Obra Filosófica

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Obra publicada com a colaboração da

REITOR: PROF. DR. Luís ANTÔNIO DA GAMA E SILVA. VICE-REITOR EM EXERCÍCIO: PROF. DR. ALFREDO BUZAID. EDITôRA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO COMISSÃO EDITORIAL :

Presidente Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras). Membros: Prof. Dr. Antônio Brito da Cunha (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras), Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Miguel Reale (Faculdade de Direito), e Prof. Dr. Pérsio de Souza Santos (Escola Politécnica).

GUANABARA: Rua Marquês de Olinda, 12 - RIO DE JANEIRO SÃO PAULO: Rua dos Gusmões, 100 - SÃO PAULO PERNAMBUCO: Av. Visconde de Suassuna, 562 - RECIFE MINAS GERAIS: Rua Januária, 258 - BELO HORIZONTE RIO GRANDE DO SUL: Rua dos Andradas, 717 - PôRTO ALEGRE DISTRITO FEDERAL: Av. W 3, conj. 203-205 - BRASILIA BAHIA: Rua Gustavo dos Santos, 10 - SALVADOR P ARANA: Rua Monsenhor Celso, 272 - CURITIB·A

COLEÇÃO DOCUMENTOS BRASILEIROS DIRIGIDA POR AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO

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SYL VIO ROMERO

OBRA FILOSÓFICA Introdução e Seleção de Luís Washington Vita

1 Livraria JOSÉ OLYMPIO Editôra Rio de Janeiro-1969

EDITôRA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

OBRAS DE SYLVIO ROMERO (DISTRIBUIÇÃO SISTEMATICA FEITA POR ÊLE PRÓPRIO) 1-

CRITICA E HISTóRIA LITERARIA 1) A Literatura Brasileira e a Crítica Moderna - 1880 2) Introdução à História da Literatura Brasileira - 1882 3) Estudos de Literatura Contemporânea - 1884 4) Valentim Magalhães - 1885 5) História da Literatura Brasileira - 1• ed. 1888 - 2• ed. 1902-1903 6) Novos Estudos de Literatura Contemporânea - 1897 7) Machado de Assis - 1897 (2• ed. 1936 por N. R.) 8) Martins Pena - 1897 9) Ensaios de Sociologia e Literatura -- 1900 10) Parnaso Sergipano - 1904 11) Evolução da Literatura Brasileira -- 1905 12) Evolução do Lirismo Brasileiro - 1905 13) Outros Estudos de Literatura Contemporânea 1905 14) Compêndio da História da Literatura Brasileira - 1906 15) Quadro Sintético da Evolução dos Gêneros na Literatura Brasileira 16) 17)

1909

Minhas Contradições - 1914 Zeverissimações Ineptas da Crítica -- 1910

II-FOLCLORE 1) Cantos Populares do Brasil - 1' ed. 1883 - 2• ed. 1897 2) Contos Populares do Brasil - 1• ed. 1885 - 2• ed. 1897 3) Estudos sôbre a Poesia Popular Brasileira - 1889 4) Uma Esperteza - (Os Cantos e os Contos Populares do Brasil e o Sr. Teófilo Braga) - 1887 5) Passe Recibo - 1905 III -

ETNOGRAFIA Etnografia Brasileira - 1888 A Pátria Portuguêsa -- 1906 América Latina - 1906 O Antigo Direito em Espanha e Portugal -

1) 2) 3) 4)

IV -

V -

1894-1895

POLtTICA E ESTADO SOCIAL 1) Ensaios de Crítica Parlarmentar - 1883 2) A História do Brasil pela Biografia dos seus Heróis - 1890 (Com 7 edições sucessivas até 1913) 3) O Parlamentarismo e o Presidencialismo no Brasil - 1893 4) Discursos - 1904 5) O Brasil Social - 1908 6) Provocações e Debates - 1909 7) O Brasil na Primeira Década do Século XX -- 1912 FILOSOFIA 1) A Filosofia no Brasil - 1878 Doutrina contra Doutrina - 1894 Ensaio de Filosofia do Direito - 1895

2) 3)

VI -

POESIA Cantos do Fim do Século -- 1878 últimos Arpejos - 1883

1) 2)

VII -

OPúSCULOS Etnologia Selvagem - 1875 Interpretação Filosófica dos Fatos Históricos - 1880 3) O Naturalismo em Literatura - 1882 4) A Filosofia no Ensino Secundário - 1886 5) As Formas Principais da Organização Republicana - 1888 6) Luis Murat - 1890 7) O Elemento Português no Brasil - 1902 8) O Duque de Caxias e a Integridade do Brasil - 1903 9) Pinheiro Chagas - 1904 10) O Alemanismo no Sul do Brasil - 1905 11) O Brasil Social - 1907 12) Euclides da Cunha - 1907 )!3) · Da Critica e sua Exata Definição - 1909 14) Geografia da Politicagem - 1909 15) Bancarrota do Regime Federativo na República Brasileira 16) O Castilhismo no Rio Grande do Sul - 1910 17) O Remédio - 1913. 1) 2)

1910

syl viu romero 1

obra filosófica fNDICE GERAL Nota da Editôra . VII Um Grande Lidador (Miguel Reale) VIII Introdução (Luís Washington Vita) XI

A Filosofia no Brasil

I -

Nota Inicial . I [Mont'Alverne . II [Ferreira França] . . III [Gonçalves de Magalhães] . . . . . . IV [Patrício Muniz] . . V [José Soriano de Souza] VI [Pedro Américo] VII [Pereira Barreto] VIII [Araújo Ribeiro] IX [Guedes Cabral] X [Tobias Barreto] Conclusão A Filosofia no Brasil e o Sr. Herculano Bandeira

5 7 15

22 32 39 42 55 77 95 109 139

8. Farias Brito a) Concurso de Lógica. b) Parecer

III - Doutrina contra Doutrina: o Evolucionismo e o Positivismo no Brasil Prólogo à 2.ª Edição . 249 Introdução 262 Primeira Parte: O Positivismo em sua Idéias Capitais: I -

A Suposta Razão Fundamental do Positivismo e suas Exageradas Pretensões . 314

II -

A Classificação das Ciências 378

III -

149 IV -

II -

Filósofos Brasileiros

1. Quadro Sintético da Filosofia no Brasil .

163

2. Tobias Barreto a) Breve Notícia de sua

Vida.

164

b) O Martírio de Tobias

Barreto c) Um Livro sôbre Tobias Barreto . 3.

173

177

237 243

A Lei dos Três Estados Conclusão

437 490

Ensaio de Filosofia do Direito

Prefácio à 2" Edição . 499 Prefácio à l.ª Edição . 501 Parte 1: Idéias de Filosofia e Sociologia Indispensáveis à Boa Compreensão do Direito 509 Parte II: Meio natural em que se origina e desenvolve o Direito . 609 Parte Ili: Natureza Intrínseca e Elementos Componentes do Direito 633

Tito Lívio de Castro

a) A Mulher e a Sociogenia b) Questões e Problemas 4. Samuel de Oliveira . 4 . Leônidas e Sá . 6. Viveiros de Castro . 7. Liberato Bittencourt

V -

181 191 213 223 228 232

Problemas Soluções

1 . A Filosofia e o Ensino Secundário . . . . 2. Se a Economia Política é uma Ciência . 3 . Idealismo e Realismo . 4. A Festa do Trabalho . índice Onomástico

675 687 695 698 702

Nota da Editôra Dados biobibliográficos de Luís Washington Vita

.,. ~

Filho de Antônio Vita e de Angelina Maffei Vita, nasceu LUfS WASHINGTON VITA em S. Paulo a 23 de março de 1921. Na Capital paulista fêz seus estudos primários e secundários, demonstrando já na juventude forte e marcado pendor para o jornalismo crítico, que mais tarde exerceria com realce no campo das letras, das artes e das idéias. Cursou a Escola de Biblioteconomia e seguiu o curso pós-graduado da Escola Livre de Sociologia, ambas de S. Paulo. Bacharelado e licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de S. Paulo, bacharelou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, doutorando-se posteriormente na mesma ciência pela Universidade de São Paulo. Espírito aberto e comunicativo, tornou-se excelente professor de Filosofia e conferencista dos mais aplaudidos pela clareza e originalidade da exposição, marcada sempre por um grifo de amável ironia. Além de jornalista profissional, foi professor-chefe da Municipalidade de S. Paulo e secretário executivo do Instituto Roberto Simonsen da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Através de bôlsas de estudos, visitou diversos países, como Alemanha, Portugal, Estados Unidos, Panamá, Argentina, México, proferindo conferências ou participando de congressos de Filosofia. Como escritor, publicou vários livros na área de sua especialidade, a saber: Da Técnica como Problema Filosófico, Revista dos Tribunais, S. Paulo, 1950; Encontro d'Agua (Apontamentos de Filosofia), Martins, S. Paulo, 1950; A Filosofia no Brasil, Martins, S. Paulo, 1950; Arte e Existência (Notas de Estética e Filosofia da Arte), Martins, S. Paulo, 1950; Compêndio de Filosofia (2.ª edição), Melhoramentos, S. Paulo, 1954; Páginas de Estética, Letras da Província, Limeira, 1956; Temas & Perfis, Daedalus, S. Bernardo do Campo, 1957; Namôro com Têmis (Notas de Ciência e Filosofia do Direito), Mestre Jou, S. Paulo, 1958; O Mito de Héfestos, Ciesp, S. Paulo, 1959; Antero de Quental:

vii

Tentativa de Compreensão do Sentido Político de sua Vida e de sua Obra, Departamento de Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1961; Introdução à Filosofia, Melhoramentos, S. Paulo, 1964; Momentos Decisivos do Pensamento Filosófico, Melhoramentos, S. Paulo, 1964; Escôrço da Filosofia no Brasil, Atlântida, Coimbra, 1964; Introdução à Filosofia, Melhoramentos, S. Paulo, 1964. Nos últimos anos, empenhou-se Luís Washington Vita na mais apaixonante tarefa de sua vida de ensaísta e de crítico de idéias, traduzida pelo recolhimento da obra filosófica, totalmente esparsa, ou mesmo perdida, e Ciência são necessàriamente correlativas, representando no dizer 'de Spencer, "dois modos antitéticos da consciência que 1liio podem existir separados" (Les premiers príncipes, trad. francesa, 8~ª ed., págs. 94-5). Com isto, reconhecia Sylvio Romero, em flagrante contraposição ao positivismo, que tôda atitude antimetafísica já envolve .uma exigência metafísica, ou melhor se desfaz diante da exigência natura!, essencial e universa~ da Metafísica,

