O voo da coruja

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O voo da coruja

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José Luís Fiori

0 vóo da coruja

Para reler o desenvolvimentismo brasileiro

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E D I T O R A RIO

DE

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2003

JANEIRO



SÃO

PAULO

Outra obra do autor publicada pela editora Record

60 lições dos 90

MEC/ UFF

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CIP-Brasii. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. F552v

Fiori, José Luís O vôo da coruja / José Luís Fiori. - Rio de Janeiro: Record, 2003. Inclui bibliografia ISBN 85-01-06527-7 1. Crise econômica. 2. Ciclos econômicos. 3. Brasil Condições econômicas. 4. Brasil - Política econômica. I. Título.

02-2111

C D D - 338.542 C D U -338.1

Copyright © José Luís Fiori, 2003 Capa: Sérgio Campante Direitos exclusivos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 —Rio de Janeiro, RJ —20921 -380 - Tel.: 2585-2000 Impresso no Brasil ISBN 85-01-06527-7 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

EDITORA AFILIADA

Para Hilda Costa Fiori

Sumário

Prefácio Introdução

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CONJUNTURA E CICLO

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A guerra como situação limite 39 O mercado como tipo ideal fictício 45 A história como simultaneidade de “tempos” 54 A política como interesse e vontade de classe 59 A conjuntura como “incerteza estrutural” 93

CICLO E CRISE

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Um debate revisitado 101 Um modelo alternativo 105 Brasil, um caso paradigmático? 115

CRISE E INCERTEZA

175

Posfácio 191 Bibliografia 1 9 9

Prefácio

o vôo da coruja é um ensaio sobre a duração do tempo político e a análise de conjuntura. E é uma tese sobre a natureza da crise vivida pelo Estado e pelo desenvolvimentismo brasilei­ ro, no início dos anos 80. Foi escrito em 1984, quando chega­ va ao fim o regime militar e a economia brasileira enfrentava o primeiro choque da dívida externa, responsável pela sua longa agonia da década de 80. A reedição desta tese, dezenove anos depois de sua defesa na Universidade de São Paulo, retoma o fio de um debate, interrompido pela avalanche neoliberal, e recoloca a discus­ são sobre as contradições e os limites do “desenvolvimentismo conservador”. Seu argumento situa e explica a crise política do autoritarismo a partir de uma análise estrutural e crítica da longue durée do desenvolvimento econômico e da industriali­ zação brasileira. Mas não repete nem se confunde com o diag­ nóstico ou com as teses liberais que legitimaram o ataque e a desmontagem do Estado desenvolvimentista nos anos 90. Pelo contrário, propõe-se um ajuste de contas absolutamente ne­ cessário, no momento em que se desfaz a neblina ideológica e duas coisas ficam absolutamente claras: primeiro, o erro do diagnóstico e o fracasso das políticas neoliberais; e, segundo, o parentesco entre as teses que dividiram, depois de 1985, as

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“forças democráticas” e as posições programáticas que dispu­ taram as eleições presidenciais de 2002. Duas manifestações conjunturais de uma luta de longa duração entre três projetos para o Brasil que estiveram pre­ sentes durante toda a história do século XX, conforme a tese histórica central de O vôo da coruja. O primeiro deles tem suas origens no livre-cambismo do Império, mas sua formulação mais consistente e moderna foi dada pela política monetária ortodoxa e pela defesa intransi­ gente do equilíbrio fiscal e do padrão-ouro, dos governos paulistas de Prudente de Morais, Campos Sales e Rodrigues Alves. Estas idéias, objetivos e políticas atuaram, no início do século XX, como a expressão mais coerente e eficaz do pro­ jeto liberal de inserção da burguesia cafeeira na divisão inter­ nacional do trabalho, liderada pela Inglaterra. Os objetivos e as políticas se mantiveram, praticamente intocados, até a cri­ se econômica de 1930, enquanto as idéias fundamentais se mantiveram vivas e atuantes mesmo depois da crise, reapare­ cendo em vários momentos, nos planos político, econômico ou cultural. São exemplos a Revolução paulista de 1932 e a luta antivarguista do estado de São Paulo e de Armando de Sales Oliveira; a pregação de Eugênio Gudin, na primeira metade dos anos 40, e a concepção econômica da U D N , depois de 1945; a política econômica inicial do governo Dutra e do seu minis­ tro da Fazenda, C. Castro; a política do governo transitório de Café Filho e do seu ministro da Fazenda, E. Gudin; a polí­ tica do governo militar de Castelo Branco e de seus minis­ tros econômicos O. Bulhões e R. Campos. As mesmíssimas idéias que reapareceriam, trinta anos depois, no liberalismo antivarguista e antiestatista, do governo Fernando Henrique Cardoso—Pedro Malan. Este projeto estratégico teve algum

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fôlego sempre que contou com o aval do capital financeiro, inglês nos primeiros tempos, e norte-americano agora no fim do século XX. Mas mostrou-se insustentável nos momentos de crise, como no caso de 1930, e agora, mais recentemente, no fim da administração Clinton e na retração financeira des­ te início do século XXI. No primeiro período, o Brasil ainda era uma sociedade agrária e o crescimento foi suficiente ape­ nas para modernizar algumas áreas costeiras e urbanas. No se­ gundo, contudo, a experiência liberal se deu num contexto social muito mais complexo e o crescimento logrado se mos­ trou absolutamente insuficiente, do ponto de vista económi­ co e social. Além disso, promoveu uma desmontagem dos principais núcleos estratégicos do Estado brasileiro, deixando-o sem capacidade de antecipar acontecimentos, ou sustentar iniciativas estratégicas e de longo prazo. O segundo grande projeto estratégico que participou desta luta em torno ao futuro do Brasil já aparece esboçado nas teses dos “industrialistas”, presentes na Constituinte de 1891. Mas sua verdadeira história começa na década de 1930 e responde pelo nome de “nacional-desenvolvimentismo”, ou “desenvolvimentismo conservador”. Primeiro foi uma reação defen­ siva e pragmática frente à crise econômica de 1929, mas esta reação inicial foi se transformando aos poucos — durante o Estado Novo — num projeto de construção de uma economia nacional, apoiado por uma parte da intelectualidade modernis­ ta, por amplos segmentos das burocracias civis e militares e por um grupo de empresários industriais, onde se destacavam as idéias de Roberto Simonsen. Programa desenvolvimentista e industrializante que adquiriu maior consistência e velocidade nos anos 50, com o nacional-desenvolvimentismo do segundo governo Vargas e o desenvolvimentismo internacionalizante de

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JK, que se prolonga, de forma conservadora e autoritária, du­ rante o regime militar. Em particular, na gestão do general Geisel, que propunha a construção de uma potência nacional intermediária. Durante esta “longa duração”, o contexto internacional teve um papel decisivo para o sucesso econômico deste desenvolvimentismo predominantemente conservador. Primeiro quando o Brasil se viu isolado da economia internacional pela crise de 30 e pela Segunda Guerra Mundial e foi forçado a se financiar internamente. E depois, quando pôde contar com a forte presença do investimento direto estrangeiro e com o apoio norte-americano às políticas desenvolvimentistas, no bojo da Guerra Fría. Foi um período de altas taxas de cresci­ mento e de acelerada industrialização, mas, ao mesmo tem­ po, foram 29 anos de autoritarismo e de crescente desigualdade social. A ação econômica do Estado foi decisiva no desenvolvimentismo conservador, mas não deu lugar a um Estado de tipo “prussiano”, e não houve nenhuma ideologia de tipo na­ cionalista que unisse elites e povo numa mesma “comunidade imaginária”. Além disso, em vários momentos desta história os conservadores governaram aliados com os liberais, que sempre ficaram com o comando da fazenda e da moeda, en­ quanto os desenvolvimentistas controlavam o planejamento e a política industrial. O terceiro e último destes projetos nunca ocupou o po­ der estatal nem comandou a política econômica de nenhum governo republicano, mas teve enorme presença no campo da luta ideológico-cultural e das mobilizações sociais e democrá­ ticas. Esteve presente em algumas revoluções republicanas regionais do século XIX e nas lutas sindicais, comunista e tenentista das primeiras décadas do século XX. Mas foi a par-

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tir da década de 30 e, sobretudo, nos anos 50/60 que estas mobilizações e lutas sociais começaram a se identificar com um projeto de desenvolvimento econômico nacional e popu­ lar que tangenciou, no campo das idéias e das alianças políti­ cas, o “desenvolvimentismo conservador” dos anos 50. No inicio da década de 60, esta vertente nacional, popular e de­ mocrática do desenvolvimentismo chegou a propor uma re­ forma do projeto, incluindo, ao lado da industrialização e do crescimento econômico acelerado, o objetivo da democrati­ zação da terra, da renda, da riqueza, do sistema educacional e do sistema político. Urna alternativa que foi sintetizada, em parte, pelo Plano Trienal de Celso Furtado de 1963, mas que foi vetada pelos conservadores e impedida pelo golpe militar de 1964. Depois disto, estas idéias reformistas se confundi­ ram com o movimento da resistência democrática, somandose, mais tarde, às mobilizações sindicais que se intensificaram na luta final contra o regime militar e que estiveram na origem do Partido dos Trabalhadores. De urna forma ou de outra, este projeto de democratização social e política do desenvolvi­ mentismo esteve presente nas intenções e ações reformistas de algumas áreas e políticas governamentais, logo depois da redemocratização. E acabou ocupando um lugar importante no texto da Constituição de 1988, sobretudo nos capítulos relacionados com os direitos civis, sociais, políticos e econô­ micos da cidadania brasileira. Em 1984, O vôo da coruja concluía confessando a incapaci­ dade de prever o desdobramento da crise econômica e do processo de redemocratização, porque, “diante das incertezas do futuro, cegam-se os olhos da coruja”, o pássaro de Minerva de que nos fala Hegel. Hoje, não é difícil compreender o que se passou na década de 80 e como foi que se deu, no Brasil, a

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vitória do projeto liberal. Mas naquele momento as coisas estavam menos claras e não era tão fácil distinguir o joio do trigo. Basta ver o descaminho que levou vários críticos do autoritarismo desenvolvimentista a cair nos braços do libera­ lismo antinacional e antipopular. No inicio deste novo século, outra vez, como na conjun­ tura de 1984, não se pode ter nenhuma certeza sobre o futu­ ro. Mas não é difícil perceber, nas eleições presidenciais de 2002, o retorno vitorioso de algumas teses e objetivos do ter­ ceiro projeto, de “democratização e reforma”, derrotado e excluido pelas classes dominantes brasileiras durante todo o século XX. O voo da coruja foi publicado pela primeira vez em 1995, pela Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Esta nova versão da Editora Record foi refeita pelo trabalho cuidadoso de Paulo Borges. O texto foi melhorado até onde era possível e, além disso, algumas passagens inúteis foram retiradas e outras foram refeitas com a nossa colaboração, para facilitar a leitura dos prin­ cipais conceitos e teses enunciados em 1984. José Luís Fiori, Rio de Janeiro, janeiro de 2003.

Introdução

Um fantasma e uma esperança percorrem as “veias abertas” do continente latino-americano: crise e democracia aparecem como face e contraface de uma perplexidade teórica e políti­ ca. Suas principais forças sociais, políticas e intelectuais con­ vergem, propondo, como resposta à destruição, desordem e incerteza, a reinvenção de uma sociedade democrática. Mais do que isso: parece estar em ação uma dinâmica que vem se consolidando: quanto maiores se fazem as privações, ansie­ dades e frustrações acumuladas pela recessão, pela anarquia financeira e pela expansão da barbárie social, maiores a com­ plexidade e a heterogeneidade das demandas que deságuam no leito impreciso de um projeto político, cujos horizontes e modos de sustentação se tornam progressivamente menos nítidos. Os rumos futuros do continente, e do Brasil, são in­ certos. Confundem as expectativas dos atores econômicos e políticos e dificultam as análises e projeções teóricas. Nem por isso a razão crítica deve abdicar de sua tarefa. Pelo contrário, se a desordem conjuntural impede previsões segu­ ras, a crise, denunciando o fim de uma época, anuncia, como pensava o filósofo, a hora vespertina em que voa o pássaro de Minerva. O anoitecer viabiliza e a urgência impõe uma análi­ se rigorosa das contradições e tendências da conjuntura atual.

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É a contribuição que a teoría pode dar neste momento; loca­ lizando as origens, identificando os obstáculos e sinalizando as direções possíveis dessa travessia. Ainda que não seja possível adivinhar nem impor os ca­ minhos de uma esperança coletiva, anunciada pelo anseio de redemocratização, a reflexão teórica pode desvestir o fantas­ ma que se alimenta da radicalidade da crise e se projeta pelos caminhos da imaginação e criação humana. Como na grande crise econômica do último quarto do século XIX — ocorrida em plena hegemonia inglesa —, a cri­ se mundial dos anos 1980 ocorre em plena hegemonia ameri­ cana, mas seus efeitos são mais extensos e globais, afetando, de uma forma ou de outra, todas as regiões e países do mun­ do. Esse é o ponto de partida para se pensar a crise latinoamericana que se generaliza nessa década. Uma coisa chama a atenção de imediato: independentemente da forma como se conceitue a natureza da crise — ora sublinhando seus aspec­ tos econômico-fmanceiros e tecnológicos, ora seus aspectos político-ideológicos —, parece claro que ela traz em seu bojo uma crítica radical ao Estado. O antiestatismo surge nos anos 60 e, como um venda­ val, avança em todos os países capitalistas, céntricos ou pe­ riféricos. Se é verdade que a bandeira do antiestatismo se reveste de um recorte nitidamente conservador, não se pode esquecer que suas raízes foram plantadas pelo pensamen­ to progressista, dos anos 60, e que sua expressão máxima, condensada nas revoltas de 1968, teve lugar no coração da Europa do bem-estar social. Ali foram sistematizadas e tomaram corpo as principais críticas da Neiv Left ao auto­ ritarismo e à repressão embutidos nas instituições demo-

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oráticas e intervencionistas do Estado Social, dominante em quase todos os países desenvolvidos. O ideário da Netv Left se vê reforçado pelo movimento de oposição à guerra do Vietnã e pela decepção com o socialismo “real” da Europa Oriental e é reforçado, ainda, pela apatia aparente da classe operária européia e norte-americana. Junto com o fim do conflito, a nova esquerda propunha, também, o fim do Es­ tado intervencionista, que deveria dar lugar a urna nova for­ ma de democracia descentralizada e participante. Não está errado dizer que renascem juntos liberalismo e anarquismo, trazendo à tona suas velhas teses, derrotadas na virada do século. Sim, porque foi a partir da Primeira Guerra Mundial que, nos planos ideológico, político, económico e teórico — através das experiências soviética, fascistas e socialdemocratas —, foram reprogramadas, pactuadas e teorizadas as novas funções do Estado no planejamento e na gestão do capitalismo monopolista. Encerrava-se ali, de forma aparen­ temente definitiva, a era do Estado liberal. A despeito das objeções conservadoras e das críticas feitas pelo socialismo libertário, o controle da ação estatal permitiría alcançar-se um “capitalismo organizado”, ou, mais à frente, chegar a um so­ cialismo democrático. A partir de então — e, em particular, depois da crise de 1929 —, o Estado capitalista redefine-se como instrumento básico na prevenção e controle das crises. Derrubando todas as objeções da oposição liberal, políticas e ideológicas, consolidou-se amplo e duradouro consenso, unindo keynesianos e social-democratas em urna sólida e estável aliança das princi­ pais forças sociais e políticas capazes de sustentar aquela trans­ formação. Lembramos que este consenso foi forjado no calor de duas guerras mundiais, de uma grande crise econômico-

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financeira e de varias experiências fascistas; fenómenos que marcaram a violenta luta pela sucessão da hegemonia inglesa. Urna vez consolidada a Pax Americana, depois de 1947, con­ solida-se também um novo consenso em torno à defesa do Estado como organizador do pacto corporativo entre gover­ no, sindicatos e capital. O Estado se torna responsável, em grande medida, pelo surto do crescimento acompanhado de paz social que, nos anos 50/60, alimentou a utopia de uma sociedade estável de consu­ mo de massas, com bem-estar e liberdade para todos. Depois de três décadas, nos anos 70 e, em particular, nos anos 80, a recessão, o desemprego e a inflação parecem certificar, a par­ tir dos próprios países centrais, que o “grande acordo” e sua eficaz operação entraram em crise, tendo alcançado, talvez, o limite de suas potencialidades. As críticas neoliberais e neolibertárias agigantam-se e ali­ mentam a descrença coletiva na eficácia de uma nova solução estatal. O surpreendente é que, diante da crise, os neoliberais proponham, pura e simplesmente, a volta às teses da doutrina econômica clássica acerca do Estado-gendarme, desconhecendo o peso das modificações histórico-estruturais já ocorridas. Por outro lado, fora as propostas descentralizantes dos libertários, chama a atenção o fato de que o pensamento socialista, preso à idéia de um capitalismo de Estado, não consiga dar conta das transformações, nem, tampouco, formular propostas alterna­ tivas à crise. Em meio a isso tudo, a perspectiva do Estado intervencionista de corte keynesiano mantém-se levitando, sem um destino claro. O debate passa a girar, predominantemente, em torno à eficácia da intervenção econômica do Estado; mas, em sua es­ sência, aponta para novas formas possíveis de organização da

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dominação política. Assim, se liberais e libertários convergem na crítica ao estatismo, divergem no diagnóstico e na terapia que propõem. Os liberais postulam, como no conhecido relatório da Trilateral Comission, de 1975, que a crise política é decor­ rente da “ingovernabilidade” dos modernos sistemas políti­ cos, asfixiados pelo “excesso de democracia”. Sua terapéutica, liberal do ponto de vista econômico, tende a ser autoritária do ponto de vista da participação política, como bem o viu J. Portantiero: (...) el Estado estaria ahora sobrecargado de expectativas y de res­ ponsabilidades demasiado pesadas para la capacidad que posee de procesarlas con sus recursos de poder. En ese sentido, implí­ cita o explícitamente, la crisis del Estado actual aparece, en rigor, como crisis de la democracia en el Estado, como crisis de un tipo de orden hegemônico que vinculaba sociedad y política de manera democrática. Lo que está en cuestión, finalmente, es la democracia, no tanto el Estado (1984, p. 101).

Por trás da pálida desativação da intervenção econômica do Estado, a prática conservadora dos neoliberais no poder traduz-se no “congelamento” de certas instâncias do relaciona­ mento social e numa ativa desmobilização de organizações participativas, substituídas por um estado — desejável e pa­ trocinado — de apatia coletiva: The apathetic electorate ceases to be an anomaly and appears, instead, as a necessary condition for the legitimization o f the State whose effectiveness would be impaired if the electorate were to be seized by an extended fit o f participatory zeal. The State needs taxpayers and soldiers, not active citizens. It requires occasional

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citizens in order to lend plausibility to the fiction that the State is based upon democratic consent and that its actions are therefore legitímate (Wolin, 1980, p. 9).

Os libertários, por sua vez, sublinham aspectos radicalmente opostos, vendo na raiz da crise política a burocratização estati­ zada das relações sociais e das formas orgânicas de participação cidadã. Propõem, em contrapartida, a necessidade de ampliar e renovar os canais de participação democrática. Ou ainda, mais do que isso, a necessidade de repensar a própria teoria e prática democráticas à luz de uma proposta que amplie a participação e as arenas de deliberação e decisão, tornando-as eficazes em todos os níveis, sempre e quando seja possível aglutinar pes­ soas em torno a problemas ou situações concretas comuns. Entre essas duas posições, uma vez mais, a social-democracia e o socialismo clássico parecem premidos num espaço exíguo, exatamente porque não conseguem repensar suas ve­ lhas concepções e fórmulas estatistas. A crise, entretanto, se revela de uma densidade que extrapola o nevoeiro ideológi­ co. Encontra suas raízes nas transformações econômicas, so­ ciais e políticas produzidas pela longa e eficaz vigência do pacto corporativo e pela presença crescente do Estado, asseguran­ do a reprodução global das relações de produção e dominação. Vista de uma perspectiva à direita, a crise seria decorrente de um “excesso de democracia”; já de um ponto de vista de esquerda, a crise seria de “legitimidade” ou de escassez de participação. A crise do Estado, na verdade, explicita tendên­ cias embutidas num padrão de desenvolvimento capitalista que, não cabendo mais na camisa-de-força dos Estados liberais, tampouco é adequado aos moldes estreitos das democracias sociais. Seu grau de profundidade atinge o próprio conceito-

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realidade-viabilidade da cidadania como pedra angular da socie­ dade democrática. As relações Estado-sociedade, constituidas no século XIX e na primeira metade do século X X e reestru­ turadas depois da Segunda Guerra Mundial, aparecem, na vi­ rada do século XXI, desafiadas pelas grandes corporações e estruturas internacionalizadas de poder. Suas conseqüências apontam muito menos na direção das preocupações de Tocqueville, do que para as previsões mais pessimistas de Weber e Michels com relação ao crescimento do poder das grandes burocracias públicas e privadas, associa­ do a um estado de apatia das massas. Ou, nas palavras de H. Kariel: “The Reagan administration morally gives explicit expression to the dominance o f apolitical processes which are becoming characteristic of modera government” (1983, p. 252). Os sistemas partidários ou nasceram cedo, e hoje compe­ tem ombro a ombro com as demais burocracias, ou perderam sua hora e vegetam à sombra dos Estados. As representações parlamentares tornaram-se estreitas para abrigar os interes­ ses que se transnacionalizaram e o voto assemelha-se, quase, a uma peça de museu, substituído, em parte, pelas avaliações diárias de uma opinião pública amplamente manipulada. Nas palavras de Poulantzas: L’administration tend done à monopoliser le rôle d’organisateur poli tique des classes sociales et de l’hégémonie, ce qui va de pair avec la transformation de partis de pouvoir. Ces partis, plus que lieuxde formulation politique et d’élaboration des compromis et des alliances sur la base de programmes plus ou moins précis, plus que des organismes maintenant des liens effectifs de répresentation avec des classes sociales, constituent désormais des véritables courroies de transmission des décisions de l’executif. La légitimation se

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déplace vers les circuits plébiscitaires et purement manipulatoires (médias) domines par Y administration et l’executif (1978, p. 255). As principáis arenas decisorias transferiram-se, pois, para dentro daquelas burocracias e, por isso, no plano do Estado, se impôs a preeminéncia dos Executivos, que estariam me­ nos vulneráveis à crítica. Na prática, isto dilui a divisão dos poderes e dificulta ao máximo o controle da população sobre os mecanismos e conteúdos de decisões tomadas sob o prin­ cipio da “responsabilidade democrática”. A substituição do indivíduo-cidadão pelas corporações, da vontade coletiva pela decisão tecnocrática e da competição dos interesses — nos ámbitos do mercado e da sociedade civil — ñas disputas no interior das instâncias executivas estatais pas­ saram a ser o traço dominante dessa nova realidade. Por ou­ tro lado, a transnacionalização das relações econômicas e a bipolarização das relações bélicas erodiram as bases reais do poder soberano de Estados nacionais. Estes se enredam numa teia de relações econômico-financeiras e militares mundiais, em face das quais os cidadãos e as sociedades civis perderam quase toda a capacidade de controle. Debilitados, os próprios Estados nacionais não lograram construir uma nova institucionalidade capaz de regular e gerir, mediante a vontade dos povos, as relações econômicas e políti­ cas supranacionais. E, tanto do ponto de vista de suas relações internas quanto das relações com outros Estados nacionais, a crise do Estado capitalista e das democracias sociais é estreita­ mente associada à paralisia da sociedade civil e à impotência diante dos interesses e estruturas transnacionalizados. Os mesmos fatores que viabilizaram o crescimento, a esta­ bilidade e a paz social do período bem-sucedido da hegemonia

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norte-americana parecem atuar agora num sentido contrário, pressionando e paralisando a eficacia político-institucional dos Estados capitalistas centrais. Na frente externa, lutam por urna nova ordem mundial, enquanto sofrem, no plano interno, o ataque frontal de forças partidárias de uma desestatização radi­ cal. Nestes países, ao contrário da América Latina, não existe uma esperança democrática capaz de mitigar os sofrimentos e o fantasma da crise econômica e social. A crise da periferia capitalista latino-americana inscrevese no movimento desta desordem mundial e nela a questão da reestruturação do Estado também ocupa um lugar central. Contudo, dominada por regimes autoritários desde a década de 1960, na América Latina, e esta é uma diferença fundamen­ tal, a crítica do Estado confunde-se com a luta pela redemocratização. Apesar do descontentamento generalizado com os go­ vernos militares, aparecem profundas divergências que di­ videm as forças democráticas, em torno à crítica e à definição das velhas e novas funções do Estado, dificultando a compatibilização das várias tendências ideológicas reunidas sob a bandeira da redemocratização. Aparecendo como tábua de salvação, para uma crise que soma os constrangimentos ex­ ternos aos efeitos do ciclo industrial interno, em uma de­ sordem caracterizada pela recessão, inflação e desemprego, o processo de redemocratização nos países latino-ameri­ canos torna a crise ainda mais complexa. Como se fosse pou­ co a tudo isto se adicionaria ainda uma profunda “crise de representação” das idéias, dos partidos e das instituições de um modo geral. Crise econômica e fracasso do autoritaris­ mo aparecem amalgamados, sem que se tenha clareza sobre

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a cota de responsabilidade do estatismo e do autoritarismo na gênese da própria crise. A versão local da ideologia neoliberal propõe as mesmas idéias hegemônicas nos países desenvolvidos: a desestatização da economia e a reafirmação do individuo consumidor e do mercado enquanto princípios organizadores de urna nova or­ dem econômica, que nascería das cinzas do autoritarismo. Na outra vertente, o pensamento progressista, em seus vários matizes, que vão do keynesianismo de esquerda ao socialis­ mo, insiste na necessidade da presença estatal. A relação entre desestatização e democracia, na América Latina, escreve sua própria versão. Nas entrelinhas, recolocase a velha questão da inevitabilidade da intervenção do Estado na promoção do desenvolvimento dos capitalismos tardios — oligopolizados e internacionalizados desde a sua origem — e da viabilidade de regimes democráticos estáveis, no caso de sociedades profundamente heterogêneas, fragmentadas e excludentes. Desafiada mais uma vez pelas relações entre o capitalismo e a democracia, a análise política, que há pouco tempo atrás se de­ dicava a explicar as raízes e a natureza dos “autoritarismos-buro­ cráticos”, se vê obrigada a deslocar o eixo de suas preocupações para um novo campo: as raízes, a natureza e a viabilidade das novas “transições democráticas” e das propostas desestatizantes. Para trás ficaram o tviskful thinking de algumas teorias do desenvolvimento, em que crescimento econômico e demo­ cratização política tinham necessária correspondência. Igual­ mente, foram abandonadas as expectativas ortodoxas de que as revoluções democráticas, nos países periféricos, pudessem ser a culminação do processo de expansão do poder burguês, viabilizado por industrializações nacionais e autônomas. Com

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o passar dos anos, estabeleceu-se o consenso, a certeza, de que os caminhos econômicos e políticos do mundo subdesenvol­ vido não seriam jamais os mesmos dos países pioneiros do desenvolvimento capitalista industrial. Nasceram daí as teorias sobre os regimes “burocráticoautoritários” latino-americanos (O ’Donnell, 1984), que seriam uma espécie de “forma política” típica da domina­ ção burguesa durante o “aprofundamento” da industriali­ zação dos países situados na periferia do sistema capitalista mundial. Ou sobre as “revoluções burguesas retardatárias”, nas quais se daria uma “forte associação racional entre de­ senvolvimento capitalista e autocracia” (Fernandes, 1976, p. 292). Duas teorias que partiam da mesma crítica ao mode­ lo eurocêntrico que supunha uma associação entre o desen­ volvimento capitalista, a modernização sócio-política e a constituição de regimes democrático-liberais. Mas nenhu­ ma das duas teorias conseguiu demonstrar, teórica e histo­ ricamente, o caráter supostamente necessário dos regimes autoritários, nos capitalismos periféricos. Como, por ou­ tro lado, foram ficando cada vez mais claras as diferenças entre os desenvolvimentos dos vários países do continen­ te, tornou-se cada vez mais difícil fazer generalizações a respeito das relações entre desenvolvimento econômico e autoritarismo numa América Latina que já se desintegrara como unidade homogênea de análise. Foi sobre este pano de fundo, permeado de incertezas e perplexidades teóricas e políticas, que a crise capitalista mun­ dial dos anos 70 e 80 atingiu — de modos diferentes — os diversos países latino-americanos. Assim, muito antes que tivesse conseguido compreender e explicar as “industrializa­ ções autoritárias” e os autoritarismos desindustrializantes, o

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pensamento crítico viu-se obrigado a discutir e entender os caminhos da redemocratização e os diferentes sentidos das críticas ao Estado desenvolvimentista. Este é o tema central desta tese, que se desenvolve pri­ mordialmente em dois movimentos. Primeiro retoma e dis­ cute o velho problema teórico-metodológico das relações entre o movimento de longa duração das estruturas econô­ micas e sociais e o tempo conjuntural da luta política. Como nosso objetivo era analisar urna conjuntura de crise, começa­ mos exatamente pela discussão do conceito de conjuntura e sobre a possibilidade de uma análise objetiva dos seus confli­ tos e desdobramentos. Uma conjuntura política que se nos apresenta como um “ponto nevrálgico” do movimento estru­ tural; um ponto decisivo e de enorme complexidade porque é exatamente onde se condensa a liberdade de ação dos gru­ pos econômicos, sociais e políticos. Estudamos as várias alternativas — da guerra à política — através das quais se pode tentar diminuir ou enquadrar teori­ camente o problema da incerteza que se liga às expectativas estratégicas dos vários atores envolvidos na ação e nas lutas conjunturais. Por isso introduzimos, logo no início, as discus­ sões sobre a teoria da guerra e sobre a teoria neoclássica dos mercados. Para nós, passos preliminares para discutir a visão braudeliana da simultaneidade dos tempos históricos e a for­ ma como Marx combina sua teoría histórica de longo prazo com suas análises políticas conjunturais. Em seguida, elaboramos uma proposta de análise que procura articular estrutura e conjuntura, economia e políti­ ca num tempo comum, o tempo da valorização do capital e dos seus ciclos de acumulação. Será esta proposta que estará

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aplicada ao estudo da conjuntura de crise dos anos 80, sob o paño de fundo do movimento de longo prazo das estruturas e instituições econômicas e políticas, responsáveis pelo “desenvolvimentismo” brasileiro. São os resultados absolutamente preliminares dessa re­ flexão que apresentamos no segundo movimento desta tese. Nele tentamos analisar o modo como se entrelaçam, num mesmo processo de valorização, o crescimento econômico, as lutas político-ideológicas e a expansão do Estado. Ao mesmo tempo, procuramos identificar algumas conjunturas críticas nas quais foram redesenhando-se periodicamente — desde a Primeira Guerra Mundial — os traços de uma estru­ tura político-econômica que se move na forma de um gran­ de ciclo, o ciclo desenvolvimentista. Esta é, obviamente, uma reflexão inacabada; mas já nos permitiu uma compreensão melhor da história política brasi­ leira recente e das forças e tendências em que se sustentam o projeto neoliberal da desestatização e a esperança popular da democratização.

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Conjuntura e ciclo

Fora da Economia, a palavra conjuntura vive quase sempre prisioneira do senso comum. Quando é desvinculada do tem­ po sazonal da produção agrícola e do tempo cíclico da produ­ ção industrial, ela é empregada em geral como sinônimo de “momento atual” de qualquer espaço de tempo breve, ou, genericamente, de qualquer “encontro de circunstâncias que se considera como o ponto de partida de uma evolução” (Novo Dicionário Aurélio). Como acontece em particular com as aná­ lises jornalísticas e com as discussões políticas do dia-a-dia. O mesmo se pode dizer da análise conjuntural. Só a Eco­ nomia logrou realizá-la de forma mais rigorosa. As demais ciências sociais tentaram seguir este exemplo sem alcançar o mesmo nível de objetividade no estudo do “momento atual”. O mesmo se pode dizer da ciência política — que ainda não conseguiu estruturar o seu próprio conceito de conjuntura — e sua análise segue sendo considerada um exercício de “inicia­ dos” c de áulicos do poder ou dos sistemas de informação. Só rlcs seriam capazes de ler, nos discursos e no comportamenlo tios atores políticos, as tendências e o futuro provável de cada conjuntura. Não há dúvida que se trata de um problema

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de difícil solução, porque a análise conjuntural exacerba, le­ vando ao limite, traços que compartilha com a teoria política como um todo. Assim, com a difícil, porém necessária, con­ vivência com as paixões e ideologias conflitantes, bem como com a linguagem e o senso comum que movem a luta cotidia­ na. Mais do que em qualquer outro campo, é no estudo do tempo presente que os valores envolvem e prejudicam a isen­ ção necessária a qualquer esforço científico, dificultando a vi­ sibilidade dos verdadeiros atores, motivos e circunstâncias que, explicando o presente, poderiam ampliar a previsibilidade sobre o futuro. Qualquer avanço nesse sentido passa, obrigatoriamente, pela superação do senso comum e pela construção de um con­ ceito mais rigoroso sobre a temporalidade política. Fazê-lo, contudo, implicaria delimitar, preliminarmente, problemas insuperáveis postos pela inventividade da ação humana, para que se possa avançar, teórica e praticamente, no esforço de prever comportamentos e conseqüências com certo grau de necessidade de ocorrer no futuro, a partir de contradições, ten­ dências e decisões que contam, no momento conjuntural ana­ lisado, com certo grau de liberdade para se combinar. Como observou Max Weber (1977), para além dos “usos”, “costumes” e “situações de interesse”, os sistemas legais, autori­ tários ou democráticos aparecem como uma tentativa de redu­ zir a um mínimo a margem de liberdade por onde irrompe, sem cessar, o imprevisível. Quando se diluem os costumes, fragmen­ tam-se os interesses e deixam de ser homogeneizados os meca­ nismos de socialização capazes de criar um “sentimento de dever” com relação a uma ordem política válida, porque legítima, resta apenas o uso da força como forma dos governantes enquadra­ rem a rebeldia dos atos individuais. Sem pactos sólidos, nem

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convenções democráticas aceitas consensualmente, o autori­ tarismo aparece como forma de uma ordem política estável, atra­ vés da regulamentação exaustiva do quotidiano. Isto se passa com os governantes e com todos os demais atores políticos que se movem no espaço-tempo conjuntural, tentando impor seus in­ teresses particulares. A própria ordem legítima, entretanto, contém contradi­ ções que a fazem permanentemente conflituosa; e a dificul­ dade fundamental reside na necessidade de compreender e ao mesmo tempo preservar tal conflito. Ao tentar penetrar o tempo conjuntural, enquadrá-lo racionalmente, a razão críti­ ca, a vontade orgânica e a imaginação criadora não podem dis­ solver autoritariamente o conflito, sob pena de destruir a margem de liberdade conjuntural; também não podem ignorálo, ou subestimá-lo, pois trata-se da matéria-prima da previ­ são almejada. Trata-se, portanto, de um convívio delicado entre o decifrador e o enigma: razão e imaginação devem propor uma solução que possa orientar a vontade no presente, sem resolver completamente o futuro. A previsão sobre tal futu­ ro, que será gerado na contradição e no conflito, deve nascer por um ato de ousadia crítica e de fantasia. Donde, analisar o “presente conjuntural” seja uma proposta tão desafiadora: deseja-se compreender o “imaginário coletivo”, sem dissolvêlo autoritariamente. Os grupos sociais e políticos movem-se num tempo pre­ sente que é a condensação do passado vivido e conhecido e de um futuro que desejam prever e antecipar. Na conjuntura, ex­ perimentam o tempo enquanto fluxo, a estrutura como cons­ trução e a sua prática enquanto luta permanente no sentido de controlar a incerteza, regulando a vontade e as expectativas dos adversários. Nesse sentido, em situações anárquicas, tanto quanto

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no âmbito de ordens legítimas e orgánicas, o problema central é sempre o mesmo, e define-se pela existência de aspirações e expectativas mutuamente excludentes, que, afundando suas raízes nas contradições socioeconómicas, explicitam seu poten­ cial na capacidade de insubordinação e na inventividade dos vá­ rios interesses e grupos contrapostos. Com essa preocupação, querendo enquadrar o horizon­ te “imaginário” das situações conjunturais, homogeneizando interesses contraditórios e comportamentos conflitivos, nas­ cem as teorias fundadas na hipótese das “expectativas racio­ nais”. Sugeridas originariamente por Weber e traduzidas muito mais tarde por Muth (1961) para o campo da econo­ mia, atraem a atenção de todas as ciências sociais. Supondo que todas as informações possam ser articuladas com base em dados estatísticos e que as expectativas possam ser ex­ pressas por distribuições probabilísticas, essas teorias con­ cluem que as expectativas subjetivas devem se identificar com as distribuições objetivamente estatísticas. Assim, por um caminho banalmente circular, dissolvem a incerteza e, com ela, o futuro como espaço-tempo desconhecido. Reificase a experiência passada em modelos que desconhecem a precedência das decisões ou que, de fato, no momento da decisão, contam apenas com expectativas. Em oposição àquela hipótese, não se afirma o caráter ir­ racional ou ilógico do tempo histórico. Ao contrário, afirma-se a existência de uma sucessão temporal que, sendo lógica, é irreversível e irrevogável. Apesar de haver um des­ dobramento racional entre dois momentos sucessivos, A e B, o momento B não é dedutível do momento A, segundo cânones de racionalidade lógico-formal, como na hipótese das expectativas racionais. O momento A está grávido do

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momento B, mas entre os dois medeiam, no processo de construção histórica, a invenção e a imaginação criadora. Daí por que, como na microfísica de Heisenberg, também no microtempo da conjuntura exista um alto grau de permanen­ te incerteza, a verdadeira origem de toda a fantasmagoría político-ideológica. Assim, segundo urna perspectiva histórica contraria à das expectativas racionais, cada momento implica uma percepção única do passado e expectativa de futuro, sendo as decisões tomadas no presente logicamente independentes de suas conseqüéncias. Os atores históricos, assim como os analistas políticos, não conhecem, jamais, todas as alternativas futuras possíveis, nem controlam, tampouco, toda a informação dis­ ponível sobre a situação presente. E o que é mais importante e definitivo, movem-se sobre um tempo histórico que é irre­ versível e irrevogável. Devemos trabalhar com esses pressupostos, se quisermos, desfazendo-nos do senso comum, construir um conceito ade­ quado de tempo conjuntural. É no interior desse tempo, que flui como presente, que atores e analistas buscam controlar a incerteza futura, antecipando com suas expectativas as esco­ lhas dos demais atores e o desdobramento global da conjun­ tura. Fórmula verdadeira em situações consensuais, como dentro de ordens autoritárias. Em “situações consensuais” as relações sociais dominan­ tes serão de luta, mas uma luta pacífica ou regulada. No ou­ tro, a luta tenderá a extravasar a mera competição, adquirindo uma forma aberta, muitas vezes descontrolada e que tende a um enfrentamento do tipo soma zero. No primeiro caso, os atores tenderão a ser mais orgânicos, constantes e “racionais” em sua ação; no outro, os atores reais do conflito político ten-

