outros é um bem em si), a sociedade seria, no fundo, um equilíbrio instável de interesses privados. Poderia comparar-se a uma praça movimentada de uma grande cidade no horário de pico de uma sexta-feira à tarde. Somente a polícia, com suas regras, evitaria o caos entre os motoristas, desejosos de chegar a sua casa o quanto antes. Usemos o exemplo de uma represa que produz energia elétrica. Os engenheiros devem controlar todas as instalações da usina hidrelétrica e verificar o correto funcionamento dos geradores. Mas este controle, este trabalho organizativo, seria totalmente inútil sem a força primordial da queda d’água que move as turbinas. Assim, dizemos que as estruturas de governo e os códigos jurídicos são necessários para o bem comum, mas que a saúde da sociedade depende principalmente de uma força mais originária. O motor que move as turbinas da nossa convivência é uma experiência primordial: a experiência de que é bom viver em comum com outros e de que sua presença em nossa vida é um bem em si mesmo.

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Escolhemos propositadamente a palavra “experiência” porque esta percepção do bem comum não é apenas uma ideia que se aprende de memória, mas algo que deve ser adquirido de modo prático, por meio do contágio de outras pessoas que a transmitem. Como é possível? Há algum lugar em que esta convicção possa ser adquirida? É o momento de falar outra vez da família.

O bem comum dos esposos O leitor já deve ter adivinhado onde queremos chegar: a família é uma escola que nos faz viver a experiência do bem comum. Uma sociedade estável pode ser construída somente na base desta experiência. Para entender este ponto, observemos a aliança matrimonial entre o homem e a mulher. O que lhes diz sua união sobre o bem comum? João Paulo II falou da unidade original entre homem e mulher como de uma experiência fundamental da vida humana. Adão e Eva, assim como todos os seus descendentes, vivem sua união como uma nova criação. Quando a pessoa amada entra em nossa vida, abre-se uma dimensão inesperada da existência. Os amantes descobrem, então, seu verdadeiro nome, e sua vida se projeta num horizonte provido de sentido. O resultado é uma nova unidade que faz com que cada esposo seja verdadeiramente ele mesmo. “Novas pessoas – Teresa e André – até agora são dois, não ainda um, mas agora são um, embora sejam dois”301. O casamento cria uma comunhão de pessoas que é, em si, o verdadeiro bem comum dos esposos. Diz João Paulo II em sua Carta às Famílias: O consentimento matrimonial define e torna estável o bem que é comum ao matrimônio e à família. “Recebo-te por minha esposa – por meu esposo –, e prometo ser-te fiel e amar-te e honrarte, tanto na prosperidade como na provação, por toda a nossa vida”. […] As palavras do consentimento matrimonial definem aquilo que constitui o bem comum do casal. […] o amor, a fidelidade, a honra, a permanência da sua união até a morte […]. Por sua natureza, o bem comum, ao mesmo tempo em que une as diversas pessoas, assegura o verdadeiro bem de cada uma302.

No caso dos esposos é evidente: o bem comum não se opõe ao interesse de cada um. Ao contrário: sua comunhão é a base de tudo o que têm e que são, é o que lhes permite serem felizes. É bom para os esposos estarem juntos, não só porque se ajudam eficazmente ao longo da vida, mas porque cada um dá ao outro o seu nome, a sua razão de ser na vida. A união dos esposos – seu bem comum – é o maior tesouro que possuem, o princípio e o fundamento de qualquer outro bem possível. Consequentemente – e isto é importante para entender o que é uma sociedade livre –, a vida em comum do casal não priva os esposos de sua liberdade individual. Às vezes, em nossa sociedade, pensa-se que a vida com outros limita as liberdades individuais. O 164

exemplo do casamento nos oferece um modelo diferente, que supera esta visão. Com efeito, a liberdade de cada esposo não se sente ameaçada pela presença do outro nem por sua recíproca união, mas nasce exatamente de seu encontro e de seu amor. Por isso, a relação matrimonial consente aos esposos entender de modo diferente sua vida na sociedade. Eles aprendem que não é verdade que “a minha liberdade termina onde começa a tua”, mas sim que “minha liberdade começa onde começa a tua e somente no nosso amor podemos ser verdadeiramente livres”. O cardeal Carlo Caffarra ilustrou este ponto tomando como exemplo o contraste entre o bem comum de uma sociedade e seu Produto Interno Bruto (PIB). Recordemos que este último é a soma de todas as riquezas individuais criadas no país. Assim, ter um PIB muito alto não quer dizer que todos os cidadãos do país estão gerando riqueza ou vivendo comodamente. Com efeito, por detrás dos números se esconde muitas vezes a desigualdade de uma minoria que gera riqueza em abundância, suprindo o que os cidadãos mais pobres não conseguem dar. O bem comum, como o vemos na família, não está submetido a esta forma de cálculo; nele, não se adota o exemplo da soma, mas o da multiplicação. Isso quer dizer que se um dos fatores é zero, o total será zero, por maior que sejam os outros. De tal modo, cresce-se somente em uníssono. Surge, então, uma nova fórmula para calcular o bem comum da família: “Quanto mais for comum o bem, tanto mais ele será próprio: meu – teu – nosso”303.

O bem comum que é o filho A participação dos esposos no bem comum do matrimônio chega à plenitude com a concepção e o nascimento dos filhos, e neles toma corpo o fruto do amor recíproco. Entra agora em jogo uma nova dimensão do bem comum, e a comunhão entre pessoas (marido e mulher) se expande para a comunidade de pai, mãe e filho304. Pensemos numa mãe grávida. A própria gravidez é para ela uma escola do bem comum. Em primeiro lugar, a mulher aprende que a comunhão com seu filho é um bem para ela: não porque o filho a ajuda a satisfazer alguma de suas necessidades, mas porque a própria existência da criança torna-se fonte de alegria. Por isso, uma das tarefas fundamentais da mulher na sociedade é dar testemunho da dignidade da pessoa humana e do valor irrepetível de cada vida. A mulher, enquanto tal, tem uma especial capacidade de perceber esta dignidade de forma única: A maternidade comporta uma comunhão especial com o mistério da vida, que amadurece no seio da mulher: a mãe admira este mistério, com intuição singular “compreende” o que se vai formando dentro de si. A luz do “princípio”, a mãe aceita e ama o filho que traz no seio como uma pessoa.

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Este modo único de contato com o novo homem que se está formando cria, por sua vez, uma atitude tal para com o homem – não só para com o próprio filho, mas para com o homem em geral – que caracteriza profundamente toda a personalidade da mulher. Considera-se comumente que a mulher, mais do que o homem, seja capaz de atenção à pessoa concreta, e que a maternidade desenvolva ainda mais esta disposição305.

Certamente, o filho não é o bem comum só da mãe. É o bem comum do casal, selo e fruto de sua união numa só carne. A criança é um bem comum dos esposos, a quem os pais devem amar por si mesma. Assim nos lembra João Paulo II: Porventura não é uma “parcela” daquele bem comum, sem o qual as comunidades humanas se fragmentam e correm o risco de morrer? Como negá-lo? A criança faz de si um dom aos irmãos, às irmãs, aos pais, à família inteira. [...] Sim! O homem é um bem comum: bem comum da família e da humanidade, dos diversos grupos e das múltiplas estruturas sociais306.

