O teatro é necessário?
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Coleção Debate s Dirigida por J. Guinsburg

denis guénoun ,. O TEATRO E ,. NECESSARIO?

Equipe de Realização - Tradução : Fdtima Saadi ; Revisão t écnica: Celina Moreira de Mello (francês), Henriqu e Cairus (grego), Cecília Araúj o (latim); Revisão: Saulo Alencas tro c Lilian Miyoko Kurnai; Produçã o: Ricard o W. Neves c Raquel Fernandes Abranches

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PERSPECTIVA

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil) Gu éuoun, Denis, 1946· .

O teatro é necessário? 1 Denis Guénoun ; [tradução Fálima Saadi]. - São Paulo: Perspectiva, 2004. (Debates; 298 1 dirigida por J. Guinsburg)

Título original: Le th éâtre est-il n écessaire? Bibliografia. IS BN 85-273-0700-6 I. AI1edramática 2. Teat ro - Filosofia I. Guin sburg, J. 11. T ítulo. 111. Série.

Para Paola 04 -5606

CDD-79 2 .01 índices para catálogo sistem ático: I. Teatro : Filosofia 792 .0 I

Ilireilos reserva dos e m língua portuguesa 11 HllI T( lRA PERSPECT IVAS.A. Av. Brigade iro Luís Antônio, 3025 O1,10 I 000 - S;io Paulo - SI' - Brasil 'Ick-lux : (0-- 11) 3XX5-X388 www.cditornpcrxpcct iva.com.br ,' 00·1

SUMÁRIO

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Não haveria crise do teatro se o teatro fosse para nós, simplesmente. "co isa do passado " I: se ele se afastasse ou se eclipsasse irremediavelmente. É verdade que. num certo sentido, ele enco lhe e parece destin ado a se extinguir. Seu públi co diminui . dizem as pesqu isas. Ele não fu nciona mais como centro: os poderes dominant es n ão usam mais seu brilho para exibir-se. ostentar os signos de sua dom inação simbó lica e de sua hegemonia' , Ele ficou árfão das revolu ções. Sua funç ão se embara lho. Sobretudo, segundo a opinião corrente , os desafios mais arr iscados da represen tação coletiva se estabelecem neste momento em atos narra tivos ou f igurativos

I. Hegel. Cours d 'esthétique l, tradução de J.-P. Lefebrcc V.Von Schenck ,

Aubicr, 1995. p, 18. (Em português: Curso de Est ética , trad ução de Marco Aurél io Werl c, São Paulo. Edusp, 1999), 2. J.-M. Apostolides. Le roi-machine. Specta cle et politiqu e au temp s de Louis X/V. Minuit , 1981. (Em portu guês: O Rei -Máquin a: Espet úcuto e PIlIítica 110 Tempo de Lu ís XIV , trad ução de Cláudi o César Santoro, Rio de Janeiro! Brasíli a. José O lympiolEd . UnB . 1993 ).

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que CUI /JII I TWU o teatro pa ra as margens: cinema, televisã o. Tudo deveria nos levar a conside rá-lo uni artesanato supe rado, um a p eça de museu, vestígio de 1111/ mundo ultrapas sado. Ora , o tempo de sta retração é tamb ém o tempo em qu e o teatro se amp lia, prolifera, ga nha espaço em toda parte. Na Fran ça , os teatros públicos, cujo n úmero aumentou ba stante e cuj a geog raf ia se ampliou a ponto d e co b rir quase todo o território, es tão tomados , sitiado s, por "com panhias " qll e se multipl icam de fo rma explos iva: elas existem aos milha res, hoj e em dia. Pa rti cipcnn destes g rupos, maiores ou me nores, legiões de aspi rant es à vida teatra l. Nada indica, apesar dos so nhos das au torida des , qu e es ta proliferaçã o vá estancar. Pelo co ntrá rio : a cada an o, acrescentam -se a es tas companhias multidões de j ov en s qu e se ins cre vem em curso s de a rte dramática, aulas d e teatro ofere cidas em toda pa rte 1/0 âmbito do ensino secund ário e fac uldades de teatro qu e tnob ilizant 11m n úme ro cresce nte de profi ssionais. A sin gul a ridade do que poderia pa ssar po r um I /O VO a ma dorismo é ev ide nte; no pól o oposto, a aspiração in tratável destes j o vens entusiasma dos à qu alificação "profissiona l", qu e de no ta simples me nte seu des ejo ardente de vive r o teatro, de vive r de tea tro: de f azer do teatro o ce ntro de suas vidas e inscreve r es te entus ias mo no princípio de sua exi stência socia l. Mas em volta dest es exércitos d e voluntá rios é preciso ainda localizar as múltiplas extensões da atividade dramática nos lugares mais divers os: prisões, hospitais, escolas , claro, e, hoje, os bairros dito s "e m si tuaç ão de risco soc ial " ou conf lag rados. São luga res qu e, há algu m an os, teriam atraído a ate nção da milit ân cia pol ítica e que hoj e são tom ados p ela no va mo da . A eles é preciso a inda acrescenta r, last bu t not least , o tea tro amador, per sist ent e ou niutante, em suas fo rmas tradi cion ais ou modernizadas. A crise do teatro proced e, exa tame nte, do encontro entre est as du as din âmicas contrárias. Por si só , o enf raquec ime nto d o te atro não ex p lic a ria a c rise: o re cuo, o ab atulon o 1/(/0 chegam a cons tituir uma crise . É preciso a viol ênc ia da tensã o entre mo vimentos co ntrá rios. Ora , há 12

uma crise declarada', Porqu e o teatro, em suas fo rmas es tab elecidas, não encontra nenhum recurso para resp onder à necess idade de teat ro que a vida coletiva produz de f orma t ão intensa. O teatro conve nc ional bus ca heroicam ent e espectadores qu e escasse iam e, ao mesm o tempo, está atravan cado por hordas de candidatos qu e batem às suas portas. É ev ide nte qu e estas duas tend ência s praticament e nã o se cruzam : o crescime nto vertiginoso do número de atores poten ciais não produz uma amplia ç ão conco mitante do p úblico, ass im como a rarefa ção do público não aca rreta a qu eda na [ reqiiência aos cursos e ofi cinas. Qualquer análise da crise do teatro que só leve em conta um destes dois elemen tos pe rde de vista se u obje to e se conde na à cegueira e à imp otên cia: quer se busque um diagn óstico em term os simpl esm ente art ísticos ou culturais (disposiç ão dos espectadores, crítica ao repertório, crise das institui ções] o u em termos soc iológicos (ne cessidades deformação, redes edu caciona is). A crise do teatro tem qu e ser compreendida a partir do elo qu e estas duas sé ries de faro s heterogên eos estabe lece m entre si. A confusão das "institui ções " nada seria sem o surgimento de contra- legi timidades prolife rant es qu e as ce rcam e as perseguem. Enquanto este outro teatro, d ifuso e l âbil, se ref ere, por mimetism o ou rejeição , ao modo de produ ção dominante na vida teatral instituida. So bretudo - sim, sobretudo, porqu e é aí qlle a f erida supura - o conge lamento estético e moral 110 qual o teatro está ence rrado, sua impotência f ormal, a esterilidade de seus conte údos, a letargia que o entorpece, pondo em risco todos os que o servem , não podem se r pensados, nem, por conseg uinte, afa stados, sem qu e se apreendam em conjunto os dois lados do prob lema, 0 .1' dois componentes da crise e o sis tema de cr ise qu e os ma ntém un idos. 3. Em junho de 1966. aconteceu em Saim-Eticnne c no Loire um primeiro Fórum do Teatro Europeu, organizado por iniciativa do Centre Drnmariquc National. Quase todas as comunicações mencionaram uma situação de crise institucional ou est ética. Nas apresentações de J. De Decker (Bélgica), J. Giedris (Lituânia), T. Kubinowski (Polônia), M. Pcrcz Coteri llo (Espanha), O. Ponte di Pino (Inilia), T. Proskourn ikovu (Rússia), L. Ring (Suécia), R. Zahnd (Suíça romanda ) lorum rratudos fen ômenos relacionados aos que aqui mencionamos.

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A imperiosa obrigação de pensar conjuntamente os doi s termos desta questão resulta, para dizer a verdade, de uma observação muito simples. O conflito ou a discordância entre eles se enraíza no âmago. do faro teatral, naquilo que ele tem de mais elementar: o teatro não é uma atividade, mas duas. Atividade de fa zer e atividade de Vel: Pode- se objetar que isto é verdadeiro para todas as artes e tamb ém para outras coisas. Claro . Mas a especificidade do teatro diz respeito ao fato de que , nele, as duas atividades são indissociáveis e "o teatro " só existe com a condição de que ambas se dêem simultaneamente. É possível dedicar- se ao exercício da fotografia, da escultura ou da poesia e se indagar depois (ou , ao menos, separadamente) a respeito da "difusão ", da apresentação daquilo quefoi realizado. O teatro impõe, num espa ço e num tempo compartilhados, a articulação do ato de produzir e do aro de olhar : E ele só se mantém de pé se estas duas ações se orquestrarem. Ora , o momento que vivemos está marcado pelo divórcio entre ambas: aprofundo-se a separação entre o teatro que se faz (ou que se querfa zer) e o teatro que se vê (ou que não se quer mais ver) . Atores e espectadores caminham sobre trilhos cujo trajeto é divergente: o teatro está abalado, o edifício não se sustenta mais. É preciso rearticular em uma outra síntese as condutas que o desejo de ver e o impulso de agir engendram. Ela s ordenam hoje duas legitimidades teatrais sepa radas, sem ligação. Urge trabalhar para sua recomposição. A tarefa requel; no meu entendei; que seja colocada a cada um destes dois teatros, da forma menos negligente possível, a questão de sua (e ventual) necessidade. Seria preferível, claro, interrogar a necessidade do teatro, mais que sua essência. A questão da essência remete à possibilidade" de um núcleo estável do ato teatral, cuj os atri-

4. " A filoso fia chama est a qüididudc de cssentio (essên cia ). Esta torna possível o cnte naquilo que ele é. Daí ela ser designada co rno possibilitas (possihilida de intr ínseca) da co isa como 1'1 1(realitas) [ ...]. Todo ente "possui" asxiiu ]...1 csscntiu e existcntia , possibilidade e realidade." M. Hcidcgger, KOI/I 1' / /1' l,mIJlhl/(' de lo métupliysiquc , tradução de A. de Walhcn s e W. Bicmcl, Gullinum l, Ie/II atividade represe uuuiva Idiá lIIillléselis], é e vide nte qu e é nosfatos Ip r lÍ gl/lII si l/"o] 'lI/ e e/e deve inscrever isto 1/0 COIIIpor lelll/}() i eréo/l!ÚI.

Assim o espetácu lo é aqui c laramente relac io nado a um regi me da visão di re ta, imed iata mente provedora de a fetos . E nq ua nto que o teatro é pensado a partir da prod ução da h istóri a , oferec ida a um o lha r cognosce nte . Teatro teó rico , por ta nto pelo mérito de sua visão ded ut iva , lóg ica - e nq uanto o espetác ulo se ate ria à mo stração de mo ns tros , à eficác ia patogênica , d ireta do vis ível. Aqueles qu e hoj e se e m pen ha m em reabil itar o espetáculo, descob rindo nel e as vi rtudes da me d iação e da distância (e anexa ndo a e le o teatro, como se este fosse um a de suas subes pécies) , poderiam ta lvez med itar co m provei to so bre esta oposição'".

5X. Duponr -Roc e Lallot , op, cit. , p. 190. 59 . 1 45 ~ b 1-6 . 60. Quer dize r, nas açõ es rea lizadas. 6 1. 145~ b 8- 14 . Gri fo meu. 62 . Cf. R. Deb ray: "L 'hommc a beso in d u s pcctacle pour acc éder i\ la v érir é", Le MOI/de des Livres, 19-07-96 , p. VIII. E também: "P ourquoi lc specraele?" em Les Cahiers de mcdiologic, I , "La Qucrcllc du spcctacle", pp. 5-1~.

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A necessid ade do teatro , pensado seg undo o mod o ar istotélico , se revela então co mo fund ament alm ente dupl a: necess ida de d e um a pr átic a (cê nica) e d e uma te ori a (es pec tado ra) . Agarradas às du as verte ntes da niintêsis, es tas duas ope rações parecem respond er a dua s es péc ies de necessidades, amb as naturais, mas que nada de ess enc ial liga: necess ida de de representar, necessidade de o lha r o qu e se repr esenta. Como co mpree nde r então qu e possa se co nstituir , em sua unidad e, algo com o "o teat ro", para empregar nossa designação modern a? Qual pode se r a necessid ade desta aprox imação? Aq ui é preciso co nje turar : o te xto da Poética não resp onde nada de ex plícito . Mas podemos nos ave ntu rar a ded uz ir o que e le não d iz. Pode mos pe nsa r qu e es ta un ião proced e , logicamen te, do fato de que es ta prátic a c es ta teoria se impli cam recip rocamente. A prática não se basta co m sua aut o-efetiv ação , é-lhe necessári o se apresentar a um o lhar que distin ga e des cubra suas formas inteli gíveis . O teatro atestaria portanto que não há prática pura , mas qu e a prática (ao men os a prática que desperta os humanos desde a infância, dand o-lh es a possibilidad e de apr end er por [rejprcsent ação) qu er se r co nside rada, teo rizada , co nhec ida . Por se u lado, a visão (teo ria) não pode se bas tar co mo co nte mp lação pura das co isas em sua feno me na lidade, se u apa rec er imedi ato, sua presença, mas qu er co nhece r represent ações, atos miméticos, práticas: fatos co mpos tos co mo histór ias. O teatro diria então que são nec essári as à teori a não co isas que se mostram, mas hist óri as ativas. Ou : que as coisas jamais se mostr am , co ntrariame nte aos ideologema s da moda, mas qu e o conheci mento as apreend e co mo reali zações práticas. E o teatro , co mo unidade qu e en glob a, respond er ia a (o u: por) es ta necessid ade: necessid ade, vital ou viva - natur al - , de um a visão cog noscc nte de histór ias em ato.

hoje, irremediavelme nte, destruído. Este teatro não pode , de mod o a lgum, se r mais o nosso. E a necess idade, even tua l, de nosso teatr o não pode abso lutame nte result ar de suas disposições . É preciso tent ar co mpree nder o moviment o que nos lançou para fora de sua pa isage m.

A Poética co mprova, co ntra nossos olhos reti cent es, a exist ênci a deste teatr o de práticos c teóricos associados. Qu e e le tenha ou não existido é uma outr a questão: não tem os que decidir aqui se o livro é um documento fiel ou uma fic ção especul at iva. Uma coisa é certa: o sis tema qu e e le expõe est á

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1)~ f){ ICiv.iP II La p ratique du th éâtre , de Fra nçois Héd e lin , ab ade d ' Aubignac , dat a de 1657 1• Seria se m dú vida apaixonante conh ecer em detalhes a históri a da gênese dessa obra' : texto engajad o, qu e desejava agir no se ntido de soerguer, de recuperar o teatro' qu e d ' Aubignac cons ide ra va, j unta me nte co m muitos de se us contempor âneos , co mo tend o de saparecido na noit e medi e val para só renascer no século XVI, sob formas men or es , bufas, ignorantes da s normas da Arte", Te atro qu e, I. L' Abbé d' Aubignac , La Pratique du théãtre, ed ição es ta beleci da e prefaciad a por P. Manino. Publica tions de la Facultédes Lellres d ' A lgc r, I' sé rie , l. 11 , J. Ca rbo nel ed ., Algc r, 192 7. Co mo es ta ed ição não é a mais c itada habitualment e, farei refe rên cia aos capírulos, além do núm er o das páginas. 2. Cf. o pre fácio de P. Martino, pp, I-XX IX. 3. C f. " Projeto para a Recuperaçã o do Teatro Fran cês" , lbid., p. 38 7 sq . 4 . " A un e de co mpo r os poemas dram át icos, e de represent á-los. parece ler lido o mesm o destin o qu e os so be rbos ed ifícios , onde os antigos os havi am tantas vezes admirado . Ela seg uiu a derro cada destes prédios e por m uito tempo este ve co mo que sote rrada sob as ruí nas de A renas e de Rom a . E qu and o Foi

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a part ir de me ad os do século XVII, se procurou rest aurar e m se us fund am entos , e levando -o à a lt ura de sua d ign id ad e . D' Aubig nac (co nse lhe iro de um Richelieu c ujo e ngajame nto nesta lu ta foi da ma ior import ância") tom ou parte ativa neste co mbate - co m mai s a lg umas pessoas , cl aro. E a hi st ó ria de sta lut a co letiva é ai nda mais fasc ina nte na me dida e m qu e produziu aquilo que pretendia : e m 1680 , o teatro tinh a mudado de face , um a outra " prática do teat ro" tinha vindo à luz e tomado a di anteira. Ora, lend o o texto do tratad o pod em os, num prim e iro mom ento, ac red itar qu e es tamos num uni verso mu ito pr ó ximo ao da Poética . D' A ubig nac não pára de citar Ar istóte les , c ujos princípi os ele pretende exp licitar para q ue sejam novame nte respe itados. Além dis to, a "prática do teat ro" na q ua l e le se e mpe nha é, na verdade, bastante poética. A resso nâ ncia mod ern a do títul o não nos deve enga nar : a o bra não visa qu estões cê nicas , trabalh o de ato res o u dir eção de trup cs. S ua " prática" é a do d ram aturgo . "Ao lon go dest a obra não tive outro prop ósito senão o de instruir o poe ta de várias particu larida des que ju lgue i muito important es para q ue se for me a con tento uma peça de teat ro'". O u, mais precisam e nte ainda: No tocante às observações q ue era necessário fazer so bre [...] a habilidade para prepara r os incid entes, para reunir os temp os e os lugares, a co ntinu ida de da ação, a ligação das ce nas , os inte rva los dos atos , e ce m ou tro s det alhes, não nos restou nenhum relato da Antig üidade e os modern os falara m tão pouco sobre o assunto que é possível di zer que ele s nada esc reve ra m a res pei to. É a isto que ch am o Prát ica do teatro",

Para e le , co mo para Aristó teles, todo o fa zer do te at ro (o q ue nós cha ma ría mos o "fazer te atro" ) est á reunido na escrita, a fábr ica da s o bras desti nada s ao pa lco . E se e nco ntra mo s na o bra , co mo em Aris tóte les, alg umas o bservações so bre o u-

recupe rada nos últimos te mpos para ser revivida neste Reino , surgiu com o um co rpo ex um ado, horrend o, disforme, se m vigor c qua se sem mov imen to." Idem, livro I ca poI, p. 15. Mode rnizei a grafia . 5. tbid., livro I, cap oI, pp. 16-1 7. 6. tu«, livro 111 , cap . l lI, p. 185. 7 . Ibid. , livro I, cap o 111, "Sobre o que se deve e nte nder por Prática do Teatro" , p. 22 .

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tros aspec tos da " prá tica" , é, no e ntanto, a feitura dos poemas q ue co nce ntra s ua ate nção . M as d' Au big nac nos pare ce pr ó xim o da Poética também po r um a o utra razão . É que , seg uindo o uso c láss ico, se u texto de no ta uma es pécie de indec isão no e mprego das palavras " ator " e " pe rsona gem" . "Ator" é e ntendido às vezes em nosso se ntido moderno: evocando o teatro po uco de po is de se u "soc rguirne nto" q uan do, ai nda co nvalescente , e le não tinh a se recuperado seg undo os pr incíp ios da ar te , d ' A ubig nac escreve: "Os atores não tinh am co mpreensão a lg uma do ofíc io qu e cxcrcia rn' ". Neste ca so trata-se dos atores . Mas e le not a em outra passagem que "os ant igos poetas rara me nte faze m os atores morrerem em cena?", o q ue , com ce rteza, se refere aos pe rso nage ns - uso corrente e m Cornei lle e e m todos os escritores da quela época . De um te rm o a o utro , o se ntido pod e perm anece r indeterminado, o qu e poderia lev ar a acred itar num a es péc ie de indi stin ção a ná loga à d os práttontes da Poética: afina l, "ato res " pod e va le r co mo trad ução adeq uada do te rm o grego e desig nar, na mesm a ambigüida de , aq ue les que agem no pa lco!", Ass im d' A ubig nac , lendo Ar istóte les , opõe o coro "aos outros ato res q ue são, em geral, be m mais atua ntes " ! I , o qu e, para nós , pode ser co mpreend ido tant o como re ferênc ia aos outros pe rso nage ns , mais e ngajados na históri a, qu ant o aos outros intér pretes, mai s ativos na re present ação. Uma Ilu tuação co mpa ráve l ati nge a palavra " perso nage m". Ela vale, co mo hoje, para o ser de ficção : d ' Aubig nac cita Dem ósten es q ue, para falar mal de És q uino, qu e r " reve lar que e le tinh a sido histri ão, m as muito ruim e representava apenas o terceiro pe rsonagem''P; aqu i, " pe rso nage m" é empregad o numa acepção mais próx ima do uso mod ern o . Enq ua nto qu e, qu and o e le nos rec ord a "q ue no tem8. iu«, livro I, ca poI, p. 15. 9 . lbid., livro 111 , ca p. Iv, p. 208 . 10. Um séc ulo mais ta rde, R émond de Sai nte-A lbinc citará ainda " a designação de ato res, qu e só é atribuída aos personagens de uma obra dramát ica porq ue es tes devem ser se mpre age ntes" . Cf. Lc Comédie n, em Didenn e/ te thé âtre ll.L 'Acte ut; apresentação A. Mesnil, Agora-P ockct, 1995, p. 203 . 11 . tu«, livro 111, ca poIV, p. 198. 12. lbid., livro 111 , cap o111 , p. 192. Gr ifo meu .

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po de T ésp is havia [...] coros antigos e atore s que fazi am este Personagem ou Histriã o" , o termo , tom ado co mo si nônim o de histri ão , de sign a a apa rição do ator corno tal!'. Nuan ces refin ada s : mas c ujo refin am ento ates ta qu e as palavras deslizam com facilid ade de um sentido a o utro . Pod e ríam os, po rta nto , sup or qu e d ' A ubignac , co mo Aristó te les , es tava pou co preocupado e m dis ting uir aq ue les que age m na história daqu eles qu e age m no pal co. Ora, não é nad a di sto. O equívoc o é de língu a, todo o es forço de d ' Aubignac, ao contrári o, pretende reduzi-l o. Sua inici ati va, mesm o tribut ária da Poética e ac red ita ndo se r- lhe fiel , de fato, de la se di stancia, ass ume se ntido por es ta d istâ ncia e se e mpe nha e m aprofundá -la.

I/ O VO

A prim eira diferen ça, po r onde a distância se instaura, di z resp eit o à atitude e m rela çã o aos espe ct ad or es. A Poéti ca , co mo vimos , é (pa ra expressá-lo em termos mod ern os) poéti ca , ao mesm o tempo, da ação e do olhar. Os dois domínios, d ist intos , proced em de du as necessidades di stintas, mas o fat o do teatro os reún e e os torn a so lidá rios . C om La Pratique du th éãtre , embora não pareça, não é bem isto o qu e ocorre . D' Aubignac intitula um capítul o " Dos espect ad ore s e d o m od o c omo o poeta os d eve c on siderar " . N el e , d ' Aubignac men ci on a, mas para dela se dem arcar, a possibiIidade de um a es pécie de teor ia da pos ição es pectadora . Meu objetivo não é aqui ensinar àqueles que vêem representar uma tragédia o silêncio que eles devem respeitar, a atenção que devem prestar, o comedimento que devem ter quando a julgarem, com que espírito devem cxnminti-la, o que devem fazer para evitar erros [...] e mil outras coisas que talvez pudessem com muua propriedade ser explicadas",

Es te ens ina me nto seria muito norm at ivo : mas tod a a inici ativa de d ' Aubig nac é, ao mesmo tempo , c rítica e prescritiva . O exa me se ria, port ant o, ca bíve l e, co nfo rme D ' A ub ignac

13. lsto é, e d' Aubignae insiste nisto: aquele que representa sem cantar. lbid. , livro 111. eap. IV, p, IX9. 14 . OI' . cit, livro I, cap. VI, p. 34. Grifo meu.

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insinua, não desprovid o de utilidade. O aut or não va i se dedi car a ele . " Prete ndo fala r dos es pec tado res por ca usa do poeta , e apenas em rel ação a el e, para lhe dar a conhecer com o ele os de ve ter em mente qu and o trab alh a para o teatro" !". A prática é, port ant o, neste caso, ex cl us iva me nte, um fa zer: fi cará faltando a outra aná lise. O pen sam ento do olha r só ex istirá co mo ausência. Ma s obse rve mos , a lém disto, qu e, lon ge da unid ade co ncedi da por Ari stóteles à práxis cê nica como ação, a prática de d ' Aubignuc abre so bre dois esp aços profundamente heterogên eos , cuja un idad e con tradit ó ria o teatro terá co mo tarefa assu mir. O abade de d ica o essenc ial de se u esforço teóri co a insc rever, acusa r, aprofunda r a d istinção e ntre e les . Qu ais são es tas du as instân ci as? Por um lad o, o qu e ele c ha ma de espet ácul o, o u represent ação, dom ínio daquil o que e fetivamente acontece em cen a: "S ão prínc ipes desenhados, pal ácios e m tel ões co lorido s, mort os de mentira ." Há aí a tores , ce nário , maquinari a. "Faz-se falar os per sonagen s e m língu a vulga ri!" e a li todas as co isas de vem ser se nsíveis" !' . A es ta verte nte se o põe o qu e d ' Aubig nac c ha ma "a hist óri a ve rdade ira, ou qu e se s upõe ve rdadeira" . Regi st ro do qu e acontece u fora da representação e, portanto "de ve rda de" - es ta verdad e rea l ou supos ta, qu e parti c ipa e xat amente do que nós c ha ma mos ficçã o: a co isa representada, o significad o do s igno te atral (histó ria, per son agen s, di scurso e ações), e m sua hete rogen e idad e e m re lação à própria representação, à concretude cê nica da que les qu e rep rese ntam . Neste campo, "as pessoas [... 1são co ns ide radas pelas ca rac terís ticas de s ua co nd ição, idad e , sexo, se us discursos são co ns ide rados co mo tend o sido pronun ciados , suas ações co mo tend o sid o executada s" . É ve rda de que d ' Aub igna c acrescenta: "se i que o poeta é sobera no, qu e ele dispõe da orde m e da econo mia de sua peça como lhe ag rada , [...] e q ue ele in vent a as int rigas". Mas isto não afeta a distinção de que se está tratando, porqu e "é, co ntudo , verdade qu e tod as es tas co isas de vem se r tão I ) . lbid.. 16 . Quer dizer, em Iranc ês, mesmo se, suposuuncnrc, eles são gregos. 17. lbid.. pp. 34-3) .