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derão a uma fragmentação múltipla e variável através do tem­ po, surgindo, como unidade de análise, no mais das vezes, grupos e claques com baixíssima organicidade. Em ambos os casos, entretanto, sobrepor-se-ão às ações tipicamente “racio­ nais com vistas a fins”, outras “racionais com vistas a valores”, ou simplesmente “afetivas” ou “tradicionais”. Revela-se im­ possível traçar previsões que se movam sobre uma traje­ tória dada, por intermédio da simples adequação ótima de meios a finalidades. No limite, não se trata apenas de atores que desejam “impor sua própria vontade contra a resistência dos de­ mais” (Weber, 1977, p. 31) numa luta competitiva, mas, antes, de uma multiplicidade inorgânica de atores que desejam a imposição de seus interesses à revelia de toda e qualquer re­ gra, baseando-se apenas na sua vontade e imaginação. É, assim, previsível que, quanto menor o grau de aceita­ ção ou permanência das leis vigentes, maior será o grau de incerteza a ser controlado. E, quanto maior a inorganicidade dos atores, maior a quantidade de grupos, organizações e claques que desejam controlar a situação, impondo suas pró­ prias e particulares previsões. Donde, quanto menos efici­ ente um sistema legal e mais fragmentado o mundo dos interesses, menor a possibilidade de uma estabilização que resulte na aceitação de um conjunto de previsões que hegemonizem as expectativas coletivas. Nestes casos, as expec­ tativas mútuas tenderão a ser de constante ameaça, e a visão que os atores construirão acerca da situação será a de uma crise permanente, porquanto não haverá consenso nem hegemonia, e o simples uso da força mostrar-se-á, no longo prazo, extremamente frágil e impotente. É igualmente previsível que, quanto maior a instabilidade das normas e instituições, maior será a dificuldade de organi-

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zar uma análise eficaz do tempo conjuntural, porque os ato­ res que participam da ação mutuamente referida não tendem a atribuir o mesmo sentido a suas ações, inexistindo um mí­ nimo de reciprocidade. Nesses casos, (...) unem os partícipes à sua conduta um sentido diverso: a relação social é, assim, para ambos os lados, objetivamente unilateral. As­ sim mesmo, não deixa de estar referida, na medida em que o ator pressupõe uma determinada atitude do seu contrário frente a ele (errônea quiçá, no todo ou em parte) e a partir dessa expectativa orienta sua conduta, a qual basta para que possa haver conseqüências, como as há no mais das vezes, relativas ao desenvolvimento da ação e à forma da relação (Idem, p. 22). As expectativas assumem um papel de primeira importân­ cia, aumentando a dificuldade analítica, porque se trata de ex­ pectativas que não convergem e pertencem a múltiplos atores com baixo grau de organicidade e sem objetivos, programas e estratégias duradouras. Mas, por outro lado, são essas mesmas expectativas que, ao mover os atores, definem o ho­ rizonte futuro de um tempo conjuntural que ainda não trans­ correu completamente. E é nesse tempo, de um futuro ainda não vivido, que germina o “mundo do imaginário”, cumprin­ do às expectativas trazer ao “presente inacabado” dos atores uma imagem ativa do futuro, orientando sua ação e dissol­ vendo seu medo do desconhecido. São as expectativas, pois, que fazem do futuro um elemento ativo do presente, intro­ duzindo no espaço-tempo conjuntural uma dimensão que, apesar de não vivida, é da maior importância para a compre­ ensão daquilo que está sendo vivido. Em síntese, sem a aná­ lise e compreensão das expectativas que os atores políticos

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traçam para si mesmos, não há possibilidade de previsão, não existe análise político-conjuntural possível. Cabe observar, no entanto, que a construção dessa “imagem esperada do futuro” não é absolutamente aleatória. Ela obedece a determinada lógica, na medida em que obedece a certos cânones e determinações. Constrói-se com base em informações anali­ sadas e reelaboradas segundo códigos ideológico-doutrinários, no contexto de uma perspectiva estratégica e a partir de uma ima­ gem e avaliação do passado. Tudo isso movido por interesses que, por mais fluidos e circunstanciais que possam se mostrar, são passíveis de um conhecimento objetivo. Mais do que isso, esses interesses constroem-se normalmente em torno ou a partir de determinados desafios que, mesmo na ausência de um consenso feito lei, logram organizar e homogeneizar minimamente o eixo problemático das expectativas e da conjuntura. A presença ativa de expectativas, enquanto esforço de or­ ganização da incerteza, define a diferença epistemológica fun­ damental entre o conhecimento de uma “conjuntura atual” e uma “conjuntura passada”. No primeiro caso, o conhecimen­ to acompanha o movimento de sua construção; no segundo, o que se propõe o analista é fazer uma reconstrução adequada dos fatos. Numa situação, partindo dos motivos, decisões e determinações estruturais conhecidos, o analista procura pre­ ver conseqüências. Na outra, conhecidas as conseqüências, trata-se de explicá-las, reconstruindo a trajetória de suas ra­ zões desconhecidas. A maior dificuldade para reconstruir as conjunturas passa­ das vem da indefinição dos seus limites. N a ausência de uma teoria que dê conta do movimento dinâmico da conjuntura, a tendência é privilegiar as determinações estruturais, aparente­ mente consagradas, como causas do que acabou acontecendo:

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dissolvem-se as incertezas vividas pelos atores naquele momen­ to e consagra-se a inevitabilidade do que ocorreu, caindo-se, na maioria das vezes, na falácia da “conseqüéncia”. Os limites tem­ porais são aparentemente claros, assim como os atores e suas expectativas, hoje transformadas em acontecimentos que difi­ cultam o conhecimento do que, de fato, foram e do papel que realmente cumpriram. A dificuldade maior para o conhecimento de “conjunturas atuais” está no seu tempo “não vivido”, materializado em ex­ pectativas que escapam muitas vezes à nossa observação. Qualquer teoria que queira dar conta do problema posto pe­ los limites temporais de uma conjuntura terá que equacionar o problema das expectativas, que é o lugar onde se esconde uma parte importante do código capaz de decifrar, ou pelo menos de diminuir, o problema da incerteza futura. É indis­ cutível, nesse sentido, que a análise conjuntural padece da fal­ ta de monumentos. Mas é igualmente certo que a análise histórica, muitas vezes, padece da falta da “incerteza”. Definir os limites factuais do tempo conjuntural passa, pois, pela redução teórica do mundo imaginário das expec­ tativas, mas passa, antes, pela sua demarcação espacial. A exi­ gência analítica de reduzir o número de fatores e atores a serem considerados corresponde à realidade efetiva de que apenas alguns, dentre eles, têm peso real na condução dos acontecimentos. Determiná-los é uma tarefa teórica sem a qual a análise político-conjuntural em nada se diferenciaria do trabalho executado por qualquer sistema nacional ou policial de informações. Tarefa que se faz ainda mais difícil e necessária quando sabemos que o contexto político signifi­ cativo de qualquer conjuntura inclui, hoje e cada vez mais, um espaço transnacionalizado, fazendo com que atores, in­

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formações e valores geograficamente externos às políticas nacionais, tenham um enorme peso na evolução de qualquer conjuntura política “considerada nacionalmente”. O poder é disputado em nivel nacional, mas os atores e suas expectati­ vas se constroem dentro de horizontes culturais, ideológi­ cos e informativos internacionalizados. Amplia-se, pois, de forma quase infinita, o número de fatores e circunstâncias a serem considerados. Só um exigente esforço de construção teórica poderá eli­ minar o espaço e o tempo da conjuntura política, explicando a natureza de sua dinámica endógena a partir do peso relativo das decisões dos atores e da ação de forças inconscientes, indepen­ dentes de suas vontades. Só através desse esforço teórico po­ deremos deslindar as complexas relações estabelecidas, em cada conjuntura, entre os sentidos e motivações dados pelos atores às suas ações e as necessidades ou tendências estruturais, sepa­ rando analíticamente, com um máximo de nitidez possível, as interseções estabelecidas estrutural e conjunturalmente entre as relações econômicas e as relações políticas. A partir desses elementos teóricos reaparecerá o pro­ blema da temporalidade, desta feita revisto e alicerçado conceitualmente, permitindo-nos pensar o recorte especí­ fico da conjuntura política à luz de suas relações sociais conflituosas: i) a possibilidade do confronto aberto, que ten­ de à bipolaridade e à eliminação de um dos partícipes, cujo modelo clássico é a guerra, e ii) a do confronto regulado, tendente a uma competição plural, auto-regulada e não obri­ gatoriamente excludente, cujo modelo clássico, ainda que fictício, é o da economia de mercado. Entre esses dois limi­ tes extremos situam-se, certamente, as relações de poder, próprias do conflito político, nem sempre regulado, mas

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tampbuco tendente, necessariamente, à bipolaridade de tipo soma zero.

A guerra como situação limite Clausewitz, na sua afinada percepção, viu na guerra urna “sim­ ples continuação da política por outros meios" (Clausewitz, 1979). Por isso, ao teorizá-la, não apenas sistematizou conceitualmente urna situação específica de conflito aberto, mas forneceu elementos para pensar situações genéricas de luta entre forças dotadas de capacidade de iniciativa e resposta, organizadas em função da maximização da eficácia para lograr seu objetivo central: a im­ posição da própria vontade. Como Gluksmann bem o verifi­ cou, Clausewitz em sua obra nos desvela urna “guerra presente

em todas as guerras e mais verdadeira que cada uma delas. A possibilida­ de de elevar o conceito da guerra acima da multiplicidade caótica dasguerras observadas está dada pelo lugar decisivo que ocupa em todas as batalhas” (Gluksmann, 1970). Sua teoria generaliza urna forma extremada de relacio­ namento social: o duelo, que tem lugar em um espaço es­ pecífico — o campo de batalha —, em um tempo peculiar — o estratégico. Nesse espaço, os atores se inter-relacionam na perspectiva de urna grande e decisiva batalha final, onde a vontade de uns se imporá à dos outros, mediante seu desarmamento, através do uso da violência. Embutida nesse objetivo final, conflitivamente comum a todos, há uma tendência inevitável à bipolarização do confronto en­ tre dois atores organizados, com comandos centralizados e encarregados de planejar um conjunto heterogêneo de ações articuladas por um plano estratégico, que visa à má-

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xima acumulação de forças para o enfrentamento decisivo. Como este se dará segundo regras de “tudo ou nada”, am­ bos os lados são constrangidos, pelo contexto bélico, a um comportamento similar de adequação crescentemente ra­ cional de meios aos fins. Ambos vêem na imposição de sua vontade o conteúdo político da vitória final, obtida depois do desarmamento ou eliminação do adversário. A guerra, contudo, “não é nunca um ato isolado”, nem “consiste num só golpe sem duração”, implicando, pelo con­ trário, inumeráveis decisões e atividades não simultâneas. Apesar das incertezas reinantes, todos os partícipes têm o mesmo objetivo e expectativas convergentes, formulando, com base nelas e num fluxo contínuo de informações, os cálculos que orientam as decisões. Estas, apesar disso, obe­ decem, também, a um resíduo imprevisível de criatividade própria do “gênio militar”. Sob esse aspecto, quem tem a última palavra é a prova de força que, com vitórias e der­ rotas, sanciona as expectativas, cálculos e planos traçados pelos comandos unificados. A estes cabe definir “os cen­ tros de gravidade nevrálgica” do adversário, estabelecendo, a partir daí, um plano articulado de iniciativas visando à destruição do adversário. A duração do conflito, que se estende até o enfrentamento final, constitui o tempo estratégico, cujo desdobramento materializa, através de múltiplas ações e enfrentamentos parciais, sucessivos tempos táticos. A questão teórica central, para nossos objetivos, está posta, exatamente, pelo complexo inter-relacionamento existente entre esses distintos “tempos”, dado que não se trata de mero desdobramento cronológico. Sua riqueza, aliás, advém de sua natureza lógica passível de construção teórica.

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Segundo Clausewitz (1979, p. 75), “a guerra é um ato de violência e não há nenhum limite para a manifestação dessa vio­ lencia. Cada um dos adversários executa a lei do outro, donde resulta uma ação recíproca que, enquanto conceito, deve ir aos extremos. Tal é a primeira ação recíproca e o primeiro extre­ mo que se nos deparam”. Este é o teorema número um da teoria: a tendência necessária de “ascensão aos extremos” (Gluksmann, 1970, p. 38). Em síntese, qualquer hostilidade, mesmo embrionária e limitada no plano das intenções, gera uma dinâmica precautória que, movida pelas expectativas interagentes dos dois grupos, acaba conduzindo o conflito, por uma lógica de radicalização progressiva, a um duelo mortal. Há uma lei de ferro que move e explica todas as decisões — a certeza de um acerto final violento e definitivo. Nesta pers­ pectiva, todos os enfrentamentos táticos parciais se articula­ riam através de uma lógica irrefreável, numa cadeia de ocorrências que as conduz ao veredicto final, à hora da verdade estraté­ gica. A genialidade dos comandos pode ser medida pela sua ca­ pacidade de adequar esse tempo lógico ao tempo cronológico do espaço real. Tempo e espaço envolvidos de forma cada vez mais inclusiva na dinâmica da guerra total. Entretanto, como Clausewitz (1979, pp. 79-80) reconhece, “a guerra nem sempre deve ser considerada como um caso absoluto (...) e qualquer ato de guerra deixa assim de estar submetido às leis estritas que impelem as forças aos extremos (...) Desse modo, o objetivo político como móbil inicial da guerra fornece a dimensão do fim a atingir pela ação militar”. Retorna-se à dimensão política da guerra, impondo-lhe objetivos que limitam, dificultam ou pos­ tergam, muitas vezes, a reta final do duelo. Reaparece o seu caráter instrumental e a eficácia da lei da “ascensão aos extre-

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mos”, mantendo-se latente sua validez enquanto tendencia irreprimível. Redefine-se, assim, o papel do estrategista, que deve adequar seu tempo lógico ao “tempo político”. Na limitação da eficácia da lei tendencial de radicalização pesa, entretanto, além da decisão política, o efeito equilibrador do segundo teorema da teoria; o da “dissimetria das ações ofensivas e defensivas” (Gluksmann, 1970, p. 41): sendo o “ataque e a defesa

duas coisas de naturezas diferentes e deforças desiguais, a polaridade não se lhes aplica” (Clausewitz, 1979, p. 83). Na ofensiva jamais exis­

te equilibrio. Este só é viável quando um dos parceiros adota uma postura defensiva, capaz de anular, ñas expectativas do outro, a certeza sobre a eficácia de seu ataque. Tal empate, que sem dúvida resulta de uma opção política pela paz, é o único materialmente capaz de sustentar uma trégua prolongada. Não nos aprofundaremos nessa questão. N o entanto, há um ponto que nos parece importante; a partir dessa nova rea­ lidade não desaparece a eficácia da primeira lei. Ao contrário, esta fica apenas sustada, ativando um outro tipo de guerra de observação, muito próximo, em sua essência, de toda e qual­ quer ação política. Insere-se aqui a observação de Clausewitz: se se pensa que a guerra resulta de um desígnio político, é natural que este motivo inicial, de que ela é o resultado, continue a ser a consideração primeira e suprema que ditará sua condução. Todavia, nem por isso o objetivo político é um legislador despótico, terá de adaptar-se à natureza dos meios de que dispõe, o que leva, freqüentemente, à sua completa transformação, mas sem que deixe de permanecer na primeira linha das nossas considerações (Idem, p. 87). A guerra, quando protelada, politiza-se e, da mesma forma, a política, quando acirrada, beliciza-se. Pela eficácia do primei-

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ro teorema, os recursos materiais de força — os armamentos e outros — desenvolvem-se até o ponto em que a batalha fi­ nal acaba sendo, permanentemente, preterida pela ameaça da destruição total e conjunta. Com isso, a guerra transforma-se em um estado de laténcia constante, permeada pela política. Daqui nasce a idéia de que o tempo político seja, aparen­ temente — como muitos o véem — , a mera duração da espe­ ra ou protelação da batalha final. Suas distintas conjunturas sobrepor-se-iam, nesta perspectiva, aos momentos táticos, definindo-se sua natureza como progressiva preparação para o conflito definitivo. Acercamo-nos, por intermédio desse equívoco, do ponto essencial: a contribuição possível da teoria da guerra à clarificação do conceito de tempo político. Impõe-se aqui a especificação de algumas particularidades que fazem da guerra uma situação limite, impedindo aproximações e analogias ligeiras entre os seus tempos e os da luta política. N o fundamental, deve-se ter presente, como já vimos, que a despeño de qualquer protelação, a ascensão aos extremos, forma absoluta da guerra, constitui-se no ponto de referência, com relação ao qual se mede toda limi­ tação da guerra. De um só golpe se assegura a objetividade de um cálculo que se impõe bilateralmente; a racionalidade da polari­ zação determina a matéria do cálculo, idêntica para os dois ad­ versários (Gluksmann, 1970, p. 44). Neste sentido, definem-se os “momentos táticos” que recortam o tempo estratégico segundo verdadeiras “conjunturas belicosas”. E a análise conjuntural, nesta perspectiva, metamorfoseia-se em cálculo tático. Entretanto, esses momentos, apesar de articula-

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rem-se em tomo de enfrentamentos parciais, dependem, em seu recorte cronológico, das intenções e planos de comandos unifi­ cados. Até porque, como reconhece o próprio Clausewitz, "po­

dem produzir-se casos em que vários reencontrospossam ser considerados como um só", havendo aí uma complexa “transição gradual”. Apenas o

plano estratégico, propriedade sigilosa dos comandos, é capaz de estabelecer o espaço e o tempo de cada conjuntura tática. À dife­ rença da política, aqui, o tempo é construído, conscientemente, por somente dois comandos unificados pela racionalidade da polarização, que impõe uma matéria de cálculo idêntica aos dois adversários. No conteúdo objetivo e unificado deste cálculo co­ mum está o segredo que viabiliza a teoria da guerra. Uma teoria que trabalha, em primeiro lugar, sobre uma relação explícita de conflito aberto pelo poder, uma relação de força que, no limite, chega à soma zero mediante o uso da vio­ lência física. Em segundo lugar, uma teoria que supõe uma si­ tuação de bipolaridade em que os atores possuem objetivos comuns e excludentes. Em terceiro, uma teoria que trabalha com dois tempos que se articulam em função de uma meta e de um momento final estabelecido, arbitrariamente, por co­ mandos que planejam a ação coletiva. Tempos, cujo significa­ do último é dado por sua convergência na guerra e não em uma crise; no âmbito da destruição e não do reequilíbrio. Por isso, no contexto dessa teoria, as incertezas futuras são reduzidas a um mínimo, possibilitando a homogeneização e o cálculo das expectativas, unificadas pela espera-busca do enfrentamento final. As ações são rigorosamente “racionais com vistas a fins”, na linguagem weberiana. Quando, em função de uma situação de “equilíbrio catas­ trófico”, protela-se a batalha final, politizam-se, como vimos, os tempos intermediários, sem que desapareça, entretanto, a

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eficácia da lei da “ascensão aos extremos”. Prevalece ainda a “razão militar” — freqüentemente em choque com a “razão política” —, mantendo-se em mãos dos estrategos o poder da construção e delimitação dos tempos. Quando, entretanto, a batalha final é postergada indefinida­ mente dissolve-se a rigidez dos suportes da teoria, em virtude da intromissão de fatores “exógenos”, capazes de alterar politi­ camente objetivos, regras e os tempos, ao multiplicar o número dos adversários e das racionalidades em conflito. O tempo já não é mais passível de um comando arbitrário. Liberta-se ele do con­ trole racionalmente planificado dos estrategos. A guerra, que nascera enquanto prolongamento instrumental da política, reencontra-se com sua origem. A análise conjuntural, que na teoria da situação limite coincide com um cálculo tático bastante rigo­ roso, readquire, na ausência de um tempo comandado, a sua opacidade. E isto porque não apenas se multiplicam as racio­ nalidades em conflito, como igualmente reaparece no primeiro plano, comandando as ações coletivas, a “irracionalidade” própria das paixões e da fantasia.

0 mercado como tipo ideal ficticio Numerosas regularidades muito visíveis, no desenvolvimento da ação social, especialmente da ação econômica, não descansam em uma orientação dada por normas válidas, ou no costume, se­ não que apenas nisto: em que o modo de atuar dos partícipes corresponde em seu termo médio, por natureza e da melhor maneira possível, a seus interesses normais subjetivamente apre­ ciados, orientando-se sua ação precisamente por essa opinião e conhecimentos subjetivos; assim, por exemplo, com as regula-

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ridades na formação de preços no mercado. Os interesses no mer­ cado orientam sua ação—que é meio—por determinados interes­ ses econômicos próprios, típicos e subjetivos — que representam o fim — e por determinadas expectativas típicas, que a previsível conduta dos demais permite esperar — as quais aparecem como condições de realização do fim perseguido. Na medida em que procedem com maior rigor em sua atuação racional comvistas a fins, são mais análogas suas reações na situação dada; surgindo desta for­ ma homogeneidades, regularidades e continuidades na atitude e na ação, mais estáveis, muitas vezes, que as que se dão quando a condu­ ta está orientada por deveres e normas tidas de fato como obrigató­ rias num círculo de homens. Esse fenômeno: que uma orientação pela situação de interesses, tanto próprios como alheios, produza efeitos análogos aos que se pensa obter coativamente — muitas ve­ zes sem resultado — por uma ordenação normativa, atrai a atenção sobretudo no domínio da economia; e mais, foi precisamente uma das fontes do nascimento da ciência econômica. Entretanto, tem validez, de modo análogo, para todos os domínios da ação (...). Um elemento essencial da racionalização da conduta e a substituição da submissão íntima ao costume, feito carne, por dizê-lo assim, pela adaptação planejada a uma situação objetiva de interesses (Weber, 1977, p. 24). Se, por seu turno, a guerra define a situação limite de uma luta “violenta” e polarizada, onde as expectativas e ações se fazem cada vez mais racionais, com o objetivo da destruição do oponente, a economia de mercado constituir-se-ia no tipo ideal de uma luta “pacífica” onde a competição entre uma multiplicidade de atores ensejaria ações, cuja racionalidade conduziria ao equilíbrio, à eficácia e à felicidade coletiva. A existência de uma multiplicidade de atores, indivíduos e empresas em busca de um objetivo consensual — a valorização

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ou a masdmização do lucro, por meio da concorrência de preços, em mercado livre — daria lugar, sem dúvida, a um modelo de atividade humana racional, onde se veriam atenuadas as diversi­ dades, assincronias e “heterodoxias” da subjetividade individual, que tenderíam à homogeneidade devido a uma situação de inte­ resse comum. Isto se daria de modo similar à guerra, no âmbito da qual se reduziríam as incertezas, em decorrência de expectati­ vas convergentes, ainda que competitivas. E isto porque a concor­ rência no mercado, livre e perfeito, anularia o mundo das paixões, abrindo portas a comportamentos previsíveis, uma vez que racionais. A meta seria a maximização das vantagens individuais, mas estas estariam submetidas a um mecanismo regulador e equalizador, no qual o virtuosismo daria lugar à eficácia e toda ineficácia seria castigada na mesma moeda com que se premiariam os vencedores. Mecanismo de auto-regulação sistêmica, encar­ regado de definir os preços, feliz ponto de convergência e interação das múltiplas forças em concorrência, fiel indicador das transa­ ções ocorridas: este o livre mercado de bens e serviços. Com base em seus elementos, indivíduos e empresas estabeleceríam suas projeções, reajustando permanentemente suas ações. Com base neles, homogeneizar-se-iam as infinitas expectativas individuais. Por fim, segundo essa concepção, o sistema econômico reproduzir-se-ia segundo um movimento pendular, retornando sempre a um ponto ótimo, de equilíbrio, demarcando o início e o fim de uma duração reversível, perfeitamente reprodutível, por uma modelística extremamente formalizada. No limite, esta representação do mundo econômico eliminaria a subjetividade e a historicidade, dissolvendo o problema do tempo, reduzin­ do-o à duração existente entre dois pontos de equilíbrio. Nesta perspectiva, o tempo conjuntural seria qualquer período cronológico em que os preços e todos os seus valo-

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res derivados pudessem nos fornecer um retrato do “estado dos negocios”, estado esse mais ou menos próximo da dese­ jada situação de equilibrio. N o movimento dos preços estaria a chave do diagnóstico da atividade econômica em seu conjunto: produção, intercâm­ bio, emprego, rendimentos etc. Através deles, proceder-seia a uma leitura “sintomal” da conjuntura, deduzindo-se a partir da suposta tendência ao equilíbrio o sentido do movi­ mento estrutural do sistema. A realidade econômica, entretanto, não se mostra tão sim­ ples como surge implícita na visão weberiana. A própria teoria não é consensual com relação a esses aspectos de seu objeto. Antes mesmo que a crítica teórica destruísse a simplicidade edênica do sonho walrasiano, a história real da economia capitalista encarre­ gou-se de demonstrar o caráter fictício daquele tipo ideal, onde uma situação de interesses comuns, ainda que competitivos, lo­ gra uniformizar uma infinidade de comportamentos individuais, numa temporalidade que, por sua recorrência, se faz logicamente reversível, reduzindo a um mínimo residual o problema das expectativas diante da incerteza futura. Não cabe aqui revisar a história dos fatos e das teorias eco­ nômicas. Basta que tenhamos presente o inquestionável mo­ vimento real do capital que, concentrando-se e centralizando as decisões através de movimentos cíclicos periódicos, oligopoliza a estrutura produtiva de forma crescente, altera as re­ gras da competição e amplia a intervenção estatal na economia, ao fazer dos preços um valor administrado e, finalmente, des­ faz a ficção de um mercado auto-regulado. Essa nova realidade, com suas crises e guerras, refez no pensamento econômico a imagem do capitalismo. Nesse novo mundo — agora de forma visível — os agentes econômicos já

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não são equiparáveis. Pelo contrário, têm peso e força distin­ tos, sendo capazes, alguns, de determinar arbitrariamente o movimento dos preços, condicionando os demais fluxos da atividade econômica. E isto pode ser feito através de sua ação direta ou através da intervenção do Estado. A economia, separada do Estado por uma história real reple­ ta de matizes obscurecidos pela cirurgia teórico-doutrinária exe­ cutada pelo pensamento liberal, reencontra no mundo concreto sua dimensão eminentemente política. As relações econômicas deixam transparecer, agora de forma mais nítida, o fato de se­ rem também correlações de força. Os preços já não resultam do jogo de cabra-cega entre a oferta e a procura e, por isso, não podem mais retratar de forma fiel e autônoma a atividade eco­ nômica como um todo. Caem os pressupostos básicos do mo­ delo que inspira a reflexão weberiana. Tempo e poder reaparecem como dimensões fundamentais da atividade econômica. A dura­ ção econômica, por conseguinte, já não está inserida numa temporalidade pendular, fechada e recorrente, que se move entre dois pontos de equilíbrio quaisquer. Assume o seu lugar — em im­ portância — o problema das crises e do movimento expansivo do capital. Repõe-se, de forma absolutamente distinta, a ques­ tão do tempo conjuntural e da racionalidade das expectativas e ações dos agentes econômicos. N a verdade, a preocupação com a conjuntura econômica é filha direta dessa nova feição que o capitalismo assume a partir da segunda metade do século passado. Mobilizado pela reitera­ ção periódica das crises, que se sucediam de maneira visivelmen­ te regular no capitalismo industrial, o pensamento econômico formula sua teoria dos ciclos, com o objetivo de prever o aparecimento das crises e, se possível, controlá-las. Na esteira desse esforço, aparecem, já no século XX, os primeiros cen­ tros especializados no estudo da conjuntura econômica.

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Nasce urna nova imagem do tempo económico, pautado por ciclos que, sendo recorrentes em sua forma, não são re­ versíveis, constituindo etapas de um movimento cuja tendência não é o equilibrio. Tempo descontinuo de atores desiguais, com incertezas e expectativas nem sempre racionais. Agora, as conjunturas já não são qualquer momento cro­ nológico, arbitrariamente definido. São momentos de um movimento maior: o dos ciclos. Cada um contém, simulta­ neamente, múltiplos tempos, dependendo de sua localização em etapas diversas do desdobramento de diferentes ciclos. Não é possível delimitá-los sem uma adequada construção teórica sobre os ciclos e sem um profundo conhecimento dos processos estruturais historicamente localizados e datados. O analista move-se, agora, perante um movimento repro­ dutivo em expansão, numa progressão de ciclos e crises tendenciais. As conjunturas são movimentos, transformações e iniciativas que ocorrem numa forma em que expansão e crise se sucedem necessariamente. A análise conjuntural implica, nesta perspectiva, uma correta identificação estrutural da for­ ça relativa dos distintos atores — aí incluído o Estado — sem o que os preços e todos os seus valores agregados perdem transparência. Mais do que isso, envolve-se com o problema da historicidade futura na construção das expectativas e na ação — nem sempre racional — dos agentes econômicos. Nessa linha, Keynes, com suas idéias sobre a incerteza, as convenções e as expectativas, redirecionou o foco das preo­ cupações econômicas, trazendo para o primeiro plano o pro­ blema das decisões. Segundo ele, qualquer momento de um processo econô­ mico, aberto e desequilibrado, pode testemunhar inflexões que conduzam a crises e rupturas, na medida em que no âm-

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bito desse processo tem lugar um número infinito de deci­ sões de investimento tomadas pela comunidade de negocios. Decisões estas tomadas à luz de urna norma permanentemente mutável, constituída pela tensão entre a análise retrospectiva e a avaliação prospectiva — ambas levadas a cabo pelos atoresinvestidores. Se os negocios vão bem e as perspectivas futuras são boas, a opção é pelo crescimento e pelo investimento — opção sacramentada pela comunidade financeira. Se os negocios vão bem, mas as perspectivas são más, a comunidade de negocios opta por sustar seus investimentos, determinando com isso uma série de conseqüências inevitáveis, a começar pela mu­ dança de direção do sistema financeiro, que consagra de ime­ diato a decisão de não investir, comunicando-a à totalidade do sistema econômico, via valorização dos ativos produtivos. Daí a corrida à liquidez, com o abandono, quebra e sucateamento de parte da base produtiva, processo que, ao levar a economia ao fundo do poço, acaba implicando a revalorização do investi­ mento produtivo e a retomada da produção e do crescimento. Não há, em Keynes, uma concepção propriamente cíclica, a menos que se tome por ciclo a recorrência das crises. Nele — para nosso objetivo —, o fundamental é a idéia de uma incerteza permanente, causa de expectativas múltiplas e in­ constantes, minimizadas, embora não eliminadas, pelas con­ venções e acordos. Expectativas dotadas de uma enorme capacidade de materialização acelerada, gerando-se a partir daí efeitos, numa cadeia de ações e reações incontroláveis. Uma análise conjuntural, sob a ótica keynesiana, deve centrar sua atenção nessas expectativas, buscando administrálas de forma a impedir ou postergar as crises. Trata-se de reu­ nir, sempre que necessário e de forma deliberada, informações

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que reduzam o grau de incerteza, orientando a ação do Esta­ do, único agente capaz de, em substituição aos inoperantes mecanismos de mercado, administrar sabiamente o movimen­ to expansivo da economia capitalista. E é à sombra desta intervenção estatal que a ciência eco­ nômica desenvolverá, a partir dos anos 30, de forma cada vez mais sistemática, seu método de análise conjuntural, aperfei­ çoando, cada vez mais, seus indicadores, medidas e dados, quantificados de forma permanente e confiável. Mesmo assim, em face do conceito de tempo conjuntural, o pensamento econômico permanece dividido. A única certeza é que, urna vez separado do movimento sazonal da produção agrícola, o conceito permanecerá indeterminado enquanto não estiver referido ou a um par sucessivo de pontos de equilibrio, ou ao movimento expansivo dos ciclos e das crises. Apenas a partir daí é possível esclarecer as demais dimensões do concei­ to: a questão dos atores e da racionalidade de suas ações, a ques­ tão da interseção lógica com o tempo estrutural, a questão das incertezas futuras etc. E completamente distinto, entretanto, o conceito de con­ juntura construido a partir de uma visão da economia, como equilibrio auto-reproduzido pelos mecanismos de um mer­ cado perfeitamente competitivo e que nasce de uma concep­ ção da atividade econômica enquanto movimento expansivo, concentrador e cíclico. Neste caso, trabalha-se com um conflito regulado entre múltiplos atores, em igualdade de condições e com objetivos comuns, ainda que competitivos. Atores que orientariam ra­ cionalmente sua ação, no mercado, com base em sua situação de interesses, com vistas àqueles objetivos comuns, visando expectativas típicas e previsíveis. Surgiríam, a partir daí, re-

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gularidades e constancias na ação coletiva, dissolvendo-se o problema posto pela multiplicidade dos atores. Em decorrên­ cia, teríamos uma temporalidade recorrente e “reservista”, ainda que não planejada. Temporalidade pautada por sucessi­ vos pontos de equilíbrio e em cujo âmbito qualquer recorte cronológico que disponha de dados significativos sobre o movimento dos preços define-se enquanto conjuntura. Na outra visão, menos fictícia porque mais próxima do mun­ do real da economia capitalista, explicita-se de maneira mais ní­ tida a força diferencial dos atores nas relações econômicas. Seus objetivos podem ser aproximadamente comuns, mas não exis­ te igualdade de condições, nem, tampouco, competição perfei­ ta. A intervenção do Estado cumpre papel fundamental na reprodução do sistema econômico, desacreditando-se o mer­ cado enquanto mecanismo auto-regulador. Os atores são múl­ tiplos, como múltiplas são suas expectativas que, não sendo típicas e nem sempre previsíveis, passam a cumprir papel funda­ mental no desdobramento da conjuntura. Conseqüentemente, temos uma temporalidade “aberta”, materializada na dinâmica expansiva do capital, marcada por conjunturas de crescimento ou recessão que, passando pelas crises, repõem periodicamen­ te o sentido tendencial do sistema. Nesse contexto, dilata-se a importância das “incertezas futuras” que, teoricamente, só po­ dem ser reduzidas a partir da teoria dos ciclos. O conceito de conjuntura adquire, aqui, uma consistência lógica e teórica que não possui na outra visão. Sua delimitação e a natureza de sua dinâmica endógena são compreensíveis tão-somente a partir da sua inserção no percurso dos ciclos. Nesta última visão, o tempo conjuntural não é um tempo planejado nem, tampouco, obedece a leis mecânicas: é um tempo construído — nele está reservado um papel central aos projetos e expectativas humanas.

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O pensamento econômico abdica, assim, do plácido oti­ mismo da burguesia vitoriosa do século passado, implícito na visão de um mercado auto-regulado, e recoloca o papel do poder e da política nas relações econômicas. A presença das grandes corporações e do Estado, tanto quanto o decisivo papel cumprido pela incerteza na ação de todos os agentes econômicos, dissolve a ilusão de uma racionalidade puramente económica. Reaparece, no primeiro plano, com fundamental importancia no desdobramento do tempo conjuntural, a ra­ zão política. O conceito e a análise da conjuntura ganham em vivacidade o que perdem em transparencia. Sua compreensão envolve, agora, necessariamente, ademais do equacionamento da razão política; a incorporação do tempo estrutural.

A história como simultaneidade de “tempos" Coube à História o esforço recente mais interessante de discus­ são conceituai do problema dos “tempos”, tal como aparece na teoria econômica. Tentando pensar a teoria da história à luz dos avanços logrados pela ciência econômica, F. Braudel propõe a substituição da historiografia episódica por uma nova linha de pesquisa que considere, na reconstrução do material histórico, a sua dupla temporalidade, a um só tempo estrutural e conjuntural. Objetiva, com isso, absorver os avanços conseguidos pela teoria econômica no seu bem-sucedido esforço de domesticação do tempo, através da incorporação dos conceitos de estrutura, ciclo e tendência, a partir dos quais é possível escindir o tempo histó­ rico em tempos de “longa” e “curta” duração. A estrutura coman­ daria o ritmo da longa duração enquanto o tempo curto coincidiría com as oscilações cíclicas, através das quais se realizariam, de

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forma lenta e entrecortada, as grandes e seculares (quando não milenares) tendências da história. Incorpora, assim, Braudel o esquema e a conceituação econômica, sugerindo às demais ciên­ cias sociais que revejam seus métodos, adequando o seu passo à marcha da mais avançada dentre todas, a economia. Para Braudel, o historiador dispõe hoje “com toda certeza de

um tempo, novo (conjuntural, dos ciclos), elevado à altura de uma ex­ plicação, em que a história se pode inscrever, recortando-se segundo pontos de referência inéditos” (1972, p. 18), podendo romper com o tem­ po “événementiel”, a “mais caprichosa e enganadora das durações”. E isto porque “o inquiridor do tempo presente só alcança asfinas tramas das estruturas sob a condição de reconstruí-lo, de antecipar hipóteses e explicações, de rejeitar o real tal como é percebido, de truncá-lo, de superá-lo; operações que permitem, todas elas, escapar aos dados para dominá-los melhor” (Idem, p. 34). Parte-se do acontecimento episódico para se chegar às ca­ madas lentas da história, onde “todos os níveis, todos os milhares

de níveis, todos os milhares de fragmentações do tempo histórico ficam compreensíveis” (Idem, p. 27). Essa obscuridade inconsciente das estruturas, entretanto, só se desvela na “sua brusca ou lenta de­ terioração, sob o efeito de pressões contraditórias”, através de seus “pontos de ruptura” e seus momentos de ultrapassagem.

O perigo está em que não logremos escapar a uma trai­ çoeira circularidade, pois, como bem reconhece o próprio Braudel, “todos nós vivemos sempre e simultaneamente ambas as di­ mensões e ambos os tempos” (Idem, 1979, p. 68). Separá-los ana­ líticamente, sem incorrer numa remissão mútua e circular, parece ser o único caminho através do qual podemos esca­ par a um mundo estritamente episódico sem cair num ou­ tro, difusamente estrutural, e lograr articulá-los de forma contínua e dinâmica.