Estas palavras refletem a missão da família, habitat no qual a existência das pessoas – e não só os benefícios que dão uns aos outros – é um dom que enriquece a todos. O filho lembra aos pais que cada pessoa, por sua simples existência, já é um bem comum. O filho também aprende esta verdade: ao ser recebido com amor por seus pais, experimenta sua dignidade única. Em outros setores da sociedade, como o lugar de trabalho, a pessoa poderia pensar que vale somente por sua produtividade. No final das contas, pode sempre ser substituída por outro empregado que desempenhará mais ou menos a mesma função. Na família, porém, não é assim: aí cada membro é único e insubstituível; ninguém pode substituí-lo quando falta; cada um é, em si mesmo, um bem comum. Por conseguinte, a família é uma escola na qual os filhos aprendem por experiência, na prática, a verdadeira substância do bem comum. A família ensina a viver em sociedade, não só dando-lhes regras básicas de comportamento, mas infundindo neles a percepção concreta da dignidade de cada pessoa. Em família se inculca uma lição indispensável: ver cada ser humano como um bem comum.

A fonte última do bem comum Vamos agora dar um passo adiante. Dissemos que a família nos ensina o significado do bem comum e nos ajuda a perceber a importância de viver em sociedade. Pois bem, assim como a família se abre para além de suas fronteiras, também a sociedade não pode subsistir se não busca horizontes mais amplos e se não descobre que, sozinha, não pode produzir o bem. Consideremos um tema que, à primeira vista, parece não ter relação com a família: a crise ambiental. Pretende-se resolvê-la aumentando as leis e com novas tecnologias. Tais 166

medidas, embora importantes, não bastam para resolver o problema na raiz, pois suas causas profundas encontram-se na presunção do homem de que pode decidir arbitrariamente sobre o curso da natureza. Em sua encíclica Centesimus Annus, disse João Paulo II: O homem, tomado mais pelo desejo do ter e do prazer do que pelo de ser e de crescer, consome de maneira excessiva e desordenada os recursos da terra e da sua própria vida. Na raiz da destruição insensata do ambiente natural, há um erro antropológico, infelizmente muito espalhado no nosso tempo. [...] Pensa que pode dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade307.

Essa atitude revela uma visão mesquinha e restrita do homem. Parece que ele é animado unicamente pelo desejo de possuir as coisas, sem relacioná-las com a verdade. Falta-lhe a atitude desinteressada e gratuita, que nasce do estupor pelo ser e pela beleza e que leva a ler em cada coisa uma mensagem do Criador. A questão hoje, momento em que a humanidade deve se conscientizar da importância de suas decisões para as gerações futuras, é ainda mais urgente. Se o diagnóstico de João Paulo II estiver correto, para solucionar a crise ambiental precisamos rever nossa relação com a natureza. Temos que redescobrir o sentido da criação, não só como um conjunto de recursos a ser explorado, mas como casa comum em que compartilhamos nosso destino. Só aparentemente nos afastamos do tema da família. Pois, afinal de contas, o bem comum da família se baseia na visão da natureza como lar e fonte de vida. Em primeiro lugar, os esposos sabem que a natureza lhes oferece uma linguagem (a de seus corpos, masculino e feminino) com a qual exprimem seu amor mútuo. Com esta linguagem, sua união se abre para uma fecundidade que os supera, na bênção de cada novo filho. Deste modo, a família fomenta uma profunda reverência diante da natureza. Por isso, João Paulo II referiu-se à família como a “primeira e fundamental estrutura a favor da ‘ecologia humana’”308, em que aprendemos algo essencial para o bem comum. A família não só insere o homem na natureza, mas também numa história cultural. Poderíamos dizer que a cultura é um legado que recebemos do passado e transmitimos às futuras gerações, cuja vida é condicionada pelas nossas decisões309. Criar cultura consiste em incorporar nosso próprio momento histórico a este grande tecido da vida em que passado, presente e futuro estão inextricavelmente unidos. Dada esta dependência entre as gerações, não podemos fazer justiça ao bem comum da sociedade se perdermos de vista a vastidão deste grande horizonte em que vivemos, ou seja, se deixarmos de honrar o patrimônio que recebemos de nossos antepassados ou não transmitirmos sua riqueza a 167

nossos filhos. Mas quem nos ensinará a realizar esta tarefa, dadas as enormes tentações de viver segundo o carpe diem e de exclamar como o rei francês Luís XV: “Depois de mim, o dilúvio”? Novamente, a família aparece como o lugar adequado para realizar esta integração. Nela, os filhos aprendem a receber com gratidão a herança de seus pais e antepassados. Por outro lado, a família ensina os pais a considerarem o bem de seus filhos como seu próprio bem, levando-os, assim, a serem atentos ao futuro da sociedade. A herança do passado equipa o homem para o futuro, tecendo sua vida na trama das gerações. A família transforma a “comunhão conjugal [em uma] comunhão de gerações”310. O que dissemos até agora pode ser resumido da seguinte forma: a família é o contexto primário em que o ser humano recebe natureza e cultura como dons que lhe foram confiados. Isso é fundamental, pois somente se formos conscientes de que o mundo é um dom confiado aos nossos cuidados poderemos construir o bem comum. Por isso, antes de falar dos nossos direitos como cidadãos, precisamos nos referir aos nossos deveres. A tal propósito, Stefano Fontana, diretor do Observatório Van Thuân para a doutrina social da Igreja, disse: Devemos voltar à prioridade do dever [sobre os direitos] [...] Nós não nos produzimos a nós mesmos, mas nos recebemos. Não produzimos a natureza, mas a recebemos [...] Não produzimos a cultura, mas a recebemos [...] Certamente que também a produzimos, mas nossa atividade se baseia num receber mais originário311.

A família fomenta esta prioridade dos deveres, porque nela cada pessoa descobre a gratidão, primeira resposta ao dom essencial da vida. Em última análise, esta herança de natureza e cultura nos convida a buscar a origem primária de todos os dons. A sociedade não pode evitar a questão da fonte primordial do bem comum. Durante muito tempo, vivemos com o consenso implícito de que era melhor deixar de lado a questão religiosa, para que crentes e não crentes pudessem viver em paz. Alguns dias antes de sua eleição a Papa, o então cardeal Ratzinger criticava esta exclusão de Deus, forçado a retirar-se da vida pública312. O futuro Papa usava como exemplo a história do século XX, para provar que toda tentativa de construir a sociedade “como se Deus não existisse” leva necessariamente ao eclipse da dignidade humana e ao ocaso dos valores. Ratzinger defendia, assim, que o bem comum (sem o qual a sociedade não pode sequer existir) pode ser mantido somente se agirmos “como se Deus sim existisse”. Afastá-Lo da vida pública conduz ao esquecimento da percepção comum do bem e da dignidade do homem313.