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bem orde nadas que pareçam ter acont ecido por si mesm as [...] E, apesa r de ele ser o autor, ele deve manej á-la s co m tal habilidade que simplesmente não pareça qu e ele as esc reveu"I X. Trat a-se portanto de uma verdade suposta, mas cuja hipótese sustenta a existênci a do teatro. Ora , estes dois regi str os diferem radi calmente quanto ao olhar. No espetácul o ou na representação , "h á espe ctadores'' !", A presença deles ali é muit o ativa. "O poeta, levando em co ns ide ração em sua tragédi a o es petác ulo ou a representação, [...] faz tudo o que sua arte e se u es pírito lhe podem suge rir para torn á-Ia ad miráve l para os es pec tado res: po rque ele trabalh a pa ra agrada r a eles". Este primeiro registro é, portanto , regido pelo imperativo do prazer, porqu e os es pec tadores con stituem o horizonte da represent ação . Na representação o poeta "procurará todos os meios de co nquistar a estima dos espectadores que , naquele mom ento, estão presentes apenas em seu espírito"?", Na representa ção, os espectadores são reis , o prazer deles é a regra. No seg undo domínio, onde o poeta "considera em sua tragédia a história verdadeira ou que ele supõe verdade ira" , ocorre o co ntrário e esta preocup ação deve passar a um seg undo plano. Aqu i o critério de legitim idade é de natureza compl etamente distinta, é a verossimilhan ça, co nce ito-c have que d' Aubignac esc reve segundo a grafia antiga "v ray-sembtance'"; co m um traço de uni ão para nós mu ito sugestivo. Desejando ser-lhe fiel, o poeta " faz tudo com o se não houvesse espectadores" e os personagens devem agir "c omo se ninguém os visse nem ouv isse, fora aqueles que estão em cena atuantes'?' . A di st inçã o entre o regime da rep resent ação e o da história se apóia, em fim de co ntas, na presen ça (e fetiva) ou na ausê ncia supos ta dos es pec tadores. Ali a prát ica do teatro se ci nde: unificada em Aristóteles, como ntintêsis práxeõs, e la vai se div idir entre uma prática e fetiva, cê nica , subme tida à 18. tu«, pp. 35-36 . Gri Fo meu . 19. l bid. , p. 35. 20. tu«, p. 38. GriFo meu. " Numa trad ução literal: verdadeira-semelhança ou verdadcira -pa rcce nça. (N . da T.) 21. Ibit/. Gri Fo meu .

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existê ncia dos es pec tado res e a se u prazer, e uma referência sup osta, q ue nós chamaría mos de imag inária, da qu al tod o o públi co es tá, por ass im d izer, ausent e. A prática ex p ulsa para além de si própri a a lógica das ações. Ela a escorraço", submetend o-se, a partir disto, a algo co m qu e Aristóte les não se h ~1Vi a p~'e ocup ado : a ação imaginári a, o sis tema de sta s es pécie s de idealidades teatr ais, dotadas de vida própria, que transcendem a repr esent ação porque ficti ciamente sem plat éia e, port ant o, e m alguma medid a, pr ivadas (de qu alquer públi co qu e exija q ue lhe proporcionem prazer). A qu arta pared e não vai de mo rar a cair. O gesto es pec ífico (e a co ntribuição singular) de La Pratique d u tli éãt re co nsiste no fato de traçar, mu ito me tod icament e, e, é preciso reconh ecer, talent osament e, es ta c livagem no ce rne de todos os element os que compõem o teat ro (luga r, temp o, açã o) a fim de tirar as con seqü ênci as propícias à regeneração da arte. Pedim os licen ça para citar aqui, de forma um pou co long a, a belíssim a página do capítulo "So bre a mistu ra da repr esent ação co m a verdade da ação teatral", na qu al d ' Aubignac resum e e reitera o trab alho desta dissociação qu e e le quer instau rar : Cha mo, pois , de verdade da ação teatral a história do poema dramático, na medida e m q ue el a é co nsiderada verdadeira, c todas as coisas que aí se passa m são e ncara das co mo ten do ve rdadei ramente ou possi velmen te aco ntec ido: Mas cha mo de representa ção a reuni ão de tod as as co isas qu e podem se rvir para representar um poe ma dramáti co c qu e ali dev em estar, co nsi de rand o-as em si mesm as c de aco rdo co m sua natureza, com o os atores os cen ógr a fos, os telões pint ad os, os vio linos , os es pec tado res c ou tras co isas seme lhantes . Q ue o Cinna' que aparece no palc o fale co mo um roman o, qu e ele ame uma Emília, que ele aco nse lhe a um Augusto que co nse rve o Império; q ue co nsp ire co ntra e le c que receba seu perdão, isto pertence à verdade da ação teatral. Que esta Emília pareça tomada de ódio co ntra Augusto e de amor por Ci nna , que ela deseje ser vingado e q ue te ma a rea lizaç ão de um tão grande 22. CF. L. Althusscr, "S ur le ContrasSocial (Les d écalngcs)", Cahiers pOLIr l 'unalyse 8, Seu il, 1969, pp, 29 -30 . (Em português : Sobre o Con tra to Soc ial: 0.1' EFeilos Tctiricos e as lnterp retações Pos síveis do Problema, Lisboa, Iniciativas Ed itoriais, 1976). *. Cinna, peça de Core ne ille à qual perten cem os persona gen s citados . (N . da T. )

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desej o, isto é ainda do âmbito da verdade desta ação . Que Augusto co muniq ue a dois p érfidos a idéia que lhe ocorre de abandonar o trono: que um o aconselhe a co nsc rv ã-la e o outro lhe aco nselhe o co ntrário: isto pertence à verdade da ação. Enfim, tudo o que nesta peça pode se r co nsiderado como uma parte, e uma part e necess ári a de toda esta ave ntura, deve pertencer à verdade da ação, e é por aí que se examina a ve rossimilhança [ITa)'-selllblallce] de tudo o que se faz num poem a, a conveni ência das palavras, a ligação e ntre as intrigas, e a adequação dos acontecimentos. Aprova-se tudo o que se acredita ter se passado na verdade. ainda que suposta, e se condena tudo o que se acredita contrário ou pouco adequ ado às ações humanas. Mas que Floridor ou Heau-Chastcau' façam o personagem de Cinna, que sejam bons ou maus atores. que estejam be m ou mal vestidos, que baja um tablado para colocá- los aci ma e separados do p úblico; que ele seja e nfeitado co m telões pintados, e com ilusões agradáveis, q ue fazem as vezes de palácios e muralhas ; que os intervalos entre os atos seja m marcados por dois péssim os violões ou por uma excelente m úsica: que um ator suma por trás de uma tapeçaria quand o afi rma que vai aos aposentos do rei; que fale co m a própria mulher, quand o finge falar a uma rainha, que haj a espec tadores presentes; que eles perte nçam à COl1e ou il cidade; sejam numerosos ou não; que se conservem em silêncio ou façam barulho: esteja m em camarotes ou na platéia; que os gatunos provoquem desordens, ou que sejam reprimidos: todas estas coisas fazcm parte, e, no meu entender, dependem da rcprcscnração-' .

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Este trecho demonstra fartamente a articulaçã o da q~I ,.tl falamos acima. Ele assinala em particul ar, com grande mudez, a inscrição dos espectadores apenas no regime da representação e sua exclu são do ca mpo da " verdade" . Mas o que nos importa é apontar que devia, portanto, ha ver utilidade em estabelece r esta distinç ão: se d ' Aubig nac teve necessidade de precisá-Ia com tanto zelo e método, co m exemplos tão claros e tão desen vol vidos, é porque a separação entre a representação e a fá bula n ão era algo estabelecido nem evidente. Não imaginam os que este autor, tão inform ado a respeit o do teat ro, tão erudi to, se empenhasse tanto em afi rmar est a du alidad e caso ela fosse (co mo hoje nos parece) ev idente e aceita por todos. É prec iso admitir que a instituição da diferença repre sentati va é aqu i uma no vidade, ao men os para o teatro" , e

" Atores conte mporâneos de d' Aubignac. (N. da T.) 23. lbid., livro I, capo VII, pp. 43-44. Grifo meu. 24. Visto que d' Aubignac se apóia no exemplo da pintura,em que a dissociaçãoj á lhe parece legível: "Recorro aqui à comparação com um quadro , do qual resolvi me servir com freqüência neste tratado [...]". Livro I, capoVI, p. 34.

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que este texto é um dos que trabalham com empenho par a produ zi-Ia . O tratado vo ltará a ela escrupulosame nte, cad a vez que e xaminar um novo componente do poem a dramático, num a incansável obstina ção" . Compreende-se então que d ' Aubignac se ocupe co m tanto e mpenho em es truturar a distin ção entre o ator e seu pers onage m. Logo em seguida à página que aca ba mos de ler, ele escreve: Assi m Floridor c Bcau-Chastea u.uo qu e sã o em si lII eSIl/OS. não de vem se r co nsiderados senão representantes; e este Hor áci o" e este Cinna que eles rep resentam devem ser considerados e m relação ao poema como verdadeiros personagens: porque são eles que se supõe que agem e falam e não aqueles q ue os representam, co rno se Florido r e Beau-Chastcau deixassem de se r p essoas reais , e se vissem transform ados nestes homens cuj os nomes e interesses eles carregam"

Todos os elementos invocados são aqui discriminantes :a op osiçã o marcada e ntre personagens e representantes (d ' Aubi gnac não se co nte nta de c ha m á- los " ato res " , se m dúvida de vido ao caráter equívoco do term o qu e record avamos ac ima); a inserção dos persona gen s no registr o do "verdadeiro", sob o qu al d ' Aubignac pen sa e des igna o qu e nós ch amamos de ficçã o; a s upos ição das ações e pala vras dele s; e, sobret udo, o fato de que os atores, ca racteri zados por "aquilo que eles sã o em si mesm os" , devem exa tame nte se desprender de seu ser pa ra e ntra r na verdade do rep resent ad o: "como se [eles] deix assem de se r pessoas reais e fossem transformados nestes homens cujos nomes eles carregam " . Aqui j á se encontram posic ionadas toda s as peças de um d ispositivo que, por muit o temp o ainda, dar á o que falar: o da " trans formação" do ator em se u person agem , metam or fose, eclipse s upost o destes se res que tem os bem diante dos o lhos, e qu e nos dá a ver outro s se res, co ns iderados ausent es e, entretanto , oferecid os ao nosso olhar. Eis-n os bem longe da Poética e de seu s atuantes, igualmente atores e ativos : um mundo nasceu , a práti ca passou 25. Por ex.: livro li , capo111 , p. 83 sq ., capoVI, p. 99 sq., capoVII, p. 11 3 sq. " Horácio, peça de Cornei lle. (N. da T.) 26. lbid. , livro I, capoVII, p. 44. Grifo meu.

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para o re gim e da c isão qu e institui as imagen s. D' Aubign ac se refere a ist o ut ilizando e xa tamente os term os da quest ão qu e nos oc upa: " É ce rto qu e o teatro não é nada além de uma imagern' ?". E mais: "o teatro não é nada alé m de uma represe ntação, não se deve abs olutamente acreditar que ali não há nada do qu e vemos , ma s as próprias coisa s cujas imagens encontram os' r" .

Ac ontece qu e d ' Aubignac, pre ven ido, abre se u trat ad o com um capítul o "e m qu e se trata da necessid ad e dos es pe t áculos'?". É co mpree nsíve l qu e dediquem os alg uns mom entos de nossa atenção a e le. A tese defendida neste ca pítulo se basei a numa resp osta muito abrupta à qu est ão : para quem os espetáculos são necessários? O abade responde : para os Príncipes, para os go" vcmantcs, para "todos este s incomparáv eis e famosos gêni os que o céu escolh e de tempos em tempos para o estabelecimento d o Estado ou a co nd ução dos povos'?". A nec essid ade dos es pe tác ulos é, port ant o, co locada, de sa ída, c om o necessidade pol ítica, ao men os se co mpree ndemos por es tas pal avras (o qu e é d iscutível ): necessidade de Est ad o. O qu e nos a fas ta m ais um pouco da Poética: em Aristóteles , se a dim ensão pol ítica do teatro não é ignorada" , co ntudo el a tampou co se mani festa no tex to de forma direta . Su a nece ssidade, com o vimos, se inscreve na natureza dos homens, em s ua co nstituição físi ca, mais que explicitamente e m sua organização comunitári a. Em d ' Aubi gnac a situação é totalmente diferente. O raciocíni o va i se torn and o progressiv amente mai s complexo . Primei ro e le a firma que os go ve rna ntes (ao men os os ma is poderosos) não se co nte nta m co m torn ar se us po vos vitoriosos sobre os inimigo s pela força das armas, enri quecê -los com todas as ma ravilhas da nature za e da arte por meio do com ércio co m os países estrangei-

27. 28. 29. 30 . 3 1.

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lbid., livro 11 , cap, 111 , p, 83 .

ros, e suavizar -lhes os cost umes pelos mais belos e honestos conheci mentos (...] estes grande s políticos têm o hábito de coroar se u ministério com os prazeres p éblicos" .

A gu erra , o co mé rc io, o sabe r não bastam a este s mini stros : os espetácul os parti cipam de um coroamento da açã o de govern o pela outorga de prazeres coletivos. Festas, j og os, espetácul os se vêe m ap resentados com o as " marcas mai s se ns íve is e mais ge ra is [...] da gra nde za de um Est ado"33. O qu e está1 em j ogo, nestes "d ive rtime ntos ilustres" , é o Est ad o e s ua :\ gr and e za . Oferecend o prazeres ao po vo, é o es pe tác ulo de sua gra ndeza qu e o Estado lhe oferece, e não só a ele, mas a : si mesm o. Os argument os são múlti plos: em tempo de pa z, em pr imei ro lugar, os es pe tác ulos ates tam que o Es tado d ispõe de inumeráveis ben s, de lu xo, qu e e le está apto a bancar a despesa improdutiva, para a qual ele sa be encontrar " mui- • tos artífi ce s hábeis", mostrando com ist o que nada lhe falta e ~ qu e e le pode arcar generosamente com a os tentação . Em tem- . po de gue rra, é um mod o de pro var aos inimi go s que exi stem " teso uro s inesg ot áveis e homens so bra ndo", qu e a tranqüilidad e pública não é perturbad a pelas ca mpa nhas passad as o u futur as, qu e se sabe rir, j ogar e "q ue a a leg ria públ ica não é minimam ent e a lterada ">' pe las hostil idad es em c urso . M as os es pe tác ulos não se j us tifica m ape nas pela exi bição "de um espl endor vaz io e inútil " . Eles também têm utilidade, direta - par a o Estado, claro. Com o espet ácul os da guerra, e m es pe cial, qu e sã o muito co muns. D' Aubign ac observ a que o med o é freqüentem ente rac ional e que a corag em ped e d-gr espírito humano "o que talvez a razão nã o pud esse conse~l guir" . Al gun s med rosos pod eriam ter o mau go st o de perceber racionalmente qu e na g ue rra e les têm tudo a pe rde r. Ora, os espetác ulos "acostuma m pou co a pou co os hom en s a manej ar as a rmas, tornam -lh es fam iliares os instrumen tos da mo rte e lhes inspiram insen s ivelm ent e a firm eza de coração contra tod os os tip os de per igos" . Com e les o medroso pode adquirir " um desejo qualquer de vence r que o anima, entu sias-

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....

tu«, livro 11, capo VI, p. 100 . Grifo meu . lbid., livro I, cap . I, p. 5 sq, lb id., p, 5. Cf. J. Taminiaux, 0I' . cit., pp , 33-59.

32. OI' . cit., ihid. 33. lbid. , p. 6.

34. lbid.. ido

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ma e tran sp ort a pa ra a lém de suas fraq uez as na tur ai s" , e le pod e e nco ntra r no es pe tácu lo um a es pécie de exc itaç ão co mbativa, que lhe faz fa lta, por me io da "narrativa brilhante das vi rtudes her ó icas" q ue lhe most ra rão a lg uns g uerreiros lend ários e por meio d o q ue lhe apa rece rá a partir da í eomo " nobre desejo de os imitar" :". Note mos aq ui a irr upção notável de um a rel ação qu e tính am os procurad o em vão na Poética , a rel ação qu e torn a possí vel um a imitação d o her ói por um espectador e propi c ia os dese nvo lvimen tos pos te riores da rel ação mim ética, não mais no interi o r da narrati va , mas e ntre a platéia e o palco. Aproxima mo -nos po is, aq ui , mais es peeificame nte, d as obras de teatr o. Porq ue e las, a lém d as d iversas util idad es festivas qu e co mpartil ham com outros espetác ulos "são não ape nas úteis mas abso lu ta mente necessárias" pa ra a ins tr ução do pov o : e las podem dar a e le, inculto e desprovido de ed u~ação mo ral , "alg um ve rniz das vir tudes". Es te ponto é precioso pa ra nós . D ' A ubignac observa , efetiva me nte, q ue "aq ue les qu e perten cem às últimas posições e às mai s ba ixas co ndições de um Est ad o tê m tão po uco co nta to com os be los co nhecime ntos q ue as máximas mais ge rais da moral lhes são absol~tamente inúteis." Inú tei s porque o ace sso ~s máxfl ma s gerais da mora l requ er contato com os eo nhec llllen tos -j As máx im as da moral são des providas de efic ácia dire ta , autôn oma, sua ação é co nd icio nada pel a c ultura den tro da qu al e las são recebi das. Não basta s ubmeter o po vo a prescr ições ge rais , ele não poder á faze r nada co m elas, po rqu e não sab e o q ue fazer. A mora l ex ige um ou tro veíc ulo. D ' Aubi gn ac invoca a filosofia : e la é abstra ta de mais para se r com pree nd ida pel o povo. S uas "sublimes especulações" são incapazes de pen et rar as virtudes s im ples da renúnci a , do d espre zo d as rec om pe nsas, do desdé m pelo inte resse mat e ria l. É no tório qu e os poderosos co mpree ndem tud o isto se m esforço. O po vo não: "todas es tas ve rdades da sabedo ria têm cores vivas dema is pa ra a sabedoria dos o lhos deles" . E ainda pior : a forma abs trata e es pec ulativa pel a q ual a filoso fia e nunc ia se us pen sam ent os vigor osos pod e ter um efe ito de refugo , qu e pro35 .

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tu«, p. 7.

voca re pu gn ân ci a: "são parad oxos par a e les, qu e tornam a fil osofi a s us pei ta a se us o lhos e mesm o ridícul a" . Para se precaver contra es te e fei to , é prec iso utilizar me ios mai s bem adap tados a es tes es píritos s im plórios. " Pa ra e les é necessária um a instru ção bem ma is grosse ira" . É aqui qu e o teat ro vai most ra r sua ca pacidade pr inc ipa l, po rq ue "a razão não os pod e ve nce r a não se r pe los me ios qu e incidem sobre os seutidos" . Es ta é a v i rt~de do t.e at ro :. ap resen tar a moral não nã/ rou page m cs pcc ulativa da filosofia, mas sob uma for ma qu~ incide sobre os sentidos. O teat ro es tá invest ido de sta ap tidão par a torn ar se ns íve is ve rda des abs tra tas o u ide ai s. E le se apossa ag ora da aprese ntação se nsíve l das idéias - a ntec ipa nd o rigorosa me nte a defini ção pós- kanti an a da a rte. "Ta is co mo são as bel as representações de teat ro pod em o s cham álas com justiça de Escola do Povo" J(,. De no vo a Esco la. No vam ente a a pre ndizage m . M as a aq uis ição do saber es tá , co mo ve mos , inscrita num di sp o si tivo comp letame nte difere nte d aqu el e qu e Ar is tó te les prop u n ha . A a p rend izage m é aq u i um s u bs ti tu to e ficaz d a ina ptidão teó ric a. Lon ge de co locar o es pec tado r como teó rico , e le o ca racteriza daí po r dia nte co mo incapaz de teo ria, e só co nseg ui ndo re ceb er as idéi as po r mei o dos se ntidos . Es ta mos mu ito próxi mos da estética : o se nsíve l ex ige se u q uinh ão e a be leza o sa tisfaz ("as be las re prese ntações de teatr o" ), M as é para remed iar a inca pac idade de pen sar. A necessid ade de q ue o te at ro se re veste é , e m bo ra es tét ica , um a necessida de de gove rno : o po vo necessit a da moral e , co mo não a pode adq uir ir por me io do pe nsa me nto rac ion al , é a es tét ica q ue deve se e ncarregar de lhe da r a en te nder e stas ve rdades às qua is ele é s urdo. Porque ela os fa z sentir estas verdades: "e a mem óri a lhes d á I içõcs co ntí nuas, qu e se imprimem ai nda ma is forteme nte no es p íri to de les porq ue se ligam a objetos sc nsfve is":". Em s uma : D ' A ubig nac põe e m fu nc io na me nto, co mo pode mos ve r, uma de termi nação estética, ou pré-estética, do te atro , carac terizada, a van t la lettre , como ap rese ntação sen36. Tudo isto. ibid.• p. 8. 37. tu«, p. 9.

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Y s ível da idéia". E esta determinação funciona sob a autoridade de um a prescrição política , de um imperativo de governo. É tentador perguntar-se que elo une esta nova característica, relativamente surpreendente e a cisão representativa, a separação entre representante e representado, que vimos em funcionamento no resto da obra . Sem esperar do abade UI~ absoluto rigor metafísico, e interrogando-o apenas como testemunha de uma mudança de época, podemos suspeitar que uma certa articulação - mais latente que formulada - liga estes dois planos de reflexão. Realmente, a representação remete a uma verdade da história que assume o papel do que nós chamaríamos de ficção . Ora, esta verdade se vê escorraçada para além do âmbito da prática efetiva da cena . A "história verdadeira" é representada, significada por operações concretas, que lhe são heterogêneas e que fazem do teatro lima imagem , índice visível de coisas que não se vêem . Assim , a verdade da história, a coisa contada, apresenta este parentesco de natureza com "as máximas da moral ": ela tarnbém não incide sobre os sentidos . História e moral especu aiVa estão ligadas por esta comunidade de remissão : nem uma nem outra podem ser vistas por si mesmas, sem uma media\; - imag ética. A partitura representativa, que cinde a antiga unidade do teatro nestas duas instâncias dissociadas de forma rígida (a cena e a fábula), é a condição de seu estatuto propriamente estético e, portanto, das virtudes políticas que dele dependem . Duas conseqüências resultam desta relação. Em primeiro lugar, compreende-se por aí que a "história verdadeira" é uma idealidade : seu sistema é comandado por normas racionais, ao mesmo tempo inteligíveis e mora is, segundo o modelo cláss ico. Ela é da mesma natureza que a especulação abstrata . O ator, por exemplo , é, doravantc, o representante concreto de um personagem que participa de uma coerência narrativa ideal e regida pela razão. A verossimilhança é o nome desta racionalidade ordenadora. É verossímil o que se inscreve na estrutura ideal-racional da narrativa. ~. 38. Já que esta é a fórmul a pela qual se costuma resumir a definição hegcliana de arte. Cf. Cours d 'Esthétique. IIt" cit., pp. 47-60. (Em português : 111'. cit., p. 86: "Já foi dito que o conteúdo da arte é a Idéia e que sua Forma é a configuração sensível imag ética") .

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A história que o teatro representa é feita do mesmo tecido abstrato, especulativo, da moral ou da filosofia que ele deve tornar visíveis : a história de um para-além da cena, de uma ideal idade cuja prática é a manifestação figurada. Mas, em compensação, esta racionalidade estruturante, e a ideal idade que a fundamenta, estão contaminadas pela fábula . Poderíamos dizer que, em alguma medida, aqui a idealidade se torna lima história . Porque se as máximas da moral são tornadas sensíveis pelo teatro é unicamente na medida em que elas estão engajadas na " histó ria verdadeira", em sua estruturação narrativa. É esta narratividade do representado que funda a "sensibilidade" do representante. Nenhuma especulação terá um correspondente em cena, se não estiver articulada como função narrativa . D ' Aubignac é categórico a este respeito : no teatro, a palavra não tem valor a não ser como ato". Não cabe fazer nenhuma pregação. É fácil compreender: se o teatro se contentasse com enunciar as verdades em sua intelectual idade específica, discursiva, ele não as apresentaria de forma mais sensível do que um sermão feito de um púlpito. O sensível do teatro é a exposição da ação!". Moral e filosofia estão assim apanhadas na "tcssitura":" de uma história, que as tece e desenha sua visibi Iidade. As verdades do teatro (ou teatrais) são narrati vas.É claro que não vamos tornar d' Aubignac mais moderno do que ele na verdade é : no fundo , sua concepção continua marcada por um racionalismo muito realista. Mas a determinação estética e a cisão representativa que a ele estão ligadas, engajam estruturalmente sua verdade na aventura de uma contaminação pela narrativa . A verdade ser á, então , condicion ada a uma imagem. Não est amos mais no momento em que uma intelectual idade espectadora operava sobre uma prá39. OI'. cit. , livro IV, capo 11 c seguintes, p. 282 ..1''1. 40. " É na imaginação do espectador que estão as ações que o poeta, com habil idade, os faz conceber como visívei s, enquanto que não há nada de sensível além do discurso", ibid., p. 283. Devo 11 dissertação de F. Prodrornides, cilada em seguida, a observação desta frase. 41. Cf. F. Prodromidcs.l?é.flexilll/ et representation: La Pratique du th éâtre de d 'Aubign:«:et les enjeux de la mimésis, dissertação de D.E .A., sob a orienração de Ch. Biet, Paris X-Nantene , 1996, p. 19 sq.

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tica para depreend er form as cognitivas e usufruir teatralment e desta e mergê ncia: agora é a inca paci dade de co nhecer que faz a teat ralidade do teatro - e a es t ética vem rem edi ar es ta inaptidão. Mas, por um a e loqüe nte reviravolt a das co isas, { ela fa~ o v~ríd ic~ ~e~;iz~r pm:a ~.es,tatuto da ficç ão . Em breve as idealid ades sei ao unagmai raso

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*** Não afi rmo, ev ide nteme nte, que d ' Aubignac seja o inventor desta co nfiguração . Exce lente teórico do teatr o (da prática do teatro), e le trab alha para dar forma co ncei tua l ao qu e atravessa o se u tempo. Com o, por exe mplo , a d issociação entre o ator e o papel: Haml et não está longe. Não é mon stru oso qu e es te ato r aq ui, Somente por urna ficç ão, num so nho de paixão Possa for ça r inteiramente sua alma com sua id éia A pont o de ralhar pa ra si um rosto pálid o Olhos cho rosos, um as pec to desorie ntado Um a voz a lquebrada e um o rga nismo intei ro adaptado Às fo rmas de sua idé ia ? E tud o po r nada? Por Hécuba ? O qu e é H écu ba para e le e o que é e le para H écu ba Para chorar po r e ln?,l 42 . HOlllle/,II, 2. Tradu zo qu ase qu e literal ment e, se m me impo rtar co m os fals os a m igos . É preciso, no e nta nto , observar qu e, no trech o cit ad o, o mor não pronuncia pal avra s atribuídas a H écub a (po rtanto . não desempenha, a rigo r, o papel da rainh a, no sentid o modern o do termo ), mas sim ples men te co nta, na terc e ira pessoa, a infelicid ade qu e se abate so bre el a. (No or igina l e m ing lês : ls i / //o l//IOIIJII"I/OUS that this pluyer he re. / 8uI in afiction. in ti dream ofpassi-

Couldforcc his .H! u/.H! to his wltole concei t / T/III/ ./ i"Ol// her worklng ali his visage \1'0//// 'd, / Tears in his eyes. distraction in 's aspect, / A brok en voice, uud his whnle jun ction suiting / Wi/h.fill"llls /(I his conce it? And allfor IIO/h i // }; ! / FI/r Hecuba ! / WI/(I/ :~ Hecuba lo him OI' he /(I Hecuba! In Tlte COI/Il'Iele I ViI/ "ks 11 ' wiltiam Shak espeare . Londo n: Abbey Li br ary, 197 8, p.

