O Reinado da Lua: escultores populares do Nordeste [1, 4 ed.]
 9788563055057

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FUNDARPE - Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco Governador de Pernambuco Eduardo Campos Vice-governador João Lyra Neto Secretário de Educação Nilton Mota Presidente da Fundarpe Luciana Azevedo Diretor de Gestão Alexandre Diniz Diretora de Preservação Cultural Célia Campos Diretor de Políticas Culturais Carlos Carvalho Diretor de Difusão Cultural Adelmo Aragão Diretora de Projetos Especiais Rosa Santana Diretora de Planejamento e Monitoramento Fátima Oliveira Diretora de Incentivo à Produção Cultural Independente Martha Figueiredo

Autores Silvia Rodrigues Coimbra Flávia Martins Maria Letícia Duarte Fotógrafos Maria do Carmo Buarque de Hollanda / Piii Dalvino Troccoli França Coordenação desta edição Flávia Martins Projeto gráfico de miolo e capa Gisela Abad Assistentes Alyne Miranda Mariana Melo Tratamento de imagens Robson Lemos Revisão Ortográfica Flávia Martins Pedro Belchior Impressão e acabamento Gráfica Santa Marta

A345r

Coimbra, Silvia Rodrigues. O Reinado da lua: escultores populares do Nordeste / Silvia Rodrigues Coimbra, Flávia Martins Albuquerque, Maria Letícia Duarte. – 4. ed. – Recife: Caleidoscópio, 2010. 336 p. : il. ISBN: 978-85-63055-05-7 1. Escultura. 2. Arte popular. 3. Artes. I. Título CDU- 7.067.26

Fundarpe - Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco Rua da Aurora, 463/469 Boa Vista, Recife - PE - Brasil CEP 50050.000 Fone 81 3184.3000 Edição Caleidoscópio [email protected]

À memória do querido Geraldo Pereira Jordão, o qual, por meio de sua Editora Salamandra, foi responsável pelas duas primeiras edições de O Reinado da Lua.

Disso você não entende não, isso é coisa do reinado da Lua. NHÔ CABOCLO Artista de Pernambuco

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PREFÁCIO

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AGRADECIMENTOS

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nota da 4ª edição

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APRESENTAÇÃO

23 SANTEIROS DO MASSAPÊ 28 Severino de Tracunhaém e os Vieiras 39 Antônia Leão 42 Maria Amélia 44 Nuca e Maria 47 Zezinho de Tracunhaém 49 Luís e Elisete 52 Severina Batista 54 Betinho 57



A PRESENÇA DO MESTRE 63 A família Vitalino 69 Zé Caboclo e Família 77 Manuel Eudócio 81 Zé Rodrigues 84 Ernestina 86 Manuel Antônio, Luís Antônio e Odete 89 Zé Henriques e Ivonete

91 ANIMANDO A BRINCADEIRA 95 Ginu, o Professor Tiridá 99 Antônio Pedro 101 Capitão Pereira 103 Dedé 107 ASSOMBRAÇÕES DO SÃO FRANCISCO 112 Ana das Carrancas 115 Domingos 119 Bitinho 121 Manelito 123 Jocanto 127 IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR 131 Louco 134 Maluco Filho 136 Doidão 138 Bolão 140 Armando 143 Tamba

145 EM TORNO DE OLEIRos 150 Vitorino 153 Almerentino 156 Boreste 160 Zé Curu 162 Biu e Maurílio 165 Rosalvo 169 EXERCÍCIO DE LIBERDADE 174 Caxiviti 175 José Inácio 178 Jaciara 181 João batista 183 Braulino 184 Sebastião 186 Walter 188 Valdevino 190 Tita Caxiado 193 Zé do Gato 194 Nivaldo e Josafá 197 À SOMBRA DOS CARNAUBAIS 202 Mestre Dezinho 204 Expedito 206 Edmar 207 José Soares 209 Cornélio 211 Francisco Soares 212 Manuel Martins 215 REFLEXOS DO BELO 219 Antônio Pedro 222 Judite 224 João do Gado 226 Francisca Alves 227 João Santeiro 229 Teodora 231 Paulina 233 Júlio Cassiano 235 Luzia Dantas 237 Etewaldo 239 Zé do Carmo 241 EM TERRA DE ROMARIA 246 Mestre Noza 248 Franciner 250 Nino 252 Cícera Araújo 254 Cícera Lira 256 Maria Cassiana e Galdino 258 Zé Duarte 261 Dedé 262 Francildo

265 TUDO SE TRANSFORMA 269 Anete 271 Dona Biu 274 Neilton 277 Antônio Paulo 279 Antônio Matos 281 Angelino 283 Tonho Cosme 285 Dary 287 ESPAÇO IMAGINAR 291 Nhô Caboclo 296 Benedito 299 Paulo 302 Bigode 305 Manuel de Camaragibe 311

ÍNDICE ONOMÁSTICO

315 ANEXO 315 Mapeamento dos escultores entrevistados 317 Relação de escultores populares localizados no decorrer da pesquisa e não entrevistados 321

BIBLIOGRAFIA

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CRÉDITOS DE FOTOGRAFIA

PREFÁCIO Vivemos uma época em que o prazo de validade de alguns livros, no campo das artes, é medido em meses, às vezes em semanas, para logo terem que ser substituídos por outros que supostamente os superaram. É o espírito do tempo em que incorporamos – não somente para os bens de consumo, mas mesmo para esforços de pesquisa e teóricos – o adjetivo descartável. A reedição de O Reinado da Lua: Escultores Populares do Nordeste, quase trinta anos depois da primeira, deve ser saudada como um fato que o transforma inevitavelmente num clássico de sua área. E quando entramos em contato com diversas publicações posteriores ao Reinado podemos observar como se converteu numa referência incontornável; mais que isso: foi a fonte que economizou esforço similar por outros autores, sendo aproveitado em algumas de suas passagens, às vezes sem as devidas aspas. A meu ver, três são os aspectos que preservam a integridade do Reinado, expostos com muita clareza pelas autoras na apresentação. Primeiro, a compreensão de um processo histórico que transformou objetos antes “funcionais” em obras de arte e de sua inscrição pelos segmentos “cultos” da sociedade em um mercado de arte específico. No caso do Brasil, isto se dá a partir do movimento modernista e seu trabalho de construção de uma identidade mais complexa que aquela que reservava a categoria “arte” para designar somente as obras produzidas no interior de um saber que, na falta de termo melhor, continuamos a chamar de erudito. Essa metamorfose do trabalho-arte produzido pelos setores mais humildes da população – que se passa na apreensão subjetiva de seu resultado – é plena de consequências para aqueles que o realizam, sobretudo no plano econômico. Segundo, o interesse documental do livro, ao cobrir um universo de 109 artistas de diferentes estados do Nordeste. Se não é uma amostra no sentido estatístico do termo, como nos advertem as próprias autoras, trata-se de um corpus bastante significativo. Atento às particularidades do fenômeno artístico, não importa qual seja este, o Reinado lembra que “documentar, aqui, significa considerar o escultor e sua obra como singularidades: é de sua individualidade, em relação com o contexto em que se situa, que pretendemos dar conta.” Terceiro aspecto, que deriva diretamente do segundo, mas o extrapola e dá um caráter pioneiro à obra: o lugar privilegiado da fala dos artistas no lugar do exercício interpretativo das autoras. Com isto, o Reinado não os reduz a meros informantes de uma pesquisa em ciências sociais: apresenta-os como protagonistas da produção artística em posse, não apenas de um “saber fazer”, mas também de um discurso sobre sua vida e sua obra. Não se trata de atribuir nenhuma essência de verdade privilegiada ao “texto” de artista em relação a qualquer outra fala. Os depoimentos coletados em o Reinado adquirem uma significação especial levando em consideração a extração social, a educação formal precária e o índice de analfabetismo nessa população. Mesmo quando sabem ler e escrever, esses artistas raramente o fariam para discursar sobre o próprio trabalho. Esses três aspectos, junto com a redação fluente e a contextualização mais que exata sensível às particularidades de cada um dos doze grupos construídos pelas autoras -, aliadas a um precioso balanço entre as narrativas dos artistas e o texto que os visita, cravaram o destino de O Reinado da Lua: ser um marco na abordagem da arte popular no Brasil. Passados cerca de trinta anos, como será lido, sobretudo pelas novas gerações de artistas e cientistas sociais, esse livro? De 1980 – ano da primeira edição – para cá mudou muito o mundo, mudou também o Brasil. O abismo entre a produção de arte popular e o chamado “sistema da arte” só fez se aprofundar. Este, além de se inscrever definitivamente na indústria do lazer, levando milhões de visitantes por ano aos principais museus do planeta, foi fortemente

AGRADECIMENTOS marcado pelo império da imagem e tem sua produção controlada por um mercado sofisticado e agressivo. Nessas três décadas de debilitação proposital da esfera pública em todos os campos, vimos crescer o papel das feiras de arte a tal ponto que elas hoje ocupam, quando não superam em importância, as mostras tradicionais, como as bienais internacionais. Durante esse período surgiram no campo da teoria da arte, particularmente nas obras de Hans Belting e de Arthur Danto do início da década de 1980, reflexões que circunscrevem os fenômenos artísticos, tal como os experimentam os segmentos cultos do Ocidente, como uma manifestação particular a esta cultura, com data de nascimento e morte. E, se não morte, pelo menos sua transformação em algo que teria pouco a ver com o que era chamado de arte. Para essas teorias, a arte teria surgido no Renascimento e se transformado a ponto de desaparecer em relação ao que representava a partir dos anos 60 do século XX. Esta seria a “era da arte”: do século XV à arte moderna. Antes dela e depois dela, mas, acima de tudo, fora dela, não haveria experiência de arte. Não cabe, aqui, desenvolver o quanto uma leitura apressada dessas teorias pode levar a equívocos. Mas é sintomático que elas possam ser levantadas como argumento contra o valor de manifestações artísticas que se encontram fora do “sistema da arte”, embora este possa lidar tranquilamente com as manifestações de antiarte produzidas pelo questionamento do conceito de arte de Marcel Duchamp, pelas obras e happenings dadaístas, até a Merda d’artista, múltiplo de supostos excrementos do artista, enlatados por Manzoni. Todos esses fatores e muitos outros atuaram nas últimas décadas para aprofundar o divórcio entre o que se catalogou como “arte popular” e o outro, nem sempre “erudito”, mas incluído no “sistema da arte”. O desafio para o teórico contemporâneo da arte – não estou falando do “teórico da arte contemporânea” – seria reconstruir os conceitos e retraçar as fronteiras do fenômeno estético de modo que possamos realizar a leitura das obras lado a lado, independente de sua origem social e de sua inscrição no mundo institucionalizado da “história da arte”. A leitura atualizada de O Reinado da Lua seria um desses inevitáveis pontos de partida para uma nova construção teórica. No momento atual, não existe ponte traçada entre um mundo – o da arte popular – e o outro – o do “sistema da arte”. Entretanto, quando visito o Museu do Pontal, no Rio de Janeiro, não deixo de me emocionar e aprender com a magnífica herança organizada por Jacques Van de Beuque. Ali se encontra um maravilhoso acervo de escultura popular no qual podemos entrar em contato direto com o universo mapeado e narrado pelo Reinado da Lua. E constatar na experiência direta com as obras a riqueza apresentada nas páginas desse livro. Que venham muitas outras edições. Paulo Sergio Duarte Rio de Janeiro, maio de 2009.

Foram muitos aqueles que, de diferentes formas, participaram na abertura das trilhas de O Reinado da Lua: da idealização e montagem do projeto a suas condições de realização, do trabalho de campo à leitura crítica e à revisão dos textos, da datilografia à digitação, do suporte material e financeiro à programação visual e a todos os procedimentos editoriais necessários a suas quatro edições. O projeto e o livro que dele resultou não teriam sido possíveis sem o apoio de tantos profissionais dedicados, de  amigos, companheiros e  instituições empenhados na difusão e preservação de nossa cultura. A todos e a cada um desta extensa lista o nosso carinho.

Albina Pereira Álvaro Pantoja Leite Ana Luisa Escorel Ana Maria B. Reis Augusto Rodrigues  Aurivan França Banco do Nordeste do Brasil – BNB Cafí Daniel Campos Dorothy Pritchard Edgard Andrade Fabiano Leite FINEP - Financiadora de Estudos e Projetos Francisca Souza Lima François de Lespinay FUNDARPE Galeria Nega Fulô de Artes e Ofícios – Recife  Gisela Abad Heloísa Parga Rodrigues Henilton Menezes Hermilo Borba Filho Ivandro da Costa Sales Jacques Laberge José Augusto Guilhon Albuquerque José Manoel Carvalho de Mello Luisa Albuquerque de Mello

Márcia de Holanda Cavalcanti  Maria de Fátima Alves de Oliveira Maria de Fátima Santiago Costa Maria de Lourdes de Almeida Maria José Santos Maria José Marques Cavalcanti Maria Lúcia Moreira da Costa Organisation Catholique Canadienne pour le Développement et La Paix Patrícia Martins de Albuquerque Pedro Belchior Pedro Duarte de Andrade Peter Warner Regina Rocha Roberto Machado Rodrigo Xavier  Rogerio Luz Rosana Martins de Albuquerque Stella Maris Da Poian Taciana Martins de Albuquerque Tereza Dourado  Vera Martins Marques

NOTA da 4ª Edição A terceira e a quarta edições de O Reinado da Lua: Escultores Populares do Nordeste preservam o conteúdo textual da edição original; procedeu-se, apenas, a uma revisão ortográfica. Além da inclusão do prefácio, a marca dessas novas edições é seu projeto gráfico, completamente refeito em relação às edições anteriores. Para uma edição futura, fica a proposta de retomar os caminhos do Reinado da Lua, isto é, dar seguimento ao registro de uma história continuada, nesses últimos trinta anos, por alguns daqueles artistas que ainda sobrevivem ligados à sua arte , por seus familiares, por seus discípulos e por outros artistas com suas novas formas de expressão.

APRESENTAÇÃO A presença da escultura popular no circuito oficial de arte é consequência do crescente interesse de intelectuais e artistas por esses produtos da imaginação e do trabalho do povo, vistos como manifestação cultural significativa, de caráter estético. Tem suas raízes no Movimento Modernista de 1922 e no Movimento Regionalista de Recife, iniciado em 1923, tendo sido consolidada com a primeira Exposição de Cerâmica Popular Pernambucana, organizada por Augusto Rodrigues e apresentada por Joaquim Cardoso, em 1947. Antes de penetrar neste circuito não existe, para esta produção, arte ou conceito de arte como categoria fundamental de explicação ou de classificação. A peça produzida é funcional. Serve, por exemplo, como brinquedo de meninos. Ainda não precisa ser preservada: é o objeto encontrado nas feiras e facilmente substituível, voltado para a comunidade local que o absorve. Descoberta e legitimada como “arte popular”, essa produção passa a ter curso em amplo mercado, atingindo potencialmente toda a sociedade e excluindo, paradoxalmente, a comunidade local. A expressão arte popular tem servido para designar aos produtores um lugar na produção artística em geral. Lugar do “autêntico”, “espontâneo”, “originário”, embora, ao mesmo tempo, secundário com relação à arte erudita. Promove-se seu caráter estético, se lhe confere legitimidade diferencial, tomando como parâmetro o erudito. Na concepção dos próprios escultores populares nordestinos – desenvolvendo sua produção em condições de penúria, de escassez, vivendo no limiar da sobrevivência, entre assalariados muitas vezes em condições ainda piores do que as suas – trabalho artístico é trabalho produtivo, não podendo entre eles haver diferença no que diz respeito a um aspecto fundamental: garantir a sobrevivência. É nesse contexto que se coloca a questão da arte. Qualificar o produto de seus trabalhos como objeto artístico é, para eles, importante, sobretudo porque tal qualificação desempenha papel significativo para que se efetive esta função econômica. É então que aparece a natureza complexa do trabalho que realizam. Por um lado, a arte de esculpir situa-se, para seus autores, como uma arte entre outras, em seu velho sentido: arte de pedreiro, arte de carpinteiro, arte de pintor, etc. Arte e ofício encontramse, portanto, no mesmo plano. Mas, por outro lado, para garantir um espaço de trabalho que lhes dá satisfação, possibilita algum poder de decisão e uma remuneração um pouco menos insuficiente, os escultores – aceitando os valores que lhes são atribuídos – também conceituam sua produção como arte popular, não sem denunciar as injunções do mercado a que estão submetidos, a condição de arte inferior que lhe é atribuída, a situação de exploração em que continuam vivendo. Procuramos, neste livro, abordar a escultura popular nordestina a partir, basicamente, da perspectiva de seus autores. O principal objetivo é documentar. Pretendemos apresentar uma realidade, um estilo de vida, uma produção, um produto, visões de mundo. Nem se trata de uma simples descrição factual, nem de um estudo explicativo de tipo sociológico. A análise aponta para outras direções. Documentar, aqui, significa considerar o escultor e sua obra como singularidades: é de sua individualidade, em relação com o contexto em que se situa, que pretendemos dar conta. Conhecer em que condições cada artista desenvolve sua produção, as características

do produto de seu trabalho, como se realiza a circulação dessa mercadoria, como se constitui o mercado que a absorve. Mais ainda: buscamos apresentar a visão desses artesãos com relação a seu próprio trabalho e ao mundo em que vivem. Quisemos, para quem não os conhece, torná-los conhecidos; para quem já os conhece, possibilitar o acesso a informações sobre sua vida e seu trabalho que podem ser relevantes para a apreciação de sua produção. É assim que cada um deles aqui aparece de forma individualizada, contando sua própria história e, nela, a história de seu trabalho. Seus depoimentos, muito mais do que simples material para uma possível análise, são, como consequência de uma opção por nós assumida, o âmago do livro. Nesse sentido, sua autoria cabe tanto a eles quanto a nós. Este é um livro realizado em conjunto com cento e nove escultores populares nordestinos. Não houve, portanto, de nossa parte, preocupação em recorrer a técnicas de amostragem ou de quantificação. Sem pretensão de esgotar o tema – o que seria impossível, dadas a extensão e a complexidade que caracterizam essa manifestação cultural – mas cientes da importância de localizar e contatar o maior número possível de pessoas do povo dedicadas à escultura, percorremos, várias vezes, os nove estados do Nordeste, da Bahia ao Maranhão. Entramos em relação com todos aqueles a quem foi possível ter acesso, recolhendo seus depoimentos. Quando não houve condições para a realização de entrevistas ou para a documentação de suas peças, essas pessoas não foram ignoradas. Os nomes dos escultores localizados, cujos depoimentos não puderam constar desse trabalho, aparecem relacionados em anexo, com seus respectivos locais de moradia. As entrevistas, quase sempre gravadas, tomaram por base um roteiro do qual constavam algumas questões consideradas relevantes: dados pessoais; como e quando iniciou a atividade; processo de produção; relação com outros artistas; processo de circulação do produto; concepção sobre o trabalho; suas condições de vida e de sua família. Esse roteiro foi utilizado como fio condutor de um diálogo que pretendemos aberto, permitindo aos escultores a maior liberdade possível em suas afirmações. Nosso principal objetivo foi dar a palavra ao artista. É importante ressaltar que ao transcrevermos os depoimentos optamos por fazêlo segundo as normas gramaticais estabelecidas, mantendo as expressões particulares a cada discurso. A linguagem oral não se confunde com a escrita; ao se passar de uma para outra, procede-se obrigatoriamente – em qualquer trabalho dessa natureza – a uma recodificação. Não encontramos, pois, justificativa para tentar reproduzir, textualmente, formas gramaticais consideradas incorretas, próprias à linguagem coloquial. Além das entrevistas, o registro fotográfico constitui-se em precioso elemento de informação, visando, principalmente, à identificação do escultor, à ilustração de sua obra e, quando possível, à documentação das condições em que vive e trabalha. Os depoimentos colhidos – a que acrescentamos nossas contribuições – foram agrupados em doze capítulos. Cada um deles é caracterizado por uma homogeneidade – algumas vezes subjacente, outras vezes visível – que flui de um contexto socioeconômico comum aos artistas ali reunidos, do desenvolvimento de uma mesma temática, de condições de mercado que os atinge e envolve de forma marcadamente semelhante, de

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APRESENTAÇÃO

condições de trabalho muito próximas, etc. Fatores como esses presidiram à divisão dos doze agrupamentos – cada um deles assinalando uma especificidade encontrada e que produz uma unidade importante. Assim, por exemplo, em A PRESENÇA DO MESTRE é a figura de Vitalino e a herança por ele deixada, com seu trabalho no barro, aos artistas do Alto do Moura, em Caruaru, o denominador comum que nos permite reuni-los. ASSOMBRAÇÕES DO SÃO FRANCISCO, capítulo relativo aos produtores de carrancas, encontra sua unidade não apenas no que diz respeito à temática, mas, ainda, no que se relaciona à história comum dessa produção, com suas sucessivas transformações, e aos atuais produtores como representantes de uma nova etapa nesse processo. Em EXERCÍCIO DE LIBERDADE, além do espaço de reclusão – o mais forte denominador comum entre os artesãos que estão a ele submetidos – destaca-se o modo pelo qual o trabalho se insere no contexto de uma prisão. Se, por um lado, para a instituição, a atividade produtiva funciona como mecanismo fundamental para introduzir princípios de ordem e regularidade, por outro lado, para o detento, a opção pela arte de esculpir tem outro estatuto, assumindo um valor distinto daquele definido com relação ao trabalho assalariado. Nas introduções a cada agrupamento, procuramos analisar a problemática específica e melhor explicitar os aspectos comuns a cada um deles. O subsídio fundamental para essa análise mais geral foi a própria palavra do artista. A bibliografia consultada – que se encontra relacionada no final do livro – serviu como instrumento para situar, em um contexto mais amplo, as questões já suscitadas. O contato com pessoas que, mesmo não sendo escultores, revelaram algum tipo de vínculo com o que buscávamos analisar, serviu para complementar informações, fornecer novos dados, indicar outros caminhos. É importante observar mais uma vez que, no curso da pesquisa, pretendemos sempre analisar o que significa para o artista o seu trabalho, apreender a ótica daqueles que são os responsáveis diretos pela produção desses objetos qualificados como arte popular.

APRESENTAÇÃO

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SEVERINO DE TRACUNHAÉM E OS VIEIRAS ANTÔNIA LEÃO MARIA AMÉLIA NUCA E MARIA ZEZINHO DE TRACUNHAÉM LUÍS E ELISETE SEVERINA BATISTA BETINHO

Saindo de Recife, na direção norte, passando por Camaragibe, São Lourenço, Paudalho, em uma hora chega-se a Tracunhaém. A perder de vista, a mancha verde do canavial moleja ao vento sua folhagem viçosa, sendo um dos mais bonitos trechos da Zona da Mata pernambucana, onde a monocultura mostra toda sua exuberância. Um arrastão de marés brabas, movendo folhas, movendo gentes. Ali, por longos anos, trabalhadores perdidos em sua vastidão diversificaram timidamente o plantio da terra com seus roçados, bananeiras, jaqueiras, pés de araçá, de jambo e de fruta-pão num pequeno sítio ao redor da casa. Hoje, somente cana. A doçura mal distribuída, objeto de infindáveis discussões, marca profundamente a história da região. Os trabalhadores do campo, artesãos do açúcar, fazem há longos anos sua travessia cruciante por esta problemática região onde se acha localizada Tracunhaém. São trinta e seis engenhos que dominam essa área, nenhum com fabricação própria. Embora ainda guardem essa denominação, praticamente todos estão de “fogo morto”. Sendo apenas campos de plantio, fornecem cana para sete ou oito usinas, localizadas em municípios vizinhos. Tracunhaém assume a categoria de município em 1963, quando é desmembrada de Nazaré da Mata. A pequena cidade de Tracunhaém abriga, na rua principal e nas outras poucas, as duas igrejas, a praça, o grupo escolar, o ginásio, a padaria, a prefeitura, o posto de saúde, o mercado, os botecos, as vendas, o cinema, o cemitério, a agência improvisada da companhia de ônibus para Recife – Rio – São Paulo. Existe aí instalado o Serviço de Correios e Telégrafos, mas apenas o correio funciona. Um telefone público mantém a comunicação com Recife. Não há carros particulares entre os moradores da zona urbana. Algumas caminhonetes de aluguel fazem o transporte para a redondeza. O ônibus Recife – Timbaúba passa pela cidade a cada trinta minutos, durante o dia. A cidade dispõe de energia elétrica. Para muitos, porém, tal energia ainda não chegou – e entre eles os que providenciaram a instalação elétrica para desistirem logo depois, dada a impossibilidade de assumirem mais esta despesa. Não há rede de água. Existem dois poços, ambos da prefeitura, cada um com seu chafariz. Em um deles a água é salobra e pesada, não serve para beber ou cozinhar; no outro, ela muitas vezes escasseia. Dos dois açudes que ladeiam a cidade, ninguém pode se beneficiar – a água foi condenada pela saúde pública devido ao alto índice de esquistossomos. Muitas vezes, a alternativa é a água da vizinha cidade de Nazaré – trazida no lombo dos burros e vendida em latas nas portas das casas. Uma dependência muito grande liga Tracunhaém a Nazaré e Carpina, em relação ao atendimento hospitalar, às questões judiciais, às compras, e até mesmo ao trabalho. Muitos moradores de Tracunhaém têm seus empregos nessas cidades vizinhas. A atividade principal da região é a cultura da cana. Hoje, quase todos os que trabalham nos canaviais moram na cidade mais próxima. Em geral, são trabalhadores sem vínculo empregatício, pagos por produção, alugados nos canaviais como boias-frias. Grande parte da população de Tracunhaém encontrase nesta situação. Mas, se no campo predomina o plantio da cana, na área urbana impera, em variadas formas, o manuseio do barro. A vida da pequena cidade de Tracunhaém parece emergir toda ela do massapê. Uma cerâmica, ocupando cerca de oitenta pessoas, produz telha e tijolo; uma dezena de olarias, com cinco ou seis trabalhadores cada, é responsável pela manufatura de grande parte das jarras, potes, panelas e moringas vendidos nas feiras mais próximas. E há ainda os demais manuseadores do barro – os artistas populares de Tracunhaém, fazedores de bichos, bonecos e santos. Como situar a história destes artistas? A transformação do barro em figuras humanas ou de

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bichos está ligada à importância da atividade oleira na cidade. Ao lado da cultura da cana, a cultura do barro serve muitas vezes como alternativa ao trabalho no campo. O barro é uma opção para aqueles que saem da cana em busca de um trabalho melhor, e também para os que pertencem à cidade, como é o caso de quase todos os artistas. Filhos de oleiros, trabalhadores de telhas, tijolos e principalmente louças, os artistas de hoje iniciaram-se modelando no barro o seu recreio, o recreio de outras crianças, através da feitura de bonecos e bichos. Ainda crianças, participavam de uma produção de mercado, com suas peças vendidas pelo pai ou outro intermediário na feira, mas de um modo específico – fazendo objetos que poderiam ser utilizados por aqueles que compunham o seu mundo. Mais do que mercadoria, os brinquedos de barro representavam uma forma de atuação, de utilidade provisória, substituível, como um jogo, numa produção que expressava com simplicidade os elementos de um cotidiano bem próximo, associando função e inventividade. Ao lado dos vários ceramistas anônimos de Tracunhaém, dedicados ao trabalho nas olarias, cresceu, inicialmente também no anonimato, a cerâmica figurativa. Acompanhando passo a passo, pelo menos em torno de quarenta anos, o desenvolvimento dessa forma de expressão, destaca-se a família Vieira. Os pais eram louceiros e os filhos – Lídia, Toinha, José Antônio e Regina – dedicavam-se a fazer brinquedos ou aprontavam o barro nas olarias dos outros, como é o caso de José Antônio. Os mais representativos e que deram fama à cerâmica figurativa de Tracunhaém foram José Antônio, com suas jarras enfeitadas com bichos e desenhos e suas moringas antropomorfas; Lídia, com sua casa de farinha, meninas brincando de roda, casamento e santos; e Severino, casado com Lídia, que se iniciou nessa arte fazendo tipos regionais, frades, missionários, etc... Dos brinquedos saídos das mãos de Lídia germinou a semente da cerâmica figurativa de Tracunhaém. Em criança, dedicava-se a fazer panelinhas e bichinhos. Já moça, fazia casamento, casa de farinha, rendeiras. Depois, abandonando os agrupamentos, seu trabalho passou a ser constituído por figuras isoladas, denominadas pelos outros de santos. Severino, trabalhando no canavial, desconhecia o manuseio do barro até conhecer Lídia. Estimulado por sua mulher, começou a fazer suas esculturas nas horas vagas. Uma atração irresistível, como ele mesmo admitia, terminou por comprometê-lo definitivamente com esta atividade. A valorização dessa cerâmica por gente de Recife, interessada em arte popular, teve influência decisiva no desenvolvimento do processo de implantação dessa forma de expressão, em que Lídia e Severino tiveram importância significativa. O trabalho destes artistas, em Tracunhaém, equivale em importância ao de Mestre Vitalino, em Caruaru. Mas o reconhecimento que lhes é conferido – tanto em suas comunidades, como fora delas – marca uma distância muito grande entre os primeiros e o último. Mestre Vitalino deixou uma “escola” que, até hoje, mantém muito viva a sua presença tanto para os artistas que o enaltecem no cotidiano – através de uma produção com os mesmos temas e formas iniciados pelo Mestre e assumidos pela comunidade do Alto do Moura, em Caruaru – como para aqueles que adquirem esses objetos. Ao passo que, se não fossem alguns colecionadores ou pesquisadores do assunto, talvez o significado da obra de Lídia e Severino não viesse a ser percebido como tão incisivo. Não há referência explícita e espontânea, por parte dos atuais artistas de Tracunhaém, à contribuição que deram à cerâmica figurativa de sua cidade. Lídia e Severino, falecidos respectivamente em 1974 e 1965, representam, ao lado de Vitalino, um ponto de referência no despertar da cerâmica figurativa para um mundo que descobriu nestes trabalhos o que se convencionou denominar de arte popular.