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como reconheceu o próprio Kant. Sendo a Metafísica o horizonte ontológico do espírito filosófico, o homem teria, assim, que cessar de ser o que é para poder desvencilhar-se do pensamento metafísico, para deixar de captar uma implicação do transcendente e universal no imediato particular. E isto foi visto com tôda clareza pelos heterodoxos do positivismo brasileiro, notadamente Sylvio Romero e Pedro Lessa. Quanto à compreensão do fenômeno religioso, Sylvio Romero ainda se mostra mais aberto. Compreende-o, porém, mais à maneira de Spencer do que de Comte, contrapondo evolucionismo e positivismo, pois, para êle, "interpretando o evolucionismo naturalístico e agnóstico de nosso tempo, Religião e Ciência são duas coisas profundamente distintas, tendo ambas desenvolvimento separado; mas simultâneo, paralelo e não sucessivo" (Doutrina contra Doutrina, pág. 253). Perguntado se a Filosofia poderá substituir a Religião ou ser substituída por esta, responde: "Absolutamente, não. A Religião em todos os tempos, ontem como hoje, não foi em essência outra coisa mais do que o peculiar estado d'alma diante do desconhecido, do ponto de partida de tôdas as coisas, das origens do universo e de seu ulterior destino, tudo isso em face do acanhado de nossos conhecimentos, que não podem prender em uma fórmula a imensidade dos fatos e nem sufocar o surto do sentimento diante do infinito, qualquer que seja o conteúdo que se possa ou deva dar a êste conceito" (op. cit., pág. 42). Porque "enquanto houver uma falha na explicação geral do universo, uma lacuna na Ciência e uma interrogação sem resposta definitiva diante do homem, êle há de ser um animal religioso; porque em sua alma tem de haver até lá a vibração específica das emoções que constituem a religiosidade" (op. cit., loc. cit.). É quase a moderna compreensão diamática da Religião, já que êste tipo de abordagem, embora acreditando na superação da forma religiosa da consciência, repele a ilusão idealista consoante a qual o desaparecimento da religião poderia ser apressado pela repressão ou pela violência feita às consciências religiosas. Porque Sylvio Romero entendia a forma da consciência religiosa como um comportamento alienado. A Metafísica entendida como ciência do incognoscível, de clara extração spenceriana, significa, como se sabe, que a Ciência e a Filosofia levam à afirmação da existência de realidades sôbre as quais não há meio algum de informação científica. Isto é, reconhece a existência, além do real e visível da ciência, "algo a respeito do qual nada se sabe e nada jamais se pode saber". Com isto, a Metafísica é o domínio por excelência da conjetura e da imaginação, surgindo ela sob o aspecto de realidades situadas além do universo, formando, consoante a expressão de Littré, um oceano para o qual não temos barco nem vela. É o absoluto agnosticismo, ponto de vista que afirma que o mundo é incognoscível e a razão humana limitada e incapaz de conhecer nada além das sensações. Isto é, a tendência do pensamento agnóstico é não ir além das sensações e deter-se aquém dos fenômenos. Contra isto se volta Sylvio Romero para quem não há limites absolutos ao conhecimento humano, inexistindo em a natureza coisas incognoscíveis, o que não quer dizer que não exista uma diferença entre o já XX

conhecido e o que ainda não é conhecido, mas que o será graças à Ciência e à praxis. É isto o que se depreende desta afirmativa de Sylvio Romero: "Tôdas as filosofias progressivas devem ser relativas, devem deixar um lado aberto na fronteira do desconhecido. É a condição de todo o progresso espirtiual" (op. cit., pág. 250). Típica filosofia progressiva foi a de Sylvio Romero, inclusive quando se antecipq à discussão de problemas sociais. Seu artigo "A Festa do Trabalho" (1895) é boa amostra dessa sua preocupação. Diz aí: "No grande drama da história, como num quadro mutilado, tem sempre andado ausente a principal personagem. Atrás dos bastidores sente-se estuar o gigante, como um mar atroante, proceloso, batendo em vão nas faldas da montanha. É o povo no seu imenso anonimato, na sua desassinalada grandeza, na sua fôrça descuidosa e ingênua" (Novos Estudos, pág. 217). Ao expor sua interpretação filosófica dos fatos históricos (1885) assume posição nitidamente contrária ao elitismo, ao espírito de escol, representado pelo hero-worship de Carlyle (ação exclusiva de certos homens, selecionismo do gênio) que, a seu ver, "tem o defeito de desconhecer o valor das criações evolutivas e profundas das massas populares e dar um culto por demais exagerado e sôbre-humano a alguns tipos privilegiados. Um sistema de história, que não dá conta das produções anônimas, é perfeitamente incompleto e falso" (Ensaio etc., págs. 122-3). A seu ver, o aparecimento do Socialismo foi a resposta do povo aos escóis tuteladores: "[ ... ] apareceu o protesto do Socialismo, atirando os instrumentos do trabalho no meio da contenda: Basta de menoridade e de tutela; é já demais que muitos milhões de famintos consumam a vida para alimentar os ócios de uma minoria de privilegiados!" (Novos Estudos, pág. 219). Contudo, Sylvio Romero achava, em 1895, que era "cedo ainda para pensarmos em reivindicações socialistas" (op. cit., pág. 220), não duvidando, porém, que "as grandes leis da história hão de se cumprir também no Brasil; nós também havemos de ter o nosso quarto estado triunfante. Não há dúvida" (Doutrina contra Doutrina, pág. XLIV). Reconhecendo que "em rigor todo o país é ainda uma vasta feitoria, uma verdadeira colônia, explorada pelo capital europeu sob a forma de comércio e sob a forma de emprêsas" (op. cit., pág. XLVI), reporta-se ao Socialismo nestes têrmos: "Neste grande partido universal, dividido em umas poucas ramificações, parece-nos bem fundada e digna de aplausos a aspiração para um melhoramento das classes pobres, das classes trabalhadoras. Tudo quanto. teórica e pràticamente tender a êsse alvo superior tem a razão de seu lado e há de contar com o futuro. O quarto estado há de emancipar-se e florescer como poderoso fator" (op. cit., pág. CII). Não tem nenhuma dúvida quanto a isto. Mas duvida quanto à "crença de que os males humanos são remediáveis" (op. cit., loc. cit.), recomendando, então, que "fôra útil que os socialistas temperassem os seus devaneios com algumas doses de pessimismo" (op. cit., pág. CIII), "pessimismo moderado, que inspira apenas a desconfiança pelas teses absolutas de felicidade indefinida, que nos adverte da improficuidade dos esforços que tendem a um alvo impossível", pois se acredita que o prole-

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tariado "chegará a crescer em fôrça e prestígio", não acredita "que desapareçam a miséria, a injustiça, a dor moral, o desassossêgo pelo futuro, as apreensões pela família, as desigualdades sociais e econômicas, as irregularidades políticas, os dissabores da vida humana" (op. cit., loc. cit.). Em suma: nosso operariado fará, pois, bem em organizar-se e crescer, deixando de lado certas pretensões, importunas aqui no Brasil, sistematização engendrada vara a situação da Europa, que não é precisamente a nossa situação" ( op. cit., pág. CV). Era o preço de seu atrelamento à ideologia do colonialismo que, inclusive, fê-lo engajar-se no preconceito das "raças inferiores" (cf. Nelson Werneck Sodré, A Ideologia do Colonialismo, 1961, págs. 61-99). Porque estava Sylvio Romero convencido de que "o homem não pode ser coagido a praticar o bem; o Estado não pode suprimir a miséria" (Ensaio etc., pág. 223). 4.

Critério Editorial.

Ao preparar a Obra Filosófica de Sylvio Romero para sua publicação, o princípio central que serviu de guia foi a total abstenção de se interferir na dupla comunicação entre autor e o leitor. Tôda intervenção do organizador, que sempre aparece entre colchêtes, teve por fim situar o pensamento romeriano no tempo. Assim, salvo em casos de erros ocasionais na pontuação e atualização ortográfica, os ensaios são aqui apresentados tal como foram escritos originalmente por Sylvio Romero. A principal diferença em relação às edições utilizadas foi a sistemática tradução dos textos transcritos, seguindo nesse sentido o próprio critério de Sylvio Romero que nos últimos livros preferia verter os textos (ainda que na segunda edição do Ensaio de Filosofia do Direito o critério tenha sido inverso, voltando as transcrições às línguas originárias). Nem teria cabimento as transcrições em alemão ... de Tobias Barreto, como ocorre em A Filosofia no Brasil. , Tôda pretensão erudita foi aqui abolida, assim como pareceu descabido um levantamento bibliográfico dos aproches existentes a propósito da Obra Filosófica de Sylvio Romero. O que existe, como ficou comprovado com a amostragem dessa Introdução, é de pouca ou nenhuma utilidade: êsse pensamento é quase sempre negado, enquanto, por outro lado e poucas vêzes, exaltado-jamais compreendido. A presente edição conjunta da especulação romeriana talvez seja um convite a essa compreensão. Quanto à ordem do conjunto, ao invés da seqüência "histórica" foi adotada a disposição temática, sobressaindo-se o historiador de idéias que, nem por isso, deixou de ser também um notável doutrinador e ideólogo, porém com mais qualidades que defeitos de seus contemporâneos. De resto, a eventual disposição cronológica do pensamento de Sylvio Romero teria sido desastrada, uma vez que utiliza textos de tôdas as épocas de sua atividade intelectual para compor ou recompor livros. Por isso as repetições são constantes e foram mantidas com vistas a evitar o risco de se atirar fora, com a água da tina, a criança banhada. Isto porém não chega a ser prejudicial considerando-se o fato que os diversos trabalhos que compõem a Obra Filosófica de Sylvio Romero podem

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ser lidos cada um separadamente. Em notas são assinalados de onde os trabalhos foram retirados ou de quais edições saíram. Um rápido levantamento dessas notas é suficiente para ordenar sua cronologia. Isto não quer, naturalmente, dar a impressão de que esta edição da Obra Filosófica de Sylvio Romero carece de defeitos. As repetições poderiam ser suprimidas, como ocorreu num único caso, mas o risco já assinalado de se atirar fora juntamente com o velho, o nôvo, recomendou a manutenção dos textos integrais, especialmente dos três- livros filosóficos: A Filosofia no Brasil, Doutrina contra Doutrina, e Ensaio de Filosofia do Direito. O cuidado na cópia e no cotejo com as edições utilizadas foi o mais acurado possível. Como observação final cumpre destacar o nome de algumas pessoas que tornaram possível esta edição. Em primeiro lugar o do Professor Miguel Reale-por sinal um dos poucos que "compreenderam" Sylvio Romero-dando todo o seu apoio para que se tornasse mais acessível a Obra Filosófica do pensador sergipano. E, em seguida, os de Antônio Paim, Hans Franke, Heitor Ferreira Lima, Raílda Browne Cunha, Renata Cajado e Zita Alves de Amorim que, traduzindo, copiando ou anotando, ajudaram a levar a bom têrmo êste cometimento em prol da cultura brasileira. Se o leitor sentir tanto prazer na leitura dêstes ensaios como o que sentiu seu organizador em reuni-los, considerará isso como a mais ampla recompensa pelo pequeno papel por êle desempenhado na difusão da Obra Filosófica de Sylvio Romero. Instituto Brasileiro de Filosofia, São Paulo, 16 de junho de 1965.