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Estas reflexões sobre Deus na vida pública nos reconduzem à família, que, ao ensinar a gratidão pela existência recebida, coloca o homem em contato com a fonte original do bem, o Pai comum “de quem toma o nome toda família no céu e na terra” (Ef 3,14-15). A vida da família, ao abrir-nos a Deus, orienta-nos também ao horizonte último que propicia a vida em sociedade.

Família, sê o que és! Até agora concluímos que o círculo familiar é o primeiro lugar em que o homem aprende, como por osmose, o sentido do bem comum. Isso nos consente responder a uma pergunta: como vive a família sua missão na sociedade? O que cada família é chamada a fazer? Não se trata de descrever atividades fora da vida familiar, pois a própria sociedade é gerada a partir da família – não somente no sentido físico, com o nascimento de seus membros, mas também do ponto de vista espiritual, pela educação da pessoa ao amor e ao bem comum. Por isso, sua tarefa não se mede pelas atividades sociais que organiza, mas por sua própria vida: a família é o lugar em que a inteira sociedade vem à luz. O trabalho da família em sociedade consiste em transformar-se no que ela já é: o ventre onde é gerado o bem comum e onde se aprende a vivê-lo. A noção de “capital social” pode nos ajudar a entender este papel da família. O capital social consiste, de acordo com os economistas, numa série de valores sociais – como confiança, generosidade, assistência aos necessitados etc. – que, mesmo sem ser mensuráveis em termos financeiros, são imprescindíveis para o bom funcionamento da sociedade. Aplicando essa ideia à família, vemos que o matrimônio estável e fecundo entre homem e mulher é a primeira forma de capital social, que nenhuma outra estrutura pode substituir. Isso porque a família é a escola insubstituível do bem comum, sobre a qual se edifica toda a sociedade. Por esta razão, o Estado tem o dever natural de proteger e promover a família acima de outras formas de amor frágil, como são os casais de fato. Quando o Estado deixa de incentivar a relação entre família e bem comum, a sociedade perde sua seiva vital e tende a converter-se numa luta de todos contra todos, em que cada um busca seu próprio interesse. Por isso, como diz o Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica: “Há que se afirmar a prioridade da família em relação à sociedade e ao Estado. […] A família não existe, portanto, em função da sociedade e do Estado, mas a sociedade e o Estado existem em função da família”314. A família gera a pessoa como um ser social, que aprende com a experiência o que é o bem comum e se habilita, assim, a promover e servir uma ordem estável e humana. A

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doutrina social da Igreja resume deste modo tal ensinamento: a família é a célula primária da sociedade. A palavra “célula” não significa somente que a família é o menor grupo sobre o qual se constrói a sociedade, como os tijolos com os quais se edifica uma casa. Neste caso, seria possível substituir os tijolos por outros diferentes e a construção continuaria de pé. A imagem mais adequada é a da célula que contém o código genético de todo o corpo social. A família conserva em si a experiência viva do bem comum, pois é o lugar onde nasce a percepção da dignidade da pessoa e de sua orientação à comunhão. Substituir este código genético por outro inventado por nós acarretaria a decomposição do organismo vivo. A famosa colunata construída por Bernini na Praça São Pedro, em Roma, ilustra bem este aspecto. Esta colunata tem forma elíptica. Por isso, colocando-se no ponto focal da elipse, é possível captar a harmonia do conjunto. Os turistas se concentram neste lugar privilegiado, de onde as quatro fileiras de colunas se fundem numa só e é possível perceber a unidade da praça. Se alguém quisesse ampliar a grande obra de Bernini, construindo outra fileira de colunas, só poderia fazê-lo colocando-se neste local. Pois bem, a família é como este ponto focal da elipse na colunata de Bernini: o lugar de onde se percebe a unidade da construção social. A família, por si, não pode fornecer todo o material necessário para edificar a sociedade, mas oferece um elemento decisivo: o ponto de referência da unidade social, pois ali se aprende a experiência primária, de onde todo trabalho pelo bem comum deriva. Jesus disse a Seus discípulos: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14). As palavras do Senhor se aplicam de modo especial à família. A luz, afinal, cumpre sua missão (aquece e ilumina), simplesmente sendo o que é. Assim como a missão do sol é brilhar, a da família é de ser ela mesma. João Paulo II dizia: “Família, torna-te aquilo que és”. Pois bem, qual é a luz que irradia da família, como os raios do sol? Escutemos o Papa: E porque, segundo o plano de Deus, é constituída qual “íntima comunidade de vida e de amor”, […] a essência e os deveres da família são, em última análise, definidos pelo amor. Por isto é-lhe confiada a missão de guardar, revelar e comunicar o amor, qual reflexo vivo e participação real do amor de Deus pela humanidade e do amor de Cristo pela Igreja, sua esposa315.

Para construir a civilização do amor, é essencial promover a família, pois ela é a matriz primária em que se gera a sociedade. “De tal amor, é expressão e fonte a família. Por ela passa a principal corrente da civilização do amor”316. A civilização do amor vive da luz que se irradia da família, “o centro e o coração da civilização do amor”317.

Missão da família, missão da Igreja 170

A experiência do amor, vivida no seio da família, faz-nos entender o bem comum, para edificar, com esta sabedoria, a sociedade. Como no DNA de um organismo, nela está contido o sentido de uma vida em comum, onde o homem aprende que não é bom estar só. Só a partir daí é possível construir uma civilização do amor. Esta conexão entre família e sociedade nos convida a pensar em outro vínculo, o que existe entre a família e a Igreja: a família é uma pequena Igreja, uma Igreja doméstica, assim como a Igreja é uma grande família. O Papa Bento XVI usou o exemplo de Áquila e Priscila, um casal cristão que aparece nas cartas de São Paulo e que oferece sua casa para a celebração eucarística. Os dois ilustram a relação recíproca entre a Igreja e a família: Portanto, na casa de Áquila e Priscila reúne-se a Igreja, a convocação de Cristo, que celebra os Mistérios. […] Cada casa pode transformar-se numa pequena igreja. […] Não é ocasionalmente que na Carta aos Efésios Paulo compara a relação matrimonial com a comunhão esponsal que existe entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5,25-33). Aliás, poderíamos considerar que o Apóstolo modele indiretamente a vida da Igreja inteira sobre a da família. E a Igreja, na realidade, é a família de Deus318.