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O brinquedo, um dia, no contato com um novo mercado mais interessado no valor estético, no “pitoresco”, ou no aspecto cultural, transformou-se em arte. E, apesar dessa transformação – que ocorreu, por volta da década de 50, na relação produtor/consumidor –, as técnicas, os instrumentos e muitos dos temas continuam basicamente os mesmos. Os bichos ainda hoje permanecem na cerâmica da cidade, com roupagem nova, como o leão de Nuca ou o tatupeba de Luís; as figuras regionais de Zezinho e Luís também têm o seu lugar; e a escultura erótica de Carlos Roberto abre uma linha pouco comum na arte feita pelo povo do Nordeste. Mas são os santos que dão a tônica da escultura em Tracunhaém. O mercado determina, sob muitos aspectos, a produção: o tamanho da peça, a textura, os enfeites, mais São Francisco, menos pássaros, o santo da devoção, o bicho predileto. Tudo isso muitas vezes a critério do cliente, dependendo das pressões – como no caso dos macacosmúsicos, que Antônia Leão começou a fazer a partir de uma encomenda de duzentos para um restaurante em Goiana (PE). As influências repercutem diferentemente de lugar para lugar, parecendo depender da qualidade e quantidade do elemento externo à comunidade. Em Tracunhaém, a interferência se deu e ainda se dá de maneira assistemática e reduzida, e, talvez por isso mesmo, ainda permanece muito forte o valor – na originalidade, na criatividade ou na individualidade – introduzido e assimilado pelo contato com uma elite intelectual, preocupada justamente em proporcionar e divulgar tais valores. E a ausência na cidade, até há pouco tempo, da feira – criada em 1975, mas sem contar ainda com as peças dos artistas –, pode ter desempenhado um papel significativo nesse sentido. Na cidade do interior, mais do que um simples local de compra e venda, a feira funciona ainda como ponto de encontro, de festejos, de vida social, sendo, por isso tudo, um atrativo também para o turista. Inexistindo este espaço em Tracunhaém, os artistas isolam-se em suas casas, vendendo aí mesmo suas peças, para uma clientela instável, flutuante, que vem de fora. Um mercado reduzido que contribui para uma rivalidade entre os artistas, onde cada um consegue, na luta pela sobrevivência, apenas o imprescindível para não morrer. Este isolamento também se traduz na inexistente troca de experiências – um estoura a fornada inteira, enquanto outro, ali junto, desenforna todas as suas peças perfeitas. Dificílimo conseguir que dois santeiros juntem suas encomendas em uma só condução, ainda que a entrega seja no mesmo local. Esse fenômeno, sem dúvida, contribui também para acentuar a individualidade no processo de trabalho e, consequentemente, nas peças esculpidas destes artistas, todas elas identificáveis, independentemente de assinaturas. A originalidade é, em Tracunhaém, reconhecida como valor e interiorizada pelos artistas. Todos são muito preocupados em se defenderem de uma suposta inautenticidade de suas figuras de barro. A predominância de temas religiosos ao lado de figuras e cenas típicas da vida rural parece representar a fusão do próprio viver da cidade, preservando-se a temática diretamente ligada à região, com as exigências de uma produção individualizada e pensada para um mercado que não se restringe mais à comunidade. Assim, na necessidade de criar e na capacidade de fazer, modelam seu objeto-pão: não é santo, não, é meio de vida.

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Severino de Tracunhaém e os Vieiras A família Vieira – Lídia, falecida aos sessenta e três anos, em maio de 1974, suas irmãs Antônia da Conceição (Toinha) e Regina da Conceição, seu irmão José Antônio e seu sobrinho João Prudêncio – tem um lugar importante na cerâmica popular do Nordeste. Em situação equivalente está Severino Gomes de Freitas, conhecido como Severino de Tracunhaém, que se tornou um artista popular dos mais expressivos no pouco tempo em que exerceu seu ofício, ou seja, até 1965, quando faleceu, com a idade de quarenta e nove anos. Lídia, uma figurinha miúda, encarnando uma mistura de fragilidade, fortaleza e obstinação, deu fama à cerâmica de Tracunhaém, onde nasceu, e onde morreria rodeada de figuras de barro. Suas peças – louvadas por muitos e compradas por tantos, enfeitando ambientes ou reproduzidas fotograficamente em composições gráficas esmeradas – não conseguiram, no entanto, tirá-la de sua extrema pobreza. Começou a trabalhar no barro junto com os pais e irmãos. Ainda menina, com dez, doze anos, já vivia com a mão no barro. Lá em casa tinha forno, roda, canteiro pro barro, tudo, tudo... Os pais, na produção de louça; os filhos, nas panelinhas e bichinhos de brinquedo – tudo para ser vendido na feira. Um dia fiz uma figura de gente, tomei gosto e peguei fazendo. O pessoal de Recife viu, gostou e encomendou mais. Pediam peças maiores, mas isso ela recusava: As peças pequenas avançam mais, quando dá de tarde tenho três peças, ali, feitas. A princípio modelava-as compactas, maciças. Mas se quebravam muito, era aquela farinha dentro do forno. Aí dei para fazer oca e não quebrou mais nenhuma. Além disso, Lídia, talvez por sua maior paciência na secagem natural, à sombra, conseguia – mais do que seus familiares – levar suas esculturas até o fim. O que mais parece atingir a produção dos Vieiras, quebrando fornadas inteiras, é a premência em levar ao forno peças ainda não totalmente secas, vendo-as pouco depois, sob o efeito do calor, chorando e se arrebentando todas. Outros fatores têm sido mencionados pelos oleiros em geral como razão de menor quebra: a mistura certa, a boa qualidade do barro, a ciência do queimar, a arrumação adequada no forno, etc... Lídia explica a experiência que fez com o vidrado: O zarcão estava muito caro e também eu achava difícil chegar no ponto que queria. Às vezes ficava mais esverdeado. Era um aguneio quando pegava mais tinta, uns gostavam e outros não. Para Lídia – que se considerava católica demais – uma grande dificuldade surgiu quando começaram a dizer que ela fazia santos. Sei que é figura de santo, mas não boto esse nome não. O problema era a ida das figuras ao forno: Acho pecado fazer santo, botar no fogo e queimar. Tenho cisma. Santa Luzia, então, eu não queimo de jeito nenhum, porque eu acho que a gente tem os

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olhos da gente. Agora, fazer aquelas figuras e, quando acabar, queimar... Eu não gosto. Tenho medo. Santa Luzia, protetora dos olhos, é uma das santas de maior devoção no Nordeste. E é comum que as mais fervorosas devoções sejam impregnadas de medo dos castigos divinos. Queimar Santa Luzia, na crença popular, pode dar cegueira. Mas os compradores não aceitavam de modo algum este argumento, pois sabiam da falta de resistência do barro que não vai ao forno. Lídia marca o início de um crescente interesse pela cerâmica popular de Tracunhaém, embora em âmbito ainda restrito. Ao lado dela, somente Severino e José Antônio faziam esculturas: Fora estes, do trabalho de outros artistas só conheci o de Vitalino. Trouxeram os bonecos dele para me mostrar, são bonzinhos. O que eu acho muito bom no trabalho dele é o barro, porque o barro dele é muito bom. E ele também faz as figuras dele parecidas, só que ele bota arame dentro e eu não. O barro de Caruaru é melhor do que este daqui: mais liso e com menos areia. Queria pegar nele, em massa, molhadinho. Mas só vi na peça pronta. Falando de seu próprio trabalho, Lídia fazia questão de afirmar sua originalidade: Não olhei santo nenhum! Usei assim, de minha cabeça. Fiz aquela boneca, e depois botei aquele pano. Vieram dizer a mim que eu tinha ido a Nazaré, que tinha visto uma santa e fiz por ela. Quem contou essa história atrapalhou-se todo, porque nem em Nazaré eu não fui olhar santo nenhum. É só memória. A gente se senta assim, num canto. Ainda agora eu vim de lá de fora, estou aqui sentada, mas estou pensando tudo que eu tenho que fazer. Casamento, casa de farinha

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Acrescentava sempre algumas peças às encomendas recebidas, e tinha sobre a mesa ou embaixo da cama dois ou três santos para o comprador inesperado. Sua morte deixou um grande vazio entre os que lhe queriam bem, entre os que percebiam em seu trabalho uma expressão viva e significativa da cultura popular brasileira. Hoje suas esculturas podem ser encontradas em acervos particulares e em museus do exterior. Severino trabalhava como braçal nos engenhos do município de Tracunhaém. Nasceu em um deles e assim viveu até sua mudança para a cidade. Noivo de Lídia, sentiu o gosto pelos bonecos de barro e, nos muitos anos que conviveu com ela antes de se casarem, viu crescer mais este interesse. Namorando e bebendo gás, quer dizer, conversando até altas horas da noite à luz do candeeiro, ela trabalhando e ele ali junto no serão, e aí pegando também a fazer – assim se referem Toinha e João ao início da atividade artística de Severino, que reagia em assumi-la totalmente. Entremeava o trato do barro com o eito nos engenhos e outros ganchos, como vender garapa e passar jogo de bicho. Já casado, ouvia da mulher: Severino, deixa de estar levando tanto sol, tanta chuva. Tu no meio do mundo... Dentro de casa tu não te furas, não estás levando tanto sol, tanta chuva... Ao que ele respondia: Ah, Lídia, mas esse serviço é serviço pra mulher. Eu só gosto de estar andando, porque andando estou me divertindo.

(agrupamento em torno da fabricação de mandioca, com mecanismos elementares), um bocado de menina brincando de roda... Essas e algumas figuras isoladas passaram a ser a produção mais sistemática de Lídia. Depois de algum tempo foi se firmando nessas últimas e deixando de lado os agrupamentos. As peças de mais figuras davam muito trabalho, e só queriam dar muito barato. Eu não faço mais de jeito nenhum. Uma peça só é mais descansado. O mais custoso é a cabeça. Com essas e outras reações de seus compradores, Lídia foi definindo seu trabalho em figuras masculinas e femininas, de 30 a 40cm, em barro cozido, natural, sem tinta nem verniz; mantos pregueados com desenhos em baixo-relevo e linhas feitas em pontos, com palito e carretilha de costurar. Em todas, uma expressão ingênua e uma acentuada semelhança com sua própria pessoa. Muito doente do coração, e sem condições para um tratamento adequado e permanente, Lídia foi sumindo aos poucos. Curioso registrar essa fase de seu trabalho: a transferência, para seus santos, da atrofia de suas forças, de seu mundo. Suas primeiras peças eram roliças e cheias de detalhes. Porém, aos poucos foram emagrecendo e despojando-se, até ficarem, como as últimas, finas, esticadas e quase sem enfeites – espelhando dolorosamente o seu fim de vida. Em todo o seu percurso como artista popular, Lídia manteve o interesse de seus admiradores.

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Referindo-se à atração que sentia por aquela atividade, a seu ver marginal, sem ganho certo e de valor pouco reconhecido, confiou certa vez a Augusto Rodrigues: Essa arte tem parte com o diabo... E, ao ouvir a observação de que homens como ele viviam do barro há quatrocentos anos no Nordeste: Há quatrocentos anos morremos no barro... Cedendo às solicitações de Lídia, ao gosto que experimentava por essa arte e ainda a uma clientela persistente, Severino aderiu ao ofício. Apesar da influência de sua mulher, desenvolveu um estilo próprio e firmou-se como artista. Além de bichos e de estranhas figuras antropomorfas, muito expressivas – em geral em torno de 20cm – começou a fazer mulher com jarra, padrinho Cícero, cristos, beatas, frades missionários... Mais machos, as fêmeas ficam pra Lídia. Essas peças, com 30 a 40cm de altura, eram mais elaboradas, cobertas de rebuscados desenhos. Severino morreu abatido por cirrose, consequência dos esquistossomos tão frequentes nos rios e açudes da Zona da Mata pernambucana. Mais de uma vez hospitalizado, não conseguiu debelar a hidropisia e outros males decorrentes da grave enfermidade. Assim como Lídia, deixou, ao desaparecer, peças consideradas de grande valor artístico, ainda que em número bem menor, em coleções particulares ou museus de Pernambuco. Indiscutivelmente, foi uma figura marcante entre todos os ceramistas regionais. José Antônio, em criança, além dos bichos de que gostava e sabia fazer, Aprontava barro nas olarias dos outros. Botava o barro pra dentro, pisava, molhava, catava, amassava, deixava pronto para ser trabalhado. Assim passei nove anos trabalhando para a mesma pessoa. Até o dia em que o proprietário da olaria, reclamando o serviço, quebrou uma peça que eu tinha feito. Quebrei o resto e saí de lá! Familiarizado com o barro desde menino, Zé Antônio, já rapaz, começou a fazer jarras de feitio bem simples. Posteriormente passou a enfeitá-las com cobras, galos, lagartixas, cabeças humanas, desenhos, ou dizeres em relevo como: “Deus proteja esta casa.” Começou também a criar moringas antropomorfas com alças que semelhavam braços e tampas em forma de cabeça, bem como figuras esguias e simplificadas: homens e mulheres, em grupo ou isolados. Tudo em barro natural ou vitrificado a zarcão. Foi considerado por Hermilo Borba Filho e Abelardo

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Rodrigues – em estudo realizado sobre a cerâmica do Nordeste – como um dos mais representativos artistas populares da região: “... nos espantamos diante das jarras de José Antônio de Tracunhaém, mais igaçabas do que jarras, com seus adornos zoomorfos e gráficos, de um primitivismo poético com alta carga artística.” Depois dessa fase, houve um longo período de sensível modificação em seu trabalho, uma certa estagnação. As jarras rarearam e, quando apareciam, não traziam mais as figuras nem os dizeres. Os tipos humanos também se foram. Somente as moringas continuaram a aparecer, na linha de sempre, ainda fiéis à primeira proposição. Neste espaço de tempo, Zé Antônio passou a se dedicar quase exclusivamente à manufatura de louça: Apronto a roda (torno rudimentar, acionado com movimentos rítmicos dos pés), faço cento e quarenta peças num dia, das 7 horas da manhã às 6 horas da tarde, sem parar. No dia seguinte, aliso as beiradas, boto as asas das travessas, o bico e o rabo das farinheiras que têm o feitio de galinha. Muito melhor do que figura de gente, que dá muito mais trabalho. Seus conjuntos de feijoada eram vidrados e tinham grande aceitação. Vendia tudo, quando conseguia tirar uma fornada inteira, o que, no entanto, era muito raro. Em meados de 1975, sua criatividade reacendeu. Mealheiros, em forma de pássaros estranhos, lembrando bichos pré-históricos, e mais de uma dezena de moringas diferentes, com flores e figuras humanas, marcaram uma nova fase do artista, mostrando-o talvez mais inventivo do que em sua fase inicial. Para o grupo familiar, Zeca, como é carinhosamente chamado pelas irmãs, sempre esteve junto delas, no torno, queimando as peças, ou então vendendo-as na salinha de entrada. Abastecer de barro toda a família era tarefa sua. Cavo na várzea com a ajuda de João e a gente mesmo carrega. Agora está ficando difícil: os outros pegaram roubando, roubando, aí o dono empatou. Atualmente com sessenta e seis anos, Zé Antônio parece há muito rendido diante da vida. Até o princípio de 1976 morava na mesma casa com as irmãs e o sobrinho. Nesse ano sofreu uma paralisia, decorrente de um derrame cerebral. Logo após sua chegada do hospital, casou com Nina, irmã de Severino de Tracunhaém e sua companheira há doze anos. Mudou-se então para um pequeno quarto, onde vive hoje, impedido pela doença de exercer sua arte. Trabalhos de sua autoria – em galerias, em acervos e em mãos de particulares – ilustram as várias fases de sua vida de artista. Toinha nasceu e passou a maior parte de sua vida em Tracunhaém: Com dez anos peguei a trabalhar no barro. Primeiro uma patinha, sendo paliteiro, depois uns cachepôs que meus irmãos vendiam na feira. Aí veio o serviço mais brabo: quarenta anos nas

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olarias dos outros, no serviço braçal alugado. Quando faltava alguém eu entrava como avulsa, carregando e amassando o barro, cortando, botando asa de papeiro, ou então tomando conta da queimagem. Houve um tempo em que estive no Recife, trabalhando de fogão, mas foi nas olarias dos outros que eu adoeci. Tive uma doença no pé, a perna ficou dormente e eu sem poder andar. Sem demonstrar amargura nos seus sessenta e cinco anos, dos quais os últimos dezesseis passou na cama – de onde não me levanto para canto algum –, Toinha fala muito e com facilidade: Tive onze filhos, mas desses só três estão vivos. Moram no Recife e não gostam de Tracunhaém. Marido, com o perdão da palavra, não tive não. Só por esporte. Depois da morte de Severino, Toinha, já paralítica, resolveu mudar-se, juntamente com Regina, para a casa de Lídia. Quando eu cheguei, passei um mês sem fazer nada, olhando os outros trabalhar. Um dia pedi um bolão de barro, uma bacia de água, e comecei. Fiz uns cachorros de focinho bem fino: vi os meninos mangando quando levavam pro forno, mas nem liguei. Esse focinho fino findou sendo o bico dos galos, que é o que eu mais faço ainda hoje. As ideias foram chegando, do barro e da minha ciência, do meu pensamento... Toinha modela na mão e na marca – tem vários moldes em baixo-relevo, feitos por ela mesma, para imprimir as flores e outros enfeites de suas peças. Galos, tigelas redondas e, sobretudo, paliteiros – como árvores cheias de pássaros e flores em relevo – são sua especialidade. E tudo isso com seu toque inconfundível, dispensando assinatura. As peças são de barro natural ou vidradas – quando o dinheiro dá para a compra do zarcão. Toinha vende em casa, a preço muito baixo, conforme o tamanho da peça, o que produz dentro de suas limitações. Aumento quando não está dando mais pra comprar o que eu preciso. Ninguém acha caro, tem gente até que dá mais dinheiro. Mas se eu subir o preço pode não sair. A gente essa semana não pode comprar lenha. Fico triste quando vem alguém e eu não tenho nada pra vender, e o pessoal vai embora sem deixar o dinheiro. Dinheiro que falta tanto! Principalmente no inverno, quando os bichos demoram a secar. Toinha sempre trabalhou com o barro que Zé Antônio trazia da várzea para o serviço de todos – tarefa que agora é realizada por João Prudêncio. Como não sai da cama, ela recebe o seu bolão de barro já tratado, pronto para o uso. Com seus dedos ágeis, vai dando forma às suas peças. Na salinha, passagem escura, chão de cimento como no resto da casa, Toinha vive sobre uma tábua menor do que ela. Para não sujá-lo de barro, ela só usa à noite o colchão de espuma que lhe deram. E, apesar de sua doença, é a pessoa mais viva e alegre da família Vieira. Quatro vezes por ano vou à cidade. No carnaval, peço pra me carregarem e passo os quatro dias na calçada, vendo o movimento; na Sexta-Feira Santa, não perco de ver o Senhor passar; e no Sete de Setembro também gosto de ver a Parada. Tem ainda a procissão de Santo Antônio, mas aí eu não me mexo muito. Aqui nesse meu canto eu choro, eu rio, passo alegria, passo tristeza... Tem dia que não toque em mim não que eu estou que nem malícia: tocou, se fecha toda. Regina nasceu há sessenta e três anos em Tracunhaém. Como os irmãos, junto aos pais louceiros, fazia bichos e brinquedos de toda qualidade. Conta que moravam em terreno de outros, sem pagar aluguel. Em contrapartida, cuidavam de doze cabeças de gado do proprietário da terra e entregavam a ele, para revender, tudo o que faziam no barro. E Regina, nesse tempo com

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oito anos, também entregava suas peças. Hoje, apesar da venda variar muito e do aguneio ser tão grande que às vezes chega a faltar assunto, assim mesmo acho melhor que naquele tempo. De todo jeito, hoje eu domino o dinheiro. Regina lembra-se de quando começou a fazer santos pequenos – ainda hoje sua especialidade. Insiste em dizer que a ideia desses santos veio de sua cabeça. Com a morte de Lídia, diz ter perdido toda a inspiração. Deu uma grande tristeza, até o rádio ninguém nunca mais ouviu. Mas agora estou voltando a trabalhar. No canto da salinha-passagem, sentada no chão perto de Toinha, modela suas peças. Ali mesmo as deixa secar, até o momento de irem ao forno que, no fundo do quintal, atende à queima do trabalho de toda a família. Suas peças quebram pouco, talvez por serem pequenas. Mas assim mesmo tem vez que o freguês chega e volta sem nada. No inverno a frieza atrapalha muito. Ao finalizar o processo de queima, as peças ficam guardadas em uma bacia embaixo da

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cama, aguardando compradores. Tem gente que pechincha, mas tem outros que acham barato e até dão mais dinheiro. No que diz respeito ao trabalho de outros artistas, Regina conhece muito pouco. E acrescenta, com certa ironia: Acho assim: tem muita gente que modela a cara com forma tirada de boneca de plástico. Eu me dou com todo mundo, embora eu veja muita gente por aí querendo imitar Lídia e até sentando o nome dela nas peças que faz. Seus santos seguem a mesma linha dos santos de Lídia. Como marca mais própria, há uma singeleza maior na forma, ausência de desenhos, e, quanto ao tamanho, é quase que exclusivamente de 15cm. Suas peças, bem modeladas em barro natural, têm boa aceitação. São Pedro, São José – mas sobretudo São Francisco e as Lapinhas – são os mais procurados. Há cinquenta anos Regina vem repetindo, com fidelidade, o mesmo trabalho. João Prudêncio é natural de Tracunhaém. Tem hoje trinta e três anos e, morando com suas tias, dedica-se inteiramente ao trabalho no barro. Produz sobretudo santos parecidos com os de Lídia, sendo mais alongados, em barro natural, com 30 a 40cm de altura. Mas nem sempre João se dedicou a essa atividade. Segundo Toinha: Ele tinha saudade, não produzia quase nada. Agora está bem melhor. Mas antes é que sofria, alugado nas olarias dos outros. Foi quando começou a fazer umas peças junto com a gente e, vendo que tinha jeito, foi continuando. Falando baixinho e custoso, João vai dizendo que ajudava Zé Antônio a trazer o barro para casa. Depois da doença do tio, é ele que prepara o barro para a família, misturando, peneirando e pisando. As peças se quebravam muito, mas agora, com uma mistura que a gente inventou, está dando certo. Gosto muito de fazer São Francisco: é mais fácil e é o mais procurado. O preço, eu regulo pelos dos outros da casa. Vai dando pra levar. Interessa-se exclusivamente pelo seu trabalho. Conhece o dos outros, se dá com todo mundo, mas vive no seu canto. Quando estou aperreado gosto de ficar na beira do rio, vendo se pesco alguma coisa. De sua cama, Toinha interfere novamente: ‘Quando ele quer amolecer, eu fico recomendando: atenção ao trabalho, é o nosso pão.’ Entre os ceramistas de Tracunhaém, os Vieiras são os que mais acentuadamente vivem a desesperança, dolorosamente presente no clima de miséria palpável em muitas casas. E, embora representem os mais antigos oleiros da cidade, e os mais louvados em sua arte, são no entanto os

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Antônia Leão mais pobres. Mesmo quem sabe dessa situação sente sempre esse impacto em cada visita. Sentimento de que todas as forças ali reunidas garantem apenas, e estritamente, a sobrevivência daquelas criaturas ensombradas, movendo-se em gestos minguados, sem ânimo: Foi, quebrou-se a fornada toda... É, essa encomenda de louça está aí já fazem três semanas: pediram com a maior pressa e não vieram buscar... As peças de João estouraram todas essa semana. A gente não sabe bem o que foi, o barro que ele usou foi o mesmo das outras vezes... A este texto foram incorporados depoimentos de Lídia e Severino que se encontram em estudos realizados por Abelardo Rodrigues, Hermilo Borba Filho e Renato Miguez. Tracunhaém (PE), 1975/76



Antônia Bezerra Leão nasceu (em 1914) e criou-se em Tracunhaém. Com quinze anos me casei e depois de uns tempos me mudei para Goiana. Morei dezesseis anos lá. Fazem três anos, voltei pra Tracunhaém. Mas não gosto daqui: se pudesse, saía de novo, voltava pra Goiana. Acho isso aqui muito ruim, um lugar sem animação. E ainda tem gente moça que vai ficando por aqui! Como meu genro e outros. Não sabem procurar emprego fora, e vão ficando.

Antônia teve dez filhos, dos quais somente quatro sobreviveram. Hoje reparte com a filha, o genro e três netos seu viver de ceramista na pequena cidade nordestina, tendo já exposto seu trabalho em Recife, no Horto de Dois Irmãos e no Museu do Açúcar. Meu genro trabalha numa olaria, fazendo jarra e quartinha. Trabalha pro homem e, como toda pessoa que trabalha pro outro, morre de trabalhar e nunca tem nada. Aqui em Tracunhaém não tem pra onde correr. Nem feira tem... E, sem feira, ainda têm menos saída as coisas que a gente faz. O prefeito também não dá ajuda. Aqui não tem pastoril, não tem música, não tem nada. Mas o que faz mais falta é o movimento da feira, é o principal. O domingo aqui é igual aos outros dias: tem uma missa só, que assim mesmo dá um pouco mais de vida. Quando vou à feira em Carpina, aí sim, que animação! Vejo gente, vejo movimento. Quando eu era pequena me lembro do bacurauzinho que tinha aqui, uma feira bem pequena. Agora tem um mercado, que vende inhame, batata, abacaxi e farinha, somente. Mas feira é que é bom! Tem tudo o que a gente quer: roupa, sapato, muito movimento. Pelo Natal armam uns bancos na praça, mas só pra vender comida e aguardente. Isso, junto com um carrossel velho... Parece que o povo do mato vive de comer: come mais que tudo, mas não tem nada pra vender. Conforme o usual, o aprendizado de Antônia vem de longa data. Menina, com dez anos de idade, já fazia bichinhos de barro que o pai levava para a feira de Carpina, entregando-lhe o dinheiro apurado para comprar vestido. Tanto meu pai como minha mãe faziam louça: jarra, panela, filtro... E eu fazia macaco, galo, soldado com fuzil e também uns frades – tantos frades que só vendo! Mas Antônia acha que aprendeu mesmo a fazer barro com seu Luís – um frade que morava na igreja velha, em Goiana. Ainda hoje ele vem me visitar. Ele não queria que eu saísse de Goiana. Lá o movimento era muito grande, vinha gente de Recife, fazia encomenda, dizia que voltava no dia seguinte e voltava mesmo. Aqui em Tracunhaém não aparece quase ninguém. Nesse mês só vendi uma peça. Tenho umas encomendas pra entregar, estou esperando que o pessoal venha buscar. Em Goiana, Antônia entregava todo o produto de seu trabalho a um revendedor exclusivo, de quem era também inquilina. Dele recebia o barro, modelava as peças e lhe entregava tudo cru, deixando a seu cargo a queimagem. Por isso eu ainda vendia mais barato, por quase nada. Mas assim mesmo tenho saudade de lá – me davam mais valor. Eu vendia tudo o que fazia. Desde Goiana, vem se dedicando cada vez mais à temática dos santos, esculturas de 30 a 40cm de altura. Santo Antônio, São Francisco, Nossa Senhora com Cristo morto nos braços... Isso tudo, aliás, é meio de vida. Não é santo, não, que santo não se faz. Bicho eu estou deixando mais. O único que

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Um tempo até bom: a galeria adiantou um dinheiro e eu comprei até os móveis da casa. De quinze em quinze dias eu entregava de quarenta a cinquenta peças, aquilo certo. Mas, depois de uns meses, as encomendas pararam. O pessoal da galeria dizia que não tinha quem comprasse todas as coisas que eu podia fazer. Isso foi muito ruim, parou de repente aquela coisa certa. Aqui o movimento é muito fraco. Quando só tinha eu, Lídia e Zezinho, era muito melhor. Mas depois que pegou todo mundo a fazer, atrapalhou muito a venda. Fico esperando os compradores. Às vezes demoram muito a chegar. Antes de botarem essas exposições, essas galerias lá por baixo, lá por Recife, o povo vinha mais aqui. Agora vem menos. Muito embora o que a gente vende pras lojas é muito mais do que a gente vendia antes em casa. Antônia vende bem barato as suas peças. Excepcionalmente, faz uma peça maior e cobra mais. O preço dou pelo tamanho, não é pelo trabalho não! Tem vez que junta muita peça e não aparece ninguém. Ou então para um carro na porta, o pessoal olha, olha, e não leva nada. Também tem quem compra e até paga mais do que eu peço. Mas a situação está muito difícil. Meu genro é quem me ajuda com o que apura fazendo quartinha, jarra e uns biscates por aí. E tem gente que diz que estou rica! Tenho uma filha que morava em Goiana. Tanto disseram que eu estava rica que ela deixou o marido pra vir ficar comigo. Resultado: a neta é que ficou e ela teve que ir pra casa de outra irmã minha. Reforçando um traço característico dos santeiros de Tracunhaém, Antônia mostra-se descrente de tudo e de todos.

ainda gosto de fazer é o macaco. Em menina, eu fazia aqueles bichinhos de brincadeira. Agora, um dia, lá em Goiana, me encomendaram duzentos macacos feito uma banda de música. Eu fiz tudo e acharam bom. Aí eu fiquei fazendo. Eu fazia pecinha menor, mas agora o pessoal só quer assim. Antes o que eu fazia era grande, agora já é pequeno também. Eu gosto do que faço porque sou eu que faço. As peças agora estão mais bem feitas: quanto mais aliso, mais tenho vontade de alisar. Vejo as dos outros, tem bem acabadas, principalmente as de Zezinho, que tenho vontade de fazer do mesmo jeito. Gosto mais do trabalho dele porque parece com gente mesmo. Não invejo de jeito nenhum muitas peças que tem por aí. Gosto muito das que parecem com feição de verdade. Tem gente aí que não diz, não, mas faz por mostra: tem livro pra olhar. Eu, não. Eu penso e faço, ou então olho as coisas do jeito que elas são, como a ciranda, com um pau no centro, o pessoal tocando e dançando ao redor. Meu genro também ajuda no trabalho. Ele fazia no torno a saia dos bonecos. Teve um tempo que eu fazia assim, foi ideia de um artista lá de Olinda. Ficava mais bem feito e mais fácil. Depois era só botar os braços e a cabeça e ajeitar tudo. Mas não deu muito certo, tinha gente que achava melhor do outro jeito. E produção muito grande também não sai. O barro, que antes comprava em uma cerâmica, Antônia vai buscá-lo agora na várzea, enfraquecendo-o com a mistura de um tipo vermelho. Prepara-o com a filha – isto é, quando ela tem tempo, depois de cuidar do comer, da casa e das crianças. As peças, modeladas com espátulas de alumínio, de ferro e de bambu, são queimadas depois de secas, em um forno que foi construído numa época de grandes encomendas, feitas por uma galeria de Recife, logo depois que Antônia voltou de Goiana.