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O tempo conjuntural, entretanto, na linha dessa proposta, não coincide com nenhuma das dimensões mencionadas. An­ tes, aproxima-se da duração dos ciclos, apesar de que, neste sentido, o conceito perca algo de sua especificidade, devido à multiplicidade de ciclos possíveis. Mas, do ponto de vista metodológico, vale para a análise conjuntural a proposta de que o observador deve ir além daquilo “que se move rapidamente, que

sobressai com ou sem razão: (...) o tempo pobre, a medida dos indivídu­ os, da vida quotidiana, das nossas ilusões, das nossas rápidas tomadas de consciência; o tempo por excelência do cronista e dojornalista” (Idem, 1972, p. 14). Para conhecer a conjuntura, há que construí-la; há que rejeitar e superar o real; há que antecipar hipóteses que passam pelo conhecimento das várias dimensões e tempos confluen­ tes em cada momento. Há que conhecer o passado e avançar hipóteses adequadas sobre o silencioso mundo das estruturas. Aqui, entretanto, situam-se as principais dificuldades, de alguma maneira sintetizadas na definição de R Vilar do con­ ceito de conjuntura: “conjunto das condições articuladas entre si que

caracterizam um momento no movimento global da matéria histórica” (Vilar, 1980, p. 81). Este autor dá um passo à frente, ganhando em generalidade o que perde em rigor. A idéia central é que no âmbito estrutural da sociedade, “cujas relaçõesfundamentais e

cujo princípio de funcionamento são relativamente estáveis, se dão mo­ vimentos incessantes que são resultado desse mesmofuncionamento e que modificam, a todo momento, o caráter dessas relações, a intensidade dos conflitos, as relações deforça” (Idem, p. 81). Tais movimentos con­ jugam várias dimensões e regularidades, “psicológicas, políticas e sociais, assim como econômicas e meteorológicas”. Até hoje, entretanto, como já vimos, apenas as regularidades econômicas foram estudadas de forma algo mais detalhada, ser­ vindo de inspiração às demais ciências. Permanece, contudo, o

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/ problema posto pelas outras dimensões, cujas regularidades são escassamente conhecidas. Em função disso, revela-se extrema­ mente difícil operacionalizar analíticamente um conceito que defina a conjuntura como confluência de tantas dimensões des­ conhecidas. Daí decorrería, aliás, a opacidade das relações entre conjuntura e estrutura, embora, como bem o diz Vilar, não as devamos considerar como “noções estranhas entre si, senão que como dois aspectos defenômenos comuns”. Sim, porquanto só a partir dessa profundidade semi-imóvel da estrutura é que se nos mostra possível compreender todos os demais fragmentos da história e, portanto, o tempo conjuntural. E isto porque “os ciclos, interciclos

e crises estruturais encobrem aqui as regularidades e as permanências de sis­ temas ou, como tambémfoi dito, de civilizações econômicas, isto é, de velhos hábitos de pensar ou agir, de marcas resistentes e tenazes, por vezes contra toda lógica” (Braudel, 1972, p. 24).

Nem Braudel nem Vilar avançam elementos para pensar conceitualmente o papel dos atores e suas incertezas, das ações e suas regularidades, das expectativas e sua previsibilidade, no desdobramento do tempo histórico “presente”, contemporâ­ neo ao observador. A contribuição de ambos situa-se num plano mais amplo, epistemológico, referido a todos os recor­ tes teoricamente possíveis do tempo vivido. Antes de mais nada, a proposta metodológica desses autores é reintroduzir a duração histórica enquanto dimensão funda­ mental de todos os fenômenos sociais; romper com o tempo breve, factual, introduzindo como novidade, a partir da teoria econômica, “uma nova espécie de narração histórica — pode dizer-se o ‘recitativo’ da conjuntura, do ciclo e até do interciclo” (Idem, p. 17). Para além do factual e do conjuntural, localizam-se as duas outras contribuições da Economia: a idéia de uma tendência secular que analisa o movimento das relações duradouras,

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quase fixas, entre as massas sociais — as estruturas. A grande incógnita está aí, porquanto o tempo dessas estruturas, a lon­ ga duração, é ainda, para todas as ciências, sociais, aí incluída a Economia, um “personagem embaraçoso, complexo, frequentemente inédito” (Idem, p. 26). Para passar dessa duração maior para o movimento cíclico das conjunturas, há que organizar dimensões, forças e movimentos particulares. Só assim é possível reconstruir um momento em que o conjunto aparece como totalidade hierarquizada. N o âmbito desta proposta, o conceito de conjuntura in­ corpora uma visão puramente econômica, sem nela se dis­ solver. Mas, no presente momento, quando há um declarado desconhecimento das demais dimensões convergentes em um tempo conjuntural comum, como será possível definir os limites precisos do espaço-tempo da conjuntura sem que se submetam todas as demais histórias à história econômi­ ca? Se para a história econômica este é um passo que se afigu­ ra complexo, como essas dificuldades estarão reapresentadas no âmbito da história totalizante, ao se proceder à passagem das estruturas para a transparência episódica dos fatos que materializam um tempo conjuntural — confluência de múl­ tiplas e variadas dimensões e ritmos? Nesse sentido, o que representariam as crises em face dos distintos ciclos das vá­ rias dimensões da história? Se os inumeráveis “rios do tem­ po” correm de forma integrada, conquanto estabeleçam curvas e confluências não coincidentes, será possível a cada navegante descobrir a lógica de sua vertente sem que conheça a dos demais? Sem resolver nem dissolver o problema da temporalidade propriamente política, o ponto essencial da formulação de Braudel está na idéia de que “cada atualidade reúne momentos de

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¿rigem e de ritmo diferentes: o tempo de hoje data simultaneamente de ontem, de anteontem, de antanho”. E, nesse sentido, uas durações que distinguimos são solidarias umas com as outras: não é apenas a duração que é criação de nosso espirito, mas osfragmentos desta duração também o são” (Idem, p. 59). Os tempos, enquanto criação do espírito, sobrepõem-se, e o recorte conjuntural só adquire sentido quando teoricamen­ te articulado, por intermedio das hipóteses e explicações an­ tecipadas, às finas tramas da duração estrutural. Hipótese e explicações que, solidamente articuladas, constroem módulos que seriam capazes de distender-se, visando acompanhar a duração variável da realidade que registram. Só através des­ ses modelos, permanentemente reajustados, é possível apro­ ximar o conhecimento da dinâmica real da interseção entre os múltiplos tempos da massa histórica. Segundo Braudel, a investigação deve fazer-se, indo continuamente da realidade so­ cial aos modelos, e destes, àquela; e este contínuo “vaivém” nun­ ca deve ser interrompido, realizando-se por uma espécie de pequenos retoques, de viagens pacientemente reempreendidas. Deste modo, o modelo é sucessivamente ensaio de explicação da estrutura, instrumento de controle, de comparação, verificação da solidez e da própria vida de uma estrutura dada (Idem, p. 53).

A política como interesse e vontade de classe O gênio de Marx, o segredo de seu prolongado poder, provém do fato de ter sido ele o primeiro a fabricar verdadeiros modelos sociais, a partir da longa duração histórica. Mas estes modelos foram imobilizados em sua singeleza, concedendo-lhes um va-

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lor de lei, de explicação previa, automática, aplicável a todos os lugares, a todas as sociedades; enquanto, se fossem devolvidos às águas mutáveis do tempo, o seu sustentáculo manifestar-se-ia, porque é sólido e está bem tecido (Braudel, 1972, p. 66). Nada repõe de forma mais móvel as águas do tempo subjacentes ao modelo, que aparece muitas vezes petrificado, do que os tex­ tos histórico-políticos de Marx e Engels — As Lutas de Classes na França, O 18 Brumário e Revolução e Contra-Revolução na Alemanha. Seus trabalhos históricos mais significativos definem uma rup­ tura revolucionária no estudo da política, consagrando um novo objeto do conhecimento e com ele uma nova duração histórica. Ambos propõem, em seus textos, a necessidade de uma leitura estrutural do tempo contemporâneo ao observador; a substitui­ ção de uma leitura meramente factual e jornalística por uma aná­ lise política, histórico-estrutural do tempo conjuntural. Como Engels diria em seu polêmico texto metodológico que reintroduz, em 1895, o texto homônimo escrito com Marx sobre As Lutas de Classes na França, “o trabalho que aqui reeditamos

foi o primeiro ensaio de Marx para explicar um fragmento de história contemporânea mediante sua concepção materialista, partindo da situa­ ção econômica existente. No Manifesto Comunista havia sido aplicado para fazer um amplo esquema de toda a história moderna (...) tratavase aqui, pelo contrário, de demonstrar a conexão causai interna ao longo de um desenvolvimento de vários anos”, reduzindo “os acontecimen­ tos políticos e efeitos de causas que, em última instância, eram econômi­ cas” (Engels & Marx, s/d, vol. 1, p. 93). Sabidamente, foi a partir da Ideologia Alemã e da Miséria da Filosofia, que Marx e Engels formularam, no Manifesto de 1848, o esquema de interpretação da história moderna, cuja ossatura ficou exposta, de maneira por demais sucinta, no esfingético

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Prefácio de 1858. O “tempo longo” de Braudel aparece ali como a “base real”, cuja anatomia nos conduz às relações de produ­ ção, à base material econômica da sociedade. O “tempo curto”, por sua vez, é aquele em que as trepidações superestruturais, jurídicas e políticas aparecem comandadas por uma consciência social parcialmente falseada. Estes tempos se entrelaçam me­ diados por lutas políticas, cuja dinâmica se explica predominan­ temente pela situação de classe. Os interesses das classes fundamentais estabelecem a ponte real e teórica entre dimensões que se constroem e reconstroem, segundo três conhecidas leis básicas: a da coincidência-incompatibilidade entre a evolução das forças produtivas e a organização das relações de propriedade; a do amadurecimento necessário das potencialidades materiais de uma formação social, de modo que possa surgir uma nova sociedade; e a de que a humanidade, realisticamente, só se propõe objetivos cujas condições materiais de realização já estão dadas. Nos pontos de saturação, desenhados pelo encontro eficaz das três leis, nascem as revoluções sociais. São essas as hipóteses que conformam o esqueleto básico do modelo social construído por Marx e Engels sobre o tempo longo ou a longa duração. Sua vitalidade decorre de seu grau de determinação, amarrado por um conceito central: o do “inte­ resse de classe”. É ele que, impondo-se no longo prazo, cons­ trói uma história em que coincidem as tendências estruturais com os projetos conscientes dos grupos sociais e políticos. Seu tempo lógico é o tempo da luta de classe, que traduz o “mo­ vimento econômico”, permitindo que os interesses objetivos, materiais, determinem em última instância as “formas” da luta política, uma vez que se suponha uma adequada “correspon­ dência” entre a consciência social e a base real da sociedade.

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No 18 Brumário e na Revolução e Contra-Revolução na Alema­ Marx e Engels examinam, à luz dessas hipóteses, os enfrentamentos políticos, quase sempre violentos, que sacu­ diram a Europa, entre 1848 e 1850, que estão na origem das chamadas “revoluções democráticas”. Ocorridas em inúme­ ros países, duas, dentre elas, destacaram-se por seu caráter paradigmático, tendo seus epicentros em Paris e Frankfurt. Marx escreve, logo após o golpe de Luís Napoleão, em de­ zembro de 1851, e trabalha analíticamente os três anos que ante­ cederam o desfecho da Revolução de Fevereiro de 1848. Acompanha a cronologia factual, construindo uma temporalidade distinta, definida pela lógica dos vários enfrentamentos parciais — ocorridos no Parlamento ou entre este e o Executivo —, cuja articulação interna desvela e explica o golpe final. Relê os avatares da luta política imediata, a partir dos interesses fundamentais, implícitos nos objetivos dos diferentes grupos que fragmentam a cena política, impulsionando um movimento de democratiza­ ção profundamente contraditório. Explicitando os interesses de classe, ocultos em todos os enfrentamentos e ideologias, mas respeitando os níveis diferen­ ciados em que atuam as organizações políticas e parlamentares — fragmentos e interstícios dos “interesses últimos” —, Marx consegue clarificar a ambigüidade própria à burguesia francesa. Prensada entre seus interesses materiais e dificuldades políticas, fazia com uma mão o que desfazia com a outra, lutando pelo fortalecimento do Partido da Ordem no Parlamento, ao mesmo tempo em que apoiava um Executivo cada vez mais forte, até o limite do fechamento do Legislativo e a instauração do II Impé­ rio. Ao fim dessa trajetória, a “massa extraparlamentar” da bur­ guesia, ao questionar a representatividade de sua liderança política, transforma uma figura ridícula — O Bonaparte — e seus votos,

nha,

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/ dados pelos camponeses conservadores, em seu legítimo repre­ sentante e aliado. Dando continuidade, com isso, à trajetória de um “poder Executivo (...) que com seu tremendo corpo de parasitas, que

envolvem como uma teia o corpo da sociedadefrancesa e sufoca todos os seus poros (...)” (Marx & Engels, s/d, v. 1, p. 275). Poder surgido com a monarquia absoluta e “reforçado por todas as revoluções, fazendo com que todo interesse comumfosse mediatamente cortado da sociedade, contra­ posto a ela como um interesse superior, geral, retirado da atividade dos pró­ prios membros da sociedade e transformado em objeto da atividade do governo” (Idem, p. 276). Engels, em Revolução e Contra-Revolução na Alemanha, reúne diversos artigos onde analisa, a partir da Assembléia Nacional de Frankfurt, a série de insurreições ocorridas nos distintos estados alemães entre março de 1848 e junho de 1849. Para ele, as reuniões na igreja de Saint-Paul constituíam apenas o cenário onde se desvelavam, concentradamente, todas as impotências do liberalismo burguês alemão; finalmente subme­ tido ao reacionário autoritarismo prussiano. Também aqui, o problema analítico consiste em decifrar a trama fundamental que articula a luta entre os fragmentados interesses de classe, suas representações políticas e suas racionalizações ideológi­ cas. Apesar de análogo, o movimento alemão desenvolve-se de forma distinta, na medida em que envolve grupos, inte­ resses e circunstâncias diferentes daqueles encontrados na insurreição de Paris. Levando em conta o atraso alemão diante do desenvolvi­ mento econômico inglês e do desenvolvimento social francês, Engels reavalia a importância da nobreza feudal na constitui­ ção da burguesia e das demais classes que compunham a socie­ dade alemã, concluindo que “a composição das diferentes classes do

povo queformam a base de todo o organismo político era mais compli-

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cada na Alemanha que em qualquer outro país” (Engels, 1951, p. 205). O atraso, a resistente nobreza feudal, a situação geográfica desfavorável e as guerras continuadas explicariam por que “o

liberalismo político, o regime de burguesia, seja sob aforma de governo monárquico ou republicano, é impossível na Alemanha” (Idem, p. 300).

Estando, portanto, a burguesia impedida de alcançar a mesma supremacia política lograda na Inglaterra e França, condenan­ do a Alemanha a uma “revolução de cima para baixo”. Marx e Engels estudam um período de tempo delimitado por acontecimentos de notoria visibilidade, objetivamente revolucionarios. Mas não decorre daí uma submissão de seu instrumento analítico à aparente obviedade factual. Muito ao contrário; e isto transparece no próprio recorte do objeto de suas análises e previsões. Ambos querem decifrar as razões do que consideram um fracasso; o insucesso das burguesias francesa e alemã na imposição de sua supremacia, mediante a imposição de um regime político — liberal e parlamentar — afinado com seus interesses. E tanto Marx como Engels prevéem, equivocadamente, que esses fracassos determinarão um período econômica e socialmente regressivo. Ambas as previsões transparecem de forma muito nítida no conceito de “bonapartismo” extraído daquela conjuntura. Se­ gundo Engels, um fenómeno político resultante de uma situa­ ção de empate entre forças da burguesia e do proletariado. Não foi isso o que Marx viu, nem parece ter sido o que realmente ocorreu na França de 1851. A hipótese de equilibrio ou empate pressupõe uma “progressão ofensiva”, em linguagem militar — algo historicamente impensável naquele momento. O equilí­ brio, se existiu, deu-se tão-somente num primeiro momento. Depois das “jornadas de junho” este equilíbrio se desfaz, na medida em que o setor popular é derrotado e deslancha uma

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outra dinâmica, intraburguesa. É esta última que Marx analisa brilhantemente, mostrando as razões, seus porquês e cornos, que fazem com que tanto a tragédia quanto a farsa possam servir aos interesses materiais e políticos da burguesia. Não houve o equilíbrio apregoado por Engels, como tam­ pouco aconteceram regressões econômicas e sociais na Fran­ ça e Alemanha após a derrota das insurreições de 1848. Na raiz desses equívocos, encontram-se, entretanto, algumas dimen­ sões fundamentais do “modelo social de longa duração” ela­ borado por Marx. Se nos apoiássemos apenas nos lineamentos mais gerais con­ tidos no Prefácio de 1858, não nos seriam ininteligíveis as análises históricas dos episódios de Paris e Frankfurt. Perpassa sua inter­ pretação uma hipótese muito precisa sobre o sentido que orien­ ta a história em sua longa duração. Partindo da idéia de que “podemos

designar como outras tantas épocas de progresso, naformação econômica da sociedade, o modo de produção asiático, o antigo, ofeudal e o moderno bur­ guês”, Marx e Engels desenvolvem — sem jamais sistematizar —

um conjunto de hipóteses acerca da transição econômica, mas sobretudo política, ocorrida entre o mundo feudal e a sociedade burguesa. Tomando como paradigmas as histórias inglesa e fran­ cesa e como contraponto essencial a história alemã, formulam um modelo de transição ao capitalismo industrial. Transição si­ multânea, ou sobreposta, ao longo processo de transformações políticas que, sancionando juridicamente as mudanças econômi­ cas, levou as burguesias ao controle de Estados por elas liberali­ zados através da revolução democrático-burguesa. A partir daí elaborou-se, depois de Marx, um modelo de transição que vê na burguesia a força motriz que, vencendo a nobreza e destruindo o sistema feudal, acaba com o campesinato, mercantiliza a agricultura, industrializa a produção, destrói o

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Estado absolutista e consolida repúblicas liberais e parlamenta­ res sob cuja égide enfrenta-se com o proletariado — classe destinada a, por seu turno, destruí-la num confronto por eta­ pas, tendente à polarização e a um embate revolucionário final. Marx jamais formulou esse modelo nestes termos — con­ gelado, imóvel e “aplicável em todo lugar” —, tal como o denuncia Braudel. Mas é indiscutível a presença, muitas vezes implícita, dessas hipóteses nas análises históricas feitas por ele e Engels. Graças a isso, talvez, não tenham sido assimiladas às suas própri­ as conclusões as acuradas observações que fizeram sobre as especificidades francesa e alemã. Seja na França, por intermédio do apoio, por parte do campesinato conservador, a um Bonaparte que foi legitimado pela burguesia industrial e financeira, ins­ trumentalizando o uso centralizado de um poder Executivo que prolongava uma longa tradição da história política francesa. Como na Alemanha, com a relevância do “atraso” no âmbito do contex­ to internacional, da aliança feita pela burguesia com a nobreza agrária, no sentido de efetivar uma revolução “progressiva” das relações de produção realizada desde cima. Observações que, devidamente absorvidas e analisadas, deveríam possibilitar uma melhor previsão acerca da natureza dos regimes instalados no pro­ longamento das insurreições de 1848. Dever-se-ia a isso, além das questões já mencionadas, a enorme dificuldade encontrada por Engels em seu esforço de sistematização do método de aplicação das diretrizes do Pre­ fácio, em seus trabalhos histórico-políticos. E possível encon­ trar em seu Prefácio já. citado, escrito em 1895, uma síntese incompleta sobre o assunto, quando nos diz que: (...) na apreciação de acontecimentos e das séries de acontecimen­ tos da história diária, jamais podemos remontar às últimas causas

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econômicas. Nem sequer hoje, quando a imprensa especializada subministra materiais tão abundantes, seria possível, mesmo na Inglaterra, acompanhar dia a dia a marcha da indústria e do comér­ cio no mercado mundial e as mudanças operadas nos métodos de produção, a ponto de poder, a qualquer momento, fazer o balanço geral destes fatores infinitamente complexos e constantemente em transformação; fatores dos quais os mais importantes agem quase sempre, além disso, de maneira encoberta, antes de se manifesta­ rem de súbito e com violência na superfície. Uma clara visão eco­ nômica de conjunto de um dado período não pode nunca ser obtida no próprio momento, mas só posteriormente, depois de se haver reunido e selecionado o material. É necessário para isso recorrer à estatística e essa sempre se atrasa. Para a história contemporânea é necessário, pois, com grande freqüência, considerar esse fator, o mais decisivo, como constante, tratar a situação econômica exis­ tente no começo do período estudado como dada e invariável para todo o período, ou só levar em conta as modificações desta situa­ ção quando, por resultarem de acontecimentos evidentes por si mesmos, sejam também claras. Em consequência, o método ma­ terialista terá de se limitar, freqüentemente, a reduzir os conflitos políticos à luz de interesses entre as classes sociais e as frações de classes existentes, determinados pelo desenvolvimento econômi­ co, e a demonstrar que os diversos partidos políticos são a expres­ são política mais ou menos adequada das referidas classes e frações de classe. É de todo evidente que este inevitável desapreço pelas modificações que se operam ao mesmo tempo na situação econô­ mica, isto é, pela própria base de todos os acontecimentos que se examinam, só pode ser uma fonte de erro (Marx & Engels, s/d, vol. 1, p. 94). Mas o que significa reduzir os conflitos políticos à luz dos interesses das classes e frações de classe existentes, que são determinados pelo desenvolvimento econômico, quando não

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podemos ter urna clara visão econômica do conjunto de um dado período? Se desconhecemos a determinação imposta, em última instancia, pelo movimento econômico, qual o significa­ do passível de ser encontrado no estudo dos interesses, repre­ sentados pelas organizações partidárias? Como, em última instancia, pensar — como Engels — interesses cuja base eco­ nómica objetiva só se afirma em prazos dilatados; interesses que, só então, poderíam se impor “àsformas políticas da luta de classes e

seus resultados, às Constituições que, depois de ganhar uma batalha, são escritas pelas classes vitoriosas?” (Marx & Engels, 1971, p. 198).

Na visão metodológica de Engels, no longo prazo, o movi­ mento econômico imporia sua verdade à “forma” da luta polí­ tica, o que significaria que os interesses fundamentais seriam assumidos pelos seus portadores, segundo as exigências da acu­ mulação econômica e da necessária transformação das relações de produção. O longo prazo aparecería, assim, enquanto uma tendência e, também, enquanto um momento. Momento em que se realizaria a tendência à polarização e radicalização máxi­ mas, revestidas sob a forma de antagonismo entre a burguesia e o proletariado. Só então estariam amadurecidas as condições da batalha final, encarregada de trazer ao mundo uma nova for­ ma de organização socioeconómica e política. É nesse sentido que afirmamos estar implícito ao método um modelo macrohistórico, que supõe uma história política do capitalismo se movendo entre duas grandes balizas: as revoluções burguesa e socialista. São elas que delimitam e dão sentido ao tempo lon­ go. Toda e qualquer fragmentação desse tempo — incluído aí o tempo conjuntural — nos fornece tão-somente estágios que conformam a realização da tendência central, etapas progressi­ vas, através das quais se materializam os passos em direção à batalha final.

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Do ponto de vista da análise conjuntural, isso implica a per­ manente antecipação do fim, com a reificação do que é apenas na melhor das hipóteses, uma tendência. Mais do que isso, em decorrência da redução dos conflitos aos interesses, tender-se-á a substituir a anatomia científica dos objetivos imediatos das lutas concretas pela pura e simples imputação de interesses supos­ tos, deduzidos do modelo macro-histórico. No limite, adscrever-se-ia uma essência classista a atores políticos que venham a “resistir” ao modelo e à tendência polarizante. Com isso, aca­ ba-se desconhecendo a especificidade do curto prazo e a eficá­ cia própria daqueles grupos que nascem da fragmentação dos interesses “estruturais”. Por outro lado, ainda na visão de Engels, há que assumir, como um suposto necessário, o princípio da “representação adequada” entre as organizações políticas e seus suportes so­ ciais deduzidos. No longo prazo — o tempo do enfrentamento radical —, duas organizações deverão comandar duas classes, que se enfrentarão de forma excludente, e estaremos sob as regras da situação limite da guerra. Mas, no curto prazo, ou seja, em qualquer momento que não o da batalha final, o pro­ blema analítico estará colocado pela multiplicidade das orga­ nizações, pela heterogeneidade das consciências sociais (falsas?) e pela fragmentação objetiva da base social real, representada pelas organizações políticas. Objetivando contornar essas dificuldades, Engels propõe em sua carta a J. Bloch, de 1890, uma hipótese que apenas as reforça, quando nos diz que: (...) a história realiza-se de tal modo que o resultado final se des­ prende sempre dos conflitos entre um grande número de vontades individuais, sendo cada uma delas, porseu turno, produzida tal como

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é por urna grande quantidade de condições particulares de existen­ cia: existem, portanto, inúmeras forças que se contrapesam mutua­ mente; um grupo infinito de paralelogramos de forças donde sai urna resultante— o acontecimento histórico— que pode ela mes­ ma ser considerada, por seu tumo, como o produto de uma força atuando como um todo, de uma maneira inconsciente e cega (Marx &Engels, 1971, p. 199).

Proposta de sabor newtoniano, que nos aproxima à ficção do mercado, urna vez que a força inconsciente e cega, a mão invi­ sível, é econômica e está preestabelecida. Se assim fosse, a análise político-conjuntural transformar-se-ia num quebra-cabeça inútil e o tempo conjuntural, num tempo ficticio, um tempo de espera, espera do reencontro entre a forma e o conteúdo de urna historia que perpassa os paralelogramos, dissolvendo as vontades individuais. Mas qual é o sentido e o conteúdo histórico concreto des­ sa força cega, a força do movimento econômico como neces­ sidade? Como entendê-la senão enquanto tendência que se desdobra, criativamente, no tempo histórico, através de rela­ ções sociais e políticas? Volta-se aqui à perigosa cirurgia, por meio da qual Engels separa a “forma política” do “conteúdo econômico”, levando à “esqui­ zofrenia” do modelo arquitetônico da infra e superestrutura. Por detrás daquela visão, inscreve-se, necessariamente, uma versão simplificada e linear do tempo histórico. Tempo que, do ponto de vista político, evoluiría através de etapas recor­ rentes, impulsionado pela tendência à polarização crescente das relações de classe e à radicalização de sua luta política. No mundo capitalista real, a polarização protela-se inde­ finidamente e as duas classes fundamentais resistem a cum-

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prir seus papéis, adequando seus projetos e ações aos inte­ resses de longo prazo. Como as burguesias já não fazem re­ voluções e os partidos são cada vez menos classistas, como as revoluções proletárias acontecem fora de lugar e como a crise final parece enormemente atrasada, o método proposto por Engels perde sensibilidade para a compreensão das conjuntu­ ras políticas. Seu modelo rompe com a consciência social empírica, mas acaba substituindo-a pela consciência utópica do observador. Em 1892, no seu prefácio à edição inglesa de Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, Engels já constatava de maneira pessimista que “parecera ser uma lei do desenvolvimento histórico ofato

de que a burguesia não possa deter em nenhum país da Europa o poder político da mesma maneira exclusiva com que pôdefazê-lo a aristocracia feudal” (Marx & Engels, s/d, vol. 2, p. 298). Logo adiante, Lenin comandaria uma revolução socialista “contra O Capital”, nas palavras de Gramsci. A história factual impunha uma revisão do modelo implícito no recorte conjuntural dos textos políticos de Marx, mas, sobretudo, presente na concepção metodológica de Engels. A verdade de sua proposta precisava ser revista à luz de O Capital e da história transcorrida. O Capital havia enrique­ cido e tornado mais complexa a definição dos tempos curtos e longos. A história concreta havia demonstrado que uma análise fundada apenas nas tendências estruturais de longo alcance teria escassa capacidade preditiva. Era hora de voltar às “águas mutáveis o tempo”, recuperando o problema da vontade e da luta de classes, e aprofundando a contribuição fundamental, implícita na análise das revoluções democráticas da metade do século passado: a concepção do conflito político como uma re­ lação de força entre classes e frações de classe, cuja homo­ geneidade de objetivos contrapostos se assenta nas formas de

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produção e apropriação da riqueza. Concepção esta que traba­ lha com uma “temporalidade” que, não sendo “planejada”, pas­ sa pela consciência social e adquire sua racionalidade a partir da articulação dinâmica da conjuntura com a estrutura realizada pela mediação dos interesses de classe. Mas essa racionalidade, como vimos, tendería a se mani­ festar apenas na hora da verdade, a hora do enfrentamento aberto entre a burguesia e o proletariado. Longe da “notória visibilidade” que teriam os acontecimentos de 1848, fica difí­ cil estabelecer os limites do tempo curto ou conjuntural, de­ finir seus atores e compreender a natureza de suas expectativas e a eficácia de suas ações, apenas à luz dos interesses das clas­ ses fundamentais. Desafiados pela história real do capitalismo no início do sé­ culo XX e pela realidade política de países com capitalismos tar­ dios, Lenin e Gramsci, entre outros, repensaram a teoria das revoluções burguesa e socialista, consagrando, na teoria e na prá­ tica, a possibilidade de saltar etapas e “tarefas”. Na linha do que Trotsky divisou como “revolução permanente”, num contexto de “desenvolvimento desigual e combinado”. O desenvolvimento capitalista já não era visto, então, como uma progressão necessá­ ria através de uma única via. O seu balizamento político já não passava, obrigatoriamente, por revoluções de natureza claramente diferenciada e seu percurso intermediário tampouco seria idên­ tico em todas as experiências nacionais. Com isso, a conjuntura política deixava de ser apenas uma “forma” à espera de sua ver­ dade estrutural; passava a ser um momento, parcialmente inven­ tado pela vontade política. A crítica veemente da visão mecânica e economicista do marxismo repôs, enquanto questão teórica e estratégica, o

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problema da ação política. A sua racionalidade segue sendo dada pela tessitura dos interesses e pelo confronto das classes, mas sua necessidade só se realiza historicamente, como diz Gramsci,

“quando existe uma premissa eficiente e ativa, e, urna vez que a consciên­ cia que dela tenham os homens se torne operativa, estabelecendofins con­ cretos à consciencia coletiva, constituindo um complexo de convicções e de crenças tão poderosamente atuantes como as crenças populares” (1978, p. 92). O movimento histórico, enquanto necessidade, envolve a ação consciente e essa implicação não é automática. Eis aí o nó górdio da questão: nem a consciência de classe, nem a revolu­ ção estão fatal e mecanicamente determinadas por condições econômicas; e o desdobramento histórico destas, por seu tur­ no, não é linear, nem único para todos os países capitalistas. Essas idéias vão sendo arquitetadas através das concepções leninistas de “imperialismo”, “via prussiana” e de sua, até en­ tão impensável, “ditadura democrática dos proletários e cam­ poneses”. Com seu conceito de “aristocracia operária”, Lenín acaba re­ conhecendo a existência de diferenciações objetivas, estrutural­ mente enraizadas, dentro da própria classe operária. Por isso, segundo ele, os interesses já não se convertem em consciência operativa, sem a mediação pedagógica de uma férrea organiza­ ção da vanguarda da classe. Os interesses objetivos já não são os mesmos, tampouco as vias e etapas do desenvolvimento; donde o reconhecimento de “uma tendência como existente, real­

mente não significa que ela deva ser reconhecida como realidade determinante da ação” (Lukács, 1965, p. 38). Para que se faça efetiva a necessi­ dade histórica, impõe-se, por isso, uma organização que trans­ forme as premissas materiais em uma consciência operativa, historicamente eficaz.

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O partido, nessa visão leninista, assume assim papel de primeira importancia. A ele cabe, urna vez conhecida a ten­ dência específica de um tempo estrutural, estabelecer etapas e fases, identificar em cada momento o seu elo principal e estabelecer, a partir daí, as tarefas a serem cumpridas pelo proletariado. Teoria, análise histórica e decisão tática impli­ cam num todo orgânico que encontra na práxis partidária o seu momento fundamental. Em Lenin, a análise políticoconjuntural aproxima-se de um cálculo tático feito à luz dos objetivos partidários. Ela busca definir o que e quando fazer e, sob essa perspectiva, todos os demais atores políticos apa­ recem iluminados, não apenas pelos interesses que represen­ tam, mas, sobretudo, pelo que significam — enquanto apoio ou obstáculo — vis-à-vis as decisões partidárias. Trata-se de uma avaliação através da qual se deve “detectar, a cada instante, o

elo preciso da cadeia sobre o qual se deve colocar toda aforça, para agar­ rar a cadeia e passar ao elo seguinte”. Avaliação feita por um coman­ do centralizado, de natureza quase militar, envolvendo uma multiplicidade de atores organizados por um plano estratégico, e que supõe, no limite, a polaridade. O tempo conjuntural, nesse sentido, como na situação da guerra, é um tempo construído pelas decisões táticas do comando partidário. É isso que Gramsci sistematiza ao afirmar que (...) é absurdo pensar numa previsão puramente objetiva. Quem faz uma previsão, na realidade, tem um programa a fazer triun­ far, e a previsão é precisamente um elemento de tal triunfo (...) e só na medida em que o aspecto objetivo da previsão esteja li­ gado a um programa, esse aspecto adquire objetividade (...) porque sendo a realidade o resultado de uma aplicação da von­ tade humana à sociedade das coisas, prescindir de qualquer ele­

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mento voluntário, ou calcular, apenas, a intervenção da vontade dos outros como elemento objetivo do jogo geral, mutila a pró­ pria realidade (1978, p. 185).

Segundo ele, só um analista “apaixonado” pode chegar a con­ clusões que não “abundem de ociosidade, de minúcias sutis, de elegân­ cias conjecturais” (Idem, p. 186). E sua paixão e seu programa que lhe permitem destacar o essencial, no movimento contínuo das forças e relações sociais. Assim a análise concreta da relação de forças (análise político-conjuntural) “não pode e não deve ser um

fim em si mesma (a menos que se esteja escrevendo um capítulo de história passada), adquirindo significado apenas se ê útil parajustificar uma ativi­ dade prática, uma iniciativa da vontade. Ela mostra quais são os pontos de menor resistência, onde aforça da vontade pode ser aplicada tnaisfrutiferamente” (Idem, p. 195). Assim mesmo, a identificação desses

pontos de menor resistência não se faz de forma arbitrária. Ao contrário, deve obedecer, também, segundo Gramsci, a cânones teóricos e metodológicos rigorosos. Em cada conjuntura, há que trabalhar sobre um conjunto de correlações de força a serem identificadas e quantificadas: as relações internacionais, as sociais, as políticas e as potencialmente militares. As relações entre as forças sociais, segundo Gramsci, pos­ suem uma base material objetiva, podendo ser identificadas através de uma morfología das forças de produção, das empre­ sas e dos grupos a elas vinculados. As relações políticas, por sua vez, devem ser avaliadas com base no grau de homogeneidade, autoconsciência e organização dos vários agrupamentos sindi­ cais e partidários. Gramsci supõe, como elemento implícito dessa avaliação política, a existência de uma tendência necessá­ ria nas formas de organização e ação dos atores políticos, as quais evoluem de um nível económico-corporativo a um outro, hege­

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mônico-político. As relações de força internacionais passam pelas relações políticas globais, interferindo no plano da hege­ monia e do Estado, criando, em nível nacional, situações ideo­ lógicas e políticas específicas. Também a relação de forças militares reveste-se da maior importância no pensamento político de Gramsci. E isto porque, segundo ele, as relações de força evoluem, passando do nível social, objetivamente dado, para o nível militar, propendendo a luta política para uma forma de luta político-militar, ou militar stricto sensu, tal como aparece na prática leninista. Uma adequada análise conjuntural, entretanto, não passa apenas por uma avaliação da correlação de forças em seus di­ ferentes níveis. Esta mesma avaliação, segundo Gramsci, só adquire sentido quando consegue enquadrar o “momento” no ritmo maior do tempo estrutural, o tempo dos “blocos his­ tóricos” e das “crises orgânicas”. Gramsci revê as relações entre estrutura e superestrutura, criticando a visão estática, segundo a qual uma dimensão, no longo prazo, ou em última instância, acaba transmitindo sua verdade à outra. Para ele, ao contrário, existe um vínculo orgânico entre as duas, dinâmico, eficaz e consciente, estabe­ lecido a cada momento, e não apenas em limites tendenciais. Partindo do “Prefácio” de Marx, Gramsci reitera que é atra­ vés das “formas ideológicas que os homens adquirem consciência dos confitos e lutam para resolvê-los", afirmando-se a necessidade his­ tórica apenas onde e quando se faz eficiente e ativa, através da consciência e vontade coletivas. “A política é defato, em cada oca­

sião, o reflexo das tendências do desenvolvimento da estrutura, tendên­ cias que não têm por que realizar-se necessariamente” (1971).

Com isso, Gramsci abre portas a uma temporalidade es­ tritamente política, permitindo-lhe construir o conceito de

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“blocos históricos”, que recortam períodos longos, durante os quais prevalecem relações orgânicas entre as estruturas e as instituições e iniciativas políticas. Relações construídas e sustentadas pela afirmação histórica de uma hegemonia de classe, ou fração de classe. Todos os movimentos históricos ou atos políticos que não se enquadrem, por sua permanên­ cia, na organicidade do bloco histórico são considerados epi­ sódicos, ainda que não sejam irrelevantes. A partir da dinâmica interna desses blocos, configuramse as crises políticas, que recortam períodos de tempo me­ nores, e as crises orgânicas — crises gerais de “representação” — que, envolvendo as classes fundamentais, propiciam o nas­ cimento de novas hegemonias. Essas crises podem ou não coincidir no tempo com uma crise econômica, possuindo uma lógica própria. Gramsci avança, assim, um conjunto de hipóteses que permitem superar o mundo factual, reorganizando-o segun­ do uma temporalidade teoricamente construída: o tempo das estabilidades e das crises políticas; orgânicas algumas delas. Permanecem, entretanto, algumas dificuldades fundamen­ tais para a utilização eficaz de seu sistema conceituai na análise político-conjuntural. Em primeiro lugar, a organicidade dos atos e instituições políticas aparece definida pelo seu grau de “per­ manência”. Em segundo, reconhecem-se crises de hegemonia que possuem duração secular. Em terceiro lugar, consideramse episódicos acontecimentos que não possuem organicidade. Com isso, mostra-se difícil, por exemplo, decifrar a natureza de um movimento político ocorrido durante uma crise orgâni­ ca secular. Ou mesmo entender o caráter revolucionário de al­ guma instituição ou iniciativa política aparentemente episódica.

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Gramsci introduz a idéia de crises diferenciadas, elemen­ to fundamental para pensar um recorte eficaz do tempo po­ lítico. Mas, ao mesmo tempo, envolve-se em um raciocinio de tipo circular que reduz a fecundidade de seu sistema conceituai: a organicidade das instituições defme-se por sua permanência, sendo, pois, orgânico tudo o que seja perma­ nente. Com o diferenciar, nessa perspectiva, o que seria episódico daquilo que talvez representasse uma conjuntura de crise ou, simplesmente, um momento em que emerge uma inovação criativa e eficaz? Como distinguir o orgânico do episódico, sem recorrer, mais uma vez, à determinação, em última instância, da economia? Como, então, avaliar uma correlação de forças sem incluir nesta avaliação uma tendên­ cia irreversível ao enfrentamento militar? E como conciliar a “determinação econômica em última instância” e a “tendên­ cia a um confronto do tipo soma zero” com a idéia gramsciana de que a política é o reflexo de “tendências que não têm por que se realizar, necessariamente”? Foi Poulantzas quem, no nosso entender, formulou a crí­ tica mais sistemática e contundente dessas perplexidades que perpassam o pensamento político marxista. Para tal, foi obri­ gado a rever, em suas raízes, os conceitos de interesse, classe, luta política, ideologia e Estado, sacudindo os próprios alicer­ ces do modelo histórico marxista, ao recolocar o problema dos tempos históricos, culminando na formulação de um concei­ to, propriamente político, de tempo conjuntural. Não cabe aqui discutir sua crítica ao historicismo, nem tampouco as dificuldades de seu estruturalismo. Isto já foi feito, exaustivamente, em vários trabalhos. Para nosso obje­ tivo, interessa rever algumas de suas idéias, partindo de sua

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crítica à visão clássica da luta política enquanto um confronto que tende à soma zero. Como ele mesmo diz: (...) a linha de demarcação da relação conflitual específica entre dominação e subordinação, caracterizando efetivamente as rela­ ções de poder, nem por isso significa, de qualquer modo, e a qual­ quer nível, uma dicotomía de dois grupos-sujeito permutando poder soma zero (Poulantzas, 1971, vol. l,p . 130).