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É O séc ulo XVIII que, inaugurando a era da estét ica, receberá de seus precursores esta nova dualidade e nela projetará seu dinami smo. Tomemos como testemunhas três ob ras curtas, .. que, juntas, formam uma espécie de concerto: Le Com édien, deJO TR6mond de Sainte -Albin e", L'art du th éãtre, de François Riccobonr", e Le Paradoxe du coni édie n, de Dideror" . Textos "'true, co m alguns anos de interval o, têm co mo tem a o ator e tentam pen sá-lo em si mesmo, separado dos personagens ao s quai s ele dá vida, o que é novo: Sainte-Albine e Riccoboni insistem nesta extrema novidade" . A este respeit o, o mais s ignificativo é, ev ide ntemente o livro de Riccoboni : te xto de ator que reivindica o ponto de vista do ator - entramos, claramente, em outra época . O livro é dirigido, em forma de carta, a uma Senh ora ***, que meteu na cabeça a idéia de represent ar: "O gosto que a senh ora tem pela comédia tornou -se uma paixão, visto que , não se contentando com o pra zer de a ver repre sentar nos Teatro s públicos, sua maior sati sfa ção é re-; resefltâ.la a senhora mesma. A moda parece autori zar a su;'f' inclina ção. Paris está coalhada de teatros particul ares e todoj mundo qu er ser a tor': " , A obra se apresenta assim co mo um manu al, pr ático e c ircunstanciado para a aprend izage m da atuação. Este ponto de vista inovador não deixa de ter co nseqüênc ias. Porque o texto se intitul a L'Ar/ du th éãtre - e o título vale com o reivindi cação. Por ca usa dele o autor se rá censurado pelo I ournal de Tr évoux: a expressão "arte do teatro" era usada para se refer ir à atividade de escrita e co mposição de peças , segundo o uso atestado por d' Aubignac, Corneille e todos os autores da época. Ora , Riccoboni reage : "Gos to de me servir dos term os apropriados. Se eu tivesse apresentado, em uma obra , as regras da co mpos ição teatral, eu a teria intitulado Poética do Teat ro" , responde ele. A arte do teat ro deve, portanto, ser distingu ida de sua poética. A partir daí, se rá pre· ciso d izer: em d ' Aubignac os do is objetos se co n fu n.9jE..~n :

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860. E m português, cf. a tradução de Anna A mé lia Carneiro de Mend onça. Em

Haml et: Macb eth, Rio de Jane iro : Nova Front ei ra, 1995 , p. 84 : " Não é mon stru os o qu e esse ator cons iga, ! E m fantasia , e m so nho de paixão.' Fo rça r su 'alma assim a obedecê- lo ! A po nto de se u rosto ficar p álido. ? Ter lágrimas nos olhos, o ar de sfeit o ! A voz cortada e tod o o dcscmpcnh o / E as ex pressões de acordo com o pa pel ? ! E tud o isso por nada ! Só por Hécu ba ! ! Q ue lhe inter essa Hécuba ? E e le a el a ! Pa ra qu e c ho re ass im?" N. da T.)

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43 . Em Didero t et le th éâtre li, L'Acteur. op. cit., pp . 173- 30 8. 44 . Pa ris , 1750 , Slat kine Rc prints, Ge n êvc , 1971 . 4 5. Q ue c itarei na edição d' Ala in M énil, c f. aci ma, n. 43. 46 . Sa inte-A lbine, OI'. ci t., pp. 175- 176 . Riccobo ni, op. cit., p . 2-3 e a nexo (" Le tlre de M . Ricco bo ni fils 11 M: " au s uje t de L' ArI du thé âtre") , p. 20 . 47 . 0 /,. cit ., pp , 1-2 . Grifo me u,

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M utação pro fund a, irre vers ível , não ape nas da determinação da arte mas do próp rio se ntido da palavra teatro: "T rate i da arte de rep resen tar no palco. É a arte especí fic a do teatro":", O tea tro não é mais a arte de escrever co m vistas à represen tação, mas a arte de represe ntar o que foi escrito. Deslocamen to de capita l imp ortânc ia, que traz e m si, co m a a utonom ia do pe nsa men to sob re o jogo do ator, toda a eme rgê ncia futur a da e nce nação. A noção se tran sport a de um a escri ta o rientada para a ce na, mas qu e excl ui a ce na do do m ínio próprio de sua artc' ", a té o espaço s ing ular de um a ar te situada entre a escrita

e a cena, por sua capacidade de exibir no palco o qlle fo i antes escrito. Esta ca pac idade es pecífica é, des de então , colocada (por nossos três autores) co mo c riativa, artís tica , e la co nfere ao ator o direito ao títul o de artista. Riccob oni , desde as pri meiras p áginas, proclama es te novo pont o de vista; e le co ntraria a tradi çã o ao com ~çar se u tratado pelo gesto: " ist o talvez pareça estranho~as se atentare m par a o fato de q ue, ' ,ub indo à ce na , o ator se apr esent a a ntes de fala r, os se nho res co nv irão que a postura é a primeira co isa a respeito da qu al é preciso instrui r-se'?", Mas es ta co ns tatação é ino vadO:' ra: es pe ramos muito tempo para fazê-Ia. El a vale co mo s ina l de um a mudança de pe nsa me nto. A arte do teat ro, a arte da aprese ntação cê nica , e ng loba, do rava nte, o tex to co mo um (e um so me nte) de seu s co mpo ne ntes inte rnos, e não o dei xa mais co ma ndar sozinho todo o ca m po de se u exercíc io. O q ue será enfa tizado também pela va lo rização dos "jogos de teatro" e da pantom ima" , q ue e nco ntraremos e m Didero t. Livro de ator qu e trata do ator, L'A rt du th éãtre di fere c larame nte do te xto de Rém ond de Sa nte-Alb ine , Le Com é-

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48 . OI'. cit., a nexo , pp, 4-5 . 49 . É, co mo vimos, o ges to da Poética. q ue afi rma ao mesm o tem po que "para compo r hist órias [...] é preciso ter a ce na integ ralm en te diante dos o lhos po is, assi m , aq uele qu e vê co mo se assistisse às pr ópri as ações co nseguirá com eficácia to tal descobrir o q ue é adeq uado (OI'. cit ., 14 55 a 22- 26 ), e q ue o "espe táculo [lÍl'xix] q ue exe rce a maior sed ução, é totalm ent e estranh o à arte [ateklulOtiÍtou ] e nad a tem a ve r com a po ética, porqu e a tragédi a rea liza sua fina lida de mesm o se m concursos e se m alares" . (Ibid., 1450 b 16-1 8). 50 . OI'. cit., p. 4. 51 . OI'. cit., pp . 82-83 .

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dien, qu e tam bém exam ina o ator em sua s ing ula rida de (e ta lve z sej a o primei ro na França a fazê-lo, porque preced e e m três a nos L'Art du th éãt rev" , mas é um livro inte iram ente esc rito de 11m ponto de vista do espectado r. Isto se e videncia o tempo todo. Por exemplo, Sa inte- Al bine gos ta de usar o " nós" não a pe nas co mo plu ral de mod ést ia do a utor mas para apo ntar, no plural , a co letividade dos espectadores , "Nós vemos es tas peças [italia nas] co m praz er, porq ue a ve rda de da represent aç ão nos compensa pelo qu e nós pe rde mos no toca nte à e legâ ncia do di álogo. [...mas] nós es tamos co nde nados a so me nte usu fruir no Th éâtre Fr anç a is' de um prazer imp erfeito, por c ulpa de a lguns atores" etc." O qu e lev a log ica me nte o a utor a se diri gir aos ato res por mei o de um pron ome de tratam ento igu alm ente co letivo ": " A atu ação dos senhores é totalment e ve rda de ira? É natural ? É elegant e e var iada? Nós os ad m iramo s; mas aind a lhes falta a lgo pa ra nos agradarem ">'. Usos inimagin ãvcis, evi de nte me nte, so b a pena de Ric cob oni . A partir deste posto de o bservação, Sainte-Albino in vectiva o palc o, adm oesta-o : N ôs achariumos ridículo q ue para atua r [...1a pessoa se aprese ntasse no palc o se m preenc he r as co nd içõe s básicas [...] N ôs esperamos da tragédi a abalos vio lentos [...] Espera -se [... q ue o ator ] seja s incero, [...] esp era-se que ele seja h ábil [...1. qu« nós esperariamos de Burrhus" lIIíx esperamos do ala r. Nos exigimos que ele reci te os seis primei ros versos co m modesta co nte nção [...] Nós desejamos sobretudo que e le di mi nua, pela sua vidade de sua voz , a aspereza de suas fa las. [...] EII declaro aos atores q ue não bas ta que saibam seus papéis [etc .]5; .

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52 . O que lhe vale este crédi to um pou co se m nuan ce de F. Rcg nau lt: "É um fato, 110 cn tanro, que a a rte do ato r co nce bida como arte au tô no ma só co meça na França co m o tratado Le Com édien" e m, Petite éthique pourle comédien, Les Co nférenccs du Perroqu et , n" 34 , março 1992. p. 16 . *. Era usu al refer ir-se à Com édie Françaisc co mo Th éâtre Frauçais o u Le França is, (N . da T) 53. OI'. cit., pp. 229 e 230. G rifo meu . **. No original foi utili zado o pron om e vous , pron ome de seg un da pessoa do plu ral que correspo ndc a um a forma corr e nte de trata me nto. (N. da T ) 54 . tu«, p, 295 . G rifo meu. *** Burrh us: personage m da tragédi a Britannicus, de Racin e . (N. da T ) 55. lbid. , pp. 220, 248 -249 , 250. Grifo meu .

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o tom imp eri oso, sobe rano, é o de um mestre qu e co mpree nde , co m a ltivez, qu e se c ultive o praze r. Ricc ob oni se preocupa também co m o praze r do esp ect ad or , mas , qu ando e le diz nós , é e m posição e xat amente inv er sa: "Se o tempo qu~ - . lev~m os é curto .de ma is, el e não .cau sa impre ~são alguma . Se e lon go demais, ral enta o se ntime nto que tínhamos despeitad o no espectad or e que devemos con servar com o uma preci osid ad e":". É, portanto, incontestável qu e se trata de dois pont os de vista simé tricos , ligad os às du as posiçõe s qu e se vêe m frente a frente no teatro. Sainte-Albin e e Riccob oni se inscre vem , tant o um q uanto o outro, no espaço da cisão daí por dian te irre versi velm ente abe rta entre a represe ntação e a co isa represent ada. Ambos co mentam, lon gam ent e, a disti nção e ntre o ator e o qu e ele representa. Mas um o faz a pa rt i~ da platéia e o outro a partir do palc o. Ricc oboni escre ve : "É preciso co nceber a cada instante a rela ção que pode e xis ti. rJ entre o qu e nós dizemos e o ca ráter de nosso papel ":", enquanto que Sainte- Albine decl a~'a : " a prin cip al preocupaçã o do ator( [...] dev e ser de nos deix ar perceb er ape nas o seu pers o ~ gern '?", Sa inte-A lbine deseja aufer ir uma espéc ie de legitimidade de su a posição de espec tado r: " Não é d ifícil pro var qu e [est as] c ríticas tê m no mínim o tant a autorida de qu ant o as das pessoas qu e professam es tas artes . As decisões destas

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últimas podem ser suspeitas porque podem se r interessadas "?', Isto é: ao querer pen sar a açã o, os atores se torn ariam suspeitos. Não cabe a e les conhecer isto . Ri cc ob oni d iagnosti ca, so b es te ponto de vista , um a incapacidad e pr incipai: " Sa be-se tud o isto na pl atéia , e é tud o o que é prec iso saber par a ve r o es petác ulo [...] ; mas os mei os de a tingi r es tas di fe rentes pe rfe ições não es tão de forma alguma ex pli cados e m Le Coni édien . Não se pod e apre ndê- los a não se r no pa lco "!" , É prec iso faze r- lhe j us tiça: o ataq ue não ve m no cor po de se u te xto , mas ape nas e m apê ndice a um a

56. 0 " . ci t., pp. 90-9 1. o". cit., p. 3 1. Grifo meu, 5S. 0" . cit., p, 250. Grifo meu, 59. 0 " . cit., p. 176. Grifo meu. 60 . 0" . cit., apêndice, pp, 19-20.

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edição posterior e e m resp osta à crítica por ter ignorad o a obra de seu precursor imedi ato. Aí es tão, port ant o, ator e es pec tado r, prep arando o te rren o, frent e a frent e, ca da um negando ao o utro a ca pac ida de de pen sar a rela ção teatral e de elab or ar a teoria co rres po ndente . Desap areceram a co mple mentarida de, a união de pon tos de vist a que compunham o teatro . Dua s leg itimid ades dife rent es vão, daí por di ante , se afront ar. O qu e as leva a que se preocupem co m a verdade. Saint-Albine a define co m um rigor qu e surpree nde o leitor modern o: " A perfeição qu e ma is desej amos ve r na represe ntação é aq uilo qu e no teatro é c ha mado de verdade. C ompreendem os por esta pal a vr a o

conjunto das aparências que podem servir para enganar os espectadores ?", Evitem os sauda r aqui , apressada me nte, um a tirada es p irituosa: o di agn óstico ser ia, se m dúvid a, a nac rônico, e Sainte-Albine não é nenhum me stre do hum or. Ma s a fórmul a é extremamente bem con struíd a: a verd ad e se torna o result ad o das di ver sas ap arên cias e m jogo, age nc iadas co m vistas à ilusão - a for ça do ve rídico pod e ser reconh ec.!B pela pe rfeiçã o da mentira. Riccob oni afi rma a mesm a co isa, só qu e vê o qu e ocorre a par tir do palco: Quando um ator expressa os sentimentos de seu papel com a força ncccss ária, o espectador vê nele a niais perf eita imagem da verdade. (...] para atuar bem, deve -se levara ilus ão al é est e ponto. Espantados por uma imitação tão perfeita do verdadeiro. alguns a tomaram pela própria verdade e acreditaram que o atorera tomado pelo sentimento que representava. [...] Nunca me rendi a esta opinião, corre nteme nte ace ita , porque me parece provado que, se lemos a infelicidade de sentir real mente o que devem os expressar, ficamos sem possibilidade de rcprcscnni-lo'".

Aq ui, pode-se perceb er, a diferen ça representati va se aprofunda . Re presen tan te e rep resen tad o ad q uirem d uas natlll:e-1 zas qu e se afas tam um a da outra. Q uere r reduzir a distânci ~ torn a a re present ação im poss ível. É nesta di s tân cia qu e se ins ta la o j ogo do a tor, é dela qu e ele tira sua for ça. Já e m Ar ist ótel es e , mai s a inda, e m d ' Aub ign ac, a verd ad e nua perm an eci a acanton ad a às port as do teatr o: nele só ope ra va 6 1. 0". cit .• p. 230. Grifo meu. 6'2. ° 11. cit.• pp. 36-37. Grifo meu.

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a vero ssimilhança [a vrai-semblance i, a seme lhança do verdadeiro . Mas aqui o jogo muda: a verdade não es tá mai s de fora . O teatro não pode mais ign orá-Ia , deix á-Ia para além de se us limites. A verda de vo lta à tona: mas é com o ilusão, miragem necessária, mentira obri gatóri a. Para atuar bem, deve-se levar a ilusão a este ponto - e, aliás , a opinião , iludida por es te verdade iro fact ício, é correntemente aceita. É o verdadeiro, o verdadeiro representativo, que muda de regime e se inscreve necessariamente no ato teatral co mo efeito de fi cç ão. Sainte -Albine resum e isto de forma bastante crua: na língua sing ular da co isa represent ada, a verda de vale com o nome própri o da mentira. Su a fórmula vigorosa , em fim de co ntas , é apenas a expr essão ten sa, ingênu a, de uma regra que, de sde então, se impõe a tod os: a verdade re-t orn a ao teat ro, COII/O necessidade da ilus ão.

Q ue es ta es trutura disp onha, a partir de en tão , do própr io es paço em que o teatro vai se pôr em j ogo é o que nós pod em os aval iar graças a um testemunho do mai s alto va lor, porqu e Diderot va i recolh er, na perturbadora dr amaturgia de seu Paradoxo, as co ntribuições de se us dois pred ecessor es e s ua opos ição termo a termo'", Os argumentos deles alime ntarã o, de um lado e de outro, a competição que sustenta o di ál ogo , manifestand o aí a co nco rrê nc ia es tabelec ida entre os pont os de vista do olhar e do j ogo do ator. Lembramo-n os qu e "o hom em do par ad oxo" men cion a es ta herança, co m um ar indi ferente: " De resto, a questã o que apro funde i foi out rora enc etada entre um literato med íocre, Rém ond de Sainte-Alb ine , e um gra nde co med iante, Riccob oni . O liter ato ad vogava a causa da se nsibilidade?' , o ato r defendia a minh a

63 . Sobre a relação e nlre estes três textos, cf. P.Tort. L'Origine du Pa radoxe S Ul' le co m éd icn. La pa nition intérieure. 197 6, ree d ição Vrin 19 80. P. Tort utili za u lermo " pa rt itura" no se ntido musical. Cf, ta mbé m P. Frantz, " Du spcciatcur au com édicn" e m Rem e d 'Histoi re Liu érairc de la Fr unce, scpt-oct. 19 9 3. 64 . lsto é, a ca usa de ren did a po r "o seg undo": a o posição das leses (e , por tanto , a o posição palco-plat éia) se co nfu nde co m a divi são do te xto do Parado.H/ , e m form a de diálogo . (Lem bra mos q ue " o prim ei ro" e "o segundo " são os

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posição. É uma aned ota que eu não conhecia e que acabei de ouvir't'" . Assim explicado, o co nfronto que anima o Paradoxo não pode mais se r interpretado apen as como a op osição entre du as teses a propósito do jogo do ator, mas com o duas legitimidades teatrais que não chegam a um aco rdo : a da ce na, defend ida enca rniçadame nte por "o prim ei ro" , e a do olhar sobre a cena, o lhar do espec tador enganado, apanhado na ilusão da verdade, que "o seg undo" defende. Sensibilidad e e razão lutam co mo lutarão, da í por dian te, a ce na e a platéia: esta platéia onde prev ale ce "a opini ão correntemente aceita", qu e R iccob oni descrevi a e des de nha va. Ra zão co ntra opinião : um vestí gio, entre outros, de um certo platonismo - no mínimo, de um ce rto soc ratismo - de Diderot. Mas avancem os. É ev ide nte que o Paradoxo (o parado xo) joga co m a di visão entre o representante e o repr esentado, que ele endurece e rad ica liza . Porque aq ui a se paração (entre o ator eo personagem ) releva de uma diferença de ser. "S e ele é ele quando represe nta, co mo deixará de se r ele?" '"' O ator nã~ pode ser o qu e ele repre senta : ele só repre senta o que representa na medid a em que ele não é aquilo que represent a. A rigor, poderíam os falar de desdobramento: "Nesse momento, [ela] é dupl a, a pequ en a Cl airon e a grande Agripin a"?" , mas ist o nom es qu e Did e rot atribui aos dois prota go nistas). (Em portug uês ut iliza rem os a tradu ção de J . Guinsburg , publ icada e m Didero t Ob ras 11: Est ética, Po ética e COI/IIIX. São Paul o: Pe rspec tiva , 2000. Pa ra o trech o citado , c f. p. 71 ). 65. OI'. cit., p. 120. "O segun do" , para não ficar atrás , traça , e m pouc as palaVI"aS , um retrato ainda mais feroz de Sa intc-Albine : " Ho menzinho arro gante, decidido, seco e duro , e m quem seria preciso reconhecer uma honesta dose de mérito, se ele tivesse em mérito um q uarto do que a generosa natu reza lhe concedeu e m arrog ância" (Ibid em ). Pobre Sainte-Albine, que tam bém não en controu clemên cia e m Less ing : " Mas o que e ncon tra mos de tudo isso na obra de nosso a utor? Nada , ou , no m áximo, reflexões muito gera is e muito vagas , q ue só oferecem palavras vaz ias de se ntido e m lugar de idéias, e um ce rto nilo sei quê no luga rde de finições." Ci t. por J. J. Engel. ldées sur le geste et l 'uction théãtrale, ( 1785), a prese ntação de Manine de Rougemoru, Slatk ine Rcprint s, Geneve, 1979, p. 8. A crítica ret oma a de Riccoboni, op. cit., apê ndice , pp. 19-21 . 66 . Op. cit., p. 72. (Em português : Ofl. cit., p. D ). 67 . tbid., p. 73. (E m portugu ês : op, cit., p. 34) . *. M lIe. C lairon ( 1723-1 8(3 ) roi um a das mais famosas atrizes fran cesas do séc ulo XV111. Agripina, mãe de Nero , é a he ro ína da tragédi a Britunnicus, de Racin e. (N . da T. )

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par a m arcar , por opos ição, o qu ant o a gr and eza de Agripina es ta dis tante da pequ en ez de C lairo n, e o q ua nto a C lairon só é Ag ripina na med ida e m qu e ela n ão é Clairon. Com muito mais freqüên ci a, Diderot insis te no não-ser da per sonagem o ,~ não-ser-a-person agem qu e co nst itui o ator : "e le não é a per sonagem , e le a represe nta", e o fato de e le a rep rese ntar im ped e qu e ele seja a pe rsonagem. " E le a representa e a represen ta tão bem que vós a tom ais como tal; a ilusão só ex iste para vós; ele sa be muit o bem qu e ele não a é"r,s. A rigor, po rta nto, a Cl air on não é de forma alguma Agripi na: são "os se nhores" q ue crêe m nisso, é uma m iragem . "Somos nós mes mos por natur eza; somos um outro por imitação''?". Es ta alt eridad e produ z um a in ver sã o no di sp ositi vo d a Poética: po rq ue o ato r, ex te rio r ao q ue mostra, está e m pos i' ç ã o de o conhecer. Did e rot faz di sto um ponto ce ntra l: o ator sa be o qu e es tá fazendo , o qu e mostra, sa be com um sa be r o bse rva nte, anal ítico e - de ac o rdo co m a epi stem ologia o oze ra l do Pa radoxo'" - mi méti co d iante de se u o bjeto . Seu trabal ho te m va lo r cognitivo : el e é " im itado r a te nto e discípulo ponderado da natureza " , ele representa "co m refl ex ão , com estud o da nature za hum an a, com imi taç ão c on st ante" , e le es tá oc upa do "e m o lhar, e m re conhecer e e m im itar", e le "o bse rva, es tuda". Ele te m "o o lho do sá bio" . "O grande co medi ante obse rva os fenômenos, [...ele] medita e e nco ntra, por - co m pe te mai.s ape nas aos es pec I'efle . xsa- o " 7 1. Des t e mo d o, nao tad ores teorizar o que vêem : a liás, co mo será referido , os es pectadores , por seu lad o, não estão mais em pos ição de fazê- lo. Ao co ntrár io do teat ro de Ar istóte les , e m qu e a pr ática da ce na o ferec ia objetos de co nhec ime nto à platéi a, ago ra é a cena qu e vê e conhece (o mundo , a natureza) e , ao fazê-l o, se vê e se co nhece; espectadora do mun do e de si mesm a, e la oc upa a posição cogn itiva de o nde os es pec tado res ser ão desal oj ad os: 68. tu«, p. 77 . (Em português: p. 37) . 69. lbid. , p. 114. (Em português: op. cit., p. 66) . 70 . Cf, Philip pe Lucouc-Luburthe, "Lc Paradoxo ct la mim ésis" , e m L'imitat ion des niodcrnes, Galil ée, 1986, p. 15.1''1 . (Em ponu gu ês: "O Parado. xo e a Mimcse", tradução de Fátima Saadi, em 1\ hnitaçâo dos Mode rnos , op. cit., p. 159 e .1''1.) 7 1. Ibid., pp. 72. 75, 95 . (Em portugu ês: op. cit., pp. 32 , 33, 35 e 52 ).

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Acho necess ário que haja nesse homem [no grande ator] um cspcctadO] frio e tranq üilo. [...] E por que difer iria o ator do poeta? [...] Os gra ndes poetas dr.ll.ll:íticos, sobretudo, são espeelad ~res assíduos.do q ue se passa em torno deles [...] O atorescutou-se durante muno tempo a SI mesmo; [...] ele se escuta no momento em que vos perturba". '

Se , por tanto , a partir da í, está es ta be lec ida a dissociação entre o ato r e se u pap el, qual é a nature za do pap el ? Ou , dito d e ou tra forma , o qu e é, exatamen te, 1II11 person agem '! O arg umen to de D ide rot po de se r decom post o ass im: o ator se e ntrega a uma imitação. Diderot o aprova, e logi a-o por se r um imit ad or" . O qu e é, e ntão, qu e e le imita? .D ide ro t rep ete sem de sc ans o: e le imit a mod elos. Acompanhem os a Clairon : "Se m dú vtd a , e la fez par a s i um mod el o ao qu al procu rou de iníc io co n formar-se; se m dúvi da , co nce be u esse m ode lo da maneira m ais e lev ada, ma is g ra nd iosa e a mais perfe ita qu e lhe fo i poss ível"?", C om o se form am es tes model os ? Num d ad o mom ento , Diderot parece ad mi tir qu e se possa enco ntrá-Ios nas coisas . Mas à medi da q ue a aná lise ava nça (porqu e a m arch a d e Did e rot pr o s s e gu e se m pre d e m od o proces sual , e la co loca por um mom ento , num es tág io provisório , a lgo q ue se rá e labo rado e det ermin ad o e m seguida , mesm o q ue isto inval ide a hipótese qu e lhe servi u na etapa ante rio r), a co nce pção se torn a mais prec isa: os mod el os não es tão di sp on ívei s no reaL Cl ar o, é necessári o o bse rva r a vid a e o mundo par a ex traí -los o u lhes dar forma. Mas os mod el os não se e nco ntra m já co ns tit uídos na vida . E les se d epre~.

72. lbid.. pp. 7 1, 74 . 76. (Em português: Of' . cit., pp. 32, 34, 35) . Sobre este pont o, Diderot tangencia uma idéia de Saintc-Albine, mas comum objetivo rigo rosa men te OpOSIO ao dele, que escreve : "Só representando para si mcsI~ que se pode chegara representar 12C1J1" . Aqui, rcprc sentnr quer dizcr eugunar,

fazer acreditar: "?Salores tnígicos gucrem nos provocar ilusão? Então, devçn1 produzi-Ia primeiro para si mesmQs" (op. cit., pp. 209 e 212) . O atoré, port anto. seu próprio espectador, no sentido de se deixar levar por seujogo, enganando a si mesmo. Oytorde Diderot, ao conlr:íno, se vê (ou se ouve) à medida que se conhcce , c êOnheee, p 0l1 aUlU..wa.Jilldlli ~ "a ilusão só cxisle para os scnhores, ele sabe IIll1il Obem que ele não é o pcrsonãgenl.... Uf' . cit., p. 77 . 73. Op. cit, pp. 72, 73, 75, ele. Cf. Philippc Laco uc-Labarthc, artigo citado. 74. Op. cit, p. 73 . (Em port uguês: op. cit.. p. 33.)