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Um dia, quando o pessoal soube que eu ia pra uma exposição em Olinda, apareceu foi gente aqui em casa querendo saber se eu ia de vez. Quem me dera! E no fim deu tudo errado: o carro só veio me buscar às cinco horas da tarde – vejam só! – aí eu não fui. Disse que era muito tarde. Imagine, uma mulher sozinha, saindo àquela hora pra voltar de madrugada, esse tempo todo fora de casa. Eles disseram então que voltavam outra hora e nem apareceram mais. Não tem jeito não, eu tenho azar mesmo. Acabei não indo. Ando com vontade de escrever pra um índio que fala no rádio e adivinha tudo. Gosto muito da voz dele. Pode ser que ele consiga mudar minha sorte.

Tracunhaém (PE), 1975. SANTEIROS DO MASSAPÊ

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Maria Amélia Maria Amélia da Silva, nascida e criada em Tracunhaém, está hoje com quase cinquenta anos. O despertar de seu interesse pelo barro está ligado à figura do pai, por quem expressa grande admiração. Era louceiro, um mestre. Entendia de tudo no barro – das misturas que a gente tem que fazer, do peneirado bem feito. Entendia de tudo. Com ele fez sua aprendizagem – primeiro alisando panelas, depois fazendo bichos. Fora meu pai, ninguém nunca me deu ideia. Faço tudo na minha imaginação, tudo por mim mesma. E quando vou a um lugar que tem outras peças, nem presto atenção. O trabalho dos outros, em Tracunhaém, nunca fui olhar! Há três anos transformei minhas ideias e comecei a fazer bichos grandes. Gostei e fui multiplicando, sobretudo os leões, que são meus preferidos. Foi quando vi, na feira de Carpina, uns quadros com figuras de santo. Fui fazendo e foi dando certo: Santo Antônio, São José, Santa Luzia, São Jorge... Minha preferência é São José. Quando não tenho um São José em casa, está faltando um negócio. Já São Jorge é o mais trabalhoso: a gente tem que fazer pedaço por pedaço, com arame dentro. Já tentei três vezes e ainda não consegui um todo inteiro depois de enfornado.

aqui. Não compensa o tempo que a gente gasta pra fazer um vestido, em comparação com o dinheiro que a gente vai ganhar com o serviço. O lugar aqui é muito pequeno, o pessoal muito pobre. Quando a gente entrega a roupa, muitas vezes não trazem o dinheiro, que já é pouco. Pedem pra pagar depois, e às vezes nem trazem mais. Assim não dá... Com o barro, mesmo as peças se quebrando muito, quando a gente consegue aprontar umas, o dinheiro que se pede já é mais, e quem compra é o povo de fora, que pode pagar. Hoje mesmo vendi quatro santos. Por isso prefiro trabalhar no barro. Fico dentro de casa e, enquanto estou polindo as peças, estou ouvindo o radiozinho. O fato de Otacílio, seu marido, ser guarda-noturno, ter um salário fixo, provavelmente contribui para que Maria Amélia, com menos premência em vender, atribua preços mais elevados a seus santos. Sobretudo – o que é mais difícil –, para que consiga mantê-los. Imaginando aumentar o movimento de vendas, Maria Amélia alugou um pequeno quarto, para esse fim, junto ao antigo museu (como denominam seu ponto comercial) de Luís – outro artista de Tracunhaém –, mas a ideia não funcionou – a seu ver, devido à pouca presença dela no local. Ou bem eu vendo no museu ou bem eu faço minhas peças. Ainda tenho muitos outros serviços. Mãe de família tem muitas ocupações. Tracunhaém (PE), 1975.

Querendo talvez provar a si mesma sua aptidão em reproduzir no barro o “santo forte”, seu cavalo e o dragão, Maria Amélia encontrou mais dificuldade na queima do que na modelagem. A peça, no entanto, não revela o peso da artista. Seus demais santos trazem uma força muito maior: figuras imponentes, rostos expressivos, muitas vezes marcados pela dor, em posturas desafiadoras, comoventes. Em tamanhos que variam de 50 a 70cm, suas esculturas são largas, muitas vezes contendo o corpo inteiro no volume do tronco, quase sempre trazendo vastos mantos pregueados. A experiência com os santos afastou Maria Amélia dos bichos. Estes só aparecem agora em lapinhas, com todas as figuras arrumadas sobre uma placa de cerâmica. Compro o barro bruto, em Tracunhaém, e faço a mistura de vermelho com o outro que é quase areia. Modelo tudo na mão, usando um palito de madeira e outro de metal para fazer os detalhes. Seco as peças no chão da sala. A queima é feita na olaria de um amigo, em troca de uma gratificação. Forno em casa tem a vantagem de não precisar sair carregando as peças pra queimar noutro canto; dá mais jeito. Mas também tem o gasto da lenha e mais o trabalho de ficar todo o tempo tomando conta do fogo pra quentura não variar. Tenho vontade de fazer um forninho aqui em casa, mas ainda não deu. Tenho seis filhos, sendo cinco enteados e um filho de nós dois. O mais velho eu queria que fosse engenheiro, mas essa sorte não é pra mim. Ele quer ser soldado quando crescer. Acho que é por causa do pai, que é guarda-noturno há mais de vinte anos. Tenho uma filha que gosta de trabalhar no barro. Eu acho bom. Tenho uma máquina e gosto de costurar. Gosto mesmo, acho bonito, mas não tem quem possa viver de costura por

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Maria Amélia

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Nuca e Maria pouco mais, na medida da carência da mão-de-obra, que aumenta com o crescente êxodo para o sul do país ou para os mangues do Recife. No canavial a situação é bem pior do que pra gente que trabalha no barro. Nos engenhos, o mais que um trabalhador consegue cortar de cana são duzentos feixes. Pra cem feixes, o preço é de seis a sete cruzeiros. Por isso a tarefa de duzentos feixes varia de doze a quatorze cruzeiros. O trabalhador só alcança esta diária se conseguir cortar duzentos feixes, e isso muitas vezes só dá com a ajuda de um filho ou mais. Quando a cana é queimada, o corte fica mais fácil. É comum romper um incêndio no canavial – uma simples ponta de cigarro pode inflamar tudo. Num abrir e fechar de olhos, folhas ressequidas pelo sol e balançadas pelo vento tornam-se, em sua multiplicação inumerável, num imenso fogaréu difícil de apagar, deixando atrás de si, quase sempre, algumas toneladas de cana tostadas e peladas, o que, de fato, facilita o corte. Nesse caso, o trabalhador pode conseguir cortar até quatrocentos feixes. Mas, como a tarefa é fácil, o preço fica mais baixo. Eu estava trabalhando na olaria e no roçado. Até que, no ano passado, recebi uma encomenda de um senhor do Recife, dono de um antiquário, pedindo pra fazer uns leões bem grandes. Nunca tinha feito, nem ele deu modelo. Fiz da minha cabeça e ele gostou. Nuca mostra três leões sentados, com altura aproximada de 70cm, bem executados, iguais. As peças lembram os antigos leões de louça portuguesa, que ainda hoje enfeitam a entrada de velhos casarios coloniais de Recife. Sabendo como permanece vivo o interesse por esse tipo de escultura, o antiquário fez a encomenda e Nuca soube responder à solicitação. Daí surgiu um contrato de exclusividade. Manuel Gomes da Silva – que todos conhecem como Nuca – e Maria, sua mulher, vivem em Tracunhaém. Ele é escultor apenas há três anos, revelando, no entanto, bastante segurança no desempenho de sua arte. Domina como poucos a operação de queimagem, e atende com pontualidade às encomendas que recebe. Nuca nasceu no engenho Pedra Furada, município de Nazaré da Mata, onde seu pai trabalhava na cana. Há mais de trinta anos toda a família se mudou para a cidade de Tracunhaém. O velho comprou um terreno, fez uma casinha e nós ficamos por aqui, vivendo do roçado. Naqueles tempos, nos engenhos, os trabalhadores tinham direito a ter um sítio onde plantavam sua mandioca e criavam uns bichinhos. Quem quisesse podia ter o seu roçado, mas, mesmo assim, meu pai achou que era melhor aqui na cidade e a gente se mudou. Agora os senhores de engenho não estão querendo mais que os trabalhadores morem no local de trabalho. Aí eles botam mais casas dos trabalhadores abaixo, arrancam o roçado, dão uma gorjeta a eles, mandam botar tudo em cima do caminhão e levar pra outro canto. Os que ficam morando lá não podem mais nem amarrar uma cabra num pé de pau. A cana encosta na casa. Por conta disso é que muitos trabalhadores do campo se mudam para a cidade. Aqueles que continuam trabalhando na cana vão a pé para os engenhos mais próximos. Para os mais distantes há o caminhão, do proprietário da terra, que de manhã bem cedo os arrebanha na redondeza. Às vezes conseguem ganhar um

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Dá pra fazer até três por semana. Mas depois fui achando ruim não poder vender a mais ninguém, nem leão nem outras peças. E coisa obrigada eu não gosto. E, ainda por cima, o senhor às vezes demorava a vir buscar a encomenda. Então resolvi quebrar o contrato. Para este primeiro cliente Nuca fez vários leões e figuras humanas em torno de 80cm de altura – peças consideradas muito significativas no contexto da arte popular. Hoje, ele consegue vender com regularidade toda a sua produção a novos clientes de Recife, atendendo a pedidos e fazendo ele mesmo a entrega em domicílio. O leão tem pequenos olhos perdidos dentro de uma cabeleira que Nuca, com muito trabalho, modela em rolinhos de argila, mais ou menos do tamanho de um cigarro. Depois de retorcê-los, prega-os sobre o dorso. Ou então, mais simplesmente, faz jubas de sulcos regulares e profundos. As figuras humanas, também de cabeleiras leoninamente encaracoladas, retratam bonecas e santos, bem mais ricas de detalhes que no início, quando eram acentuadamente despojadas. Maria ajuda nas esculturas, complementando o trabalho do marido. Ou então modela suas próprias peças, na mesma linha de Nuca, e cada vez com maior segurança. Suas carrancas, nome ultimamente dado por eles aos pequenos leões, já são poucas para atender às inúmeras encomendas. Ambos têm experimentado crescente afirmação profissional, produzindo peças cuidadosamente elaboradas, com ramos de flores e linhas bem definidas, que são de pronta identificação entre outros trabalhos similares. Dos santeiros de Tracunhaém, conheci Lídia. Isso não querendo dizer que me influenciei com sua arte. Conheço assim os outros que trabalham em escultura, mas só converso mesmo com Zezinho. É o que eu mais admiro. Acho o trabalho dele bom em tudo, no jeito de fazer e nos

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Zezinho de Tracunhaém José Joaquim da Silva, ou Zezinho de Tracunhaém, como é conhecido, nasceu em Vitória de Santo Antão, em 1939, e passou sua meninice cambitando cana nos engenhos daquela região. Aos vinte anos, casou e foi morar em Nazaré da Mata, quando se iniciou no ofício de pedreiro, começando como ajudante. Vindo a passeio a Tracunhaém, viu Lídia trabalhando e achou bonito. Pra mim, era a grande artista: ela sentia o que fazia. Inspirado pelo trabalho de Lídia, comprou um bolão de barro e começou a fazer suas primeiras peças, ainda em Nazaré. Com o estímulo de pessoas amigas, foi continuando.

Em 1968, a mudança para Tracunhaém deu novo impulso a seu trabalho. Eu já fazia todos os bichos e figuras de velho que, se encomendarem hoje, ainda faço com prazer. Sempre peças pequenas, até o dia que tive vontade, experimentei e fiz uma jarra grande, gorda, com a cabeça de gente, solta. Abelardo Rodrigues viu essa jarra e me animou a fazer um santo do mesmo tamanho. Zezinho dá ênfase ao fato que marcou o início de uma nova etapa em seu trabalho, e a partir do qual ele se tornou o artista de maior sucesso financeiro de Tracunhaém. Fiquei a noite toda pensando, quase sem conseguir dormir, imaginando como fazer o santo com mais de um metro de altura. De madrugada levantei, fui pra oficina e fiz as imagens – duas. Quando Dr. Abelardo chegou, escondi uma e mostrei a outra. Ele gostou muito e me pagou um bom dinheiro – isso em 1968. Isso me animou muito e deu força à nova ideia. Daí em diante não parei mais. Faço escultura de até dois metros de altura, como o São José que me encomendaram para a Igreja de Camalaou, na Paraíba. Essa peça eu mesmo acompanhei no transporte: viajamos numa caminhonete e lá, com um pedreiro, subimos o santo no carretel até a torre, onde nós chumbamos ele. Os índios de Águas Belas, daqui de Pernambuco, também com um deputado, encomendaram um busto de um padre que tinha morrido lá nas terras deles, pra colocar na praça. Trouxeram o retrato e eu fiz. modelos. Para o meu trabalho, compro barro em Tracunhaém e pago a uma pessoa para trazer em casa. No mais, faço tudo só. Até o forno fui eu quem fiz. Não tenho problema de quebra, conheço a dosagem de cada barro. Nuca realiza a queima com muito cuidado. Começa colocando lenha grossa na boca do forno, durante oito horas, até caldear – ficar em brasa na parte de cima. Em seguida, põe lenha fina, já na parte de dentro, sob o lugar onde as peças foram cuidadosamente arrumadas. Maria contribui nesse processo, carregando a lenha e ajudando nas fornadas. De noite estou cansada. Faço todo o serviço da casa e ainda tem o do barro. E filho dá muito trabalho. Tenho quatro morando comigo. O último menino que eu tive morreu de sarampo: foi um aperreio muito grande. Tudo que me ensinaram eu fiz, mas não deu jeito. Ele chorava a noite todinha, até que morreu. Agora não quero mais menino, só quero leão que não dá aperreio: a gente bota ele ali e ele não abre a boca. Nuca e Maria, dos mais novos escultores figurativos de Tracunhaém, mostram-se confiantes em suas possibilidades. Ao domínio com que exercem a secagem e a queima aliam-se a elaboração bem cuidada e, sobretudo, o espírito de iniciativa, que tem tornado sua arte um efetivo meio de vida.

O primeiro santo de Zezinho – que ele vai buscar atrás da porta, onde parece que ficou escondido até hoje – é colocado junto aos trabalhos mais recentes – a diferença é substancial. O primeiro – modelado no barro, em sua coloração natural, com altura aproximada de 1,20m e a cabeça inclinada para um lado – é bem mais expressivo. Os atuais são repetidamente mais estáticos, chamando a atenção pelo tamanho – até dois metros de altura – e pela boa qualidade artesanal, além do refinado acabamento. É realmente impressionante imaginar a execução de uma escultura desse tipo nas precárias condições de que dispõe o artista. Muitas vezes são dez, quinze peças em fila, que Zezinho vai trabalhando dentro da linha que Hermilo Borba Filho costuma chamar de “popular acadêmico.” Mostra uma Iemanjá, com estatura acima do normal e em fase de acabamento, e a estampa que lhe foi dada como modelo. Pra não ficar como cópia mesmo, mudei um pouco a posição das pernas. Três rapazes modelam algumas peças na oficina, onde Zezinho diz que não gosta de trabalhar com muita gente. Eles entram e saem. Com quem me dei mesmo foi com Nílson, que veio de Goiana e está comigo aqui faz tempo. Pegou meu estilo e vai indo muito bem. Aliás, os tipos populares é ele – Nílson – quem faz. Nos tamanhos grandes, eu ajudo; nos pequenos, Nílson fica só,

Tracunhaém (PE), 1975.

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Nuca e Maria

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Zezinho de Tracunhaém

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Luís e Elisete como os xangôs, por exemplo, com muitas figuras em tudo que é posição. Ou então as rendeiras e os trabalhadores. Aí, quem faz mais é ele. É trabalhador carregando jerimum, peixe, cabaça, enxada... Ou então o trabalhador preguiçoso, olhando o sol pra calcular as horas, louco pra largar o serviço. Essas peças só têm saída para o pessoal que vem do sul do país. Por aqui o pessoal se interessa mais pelos santos grandes, que é o que eu mais gosto de fazer, sobretudo o São Francisco, que fica tão bonito com os pássaros, e também é o mais procurado. Como novidade, ele está pintando os santos com uma tintura de café torrado com açúcar – preparada por ele –, que dá às peças uma tonalidade forte e muito brilho. Eu prefiro os santos na cor natural do barro, mas fui fazer uma peça assim e a freguesia gostou. Agora só compram se for desse jeito. Para executar meu trabalho, compro numa cidade perto – Cabo – a carga de um caminhão, de barro. Para completar, compro mais uma média de vinte cargas semanais de um barro daqui mesmo, transportado em jumento. Todo esse material rende uns cinco meses. O barro tem que ser bem peneirado, e nisso a gente perde uma boa parte porque vem muito caroço. Depois de peneirado, o barro é bem amassado; e o melhor é quando a gente pode curtir. Eu, lá em casa, tenho um barro muito especial, curtindo há bem dois anos. Não deixo aqui na oficina porque algum invejoso pode urinar em cima ou sacudir sal e estragar uma fornada inteira. A ciência pras peças não quebrarem está no trato que se dá ao barro. E também na secagem das peças, que tem que ser completa antes delas entrarem no forno. A modelagem de Zezinho é toda feita à mão. Tem um torno, mas só o utiliza quando recebe uma encomenda de cinzeiros. Nunca fez santo vidrado, porque, como o forno é de abóbada e as esculturas muito grandes, se botar zarcão só vai vidrar dos pés pra cima um pedaço. Para detalhar as peças, Zezinho usa uma espátula de cobre e outra de madeira. Na oficina – parte da área de uma casa que ele adquiriu para o trabalho – há espaço suficiente para amassar, modelar e secar as peças. A primeira sala é o lugar de expor e vender não só os seus trabalhos mas também os de Maria, sua mulher, que se iniciou no barro há um ano e que vem fazendo moringas antropomorfas – na linha das de Zé Antônio Vieira –, aliando esse trabalho à atividade doméstica. Dos seis filhos, dois vêm se interessando pelo barro e um deles, apesar de ter somente onze anos, está desenvolvendo cada vez mais esta atividade. Um São Francisco de aproximadamente 40cm, cheio de corpo e bastante expressivo, fala bem da aptidão do menino. É minha maior alegria ver um filho continuar o que eu estou fazendo. E parece que já estou conseguindo. Ele está gostando muito de fazer. Chega tem aquela vingança. Na arte, tenho a missão de melhorar. E isso vem acontecendo: tenho mudado um pouco as caras e as roupas das figuras. Hoje eu demoro mais na perfeição, estou menos vexado. Tracunhaém (PE), 1975.

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Zezinho de Tracunhaém

Grandes santos na frente da pequena casa de oitões livres, logo à entrada da cidade, indicam a presença dos artistas. Luís e Elisete Tude da Silva têm ali, construída por eles, sua oficina e museu (como é chamado o local de venda). Em taipa, coberta de telha, chão de cimento, quase todo o espaço é ocupado por esculturas dos mais variados tamanhos. Um pouco adiante há outra casa, que é a sua moradia. Nascido em 1939, no engenho Abreu, município de Tracunhaém, Luís foi ficando por aí, até que resolveu procurar trabalho em São Paulo, em uma aventura que durou sete meses. Nos meus tempos de engenho, eu trabalhava de pintor, pedreiro, carpinteiro. Mas quando fui pra São Paulo, arranjei um serviço de vigia. Lá tinha umas meninas que desenhavam muito e gostavam de me ensinar. Na minha volta pra cá, casei com Elisete. Ela já vivia no barro há muito tempo. Aí eu peguei a fazer o mesmo. Comecei com cachorro, tatu, gato, tigre. Peças grandes, mais ou menos com 50cm – ou então umas figuras que não eram de santo nenhum, eram só bonecos de barro. Tinha um comprador em Recife que apreciava o trabalho da gente e dava uma orientação pra ir ficando mais bonito. Só que ele gostava das peças que pra nós eram as mais feias: com as mãos e os braços pequenos, e ainda sem nome, assim adoidado, assim como a gente alevantamos. Um dia, tirando a ideia de um cromo, fiz uma Sagrada Família e uma Fuga, com São José, Nossa Senhora, e o Menino no burrinho. Esse senhor que me comprava as peças gostou muito e ficou me encomendando. Uma santa, que me deu uma impressão também, foi uma Santana com dez meninas em redor. Eu e Elisete trabalhando, mas ela sempre fazendo as feições muito mais bonitas. Ao tentar identificar as peças de cada um, constata-se que Luís assina tanto as suas quanto as de Elisete. Tudo é uma coisa só – ela própria diz –, nunca me zanguei com isso. Nem tenho vontade de assinar meu nome nas minhas peças. Aprendi a trabalhar no barro com minha família, aqui em Tracunhaém mesmo, onde eu nasci, em 1944, e vivo até hoje. Lá em casa todo mundo fazia jarra, pote, essas louças. Comecei assim, depois foi me dando vontade de fazer figura de bicho e de gente. Com os tempos fui aperfeiçoando, e, quando a gente se casou e pegou a trabalhar junto, eu tinha fé que ele ia trabalhar tão bem quanto eu. Foi difícil ele pegar a prática. Eu insistia. Não é possível você não conseguir, tem que dar um jeito. Eu dava até o barro aprontado. Mas qual, a feição dele ainda hoje é inferior à minha. Ele acha que isso é porque ele tem muita preocupação. A gente trabalha muito. Há uns tempos caí doente, as pernas inchadas. Aí veio a intenção de encompridar as saias das figuras, feito as de santo. O trabalho dos dois, sobretudo nas esculturas de grande porte, se assemelha muito ao de Zezinho de Tracunhaém: o mesmo tema (São Francisco, São Pedro e Nossa Senhora), o tamanho natural, a mesma tinturação com café, o rebuscado do panejamento... Tudo, ao que parece, assumido com tranquilidade por Luís e Elisete. Zezinho já reclamou muito, mas agora ele deixou isso de banda, não liga mais. Há, no entanto, no conjunto das peças do casal, uma maior dinâmica – nos temas, nas expressões, nos panejamentos.

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Luís e Elisete

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Elisete conta que nunca foi à feira vender seus trabalhos. Mesmo em criança, quando fazia bichinhos em quantidade, entregava tudo a um revendedor, em sua casa, onde fica quase todo o tempo ainda hoje. A venda mais permanente fica por conta de Luís. Ele reclama dos turistas que aparecem no museu e saem logo à procura da casa de Zezinho. Ele é mais conhecido e tem mais forma, quer dizer, suas peças são mais bem-acabadas, tanto nas feições como nas roupas. O barro é bem vermelho e muito liso. No museu, povoado sobretudo de santos, há peças, principalmente as de tamanho natural, onde Elisete fez apenas o rosto. Outras, semelhantes, foram totalmente trabalhadas por Luís. Nos santos pequenos, de 30 a 40cm – às vezes feitos somente por um deles –, Luís e Elisete dão uma tonalidade cinza-chumbo, quase negra, conseguida por um sistema de cozimento dentro de uma jarra, coberta de pó de serra. Esse processo só é utilizado por eles na cidade. As santas, figuras com variados gestos de mãos e cabeças, sugerem sempre uma postura de religiosidade suplicante. Há também muitas figuras de São Francisco cheias de pássaros, e que são as peças de mais procura. Além dos santos, que tem muito gosto de fazer, penosos como os das igrejas, Luís se dispõe a atender ao que o pessoal pedir: gente com enxada, com jerimum, com cachimbo... Dos bichos que fazia, ficou com o tatupeba, peça muito interessante, de aproximadamente 35cm, e ainda hoje muito procurada. Luís e Elisete vivem exclusivamente de sua arte, sustentando ainda seus dois filhos. Só quando o movimento enfraquece muito é que vou pelos engenhos, vendo se acho umas pinturas de parede. O mais, é tudo aqui mesmo, nesse chão. O barro eu compro numa olaria e pago para entregarem em casa. Faço uma mistura de massapê, areia e barro vermelho, que é para enfraquecer, senão racha as peças no forno. A gente também paga uma pessoa para pisar o barro. Depois nós

enrolamos ele num plástico e deixamos passar três dias curtindo, pra sustentar a água. Aí a gente faz as peças com as mãos, com uma faca, um pincel e essa espátula de bambu. Depois da peça alevantada, mas ainda mole, se pega um arame grosso, vergado, e vai-se furando a peça toda – furando e alisando logo, quer dizer, os furos só ficam pela parte de dentro. Isso é pra não estourar no forno. Foi um rapaz que viu Zezinho fazendo assim e me contou. Muita gente ainda não sabe disso. Eu seco as peças aqui durante três dias. Depois vem a queima por vinte e quatro horas. Primeiro queimava no forno de um amigo. Agora já fica tudo aqui mesmo, nesse forno que eu construí. As vendas variam bastante. O inverno, de modo geral, tanto desestimula o passeio do turista como chega a interferir no mecanismo de compra das galerias, que passam muitas vezes a se abastecer em fontes mais acessíveis. Essas dificuldades são, em muitos casos, supridas pelos próprios artistas que, de carro alugado ou de ônibus, passam a entregar suas peças no domicílio do comprador. Solução de certo modo precária, entre outras coisas em virtude da própria natureza do material. A gente gosta de Tracunhaém, mas tinha vontade de morar numa cidade maior, uma cidade de passagem. Ambos participaram, em 1975, de uma exposição no Museu do Açúcar, em Recife. Contam, com animação, a visita da pessoa encarregada, e como foi boa a compra dos santos. Já me sinto tão conhecido que posso levar minhas peças até pra o Palácio do Governo.

Tracunhaém (PE), 1975.

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Luís e Elisete

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Severina Batista Travar conhecimento com Severina levou tempo. Anos de visitas a Tracunhaém, além de todo um período de pesquisa, e Severina inexistia. Nenhum dos santeiros entrevistados se referia a ela, mesmo diante da pergunta direta sobre a atividade de outros artistas. Finalmente, vencendo a timidez que a mantinha como que bloqueada, omitida no seu canto, a mulher se apresenta. Toma a iniciativa da abordagem e convida para sua casa. Sou Severina, nasci em Tracunhaém, eu e mais dez irmãos, sendo que seis morreram, um mora no Recife e três aqui. No meu registro marca quarenta e três anos, mas eu acho que está errado, tenho menos, embora esteja muito acabada. Lutei demais na lenha, pelos engenhos. Tirava feixes de lenha na mata, pagando um tanto, pra depois revender. Hoje, os outros donos da mesma terra deixam tirar sem cobrar nada. Já abandonei esse serviço, mas, quando quero, ainda tiro pro uso da gente mesmo. E quem quer revende. Eles sabem que os pobres precisam e deixam. Minha mãe era louceira: fabricava pratos, potes e bichinhos, que meu pai ia vender na feira. Isso, junto com o roçado onde ele trabalhava, foi que deu pra criar todos nós. Casei com um homem que também fazia louça e tinha roçado. Levei muitos anos só ajudando ele: tirava lenha e escolhia o barro. Tive treze filhos, sendo que só criei três. Um já está com dezenove anos, é bombeiro de fogo na base aérea e está muito satisfeito. O outro trabalha na cerâmica, aqui perto, por produção. Só é ruim quando a máquina quebra. Ele não é fichado, e aí fica sem nada. Mas mesmo assim ainda é melhor do que quando cortava cana nos engenhos. E tem essa mocinha de dezesseis anos que está no segundo ginasial, aqui em Tracunhaém mesmo. Em 1973, somando à necessidade de conseguir mais um meio de vida o crescente interesse pela arte popular e o estímulo de seu marido, Severina iniciase na escultura do barro.

pra ele e capim pro homem. E vai trocando o lugar – planta pra ele hoje e, quando colhe, planta o capim pro homem. Mas as lavouras que ele planta há cinco anos não têm dado bom resultado. A terra é fraca, tem que ter outra coisa pra ajudar. Aí é que veio a ideia do carvão: a gente compra os sacos a um homem que traz grandes carregos e depois vende a retalho. Só que do meio pro fim é tanto pó que às vezes não dá nem pra tirar o dinheiro que a gente empregou. Mas assim mesmo ainda é o que ajuda na feira. Trabalho pra danar. Quando é de noite estou bêbada de sono e só quero dormir. Dá trabalho caçar o barro e trazer pra casa. Só eu sei: o preto e o vermelho, nem fraco, nem forte, na continha, senão quebra. O povo diz que quebra por força da lua, mas pra mim é a dosagem. Já quebrei muito, mas agora acertei. O barro tem que queimar mais de doze horas. Tem que saber controlar o esquente e o caldear. Pra começar, o fogo fica do lado de fora do forno e a gente vai controlando a fumaça preta que vai saindo. Quando ela pega a ficar branca, está na hora de caldear, e aí a gente mete o fogo pra dentro. Quando as labaredas aparecem em cima do forno, e os cacos ficam feito brasa, está bom. É só deixar esfriar mais doze horas. Perguntada sobre outros artistas, responde: Tem muitos trabalhando por aí. Conheci Lídia, e se quisesse faria os mesmos santos que ela, com aquelas golas, aqueles mantos... Mas prefiro os meus. E sobre Tracunhaém: Agora, o que tem de melhor mesmo é a feira. E eu nem tenho tempo de ir. Mas acho ótimo tanto carro, tanta gente... Pra quem tem dinheiro pra comprar as coisas é bom. De todo jeito, a alegria da feira é para todos! Se essa feira se acabar, pra mim é um desgosto, é o fim do mundo. Sua exigência mais premente, no entanto, parece ser um mercado maior e mais sistemático. Mais freguês. Tem freguês que volta, mas só depois de muitos tempos, dizendo que gostou muito. Tracunhaém (PE), 1975/76.