E isso porque (...) nós sabemos que se trata sempre, numa formação social com­ plexa, não de duas, mas de várias classes sociais, relacionadas com a sobreposição de vários modos de produção. Neste sentido, não podemos estabelecer, a nível algum, uma dicotomia de relações de poder soma zero. A perda de poder de uma classe, ou fração de classe, pode ou não indicar um aumento de poder, não de outro único “grupo” existente, do grupo subordinado, mas de uma classe ou fração de classe entre as numerosas classes ou frações em luta em todos os níveis (Id em , p. 129).

Portanto, para Poulantzas, a concepção do poder soma zero supõe, equivocadamente, não apenas o poder como uma quan­ tidade dada, mas também a homogeneidade e polaridade dos grupos políticos, desconhecendo tanto a heterogeneidade das formas de poder, como a diversidade de seus níveis, instâncias e estruturas. Esta diversidade de estruturas autônomas, próprias do modo de produção capitalista, ao permitir a combinação con­ creta de vários modos de produção numa mesma formação social, produz uma estrutura classista não polarizada e uma luta de classes que se desenvolve em distintos “sistemas de

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práticas”, raramente sobrepostas. Cada estrutura — econômica, política e ideológica — se faz acompanhar, na visão de Poulantzas, de um sistema de práticas com objetos distintos, o que implica, necessariamente, interesses diferenciados em cada um desses níveis, apesar de preservado o respeito pela determinação em última instancia da estrutura, relações e práticas econômicas. Poulantzas rejeita, assim, definitivamente, o “velho equívoco que

consiste em ver as dasses sociais e a luta de classes emergirem aos níveis do político e do ideológico, para acionaras leis inconscientes da economia” (Idem, p. 94). A luta político-ideológica não é mais vista como o lugar onde as tendências de longo prazo da economia se tomam histó­ ria. Ao contrário, existem interesses e lutas diferentes nos níveis econômico, político e ideológico. Além disso, em conseqüência da descontinuidade estrutural, não há tampouco lugar para que se axiomatize, como necessária, a lógica ascensional, que elevaria os interesses econômicos ao nível de uma consciência de classe “para si”, passando por um partido-ideologia nítidos e alcançan­ do um poder de Estado instrumentalizável. As classes são múltiplas e vivem em estado de permanen­ te fragmentação. Por outro lado: (...) a ideologia dominante não reflete apenas as condições de vida da classe dominante, sujeito “puro e simples”, mas também a relação política concreta, numa formação social, entre as classes dominan­ tes e as classes dominadas. Ela encontra-se, freqüentemente, impreg­ nada de elementos decorrentes do “modo de vida” de outras classes ou frações que não a classe ou fração dominante (Idem, vol. 2, p. 26). Por fim, as classes ou frações de classe não se manifestam historicamente apenas através de sua organização política au­ tônoma. N a verdade, quase nunca alcançam essa forma de

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“certas classes distintas, concebíveis na análise dos modos de produção puros que compõem uma formação social, apresentam-se, frequentemente, como frações — autônomas ou não — de outras classes, ou ainda como catego­ rias sociais específicas” (Idem, vol. 1, p. 81). Com isso, o critério “presentificação” histórica. A começar pelo fato de que

para a identificação concreta dos interesses fundamentais deixa de ser puramente econômico. Para “decifrar a existência de uma

classe, ou de uma fração, enquantoforça social numa formação determi­ nada”, Poulantzas propõe-nos “que essa presença existe sempre que a relação com as relações de produção, que o lugar no processo de produ­ ção se reflete sobre os outros níveis por efeitos pertinentes”. Consi­ derando-se por “efeitos pertinentes” o “fato de que o reflexo do lugar no processo de produção sobre os outros níveis constitua um elemento novo, que não pode ser inserido no quadro típico que estes níveis apresentariam sem este elemento” (Idem, vol. 1, p. 83). O que ocorrería com as classes e as ideologias ocorre, igual­ mente, segundo Poulantzas, com o Estado, fator de coesão entre os distintos níveis de uma formação social e, como tal, unidade condenada de suas múltiplas contradições. Nas suas próprias palavras, “tomar o Estado como a condensação de uma relação de força

entre classes efrações de classe tal como se exprimem, de modo específico, no seio do Estado, significa que o Estado é constituído-atravessado em toda parte pelas contradições de classe”. De maneira que “a política do Esta­ do se estabelece, assim, por esse processo de contradições intra-estatais, na medida em que estas constituem contradições de classe e, notadamente, das frações do bloco no poder” (Idem, 1977, pp. 23-24). Nesse sentido, dado o caráter “combinado” das formações sociais concretas, “O Estado de uma formação semelhante resulta de

uma combinação de vários tipos de Estado, procedentes dos diversos modos de produção que entram em combinação nestaformação” (Idem, 1971, vol. 1, p. 159). Fica descartada a concepção do Estado como

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instrumento de uma classe, na medida em que ele reflete as múltiplas contradições e é seu fator de unificação e sobrevi­ vência, sendo capaz de reunir distintas fases em uma mesma estrutura. Da mesma forma que a estrutura política surge como nivel específico de uma formação social e lugar de suas transforma­ ções, o Estado aparece como condensação de contradições e re­ gistro privilegiado das mutações estruturais. E a partir dos tipos e formas de Estado que Poulantzas constrói sua periodização das formações sociais. Não cabe repetir o já sabido, apenas relembrar que, para ele, as formações sociais passam, sempre, por duas grandes fases — a da transição e a da reprodução ampliada — e por vários estádios, identificáveis pela predominância das formas possíveis do modo de produção “puro” — capitalismo privado, social, monopolista e monopolista de Estado. A um modo de pro­ dução corresponde um tipo de Estado e a cada um dos estádios correspondem formas de Estado distintas. Essas formas diferen­ ciam-se por “articulações específicas das estruturas econômicas e políticas

no quadro da mesma invariante, e, portanto, porformas específicas de inter­ venção e não-intervenção do econômico no político e do político no econômi­ co (...)” (Idem, p. 166), e recortam-se segundo a predominância de variados regimes sustentados por distintos blocos de poder. Assim mesmo, “essa divisão de uma formação em estádios não

pode operar-se de acordo com um modelo cronológico evolucionista: não se trata de estádios sucedendo-se cronologicamente, ou deformas de Es­ tado existindo segundo um traçado unilinear de sucessão” (Idem, p. 170). Ao contrário, “pelo fato da coexistência numa formação capitalista de vários modos de produção e de várias formas do M PC, pelo fato da articulação complexa de instâncias com temporalidades próprias, a dominancia numa formação capitalista de uma forma do M PC sobre outra, não se traduz num desenvolvimento simples” (Idem). Aqui, como

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no caso das estruturas, são possíveis as mais complexas “defasagens”, podendo encontrar-se Estados liberais em estádios monopolistas e vice-versa. Por outro lado, as transformações possíveis do bloco no po­ der remetem ao problema das crises econômicas e políticas. Neste ponto, Poulantzas mantém seu esquema, autonomizando-as urnas das outras: “uma crise econômica não se traduz nem automatica­

mente, nem necessariamente, nem de modo unívoco, em crise política e crise do Estado” (Idem, \911, p. 9). Estas podem vir juntas ou separadas e entre elas não há ordem de sucessão obrigatória. Poulantzas guardará o conceito de “crise orgânica” ou estrutural para “uma situação particular de condensação das contradições” que perpassa, simultaneamente, todas as estruturas e práticas. Contudo, nem todas as crises são de Estado, nem, muito menos, identificam-se com situações revolucionárias ou de fascistização. As crises po­ líticas possuem uma identidade própria, “consistindo em modifica­

ções substanciais das relações deforça da luta de classes, no seio do bloco no poder, onde se questionam as hegemonias e se rompem os sistemas de repre­ sentação, mas também no âmbito das classes dominadas*.

Poulantzas ataca aqui o último reduto de um economicismo, que, na eterna esfera da crise final, revolucionária, impede qual­ quer análise político-conjuntural. E é em função disso que ele, coerentemente, consegue, a partir de seu, esquema, rever o conceito e o método de análise de conjuntura. Assim: (...) a conjuntura, objeto da prática política e lugar privilegiado onde se reflete a individualidade histórica sempre singular de uma formação, é a situação concreta da luta política de classe. Se a superestrutura política do Estado é um lugar privilegiado que concentra as contradições dos níveis da estrutura e permite a decifração correta da sua articulação, a conjuntura permite a in-

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dividualidade histórica do conjunto de uma formação, em suma, a relação da individualidade concreta das estruturas e da confi­ guração concreta da luta de classes. Neste sentido, a superestrutura política do Estado, que é o objetivo da prática política, é também refletida na conjuntura (Idem , 1971, vol. 1, p. 102).

Condensa-se aqui a complexidade do sistema conceituai de Poulantzas. Há estruturas autônomas, às quais correspondem práticas igualmente autônomas, cujo conjunto conforma as lutas de classe. As estruturas determinam os “limites de varia­ ção da luta de classes”, mas sua eficácia está “limitada pela in­ tervenção, sobre a estrutura da prática política”. Por sua vez, a prática política não tem seus limites produzidos unicamen­ te pela estrutura econômica. Ao contrário, os limites são pro­ duto do “conjunto dos níveis da estrutura, em sua unidade”, e portanto, também, das estruturas políticas e ideológicas. No entanto, se a prática política tem por objetivo específico “o poder político institucionalizado do Estado”, seu objeto é o “momento atual”, a conjuntura “que reflete a individualidade histórica, sempre original, porque singular, de uma formação”. E isto, porque, embora a conjuntura seja homogeneizada pelas práticas, é a prática política de classe que condensa em si, no momento atual, os conflitos e impasses das demais práticas de classe, econômicas e ideológicas. Nesse sentido, se a conjuntura se define pelo impacto conjunto e atual das estruturas sobre as práticas e constitui o objeto precipuo da prática política, é a prá­ tica política das distintas forças sociais que conforma o objeto de interesse da análise conjuntural. A conjuntura deixa de ser o mundo privilegiado das ilusões ideológicas ou da explicitação histórica de uma essência em processo de totalização. Passa a ser o momento de enfrentamento de forças sociais, cujo critério de

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identificação não é fornecido exclusivamente pela estrutura eco­ nômica, nem tampouco pelas organizações políticas existentes. Os atores ou elementos de uma conjuntura são forças sociais, “classes distintas e frações autônomas que se refletem em nível

da prática, mas também categorias específicas, que chegam num momento concreto a ter efeitos pertinentes (...) sem, no entanto, serem classes nem frações de classe” (Idem, p. 100). Só essas frações ou categorias autônomas constituem forças sociais, independentemente de sua organização política. A questão básica de sua identidade, e de toda a problemática poulantziana, sob a ótica da conjuntu­ ra, está exatamente na idéia de “efeitos pertinentes”. Esses efeitos são o lugar e a forma que permitem a iden­ tificação das forças que outorgam unidade e homogeneidade ao espaço-tempo conjuntural. Para localizá-los, impõe-se o reconhecimento dos interesses que se explicitam nesses efei­ tos. Mas a questão se complica, na medida em que Poulantzas considera que os interesses de classe estão situados no cam­ po das práticas e não no das estruturas. “De fato, os interesses,

embora sendo, por isso, noção psicológica, não podem ser localizados senão no campo próprio das práticas e das classes. Nas estruturas, por exem­ plo, o salário ou o lucro não exprimem o interesse do capitalista ou do operário” (Idem, p. 117).

Ele rejeita aqui a concepção que vê nos interesses objetivos de classe uma realidade “em si”, dada no âmbito das relações de produção e conscientizada nas relações político-ideológicas. Porém, se esses interesses não possuem uma realidade mate­ rial última, de natureza econômica, e se tampouco se encon­ tram definidos em qualquer outro nível estrutural, como reconhecê-los? Segundo Poulantzas, no campo das práticas, “não

diretamente como limiar da sua existência como classe distinta, mas como horizonte da sua ação comoforça social” (Idem, p. 120). Há interesses

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de classe, econômicos, políticos e ideológicos, e estes se cons­ tituem em tantos “limites-efeitos de estrutura e limites-efeitos em se­ gundo grau, impostos pela intervenção das práticas das diversas classes”. Toma-se difícil, assim, reconhecer quais os “efeitos pertinen­ tes” que consagram uma força social no plano das lutas políticas, a partir de “seu lugar no processo de produção”, independentemente de sua organização. Se a estrutura define os limites-efeitos como interesses de classe, então esses interesses se inscrevem nas es­ truturas. Mais do que isto: devem inscrever-se nestas de forma contraditória. Caso contrário, os interesses e as contradições se constituiríam no mundo das práticas e da prática política em par­ ticular. Neste caso, os “efeitos pertinentes” seriam criados no interior da própria prática onde se “refletem”. Deste modo, não seriam “efeito”, ou pelo menos, não seria possível conhecer sua “causa”. Diluem-se, assim, as mediações entre o mundo das es­ truturas e das práticas, sem que se possa descobrir o código de remissão de umas às outras, dificultando-se a possibilidade de uma análise conjuntural fundada no estudo da representação dos interesses de classe, frações ou categorias. Pois, se é verdade que são os interesses que conferem identidade aos atores e seus con­ flitos, dinamizando a luta política, e se, de fato, as posições no processo produtivo não têm tradução necessária na luta política e na representação que os atores fazem de si mesmos como iden­ tificar o efeito de uma posição produtiva, ou, mais simplesmen­ te, como saber a que interesse corresponde uma dada posição estrutural? Senão, vejamos, retomando o fio do nosso raciocínio. Se em toda formação social complexa encontramos sempre mais do que duas classes sociais, num enfrentamento que não é de natureza soma zero; se as estruturas, práticas e interesses econômicos e políticos possuem identidade autônoma; se as ideologias não são

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“chapas de matrícula que as classes-sujeito trariam nas costas”, nem níti­ das concepções do mundo capazes de gerar classes organizadas e autoconscientes; se é verdade que as classes, as frações e as cate­ gorias sociais podem, como forças sociais, ter eficácia política, sem possuir organizações autônomas; se distintas formas de Estado e de regime podem corresponder a distintas fases de desenvol­ vimento das formações capitalistas, sem que existam corres­ pondências e sucessões necessárias; se não há correspondência, tampouco, entre crises econômicas e políticas, e existem crises políticas de várias naturezas, quase nunca revolucionárias; se, de fato, os conflitos de interesses não se situam no plano das estru­ turas, mas sim no da prática, reorganizando nele, permanente­ mente, suas identidades, diferenças e contradições; e se, por fim, existem permanentes “defasagens” entre estruturas e entre sis­ temas de práticas, consolidando-se a “sobredeterminação” como a forma normal de determinação, se tudo isso, em realidade, se verifica, então, repetindo Poulantzas, “como decifrar a existência de

uma classe, ou de umafração, enquantoforça social numaformação social e determinada, critério que não pode em caso algum ser exclusivamente eco­ nômico?” Esta é a questão primeira e central de uma análise conjun­ tural de inspiração marxista. Poulantzas responderá à sua própria pergunta, dizendonos, como já vimos, “que esta presença existe sempre que a relação

com as relações de produção, o lugar no processo de produção, se reflete sobre os outros níveis por efeitos pertinentes”. E, estes efeitos serão identificáveis sempre que “o reflexo do lugar no processo de produ­ ção sobre os outros níveis constitua um elemento novo, que não pode ser inserido no quadro típico que estes níveis apresentariam sem este elemen­ to”. Mas, como fazer essa identificação se, a partir dos pres­ supostos resumidos anteriormente, não há “quadros típicos” passíveis de serem padronizados. Retorna-se sempre ao mes-

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mo problema. Ou existe uma adequação típica, ou, então, não há como identificar e conceituar os “efeitos pertinentes”. Ou os lugares no processo da produção são claros e distintos, provocando, em principio, impactos típicos no ámbito políti­ co, ou então interesses e atores redefmem-se, permanente­ mente, na própria prática — efeito constante e combinado de múltiplas estruturas, o que parece mais correto. Mas perma­ nece o problema metodológico da identificação desses atores, de seus interesses e da lógica, urna vez que não é possível aferir “defasagens” sem possuir parâmetros. A trilha seguida por Poulantzas conduz, assim, inevitavel­ mente, ao mundo das “funções” e projetos. Funções e proje­ tos que, a posteriori, permitiram, tautológicamente, definir os interesses em presença, tanto quanto a natureza do Estado e dos regimes políticos. Desse modo, Poulantzas constrói um rigoroso sistema conceituai que logra implodir a concepção mecânica das rela­ ções entre a supra e a infra-estrutura, liberando os atores po­ líticos para atuarem numa temporalidade específica. Mas ao final de seu sistema reencontra-os indeterminados fazendo com que sua periodização dos tempos políticos “encalhe” numa tipologia histórica, e deixando a meio caminho seu conceito de tempo conjuntural. De alguma forma, todos os autores comentados mantêmse fiéis às ambigüidades encerradas na pedra angular do ma­ terialismo histórico, o Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política. Nenhum deles consegue resolver adequadamente o problema da articulação, no âmbito da luta política, entre as

“mudanças ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais” e as “for-

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mas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa pala­ vra, asformas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo”. E só o fazem quando axiomatizam — como na hipótese das expectativas racionais — a idéia de que “a humanidade só se propõe os objetivos que pode alcançar”, fa­ zendo convergir a exigência de mudanças materiais com a consciência coletiva da necessidade das mudanças. Com o que, nesse caso, as incertezas futuras e a imaginação criativa pas­ sam a ter papel secundário no desenvolvimento das ações políticas. Tampouco conseguem descartar-se, integralmente, da tra­ dução evolucionista dada à afirmação de que, “a grandes traços,

podemos designar como outras tantas épocas de progresso, na formação econômica da sociedade, o modo de produção asiático, o antigo, ofeudal e o moderno burguês”. A qual, somada à idéia de que “de todas as classes que ora enfrentam a burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária”, produto direto de um “desenvol­ vimento da grande indústria que socava o terreno em que a burguesia assentou o seu regime de produção e apropriação dos produtos”, con­ duz à inevitável concepção da luta política de classes como um processo que tende, inevitavelmente, aos extremos de um enfrentamento excludente, de natureza revolucionária, ou, em outra linguagem, de tipo soma zero. Enfrentamento que abriría as portas a uma nova época de progresso. A partir daquelas premissas constrói-se um modelo social, extremamente bem tecido, sobre a dinâmica estrutural da histó­ ria de longo prazo. Uma temporalidade rigorosamente determi­ nada, com atores políticos que, movendo-se segundo interesses enraizados nas condições econômicas de produção, acabam co­ incidindo, em seus objetivos e projetos, com as duas classes fun­ damentais do sistema capitalista. Os trabalhos aqui comentados,

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de Marx e Engels, analisam, entretanto, a história de curto pra­ zo, o tempo de duas conjunturas políticas contemporáneas aos autores. Não estavam, ainda, escrevendo um capítulo da história passada, como diría Gramsci; queriam entender o presente, para melhor prever o futuro imediato das forças revolucionárias. O brilho de suas análises, contudo, não consegue — nem a tal se propõe — equacionar o problema dos limites espaço-temporais da conjuntura nem, tampouco, o das relações entre a vontade dos atores e a necessidade das estruturas. Foi Engels quem, mais tar­ de, tentou sistematizar a metodologia utilizada naqueles estudos, adequando-a às hipóteses e explicações contidas no modelo macrossocial do materialismo histórico. Os demais autores mencionados, de alguma outra forma, buscaram fazer o mesmo. Ou, ainda mais, objetivaram proceder a uma revisão do método de análise à luz de um modelo refeito pelo peso da história real. Apenas Poulantzas, já com uma perspectiva acadêmica, tentou refazer todo o esquema, construindo, a partir de um sistema conceituai original, um novo conceito de tempo histórico e de luta política. De forma muito abreviada, tentamos mostrar nes­ tas páginas algumas das incógnitas de maior relevância que se mantêm indecifradas. Assim, no caso de se revelar verdadeira a suposição engelsiana de que, no “longo prazo”, o movimento econômico acaba radicalizando a luta de classes e impondo sua verdade às “formas” da luta política, o estudo dessas “formas” se mostra extremamente prejudicado. O “momento atual” da política confunde-se com meras “aparências”, com um tempo de espera, antecipação per­ manente da verdade final. Esta, escondida em sucessivos “paralelogramos de força”, é, no fundo, sempre a mesma e só se desvela no longo prazo. Nessa linha de raciocínio, é ocioso afirmar que a análise conjuntural perde sua razão de ser.

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A visão leninista resolve essa dificuldade desfazendo-se do mecanismo evolucionista e afirmando o poder da vontade orga­ nizada das classes. Dela podemos depreender a existência de dois tempos: o histórico-estrutural e o estratégico. O primeiro é objetivo e passível de um conhecimento científico. O segundo é um tempo construído pelo projeto revolucionário, um tempo planejado, fragmentado segundo os objetivos de curto e longo prazo do partido. A partir de seu horizonte estratégico é que se deve analisar as ações e confrontos ocorridos, centrando-se a análise política na delimitação dos obstáculos e estímulos para o avanço da causa revolucionária. O que Lenin propõe é uma aná­ lise politicamente comprometida, um cálculo tático que supõe um ponto fixo no espaço político, claro e indiscutível: o partido do proletariado — que representa adequadamente sua classe, de­ vendo ela encontrar-se, progressivamente, com seu partido-consciência-projeto. Está implícita no raciocínio leninista a hipótese de polarização de uma luta política que, em algum momento, irá se militarizar. À diferença da teoria da guerra, nesse caso existe apenas um comando unificado, o que faz supor, para além dos objetivos dos demais atores em conflito, que esses também se articulam para uma batalha final, sobre a qual, talvez, não tenham sequer notícia. A sistematização gramsciana recolhe a idéia do “compro­ misso”, enquanto condição da objetividade e eficácia do co­ nhecimento político; mas refaz, indiretamente, o conceito de conjuntura à luz de sua teoria sobre a temporalidade própria do campo político. Gramsci introduz os conceitos de tempos e crises orgânicas, próprias dos blocos históricos sustentados por hegemonias claras; e daí deriva a idéia de tempos e crises políticas não orgânicas. A diferenciação entre os dois não é simples, como vimos. Quando Gramsci intenta equacioná-la,

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choca-se com as dificuldades próprias àquilo que, mais tarde, será objeto da crítica veemente de Poulantzas e outros auto­ res: o historicismo. Sem repisar o que já vimos, o problema está no fato de que, urna vez que as relações entre a economia e a política não estejam adequadamente esclarecidas, a natu­ reza das crises só poderá ser identificada a posteriori. Mesmo assim, Gramsci consegue definir com extrema clareza o objeto central das análises político-conjunturais: as correlações de força, estabelecidas nos âmbitos internacional e nacional, e os aspectos social, político e militar. Não escapa, contudo, à suposição de que a luta política de classes, não sendo de tipo soma zero, virá, necessariamente, a sê-lo, ao acompa­ nhar o acirramento das contradições e crises econômicas. Poulantzas é, sem dúvida, quem vai mais longe, tentando desfazer-se das ambigüidades originárias. Autonomizando as estruturas e definindo objetivos e lutas distintas para cada uma das práticas que lhes são correspondentes, Poulantzas desmente o modelo arquitetural da infra e superestrutura. Constrói uma temporalidade de formações sociais, que se fragmenta em es­ tágios e fases, e define o tempo conjuntural como o momento em que se manifesta, de forma politicamente condensada, o conjunto da formação social, num dado estágio de seu desen­ volvimento. Dentro dela, contudo, os atores, desembaraçados das “chapas de matrícula que as classes-sujeitos trariam às costas”, só são identificáveis pela presença de “efeitos pertinentes”, cuja defi­ nição é circular, remetendo-nos, ao fim, novamente, à deter­ minação de última instância das estruturas produtivas. Nenhum dos autores mencionados absorve, em suas análi­ ses concretas, ou em seus sistemas conceituais, os avanços de Marx em O Capital. Isto ocorre, em particular, com relação ao chamado movimento da economia, cuja periodicidade cíclica,

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certamente, teria muito a contribuir para uma reflexão sobre o tempo político, como bem o viram Braudel e Vilar. Não é de estranhar, assim, que na trilha dessas dificuldades “clássicas”, as análises político-conjunturais de inspiração mar­ xista apresentem, em geral, problemas e insuficiências recor­ rentes. Oscilam entre duas alternativas básicas: ora dinamizam a política, parametrizando a economia, ora dinamizam e recor­ tam o movimento econômico, mantendo constante a duração política. Isto, para concluir que a maioria das conjunturas ana­ lisadas refere-se a momentos de “transição”. Como, do ponto de vista analítico, as transições definem-se pela ruptura dos códigos “normais” de remissão da economia à política e viceversa, elas acabam se configurando, apenas, como um refúgio a mais de nossa dificuldade para entender a história política e seus tempos. A partir daí, decorrem, logicamente, as infindáveis e estéreis discussões sobre as chamadas “autonomias relativas”.

A conjuntura como “incerteza estrutural” Junto com Poulantzas, consideramos que o tempo conjuntural é um tempo essencialmente político, porque é nele que as contradições estruturais assumem sua máxima condensação e atualidade, transformando-se em conflito e encontrando as suas soluções transitórias na luta e na inventividade humana. A conjuntura não constitui, assim, uma realidade distinta da estrutura, porquanto ela é apenas a “incerteza” encerrada no movimento de estruturas que, em seu “momento atual”, es­ tão grávidas de uma futuridade que não é possível deduzir. Nesse sentido, o conceito de conjuntura só é rigorosamente aplicável a situações contemporâneas, onde a convergência do

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conhecimento sobre o passado com as expectativas sobre o futuro dá origem, na consciência coletiva, aos projetos respon­ sáveis pela construção do presente. Ou, então, às situações passadas em que se possa desmontar o caráter inquestionável de uma história já vivida, para reencontrar o que terá sido imprevisível em cada momento. N a natureza conflituosa de que se revestem as contradições estruturais e na natureza ideológica e prospectiva que assume a consciência social, encontram-se os dois componentes que fa­ zem da política a própria essência do tempo conjuntural. Nele não ficam canceladas as outras dimensões do real. Pelo contrá­ rio, é no espaço-tempo da conjuntura que todas elas resolvem sua “futuridade possível”, através da luta política entre forças e projetos contrapostos. Ultrapassado o “momento atual”, todas as suas incógnitas e indeterminações aparecem aos olhos do observador como rela­ tivamente ingênuas ou falsas. Ilusões aparentemente desfeitas pela ação eficaz de leis rigorosamente estruturais, cegas e indepen­ dentes da vontade. No limite, os conflitos passados parecem ter sido uma mera encenação ideológica. O que é um engano, por­ que toda conjuntura passada também teve seus conflitos, expec­ tativas e projetos coletivos — uns vitoriosos, outros derrotados — que explicam o caminho tomado pela história. E por essa razão que o “mundo do imaginário” possui pa­ pel tão relevante na definição e análise do tempo conjuntural. As ideologias, no entanto, sem constituírem formas puras, não exaurem o espaço conjuntural. Elas apenas atualizam as con­ tradições e antecipam as soluções, na forma de expectativas e projetos grupais. Através das ideologias os atores políticos racionalizam interesses e, ao mesmo tempo, defendem-se da incerteza, atualizando-antecipando um futuro que não conse­ guem deduzir de suas experiências passadas.

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Em suma, as expectativas dos distintos atores contribuem decisivamente para a definição do horizonte futuro que cada conjuntura proporciona a si mesma e para o traçado que cada ator confere à sua ação. Dessa forma, não é possível definir o tempo conjuntural e seu método de análise sem que se com­ preenda a forma e o conteúdo através dos quais as forças po­ líticas encaram e resolvem suas incertezas presentes, no plano de suas expectativas futuras. Por outro lado, cremos que foi Braudel quem ensinou o verda­ deiro ponto de partida de uma pesquisa do tempo conjuntural: a ruptura com o episódico, a busca das raízes estruturais e a absor­ ção da idéia dos ciclos e interciclos econômicos, visando à reelaboração da problemática da continuidade-descontinuidaderuptura na história das sociedades. Mas foi ele também quem nos advertiu para o maior problema deste tipo de pesquisa conjuntural: a falta de uma construção teórica adequada da temporalidade política, devido à complexidade dos conflitos que de­ finem sua duração. Raramente eles são do tipo “soma zero”, e por isto não podem ser equiparados a uma situação de guerra co­ mandada pela lógica implacável da “ascensão aos extremos” e com seus comandos estratégicos centralizados e bipolarizados. Tam­ pouco as relações de poder obedecem a uma mão invisível que as conduza cegamente em direção a um conflito catastrófico e, menos ainda, a um equilíbrio de tipo walrasiano. Os atores e os enfrentamentos envolvidos nas relações de poder são múltiplos, heterogêneos e assíncronos. Seus projetos nem sempre colidem e suas expectativas raramente são racionais com respeito a fins. Por outro lado, se é verdade que não há estratégias nem razões hipostasiáveis que comandem o tempo, racionalizan­ do a ação, tampouco se conhece o suficiente acerca da nature-

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za dos ciclos (se os há) e das crises políticas, sendo esta urna das razões do “congelamento” experimentado pelo modelo de análise das relações políticas fundado no interesse e na vonta­ de das classes sociais. Dessa forma, não seria errado concluir que as análises polí­ ticas que incorporam a duração histórica ainda estão muito aquém da teoria econômica e da teoria da guerra. Uma distân­ cia difícil de ser vencida porque toca à análise política estudar exatamente as relações de poder, que são o fator que mais per­ turba o cálculo dos economistas e dos militares. Até hoje, como vimos, apenas a ciência econômica conseguiu trabalhar de for­ ma rigorosa o tempo conjuntural. E isto, com certeza, porque foi a única que logrou construir uma teoria dos ciclos. Nesse sentido, acreditamos, com Braudel, que o passo a ser dado pelas demais ciências sociais — e pela teoria política em particular — consiste na incorporação em suas análises desta dimensão do tempo econômico. Mas, além disso, cremos que a pesquisa da conjuntura política supõe a identificação de ciclos que também recortam o movimento das suas lutas e instituições. Avançando nessa direção, o caminho passa, a nosso ver, pela generalização de elementos histórico-descritivos referidos a sociedades concretas. É a partir daí que devemos aprofundar a análise, delimitando os seus tempos e ciclos e definindo as suas tendências. Nessa perspectiva, nosso interesse é definir o espaço e o tempo de conjunturas políticas em um tipo específico de so­ ciedade capitalista, onde a industrialização — quando ocorreu — se fez de forma tardia, truncada e internacionalizada; onde o Estado foi obrigado a assumir funções inéditas, até hoje não compreendidas de todo; onde a Nação parece carecer de iden-

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tidade, a sociedade civil carece de organicidade e as institui­ ções políticas são extremamente instáveis. Nestes casos parece quase impossível delimitar as frontei­ ras da arena política, porque à primeira vista se trataria de sociedades muito inorgânicas e reguladas por sistemas legais instáveis e de baixa legitimidade com atores sociais e políti­ cos fragmentados, desestruturados e, aparentemente, incons­ tantes. Algo muito pouco condizente com a hipótese das “expectativas racionais”. As organizações partidárias, quando existem, parecem se reproduzir de forma fluida e regionalizada, segundo uma di­ nâmica que pouco tem a ver com suas estruturas internas e seus programas doutrinários. Suas bases sociais se fragmen­ tam e reunificam, sem que homogeneizem numa ação orgâ­ nica uma vontade política capaz de fincar raízes nos interesses das classes fundamentais. Em decorrência, os atores políticos dificilmente representam interesses nítidos, aparecendo, em cada conjuntura, sob a forma de grupos e claques que se refa­ zem ao sabor de objetivos que, no mais das vezes, encontram no próprio Estado sua base material. E isso porque esses gru­ pos se ramificam no interior do aparelho do Estado, fragmen­ tando-o e paralisando-o, numa luta sem quartel em torno de suas decisões e políticas. Nessas sociedades, as pequenas “confrarias” — estatais ou privadas, militares ou civis, legais ou ilegais — podem adqui­ rir uma preeminência que não corresponde à sua força “real” na condução de determinadas conjunturas políticas. Na me­ dida em que tenham sob seu comando parte dos meios de comunicação social, podem transformar um mundo de sus­ peitas e sussurros na realidade política de toda uma nação. Na medida em que o sistema de informação e comunicação substi-

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tui o sistema partidario clássico, faz-se ainda mais decisiva a in­ fluência das idéias e valores que, gerados mundialmente, articulam-se por sobre as fronteiras nacionais, criando e movendo grupos que orientam suas expectativas e ações segundo horizontes transnacionais. Por isso, todas as conjunturas incluem uma rede de canais intercomunicados que, superando as fronteiras nacio­ nais, envolvem um complexo sistema de filtragens por intermé­ dio do qual se definem interesses, nascem e morrem grupos e são tomadas as principais decisões políticas. Aqui, contudo, situa-se o grande paradoxo. De certo pon­ to de vista, todas as dimensões sucintamente resenhadas inviabilizariam qualquer esforço para pensar recorrências que organizem o espaço e o tempo político dessas sociedades, porque estariam ausentes quase todos os requisitos de esta­ bilidade, minuciosamente examinados por Max Weber. E, no entanto, parece-nos, ao contrário, que elas apresentam uma sólida, ainda que “heterodoxa”, estrutura política, que é tam­ bém estável em seus mecanismos de dominação. Ainda mais, desenham, em seu desenvolvimento político, movimentos cíclicos fortemente recorrentes, através dos quais se materia­ lizam inequívocas tendências de longo prazo. Como explicar esse fenômeno que escapa às previsões de qualquer teoria sobre a estabilidade das instituições e expectativas políticas? Nos países da periferia capitalista que lograram se industria­ lizar, o Estado, ademais de suas funções comuns aos outros paí­ ses, assumiu outras — novas — que lhe conferiram um estatuto absolutamente inusitado. Nestes países, o Estado não apenas organiza e defende economias nacionais que se oligopolizaram, como assume o próprio comando do processo de desenvolvi­ mento, passando pela indução necessária de uma industrialização acelerada. Além disso, dado o caráter periférico de tal indus­

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trialização, ocorrida sob a égide dos países centrais e com estru­ turas produtivas altamente internacionalizadas, cabe a esse Esta­ do, ainda, uma outra função: a de gerir a inserção desses países no sistema econômico mundial, articulando os interesses inter­ nos e externos às suas fronteiras geográficas. Em suma, nesses casos, cabe à ação estatal a múltipla tarefa de promover o crescimento, administrar o ciclo econômico, disciplinar a distribuição social da riqueza e comandar a inser­ ção mundial dos interesses nacionais, o que outorga a esse Es­ tado uma posição decisiva na reprodução econômica, social e política daquelas sociedades. Tensionado por essas funções, muitas vezes divergentes, agiganta-se a sua estrutura, debru­ çando-se o Estado sobre a tessitura social, encapsulando os in­ teresses embrionariamente existentes nela. Sua intervenção e sua política econômica, em particular, definem os objetivos de curto e longo prazos da sociedade como um todo, decidindo acerca de seus planos estratégicos e táticos de implementação. Aqui, mais do que nos países centrais, é a política econômica que estabelece os horizontes coletivos, organizando, em torno do seu processo de decisão, todos os momentos conjunturais, assim como a multiplicidade infinita de atores, com seus inte­ resses e expectativas heterogêneos. E o Estado quem define o problema central de cada mo­ mento, balizando as expectativas de atores que só adquirem sua organicidade e racionalidade quando pensados no movi­ mento interior desse Leviatã — gigantesco e frágil a um só tempo. Dentro dele germinam interesses e grupos heterogê­ neos; tantos quanto as arenas onde se desdobram os seus con­ flitos políticos. Em síntese, para uma visão eurocêntrica do conceito de sociedade civil, tudo, dentro dessas sociedades, parece caóti-

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co e imprevisível. Nelas não existem, organizações partidárias ou sistemas de representação ao estilo dos modelos europeus ou norte-americanos. Mas quando se olha para estas mesmas sociedades de um ângulo que reconheça suas especificidades e privilegie as formas de convivência e luta no âmbito do Es­ tado — reconhecendo também sua articulação em torno ao traçado da política econômica —, ciclos econômicos e ciclos políticos se interpenetram, segundo uma tendência onde a temática ideológica e as crises políticas reencontram seu lu­ gar e suas recorrências.

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Ciclo e crise

Um debate revisitado O debate teórico e histórico sobre o papel do Estado no de­ senvolvimento capitalista periférico segue inconcluso. O Es­ tado latino-americano, em particular, tal como foi visto pelo positivismo progressista do século passado e revisto por vá­ rias tendências político-ideológicas e teóricas deste século, reaparece, ao final desta longa caminhada, como uma incóg­ nita. A maior parte da reflexão desenvolvida ao longo deste tempo obedeceu muito mais a objetivos doutrinários ou es­ tratégicos do que a parâmetros científicos. O Estado aparece, quase sempre, como parte de um discurso normativo, ou como dedução lógica de um discurso político, quando não como um “ente epistemológico” exigido pelas estratégias de desenvol­ vimento econômico. Mais recentemente, entretanto, sobre­ tudo depois dos anos 60/70, como resultado da decepção com o desenvolvimentismo e sob o impacto dos golpes militares e regimes autoritários, o Estado passou a ocupar uma posição de destaque na pesquisa e interpretação da especificidade his­ tórica latino-americana.