Descrevemos a missão da família que possibilita a experiência do amor e a percepção do bem comum. A família, como dissemos, é o lar de onde brota a luz do amor ou, ainda, o foco de onde se capta a unidade de todo o edifício social. Pois bem, a missão da Igreja pode ser descrita em termos semelhantes. A Igreja existe, antes de tudo, para irradiar o amor de Deus no mundo. Ela é como um sacramento do amor que torna visível e real a união entre homem e Deus, a união dos homens entre si319. Este amor que a Igreja encarna no mundo não é uma benevolência abstrata, mas tem um rosto bem concreto: é o rosto de Cristo, o Filho e o Esposo, que deu Sua vida para que tivéssemos vida. Assim, o amor da Igreja é tão concreto como o da família, ou seja, o amor entre esposos e entre pais e filhos. A comunhão entre o Esposo e a Esposa é o espelho em que a família percebe sua verdade plena e sua missão. A Igreja, poderíamos dizer, é o habitat onde se revela, se purifica e se fortalece a verdade do amor familiar. Deste modo, a Igreja dá assistência à família em sua missão, e a família, ao entrar na Igreja, aprende a construir uma casa para o amor e a servir de escola do coração, para que se perceba a dignidade de cada pessoa e seu chamado para o bem comum. Por outro lado, quando a família realiza sua missão, a Igreja se torna presente na sociedade, brilhando desde seu interior. A Igreja, com efeito, tem um papel crucial na vida pública, mesmo se sua missão é muito diferente daquela do Estado. O cristianismo é, por sua própria natureza, uma religião pública, chamada a transformar o mundo, a dar171

lhe a forma do amor. Isso pode acontecer somente através da família, que coloca no centro de si mesma a luz do Evangelho, para que brilhe a partir dela. Como a família é a escola do bem comum, a presença da Igreja nela não somente ilumina a vida dos seus membros, mas brilha através deles para iluminar todos os homens. Portanto, se o Evangelho não dá vida à família, o cristianismo perde sua força e seu poder de dar vida à sociedade. A Igreja irradia o amor cristão à sociedade a partir da família, que, deste modo, torna-se o caminho da Igreja320. A Praça São Pedro nos oferece uma sugestiva imagem para concluir nossas reflexões. Há pouco falamos dos pontos focais da colunata em forma de elipse para ilustrar a vocação da família na sociedade. Pois bem, o próprio Bernini comparou os braços desta colunata com os braços da Igreja, abertos para acolher o mundo inteiro. A imagem ressalta a conexão entre a missão da família e a missão da Igreja: a Igreja é um círculo de comunhão universal, aberto para abraçar todos os homens; no centro deste círculo há um lugar especial para a família, um lugar aberto por Cristo, o Filho e o Esposo. Quando a família entra neste lugar, pode realmente ser ela mesma, uma Igreja doméstica que projeta a luz do Evangelho – a luz da comunhão – sobre a vocação e o destino de cada homem, guiando assim sua obra para edificar a civilização do amor.

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1 JOÃO PAULO II. Los poemas de Juan Pablo II. Tríptico Romano. Meditaciones. Washington, DC: USCCB, 2003, p. 7. 2 Ibidem. 3 JOÃO PAULO II desenvolve estas ideias nas primeiras páginas de Persona y acción (Madrid: BAC, 1982). A experiência humana do mundo está sempre ligada à experiência da própria pessoa. 4 SANTO AGOSTINHO . Confissões IV, IV. Tradução em português de J. Oliveira Santos; A. Ambrosio de Pina. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 9. 5 Cf. JOÃO PAULO II. Homem e Mulher o Criou. Catequese sobre o amor humano. Bauru: Edusc, 2005. Catequese III, 19/9/1979, p. 685. De agora em diante, a obra será citada com o número da catequese, a data em que foi pronunciada e a página. 6 Idem, Redemptor Hominis, 14. 7 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives. Tradução em português de Leopoldo Scherner. São Paulo: Loyola, 2000. 8 Idem, Raios de Paternidade. In: Irmão do Nosso Deus. Madrid: BAC, 1990, p. 129. 9 Cf. Idem, Irmão do Nosso Deus. In: Irmão do Nosso Deus. Madrid: BAC, 1990, p. 97. 10 Idem, Tríptico Romano, op. cit., pp. 7-8. 11 Ibidem. 12 As citações bíblicas foram retiradas da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. 13 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit. 14 JOÃO PAULO II. Redemptor Hominis, 10. 15 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit. 16 Ibidem, p. 55. 17 JOÃO PAULO II. Redemptor Hominis, 10. 18 CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et Spes, 22. 19 BENTO XVI. Deus Caritas Est, 12. 20 JOÃO PAULO II. Redemptor Hominis, 10. 21 BERNANOS, G. Diário de um Pároco de Aldeia. São Paulo: Paulus, 2000.

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22 JOÃO PAULO II. Tríptico Romano, op. cit., p. 8. 23 Cf. MELINA, L. Por una cultura de la família. Valência: Edicep, 2009. 24 Cf. ELIOT, T. S. The Dry Savages. In: The complete poems and plays, 1909-1950. Nova York: Harcourt, 1952, p. 133. Tradução: Quatro Quartetos. Tradução de Maria Amélia Neto. São Paulo: Ática, 1983. 25 TOLKIEN, J. J. R. O Silmarillion. Tradução de Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 26 Cf. MARCEL, G. El mistério del ser; Reflexión y misterio. In: Idem, Obras selectas. Madrid: BAC, 2002. 27 JOÃO PAULO II. Memória e Identidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 28 Idem, Tríptico Romano, p. 9. 29 Ibidem, p. 8. 30 SANTO AGOSTINHO . Confissões I, I, op. cit., p. 73. 31 Cf. WOJTYLA, K. Raios de Paternidade, op. cit., p. 129. 32 Cf. Idem, El lugar interior. In: Poesías. Madrid: BAC, 1982, p. 105. 33 Cf. JOÃO PAULO II. Homem e Mulher X, 21/11/1979, p. 102. 34 Cf. MARCEL, G. O Mistério do Ser..., op. cit., p. 91. Descreve a experiência de estar no corpo como aquela de uma criança que vem ao nosso encontro com os olhos brilhantes e que parece dizer-nos: “Eis-me aqui”. O meu ser é um ser que se manifesta, que se irradia para mim mesmo e, ao mesmo tempo, para os outros. 35 MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2011. “Não é com um objeto físico que o corpo deve ser comparado, mas com uma obra de arte”. 36 S. AGOSTINHO. Confissões I, I, 1, op. cit., p. 73. 37 BENTO XVI. Deus Caritas Est, 5 38 Cf. JOÃO PAULO II. Homem e Mulher LIX, 8/4/1981, p. 333. 39 Idem, Laborem Exercens, 6. 40 SIMEÃO, o Novo Teólogo. Hinos II, v. 19-27. Sources Chrétiennes 156, 178-179 (João Paulo II cita este texto em sua exortação Vida Consagrada, 20).