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.de m de la até "a tin(J ir uma fi(Jura u não ma is existia na lli!lureza"75. Eles adq uire m um a ge ne ra lidade, um a ex te n ~ ause ntes do mun do dos se res co nc re tos . "O Ava ro e o Tar tufo foram fe itos segundo todos os Toin ard s e todos os Grize ls do m undo ; sã o seus traços ma is ge ra is e mais marcantes , mas não o ret rat o exato de ncnhurn '" . Os modelos convocadoJs ' )~~~ a to.r..são ~I~termi nados exa ta me nte co mo ideais . Modelos Ide ai s . o pai de termos ob ceca o Paradoxo . O ator cop ia, c laro, mas copia ideal ida des . D isposi tivo de v iés plat ô nico , " po der ía mos di zer , a não se r pe la enve rgad ura , por qu e , em Platão, o imitado r est á co nfinad o a um a d istâ nc ia ex trema ~ (~ mode lo (e le est á tr ês gr au s afastado dele, o q ue é demais), ~ lJ~c a paz de. mani test á-l o numa apresentação, e , se pre tende faze- lo, de sf igura-o e ca i na mentira. O ato r de Diderot cons ide ra se u~ model os e os man ifesta adequadamen te em sua atua ção . E s ua a rte, sua competê ncia : " Aq ue le , P Oi S ' ~ q le m ell~ or .co nh.ece . e tl:adu z ma is pel:fei tam e l~te es tes sig nos ex te rnos, de aco:do com o m odel o Ide al mais be m concebido , é o mai or co median te"?", Porque os mét od os de Diderot se mo ve m num espaço do qua l Plat ão não pode se aproximar: eles sã o imagin ários. " A Cleópatra, a M érop e, a Agripi na , o Ci nna do te atro são mesmo person agen s h istór icos? Não. São osfantasmas imagin ários da poesia"? " . Os mode los do teatro pa rtici pa m de um mund o q ue é o do imagi ná rio, se us fa ntas mas nascem da i lllagi n~ção . Este m undo pro cede de uma visão a mpliada e ge neralizad a daquil o que as co isas são. A imaginação o mo lnada. O• at or didcrotiano deve "co m a ajuda d e u ma imazi _ C> çao fo rte, saber c riar, e, de u ma me mór ia ten az, m an ter a ate nção fixada e m fan tasmas q ue lhe servem d e modelos?" . O mod el o idea l é imag inad o. As idea lidades (de teat ro ) são

~

l..

75. fbid.. p. 9S. (Em portug uês: 111'. cit.• p. 54.) * GJi 7~1 cru um abade beato c Toinard um financista avaro. Em português: 111'. cit., p. 53. (N. da T. ) 76. l bid.. p, 114. (Em português: 111'. cit ., p. 66). 77 . lbid., p, 79. Grifo meu. (Em portu gu ês: 111'. cit., p. 38) . "" , Cleópatra é personagem de Corncillc; M érope é perso nagem de Volrairc, (N. da T.) 78. lbid. , p. 11 8. (Em portugu ês: li!'. cit.. p. 69).

im agin á rias. A imag in ação lhes d á fo rma, e las lh e devem for ça e si ng ularida de. Nest a mo ldage m, o poeta e o a to r rivalizam. Su as idea lida des fantasmá ticas se o mb re ia m ou se e ntrelaça m . "Será q ue M lle . C la iro n a co nhece mai s qu e Voltaire? Naque le mom en to, pelo men os, seu model o ideal , ao de c lamar, es ta va m uito a lém do model o ide al que o poeta imagi nara ao escrever, ma s esse model o idea l não era e la" . Estes modelos rece bem do imagin ário sua idea lidade; por isto o j ogo do ator não é inapto à sua prcsentação: e le lhes (re)prod uz as image ns. "Q ua l e ra, po is, seu talent o? O de im aginar UIUl gra~de.~·an tasma e copiá-lo co m i nsp iraç~0"7Y: ~s. im ag~l~ s de teatro suo da mes ma natureza das que o nnag ma no, poe uc o e dram ático, se preocupa em moldar. Elas são cópias dele, re tratos exagerados ou fi é~ , I~éis po rq ue cxaserados : o exagero é o (estlÍ no) )ró prio imagi ná rioxll. O jogo do ator mostra im age ns, im agen s des tas im age ns, cóp ias dest es es q ue mas qu e são os model os idea is model ad os pe la im agin ação. Assi m a ve rdade do teat ro pode, a partir da í, ex ibir-se como regime de adequação a estas ideal idades ficcionadas . " O que é , po is, o ve rdadeiro do palco ? É a co nformidade das ações, dos dis cursos, da fig ura , da voz, d o movimento, do

" I

ge~ to: c ~m U.~ll mod el o i de al . im a~~ ~ ad o pel o pO~ la , e m uitas vezes cxagciado pel o co me dia nte XI . A verdad e Igno ra qu alqu er co nfo rmidade co m as coisas, e la é fie l aos fan tasm as. As criança s, de no ite , ass usta m u mas às o utras sacudi ndo acima delas um len çol pa ra apavorar sem ma ldade se us a miguin ho s'" . " Es te rapazote é o verdadeiro símbo lo do ator; seus a migu inhos são os sí mbo los do espec tador'?" . As ve rda des do teat ro são peq ue nos espectros .

Por q ue es ta le itura? A qu e ten dem es tes es forços, recompensa dos ape nas pel a co nsta tação m uito ba na l da d ifere nça entre ator e pe rso nagem , e do estatu to imaginá rio de ste

79. lbid.. p. 101. Grifo meu (Em português: 111'. cit., p. 57). 80. lbid.. p. 114. (Em português: IIp. cit.• p. 66). 8 1. lbid. . p. 80. (Em português: 111'- cit., p, 39) . 82. lbid., pp. 74 e 130-131. (Em portug uês: 111'. cit., p. 34 c. pp. 78-79 ). 83. Cf. ibid. p. 13 1. (Em português: 111'. cit., p. 79) .

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último? Trata-se, simplesmente, de pensar esta banalidade como produzida. Real e imaginário não nos são dados, cara a cara, desde sempre. Séculos inventivos , que produziram obras capitais, encontros e acontecimentos admirados, puderam manejar um teatro muito erudito e popular sem lançar mão, para pratic á-lo ou pensá-lo, destas categorias que nos parecem empíricas. Real e imaginário são termos latinos. A Poética os ignora. E constatar isto não significa invocar a pureza de uma experiência grega suposta, que não podemos reconstituir (e, menos ainda, restaurar) : é ver com um outro olhar a nossa experiência. É perceber que a diferença entre o ator e o personagem, formulada nestes termos e inscrita na partitura do jogo do ator e da imagem, nos chegou no bojo de uma certa história, que, numa certa fase , organiza nossa percepção do fenômeno teatral, mesmo se ela se mostra a nossos olhos como constatação. Nós vemos no teatro atores efetivos dando vida a personagens imaginários, que se instituem, uns c outros, na economia da separação entre eles. Outras pessoas poderiam descrever o fato teatral como uma práxis posta em ação diante de uma thenna. A prática teatral é des-unida, cindida entre representante e representado, entre o que o ator faz e o que ele figura, entre a ação de imitar e a ação imitada. Uma tal separação não pode ser deduzida da simples existência do teatro, em qualquer tempo e em qualquer lugar, pelo simples fato de sua articulação essencial. Isto ocorreu conosco . Ora, uma conseqüência não negligenciável deste novo dado pode ser lida , de modo explícito e, no fim das contas , surpreendente, no texto de Diderot. Por querer descrever esta clivagcm, que ele aprova , o autor do Paradoxo acaba por contar um fato, inopinado, que foi levado ao seu conhecimento . O fato lhe foi relatado por duas testemunhas "verazes", ambas "de um feitio de espírito original e fino". É o seguinte: "é que em Nápoles, pátria de ambos , há um poeta dramático cujo principal cuidado não é compor a peça" . Mais que escrever, o referido poeta se preocupa em reunir os atores que convêm à sua obra, depois do que "ele exercita os atores durante seis meses, juntos e separadamenre'v". Com 84. lbid., pp. 118- 119. (Em português: op, cit. p. 70).

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razão, identi ficou-se nesta passagem um dos testemunhos que antecipam o nascimento do encenador": Este dramaturgonão concebe mais sua "prática do teatro" como equivalente à arte de compor seus poemas, mas consagra uma parte de seu esforço (a principal, como nos dizem) a transpor seus escritos para o palco por meio de um trabalho longo e escrupuloso. Sem dúvida ele não é o único a fazê-lo, embora, para Diderot, sua singularidade provenha, sem dúvida, da aplicação , da intensidade e da duração deste cuidado. Este texto é, no entanto, um dos primeiros nos quais a atividade de "ensaiar" é concebida em sua autonomia como parte do trabalho poético , parte da arte . Mas não é isto o que queremos ressaltar. Acontece que Diderot acrescenta: "E quando imaginais vós que a companhia começa a representar, a entender-se, a encaminhar-se para o ponto de perfeição que ele exige? Quando os atores ficam extenuados de cansaço dos ensaios multiplicados, o que chamamos de blasés", Na estratégia do Paradoxo , a função deste exemplo é clara: ele confirma que os atores se tornam tanto melhores quanto mais se afastam da primeira descoberta do papel e do texto, e, portanto, das primeiras efusões do entusiasmo ; tanto melhores quanto mais a rotina, o cansaço e a repetição das falas os livram de qualquer comunicação por fusão com seus personagens, de qualquer apropriação dos papéis apenas por meio da sensibilidade. A sensibilidade extenuada deixa aflorar o talento. A separação se amplia entre o ator e o que ele representa. É então que, na verdade, a trupe começa a representar, o que está de acordo com a tese: representa-se na distância em relação àquilo que se representa. Mas eis que acontece algo digno de nota: "A partir desse instante os progressos são surpreendentes, cada qual se identifica com sua personagern"xó .É, que eu saiba, uma das primeiríssimas aparições do termo , em sua aplicação às questões do trabalho do ator. Seja qual for sua acepção precisa neste contexto, a economia de seu aparecimento não deixa margem a dúvidas: é quando se assinala a maior distância entre o ator e o personagem que 85. Cf. B . Dorr , in Couty, Rcy et al. Le Théâtre. Bordas , 1989, p. 140. 86. lbid.. p. 120. Grifo meu. (Em po rtugu ês: op. cit. , p. 7 1).

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o prim eiro pod e se identif ica r co m o segundo. Só é poss ível se identi ficar co m aq uilo qu e es tá di st ant e - di stinto e lon ge de s i mesm o. Ca so co ntrá rio, não há identi fica ção possíve l; a pes soa é a mesma, s upo ndo-se que se pud esse imagin ar isto . A ident ificação é es te movi me nto : o de red ução de um a d ist ânci a qu e deve, port ant o, ser, antes , criada . O ato r não desl iza até e la a não se r a pa rtir da dife re nça representativa, da ampliação da fi ssu ra en tre a ação e a imagem, entre.J!-, imitação e o imitado. Ele só pode (even tualme nte) se iden tifical' co m se u papel no caso de es te se ter torn ado autônomo , for a ou ac ima dele, co mo espectro" . Didcrot ac resce nta que "é depois deste peno so exe rcício [os longos ensa ios, ex tenuantes] que as represent ações co meça m e se prolongam por se is outros meses seg uidos, e que o so bera no e se us súd itos usufruem do maior prazer que se pos sa auferir da ilusão teatral"xx. Para que o prazer ocorra , com o () maior prazer da ilusão , são necess ári as du as co ndições : que o ator, ex tenuado , se veja levad o por este cansaço à distância máxim a em relação a se u papel, e que, por isto, possa se idcntifica r com ele. A ilusão dos es pec tado res, o pra zer deles, determinado co mo praze r da ilusão (es tamos aqui nos anupodas do prazer aristotélico do co nhec ime nto), são produ zidos pelo ap rofund ament o da diferença mim ética em ce na, pela distância amp liada entre o ator e fetivo e suas fi gu rações imagin árias, e pela iden tificação, daí por diante tornada possível pela exte nsão desta distância. A ilusão dos espec tado res é suste nta[d; pela identificaç ão (subjetiva ou objetiva) dos atores: Brech t I~.:itá vindo. E es ta eco nomia se sustenta pela cisão efetivada ~tre o age nte na ce na e os fantas mas que ele agita. Vamos, portanto, ter qu e tratar do tem a. A qu estão da eventua l necessidade do teatro vai es trutura r-se , e ntão , co mo a qu estã o da necessidade da identifi cação, qu and o se represe nta, e a necessidade da ilusão, quando se o lha . Mas um a 87. F. Regnault encontra aí argumento para uma outra espécie de paradoxo: "identificação e distanciamento são uma única e mesma operação." Op. cit., p. 22. Acho que é ir longe demais: que os dois movimentos participem de um sistema (representativo) comum não basta para estabelecer que Diderot, Brccht e alguns outros tenham pensado fi toa esta dissociação. 88. lb id. Grifo meu. (Em português: op. cit., p, 7 1).

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última obse rvação preliminar aind a nos det ém . O ant igo par da práxi s cê nica e da theõ ria obse rvadora se tran sform a, mas também se compl iea e se plurali za . Em ce na a prá tica unit ária cede luga r ao duplo regime do j ogo (efetivo) dos atores e das imagens (produzi das) - do ator e do person agem . O que diz er da p latéia? A determin ação da asse m bléia fica ou não afetada po r es ta dup licação da ce na? A um prim eiro rel ance, não: os es pec tado res são sem pre espect adores e po nto fi nal, Mesm o se e les não têm mais exatame nte a mesm a co isa para ve r. E, ai nda assim , na platé ia se esg ue ira discret am ent e um a figura , cuja entrada deve se r ass ina lada , visto qu e e la está destin ada a um belíssimo futuro . Entidade radi calm ent e nov a que se insinu a entre as arq uibancadas se m qu e nin guém se ape rceba: () es pec tado r. Nã o os es pec tado res, evi de nteme nte, que es tão lá h á muit o tempo, sob nom es diversos. Nem mesmo um es pec tado r, um dado espectad or qu e, timidamente, aparece aq ui e ali nos text os . Mas o espectado r. Qu er diz er : a coleti vidad e do públi co condensada e redetermin ad a na generalidade monofisi sta do indi vídu o típi co , testemunha do particular ge ral, co nsidera do a partir de então com o uma essê ncia unit ária , da qu al todos os es pec tado res singulares são manifestações ac ide ntais - co mo o círculo ou o triângulo ou, claro, o hom em, a mulher; o francês subsumem todos os indivíduos co ncretos a que nos referimos co m o mesm o substantivo. Salvo e nga no, a Poética , que fala bastante dos espec tadores , ignora esta essência. No limi ar de sua é poca, Corn e ille ou d ' Aubignac utiliza m a expressão", mas ainda não faze m dela um tema : C orneille o emprega em alternância e se m distinção percept ível , co m o term o "ouvinte"?", Sainte-Al binc co nhece o ator e o poeta, co mo se us predecessores, mas d iante do ator vê antes um grande número de espectadores". Com Riccobo89. Freqüentemente num contexto digno de menção: "É preciso que um personagem venha falar sobre o palco, porque é preciso que o espectador conheça seus propósitos e suas paixões", La Pratiqu e duthéâtre. ofl. cit., p. 39. 90. Por exe mplo: "Discours de I' utilit é er des parties du poemc dramatique" em Oe uvres COIIII, lê le,l' 111 , Gallimard-La Pl éiade, p. 117c scg , 91. O que confirmaria, na minha opinião, a observação de Alain Ménil, segundo a qual este autor se move ainda no espaço do pensamento clássico. Cf. 01'. cit., introdução, p.165, notas pp. 432, 433, 439.

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ni, o espectador faz uma entrada de peso. Torna-se uma categoria central", mesmo se, evidentemente, L'Art du th éâtre não ignora os espectadores; os dois usos correspondem a funções diferenciadas . O espectador está fortemente associado à ilusão . "Chama-se expressão a habilidade com a qual se faz o Espectador sentir todos os movimentos pelos quais se quer parecer tomado." Ou ainda: "Deixe mos o Espectador ser tomado por aquilo que nós [o ator] acabamos de dizer, o suficiente para que ele seja levado pelo que seguir á; mas não permitamos que ele tenha tempo de perder a ilusão"?' , É preciso tentar compreender este elo . Diderot utiliza também a fórmula, porém ma is comedidamente, o que torna cada ocorrência muito significativa. Pinço três delas . Uma primeira vez, falando da liberdade de espírito que o ator conserva em seu trabalho, ele enfatiza: "felizmente para o poeta, para o espectador e para ele'?". J'1 o espectador, discreta mas firmemente, se alça ao nível de categoria estética, ao mesmo nível que o ator ou o poeta. Depois , ao longo do texto, Diderot se refere de forma recorrente aos espectadores de modo coletivo. Mas eis que, lá para o fim do di ál ogo, sobrevém um a ocorrência digna de nota. Efetivamente, o segundo interlocutor está a ponto de ceder à pressão argumentativa do primeiro, não por adesão, mas antes por estar desarmado. "Vós j á me confundistes fortemente, e não duvido que poss ais me confundir mais ainda." Ele proporá logo em seguida que interrompam o diálogo. De fato, ele já está desligado, não escuta mais nada. "O primeiro" observa: "M as estais distraído ; no que pensais?" Como resposta, "o segundo" proporá uma esp écie de concili ação, deixando à tese do ator insensível o essencial do campo da disputa, mas reservando à sensibilidade uma exceção eminente. "Pe nso em propor-vos um acomodamento: o de reservar à sensib ilidade natural do ato r os momentos raros em que perde a cabeça, em que esquece que está num teatro, em

92 . Por ex empl o , 0I'. cit. , pp . 16,2 8, 36,53,78 , 79 ,91 ,93, apê nd ice p.1 8. 93. lbid., p. 36 e 61. Grifo meu. A maiú scula é do o rigina l, oc orrência , aliás, freqüent e. 94. OI'. cit .. pp. 76-77. (Em português: 0I'. cit., p. 37).

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qu e esquece de si mesmo, em que está em Argos, em Micenas, em que é o próprio personagem que interpreta; ele chora ... " ~5 "O primeiro" - este mesmo que ao longo do diálogo se deixa chamar uma vez de :'Senhor Diderot" - não cede um milímetro de terreno . Mas não é isto o que nos detém : observemos antes que a concessão solicitada por "o segundo" associa com a presença do espectador a identificação do ator, o momento em que a diferença será abolida entre ele e seu personagem (diferença não ignorada, mas colocada pelo jogo do ator que, neste instante , se verá reduzida, reabsorvida pela identificação), momento de fulguração identificadora'" . Estrutura muito coerente: o espectador surge como testemunha da identi ficação , ele é como que convocado por sua fulgurância, um elo secreto e seguro o une a sua operação. Ora, este espectador único, parceiro preferencial do êxtase da fusão, se torna invis ivel no momento exato em que aparece : ele está ali, subitamente emergente, mas o ator que perde a cabeç a não o vê mais . É o oxímoro do fantasma, que se mostra em seu eclipse. Nós não nos surpreendemos, evidentemente, nós, que conservamos a cabeça fria : o espectador não é nunca visto por ninguém . O ator nunca põe os olhos nele : o que ele , às vezes , percebe são espectadores reun idos , inúme ros. O espe ctador, estritamente falando, é aquele que o ator imagina . Só é possível imaginar o espectador lia medida em que

95 . 01" cit., pp. 125 e 123 . Grifo meu. (Em po rtuguês : OI'. cit, pp . 73, 74) . 96 . Não se pode deix ar de pensar, qu ando se evoca esta deflagração identificatória, no Saint Genest, de Rotrou, no qual o ator parece, nu m dado momento, rea lmente , levad o por se u papel , a pont o de se confundi r com ele. Ora , Diderot teria tod as as condições de res ponder que, segundo o pr óprio te xto , est e excesso {IIU"I/ o j ogo do ator: " Não é mais Adriano, é Gen est qu e se exprime I Este j ogo não é mais umj ogo, mas uma verdade I Na qual por minh a ação eu sou representado , I Na q ua l e u [sou] objeto e ato r de mim mesmo [...]". Aqui, para fa lar a verdade, o ator não representa mai s, ele não é mai s o papel, mas e le mesmo, não mais Adri ano mas Gcnest . A identificação destrói o jogo do atare não pode , portant o, servir para defini-lo. Notem os, no que nos di z respeito, que, no mesmo instan te e m que a coi sa se o pe ra, os espectadores desaparecem e é o espectad or qu e aparece: " Po r muito tempo meu desejo foi se r aceit o por vossos olho s I Hoje quero agradar ao Imperador dos Céu s." Ao vossos, no plural (o verso seguinte d iz: e u vos diverti) . suc ede o Único . Rotrou . Le véritoblc Saint Genest, IV, 7, v. 1324 - 1327 e 1365 -1366, Sand-Corn édic Française, 1988. G rifo meu.

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ele 1/(/0 é visto. O espectador partilha, portanto, com o personagem esta natureza espectral. E Diderot, pela boca do "segundo", levando mais longe a hipótese, complica c acentua ainda mais o caráter absolutamente desrealizante deste jogo do olhar: eis que o ator chega "a ponto de me arrastar, de eu ignorar a mim mesmo, de não ser mais nem Brizard, nem Le Kain , mas Agamenon que eu vejo, mas Nero que eu ouço"?". O ator, portanto, no momento em que se espera que tenha se esquecido de quem é, tornando-se o outro imaginário, "arrasta" este espectador para a roda . Este espectador se ignora, desaparece de sua própria percepção, assim como "o espectador" tinha se tornado invisível para o ator. Ele 1/(/0 vê L,w is o ator que representa efeli~al1lel~e d!al/le dele, mas os k rsonage ns que, na verdade, nao estao la. O espectador se inscreve, portanto, se ele existe (visto que "o primeiro" refutara o roteiro desta exceção) , no mesmo instante de reabsorção imaginária, extática, da diferença representativa. O que nos leva talvez a colocar as coisas como se segue. Uma vez demarcada a divisão entre a prática cênica e seus efeitos de ' imagem, duas maneiras de a encarar se confrontarão: aquela que considera a diferença a partir do jogo do ator - e então a diferença torna-se visível e marcada. E aquela que a examina a pa rtir do imagin ário - e a diferença é abolida. Todo esmagamento da diferença representativa supõe que possamos nos abrigar no imaginário e pensar a partir deste lugar: a própria identificação, sem dúvida . Ela exige a abolição dos espectadores como entidade efet iva, assembléia concreta de indivíduos singulares, substituída pelo espectador, essência fantasmática , espectro da assembléia que desapareceu . Entre o ator e os espectadores , que, afinal , estão ali , se erguem dois duplos fictícios : o personagem e o espectador, sombras cúmplices. Quanto à terceira aparição do espectador no Paradoxo, vamos mencion á-lu provisoriamente, porque ela aparecerá novamente . É no momento em que "o primeiro" evoca um

pequeno acidente do qual ninguém está totalmente livre. Uma atriz estreante quer ouvir a opinião de algumas pessoas sobre seu talento. Convoca um pequeno grupo para julgar suas chances. A audição acontece na casa dela. Ela faz um ensaio , os amigos ficam bem impressionados , encorajam-na, elogiam-na e em seguida ela se arrisca num palco de verdade, onde é vaiada. Ora, prossegue "o primeiro", vós mesmo que a havíeis apreciado e elogiado "confessais que as vaias têm razão de ser". Que má sorte falseou o olhar? A explicação é imediata: "em seu rés do chão, estáveis terra a terra com ela [...1; ela estava frente a frente convosco [...], tudo estava em proporção com o auditório e o espaço". Em resumo : não se estava no teatro. A coisa aconteci a "em um teatro particular, em um sa lão onde o espectador se encontra quase ao nível do ator":" . Est á aí o espectador que vai entrando de mansinho. No teatro, os espectadores vaiam. Mas aqui , no salão , inopinadamente, é o espectador que se instala. O espectador, em sua solidão essencial, é, portanto, indissociável do dispositivo de ocasião no qual o teatro se ausenta de seu espaço público, de assemblé ia, para recolher-se a domicílio, no lugar-rei da vida privada , doméstica, familiar: em um salão. Os salões, na obra de Diderot, não são desprovidos de conseqüências.

97 . lbid., p. 124. (Em portu guês: op. cit., p. 73).

*. Lc Kain (1729-1778), grande alar francês, comparado a Garr ick. Briza rd (172 1- 1791), ala r da Com édie Française. (N. da T.) 74

98. lbid. , p. 119. (Em português: op. cit., p, 70.)

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III

Mais uma eta pa neste cam inho: trata-se do te xto, mu ito curto e hoje cé lebre de Freud: "Perso nage ns Psico p áticos na Cen a'" . No início deste texto, que os edito res data m de 1905 ou 1906, pode-se ler o seg uinte:

o espectador uma pessoa c uja particip ação é muit o peq ue na, qu e se nte ser um " pob re miscnivc l a qu em nada de import ância pode aco ntecer", qu e de há m uito rem s ido ob rigado a sufocar, ou antes , a deslocar sua ambição de te r sua própri a pessoa no cent ro dos ass untos mundi ais ; ele anse ia po r se ntir, agir e d isp or as co isas de acord o co m se us desej os - em suma , por se r um heró i. E o teatrólogo e o ato r pe rmit e m- lhe q ue ele proceda dessa forma fazend o-o identié

I. T rad ução de J. Al toun iun, A. Bo urgui gnon , P. Cotc r, A . Rau zy, em R ésultats, id ées , prob lémes. I, pur, 1984, pp. 123- 129. A res pe ito deste texto , cf. cspcciah ncn tc Phi lippe Luco ue-Labarthc, " L~ scc nc cs t prim itivo", e m Lc sujet de la philosoptue, Au bic r-Flam mari o n, 1979, pp , 185 sq. (EI11 portu guês : cf. 'T ipos Psicop át icos no Palco't.Irad ução de Chrisriano Mo nteiro O iticica, co m rev isão técnica de Juco b D. Azu lay, e m Edição Sra nda rd Bra sile ira das Ob ras Psicol ôgicas Completas de Sig mund Freud, vol. 7 , o rga niza ção de Jayme Salomão, Rio de Ja neiro, lma go , 1972 ).

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[icur-se co m um he rói. Eles tamb ém lhe poupam algo, pois o cs~~tndor s~bc muilO bem quc uma verdade ira co nduta her óicn co mo essa sc na I ~npossl vel pnrn e le se m dores, sofr imentos c temores ag udos que q uase an ulariam o pra zer. Sabe , al ém disso, que só temlll//lI vida e que talvez viesse a perecer nu ma única lula contra a adve rsidade. Em co nseqüê ncia se u delei te funda menta-se numa ilusão , valc dizer, se u so frime nto é mitigado pela certeza de que, e m primeiro lugar, é outro que não ele o que está atuando e sofrendo ~1 0 palco, e c m seg undo. q ue afinal de co ntas tudo não passa de UIllJOgO, que nao pode ca usar nenhum perigo 11 sua seg urança pessoa l. Nessas circunstâncias, ele pode da r-se no luxo de ser um "grande homem'" .