Os bonecos estavam tendo saída demais e ele me dizia: ‘Vê se consegue, Biu, vai pelejando!’ Tanto pelejei que consegui, e até me acostumei. Pego o pedaço de barro, piso, bato, e vou fazendo os olhos, a venta ... Aí vejo a cara, a vestiária e pronto. Penso e faço. Quando eu vendo me animo toda, e tenho vontade de fazer mais. Tudo diferente. Não sei fazer cara do mesmo jeito... Tem gente aí que quer ser madame e faz cara de marca (moldada). Comigo não, faço tudo de minha cabeça. Gosto demais de fazer esses bonecos. Se tivesse encomenda faria sem parar. Nas esculturas alongadas de textura áspera e mantos redondos com riscos profundos, os rostos apresentam uma acentuada singularidade: em um grupo de vinte santos, quase todas as fisionomias são diferentes. Além dos santos, bichos e figuras zooantropomorfas seguem o mesmo estilo. Sempre em barro natural, suas peças variam em torno de 30 a 40cm. Severina executa quase tudo, em seu processo de produção: cuida da lenha, do barro e modela. O marido deixou de fazer louça e ficou somente no roçado e na complementação das peças da mulher: é ele que dá o acabamento na base, cortando o arredondado, e, usando uma pequena espátula, também se encarrega de deixá-las ocas e leves. Participa ainda da queimagem. É ele na roça e eu nos bonecos. Ele planta, no terreno de um homem, uns plantios

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Severina Batista

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Betinho Carlos Roberto Gomes da Silva, conhecido como Betinho, nasceu em Tracunhaém, há dezoito anos. Pra não dizer que não saí daqui, quando eu tinha dois anos, passei três meses em Itabaiana. Fazem seis anos que eu trabalho com o barro; quer dizer, com esse tempo, mas ou menos com doze comecei ajudando o Luís (Luís Tude da Silva, outro artista de Tracunhaém). Embora já fazendo santos – que lembram os de Luís – e máscaras que mostram seu domínio artesanal, foi com uma nova linha de produção que Betinho se firmou em Tracunhaém. Com a mesma segurança com que modela esses temas, passou a fazer as surubas, como ele mesmo chama suas novas composições. Corpos roliços, sem braços, bem alisados, contorcidos em abraços eróticos ou superposições acrobáticas – agrupamentos que nada têm a ver com a tradicional temática santeira de Tracunhaém. Meu pai sempre trabalhou em olarias. Antes, tinha olaria própria; hoje, ele trabalha na olaria dos outros. Tenho dois irmãos nesse mesmo trabalho. Tenho um irmão, Severino Gomes da Silva, que foi quem iniciou as peças grandes com Zezinho. Ele tem muita iniciativa, mas agora está na olaria. Quando fui trabalhar com o Luís, só passei quatro meses, não estava compensando. Eu também ajudava meu pai na olaria. No tempo que andou um antiquário aqui, comprando santo, eu fiz umas figuras para ele. Depois fui fazendo, e estou me dando bem: santos, surubas, peças de terror, carrancas, máscaras... Gosto de tudo, mas gosto mais das surubas. Nas menores, com duas ou três

figuras, sempre faço a base em forma de coração, língua ou um chuchu. A turma está encarnando muito em cima, aí eu gosto mais. Eu nem esperava – faço as coisas sem querer. Ninguém me deu orientação. Não trabalho nem com livro nem com nada, só de minha cabeça mesmo. Às vezes tenho vontade de pintar um quadro. Tudo meu, tem que ser na calma, nem que eu só faça uma peça por semana. Se eu fizer uma peça na carreira, com ganância, não adianta, só sai derrota. Se eu pegar com muito interesse, eu não consigo. Só se for aos poucos, sem forçar a natureza. Aí vai chegando. Eu trabalho sozinho mas transo com os outros. Todo mundo aqui tem uma criação legal. Eles acham minhas figuras divertidas, diferentes. Um artista de Tracunhaém, diante de um dos agrupamentos eróticos de Betinho, comenta que acha engraçado, mas omitindo, na sua impressão, o jogo sexual retratado pela peça. Uma outra artista comenta que acha a escultura triste (expressão usada com sentido de desagrado). Tem gente que fica olhando estas peças e vendo safadeza. Já outros, até moça daqui, olha sem malícia. Eu acho bonito o jeito, o trançado dos corpos. A princípio, as surubas de Betinho eram como que cobertas por um grande lençol, de dentro do qual surgiam lances de cabeças e pontas de pés, sugerindo um amontoado de gente. A seguir, ele passou a modelar composições de três, quatro figuras, em uma luta-livre erótica, agressivas na transação grupal. Eu não trabalho bem em santo. Esse negócio de queimar santo eu não gosto. Só se for obrigado, pra ganhar dinheiro. Botar Nossa Senhora no fogo, eu me desanimo mesmo. Rezo pra não me condenar por estar queimando. Por isso eu saí dessa linha. A minha agora é legal, não tem esse problema. Eu ainda vou fazer uma peça que todo mundo vai se espantar. Coloco meu trabalho em consignação, em uma galeria de Olinda, de um artista conhecido meu, ou então vendo aqui em casa mesmo. Compro o barro nas olarias e eu mesmo preparo. A queima também é feita nas olarias, em troca de um agrado. Fora esse trabalho no barro, por aqui os outros ofícios são trabalhos de pedreiro, servente, ou então a cana. Na moradia pequena, simples, em que vive com os pais e cinco irmãos, Betinho encontra-se em situação bem melhor que a de outros artistas da cidade. O importante é que eu não quero imitar ninguém. Nem quero que ninguém me imite. Eu não sou de farra, não fumo, nem bebo, nem tenho vício nenhum. Nasci pobre, morro pobre. Não quero nada bem luxuoso. Se eu pegar nome, tanto faz. O que eu queria era um local pra trabalhar. Aqui na minha casa é muito quente. Eu tenho vontade de comprar uma casa, e ajeitar só pra trabalhar. Tracunhaém (PE), 1977.

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SANTEIROS DO MASSAPÊ

Betinho

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A família Vitalino Zé Caboclo e Família Manuel Eudócio Zé Rodrigues Ernestina Manuel Antônio, Luís Antônio e Odete Zé Henriques e Ivonete

Na passagem do agreste-caatinga para o sertão, em sua maior parte rodeada pela retorcida e seca caatinga, e com uma área menor de brejo – úmida e fresca – encontra-se Caruaru. Cidade “boca do sertão”, uma das mais importantes do Estado de Pernambuco por sua intensa atividade comercial, Caruaru tem como polo de atração a sua feira: um imenso e buliçoso painel no qual, em manchas coloridas, nas quartas-feiras e, sobretudo, aos sábados, sobre a praça e ruas próximas, se derrama a vida da cidade. Espaço econômico, social e cultural, a feira de Caruaru tem tudo o que a gente quer. Aí as barracas de verduras, frutas, cereais, carne verde, de charque, de sol, temperos, ervas, goma, beiju, tapioca, bolos de todas as qualidades, mariola de goiaba e de banana, muitos outros doces, queijos – tudo em exposição com direito a prova – delineiam, de um extremo a outro, uma parte da periferia da feira. Em outra parte, em prosa ou em verso, exprime-se o discurso da medicina popular, com seus pequenos e mágicos vidrinhos ou lambedores e garrafadas, quase sempre coloridos. E a seu lado encontram-se os ferros novos e velhos, servindo para muitos gostos e fins, e as selas e arreios – expressão clássica de uma arte integrada aos costumes da região. Em seguida, vêm as barracas com bolsas, sacolas, sandálias, e muitas roupas – predominando o nylon – em cores fortes, fazendo composições com flores, jarros, vasos e bacias de plástico, também vivamente coloridos. Para completar este cenário, há as redes, o fumo, as cachaças, a seção de flandre com suas bacias, “alcoviteiros”, canecos, funis... Do outro lado aparecem os brinquedos: caminhões, trenzinhos, carros, aviões, cata-ventos – tudo feito com o aproveitamento de latas – e as muitas bruxinhas de pano... Passeando pelo miolo da feira, a aparente ordenação encontrada na periferia desaparece. Surge então um emaranhado de barracas coladas umas às outras, com muita gente vendendo, comprando ou simplesmente admirando redes, colchas de retalho, bolsas de couro, cintos, bijuterias, muitos sapatos – sobretudo de plástico –, trabalhos em agave e sisal. Aparecem também algumas barracas avulsas de cerâmica – com boizinhos, maracatus, bumbas, cinzeiros –, que se espalham até o encontro de um espaço, não muito amplo mas concentrado, de potes, jarros, pratos, jarras, moringas e brinquedos de barro. Com exceção da cerâmica figurativa, esse mundo de mercadorias, apesar de sua grande variedade, apresenta vários pontos em comum: um deles é a clientela que atinge, fundamentalmente local; outro, o poder aquisitivo dos vendedores, todos eles igualmente muito pobres; outro ainda, o anonimato dos produtores em relação à sua produção – todos no mesmo chão social. Sem rupturas, integrado ao mesmo espaço, destaca-se o grupo de ceramistas figurativos de Caruaru. Os artistas populares, como eles próprios se denominam – no lugar reservado aos seus bancos, na beira da calçada, ao lado da igreja – fazem parte de todo aquele povaréu que compra e vende; mas representam, sem dúvida, a grande atração da feira. A história da cerâmica de Caruaru vem de longa data. Nas pequenas olarias, muitas vezes de propriedade familiar, o corpo hábil do ceramista, funcionando como uma máquina, continua produzindo um grande número de jarras, filtros, potes, pratos, panelas – enfim, as louças necessárias para o uso caseiro de comunidades como a sua. Ao lado dos adultos, as crianças dedicam-se à moldagem de bichinhos, miniaturas de louça utilitária – brinquedos – levados à feira, juntamente com a produção dos pais. Os artistas populares de Caruaru, dando nova forma ao barro – os bonecos –, delineiam um outro rumo para a cerâmica popular local. E é no surgimento e ampliação desse rumo que se articulam a feira de Caruaru e a figura do Mestre Vitalino. Nascido em 1909, em Ribeira dos Campos, distrito de Caruaru, Vitalino, como é usual na região, manejava o barro desde os seis anos de idade. Aproveitando as sobras do massapê utilizado

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por sua mãe, fazia cavalinhos, bodinhos e outros pequenos animais. Com esses brinquedos – vendidos na feira, junto com a louça de fabricação materna – constituía ele sua primeira clientela – as crianças da região. Ainda em Ribeira dos Campos, aperfeiçoando seu trabalho, dos bichinhos de antes, Vitalino passou a fazer bonecos isolados, ou em pequenos agrupamentos representativos de cenas locais. Com essa transformação, criava uma nova dimensão para o manuseio do barro: não mais o brinquedo ou o objeto utilitário, mas o comentário e a descrição da vida regional, em forma de escultura. A mudança de Vitalino para o Alto do Moura, em 1946, estimulado por Augusto Rodrigues, foi fundamental para o desenvolvimento dessa nova dimensão. A proximidade da feira, o acesso mais fácil ao artista e, principalmente, o encontro, no Alto do Moura, com uma população já voltada para a cerâmica, permitiram que Vitalino ramificasse e ampliasse sua nova experiência de transformação do barro. O reconhecimento e a divulgação da singular criação artística de Vitalino começariam a compor um crescente interesse por essa forma de manifestação popular, animando o artista no desenvolvimento de sua produção. Nas histórias que ouvia, nos fatos presenciados, e naqueles dos quais participava, Vitalino encontrava motivação para fixar, no barro, o mundo a seu redor: terno de zabumba, família de retirantes, enterro na rede, festa de casamento, o marchante cortando carne, o aguadeiro carregando água, pescador de anzol, cavador de açude no sertão, mulher carregando água, mulher apanhando algodão, casa de farinha, carro de boi, caçador de nambu, barbeiro de feira, delegado, doutor vacinando, fotógrafo, touro de peito arfado... Peças sempre fortes, expressivas em sua singeleza, comunicativas, falantes, no massapê alisado e bem cozido, que passaram a despertar o interesse de outros ceramistas do Alto do Moura. Na feira de Caruaru, a “banca” de Vitalino funcionava não só como local de exposição e venda de seus bonecos, mas também como ponto de encontro dos compadres e admiradores da novidade de seu trabalho. Em 1947, com a Exposição de Cerâmica Popular Pernambucana, organizada por Augusto Rodrigues e Joaquim Cardoso no Rio de Janeiro, a fama de Vitalino ultrapassou o âmbito regional. A divulgação mais ampla e sistemática de seus bonecos de barro dá início ao desenvolvimento de um outro mercado – intelectuais, colecionadores, donos de lojas, turistas, começaram a afluir com maior intensidade e frequência a Caruaru, atraídos por esse novo valor, a arte popular. Pouco a pouco, da vizinhança familiarizada com o barro no Alto do Moura, começaram a surgir os primeiros seguidores de Vitalino. Discípulos de um Mestre que transmitia com simplicidade suas experiências e que de bom grado via a participação de outros ceramistas na atividade que o destacava. E, assim, foram se sucedendo Zé Caboclo, Manuel Eudócio, Zé Rodrigues, Ernestina, Manuel Antônio, Heleno Manuel... A relação entre mestre e discípulos, vivida em clima de amizade e solidariedade, criou o espaço, possibilitou o nascimento de uma “escola” que se desenvolveria gradativamente em torno de Vitalino, para desencadear com sua morte, em 1962, a afirmação e o definitivo reconhecimento do núcleo dos artistas populares de Caruaru. O Alto do Moura, arruado ladeiroso, de terra batida, com duas vias mais definidas e muitos becos, a seis quilômetros de Caruaru, tornou-se o reduto desses artistas, cada vez mais numerosos. A principal rua local recebeu o nome de Mestre Vitalino, e, entre seu início, com a “Fabricação de Louça Utilitária” de Heleno Manuel da Silva, e a outra extremidade, com a casa e o museu de Vitalino, sucedem-se as casas e oficinas dos artistas populares mais conhecidos. O relacionamento fraternal criado pelo Mestre é revivido hoje pelos seus seguidores. Com a melhor boa vontade, transportam peças de outros companheiros juntamente com as suas. E

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é frequente, na hora de uma fornada, serem incluídos trabalhos de um vizinho que não tem bastantes peças secas para justificar uma queima individual. Também um novo modelo, lançado por um deles, é em curto espaço de tempo assumido por todos. Este clima, fruto de harmoniosa convivência em torno de uma mesma atividade e de um mesmo Mestre, foi e é alimentado igualmente pela possibilidade de escoamento da produção. Os artistas do Alto do Moura encontram um mercado relativamente seguro para seus trabalhos. Tanto o movimento da “cidade boca do sertão”, multiplicando suas atividades, como a divulgação e a fama dos bonecos de Caruaru contribuem para firmar e expandir o mercado dos ceramistas locais. Na motivação dos clientes, a descoberta de uma expressão artística genuína, o encontro de uma “literatura de cordel” feita de barro – registrando acontecimentos –, ou ainda o modismo crescente, um festivo entusiasmo pelas coisas folclóricas... Tudo isso acelerando o mercado, o mercado acelerando o ritmo, o ritmo acelerando o artista. Uma encomenda atrás da outra – trabalho cerrado quase sempre das sete horas da manhã às onze da noite. O pagamento, adiantado, impõe prazos inadiáveis – tudo a preço pouco compensador. O tempo de modelagem, secagem, queima e pintura absorve deficitariamente a remuneração da peça. Para suprir suas necessidades básicas, esses artistas são levados a aceitar grande número de pedidos. Quem pode, chega a contratar ajudantes, encarregados de tarefas complementares como amassar o barro, colocar as peças no forno e até mesmo, se for o caso, pintar as figuras. Outra alternativa é integrar toda a família no processo de produção. A maioria dos artistas mais conhecidos deixou de ir à famosa feira. O transporte e o risco da quebra são dificuldades que contribuem para essa mudança. A mesma clientela, que antes procurava na feira os seus bonecos, frequenta agora o Alto do Moura. Além disso, uma ida ao costumeiro local de vendas e encontro representaria para eles, hoje, uma impossível interrupção de trabalho, dada a incessante necessidade de modelar o barro. Por isso aproveitam todo o tempo disponível para atender às muitas encomendas – fonte de sua sobrevivência. Os discípulos de Vitalino, herdando dele não apenas a técnica, mas também a temática, recriam suas peças mais marcantes, incorporando, no entanto, novos temas. O crescimento da cidade e a expansão dos meios de comunicação trazem, para o figurativo regional sertanejo, elementos urbanos e comentários de fatos novos, nacionais e internacionais. Aos bonecos chamados profissionais – médicos, dentistas, advogados, professores – iniciados por Vitalino, acrescentam-se o funcionário da companhia de eletricidade consertando poste de luz, o namoro do soldado com a moça de minissaia, conjuntos de jogadores de futebol, Apolo XI... Com esses registros, fruto da permanente assimilação e interpretação dos costumes e ocorrências, os ceramistas enriquecem seu repertório artístico. No Alto do Moura é presença marcante, com elementos incorporados ao seu processo, a escola do Mestre Vitalino. Sua temática – embora reformulada – conserva ainda as mesmas figuras e cenas típicas do repertório dele. A técnica para construção dos bonecos, precisa e segura na experiência acumulada de tantos anos, pouco varia. O barro – massapê – vem das mesmas margens do rio Ipojuca e é amassado e preparado da mesma maneira. O instrumental continua sendo composto de gravetos roliços, espátulas improvisadas, cuia de água onde o dedo é molhado para o alisamento da escultura. Uma das poucas inovações está na utilização de um pedaço de pente fino para o riscadinho do cabelo dos bonecos. A mão do artista é, ainda, a principal responsável por todo o processo de transformação do barro. As esculturas, quando no massapê natural, recebem o mesmo tratamento: os olhos, representados por bolinhas de barro pintadas de branco, com um ponto preto no centro. Se pintadas – em tinta a óleo brilhante e

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A família Vitalino cores vivas –, conservam em sua decoração a mesma singeleza. Os fornos circulares, de pedra e tijolo, rejuntados com barro, presentes em quase todos os quintais, prestam com eficácia o seu serviço. E é neste mundo, ainda tão cheio da presença de Vitalino, de suas lições de vida e de arte, que vivem os artistas de Caruaru. Multiplicando hoje as esculturas do Mestre e acrescentando outras, continuam a expressar a afirmação de uma sabedoria que penetra nos acontecimentos, oferecendo um resultado singular. Se, por um lado, se torna praticamente impossível identificar o trabalho de cada artista sem o seu carimbo na peça, por outro, seus bonecos, inconfundíveis, representam, em qualquer lugar, a cerâmica de Caruaru.

Nunca me criei no barro. Quando era pequena, e mesmo no tempo de solteira, vivia no roçado de meu pai. Depois que eu casei com Vitalino, trabalhei nos roçados em que a gente morava. Só depois que ele faleceu é que trabalhei seis anos nas terras dos outros, porque não tinha terra. No tempo de casada, eu trabalhava pra ajudar ele; mas agora, com a carestia de vida, não tem nada que adiante: parece que está tudo se trancando pra mim. Eu tive muitos filhos, nem sei quantos foram. Eu acho que, se tivesse criado tudinho, eram dezessete a dezoito. Vivos, só tenho cinco. A casa do Alto do Moura onde Vitalino viveu, desapropriada após a sua morte pela Prefeitura de Caruaru, é hoje um museu. Os poucos móveis de outrora, alguns objetos de uso pessoal, vários retratos nas paredes – mostrando ocasiões em que recebeu homenagens – compõem o ambiente. Em um quarto anexo funciona a oficina dos filhos solteiros – Amaro e Maria José – que ainda permanecem com a mãe, Joana. Os demais – Manuel e Severino, que continuam a arte do pai – casaram-se e instalaram-se na vizinhança. Antônio, que também trabalhava no mesmo ofício, foi morto a 13 de julho de 1977, em frente à casa de sua mãe, no Alto do Moura. Da família, somente Joana não trabalha no barro. Maria José, tratada carinhosamente por Mariquinha, faz miniaturas. Em um dia de trabalho produz uma dúzia dessas peças, ou então duas ou três das maiores que não ultrapassam os 10cm. Suas preferências são o Trio Nordestino (três figuras de tocadores de pífano) e a bandinha (conjunto de quatro figuras, com dois pífanos e dois zabumbas). Manuel começou a trabalhar com o barro em 1942, aos sete anos de idade – primeiro fazendo brinquedos, depois passando para os bonecos. Quando a gente veio do sítio de Campos pr’aqui, em 1946, ninguém fazia ainda esses bonecos.

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Era só bonequinho e bichinho de brinquedo. Meu pai foi que começou os bonecos. Ele e Elias nos bonecos e compadre Zé Caboclo nas moringas. Aí foi chegando Zé Rodrigues e todos os outros... Elias era um grande artista: pode-se dizer que foi o maior daqui. Mas correu cedo, há muitos anos está no Recife. Ele é porteiro de um prédio. Hoje eu faço casa de farinha, enterro, batizado, Lampião, Maria Bonita, cavalo, casamento matuto, vaquejada... Cada peça tem um jeito próprio. A família voltando da roça tem o homem com a enxada, a mulher, os filhos, o balaio de milho, o feixe de lenha, o jerimum... Pode mudar coisa pouca na posição. Tem também o pescador com um anzol em uma mão e o peixe em outra. Dentro deste estilo de trabalho tudo se vende. Sempre tipos nossos, como a família de retirantes, que foi ideia do pai e que ele chamava de família fugindo da seca. Essa peça é a mudança, com a burrinha, a velha montada, duas malas, o homem, a mulher, os filhos, o cachorrinho, a cabra, o saguim, o louro – a mudança completa. Sempre dentro do estilo dele. Ia precisar de muita ideia pra criar coisa nova. Na criação do barro, meu pai criou tudo! Até hoje fazemos sempre esses tipos nossos. Apesar da mesma linha e do seriado da produção, com peças semelhantes, os artistas, e inclusive as crianças, conseguem prontamente identificar, com a maior precisão, a autoria de cada trabalho – até mesmo através de fotografias. Esse caso de união no Alto do Moura foi também uma herança que meu pai deixou na família. Ele dizia: ‘O mundo é para todos. Todos precisam viver.’ Até hoje a gente leva freguês na casa dos colegas e eles fazem o mesmo com a gente. Outro dia apareceu um carro oficial com um pessoal tomando nota aqui de todo mundo, pra gente pagar imposto. Eu fui até Brasília pra ver o que se

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podia fazer, mas aí nem precisei falar com o presidente. Um deputado disse que se encarregava de acertar com o governador. E nunca mais falaram nisso... Severino, em 1971, foi a São Paulo com um filho para participar de uma grande promoção em torno da arte popular. Levei barro e trabalhava na frente de todos. Elias, meu filho, também trabalhava e carimbava suas peças com o mesmo carimbo nosso aqui: Vitalino Filho. Foi uma grita geral! De lá pra cá ele passou a se assinar Elias mesmo. O valor da gente veio de meu pai, e a gente tem o maior prazer em altear o nome dele. O aluno aprende de acordo com o professor, e isso veio de meu pai. Então a gente aqui da família e todo mundo ficou naquele estilo dele. Ele ficava trabalhando, vinha um, vinha outro olhar, e ele achava bom. Ainda é assim – um diz ao outro as posições; um vende na barraca do outro. Severino afirma que, além das figuras que vieram da imaginação de Vitalino ou de seus discípulos diretos – Manuel Eudócio e Zé Caboclo –, ele também já acrescentou alguns temas à cerâmica de Caruaru, como a aula de médico e o guarda-mosquito. De março a junho a venda aqui é ruim, mas nas férias a gente não dá vencimento. Tenho muitos filhos ajudando – aqui são nove filhos. Agora mesmo parei tudo e estou ajudando meu filho Elias para dar conta de uma encomenda. São dois mil agentes de viagem. É uma encomenda do Recife. Espalhadas no chão, encostadas umas às outras, essas peças aguardam secagem total para

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serem levadas ao forno. As pequenas figuras dos agentes encontram-se, uma por uma, sentadas em sua mesa de trabalho. Um livro, um porta-carimbo e um telefone, além do título da peça impresso na frente da mesa, indicam os detalhes da encomenda. O conhecimento da arte daqui, por aí afora, é grande, mas as condições da gente são essas. Água, escola e socorro de urgência são as coisas mais difíceis – aqui a gente vive desabrigado. Órgãos governamentais ou grupos particulares promovem os feitos de Vitalino através da divulgação de discos, com o Mestre tocando pífano; de posters, com impressão de peças suas; do teatro, com enredo sobre sua vida, etc. Severino aponta para a ausência, em geral, de qualquer ganho da família com essas promoções. Frequentemente não são consultados nem recebem qualquer comunicação sobre tais eventos. Se tivesse uma cooperativa do governo que afiançasse a gente, aí a gente aguentava os tempos mais difíceis... Eu, com meus filhos, ainda passamos aperto, mas conseguimos aguentar. Mas tem gente que está com quinhentas, seiscentas peças nesse tempo mais difícil. Então chega o intermediário, bota qualquer preço, e ele entrega... Amaro, o filho mais velho de Vitalino, nasceu em 1934. Peguei a trabalhar no barro com nove anos de idade. Não conheço outro trabalho. Meu trabalho é esse mesmo, meu roçado é esse só. Não é melhor pra mim porque faço devagar demais. Aí, só faço assim: caro e pouco. Também faz uns quatorze anos que tive um panariço nesse braço e ele ficou esquecido. O barro eu pego com Manuel Galdino, que é meu colega de arte. Ele é muito bom, faz

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Zé Caboclo e Família máscaras. O trabalho dele é diferente do da gente. Ele nem faz os bonecos que nós fazemos nem a gente faz os dele. Meu trabalho eu boto na sua casa. Quando vendo, dou um agrado a ele. Todo sábado tiro as peças que tem lá e levo pra feira. O que tem mais precisão aqui é a água. De vez em quando sai uns assuntos, mas se dois, três, quatro se animam, os outros esmorecem. Estamos comprando água aqui de inverno a verão, ou então a gente vai buscar no barreiro, na cacimba. Quando sangra, que enche até transbordar, é bom; quando fica a água pouca, aí só dá pro serviço. A família de Vitalino não conseguiu, até hoje, concretizar a expectativa de uma vida melhor, como resultado de uma retribuição à memória do pai. Se ele alcançou uma posição de destaque e liderança na comunidade do Alto do Moura, o mesmo não ocorre com sua família. Seus filhos integram-se ao quadro de ceramistas daquele vilarejo da mesma forma que os demais artistas. A fama do Mestre, o nome Vitalino Filho, assinado em seus bonecos, não chegam a constituir fator suficiente que lhes garanta qualquer espécie de realce ou que reverta em algum benefício maior para a família. Na verdade eles vivem, hoje, uma das situações mais carentes daquela comunidade de ceramistas, coisa que se revela, inclusive, na dificuldade de abordá-los. Nos diálogos, quase sempre, a par do orgulho e da consciência do que representa o nome do pai, deixam entrever a tristeza e a impotência de não conseguirem partilhar, de forma mais direta e concreta, de toda essa exaltação em torno da arte popular de Caruaru, que tem como marco a figura de Mestre Vitalino. Caruaru (PE), 1977.