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41 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit. 42 Ibidem, p. 38. 43 Cf. MACRÍ, O. (ed.) Antonio Machado. Obras completas II: Poesías completas. Clásicos Castellanos 12. Madrid: Espasa Calpe, 1989, p. 713. 44 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher IX, 14/11/19, p. 97; Ibidem VIII, 07/11/1979, p. 93: “A ‘definitiva’ criação do homem consiste na criação da unidade de dois seres”. Eva foi criada para que “pela iniciativa criadora de Deus, o ‘homem’ solitário possa ressurgir na sua dupla unidade de macho e fêmea”. 45 Cf. PIEPER, J. As Virtudes Fundamentais. Lisboa: Aster, 1960. 46 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 44. 47 Ibidem, p. 8. 48 Ibidem, p. 38. 49 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher VIII, 7/9/1979, p. 93: “Pela primeira vez, em Gênesis 2,23, encontramos a distinção ’ish-’ishash”. 50 OVIDIO. Metamorfoses. Tradução de Bocage. São Paulo: Editora Hedra, 2006. 51 SCOLA, A. La ‘cuestión decisiva’ del amor: Hombre-mujer. Madrid: Encuentro, 2003, p. 20. 52 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher VIII, 07/11/1979, p. 91. 53 BENTO XVI. Deus Caritas Est, 11. 54 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 55. 55 BENTO XVI. Deus Caritas Est, 5. 56 Para esta leitura de Deus Caritas Est, cf. GRANADOS, J. La unidad de la persona humana a la luz del amor. In: MELINA, C. Anderson. La vía del amor. Burgos: Monte Carmelo, 2006. 57 SANTO AGOSTINHO. Confissões XIII, IX, 10, op. cit., p. 561. 58 WOJTYLA, K. Amor e Responsabilidade. São Paulo: Loyola, 1982. 59 Ibidem, p. 117. 60 Cf. NORIEGA, J. El destino del eros. Perspectivas de moral sexual. Madrid: Palabra, 2005. 61 WOJTYLA, K. Amor e Responsabilidade, op. cit., p. 120. 62 Idem. 63 Ibidem, p. 95. 64 Ibidem. 65 Ibidem, p. 103. 66 BENTO XVI. Deus Caritas Est, 6. 67 WOJTYLA, K. Amor e Responsabilidade, op. cit., p. 133. 68 Ibidem, p. 97. 69 Idem. A Loja do Ourives, op. cit., 29. 70 Cf. Gaudium et Spes, 24 71 BENTO XVI. Deus Caritas Est, 6. 72 Cf. S. AGOSTINHO. Enarrationes in Psalmos 94,2 (Patrologia Latina 37, c.1217). 73 Cf. WOJTYLA, K. Raios de Paternidade, op. cit., p. 159.

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74 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 4. 75 JOÃO PAULO II. Tríptico Romano, op.cit., p. 9. 76 Ibidem, p. 8. 77 Idem. Homem e Mulher XIII, 02/01/1980, p. 118. 78 EMERSON, Ralph Waldo apud KENNETH, L. Schmitz. The Gift: Creation. Milwakee: Marquette University Press, 1982, p. 59. 79 A história é comentada em RATZINGER, J. Deus e o Mundo. Coimbra: Tenacitas, 2006. 80 Cf. S. IRINEU DE LYON. Adversus Haereses IV, XVIII, 1. Lyon: Sources Chrétiennes, 596. 81 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XVII, 06/02/1980, p. 136. 82 LOYOLA, I. Exercícios Espirituais. São Paulo: Loyola, 1990. 83 CRUZ, S. Juan. Carta 27, a M. María de la Encarnación, 6 de Julio de 1591. In: Obras completas. Madrid: BAC, 1982, 898. A citação exata diz: “Adonde no hay amor, ponga amor, y recogerá amor”. 84 Cf. BROWNING, Elizabeth Barrett. Sonetos Portugueses (tradução de Sérgio Duarte – do livro “Três mulheres apaixonadas”. São Paulo: Companhia das Letras), pp. 38-39. 85 JOÃO PAULO II, Tríptico Romano, op. cit., p. 9. 86 Idem, Homem e Mulher XVIII, 13/02/1980, p. 140. 87 Idem, Homem e Mulher XVII, 06/02/1980, p. 136. 88 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 60. 89 Ibidem, p. 88. 90 Ibidem, p. 98. 91 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XIV, 09/01/1980, p. 121. 92 O cardeal contou esta história durante uma apresentação feita no Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família de Roma. 93 S. IRINEU DE LYON. Adversus Haereses IV, XIV, 1, op. cit. 94 SANTO AGOSTINHO. Confissões X, VIII, 15, op. cit., p. 402. 95 BENTO XVI. Deus Caritas Est, 31. 96 WILDER, Thornton. Our Town: A play in three acts. Londres: Samuel French, 1965, p. 83. Tradução espanhola: Nuestra ciudad. Madrid: Escelicer, 1971. 97 Cf. JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XVII, 06/02/1980, 136: “Acrescentemos que este encontrarem-se a si mesmos no próprio dom, que aumenta devido à disposição interior à troca do dom e na medida em que encontra uma mesma e até mesmo mais profunda aceitação e acolhida, como fruto de uma cada vez mais intensa consciência do dom em si”. 98 BENTO XVI. Deus Caritas Est, 17. 99 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., pp. 86-87. 100 Ibidem, p. 85. 101 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher X, 21/11/1979, p. 105. 102 Idem, Tríptico Romano, op. cit., p. 21. 103 Ibidem, p. 8. 104 Cf. ALIGHIERI, Dante. Purgatório VII 40-60. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1994, pp. 223-224. 105 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher X, 21/11/1979, p. 102. Ver também: Ibidem, VIII, 07/11/1979, pp. 91-92.

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106 JOÃO PAULO II. A Loja do Ourives, op. cit., p. 33. 107 Ibidem, pp. 31-32. 108 Cf. WOJTYLA, K. Irmão de Nosso Deus, op. cit., pp. 62-63. 109 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XVI, 30/1/1980, p. 139ss. 110 Cf. S. ATANÁSIO. De Incarnatione Verbi 3, 3. Lyon: Sources Chrétiennes 199, p. 271. Tradução portuguesa: A encarnação do Verbo. Madrid: Ciudad Nueva, 1989, 37. 111 Cf. S. MÁXIMO, O CONFESSOR. Ambiguum 7. Patrologia Graeca 91, c.1084 A. 112 JOÃO PAULO II, Mulieris Dignitatem, 7. 113 Cf. WOJTYLA, K. Irmão de Nosso Deus, op.cit., pp. 63-64. 114 Alocução de Bento XVI aos participantes da Assembleia do Sínodo Diocesano de Roma, 6 de junho de 2005. 115 Cf. WOJTYLA, K. Poesias, op. cit., p. 96. 116 JOÃO PAULO II. Carta às Famílias, 9. Aqui se explica o que o Concílio Vaticano II quer dizer quando afirma que a imagem de Deus inclui a dimensão social da pessoa (cf. Gaudium et Spes, 12). 117 Para este tema, ver: MELINA, L. Por uma Cultura da Família. Valência: Edicep, 2009. 118 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher IX, 14/11/1979, p. 100: “Nesta primeira expressão do homem-varão, ‘carne da minha carne’, está também incluída uma referência àquilo por que o corpo é autenticamente humano, e portanto ao que determina o homem como pessoa, isto é, como ser que também é ‘semelhante’ a Deus em toda sua corporeidade”. 119 Cf. TERTULIANO. Sobre a Ressurreição da Carne 9, 1(Corpus Christianorum Latinorum II 932). 120 JOÃO PAULO II. Tríptico Romano, op. cit., p. 20. 121 Ibidem, p. 22. 122 Ibidem, p. 17. 123 Ibidem, p. 21. 124 Ibidem, 31. 125 Cf. GUITTON, J. Ensaio sobre o Amor Humano. Buenos Aires: Sudamericana, 1968. Citado aqui na edição inglesa: Human love. Chicago: Franciscan Herald Press, 1966, p. 82. 126 João Paulo II chama o Espírito de “Pessoa-Dom” em sua encíclica Dominum et Vivificantem 10; 22-23. 127 S. SERAFIM DE SAROV apud RUPNIK, M. I. In the fire of the burning bush: An initiation to the spiritual life. Michigan: Eerdmans, Grand Rapids, 2004, p. 30. 128 Cf. SANTO AGOSTINHO . De Trinitate XV, VI, 10 (Corpus Christianorum Latinorum 50, 472). 129 Cf. WOJTYLA, K. Poesias, op. cit., pp. 96-97.