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OBRA FJLOSÓFICA

I

A FILOSOFIA NO BRASIL Ensaio Crítico

Ficha bibliográfica da primeira edição: A Filosofi~ no Brasil, por Sylv10 Romero: ensaio crítico, Pôrto Alegre, Tipografia da Deutsche Zeitung, 1878 -págs. X-192.

Ao distinto escritor teuto-brasileíro

CARLOS VON KOSERITZ O.D.C. o autor

Nota Inicial F/;,j'//,,.,. ... ,,. -·· , - ,

,

O título dêste pequeno ensaio talvez excite um sorriso de mofa em alguém que saiba qual o estado do pensamento brasileiro, qual a contribuição que o Brasil tem levado ao movimento científico da humanidade. Todavia, há sério naquelas palavras. . . Eu quero justamente ocupar-me da Filosofia no Brasil, desejo indicar a evolução desta matéria neste país. Parece-me que, até em razão do pouco caminho que os diversos ramos científicos têm feito entre nós, à crítica incumbe o dever de traçar a resenha do terreno por êles percorrido. Da idéia exata do pouco que temos feito é que, na hora atual, devemos tomar novas fôrças em busca de um ar mais puro, atrás de um futuro melhor. Seria vantajoso que cada um, na esfera de sua especialidade, inquiridas as causas de nosso atraso em Matemática, Astronomia, Física, Biologia, Filosofia ... , examinasse o que, nos diferentes ramos da cultura humana, havemos produzido e, destarte, habilitasse o espírito nacional a formar uma mais exata consciência de seu temperamento. É possível que algum cantor das j1átrias glórias vocifere contra o engano que, a seus olhos, aí fica de nosso pouco valor nas ciências enumeradas. . . Mais calma, e mais atenção: como autor destas linhas não duvido, antes acredito, que tenhamos homens habilitados em alguns daqueles distritos do saber. Afeito, porém, a contar somente com aquilo que se manifesta no mundo objetivo, inclinado a só discutir o observável, só aos produtos da imprensa se dirige a minha nota. Não contesto, por exemplo, que entre os habitantes, de origem nacional, do vasto império americano alguns existam que se achem em dia com as evoluções últimas da Filosofia; não me repugna acreditar que algum abade possa, entre nós, existir que sinta sôbre os ombros o pêso de uma cabeça de filósofo ... Bien puede ser . .. São fenômenos, contudo, que não vêm à luz, e a crítica nada sabe das ciências hermeticamente aferrolhadas. Tratando, pois, dos filósofos brasileiros, dirijo-me somente aos escritores da respectiva ciência entre nós. É um tentame de análise que talvez, um dia, possa estender a outros ramos do saber neste país. Temos mister destas pequenas monografias. Além de outras, tão insignificantes que não poderiam aqui 5

entrar sem de todo manchar as páginas que se vão ler, que eu saiba, só as obras dos seguintes autores reclamam atenção: Mont'Alverne, Compêndio de Filosofia; Eduardo França, Investigações de Psicologia; Domingos de Magalhães, Fatos do Espírito Humano; Patrício Muniz, Teoria da Afirmação Pura; Soriano de Souza, Lições de Filosofia Elementar; Pedro Américo, La science et les systemes; L. P. Barreto, As Três Filosofias; Visconde do Rio Grande, O Fim da Criação; Guedes Cabral, Funções do Cérebro; Tobias Barreto, Ensaios e Estudos de Filosofia e Crítica e Brasilien wie es ist in literarischer Hinsicht betrachtet. Dêstes é que nos vamos ocupar. Agora, uma palavra sôbre a série de publicações com esta iniciada. Entrado, há oito anos, para a vida pública da imprensa, pareceu-me acertado fazer a resenha dos meus escritos disseminados pelos jornais e periódicos das províncias do Império em que tenho residido e, corrigindo-os e afeiçoando-os a uma nova forma de publicidade, dá-los à luz. Distribuídos em duas ordens, filhas dos dois ramos de manifestações intelectuais a que me tenho dedicado, a Poesia e a Crítica, devem êles formar as seguintes brochuras, de maior ou menor volume, que irão aparecendo sucessivamente: A Filosofia no Brasil, Cantos e Contos do Povo Brasileiro, A Literatura Brasileira e a Crítica Moderna, Páginas de Crítica, A Poesia Contemporânea e Cantos do Fim do Século, O Poema das Américas, A Caaba de um Sonhador. Nestas projetadas publicações hão de aparecer capítulos inteiros nos livros de crítica, e cantos inteiros nos de poesia, de todo inéditos. Foram, porém, escritos no período prenotado, e entram plenamente no domínio da primeira fase da vida literária do autor. No processo de revisão, agora executado, nenhuma só idéia foi abandonada ou simplesmente refeita ou ampliada. Oriundos de uma preparação preliminar, um tanto rigorosa, todos êsses escritos se apresentam de nôvo firmados na mais inteira sinceridade, e visando, como dantes, o alvo que o autor não esconde: uma renovação literária entre nós. Rio de .Janeiro, julho de 1876.

6 sylvio ro?nero

11 Pode-se afirmar, em virtude da indagação histórica, que a Filosofia, nos três primeiros séculos de nossa existência, nos foi totalmente estranha. As dissensões e lutas dos pensadores dêsses tempos não mandaram um eco só até cá. Os trabalhos de Bacon, Descartes, Gassendi, Leibniz, Espinosa, Malebranche, Berkeley, Locke, Hume, Condillac, Wolff e Kant foram, em sua época, como inexistentes para nós! O fato é de uma explicação mui clara: o abandono da Colônia e, ainda mais, o atraso da Metrópole, para a qual aquêles nomes passaram desapercebidos, fornecem a razão do fenômeno. Nos três séculos que nos precederam nem um só livro, dedicado às investigações filosóficas, saiu da pena de um brasileiro. É mister avançar até ao século presente [XIX] para deparar com algum produto desta ordem e, neste mesmo, é preciso chegar até aos anos posteriores àquele que marca-lhe o meado para que a coisa seja uma pequena realidade. O primeiro livro que nos requer um exame é o pobre Compêndio de Fr. Mont'Alverne. Aparecido em 1859, depois da morte de seu autor, são-lhe os trabalhos dos Drs. Eduardo França e Domingos de Magalhães anteriores: fôra, porém, escrito em 1833 e deve, assim, reclamar a prioridade crítica.2 Por seu professorato, mais do que por seu livro, granjeou o nosso franciscano a fama de grande filósofo. Em 1848 foi, numa sociedade literária, solenemente proclamado, diz um de seus biógrafos,-genuíno representante da filosofia do espírito humano no Brasil. Êste título, um pouco extravagante, era a confissão geral; aos louros de orador Mont'Alverne juntava os de filósofo. Êle próprio, segundo o testemunho de seus coevos, sentia que muito pesava o seu merecimento de pensador. Consta que o orgulho, por essa crença, teve entrada em seu coração. A glória de pregador, êle a não desejava mais do que a de filósofo e teólogo. Ei-lo que nos diz, falando de suas lutas de eloqüência ao lado de seus rivais: "O país sabe quais foram meus sucessos neste combate desigual; êle apreciou meus es1 Compêndio de Filosofia, pelo Padre-Mestre Fr. Francisco de Mont'Alverne, Rio de Janeiro, 1859. [Mont'Alverne-1784-1858-antes de professar na Ordem Franciscana chamara-se Francisco de Carvalho.] 2 O livro do Dr. França apareceu em 1854; o de Magalhães em 1858. [Além dêsses dois, precedem à edição do livro de Mont'Alverne o Compêndio de Filosofia de M.M. de Morais e Vale, que é de 1851, e o Compêndio de Filosofia Racional de ].A. de Morais Tôrres, que é de 1852.]

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forços e designou o lugar a que eu tinha direito entre os meus conterrâneos; pertence à posteridade o sancionar êste juízo. Arrastado por a energia de meu caráter, desejando cingir tôdas as coroas, abandonei-me com igual ardor à Eloqüência, à Filosofia e à Teologia, cujas cadeiras professei, algumas vêzes simultâneamente ... "3 í.ste pedaço vale uma psicologia; êle manifesta a tôda luz o estado mental de seu autor. Essa junção, que pareceu-lhe tão natural, e também aos seus contemporâneos, da Eloqüência com a Filosofia e a Teologia, é-nos hoje uma exata extravagância; é-nos inaceitável. Que as duas últimas no todo se repelem é atualmente uma dessas verdades de fato que ninguém, a não ser um dêsses encarcerados da ignorância, ousa mais contestar. Amigas aparentes e depois irreconciliáveis rivais, hoje uma delas é uma ruína nociva sôbre que a outra passa impávida. A Filosofia e a Eloqüência igualmente se repugnam; tôda a história de ambas só dois homens nos mostra em que êsse consórcio foi possível: Fichte e Cousin. Mas Fichte foi um grande orador longe de seu mister de idéias, em circunstâncias mais do que anormais, na hora suprema das agonias da pátria. O patriota ofuscara o pensador. Diante de seu país vencido, humilhado, rudemente retalhado, bem se compreende a metamorfose: dum filósofo um Tirteu! Quanto a Victor Cousin, êle foi grande orador, porque nada menos foi do que um filósofo. Foi um espírito desnorteado, um literato que errara o seu caminho. 4 O orador deve ser um homem de imaginação, de uma linguagem pronta, veemente e ruidosa; deve ser dotado em larga escala da faculdade de sintetizar os fatos e reproduzi-los com brilho. São qualidades opostas às do filósofo, cujo espírito há de ser perscrutador e analista, cujas fôrças mentais devem, o mais possível, aproximá-lo da realidade sem ruído e sem fulgor. Fr. Mont'Alverne, entretanto, supunha aquela junção nã= tural e indispensável à sua glória. O digno franciscano iludiu-se em demasia; se algum sussurro causou em tôrno de sua cadeira, o deveu, sem dúvida, à sua eloqüência e não à segurança de seu pensamento e de sua cultura. A publicação de seu livro, no mesmo ano em que Darwin deu à luz a sua 3 Prefácio das Obras Oratórias. 4 Sôbre o caráter superficial e meramente literário da filosofia de Cousin vejam-se os belos artigos de E. Renan nos seus Essais de morale et de critique, e de H. Taine nos Philosophes {rançais du XIXme. siecle.