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Zé Caboclo foi uma presença muito significativa no Alto do Moura, durante os seus cinquenta e quatro anos de vida. Desde os primeiros tempos até seus últimos dias, no exercício da arte de modelar o barro, foi o companheiro inseparável de Manuel Eudócio. Em pesquisa coordenada por Hermilo Borba Filho, Zé Caboclo deixou registrado o seu depoimento: ... panela, pote, jarra, alguidar – fazia minha mãe e uma irmã que eu tinha... Eu, pequenininho, fazia esses cavalinhos de barro, esses ferrinhos de engomar... Tinha uma tia – tia Valdevina – inventora dessas moringas, jarras... canos, aqueles canos pra casa. Ela fazia tanto vidrado como natural. Eu aprendi com ela. Eu já fazia essas coisas pequenas, mas não bonecos. Inventava essas outras coisinhas. Depois que Vitalino veio pr’aqui pra perto de mim, bom, aí eu e meu cunhado Manuel Eudócio começamos a fazer nossos bonecos. E eles começaram a gostar... Todas essas invenções de motivos de boneco, foi a gente que inventou: eu e ele. Eu e Manuel Eudócio... É, botava-se na banca a operação, o dentista, o advogado. Então os homens pegavam a chegar lá de fora: ‘Bom, Vitalino, o Zé Caboclo e o Manuel Eudócio já têm ali umas coisas que você não tem aqui: procure fazer...’ E ele (Vitalino) fazia também, ia atendendo, mas sendo ele o inventor, viu?... Depois o povo disse assim: ‘Vitalino, os bonecos dos meninos têm olho (inicialmente Vitalino fazia uns buraquinhos), você procure fazer

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também...’ Ele pegou a fazer... Então, por isso, pelos cantos que ele andou – por Brasília, pelo Rio, por todos esses cantos – ele começou a dizer que ele reconheceu que ‘Zé Caboclo que é o meu primeiro discípulo...’ Ele reconheceu também que pegou muitos assuntos, muitas novidades, pelo meu intermédio – de mim e de Manuel Eudócio, que foram os primeiros discípulos dele... O arame também é invenção nova: inventação minha e de Manuel Eudócio. Vitalino tinha uma suspeita de que o arame estrelava o barro, ele sempre fazia as peças sem arame. Depois ele disse: ‘Meninos, e esse arame dá certo?’ Eu disse: ‘Dá, Vitalino, dá. Não está estourando não.’ Aí ele começou a usar arame também... Era eu, Manuel Eudócio, depois Manuel Antônio, depois Zé Rodrigues. Aí começou a Ernestina, que era comadre dele... Embora seguindo os passos do Mestre, Zé Caboclo marcou sua arte fazendo peças que se destacavam da produção identificada como a cerâmica de Caruaru. Foram especialidades suas: moringas antropomorfas – encabeçadas por Lampião e Maria Bonita, peças que podiam ter até 1,20m de altura; esculturas da Virgem Maria – esboçando gestos diferentes, como braços cruzados, estendidos ou juntos em mãos postas, com vestidos de cores fortes, cheios de floresestrelas, como pétalas em riscos do mesmo tamanho; os grandes bois-bandeira e os cavalosmarinhos, assim como todas as figuras do maracatu e do bumba-meu-boi, coloridas. Falecido Zé Caboclo em 1973 – vitimado por esquistossomose –, continuam o trabalho dele sua mulher Celeste e seus oito filhos. No Alto do Moura, onde todos eles nasceram, vivem exclusivamente da produção dos bonecos de barro. Ao lado da casa, duas construções menores, mais rústicas, funcionam como oficinas: em uma delas trabalha o grupo feminino (Marliete, Socorro, Helena, Carmélia e também Celeste), no mesmo lugar em que Zé Caboclo executava suas peças; na outra, mais adiante, ficam os rapazes (Paulo, Antônio, José e Horácio).

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porção de barro, tomada para a modelagem de uma cabeça, ou de qualquer outra parte da peça, é exata – não sobra nem falta nada. O cálculo, seguro, garante a uniformidade de cada tamanho escolhido. Marliete é quem consegue a maior produção na família. Faço vários tipos, uma porção de coisas: maracatu, bumba, família retirante, zabumba Caruaru; faço cavalo-marinho gigante, Nossa Senhora do Vestido de Chita. Essa Nossa Senhora é a Nossa Senhora Auxiliadora. O mesmo modelo, só que faço o vestido todo cheinho de estrelinhas como uma chita. Foi papai que criou esse nome. Gosto mais de fazer grande. Faço muita miniatura porque o pessoal sempre encomenda, e eu tenho de fazer. Mas gosto mais de fazer assim: de 20, 50cm, 1m. No entanto, consegue o melhor desempenho exatamente nas miniaturas. Além de artesanalmente bem feitas, essas peças multiplicam-se com maior rapidez em suas mãos. Marliete é quem ganha mais dinheiro e dá mais para casa, apesar de fazer as peças pela metade do preço que faço – diz Socorro. Socorro é considerada a perfeccionista da família. Seus trabalhos destacam-se pela riqueza de detalhes e pelo refinamento artesanal. No princípio, quando as crianças eram pequenas, só tinha essa casa. E aqui os meninos ficavam vendo ele (Zé Caboclo) fazer e iam fazendo também. As meninas começaram a trabalhar com oito anos, e os rapazes com nove, dez anos. Horácio, o caçula, está começando agora. Ele está estudando. Pra não ficar o resto do tempo brincando no sol, por aí, chamo pra fazer uns brinquedinhos, e já está vendendo. Boi-bandeira e outros bichos, em miniatura, são a produção de Horácio. Com dez anos, o caçula parece centralizar as atenções da família: as meninas ficam atentas quando Celeste fala dele; Marliete mostra uma porca em miniatura, com seis porquinhos, que ele fez para brincar. Celeste não faz cerâmica figurativa. De suas mãos muito hábeis saem, em profusão, miniaturas de louça – pratos, bules, açucareiros, xícaras, etc... – pintadas a óleo, com o fundo de uma cor e desenhos florados em cima, e que são vendidas em lotes de duas, três mil unidades. Além desse trabalho, ela ajuda na pintura das peças das filhas, na colocação do material no forno e na operação de queima. Centraliza também a arrumação, de todas as peças feitas, nas prateleiras existentes na oficina. E ainda controla a venda e a embalagem. A radiola, trazida por Paulo de sua primeira viagem ao Sul, envolve a oficina das meninas com o som de discos ou do rádio. Elas pouco falam entre si, tão entretidas se encontram na modelagem de suas minúsculas peças. Na sala estreita, cada uma das moças tem sua mesa e, sobre ela, seu bolão de barro e seus instrumentos. Em uma produção organizada, as peças vão se sucedendo: cabeças, troncos e membros enfileirados esperam a necessária união. A pequena

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Por isso, só posso vender mais caro. Faço com mais perfeição e mais devagar. Trabalho de oito horas da manhã às dez da noite. Se não trabalhar assim, não dá mesmo pra viver. Eu faço pouco por dia. Minha produção é pouca. Só trabalho em miniatura. Faço volta da roça, bumba-meu-boi, maracatu, família de retirantes, jogo de xadrez, bandinha, zabumba Caruaru, presépio. Tudo em barro natural ou pintado, conforme o pedido. Eu sempre gosto mais de colorido, muito embora eu ache melhor fazer do que pintar. Pintura dá muito trabalho. Carmélia e Helena fazem os mesmos tipos que suas irmãs. Eu trabalho mais nesses tipos: é o que tenho mais encomendas, sendo que são tipos maiores que os de Socorro. Faço mais tudo pintado. Acho bom trabalhar e gosto também da arte. Aqui é muito difícil outro tipo de trabalho. O pessoal é nesse trabalho ou na agricultura, e na agricultura não dá não – diz Helena. As alternativas de trabalho em Caruaru são realmente poucas, como reafirma Socorro: Gosto de trabalhar nisso. Mas já faz tanto tempo, sempre a mesma coisa... A profissão não é muito boa, mas não tenho ideia de outra. Às vezes tenho vontade de costurar pra fora, mas não tem quem ensine. E penso que, se eu costurasse, não encontrava freguês como pro boneco.

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Como as filhas de Zé Caboclo, os filhos colocam do mesmo modo a questão do trabalho: O barro é ainda o que dá mais dinheiro. Os que vivem alugados nas lavouras dos outros ou mesmo os que têm sítio próprio, vivem mais atrasados. Apenas Paulo – o mais velho dos rapazes – conseguiu outro trabalho, como atendente de lanchonete. Mas, para isso, teve que sair do Alto do Moura e se aventurar em São Paulo, onde viveu durante dez meses. No momento está de volta à sua terra e ao barro, mas talvez não por muito tempo. Paulo faz velhos da roça, bandinha, boi-bandeira... Faz mais poucos tipos de peças do que Antônio, e são também grandes. Mas Antônio e José gostam mais da arte. Paulo não gosta, não. Ele pensa em voltar para São Paulo, acostumou lá – diz Socorro. José Antônio, Antônio Rodrigues e o pequeno Horácio formam um grupo com os dois filhos de Manuel Eudócio. Fazem quase sempre os mesmos tipos de peças que as moças, mas nenhum deles produz miniaturas. Fazem peças em tamanho maior, como por exemplo José, com seu boi-bandeira e seu cavalo-marinho, ambos de 20cm de altura. Além das esculturas, os rapazes encarregam-se também de tarefas mais pesadas – as providências necessárias quanto ao barro e à lenha, bem como o transporte de encomendas para Recife e outros lugares. Em geral, todas as peças executadas pela família são para atender encomendas, quase sempre já parcialmente pagas. Se, por um lado, esse procedimento representa a garantia de um mercado, por outro amarra a produção a uma remuneração que está longe de compensar o trabalho. A gente trabalha, arranja aquele dinheiro, mas é pouco pro trabalho que a gente tem. E se parou, já viu – não entra nada. E pra nós, ainda bem que somos sempre procurados. O pessoal sempre dá valor ao trabalho da gente. Continuando, Socorro comenta: Agora, esses novos que começaram é que não dá mesmo. Eles não dão valor à arte, vendem por qualquer preço. E aí não dá. Tem o barro pra comprar – não é muito caro, mas já está ficando pouco. Ainda tem a lenha – comprada também –, tinta, arame, pincel – isso tudo e o trabalho. O lucro é pouco. Quase todas as nossas peças a gente vende em casa. Essa história de ir para feira não está dando resultado. O turista que aparece lá só quer comprar besteira e barato. No transporte também quebra muita coisa. A ida à feira, aos sábados, foi reduzida à tarefa de compra de mantimentos e de algum material de trabalho: esmalte, arame, etc... Celeste e os filhos homens, às vezes, ainda colocam banca na feira. Mesmo assim, também eles estão deixando de ir. Não há complementação de tarefas na modelagem – cada um faz o seu boneco. Todo o barro e lenha são comprados em comum. As peças vão juntas para o forno à medida que uma determinada quantidade fica suficientemente seca – tudo já com a assinatura dos respectivos autores. O índice de quebra é mínimo, pois eles conhecem o barro e sabem que um dos principais fatores para uma fornada sem riscos é a secagem natural, absoluta, à sombra. Outro dia, foi se aproveitar a sobra de lugar no forno, aqui do vizinho, e perdemos muitas peças. Ele, na pressa de queimar o material, botou tudo no forno sem estar bem seco. Aí, na hora da caldeação, as peças dele estouraram e quebraram também as da gente, que estavam junto.

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Segundo Socorro, Zé Caboclo gostaria que os filhos continuassem seu trabalho no barro, mas queria também que tivessem condições de estudar, o que não foi possível. Não gosto muito daqui do Alto do Moura. Se fosse em Caruaru, já estava bem pra mim, porque aqui tudo é difícil. Por exemplo, estudar. A gente não consegue estudar aqui, só tem escola para o primário. Depois do primário não tem mais, só indo pra Caruaru. Aí fica difícil. Mas não é apenas o estudo que faz falta no Alto do Moura. Necessidades outras são sentidas pelos moradores do lugar. Por exemplo, água encanada, como diz Carmélia: Se a gente pudesse, era uma coisa que pedia ao governo. Uma vez por semana vem um caminhão de Caruaru trazendo uma água mineral pra vender nas portas. Quando essa água acaba, nem tendo dinheiro se compra outra. Aí o jeito é beber água do barreiro. As mulheres vão buscar água no barreiro com latas à cabeça – pra lavar roupa, tomar banho, cozinhar e até beber – numa caminhada que demora uns 20 minutos. Celeste duvida que um dia chegue água encanada em casa:

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Manuel Eudócio Com sete anos, oito anos, comecei a trabalhar no barro. Comecei com minha avó, fazendo cavalinho, boizinho – assim, de brinquedo, como meus meninos fazem agora – e vendendo tudo na feira. Vendia barato, sempre. Nascido no Alto do Moura, em 1931, Manuel conta que sua mãe – como a avó – também trabalhava nas louças, mas com ela pouco conviveu: a morte a levou quando ele tinha apenas três anos. Da família, somente ele se manteve, nestes vinte e cinco anos, dedicado à arte.

Falam por aí que vai chegar esse tempo, mas está difícil. Eu avalio que um dia possa ser, mas está difícil... Além de tudo isso, quem mora no Alto do Moura sente a ausência de um maior convívio social. Principalmente as moças, que quase não saem de casa, totalmente dedicadas ao trabalho. O Alto do Moura é muito fraco. É muito difícil a gente ir pra uma festa em Caruaru. Os meninos não gostam de levar a gente e ficar pensando na hora de voltar. No tempo de São João, o coco fica mazurcando a noite toda. Às vezes a gente vai. A gente gosta mais da dança, mas não deixam. Apenas Socorro conseguiu viajar para o Sul, em agosto de 1976. Recebeu passagem de ônibus para se apresentar no Rio de Janeiro, de barro na mão, modelando peças diante de convidados de uma galeria para a qual fornece seus trabalhos. O barro é presença forte e permanente na vida da família de Zé Caboclo – uma espécie de herança recebida e assumida, como forma de sobrevivência, como fonte de atração. Quando a gente trabalha demais, até que fica um pouco abusada. Mas sempre tem saudade de deixar de fazer. Sempre tem vontade. Mas era bom se sobrasse um tempo pra gente pensar... Mas também é bom a gente ter sempre a quem vender. Caruaru (PE), 1975/76

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Até a idade de dezoito anos, trabalhava assim, em figurinha de brinquedo. Peguei a fazer boneco de 1948 para cá, quando Vitalino veio pro Alto do Moura, trazido por Augusto Rodrigues. Vitalino morava em Campos, num sítio contramão, lá do outro lado da pista. No Alto do Moura tinha mais movimento. Quando ele veio, ele já fazia umas peças bem feitas: os bois grandes, os retirantes, o casamento, o caçador atirando nas onças... Eu ficava olhando, olhando, até que um dia fiz. A primeira vez levei pra feira uns quinze bonecos, botei lá no chão, no cantinho. Acabei apurando setenta e cinco mil-réis – isto foi há quinze anos passados. Comecei então trabalhando, vendo que dava certo, criando mais ideia, outras coisas, até a data de hoje. E não pretendo deixar mais. O Alto – antes da chegada de Vitalino – era promovido quanto às visitas, mas não se fazia boneco como os de hoje, só boizinho, cavalinho, panelinha... Com a chegada de Vitalino é que as coisas cresceram. Todos nós fomos alunos dele: eu nesse tempo estava com dezoito anos e Vitalino já era um senhor, com uns trinta e cinco anos. Na feira aparecia gente que vinha de longe, do Rio, de São Paulo, ver o trabalho de Vitalino. Ele apresentava a gente como seus alunos e o pessoal elogiava: ‘Como seus discípulos trabalham bem!’ Fui o segundo no trabalho: Zé Caboclo – meu cunhado – já veio atrás de mim trabalhar com Vitalino. Antes disso ele só fazia ferro de engomar, cofrezinho, jarrinho de enfeite, essas coisas assim. Os bonecos começaram com Vitalino. Depois vim eu, depois Zé Caboclo. Agora, no carimbo eu fui o terceiro: Zé Caboclo fez o carimbo na minha frente. Passei uns tempos assinando com o carimbo dele. Só depois que casei é que fiz meu carimbo. Talvez porque Vitalino era um senhor idoso, não tinha muitas ideias de fazer bonecos. Eu e Zé Caboclo foi que criamos mais. A ideia dele sobre boneco era pouca: fazia mais retirantes, boi, caçador, homem tirando leite de vaca, procissão, casa de farinha – peças mais antigas. As peças mais novas foram inventadas por nós: médico operando, noivos a pé e a cavalo, padre no confessionário, velho carregando lenha... Começamos também a fazer lapinha, maracatu, bumbameu-boi, cavalo-marinho, boi-bandeira, casamento na polícia, São Francisco, as moringas em forma de Lampião e Maria Bonita... Fomos promovendo mais e cada vez descobrindo mais arte ainda, sendo o mesmo barro e a mesma arte. A peça que Manuel Eudócio diz gostar mais de fazer é o boi, sendo inclusive invenção sua o boi de cabeça virada. Faço desde criança pra brincar, e é o que eu sou mais fã de trabalhar. Ninguém chega na minha casa pra não encontrar um boi! Os tipos que mais faço aqui, fora o boi, é tipo boneco profissional (médico, dentista, advogado, professor), além de casamento na roça, casamento a cavalo,

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casamento na polícia, zabumba Caruaru, cavalomarinho, bumba-meu-boi... Os bonecos profissionais vieram desde o começo do trabalho. O nome bonecos profissionais é por causa do comércio. Vem um pedido – ‘Quero tantos profissionais’ – a gente já sabe: é dentista, é médico, é advogado, é gerente, essas coisas assim. Cada qual tem a sua profissão. O povo gosta muito.

cem peças desse modelo, contagiando, inclusive, outros ceramistas do Alto do Moura. Sobre esse aspecto, comentam os outros:

Manuel Eudócio modela suas peças, que vão desde 5cm até 50cm, dando-lhes uma numeração correspondente ao tamanho.

Eu fabrico, eu faço. Agora, quem pinta são os meus meninos ou então um rapaz que trabalha comigo, porque não tenho tempo. Fazer e pintar fica muito difícil. Os meninos também já fazem algumas peças sozinhos, embora eu esteja sempre observando, olhando e orientando.

O gigante, do tipo bumba-meu-boi, o máximo que eu faço de altura é 50cm. Quando ele e Zé Caboclo começaram a trabalhar, pintavam sempre a óleo as roupas dos bonecos, deixando as feições e o corpo no barro natural. No dia em que levaram para a feira algumas peças sem pintura, e receberam elogios e encomendas, passaram a levar metade delas sem pintar. Depois de cinco anos o povo desacostumou do colorido e só queria na cor do barro natural, a não ser quando chegava um americano, uma pessoa do exterior. Foi quando chegou um senhor da ARTENE (empresa criada pela SUDENE para comercialização do artesanato nordestino), e ele só queria boneco pintado. Até tinta ele trouxe. Daí em diante o pessoal só se agrada se for desse jeito.

‘Manuel Eudócio não gostou muito porque estou fazendo bochechudo...’ ‘É, eu também faço bochechudo...’ ‘Eu não faço bochechudo nem que me encomendem um milheiro...’ Junto ao artista, cinco filhos dos nove que tem, o ajudam no mesmo ofício.

A produção da família é regular e organizada. Os meninos fazem de preferência os bois pequenos, iniciando-se aos poucos nas outras criações. Manuel Eudócio fica com as peças mais detalhadas e maiores. A mulher também ajuda na pintura: sempre em cores fortes, com esmalte sintético e algumas vezes com tinta fosca, a partir de uma experiência feita na batina de uma peça do Padre Cícero. Ela tem muito jeito para as pinturinhas, para esses desenhos miúdos que os bois levam e os São Francisco também. É um desenho feito em traços pretos rodeados de bolinhas bem pequenas e brancas.

Mas não foi apenas com relação à pintura que Manuel Eudócio sentiu uma mudança no gosto do público consumidor – a procura modificou-se também em relação aos modelos. Esses outros estilos – como casamento na roça – também se vende, mas não é mais como antigamente. Antes a gente fazia mais esses velhinhos com carroça, esses bois. Mas não está tendo tanta aceitação. Agora é mais peça colorida – desses vaqueiros, bumba-meu-boi pequenininho... Quando vem o pedido, é o mais que eles pedem, que eles querem. Aproximadamente há dois anos, Manuel Eudócio resolveu acrescentar à sua produção uma réplica de uma pequena escultura de um artesão paulista, e o fez com exatidão. Essa peça fazia parte da feira intercontinental que se realiza todo ano em Caruaru. Era uma espécie de freira florista bochechuda que, independente de qualquer apreciação estética, nada tem a ver com o trabalho do artista de Caruaru. Manuel tem sido persuadido, instigado, pressionado a largar essa inovação estrangeira, mas vem se mantendo irredutível. Ao lado de um certo orgulho em afirmar sua independência frente a opiniões de terceiros, há sempre a necessidade de garantir um mercado, alcançado através das encomendas. Assim, a eclética figura paulista vem sendo reproduzida por Manuel Eudócio na medida em que ele continua recebendo pedidos de até

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Zé Rodrigues Segundo ele, uma invenção sua, hoje assumida por vários artistas do Alto do Moura. Manuel usa o massapê simples, sem nenhuma mistura, exceto se for forte demais. No próprio barreiro, ele conhece o barro. É só olhar. Se é muito forte, tem aquelas pedras duras, todo rachado dele mesmo. O que serve para o trabalho não tem rachão, é todo certinho e seguro, a gente já encontra sem pedra nem sarubo (sujeira). Não precisa peneirar. É só molhar, juntar, amassar e bater muito, pra traçar bem com um pau ou com a enxada. Há uns sete ou oito anos, na época que teve uma grande divulgação do governo, todo mundo começou a comprar pra revender e pra tudo. Então quase todos os fabricantes daqui não estão botando banca na feira porque não têm mercadoria. O turista mesmo vem na nossa casa e compra. O pessoal vem encomendar aqui no Alto do Moura. Tem sábado que essa rua fica repleta. É muito melhor assim: aproveito o sábado também pra trabalhar e não aguento sol, chuva, aquele aperreio. Na feira só tem coisa muito barata. O pessoal olha uma coisa melhor e não compra. Zé Caboclo, antes de morrer, já fazia mais de um ano que não ia à feira. Tem quase dois anos que eu não tenho mais banca na feira. Não tenho mercadoria pra levar – vendo tudo em casa, tudo por encomenda. Vou terminando um, chegam outros pedidos. Vem pedido de cinquenta peças de uma, vinte de outra, e assim por diante. É gente do Rio, de São Paulo... Pra Recife também vendo muita coisa. Dando pra manter a família, eu estou bem na arte. Agora, primeiro, porque eu gosto muito da arte de boneco. Eu penso que só deixo por morte, porque dou muito valor a esse trabalho. Eu já arrumei minhas despesas, vivo tranquilo, graças a Deus. Eu penso que só estou bem porque estou trabalhando no barro. Já tentei muitas coisas antes desse trabalho, mas nada deu certo. Quando eu comecei, depois de cinco anos afracou muito o trabalho, e muita gente começou a fazer também. Aí eu fui ver se arranjava outro trabalho, porque não conseguia vender, vivia devendo. Consegui arrumar outras coisas, mas sempre trabalhando no barro – dois dias nele, três dias noutro negócio. Mas sempre pegando no barro porque, quando lá não desse certo, aqui sempre vendia qualquer coisa. Até que abandonei tudinho e fiquei só no barro. Aí fui melhorando, melhorando... Meu vício é trabalhar. Assim o dinheiro dá. Faço uma venda grande, depois passo um, dois meses, sem vender tanto, mas sempre vai dando. E todo mundo agora que trabalha nessa arte não está sofrendo mais não. Não há muito dinheiro pra muita reserva, essas coisas. Mas pra viver, dá.

Caruaru (PE), 1975/76.

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Travei conhecimento com o trabalho de barro no tempo de menino, com minha mãe que era louceira. Fazia cavalinho, queimava no forno lá de casa e vendia na feira, a vintém. Zé Rodrigues nasceu há cinquenta e cinco anos, em Campos, onde morava com toda a família. Sítio ali pertinho, do outro lado da BR, lugar onde também nasceu Vitalino. De lá eu vim diretamente pro Alto do Moura, quando tinha dezessete anos. Segui o exemplo de meu pai, que nas horas vagas da agricultura era ambulante, e saí vendendo louça nessas feiras por aí afora. Depois que eu casei, fui morar em Recife, e trabalhava no porto. Vivia em cima dos rebocadores, carregando carvão, nas máquinas. Todo mundo gostava de mim, mas o trabalho era muito pesado. Com dois anos resolvi voltar pra Caruaru e tornar a vender louça. Somente entre 1948 e 1950, no ano do centenário de Caruaru, eu peguei a trabalhar em louça eu mesmo. Com ideia minha e de Vitalino, comecei a fazer boneco de barro. Aliás, quem me ensinou mesmo foi o Elias, o melhor ceramista que eu conheci na arte dos bonecos. Ele hoje está morando no Recife. Naquele tempo Elias vivia trabalhando junto com Vitalino. Depois, quando ele foi embora, deixou umas peças que eu ainda hoje tenho. Deixou também umas posições, umas invenções que eu fui olhando, teimando e terminando por fazer. Elias era mesmo do barro, sabia o que era um bolo de barro. Ainda hoje ele sabe. O primeiro São Jorge quem fez foi ele. Aí eu gravei e hoje faço. Mostra um São Jorge desse artista e algumas peças de sua própria autoria – feitas, segundo ele, há mais de dez anos – colocadas no topo da parede, na fachada de sua casa. Vitalino foi o mestre. Eu gostava muito dele. Ele criou-se comigo, morava pertinho da gente; tanto que ele tirava barro, com a família, no terreno de meu pai, quando ele morava em Campos. E depois disso tudo Vitalino veio morar aqui. Aí eu peguei também a fazer uns bonecos, fazer uma coisa, fazer outra. A primeira peça que eu fiz foi um navio, que eu fui empregado no porto quase três anos. Depois as peças que eu ia vendo ia gravando e fazendo. Depois eu mudei pra igreja: fazia santo, Adão, Eva... As peças que mais faço são o São Francisco e o Cristo, mas também faço maracatu, bumba-meu-boi e os profissionais. O que eu gravo, qualquer uma peça, eu faço. Basta eu ver, eu faço. Eu saio fora, gosto de olhar uma coisa qualquer pelo Alto do Moura. Olhando qualquer coisa pela rua, eu faço. Eu vou passando, vejo uma troca de briga, uma coisa. Chego em casa e faço. E já faço diferente. Quando é uma coisa que me interessa, eu gravo; quando não interessa, eu não gravo. Essa cabeça eu vi no Rio, numa casa de cera: expressionei ela, cheguei aqui e fiz. Acho que fiz cinco. Um dia usei um livro, um livro do primeiro século: o Novo Testamento. Eu peguei, estudei por aquilo e peguei a fazer. Negócio daquele crucifixo, daqueles padecimentos

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de Cristo, aqueles calvários, aqueles judeus judiando com ele. Eu apanhei isso tudinho e peguei a fazer. Tenho paixão pelo que faço: sou apaixonado pela cerâmica. Às vezes não estou fazendo negócio, mas teimo. Eu mesmo admiro pra mim. Não é por interesse que eu trabalho, quer dizer, não é por muito. Gosto de inventar ideia. E quem tem família tem que viver. Aqui em casa somos eu, a mulher e um menino que a gente cria. A vida está cada vez mais apertada. Não conheço o custo de vida, por isso não sei se estou tendo lucro nas peças. Vou vendendo. Se eu puder fazer uma coisa melhor, eu faço; se não puder, fico no mais fraco. Também estamos acostumados com o grosseiro. Antigamente até que dava pra fazer um negocinho. Hoje, diante das dificuldades em suprir suas necessidades mais imediatas, Zé Rodrigues mantém, com Heleno Manuel, uma parceria. Os bonecos feitos em cento, por esse artista, são entregues crus a Zé Rodrigues, que os queima, assina e vende: Aceito isso pra ajudar nós dois. Além disso, vem se dedicando mais à manufatura de louça vidrada. Em 1968, Hermilo Borba Filho e Abelardo Rodrigues – no livro Cerâmica Popular do Nordeste – referiram-se a Zé Rodrigues como “sem dúvida nenhuma o maior ceramista popular do Brasil. (...) já está criando uma escola em Caruaru. (...) verificando-se sua influência nos santos de Zé Caboclo e Manuel Eudócio sem descaracterizar, no entanto, o espírito da cerâmica daquela cidade, sem perder sua qualidade de primitivo em total desprezo pelo rebuscado. (...) espantoso no artista é que ele consegue dar à sua obra um caráter de universalidade”. É ainda Abelardo Rodrigues quem vê Zé Rodrigues como o primeiro a enriquecer a cerâmica de Caruaru com temas religiosos e bíblicos: Cristos, flagelações do Senhor, São Francisco falando aos pássaros, Adão e Eva, etc... E as peças dele trazem realmente uma marca mais pessoal na cerâmica de sua cidade. Posições diferentes das dos seus companheiros, como o Senhor Morto, e ainda outras, inusitadas na própria história, como o Santo Antônio dando leite de mamadeira ao Menino Jesus, ilustram bem essa singularidade

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Agora, quando pego um bolão de barro faço o que quero. Criando na minha cabeça, levanto uma peça sem nunca ter visto. Já com leitura a coisa é diferente. Um dia cismei de estudar faz uns anos. Eu queria aprender logo de uma vez, na agonia. O resultado foi que eu peguei uma fraqueza e fiquei quatro meses na junta médica. Já assinava até o nome, fazia muita coisa. Perdi tudo. Por isso desprezei a leitura – ela só me fazia aperreio. Não é como barro, que me dá aquele prazer! Mas a leitura faz muita falta. Às vezes a gente quer uma coisa, um telegrama, uma carta. Às vezes vê uma coisa errada, tem vontade de escrever sobre o caso e não pode, só se tiver um jornalista por junto. Por exemplo, se eu pudesse, escrevia muita coisa sobre o Alto do Moura. A falta de um telefone, a situação que uma pessoa fica se alguém de sua família adoece à noite, só se apelar pra um vizinho que tenha condução ou sair correndo pra cidade nos pés. Mas o pior mesmo é a falta de água. O Alto do Moura é o lugar mais seco do interior: a água é toda contaminada, cacimba não existe. Vivo aqui porque fui ficando, mas não me acostumo. A coisa que mais gosto no mundo é ensinar. Se alguém chega aqui em casa e pede pra ficar, eu digo: ‘Fique, vamos trabalhar!’ O meu divertimento aqui é somente trabalhar, criar um bichinho, ir à feira. Eu não saio daqui pra um cinema, que é longe; eu não saio pra brincadeira, que também não gosto. Eu gosto sempre, quando termina meu serviço, de ficar quietinho num canto. Zé Rodrigues vende sobretudo em casa, mas ainda mantém uma banca na feira, pagando a uma pessoa para vender suas peças. Para a feira vão as louças vidradas. As esculturas ficam em casa. Eu não vendo boneco em grosso não. Quando encomendam é de um, dois, três... Agora, fazer pra vender vinte, trinta, quarenta bonecos, como eles vendem aí, eu nunca vendo. Gosto de fazer uma peça e deixar aí, porque pegam uma peça dessas, chega lá fora querem vender por uma fortuna. Aí fica todo mundo reclamando: ‘Zé, eu vi uma peça sua em tal parte, eles cobrando tanto!’ Uma fortuna! Sou eu quem divulgo minhas peças. Já tenho viajado muito. Não estou viajando agora, mas tenho viajado muito – pra São Paulo, pro Rio... Todos esses lugares eu já tenho visitado. Já fiz exposições: uma em Brasília, uma no Rio, outra em São Paulo. Tenho peça minha por todo canto do mundo, até na coleção de Abelardo Rodrigues, que era meu amigo pessoal. Caruaru (PE), 1975/76.