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130 JOÃO PAULO II, Tríptico Romano, op. cit., p. 7. 131 S. AGOSTINHO. Conf. XIII, IX, 10. 132 JOÃO PAULO II. A Loja do Ourives, op. cit., p. 45. 133 Ibidem, p. 42. 134 Ibidem, pp. 42-43. 135 STEINBECK,J. A Pérola. Rio de Janeiro: Record, 2003. 136 JOÃO PAULO II. A Loja do Ourives, op. cit., p. 40. 137 Ibidem, p. 38. 138 Cf. COSTACURTA, B. Exégesis y lectura creyente de la escritura. In: SÁNCHEZ , L.; GRANADOS, C. (ed.). Escritura e interpretación. Madrid: Palabra, 2003, pp. 117-126. 139 WOJTYLA, K. Raios de Paternidade, op. cit., pp. 131-132. 140 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XXVI, 30/04/1980, p. 186. 141 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XIV, 09/01/1980, p. 121. 142 BENTO XVI. Deus Caritas Est, 5. 143 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XXVII, 14/05/1980, p. 191. 144 Ibidem. 145 Ibidem, p. 192. 146 Ibidem, p. 191. 147 WOJTYLA, K. Poesias, op. cit., p. 105; Wojtyla se refere à máxima manifestação do amor do Pai, na Cruz de Seu Filho. 148 Cf. JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XXV, 23/04/1980, p. 179. 149 S. AGOSTINHO. Confissões VIII, X, 22, op.cit., p. 333. 150 Ibidem, p. 259. 151 WOJTYLA, K. Raios de Paternidade, op. cit., p. 173. 152 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XXVIII, 28/05/1980, p. 195. 153 Cf. JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XXVII, 14/05/1980, p. 198. 154 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 61. 155 Ibidem, p. 52. 156 Ibidem, p. 39. 157 Raios de Paternidade, op. cit., p. 164. 158 JOÃO PAULO II. Mulieris Dignitatem, p. 18. 159 Idem, Homem e mulher XXXIII, 30/07/1980, p. 216. 160 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 48. 161 Idem, Esplendor de Paternidade, op. cit., pp. 164-166. 162 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XXXIII, 30/07/1980, p. 215. 163 ALIGHIERI, Dante. Inferno V 103-105, op. cit., pp. 44-45. 164 Idem, Inferno V 43, op. cit., p. 42. 165 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 42. 166 Ibidem, pp. 49-50. 167 Ibidem, p. 40. 168 Ibidem, pp. 78-79. 169 JOÃO PAULO II. Tríptico Romano, op.cit., p. 23s. 170 WOJTYLA, K. Esplendor de Paternidade, op. cit., p. 133. 171 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XCVII, 13/10/1982, p. 525.

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172 Cf. WOJTYLA, K. Amor e Responsabilidade, op. cit., p. 191: “A humildade é a devida atitude de respeito de toda verdadeira grandeza, seja ela minha ou não. O corpo humano deve ser humilde diante da grandeza que representa a pessoa, porque é esta que dá a medida do homem, e o corpo humano deve ser humilde diante da grandeza do amor [...]. O corpo deve ser humilde na presença da felicidade humana”. 173 Idem. A Loja do Ourives, op. cit., p. 98. 174 JOÃO PAULO II, Tríptico Romano, p. 18. 175 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 97.

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176 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., pp. 59-61. 177 Ibidem, p. 97 178 Ibidem, p. 29. 179 S. MÁXIMO, o Confessor. Capitum de Caritate, IV, 100 (Patrologia Graeca, 90, c.1073A). 180 Cf. BENTO XVI. Deus Caritas Est, 11. 181 WOJTYLA, K. Raios de Paternidade, op. cit., pp. 133-134. 182 JOÃO PAULO II. Tríptico Romano, op. cit., p. 18. 183 Ibidem, p. 29. 184 Ibidem, p. 32. 185 Ibidem, p. 30. 186 JOÃO PAULO II. Poesias, op. cit., p. 103 (tradução ligeiramente modificada). 187 WOJTYLA, K. Raios de Paternidade, op. cit., p. 136. 188 Cf. Gaudium et Spes, 22. 189 WOJTYLA, K. Raios de Paternidade, op. cit., pp. 131-132. 190 Cf. JOÃO PAULO II. Tríptico Romano, op. cit., pp. 13-17. 191 Cf. JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XVI, 30/01/1980, pp. 128-129. 192 Ibidem, XXIII, 02/04/1980, p. 165. 193 WOJTYLA, K. Esplendor de Paternidade, op. cit., p. 138. 194 Ibidem, p. 138. 195 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p.101. 196 WOJTYLA, K. Poesias, op. cit., p. 106. 197 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Gaudium et Spes, 24. 198 JOÃO PAULO II, Tríptico Romano, op. cit., p. 35 199 S. LEÃO MAGNO, Sermo XXI, 3 (Sources Chrétiennes 22a, 72). 200 WOJTYLA, K. Raios de Paternidade, op. cit., pp. 136-137 (tradução levemente modificada). 201 Cf. WOJTYLA, K. Job. In: The collected plays and writings on theater. Berkeley: University of California Press, 1987, p. 70. 202 Cf. JOÃO PAULO II. Salvifici Doloris, 9 203 Cf. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. São Paulo: 34, 2008, pp. 117-118. 204 Cf. Ibidem, p. 392. 205 Cf. JOÃO PAULO II. Salvifici Doloris, 5-8. 206 Ibidem, 30. 207 Idem, Redemptor Hominis, 9. 208 WOJTYLA, K. Poesias, op. cit., p. 97. 209 Idem. Raios de Paternidade, op. cit., p. 174 (tradução levemente modificada). 210 Idem. Dominum et Vivificantem, 41. 211 S. IRINEU DE LYON. Adversus Haereses III, 24, 1. Sources Chrétiennes 211, 472. 212 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 47. 213 BENTO XVI. Deus Caritas Est, 19. 214 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 61. 215 S. INÁCIO DE ANTIOQUIA. À Igreja de Esmirna, 1,2. In: AYÁN, J. J. Inácio de Antioquia. Policarpo de Esmirna. Carta da Igreja de Esmirna. Fontes Patrísticas 1. Madrid: Ciudad Nueva, 1991, p. 171. 216 WOJTYLA, K. Raios de Paternidade, op. cit., p. 176. 217 Ibidem, p. 177.