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Ôrzgem das Espddes, longe de aproveitar-lhe, foi-lhe grandemente prejudicial. A vista de tal documento a figura do célebre brasileiro torna-se tão mínima que, quase, escapa-nos das mãos. Mont'Alverne morreu em 1858, aos setenta e quatro anos, mas cegou em 1836 aos cinqüenta e dois. Nesta última idade já devia ter êle atingido, desde muito, o máximo grau de tenção e profundeza de seu pensar. Daí por diante só fêz decair. Devemo-lo julgar até êsse tempo e, quanto ao mais, deixar o velho pregador dormir tranqüilo sôbre os louros de sua facúndia. O seu livro foi meditado e escrito no período indicado de progresso e entra, portanto, no quadro da análise. :tste brasileiro tem sido apregoado, em seu país, um homem de gênio. Tal juízo é simplesmente um absurdo; a ciência de hoje não admite mais esta categoria de indivíduos no velho sentido que ligava-se àquele predicado. O gênio era uma entidade humana bastante parecida com os gênios da poesia e da fábula; desprendido da realidade e das circunstâncias exteriores, escapava à pressão do meio físico e social; era um espírito a mover-se livre num mundo à parte. Tinha o condão de maravilhar-nos de lá com as suas revelações. Estas idéias caducaram; rimo-nos hoje delas; a humanidade procede por evolução; tudo em sua marcha se acha concatenado e sujeito à lei do desdobramento. Lyell refutou a teoria revolucionária em Geologia, Darwin a baniu da Biologia e Comte da História. O gênio, no velho sentido, desapareceu como uma quimera; todavia, ainda é costume assim apelidar à inteligência ultrafecunda, capaz de elevar-se acima dos prejuízos correntes e abrir uma era nova e novos destinos para a humanidade. O distinto franciscano distava imenso dessa altura; prova-o o seu desditoso Compêndio, onde êle se manifesta escravo submisso das vulgaridades e ridicularias da Filosofia de seu tempo entre nós. Digo entre nós, por já ter ela, então, na Europa produzido alguns daqueles grandes monumentos que são a glória do espírito humano neste século [XIX]. Já Kant, Hegel, Schopenhauer, para não falar de outros, na Alemanha; Hamilton na Inglaterra; Quetelet e o próprio Comte na França; Romagnosi na Itália ... haviam revirado o terreno das velhas idéias em todos os sentidos, e eram acompanhados por uma plêiade brilhante de jovens escritores que vieram a ser depois os primeiros vultos dos últimos tempos. obra filosófica

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Mont'Alverne não entreviu, não cismou, ao menos, em tais sucessos, para permanecer um discípulo subalterno de Condillac por via de seus mais ínfimos sectários: Genovese e Ponelle! ... Aí mesmo, porém, êle foi acanhado e estéril; o patrimônio recebido, êle o não aumentou de um ceitil. Esta sentença é verdadeira, e não é difícil prová-la. Depois de Lamarck, Oken, Saint-Hilaire, Broussais, Cu vier, Rostan, Lyell ... , em todos os mais interessantes ramos das ciências naturais, já terem praticado verdadeiros prodígios, ao lado dos grandes filósofos acima lembrados, um nome como o de Cousin, era, então, capaz de alucinar o franciscano orador! ... Estas palavras são suas: "Vê-se, pois, que o meu sistema é o sensualismo; mas depois do aparecimento do idealismo, o sensualismo não se pode manter seguro nos seus domínios exclusivos. Todavia, ambos êstes sistemas ofereciam erros que os seus sectários se lançavam em rosto mutuamente. Um dêstes gênios, nascidos para revelar os prodígios da razão humana, se levantou como um Deus, no meio do caos, em que se cruzavam, e combatiam todos os elementos filosóficos, empregando a extensão de sua vista, e sublime compreensão, re~ construiu a Filosofia, apresentando as verdades, de que o espírito humano estêve sempre de posse (!!). Os sistemas exclusivos foram proscritos por Victor Cousin. O sensualismo e o idealismo, a escola de Locke e a filosofia escocesa deram-se as mãos; e a razão pura de Kant sentando-se no lugar da reflexão de Locke, ofereceu os verdadeiros elementos do espírito humano, as legítimas fontes das idéias, e resolveu os mais difíceis problemas da Psicologia, que dividiam o mundo filosófico. Felizmente, para mim, a teoria das fôrças e da atividade da alma, das sensações, da atenção, baseando-se no elemento idealista, apartaram-se bastante da escola sensualista. Mas a teoria da reflexão e da origem das idéias oferece o lado vulnerável do sensualismo. É o que demonstrou Cousin na sua análise ou ensino sôbre o Entendimento Humano de Locke, e em outras obras. O sistema sublime de Cousin apenas é conhecido no Brasil, e por desgraça, seus trabalhos filosóficos ainda não estão completos, e nem impressas, ou conhecidas aqui as suas obras posteriores. Eu forcejarei entretanto por aproveitar o que êle tem feito e restaurar com êle o sistema filosófico."5 Virchow fala algures de pregadores que, para saudar aqui5 Nota à pág. 104.

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lo que êles julgam uma novidade, ostentam um luxo incômodo de palavrões; se mais um exemplo fôra preciso para confirmar-lhe o dito, aí estava êste longo inventário das excelências de Cousin que deixei transcrito. Esta passagem foi pensada em 1833; o ecletismo nasceu e morreu sem que houvesse recebido o menor influxo de vida provindo de Mont'Alverne! ... A Filosofia não foi restaurada por um espírito da têmpera de Jouffroy, e como sê-lo-ia pelo nosso compatriota, que ostenta-se, no pedaço acima grifado, nada mais do que um retórico de mau gôsto para quem Cousin foi um gênio que se levantou como um Deus no meio do caos dos elementos filosóficos?! ... E tudo isto para quê? Para revelar as verdades de que o espírito humano estêve sempre de posse! Parece uma ironia; mas o nosso orador era sério e falava convencido; o seu critério de filósofo é que era demasiado franzino. Um homem, dito de enorme inteligência, que foi testemunha dos grandes acontecimentos e mutações históricas, que assinalaram os últimos anos do século passado [XVIII] e os primeiros dêste [XIX], no Velho e no Nôvo Mundo, vir-nos, depois da revolução de julho e da evolução do hegelianismo, dar tão frágeis provas de seu modo de julgar, nada menos foi do que aquilo por que se o tem querido passar; nada menos foi do que um filósofo. Vir, depois, repito, de Lamarck, Bichat, Broussais, Saint-Hilaire, já nos tempos em que os trabalhos de Rostan e Lelut, sôbre a Física Social, e os de Comte, sôbre a Política Positiva, iam aparecendo, ostentar-se tão inanido de idéias é coisa que pouco sabe honrar. Eu não esqueço que o pretendido pensador brasileiro era um sacerdote; isto, porém, o não inibia de revelar-se mais profundo e investido de outras armas. Michelet disse uma vez de Littré que êle era um grande lexicógrafo, um notável gramático, um distinto fisiólogo, mas não um filósofo e um historiador. E o que diremos nós outros do insigne franciscano, cujas qualidades oratórias, aliás não mui fecundas, eram um empecilho para o desenvolvimento normal de suas faculdades de observação? No seu tempo grande já era a reação contra as miragens da Metafísica, como bem provam os escritos decisivos dos pensadores lembrados, e êle decorava-se ainda com o burel teológico manchado pelos remendos metafísicos dos discípulos de Condillac. Então, a par da reação católica contra os princípios revolucionários, realíssimo era o movimento antimetafísico, mais obra filosófica

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profundo e mais significativo, ainda que menos ruidoso. Os espíritos pensantes sabiam disso, exceto Mont'Alverne, que não se alistou cm nenhum dos lados dos combatentes. O recente escritor italiano Nicolà Marselli no-lo diz: "É verdadeiramente curioso observar que, quando se fala do movimento intelectual na França e na Itália, posterior a 1815, freqüentemente se destaca a corrente que desfraldou a bandeira neocatólica ou neogüelfa em oposição ao radicalismo revolucionário, e não se tenha na devida conta uma reação antimetafísica. Esta, com menor brilho mas com mais solidez doutrinária, desenvolvendo-se' paralela e surdamente, preparava a demolição de bem mais altas personagens que não fôssem os ídolos terrenos da corrente católica. Quis salientar isto para mortificação daqueles que tiveram a ingenuidade de acreditar que, após 1815, o espírito europeu pudesse voltar, tivesse voltado à Idade Média, sem se aperceberem nem dos princípios revolucionários ocorridos no corpo dos novéis güelfos, nem desta reação física e positiva que, no campo dos estudos morais, manifestou-se por volta de 1830." 6 O que se dava na França e na Itália passava-se também na Alemanha e na Inglaterra. Não digo que o escritor nacional tomasse parte na reação antiteológica e antimetafísica; era muito exigir dêle. Entrasse, ao menos, na pugna neocatólica conhecedor do terreno, e manejando princípios mais seguros. Nem isto o fêz; onde, pois, os seus títulos de glória? Assim me exprimindo, pareço acreditar que o célebre orador é ainda hoje festejado como filósofo; felizmente noto que ninguém mais o lê e raros se lembram dêle. Na luta pela vida o Compêndio do franciscano foi atirado à margem, se não devorado pelo esquecimento, e o pensamento nacional passou-lhe adiante. Não devo fazer uma análise detalhada do desventurado livrinho; fôra chicanar com a antigualha; basta-me indicar seu espírito dominante, suas tendências vitais. Seu autor pertence a essa geração que, jovem e robusta no tempo de D . .João VI, entre nós, tomou parte nos acontecimentos da Independência, e figurou nos tempos do Primeiro Reinado. É um coevo de Caim, de José Bonifácio, de São Leopoldo, de São Carlos e tantos outros que ainda não passaram pelo crisol da crítica imparcial e competente. Então o ensino filosófico era um amálgama de Storkenau e Genovese, êsses nomes desconhecidos na história do ensino público dos povos cul6 La scienza dei/a storia, vol. 1, pág. 320. [Em italiano na edição de SR,]