Es ta passagem retom a alguns dos tem as que vimos progress iva mente se instalarem e, ao mes mo tempo, intr odu.z eleme ntos de uma evide nte novidade. Observem os, em PrImeiro lugar, que e le é todo escri to do ponto de vista do espectado r, seg u ndo um m od o qu e a inda não . tí nha mos enco ntrado. Porque Sai nte-A lbi ne escreveu um livro de espectador , mas de modo não decl arado, visto qu e o qu e ele pretend ia, apoia ndo -se so bre exigênc ias aprese ntadas co mo gerais e racion ais, era Formul ar princípi os da arte teat ral e prescriç ões e nde reça das aos atores . Suas análises era m as de um es pec tador, mas o objeto do texto, co mo indi cava clarament e seu títul o , era a arte do ator. Com Freucl, a co isa é co mpletame nte diferente: e le se situ a do lado do es pec tado r, mas para revelar algo a respeit o do própr io espectado r, pa ra ana lisa r se u co mportame nto, produ zir sua psicologia. Não es tamos d iante de um tratado do ator, escrito por um espectador, mas de um curto tratado so bre o próprio espectad or, basead o na experiênc ia própri a ao espectado r (ele " vive", "e le se se nte", "ele quer se ntir", ele "sabe muit o bem", "ele tam bé m sabe" , e assi m por dia nte). Posição que, aliás, não se limit a às po ucas linhas citadas ac ima: ela domin a tod o o te xto. E é o espectador que é levado em co nta: e le é co nstantemente desi ban ado co mo o suje ito desta exper iênc ia. Aoo lon go do trech o todo, o pronome ele se re fere ao espectado r . 2. OI'. cit., pp. 123-124. (E m port ugu ês: 1/1'. cit., pp. :n 1-322. À tradu ção brasileira : "o teatrólogo e o ator" , correspondc em francês a tradução "os atores-poera s" ). (N. da T.) *. E m francês : "il, c 'cs t lui", literalmente, "ele é elc",jogo e ntre o prono me reto ele e o prono me oblíquo lhe, que só o francês permi te. (N . da T.)

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O qu e Fi cam os sabendo a se u respe ito? Que , no teatro, ele se identifi ca co m o herói e qu e esta identificaçã o só é possível graças à ilusão em que ela se integra. O par ide ntificação-i lusão está so lida mente articulado , o mesm o par sob re o qua l B recht, pou co adia nte, nos fará rell etir tão ativa me nte. A ilusão, co mo dissem os, é uma noção utilizad a co m freqü ên cia no pe nsa me nto sob re teatro, e desde há muito : encon tramos este term o mu itas vezes nos textos anterior me nte citados e sua relação co m o teatro foi amplame nte ternatizada desde os c lássicos - até mesmo em ce na - co mo I//l SÜO C ômica ". A iden tificação vem mais tarde. O verb o idenl~ co r-se aparece no texto de Didcrot, mas a prop ósito do ator. O ra, co mo sa bemos, o conceito va i ass um ir, ao lon go do século xx , um lugar ce ntra l na aná lise do teatro, va lor izado ou co nde nado, pou co impo rta, e a teoria fre ud iana, ev ide ntemente, co ntribuiu para tanto. Tentem os co mpree nde r co mo o co nceito de identifi cação inter vém aq ui. Para abordar uma identi ficação, pode-se começa r por duas questões ingênuas: quem se identifica? e com quê? Vamos nos aprox imar delas, mas na ordem inversa, porque a primeira é a mais intrincada - e não apenas nestas poucas linhas. Podemos responder, à primeira vista, ao menos, muito simplesmente à questão: CO /1/ quê? O texto é claro a este respeito: a pessoa se identifica com () herói . O espectador expe rimenta (fora do teatro), uma série de insatisfações: vive pouqu íssimas co isas, nada de importante acontece co m ele, teve que renunci ar à sua ambição de es tar no centro do universo. Como reação, e le quer sentir, agir, e m resum o, ser /1/11 herói. E o teat ro coloca isto ao seu alcance, por meio da identificação : pela identi ficação. Se lermos atentamente, o efeito do processo é, portanto, que o espectado r sente, age, em resum o, que e le é. A identifi cação lhe permite experiment ar sensações, cometer açõe s, assumir um ser. Co mo isto é possível? Por meio da ilusão, evidentemente. Na verdade, o espec tador não faz nem é nada disto tudo: e ele só sente o que sente sob o modo quimérico - esta coragem, este medo, esta compaixão e até mesmo este amor (por Ximena" )

* **

llusiio C ômica é o t üul o de uma peça de Co rnei lle. (N. da T.) Ximcna: heroí na de O Cid, de Cornei lle. (N. da T.)

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são feit os de ilusão. É, po is , a ilusão qu e sus te nta a iden tifica ção , torn a-a possível , atribui-lhe se us poderes. A identificação só ag e enquanto m ira gem . Como a ilu são fun ci on a para sus te ntar e ste edifíci o ? Fre ud explicitá. A ilusão re po usa sobre du as "gara ntias" : prime iramente , d iz e le, a gara ntia de que é um outro qu e age e qu e sofre, ali na ce na . A ilusão se apóia, portanto, sobre es ta segurança: aq ue le qu e age e sofre - o her ó i - é um o utro : po rta nto , e le não é eu ' . Se posso me identi fica r co m o her ó i, é, portanto , par ad o xalmente, na medida e m qu e me ga ra ntem qu e el e não é e u. É nisto qu e co nsis te a ilu são . A ilusão (identif ica do ra) não proced e , porta nto, como se pod er ia espe rar , da crença q ue es tabeleceria q ue sou e u, lá, na cena, mas, ao co ntr ár io, d a segura nça qu e me propo rciona o fato de qu e não so u cu' , Em segundo lugar, a ilusão se funda me nta na ce rte za de q ue, no fim das co ntas, tud o não passa de um j ogo d o qu al não pod e decorrer mal algum , ist o é , se co mpreendem os be m, a ilusão se escora na certez a de qu e isto não acon teceu ve rdadeirame nte, que as ações não são rea is, ' que aquele que re presen ta ape nas rep rese nta e q ue, portan to , o he rói também não é e le. O qu e equ iva le a di zer, claramente , qu e tud o o qu e aco ntece e m ce na ca rece de real id ad e : im agin ár io , co m ce rteza . N ão nos identificam os co m nad a qu e aco n teça e fetiva me nte . A ide ntificação se liga ao imaginári o . O u, par a resp onder à pergunta (com quê ?): nós só I IO S identificamos com uma imagem . É o qu e nos garan te a ilusão. Não é e le, não so u eu . Posso goza r se m e ntraves . Re s ta a qu est ão : quem ? O pr o blem a é um pou co ma is com p lica do . Porque so mos ten tad os , para pod er re sp onde r, a no s perguntarm os co mo e sta id enti fic aç ã o (d e te at ro ) se inse re no s iste ma freu di an o. Ora , a co isa não é ev ide nte nã o por um a incerteza qu e decorreria d e no s sa q ues tão,

*.

Temos aqui o mes mo j ogo en tre pron omes retos e ob líq uos : " il n 'est imp ossí vel e m português. (N. da T. ) 3. Esta contradição foi ana lisa da de forma muit o pe rspicaz po r O. Mannoni , em Cle]s 1)0111' llmog lnai re, 011 lAu tre scêne, Scui l, 1969 , ree di ç ão Points-Seuil. Em espec ia l " L' illus io n comiquc ou le th éâtrc du po int de vuc de l'unagin airc " , pp. 161- 183. (Em portugu ês: Chaves pura o hnagin ário. Tradu çã o de Lígia Maria Pond é Vassa lo . Petróp o lis: Voze s, 1973).

pas

11111''' .

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mas pe la co m plex idade intrínse ca de st e debat e na te o ria freu d ian a , "Não há, em tod a a teori a psic an alíti ca, d omín io mai s co nfuso , mai s cxasp erante par a o leitor do qu e o d a teor ia da ide ntificação. Ao ler a incrível prolifer ação de te rmos supos ta me nte téc nicos qu e apa rece m nas publicações, tem -se a impressão de q ue a lista da s identificaçõe s e nco ntradas não se dete rá nun ca":'. E o desejo de ap licar este co nce ito ao tea tro não d iminu i em nada a co nfusão, ao c ont rário: pel o sim ples fato de o conceito de identificação ter sido introduzido por Freud em estreita ligação com o recurso a uni

modelo tem ral. As mc uiforas cê nicas aco mpanhara m o desenvol viment o da noçã o de identific ação de sd e o iní ci o [... 1; a s e xpressões de "ce na psíqui ca" , de ce ná rio fantasm ático, de tcarralismo (hist érico), de te atro onírieo, de dr ama ne uró tico , de máscaras, traves tis, figurantes sã o mu ito num e rosas. A lingu age m da ce na parece , pois, ine vitá ve l qu ando se trata de e xp licar o trab alh o de idc ruificação' . .

Ev ide nte me nte, não pret en demos deslindar aq ui es ta complex idade red obrad a. No máximo, podemos te ntar situar a curta c itação de Fre ud numa das articulações possíve is da tem ática. Um co me ntador muit o be m info rmado resume: " Do is gra ndes mod el os se depreen dc m ele nosso itiner ári o freud ian o par a co nce itua r a ide ntifi ca ção'". Estes mod el os são : a identifi cação hist éri ca e a identifi cação narcí sica. Ora, a identificação histérica não parece o mod elo ade quado pa ra ten tar pensar a ide ntificação do espectad or como Fre ud a ev oca neste tex to. E la nos rem e te antes à identificação do ator. Fre ud es creve rea lme nte : " A iden : / tifi cação é um fator altame nte im po rta nte no mecanism o dos sintomas histéric os. Ela perm ite aos pacientes (...] desen tpe-

4. G. Ta illandie r, introdução a M. David-M énard, J. Flore ncc , J . Kristcva, G . Mich aud , J. Oury, J. Schottc. C. Stcin , Les ide ntif ications. Confro ntatio n de la cliniq ue et de la tli éori e de Freud ti Laca», Den oêl , 1987, p. 11. (E m port ugu ês: As k lent íficaçõ es lia Clinico e lia Teo ria Psicanalitico, o rga nização e tradução de A ri Roi trn an, Rio de Janei ro , Rel ume -Dumani, 1994 , p. 17). 5. J. Flore nce , em L' identifica tion dun s la th éori e [re udienne. Pub lic. des Facultes Univcrsiraries Saint-Louis, Bruxclles, 1978 , p. 50. 6 . J. Flo rcn cc , "Lcs idcntifi cations" , em Les identificati ons. oI'. cit.. p. 169. (E m português: As lde ntij icaç ôcs..., op. cit., pp, 115·1 4 7).

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nhar soz inhos todos os papéis de uma peça" . Esta é "a bem co nhec ida imitação histérica, a aptidão que os histér icos têm de imitar'". Ele indica tamb ém , em 1909: "Trata-se de uma apresentaç ão plástica e figurativa do gozo sex ua l, de fant asias atualizadas e figuradas sob a forma de pantomima'" . A pa lavra Darstellung ; cujo significado (entre outros) é: apresentação cê nica, ence nação , é traduzida aqui por "apresentação plást ica e figura tiva" . Em suma: a iden tificação histérica rem ete antes "a ações (no se ntido dramático do term o)?": identificação at iva, mim ét ica, represe ntativa ou figurativa, que para nossa questão evoca as pr áticas de ator mais que as do es pectador. É por isto que "o histrionism o é um aspect o de cer tas co ndutas histéricas". E o autor desta última obse rvaç ão acresce nta: "Às vezes foi evocado, rap idam ente, o paradoxo de ,~.i - I dcrot a propósito desta insensibilidade que rec obre a co m~ dos hist éricos" !", Não se pretend e dizer que os atores são histéricos; apenas que , se nos apoiarmos na dic otomia proposta aci ma, a primeira categoria não aj uda a pensar o processo descrito por Frcud a respeito do es pec tado r. Com certeza, é possível que exis ta algum móvel deste tipo também no espec tador, mas é no sentid o de que e le gostaria de representar, subir ao palco e , por tanto, isto se encai xa mais na hipótese de um a identificação COII/ o ator. Ainda vamos vo ltar a isto, mas é interessante notar que aqui Freud nunca evoca es te as pec to das co isas . A ide ntificação do espectador é co locada co mo identificação COII/ o herói, co m o personagem represen tado. A outra vertente não é ex plorada - nas linhas citadas. Resta-n os, por tant o , exa minar a seg unda possibilidade : a da iden tifi cação narcísica. Esta hip ótese se re vela imedi a-

7. S. Freud , L'int erp rétat ion des rêves, tradução de I. Meycrson . revista por D. Bcrgcr, PUF, 1967, p. 136. Grifo meu. (Em português: vol. lV da edição Stundard , tradução de Waldcrcdo Ismael de Oliveira, p. 159) . 8. "Considérations généra les SU l' I' au aque hysi érique" , ciladas por M. David-Ménard: " ldentifi cation ct hyst érie", em Les idauifications.... IJ(I. cit., 1'. 84. Grifo meu. (Em português: IJ(I . cit.. p. 71.) 9 . J. Schottc, em Les identificotinns.... IJ(I . cit.. p. 192 . Grifo meu. (Em português: IJ(I . cit.. p, 148) . 10 . O. Mannoni, "Le th éâtre ct la folie", em Clefs pou r linraginaire , IJ(I . cit.• pp. 302-303. (Em portugu ês: IJ(I. cit.• 1'1'. 3 16-3 17).

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tamente produti va. Porqu e Freud indic a, de sa ída, qu e o espect ad or so fre devido à insignifi cânc ia de sua vida , qu e e le se vê malt ratado em sua asp iraç ão a es tar no ce ntro do universo , qu er tudo modela r a part ir de se u desejo e qu e aí se articula se u desejo de se r um her ói, que o teatro va i satisfazer dando-lh e a possibilidade de gozar de si mesm o co mo " gra nde hom em ". O ra, es te desej o de grandeza é daq ue le~ qu e Freu d localiza e interpreta no âmb ito do narc isism o . E por isto qu e, em " Para lnt rodu zir o Narcisism o" , e le vê um "estigma nar císico" num a ce rta atitude parental d iante de um a cria nça : A criança tcrá mais di vertimentos que seus pais, nãoficará sujeita às CO lIJO supremas lia vida , A doença, Do morte, a renúncia ao prazer. restrições 11 sua vontade própria não a atingirão [...], ela será mais Ul//II vez realmente IJ centro e IJ iÍlllalilJ da criação [...]. A criança concretizará os sonhos dourados que os pais j amais realizaram - o menino se tornará um grande homem e um herói " .

necessidades que eles reconheceram

Compen sação em rela ção às miséri as da vida, rev anch e contra a insigni fic ância, as der rotas , e, em fim de co ntas, so bre a própri a co ndição hum ana: o parentesco deste trech o co m o nosso sa lta aos olhos . A se qüênc ia do ensaio não de ixará de co nfirma r isto: a reivindicação de gra ndeza é um traço narcís ico imp ort ant e. Esta ap rox imação procede do elo , estabelec ido por Fre ud , entre o desejo de gra ndeza e a categoria do ideal do eu, introd uzida neste texto ' . Ten tem os seg uir seu raciocín io. Q uando os pais atrib uem ao filh o todas as perfe ições, es ta atitude é " uma revivescência e reprodução de se u próp rio narc isismo , que há mui to aba ndo naram" !' . Este co mportame nto pa-

11. "Pour introd uirc le na rcis ismo " ( 1914), tradução de J. Lap lan che, in La vie sexuelle , PUF. 1969. p. 96. Grifo meu. (Em portugu ês: vol. XIV, da edição Sta ndard das obras de Frc ud, IJ(I . cit., tradução de Them ira de Oliveira Brito, Paulo Hcnriqucs Britto e Christiano Monteiro Oiticica, p, 1( 8). *. A exp ressão "idéa/ du ntoi" esui traduzida na edição standard das obras

de Frcud por "ideal de ego" . Entretanto, em textos e traduções mais recentes, aparece co mo "ideal do eu". Optaremos por esta última forma se mpre que a expressão aparecer no texto de Den is Gu énoun. (N. da T.) 12. 0(1. cit.. p, 96. (Em português: IJ(I . cit ., p. 1(7 ).

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rental permite, portanto, remontar, " por um raciocín io recorren te" , ao narcisismo primário de sua própria infân c ia, estrutu ra que nun ca é observad a d iret amente. A hipótese deste narcisi smo primári o nas ceu da an álise da demência pre coce , ou esqui zo freni a. "Este tipo de paciente [...1 e xibe duas característi cas fundamentais : megaloman ia e des vios de seu interesse do mundo exteri or"!' , O delíri o de grandeza é, portanto , uma das marc as distintivas do narc isismo primário, que produ z uma espécie de auto-suficiênci a: " o encanto de uma criança res ide em grande medida em seu narcisismo, seu aut oc ont entamento e inacess ibil idade '" :'. Ora , esta autosufici ên ci a e o sentimento de grandeza que pode est ar lig ado a ela sã o maltratad os pela vida e pela cultura . As aqui siç õe s c ulturai s dev em ser "extorquidas" ao narc isismo, elas supõem o aba ndo no de tod os os tipos de privilégio infantil, dos qua is o nar c isismo se alimentava ". O abandono das prerrogativas, a violê nc ia sofrida encontram um a forma de compensação na form aç ão do ideal do eu, Esse ego ideal é agora o alvo do amorde si mesmo desfrutado na infância pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado e m direção a esse novo ego ideal, o qual, como ego infantil, se acha possuído de toda per feição de valor. [... O homem] não está disposto a renun ciar a uma satisfação de que outrora desf rutou [...] ele procura recuperá-Ia sob a nova forma do ideal de ego . O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância!".

Portant o, a vontad e de reva nche , de comp ensação diant e das mutilaçõ es imp ostas ao narc isismo pela vida e pela cultura estão na raiz da formação do idea l de eu. O ra, em um a fase ma is primária , são estes mesm os processos que, como vimos, produzem, se gundo Freud, a identi ficação co m o herói de teatro. Podem os , ent ão, supor que o herói de teatro aparece aqui para dar IIIn rosto a este ideal e que aquilo com que o espectado r se identifi ca quand o se ide ntifica com o herói é um a de suas atualizações possíveis - como, em outras circunstâncias, o ch efe , o 13. lbid. , p. 82. (Em português: 0I'. cit., p. 90). 14. lbi d., p. 94. (Em português: 0/'. cit., p. 1( 6). 15 . lbid., p. 96. 16 . IN d., p. 98. (Em português: 0I'. cit., p. 111 ).

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líder ou o herói de um a multidão, mas , neste caso , fora do teatro 17. Podemos, portanto, con cordar com O . M annoni qu ando ele escreve, lendo precisamente o texto de Freud de que estamos tratando: "O teatro perm ite ao espe ctador identificar-se com um herói (quer dizer [...1que se trataria de uma identificação no nível do ideal do EU)"'X. A identific ação com o herói investe-o, port anto , como figura do ideal do eu. I~ nisto que se trata de uma identifi cação : o herói aparece para o espectador como um ideal do eu, precisamente co mo um eu idealizado. O que permite talvez resp onder enfim, à questão: quem se identifi ca? O espectador ? Dize r isto não basta - nossa que stão é antes desdobrada por esta atribuição , tendemos a perguntar: quem é aquele al i, "o espectador" ? Porque, na economia do que os psicanalistas chama m co m freqüência "o sujeito" , o que (aqu ele ou aquil o que) se identifica ao ideal do eu é, sem dúv ida, alguma coisa co mo o próprio eu . É o eu que se d ividiu em eu e ideal do eu , e a identifi caçã o é a elimina ção imaginária dest a diferença; a identificação é a identificação do eu com o seu ideal . A iden tific ação pode ser compreendida com o es ta reabsorção ou esta assun ção do eu e m sua idealizaçãa , no êx-stasc' destafração de eu que se desprende (do eu , de mi m) para se produ zir co mo idealid ade . É o eu que se fig ura co mo seu idea l: aqui, o herói de teatro. A resposta à que stão quem? Seria, portanto: o . eu. M as e ent ão? Quem é o eu? Não se pode eludir o fato de qUj' o eu seja co nsiderado, ao men os desd e Lacan, como esta co nfigura ção essencialmente imaginária , const ituída desde o fam oso "estád io do es pelho" , como imagem (especular) do eu'", Seria possív el , e ntão , di zer : o espec tado r (o u: aq ue le qu e se identifica) é ex ata me nte esta fo rmação imagin ári a que se co nstitui 17. Frcud, Psych oiogic desfoules et ana lyse du 1II0 i , cap. 7 e 8, em Essais de psichunalys« , Payot, 1981 , pp. 167- 18 I. (Em português: vol, X VIII da cdição Standurd, 0/' . cit., pp. 133-147.) 18. O/I . cit ., p. 170. A continuação da an álise de Mannon i diverge clara-

mente da que estou propondo aqu i. Volta rei a ela mais adiante . *. O prefixo ex- indica movimento para fora c stase rem ete a estagnação, pm~lda .l?x-s ti/.I'e seria, port anto, uma arra ncada para fora da estagnação. (N. da T') 19. Lucan, "Lc stade du miroir co mmc Iormarcur de la fonction du Je" ( 1949), em Ecrits, Scuil 1966, p. 93 sq. (Em port uguês: "O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu", em J. Lacan, Escri tos, tradução de Vc ra Ribeiro. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1998, pp. 96- 103).

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acima ou diante do s esp ectadores co mo o eu daquele qu e o lha o teatro' . O espectador é o eu . O que permite, sem dúvid a, qu e cada espectador e fetiv o afirme , doravante: " o espectad or "-- so u eu . Por qu e dora vant e'l Porque este mod elo não de screv e um a es trutura d a ex periênc ia teatral adq uirida para se m pre, nem mesm o coexte nsiva a tod o fat o de teatro. Es ta estrutura rep ousa inte irame nte, como di ssem os , so bre a ilusão, e uma da s du as garantias qu e a ilusão requ er é que IIIdo aquilo IIÜO pa ssa de 11111 j ogo , qu e tud o o que aco ntece em ce na não aco ntece ve rdad e irame nte, que o ator não é aquilo que ele representa e que, portanto, o herói não é ele. Nã o foi estabelecido simu ltaneamente à em erg ên cia d a mimêsis qu e o ator e o her ói sej am dois e leme ntos separados, heterogêne os, da ação teatral?". N ão há identificação possível (do espectad or) que não seja imaginária. Foi necessário, antes que o esquema da identificação d o espectador tom asse forma, antes que pudesse advir no palc o a lgo como o imaginário, que a cena se tornasse portadora de *. No o riginal. regardant : olhante, (N . da T. ) 20 . End osso aqui . no essen cial . a a nálise que Robert Abirached faz do es ta tut o do persona gem e m La crise du personnage dali.' te th éãtre moderne, Grnssct 197 8, reed . Gallimard -TeI 1994 . Mas co m a segu inte nuan ce : o q ueelc des igna co mo "o proto colo da mim cse", se aí ve mos a se pa raçã o e ntre ato r e personagem, caracte riza. no meu e ntende r, precisamente "o pe rso nagem" e m sua determinação moderna. e não me parece, apesar das apa rê ncias e m co ntrário c dos efi cazes argumentos a prese ntados por ele , ter adq uirido esta es trutura desd e Aris t óteles. Ta mbé m não atr ibuo isto a Dide rol q ue d iz: "é um a fónnul a dad a pelo ve lho Ésq uilo : é um protocolo qu e da ta de três mil a nos" (ofl . cit., p. 79. Em po rtuguês: OI'. cit ., p, 39). Na mesma medi da e m qu e a a nálise de Ab irac hcd é lotaiment e convince nte no qu e d iz respe ito à imi taç õo dos moder II OS (para reto mara be la fórmula de Lacoue-La bnrthe ), parece-me qu e so me nte po r um a ilusão re trospectiva a fórmula de Dide rot se rv iria para caracter izar a mimêsis da qu al nos fala a Poética . Tal ve z a que stão tenh a sido susci tada pel a tradução de mimêsis por imitação. "Sa be-se hoje , de forma, ao qu e par ece, definiti va , que o se ntido pr imeiro de mhuêsis não tem nada a ve r co m a imitação de uma figura quc j á estar ia dad a em algum lugar e qu e nos int roduz num a es péci e dc pe rspectiva de represen tação e rep resentativa. O se ntido prim eiro de mí,lleS;.\· provém do universo da danç a. Ele traduz o aspecto ' dançante' da representação. no se ntido teatral. no se ntido da dramati zação" (Declaraçõe s de J. Sch oue, rep rodu zidas em Les identificati ons .... op. cit., p, 107). A co isa nã o pare ce. no e ntanto. tão "definitiva" qu ant o ass eg ura este int érprete. Cf. Dupont -Roe c Lall ot em La Poétique , OI'. cit.• pp . 17· I8.

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imagens. Ist o não é co ex tens ivo a todo teatro, Isto é o produto de um a hist óri a e acont eceu conosco. Ainda falta explicitar nossa últim a afi rmação: o espect ador é (o) eu. Falta compreender como se produz esta o pe ração, qu e é tamb ém lI/11a identifica ção: identificação dos espectadores com () espectador, produçã o desta identidade essenc ia l, gera l e s ing ular, qu e su-põe ' e ntão () espectado r na platé ia, .~ll vez dos espect ad ores que es tão efeti vam ent e ali. Produ çã o ima gin ária , mais um a vez: porque o espectado r não es tá em part e a lguma a não se r no imagin ári o teat ral , o qual , e m bre ve, produzi rei e feitos de realidade : a invenção do e nce nadoj " sem dú vida, nad.a mais é do que a vontade de col ocar um espectador determinado no lugar do espectador e dotá- lo de toelos os poeleres. Esta identificação, muito mais profunda, secreta e difícil de ex ibir, visto que está escondida nas profundezas (daí em diante) sombrias da platéia, pode ser interpretada à luz de um o utro texto de Freud, no qual ele escreve: Após as discussões ante riores!' , estam os, no entanto, e m perfeit a posiçã o de fornecer a fórm ula para a co nstituição libid.inal dos gr upos, ou, pelo meno s, de grupos como os qu e até aq ui co nside ra mos . ou sej a, aq ueles grupos qu e t êm lIIil líder (... ] Um g rupo pr imário desse tipo é um ce rto núme ro de indi vídu os qu e co locaram um só e mesm o objeto no lugar de se u ideal do ego e, canse qiie nte ntent e. se identi fica ram uns comos outros em seu eJ.:(}22.

Tr ata-se , par a Freud , do líder , o u de uma idéia, e nós acrescentarem os qu e , no caso d o teatro , trat a-se de uma fig ura , o her ó i (imag iná rio) ; e , por outro lad o, da identificação dos indiv íd uos entre si, "e m se u ego" !' . Se co locamos estas

*. Co loc a por baixo. Ao pre fixo sub-, qu e sig nifica debaixo , j unta-se o verbo 1'(lJ1O , p onho, coloco ; co m o en surd ecim ent o do b de sub. tern os suppo 110. (N. da T. ) 21 . Traia-se precisa ment e de co nside raçõe s so bre a identificaçã o. 22. Psycttologie desfoules.... op. cit ., p. 181. Grifo meu . (E m portu gu ês : OI'. cit., p. 147 ). 23. Para sermos ho nestos, obser vare mos qu e, nest as linhas. Freud só rala de idcruificação neste seg undo nível. É que se trata de um text o no qual ele mant ém ainda, pro visoriamente. a distinção entre identificação e es co lha de obje to que , entret ant o, j ri est á aí posta e m questão e qu e se rá, ao que pa rece , ma is ou men os aband on ada nos text os posteriores, nos qua is toda identificação se rá col ocada co mo objetai .