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218 Ibidem, p. 137.

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219 ALIGHIERI, Dante. Inferno I 1, op. cit., p. 21. 220 WOJTYLA, K. The collected plays, op. cit., pp. 392-393. 221 ALIGHIERI, Dante. Paraíso I 136-141, op. cit., p. 369. 222 SANTO AGOSTINHO. Confissões XIII, IX, 10, op. cit., p. 561. 223 Cf. SANTO AGOSTINHO . Tratados sobre o Evangelho de São João 33,4-6 (Corpus Christianorum Latinorum 36, 307-309). 224 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XXV, 23/04/1980, p. 179s. O homem deve aprender “o que é o significado do corpo […] na esfera das reações interiores do próprio ‘coração’” (Idem, Homem e Mulher XLVIII, 12/11/1980, p. 284). Cristo chama o homem interior a um discernimento mais maduro dos diversos movimentos de seu próprio coração. 225 Cf. GREGÓRIO NAZIANZO. Oratio 43, 20 (Patrologia Graeca 36, c.521). 226 WOJTYLA, K. Amor e Responsabilidade, op. cit., p. 76. 227 SANTO AGOSTINHO . De Moribus Ecclesiae Catholicae I, 15, 25 (edición española: AGUSTÍN, S. Obras Completas IV. Madrid: BAC, 1956, p. 293. 228 WOJTYLA, K. Irmão de Nosso Deus, op. cit., p. 69. 229 Ibidem, 83. 230 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher LVI, 11/02/1981, p. 321. 231 Cf. Mt 12,28; Lc 11,20. 232 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher LVII, 18/03/1981, p. 323. 233 Idem. Homem e Mulher LVI, 11/02/1981, p. 321. 234 WOJTYLA, K. Amor e Responsabilidade, op. cit., p. 188. 235 SANTO AGOSTINHO . Confissões X, XXIX, 40, op. cit., p. 426. 236 WOJTYLA, K. Amor e Responsabilidade, op. cit., p. 190. 237 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher LIV, 28/01/1981, p. 312. 238 SANTO AGOSTINHO . De Moribus Ecclesiae Catholicae 1, 15, 25. In: Idem, Obras completas IV; Madrid: BAC, 1956, p. 293. 239 WOJTYLA, K. Amor e Responsabilidade, op. cit., p. 189. 240 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher C, 24/11/1982, p. 540. 241 WOJTYLA, K. Amor e Responsabilidade, op. cit., p. 98. 242 KIERKEGAARD, S. A Pureza do Coração É Querer uma só Coisa. Buenos Aires: La Aurora, 1979. 243 ALIGHIERI, Dante. Purgatório XXVII 130-142, op. cit., p. 331. 244 SANTO AGOSTINHO . Confissões XIII, IX, 10, op. cit., p. 561. 245 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher CXXII, 14/11/1984, p. 670. Piedade, “nascida da profunda consciência do mistério de Cristo, deve constituir a base das recíprocas relações entre os cônjuges”. Idem, Homem e Mulher LXXXIX, 11/08/1982, p. 484. 246 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher LVII, 18/03/1981, p. 324. 247 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 98. 248 Idem. Amor e Responsabilidade, op. cit., p. 191. 249 ALIGHIERI, Dante. Purgatório, X, 40-45, op. cit., p. 239: “Quem não jurara que profere o Ave, / Pois juntamente figurada estava / Quem do supremo amor volvera a chave? / Seu semblante estas vozes expressava / Ecce ancilla tão propriamente, / Como na cera imagem, que se grava.”

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250 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 18. 251 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XCVI, 06/10/1982, p. 522. 252 Idem. Familiaris Consortio, 13. 253 TERTULIANO. Ad Uxorem, 2, 8, 6-7; cf. FC 13 (Corpus Christianorum Latinorum I 393). 254 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher CI, 01/12/1982, p. 544. 255 Idem. Homem e Mulher CIII, 05/01/1983, p. 555. 256 SHAW, G. B. Getting Married. In: The doctor’s dilemma, Getting married and the shewing-up of blanco posnet. Nova York: Brentano’s, 1915, p. 139. 257 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 32. 258 BENTO XVI. Discurso aos participantes da Assembleia Diocesana de Roma, 6 de junho de 2005. 259 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 19. 260 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher CV, 19/01/1983, p. 565. 261 “Também na geração dos filhos o matrimônio reflete o seu modelo divino, o amor de Deus pelo homem. No homem e na mulher a paternidade e a maternidade, como o corpo e como o amor, não se deixam circunscrever no biológico: a vida só é dada totalmente quando, com o nascimento, são dados também o amor e o sentido que fazem com que seja possível dizer sim a esta vida”. BENTO XVI. Discurso aos participantes do congresso eclesial da diocese de Roma, 06 de jun. 2005. 262 WOJTYLA, K. Raios de Paternidade, op. cit., p. 138. 263 JOÃO PAULO II. Mulieris Dignitatem, 18. 264 Ibidem. 265 “Primeiros passos”, segundo outro quadro de Jean-François Millet. 266 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher XCVI, 06/10/1982, p. 523s. 267 Cf. Idem. Familiaris Consortio, 32. 268 Idem. Homem e Mulher CXXXI, 14/11/1984, p. 670. 269 UNDSET, S. Kristin Lavransdatter. Nova York: Penguin Books, 2005, p. 1122. Tradução espanhola: Cristina, hija de Lavrans. Madrid: Encuentro, 1997.