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Ernestina Ernestina nasceu no Alto do Moura, em 1919, onde vive até hoje. O pai era agricultor por conta própria, tinha roçado de milho e de feijão, e a mãe era louceira. A gente tinha forno em casa. Desde bem nova eu comecei no ofício, sendo que há vinte e dois anos foi que peguei mesmo a fazer. Fazia jarrinho, cavalinho, boizinho – brinquedo de menino brincar, desde eu nova, porque o trabalho de minha mãe já era barro. A gente aprendeu e fazia aquelas besteirinhas de barro, a não ser boneco. Boneco, fazem vinte e dois anos que eu trabalho. Com o compadre Vitalino, achamos que dava melhor a arte dos bonecos. Nomeada pelos seus colegas como uma das mais antigas discípulas do Mestre, ela mesma se situa na história dos artistas de Caruaru. Depois de Vitalino veio Zé Caboclo, Manuel Eudócio, Zé Rodrigues e eu. Comecei fazendo menino no penico, velho na roça, a mulher rendeira. Faço santo também. É tanta coisa... No canto da sala, um cento de figuras de Lampião – de 30cm de altura – aguarda a vinda do portador que o levará à Bahia, para o Mercado Modelo, onde encontra escoamento quase toda a produção de Ernestina. Muitas vezes a gente faz pela cabeça da gente; porque a gente pensa o que vai fazer, e o que pensar que vai fazer, faz. Agora, nós aprendemos com o Mestre Vitalino, porque foi ele o primeiro inventor

dessa arte. Ele botava banca na cidade, e às vezes a gente ia pra cidade, pra feira. A gente pegava olhar, prestava atenção, chegava em casa, atentava e se fazia. E assim continuamos, eu e muitos. E assim aprendemos. Quem tinha vontade de aprender, aprendeu... Agora, muita coisa veio pela cabeça da gente. Eu nem sei dizer se gosto desse trabalho. Se eu pudesse, se arranjasse outra coisa que desse pra ir vivendo, eu mudava. Acho esse meio de vida meio doentio. No verão ainda é melhor. Mas no inverno, as mãos só dentro da água, naquela frieza, prejudica muito. E tem tempo que afraca mais, mas sempre dá pra ir levando. Minha neta de quatorze anos, fora do horário das aulas, me ajuda, pintando as peças. Também meu marido ajuda, fazendo outras coisas. É pedreiro, marceneiro... Trabalha mais em casa, por conta própria, fazendo capelinhas de madeira, consertando cadeiras, camas. Ainda acho pior quem vive alugado nas olarias e nos roçados dos outros. Aí é que o atraso é maior. Assim mesmo, tem mulher do Alto do Moura que não trabalha. Os maridos é que dão as coisas a elas. Não sei como pode ser isso, com a vida difícil como está. Em um novo encontro com Ernestina, ela ampliou o depoimento sobre seu trabalho, acrescentando: Eu acho bonzinho, já me acostumei nele, gosto dele. É a profissão que aprendemos e que dá mais um tostão. E eu acho que outra não vale não. Aqui é dentro de casa, na sombra; é serviço de manejo, não é trabalho pesado nem é um trabalho obrigado. A pessoa trabalha no dia em que quer. O trabalho do emprego é obrigado e o nosso trabalho aqui é livre. É o caso que eu gosto. No princípio, ela não tinha muito mercado para suas peças, recorrendo a um cunhado, que as levava para vender na feira de Garanhuns. Depois o movimento de Caruaru foi aumentando. Treinei mais, botei um banco na feira, e eu mesma é que fico lá vendendo. Ernestina conhece e convive com todos os artistas do Alto do Moura. Mora tudinho nessa ruinha. O que a gente faz todo mundo faz. Por exemplo, eu faço hoje uma peça, invento uma peça da minha cabeça. Se aquele ali vê, já na mesma semana ele faz a mesma, e assim os outros. Eu não me incomodo. O que um fizer, outros vendo e aprendendo, querendo fazer, fazem. Não tem diferença de um pro outro. O Mestre – o primeiro, que foi o compadre Vitalino – não tem firma registrada, que dirá os outros! Caruaru (PE), 1975/76

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Manuel Antônio, Luís Antônio e Odete Manuel Antônio e Luís Antônio, naturais do Alto do Moura, filhos de louceira, desde criança convivem com o barro. Odete – mulher de Luís Antônio – é também, hoje em dia, fazedora de bonecos. Em 1956, Manuel viajou para o Sul, para tentar a vida em São Paulo. Passei oito meses procurando trabalho. Resolvi voltar, e aí tomei uma atitude pra fazer boneco de barro. Um trabalho mais suficiente, uma coisa que eu soubesse fazer e que desse certo. Não precisei de aula, nem de aprendizagem. Quando ingressei na arte, já havia Vitalino, Zé Caboclo, Manuel Eudócio e Zé Rodrigues, que foram os primeiros. Já estive uma vez em Recife pra entregar uma encomenda a alguém que ia viajar. Passei o dia todo esperando e a pessoa não apareceu. Acabei no Mercado São José, vendendo por qualquer preço. Nunca mais! Agora, só vendo na feira ou em casa. Mais em casa, que a feira já não está dando. Minhas peças podem viajar. Eu, mais nunca! Pra mim, todos os bonecos são iguais no banco da feira. E, quando aparece uma novidade, um tipo de figura diferente, com quinze dias todo mundo já faz igual – não tem impedimento. Acho mais importante fazer mais bem feito meus bonecos grandes, de até 30cm, ou minhas miniaturas, em barro natural ou pintado, do que produzir muito. Os trabalhos que mais vendo são as miniaturas de médico, de advogado, o carro de boi, a bandinha, a rendeira, Maria Bonita e o velho pensando. Essa última figura, o exemplo foi de Vitalino. Foi ele quem fez primeiro. Faço também o velho acocorado soprando fogo na roça e a escola radiofônica, do jeito mesmo que o pessoal estudava no sítio. Gosto de trabalhar na base comercial: o que vende mais eu faço mais e com mais gosto. Mas o ganho já não paga o trabalho... O barro do Alto do Moura já está como a gasolina do Brasil – se acabando. Estamos aproveitando o que resta e vendo que já precisa misturar um tipo mais forte, ou então ir buscar mais longe. Luís Antônio e Odete, em um cômodo ao lado da casa, trabalham incessantemente no barro, atendendo quase de modo exclusivo às encomendas do Mercado São José e das galerias do Recife, bem como de outras do Rio de Janeiro e de São Paulo. Feira só aos sábados, e assim mesmo deixando os meninos lá e voltando pra atender os amigos em casa, sem perder o dia de trabalho na fabricação dos bonecos. Vitalino gostava muito de mim. Na feira, ele mesmo deu a sugestão d’eu botar o banco perto do dele. Depois de aprender uns modelos com ele, parti para as minhas criações. Hoje eu só faço os modelos de Vitalino e de outros, se for uma encomenda de muita insistência. Tenho umas dez criações que ninguém chegou a fazer. Às vezes prendo, nem boto na feira. Também são peças mais difíceis, dão mais trabalho. Os postes, por exemplo: tem gente que tenta mas não acerta fazer. Também não gosto de fazer as invenções dos outros: os bochechudos de Manuel Eudócio eu não faço. No princípio, a invenção de Vitalino foi de todos, mas mesmo assim eu já fui modificando. Vitalino fazia pau de onça, eu faço a Transamazônica – um tronco grosso, oco, com uma cobra saindo de dentro, o caçador subindo o pau e as onças atrás. Boi, só faço de encomenda – nunca botei um na feira. Uma vez fiz uma máquina. Aí teve uma mulher de São Paulo que apreciou muito o trabalho. Fiz a máquina de tirar retrato, que ela tinha, e fiquei fazendo umas encomendas pra ela. Hoje faço qualquer máquina.

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Zé Henriques e Ivonete A operação cesariana na mulher e na vaca, o poste com o operário em cima, às voltas com os fios, as engenhosas máquinas – tudo isto é encontrado na oficina onde Luís Antônio e Odete dividem as tarefas de modelagem do barro para a confecção dos bonecos. Neste construtor de peças mais complicadas está evidenciado, de forma mais ampla, um maior domínio da técnica de modelagem e queima. Suas peças têm detalhes mais sofisticados e mais exigentes, neste sentido. Em ambos – marido e mulher – é visível a preocupação de escapar à temática da escola do Mestre.

Caruaru (PE), 1975.

Nascido em 1944, no Alto do Moura, José Henriques começou a trabalhar aos oito anos de idade, ajudando o pai no transporte do gado. Os outros compravam o gado e a gente ia buscar por terra. Tirava o gado da Paraíba, Ceará, Alagoas... Depois foram parando de mandar gado por terra, passando a usar caminhão, trem... Aos vinte e cinco anos reuniu-se a Manuel Inácio – conhecido oleiro do Alto do Moura – e os dois instalaram uma cerâmica no Alto da Sé, em Olinda. Torneando, vidrando, vendendo, transportando louças de Manuel Inácio e de outros artistas de Caruaru para o novo ponto, Zé Henriques foi se formando no ofício. Em 1971, decidiu abandonar o negócio de Olinda e trabalhar por conta própria, assumindo – junto com Ivonete, sua mulher – a modelagem figurativa, em casa. Até o dia de hoje, trabalhamos de cinco horas da manhã às onze da noite. A gente só para pra fazer as refeições ou quando chega alguém pra dar uma prosa. Mas acho que compensa: não troco por nenhum emprego com salário fixo. Ivonete pegou o gosto pela arte desde pequena, com as meninas de Vitalino e de Zé Caboclo. Com o feitio dessas peças ela ajudava nas despesas da casa. Eu na louça, com Manuel Inácio, e ela aqui, com os bonecos... A encomenda que o pessoal pede a gente vai fazendo. Criação da gente tem muito pouca. A gente puxou mais ao estilo de Vitalino. Depois dos trabalhos de Vitalino, muita gente foi fazendo... Apesar do bumbameu-boi e do maracatu não serem muito do Vitalino, já é do primeiro discípulo dele: Zé Caboclo. Vitalino deixou cento e oito tipos de bonecos e a maioria dos artistas não fez ainda nem a metade. O pessoal fica agarrado somente a uns tipos. Quando aparece uma coisa diferente, já não é criação própria: é tirado de outra que já tinha. Por isso eu prefiro continuar fazendo mesmo os bonecos que Vitalino deixou. Ivonete também faz qualquer peça que Zé Henriques execute. Em algumas, como a família de retirantes, a bandinha de pífanos e o casamento matuto, Zé Henriques ajuda em um ou outro detalhe. Mas o trabalho mesmo é de Ivonete. Sua produção é composta sobretudo por peças pequenas, geralmente de 8 a 10cm de altura; mas o São Francisco, os dois fazem de até 50cm. O tempo de execução varia muito. Em condições normais, uma peça grande pode levar até dois dias e meio para ficar pronta. Em relação às peças menores, no entanto, é possível fazer dez, quinze e até vinte em um dia. Cada um modela suas peças separadamente. Mas, depois de prontas, aí é um serviço só. A gente pinta tudo igual, tudo junto: tanto faz eu pintar as peças dela, como ela pintar as minhas – tudo é uma coisa só. Tem os tipos pintados e os tipos naturais. A gente prefere o natural, porque dá menos trabalho. Agora, o pintado é mais bonito. Tem gente que não reconhece o seu boneco no meio dos bonecos dos outros, na feira. Eu não! Conheço imediatamente os meus trabalhos e os da esposa, sem precisar olhar o carimbo. Na minha opinião, nenhum trabalho, por bem que o artista capriche, sai completamente igual ao

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A PRESENÇA DO MESTRE

Manuel Antônio, Luís Antônio e Odete

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Zé Henrique e Ivonete

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outro. Aqui, cada um, dentro dessas criações, vai fazendo do jeito que acha que dá certo. Um dia desses, a diretora do turismo chegou pra mim e falou: ‘Você pinta esse boi de que cor?’ Eu disse: ‘Pinto vermelho.’ E ela: ‘Por que você não sai da linha de Manuel Eudócio?’ Aí eu respondi: ‘Eu não posso sair da linha de Manuel Eudócio, pelo seguinte: porque primeiro ele aprendeu, e a gente aprendeu depois dele.’ Agora chega o turista aqui, e prefere o boi vermelho. Aí Manuel Eudócio vende. Eu tenho boi amarelo, preto, branco e não vendo. Manuel Eudócio vive e eu também. Aí eu pinto como ele, que ainda não reclamou nada. Agora, minha peça não é igual à dele – a dele é superior à minha. Também aí entra o gosto do turista. A gente aqui tem mais visita. De cinco anos pra cá, a visita aumentou muito. Então o trabalho não dá mais para ir pra feira. Muita gente prefere vender mais em casa que na feira. Meu material não dá pra vender em casa – é tudo pra fora, de encomenda. Eu não tenho dificuldade para vender. Tenho de uns trinta a quarenta fregueses, donos de loja em Recife e Olinda. Gosto demais do meu trabalho. O trabalho na arte é diferente. Eu nunca fui de trabalhar na agricultura, nunca gostei. E já trabalhei em vários outros serviços, já trabalhei em indústria, já trabalhei até de vendedor e preferi trabalhar na arte. Parece que é um negócio que a gente mesmo procura. Cada coisa que a gente faz, procura ter mais valor. Não é tanto pelo povo da região, mas o povo de fora. Cada um que chega aqui, diz: ‘É um artista que faz mais bonito. Aqui ele faz mais bem feito, aqui ele vende mais barato.’ Eu acho importante isso. Eu me acostumei assim e só acho bom isso.

Caruaru (PE), 1975/76.

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Zé Henrique e Ivonete

GINU, O PROFESSOR TIRIDÁ Antônio Pedro Capitão Pereira Dedé

Entre os escultores populares do Nordeste há um grupo que se destaca de maneira muito especial: são os animadores de mamulengo e de bumba-meu-boi – artífices, eles próprios, das figuras utilizadas em seus folguedos. Destaque que diz respeito tanto ao artista quanto ao produto de seu trabalho e ao seu público, pela relação singular que ocorre entre esses três elementos, neste gênero de produção. Os artistas vivem uma metamorfose constante através de cada personagem que eles próprios constroem. As figuras-personagens, por sua vez, representam detalhes de uma história – história que faz parte do cotidiano, do universo desses artistas. Na perspectiva de quem está de fora do espetáculo, as figuras são simplesmente esculturas. Para os brincantes, o Boi, o Cavalo-Marinho, o Professor Tiridá, João Redondo, Babau são extensões deles mesmos – veículos de sua expressão. No escultor popular brincante, artesão e animador identificam-se em um único homem, que maneja a figura, acrescentando-lhe som e movimento. Informada pela intenção de criar o personagem, a escultura, aí, é instrumento de atuação. Os bonecos do mamulengo, as figuras do bumba-meu-boi são, nesse sentido, peças utilitárias para seus autores – esculturas animadas que só correspondem ao seu projeto no desempenho de seu papel, no espetáculo. Esse tipo de espetáculo supõe uma participação total na brincadeira. Não se vai a um bumba-meu-boi ou a um mamulengo apenas para assistir, mas também para brincar. Fundem-se em uma só entidade o artista, o boneco e o personagem; e o público também se funde com os bonecos-atores. Nas situações retratadas, caricaturadas, inventadas, efetiva-se esta interação. As histórias, mesmo as já repetidas durante muitos anos, são sempre de alguma forma recriadas, em cada apresentação, de acordo com o contexto. A improvisação é, aqui, um elemento fundamental. “As funções de digestão e reprodução aparecem para desencadear o riso, bem como os peidos, as cólicas, a imitação do ato sexual nas danças, os palavrões...” (Hermilo Borba Filho). Da mesma forma, são ridicularizados os “grandes” – o usineiro, o patrão, o prefeito, o padre, o delegado – e também o valentão desmoralizado, o marido traído, a mulher saliente... Tudo é uma farsa e tudo é muito real. É nos bairros populares, vilarejos e pequenas cidades, feiras e praças do Nordeste, que os artistas preferentemente encontram seu público. Identificam-se com este, vivem sua brincadeira. O Boi Misterioso do Capitão Pereira nasceu e se apresenta há mais de cinquenta anos na Mustardinha – bairro dos mais pobres de Recife. Ginu – recentemente falecido – , tão famoso como Professor Tiridá, personagem principal de seu mamulengo, nasceu e criouse na Mustardinha. A maior parte das apresentações de seu espetáculo, durante os quarenta e sete anos que brincou, aconteceu no seu bairro, bem como nos alagados da vizinhança e em outros bairros populares de Recife. Em Acaú, o Boi é de Dedé, das crianças, dos pescadores – dos habitantes da praia paraibana. Antônio Pedro, em Natal, há trinta anos experimentou ser calungueiro e brincar o João Redondo entre seus companheiros. A destinação do folguedo a esse tipo de público está explicitada desde a sua origem – tanto o mamulengo como o bumbameu-boi nasceram, segundo o depoimento dos artistas, como brincadeira de escravos. Aos olhos do observador atento ressalta a transformação por que passa qualquer espetáculo popular quando retirado do seu contexto. Se a iniciativa é trazer o folguedo para ambientes que lhe são estranhos, o resultado é a alteração de suas características básicas. As piadas e invenções – que antes integravam figura, artista e público – passam a ser podadas, contidas, normalizadas ao sabor de sua nova plateia. O bumba-meu-boi do Capitão Pereira, que o turista assiste na Casa da Cultura, em Recife, é bem diferente do bumba-meu-boi em que duas gerações cresceram brincando na Mustardinha, animadas pelo próprio Capitão Pereira. As peças “educativas” que Ginu aceitou fazer distanciam-se das peças famosas de sua autoria, que ele durante tantos anos

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Ginu, o Professor Tiridá levou para os bairros populares. Assim, se, de um lado, a transposição dos folguedos para outros espaços representa uma forma de reconhecimento e valorização dessas expressões populares por um novo público, de outro, a integração se dá com a perda de elementos fundamentais dessas formas de manifestação. Mas, para os artistas, esse mesmo movimento representa um fator de sobrevivência. Funciona como alternativa de trabalho que lhes permite continuar a brincadeira nos bairros populares. Os recursos e materiais utilizados na montagem do espetáculo são os possíveis e disponíveis a custo mínimo. Figuras mais dispendiosas, como o Jaraguá, o Babau e a Burrinha, no bumbameu-boi, e os “obás” (figuras com articulação na boca e que reviram os olhos) no mamulengo, são prejudicadas se o artista conta unicamente com os próprios recursos. O enredo do espetáculo mostra-se revelador de tal situação: o dinheiro é um tema constante nos autos de bumba e nas peças de mamulengo. No entanto, o bumba-meu-boi não deixa de se apresentar. O que ocorre é uma adaptação, que transparece na pobreza da vestimenta das figuras e mesmo na falta de alguns personagens, sem que isso venha a prejudicar o sentido e a força dessa brincadeira. O importante é a capacidade de improvisar e de imaginar. O Boi, a Ema e o Cavalo-Marinho, muitas vezes, são apenas armações sugestivas. No mamulengo, as exigências materiais são menores que as do bumba-meu-boi, pelas próprias características dessa brincadeira, que permite uma improvisação ainda maior. As figuras são constituídas somente por cabeças de papel ou madeira, com o corpo de pano onde a forma é sugerida pela mão do artista. A movimentação e a fala dos bonecos, por sua vez, dependem menos da participação de vários artistas do que da capacidade de variação da voz e da destreza de um único ator. Em todas essas esculturas, o mais significativo é o seu caráter de improvisação imaginosa – no tecido, no papel, no arame, na madeira, etc. A escultura de folguedo popular, integrada ao espetáculo ou retirada dele, continua a ser invenção.

Januário de Oliveira, Ginu, nasceu em Recife, em 1910. É conhecido, no bairro da Mustardinha e entre os promotores de espetáculos populares, como Professor Tiridá – personagem principal do seu elenco de fantoches. Entrevista, só dou paga! Quem não quiser pagar perde a viagem. Aceita sua proposta, o mamulengueiro mais famoso do Recife se dispõe: Está bem, vamos conversar. Aonde corre o dinheiro, está tudo bem! Quem me antecedeu foi o finado Babau, o legítimo Babau: um negro forte que esculpia seus bonecos na ponte da Boa Vista, onde também vendia óleos de essências baratas, nos bondes, a cinco tostões o vidro de sessenta gramas. Eu vinha da oficina onde trabalhava como mecânicoajudante, passava pela ponte e ficava apreciando Babau trabalhando – isso em 1927. E ele me mandava embora: ‘Sai daqui, menino. Vá-se embora. Isso não presta pra você. E todo melado de óleo. Vá cuidar de sua profissão, de sua arte. Isso aqui só serve pra fazer graça. Você amanhã é um mecânico.’ Um dia, antes de pegar no trabalho, passei no mercado, comprei dois tostões de fumo e dei de presente a Babau. O velho achou graça: ‘Menino, você sabe o que é o fumo?’ ‘Sei, sim senhor, eu vi o senhor com o cachimbo.’ ‘E o que é que você quer?’ ‘Eu queria que o senhor me ensinasse a fazer esses bonecos, pra eu dar um a minha irmã.’ Babau rendeu-se, deu pra mim um boneco começado e recomendou: ‘Faça, mas não interrompa seu serviço. Olhe a hora, corra, o relógio da fábrica já está batendo seis horas e quarenta e cinco minutos.’ Aleguei doença e gazeei o serviço nesse dia: ‘Seu Teófilo, eu estou com dor de cabeça muito grande.’ ‘Está bem, menino, vá lá pra cima descansar.’ E lá mesmo, onde eu trabalhava, num canto, acabei de fazer o boneco. Às onze horas estava junto do velho mostrando a ele. Babau se espantou e me convidou pra ir com ele olhar onde trabalhava: ‘Já vi que você está com vontade mesmo. Sei que quando você for ver como é, aí que você vai querer seguir comigo pra qualquer parte. Vamos ver no que vai dar.’ Fui encontrar com ele no jardim de Casa Forte (bairro de Recife), onde ia acontecer o espetáculo, que naquele tempo nem era jardim, era campina de Casa Forte. Tinha uma empanada, uma boca de cena, dois candeeiros, dois bombos e um pandeiro. Foi assim a primeira vez – eu com dezessete anos mais ou menos. Peguei tocando, tocando, e querendo sorrir detrás do pano. ‘O artista não sorri, não!’ – Babau falou. Ginu conta que gostou muito da brincadeira e, na semana seguinte, foi de novo. Cheguei em casa tarde e fui dizendo que estava em casa de minha tia. Eu não tinha pedido licença e levei uma surra medonha. Naquele tempo era assim. Na outra semana, inventei outra mentira. A mãe desconfiou e, como não sei mentir, expliquei tudo a ela direitinho e fui embora procurar Babau. Quando fui metendo a cara dentro do portão, a mulher dele avoou um punhado de areia na minha venta. Aí Babau socorreu: ‘Deixa o menino entrar!’ Assim, dei quatro espetáculos. Quando foi um dia, cheguei e Babau estava doente. A mulher dele disse que não ia haver espetáculo. Fui falar com ele: ‘Se o senhor quiser, a gente faz.’ Eu já estava prático naquelas comediazinhas folclóricas. Fiz e ganhei mais dinheiro do que ele fazia: de cinco, seis mil-réis, passei pra doze. Peguei o dinheiro, cheguei em cima da cama dele e botei: ‘Está aqui.’ Ele quis me dar, insistiu, disse que podia me servir adiante, mas não aceitei. Na quarta vez que fui lá pra fazer o espetáculo encontrei a fatalidade: o pobre tinha morrido. A mulher dele estava na maior agonia, não tinha dinheiro nem pro enterro. ‘Espera aí que eu dou um jeito.’ Fui para a

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ANIMANDO A BRINCADEIRA Ginu, o Professor Tiridá

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praça e, nesse dia, parece que Deus ajudou: ganhei quatorze mil-réis, o enterro era doze. A mulher me deu um boneco, embora a ordem dele fosse queimar tudo. Aliás, comigo também vai ser assim: eu morrendo, não fica um boneco. Será tudo incinerado. Eu estava com vinte anos quando iniciei. Isso foi no dia 19 de setembro de 1930. Tenho muitos anos nessa arte e nunca me afastei do meu quartel-general da brincadeira, o bairro da Mustardinha. Até hoje ainda faço muita exibição. Agora mesmo vai ter uma no Parque 13 de Maio. Sou vigia, hoje aposentado. Recebo uma irrisória quantia. Tenho esses dois mocambinhos onde vivo. Atualmente sou diretor-artístico do Mamulengo do Nordeste. Hermilo Borba Filho, em pesquisa realizada em 1963, apresenta Ginu como “um mestre na arte do Mamulengo, movendo sozinho os bonecos, com um poder vocal muito grande, capaz de fazer cinco vozes diferentes, e dono de uma imaginação prodigiosa.” Os bonecos eu faço de mulungu, uma madeira boa de cortar, tirada em noite de escuro pra não dar bicho. Depois de esculpir, vou conservando eles na tinta, que é pra não estragar. As mãos são de sola; os braços são de couro mais fino, com um espaço para poder colocar os dedos; a camisa é como a luva, que vem até o antebraço. Os antigos são mais mal feitos, com a cara mais quadrada. Com o correr do tempo eu fui ampliando, melhorando. Os personagens principais das peças de Ginu são o Professor Tiridá – nome que segundo ele foi tirado de um jogo de dados (tira e dá) – , que é o principal e o mais conhecido, Madame Quitéria, Tamancolino, Anastácio, a velha Filadélfica, Chibata, Joaquim Bozó (O Valentão) e Libório. A Quitéria, que foi de Babau, e quase todos os meus bonecos têm quarenta anos. Quando vão deformando vou remodelando, mudando a tinta. Até parece que são novos. Não quero ninguém pra continuar meu trabalho, pra trabalhar igual a mim não. Sei que não há primeiro sem segundo, mas até agora não vejo ninguém pra me substituir. Ginu – em depoimento colhido por Hermilo Borba Filho – conta a história de um escravo que, sofrendo castigos de seu senhor, dizia: ‘O senhorzinho não parece ter aquilo que nós temos por detrás do peito e que se chama coração. Parece que dentro dele tem uma pedra. Até a cara dele é de pau!’ E, de assim pensar, o escravo criou o mamulengo. Mais que depressa o preto praticamente esculturou uma figura, envolvendo-a em trapos, atravessando uma esteira na porteira da senzala, começou a fazer tudo o que o patrão fazia no correr do dia dele: ‘Vai, negro vadio, trabalha! Negro é como porco, mata-se um, encontra-se outro’... Do espetáculo de Ginu, comenta Hermilo Borba Filho: “Por mais que ele queira sofisticá-lo, permanece autenticamente popular. Não tem uma tenda, e deixa tudo a cargo de quem o contrata, improvisando o local de representação com um lençol pendurado numa corda. O que ele faz questão é de instalar os alto-falantes e pendurar um microfone no pescoço, pois meu espetáculo é todo irradiado. Trata os espectadores de meus caros ouvintes e não perde a oportunidade para dizer que é o primeiro diretor-artístico do Mamulengo do Nordeste. Suas peças são basicamente para fazer rir, como em As Aventuras de uma Viúva Alucinada, mas encerram também um conteúdo de forte moralidade, como em Manuel Pequenino – O Filho Amaldiçoado, e deixam entrever

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Antônio Pedro uma aguda percepção do problema social, como em As Bravatas do Professor Tiridá na Usina do Coronel Javunda, onde ele descreve as arbitrariedades numa usina, com o coronel milionário e a exploração dos trabalhadores através de um capataz bajulador.” Fiz muito mais do que Babau! Tudo que ele tinha eram aquelas coisinhas de improviso. Eu tenho quinze peças, todas de minha autoria. Tirei, escrevi, decorei. Tenho tudo bem diferente de Babau. No meu trabalho, faço tudo sozinho: os bonecos, as peças, todos os personagens, com seis vozes diferentes. Já encontrei quem fizesse três vozes. Mas seis? Só eu! Antes tinha que passar tudo pela censura, mas agora o turismo não deixa que se abuse da gente. Tenho muita prática de aniversário de criança, em casas particulares. Sou semianalfabeto, mas tenho um português que mais ou menos dá. Tenho cuidado com o que vai ficar instruído na mentalidade da criança. Por isso a maioria das minhas peças é toda instrutiva: tem humorismo, mas dentro da censura livre. Nesse meio, ele conta que é grande a preferência pelas peças instrutivas, porque ele diz às crianças: ‘Estudem com afinco, não deixem de ir à escola. São vocês que vão dirigir o Brasil amanhã. Respeitem o papai, a mamãe, os mais velhos, a babá... Quando for Natal, botem um bilhete pedindo o que quiserem, e vocês vão receber o presente de sua predileção.’ Era costume, até algum tempo atrás, os comerciantes de bairro contratarem mamulengueiros para se apresentarem em frente aos seus estabelecimentos, visando aumentar o movimento dos negócios. Através disso, Ginu alcançou a notoriedade em muitos bairros populares de Recife. A chegada de Tiridá era uma festa para a criançada. Com o tempo, as coisas mudaram: essas apresentações foram se tornando cada vez mais raras. Os patrocínios dos pequenos comerciantes foram sendo, aos poucos, substituídos pelas promoções de grandes firmas comerciais da praça, por aqueles contratos para apresentação em aniversários de crianças. Das peças picantes e anedotário pesado do Professor Tiridá, nos bairros populares, às apresentações leves e instrutivas, Ginu percorreu todo um trajeto que foi, pouco a pouco, abafando nele a vivacidade, a ironia, a mordacidade. As exigências do ofício e os meios necessários para continuar a trabalhar foram aos poucos apagando aquele menino que um dia convenceu Babau pela força e entusiasmo de sua escolha.