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linhas e m re lação com o texto que forneceu nosso fio até aqui , fica claro que o primeiro elo (escolha de objeto: o líder, a idéia, o herói), opera também como identificação. Nós nos permitimos , portanto, propor, finalmente , o esquema de um a identificação (teatra l) dupla : com o herói , por um lado , o qual "toma o lugar" do ideal do eu, e, por outro lado, no nível do eu , o qual assume a identificação dos espectadores entre s i. É por isto que há, necessariamente, no teatro, Plur~'l' lidade de indivíduos no público; para que o espe ctador pos sa teatralmente considerar um personagem, nela pode haver um espectador solitário. Apesar da aparência , a relação teatral nunca é dual : porque a identificação teatral é dupla, porque a identiticação com o herói é sempre sustentada pela identi ficação mais profunda dos espectadores entre si e por-

que é preciso que haja vários para que se identifiquem uns aos outros. De modo que a cond ição de possibilidade (que poderíamos chamar ele pa radoxal) da posição do espectador é a existênc ia dos espectadores enquanto coletivo. São necessários espectadores para que algo como o espectador possa ~ c o r re r

e se produzir como assunção imaginári a. . O dispositivo teatral mudou . A rel ação frontal entre cen a e platé ia se co mplica , se desdobra. Agora, entre o ator e o público (efetivos) , instaura-se o face a face (imaginário) do personagem e do espectador. A relação teatral é clivada, imaginariamente replicada em sua constituição interna. O que podemos representar por um esquema, no qual cada seta representa uma identificação - un ívoca para o ator, em dois níve is para o público :

EFETIVO

IMAGINÁRIO

Ator Personagem I I

PÚbliCO~

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*** A esta abordagem de Freud , teoria do espectador enun ciada de um ponto de vista de espectador, respondem , segundo uma c lara simetria , as an.álises de Stanislávsk.i : teor.ia.~dO ator pensada a partir da posição do ator. Na mesma medida e;ll que Freud, por seu lado, e não apenas neste texto, claro tenta analisar o que vê o olhar d irigido para a representação Stanisl ávski tenta evidenciar o que mostra aquele que repre senta. Chama a atenção sua conternporaneidade'", mesmo que os principais textos do encenador russo sejam um pouco mais tard ios do que o breve ensaio do fund ador da psican álise . Nem um nem outro se satisfaz com as abordagens consc--. ientes, embora Stanislávski, a julgar pelas versões francesas disponíveis , fale ma is em sub (do que em in- ) conscienieç] m todo c aso, como Freud e muitos outros, ele considera indiscutível a distância entre o ator e o que ele representa. e acordo com seu ponto de vista (de ator) , ele se coloca realmente, melhor dizendo, exatamente, no vazio desta distância, no intervalo entre os dois dentes de um forcado . E o objetivo de seu trabalho é determinar procedimentos c apazes de aproximar o ma is possível, de fazer com que se encontrem estes do is ramos que tudo separa, fundam entalmente distantes um do outro. Tr ata-se de chegar ao ponto onde será "estabe lec ido este co ntato entre a su a vida e o seu papel" . "Representar verdadeiramente significa [...] pensar, lutar, sentir e agir em uníssono com seu personagem'v". A distância entre o ator e o que ele deve representar estrutura o lance inici al , é preciso fazer todo o possível para reduzi-Ia. É o próprio movimento da identificação. Par a designar o ponto de conjunção que é prec iso alcançar, Stanislávski não emprega este termo, mas diz : viver seu papel ou viver seu personag em . " E m noss a arte, é preciso viver o papel a cada instante que o representamos e em todas

I

~

T O espect ador

24. Freud: 1856- 1939, Stanislávski: 1863-1938. 25 . Stanislávski, l.afonuation de l 'ucteur, traduçã o de E. Jnnvicr, Payot , 1963, pp. 55 e 21. (Em portugu ês'. fi Preporação do Ator, tradu ção de Pontes ele Paula Lima, Rio de Janeiro, Civilização Brusilcira, 1968, p. 76 e 43) .

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as vezes. [...]. Estude os fundamen tos da nossa esco la de atuação , qu e são os fundam entos de co mo viver se u papel?": O que sig nifica: viver seu papel ? Norm al mente o que se vive é a próp ria vida . Vive r se u papel é empen har sua própria vida na vida supos ta do papel repr esentado. E mesm o se enten der mos a exp ressão com o sentido de "experime nta r inte nsame nte " , como qu a ndo se d iz "v iver uma situação, um aco ntec ime nto" , o res ultado se rá o mesmo, em fim de con tas : porqu e, neste se ntido, viver seu pape l é ex pe rime ntar intensame nte os se ntime ntos que susten tam a vida do papel. "Se não se 'vive' seu pe rsonagem, não pode haver ar te ver~~deir~; e isto só com~ça quando '" sentimentos inte r~êm"27 . L~,1ver e, antes de ma is nada, sen tir. As ações se artic ulam com os sentime ntos . Não se trat a de rep resentá- los o u de imit á-los mas de vivê-los : Sta nislávs ki se opõe, po r este viés, ao que ele chama de "a escola da represen tação" cujos seg u ido res reprod uzem "fo rmas ". Eles "acham, de fato, freq üe ntemente, q ue não é aco nse lháve l sentir depois q ue j á se dec idira m so bre o padrão a ado tar." O utros, que pra ticam o que ele chama de uma "a tuação mecânica" , " não procuram experimentar os se ntimentos do personagem" . A um aluno, e le censura: "E co m que [você abo rdo u se u pape l]? Com se ntimen tos verdadeiros, equiva len tes aos do person agem q ue você encarnava? Não, você não ex pe rime ntava nenhum ?" . O objetivo é , portanto, en trar em re lação est reita com os se ntime ntos su pos tos do papel. Stanis lávski decompõe minuciosa men te o processo des ta suposição?". A análise é suti l, a identi ficaç ão da qua l se trata aq ui não ope ra de mo do irne26. Ib id., pp. 25 e 36. (Em portu guês : 0I'. cit. , pp , 47 e 56) . 27. lbid.. p. 30 . Gr ifo meu. (Em português : "Não pode haver arte verdadei ra se m vida. Ela começa onde o sentimento assume se us direitos", 0I'. cit.; p. 53 (Apesar de as traduções francesa e brasileira partirem do original em inglês Ali Actor Prepa res, há peq uenas discrep âncias entre elas. nos trechos citados por D. Guén oun. Sempre que isto oco rrer, trad uziremos lir eral rn entc no corpo do texto a citação do autor e reproduziremos no pé de p áginaa trad ução e m POl1Uguês.). (N . da T.)

28. lbid. , pp . 27 -29 , 31-35. (Em po rtuguês : OI'. cit ., pp. 49 e p. 55: "E com que [você abordou seu papel]? Com sentimentos orgânicos, verdadeiros , correspo ndentes ao da pessoa retratad a? Você não tinha nenhum") . 29 . lbid., p. 52 sq. (E m português: 0I'. cit., p, 73 e ss .).

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diato ou em bloco: o que dá ao "sistema" es ta e laboração co mplexa q ue o caracteriza . O elo é ati vo llOS dois sentidos: "Antes de mais nada, é prec iso assimilar o seu model o" . Aqu i os dados do pape l são integrados, incorp orados. A relação é orientada do perso nage m pa ra o ator. "Todo esse trab alho [...] permitir -lhe- á impregná- lo com os seus sentime ntos pessoai s"!". Aí, em con trapartida , o trabalh o se tran sfere da vida do ato r pa ra o se u pape l: a flecha iden tificadora avança na direção inver sa. É uma das riquezas do mé todo, que é, al iás, bas tante rico ; o trabalho se apó ia sobre os do is pó los; ele não prescreve ape nas uma ingestão dos dados supostos do perso nagem; e le proje ta tam bém neste os móve is próprios do ator. Ele associa igua lme nte, de modo elaborado, o sentir e o agir, artic ulados pela suposição, a técnica do se: "Os se nt ime ntos despertados manifesta r-se -ão nos atos dessa pessoa imaginária, caso ela fosse colocada nas ci rcuns tâncias de te rminadas pela pe ça'?' . E sab e-se que, so bre este pon to, a reflexão de Sta nislávski não deixará de se apro fundar, até o "métOd~ u" ,çõ" 1[,;,",", que tardiamente R"e"," q"a,~Tnve"'" ãfticulacão mirn ética: vis to qu e , aó co ntrá rio do esq uema co rre nte, ele se funda rá sob re o real do cOfllllOf amen to cênico para dele 'çleduzir as co rre lacões narrat iva.§; .- O que nos importa aqui é que, em todos os casos, a realidade do personagem é incansavelme nte co locada como imag in ária. Vocês ago ra sabe m q ue o nosso trabalho numa peça principia com o uso do se, como alavanca para nos erguer da vida quotidiana ao plano da imaginação . A peça, os seus papéis, são inven ções da imaginação do autor, uma série intei ra de ses e de circuns tâncias dadas , cogi tadas por ele. A rea lidade fatual é co isa que não existe em ce na. A arte é produto da imag il;ação, assim como a 'o bra do dramaturgo . O ato rlJeve ter por obje tivo aplicar sua técn iea para fazer da peça uma rea lidade teat ral. Neste pro cesso o maior papel cabe, sem d úvida , à il/lagil1a('ao·'-.

=

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A paisagem esta rá, então, satu rada de imaginário. Tan to o person agem como a peç a são entidades fictícias , cujo tornarse-at ivo é desencadeado po r su posições, os ses. Dia nte des30 . lbid ., p. 28. Grifo meu. (Em port uguês: op. cit., pp . 49 -50) . 31 . lbid., p. 55. G rifo meu. (Em port uguês : OI'. cit., p. 76). 32. lbid. , p. 6 1. Grifo meu . (Em português : OI'. cit., p, 8 1).

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sas entidades , a açã o do ator con siste em duas operações estra nha me nte inversas: pr imeiro, ab ordar a peça com a ajuda de suas pró pr ias su posiçõs;s para passar da vida de rodos os 5!!as pa ra (] dom ínio da ima'jif,lação. Trata-se então, co m o veremos nas pág inas seguintes, de pre en cher ima gina ria me nte os vaz ios de ixad os pel o im ag inário do texto. O texto não satura o im aginá rio, ele aprese nta ape nas um traçado lacunar, interm itent e: as falas, as ind icaç õe s cên icas são sempre muito pobres" . Cabe ao ator compensar essas lacunas pOI: seus própri os recu rsos ima gin at ivos. Em segu ida, ele de ve rá ut ilizar sua técnic a Jara o er . uma e é ' de mo vimen to .-2 reviravo lta e tran s{orrnar a peça ( imagi ná ria) em uma rec . lát ica , uer dizer, nesta espé cie de real idade de te rm inada que se produz e m cena: nao a real idade exterjiã, que está au sen te ah, mas a realidade propriamente cên i-. ca, dr am át ica , a realidade da atuaç ão e da representação . E , .nesta segunda fase , a ima ginaçã o é ainda cons ide rada ~mo o ag ente de cisi vo . É por isto que , se o ator quer se torn ar apto a real izar o conjunto de ss a o pe raç ão , sua ima ginação de vei ser a tivada, desenvolvida, e nriq uecida, posta a trab alha r.ÉI I ela qu e deve torn á-l o apto a fazer funcio nar, duplamente, ~ inter-relaç ão e ntre o real (da atuação) e o imag inário (d~ papel) . A imaginação é este operad or por meio do qual o ato r se tran sp orta para a imag em e afeta, na apresentação da imagem , a at ividade de seu corpo, de sua vida. Movim ento ininterrupto de ida e volt a: de transferênci a (imagin ária) par a o papel e de reco nversão da ima ge m ass im inve stida de efetividade dr am ática , cê nica . Ass im, o ima g inár io está e m tod a parte: em tod as as al av an cas de coma ndo, em toda s as engrenagen s, e le sustenta todos os rebites e corre ias de sta máqu ina. Ele é , decididamente , o mes tre do )ogo .É ele que e ngre na e rec olhe a ide nti ficaç ão do a to r, assim co mo, em Freud , el e man tinha a do espectad or sob se u domíni o. E es ta identificação é ativa. El a permite ao at or não ser mais espectad o r de se u pap el. ~,"

Você pode dizer a si mesmo: " Vou ficar como simples espect ador, observar o que minha imaginação me sugere, sem tornar parte de forma algu ma nesta vida". Ou então, se você decidir se entregar às ativida des desta vida imaginária, você vai representar mentalmente em meio a seus companheiro s e ainda assim permanecer á um espectador passivo . Ao final, vocêficará cansado de se r sempre espectador; e terá vontade de agir. Ent ão, enquant o purticipante ativo desta vida imaginári a , você não verá mais a si mesmo, 1l1aS apenas o que o cerca e vivendo realm ent e neste ambiente reag irá interionne nte'",

Freud , co mo vim os, ca rac te rizava, de alguma mod o, o es------.-. pec tad or co mo aq ue le qu e se e ntcdi a" . Ented iá-se co m s ua vida, c ujos vaz ios desej a preen ch er. S~n i s l á y s k i co m ple ta o di sp ositivo . Par a e le , " o ve rdad e iro ator é aqu el e que deseja cr iar em si mesm o um a ou tra vid a ma is pro fu nda, mais inte ress a n te do que aq ue la q ue o ce rca na real idade" )". 'A mbos se nut rem, pois, inic ia lme nte, na fonte de uma pro~' funda insati s fação di ante da vida com o el a é . O at or passa ao ato. Mas es ta aç ão dram ática , co mpe nsaç ão da vida insuf iciente, lacunar, va zia , é ainda uma ação do imagi.!.J.illiQ. A ssim o im agin á rio se torna prát ico, ag e nte . O teatr o é es te ca mpo que permitirá , e ntão, viver (] ima gin ári o, praticá-lo . O ol ha r já é aí remeti do par a as imag e ns . E e ntão a pr ática do teatro se satura de imag ina ção , torna-se um imag iná rio ati vad o. A vid a do tea tro será, a part ir deste mo me nto uma vid a imagin ária" , e la é es te domíni o sin gul ar q ue se mos34. lbid., p. 70. Grifo meu. (Em português: "[Você] pode dizer a si mesmo : 'serei um simples espectador, observando o que a minha imaginação pinta para mi m, enquanto não tom o a menor parte nessa vi da imaguuiria?' O u, se resolve r parti cipard as .uividadcs dessa vida imaginária, visualizur ámentalmente os seus associados, e com eles você, e, mais uma vez, será um es pectado r passivo. Finalmcnrc, .fic(mí cansado de bancar o obse rvado r e quererá agir. E nt ão, como particip an te dessa vida imagin ária, não mais se enxergará a si próprio, mas apenas vcni aquilo que o cerca e reagirá interiormente a isso, pois você é uma parte real deste lodo". OI'. cit. , p. 89) . 35. Observado por O. Mannoni, op. cit ., p. 171. 36. 0 /1. cit. , p. 50. (Em português: "Todo aquele q ue é de veras um artista deseja criarem seu íntimo uma outra vida, mais profunda, mais interessante, do que aquela que realmente o cerca.", op. cit., p. 71). 37. Cf. Snnre , " La vie imag inaire", e m L' íntaginai rc. Gallimard, 1940, reedição Folio, 1986, p. 237 sq. (Em português: lnutgi núrio: Psico logia Fcnonicnolágic« da lniaginação. Tradução de Duda Machado. São Paulo:

°

:13 . Ibid ., pp. 62-63. (Em port uguês: 0/1. cit., pp. 82-83).

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Ática, 1996).

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tra capaz de dar vida ao imaginário, de fazer dele um imaginário vivo . Talvez seja Sartre quem forneça o desenho mais rigoroso para este esquema. O ator, escreve ele : "vive inteiramente num mundo irreal. E pouco importa se chora realmente, arrebatado por seu papel. [...]. Aqui ocorre uma transformação semelhante àquela que indic ávamos no sonho: o ator é engolido , tragado pelo irreal. Não é o personagem que se realiza no ator, é o ator que se irrealiza em seu personagem.':" Mas o espectador não é poupado por esse movimento. "O irreal só pode ser visto, tocado, cheirado, irrealmente. De maneira recíproca, só pode agir sobre um ser irreal'?". Ator efetivo e espectadores concretos se eclipsaram do novo lance. A irrealidade do teatro se tornou sua potência, o regime determinado de sua constituição.

-

e:,

IV

I 38. 01'. cit., pp. 367-368. (Em português: OI'. cit., p. 249). 39. lbid., p. 262. (Em port uguês: 0/' . cit., p. 180).

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Ora , este sistema que acabamos de descrever - no qual a identificação articula as diferentes instâncias, do ator com seu papel , do público com o espectador e deste com o heróitambém não é o sistema de nossa experiência. Nós não podemos mais formular nestes termos o que nos acontece, o que fazemos ou vemos no teatro. Esta fase de nossa história se distanciou de nós - ou nós nos distanciamos dela - isto é tão certo quanto o fato de nos termos tornado estranhos à fase que a Poética descreve. Ela nos parece mais próxima, e é mesmo , sob o aspecto cronológico. A ponto de tornar obscura nossa experiência, que tentamos interpretar com a ajuda de suas categorias. Mas se observarmos o que acontece, com olhos atentos, a constatação é irrefutavel: saímos desta economia, irremediavelmente. Faz pouco, é certo , pelo menos segundo a escala da história de longa duração . Mas saímos. No tocante ao ator, isto parece discutível. A identificação ainda tem muito prestígio. A consciência das mutações é, como sabemos, tardia - ela ocorre a posteriori. Descul-

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peru-me se recorro a um ex emplo prático. Nunca fui um ator notável, mas , mesmo assim, atuei durante mu itos anos e m di ver sos palc os ' . Nunca me pareceu que eu me identificasse a nenhum dos pa péis que desempenhei. Qu ando , com quatorze a nos (a ida de em que as identi fica ções se realizam com mu ita faci lid ade), representei Trissotin", e u não me "tom ava por" Tr issotin . É verdade que se tratava de comédi a , na q ual a ide n tificação se retrai , co mo se d iz. Brccht o bserva va : " O e fe ito de distanci am ento é um procedimento artístico a ntigo ; pode-se enco ntrá-lo na co méd ia") . Porém mai s tarde - para me a te r às experi ên cias mai s marc antes - eu também não me ide ntifiq ue i nem co m B rutus , nem , g raças a D eus , co m o C rist o". É verd ad e que prati c ávamos um teatro antipsicológ ic o, de sconstrutor das identidades e d os papé is, teatro de montagem , de poesia mutante , de col et ivos proteiforrnes , polêmico e de intervenção , profundamente p ós-bre chtiano e m bo ra sem perceber isto com cl areza. Mas justam ente : nós não pr aticávamos este tipo de teatro po r acaso nem por c apr icho . E numa de m inhas (ra ras ) e xpe riê nc ias de viés ma is trad ic ion al , não acredito " ter pensad o q ue e ra" um com iss ário pol ítico stalini st a quando me coube defender o pap el num teatro dos Bulevares ' , Em todos esses caso s, eu me tomei por, I. So bre es te itine rário, c f. Deni s G ué noun , Rclation, Les Cahiers de I' Ég a ré, 1997. 2. Lcsfenunes savantes [As Sab iciumus, de Mol ie re] , Associat io n ora nnise de th éâtrc amarcur.j ard im da escol a l3ert hel ot e m Orã . Cf. Oran rép ubl icaiu, 25 -26 sct., 1960. J . "P re mic r uppc nd ice à la th éorie de L'AcI/lI1 du cu ivre", em Ecrits sur le th éâtre /, I' A rche, 1972, p. 620, e Journ al de travail, I' Arche 1976, p. 108. Esta re serva e xigir ia um desen vo lvim ent o mai s a profundado: o c ômic o, com ce rteza, não atravesso u a época da iden ti fi cação se m se comp ro mete r co m ela . Es pero poder vo ltar com ma is ca lma a esta que stã o. (E m portuguê s: A Comp ra do Latüo, tradu çã o de Urs Zub er com a co laboração de Pegg y Bc rndt, Lisboa, Vej a, 1999 e Diár io d e T rabulho, vol. I, 19J 8- 194 1, trad ução de Rei nald o Gu a rany e José Lau ren io de Mel o, Rio de Jan ei ro , Rocco , 2( 02). 4 . Resp ec tiva me nte e m .ILÍ~o César , de S ha kcs pca re, com a co mpa nhia L' A ttro upcmcnt, Avign on 1976, 'i X ou /e petit tuyst ére de la passi on, C DN de Re ims, 1990. \ 5. Em Zulinen IIU tajo lic de Dieu, de E lie Wiescl , e ncen aç ão D. Em ilfo rk, Th éât re de la No uve llc Corn édie (La Potinierc) , Par is 1974 . C f. J . J . G autier em Le F iga 1'0 , J 1. 10.74. (Na área dos grandes Boul c vard s, ou gra ndes

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ou melhor, eu me vi tomado por algo que não me era absolutamente indi ferente. No entanto, o termo identificação me parece infiel àquilo que, nessas circunstânci as, eu vivi. De maneira mai s significativa, sem dú v ida, tiv e , num trabalho co mo encenador as s íduo e polimorfo , que d ir ig ir a apresentaçã o de obras mais tip icamente "dr amáticas" . Tentei respe itar a estru tura del as , com pers onagens e si tuações: pen so não ter nunca buscado obter dos at ores qu alquer tipo de identific ação. Tive a sorte de trabalhar, d ia a d ia e por an os a fio com alguns atores inspirados", entre os quais Patrick Le Mauff, ator ab solutamente ex cepcion al , cujo trab alho , IOdos os dias , me dava um a liçã o de tea tro , Ac onteceu de produzirmos juntos, dep ois de meses de tensão compartilhada, e le em su a prá tica co mo ator, eu como aquele que observa , cria ções de pap éis cuja força me parec e hoj e ainda justificar o valor metafísico da vida'. Não me recordo de o ter ouv ido , nem vis/o, identificar-se a algum pers onagem ou herói. Ma s se pod e sempre supor que se trata de uma idiossincrasia da equ ipe". Vam os, en tão, recorre r a uma prática comum: a de espectad or. Quem afirm ará que nos so mod o de experiênc ia do teatro cons iste em se id e ntificar aos personag ens figurado s di ante de nós ? N ós não nos reco n hece mos mais e m Rodrig o", nó s nã o " s o m o s" m ais, em nenhuma instâ ncia , Fe dra, Lor enzac ci o nem Prouh êze" . Ist o nã o s ig ni fic a qu e as questões del es não no s "toc am " mais , nem que nó s não podem os aplicar a lg o das hi stórias deles a qu e stões , o u seq üê nc ias que sejam nossas , Ao ver

aven idas de Par is, a prese nta va m-se, a pa rt ir do s éculo XIX , peças de ent reteniment o, e ntre as qu ais destaca va-se o gênero q ue ficou con hecido corn o "teatro de boulevard", co médias lige iras que faze m até hoje a del ícia do gra nde públ ico). (N .daT. ) 6. Michcl e Go ddet , Phi lippe Vincen ot , en tre outros . 7 . Pa ra ci ta r o ine squecível : Mic he lâ ngelo em Le Printenips (C ha tca uvallon, 1985), Fa usto e m Fal/.I'I (C DN de Re im s, 1987). 8 . A resp eit o do co nj unto de sta ex pe riê nci a, ci. Relati on, "1'. cit., ca ps . 11 e 111. " Rodri g o: he rói da tragé d ia de Cornei lle, O Cid. (N. da 1'.) "* Prot ag onistas de Rac ine , Alfred de M uss ete Paul C la ude l, res pe cti vame nte , em Fe d ra, Loren racci o e Le so ulier de satin. (N. da 1'.)

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Beren ice ' (e ma is ainda ao ouvi-I a), ou Leal', ou A Gaivota, alguma cois a que é da ordem do meu amor, da m inha loucura, da m inha vida fracassada me agita. Mais exatamente: o modo pelo qu al se opera est e toque, este co ntato , esta contapoét ica não pode mais ser pensado como identificaminação , ---, ção. Não vamos mais ao teatro para experimentar esta espéc ie de abandono, de esquecimento ou de proj eção de si meslíw...... no personagem. Não que não experimentemos nada da ordem do abandono, do esquecimento ou da proj eção. Mas não i o personagem como tal que os fixa . J te.lgo de ma is ~ o m ~ plexo, em gue está em jogo o todo da rep resentação..c..que nós V'iimos ter ue com reender. Não há mais, no teatro , heróis, nem mesm o tragé d ia, no sentido estrito. Enquanto que a coméd ia va i muito bem obrigada: ela não requ er identificação heróic a nenhuma. A comédia pare cia solid ária em relação à tragéd ia, a ponto de funcion ar como seu reverso, seu ave sso paródico: ela sobreviveu ao abandono do gênero trág ico que teri a podido arrast á-I a con sig o. Sobra o drama, e alg o de ainda mais incert o e ainda não pen sado que ch amamos: espetáculo. Nós não vam os ma is ao teatro ver personagens , nem mesm o um dr ama : nós vamos ver um espetáculo . Assim se org ani za nossa experiência teat ral. Aind a se pr oduzem , claro , efe itos de identificaçã o, pass ageiros, fugidi os, como uma espéc ie de espuma da representação . Formamse identificações menores", por fragmentos : fios, franjas , vestígios de uma experiência antiga que retoma aqui e ali . E também , ma ciçamente e em outros pontos, outras identifica ções , mais nod ais , qu e atravess am o teatro e todo o resto. Ma s o teatro não pod e mais se pens ar tendo a cate goria da ident ificação CO I1/ o personagem co mo ponto determ inante d a an ál ise. Tomem os um exemplo. Podemos, com um olhar desprovido de precon ceito, desc rever atualmente uma platéia de teatr o como Brecht em seu Pequeno Organon'l Ele via ali: "figuras inan imadas , que se en contram num estado singu-

Nós não faríamos mais es ta "observ ação". Este mund o não é mais o nosso mundo . Os espectadores de teatro não são mais esses hom ens medievais enfeitiçad os. Longe de nós, no entanto, pen sar que esta co nstatação invalida toda a descrição (e, portanto, toda a críti ca) brechtiana da identi fica ção: ele nos d ispensa, ao co ntr ário, de acreditar que ela só d iz respeito a est e teatro , vetu sto e fora de moda. Sem dú vida , est e modelo de ex periênc ia não se apagou de uma só vez. É provável que Bre cht tenha lidado com ele quando , ainda jovem, (er a a ép oca de Freud , de Stanisl ávski) deu forma a seu projeto. Mas duvid amos que em 1948, dat a das linhas acima citadas , ele se referisse a uma observação contemporâne a, Entre um momento e outro, a cr ítica brecht iana viu seu objeto se desl ocar, sem o assin alar: a partir de então, alerta e salutar, ela critica talve z, de fato , algo dif erente do que dec lara, e acredita criticar. O . M annoni , observador refinad o, assinala essa mutação em 1957, quand o, ao comentar precis amente o trec ho de Freud que lem os, escreveu: "P ara falar a verd ade , tornou-se

Be renice : heroín a de Raein e, na peça do mesmo no me. (N. da T. ) 9. Torno de em préstimo o uso de " me nor " a Dcleuze e Guauari, claro, e tamb ém a Da niel Payot, Deste último. cf. L'Obj ct -fíbnlc , L'Harmattan , 1977.

10. Ecrit s sur te th éâtre 2, I' Arche, 1979, p. 20-22. Ob ser ve-s e que a descr ição coinc ide , em certos pon tos, COIl1 a de Freud. (Em portu gu ês : Estudo s so bre Teat ro, trad ução de Fiama Pais Brandão, Rio de Ja neiro , Nova Fronteira , 197 8, pp. 11 0-111).