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tos! ... Uns restos estropiados de Locke e Condillac, reduzidos a figuras mínimas pelos discípulos e comentadores. e algumas laudas enganadoras, brilhantes pelo estilo e frágeis pela análise, de Laromiguiere, tal o seu conteúdo. Tudo isto decorado, não para perscrutar o enigma do homem e do Universo; sim, para limar a argúcia e secundar a loqüela. Depois, mais alguma vulgarização das obras de Maine de Biran, que não teve contraditares por não ter quem o lesse, segundo diz Taine, e de Victor Cousin, que sacrificava o pensamento por amor da frase, como no-lo declara Renan, trouxe a propensão e finalmente a queda completa para o ecletismo espiritualista francês. A esta fase pertencem Mont'Alverne e os seus continuadores: Eduardo França e Domingos de Magalhães. Tão pobre, tão insalubre foi o alimento que lhe forneceu a cultura de sua pátria, em seu tempo; tão ingratas as influências a que teve de ceder, que a crítica sente-se com impulsos de o absolver. Abramos o ComjJêndio para melhor lhe apreciarmos a têmpera; não o abramos a êsmo; deve ser no ponto em que o filósofo julgava-se mais seguro. Já vimos que êle supunha ter uma teoria especial sôbre as fôrças e a atividade da alma, graças à qual apartara-se alguma coisa do sensualismo que lhe ensinaram. É onde devemos apreciá-lo. Chamo a atenção do leitor para o estilo bárbaro, e as tergiversações de pensamento que se deparam na lauda que vou copiar. Respondendo a uma objeção contra o sistema do influxo físico de Euler sôbre a união da alma com o corpo, diz-nos: "Esta máquina maravilhosa, à qual está unida minha alma foi feita por ela; porque é esta máquina, que põe em valor tôdas as suas faculdades. A grande composição da máquina não apresenta, pois, uma oposição real com a simplicidade da minha alma, porque se fôsse real a oposição, como as duas substâncias poderiam unir-se, e reciprocamente obrar uma sôbre a outra? Eu suponho, como se vê, que a impossibilidade do influxo físico não é demonstrada, eu julgo ter boas provas para mostrá-lo; é o que passarei a fazê-lo. A máquina só obra por seu movimento, êste movimento anima tôdas as suas peças. Eu ignoro a natureza inteira do movimento; mas sei, em geral, que êle é uma fôrça que se aplica ao corpo, por a qual o corpo obra. Não é, logo, a matéria da máquina o seu verdadeiro agente; é a fôrça que a anima. Uma fôrça física, porém, qualquer que ela seja, é em si indeterminada, e não poderia dar-se por si mesma alguma determinação parobra filosófica

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ticular: para que ela produza certos efeitos, convém ser aplicada a um sujeito por uma certa maneira, em uma certa ordem, segundo certas proporções, e uma certa direção. O sujeito a quem se aplica a fôrça, que eu considero, é o cérebro; e é a sua organização, que regula as determinações particulares da fôrça, e a faz convergir para um certo alvo. í'.ste alvo ou êste fim é excitar na alma as sensações ou percepções correspondentes às modificações da fôrça que as faz nascer. Esta fôrça é necessàriamente um ser simples, porque a idéia que tenho desta fôrça não pode ser decomposta em outras idéias. (Êste porquê é soberbo!) Eu não posso decompor esta fôrça, assim como não posso decompor o sentimento que tenho do meu eu. A fôrça de que se trata parece-me sempre uma, simples, imaterial. Eu ignoro profundamente (É verdade!) como esta fôrça se aplica à máquina organizada, a que minha alma está imediatamente presente; mas eu tenho a mais perfeita certeza que esta fôrça aplica-se, e obra nela; e eu contemplo seus maravilhosos efeitos. [ .... ] Eu não conheço a natureza íntima da minha alma, assim como não conheço a de qualquer outro ser; mas eu tenho as melhores provas de que minha alma é um ser absolutamente simples, e dotado de uma atividade que lhe é essencial. Minha alma é, pois, uma fôrça, e esta fôrça é suscetível de uma multidão de modificações diversas. Ela é tão indeterminada em si, como qualquer outra fôrça, não pode dar-se por si mesma determinações particulares, assim como não o pode a fôrça que anima a matéria. Esta fôrça, que constitui o meu eu, recebe, pois, suas determinações do corpo organizado, a que ela está unida, ou, para falar mais exatamente, a alma recebe estas determinações da fôrça que anima êste corpo, e esta recebe as suas determinações das fôrças inerentes aos corpos ambientes. [ .... ] Eu estou certo que o corpo não se move por si mesmo, o movimento não decorre, pois, imediatamente da natureza própria do corpo; êle deriva, pois, de alguma coisa exterior ao corpo (! !), e se esta coisa fôsse também matéria, onde encontraria eu a causa do movimento?"7 Certamente tudo o que aí ficou transcrito parece muito longe de ter sido escrito por um gênio. Através de tôda aquela repetição de palavras e de conseqüências esdrúxulas, eis um rico espécime de filosofia híbrida, inconsistente e banal, incapaz de agradar a qualquer dos partidos que dominam hoje o campo da Ciência. Não satisfaz 7 Pág. 153.

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à filosofia católica, porque, sem o querer, reduz a alma humana a uma fôrça, como outra qualquer, exatamente qual o faria um mau discípulo do filósofo de Kraft und Staff [Büchner], que, ao invés do mestre, acreditasse na pluralidade das fôrças; não convém à Ciência, porque os contra-sensos aí formigam às dezenas. Faz do movimento um quid imaterial separado do corpo e a que é junto não sei por quem; anima todos os sêres de fôrças igualmente imateriais, isto é, aviventa a natureza pelo mesmo modo por que o faria um politeísta. O franciscano mal tinha saído do período fetíchico; o céu da Filosofia estava em trevas para êle; dos grandes astros, que então fulgiam, não enxergou um só; seu telescópio incendiou-se nos brilhos de Cousin. Nem, ao menos, conheceu Biran, ao que parece. O que diriam dêle espíritos como um Helmholtz, um Trémaux, sectários convencidos e vitoriosos do dinamismo universal? O filósofo ingénuamente lastima não conhecer a realidade em si, das Ding an sich, segundo a expressão de Kant ... Sua doutrina das fôrças lembra certa época da história da Ciência em que todos os fenômenos inexplicáveis eram oriundos de fôrças. "Cada um dos fenômenos cósmicos era, cm falta de coisa melhor, atribuído a uma fôrça, palavra vaga, que se liga tanto à Escolástica, quanto à Mecânica, e que ocultava no fundo a ignorância dos físicos sôbre as causas reais dos fatos que observavam. O pêso, o calórico, a eletricidade etc. eram outras tantas fôrças. Quando havia embaraço para explicar um fenômeno, inventava-se uma nova fôrça; fôrça de contato, fôrça de presença, fôrça catalítica e não sei quantas mais ... "8 Mont'Alverne curvou-se submisso a êste expediente cediço e inaproveitável. Vejamos um outro.

119 O Dr. Eduardo Ferreira França publicou em 1854 na Bahia dois volumes sôbre Psicologia. O digno médico foi também um discípulo do sensualismo francês dos primeiros anos dêste século [XIX], e passou-se para aquela reação espiritualista, superficial e palavrosa, inaugurada pelo professor, mais 8 Adolphe d·Assier, Essai de philosophie positive au XIXe. siecle, Premiere Partic, pág. 3. 9 Investigações de Psicologia, pelo Dr. Eduardo Ferreira França, Bahia 1854, 2 volumes. [Ferreira França-1809-1857-laureou-se em França com a tese Essai sur l'influence des aliments et des boissons sur le moral de l'homme, apresentada em 1834 na Faculdade de Medicina de Paris.]

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parlante que profundo, Royer-Collard e continuada por Cousin e seus discípulos. Não creio que seja mister uma discussão preliminar sôbre essa fase passageira da história da Filosofia para bem compreender-se o espírito do trabalho do escritor baiano. Basta lembrar que o tempo da Restauração em França foi o período das efusões e desvarios do Romantismo. Já sepultada na Alemanha com Schiller, Goethe, Wieland ... cujas obras já eram clássicas, a romântica em França de 1815 até muito depois de 1830 trouxe o país mergulhado em sonhos. Era a reação; mas a reação mórbida, a reação pelo passado, pela Idade Média, com todos os seus encantos factícios, com todos os seus erros perigosos. Era o anacronismo buscando ser uma lei da história; era a tentativa de um desmentido à evolução lógica dos acontecimentos humanos. Compreende-se a multidão de preconceitos desenterrados e revestidos pela linguagem brilhante dos sonhadores. A luz espalhada pela Enciclopédia, apesar de fraca, incomodava, e era preciso apagá-la; o brilho de Diderot, apesar de um pouco embaçado, causava receios, e era mister ofuscá-lo. Daí a glorificação do passado em ódio ao presente, o entusiasmo pela Idade Média em prejuízo da Revolução. A Filosofia não havia de deixar de seguir o impulso que levavam a Religião e a Arte. E como tinha de fazê-lo? Restaurando o espiritualismo a título de verdade de todos os tempos, firmada no senso comum; fazendo um apêlo à história e pretendendo descobrir a verdade sempre de posse do espírito humano e apenas ofuscada pelo exclusivismo dos sistemas. É êste o sentido do ecletismo que, por sua vez, já pertence à história. Hoje é possível julgá-lo com segurança. Foi uma filosofia incoerente e pretensiosa, inimiga da observação e da experiência, uma sortida no campo do absoluto, divinizando o homem por meio da razão impessoal. Entretanto, a Filosofia que tem por dogma a relatividade de tôdas as coisas, mudando de método e reforçando os seus princípios, continuava surdamente a acumular os achados e a fortalecer a verdade. Obcecados pelo ruído das frases, e pelos aplausos das turbas, os hasteadores da nova bandeira, os partidários da Escolástica ressuscitada, nem deram por ela. É assim que se explica o fenômeno de um homem como Victor Cousin publicar uma dezena de livros em que nos fala da verdade eterna, mas onde parece que só êle e sua gente existiam no mundo filosófico de seu tempo, e onde não se vê passar, nem de longe, a sombra de alguns dos grandes vultos que lhe

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cresceram ao lado, e acabaram por ofuscá-lo. Além da escola não havia ciência; o Dr. Eduardo filiou-se a ela, renegando a outra. Diz-nos em seu Prefácio: "Imbuído nas idéias da escola, chamada sensualista, entusiasta de Destut de Tracy, a ponto tal que só procurava conhecer e estudar as obras dos sábios a que êle dava preferência, tornei-me um discípulo do materialismo, e estava convencido que nada havia além da matéria, e que o espírito era uma simples função de um órgão. Li e reli muitas vêzes as obras do filósofo célebre que me serviu de mestre; só sentia prazer em ler obras cuja doutrina se assemelhava à sua, e as outras me desgostavam e pouca atenção me mereciam. Tendo, porém, de abandonar êsses estudos para me entregar àquele, que tinha por fim dar-me a profissão de médico, deixando de ler os filósofos não deixei de pensar sôbre o objeto de que se ocupavam. Materialista, encontrava em mim um vazio, andava inquieto, aflito até; comecei então a refletir, e minhas reflexões me fizeram duvidar de muitas coisas que tinha como verdades demonstradas, e pouco a pouco fui conhecendo que não éramos só matéria, mas que éramos principalmente uma coisa muito diferente dela. Procurava nas minhas reflexões examinar o que eu era na realidade, observava que muitos fenômenos não eram explicáveis pela única existência da matéria; e assim progressivamente fui examinando as minhas opiniões, até que, passados alguns anos, e tornando ao estudo dos filósofos, fui lendo aquêles que a princípio me haviam desgostado, e encontrei um prazer indefinível, e o profundo Maine de Biran contribuiu especialmente para esclarecer a minha inteligência" .10 .tste pedaço é um eco rouco e débil da célebre confissão de Jouffroy, distanciado enormemente da página fulgurante do romântico francês pelas agruras de um estilo incorreto. Raro foi, até certa época, o eclético que se não julgou obrigado a abrir os recessos da alma para fazer-nos revelações de lutas. e descrenças que, graças à sua filosofia, acabaram por apaziguar-se. E.ste espetáculo, pouco edificante, era um filho da fé, que procurava salvaguardar-se; uma filosofia, pouco segura, firmada em frases e transações, dava lugar a essas queixas de confessionário. A ciência era para ela uma questão de sentimento; devia respeitar os prejuízos da educação. Jouffroy, é verdade, diz que perdera os seus, mas que segurou suas 10 Tomo I, Prefácio, pág. VI.