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270 JOÃO PAULO II. Tríptico Romano, op. cit., p. 22. 271 Ibidem. 272 Ibidem. 273 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 29. 274 JOÃO PAULO II. Tríptico Romano, op. cit., p. 22. 275 WOJTYLA, K. Poesias, op. cit., p. 119. 276 JOÃO PAULO II. Tríptico Romano, op. cit., 22. 277 MARCEL, G. O mistério do ser II: Fé e realidade. In: Obras selectas (I). Madrid: BAC, 2002, p. 320. 278 TERTULIANO. A Ressurreição da Carne, p. 36 (Corpus Christianorum Latinorum II 932). 279 “A ‘espiritualização’ significa não só que o espírito dominará o corpo, mas, diria, que ele penetrará inteiramente no corpo, e que as forças do espírito penetrarão nas energias do corpo” (JOÃO PAULO II. Homem e Mulher LXVII, 09/12/1981, p. 374). “Todavia isto não se entende como definitiva ‘vitória’, do espírito sobre o corpo. A ressurreição consistirá na perfeita participação de tudo o que no homem é corpóreo naquilo que nele é espiritual. Ao mesmo tempo consistirá na perfeita realização do que no homem é pessoal” (Ibidem, p. 375). 280 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher LXVIII, 16/12/1981, p. 380. 281 PSEUDO-ACÁRIO. Homilia XV, 38 (Patrologia Graeca 34, c.602). 282 JOÃO PAULO II. Homem e mulher LXVI, 02/12/1981, p. 371s. 283 DANTE ALIGHIERI . Purgatório XV 55-56, op. cit., p. 265. 284 Ibidem, 15, 61-75, pp. 323-324. 285 JOÃO PAULO II. Homem e Mulher LXVIII, 16/12/1981, p. 379. 286 Ibidem, CX, p. 585. 287 Ibidem, CIX, p. 581. 288 Ibidem, CX, pp. 584-585. 289 WOJTYLA, K. Irmão de Nosso Deus, op. cit., p. 69. 290 S. METÓDIO DE OLIMPO. Symposium 1, 4 (Sources Chrétiennes 95, 62). 291 JOÃO PAULO II. Homem e mulher LXXXI, 05/05/1982, p. 442. 292 SÃO MÁXIMO, O CONFESSOR. Centúrias gnósticas II, 28 (p. 90, 1092). 293 SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA . A Policarpo, 5, 2. In: AYÁN, J. J. Ignacio de Antioquia. Policarpo de Esmirna. Carta da Igreja de Esmirna. Fuentes Patrísticas 1. Madrid: Ciudad Nueva, 1991, pp. 185-187. 294 S. AGOSTINHO. Confissões VIII, XI, 27, op. cit., p. 337. 295 CLAUDEL, P. O Anúncio Feito a Maria. Rio de Janeiro: Agir, 1968, p. 131. 296 JOÃO PAULO II. Homem e mulher LXXXI, 05/05/1982, p. 442. 297 ALIGHIERI, Dante. Paraíso XXXIII 7, op. cit., p. 436. 298 JOÃO PAULO II. Familiaris Consortio, 85 299 CONCÍLIO VATICANO II. Lumen Gentium, 1.

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300 As reflexões sobre o bem comum foram tiradas da CAFFARRA, C. “Famiglia e bene comune”. Palestra efetuada na Inauguração do Ano Acadêmico 2006/2007 do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família no 26º ano de sua fundação. Cidade do Vaticano, 2006. 301 WOJTYLA, K. A Loja do Ourives, op. cit., p. 27. 302 JOÃO PAULO II. Carta às Famílias, 10. 303 Ibidem. 304 Cf. Ibidem, p. 7. 305 Idem, Mulieris Dignitatem, 18. 306 Idem, Carta às Famílias, 11. 307 Idem, Centesimus Annus, 37. 308 Ibidem, 39. 309 Para uma discussão mais detalhada sobre este ponto, ver o livro: JONAS, H. The Imperative of Responsibility: in search of an ethics for the technological age. Chicago: University of Chicago Press, 1984. Tradução em português: O Princípio da Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 310 JOÃO PAULO II, Carta às Famílias, 10. 311 A citação é de uma entrevista em que Fontana resumia o conteúdo de seu livro: FONTANA, S. Per una politica dei doveri dopo il fallimento della stagione dei diritti. Siena: Cantagalli, 2006. 312 BENTO XVI. O Cristão e a Crise da Europa. Madrid: Cristiandad, 2006, pp. 46-47. 313 A razão disso emerge do que dissemos até agora neste livro: a dignidade do homem se baseia em seu ser imagem de Deus, amado por Ele por si mesmo (cf. Gaudium et Spes, 24). 314 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 214. 315 JOÃO PAULO II. Familiaris Consortio, 17. 316 Idem, Carta às Famílias, 15. 317 Ibidem, 13. 318 BENTO XVI. Audiência Geral, 07/02/2007. 319 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Lumen Gentium, 1. 320 JOÃO PAULO II. Carta às Famílias, 2.

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Índice Folha de rosto Créditos Prólogo Introdução O homem, caminho da Igreja; o amor, caminho do homem No princípio, a maravilha O amor, o berço onde nasce a maravilha Para unir a fé e a vida Qual é o caminho da Igreja?

Primeira Parte O amor, revelado no corpo Capítulo 1 O mistério do corpo Uma bússola para as experiências A solidão do princípio O corpo, testemunho e expressão da pessoa Eu sou o meu corpo Corpo e lar Deus fala com o homem em seu corpo Deus confia o corpo ao homem como uma tarefa Capítulo 2 A diferença sexual: uma vocação ao amor Encontrar o amor: “Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!” O amor, uma nova criação Identidade e diferença Sexo e “gênero” A ascensão do amor O amor os libertará Capítulo 3 O mistério nupcial: do dom original ao dom de si mesmo Para entender o dom O Doador original O corpo: uma testemunha do dom originário Do dom originário ao dom de si Maternidade e paternidade O masculino e o feminino à luz do dom originário 196

2 3 4 7 7 11 14 16

18 19 20 25 26 26 28 30 32 35 35 37 38 41 43 50 52 53 55 58 60 62 63

Capítulo 4 A comunhão de pessoas, imagem da Trindade A imagem do filho A imagem de Deus se forma no tempo A imagem se revela na comunhão A imagem de Deus no corpo: nudez originária Entrar na comunhão de Deus

Segunda Parte A redenção do coração Capítulo 5 Um coração ferido: a fragilidade do amor Um abismo começa a se abrir entre Deus e o homem O corpo: o lar que se transforma em prisão Uma fissura no interior do homem A fissura que separa o homem e a mulher A fissura que passa de pais para filhos Um chamado ao coração humano Capítulo 6 Cristo: Redentor do coração e plenitude do amor Renasce a paternidade Cristo, o Filho Cristo, o Esposo “Isto é o meu corpo que é dado por vós” (Lc 22,19) Somos frutos do amor de Cristo A vida de Cristo e o caminho da imagem Capítulo 7 Amadurecer no amor A Lei no coração do homem A virtude: um amor ordenado A amizade com Cristo no Seu Espírito A pureza, ou a arte de amar O dom da piedade

Terceira ParteA beleza do amor: o esplendor do corpo Capítulo 8 Amar do amor de Cristo: o sacramento do matrimônio O sinal do corpo A nova medida do amor Fidelidade para sempre O dom de uma nova vida Educar no amor O problema dos anticoncepcionais 197

66 67 69 70 73 75

79 80 82 84 86 88 92 93 96 97 99 102 105 108 110 111 113 115 117 119 122

125 126 126 128 131 135 137 139

Métodos naturais para regular a fertilidade A caridade conjugal e o chamado à santidade Capítulo 9 Testemunhas da plenitude do amor: a virgindade cristã e o destino final do corpo O corpo: testemunho de vida e de morte Mais forte que a morte é o amor Filhos para sempre Um amor ressuscitado Não se casarão… O chamado à virgindade Filhos, esposos, pais: o caminho da virgindade consagrada Mãe e Virgem Capítulo 10 A família e a civilização do amor A vida em sociedade e o bem comum O bem comum dos esposos O bem comum que é o filho A fonte última do bem comum Família, sê o que és! Missão da família, missão da Igreja

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141 143 145 146 148 150 152 153 155 157 159 162 162 164 165 166 169 170