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Foi neste período mais recente que foram mapeados, des­ critos e analisados vários aspectos, dimensões e problemas fundamentais do padrão de desenvolvimento capitalista, nos principais países do Continente. Traços comuns que, ainda que não apareçam sistematizados por uma visão teórica única e consistente, permanecem como descrições parciais, que de­ verão estar presentes inevitavelmente numa futura leitura do seu significado e de suas tendências conjunturais. Faz parte destas descrições e análises o estudo sobre o ca­ ráter excludente, hiperconcentrador e estruturalmente hetero­ gêneo de um capitalismo que se constituiu de modo retardatário e se industrializa internacionalizando sua estrutura produtiva. Daí viriam sua dependência externa e suas tendências ao desem­ prego estrutural, aos desequilíbrios macroeconômicos e a in­ flação crônica; como também, seus traços sociológicos mais marcantes, como a marginalidade social, a carência de integração nacional, a estrutura de classes pouco nítida e a existência de atores sociais fragmentados, desestruturados e, aparentemen­ te, inconstantes. Nesta mesma lista devem ser incluídos os estudos sobre a instabilidade e pouca legitimidade dos sistemas legais e das instituições políticas; sobre a importância das bu­ rocracias civis e militares e sobre os “anéis” que articulam estas burocracias com os interesses econômicos mais poderosos; sobre as formas partidárias quase sempre fluidas e regionalizadas e sobre as relações “populistas” de certos setores das elites com as massas populares e, sobretudo, com os segmentos que, mantendo-se à margem do sistema produtivo, escapam à or­ ganização sindical e permanecem disponíveis aos apelos emo­ cionais de lideranças carismáticas. Agregaríamos, finalmente, a constatação de fortes tendências ao regionalismo e à fragmen­ tação, por um lado, e, por outro, como resposta, a uma centra­

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lização autoritária que teve, quase sempre, nos militares os seus principais defensores. Por fim, tem sido objeto de alguns es­ tudos a questão do avanço da internacionalização das relações econômico-fmanceiras e do impacto da bipolarização imperial do controle da guerra sobre a soberania nacional dos países pe­ riféricos. Todos estes são temas foram amplamente discutidos pelo pensamento social latino-americano das duas últimas dé­ cadas. O problema não está aí, mas na inconsistência entre al­ gumas destas interpretações e sistematizações teóricas. De um lado, estão os estudos que tomaram o caminho histórico-comparativo para escapar à circularidade do raciocínio funcionalista e do etnocentrismo das teorias “modernizantes”. Uma estratégia de pesquisa correta, mas que ficou muitas ve­ zes prisioneira do seu desejo de encontrar uma especificidade ou referência comum que, em última instância, remete de novo ao modelo dos países desenvolvidos, seja no caso dos estudos que adotaram renovadas formas de economicismo, seja no caso dos estudos que seguiram a trilha aberta pela tese da “autono­ mia relativa” da política. Repõe-se, assim, por novos caminhos, os velhos vícios embutidos na visão “arquitetônica” das relações entre a economia e a política. Esta última aparece, quase sem­ pre, enquanto algo “externo” ou “posterior” a uma infra-estru­ tura, onde a economia é definida de forma excessivamente estreita, esvaziada de seu conteúdo sociopolítico. Em outros casos, em particular nas várias versões da “teo­ ria da dependência”, a dificuldade central, não está nos seus postulados metodológicos, mas na desconexão analítica entre suas interpretações econômicas e políticas. Esta desconexão foi o resultado da tentativa frustrada de fazer uma releitura da interpretação econômica “cepalina” a partir de uma visão que privilegiasse a dinâmica das classes, do Estado e mesmo

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do imperialismo. Como estas duas visões partem de premis­ sas teóricas diferentes, não é de estranhar que a maioria dos estudos sobre a dependência tenha ficado com a marca do ecletismo. Quando o “modelo” cepalino foi criticado corre­ tamente, dando lugar a uma nova visão da história econômica brasileira, lida na forma de um movimento “endógeno” de acumulação, esta leitura não conseguiu integrar no seu esque­ ma analítico a ação e as transformações do Estado dentro des­ te processo de acumulação. Numa outra direção, aparecem os estudos inspirados pelo estruturalismo poulantziano, que estava em evidência nos anos 70 e defendia a “autonomia relativa” da política e do Estado. Acabaram desembocando quase sempre em pesquisas sobre “mecanismos decisorios”, referidos de forma muito longín­ qua à “acumulação de capital”. Assim, uma vez mais inverten­ do a mesma lógica, a acumulação aparecia como um deus ex machina, sem que se conseguisse mostrar por qual via ela se desdobrava, contraditoriamente, enquanto conflito e poder, em formas historicamente concretas. Em conseqüência disso, ainda não se logrou responder, de forma teoricamente consistente, à questão fundamental que move, há décadas, o pensamento social e político latino-ameri­ cano, em torno da especificidade do seu capitalismo. Pelas mesmas razões, tampouco foi possível esclarecer o papel e a forma de seus Estados e, ainda menos, a dinâmica de suas trans­ formações. Para isso, em nosso entender, impõe-se, prelimi­ narmente, uma mudança de perspectiva, uma “reangulação” no tratamento das formas, econômica e política, das relações de dominação burguesa, que devem ser vistas agora como “proces­ sos que se geram dentro de uma mesma cápsula”, nas palavras de R. Rosdolsky (1976, p. 63). Nessa direção, cremos ser possível

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alinhavar, na linha de alguns marxistas contemporâneos, um outro ponto de partida que permite uma releitura mais fecun­ da da problemática latino-americana, a partir da especificidade das leis gerais capitalistas em condições periféricas de realiza­ ção e, muito em particular, em alguns de seus espaços nacio­ nais de acumulação.

Um modelo alternativo A principal dificuldade desta “releitura marxista” foi sinteti­ zada pelo alemão a J. Hirsch, (...) the theoretical investigation of the State cannot be limited to the conceptual development ofthe lawof valué and the analysis of “capital in general” but must embrace the whole ofthe social, political and national conditions of the production of the social formation, conditions which are subject to certain historical processes of transformation (1980, p. 82). A novidade dessa proposta está em considerar as relações de luta e dominação política como co-constitutivas do próprio Capital, que se valoriza e se expande de forma contraditória, produzindo e reproduzindo, suas relações econômicas e políticas num só processo histórico-concreto. As formas institucionais do próprio Estado seriam explicadas pela luta entre as classes e suas frações e pela competição entre os vários capitais individuais, implícitas no mesmo processo de valorização. E as crises políticas seriam em parte resultantes dos conflitos que empurram e limitam a eficácia da intervenção econômica e política do Estado, no pro­ cesso social da valorização do Capital.

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Como conseqüência, é impossível deduzir uma teoría do Estado a partir de urna lei cuja eficácia passa, também, pelo próprio Estado. Ao contrario — e ai reside a dificuldade —, a proposta é que se pense o Estado como dimensão do capital em geral e a valorização como um processo econômico e po­ lítico, a um só tempo. Em função disso, inevitavelmente, as leis do capital e de sua valorização adquirem e readquirem universalidade, tão-somente no âmbito dos variados proces­ sos histórico-concretos, onde as lutas sociais e políticas me­ diadas pelo Estado. Atribui-se, assim, papel central à ação político-econô­ mica do Estado, que, em geral, é vista — de forma semán­ ticamente incorreta — como uma intervenção que responde a determinadas funções. Mas descartam-se, de uma só vez, as visões instrumental e estruturalista do Estado e, com elas, as propostas deducionistas. Estado e economia são vistos aqui enquanto formas da relação capitalista e, portanto, devem ser pensados em conjunto; pensados sob a perspec­ tiva da necessidade, dos limites e da forma da ação estatal nos vários momentos e contextos do desenvolvimento ca­ pitalista, aí incluídas, suas conformações tardias e perifé­ ricas. Caberia aqui outra advertência de Hirsch: (...) the investigation of State functions must be based on the categorial analysis of the historical course of the process of capitalist reproduction and accumulation; it must be borne in mind, however, that this is not a question ofthe logical deduction of abstract laws but of the conceptually informed understanding of a historicalprocess in which the objective tendencies determined by the lawofvalué and the capital relation assert themselves through

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the mediation of concrete political movements and processes, class struggles and conflicts between individual capitais and groups ofcapitais on a national and on an intemational level (Idem, p. 82 — ênfases nossas). Deste ponto de vista, se impõe uma rediscussão sobre a natu­ reza da ação estatal em vários momentos e contextos históri­ cos, fugindo às generalizações formais de difícil universalização. Em primeiro lugar, seria importante entender a presença coconstitutiva do Estado na origem mercantil do capitalismo, contexto em que o Estado avalia o valor e a efetividade da mo­ eda e dos contratos, garante a circulação das mercadorias, defi­ ne espaços autônomos e auto-sustentados, assegurando com isso, como é óbvio, a propriedade privada etc. Da mesma for­ ma erq que se deve repensar o papel do Estado como garantidor do “interesse geral”, da eqüidade do intercâmbio e da desigualdade nas relações de produção. Assim como seu papel específico no desenvolvimento dos capitalismos tardios euro­ peus, onde cumpriu função decisiva na criação dos espaços na­ cionais unificados e na generalização das relações capitalistas. Ou, mais tarde, quando a monopolização do capital se generalizou em escala mundial, dando lugar ao aparecimento do Estado regulador ou de controle inspirado ou racionalizado por Keynes, nos países centrais. A partir deste momento, o intervencionismo estatal foi assumido pela “boa doutrina”, gerando o que alguns viram como um “capitalismo monopolista de Estado” e outros como um Estado do Bem-Estar Social. Essa presença constante, porém descontínua, do Estado deve ser revista à luz dos cursos históricos da reprodução e acumulação, de modo a conferir-lhe algum significado teóri­ co ou permitir-lhe lastrear uma análise comparativa. Esta re­

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visão requer uma correta reconstrução dos movimentos e conflitos que tornaram a presença estatal uma necessidade “naturalizada”, muitas vezes, sob a forma ou conceito de “funções estatais”. Aliás, essa tarefa exigiría um abandono da própria idéia de função, que, inevitavelmente, transmite a imagem de um comportamento orgânico de uma parte (o Estado) que res­ pondería às exigências mutáveis de um todo (a acumulação capitalista). E não é disso que se trata. O Estado foi e é, em cada momento e contexto, co-produtor da necessidade e, portanto, da função que ele acaba ocupando, tal como se fos­ se um “agente reativo” bem-comportado. Ao procedermos à análise deste tema da maior relevân­ cia sem uma releitura económico-política da história concreta do aparecimento dessas funções, cairemos sempre numa listagem formal e histórica de papéis a serem cumpridos de modo compulsório pelos vários Estados, nas diferentes “eta­ pas” do desenvolvimento capitalista. É nesta perspectiva que devem ser pensadas teoricamente tanto a expansão contínua da presença estatal — em particular depois de 1914 — , quan­ to a hegemonia ideológica e prática do “intervencionismo keynesiano”. O que testemunhamos, nesse período, não foi o cresci­ mento de um Estado administrador neutro, nem, tampouco, o de um mero instrumento do capital monopolista. Mas sim de “un viraje en las reglas del capital, impuesto al mismo capital por

la presión de la lucha de clases, que expresa las contradicciones de su propria dominación; un cambio deforma de la lucha estructuralmente crítica del capital por la acumulación; un cambio que no es necessa­ riamente irreversible” (Holloway & Picciotto, 1980, p. 93). O que ocorre depois da Primeira Guerra Mundial é tributário dos desdobramentos dessa luta pela acumulação, cujos prin-

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cipais parâmetros foram definidos como resposta à Grande Crise de 30, que está na origem da “virada” de que falam Holloway e Piccioto. Após um longo período de depressão e com a emergência de novas potências os Estados nacionais são obrigados a en­ gendrar mecanismos que objetivam evitar, postergar ou con­ trolar as crises. A partir daí, a própria lógica das decisões tomadas e das tendências históricas daí resultantes foram res­ ponsáveis pela expansão continua do aparato estatal, que teve de crescer para assegurar o adequado cumprimento das no­ vas tarefas definidas politicamente como respostas sociais e nacionais frente à crise econômica. Nesse sentido, a discussão acerca das funções do Estado nos remete, inevitavelmente, ao problema crucial das relações entre as crises econômicas e as crises políticas, porque, como dizem J. Holloway e S. Picciotto: “las crisis n o so n económ icas n i po lítica s: so n crisis de la relación capitalista, crisis qu e se hacen in evita b les p o r ra zó n de las contradicciones in h eren tes a esa relació n” (Id e m , p. 90). Portanto, toda crise implica a irremediável reestruturação da relação capitalista e, portanto, simultaneamente, de suas formas económicas e políticas. Por isso mesmo, é nas crises que mais se explicitam as contradições e se agudizam os conflitos. É também esse o momento em que as decisões vitoriosas inovam as estruturas e seu movimento cíclico de reprodução e expansão no desen­ volvimento capitalista de cada sociedade concreta. Devido ao caráter disruptivo e complexo dessas conjunturas em que se redesenham os parâmetros da relação capitalista, “el resu lta d o de la crisis no p u e d e ser a n ticip a d a sobre la ú n ica base de las exigencias d ei ca pital en g e n era l ( ...) (p u es) lo q u e está en ju e g o es u n proceso de lu ch a , u n a lu c h a q u e se re a liza p r iin o r d ia lm e u te en tre el ca p ita l y el

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trabajo pero que, manando de esta, se da también entre los diferentes capitales y lasfracciones de la clase capitalista”. Donde, “la restauración del processo de acumulación dependerá del resultado de estas luchas” (Idem, p. 92) que apontam para uma reorganização de todo o complexo de relações sociais de produção e de dominação e, portanto, também do Estado. Por isso, nas análises das crises e do Estado, o que necessitamos “no es tan sólo un análisisformal

del capital y un análisis empírico del curso de la lucha de clases, sino un análisis que encierre ambos momentos” (Idem, p. 93).

As crises são, portanto, por excelência, o momento em que se repõem ou se refazem as relações entre as formas política e econômica da dominação. E, nesse sentido, elas são, sempre, estatais, ainda quando não impliquem alteração na forma dos regimes políticos, impondo, apenas, uma expansão ou retração na presença ativa do seu aparato no interior das relações de produção. Em síntese, se o Estado se renova permanentemen­ te na reorganização das relações sociais, é no momento das cri­ ses que essa reorganização se faz mais profunda e a inovação é mais radical. Neste ponto, coloca-se um problema mais complexo ain­ da: o da aparente indeterminação histórica e teórica das for­ mas institucionais, ou dos regimes políticos assumidos pelos Estados, nos vários momentos dessa expansão conflituosa do capital. Também aqui não há nenhuma possibilidade de “mecanicismos” ou “deducionismos”, pois é no plano das ins­ tabilidades institucionais que se retrata, de forma mais no­ tória, o caráter contraditório e permanentemente tenso do processo social e político de valorização. São frágeis todas as teorias quando tentam dar conta das transformações e dos regimes a partir de fases ou etapas do

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desenvolvimento capitalista, ou a partir de vias ou caminhos a que estaria submetida toda e qualquer industrialização. N es­ sa linha se inscrevem as idéias a respeito de Estados absolu­ tistas que seriam sucedidos por Estados liberal-parlamentares que, por seu turno, dariam lugar a Estados fascistas ou do Bem-Estar Social. Nessa mesma direção, situam-se as teses sobre revoluções burguesas que gerariam Estados liberais e revoluções “pelo alto, passivas” ou “conservadoras” que, pro­ cessadas através do Estado, dariam nascimento, em conseqüência, a regimes de variado matiz autoritário. Os regimes políticos, assim como as funções estatais, não são coisas que se possam deduzir teoricamente. Mas tampouco as comparações históricas permitem generaliza­ ções conclusivas sobre este tema que envolve processos his­ tóricos7 extremamente complexos de competição e luta entre classes e capitais, nos planos nacional e internacional. Além de uma discussão suplementar, no caso latino-ame­ ricano, sobre o que seja a condição de “periferia” dentro sistema mundial hierarquizado e hegemonizado. Valem aqui as preocupações de Claudia von Braunmühl, quando diz que

“the world rnarket is not constituted by many national economies concentrates together, rather the world rnarket is organized in the form of many national economies as its integral components” (1980, p. 162) e isto porque (...) in the course of the process of accumulation, of the extensión, differentiation and intensification of social división oflabour, ofthe increasingestablishment of international ca­ pital mobility and supranational interpenetration, the unity of the divided complexes of reproduction (i.e., national ca­ pitais), previously established selectively and essentially in

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the sphere o f circulation, coheres increasingly to become a real, unified, global com plexofreproduction (Id e m , p. 165).

“the nation State as a particularforrn should no longer be taken as the level on ivhich the movement of capital is to be analysed" (Idem, p. 163), Sem que estejamos de acordo com sua conclusão de que

acreditamos que C. von Braunmühl aponta para uma dimen­ são decisiva do capitalismo moderno, determinante na com­ preensão de seus desdobramentos periféricos. Ela repõe, numa linha de máxima radicalidade, aquilo que se encontrava insi­ nuado em Bukarin e, mais tarde, em algumas formulações das teorias dependentistas. Mas não incorpora, nesse ponto, a contribuição da teoria da dependência de F. H. Cardoso e E. Faletto, sobre o que sejam o externo e o interno, nas várias etapas do desenvolvimento capitalista latino-americano. Braunmühl introduz acertadamente o problema, teori­ camente não resolvido, do mercado e da acumulação em escala mundial, enquanto marco de referência necessária para a análise de qualquer estado em particular. Por outro lado, aparentemente, desconsidera que os Estados nacionais, ape­ sar da “fragilização” de suas soberanías erodidas, seguem con­ trolando recursos de poder suficientes, do ponto de vista da normatização jurídica dos espaços de acumulação e da sujei­ ção das populações. Isto os preserva enquanto loci onde se desdobram e especificam as lutas de classe e a competição capitalista, mesmo quando ambas incluem interesses fo­ ráneos introjetados por intermédio da internacionalização. A autora tampouco inclui na pauta de suas preocupações o problema da hierarquização desse sistema mundial e, mais importante ainda, a questão de sua hegemonização sucessiva pela Inglaterra e, depois da Segunda Guerra Mundial, por parte

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dos Estados Unidos. Essa omissão é ainda mais significativa, visto que se encontra ai um dos aspectos fundamentais da organização e diferenciação interna das várias historias nacio­ nais latino-americanas. A industrialização dos capitalismos centrais ocorreu sob a égide do padrão inglês de industrialização e de sua hegemonia comercial, monetária e financeira dentro da economia mun­ dial. E é nesse contexto que nasce a América Latina como “periferia”: enquanto fornecedora de alimentos e matériasprimas, em troca dos manufaturados que não produzia. Essa situação se altera durante a fase da competição interimperialista que marcou a crise da hegemonia inglesa, atropelada pelas industrializações americana e alemã, países que se envolveram em prolongada disputa sucessória pelo lugar hegemônico ocu­ pado até então, pela Inglaterra. Esta luta, que passou pela Pri­ meira e Segunda Guerras Mundiais e pela Crise de 30, criou, entre 1914 e 1950, na América Latina, o espaço para o apareci­ mento e o avanço dos “estados desenvolvimentistas”, que irão impulsionar a industrialização, vista neste momento como a única alternativa às restrições impostas pelo contexto inter­ nacional de crise, guerra e retração econômica. Depois da Segunda Guerra Mundial, nasce uma nova or­ dem política e militar mundial bipolarizada, e a economia capi­ talista se reorganiza sob a batuta da hegemonia norte-americana, impondo-se, em todos os espaços onde era viável, um mesmo padrão industrial de produção e consumo. E isso porque, dife­ rentemente da inglesa, a nova hegemonia foi comandada pelos investimentos diretos das grandes corporações multinacionais, que reproduzem os seus padrões produtivos e criam redes transnacionais de interesses dentro das sociedades políticas lo­ cais, acelerando a tendência internacionalizante própria do ca­ pitalismo.

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Nesta nova fase, poucos foram os países periféricos esco­ lhidos pelas decisões de investimento das grandes corporações multinacionais e que lograram levar à frente sua industriali­ zação pesada, ingressando, a partir dos anos 50/60, na catego­ ria que I. Wallerstein chamou de países “semiperiféricos”. Na América Latina, apenas Brasil e México — que haviam sido preparados internamente por decisões implementadas na fase anterior — puderam dar este salto, conduzidos por urna só­ lida aliança entre seus Estados desenvolvimentistas e as gran­ des empresas internacionais. Assim, a partir dos anos 50, já não se pode falar mais de uma periferia latino-americana homogénea, nos seus traços característicos e nos seus problemas. O próprio conceito de periferia se modifica, assumindo novas e inusitadas caracte­ rísticas. Em particular no Brasil e no México assiste-se ao processo de “internacionalização dos mercados internos”, de que falaram Cardoso e Faletto gerando um processo de acu­ mulação endógena marcado pela decisiva presença dos inves­ timentos e interesses externos. Mesmo ai, entretanto, ainda é cedo para referendar a tese de Braunmühl, sobre a morte dos Estados nacionais. O que se assiste é um peculiar pro­ cesso de valorização de capital caracterizado por sua monopolização “precoce” e por sua heterogeneidade estrutural, que dão origem a um sistema produtivo, a um só tempo, in­ ternacionalizado e desintegrado regionalmente. Um Capi­ tal que se valoriza concentrando a riqueza e marginalizando amplos setores da população; e que por isto parece ter urna grande “afinidade eletiva” com sistemas políticos marca­ damente fechados e elitistas. Um Capital, enfim, que de­ pende do aparelho e da ação do Estado para se reproduzir e expandir, determinando um recorte de interesses e urna

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forma de conflito que acabam por bloquear a tendência à equalização das taxas de lucro inscrita na lei do valor, confe­ rindo a essa lei uma versão “desigualizadora”, capaz de reproduzir-se, apenas, através da própria mediação estatal. Aqui, uma vez mais, voltamos ao irrecusável: a necessida­ de de uma análise histórico-concreta que sirva de lastro à re­ flexão teórica. Por isso nos propomos fazer uma leitura preliminar do “caso” brasileiro, que parece ser paradigmático do ponto de vista de sua industrialização tardia e internacio­ nalizada, de sua heterogeneidade estrutural e do seu Estado centralizante e com forte propensão autoritária.

Brasil, um caso paradigmático? Alguns intérpretes acreditam que as sociedades e os Estados la­ tino-americanos viveram dinâmicas e momentos de inflexão rela­ tivamente homogêneos quanto à estruturação de suas economias e à ordenação de suas dominações políticas desde os processos de independência até a crise dos anos 30. Contudo, F. H. Cardo­ so e E. Faletto, em seu trabalho Dependência e Desenvolvimento na América Latim, mostraram como a ruptura do pacto colonial e a formação dos Estados nacionais determinaram uma reordenação político-econômica das sociedades latino-americanas, que segui­ ram trajetórias diferentes, conforme as relações anteriormente estabelecidas com as metrópoles. É daí que estes autores deriva­ ram sua tipologia clássica das sociedades e dos Estados latinoamericanos onde as oligarquias locais mantiveram ou não o controle dos sistemas nacionais de produção. Ainda assim, por ocasião da ruptura do pacto colonial, o Estado brasileiro teria seguido uma trajetória comum à dos

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países que, ao preservarem o sistema local de controle do sis­ tema produtivo exportador herdado da colonia, lograram or­ ganizar alianças políticas internas que permitiram definir as fronteiras e estabilizar urna forma relativamente eficaz de dominação, que assegurava suas relações com o exterior. Esse processo se deu mediante a confederação dos vários grupos sociais e regionais da antiga colônia. Sob essa perspectiva, reveste-se de algum grau de generali­ dade a trajetória seguida pelo Estado nacional brasileiro no seu processo de formação. Entre 1820 e 1870, aproximadamente, através de um difícil movimento de centralização do poder, consolidou-se o Império, sustentado na autonomia local dos senhores do café e do açúcar. Nesse movimento, o período da “anarquia” foi marcado pelas inumeráveis rebeliões locais con­ tra o poder imperial. Foram todas elas derrotadas pelas forças do poder central, mas, sobretudo, pela importância deste em face do problema da escravidão, pedra angular no entendimen­ to da surpreendente unidade lograda, já em meados do século XIX. Assim, se o Império conseguiu se consolidar progressi­ vamente, a partir de 1830, o fez apoiado em sua defesa incondi­ cional da escravidão, mais do que por meio da força de sua Guarda Nacional, recém-criada. A partir de 1850, o Estado imperial pode estabilizar e regulamentar as suas regras de fun­ cionamento, na forma de um regime político parlamentar ex­ tremamente excludente, porém sólido e duradouro. Um lento processo de erosão dessa solidez inicia-se na década de 1870, quando a inserção periférica da agricultura de exportação brasileira no sistema de divisão internacional do trabalho viabiliza a ascensão inconteste do café e dos cafeicultores ao primeiro plano da pauta de exportações — e da polí­ tica — brasileira. Paralelamente, o fim da Guerra do Paraguai

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trazia os militares a esse mesmo primeiro plano, aliando-os à força ascendente do café e às pressões, agora irrecusáveis, da potência (industrial, comercial e financeira) hegemônica na luta pela abolição da escravidão. A própria utilização de mão-deobra assalariada, desde 1870, por parte dos cafeicultores paulistas, já anunciava o solapamento das relações de produ­ ção dominantes e o nascimento de relações mais propriamente capitalistas. Nascem nesse mesmo momento os Partidos Republicanos, rompendo o sistema bipartidário tradicional, responsável pelo funcionamento regular do heterodoxo parlamentarismo impe­ rial, e contribuindo decisivamente para a convergência de for­ ças e propostas que, em 1888, abolem a escravidão, eliminando, de uma só vez, o fator básico de integração nacional e de sus­ tentação da ordem política alinhavada pelo Império. A ascensão das novas forças sociais e políticas, responsáveis pelo longo período de descentralização do poder estatal, que se estendería até a Primeira Guerra Mundial, atingia, então, seu momento decisivo. Entre 1889 e 1898, as novas forças sociais — aí incluí­ da uma crescente população urbana que já não se submetia à dicotomía entre senhores e escravos — se enfrentaram na luta pela definição dos parâmetros de sustentação da dominação política. Esse enfrentamento transparece no conflito entre o jacobinismo dos militares que defendiam o fortalecimento do Estado central como instrumento para a realização das refor­ mas necessárias, e a liberalismo da oligarquia paulista, em par­ ticular, que propunha o respeito ao espírito “liberal-federativo” inscrito na Constituição de 1891. Este conflito está condensado na disputa político-ideológica em torno às regras de organiza­ ção e gestão das várias instâncias locais do poder estatal e às li­ nhas a serem seguidas pelas suas políticas econômicas.

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As dificuldades relativas às ações dos militares no combate às revoltas ocorridas no Sul do país e, mais tarde, na luta contra Canudos, enfraqueceram a proposta centralizante, fragilizando as posições da própria instituição militar. Foi neste momento que se plantaram as raízes da supremacia oligárquica e da hegemonia dos interesses agromercantis ligados ao café. Após os dez anos de instabilidade que sucederam à proclamação da República — e somente após o fracasso de Francisco Glicério na formação de um Partido Republicano que representasse, de forma nacional, os interesses de oligarquias eminentemente localistas, dispersas e clientelistas —, viabilizou-se, por fim, um pacto de sustentação civil ao novo Estado emergente. Com a “política dos governadores” de Campos Salles, dispensava-se na prática a tutela militar através de urna fórmula que, mantida a autonomia federativa das várias oligarquias, ainda assim lo­ grava uma estabilização de sua dominação avalisada por um Estado central frágil, porém estável. Isso, quando obedecidas as regras do pacto que reconhecia a supremacia de São Paulo e Minas, mas preservava o poder relativo das demais oligarquias. Estas eram recortadas através dos vários Estados e dirigidas por seus próprios governadores, com ampla autonomia política e financeira perante o governo central. Portanto, nos termos do acordo propiciado por Campos Salles, os poderes locais e cen­ tral se sustentavam mutuamente, segundo regras de não-intervenção em suas respectivas áreas de influência e atuação. Reconheciam-se as diferenças econômicas e de poder observa­ das entre as diversas regiões, mas, pela primeira vez na história brasileira, assumia-se conscientemente a decisão coletiva de mantê-las e reproduzi-las, como única forma de assegurar a unidade territorial do espaço nacional. Tal unidade não podia gerar integração e, pior do que isso, essa estratégia reforçava a

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heterogeneidade, mas era indispensável para o desempenho econômico e político dos setores hegemônicos. Contudo, o fundamental desse pacto foi impor o predomínio dos grupos agroexportadores capitalistas do Centro-Sul, sem excluir os demais setores de exportação nem, tampouco, o latifúndio de baixa produtividade. Definia-se, assim, uma regra básica de convivência e compromisso que atravessaria toda a história re­ publicana brasileira, condicionando decisivamente a trajetória político-econômica de seu desenvolvimento capitalista. Vários fatores econômicos e sociológicos convergiram no sentido do solapamento da eficácia do pacto oligárquico. A maioria dos autores os distingue já desde os anos 20, mas ga­ nharam ressonância a partir da crise mundial de 1929, na for­ ma de um dissídio intra-oligárquico que, entre 1930 e 1937, consagrou o início de uma nova etapa econômica e política da história brasileira. Essa nova fase se caracteriza por um conti­ nuado movimento de centralização do poder pelo estado cen­ tral, tendo como contrapartida o esvaziamento dos estados federados e do poder de seus governadores. Naquele período, veio a vitória da Aliança Liberal, que congregava frações oligárquicas secundárias e populações ur­ banas desejosas de maior participação política. Mas suas propostas foram rapidamente transformadas em seu exato oposto, quando teve de abrir espaço para o avanço das te­ ses centralizantes, propugnadas, desde havia muito, pelo jacobinismo militar. Aqui começam as grandes divergências de interpretação sobre a verdadeira origem e natureza do processo que abriu os caminhos para uma industrialização brasileira, comandada ou induzida pela decisão e iniciativa estatais. Os processos políticos mencionados, tanto quanto o da industrialização e o

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do papel do Estado, sempre atraíram a atenção dos historia­ dores e dos cientistas políticos. Entretanto, até hoje, não se logrou articular as suas várias dimensões, o que dificulta urna visão conjunta de suas raízes contradições, crises e tendências. Por isso, tentaremos uma interpretação conjunta daque­ les fenômenos, reconstruindo, a partir daí, a periodização tra­ dicionalmente proposta para a nossa história republicana. Através dela queremos localizar a linha central do movimen­ to que, irrompendo nos anos 20/30, alcançou nossos dias. Queremos identificar a contradição fundamental que expli­ que a sua necessidade, dinâmica e limites, a partir de sua pró­ pria expansão. Queremos, ainda, observar em particular as transformações do Estado e sua intervenção econômica à luz de uma visão teórica onde a economia e a política apareçam como formas de dominação, inseparáveis do conceito e do desenvolvimento histórico do Capital. Em outras palavras, pensar os movimentos das estruturas econômicas e políti­ cas no contexto de um único processo de reprodução e acu­ mulação do capital, viabilizado pelas lutas e compromissos políticos consagrados nas várias formas assumidas pelo Es­ tado brasileiro. E tentar esclarecer, a partir daí, a origem, vigência e limites daquele que ficou conhecido como o Es­ tado Desenvolvimentista, peça central do que chamamos

padrão politizado de acumulação.

Com essa perspectiva em mente, limitaremos nossas ob­ servações ao período posterior à Primeira Guerra Mundial, simplificando e abstraindo, preliminarmente, os sinuosos ca­ minhos da história factual. Concentraremos, assim, nossa aten­ ção naqueles ângulos e momentos em que são geradas ou se explicitam as decisões e as inflexões responsáveis pelo movi­ mento que, do nosso ponto de vista, homogeneiza estrutu-

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raímente o tempo histórico brasileiro, recortando-o na for­ ma de um longo ciclo, impulsionado por uma tendência que se desdobra, consistente, ainda que de forma contraditória, entre a Primeira Guerra Mundial e a crise dos anos 70/80. Esse período de 60 anos esteve marcado por urna notoria concentração e centralização do poder no Estado central, séguindo uma direção exatamente contrária à do período ante­ rior. Essa concentração-centralização esteve estreitamente ligada à ampliação do papel econômico desempenhado pelo Estado na regulação e condução da acumulação. Tal interven­ ção foi responsável pela ampliação continuada da burocracia estatal e, em particular, de seu aparelho econômico, dando lugar ao aparecimento de uma tecnoburocracia ligada a um modo de gestão quase sempre autoritário da máquina estatal. Tudo isso parece óbvio e é consensual nas análises e inter­ pretações dominantes acerca do período. Entretanto, a ques­ tão não está na reafirmação do que já é consensual, e sim na necessidade de explicar de que modo esses vários fenômenos se imbricaram — de forma necessária e segundo uma tendência entrópica — a partir das lutas que moveram a acumulação capitalista durante aquele ciclo. Com esse objetivo, investigamos e localizamos cinco momentos político-econômicos que reputamos fundamen­ tais na resposta àquela questão. Cinco conjunturas de crise onde se explicitam, de forma mais nítida, as decisões que, vitoriosas nos vários conflitos, se impuseram como ação e contribuíram para a definição dos parâmetros estruturais e das tendências de seu movimento. Nelas se condensam os constrangimentos, conflitos e decisões responsáveis pelo que, desde o seu íntimo, se gesta como a necessidade futu­ ra. É nestas conjunturas críticas que se tornam mais nítidas

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as contradições do desenvolvimentismo brasileiro e a natu­ reza de suas várias crises. Contradições que apontam todo o tempo na direção de uma entropia desta forma peculiar de valorização do capital, que teve no Estado desenvolvimentista seu principal organizador. Do nosso ponto de vista, a crise e ruptura do pacto oligárquico começam nos anos da Primeira Guerra Mundial. A partir daí, nos anos 30, 50 e 60, sucessivas crises políticoinstitucionais e financeiras marcarão o compasso das suces­ sivas reformulações do compromisso que lastreou a “política dos governadores” e cujo espírito manteve-se, em grande medida, durante as décadas seguintes. Nessa perspectiva, a crise dos anos 70/80 vem representar um quinto e último mo­ mento em que são questionadas as regras e o próprio espí­ rito dos pactos anteriores. Durante esses 60 anos, a cada nova oportunidade observa­ se o avanço permanente de um processo de urbanização acom­ panhado do crescimento de novos setores medios, da classe operária e de uma massa de desempregados e semi-empregados reunidos no fenômeno da marginalidade urbana. Mes­ mo não havendo dúvida de que esse processo foi constante, é óbvio que seu impacto sobre a dinâmica da luta política va­ riou através do tempo. N o essencial, entretanto, ele foi res­ ponsável por um conjunto de reivindicações, postas e repostas a cada momento, em torno à expansão do espaço de partici­ pação política e à necessidade de uma melhor distribuição da riqueza nacional. Esse adensamento das necessidades e a complexificação da textura social confrontaram, permanente­ mente, os grupos dirigentes das classes dominantes com o problema da construção de uma ordem política aberta que atendesse, sobretudo, às demandas dos setores médios e po­

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pulares das grandes cidades. As demandas crescentes das mas­ sas, por seu turno, defrontaram-se, sistematicamente, com um padrão de desenvolvimento concentrador da renda, com baixos níveis salariais e vastos bolsões de miséria absoluta em certas regiões do interior do país e na periferia das grandes metró­ poles. Esse padrão de desenvolvimento excludente manteve, ao longo de todo o período, uma estrutura extremamente hete­ rogênea e fragmentada do ponto de vista social e regional. Tal fragmentação, permanentemente reproduzida e ampliada pelo padrão dominante de acumulação, foi responsável, sociologi­ camente, pela pouca nitidez e homogeneidade dos interesses dos dominados, e pela inorganicidade política de seus vários grupos e frações. Essa desorganização, contudo, nunca ajudou a diminuir o pânico das classes dominantes frente ao avanço das reivindicações populares, que sempre foram vistas como uma ameaça à ordem capitalista vigente. Nesse sentido, os compromissos firmados entre os vários setores da classe dominante não puderam se furtar, jamais, às dificuldades crescentes de estabilizar um sistema político aber­ to, com amplos segmentos penalizados e disponíveis ao ape­ lo de lideranças populistas. Tais segmentos conservaram o poder potencial de influenciar — desequilibrando ou alteran­ do — quaisquer correlações de forças pactuadas e que bus­ cassem se legitimar pela via de um voto que se universaliza de forma deficiente a partir de 1933, quando é estendido a menos da metade da população adulta. Pressionadas de forma permanente por essa ameaça vinda de baixo e pela sua própria heterogeneidade interna, as várias frações nacionais ou regionais da classe dominante apelaram

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recorrentemente à repressão e fizeram do desenvolvimento uma necessidade imperiosa de sua própria sobrevivência. As duas faces desse problema se colocam de forma mais aguda e encontram, em um mesmo momento — a crise con­ temporânea à Primeira Guerra Mundial — , os caminhos de sua peculiar solução: uma permanente “fuga para frente”: a busca do crescimento econômico como forma de não enfren­ tar seus conflitos internos e as reivindicações populares por uma democratização da terra e da riqueza. Não é de estranhar, por isso, que nas demais crises que destacamos tenham sido recolocados o mesmo problema — a necessidade imperiosa de crescer, aumentando a capacidade produtiva — e as mes­ mas divergências em torno às formas possíveis de seu finan­ ciamento — nacional privado, estatal ou estrangeiro — e em torno aos caminhos aceitáveis para obter um adequado aten­ dimento das necessidades básicas das populações mobilizadas pelo desenvolvimento. Temas e problemas recolocados recor­ rentemente por um debate político-ideológico que, perpassan­ do o período e exacerbando-se nos seus momentos de crise, abordou sempre o papel do Estado e dos capitais nacional e estrangeiro e as reformas estruturais, que tiveram na questão da terra o seu ponto nevrálgico. A Primeira Guerra Mundial, que sinaliza o fim da hege­ monia inglesa, foi responsável por um forte abalo em nossa economia de exportação e na capacidade de importar, afetan­ do, em conseqüência, nossos mecanismos internos de finan­ ciamento e o padrão de vida das populações dependentes das atividades agromercantis e urbanas ligadas ao comércio inter­ nacional.