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convicções religiosas ao influxo de seus achados de psicólogo. A ninguém é hoje dado mais enganar-se com sua confissão, depois que a crítica mostrou que aquilo não passou de um achaque romântico, como tantos outros da época. Eduardo França andava inquieto, aflito até . .. depois o profundo Maine de Biran, que começou estóico e acabou místico, apaziguou-lhe o espírito! Deixou Destut de Tracy por êste último. Parece que o digno baiano não leu a obra de Taine, que apesar de ter conhecimento exato de quanto escreveram os ecléticos, continuou a ser condilacista; o nobre médico não leu os Filósofos Clássicos da França no Século XIX. De outro modo, teria notado a figura mínima de Maine de Biran, que só distinguia-se por sua obscuridade, ainda mais realçada pelo abuso de expressões bárbaras e enigmáticas. França herdou-lhe esta reuma. Só para significar uns dois ou três fatos, mui simples, da Psicologia, dá-nos êste dicionário abundante: motilidade, motividade, locabilidade, modificabilidade, efetividade, afetividade, receptividade . .. e quejandas descobertas em ade. A obra do insigne médico bem indica que teve êle por mestre o festejado metafísico francês, o primeiro de seu tempo, como o chamou Cousin, juízo que, por certo, não é dos mais apropriados para elevar um pensador. Todavia, aquêle livro é muito mais digno de lar-se do que o de Mont'Alverne, e até os de Gonçalves de Magalhães; encerra uma boa porção de fatos e experiências, bebidos nas obras de escritores de Medicina, de incontestável valor. O espírito que o anima é uma combinação binária: idéias dos ecléticos franceses, máxime de Ad. Garnier, e de fisiologistas dessa escola dúbia que pretende harmonizar o espiritualismo com as exigências da Biologia, sobretudo de Longet. O seu autor é um trânsfuga do velho sensualismo metafísico que, cumpre notar, dista imenso da filosofia monística, do realismo científico dos nossos dias. Apreciemos o seu trabalho no ponto em que o escritor se quer mostrar um pouco original, no capítulo em que trata da locabilidade. Para êle é esta uma faculdade pela qual conhecemos o nosso próprio corpo. O filósofo reduz o homem a uma alma recôndita, remota, a tal ponto distinta do corpo que êste correria o perigo de confundir-se com um outro corpo qualquer, se aquela não tivesse uma faculdade especial que o vem salvar de um completo esquecimento. É o requinte da espiritualidade! ... Os psicólogos exibem, às vêzes, argumentos verdadeiramente irrisórios. Dizem, por exemplo, que nós distinguimo18 sylvio -romero

-nos de nosso próprio corpo, porque cada um de nós diz: meu corpo, e não se confunde, pois, com êle!! ... tste fato, vulgaríssimo, é um resultado do hábito que, igualmente, nos permite dizer no mesmo rigor: minha opinião, minha idéia, meu pensamento, minha alma ... É uma ingenuidade lançar mão de recursos tão ínfimos. Mas vejamos os motivos em que se estriba o filósofo para estabelecer a sua faculdade. "Para conhecermos, diz êle, distinguindo-a da percepção exterior, para conhecermos que temos um corpo próprio, não precisamos da ação dos sentidos: privados de todos os sentidos exteriores, ainda saberíamos que temos um corpo, e que existe além do eu, um não eu."11 Eis aí; o médico filósofo considera o seu corpo coisa tão externa a si mesmo que fantasia um poder especial de sua alma para descobri-lo, por uma espécie de favor. É um triste resultado do velho dualismo estabelecido no homem. A intuição de hoje repele esta anomalia. O conhecimento de nós mesmos, o sentimento de nossa própria individualidade, existindo separada do mundo exterior, isto é, sem confundir-se com êle, não é um dado de uma potência especial do espírito, que não passa de uma hipótese; é uma conseqüência do jôgo mútuo de tôdas as nossas faculdades, é uma condição, direi até, do exercício normal de todos os nossos órgãos. Outra coisa não é a vida. A idéia da personalidade, a noção adiantada da pessoa, é um dado posterior da ciência do Direito, ou da prática do mundo; a idéia de corpo é também um achado de uma ciência respectiva, ou da experiência de todos os dias. No sentimento puro e primordial de nós mesmos não entram estas distinções, feitas a bem de certas teorias; êle é uma afirmação da individualidade no seu todo indistinto, que vem a ser o nosso corpo com tôdas as suas funções, entre as quais a mais eminente é a de pensar e conhecer-se.12 Se é certo, como dizem alguns, que podemos perder um braço ou uma perna e continuar a ser nós mesmos, não o é menos que podemos perder uma ou mais idéias e até o uso de uma faculdade, continuando a ser nós mesmos. . . Onde a diferença? O argumento do psicólogo é lastimável. Sem os sentidos externos, diz-nos, ainda saberíamos que temos um corpo. É admirável! Eu não sei a que ficaria reduzido intelectualmente um homem a quem faltassem, II Vol. 1, pág. 88. 12 Podem consultar-se: Rostan, L'organicisme; Delboeuf, La psychologie comme science naturelle; Büchner, Kraft und Stoff-passim_

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desde a origem, todos os sentidos externos; ê esta uma hipótese que não deve ser concebida. Admitindo, porém, a extravagância do baiano, é muito dubitável que o seu homem, sem sentidos, pudesse conceber a noção de um corpo e ter o conhecimento de seu próprio. Concedendo-lhe também êste último requisito, ainda assim o seu argumento nada prova contra a percepção exterior. Porquanto, se é certo, como êle supõe, que, privados dos sentidos externos, saberíamos que temos um corpo, não deixa de ser verdade que, se fôsse possível sermos privados dos interiores, conservando os outros, teríamos igual conhecimento. "Com os sentidos externos, diz-nos ainda, só conheceríamos as partes externas do corpo, as internas seriam para todo sempre ignoradas." 13 A conseqüência que tira o filósofo é um pouco exorbitante. Sim; pelos sentidos externos conhecemos somente o exterior de nosso corpo, porém como nosso próprio e não como estranho, e já isto é suficiente para o nosso desideratum. E, depois, o conhecimento de nossos órgãos interiores não nos é fornecido pelo seu próprio jôgo, que nos é, na maioria dos casos, inconsciente, e sim pelas revelações de uma ciência peculiar, ou pela prática da vida. As funções do meu pulmão, de meu coração. . . são-me desconhecidas pela consciência, e só lhes sei da existência, ou porque no meio social ouvi descrições a seu respeito, ou porque as li nos livros de Medicina. O Dr. França devia ser mais ponderado para não mostrar-se tão iludido. Ouçamo-lo ainda: "A localização externa, aquela que se faz em alguma parte da extensão exterior de nosso corpo, aquela que indica a situação respectiva de cada uma destas partes, é essa a que requer a ação dos sentidos exteriores, e nosso corpo seria assim conhecido e definido, como qualquer outro corpo exterior, sem têrmos ciência de que é nosso." 14 O médico baiano começa o seu estudo sôbre a locabilidade pretendendo separá-la de tôdas as outras potências do espírito, e estabelecê-la como um poder independente. Agora já nos vem dividir a localização em interna e externa, esta pertencente à percepção exterior, e a outra à consciência! Não desejo emaranhar o leitor nas vacilações e inconseqüências do psicólogo; apreciemos a fôrça de suas palavras transcritas: "nosso corpo seria conhecido como qualquer outro corpo externo, sem ciência de que é nosso ... " É falso. Por ocasião de qualquer sensação externa localizada, temos 13 Idem, ibid. 14 Idem, pág. 96.

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conhecimento de nosso corpo como próprio e seria impossível que assim não fôsse, quando é nêle e por êle que sentimos. A localização, que o escritor denomina interna, e que diz ser da consciência, o é muito menos do que a externa, e é muito menos capaz de fazer-nos conhecer o nosso corpo do que esta, porque, em última análise, sendo ambas resultado de sensações que sentimos como nossas próprias, e em nosso próprio corpo, o jôgo dos órgãos internos é, em sua quase totalidade, inconsciente, como já o disse. Como, pois, pretender que a interna é capaz de excitar em nós tal conhecimento e a outra não? Qual a razão disto? Não a vejo. As sensações, sob o domínio da consciência, têm um igual valor no organismo são e, se alguma diferença deve aqui ser feita, há de provir em desfavor da opinião do nosso autor. Decerto, feito o balanço, as localizações internas são menos aptas para fornecer o conhecimento de que tratamos do que as outras, visto que a sua energia é mais vaga e quase indistinta. Eduardo França esqueceu-se um pouco de sua fisiologia; Küs vem demonstrá-lo. Depois de dividir as sensações gerais em localizadas e não localizadas, diz-nos o distinto professor de Estrasburgo: "As sensações gerais não localizadas (sentimentos ou sensações internas) são bem interessantes para o estudo de um médico: uma das mais curiosas do ponto de vista de suas manifestações patológicas é o sentimento de nossa existência; esta sensação em geral passa desapercebida pois ela é habitual e constante; pela mesma razão que o moleiro não percebe normalmente o ruído de seu moinho." 15 O sentimento, pois, de nossa própria existência, aos olhos da Fisiologia, é uma sensação geral não localizada, veja-se bem, e nós sentimo-nos viver como corpo. A espiritualidade é uma abstração, oriunda de um ensino tradicional, que se não firma nos fatos. Ela vai ficando decrépita e esquecida; caro fossilis, na frase dos naturalistas. A bem pouco se reduz, diante do fisiólogo notável que ficou citado, a localização interna tão preconizada pelo professor da Faculdade de Medicina da Bahia. As sensações internas, em geral, não são localizadas. O nosso autor entende que a sua faculdade deve executar o seu ofício total interna e externamente. Ora, percebe-se que ela é impotente para o que foi criada, porque só nos revela o conhecimento das partes internas do corpo em raríssimos casos, e sôbre as ex15 Cours de physiologie, publié par le Dr. Mathias Duval, deuxiême édition, Paris, 1873, pág. 68. [Em françês na edição de SR.]