Tenho sessenta e um anos. Nasci em Santo Antônio Salto da Onça, no interior do Rio Grande do Norte. Era uma rua, hoje é uma cidade. Lá, quando eu era criança, arrancava capim, dava água pros animais. Posso dizer que não estive numa escola. Naquele tempo, a leitura era cantada, então o que eu aprendi foi decorado. Havia argumento. Eu argumentava mais do que os meninos, só não tinha conhecimento de livros pra dizer o negócio das sílabas. Eu nem me vexava, mas no conhecimento das letras eu não ia, porque não conhecia nem o ‘o’. Eu aprendi a assinar o nome sozinho. Eu acendia o candeeiro e passava a noite inteirinha. Lá no interior, eu trabalhava na madeira com meu pai. Ele trabalhava também de carpinteiro, mas não era que nem a gente, porque a gente quando começou foi logo na arte. E ele trabalhava também na agricultura. Na madeira, ele trabalhava em serviço grosseiro: porta, cancela. Foi assim que eu principiei também. Ainda hoje, se precisar, eu faço as mesmas coisas. Sei armar uma casa todinha. Antônio Pedro, atualmente, além de se dedicar à produção de esculturas que lembram os ex-votos, faz também bonecos para sua brincadeira do João Redondo – o mamulengo do Rio Grande do Norte. É nessa última atividade que ele se destaca e na qual seus trabalhos ganham maior força. De uma mala são retirados, em quantidade, fantoches coloridos, entalhados na imburana. Há muito tempo, desde a idade de vinte anos, meu trabalho é móvel. Daquelas portas, eu parti pra móvel em madeira boa, almofadado... Mas eu

Recife (PE), 1975.

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Capitão Pereira sou um bocado astucioso: faço esse serviço, entalho, toco sanfona e brinco com João Redondo. Em 1945, quando eu tinha chegado aqui e estava trabalhando nos móveis, chegou um amigo com as figuras do João Redondo, todo completo. É uma brincadeira. É esse tal de mamulengo, que aqui tem esse nome de João Redondo, Calunga. Experimentei e todo mundo gostou. Então eu continuei a fazer João Redondo para os outros. Sou calungueiro, e faço a brincadeira. Tenho um João Redondo todo completo. Tem Baltasar, o Capitão João Redondo, muitos personagens... Por aí fui inventando a história e o trabalho. As figuras angulosas, expressivas no seu entalhe simplificado, quase sempre na madeira natural, encontram, no momento, boa acolhida entre o público interessado em revitalizar os folguedos populares. Hoje em dia, já estou fazendo pra Fundação (Fundação José Augusto, de Natal). De vez em quando me chamam pra trabalhar num Circo (Círculo) de Cultura que tem lá. Quando eu tenho uma apresentação assim, eu primeiro faço em casa pra ficar mais aprestado. Tenho brincado em um bocado de coreto por aí: é um quebra-galho bom. Os bonecos que eu faço pra enfeite também ajudam. Essa casa é alugada. São oito filhos, o menor tem dois anos. Mas já tenho filho casado, neto. Está tudo estudando. Pelo menos um filho tem que puxar o pai. O povo diz que filho só puxa o pai quando o pai é cego. Eu tenho vontade que um aprenda logo, porque eu já estou ficando velho e quando eu morrer ele trabalha aí pra ajudar a mãe. É muito trabalho fazer esses bonecos, brincar – tudo. E o ruim é que, quando eu vou brincar, às vezes custo a receber o pagamento. Se eu recebesse na hora era bom demais. Muitas vezes, quando eu vou receber, já tenho gasto tudo na bodega. Eu trabalho aqui sozinho. Tem vez que eu vou buscar a imburana no mato: passo três dias tirando, ou então encomendo a um rapaz. Sou sócio de uma Liga Artística Operária, isso já vem com muitos anos. Fui apresentado por outro sócio, que era também um artista, era pedreiro. Lá tem ainda marceneiro, pintor... A gente vai pra Sede todos os domingos. É bom demais – todo mundo fala.

Capitão Pereira é o mais famoso e antigo animador de bumba-meu-boi em Pernambuco. Nasceu em Timbaúba e chegou ao Recife em 1903, com apenas dois anos de idade. Antes de morar em Mustardinha – onde vivo, há quarenta e quatro anos, nessa casa que eu mesmo levantei junto com minha mulher – vaguei por muitos lugares, mas tudo dentro do Recife: no Barro, na Mangueira, no Prado. Foi por aí que eu comecei a dançar o bumba, sempre na figura do Cavalo-Marinho. Isso com quinze anos, quando eu conheci um tal de Inácio, que tinha um Boi completo. Eu vi e fiquei encantado. Com Inácio aprendi a história e a ele mesmo comprei as figuras por quarenta e cinco mil-réis, que hoje dava muito dinheiro. Desmanchei e fiz tudo de novo. Quando já estava com cinco anos de ofício, inventei de fazer minhas próprias figuras. Foi então que fiz o Boi Misterioso. Ninguém pode botar nome igual ao dele, e até hoje esse Boi Misterioso dança. Há muitos anos eu brinco com ele. Quando ele está precisando, eu ajeito, mudo as partes, quase que faço outro. A mesma coisa eu faço com os outros personagens. As figuras do bumba-meu-boi pernambucano são bastante despojadas. Nem pedras, nem ouros, nem bordados. Bem diferentes das figuras do bumba do Maranhão, conhecidas por sua riqueza e detalhes; ou mesmo das figuras de outros folguedos característicos de Pernambuco, como o maracatu e o caboclinho. Nesse trabalho eu faço tudo sozinho. Uso arame, tábuas, caibros, prego, cipó, cabelo, cordão, estopa, pano mais fino, tinta... Esculturo primeiro e depois começo a cobrir. Na olaria de um particular, Bebinho Salgado, em Dois Irmãos – bairro de Recife –, Capitão Pereira apresentou-se durante quarenta anos, mas a Mustardinha sempre foi o seu chão preferido. Lá foi o lugar que eu dancei mais. Hoje já estou mais cansado. O meu filho é que está dançando. Mas, assim mesmo, de vez em quando eu danço.

Natal (RN), 1976

Para quem quiser, ele conta a história sobre a origem do bumba, tal como lhe foi narrada há setenta anos por Chico Pepeta – um velho conhecido seu. Eu fiquei com esta história. Contam outras, mas a que eu sei é esta. Tudo foi traçado no tempo do cativeiro. Um grande fazendeiro, muito rico, lá do sertão, perdeu um boi valente que ele tinha. O boi se chamava Tupi, e com o correr do tempo teve uma coisa e morreu, sem que o fazendeiro pudesse dar jeito. O homem ficou desesperado, sem querer enterrar o boi. E o boi cheirando mal. E os amigos chegavam e davam conselho pra enterrar o boi – e nada. Até que chegou um mais curioso e deu a ideia: tirar o couro do boi, sem defeito, curtir e espichar na vara; depois, fazer uma armação e cobrir com o couro do boi, já seco. O fazendeiro aceitou a ideia e assim mandou fazer: arame, tábuas, cipó, etc... Depois de pronto, o bicho ficou

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ANIMANDO A BRINCADEIRA Antônio Pedro

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Dedé no mesmo formato do Boi Tupi. Aí fizeram o resto da invenção. Um camarada entrava embaixo daquela armação toda e começava a andar. A boiada passava e rendia homenagem àquele boi. Fazia menção porque sentia o mesmo ensejo. Foi aquela animação, todo mundo queria ver o boi. Um dia, um senhor que tinha os negros dele, a pedido deixou eles irem ver como era a novidade. Os negros gostaram, e, como não tinham nada com que se divertir, pediram um dinheirinho ao seu senhor pra fazer um boi parecido com aquele, o que foi prontamente dado e prontamente eles fizeram. Não com tanta aparência, porque não tinha o couro, mas assim mesmo, de pano, ficou bom. Depois os negros imaginaram: ‘Como é que a gente brinca sem ter um toque?’ Foi quando veio a ideia: ‘Vamos fazer uma zabumba.’ Arranjaram um barril de bacalhau, um pedaço de couro, e fizeram. E aí disseram que o boi com a zabumba só podia ser o bumba-meu-boi. As outras figuras foram chegando, sempre saindo do juízo deles, pelas histórias que sabiam e viviam. Em sua casa de alvenaria, em uma área de passagem, o Boi, com quase dois metros de comprimento, está como que em pé, suspenso por uma corda, guardado junto à Ema e ao Cavalo-Marinho. Das apresentações, onde é coordenador e responsável, o Capitão tira o sustento da família. Ajudam também, na manutenção da casa, as encomendas de peças grandes, em tamanho natural, e de pequenas, sobretudo do Boi e do Cavalo-Marinho, que são as mais solicitadas. Em São Paulo e aqui no Recife, na mão de colecionador, de particular, em museu, em galeria, existe peça minha das grandes e das pequenas. Sou muito conhecido, até já fizeram um filme sobre mim. Mas, para quem é tão conhecido, Capitão Pereira vive, como a maioria dos artistas populares, em extrema pobreza. Recentemente, um contrato para apresentações mais regulares tem melhorado um pouco sua situação financeira. Sempre risonho, bem disposto, desafia seus setenta e quatro anos, possivelmente animado pela brincadeira que tão bem vive.

Em Acaú, praia da Paraíba, Dedé – com seus quarenta e oito anos, mas aparência de trinta – é figura conhecida e festejada. Responsável pela vida brincante de um bumba-meu-boi, divertese com as crianças de todas as idades da redondeza. Meu nome é José Antônio Vicente, mas sou conhecido como Dedé. Nasci em Nazaré da Mata, Estado de Pernambuco. Quando eu tinha seis anos, meu pai se mudou pra Atapus, uma praia aqui perto. Por aí ficamos uns quatro anos, depois a gente veio pra Carne-de-Vaca, aquela praia ali defronte, eu já estava com uns dez anos. De Carne-de-Vaca passamos pra Miramar. Foi quando atravessamos a Barra de Goiana e meu pai ficou morando lá na cidade mesmo. Então arribei pra João Pessoa e lá passei oito meses. Depois vim pra um sítio chamado Barrocão e aí inventei de me casar. Foi quando cheguei pra esses mundos daqui. A temporada mesmo foi em Acaú. De lá pra cá só passei um ano fora, numa ilhazinha chamada Calçada, terreno da usina Santa Teresa. Lá eu plantava, moía farinha e pescava. Já vai com vinte anos que eu brinco. Eu comecei com o Cavalo-Marinho. A origem disso veio de minha ideia mesmo. Meu pai não queria que ninguém saísse do mocotó dele. Aí eu, garoto, fugia e ia espiar a brincadeira do Cavalo-Marinho. E em casa, escondido, eu pegava a idear. Quando meu pai chegava eu disfarçava e, assim, eu fui exercitando até encontrar Zé Anjo e João Anjo. Eles brincavam há muito tempo. Já estavam continuando o que outro mestre tinha deixado. Todos dois são muito bons, só vendo as mungangas que eles fazem na brincadeira. Hoje em dia, Zé e João Anjo não brincam mais, a não ser como convidados para uma apresentação especial. Vivem da pescaria e, com essa atividade, sustentam suas numerosas famílias. Pescaria é como jogo: um dia dá mais, outro dia dá menos, outro dia não dá nada. Por aqui, dá muita pescaria e arrancagem de mariscos. Os mariscos são mais as mulheres e os meninos que vão apanhar, ali nas coroas. A mulher de Dedé também participa desta atividade:

Recife (PE), 1975

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ANIMANDO A BRINCADEIRA Capitão Pereira

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Esse serviço de marisco é muito pesado. Quando a gente vai pro canal, vai na canoa e traz o balaio dentro dela até aqui bem pertinho, pelo caú (braço de maré que corta a praia, paralelo ao mar). Agora, quando é aí pelas coroas, o balaio vem na cabeça: é ruim pra danar. A mulher daqui de junto carregava até dois balaios, um em cima do outro, pois agora está paralítica. É muito trabalho pra um apurado muito pouco. A gente vai pras coroas, arranca aquele bocado de mariscos, bota no fogo. Com a quentura ele se abre, aí a gente vai debulhar, quer dizer, tirar o miolo de dentro, pra então vender pra revendedor. Pra veranista a gente vende por um pouquinho mais, mas sempre é muito pouco. O resto do marisco, quer dizer, a casca, a gente também vende. Tem caminhão de uma fábrica de cal que vem e leva às carradas. Eles trazem uma caixa grande (1m³) que é a medida. Vão enchendo e despejando no caminhão. Vestindo-se de Cavalo-Marinho, Dedé posa com Zé Anjo, seu antigo companheiro de brincadeira. É tocante a pobreza de suas figuras do bumba: um grande Boi com chifres naturais, coberto de plástico preto, manchado de vermelho e branco; o Cavalo-Marinho, com cabeça e pescoço em madeira, preso a um meio samburá de cipó grosso coberto com uma saia; e uma caveira de burro pintada, com armação semelhante à do Cavalo. Completando o singular conjunto, algumas máscaras em papel de cigarro colorido e prateado, mais um capacete de lata com um pássaro em papelão. Esse Boi faço assim: faço aquela armação de madeira, vara, cordão e cubro com o pano – eu tinha outro boi mais bonito, todo de pano, que troquei com um rapaz de Goiana. Depois de tudo coberto eu faço a pintura: as malhazinhas redondas, branca, vermelha e preta. A cabeça eu procuro dentro dos cercados, dos bois que morreram. Com a Burra, já é diferente. Procuro saber onde enterraram, deixo passar um tempo pra sair aquelas carnes. Quando não está mais com catinga eu faço como o Boi. Mando fazer um balaio, com licença da palavra, sem os fundos, compro três ou quatro sacos e visto aquela saia pra não ficar no cipó. O Panicum é do mesmo jeito da Burra, quer dizer, faço com balaio também. Agora, o Cavalo, a gente faz de madeira, com a esquilina (crina) de cavalo mesmo, porque esse aí é todo de madeira. O problema das máscaras eu resolvo com a forma: faço a cara de barro e depois vou botando papel de cigarro e grude.

A criançada ao redor mostra, espontaneamente, como se brinca com o Boi de Dedé. Na areia da praia, entre os coqueiros, de improviso, o espetáculo acontece: correndo, mexendo, rindo, as crianças falam, assim, do lugar e da importância daquele folguedo ali. Primeiro eu fui brincando com Zé e João Anjo e fazendo a experiência. Depois eles deixaram, e aí eu tomei conta. Se eu tenho inteligência, eles têm muito mais que eu. Zé Anjo fazia Boi muito bem. Quem não conhecer, topa um boi desse de noite, pensa que ele está vivo. Peguei a prática com eles. Quando eles foram se cansando, eu disse: ‘Ah, esse lugar não vai ficar desanimado!’ E toquei pra frente. Antes eu pescava, levava peixe e marisco pra Goiana e, com o apurado, fazia uma feirinha. Mas depois a pescaria eu deixei, mode o derrame. E aí, o que me ajudou foi primeiramente Deus, depois a brincadeira. Era uma dança, uma Ciranda, um Cavalo-Marinho, e fui ficando bom. Eu gosto muito de brincar, mas a situação nem sempre permite. A dona do sítio vem e se encabula: ‘Você aí com esses troços.’ Eu gosto do meu Cavalo-Marinho e faço tudo pra continuar brincando, mas vivo correndo pra ganhar um dinheirinho. Trabalho na colher (pedreiro) e ajunto (conserto) rede, armadilha, tiro pedaço, boto pedaço, faço tudo. A brincadeira não está mais organizada por causa da situação. Quando brinco, eu é quem gasto e arranjo dinheiro com o povo pra pagar o pessoal. Uma mixaria, e tem vez que o dinheiro não dá. Aí eu tiro do meu e gratifico todo mundo, pra ninguém ficar com queixa. Na brincadeira, tem os Folgazões que não são contratados, mas vão botando a sorte para os mais conhecidos, e assim arranjam um dinheirinho: ‘Vou botar a sorte pra você ser bonito, belo, maravilhoso.’ Tem também a Catirina, uma mulher com a cara toda pintada com tisne. A Sapa é um bichinho coberto com um pano, igualmente a um sapo. Tem dois cordões amarrados aos pés dos tocadores e então fica só pulando. Tem a Ema: aí vai um homem embaixo e aquela armação de madeira e folhas por cima. Os Lebres têm uma máscara de orelha em pé. Esses aí, quem apresenta são uns três, quatro, cinco meninos, abaixadinhos, dançando muito animados. Outra é a Formosura, com um cabaço pendurado no cabo de uma enxada. E ainda a Moça do Folharal. Nessa aí, então, a gente manda fazer uma cabeça grande, bem feita, de boneca, e veste aquele vestido comprido: um homem brinca em pé, debaixo dela. O Cavalo-Marinho ainda tem os arcos de cipó com um grande comprimento, enfeitados de papel. Um mestre fica somente pra ensinar aquelas partes da brincadeira com os arcos. São seis homens e, na hora da brincadeira, cada um tem de dizer uma boa. Eles passam por baixo dos arcos, dançam, cruzam, fazem as voltas, trançam. E o mestre pra destrançar tudo. Tem também o Valentão, com espingarda, dando aquelas explosões de brabo. Os versos vão passando de um pra outro, de cabeça. O pessoal todo aqui gosta muito da brincadeira. É aquele mundão de gente atrás. Agora, quando a gente passa a bandeja, vai tudo se afastando; depois, quando passa o problema, volta tudo. O que eu consigo, só dá mesmo pra pagar os outros que brincam: pra mim, não tiro nem o sabão pra lavar a roupa da brincadeira. Vou assim, na graça, porque gosto!

Acaú (PB), 1977.

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Ana das Carrancas Domingos Bitinho Manelito Jocanto

Do final do século XIX até o final da década de 1950 navegavam, entre Santana do Sobradinho e Pirapora, pelas águas do Rio São Francisco, embarcações características desse trecho do rio, conhecido como Médio São Francisco. Até por volta de 1920, tais embarcações desempenharam papel de relevo na vida econômica e social da região. Chamadas simplesmente barcas, subiam o rio impulsionadas por varas e desciam levadas pelos remos, movidos pela força dos remeiros que, com seus cantos – atravessando o silêncio do vale – , anunciavam sua passagem. Com sua cobertura de palha, simples e despojadas, efetivando o contato entre os centros produtores e consumidores da região, as barcas carregavam consigo as histórias do povo e as lendas do rio. Caboclo-d’Água, Mãe-d’Água, Cachorrinha-d’Água, Cavalo-d’Água, Minhocão – algumas das entidades míticas que viviam no São Francisco, segundo os habitantes ribeirinhos – eram enfrentadas pelas frágeis embarcações que ostentavam em suas proas, como ornamento maior e único, figuras zooantropomorfas esculpidas na madeira. A origem dessas esculturas é até hoje controvertida, admitindo uma série de hipóteses referentes à sua função primeira. Talvez tenham surgido como indicação de propriedade e status social dos fazendeiros que, imitando os navios estrangeiros que já traziam figuras de proa, ostentavam, também em suas embarcações, as carrancas, diferenciando-as das demais. Nesse sentido, a carranca identificaria o proprietário da embarcação, afirmando assim seu poder e prestígio junto aos povoados ribeirinhos. Outra interpretação é a que relaciona a presença das carrancas a uma necessidade principalmente econômica, tanto dos fazendeiros como também dos barqueiros, muitas vezes proprietários de barcas. As esculturas seriam, nesse caso, utilizadas para atrair a atenção das populações, que viviam nas margens do São Francisco, para os produtos que eram comercializados através do rio. A versão mais divulgada, contudo, é aquela ligada às tradições populares e que identifica a origem das carrancas a uma função protetora. Veiculada pelo povo ribeirinho, essa interpretação se difundiu e, com ela, a proliferação das carrancas. Estabelece-se a relação daqueles que produziam as carrancas com o que eles desejavam dominar. A componente mágica do rio São Francisco funde-se com a vida daqueles sertanejos. As carrancas, com seus traços assustadores, comporiam um monstro mais temível do que os originários do São Francisco que, com sua presença, não se aproximariam das barcas. Como não se aproximariam também os conhecidos – e não menos temidos – animais do rio, especialmente o jacaré e o surubim. Seja por um desses motivos, ou por todos eles, as barcas do médio São Francisco tinham, sempre, suas figuras de proa, pelo menos desde o final do século XIX, quando se tem notícia das primeiras carrancas. Foi também esse o momento do advento da navegação a vapor no rio. Embora sem constituir forte concorrência às barcas – que conseguiam realizar o transporte fluvial por um custo menor –, a navegação a vapor significou o indício de um futuro próximo que viria a registrar o declínio definitivo das antigas embarcações. Uma das hipóteses que delimita o início desse processo seria a instalação de dependências da Capitania dos Portos em Juazeiro (1919) e Pirapora (1922). Ao tentar regulamentar a profissão dos remeiros, impunha aos proprietários das barcas normas que os mesmos não tinham condições de cumprir. E, em 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho, pelos mesmos motivos, teria determinado, praticamente, a extinção do antigo meio de comunicação do São Francisco. As grandes embarcações, provenientes do baixo São Francisco, mais leves, velejando facilmente e muitas vezes utilizando motor, com uma tripulação bastante menor do que a das barcas, passam a dominar o rio. As barcas com suas antigas características desaparecem e, com elas, as carrancas, muitas vezes abandonadas às margens do São Francisco como marco de um

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tempo passado. A história das carrancas, enquanto objetos destinados às barcas – e somente por elas utilizados – termina nesse momento. Uma nova história se inicia com a recuperação dessas peças, a partir dos anos 50, tomadas agora como objetos de arte popular – presentes em museus, exposições e coleções particulares. Em torno de 1970/71, chegaram as lanchas rebocadoras de grande calado, e o diretor da Companhia de Navegação do São Francisco teve a ideia de dotá-las de carrancas, revivendo a antiga tradição e tornando-as símbolo do rio São Francisco. Até esse momento, a produção de carrancas encontrava-se praticamente concentrada nas mãos de Francisco Guarany, cuja obra está ligada às próprias origens das esculturas de proa. A maioria das barcas possuía carrancas de sua autoria. E, quando do redescobrimento dessas peças como objetos de arte, após 1950, Guarany continuou como centro desse processo. Produzindo para o novo mercado, conservou sempre a extrema vitalidade que caracteriza seus trabalhos. Se antes o mercado de carrancas encontrava seus limites em museus, exposições e coleções particulares, com a nova divulgação, a partir dos anos 70, as figuras de proa disseminaram-se pelas lojas de artesanato e souvenirs das duas cidades e, mais tarde, de várias outras regiões do país – integradas já no contexto de promoção turística. Nesse novo meio, Ana das Carrancas e Domingos, em Petrolina, Bitinho, Jocanto e Manelito, em Juazeiro, desenvolvem suas produções. Para esses artistas, as carrancas destinadas às barcas fazem parte de um passado remoto, diluído na memória do povo. As versões – muitas vezes contraditórias, outras vezes complementares – da origem dessas esculturas aparecem, no discurso desses carranqueiros, como fragmentos de uma história que não é mais a sua. Suas peças estão definitivamente voltadas para lojas especializadas, galerias de arte ou particulares interessados. Como se situam os artistas e sua produção sob tais condições? Ao que tudo indica, o comércio das carrancas atualmente começa a entrar em uma fase de relativo declínio, pelo menos para aqueles que se encontram diretamente envolvidos com sua produção. A proliferação de lojas de artesanato na região desviou o afluxo de turistas que antes procuravam diretamente os artistas para a aquisição de seus trabalhos, o que, para alguns, restringiu muito a venda de suas peças. Por outro lado, a intensificação da procura desses objetos, ocorrida em inícios da década de 1970, como foi visto, motivou o aparecimento de novos carranqueiros e, consequentemente, o aumento da produção e da concorrência. Em seguida, o mercado, encontrando-se saturado, já não absorvia mais no mesmo ritmo a produção desses objetos. A própria escassez de melhores alternativas de trabalho na região, com uma indústria ainda nascente e a agricultura dominada pelas grandes propriedades, apontava para o ofício de carranqueiro como uma opção possível. Hoje em dia torna-se difícil garantir a sobrevivência unicamente através da produção de carrancas. Bitinho, Manelito e Jocanto dedicam-se também a atividades paralelas, embora Ana e Domingos – mesmo reconhecendo e vivendo a dificuldade do momento atual – persistam, tendo como única fonte de renda suas esculturas. A expansão do mercado das carrancas – identificadas a objetos de arte popular, peças decorativas ou souvenirs – e a proliferação dos carranqueiros provocaram o aparecimento de peças onde, muitas vezes, se torna difícil encontrar a força das antigas figuras de proa. Muitas delas são estilizadas, com entalhes simplificados, denotando – na forma e acabamento – as injunções de um comércio que, na grande maioria dos casos, procura unicamente adequar o trabalho de arte ao nível da demanda do mercado. Nesse contexto, como prova de que, embora integrada a um novo circuito, se faz possível uma produção de carrancas com a marca e a força do artista, encontram-se os trabalhos de alguns carranqueiros de hoje.

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Ana, que ficou conhecida como Ana das Carrancas, modela no barro suas figuras. Na realidade, suas carrancas guardam muito pouco ou quase nada das carrancas tradicionais: desde o material empregado (o barro) até as formas, ditadas também pela própria matéria-prima, que não permite o mesmo tipo de esculturação e efeito da madeira, material utilizado nas carrancas antigas. Dessas, as de Ana retêm apenas a ideia mais geral da representação de figuras imaginárias, fantásticas, espantosas, misto de animal e ser humano. Das mãos de Ana surgem no barro formas que, mesmo derivadas das antigas figuras de proa, como por exemplo os grandes olhos, são amplamente transformadas, revelando o poder criador da artista. Já Domingos, genro de Ana, transforma a madeira em carrancas que guardam, muitas vezes, uma proximidade maior com as antigas, embora trazendo sempre sua marca pessoal. Apesar de não levarem pintura – como as de Francisco Guarany –, suas peças lembram em muitos traços as deste artista, principalmente no entalhe das grandes bocas, sempre abertas, com dentes cuidadosamente recortados na peça única de madeira. Bitinho, Manelito e Jocanto já seguem um outro caminho na esculturação das carrancas. Suas figuras levam sempre pintura em contrastes fortes, onde predominam o vermelho, o negro, o branco, e mesmo roxo ou marrom. São peças que, de modo geral, estão mais próximas da preferência do grande público, fomentado pelo turismo – e aí têm seu mercado. Conseguem, contudo, manter o domínio e o cuidado no entalhe, aliados ao esmero no acabamento. Ana, Domingos, Bitinho, Manelito e Jocanto – cinco carranqueiros que, por caminhos diversos, continuam a tradição das carrancas, delimitando um novo momento em sua história. História marcada por períodos de proliferação e recesso, mas que, através da tradição e das mãos do povo, é retomada.