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Diversos fenómenos, se tomados no seu conjunto, sinali­ zam uma crise decisiva e a erosão e ruptura da confederação oligárquica pactuada por Campos Salles. Dentre eles mencio­ naríamos: as pressões sociais, manifestas nas greves operárias e nos quebra-quebras que sacudiram Rio de Janeiro e São Paulo em 1917 e 1918; a surpreendente votação urbana obtida por Rui Barbosa nesse mesmo momento; a intensificação dos conflitos intra-oligárquicos explicitados, de forma mais clara na eleição tensa e no governo repressivo de Arthur Bernardes; além da sublevação tenentista que irrompe a partir de 1922 dividindo os militares. Mas, simultaneamente, estes episódios dinamizam um prolongado processo de redefinição dos no­ vos rumos a serem trilhados, a partir de então, pela econo­ mia, pela sociedade e pela política brasileira. N o epicentro dessa redefinição, matriz do impulso ori­ ginário do longo ciclo que desejamos analisar, situa-se um acontecimento que passou desapercebido para a maioria das interpretações: o desatrelamento da moeda brasileira de qualquer padrão hegemônico internacional. Com o fim do padrão ouro que, em sua falência, acompanha os estertores da hegemonia inglesa, nossa moeda adquire uma autonomia, preservada de fato até os anos 80, que delegará ao Estado a função inédita de arbitrar discricionariamente sobre o valor do dinheiro no mercado interno. No momento em que as dificuldades econômicas associa­ das à guerra diminuíam a lucratividade do setor externo e contribuíam para o adensamento das pressões sociais vindas de “baixo”, a crise da hegemonia inglesa e de seu padrão mo­ netário inseria um elemento decisivo para o desequilíbrio do pacto oligárquico. E isto porque, transferido para o Estado o poder de arbítrio sobre o valor do dinheiro, para ele também

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se transferia o poder de definir as margens de rentabilidade esperada e de distribuir a massa de lucros, entre os vários setores e capitais, segundo uma lógica que se afasta do mer­ cado internacional e se enraíza, cada vez mais, no plano puro e simples do poder. Trata-se do poder político de cada fração exportadora, de cada oligarquia e de cada região. Além disso, expande-se a capacidade de estabelecer e trans­ ferir fundos necessários para os gastos e investimentos autô­ nomos do Governo Central na criação da infra-estrutura ou do capital social básico, ou seja, na gestação das “condições gerais externas” requeridas pelo processo de acumulação ca­ pitalista. Com isso, foram gestados simultaneamente o pro­ blema e as condições que vieram a ser propostas para o seu enfrentamento. Em face dessa nova realidade, compreende-se que tenha se tornado inviável a “confederação oligárquica”, tal como era con­ cebida na Constituição de 1891 e alinhavada na “política dos governadores”. Caso se mantivesse o velho poder dos estados federados numa nova situação em que o estado tivesse poder de arbitrio sobre o valor do dinheiro, o mais provável é que tivesse ocorrido uma desagregação da unidade nacional, com a multiplicação de espaços econômicos capazes de gerirem de forma autônoma suas moedas, normas e leis. A centralização do poder no nível federal impunha-se como exigência da pró­ pria unidade territorial do espaço de dominação e acumulação. Mas, ao mesmo tempo, as regras anterio res tornam-se letra morta e assiste-se a uma luta aberta em torno a esse novo po­ der estatal, envolvendo oligarquias, grupos e capitais com po­ deres diferenciados e hierarquizados. Sob essa perspectiva, talvez, devam ser pensados os con­ flitos que marcaram a retomada das lutas intra-oligárquicas,

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determinando uma eleição competitiva em 1922, uma gestão autoritária por parte de Arthur Bernardes e urna reforma centralizadora da Constituição Federal, em 1926. Fenómenos estes que antecipavam de forma muito nítida o dissenso cris­ talizado nos episodios de 1930. Já são deste período a primei­ ra decisão federal favorável a valorização política do café e o estabelecimento da obrigatoriedade do aval federal para a obtenção de empréstimos externos por parte dos estados. O Estado acumula, assim, poderes inéditos devido a urna situação externa e através de uma delegação das oligarquias, que alteram seu padrão tradicional de comportamento, bus­ cando assegurar, agora, a reprodução político-econômica de seus interesses, através de uma “desigualação política” das ta­ xas de lucros. Esta permitiría a preservação de suas condições diversas, expressas em sua desigual produtividade e poder de mercado. Como resultado, assegurava-se, desde o início, um enorme espaço para a obtenção de ganhos improdutivos e o estabelecimento de prioridades caóticas, do ponto de vista do desenvolvimento da capacidade produtiva nacional. Mantevese e se reforçou, assim, uma heterogeneidade estrutural que tendería a desaparecer no caso de uma eventual equiparação pelo mercado das taxas médias de lucros. Fica nítido, desde o início, o peso das relações políticas de classe no processo de valorização do capital, a partir do momento em que o valor da moeda brasileira se desvinculou do Padrão-Ouro. Logo depois da Primeira Guerra, por outro lado, deu-se também a primeira onda de investimentos externos e de insta­ lação de filiais norte-americanas e européias, em menor escala, no espaço econômico nacional. Empresas manufatureiras que contribuíram decisivamente para o início do processo de diver­ sificação da estrutura industrial brasileira. Essa instalação ainda

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se dá de forma subordinada às outras órbitas nacionais do capi­ tal, sobretudo mercantis. Define-se ai um pacto implícito, re­ gulado pelo Estado, que passa a estabelecer as regras de expansão solidária das várias órbitas de capitais de procedências diversas. Reservou-se aos capitais nacionais as órbitas não industriais de valorização, garantindo-lhes, porém, que sua rentabilidade não seria inferior à da órbita industrial (Lessa, C. e Dain, S. In: Belluzzo & Coutinho, 1983, vol. 1, pp. 214-228). Dessa forma, inaugura-se um novo padrão de acumulação, premido pela crise e pela Guerra Mundial, pelas dificuldades correlatas de nosso setor exportador e pela chegada dos pri­ meiros capitais industriais estrangeiros, conferindo ao Esta­ do a função de assegurar — no uso de seus novos poderes — certas regras básicas de valorização, impostas pelo poder po­ lítico das várias frações nacionais e regionais da classe domi­ nante. Com isso, o Estado, ao assegurar a sobrevivência de setores de menor produtividade e rentabilidade real, não ape­ nas propiciava a reprodução de uma ordem econômica e polí­ tica heterogênea, preservando a unidade nacional, como abria as portas à permissividade especulativa de “valorização” de órbitas não industriais. Estabeleceram-se assim as condições que viriam a fortale­ cer e debilitar, a um só tempo, a experiência desenvolvimentista do Estado brasileiro, na medida em o submeteram a um con­ junto de pressões permanentes e contraditórias, equacionadas quase sempre pela via da centralização autoritária. Mas, ao mesmo tempo, estas condições limitaram a eficácia da ação es­ tatal, induzindo uma acumulação capitalista assentada sobre mercados segmentados e com alto grau de heterogeneidade tecnológica. Essa segmentação, por sua vez, ao não assegurar o assalariamento geral da população economicamente ativa, im-

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pedia a formação de uma classe fundamental — o operariado, enquanto classe geral ou nacional. É possível dizer o mesmo com relação às dificuldades de constituição de uma classe do­ minante — a burguesia, cujas várias frações só conseguiam rea­ lizar os seus interesses através do casuísmo do Estado. Assim, apesar do espraiamento das relações capitalistas, estas não tenderam nunca a um padrão geral de valorização, não vigorando, portanto, condições homogêneas de trabalho necessário, preços de produção etc. Desse modo, os setores atrasados das classes dominantes não foram eliminados pelo mercado, nem as populações expulsas da terra puderam in­ gressar no mercado geral de trabalho, sendo obrigadas a re­ produzir-se, “politicamente”, através de um Estado que nelas encontrou, em contrapartida, apoios políticos decisivos. Essa nova realidade teria, contudo, conseqüências igualmente de­ cisivas, pois, ao politizar a competição econômica, transpor­ taria para dentro do Estado uma luta sem quartel e de difícil controle. Ali se disputaria, a cada dia, desde o direito à sobre­ vivência até o “direito” de manutenção de seus subsídios e rentabilidades diferenciados. Disputa responsável pela expan­ são muitas vezes desordenada da intervenção estatal e pela instabilidade cíclica das instituições políticas. A instabilidade do dinheiro teve sempre como sua con­ traface inevitável a instabilidade jurídica das normas e, por isso, o problema do “contrato sobre valor” transformouse, quase sempre, em toda esta história, no problema corre­ lato da indefinição do “valor dos contratos”. À instabilidade produzida pela luta permanente em torno do dinheiro, en­ volvendo setores socioeconómicos com força desigual, só poderia corresponder a contínua insolvencia de qualquer corpo normativo, substituído, no varejo, pelo “casuísmo”

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legal e arbitrario do Estado, única forma de conciliar aqui­ lo que nascia movediço e, periodicamente, inconciliável. A despeito disso, e enquanto contrapartida simbólica obriga­ tória, compreende-se, talvez, a aprovação, em 1916, de nosso primeiro Código Civil (Lei n.°3.071). Chegara a hora da estabilização das regras contratuais. Em síntese, desde a saída do Brasil do Padrão-Ouro, que havia sido a pedra angular em que se sustentava economica­ mente o velho pacto oligárquico, as várias frações da classe dominante ligadas, sobretudo, aos setores agrário e mercantil, fortaleceram com suas decisões o poder do Governo Central, mas, simultaneamente, lhe impuseram as regras de utilização de seu poder. Logravam, assim, um compromisso que, pre­ servando as desigualdades, garantia politicamente a sobrevi­ vência dos setores atrasados da economia nacional e impedia a inevitável centralização de capital que decorrería, de modo implacável, do livre jogo de um mercado com capitais em desiguais condições de competitividade. Em contrapartida, transformavam o Estado em peça fundamental de um desen­ volvimento desigual, ou de uma acumulação “heterodoxa”. E, por isso, em locus fundamental dos conflitos e negociações entre os vários grupos e frações de classe em torno às duas condições fundamentais de uma economia mercantil capita­ lista: o direito e o dinheiro. É escusado dizer que essas transformações não se deram em um só momento. Foram partes integrantes de um processo que se prolonga desde 1915/1916, através das décadas seguintes, até os nossos dias. É importante destacar, contudo, que as forças propulsoras, desencadeadas naquele momento, já continham o germe da direção tendencial assumida pelas contradições em­ butidas no momento da ruptura da “pax oligárquica”.

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Chama a atenção, também, o movimento sincrónico se­ guido pelas idéias políticas conservadoras, durante esses mes­ mos anos. Cresce, assim, a partir dos anos 1910/20, ao sabor das sublevações militares, dos conflitos intra-oligárquicos, dos disturbios sociais e do voto urbano, o consenso programático em torno da proposta de fortalecimento do Governo Central. Com diferentes matizes, gesta-se ali, em berço conservador, o que viria a ser o pensamento-projeto hegemônico das clas­ ses dominantes a respeito do papel a ser cumprido pelo Esta­ do na integração e desenvolvimento nacionais. Enraizado nas convicções positivistas que apaixonavam nossas elites, o novo projeto defendia a imperiosa necessidade de que o Estado assumisse a função de integrar uma sociedade brasileira atra­ sada e fragmentada. Corporativo ou não, as várias versões desse pensamento convergiam na defesa de um inevitável autoritarismo, deixando para o pensamento liberal as causas “impopulares” de defesa das oligarquias regionais e de seu poder local. Neste ponto, a ideologia-política conservadora captava melhor as mudanças e as necessidades da realidade brasileira propondo um caminho mais adequado à nova situa­ ção internacional. As reivindicações liberais, lastreadas nos setores médios urbanos e veiculadas pelo ideário de Rui Barbosa, de alguns tenentes e da Aliança Liberal, exigindo uma ampliação da arena política e da participação popular, foram atropeladas pela força de grupos tradicionais. Seus conflitos apontavam, na prática, para uma solução que seria tão-somente viável mediante uma cen­ tralização estatizante do poder, que se incompatibilizava com uma real abertura do sistema político. A importância de que se reveste o controle do poder econômico por parte do Estado e a situação de desequilíbrio e fragmentação entre as várias for­

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ças determinam uma hipersensibilidade do sistema aos desa­ fíos e às reivindicações, mas, sobretudo, ao poder de barganha do voto urbano. Desde o início desse longo ciclo, que se es­ praiará até os anos 1970/80, ficam postergadas as reivindicações liberais. A centralização política, respondendo à não-centralização econômica, mostra-se associada a uma gestão, quase sem­ pre autoritária, dos novos recursos de poder. O que a história posterior demonstraria é que essa solução autoritária não po­ dería resolver — sempre e adequadamente — as contradições que estavam na origem do próprio autoritarismo. Culmina na crise da década de 30 a deterioração do pacto oligárquico, ao mesmo tempo em que ganham espaço algu­ mas novas tendências que haviam se insinuado nos anos 20, mas que só se consolidaram a partir do Estado Novo. A nosso ver, a indicação de Júlio Prestes à sucessão de Washington Luís não representou apenas uma ruptura do acordo do “café com leite”. Significou a mais séria tentativa de ruptura das regras que nortearam todo o compromisso oligárquico. Naquele episódio, São Paulo buscou transfor­ mar em hegemonia política a supremacia econômica que já possuía, consolidando as bases de sua estratégia político-eco­ nômica liberal para o país. A partir de 1930 e, em particular, depois de 1937, o movimento centralizador e autoritário acabou contendo a fragmentação e com isto impediu — mesmo que este não fosse seu propósito explícito — a con­ solidação de uma hegemonia que levasse ao desaparecimen­ to dos elos oligárquicos mais débeis. Desta perspectiva, a década de 30 foi um “momento” de máximo acirramento dos conflitos “destravados” a partir da Primeira Guerra Mundial e exacerbados pelas primeiras ini-

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ciativas estatais no campo econômico em defesa dos interes­ ses da cafeicultura, através do que, criticamente, se denomi­ nou — “socialização das perdas”. O Estado usava ai seu novo poder, deslocando recursos e alterando valores em favor de um dos mais importantes setores regionais exportadores. Ra­ ciocinando em termos dos “interesses nacionais”, compreen­ dia que estes estavam estreitamente atrelados ao futuro do café — e nisso procedia coerentemente. Por outro lado, criava um precedente que se opunha às tradições estabelecidas e assu­ mia plenamente seus novos poderes, desenhando as funções de um Estado que abdicava da debilidade implícita nas regras do jogo oligárquico. Entende-se melhor, assim, de que modo o conflito entre as diferentes frações adquiriu os contornos de um confronto bipolarizado. Unificaram-se em um bloco as oligarquias se­ cundárias, incorporadas as reivindicações urbanas e liberais e aproveitadas as divisões militares — o que tornou possível barrar a ascensão política da burguesia paulista e impor a acei­ tação das regras originais do velho compromisso em torno à reprodução das diversidades e heterogeneidades. As coisas, entretanto, não se mostraram tão simples. Man­ tinham-se vivas e atuantes as contradições que tinham fra­ gilizado o “velho regime”, e o que é pior, seus efeitos haviam sido ampliados pela Grande Crise e pela Segunda Guerra Mundial. Dois acontecimentos que multiplicaram a fragili­ dade externa brasileira, afetando, de forma decisiva e pro­ longada, a capacidade de financiamento gerada pelo setor exportador. Este estrangulamento comercial, somado à in­ terrupção dos fluxos de investimento externo, desnuda uma vez mais, e com muito maior profundidade, os proble­ mas quejá vinham se manifestando desde a Primeira Guer-

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ra Mundial. Assim, com a interrupção de nossas fontes de financiamento e de fornecimento de bens de produção e consumo, numa situação de renovada escassez, reatualizaramse com maior intensidade as mobilizações reivindicatórias da classe operária e dos setores médios urbanos. Além disso, acirraram-se os conflitos político-econômicos intra-oligárquicos, envolvendo agora, ainda que de forma secundária, setores da burguesia industrial, que passam a disputar as mesmas van­ tagens classicamente asseguradas às várias frações agromercantis. Compreende-se a forte instabilidade institucional que, acompanhada da multiplicação das greves, dos partidos e dos conflitos diretos, marcou decisivamente essa primeira expe­ riência relativamente democrática da sociedade brasileira. Basta dizer que, durante aqueles anos, nasceram, da “gelatinosa so­ ciedade civil” brasileira, mais de 200 experimentos partidários. Dois dentre eles, a Aliança Nacional Libertadora e a Ação Integralista Brasileira, chegaram a constituir-se nos primei­ ros movimentos políticos de base urbana e dimensões nacio­ nais conhecidos por nossa história política. Sua dissolução, apoiada na primeira Lei de Segurança Nacional, recém-aprovada em 1935, demonstrou que nossa classe dominante, so­ bretudo quando dividida, não tinha condições de conviver com movimentos políticos nacionais autônomos e, mesmo, de le­ gitimar-se pelo voto popular, que havia sido estendido, em 1933, a toda a população adulta alfabetizada, mas que só foi utilizado, parcialmente, na Constituinte de 1934. O poder das oligarquias agrárias articulara-se, desde sem­ pre, sobre bases fiscais e eleitorais regionais. Os fracassos de Francisco Glicério, em 1893, e de Pinheiro Machado, em 1914, demonstraram que a organização regionalizada da dominação

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política respondia de forma mais adequada à heterogeneidade que se lutava por manter e reproduzir. E a nova realidade si­ nalizada pela ANL e pela AIB, ao apontar para um eleitorado urbano de comportamento desconhecido e não controlável pelos velhos mecanismos do poder local, ou para um poder orgánico que se movia segundo urna lógica que respondia a interesses nacionais, mostrava-se tão ou mais ameaçadora do que a possibilidade de uma hegemonia paulista. De ambos os lados, as velhas oligarquias viam ameaçada sua sobrevivência, no momento em que inúmeras transformações estavam in­ dicando a profundidade da luta em torno a uma fórmula de convivência entre as frações dominantes e, destas, com as clas­ ses populares. Nesse quadro a classe dominante, bipolarizada horizon­ talmente e ameaçada verticalmente por uma verdadeira ex­ plosão da sociedade civil urbana, encontra a sua nova solução de compromisso, que passaria pela industrialização e pelo autoritarismo. Constrangida pelas dificuldades externas, premida pelos conflitos sociais, sem admitir que se tocasse nas bases de seu poder local e sem poder romper o pacto de reprodução da diversidade (ou, com diversidade) a classe dominante reto­ ma a velha estratégia e “foge para a frente”, buscando no cres­ cimento e na centralização estatizante, uma vez mais, a sua solução. Mas, agora, no prolongado quadro de crise, crescer significa, inevitavelmente, industrializar-se e a centralização, num quadro de polarização crescente, só se mostra viável através de um regime autoritário. O pensamento conservador — estatista e centralizante — e algumas das propostas tenentistas foram amplamente contemplados com a proclamação do Estado Novo que, pela

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primeira vez na história brasileira, assumia explícitamente uma posição crítica face às democracias parlamentares e partidárias. A posição programática do Estado Novo nunca foi totalmente nítida. Pelo contrário, recorreu a várias fon­ tes doutrinárias, sempre que elas contribuíssem para justi­ ficar políticas que muitas vezes foram impostas pela força dos fatos. Mas, apesar do discurso conservador dos intelec­ tuais, o regime pouco uso fez de programas e doutrinas ní­ tidos. Ao contrário, parece haver recorrido às doutrinas para racionalizar soluções que obedeciam apenas a uma lógica imposta pelo desdobramento de ameaças e conflitos. Não por acaso, um dos discursos mais explícitamente autoritári­ os de Vargas atacava veementemente os partidos políticos que, nem bem nascidos, já eram vistos como peças burgue­ sas e decadentes, ameaçando a sobrevivência da dominação oligárquica. Simultânea e sintomaticamente, foram descar­ tadas todas as propostas jacobinas encerradas, por exemplo, no discurso de alguns tenentes pedindo a destruição do po­ der oligárquico. Dessas idéias, ficou apenas a queima sim­ bólica e inútil das bandeiras estaduais patrocinada por Vargas. O fundamental, entretanto, é que, em conseqüência de to­ dos esses constrangimentos e mais uma vez compelido a cres­ cer, o Estado atualiza, como nova função sua, o poder de criar e transferir recursos e fundos para gastos e investimentos, ca­ pacitando-se enquanto promotor da industrialização. Nasce, assim, o Estado desenvolvimentista, gestado desde a Primei­ ra Guerra Mundial, impulsionado nos anos 30 e em plena ope­ ração a partir do Estado Novo. Nasce autoritário — como único modo de arbitrar e repor as regras de convivência com a heterogeneidade — e industrializante — como única via de lidar com as restrições externas e fazer face à complexidade crescente e irrecusável das demandas internas.

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Com o estrangulamento comercial e a suspensão do flu­ xo de capitais foráneos, somente o Estado podia, naquele momento, financiar os investimentos que dariam base à acu­ mulação industrial. E nesse sentido que devemos analisar a mudança de rumo que ocorreu depois de 1937 e a preocu­ pação com a criação de uma infra-estrutura e de uma base produtiva autônoma de insumos básicos para a produção in­ dustrial. Nessa direção vai, também, o estabelecimento, apa­ rentemente precoce, de todas as regras de funcionamento do mercado de trabalho, incluída aí a própria organização sin­ dical e da justiça trabalhista. A opção industrializante e a solução autoritária aparecem, assim, ao final de um longo período de instabilidade e conflito aberto no interior da classe dominante, que se estende desde a Primeira Guerra Mundial. Surgem como a nova face da neces­ sidade de crescer e centralizar e como meio de “ultrapassar” as condições postas pela reprodução politicamente forçada da heterogeneidade. A nova fórmula, tendo que assimilar a regra das desigualdades enquanto estratégia de viabilização, acabou prisioneira das mesmas contradições. Isso ocorre com a ação industrializante do Estado que, estimulando o desenvolvimento de uma burguesia industrial, só pode levá-la a cabo através do pacto sinalizado por Lessa e Dain (1983), tendo de incluir um componente adicional em sua já complexa correlação de forças. A nova burguesia indus­ trial estabelece, desde o início, uma relação simbiótica com o Estado, encontrando nele o seü principal instrumento de po­ der e competição. Dependente de seus subsídios e investimen­ tos, a “vontade conquistadora” da burguesia passa, desde então, pela vontade e ação do Estado, no desbravamento das novas fronteiras possíveis para a sua expansão. Competindo por tri-

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butos, taxas, subsidios, gastos, investimentos e créditos, a bur­ guesia industrial inscreve-se, assim, como mais um parceiro e adversário nos conflitos e compromissos que dividem e envolvem as várias frações da burguesia agromercantil e finan­ ceira, até então articuladas politicamente na forma de oligar­ quias predominantemente, regionais. Se é fato que a incipiente industrialização patrocinada pelo Estado Novo viabilizou a manutenção do crescimento econô­ mico, promoveu igualmente o aparecimento de mais um com­ ponente na luta pelo controle de um poder discricionário estatal que se fazia cada vez mais amplo e ativo. O mesmo no que diz respeito à solução autoritária que eleva os militares ao papel de árbitros, em última instância, do novo compromisso estabelecido em 1937. Os militares estiveram associados e patrocinaram essa contraditória expan­ são estatal desde o início, participando decisivamente dos even­ tos de 1930; mas, foi só com o Estado Novo que, no limite da eqüipotência entre as várias frações em luta, eles foram cha­ mados a garantir a eqüidade no seio dos novos poderes esta­ tais. E, nesse sentido, há que reconhecer o seu novo papel também como obra e decisão da classe dominante e não o inverso, como se poderia imaginar. Na verdade, eles se fize­ ram fortes, tanto quanto o Estado, enquanto avalistas de um pacto entre frações heterogêneas de classe e, com isso, depo­ sitários de uma delegação destas mesmas frações. Recorde-se, neste ponto, que a Lei de Segurança Nacio­ nal, de 1935, tanto quanto a repressão à ANL, no mesmo ano, e a prolongação indefinida do estado de sítio, como no gover­ no de Bernardes, foram apoiados amplamente pelos setores “liberais” liderados por Armando de Sales Oliveira. Ainda mais expressivo, talvez, seja o último gesto desse mesmo li-

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beral, tentando conter o golpe getulista: urna carta apelando veementemente à intervenção militar. Naquele momento, em 1937, Vargas, através de Góis Monteiro e Armando de Sales com seu apelo patético, delegava aos militares a função de arbitrar, em última instância, o compromisso instável e beli­ coso estabelecido entre dois grandes blocos oligárquicos. Delegava aos militares, igualmente, a tarefa de administrar uma legislação paralela à Constituição, onde se impunha um interesse nacional arbitrário vis-à-vis as subversivas reivindi­ cações urbanas. E é tão verdade que a primeira LSN obedecia apenas a determinações internas, que ela permite à política externa brasileira pendular, ao longo desse período, entre a simpa­ tia para com o fascismo e suas obrigações hemisféricas. Foi nesse sentido que os militares assumiram a função de ava­ listas de um Estado feito árbitro de um compromisso, aca­ bando, também eles, envoltos na contraditória dinâmica das decisões e conflitos que perpassam o processo de “acu­ mulação politizada”. Assim, se não resta dúvida de que o rigor autoritário do Estado Novo acabou cristalizando de forma polarizada um conflito que antes tinha múltiplas faces, não é menos verdade que também polarizou os militares, dividindo-os e debilitán­ d o o s em seu novo papel. O desfecho do Estado Novo responde, em parte, ao des­ dobramento, cada vez mais complexo, das contradições embu­ tidas nas regras de uma acumulação politizada. A ascensão industrial, o envolvimento dos militares e a expansão do poder e do aparelho de Estado multiplicaram os problemas da condução eqüitativa da heterogeneidade. O panorama global complexifica esse quadro ainda mais, devido ao fato de que o autoritarismo

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estadonovista, simplificando as situações, acabou por aglutinar, de um lado, os beneficiados e, de outro, os penalizados por urna ação estatal que já não lograva dar conta de todas as demandas. A política brasileira adquire nessa conjuntura uma divagem que a acompanha ao longo das décadas seguintes, consagrando-se mais à frente na forma de um sistema, de fato, bipartidário. Avançava-se, aparentemente, na medida em que se cristaliza­ vam como nacionais os interesses favoráveis e contrários à di­ tadura. Mas, na verdade, essa cristalização esconde a tradicional multiplicidade de grupos, frações nacionais e regionais, nova­ mente presentes nos momentos finais do Estado Novo, inter­ rompido, sintomaticamente, por uma fração militar. Militares e industriais agregavam-se como novos sócios e competidores, na busca de renovadas fórmulas de com­ promisso que garantissem as velhas e novas formas de heterogeneidade da sociedade brasileira. E, nesse sentido, o que havia sido solução em uma década, torna-se fator deflagrador de crise na década seguinte. A despeito disso, a experiência autoritária deixou marcas profundas e redirecionou, o conteúdo da tendência de longo prazo e cíclica que estamos pesquisando e tentando descre­ ver. Isso ocorre através da incorporação definitiva da tutela militar e do caráter irrecusável da opção industrializante. O mesmo se dá com a aglutinação de forças em torno de algo como um “partido do Estado” e de outro lado em “partidos da sociedade civil” mas, sobretudo, com a expansão das fun­ ções do aparelho burocrático do Estado. Este emerge, ao fi­ nal do período, completamente reorganizado. N o lugar do Estado frágil e federado do início do ciclo, tínhamos agora um aparelho dirigido por uma nova elite civil e militar, preparada no âmbito do exercício da própria administração pública para

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a gestão dos ampios poderes delegados ao Estado. Assim se pode ver melhor como foi que o Estado brasileiro assumiu uma função arbitral com relação ao valor do dinheiro e das normas e como foi que este poder lhe deu a possibilidade de comandar o crescimento e a industrialização brasileira. Mas ao mesmo tempo, se pode ver também como foi que estas novas funções contribuíram para expansão do aparelho eco­ nômico do Estado e para a internalização neste aparelho, de interesses e conflitos que estão na origem da sua balcanização posterior. Processo que, por sua vez, forçou a aglutinação nacional de todos os demais interesses excluídos numa espé­ cie de “confederação das oposições” que só teve sucesso nos momentos em que as crises do “partido estatal” transferiram quadros importantes para a oposição e com isto a viabilizaram como alternativa de poder. Foi o que ocorreu, por exemplo, em 1945, quando se apos­ tou que com a nova democracia se estariam criando as condi­ ções para por fim ao arbítrio autoritário do Estado, dando origem a um sistema político com regras estáveis e explícitas de disputa. A história se encarregaria de demonstrar a dupla inviabilidade dessa aposta. Mas o liberalismo, esgrimido ideologicamente pela oposição na luta antivarguista, foi deixado de lado ou derrotado na Cons­ tituinte de 1946 por uma maioria que reconheceu pragmáticamen­ te a inevitabilidade da intervenção econômica do Estado, depois dos passos que já haviam sido dados durante o período do Esta­ do Novo. Naquele fórum, as reivindicações descentralizantes e desestatizantes tiveram suã debilidade intrínseca explicitada: a devolução do poder aos locais, revelava-se um projeto “ultrapas­ sado” e de difícil execução, devido à complexidade real dos inte­ resses e da tessitura social. Na verdade, ainda que sublinhando a

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descentralização e a desestatização, todos se viam obrigados a apoiar, por razões de sobrevivencia, um estatismo que, já não mais conseguia compatibilizar adequadamente o conjunto de interes­ ses. Por isso, a partir do Estado Novo, a aceitação e a crítica ao Estado estiveram sempre lado a lado, em vários governos em que os liberais apareceram aliados com os conservadores desenvolvimentistas. Ficava-se, assim, com o Estado e abdicava-se de seu regime autoritário, tentando trazer para um sistema político aberto e competitivo a luta pelo controle do seu poder e de seus benefícios. Também aqui a história encarregou-se de, rapidamen­ te, abrir os olhos dos democratas de ocasião. O controle factual do aparelho estatal demonstraria ser mais poderoso do que se imaginara. O Governo Central, esvaziando parcialmente os po­ deres locais, construíra novos mecanismos centralizados de do­ minação e consolidação de lealdades. Assim, o Estado que essa dinâmica havia gerado não ape­ nas se expandia no comando econômico da acumulação capi­ talista, como também mostrava-se capaz, enquanto “partido”, de controlar eleitoralmente o comando político do processo de acumulação. Essa dupla descoberta dos liberais apontava para as mes­ mas contradições e para as novas configurações provenientes delas; a sobrevivência de todos tornava irrecusável a presença do Estado e essa presença se mostrava incompatível com o sistema político-partidário aberto, através do qual sonharam alternar-se no usufruto das “benesses” estatais. A experiência estadonovista, entretanto, deixou ainda outras marcas e contribuições de profundo impacto na dinâmica estru­ tural da acumulação capitalista nas décadas seguintes. A transfor­ mação real do sistema produtivo ocorre, a partir dos anos 30, através do crescimento continuado da atividade industrial, que

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altera a composição interna da produção nacional. Entretanto, esse crescimento se dá apenas de forma horizontal ou restrita e não logra hegemonizar económica e politicamente uma acumulação capitalista que segue, ainda, um padrão mercantil. Isso se deve, sem dúvida, a limites tecnológicos e financeiros, mas, sobretudo — e paradoxalmente — à própria intervenção estatal. Sim, por­ que é no Estado Novo que se rearticula em novas bases, o velho pacto de dominação, onde se reafirmam interesses díspares e he­ terogêneos, com direitos “adquiridos” à custa de uma valoriza­ ção, em grande medida, especulativa e meramente financeira ou mercantil. Se não resta dúvida de que ganha relevância uma bur­ guesia industrial simbiotizada com o Estado, ela terá no próprio Estado o limite de suas possibilidades de expansão. Isto porque essa nova burguesia industrial ingressa no cenário político-eco­ nômico escoltada por velhos parceiros e submetida às antigas regras plasmadas no próprio formato do Estado. Nesse sentido, ousaríamos dizer que os limites financeiros e a pouca ousadia tecnológica dessa industrialização restrita tiveram no Estado que a induziu o seu próprio limite de ex­ pansão. Os eventos de 1930 e o Estado Novo foram, de fato, conservadores e muito menos modernizantes do que se acre­ dita. É verdade que atualizaram e expandiram as estruturas estatais, mas fizeram-no antes em resposta às exigências do pacto agrário, do que aos requisitos de uma futuridade indus­ trial. Donde, paradoxalmente, o Estado — que todos defen­ diam como peça chave num projeto de industrialização ter se transformado por causa de seu “pacto de dominação”, no prin­ cipal obstáculo à hegemonia do capital e da burguesia industrial. Somente na década de 50 é que o Estado finalmente busca­ rá, de forma efetiva e através de caminhos heterodoxos, meca­ nismos financeiros capazes de deslocar os recursos necessários

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ao avanço da industrialização pesada. Até lá e, sobretudo, até o momento da maciça entrada de financiamentos externos, a boa vontade industrializante do Estado viu-se castrada por seus limites políticos de classe. Fica visível, uma vez mais, a inexistência — tão proclamada — da autonomia desse Esta­ do que se faz forte pela delegação de quem o fragilizou, impondo a força real de seus interesses fragmentados e he­ terogêneos. N a segunda metade da década de 40 a sonolência da admi­ nistração Dutra e dos debates parlamentares depois do acordo PSD/UDN, de 1948, pareciam indicar uma situação de estag­ nação ou paralisia. Em verdade, naqueles anos, as várias frações burguesas, polarizadas pelo autoritarismo do Estado Novo, viviam momentos de perplexidade. Uma vez dissolvido o ímpeto ideológico inicial dos liberais, convencidos da peculiaridade brasileira depois da Constituinte de 46, parece que retomam seu curso natural as tendências impos­ tas pelo compromisso básico e pela reconciliação aparente das nossas classes dominantes, dando a impressão de que o Brasil tivesse voltado aos tempos dos domínios agroexportador e oligárquico. Daí sua reaproximação depois da promulgação da nova Lei de Segurança Nacional e da proscrição dos comunistas. Com estes na ilegalidade e com Vargas em suas pastagens, apesar da vitória eleitoral de seu chefe militar pró-fascísta, julgava-se assistir ao retorno dos bons tempos da política oligárquica. Mas havia também perplexidade. A derrota eleitoral dos “humilhados e ofendidos” pela ditadura, imediatamente após a sua derrubada, propunha uma incógnita e esfriava o entusiasmo liberal daqueles que, combatendo o autoritarismo, estiveram sempre certos de que o voto os recompensaria, de-

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volvendo-lhes o controle do Estado ou, pelo menos, de algu­ ma parcela de seu poder. Acabavam de descobrir a dupla im­ potencia de seus interesses diante da realidade. Não foram capazes de se desfazer da “excessiva” presença do Estado — por vezes, até mesmo defenderam a sua manutenção, como no caso da legislação sindical. E também não foram capazes de vencer eleitoralmente um Estado que já se tornara partido e acabara por demonstrar sua eficácia no manejo das lealdades populares. Em face do poder local das oligarquias, só o Estado mostrava-se capaz enfrentar o desafio eleitoral do voto urbano. Essa perplexidade talvez tenha sido arquivada por mais tem­ po, como durante a vigência do acordo parlamentar de 1948, cujos efeitos foram similares aos dos Ministérios de concilia­ ção liberal-conservadora no Segundo Império: pasmaceira e inatividade. Mas o retomo de Vargas, de 1950 a 1954, devolve o ânimo aos conflitos internos da classe dominante. Sua presen­ ça rearma os espíritos e dissolve a ilusão de um grande acordo. Vargas não fugiría nunca, inteiramente, às regras básicas do pacto oligárquico, mas seu retorno ao poder trouxe de volta consigo fraturas, ressentimentos e conflitos em torno ao papel e ao controle do Estado. Por isto, a esmagadora vitória eleitoral de Vargas em 1950, reaproximou, uma vez mais, os liberais e as Forças Armadas, revivendo o espírito e o apelo de seu líder, Armando de Sales Oliveira, quando este tentou conquistar o apoio dos milites em 1936, na hora em que estes já estavam ao lado de Vargas. A diferença é que, agora, os liberais trabalham de forma efi­ caz, articulando e reforçando a divisão dos militares, que, a partir de fricções nascidas no autoritarismo do Estado Novo, se estende, sob variadas formas, através das décadas seguintes.

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Paralelamente, depois de liberadas as atividades sindicais, renascem violentas, em 1953, as manifestações populares nas grandes cidades contra a política económica de Vargas. A par­ tir daí germina o embrião de urna nova organização operária, paralela e semi-autônoma com respeito ao sindicalismo ofi­ cial, criado pela ditadura e mantido pela democracia. Mani­ festações de rúa (das “panelas vazias”) e greves anunciavam novas formas de luta popular, para além dos limites impostos pelo voto e por uma organização partidária que ainda mostra­ va notorios sinais de sua origem estatal. Aliás, é nesse mes­ mo momento que, nos vazios dessa organização incipiente e no calor das manifestações populares das grandes cidades, se apresenta vitorioso o fenômeno eleitoral do “populismo”, forma híbrida de construção e manipulação de lealdades ma­ ciças dedicadas a lideranças unipessoais e carismáticas. Uma fórmula eficaz, capaz de derrotar eleitoralmente o “partido estatal”, que passou a fazer uso de recursos e poderes com o objetivo de cooptar lealdades clientelisticamente asseguradas no varejo do voto e no atacado das greves. Esse complexo caldo de cultura, agitado pelas liberdades democráticas e galvanizado pelas eleições periódicas, en­ contra no governo de Vargas uma proposta de solução que reproduz, em sintonia com a modernidade de um país semiindustrializado, a velha estratégia conservadora da “fuga para frente” que, nesse momento, atualiza os planos não realiza­ dos de industrialização gerados pela burocracia estadonovista. Segundo a recorrência que vimos tentando apontar, impu­ nha-se novamente como solução única centralizar e crescer, dada a impossibilidade de reformular os pressupostos polí­ ticos. Nesse momento, entretanto, a mera centralização política, em parte obstaculizada pela abertura democrática,

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não conseguiría mais substituir a centralização econômica, inevitável num processo de industrialização pesada. Entretanto, mais do que em qualquer outra ocasião, é no próprio governo de Vargas que adquire notória visibilidade o caráter contraditório do compromisso das classes dominan­ tes. Salta aos olhos a distância — e mesmo a contradição — entre a política econômica de curto prazo e os projetos de lon­ go prazo. Explícita desarmonia quando comparamos, por exemplo, os planos estabilizadores de equilíbrio fiscal e con­ tenção crediticia de Horácio Lafer e Oswaldo Aranha, com a criação do BN DE e da Petrobrás e, ainda, com os planos na­ cionais do Carvão, de Eletricidade, Rodoviário etc. A persis­ tência das estruturas e a recorrência de situações nascidas na época da Primeira Guerra Mundial depararam-se aqui com um contexto internacional completamente diferente. Nosso longo ciclo histórico “arranca” a partir da crise gerada pela fa­ lência da hegemonia inglesa e expande-se enquanto estrutura e tendência ao longo dos 30 anos de interregno marcados pela luta sucessória. Mas cabe também observar que, nos anos 1940/1950, ele se vê às voltas com um mundo reorganizado em torno a duas hegemonias incontestáveis dos pontos de vista militar, econômico-financeiro e político-ideológico. A partir de 1947, assiste-se ao fim da longa crise recessiva internacional iniciada em 1929, mas cujos antecedentes da­ tam de 1914, e cujos efeitos são bem conhecidos. A retoma­ da do crescimento dá-se a partir da reconstrução européia, financiada, em parte, pelo Plano Marshall, já sob a égide de uma nova geopolítica mundial alinhada, rigidamente, em torno aos interesses das duas grandes potências imperiais: os EUA e a URSS. Diante desse mundo definido pelo im­ pacto de Hiroshima e pelas regras de Ialta, restou pouco

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espaço para as movimentações internacionais dos países sub­ desenvolvidos. O alinhamento era forçoso, e o Brasil compreendeu-o, sem opor muita resistência. A partir de 1947, os EUA, intervindo na Grécia e na Turquia, deixavam claro quem fora a potência vitoriosa e quem era a nova liderança inconteste do mundo capitalista. Simultaneamente, os acordos de Bretton Woods, segui­ dos da criação do FMI, do GATT e do BIRD, desenharam a arquitetura normativa e institucional da hegemonia ame­ ricana, alinhavada pelo dólar, o novo padrão monetário internacional. Também nesse caso, o Brasil não teve difi­ culdades em definir sua área de submissão. Já durante a guerra e logo depois, alinhou-se fielmente ao lado da po­ tência militar americana. N a área monetária, alinhou-se com o novo padrão dólar e declarou a paridade de sua moeda, que depois não pode ser mantida. N o espaço criado por essa hegemonia americana, depois da Segunda Guerra Mundial e no contexto geopolítico da nova Guerra Fria, se expandiram e se transnacionalizaram as estru­ turas produtivas das grandes corporações multinacionais, acio­ nando investimentos diretos em todos os países europeus e, depois, em vários países periféricos, incluído o Brasil. Mesmo sem incorrer em determinismos “exogenistas”, deve-se reconhecer na construção da nova ordem capitalista mundial um fato radicalmente novo e decisivo na evolução das relações capitalistas na periferia e, em particular, na “semiperiferia” onde está inserido o Brasil. A existência de uma economia mundial a partir da Revolução Industrial e, em par­ ticular, depois da segunda metade do século XIX, alcança aqui uma nova dimensão. Depois de um longo período de dispu­ ta, o mundo capitalista se rearruma sob a liderança das gran­

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des corporações norte-americanas, que impõem os seus pa­ drões produtivos, afetando decisivamente a questão da sobe­ rania dos Estados nacionais e o problema do financiamento do desenvolvimento econômico de alguns “eleitos” da peri­ feria capitalista. Essa transformação radical acaba afetando, por diversas vias, e de maneira decisiva, os rumos tomados a partir da cri­ se político-institucional gerada pelo retorno de Vargas ao go­ verno. Dois impactos parecem fundamentais. Por um lado, a bipolarização ideológica e militar do mundo e o alinhamento automático de todos os países acabaram por colocar nossas Forças Armadas numa posição privilegiada de membrana receptora e refratora dos sinais emitidos pela Guerra Fria, transformando-as no locus privilegiado em que se debateu, desde os anos 40, a necessidade do alinhamento ideológicomilitar ao lado dos EUA. Este alinhamento é encarado como condição de uma industrialização pesada vista, agora com maior intensidade do que no período de Góis Monteiro, como lastro necessário à segurança nacional. A partir daí, as tradicio­ nais divisões internas das Forças Armadas, acirradas e polari­ zadas pela ditadura Vargas, encontram uma nova formulação de matiz ideológico. As questões da segurança, do controle dos recursos naturais, do monopolio estatal do petróleo e do próprio caminho da industrialização reaparecem, desde então, traduzidas segundo um código maniqueu, para uma linguagem onde os elementos centrais estão dados pela definição dos ini­ migos internos e externos, segundo a ótica da potência hege­ mônica. Por essa razão, os velhos conflitos militares repostos na clave do getulismo e antigetulismo adquirem, a partir desse momento, uma nova dimensão ideológica internacionalizada

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ou global que não tinham anteriormente. N o segundo gover­ no Vargas, as disputas políticas que perpassavam as Forças Ar­ madas atingem a eleição no Clube Militar, tingindo os seus debates com as cores de um enfrentamento entre nacionalis­ tas (vistos como comunistas) e democratas (vistos como americanófilos). A partir daí , cristalizadas as posições segundo a radicalidade própria da Guerra Fria, inviabilizam-se negocia­ ções, acirram-se os conflitos e partidarizam-se as Forças Ar­ madas — fenômenos da maior importancia para entender, não só a crise institucional que matou Vargas, como também a participação dos militares nas demais crises que se multipli­ caram até os dias atuais. Por outro lado, as decisões de investimento tomadas pe­ las grandes corporações multinacionais, ao elegerem alguns espaços nacionais de acumulação privilegiando o Brasil, sobre­ tudo depois de 1956, forneceram uma solução parcial para o problema crônico de mobilização de capitais. Vargas falhou ao apostar, prioritariamente, na possibilidade de um “Plano Marshall dos pobres”, mas viabilizou a desejada “fuga para frente”, impulsionada agora pela associação do Estado com os investimentos diretos das grandes empresas estrangeiras. Essas inversões alteram, radicalmente, o problema do fi­ nanciamento e da industrialização, mas, em conseqüência, al­ teram a trajetória política de nossa acumulação capitalista. Como disse Cardoso de Mello, a (...) implantação de um bloco de investimentos altamente com­ plementares, entre 1956 e 1961, correspondeu, ao contrário, a uma verdadeira “onda de inovações” schumpeteriana: de um lado, a estrutura do sistema produtivo se alterou radicalmente, verificando-se um profundo “salto tecnológico”; de outro, a ca-

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pacidade produtiva se ampliou muito à frente da demanda preexistente. Há, portanto, um novo padrão de acumulação que demarca urna nova fase e as características da expansão delinei­ am um processo de industrialização pesada, porque este tipo de desenvolvimento implicou um crescimento acelerado da ca­ pacidad e produtiva do setor de bens de produção e do setor de bens duráveis de consumo antes de qualquer expansão previsí­ vel de seus mercados (1982, p. 117).