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ternas deixa o campo livre à percepção. Vê-se, afinal, que para bater o pretendido pensador baiano é bastante tomar assento no seio de sua própria escola, sem ser preciso pedir as armas a uma ordem superior das idéias em nossos dias. IIII6

Os Fatos do Espírito Humano de Domingos José Gonçalves de Magalhães apareceram em Paris em 1858; o autor, hoje titular, é um poeta de algum merecimento; como filósofo tem esta obra de valor não muito avultado. O poeta entrelaça aos vôos, um pouco amortecidos, de sua imaginação tiradas de sua metafísica; o filósofo exibe-nos provas de uma poesia rançosa nas páginas do seu livro. 17 Na história dos dois domínios intelectuais em que se exercitou não há de fazer uma figura muito eminente, como à mania patriótica tem querido parecer. Gonçalves de Magalhães é um romântico e um espiritualista católico. Dotado de pouco vigor de imaginação, não tem brilhos de estilo; pouco profundo, não devassou seriamente nenhum dos segredos da Ciência. Seu melhor livro de poesias é de 1836; êle balbuciava então as primeiras palavras de um sistema literário já decadente, e cujos corifeus já eram vultos da história. Quando apareceu, como filósofo, era coisa para surpreender a todos, que o supunham alheio às especulações sérias, e que deviam ter notado a sua incompetência para as graves questões. Em todo o caso, êle é sempre um anacronismo, e um dos fatôres de nossa pequenez intelectual. Foi sempre um homem de meias medidas: meio clássico e meio teólogo, com pretensões a espírito moderno. Hoje segue a diplomacia, esta ciência do que há de mais anticientífico,-as cavilações. Os Fatos do Espírito Humano, com ares de um quadro da Filosofia de seu tempo, são uma veleidade. O autor, que, desde muito, vivia na Europa, devendo estar em dia com a ciência de então, e afirmando estar, afigura-se-nos ali muito débil. Seu livro é uma cantilena declamatória onde não se depara com o método científico nem com a segurança e elevação das idéias. 16 Fatos do Espírito Humano, por D. J. G. de Magalhães, Paris, 1858. [Dêsse livro de Gonçalves de Magalhães-1811-1882-saiu uma segunda edição, Paris, 1865.] 17 Das poesias, entre outras, veja-se "Deus e o Homem" nos Suspiros Poéticos; e do livro mecânico do que uma máquina e nada mais teleológico, como o demonstrou von Hartmann e nós já dissemos. O Universo é um imenso quadro teleomecânico, afirmamos por nossa vez. Bem desorientado anda, pois, o juízo de certos extravagantes que andam aí a confundir monismo com mecanismo, dando-os como uma e a mesma coisa. Há certa classe de espíritos que no terreno da Ciência não se preocupam com a verdade; com ela não se incomodam; dela não cogitam. O que os fascina e atrai é o que lhes parece nôvo; querem passar por adiantados, até dizendo os mais terríveis desconcertos. Alguns há que ainda hoje falam no Bathybius Hackelii como de uma coisa existente, mesmo depois de Huxley, o autor daquela suposta descoberta, ter declarado que se havia enganado! ... Já é coragem. É o caso de Dominicis e Angiulli na Itália. Temos entre nós belos exemplares dêsse aplomb; são os mais fervorosos mecanistas, como se de mecânica entendessem êles qualquer coisa. É embalde que se lhes diz: o êrro do espiritualismo consistia apenas na criação fantasiosa de uma substância especial para explicar os grandes fenômenos da vida, da sensação, da idéia, do sentimento, da liberdade, da responsabilidade moral; em admitir êstes fatos era, porém, corretíssimo. É embalde que se lhes pondera, por outro lado: o acêrto do materialismo consistia em não admitir no mundo qualquer substância que não fôsse a cósmica geral; era erradíssimo, porém, quando, supondo não poder explicar por essa substância o sentimento, a liberdade, a responsabilidade, a consciência, caía no disparate de contestar a existência de tais fatos. É embalde que se lhes brada: não é só movimento, afinidade química, calor, eletricidade, magnetismo que a substância produz; vida, sensação, sentimento, consciência, vontade, liberdade, finalidade, imortalidade também são produtos da mesma substância eterna, são predicados que ela em si mesma já tem e os manifesta nas suas integrações superiores. É embalde que se lhes exclama finalmente: chama-se monismo, e só é verdadeiro monismo, o sistema que a um só ser atribui tôdas aquelas qualidades e a finalidade entre elas. E eis como materialismo e espiritualismo cedem o passo a uma filosofia mais completa, e eis como movimento mecâ558 sylvio ro7nero

nico, produto da substância, é apenas um modo, uma forma de teleologia, predicamento também dessa mesma fôrça.

VI-Aplicação da Evolução à Atividade Humana. Teorias Diversas da História.31a Expostos os quatro sistemas fundamentais sôbre o Universo, a quádrupla explicação final; lembradas também as quatro leis essenciais da Ciência moderna; desenvolvida a principal delas-a evolução-em suas linhas superiores; indicados os dois sistemas principais sôbre o conjunto da evolução, mecanismo e teleologia, ainda não esgotamos o assunto. Resta-nos tratar mais de perto da evolução humana, ou leis gerais da História, o que quer dizer a mesma coisa. Ainda neste ponto os pensadores não têm estado de acôrdo; muitas e bem opostas são as opiniões que se digladiam. Já uma vez reduzimos tais doutrinas ao seguinte quadro, que foi aplaudido pela Revue Philosophique, de Paris, pelo órgão de Bernard Perez: tâl.A;J

Vontade divina

Vontade humana

{

Predestinação Providência

Identificação das { manifestações divinas e humanas Ação exclusiva { de certos homens

Espinosismo Hegelianismo

l

1 }

Imanência panteística

)

()

He~a-Jl'orship

,,

Ação exclusiva { da natureza física

Transcendentalismo

Antropocentrismo e ação do homem como fôrça de seleção

{ Liberum arbitrium indifferentiae Liberdade relativa

Ação das leis físicas e mentais

}

Determinismo Materialismo Evolucionismo histórico ou critério científico da História

} }

Selecionismo do gênio Imanência materialística .,:-~."

)

Naturalismo evolucionista e crítico

31·ª [t.ste capítulo reproduz, cm grande parte o ensaio Interpretação Filosófica dos Fatos Humanos, citado por SR na nota 17.J

obra filosófica

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Apreciemos esta tabela sinóptica. Trata-se dos esforços feitos pelo homem para explicar as leis da História e assim justificar ou esclarecer a sua ação na Moral, na Política, no Direito, na Arte, nas diversas criações de sua atividade. As ciências, antes que se tivessem constituído, atravessaram fases preparatórias em que predominavam, na falta de dados e doutrinas experimentais, as opiniões singulares, os modos de ver subjetivos dos diversos autores. Daí a multidão dos sistemas. As ciências acham-se hoje em dia livres de semelhante desordem, que ainda agora, para os espíritos superficiais ou caprichosos, se conserva enraizada no corpo da Filosofia. E, contudo, vai nisto sério engano, porque se toma o que foi pelo que é, perdura-se em conservar um vício ideológico que não tem mais razão de ser. Compreende-se fàcilmente, por exemplo, que a Astronomia quando era a Astrologia, a Química quando era a Alquimia, fôssem o campo predileto dos debates contraditórios, das questões sem têrmo, e dessem pasto às fantasiosas combinações dialéticas dos espíritos irrequietos. Assim também era a Filosofia quando o seu supremo ideal consistia em afastar-se do curso das verdades ensinadas pela experiência para atirar-se pasmada à busca das essências, dos enigmas insolúyeis. Agora, porém, que, desde Kant, não passa, principalmente, da crítica do conhecimento ou de uma síntese das ciências particulares, incumbidas de preparar a intuição geral do Universo, ela não há de ser o campo de sistemas desarrazoados. Existem verdades a explicar, fatos obscuros a resolver, mas não devem aí campear opiniões fantasiosas e subjetivas; precisamos de ordem e concatenação de doutrinas e não de teorias individuais. Ainda mais cresce de ponto semelhante anomalia, tratando-se de aplicar qualquer dessas desazadas teorias, que aí formigam como bitola infalível à massa complicadíssima dos acontecimentos humanos. Todos os que tiverem estudado um pouco de filosofia histórica e social, devem saber que, desde as épocas mais remotas, apareceram tentativas de explicar cientificamente os acontecimentos da humanidade. Mais de cem sistemas se têm produzido a tal respeito e hoje, â:T~m"de uma filosofia da História, jà possuímos uma história da filosofia da História. A concepção da sociedade humana como um todo complexo, que se desenvolve por leis e princípi9s. certos, é muito antiga, e veio sempre a percorrer a curvã evolucional do pensamento especulativo, ora clara, ora indecisamente, mas só nos últimos tempos é que ela se firlfióti definitivamente e, conquanto a Sociologia não tenha

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ainda espancado tôdas ás suas trevas, já é possível, sem extravagância, falar numa ciência da· sociedade e da história. Nem é inexplicável a razão pela qual permaneceu ela tantos séculos êrma e estéril, como simples narração cronológica dos fatos, sem a indução das· leis científicas. Sem um conhecimento exato das leis que regem o mundo físico, seria impossível um trabalho científico aplicado à história e aquêles que conhecem o andar do espírito humano na investigação dos enigmas do Universo, devem conhecer que só recentemente é que as teorias cosmogônicas adquiriram um certo grau de firmeza. Por isso tantas foram as teorias que surgiram para a explicação dos segredos da própria evolução da humanidade. Não temos que falar de tôdas elas; destarte não será preciso expor e criticar entre os mais antigos o acaso de Demócrito e Epicuro, os ciclos de Platão, o desenvolvimento orgânico dos povos de Aristóteles, o messianismo profético dos Judeus, a graça de Paulo, Agostinho e Lutero, a predestinação dos teólogos, o providencialismo de Bossuet, os ricorsi de Vico, a imanência panteística de Espinosa, o otimismo progressista de Leibniz e, mais modernamente, o pessimismo de Schopenhauer, o inconsciente de von Hartmann, o trágico de Bahsen, a imaginação de Forschanuner. Bastará afirmar com os mais autorizados críticos hodiernos que a concepção dos acontecimentos humanos tem atravessado até agora quatro largos períodos: a teologia, a metafífíca, a física da história e, finalmente, a história científica. E estas quatro grandes fases dão aquêles sistemas que figuram em nosso quadro sinóptico. A primeira doutrina que aí se nos depara, como se pode ver, é a da ação da vontade direta de um ser superior-Deus -sôbre os atos humanos. É o puro reinado da transcendência; é a fase primitiva e teológica da história. O homem, ignorando as leis que regem o desenvolvimento do Universo e seu próprio desenvolvmiento, voltou-se para um auxiliar estranho, poderoso e formidável, que lhe guiasse os passos! A ação da vontade divina sôbre a evolução da história divide-se em duas fases: a predestinação e a providência. São duas idéias transcendentes, imensamente discutidas na Idade Média, que não nos devem mais preocupar, como anticientíficas e inverificáveis. Destroem a responsabilidade humana e partem de uma pretendida ciência do absoluto que implica uma contradictio in adjecto. A teoria do livre arbítrio radical aparece em seguida. Se obra filosófica