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lar" que "qu ase não convivem entre si; é como uma reunião em que todos dormissem profundamente e fossem , simultaneamente, vítimas de sonhos agitados" . Ele s, acrescentava Brecht, "têm os olhos, ev identemente abertos, mas não vêem [...1. Olham como que fascinados a cen a, cuja forma de expres são embebe suas raízes na Idade Média, a época das feitice iras" . Brecht observava neles o "estado de enlevo em que se encontram e em qu e parecem entregues a sen sações indefinidas mas intensas" e concluía que o es pectador de seja usufruir de se nsações bem deter min adas, tal C0 ll10 uma cri anç a, pore xemplo [...]: a sensação de orgulho por saber andar a cavalo e por ter um cavalo, [...] o so nho eheio da ventura de estar sen do se guida ou de estar ela pró pria a seguir o utros, etc. [....1 . Por sua vez, ao freqüentador de teat ro o q ue lhe interess a é poder subs tituir UI1l mundo eo ntrad itór io po r UI1l mundo harm oni oso, um mundo que co nhece mal por um mu ndo onírico !" .

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cada vez mais claro, desde a época em qu e Freud esc reve u, que não é essencia l, para haver teatro, que haj a um herói. O ideal do Eu es tá cada vez men os em jogo". E, mai s adia nte : É di fíci l dizer porque, hoje, isto j ã não funcio na ma is só qu and o se tra ta da identi ficação co m um her ói. Há urna alteração his tó rica , urna modifi caçã o da per son alid ade típica da é poca, da per sona lidad e "de base". Parece qu e es ta modifi cação se produ zi u nas rela ções do Eu com o ideal , j us ta men te . Seria prec iso es tudar a psicol ogi a da hon ra ".

Não é poss ível disc utir aq ui o alca nce ge ral dest a co nstatação . No enta nto, haveri a muito que dizer: sobre este recuo histór ico da iden tificação c também sob re as identificações arrebatadas que tal recuo provoca co mo resposta , do mesm o mod o qu e o refluxo geral das reli giões enge ndra fund am entalism os e sec tarismos dos mais rígid os - os dois ter mos da comparação não dei xam de ter relaçã o um co m o outro . Ma s dei xem os de lado es ta que stão. Da obse rva ção de Mannoni res ulta uma co nseqüê ncia: supo ndo que o teatr o se funda sobre a ide nti ficação, co mo pensava Freud , o es tio lamento das ident ificações deve ria acarreta r a caducidade do teatro . Se o pal co devia nos forn ecer sobretudo ocasiões pa ra nos ide ntificarmos co m heróis, a obsolescê ncia des te processo de veria arras tar o teatro para a ext inção . O ra, apesar do cansaço, o teatro co ntinua c se amplia.' Com o d izía mos no co meço: ele não deixa de pro voca r uma cresce nte a fluê ncia de vocações, de projet os. É preciso ac red itar que este movimento ex prime um fund am en tali sm o reativo ? A hipót ese poderia sed uzir, co nsidera ndo-se alguns tipos de comport ament o . Mas não, o teat ro não é um a grande rel ig ião c se a recu sa do dec línio pode ex plicar o fanatis mo de a lguns ade ptos, ela d ificilmen te ex plica esta ex tensão do desejo pelo teatr o , qu e se propaga para m ui to a lém do círc u lo dos já co nve rtidos. Para co mp ree nde r a necessidade do tea tro , tal co mo e la se apodera de nós atua lme nte, é melh or mud ar de model o. Admitir sua obsolescência, inter rogar de o utro modo o surgime nto da necessid ade que nos leva par a os palc os ou para d iant e dele s. E admi tir qu e o esqu em a da identifi cação 11 . 0 J'. cit.. pp. 17 1- 172. (Em portug u ês : op. cit., pp. 177-17 8).

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não per mi te mais explicar o que aco nteceu c que devemos nos desp re nder de le. E desprender-nos, em conseqüência, das condutas que este modo de pensamento organiza: para ag ir ou re forma r o teatro, de ixa ndo de nos refer ir ao qu e e le não é mais.

O qu e foi que acont eceu , afinal? O qu e foi que nos aco nteceu para qu e a es trutura de nossa ex pe riê nc ia m ud asse? Retom an do. A experiênc ia tea tral most rou-se co mo q ue amarrada em torno de uma dupl a ident ificação: ide ntifi ca ção do ator, c também do espectador. E o espectador, co mo d izíam os, é resultado de uma iden tificação. Vale not ar que es pec tad or c ator , neste sistema, identi fica m-se, tanto um quanto o outro , a uma figur a única : o perso nagem. Vam os fazer du as o bse rvaçõe s. A primeira é qu e o prim ado da ação (so bre os ca racte res) proposto por Ari stóteles parece ter se invertid o. Neste teatro comandado pela ide ntificação, o perso nage m é qu e é a c have do edifício. M as a seg unda o bse rvação é a mais impor tan te . É, na verdade, uma questão. Nós dissemos , seguindo nossos auto res (Diderot, Fre ud) , que a real idade do perso nage m era imaginária . Mas o qu e é que isto sig nifica exa tame nte? Onde es tá s ituado, de fato, este bizarr o ente? Qu al é se u modo de ex istê nc ia, seu plano de rea lidade? Porque o co rpo do personagem , em cena, não tem nada de imagin ário: corp o real, de ator. Su as palavras são e fetiva mente pronunci adas. Na rela çã o teatr al, onde es tá o person agem ? O mai s simples é resp ond er que o person agem ex iste como imaginário na ativ idade men tal "do" esp ect ador, e do ator. É no es pírito do ator que ele ex iste imaginariamente, c também no espírito "daq ue le" q ue o lha . O ator imagina o pape l c dá a ver substitutos dele bem reais, atos, palav ras, mo vimentos do co rpo , que provocam no pen sam en to "do" espectado r um a r é-figura ção imagi ná ria, aná loga ou, ao men os, co mpatíve l, co m a qu e habit ava o ato r. É o qu e o modelo su-põe: seg undo esse esquema , a rel ação teatr al se co nstró i com o conjunção mental desses dois imagin ários. O teatro est á na ca beça. S ua ex istência é imater ial. Materialm ente só há atores no palco, Floridor ou Beau- Ch asteau , co m figuri-

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nos , acessórios, mo viment os e palavras qu e são con cret udes. Diante da ce na, espectadores, tamb ém ele s con cretos. O teatro se form a neles, ment alm ent e, pelo supos to e nco ntro de suas fantasias. É se mpre, e m fim de co ntas , um teatro interior. Fo i nes te ponto qu e nos aco ntece u, tal vez, alguma co isa q ue nos transform ou . Fo rmulo aq ui um a hip ótese qu e va mos te ntar desen vol ver. O qu e nos aco ntece u, nesse mom ent o de nossa história , se c ha ma o cinema. O ci ne ma dá ao imag inário um a ex istê nc ia efetiva, a ex istê nc ia das imagens. Tud o aco ntece co mo se o ci ne ma tivesse tido co nd ições de captar o imagin ário e nge nd rado pe lo teatro o u, ao men os, fo rmad o na rela ção teat ral numa fase de sua história, e tives se pod ido co nferir ao produto desta apreen são uma exi stênci a e fetiva, mat erial , real , a ex istênc ia da s imagen s. O c ine ma realiza o ima gin ári o em imagens. Im agen s fund amentalmente diferent es, por se u estatuto, da s que o teatro produzia: porque , no teatr o, o que se' most ra é a co nc retude cê nica - são homen s, madeira, pano , gestos e palav ras reais , colocados co mo " imagens" unalog ica me ntc, por met áfora. Dizer sobre o ator que ele é lima imagem só é exato conto metáfora . E nq ua nto q ue as imagen s do ci ne ma são, e fetiva me nte, im agen s. Não basta a prese ntar o a nálogo de um o bjeto para qu e es te subs titut o tenha di reito, e m se ntido pró prio , à den ominação de imagem . Isto não basta mais: alguma co isa mu dou no estatut o da image m. As image ns do cinerna tógra fo torn am -se, e ntão, imagens e fetivas , imagen s de d ire ito, qu e prop orcionam ao imag inár io sua ex -sis tência' apro pr iada, a ex teriori zação qu e lhe co nvé m, relegand o todas as o utras es pécies de imagem à sit uação de " image ns" po r met áfor a. Vamos tent ar nos ex plica r a este resp eit o. Um a imagem não é um a ficção. lniago não éfictio. Nem um a alegoria, nem um s ímbo lo, nem um s igno, nem um substitut o figurad o da co isa . A imago é, antes de tud o, a marca feit a a partir da cabeç a de um mort o. Esta es trutura inicial do

". O prefi xo ex ressalt a o ca r áter de ex ter ioridade em rela ção a sistere, que significa parar , imp ed ir de avanç ar. Exsistere significa: ser, co nsistir, a parece r, surgir, mostr ar-s e, eleva r-se ac ima de, sa ir de . (Cf. Dicion ário Latinoportuguês de Fran cisco Torrinha. Porto : Marãnus, 1945 , 3a ed.). (N. da T.)

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sentido d a palavra 12 acarreta duas co nseq üê nc ias . Prime iro , indu z a qu e qu alque r co isa passe, diretamente, do co rpo para a imagem " . Claro, a marca exi ge um operado r, um manipulador, arm ad o de uma técn ica inte rmedi ár ia e ntre aq uilo c uja form a se q uer guardar e a imagem obtida . Mas es te ope rado r não intervém por meio de nenhuma subjetividade forma do ra, ele não é co nstr utor, orga nizador de pont o de vista. O co rpo dep osit a s ua forma na imagem , de mod o d ireto, imedi ato. A imagem é o pro?uto do co ntato da coisa co m a maté ria da q ual ela se rá feita. E nisto que ela d ifere da pintu ra de um ros to num afresco , de sua figuração em um vaso. A figuração rep rese ntativa supõe a ex terioridade con stituinte de algué m qu e vê, cuj o olha r vai es truturar a form a re-presentati va. A ima gem result a de uma transferência de medidas, de linh as o u de volumes , por co ntato, por co ntigüidade do co rpo com a form a deposit ad a. É por isto que a imagem só servirá (metafori cam ente) de nome para as outras figura s (pinturas, desenh os im itativos, form as sen síveis c tc.) q uando este uso for co mandado , de modo ma is o u menos decl arado , por urna co nce pção da r ep resentação com o impressã o, marca da coisa so bre um recep tácul o eve ntualm ente passand o pel os se ntidos, pen sad os co mo rece pto res de impressões sensíveis. A segunda co nse q üê ncia da ca rga e timo lóg ica do te rmo decorre de sua determin ação co mo imagem do morto" , Neste se ntido , a imagem , e m primei ro luga r, ates ta o passad o. Forma mold ada so bre o de funt o, traço de um a prese nça a use nte, marca no prese nte do q ue foi e não é mais. Uma im age m é, antes de tu do, co nservado ra, dep ósit o da mem óri a, c ujo valor de memor ial co nd iciona rá, em co ntra partida, um a sé rie de co nce pções da mem ór ia como estoque de imagens. A irna-

12. Certa mente a etimolog ia a parece aqu i de forma um pou co enrijeci da : o obje tivo é simplesmente ressalrar a di feren ça en tre o esq uema da IIIl1rCll , co nstin uivo da im agem , e o do andlog« , que rege mu itas outras fig urações . 13. Co mo, crimolog icnmcmc, para o dese nho - for ma dccalc ada, traç ad a d iretam ent e sobre um co rpo o u um objeto, C f. ad iante, nota 15. 14. C f. R. Dcb ray, Vie et II /(In des iniages , Ga llima rd 1992, ree d ição Fo Iio, 1994, p. 27 .1'1/. (Em português: vida e Morte das Imagens: Uma Hisuiria do 01"111' no Ocidente, tradu ção de G uilhe rme João de Freitas Tei xei ra, Petr ópo lis. Vozes , 1994).

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gem serve de testemunho de (e para ) tudo o qu e passou , de tud o o qu e é passad o. Esta é a sua sing ularida de entre as fi guras. Todas as fi gu ras mostram o a use nte, o que falt a, mas a imagem dá tes temunho dele precisamente na medida em qu e o ause nte, que falta, esteve ali, es tev e present e no lugar atual e determinado de sua ausê ncia. A imagem est á no es paço deix ad o vazio pel o referent e : não dis tante dele , co mo a evocação ana lógica de algo long ínqu o, mas no lug ar tipifi cado, marcado por sua ausê nc ia, no lugar de sua presença que se torn ou passado . Ora , a invenção da fot ografia produ ziu, em nossa história, uma reativação, ex tremamente forte, deste esquema . A força procede evi de nteme nte da capacid ade de reprodução, qu ase infinit a, do result ado. Qu anto ao esquema, ele resulta do fato de que uma fotografi a se forma por impressão so bre um suporte de radia ções lumin osas proven ientes do própri o objeto. Para tanto, são necessários uma máqu ina e um operador: mas o ope rado r só mani pula o dispositiv o que permite que a luz proveni ente do objeto atinja a matéria do suporte e aí dei xe sua ma rca. O opera do r tenta prever, e co ntrola, o processo: mas o processo presc inde dele - o instante da tom ada é o da obturação do visa r, co mo se fosse necessário, para que o aparelh o gra ve sua marca, que o operado r pare de ver e, portant o, de receber a sua marca". A fotogra fia rece be diretamente a ma rca da lumin osidade do obje to. Nenhuma reco nstrução dentro do próprio processo, embora ela ocorra ev ide ntemente nos disposit ivos de age ncia me nto. O opera do r não es tá entre a coisa e a fotografia; e le age so bre, em torno, ao lado de se u elo. É o que co nfere à fotografia este valor irredutível , novo, o de atestar uma presença. Banh es diz: "C hamo de ' re ferente fotog ráfico ' I...] a coisa necessariamente real que foi co locada diante da objetiva, se m a qual não haveri a fotog rafia. [...] A fo to é literalm ente uma ema nação do referente. I...] Toda fotografia é um cer tificado de presença?" . Pode -se pen sar, co m Barthes, 15. Devo esta observação a Pie rre -Da m ien Hu yghe . 16 . R . Barthe s, La Chambre claire, no te sur la photographie, Ca hiers d u Cin éma-Gallimard-Seuil 19 80 , pp . 120, 126 , 135 . (Em portu gu ês : A Câmara Claro, NO/a sobre a Fotog rufia . Traduç ão de J úlio Ca sta üon Guimarães. Rio de Jane iro : Nova Fron tei ra , 19 84 , p. 114- / 15, 121 , 129 ).

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qu e es te adv ento marca uma ces ura na históri a das práticas figu rativas - c , po r ist o mesm o, na histór ia . Tal vez nun ca antes nos tenham os defront ado com um tal mov iment o de báscu la da represen tação em direção à pura aprese ntação q ua ndo não em direção à iniago, às máscar as rnortu árias, aos cmba lsa mamc ntos 17. Or a, es ta característ ica é so lidária do fato de qu e a fotografi a atesta sem re futação possível a presença do que esteve ali e se ause ntou. A fotogra fia d ã a ver a prese nça - po r defau lt - do qu e esta mo rto, o u, ao menos, do inst ante qu e se fo i irrem edi avelm ent e. Barthes ainda : " na Fotografi a, jama is posso negar que a co isa es teve lá. Há dupla posição co nj unta: de real idade e de passado. I...] o que vejo [...] é o real no es tado passado: a um só te mpo o passado e o real"!", O qu e ilustra sua obse rvaç ão a bissal a resp e ito da foto, mais qu e centenár ia, de um conde nado à morte antes da exec ução: ele es tá morto, c ele vai morrer!". Ao mesm o tempo imago do morto c quase imago do instante ante rior à morte, o que nenhuma m ãscara mortu ári a jama is ofe recerá . Estes do is traços (de marca e de vest ígio do passado) co nfere m a todas as fotos, de modo eminente e radical , o car áter de imagens. Por eles, as fotog rafias se sing ulariza m entre todos os outros tipos de figur as: pinturas , entalhes, panto mimas. As fotog rafias são, em ce rto sen tido , as prime iras imagens verd adeiras. Mesm o se o lerm o image m é mu ito anterior a elas . E, atin ai, não é impossível que o term o tenh a precedido a coisa: tal vez já exis tisse a idéia de imagem antes de se dispor de imagem efetivas. A image m fotográ fica se ria a culminação de um processo cuja marcha foi aco m panhada pe lo co nce ito de imagem : aqui com o tal vez em outros dom ínios, u invenção t écn ica responderia ao program a expresso na noção que a precedeu". 17 . É preci so compree nder a rad ica lidade de s ta inovação, de po is de W. Benjamin e ape sar de alguns espíri tos reati vos . como conju nção de ste val o r de prese nça e de s ua capacidade de reprod ução . C f. A. Hen nion e B. Latour , "L ' art, l'au ru ct la tcc hiquc se lon Benjamin", Cahiers de médiologi e, Gal limar d, 1996 , p, 235 .H/. 18. Ibid., pp . 120 e 130 . (E m portug uês : op. cit. pp. 115 e 124 ). 19. tbid., pp . 148- 150. Trata -se da foto de Lcwis Payne por Alcxandcr Gard ner ( 1865) . ( Em portu gu ês : op , cit., p. 14 3). 20 . Cf. 13 . Ba lasz, L'esflril du cinénut, Payor, 1977. p. 136 .

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Mas as image ns não bastam para constitui r o imagin ário. Aqui so brevém o c inema. O imag inário é o campo da imagin ação: ca mpo que ela produz e onde ela se move. Observe mos que o term o ("o imaginári o" , utiliz ado com o sub stant ivo) é de uso recente . No emprego corrente, e le tem a idade do c inema" . Com o co mpreender esta contemporaneidade co mpartilhada? Lembremos que a teoria elássica sobre a imagin ação via nela uma faculdade de apresentação ou de combinaçã o de element os fornecidos pela sensa ção-". Ora , o modelo da se nsação é a impressão sensível: co nsidera -se que a se nsação proce de de um e feito direto, de todo modo se mpre táctil , do objeto so bre o órgão dos sentid os. Todos os se ntidos são, segund o es ta co nce pção, modalid ades do tato: o gosto e olfato são tato de em anações das co isas, com o a aud ição é um tato pelo som e-mesmo a visão, o tato mais distante , mas, ainda assim, tato, d6 olh o pela luz. A sensação é um cont ato - a psic ol ogia clássica se adaptará do melh or modo pos sível à conce pção dos percept os como imagen s (ainda que "im agens acús ticas" com o p ara Sau ssure). A imagin açã o dispõe desses d iferentes traços perc ept ivos, e não pode j amais prescind ir de seu mater ial. Se us produt os mais fantá sticos são a co mbinação entre e les: a neve negr a, o cavalo verme lho, o unicórni o associ am de modo pouc o hab itual elem ent os postos à disp osição pela percepção do real : neve, neg ror, cav alo, co rnos e tc". Em seu uso da fanta sia, a imagin açã o é, portanto, a com binat ória não realista de elementos reais . Ela reúne assim dois fatores : sen sações provenientes do mund o, por impress ão, e uma capacidade combinatória que delas se dis2 1. O dicion ário Robert histór ico data o uso a part ir de Main e de Biran ( 1820). Mus naquela época o substantivo ainda é ignorado pelo dicion ári o U I/ré. Ele só se d ifunde, no uso corrente, no início do séc ulo XX. 22 . cr. Sa nre , L'unaginution , PUF 1936, reedição 1994 , pp. 7- 19. (Em português : li lmaginação, tradução de Luiz Roberto Sa linas Fortes, Rio de Janeir o. Bcrt rand Brasil, 8' cd., 1989). 23. C f. por exempl o, Hobbes, De ta nature humaine , Vrin, 1991, cap. 111, ~ 4 , pp. 21- 22. (E m portu guês: Le viutii foi publi cado na cole ção Os Pensadores, em uuduçã o de João Paulo Monte iro e M ~JÍ ~ Beatr iz Niz za da Si lva. São Paulo, Abril Cultural, 2' ed ., 1979. N~ primeira parte , " Do Homem", enco ntram- se os capüulos 2 e 3 que tratam " D~ Imaginação" e " D ~ Conseqü ência ou Cadeia de Imaginações" , pp, 11-19).

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tingu e e que, portant o, não é diret amente red utível aos sentidos. Aqui as doutrinas var iam: algun s vêem aí uma intelecção pura, outros um estágio do sensível" . Mas, sem pretend er decidir, pode- se muit o bem propor , para as necessidades do nosso deb ate , que , se os elementos sensíveis procedem da sens ação, a capacidade de os combinar mai s ou meno s livrement e provém, por se u lado, de uma capacidade de se distanciar da sensaçã o: e, logo, de algum a form a, do intelecto co mo ta1 25• A imagin ação une então um material se nsíve l (os elem ent os, as partes , que são impre ssões) e uma faculd ade combinató ria, associativa , q ue orga niza sua sintaxe e que result a do pensam en to abstrato. A imagin açã o co m põe e lementos sensíveis segundo uma combinatória inteligível, ideal - se e ntende rmos por isto, simplesme nte: que não deve ao se nsível o princípio de sua formação. Ela é feita de um léxic o (sensível) e de uma sintaxe (ideal). Ela age no lugar exato da articul açã o entre amb os. Ora, o cinema rep rodu z exatame nte esta estrutura. As menores unidad es que o co mpõem são os fotogram as: quer dizer, impressões, marcas de obje tos sobre uma matéria sensível, apta a co nservá-Ias e a ex ibir seus traços. O cinema recebe da fotografia, que comp õe o tecido de sua matéria, a relação absolutame nte singular entre ela e o referente, o rea l. Aí está IUII dos dois e/ementas de seu alcance imaginário: que ele não partilha co m o desenh o animado, por exemplo. O desenho anim ado, co mo muitos outros modo s de Figuração, não é desprovid o de eficácia imaginária. Mas não partilha com o cinema esta "co -naturalidade com o referente'v '' da qu al fala Banhes. Ele não pode se pre valecer dest a função eminente que o cinema, pela fotografia, recebe de sua impressão pelo real. E não foi o desenho animado, mas o c inema, que se impôs durante o séc ulo XX como grande Fi gurador e condensador das produções imagin árias de seu tempo. (Embora não aprecie24 . Sob re tudo isso, cf, a discussão de Sart re, OI'. cit., pas sim, por exe mplo, pp. 122-125. 25. Este modelo é evide nte mente discutível. Para nós, ele aprese nta, entre outr as viIludes, a de ser exata mente an álogo ao qu e Eisen stein co nstrói para caracterizar o que chama de 1II 01/1a~ elll intelectual. C f. adiante, nota 28. 26. Op cit., p. 11 9. (E m portu guês: OI'. cit.. p. 11 4 ).

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mos nem um pouc o os ce rtificados de garantia qu e se comprome tem co m o futu ro, podemos obse rvar que as ima gen s de sí ntese não par ticipa m deste pare ntesco profundo da imagem fotográfic a co m o model o da percepção. As ima gen s de sí ntese são figurações que se distin guem por um a fort e inov ação técnica. No entanto, não é proib id.o pen sar que elas não estão em co ndições, co mo o desenh o anima do também não es tá, de suplant ar a função do c ine ma tógra fo no ima gin ár io co letivo : função de ves tígio do q ue esteve lá, de testemunho prestad o sobre as co isas pelo efe ito dir eto do obje to sob re a maté ria se nsível. Nenhum playboy s intét ico, ou desenh ado, é d otad o da mesm a fo rça fantasmática daq ue le cuja beleza imp ress iono u a objetiva e nqua nto e nte qu e realmente passou diant e dela). Mas os fot ogr am as são (e são ape nas) os e leme ntos últimos do c inema. O ci nema os associa, os faz sucederem-se e se co mbi narem por meio de uma si ntaxe , de um e lo combinatóri o qu e nad a deve à impressão se ns ível enqua nto tal e vale co mo pur a ideal idade : estabeleci me nto e variações de en quad rame nto , movimentos do pont o de vista, montagem" . Tr ata-se aí do que Eise nste in designa va (no tocant e à mon tagem ) co mo "i ntelectualid adc" da operação" e qu e se pode es tender aqui a todos os efeitos de sintaxe . O c inema tom a os e leme ntos fotog rá ficos qu e de ixaram sua impressão e os e nvo lve num mo vim ent o qu e é o ,do pensam ent o, da intelecção e nquanto taFY. É olrnes mo que d izer que o cin em a partilha co m a im agi nação!a total idad e de se u sis tema: a nature za de se us elementos e a for ma dos laç os q ue e le lhes imp õe. Est am os, 27 . Cl', G. Dclcuzc, L 'itnag e-ninnve ment , Minuir. 1983, cap oI a 111. (Em po rtuguês: A lnu tgem-movimento, tradução de Src lla Scnra , São Paulo. Brasiliense, 1985). 28 . Por exemp lo, em S. M. Eiscnstein. Ali-de/à des étoi les, UGE 10-18 1974, p. 197 e Le }i/III• •WI [arme, SOIl sens, Bourgois 1976, p. 7 1. 29. Cf, G. Deleuze, " La pens écct le cin éma" em L'inutge-temps , Minuit 1985, p. 203 sq., que discute precisamente Eisenstein a este respeito. Mas também, sobre as relações entre o cinema e o pensamento. B. Balasz, 0(1. cit., pp. 160. 163, 170 e 171. e E. Morin, Le cinéma e/ l' lunume imaginaire , Minuit, 1956, reedição 1985, pp, IX-XI e 3 1-42. (Em português, respectivamente, 1\ hnagctn-tentpo , tradução de Eloísa Ara újo Ribeiro, São Paulo. Brasilicnsc. 1990; c O Cinema ou o Hom em lmaginário, tradução de Antônio Pedro de Vasconcelos, Lisboa, Relógio d' Agua, 1997).

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pois, diante de um fen ôm en o s ingular: tud o se passa com o se o ci ne ma tives se libertado o imaginário do espaç o mental OI/de ele supostamente estava confinado, para lhe dar o es tatuto de um ent e obje tivo. O c ine ma é o imaginári o realizado . O c ine ma co nde nsa, na mater ialidade de se u texto, a ideali dade e a se nsi tivida de cuja co njunção era pri vilégi o da im ag ina ção . E ele ap resenta o produto dest a con creção so b a forma efeti va de imagens. Não mais im agen s por metá for as, co mo são as " ima ge ns" menta is. M as imagen s co nc retas , e xistentes sob o mod o da ex te rio rida de . O cinema é o tornar-se-intagens do imag inário. Ele é a sua Iiterali zaç ão, sua efetuação: s ua real ização". É po r isto, pro vavelm ente, q ue o term o imagin á rio, co mo subs tantivo, é se u co nte mpo râ neo: E é por isto qu e o c ine ma ca ptou, confi scou e m alguma medida, o imagin ário do teat ro . Fez a mesm a co isa co m as o utras artes? O cin em a, co mo anunc iava m se us fund ad ore s, ope ra a su bstituição de todas as produ ções a rtísticas? Substituição a resp e ito da qu a l é preci so d ize r q ue e la fo i pr opriamente imag in ária, cm to dos os casos, su bs titu ição pel a image m c na imagem . Pod e-se pe nsa r qu e o c ine ma também seja o tornar-se -imageni da mús ica , ou da pintura , o tomarse-image m rea lizado da pintura, aq uilo a que talv e z a pintura não se redu za, aq ui lo a qu e e la tal vez resis ta? N ão é essa a nossa qu est ão aq ui. Colocá-Ia su po ria o utros percursos: pel o víde o (pe la mú sica , ao me nos , já qu e é no víde o qu e a músi ca ope ra se u dcve nir-imagem), o u pela qu estão da " imagicida de" ou " image idade" da pintura, co m a qu al Ei sen stein se preoc upava bast ante" . M as , para o teatro, pel o menos, a qu estão é c lara : seg ura me nte o ci nema, na e labo ração de sua "g ramá tica" , tir ou uma parte de se us recursos da estru tura d o espet acul o teatr al. Ele integ ro u a ma ior part e dos proced imen tos, e ng lobando-os no age ncia me nto, mais am plo, de se u disp os itivo: dr am atic idad e, uso dos ato res, d os ce ná rios, apropr iaçã o de um a boa part e do repertório. Os " pio ne iros" (Ei 30. Cf. E. Morin, Ofl . cit ., p. 207 c também Christian Metz, Le sig nificam inuig inui re, Bourgois, 1993, pp. 62-65, 86, 92. (Em português, "O Significan-

te lmagin ário" roi publicado na coletânea Psican álise e Cinema, tradução de Pierre André Ruprccht, São Paulo, Global, 1980, pp. 15-92). 3 1. Cf. Eisenstein, Cin énuuisme, Peintu re e/ ciuéma, Complcxe, 1980.