Mas esse investimento externo só veio porque o Estado “se mostrou capaz de investir maciçamente em infra-estrutu­ ra e nas indústrias de base sob sua responsabilidade, o que estimulou o investimento privado não só por lhe oferecer economias baratas mas, também, por lhe gerar demanda” (Idem, p. 118). Na verdade, já no início dos anos 50 o problema do financi­ amento havia sido reposto, desenhando-se a perspectiva hetero­ doxa de combinar inflação e ajuda externa na mobilização dos recursos necessários. O Estado desenvolvimentista redescobria, assim, a função ativa do poder de que dispunha desde os anos 20: a capacidade de ampliar o seu gasto sem alterar, necessariamen­ te, sua base tributária mediante emissões e confiscos cambiais. O poder de redefinir o valor do dinheiro, deslocando arbitra­ riamente suas massas segundo os objetivos estratégicos estabe­ lecidos. Descobria-se o “ovo de Colombo” e, para compatibilizar os velhos compromissos com os novos objetivos da “fuga para frente”, alçava-se a inflação à categoria de mecanismo básico de financiamento do desenvolvimento industrial. Mas, com isso, abria-se uma nova e fatídica arena de luta entre as várias frações. Tensionado entre o seu poder e a úni­ ca solução possível para sua heterogeneidade, o Estado opta

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pela inflação, fazendo dela causa e solução das sucessivas cri­ ses financeiras e institucionais que acompanharão o novo pa­ drão de acumulação liderado pelo capital industrial. Enquanto mecanismo heterodoxo de financiamento, a inflação explicita uma luta permanente relativa à distribuição dos recursos e da produção e, por derivação, da riqueza e da renda. Luta-se em torno à política econômica, procurando balizar o câmbio e a moeda, instrumentos centrais na determinação do movimento dos preços e das taxas de lucro. Os anos 50 desconheceram a correção monetária, e as políticas monetária e cambial de então resultaram da luta em torno à definição das propriedades es­ tatais, através do que se recortavam os interesses favorecidos. Por esse motivo, desde os anos 50, desenvolve-se um de­ bate tão acirrado quanto impotente em torno às políticas de estabilização, que postas em prática, são sempre abandona­ das rapidamente, como em 1954/55, 1958/59, 1961 e 1963. A inflação e a instabilidade são apenas uma nova face do movi­ mento contraditório que impele e limita, a um só tempo, a ação estatal. E essa instabilidade permanente esta na raiz do sentimento crônico de crise, perceptível nas opiniões das eli­ tes políticas brasileiras e no comportamento dos capitais in­ dividuais. Os capitalistas necessitam da inflação, mas, ao mesmo tem­ po, a temem, na medida em que não têm assegurado o con­ trole do seu momento político, que passa pela condução instável dos negócios do Estado. Por isso pendulam entre um comportamento econômico defensivo e o apoio a iniciativas políticas autoritárias que possam assegurar-lhes uma expec­ tativa de expansão. Do ponto de vista político, cria-se uma situação de tensão e instabilidade crônicas. O sistema político torna-se hipersen-

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sível às flutuações da atividade econômica. A luta entre os vários blocos de interesse, complexificada com a entrada dos capitais estrangeiros, e a exigência de preservação da integri­ dade e da diversidade do sistema eliminam qualquer possibi­ lidade de permanência e constancia. A inflação aparece como solução de alto risco, na medida em que revitaliza as incerte­ zas, criando um círculo vicioso que desembocará na falsa so­ lução do autoritarismo. Por outro lado, a “vontade conquistadora” e inovadora da burguesia ao passar pela ação do Estado tem sua ação restrita à defesa da valorização de seu capital, através do caminho mais curto possível. Deriva daí, igualmente, a raiz estrutural da inadimplência da burguesia nacional. Desde 1952, com o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDE), o Estado cria um instrumento que, a despeito de só ganhar agilidade depois de 1955, permite equacionar, de forma institucionalizada, o problema da mobilização de re­ cursos para os investimentos na infra-estrutura de energia e transporte. N o movimento de sua expansão, o Estado completa o ciclo, responsabilizando-se pelas condições ex­ ternas, pelo financiamento e pela própria produção enquan­ to Estado empresarial. Essa atividade empresarial do Estado é implementada simultaneamente ao exercício das suas funções regulatórias e normativas, sustentando, me­ diante o uso de seus vários instrumentos de poder, o de­ senvolvimento dos capitais privados em associação com os grandes oligopólios internacionais. A partir de 1955 (depois da instrução 113 do ministro Eu­ gênio Gudin), consagra-se a aliança entre o Estado, a grande empresa oligopólica internacional e os capitais nacionais, a qual comandou o processo de industrialização pesada. Todos

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vêem na ajuda financeira externa o único caminho possível para um crescimento rápido, comandado por um capital in­ dustrial que atingia sua plena maturidade. O novo-velho sócio foi bem recebido numa fórmula que, de alguma ma­ neira, repunha os termos do “plano implícito” de que nos fala Carlos Lessa com relação à entrada das filiais estrangei­ ras nos anos 20. Para manter o pacto de “não-agressão” e de reprodução da heterogeneidade, o Estado avança um passo e expande-se, já como empresário. Eqüipotentes para resol­ ver o problema de suas disparidades, as várias órbitas do capital e frações burguesas convergem também, afastando uma vez mais o seu Leviatã. Com isso, politiza-se ainda mais o processo de acumulação, com a entrada do velho sócio em novos termos, isto é, no âmbito da montagem dos espaços econômicos e da organização social. A sua presença, ao acen­ tuar a heterogeneidade interna repõe, com maior vigor, a contraditória necessidade de substituir as velhas regras de mercado pela sempre renovada e ampliada ação do Estado. Isto traz, inevitavelmente, o risco do aumento da arbitrarie­ dade, acrescido pelo maior número de parceiros e pela com­ plexidade das estruturas sobrepostas. Ou, pelo menos, o risco de redução das possibilidades de manter a eqüipotência entre frações desiguais da classe dominante, sobretudo quan­ do sobrevêm as crises próprias do ciclo industrial. O grau de consenso em torno dessa nova perspectiva desenvolvimentista excedeu os limites estreitos da classe dominante. O desenvolvimentismo conservador obteve em muitos momentos o apoio das forças progressistas e po­ pulares. O clima ideológico do pós-guerra, acentuado pela descolonização asiática e africana, é francamente “desen­ volvimentista”, seja nos países centrais, preocupados com

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o controle das nações emergentes, seja nos países periféri­ cos, preocupados com o crescimento das diferenças e de­ sigualdades durante a guerra e, principalmente, depois dela. Na América Latina, a quase totalidade do pensamento so­ cial progressista e suas organizações políticas convergem em torno da necessidade de fazer do Estado o agente propulsor de uma industrialização induzida. N a sua concepção ideológi­ ca, esta industrialização seria capaz de reproduzir, com o apoio de uma burguesia nacional ideologicamente fabricada, todos os benéficos efeitos da modernidade, inclusive a democracia. Fosse como fosse, os progressistas também viam na ação estatal o único caminho possível para um desenvolvimento nacional, com justiça social e com a democratização do pró­ prio Estado. Pouco se pensou, naquela época, e quase nada se compreendeu acerca da verdadeira natureza do Estado e de sua expansão continuada na América Latina, particularmente no Brasil. N em o nacionalismo reformista dos anos 50, cujas raízes remontam às teses tenentistas da década de 20, nem as teorias dependentistas dos anos 60 conseguiram identificar e separar corretamente a matriz teórica e idelógica em que se sustentava o estatismo conservador. Assim, amplos setores das classes médias urbanas e mes­ mo das classes populares aderiram ideologicamente ao gran­ de compromisso, agora refeito, que tinha na vitalização do Estado, a um só tempo, causa, conseqüência e a única sal­ vação. O momento culminante dessa convergência se deu no período JK , encobrindo a recentralização ocorrida e viabilizando o exercício democrático, apesar de tudo. O Estado desenvolvimentista ganha, nesse momento, corpo e alma, sofrendo uma profunda reorganização, expan­ dindo-se, enfim, para atender às novas funções e absorver

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novos atores. N a verdade, faz-se um esforço gigantesco para manter os velhos compromissos, adequando-os a um pro­ cesso de acumulação que se acelera violentamente e modifi­ ca de forma radical o recorte de interesses e a estrutura social de classes. A instalação de novas filiais, por suas dimensões e importancia estratégica, sua modernidade tecnológica e falta de autonomia decisoria, encrava na tessitura das relações ca­ pitalistas brasileiras um polo “metropolitano” distribuido igualmente por todos os setores dinâmicos da economia. Um pólo híbrido, com interesses internos e externos a serem defendidos segundo uma lógica de reprodução que escapa, às vezes, às possibilidades de controle por parte do Estado nacional. Essa internacionalização das estruturas produtivas inter­ nas reproduz e aprofunda a heterogeneidade, hipertrofiando a fragmentação regional e social e consolidando sobre uma base material descontínua uma tessitura de interesses dificilmen­ te integráveis. O padrão de acumulação industrial impulsionado por aque­ la aliança e desenvolvido ao longo das décadas subseqüentes não logra, porém, desfazer os velhos blocos de interesse para cuja reprodução o Estado é elemento indispensável. Mantêmse, assim, mercados paralelos com produtividades, organiza­ ções e graus de concentração bastante diferenciados. Refaz-se, progressivamente, o velho pacto, agora com a participação decisiva do capital industrial, nacional e estrangeiro, mas sem que seja definida a hegemonia, dado o peso igualmente cres­ cente dos capitais mercantis e bancários. Mas, ao mesmo tempo, essa industrialização pesada fun­ ciona segundo padrões capitalistas modernos, altamente mo­ nopolizados, com baixa capacidade de emprego industrial e

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segundo urna dinámica fundada na hiperconcentração da ren­ da. Esse padrão de industrialização estimula uma urbanização acelerada e reproduz, permanentemente, uma massa de de­ sempregados e subempregados que vegetam nos bolsóes de marginalidade urbana e miséria rural, ampliando as bases de um sistema social excludente. O aprofundamento da heterogeneidade e da segregação social amplia ainda mais a agenda estatal, obrigando o Estado a desdobrar-se no esforço de reproduzir, econômica e politi­ camente, essa totalidade desagregada. Nesse ponto delineia-se um problema central do Estado brasileiro nas últimas décadas. Este é cada vez mais impoten­ te para sustentar o seu compromisso de classe e incapaz de legitimar-se encarnando o interesse geral em nome da pre­ servação da integridade do sistema de dominação e da socie­ dade como um todo. Revela-se, pois, extremamente difícil articular, nesse contexto, organizações que traduzam e repre­ sentem homogéneamente aquele estilhaçado mundo de inte­ resses incomunicáveis. A construção da vontade geral a partir dos particularismos mostra-se impermeável aos mecanismos classicamente bem-sucedidos nas sociedades capitalistas cen­ trais. Entre os interesses cada vez mais fragmentados e um espaço nacional recortado por profundas clivagens regionais, pouco resta para a legitimação orgânico-partidária e eleitoral do poder estatal ante as várias frações burguesas e assalaria­ das. Mas, sobretudo, perante a grande massa de marginaliza­ dos do sistema produtivo capitalista, cuja presença se impõe a qualquer sistema de representação que não queira assumir abertamente seu caráter segregacionista. Assim, o Estado “todo poderoso” revela-se, de fato, pre­ mido entre o pólo metropolitano e os marginais, entre os

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blocos regionais e as reivindicações participacionistas da classe média urbana, entre órbitas do capital bastante centralizadas e produtivas e outras que só se reproduzem pela “permissividade” especulativa da valorização mercantil e financeira e, mais recentemente, industrial. Já nos anos 50, o regime polí­ tico, na tentativa de sobrevivência, busca caminhos de repre­ sentação e negociação que escapem aos canais parlamentares então em funcionamento caminhos que se alojam dentro do aparelho burocrático do Executivo. Com isso, o Estado expan­ de seu aparelho e seus instrumentos de ação direta e indireta nas relações econômicas e sociais, absorvendo e encapsulando, sem digerir, todas as contradições próprias de sociedades tão segmentadas. E o faz, não por iniciativa própria e autônoma, mas como resposta às exigências cada vez mais numerosas, complexas e inconciliáveis da preservação do pacto de domi­ nação com suas contradições. Tais exigências empurram-no para a frente, colocando-o sempre mais próximo do limite de suas possibilidades. Na prática, o aparelho de Estado se reconstrói, permanen­ temente, em braços e ramificações que se destinam muitas vezes ao encaminhamento e solução de demandas particula­ res postas por cada uma das faces constitutivas desse quebracabeça. No mais das vezes, essas ramificações da administração direta ou indireta se sobrepõem a outras, preexistentes, sem que estas desapareçam ou sejam desativadas. Ao contrário, há uma tendência à justaposição, em que alguns aparelhos se esclerosam lentamente, à sombra de outros, que crescem modernos, tecnocráticos e mais centralizados. O estado repro­ duz em sua própria estrutura e organização, as características da acumulação e suas relações constitutivas, hipertrofiándo­ se de forma heterogênea e fragmentada.

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Os novos caminhos dessa acumulação industrial estavam a exigir a redefinição dos papéis e da hegemonia dentro do bloco de poder — a revisão do velho compromisso. A multiplica­ ção dos interesses, situações e particularismos na sociedade urbanizada e industrializada dos anos pós-50 não era mais compatível com os mecanismos que lograram assegurar a re­ produção global até o fim da Segunda Guerra Mundial. Cres­ ce por todo lado o número de insatisfeitos e preteridos pela ação estatal. Ressurge e se desenvolve o peculiar sistema par­ tidário brasileiro, articulado em torno do que realmente in­ teressa nesse quadro: o controle do aparelho e da ação estatal. Assim, indiferentemente às siglas, já durante o autoritarismo do Estado Novo, mas, sobretudo, a partir das insatisfações criadas na década de 50 durante o período democrático, as clas­ ses dominantes se dividem entre o grande “partido estatal”, que é o próprio Executivo, e o conjunto heterogéneo dos penalizados, que nesta nova etapa poderia ser chamado “par­ tido da sociedade civil” (isto é, dos excluidos do poder esta­ tal). Os demais interesses, também fragmentados, da classe média e dos setores populares não conseguiram escapar a esta polarização, durante o período 1945/64. Estas duas “organiza­ ções”, por sua própria natureza, remendam conjuntos de gru­ pos distribuidos por toda a rede de relações que perpassa as distintas regiões do país, reunindo graças a essa heterogeneidade, um conjunto fragmentado de interesses ao qual repugna qualquer tentativa de nitidez programática. Aqui podem ser encontradas algumas razões estruturais e dinâmi­ cas que explicam o caráter desfibrado dos partidos políticos deste período, tanto quanto a irrelevância de seus programas e doutrinas. Esse bipartidarismo real se fortaleceu, significa­ tivamente, durante a administração de Juscelino Kubitschek.

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A sistemática criação de Grupos de Trabalho, Grupos Execu­ tivos e Conselhos de Desenvolvimento, sem que fossem des­ feitas as velhas estruturas e mantido o Parlamento como o lugar da representação partidária, construiu, no âmbito do próprio Executivo, um novo mecanismo de representaçãoparticipação dos principais grupos de interesse. Com isso, como é óbvio, fortalecia-se o Estado e, dentro dele, o Execu­ tivo, enquanto centro articulador do “partido estatal” e, ao mesmo tempo, enquanto lugar de representação e negocia­ ção entre os diversos interesses. Esse quadro se altera a partir dos anos 60. Assiste-se, en­ tão, a um veloz processo de realinhamento partidário explicitado nas alianças e coligações, mas também nos blocos parlamenta­ res. Movimento que, acompanhando o declínio dos partidos conservadores, reorganiza a composição interna dos demais partidos e anuncia, tendencialmente, uma nova polarização em torno de temas político-ideológicos conflitivos, como as refor­ mas estruturais e a defesa dos interesses nacionais. Naquela altura, vivenciavam-se os complexos efeitos do sucesso da po­ lítica industrializante orientada pelo Plano de Metas e viabilizada pelos investimentos diretos estrangeiros e estatais. A proposta de crescer “cinqüenta anos em cinco” sinteti­ za o objetivo e a estratégia que foram adotadas pelo governo J K e que são responsáveis por um verdadeiro salto qualita­ tivo no crescimento e na industrialização brasileira. Final­ mente, o capital industrial assumia a posição hegemônica no movimento econômico da acumulação capitalista no Brasil, destacando-se de forma decisiva a presença do Estado e do capital estrangeiro. Apoiado na ideologia desenvolvimentista e lastreado em um amplo apoio social que incluía a aliança nacional-populista, o governo JK criou as condições para que

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deslanchasse a industrialização pesada da economia brasilei­ ra, com todas as suas inevitáveis conseqüências, a começar por um novo tipo de crise econômica cíclica própria do cres­ cimento industrial, como foi o caso da crise que começa em 1961 e se estende até 1967. A partir da segunda metade dos anos 50 agrega-se um elemento novo e decisivo na dinámica contraditória da acumulação e do Estado brasileiro. Se, antes, as crises no setor externo que afetavam a capacidade de fi­ nanciamento interno, estiveram associadas às crises político-institucionais e financeiras, a partir de agora os descensos cíclicos da expansão industrial passariam também a contri­ buir para as novas crises políticas e financeiras. Assim, na entrada dos anos 60, vários fatores de peso de­ cisivo confluíram na construção de um quadro politicamente insustentável. De um lado, a U D N , convencida, finalmente, das virtudes eleitorais do “populismo”, derrotava pela primeira vez o partido do Estado, criando um problema original e de difícil gestão, que terá sido responsável, em parte, pela renún­ cia de seu presidente Jânio Quadros. Com isso ascendeu à Presidência uma figura que, repondo a divagem varguista, reabriu velhos conflitos internos dos militares e da classe dominante brasileira. Por outro lado, a exaustão do primeiro ciclo de investimentos promovido pelo Plano de Metas ge­ rou uma crise recessiva endógena e reacelerou os conflitos internos à classe dominante, disparando a inflação e abrindo portas à entrada em cena de um movimento popular e sindi­ cal que vinha amadurecendo desde os episódios de 1953. Por esse caminho, os trabalhadores se organizaram nacio­ nalmente, muitas vezes de modo ilegal, conseguindo sistema­ tizar um conjunto de reivindicações que, aliadas às teses nacionalistas formuladas pelo pensamento progressista da

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época, colocaram no coração do conflito e sobre a mesa de negociações o programa das reformas estruturais. Mesmo quando definissem de maneira equivocada a natureza da crise econômica da primeira metade dos anos 60 — prevendo uma tendência inevitável à estagnação —, as forças de esquerda dissociaram-se da ala conservadora do bloco desenvolvimentista e propuseram um projeto de democratização que, pela primeira vez, ameaçava, de fato, os pressupostos do grande compromisso vivido a partir da Primeira Guerra Mundial. Dentre todas as suas propostas, duas eram as que desperta­ ram as maiores resistências: a da reforma agrária e a do con­ trole do capital estrangeiro. As forças de esquerda propunham tocar nos limites mais antigos e mais modernos impostos à ação do Estado, defron­ tando-se, simultaneamente, com o “princípio” da intocabilidade da terra e o da autonomia decisoria do capital estrangeiro, o mais novo sócio e responsável pela salvação recente do grande “con­ domínio”. Pela primeira vez, portanto, as reivindicações popu­ lares objetivavam alterar as regras básicas da valorização do capital no espaço econômico brasileiro. Juscelino Kubitschek foi sábio ao perceber o novo quadro social e político que vinha se delineando, exauridas as poten­ cialidades desencadeadas pelo suicídio de Vargas, através da aliança PSD-PTB que o fez vitorioso. Propõe, ao final de seu governo, um pacto de sucessão continuada e alternada entre o PSD e a U D N . Com isto, concebeu uma fórmula que, se tivesse sucesso, podería ter consolidado uma aliança entre as duas principais facções conservadoras da política brasileira, superando a divagem varguista e isolando as forças popula­ res. Essa fórmula estabilizaria a dominação política e faria de Juscelino uma espécie de Campos Salles da nova era industrial.

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A impossibilidade dessa solução, inviabilizada pelo carisma de Quadros, abriu portas a uma decomposição progressiva das forças aliadas nos dois grandes blocos que perduraram ao longo da gestão Kubitschek. N o prolongamento daquele insucesso, alimentado pela desaceleração do crescimento e conseqüente descontrole da inflação, ampliaram-se os conflitos internos de uma classe do­ minante que agora incluía a presença das grandes corporações responsáveis pelo surto industrial. A ampliação desses confli­ tos abriu espaço para o crescimento autônomo de um movi­ mento nacional-reformista Iastreado em amplos setores da população urbana e algumas frações da população rural. A autonomização progressiva do projeto reformista e po­ pular provocou a reaglutinação das frações conservadoras e sua rápida aproximação dos grupos mais conservadores dentro das Forças Armadas. Com a esquerdização de certos setores varguistas e a dissolução conservadora dos demais viabilizava-se o que parecia, naquele momento, historicamente inviável: a recomposição da fronda conservadora, enriquecida pelas no­ vas forças que assumiam, a partir daí, a sua hegemonia. Ameaçada por estas pressões que vinham dos setores po­ pulares e de esquerda essa fronda conservadora busca nas Forças Armadas unificadas o seu novo árbitro. Havendo sido inicialmente avalistas e depois tutores, os militares, antes um recurso em última instância, eram agora convocados para co­ mandar a solução que, uma vez mais, se impunha: recentralizar o poder e “fugir para a frente” do ponto de vista socioeco­ nómico. E de novo, como no passado, esta solução apontava na direção do autoritarismo. As Forças Armadas transformamse no único árbitro possível, numa etapa em que a complexi­ dade e a diversidade das forças e interesses pactuados já não

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admitem uma arbitragem que não disponha da força mesma como instrumento de decisão. Impunha-se uma vez mais, como solução, uma espécie de lei de formação deste Estado que nascera para gerir poderes que lhe foram delegados pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial e pela decisão das várias frações dominantes: os mi­ litares, apoiados em seus velhos argumentos sobre a segurança nacional, transformavam-se em árbitros e gestores diretos da nova “fuga para a frente”. Passava-se a uma nova etapa no de­ senvolvimento das contradições próprias de nossa acumula­ ção capitalista. Eis aí, na sua origem cronológica, a dinâmica do golpe militar de 1964. Entre 1964 e 1968 a fronda conservadora implodiu. Foi o período em que uma política econômica de corte liberal en­ cobriu uma luta feroz pela hegemonia entre as várias frações burguesas e conservadoras unidas pelo apoio ao regime mi­ litar. Hegemonia que acabou nas mãos da grande empresa, privada e pública, nacional e internacional. Com o golpe den­ tro do golpe, em 1968, afirmou-se definitivamente a supre­ macia da burguesia monopolista internacionalizada que, em aliança com o Estado, passa a comandar o novo ciclo de ex­ pansão industrial. Entre 1968 e 1974, a burguesia monopolista logra diluir os principais conflitos, satisfazendo às deman­ das das várias frações dominantes e aliviando as expectativas da classe média. N os interstícios daquela luta, a militarização e a tecnoburocratização progressiva da gestão estatal, o abandono do discurso liberal e o fechamento do sistema político acompa­ nharam a acentuada marginalização da população de qualquer atividade ou participação política.

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As deserções começaram cedo e os interesses penalizados pela política econômica estabilizadora rapidamente refluíram para uma oposição que mantinha abertas, ainda que castradas, suas organizações político-partidárias. O jacobinismo dos se­ tores militares mais radicais encarregou-se, na primeira hora, de afastar os setores tradicionais ligados ao PSD e à figura de sua máxima liderança, Juscelino Kubitschek, cassado em seus direitos políticos em 1965. A deserção progressiva de outras lideranças golpistas denuncia, a partir daí, a impossibilidade de manter unida toda a fronda conservadora e explicita a vio­ lenta luta que se trava em torno à reorganização do pacto en­ tre as várias frações dominantes. Reproduzia-se, aqui, algo similar ao que ocorrera entre 1930 e 1935. A derrota dos setores governamentais nas principais elei­ ções para governador, em 1965, demonstra a incompatibili­ dade desse processo de reorganização com os mecanismos democráticos de legitimação de poder. Nem mesmo a refor­ ma partidária imposta pelo governo militar, oficializando e institucionalizando a realidade do sistema bipartidário, logra­ ria diminuir a velocidade das dissidências, reaglutinadas em tornp de uma Frente Ampla que, rapidamente, repõe o pro­ blema da ingovernabilidade em situações de crise e revisão dos compromissos, como aquela que vivia o país. Como em outras ocasiões, também aqui a implosão da classe dominante veio acompanhada ou viabilizou a retoma­ da das mobilizações populares interrompidas logo depois do golpe. Além do movimento da Frente Ampla que atingiu e dividiu os próprios partidos oficiais, já em 1967/68, reapareceriam as greves e as manifestações estudantis que nas fábricas e nas ruas protestavam contra a política econômica e a repressão.

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Sacudidos pelos conflitos intraburgueses, ameaçados pelo ressurgimento popular e insatisfeitos com os primeiros re­ sultados da política econômica, os próprios militares se divi­ dem numa luta que recoloca, uma vez mais, o velho conflito entre nacionalistas e “cosmopolitas”, conservadores e liberais. Castelo Branco cede, sucessivamente, abdica de suas teses libe­ rais em nome da unidade militar e acaba derrotado, no episó­ dio de sua sucessão, por uma coalizão que aglutinava militares insatisfeitos de variadas extrações ideológicas. Naquela altura, a crítica da Igreja, a deserção de algumas lideranças importantes do regime militar, as derrotas eleitorais de 1965, o insucesso da política econômica e o reaparecimento da mobilização popular explicitavam a impossibilidade de re­ fazer o bloco dominante sem uma violenta recentralização do poder e uma rápida retomada do crescimento. Hoje já se pode ver com mais clareza qual foi o verdadei­ ro significado do Ato Institucional n° 5. Não sendo possível equacionar os múltiplos conflitos da classe dominante em uma situação semidemocrática, tampouco era mais possível — dada a complexidade dos interesses envolvidos — uma recen­ tralização político-econômica que não fosse autoritária. E foram, outra vez, impostas autoritariamente a ordem e a hie­ rarquia necessárias à consolidação do regime, sob a suprema­ cia do grande capital. Para viabilizar a ordem autoritária fez-se necessária a reestruturação definitiva do poder militar, depu­ rado de suas divisões internas. Isso em função do fato de, entre 1964 e 1968, momento da reorganização do pacto de dominação, terem sido respei­ tados os interesses secundários e preservadas as regras de convivência entre as frações dominantes. É verdade que o governo Castelo Branco foi além da queima de bandeiras pro­

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movida por Vargas e realizou uma reforma tributária que es­ vaziou o poder das instancias regionais do Estado. Igualmen­ te, é fato que o Parlamento aprovou sua proposta de um Estatuto da Terra que incluía urna limitada reforma agrária. Mas, apesar desses movimentos, segue-se sem tocar na pro­ priedade da terra e na permissividade especulativa do capital mercantil e financeiro. Apesar da criação de um Banco Cen­ tral autônomo, o Estado conservou seu poder de arbitragem sobre o “contrato do valor” e sobre o “valor dos contratos”, mantendo sua capacidade de sustentar e subsidiar a sobrevi­ vência dos capitais e das regiões mais frágeis, situadas em con­ dições desfavoráveis do ponto de vista da competitividade com os grandes monopólios nacionais e estrangeiros. Por esses motivos, talvez seja possível compreender a defesa, por parte de algumas eminentes lideranças civis e militares, do pacto vitorioso, da necessidade de uma abertura política limitada e de um progressivo afastamento dos milita­ res da gestão direta do poder estatal, em pleno apogeu do “milagre econômico” e da centralização autoritária. As contra­ dições germinavam por detrás e a despeito dos “decretos-lei sigilosos”. Impedido politicamente o avanço de uma hege­ monia monopolizadora, mantinha-se a mesma tendência con­ traditória que, de há muito, assinalava novas crises e, no longo prazo, uma direção entrópica. Mas é a partir daí que se pode explicar o “fracasso” do ideário golpista de 1964. Liberal em sua primeira hora, em seguida deu lugar, ao regime mais centralizado e autoritário de nossa história republicana. Patrono da desestatização, pro­ piciou o maior surto de crescimento do aparelho econômico e produtivo do Estado, tendo sido criadas mais empresas go­ vernamentais no período — cerca de 60% do total, segundo a

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pesquisa de Luciano Martins (1977) — do que nos 60 anos pre­ cedentes. Apesar de defender a necessidade da centralização, o regime não foi capaz de resistir às forças descentralizantes e, havendo defendido um governo forte, acabou balcanizando o aparelho e o poder do Estado. Tinha como modelo a férrea disciplina dos militares e como ideal um governo estável, mas ficou impotente na hora em que ocorreu a divisão dentro das Forças Armadas. Mas nada disso foi fruto de intenções cons­ cientes ou de conspirações. Foi o desdobramento necessário da mesma tendência contraditória que derrubara o auto­ ritarismo estadonovista. Uma tendência que ficava obscure­ cida pela complexidade crescente dos interesses econômicos e do tecido social, acentuada pela industrialização e pela urba­ nização que se aceleram a partir dos anos 50. Havíamos alcan­ çado a tão ambicionada industrialização, mas ela não apenas se somara às contradições presentes em seu impulso inicial, como as multiplicara, acentuando as heterogeneidades e as desigualdades que seguiam impondo a sua reprodução atra­ vés da mediação estatal. Mais do que isso, os velhos interes­ ses seguiam presentes no âmbito do Estado, buscando apoios e recursos, fortemente comprometidos com os interesses industriais. N a prática, o que ficava cada vez mais claro era a invia­ bilidade de manter constante o valor das normas e do dinheiro e de desestatizar uma acumulação capitalista eminentemente politizada e inviável sem a presença do Estado desenvolvimentista. Entretanto, não resta dúvida de que esse mesmo Estado acelerava essas tendências contraditórias numa direção que, no limite, paralisaria o próprio Estado. A gestão de um sistema tão heterogêneo acaba impondo ao Estado uma ação descontínua, e às vezes ilegal, até o ponto em que a inflação, o

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casuísmo e o descontrole monetário voltam-se contra a sua própria eficacia, “desgovernando” as expectativas coletivas e gerando comportamentos que levam o país a uma situação de ingovernabilidade. Esvaziados os partidos e o Parlamento enquanto canais de representação e instancias de negociação, reforçou-se a antiga tendência de transferir para dentro da burocracia executiva os interesses nascentes do processo de expansão capitalista. Consolidou-se, assim, o que alguns denominaram “anéis burocráticos”, a intersecção representativa-ativa da gestão militar-tecnocrática com os diversos interesses privados. Esta representação opera segundo a força económico-política de cada um dos interesses em conflito. Empresas, bancos, autarquias, diretorias e, obvia­ mente, ministérios foram ocupados e instrumentalizaram esse conflito, acentuando o processo de fragmentação intema da bu­ rocracia estatal. A organização dos interesses canaliza suas deman­ das por dentro da estrutura burocrática, partidarizando seus aparelhos e instrumentalizando particularismos que acabam fragilizando o poder do Estado e a eficácia de sua administração. Nessa luta pelas vantagens do controle das funções burocráticas não há lugar para normas ou leis de caráter geral e permanente. Os instmmentos e as regras valem enquanto são eficazes e a efi­ cácia mede-se pelo número de frações que logram satisfazer suas demandas. Nesse contexto, a própria corrupção, se transforma numa dimensão “normal”, ou conseqüência “inevitável” deste tipo de sistema ou regime político. O mesmo pode-se dizer do clientelismo, contraface po­ pular dessa mesma forma de organização política. Diante das várias frações populares, desarticuladas do ponto de vista geo­ gráfico, econômico e político, o Estado também se comporta de maneira descontínua usando ora a cooptação, ora a repres­

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são, valendo-se cada vez mais dos meios de comunicação de massa como instrumentos eficazes de mobilização de apoios e legitimação simbólica do regime. Nessa forma de organização política, estes meios de comunicação — a TV em particular — acabam ocupando o lugar e cumprindo as funções tra­ dicionais dos partidos políticos, funcionando como meio de articulação entre opiniões e vontades que só existem na for­ ma estatística de uma “opinião pública” carente de vínculos orgánicos. Esse sistema político “estatizado”, entretanto, não é está­ tico. Nem, tampouco, as lutas no interior de sua burocracia conduzem sempre ao mesmo resultado. Pressionado por suas múltiplas e contraditórias funções e dilacerado, internamente, por lutas incessantes entre grupos e claques entrelaçados à sua burocracia, o Estado reage burocratizando e centralizando, cada vez mais, o seu poder no Executivo. Politizada a competição econômica e estatizada a organização e a luta entre os vários grupos de interesse, frag­ menta-se o aparelho do Estado. Cada um de seus ramos as­ sume a representação de interesses particulares, quando não é, ele mesmo, segmentado por coalizões de interesses. N o esforço de impedir que a luta que atravessa seus órgãos, autarquias, corredores e gabinetes dissolva seu poder de ini­ ciativa, restringindo sua capacidade de reproduzir as condições materiais e sociais de sua base de apoio fragmentada geográ­ fica e economicamente, o Estado recentraliza-se a cada nova pressão centrífuga. Para zelar pelos próprios interesses que se incrustam em seu aparelho, esvazia o poder do Parlamen­ to e cria novas estruturas destinadas a sobrepor-se às demais, impondo, em última instância, o “interesse geral” definido pelos seus tecnocratas. Nessa direção, cancela progressivamen-

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te o poder de alguns de seus órgãos, produzindo outros que arbitram as lutas internas. Essa dinâmica conduz à criação, no limite, de um núcleo central, cada vez mais reduzido, onde “parlamentam”, em torno à Presidência da República, o alto comando da política econômica e as Forças Armadas. Uma conseqüência natural da centralidade da política econômica e do problema da segurança interna, durante o regime militar. A esse núcleo caberia permanecer unido visando impor-se aos particularismos e aos conflitos entre as instâncias inferiores da própria administração estatal. A partir dele ordenam-se em círculos concêntricos os demais ramos burocráticos, assim como toda a gama de associações representativas que atuam ou vegetam à sombra da administração pública. N o âmbito desse núcleo tomam-se as decisões fundamentais e é ele o responsável pela ilusão a respeito da suposta autonomia da tecnocracia do Estado. Na verdade, esse núcleo não gozava da liberdade de inicia­ tiva que muitos lhe imputaram. Tampouco essa é uma dinâ­ mica aleatória; ao contrário, o poder do núcleo central emerge do conflito entre as várias frações e da imposição daquela que representa os setores ligados ao pólo metropolitano interno e externo. No avanço da centralização não há apenas um Estado abstrato que se defende da desintegração, mas antes a afirma­ ção dos grupos mais fortes, sempre articulados internacional­ mente, que impõem as suas diretrizes à política econômica dos governos. Portanto, o poder do núcleo central sustenta-se, em últi­ ma instância, no aval das Forças Armadas, mas, sobretudo, no apoio das frações hegemônicas, sem o qual seria impensável sua estabilidade a despeito de pressões de toda ordem, pro­ venientes inclusive da própria máquina estatal.