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a predestinação ongmava o fatalismo teológico, o pior de todos os fatalismos, o liberum arbitrium indifferentiae inaugurava a doutrina do acaso do homem um ser extraordinário, desprendido de tôdas as relações e influências. Não havia mais uma lei para o desdobramento social; predominava o capricho de cada um. Aceitamos as palavras de Schopenhauer: "Tal qual sois, tais quais serão, deverão ser vossas ações; o liberum arbitrium indifferentiae não passa de uma invenção da filosofia na sua primeira idade desd~ muito chasqueada, e para carregar esta bagagem só existem hoje algumas mulheres com chapéus de doutor." Quanto à liberdade relativa, sentimento específico, perfeitamente distinto do livre arbítrio radical, já dissemos que a aceitamos e voltaremos ao assunto mais adiante. As doutrinas metafísicas da identificação das manifestações das vontades divina e humana abrem a vasta série das teorias da imanência panteística à maneira de Espinosa e Hegel, que não deve ser confundida com a imanência corno a compreendem hoje todos os sectários da unidade das fôrças físicas, todos os sectários do monismo, quer o estritamente materialístico, quer o mais largo e idealista. A velha imanência paira nas alturas do absoluto, pressupõe o conhecimento esmerilhado das ações divinas, e nós diremos, como Littré, que para elas-não temos "nem barca nem vela". O Hero-Worship de Carlyle tem o defeito de desconhecer o valor das criações evolutivas e profundas das massas populares e dar um culto por demais exagerado e sôbre-humano a alguns tipos privilegiados. Um sistema de história, que não dá conta das produções anônimas, é perfeitamente incompleto e falso; hoje só os espíritos retardatários desconhecem que os mais imponentes produtos da atividade humana, linguagem, mitologias, religiões, contos, lendas, grandes epopéias, direito, moral, não são obras de heróis, senão criações anônimas e populares. O determinismo materialístico inaugurou a fase que Nicola Marselli chamou, com muita propriedade, a física da história. Seus principais representantes foram Buchez, Quetelet e Comte. Fêz a crítica implacável da Teologia e da falsa Metafísica ontológica e prestou alguns serviços. Tem mais de um lado aceitável, sendo perfeitamente combatível quando não dá conta exata daquilo a que com razão os alemães chamam o fator humano. Resta-nos falar da ação das leis físicas e mentais, que se pode denominar evolucionismo histórico ou critério cientí562 sylvio romero

fico da história; é o naturalismo evolucionista e crítico, que sempre temos defendido, sob variadas faces, em todos os nossos escritos literários, filosóficos, jurídicos ou científicos. É fácil mostrar como esta ordem de idéias nasceu. Já vimos que duas foram as correntes gerais de estudos que constituíram a feição intelectual do século XIX, naquilo que êle teve de mais pujante, naquilo em que êle se colocou em bom caminho, desenvolvendo o legado dos séculos anteriores: o impulso que deu às ciências físicas e naturais por um lado, e, por outro, a descoberta dos antigos monumentos do pensar humano, como o sânscrito, as inscrições cuneiformes e hieroglíficas que vieram a formar o fundamento da crítica histórica. Deu-se então o surpreendente fenômeno de tornar-se o processo de comparação a base de tôdas as ciências, quer as que se ocupam da Natureza, quer as que tratam do homem, e assim como o critério histórico entrava no coração daquelas, o senso naturalista invadia as últimas. É por isso que um só hálito de profundeza científica ressuma das páginas de um livro de Biologia de Darwin, ou de um tratado de Direito de Ihering, ou de um curso de Lingüística de Schleicher. É a mesma tendência, o mesmo método histórico e naturalista. No estudo de tôdas as manifestações espirituais da humanidade nota-se hoje a combinação binária das fôrças físicas e mentais. Dentre os modernos filósofos da história, aquêle que melhor até hoje, ao nosso ver, desenvolveu essa dupla base de uma concepção científica do assunto, foi o jovem escritor inglês H. Th. Buckle, cujas idéias capitais, a despeito de muitos erros secundários e de minúcias, podem em suas linhas gerais ser adotada. Na doutrina exposta pelo insigne pensador na sua magnífica Civilization in England deve-se distinguir a parte crítica e a parte dogmática. A primeira consiste na refutação da maneira antiga de escrever história; a outra encerra o ensinamento do autor. Vejamo-la ràpidamente. Buckle insurge-se contra o método dos teólogos e dos metafísicos, porque ambos êles desconhecem a lei da normalidade evolucional dos fatos humanos, um por meio da doutrina extravagante da predestinação e outro por meio da crença caprichosa em um livre arbítrio pertencente a cada homem. "A teoria da predestinação funda-se numa hipótese teológica; a teoria do livre arbítrio, numa hipótese metafísica."32 32 Civilization in England, l, pág. 13. [Em inglês na edição de SR.] Cremos dever lembrar que fomos nós o primeiro a expor detidamente no

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Estas duas doutrinas, para o sábio autor, além de outros defeitos que lhes são inerentes, não só têm corrompido as fontes de nossos conhecimentos, como ainda deram fundamento a seitas religiosas, cujas animosidades mútuas têm perturbado a sociedade e muitas vêzes alterado as relações da vida privada.33 Os sectários da predestinação exigem de nós que acreditemos haver o autor da Criação feito uma distinção arbitrária entre eleitos e não eleitos; que desde tôda a eternidade condenou êle à perdição milhões de criaturas ainda não nascidas, que só um ato seu pode chamar à existência, e que assim procede, não em virtude de um princípio de justiça, porém por mera ostentação de poder despótico. 34 Esta doutrina, estando fora da alçada de nossos conhecimentos, não mereceu ao escritor uma refutação em regra. Não assim quanto ao livre arbítrio, que, em sua opinião, prende-se ao arminianismo, e que tenta refutar, alegando fundar-se aquêle em duas simples suposições: a existência de uma faculdade independente, chamada a consciência, e a crença de que os ditames desta suposta faculdade são infalíveis. "Mas, diz o ilustre autor, primeiro que tudo, não temos certeza alguma de que a consciência seja uma faculdade; e muitos pensadores de grande merecimento têm sido de opinião que a consciência é simplesmente um estado ou uma condição do espírito. Se se puder provar a verdade dessa opinião, então o argumento não tem mais razão de ser, por isso que, admitido mesmo que tôdas as faculdades do espírito, quando em pleno exercício, são igualmente corretas, ninguém terá a mesma pretensão em relação a cada estado ou condição a que pode o espírito ser impelido acidentalmente. Mas, deixando de lado essa objeção, podemos ainda responder que, admitindo a consciência como uma faculdade, o testemunho de tôda a história nos vem provar a sua extrema falibilidade". E acrescenta: "A consciência é infalível diante do fato, mas falível diante da verdade."35 Buckle firma-se em Kant, que cita neste ponto, e busca provar que nossas ações são sempre influídas por seus antecedentes, pelo meio em que vivemos, por nosso organismo, nossas aptidões hereditárias e muitos outros móveis obscuros, Brasil as doutrinas de Buckle, refutando-as nos desacertos que as afeiam no tocante à nossa pátria, em artigos impressos em 1875 na Revista do Rio de Janeiro, editor Serafim Alves. Vide História da Literatura Brasileira. 33 Idem, ibid., pág. 12. 34 Pág. 18, idem. 35 Civilization in England, 1, pág. 15. [Em inglês na edição de SR.]

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que a Ciência pode elucidar. Kant, porém, e nisto é acompanhado por Schopenhauer, não admitindo a liberdade operari, cria na liberdade esse. A argumentação de Buckle prevalece contra a liberdade absoluta, o liberum arbitrium indifferentiae, não contra a liberdade relativa, como relativas são a vontade e a inteligência humana de que ela se origina, como já explicamos, ad instar do que fêz Wundt para os sentimentos em geral, que são produtos sintéticos da sensibilidade e do entendimento. Hoje é moda contestar a liberdade, mesmo limitada, e bem sabemos nós tudo quanto se costuma dizer agora contra ela, repetindo sempre os velhos argumentos do velho materialismo. E muito mais graves são os argumentos, por filósofos e fisiólogos apresentados, do que as considerações de Buckle sôbre a consciência. ~le reproduz o muito rebatido argumento de não ser a consciência propriamente uma faculdade e sim um simples estado, condição ou modo de ser do pensamento. Esta velha alegação, verdadeira no fundo, e que vemos recentemente repetida como uma grande novidade, nada adianta para a questão da liberdade. A questão não é de saber se a consciência é faculdade ou estado, condição ou relação em face das idéias; o pleito é saber se ela existe ou não, seja como fôr, e êste fato é absolutamente inegável e com êle a liberdade como a entendemos e aceitamos. Aos sistemas dos teólogos e dos metafísicos ideólogos, o filósofo inglês opõe o evolucionismo regido pelas leis físicas e mentais. Ouçamo-lo neste ponto fundamental: "Assim, rejeitando o dogma metafísico do livre arbítrio e o dogma teológico da predestinação somos forçadamente levados a concluir que as ações dos homens, sendo unicamente determinadas por seus antecedentes, devem ter um caráter de uniformidade, isto é, devem em circunstâncias precisamente idênticas, resultar sempre do mesmo modo. E como todos os antecedentes estão no espírito, ou fora do espírito, segue-se que tôdas as variações nos resultados, ou por outra, que tôdas as mudanças de que está a história cheia, tôdas as vicissitudes da raça humana, seus progressos ou sua decadência, sua felicidade ou sua miséria, devem ser o fruto de uma dupla ação: ação de fenômenos externos sôbre o espírito, e a do espírito sôbre os fenômenos."36 Buckle firma-se em Quetelet, que, com a transformação da estatística pelo cálculo das probabilidades, prova, de ano a ano, a repetição gradativa dos mesmos crimes, do emprêgo 36 Civili:{ation in England, 1 p