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sc nste in, G ance, Griffith ) não ca nsavam de dizer e de co loca r isto e m pr ática". A referên cia ao teat ro é um dos e leme ntos de co nsti tuição do qu e nós c ha ma mos "o c ine ma " : não o único , m as um ele me nto certame nte axial. . O ci nema captou (por realização) o imagin ário do tea tro. A ce na de teatro se tinha, por assi m dizer, cind ido em do is espaços: o dos ex istentes práticos (os atores , a at uação e se u ~parel ho efe tivo) e o dos exis tentes imaginários (os person age ns e s uas histór ias). Nossa hipótese é qu e o ci nema, le vand o esta d ivisão a seu te rmo, e se oc upa ndo co m um único dos dois term os, realizou as produ ções imagin ár ias da ce na, deu -lh es uma ex istência de imagens e fetivas, co ncretas, materi ais'" . Com Isto, ele assegu rou a independência delas, sua libert ação em relação à ce na e a seu s prot ocolos. Em alguma medid a, ele as emanci po u, devolveu-lhes a liberdade , co mo se diz a respeito de um prisioneiro . O imaginário (do teatro) pôs-se ao largo, fugiu do espa ço cênico onde estava encerrado . O imaginár io (tea tral) desert ou o teat ro, por ter ass umido sua real independên cia. O que deixa a cen a como que mutilada , despossuíd a de um de se us dois co mpo nentes. Voltarem os a isto. A resp eito di sto (de o cine ma ter co nfiscado o imag inário teatral ), não invoca rei mais do qu e um a ún ica ilustr ação. Lem brem os qu e St an islá vski põe no ce ntro de se u método a imagi nação ativa do ator" . Es te de ve produ zi r imag ina riament e o papel , apo iando-se na exi stênc ia (imagi ná ria ) qu e o tex to e as ind icações do a utor lhe dão, m as co m pleta ndo-os, preenc he ndo-os, e nriquece ndo-os , porqu e eles não poderiam sozinh os rea lizar ( imagi naria me nte) a exis tê ncia cê n ica. Co mo proceder? O a tor dispõe de um "e nca dea me nto de c irc uns tâncias" : é a suposição, aq uilo qu e põe e m mo vimento a imagin ação at iva . A par tir dela, é necessári a " um a linh a co ntínua de visões interi or es, ligad as a es tas circ uns tânc ias para 32 . Entre mil exe mplos : "O cinema actapa atual do teatro. A fase imediatament e consec utiva." S. M. Eisens tein, Au-del àdes étoiles, OI'. cit., p. 170 ( 1926) . 33 . C f. C hr istian Met z, OI'. ci t., pp. 92 -9 5 . 34 . Co mo outros , e m sua es teira. C f, M . C he kho v, L'im ag inuti tm créatri ce de l 'oc teur, Pygmali on , 1995, e Etre acteur, Pyg ma lio n, 1984. (Do a uto r, exi ste e m port uguês 1'01'(/ ° Ato r, tradução de Ál varo Ca bral, S ão Paul o , Marrins Fon tes , 1986).

que elas nos apa reçam de modo vivo". A pa rtir d aí , o pr cesso é desc rito da seguinte manei ra: " Desta se q üê nc ia de mom entos va i surg ir um a linha cont ínua de im agen s, co mo num filme . Enq ua nto atua rmos de forma c riadora, esse film e se desen rol ará e se projetará na tela da nossa visão inter ior, torn and o v ivas as circuns tâ ncias" . "Vamos fazer um fi lme imag inário" , rep ete o d iretor. O objetivo é tirar a imaginação de sua letargia, do lim bo : dar-lh e vida . "S ua im aginação. se redu zia a idéias ge ra is, tão imprec isas qu anto um filme mal re velado?" . Simples co mparação? Sem dú vida , M as terrivelment e eficaz: porqu e ela pen sa a imagin aç ão (interior) co mo essencia lme nte c i ne ma to g rá fi c a . ~m a g i n a çi'íQ qu e é preciso faze r vive r no teatro é um momento de cin em a não real iza1!l. Desd e e ntão, o rea lizado var valer se m pre mais: mais co nc l'Cto, mais e fetivo , mais visível. O cine ma capto u -tão bem o ima ginãi'io do teat ro que est e atu alm ente só pode representar su a forç a plasm adora a partir do model o do filme. E é esta es péci e de cine matogra fia latente que co nd iciona a vida do teat ro. Stani sláv ski reto ma obs tinada me nte es ta co mparação. Não " trata do uma qu est ão men or: "Só qua~ do nosso se ntime nto dr am át ico lança suas raízes na co rre nte oc ulta do s ub tcx to, o ' movime nto ', a ' linha de ação' de um a peça, ganham vida. O mo vi mento se torn a man ifesto não apenas pelas ações fís icas , mas também pela palavr a" . É para prod uzir este "s ubtexto" , gerador de mo vimento e de linha . de açã o q ue o ato r deve se to rnar cineasta e m se u íntim o: Vocês de vem inventar um verdadeiro filme de image ns me ntais , de image ns inte riores: um subtc xto co ntfnuo [...] semelhante a um filme cinc matográfico co nstante me nte projetado sobre a leia de nossa visão interior e dest inado a nos guia r e nqua nto falamos e agimos no palco. [E insisre.] É necess ário que este filme inte rior se desen role mu itas vezes diante do olho do esp írito. [...l-É passando e m revista este filme interi or que vocês consegu imo estar lodo o tem po conscientes do que deve m d izere fazer. [...]. A imaginação faz o resto. Ela ac re scenta coruinuamente nOV:LS pinceladas , de talhes que preen chem e animam o filme interior' ",

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35 . Op. cit., pp . 7 1-76 . Gr ifo meu . (Na ed ição brasileira : iten s 4 a 6 do ea pítulo q uat ro, " Imaginação" , pp . 90 -95) . 36. Stunis lávsk i, La cunst ruct ion du personnage, tra du ção C h. Aruon eni , Perrin, 1966. pp, 118- 13 1. (E m português: A Construção do Personage m. Tradução de Pontes de Paula Lim a. Rio de Janeiro: C iviliza ção Brasileira, 1976).

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Etc . Poderíamos encadear uma inFinidade de citações - de Stanisl áv ski e o utros . Vem os aq ui e m qu e con siste a aptidão do c ine ma para su btra ir o imagin ári o do teatro, m ais qu e qu alqu e r o utra Figuração - melh or do que a pintura, por exe mplo, que teria podid o se r chamad a para efe tuar es te rapto: ele subtraiu a ação que define a essência do drama, porque ele é ma is ca pacitado para a figu ração do movimento, é mais cin ético . E e le captou a palavra, co isa que nenhuma figuração plástica tinha cons egu ido fazer an tes de le. O imag inário teatral se põe ass im sob a autoridade do modelo cinematog ráfico . De cert o modo, e le se rende ao e inema . O teatro se gaba de dar vida a se u imagin ário por saber projetar para s i mesm o um filme". Mas isto, ev ide nteme nte, o cinema fa z melhor que ele. Ele o faz de form a m ais efe tiva, mais mate rial. Torn and o o imag iná rio o mestre do jogo, o teatro se torn ou provisoriam ente d ispo níve l para es ta capt ação do cinema , que cozinh a mais eFicazmente o imag inário porqu e o transforma e fetiva mente em imagens e faz , portanto, rea lme nte, o que a imag inação achava que fazia : e le faz passar a imagi nação, fáb rica de image ns, do âmbito da metáfo ra prov isória ao âmbito de uma e fetivação. Ningu ém se es pa ntará, portanto, co m o fat o de qu e a identificação se reali ze melh or no cin em a do que no teatro. Se a ident ificação desapa receu do teatro, co mo mod o dominante da e xpe riê nc ia, e la impera na rel ação c ine ma tog r áfica " . Não nos ident ificam os mais co m nenhum her ói de te atro : mas nos identi fica mos , e co mo , co m os her óis e per sonagen s de ci ne ma. Vamos reler os textos so bre a ide ntificaç ão (o de Freud, por exe mplo), hoje ult rap assad os e m relação ao teat ro: pode mos con sta tar o quanto e les se ap licam à nossa experiênc ia ci nema tog ráfica. Não so mos mais Rod rigos mas Rambos, Batmans , assassi nos po r nature za" . Ou Schwarzeneggers: por qu e se, no teatr o , o ator est á hoje definitivamente se parado 37. Cf. E. Mor in, IIP. cit., p, 84,1'lf . 3H. B. Balasz, 1If' . cit., pp, 128- 129. E. Morin , p. 109 sq. Voltarem os a isto mais adiante. 39 . As co nseqüê ncias vão at é os tribun ais. C f. "Oli vcr St one Perseg uido pela Justiça Americana por seu Filme Assassinos por Naturera", Le M III/de, 28 e 29.07.96, p. 19. Le ndo esta report agem fica claro que o proble ma da respons ab ilidade (penal) se tece cm torno do coneeito de identificação .

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de seu pap el , no c ine ma, e m compens ação, ator e papel e ncontraram um a pod e rosa unid ade. A diferen ça entre eles é incerta: c hegamos a es q uece r o nom e do pe rso nage m (co mo se chama m Gabi n em A Grande Ilusão ; Jo uvet em Quai des otfêvres, A lain Del on em O Sol por Testemunh a?' ). Referindo-n os ao papel , di zem os: Gabin, A rlc ny , Schw arzenegger, Ator e papel formam no vam ente uma unid ade prã xica, es tão de vo lta os práttont es. M as es ta un idade se refaz como uni dade imaginária. Ide ntifi ca mos o u d ife ren ci am os de modo imp rec iso o personage m (007) e o ator (C o nnery) mas o ator também é imaginário: e le ex iste co mo sta r", vedete, nos periódicos, nas revi sta s , nas imagens. O ato r é uma imag em anima da, qu e freq üe nta nossos so nhos diurnos e noturn os. Se o ci nema r é-constitui a unidade pe rd ida do imi tante e do imitado, da atuação e da image m, do ato r e do represe ntado, ele a fa z renascer na imagem, co mo e feito de image m. E é com es ta unidade indivi sa, es tranhame nte s ituada num a zon a indiferenc iada e ntre a fi cção e o real (e esta in-diferença é imaginária), que nós nos identificam os at ualme nte - em massa.

Não pret end em os aqui des en vo lver a a ná lise das mod alidades dest a identificaç ão: ela di z respe ito à teori a do c inema, co nsiderada e m si mesma. Mas tud o o q ue di ssem os até aqui d iz respe ito à relação com o per son agem ou com a coisa represent ad a. E o espe ctad or? As d isc ussões, num e rosas, sobre a identificaçã o no cin ema levaram cer tos auto res a propo r o mod elo de um a dupla ident ificaç ão cinematográfica'". Esta an álise reve la, e m a lg uma med ida "sob" a identi ficação mais manifesta (co m um ou co m vários dos person agens da " Em francês: La g rande illusion, e Plein so leil. (N. da T) "" Em inglês, no original. (N da T) 40 . Para uma apresentação de conjunto, cf. J. A umoru , A. Bcrgala, M. Marie, M. Vern et, Esthctiquc dufilm, Nathan 1994, em es pecial o ca pitulo 5, "Le ciné ma ct son spccuucur" , p. 159 sq. Para as an álises às q uais es te volume se refe re, cf. Chrisiian Mctz, 1If' . cit., pp. 65-79, e J.-L. Baudry, "L c dispositif", e m Conununicntinns, n" 23, Psyctutnalvse et cinema, Se uil, 1975, p. 56 sq . (E m portugu ês: Est ética do Fihne, tradução de Mari na Appenz elle r, Campi nas, Papi rus, 1995).

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ação, batizad a co mo identificaç ão secundária), a existência de um a identificação mai s profunda, men os im edi atam ente obse rvá ve l, e que será con siderada como identificação cinematogrâfico primário", T ra ta-se de iden ti ficação , não mal co m um a fig ura rep resentad a na te la, .m as c o po n vis ta a partir do qu al as coi sas sã laili~ o es pec tado -ass umc , fic ticiame nte, qu e "é e le qu e vê es ta paisa gem a pa til' dest e po nto de vista úni co [...]. É e le, neste trave lling, q u aco mpa nha co m o o lha r, se m seq ue r ter qu e mo ver a cabeç a, o c ava leiro qu e ga lopa na campina; é se u o lha r qu e co ns titui o ce ntro exato dest a varred ura circular da ce na, no caso d um a pan orâm ica":", Em resumo, co mo di zem esses auto res. ] es ta identificação (" primária") é a qu e co nstitui o especta(~ co mo "sujei to tran scendental da visão"!'. Já se co mparou, eficazme nte, es ta pos ição à da cr ia nça d iante do espelho, no mom ento da operação con st itut iva de sua identidade, de se u narci sismo e leme ntar" . E foram observadas di versas an alogias e ntre essas d uas pos turas: atividade motor a redu zida (da c ria nça, qu e só se desl oca co m aj uda, e do es pec tador imóve l e m s ua poltron a), ativida de visu al s upe r- inves tida, recorte da tel a e do espelho . M as observa-se també m um a di fere nça not ável : é qu e a tel a não de vol ve, na im en sa m aio ria d os ca sos, a image m do suj e ito supos to da visão" . Es ta obse rvação ex ige q ue nos det enham os um instant e. Porque se a tela, ao co ntrá rio do es pe lho, não re flete a imagem do espectado r suposto , se, portanto , a tel a, sob es te as pec to, não é um es pelho e fetivo, é, na ve rda de, por um a razão muito s imples : "o " espectador, na sala de ci ne ma, não ex iste em parte a lgu ma co mo tal. Se o es pe lho c ine ma tográfico refl eti sse a image m daquel e qu e o lha, e le não mostrari a "o espec tado r", mas a platéia , qu e r d ize r, espectado res múltiplos e d ive rsos. N ad a ex iste na sa la co mo "co rpo próprio" do es pectado r, qu e pos4 1. C f. Aumont el a /.• 0I'. cit ., pp. 185-187. onde são reto madas as aná lises de J.-L. Baudry e Chri st ian Mc tz . 42 . OI'. cit.• p. 187. 43 . lbid. Christian Mctz. 0I'. cit. , pp. 69 , 71 . 44 . Lacan , "Le stade du miro ir" , an ocir., cf. ac ima, capo111, nota 19. 45 . Aum ont et al., 0I' . cit., pp , 174- 176 e 186. J .-L. Baud ry, 0I'. cit ., p. 69 . C hr istian MC IZ, 0I'. cit., pp. 65 -66 .

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sa s uste nta r a identifi cação es pec ular. É neces sár io, portu n10, par a qu e ocorra es ta identific ação c ine ma tog rá fica pri -

m ária, qu e um a espécie de medi ação se instaure entre a sa la e a visão, qu e possi bil ite o re torno da imagem para um o lha r ún ico : c es ta me diação é evi de nte me nte a câ mera e o co nj unto de seu s atributos . É a existênc ia da câmera, institu ída como ponto de vista uni fi cad or, hom ogenei zad or - pela m orfologia téc nica do aparelho mas também pe la e laboração de um a gramá tica d a nar rati va fílm ica (o cód igo es truturado pelos pianos, a montagem , o co rte, a retórica do enca deame nto das se qü ên ci as c tc .) - q ue to rn a possíve l a focali zaç ã o de um a instânc ia de visão "ce ntra l" ou " transcende ntal", co mo dize m ele forma excelente os autores que ci tamos , cuja a firmação instau ra o sujeito-espectador da visão. Então, poderá ocorrer, rea lmente, a ide ntificação primária do es pectador de ci nema , qu e não será descrita co mo "a q uela por meio da qual o es pec tado r se iden tifica co m se u própri o olha r":" mas a ntes co mo a operação pela q ua l os espectadores de c ine ma, o u um espectador, es te aq ui o u aq ue le a li, você e eu, vêm se insta lar im agin ariament e no lugar do pont o de vista da câ mera, para se iden tificar da í po r diant e co m o sujei to transcend ent al da visão. A identifi caç ão c inematográfica prim ári a é exa tame nte a prod ução do espec tado r, produ ção artic ulada a partir de um d isp os itivo pr átic o, ao mesm o tempo técn ico c narrat ivo" . Ora , a coisa é mu ito mai s incer ta no teat ro . De alg uma form a, Lo uis A lthusser perceb eu isto, à sua man e ira, qu ando ce nsuro u Brecht po r atribuir dem asi ad a imp ort ância ao modelo "psico lógico" da ide ntificação . Ele escreve u so bre ist o : "qua ndo se [no caso, Brecht] in voca, para pen sar o es tat uto da co nsc iê nc ia espect ad ora , o con ceito de identifi c ação (com 46 . Aumo nt et ul ., op. cit.• p. 185 . 47 . C hri stiun Me tz está mu ito próximo desta posiçã o qua ndo escreve que "o espec tador, c ru suma , se ide ntifica co nsigo mes mo I...) co mo puro ato de percepç ão" (Ot' . cit ., p. 69), ou o design a co mo "re fugiado e m si mesm o como pura inst ânc ia de pe rcepção" (p, 75 ). Mas ele parece ainda con siderar o cspcctad or como uma rea lidade empírica. Sem d úvida por ca usa da "s o lidão do cs pec tudor de ci nem a" , q ue ele opõe ao "público ve rda de iro [...) pro visó ria co letiv idade" reu nida no teatro (p . 89). C laro : mas um espectado r soz inho, ou so lidões viz inhas . não bastam para fazer espectad o r, É necessária, cxatamen te, a idel/lilicl/C/;o de que esta mos aq ui falando .

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o herói ) não se co rre o risco de um a ass imil aç ão du vid osa?" Es ta re cus a se funda va num a vontade de não redu zir a co ndut a espectad ora a um model o psi col ógic o, mas levar e m co nta, nela, o que a co nst itui com o "co nd uta soci a l e cultural-esté tica, e , nessa co ndição, e la é também um a co nd uta ideol ógic a":". A co nt inuação de sua pes q uisa o le vará a co mple xi fic ar co nsi deravelmen te essa oposição". M as, já neste te xto de 1962, e le prosseg ue : Antes de ser a ocasião de uma identificaç ão (e m si so b as a parê nc ias de Ou tro), o espetácu lo é . funda mentalmente, a ocas ião de um reconhec imen to cul tural e ideológico. Este reco nhccimcn to de si supõe , no princípio , uma identidadc cssc ncia l (que torna poss íveis, enquanto psico lógicos, os próprios processos de identificaçã o psicol ógicos): o que une os espectadores c os atore s reunidos em um mesmo lugar, durante uma mesma noite' ",

Seria o caso de di scutir, ponto por ponto , os term os deste surpree nde nte raci ocín io. Espero poder fazê - lo em o utro momento. Dei xand o de lad o a aná lise das noções utili zad as (reco nheci men to, identi dade e, sobretudo , a suges tão de inclui r atores e espectado res na refe rida identidade suposta, vou aq ui me contentar e m observar qu e a ide ntificação (que A lth usse r caracteriza como ide ntificação consigo mesmo sob as es péc ies de um Outro é e ncarada nest as linh as co mo co ndic io nada pela exis tência da reuni ão coletiva. Aquil o que um es pec tador de teat ro cx pe rie nc ia, irreme diave lme nte, a ntes (o u du rante) qu alquer identi ficação, é a existênc ia da asse m bléia da q ua l e le participa" . De modo q ue se o espectador, c uja 4 8. "Lc ' Picco lo", Bcrtolazzi ct Brecht (Notes SUl' un théâtrc mat érinlistc)", em POlir MIIIT, Masp éro, 1965, reed ição La D écouvcrtc 1996, p. 149. (E m portu guês : li Favor de M III :r. tradu ção de Dirce u Lindoso, Rio de Janeiro. Za har, 2' cd ., 19 79, p, 131). 49 . Cf. seus Ecritssurla ps yc hanalvse, Stock-I mcc, 1993, reedição Le livre de poc he Hiblio-cssais , 1996, nos quais se pode ler quase que e m cada página os esforços.ja mais abandonados, para articular ideologia e inconsciente. 50. OI'. cit .. pp, 149-1 50. 5 1. Sobre este ponto, cf. Denis Gu énoun, L'exhibition des 1II00S. II l1e idée (1'0 litique) du théâ tre , Ed. de I' Aubc, 1992; (Em português: A Exibiçâo das 1'1I/lIl'raS , UIIIII /déill (Polnica) do Teutro. Tradução de Fátima Saadi, Rio de Janeiro: Teatro do Peque no Ges to. 20(3); "L'i nsurrection, toujou rs", em LII D écentralisation théãnute. 3 (orga nização de R. Abirached), Acies-Sud Papiers, 1994, e Lettre 1111 directeur du théâtrc, Edição de Les Cahiers de l' Egaré, 1996.

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ex istê nc ia o teatro , desde os mod ern os, se es me ra e m supo r, é, evidenteme nte, uma prod ução imag inári a, é, e m prime iro lugar, e , sobretud o, na medid a e m qu e aqu ele que se reconhece nest e im agin ári o se desconhece fund am entalm en te co mo existente co letivo, co mo assembl é ia. O espec tador é , mu ito exatame nte, um exis tente ideo lógico. Pod e-se dize r qu e o es pectador só existe de pois da represe ntação : na reco rdação, event ua lme nte, e, se m dú vida a lg uma, nos escritos, nas recon stitu ições, nas an álises. O q ue existe no teat ro é, de fato, a asse m bléia dos es pec tado res e os efe itos de identificação são, a ntes de ma is nad a, e fe itos de massa, no se ntido e m qu e Fre ud e ntendia a expressão. Sem dúv ida, o cinema mu da alg uma coisa nisto tudo. Porque, se é verdade que as sa las de cinema, sobretudo em seu surg ime nto , tinh am ant es s ido teatros, odéons ' (e mu itas líng uas ai nda testem unh am es ta re lação) , e, se o c ine ma também é um fato de asse mbléia'", também é verd ad e qu e o espectado r rece be, no c ine ma, um a ex istê nc ia co nsi de ravelment e refo rçada pe lo d isposit ivo prático q ue or igi na aq uilo que um pouco ac ima referíamos como ide nt ificação pri má ria, O aparel ho óp tico (técnico e nar rativo) q ue co nst itui o espectado r co mo suje ito da visão reconduz o age nc iame nto ideológ ic o qu e supunha a ex istênc ia do es pec tado r de teatr o, mas co nfe rindo -lhe um a ex istênc ia muito mais co ns iste nte . "c;rlamente, 1/0 cinema, o espectador está na imagem, e nãi i e m q ual q ue r outro luga r. Na sa la de cinema , só há espect~ dores, até mes mo um espectador: o espectador, jamais. Mas, prec isa ment e, e le es tá, co m e feito, na imagem: co mo a lguém q ue pe rce be, co mo "o bje tiva", co mo pont o-de- vista-da-c âmera 5.' . E então enco ntramo -nos d iant e do mesm o paradox o de antes, ma s, aqui , rad icaliza do: o es pectado r só tem um a ex istência imaginária, mas se trata aq ui de um imag inário e fetivo, realizado, porque a imagem tem uma ex istência real , material.

* . Odeon ou odcão: ed ifício desti nado , entre os gregos, ao en saio da música q ue ser ia ca ntada nos teat ros (C f. Dicionário Mic hae lis). (N. da T.) 52 . As transform ações recentes da recepç ão do cinema pelo vídeo só fazem ace ntua r a difere nça da qu al es tamos falando . 53 . Ch ris tian Mctz, OI'. cit., p. 76 .

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1".;:; .;?«~ , /, jA~ Não que as imagens mentais não tenh am ex istência, mas a ima gem ci ne ma tog rá fica tem um a ex istê nc ia ex te rna, a exi stênci a de uma materialidade exteri or, isto é, ela tem uma ex-sist ência, prop riam ent e. Com o c inema, o ima gi nário ex-siste. Ele não está mais confinado na interioridade suposta . Aqui ainda, portanto, o cinema se entreg a a uma espécie de captura, pela realiza ção daquil o que o teatro havia longa mente elaborado como sua ideologia. O cinema cap ta o irnagin ário do es pectador e lhe atribui a co nsistê ncia óptica do efeito-câ mera. Apontaremos um único indício disto, que afeta, a partir de então (e como afeta') , a própria relação teatral: o fato de que o imagin ário do ator de teatro era, em Stanisl ávski, refigurado com o fi lme inte rior. T ínhamos dito que o esp ectador de teatro não tinha nenhuma ex istência efe tiva . Mas isto não é mais verdade. O espectador nasceu , ex teriorizou-se-;'\ faz pouco, alcanço u o estatut o de um ente e até mesmo de umJ ,~fí~i O:. ' o ~s ~ctad r de teat ro existe, como ellcenador O e~­ ce nado r e exatamente 11111 espec tador que se co loca e m P OSIção dc ser o es pectado r. O e nce nado r é es ta co nsc iência subjetiva, que pret ende oc upar o lugar da assembl éia teatr al, por condensação. Todos os tipos de ritos ligad os à função provam isto co m crueza : basta lembrar o lugar habitu al do cnce nado r d urante os ensa ios, lugar do arqui-espec tado r, do es pectado r ce ntra l, abs olut o, lugar que se confunde co m freqüência co m aquilo que os teatros perspec tivis tas tinh am presupos to co mo o lugar do Príncipe, lugar do o lho únic o que reún e e faz co nverg ir em si as linhas da perspecti va. O cncenada r é aque le que acred ita que o tea tro é feito de i~s . L Nã pre end , UI passar em revista todos os c redos (nem todos os esforços) dos encenador es em se u trabalho. Muitos deles (cu inclus ive) se entregaram ou se entrega m quotidi anament e a um es forço para desarm ar es ta posição: multiplicação de pont os de vista, sa ltos perp étu os na direção do palc o, desejo de integração no co letivo dos atores. Falo simplesmente da lóg ica histór ica, inevi táve l, da função, do sis tema que investe se u lugar: O cncenador é o espect ador de teatro encarn ad o. É por isto que os ence nador es licam tão in eli~ dur ante as à rese nta ões : o lugar deles só está garantido duran te os e nsaios , na ausência do públi co. Eles o fig ura m, eles 118

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