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Depois de 1965, e em particular depois de 1968, o regime autoritário abandona o discurso liberal e volta ao leito do desenvolvimentismo conservador, reconhecendo a centralidade do Estado na promoção da organização económico-política da sociedade brasileira. Isto aparece retratado no sistema imposto a partir do Executivo e comandado pelas Forças Armadas e pela tecnocracia civil. Mas, urna vez esgotado o ciclo expansivo de 1968/74, o que se viu foi o retorno dos velhos problemas, so­ mados a novos e inusitados desafíos. Como resultado da expansão anterior, ocorrem profun­ das transformações econômicas e sociais que acabam alteran­ do a correlação de forças no interior do próprio regime. Do ponto de vista económico, se consolida de forma definitiva a industria pesada de bens de capital e a de bens de consumo durável lideradas, em quase todos os setores, pelas grandes empresas públicas e/ou pelas grandes empresas multinacionais. Consolida-se assim, um pólo moderno e altamente concen­ trado dos pontos de vista económico e regional, e se comple­ ta a montagem de uma estrutura industrial relativamente complementar e auto-sustentável. Mas, ao mesmo tempo, ampliou-se a heterogeneidade estrutural, recolocando num outro patamar a velha questão política da sobrevivência das demais órbitas subordinadas ao capital. Por outro lado, apesar de quase dez anos de crescimento econômico e populacional continuado, agravou-se o quadro das desigualdades sociais, graças, sobretudo, à política salarial do regime e a inexistência de uma preocupação com a produ­ ção dos bens e serviços de consumo massivo. Ao mesmo tem­ po, nesse período, acentuam-se as desigualdades regionais, consolidando-se a velha hierarquia entre estados centrais e periféricos, que sempre teve em São Paulo e Minas o seu eixo hegemônico e nos estados nordestinos seu elo mais débil.

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N a hora em que se desacelera o crescimento, reaparecem os velhos conflitos dentro das classes dominantes, repondo o problema da reacomodação dos pactos e compromissos. A resposta do governo Geisel veio na direção do aprofunda­ mento da industrialização e da centralização política, mas desta vez o regime não encontrou os apoios internos necessários, sobretudo porque a nova crise ocorreu junto com uma crise geral da economia mundial e da hegemonia norte-americana. Sem alternativas, o regime perdeu, progressivamente, os seus principais apoios e lealdades. Depois dos liberais, da Igreja e da classe média, desertaram os empresários, as lideranças regionais e o próprio capital estrangeiro, que recua ante as condições de insolvencia interna e externa do Estado desenvolvimentista. Pressionado, o próprio Estado recuou, desativando seus gastos e investimentos, em obediência a um novo plano de estabilização acordado com o FMI. Nestas horas, como sempre, renasceu a luta interna da classe domi­ nante com uma virulência inédita e por suas brechas cresceu, de forma autônoma, um movimento social amplo que exige melhores condições de vida e maior participação política. Es­ tas divisões internas do regime contribuíram decisivamente para o fortalecimento do movimento pela redemocratização. A crise da dívida externa e a aceleração do processo inflacio­ nário retiram do Estado sua capacidade de manejo eficaz da política monetária. Na hora da crise, portanto, e diante de um futuro incerto, extingue-se a eficácia do principal suporte dessa longa e heterodoxa acumulação politizada, cuja lei de valori­ zação teve sua raiz mais profunda na liberdade de decisão es­ tatal sobre o valor do dinheiro e do direito. Extingue-se esse poder na hora em que, muito provavelmente, assistiremos à implosão do Estado desenvolvimentista.

Crise e incerteza

A própria natureza deste ensaio rejeita conclusões e aponta para novas pesquisas teóricas e históricas. Mesmo assim, é possível proceder a algumas formulações provisórias, visan­ do, por um lado, desdobrar a démarche proposta e, por outro, sublinhar as dificuldades de pensar os caminhos futuros da sociedade brasileira. Sem desvestir o fantasma da crise ou desorientar o rumo da esperança, poder-se-ia apontar, pelo menos, o ponto nevrálgico onde se condensam as dificulda­ des de qualquer interpretação ou previsão ante a conjuntura crítica que estamos vivendo. Do seu interior os projetos de democratização, por um lado, e desestatização e descen­ tralização, por outro, recolhem e repõem problemas inscri­ tos numa tendência de longo prazo que sinaliza uma opção aparentemente vitoriosa, mas que, ao mesmo tempo, consti­ tui o obstáculo central que impossibilita o êxito. Essa situa­ ção cria um impasse e uma encruzilhada de difícil solução. Assim, se de um certo ponto de vista estamos vivendo o final de um longo ciclo, de outro, permanecem vigentes as contradi-

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ções que, havendo influenciado sua dinâmica, impedem sua su­ peração ou, pelo menos, apontam para um processo de lenta, dolorosa e instável reestruturação das relações sociais inscritas na estrutura constitutiva do capitalismo periférico brasileiro. Isto porque, no limite do longo ciclo vivido entre 1914 e 1980, se coloca a necessidade imperiosa de reorganizar os compromissos sociais e políticos que sustentaram as transformações ocorridas. E, neste ponto, esbarramos num conflito de resultado im­ previsível, devido a uma correlação de forças equilibrada. Estamos, uma vez mais, nos defrontando com uma con­ juntura de crise e um horizonte de incertezas, cujo equacionamento passa por uma luta política na qual estão em jogo as próprias regras de valorização do capital vigentes ao longo do período que estivemos analisando. Essas regras são basi­ camente políticas e, por isso, só encontrarão espaço para sua reorganização através de uma luta intensa e prolongada, em que cada interesse deverá valer-se por si mesmo. Luta em que cada grupo de interesse contará com a fatia de que dispõe no interior do Estado enquanto seu principal recurso de poder. Paradoxalmente, trata-se do mesmo Estado de que todos querem se desfazer. Em síntese, estamos vivendo nesta crise brasileira um momento de reorganização das relações políticas e econômi­ cas de dominação, o que só é, de fato, possível através de uma transformação do próprio Estado, numa direção que pode lastrear um processo sustentado de democratização, ou o seu inverso, ou ser mais um furo n’água. Isto, porque no período posterior à Primeira Guerra Mundial, a presença crescente e centralizada do Estado se tornou componente indispensável de um capital cujo trajeto de acumulação altera as tendências à equalização e à concentração, inscritas na lei do valor.

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Essas tendências normais no capitalismo céntrico têm condu­ zido, em todas as etapas, a desigualdades bipolares entre domi­ nantes e dominados, ou grandes capitais e capitais dispersos. Mas, contraditória e conflitivamente têm preservado, o igualamento das condições de reprodução em cada um desses estratos. A novidade trazida pelo monopolismo foi o aparecimento do Es­ tado enquanto agente mantenedor da bipolaridade, assegurando a “equalização entre os iguais”, homogeneizando a taxa de lucros no pólo dominante monopolista e diferenciando-a no setor não monopolizado — com isso, garantindo uma taxa média para todo o sistema. Um Estado moderno, pois, com funções arbitrais, or­ ganizando a igualdade dos grandes capitais, em oposição aos ca­ pitais dispersos, e assegurando, simultaneamente, a reprodução dos dominados. Daí, as verdades parciais dos que, sublinhando um aspec­ to, falam de uma nova etapa do desenvolvimento capitalista — a monopolista de Estado — e daqueles que, sublinhando outro aspecto, destacam a dimensão protetora do bem-estar social nos Estados modernos do capitalismo desenvolvido. Já no caso do capitalismo periférico — e do brasileiro em particular — a valorização se faz numa direção oposta — “desequalizadora” — e apenas parcialmente concentradora. Tendência que, não sendo bipolarizante, promove a reprodu­ ção, quando não o agravamento da heterogeneidade estrutu­ ral dos vários estratos ou segmentos econômicos e sociais e de cada espaço regional. Aqui, o Estado aparece, desde o iní­ cio, atuando numa direção distinta, na medida em que, tra­ tando como iguais capitais desiguais, produz e fortalece a desigualdade, agenciando um desdobramento peculiar da lei do valor, onde reprodução e acumulação convivem com uma desigualdade assegurada pela ação estatal.

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Igualmente, no polo dominado, ao contrário dos países centrais, o Estado periférico não propicia as condições de re­ produção social da totalidade da força de trabalho nem assu­ me a responsabilidade pelos “marginalizados”. Nesse sentido, em vez do Estado de Bem-Estar Social, temos uma combina­ ção permanente e alternada de paternalismo e repressão que logra, a despeito de tudo, inserir uma grande parte da popu­ lação no “mercado capitalista”, enquanto consumidora mar­ ginal dos seus produtos materiais e culturais. Está aí incluída a aspiração ao bem-estar e ao conforto, próprios de um capi­ talismo desenvolvido. Mas essa inserção da população nunca se dá na condição de população trabalhadora, com as implica­ ções socioeconómicas daí decorrentes, nem na condição cida­ dã, com suas implicações político-ideológicas. Desse modo, por trás das similitudes formais que aproxi­ mam o Estado moderno dos países céntricos e periféricos, sobressaem diferenças significativas, vinculadas ao tipo de papel cumprido pelo Estado, tanto no movimento de acumu­ lação do capital, quanto na reorganização periódica da estru­ tura de dominação. Entretanto, é importante sublinhar que essas diferenças não se explicam abstratamente, a partir de demandas colocadas por fases ou etapas de um desenvolvimen­ to capitalista linear. São visíveis na análise do caso brasileiro os conflitos políticos entre interesses de classe e frações; in­ teresses que dão conteúdo e forma ao envolvimento do Esta­ do na regulação e no próprio processo da valorização. Assim, se é verdade que lá como aqui o Estado cumpre uma função arbitrai, exerce-a de maneira inteiramente distinta num caso e no outro. E essa é uma diferença construída his­ toricamente, através do conflito de classes e da competição dos capitais que lograram resguardar politicamente suas áreas de

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interesse econômico, pactuando sucessivos compromissos que viabilizaram o Estado desenvolvimentista e a industrialização, mas ao preço de inseri-los nos limites impostos por suas for­ ças relativas. Foram esses compromissos que impediram uma vitória definitiva das frações de classe e dos capitais individuais economicamente mais fortes. O tratamento igual dos desiguais impõe uma batalha constante pelo controle da capacidade de arbítrio monetário e jurídico do Estado. Nesse sentido, aliás, em termos mais rigorosos, não houve nem mesmo um trata­ mento permanentemente igual dos desiguais. Há, na verda­ de, uma luta constante — e em decorrência dela são tratados “igualmente”, de forma transitória, os vitoriosos de cada tur­ no. Porém, essa dinâmica dá lugar a uma luta interminável e a uma crônica instabilidade financeira, jurídica e política. Nesse quadro, recuar representa a tragédia da dissolução do sistema e avançar aparece como a única solução, ainda que pela via de uma valorização heterodoxamente politizada do capital. Uma valorização que, em função de seus limites polí­ ticos, permite o convívio e a sobrevivência de frações e órbi­ tas financeiras mercantis altamente especulativas e de frações industriais e agrárias de baixa produtividade. Nesse proces­ so, à diferença dos países centrais, os derrotados e os vários setores dominados da “sociedade civil” jamais tiveram qual­ quer poder de veto sobre as decisões dos vitoriosos. A pró­ pria forma de participação estatal impele à centralização e ao autoritarismo. Do ponto de vista de sua dinâmica de médio e longo pra­ zos, o movimento de reprodução e acumulação desse capital, ao passar pelo Estado, aponta, em suas condições e conflitos, simultaneamente, na direção do crescimento e da entropia. Se

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é verdade que a “fuga para a frente” propiciou a centralização estatizante e a industrialização, verifica-se que, ao mesmo tempo, ela desencadeou uma dinâmica cíclica, com crises polí­ ticas periódicas que afetavam a capacidade do Estado de esta­ bilizar o compromisso fundamental em torno à intocabilidade dos interesses condominiados. Estes ciclos e crises, que têm muito maior intensidade política do que econômica, são com­ preensíveis a partir de uma dupla determinação. De um lado, está o poder discricionário sobre o valor do di­ nheiro e das normas que permite ao Estado, através de sua polí­ tica econômica, desvalorizar patrimônios e capitais em função de uma correlação de forças alterável a cada momento, dissolvendo a possibilidade de haver “perspectivas futuras constantes”, con­ dição básica de qualquer investimento de porte médio e longo prazo de maturação. Por essa razão, a contraface do enorme po­ der estatal é uma expectativa constante, por parte da maioria dos agentes econômicos, de uma perda arbitrária de valor e lu­ cratividade dos seus capitais. Em conseqüência, politiza-se a com­ petição econômica, que tende a transformar a concorrência de mercado em luta por alguma fatia do poder estatal. Deriva daí a fragmentação do aparelho e a balcanização do poder do Estado, assim como a perenização de um comportamento defensivoespeculativo dos vários agentes econômico-financeiros que, extrapolando situações circunstanciais, transforma-se em fenô­ meno estrutural. Essa aversão ao risco e a necessidade de que os investimentos fossem sempre subsidiados é o que está na raiz da tão comentada falta de “espírito conquistador” de grande par­ te da burguesia empresarial. Por outro lado, está a obrigação estatal de financiar, ou exe­ cutar diretamente, gastos e investimentos ampliados, o que lhe impõe definir e sustentar as novas fronteiras de expansão da acu­

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mulação. Tarefa de que o Estado se incumbiu pavimentando, num primeiro momento, as condições da industrialização e alavancando, em seguida, os ciclos próprios de sua consolidação e expan­ são. Mas, em conseqüéncia, todas as desacelerações provocadas, seja pelos constrangimentos externos, seja pelo descenso no ci­ clo do capital industrial, afetaram seu volume de recursos e sua capacidade de gastos, desacelerando automaticamente os capitais e empreendimentos dependentes de seus gastos ou subsidios. Nesses momentos, crescem as expectativas negativas, acompa­ nhando a luta dentro do Estado e provocando sua transitoria pa­ ralisia, que tem como decorrência uma inevitável crise política e financeira, lastreada, invariavelmente, numa aceleração inflacio­ nária. Como solução, sempre se aplicaram planos de estabiliza­ ção, que acabaram por frustrar-se, mas por trás dos quais se rearranjam os compromissos, reformulando-se o sistema finan­ ceiro e redefinindo-se as regras da futura gestão estatal. A partir daí, mantido o patamar inflacionário anterior, viabilizava-se um novo surto de crescimento, no qual, como é óbvio, estabiliza­ vam-se as expectativas, diminuindo o número dos penalizados. Por esse motivo o Estado é tão sensível às desacelerações do crescimento nesse peculiar processo de acumulação. Sem apelar para um mecanicismo simplório, poderiamos dizer que, nesse contexto, a perspectiva de estagnação gera, automatica­ mente instabilização política por descontrolar as expectativas, desativar os investimentos, multiplicar os conflitos, acelerar a inflação e paralisar a máquina de um poder estatal fragmentado. Assim, se até os anos 50, o Estado se mostra hipersensível a qualquer perturbação no setor externo, a partir daí to­ das as desacelerações industriais — reais ou meras previsões — se fazem acompanhar de crises político-institucionais e fi­ nanceiras. A instabilidade crônica das instituições e o caráter

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periódico de suas crises como que recortam interciclos polí­ ticos sobre o longo ciclo definido pelas recentralizações im­ postas pelos vários compromissos assumidos politicamente pelas heterogêneas frações da classe dominante. Nesse sentido, é possível entender como um mesmo impulso pode conduzir à hipercentralização e ao crescimento, à fragmen­ tação e às paralisias periódicas do aparelho do Estado, e à instabi­ lidade crônica das expectativas micro e macroeconômicas. Entende-se, também, como a contraface contraditória da indus­ trialização e do desenvolvimento é, nesse caso, a monopolização desigual do capital, a manutenção de ondas explosivas de valori­ zação especulativa e a atrofia de uma burguesia nacional. Esta, dividida e esfalfada na luta pelo controle de alguma fatia do po­ der estatal, a partir da experiência do Estado Novo, sempre teve na bandeira da desestatização e na mobilização controlada das populações urbanas o seu argumento ideológico e instrumento de “chantagem”, mais eficaz nos períodos de derrota ou perda parcial das vantagens estatais. N essa contradição esconde-se, a nosso ver, o segredo da acumulação capitalista e do Estado desenvolvimentista brasileiro, que são impulsionados por uma tendência de longo prazo que impõe o desenvolvimento econômico como única forma de compatibilizar transitoriamente os compromissos, sem impedir, no entanto que tivessem uma direção entrópica no longo prazo. E foi esta entropia que, germinando a cada crise, conduziu ao impasse em que estamos envolvidos. Nele alcançam seus limites o compro­ misso desenvolvimentista e a estratégia da “fuga para a fren­ te”, que são os responsáveis por uma lei de valorização que tem no Estado, tanto seu momento decisivo, como o epi-, centro e a incógnita da crise atual.

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O próprio fato de que, nessa conjuntura, a luta pela desestatização apareça associada a uma defesa das virtudes democráticas por parte da classe dominante parece sinalizar um novo patamar histórico; ou, segundo nossa hipótese, o fim de um longo ciclo político-econômico baseado nas regras de valorização do capital — postas e repostas politicamente des­ de o início do século. Hoje, para expandir-se, o capital neces­ sita rever tais regras, refazendo os compromissos que lhe proporcionavam sustentação. Talvez, nesse movimento, ve­ nha a ser implodido o próprio Estado desenvolvimentista. Entretanto, é difícil saber até que ponto as várias frações nacionais e regionais da classe dominante conseguirão desvencilhar-se desse Estado, ou, pelo menos, estabilizá-lo, definin­ do as regras de seu “tratamento igual dos desiguais”. O que parece certo é que a crise atual tem uma profundi­ dade e complexidade até aqui desconhecidas e que o projeto desestatizante se apresenta hoje com uma força que não teve em 1945, nem em 1955, ou 1965. Nesses momentos anterio­ res a desestatização foi proposta pelas frações penalizadas e, logo depois, abandonada por essas mesmas frações que, vito­ riosas, passaram a controlar o poder que haviam criticado. Cabe lembrar que se o projeto desestatizante se apresenta com essa força é porque a centralização estatizante alcançou uma dimen­ são insuspeitável, levando a um limite máximo o perigo re­ presentado pelo seu poder discricionário. Numa fase recessiva como a que vivemos, em que o ciclo industrial aparece asso­ ciado a uma crise econômico-financeira internacional, o con­ gelamento do financiamento externo soma-se às restrições internas, ambos obstáculos centrais à retomada do crescimen­ to. Nesse momento, como nas crises anteriores, descontro­ la-se o sistema financeiro, só que agora a inflação atinge níveis

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despropositados, somando à incapacidade de gastos e investi­ mentos estatais a aceleração das expectativas negativas e dos comportamentos defensivo-especulativos. Com isso, desgoverna-se a iniciativa do Estado que, paralisado pela balcanização interna do seu poder, vê-se obrigado a trilhar caminhos cada vez mais sinuosos e a uma incoerência crescente. Isto fica explícito nos “casuísmos” legais, no seu comprometimento em empreendimentos ilegais e, finalmente, no seu envolvimento direto, enquanto co-promotor da “ciranda financeira” e de suas conseqüências, a especulação improdutiva e a inflação. Neste quadro, a solução aparente apontaria para antigos recursos que, com uma maior dose de autoritarismo, talvez permitissem sustentar a arbitragem de um novo compromisso. Estes, caso revertessem as expectativas e suavizassem a intensidade dos conflitos, permitiríam uma retomada do crescimento, tendo no Estado, uma vez mais, o seu pólo aglutinador e promotor. Mas essa solução, bem-sucedida em todas as crises posterio­ res aos anos 20, parece, hoje, politicamente inviável. As recentralizações estatizantes e desenvolvimentistas, enquanto movimentos de fuga ao conflito, já não têm aonde encontrar instâncias superiores de arbitragem e aval das re­ gras de reprodução desigual. Desde sua origem, esse padrão de acumulação politizada teve nos militares o recurso poten­ cial ao qual recorriam, em última instância, as frações pena­ lizadas. Depois de 1964 e, mais acentuadamente, depois de 1968, a sustentação do compromisso impôs a solução limi­ te: fez-se indispensável a arbitragem direta dos militares, aliada a uma tecnocracia civil co-responsável pela gestão do pacto então estabelecido. Guindava-se, assim, ao comando daquele que foi o movimento mais profundo de centraliza­

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ção, aqueles que haviam sido, até então, árbitros em última instancia. Com isso, depois do ciclo expansivo ocorrido en­ tre 1968 e 1974, ao renascerem o conflito e a fragmentação do Estado quando da retração, as próprias Forças Armadas viram sua unidade ameaçada por um processo similar de balcanização de seu poder. Sua crescente parcialidade, no apoio explícito ou implícito a uma política econômica que não apenas favorecia determinados setores como também pro­ duzia parcerias ilegais, erodiu sua legitimidade perante as regiões desfavorecidas, as massas urbanas e as órbitas pre­ judicadas do capital. O período Geisel foi sintomático nesse sentido: tentando impor um novo movimento de centrali­ zação estatizante, não encontrou os apoios sociais e políti­ cos de outrora. Fracassou; e seu intento acelerou, apesar da aparência em contrário, a divisão interna dos militares que, ampliada nos anos seguintes, conduziu-os à impotência. Assim mesmo, apesar da decomposição notória e do lon­ go período de retração, a falta de alternativas dentro dos ho­ rizontes estabelecidos pelas regras básicas do acordo comum impedia que o regime fosse, uma vez mais, substituído. Gastara-se a última carta: diante das contradições não enfrenta­ das de um processo de acumulação que teve que respeitar a heterogeneidade, os militares, primeiros porta-vozes da pro­ posta centralizadora, não encontravam mais solução na “fuga para a frente”. Nesse quadro, seguir em frente significaria a ruptura das Forças Armadas ou a passagem a um regime totalitário, solu­ ções inaceitáveis nos termos do pacto que impôs a intervenção militar. Ainda mais inaceitável ou obviamente inviável seria uma solução que passasse pelo avanço da ação estatal na direção de um planejamento estrutural global. Neste caso, estaríamos a

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caminho do socialismo com que muitos sonharam na década de 50, a ser alcançado pela via de urna mágica intra-estatal. Diante de uma recessão e inflação sem precedentes, balcanizado e com suas elites civil e militar imobilizadas pelas divisões, o Estado choca-se, no limite, com os próprios pres­ supostos de sua força: a inviolabilidade da terra e dos grupos financeiros privados quanto à valorização especulativa; a pro­ teção conferida a certas improdutividades; a autonomia decisória do capital estrangeiro; a aversão ao controle dos fluxos de financiamento externo; e, finalmente, a sua própria e natu­ ral falta de autonomia perante esses vários interesses. O Estado desenvolvimentista alcançou, enfim, o limite da efi­ cácia possível de sua intervenção. Impuseram-se, assim, enquanto necessidades da própria ten­ dência “positiva” que nos conduziu à crise atual, ainda que sem doutrina ou programa, as formulações que serviram de instru­ mento de pressão aos prejudicados, e fizeram o horror do pen­ samento conservador dos anos 20 e do positivismo militar desde sempre: descentralizar, desestatizar e democratizar para crescer. Isso, entretanto, não desfaz a realidade estrutural cons­ truída e embutida na ação e na própria institucionalidade do Estado e da economia. Por essa razão, o verdadeiro conflito político e o debate ideológico giram em torno do problema da desestatização. Mas, em face desse conflito o pensamento conservador não identifica os limites políticos postos por ele mesmo à eficácia de um Estado que intervém por delegação das várias frações da classe dominante, visando uma solução para o problema de sua eqüipotência. As classes dominantes desconhecem-se, desse modo, como as verdadeiras autoras dessa fórmula e beneficiárias de sua implementação: propõem jogar fora a bacia, a água e a criança.

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Por outro lado, o pensamento progressista encontra-se numa difícil encruzilhada. Convencido de uma autoria que, de fato, não lhe pertence e acreditando, fielmente, na possibili­ dade de um planejamento estatal do desenvolvimento, tem dificuldades para compreender os limites desse planejamen­ to na situação brasileira concreta. A partir daí se propõe, alia­ do a uma tecnocracia dissidente e “nacionalista”, a defender, no âmbito do aparelho do Estado e fora dele, a necessidade de uma estratégia estatal de desenvolvimento que só seria possível se fossem desobstruídos os seus limites de classe. Para além do nevoeiro ideológico, a realidade dura e crua de fatos determinados por uma estrutura construída ao lon­ go de 60 anos de centralização político-econômica continuada aponta para um quebra-cabeça de difícil solução: como desvencilhar-se de um Estado de que todos dependem economi­ camente, numa luta em que o principal instrumento de poder de cada um é a própria fatia do Estado que controlam? Mantidos os parâmetros estruturais por um longo tempo, a mera aceitação de regras iguais e democráticas significará, inevitavelmente, a persistência do conflito em uma situação aberta e com participação popular, com uma alta probabili­ dade de que isso conduza ao estilhaçamento do Estado que aí está. Numa situação limite, não é despropositado prever uma tendência à centralização do capital, em todas as suas for­ mas, liquidando os interesses secundários e mais frágeis e destruindo os suportes políticos dos compromissos nasci­ dos nos anos 20. Dadas as tendências mundiais, é de se su­ por que por esse caminho se abriríam as portas a um definitivo processo de internacionalização das órbitas agrária, mercan­ til e financeira do sistema econômico brasileiro. Finalmen­ te, a homogeneização dos “verdadeiramente dominantes”.

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Muito mais difícil é prever o que ocorrerá com os domina­ dos. A sua participação era um sistema político aberto for­ mula, pela primeira vez na historia brasileira, o desafio da convivencia democrática com as reivindicações e os confli­ tos postos pela presença popular na cena política. A forma através da qual for equacionado esse problema pesará deci­ sivamente na determinação da natureza desse Estado futu­ ro, em processo de gestação na crise atual. Dissêramos que a releitura teórica do passado não é capaz de exaurir as incertezas futuras. Menos ainda, quando envol­ tos numa crise de tamanhas proporções. No momento em que estamos escrevendo este ensaio, mais do que nunca, tornamse incontroláveis as expectativas coletivas e os atores econô­ micos, sociais e políticos fazem-se e refazem-se, com enorme velocidade, segundo recortes que agrupam interesses extre­ mamente variáveis e inorgânicos. Adensa-se o peso da força material dos grupos de interesse e o da vontade política de cada setor ou região, tentando impor uma solução que deverá nascer, entretanto, de uma luta extremamente prolongada. Luta sem leis ou fronteiras que não as impostas pelo próprio desdobramento do conflito. Agora, mais do que nunca, como diría Gramsci, estamos diante de um “processo em desenvolvimen­ to, que tem por autores os homens e a vontade e a capacidade dos ho­ mens”. Agigantam-se, pois, a força, a vontade e as expectativas como fatores determinantes de uma trajetória, perante a qual a teoria encerra sua tarefa, reconhecendo sua impotência. O que é possível dizer, no âmbito da hipótese que, em amplas linhas, resume o pensamento exposto, é que está claramente esgotada a possibilidade de se seguir equacio­ nando o conflito entre as várias frações da classe dominan­ te, e dessa com os setores dominados, na forma de um

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compromisso cujas contradições “empurraram” o desenvol­ vimento e a centralização estatizantes simultaneamente, como solução parcial e anúncio da próxima crise. Esgotouse um ciclo que, a partir dos anos vinte, teve no estatismo e na centralização sua face manifesta. Manteve-se, com isso, um ritmo regular em um tempo político que se organizou de forma igualmente centralizante (ainda que movido por outras forças e segundo outra lógica) entre 1830 e 1870, para abrir-se, em seguida, num movimento de descentralização do poder movido pela dinâmica de uma acumulação capi­ talista agroexpontadora, regionalizada e oligarquizada, até o momento da Primeira Guerra Mundial. A hipótese aponta, assim, para uma descentralização ne­ cessária do poder. Mas, à diferença daquele tempo, a com­ plexidade dos interesses e o grau de concentração real do poder dificultam qualquer sonho liberal-federativo. O mais provável é que a batalha pela desestatização encubra longo período de luta e incerteza, quando estarão sendo definidas as regras da gestão política e econômica do novo ciclo de crescimento econômico. Nesse período de crise e reformas, entretanto, deverão ser solucionados os problemas postos pelos poderes discricionários do centralismo estatista. Ao longo desse caminho, como dissemos, não é improvável um estilhaçamento do poder do Estado, como ante-sala de um novo surto de internacionalização, que é a direção mais pro­ vável de um futuro ciclo de crescimento econômico no Brasil. Se estiver correta nossa hipótese, o mais provável é que ago­ ra soe, com mais intensidade do que no final do século passado, a profecia formulada por Nietzsche: “(...) cedo irrom perá com aind a m a io r energia o grito de com bate; (...) o m en o s de E sta d o p o ssível”. Neste ponto, contudo, diante das incertezas do futuro, cegam-se os olhos da coruja — pássaro de Minerva.

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Posfácio

Ao começar o ano de 2003, a posse do primeiro governo de esquerda, na história do Brasil, recoloca a discussão sobre as potencialidades e o futuro de um país periférico, situado no contexto americano, sem moeda forte e sem peso dentro do jogo geopolítico internacional. Uma discussão que pode ser facilitada se houver acordo sobre o que foram a história e as “longas durações” do desenvolvimento brasileiro. Este foi o objeto desta tese escrita em 1984 e republicada agora com o título de O Vôo da Coruja. Numa nova leitura, quase vinte anos depois, fica mais fácil sintetizar seu argumento sobre a histó­ ria estrutural que esteve por trás do debate econômico e da luta política que atravessa o século X X (sintetizada no Prefá­ cio), entre as várias gerações de “metalistas” e “papelistas” — e de todos esses, contra os socialistas e os “reformistas”. O Brasil e os demais estados latino-americanos, que nas­ ceram da decomposição dos velhos impérios ibéricos, manti­ veram-se, durante o século XIX, na condição de periferia independente dentro do sistema mundial dominado pelos europeus. Uma exceção notável, no momento em que os novos impérios europeus optaram pela ocupação colonial de seus domínios africanos e asiáticos. Do ponto de vista geopo­ lítico, a América Latina ficou completamente à margem do

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dinamismo produzido pela competição das Grandes Potên­ cias. Do ponto de vista económico, o Continente foi trans­ formado, neste período, num laboratorio de experimentação do “imperialismo de livre-comércio”, modelo teoricamente concebido pelos pais da Economia Política Clássica e liderado ou imposto, na prática, pela Inglaterra. Neste contexto se formou o estado brasileiro e definiu-se seu lugar dentro do sistema mundial articulado pelo Império Britânico. Não era um dominium anglo-saxão, mas estava com­ pletamente submetido ao sistema monetário e financeiro da Inglaterra e espelhava-se cada vez mais no modelo político e na legislação norte-americana. Mesmo depois da proclamação da República, o Estado brasileiro seguiu sendo uma organização nacional frágil, com baixa capacidade de incorporação social e mobilização política interna e sem vontade, nem pretensões expansivas. Do ponto de vista estritamente econômico, foi uma economia primário-exportadora até a crise mundial de 1930, seguindo uma trajetória de crescimento e modernização res­ trita às atividades ligadas à exportação e submetendo-se intei­ ramente às regras e políticas liberais impostas pelo padrão-ouro. Essa forma de inserção econômica internacional permitiu que o Brasil crescesse até os anos 30, graças à complementaridade entre a sua economia e a economia mundial e graças, sobretudo, à integração do país com as finanças inglesas que permitiram que o país obtivesse, nas fases recessivas do ciclo, o financiamento externo indispensável para evitar crises mais agudas no balanço de pagamentos, como a que levou o país à Moratória em 1897. Mesmo assim, esta primeira experiência liberal de desenvolvi­ mento demonstrou ter um limite crônico de “restrição externa” posto pelos problemas de balanço de pagamentos e pela fragili­ dade da sua moeda.

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Entre a crise de 30 e o inicio da Segunda Guerra, o Brasil foi obrigado a uma resposta política interna que resultou na reforma e fortalecimento do estado central e explorou, no campo externo, o espaço aberto pela luta entre as Grandes Potências pela supremacia mundial. Sua margem de autono­ mia, entretanto, foi pequena e curta e, em 1938, alinhou-se urna vez mais ao lado da liderança anglo-americana. Do ponto de vista econômico, contudo, a resposta à crise dos anos 30 obrigou o país a um processo quase espontâneo de “substi­ tuição de importações” e a um protecionismo pragmático, visando enfrentar o problema da escassez de divisas. Este processo impulsionou a industrialização, mas a substituição de importações espontânea enfrentou limites claros e ime­ diatos e a continuidade do desenvolvimento só foi possível quando a restrição externa deu origem, a partir de 1937/38, a um projeto de industrialização liderado pelo Estado e vol­ tado para o mercado interno. Depois da Segunda Guerra Mundial, a competição geo­ política entre EUA e URSS teve um papel decisivo na defi­ nição dos caminhos do desenvolvimento do Brasil. O país não teve posição relevante na geopolítica da Guerra Fria, mas foi colocado na condição de principal sócio econômico dos Estados Unidos dentro da periferia sul-americana. Não hou­ ve Plano Marshall para a América Latina, nem um projeto regional sustentado pelo acesso privilegiado aos mercados norte-americanos. Mesmo assim, o Brasil contou com o apoio americano, no período democrático como no autori­ tário, e acabou se transformando numa experiência original de desenvolvimento “excludente”, apoiada também pelos organismos multilaterais e com a complementaridade entre os investimentos estatais e o investimento direto do capital

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privado de quase todos os países do núcleo central do siste­ ma capitalista. Durante todo o período desenvolvimentista, o Brasil manteve uma das mais elevadas taxas médias de cres­ cimento mundial. Mas o crescimento não foi acompanhado de igualdade social e a forte presença econômica do Estado não implicou a existência de um Estado forte, com um pro­ jeto claro de poder nacional. N a década de 70, este quadro sofre uma modificação im­ portante graças à “crise da hegemonia norte-americana” e à grande disponibilidade de liquidez internacional, que permi­ tiu o afrouxamento da restrição externa. O fim do padrão dólar se somou a derrota dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, abrindo espaço para uma nova tentativa brasileira de autonomização de sua política externa, com o projeto frustrado do governo Geisel, de promoção do Brasil à condição de “potên­ cia intermediária” dentro Sistema Mundial. A abundância de crédito privado para os países em desenvolvimento permitiu uma aceleração das taxas de crescimento e, no caso do Brasil, permitiu um avanço no processo de industrialização iniciado nos anos 50/60, complementando a matriz industrial com a produção de bens de capital e dos insumos necessários ao fun­ cionamento da economia. A contrapartida deste processo foi um endividamento externo que ultrapassou as possibilidades do balanço de pagamentos, sendo responsável em grande me­ dida pelo estrangulamento do crescimento, no momento em que a economia brasileira foi submetida — no final dos anos 70 e início dos 80 — a quatro choques fatais: elevação das taxas de juros internacionais; recessão na economia mundial; dete­ rioração dos termos de troca e interrupção do financiamento externo depois da moratória mexicana. Foram estes os prin­ cipais fatores que submeteram a economia brasileira a uma

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severa crise do balanço de pagamentos e que obrigaram os governos da década de 80 a fazer uma política de promoção ativa das exportações e de controle das importações, para dar conta do serviço da divida externa. Como conseqüéncia, o país viveu uma recessão seguida de redução da taxa média de cres­ cimento, a que se somaram várias desvalorizações cambiais e a aceleração da inflação. No início dos anos 90, a vitória americana na Guerra Fria, a nova utopia da globalização e mais uma onda de liquidez in­ ternacional criaram as bases materiais e ideológicas da nova virada liberal das elites e do Estado brasileiro. Do ponto de vista geopolítico — em particular no período FH C — , o go­ verno brasileiro apostou no nascimento de uma nova sociedade civil e nas possibilidades da política internacional ou global. N a prática, o que ocorreu foi um aumento da internacio­ nalização dos centros de decisão brasileiros e uma fragilização do Estado, cada vez mais dependente do apoio norte-ameri­ cano nas situações de crise. Do ponto de vista econômico, a disponibilidade de ca­ pitais internacionais financiou o abandono da estratégia desenvolvimentista e a volta ao livre-cambismo da Repú­ blica Velha. Hoje está cada vez mais claro que a onda ex­ pansiva dos investimentos externos da década de 90 não teve o mesmo efeito dinamizador do período desenvolvi­ mentista. Como conseqüéncia, no início da nova década, a economia brasileira foi devolvida a sua velha e permanente “restrição externa”: uma espécie de sinal indelével do lu­ gar periférico do Brasil dentro dos Impérios britânico e norte-americano. Olhando para trás, destacam-se, nesta história, algumas “recorrências” importantes para o futuro: i) todas as gran­

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des mudanças de rumo estratégico do país ocorreram em momentos de crise ou transformações mundiais; ii) a po­ sição e o apoio dos capitais e governos anglo-americanos tiveram papel decisivo nas escolhas brasileiras; iii) em to­ dos os casos, a “restrição externa” econômica e a fragilidade monetária pesaram contra a autonomia brasileira e a favor de um Estado fraco; iv) as elites brasileiras nunca precisaram da incorporação popular para garantir a reprodução e acu­ mulação de sua riqueza patrimonial ou mercantil nos cir­ cuitos financeiros internacionais, com o apoio do seu próprio Estado. Em 2002, a vitória eleitoral de Lula, com seu novo pro­ jeto estratégico para o Brasil, ocorreu, também, num mo­ mento de mudança internacional. O mito da globalização perdeu fôlego e a guerra voltou ao epicentro do sistema mundial, onde os Estados Unidos acumulam um poder fi­ nanceiro e militar inquestionável. O eixo geopolítico do sis­ tema se deslocou para longe da América Latina e a economia mundial balança na beira do precipício da deflação que, se ocorrer, poderá globalizar a paralisia japonesa. A moeda bra­ sileira segue fraca como sempre foi e a restrição externa vol­ tou a bater com força na porta da frente. Depois de oito anos de reformas liberais, o Estado aparece, uma vez mais, fraco, desarticulado e com baixa capacidade de iniciativa es­ tratégica. Neste contexto, a grande novidade é a vitória de um partido de esquerda, com um projeto popular e nacio­ nal de democratização do desenvolvimento: uma novidade histórica, em todos os sentidos. A viabilidade do projeto dependerá da sua capacidade de mobilizar o povo e cons­ truir uma vontade nacional, obrigando as elites a se volta-

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rem para sua própria terra e sua gente. Se isto ocorrer, o Brasil passará a ter uma posição e um poder externo com­ pletamente diferentes, independentemente do contexto mundial conservador e recessivo, até porque o mundo pre­ cisa, com urgencia, de um modelo substitutivo, na hora da morte da utopia da globalização.

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