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Ana das Carrancas Natural de Ouricuri, no sertão pernambucano, filha de artesã e agricultor, há vinte anos Ana das Carrancas veio para as margens do São Francisco. Hoje, aos cinquenta e quatro anos de idade, sente-se uma moça. Parece que tenho quinze anos. Pra minha arte parece que estou nascendo agora. Logo que cheguei em Petrolina pedi a São Francisco de Chagas e a Padim Ciço que mostrassem uma forma de ganhar dinheiro. Eu estava num fracasso, fazendo pote e panela e tinha muita louceira. Então roguei que me desse uma luz, me ajudasse, me orientasse pra que eu melhorasse minha situação, pra que minha filha pudesse estudar e meu marido não pedisse mais esmolas, que eu prometia, doente e sadia, trabalhar domingos e dias santos. Um dia fui pro rio, que eu carregava água do São Francisco em lata. Aí, lá, lembrei-me daquilo que eu tinha pedido. Vi que tinha barro de várias espécies: branco, verdinho, amarelado – eu uso todos misturados. Então fiz um barquinho o pensei assim: nessa água tem muito peixe, pode ter até peixe que ofende uns aos outros. Se o barqueiro fizesse uma carranca, um bicho feio, aquela caveira de um animal e botasse no beiço do paquete e pescasse, uns peixes admiravam e os outros não atacavam, como a piranha, que come os outros peixes. Fiz o barquinho de barro e botei o nome de Gangula. Pensei: nesse barco viaja um velho com um menino pra vender jerimum. Botei o velhinho dentro com os jerimuns – uns bolinhos de barro pra fingir que era jerimum – e o menino. E fiz a cobertinha de barro, pensando que era palha, e a carranca na frente. Deu sorte. Aos sete anos, em sua cidade natal, Ana Leopoldina Santos Lima, a Ana das Carrancas, já ajudava sua mãe a fazer louça de barro. Daí ela foi pegando gosto e fazendo panelinhas, bois zebus, cavalinhos e santos para lapinha. Aos vinte e dois anos, casou-se com um pedreiro, enviuvando

quando já tinha duas filhas. Um ano depois casou-se com o marido atual, o piauiense José Vicente de Barros, no tempo em que ela morava em Picos. Hoje vivem em Petrolina: Ana, sua mãe velhinha, o marido que está cego e uma filha moça, em uma casinha simples e bem arrumada. No muro da frente, três carrancas fixadas – uma no meio e uma em cada ponta – indicam o ofício da moradora, já conhecida e respeitada. Mas não foi sempre assim. Em Petrolina, de primeiro, o pessoal fazia mangação do meu trabalho. Dizia que era coisa de doida, de uma maluca, uma idiota. Eu nunca liguei. Até que Jesus me deu a graça de ter quem gostasse da minha arte. Foi em 1963 que eu comecei a fazer carranca. Para a inauguração da Biblioteca Municipal fiz diversos barquinhos que foram a atração do pessoal. Fiz também caras de moça, de índio, fiz diversas coisas. Eu botei o nome de carranca porque eu penso que carranca é um bicho feio. Eu fazia a peça feito um animal com aquela cara feia. Depois, encontrando mais pessoas, falavam que tinha barca com carranca que botava até uns penachos na cabeça pra espantar mau-olhado. De noite, antes de ver a barca, já via o penacho que era pra chamar a sorte. Agora, isso é lenda. Eu fiz como símbolo do São Francisco. Não penso em espírito. Eu, graças a Deus, nunca fui nem em terreiro. Então não devo incutir ninguém que isso seja para espantar espírito. Não é que eu ache que não exista. É porque não devo agravar o espírito. Não sei se ele é bom ou ruim. Eles são invisíveis. A gente não está vendo eles, mas eles estão vendo a gente. Assim, não devo atacá-los. Eu faço carranca no sentido de melhorar minha situação, e agradeço onde elas estão sendo valorizadas. Eu me valorizo porque acho que quem é que eu sou pra objeto das minhas mãos, tirado do meu juízo, viver em casa de pessoas que eu nem sonho quem são? Depois que eu comecei a fazer carranca é que eu ouvi falar do Sr. Francisco Guarany, de Santa Maria da Vitória, o mais antigo dos carranqueiros, vivo ainda hoje. Mas eu sei que quem inventou carranca foram os africanos. Ana conta que ouviu histórias, de seus antepassados escravos, de que as figuras do demônio apareciam no rio para amedrontar os filhos dos patrões brancos. Elas que não atemorizavam os negros porque eles espantavam os espíritos com aquelas caras de bichos. Tem pessoa que acha que eu sinto qualquer remorso por fazer figura feia, que eu tenho medo. Eu não tenho. Eu não sinto nada quando vou fazer uma figura daquelas, nem também penso que essas carrancas sejam pra espantar o espírito. Agora, o espírito mais forte que eu sei é o jacaré. Eu não quero aborrecer o espírito porque espírito merece respeito, mas minha crença não dá pra isso. Os animais mais brabos que tem nas águas são um tal de surucucu e o jacaré. As carrancas espantavam esses bichos. Eles vendo a carranca não chegavam, tinham medo. O jacaré é que é o espírito mais perigoso. O pessoal diz que a carranca dá sorte. Não sei o que é, se é incutimento. Só sei que, incutimento ou não, é bom pra mim, eu vou arranjando a minha nota. Depois que eu comecei a fazer no barro, e Domingos, meu genro, na madeira, é que estourou. Antes ninguém mais fazia. Mas carranca de cerâmica vai

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Domingos se acabar, vai desaparecer, porque tem muita de madeira. Ninguém vai querer de barro porque quebra. Quando a de cerâmica começou, não tinha de madeira, todo mundo dava valor à de cerâmica. Agora, como todo mundo faz de madeira, maquilada, enfeitada, toda pintada, a de cerâmica caiu. Ainda hoje, Ana e sua filha Maria da Cruz são as únicas fazedoras de carrancas que usam como matéria-prima o barro, sem pintura, passando, quando muito, verniz copal, pra não tirar a naturalidade. Quando eu vejo uma filha que pega no bolo de barro e faz uma peça, um genro que pega num pedaço de pau e faz um bicho desses aí, então eu fico muito feliz. Ele é marceneiro fino, fui eu quem botei na cabeça dele de fazer carranca. Eu dizia pra ele: ‘Meu filho, descubra a madeira que eu já descobri o barro.’ Eu gosto do trabalho no barro porque nisso eu nasci e nesse ramo acho que vou morrer. Eu me sinto feliz trabalhando no barro. Com dois anos já peguei no barro. Com sete iniciei a arte. E eu não posso fugir daquilo que eu sei. Sou louceira e louceira eu termino. É Ana mesma que tira o barro no leito do rio, a meio metro de profundidade. Coloca-o para curtir durante três dias, corta com a enxada, molha, passa na engenhoca para amassar, machuca na mão para tirar as pedras e, então, começa a modelar, usando o torno apenas para as peças pequenas – as maiores são levantadas no chão.

Domingos da Trindade Lopes tem vinte e nove anos e, como toda a sua família, nasceu, criou-se e sempre viveu em Petrolina, às margens do rio São Francisco. Embora ninguém em casa trabalhasse com madeira, desde os doze anos ele já se iniciava nesse ofício: trabalhava como ajudante de marceneiro nas oficinas dos outros, fazendo móveis. Casado em 1971 com uma filha de Ana das Carrancas, Domingos vive hoje com sua família – a mulher e cinco filhos – exclusivamente do trabalho de escultura. Foi com o casamento que veio a motivação e inspiração para o tipo de atividade a que Domingos agora se dedica. A proximidade do trabalho de Ana e o seu incentivo levaram-no a tentar fazer os mesmos motivos que ela trabalhava – as carrancas. Quando comecei, em 1971, não conhecia ninguém que fizesse carranca de madeira e de cerâmica – só D. Ana. Acho que talvez tenha sido o primeiro. Só se tivesse algum outro aí que a gente não conhecia. Hoje em dia já tem muita gente que faz. Eu preferi este trabalho porque achava que dava melhor do que trabalhar de empregado. Achava não, é melhor porque pelo menos a gente trabalha por conta própria, à hora que quer. As carrancas que eu fazia não eram desse jeito. D. Ana não tem uns cinzeiros assim com uma carinha? Eu fazia era como aqueles cinzeiros, sendo que de madeira. Depois é que fui trabalhando em carranca grande. Uma galeria de Recife encomendou algumas carrancas, e uma pessoa de lá trouxe um carranca antiga. Foi aí que eu mudei de estilo e passei a fazer quase igual às antigas.

Começo a trabalhar às seis horas e vou até às duas horas. Aí eu vou almoçar. Passo uma meia hora em casa, depois volto e só largo umas dez horas da noite. A carranca que a gente começa tem de terminar, porque senão fica feia. A gente prepara tudinho num dia. Aí cobre com plástico pra no outro dia dar o acabamento. Se secar não presta não. Da pequenininha, de mais ou menos 10cm, faço cinco por dia. Da maiorzinha, mais ou menos 30cm, faço três, e da grande, de até 1m, levo três dias. Faço também Cristo, moringa com corpo de gente, índio feito jarro. Mas o que eu gosto mais de fazer é carranca. Com suas peças em galerias, museus e coleções particulares, um nome já conhecido e respeitado, a dura luta pela subsistência continua marcando o seu dia-a-dia. Tem tempo que eu passo um mês sem vender uma peça. A minha felicidade é que eu guardo um pouquinho ou então tomo emprestado a meu genro. Se não fosse isso... Quem compra mesmo são os de fora: vêm de Brasília, vêm do Rio, vêm de São Paulo. Mas não é todo tempo. É principalmente nas férias, quando não tem aula. Não vendo certo pra nenhuma galeria, só pra quem vem mesmo em Petrolina. Assim vou vivendo numa luta muito grande que vem de muito tempo. O começo de minha vida eu nem gosto de relembrar porque eu sofri. Carregava lenha de duas léguas no peito e na cabeça. Levava louça pra feira no pano da gente se embrulhar. Fazia uma trouxa de louça, pote e panela e levava pra vender. Eu podia ser empregada de indústria mas, por causa do meu sofrimento e porque naquela época não tive meios de nada, não tive direito de ninguém me chamar pra me apoiar. Então eu tenho que entender que foi o barro, a terra que vai me terminar. Então foi ele que me deu o direito. Daí eu não me separo dele pra coisa nenhuma, porque eu amo aquilo que ama a mim. A terra, o barro é um caco de mim. Eu me sinto feliz, honrada de trabalhar em cima disso que sei fazer. Tenho calo nos dedos, mas me sinto feliz. É o meu diploma.

Petrolina (PE), 1977.

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Até algum tempo atrás, Domingos e sua família moravam com Ana. Depois ele comprou a casa vizinha e, recentemente, vendeu-a para construir aquela em que moram agora – bem em frente, do outro lado da rua. É uma casa de alvenaria, piso de cerâmica, espaçosa, com sala e quatro quartos, um dos quais funcionando como oficina. O ambiente revela o progresso que o artista tem experimentado e a afirmação do valor que ele tem conseguido imprimir a seu trabalho. Estou achando bom, muito melhor mesmo do que ser marceneiro. Basta dizer que a gente vive hoje em casa própria. A gente sofre, passa um, dois dias sem dormir, andando pelo meio do mundo, mas, quando a gente vende, paga o que deve e não fica mais aperreado. Recebo encomenda e também vou fazendo. No ano passado, recebi uma encomenda de cento e oitenta carrancas do BANORTE, e cem do Banco Nacional, de Brasília. Aqui, tendo carranca, é bom quase todo tempo. Eu tenho carranca de vários preços. Às vezes o tempo é bom para a venda, mas a gente não tem carranca. Se a gente pudesse trabalhar e deixar... Por exemplo, eu vendo uma carranca por um tanto. Se eu deixasse aqui e esperasse o tempo, uma semana boa, eu vendia pelo dobro. Mas a gente não pode esperar. De qualquer jeito, vem muita gente aqui em casa. Não é sempre, mas dá pra sobreviver. Agora, é melhor vender pra uma galeria, mais barato, que vender uma, duas. Quando pego uma encomenda às vezes vendo até mais de dez carrancas. Mas também tem tempo que eu não tenho nem condições de pegar a madeira, nem de serrar. Fico quatro, cinco dias parado, sem condições de pagar o carro, gasolina e tudo.

Sobradinho. Então prejudicou mais a retirada da madeira. Às vezes é que eu pego ainda um pau ou outro fora da minha roça. No processo de esculturação das carrancas de Domingos, o primeiro passo é riscar a madeira no ponto onde vai ser cortada. Posteriormente é iniciado o entalhe utilizando goiva, formão, serrote e enxó. Suas esculturas são sempre de madeira natural, muito bem polidas, variando de 36cm a 1,30m. Todas trazem a boca aberta, aparecendo a língua e os dentes, e cabeleira em gomos largos. Os outros artistas que fazem carranca não fazem a boca assim. É diferente. Às vezes não tem dentes em cima, só tem uma presa colada. Agora já estão fazendo sem colar, mas de primeiro era colada. E os dentes não são cortados no mesmo bloco de madeira, são fabricados. E a língua sai por cima dos dentes, enquanto que nas minhas sai da garganta. Conhecendo as esculturas de Guarany – inclusive encontrando-se em sua casa, no momento da entrevista, uma carranca desse artista entregue a Domingos como modelo – ele estabelece uma comparação entre o seu trabalho e o daquele escultor. Nas minhas, o que mais se modifica é o nariz. A boca também muda um pouco, às vezes a língua é solta. O cabelo às vezes é do tipo do de Guarany, às vezes termina nas costas e pode ser mais ou menos trabalhado. As orelhas de minhas figuras são grandes, às vezes arredondadas ou terminando em pontas. São diferentes das de Guarany, que são parecidas com as de cachorro.

Domingos trabalha com dois ajudantes aprendizes – Zezinho e João –, seus primos, um de quatorze anos e outro de dezessete, que também começaram a fazer suas próprias peças. O horário de trabalho é intenso, tomando às vezes de quatorze a dezoito horas, dependendo do dia. Tem dia que estou com muita coragem e até vinte horas eu trabalho. No dia em que eu trabalho vinte horas, eu armo quatro carrancas, sem acabamento, de 50cm, e levo sessenta horas pra fazer uma carranca de 1,30m. Só posso trabalhar direto. Se eu parar, adoeço. Se eu trabalhar, por exemplo, um mês e passar oito dias parado, são oito dias doente. Doente de espinhaço, braço, as pernas doem, os ossos doem direto. Já acostumei ao trabalho, parece. Eu não bebo, nem fumo, nem danço. Não tenho farra nenhuma. Minha farra é o serviço. Estou vivendo só disso. Vibro mais do que quando fazia móveis. A arte é mais bonita. Isso pra mim é importante! As carrancas de Domingos – em imburana ou cedro – são esguias, bem talhadas, revelando a habilidade do artesão e sua capacidade criativa. A madeira é obtida em um sítio de sua propriedade. Eu comprei há bem três anos esse pedaço de terra. Tem 220m de frente por 600 m de fundo. Quando vou tirar a madeira, a família vai toda. Aí a gente fica na casa de uma vizinha, e eu passo três dias cortando pau. Agora a CHESF desapropriou e cercou tudo em redor, por causa da barragem de

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Bitinho Eu ouvi falar que essas carrancas antigas se botava nos barcos pra espantar os maus espíritos, diz a lenda. Eu acredito, porque hoje em dia em tudo a gente deve acreditar. De tudo há e tudo tem no mundo. Às vezes a gente pode imaginar que uma carranca livra até mesmo de um bicho feroz. Agora não se bota mais nos barcos, estão botando é em casa mesmo, nos apartamentos. Hoje, as carrancas antigas eles tiram dos barcos. Uma carranca antiga está valendo uma nota e o camarada não vai andar com uma carranca antiga no barco. Eles tiram e vendem. As antigas tinham um corte na frente. Na barca, punha um chapa com parafuso que encaixava pra segurar a carranca. Agora, quando eu comecei, já era pra vender pra turistas. Com a expansão desse comércio, alguns comerciantes chegam mesmo a montar fábricas de carrancas, prejudicando a produção daqueles que desenvolvem um trabalho individual. Aí tem um camarada que é lá de Recife. Ele está com uma fábrica de carranca e o sogro com outra. É só ele quem está vendendo agora lá no Recife. Ele tem condições. Os bancos ajudam vendo uma pessoa mais ou menos equilibrada. Ele tem condições de pegar aí dez ou quinze pessoas pra fazer carranca. Paga barato aos meninos, que trabalham por conta própria porque sabem trabalhar. Depois esse camarada vende as carrancas por quanto quiser. Aqui em Petrolina, conheço mesmo é Carlos e Faustino, que fazem carranca, mas sei que existem mais uns dez. As carrancas desses dois são muito diferentes das minhas. Eles trabalham bem. Não conheço os outros, porque aqui a gente quase não sai. Eu mesmo quase não saio de casa, a não ser pra ajeitar um caminhão pra pegar madeira. Senão, é ficar em casa trabalhando direto. Eu gosto desse trabalho. Agora, aqui em Petrolina, só é ruim porque a gente não tem ajuda. A cidade está crescendo e vai crescer muito mais. Indenizaram quase toda a beiragem do rio pra construir uma barragem de 14 km de comprimento e 45m de altura – Sobradinho. Dizem que vão substituir toda a eletricidade de Paulo Afonso. No entanto, Domingos sente que esse progresso não está beneficiando ainda a população, sendo poucas as alternativas de trabalho. As outras profissões que tem por aqui são muito fracas, com salários que quase não dão pra nada. A pessoa quer botar um filho pra ser alguma coisa e não pode. Plantar cebola é um negócio muito perigoso: quando dá comércio é muito bom, mas quando dá prejuízo, aí derrota tudo. Agora também eu não quero dizer que na profissão de artista seja tudo fácil. Ano passado eu queria ir pra São Paulo levar uma encomenda de dez carrancas e não pude. Lá em casa todo dia aparece um doente. Pra viver mais ou menos, como pobre, preciso trabalhar muito e ganhar uma certa quantia por mês, e só dá pra começar. Isso porque pobre já está acostumado com pouco.

Petrolina (PE), 1975/77

Trabalho em escultura desde criança, em madeira e até em ferro. Já fiz também espingarda. Meu pai fez espingarda durante quarenta e três anos. Aí, com doze anos, peguei a fazer também. Primeiramente eu fazia aqueles arremedos de nambu (apitos que imitam o som dessa ave). Depois passei a fazer aqueles cangaceiros de Lampião, em madeira mole. Sempre trabalhando nisso, mudando muito de lugar. Nascido em Taipu (RN), Severino Borges de Oliveira – Bitinho – já viveu no Ceará, na Paraíba, na Bahia, em Minas Gerais e em São Paulo. Morou quatorze anos em Juazeiro do Norte (CE) e há uns sete anos se estabeleceu em Juazeiro da Bahia. Hoje ele está com trinta e cinco anos de idade, é casado e tem sete filhos – cinco estão no Ceará e dois vivem com ele. Quando vim para as margens do São Francisco, peguei ideia: vi que fazer carranca dava dinheiro. Mas eu já fazia também, no Juazeiro do Norte, carrancas em espingarda. Não tem espingarda que chama carranca, que tem uma cara de macaco no coice? Cheguei aqui, já tinha a tradição da navegação, tinha o turismo. Então peguei a fazer dessa carranca que se faz na região. Há muito tempo existia carranca no São Francisco. Botavam nas barcas pra intimidar os Negros-d’Água, os demônios que apareciam, tempestade também, várias coisas. É a lenda que diz. Quando ia haver qualquer naufrágio, qualquer coisa, a carranca gemia. O povo diz que dava três gemidos. Aí a barca ancorava pra fazer algum socorro. Com o passar do tempo, vieram outras barcas. Agora elas eram a motor, como a ‘Sergipe’. Aí tiraram as carrancas das barcas. Quando a gente está com uma pessoa mais forte a gente não tem tanto medo de andar até de noite. A carranca intimidava muito qualquer natureza de animal. Os olhos eram pintados e a boca muito grande, escancarada. Hoje não continua assustando mais. Aquilo era só a presença de espírito mau. Era lenda mesmo. Agora, dizem que na casa que se usa carranca não dá muito azar. Dizem que é bom, dá sorte nas casas. Mas, há uns seis anos, você andava no comércio e não tinha carranca. Eu fazia, passava três, quatro meses pra vender. Mas depois foi evoluindo. Agora está fracando mais, tem muita gente fazendo. Eu tenho cliente certo: uma galeria, a lojinha do aeroporto, um rapaz de Petrolina. Tudo que eu faço tem saída: mando pra Salvador, pro Recife, pra São Paulo... Messias, um outro artista da cidade, parou porque fazia muito devagar, não tinha produção. Pra mim penso assim: que esta arte está vencida. Ainda vai durar um pouco, mas a vendagem está pouca. A gente tem que ir pra fora. Bitinho trabalha, com mais dois aprendizes, em um espaçoso galpão, de construção precária, ao lado de sua casa. Dependuradas nas paredes, velhas espingardas precisando de conserto. Pelo chão, pedaços de madeira espalhados e um grande toro de cerca de um metro, grosso e pesadíssimo, no qual uma carranca já vai se delineando. Tenho prazer em fazer. A gente trabalha com mais calma, faz na casa da gente, em qualquer canto... Só não faço mais porque me dedico também à arte do ferro. Faço espingarda e muitas outras coisas de ferro. Dá quase melhor que as carrancas.

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Manelito Viver só de carranca é mais difícil. Eu gasto muito. Mesmo com a família pequena, preciso ganhar melhor, senão já não pago a despesa. Agora só se fala em subir as coisas. Em sua oficina, Bitinho esculpe suas carrancas diretamente na madeira, sem qualquer desenho prévio, com o auxílio de serrote, escopo, formão, facas, serra-elétrica e torno. Para o acabamento, lixas e tintas. A matéria-prima (cedro e imburana) não constitui problema – consegue-a a quinze léguas de distância, fretando um carro pra o transporte. Faço carranca de todo tamanho. Tem de 10cm até 1,30m. De primeiro só fazia grande, do tamanho das carrancas das barcas. Mas não me inspirei nas carrancas antigas, me inspirei foi na minha arte mesmo. A gente faz também carranca antiga, mas não sai muito não. Revendedor procura mais é a da gente mesmo. Minhas carrancas são bem diferentes das dos outros artistas. As minhas parecem com macaco, sendo um macaco bem agressivo, com os olhos sempre puxados pra cima. Faço muitas pintadas porque a venda é maior. Uso mais o roxo, o branco, o preto e o vermelho. Agora, gosto mais na madeira natural. Dependente de um mercado instável e em declínio, que muitas vezes interfere na própria produção do artista, a escultura de carrancas ainda se coloca como um meio de vida. De uns dois anos para cá Juazeiro melhorou muito: veio muita firma pra cá, uns projetos do governo – Mandacaru, Maniçoba – que trouxeram muito dinheiro. Agora, tem muita gente que não topa um emprego, precisa muito documento, a base de salário é pouca. No Sul é mais evoluído. Aqui é um lugar que não tem agricultura nenhuma: chove, ninguém planta nada; se plantar não colhe porque passa tempo sem chover. Juazeiro (BA), 1975/77

Nascido em Senhor do Bonfim (BA), Manuel Messias Vieira – Manelito – veio para Juazeiro com cinco anos de idade. Atualmente com trinta e dois anos, vive, com a mulher e três filhos pequenos, em uma casa própria, de tijolo, onde o pouco espaço é distribuído em dois quartos e uma passagem. Trabalhou durante algum tempo a madeira, produzindo no torno cinzeiros, moringas e objetos diversos. Há uns cinco anos Manelito vendeu o torno e passou para o campo da escultura. Gosto muito da arte. Já estive no Rio, no Recife, em Salvador e me dei bem. O pessoal paga bem, recebo até gratificação. Antes eu trabalhava com madeira no torno, pra mim mesmo. Depois passei pra carranca. Tem mais encomenda de clientes de galeria. A gente anda mal de situação porque o artista é um pouco filósofo. Gosta de beber. Eu mesmo sou um cara que gosta de filosofia demais, gosto de andar por aí, de ler... Além disso, o trabalho de carranca não está tendo mais muita saída porque tem muita gente trabalhando nisso. Quando era só eu e esse menino, Bitinho, era diferente. Mas agora a gente anda pelas ruas, e toda rua tem uma pessoa que trabalha em carranca. Em Carnaíba, que fica a dezoito quilômetros daqui, se tiver mil casas, novecentas trabalham em carranca. Lá fazem carrancas piores e vendem mais barato. Como o turista não conhece, prefere essas. Todo mundo começou a fazer carranca porque dava dinheiro. Mas agora... Eu tenho muita vontade de ir pra São Paulo, só não fui ainda porque lá a dificuldade de madeira é demais. Lá em São Paulo a gente tem mais um grãozinho do que aqui. Aqui, o artista só tem valor quando vem gente de fora. O povo da terra não dá valor. Lá no Rio mesmo tinha um professor que me dava tudo pra eu ficar com ele: roupa, casa e um ordenado. Em Salvador me prometeram um emprego, mas não sei o que é. Eu tenho pena de deixar isso aqui, mas a situação não está permitindo que eu continue. Terezinha – sua mulher – também reclama da situação: Se eu não arranjar um emprego, vou embora pra São Paulo. Emprego aqui não tem nada, é muito ruim. Os vizinhos são soldados, negociantes, pedreiros, enfermeiras. Tenho pelejado pra arranjar algum lugar, pelo menos no hospital, mas a vaga é difícil. A oficina de Manelito é nos fundos da casa. Usando machado, serrote, enxó, facas, lixas e tinta, ele trabalha a imburana que vai buscar num riacho perto ou então em Campos, a uns 25km de Juazeiro. Dificuldade é a madeira. Agora mesmo, como tem chovido, o riacho está cheio. Quando não estava chovendo eu ia de bicicleta, mas não tinha quem cortasse. Então estou parado porque não tem material. Fora as carrancas, faço figas, talhas e Cristos. As carrancas variam de 40cm a 1,50cm. Levo quinze dias pra fazer uma grande. A gente faz uma coisa assim, fora do comum, que não pode nem definir o que é. Faz uma cara feia imitando um gorila ou um cachorro e na mesma hora parece um cavalo, em outra hora parece outra coisa. Assina sempre suas peças, geralmente feitas sob encomenda. Dependendo

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Jocanto do gosto do cliente, suas esculturas são pintadas ou na madeira natural. No primeiro caso, as cores mais utilizadas são o branco, principalmente nos dentes e nos olhos; o vermelho, na língua; o roxo, nos lábios e nos cabelos. Comparando seu trabalho com as carrancas antigas, Manelito demarca as diferenças de estilo: O meu estilo é um só. Agora, vem uma pessoa e diz: ‘Quero uma carranca nesse estilo assim’ – aí eu faço. Mas, para eu fazer por minha conta, só faço num estilo. Só que é um pouco diferente das antigas. As minhas são mais bonitas, têm mais trabalho. As de antigamente têm nome justamente porque têm tradição, mas não tinham arte. Eles pegavam a madeira do jeito que era, sem lixar, sem nada. Via-se até os cortes do formão. Eram mal trabalhadas, tortas. Eu não. Eu pego um pau desse aí, aliso ele do jeito que a gente passa a mão e não acha uma baixinha. Tudo polidozinho, bem pintadozinho. Faço as orelhas de gente mesmo. Antigamente, até as orelhas eles faziam só aquelas conchas. Não tinham os detalhes que têm hoje. Os dentes também, faziam tudo com falha, um lá outro cá. A gente não. A gente faz todo completo. Faz as presas, os dentes da frente, tudo certinho. O conhecimento de Manelito das antigas figuras de proa vem não apenas do museu de Petrolina, mas também das barcas que ele via navegar no São Francisco, como a Minas Gerais, a Mississipi, a Rio de Janeiro. Mas naquela época ninguém pensava que ia ter uma lenda tão maravilhosa como tem hoje a carranca. É uma lenda que todo mundo sabe. É uma escultura de proa que servia pra uma coisa, servia pra outra, servia pra afugentar espírito. Eu tenho pra mim que era só uma tradição, que todo mundo achava bonito. Ainda hoje os rebocadores têm carrancas, como o ‘Santa Doroteia’, o ‘Santa Efigênia’ e outros.

Juazeiro (BA), 1977

Com a idade de quinze anos comecei a trabalhar em escultura. Hoje tenho vinte e oito anos. Eu residia distante daqui nove léguas, nos matos, região de salitre, dentro do município mesmo de Juazeiro (BA), onde nasci. Foi uma ideia surgida de mim mesmo, sem ver ninguém fazer. Um dia eu achei que devia pegar um pedaço de madeira e fazer um santo – comecei com santo. Peguei uns pedacinhos de madeira pequenininhos, uma pontinha de faca e comecei. Ficou assim mais ou menos com uma pequena aparência de santo. Peguei um outro pedaço de madeira, aí já fiz um outro melhor. E assim foi começando a arte, fazendo nos tempos livres. Eu trabalhava numa roça e na arte chamada de funileiro, aquela arte de fazer peças de flandres: bacia, cuscuzeiro, candeeiro... Meu pai trabalhava em agricultura. Naquelas horas de folga eu ia fazendo: Nossa Senhora da Conceição, Santo Antônio, São Gonçalo, São Benedito, esses santos assim. Foi o tempo que vim aqui pra Juazeiro. Me empreguei na Companhia de Navegação, como funileiro. Foi quando surgiu aqui na região a coisa de fazer carrancas antigas. Isso foi em 1971/72. O comandante de lá mandou eu fazer carrancas. Ele mostrou. Ele tem vários livros de modelos antigos de carranca. As antigas eu conheço por foto. Já tinha uns que faziam aqui no Juazeiro: Messias, Bosco, Bitinho, Ana. Comecei então a viver disso, fazia carranca direto. Aí sempre apareciam os curiosos. Foi então que surgiram diversos feitores de carrancas. Embora José Arcanjo dos Santos, conhecido como Jocanto, se situe como um dos iniciadores desse tipo de escultura na região, ele sabe que a origem primeira das carrancas faz parte de uma história passada bem distinta da história atual na qual se insere. Desse passado ele traz alguns fragmentos. Eu já vi por um filme que passou. E vejo também algumas pessoas antigas falarem como foi que surgiram as carrancas na região. Botavam nas proas das barcas para espantar maus espíritos. Era para espantar novidades, essas coisas assim... Fiz muita carranca de encomenda pra Salvador, Recife, São Paulo, Rio, Brasília. Depois caiu o negócio de carranca. Há dois anos eu fiz uma encomenda de trinta e três carrancas pra CODEVASF, que ainda era SUVALE. Foi pra Brasília essa encomenda. Mas eu nunca faço pra revender. Chega uma pessoa, encomenda uma, duas carrancas, eu faço. Além das carrancas, há muito tempo que eu mexo em coisa de eletrônica. Conserto rádio, gravador, esses negócios assim. Trabalho lá no centro da cidade, já tem uns cinco, seis meses. Antes eu já cutucava uns radinhos aqui em casa. Tenho também um serviço de publicidade, de alto-falante: ‘A Voz do Povo’. Montei o negócio foi com o dinheiro de carranca. Antes dava, agora não está dando pra viver só de carranca. Tenho dois certificados de exposição, daqui mesmo de Juazeiro, da Universidade. E meu trabalho já participou de uma exposição no Rio. Eles vieram aqui, tiraram uma fotografia da carranca e lavaram pra exposição. Tirou o primeiro lugar e saiu uma revista com a fotografia da carranca na capa. Essa carranca encontra-se aqui, na Companhia de Navegação. Eu trabalhei um ano e seis meses lá. Depois saí, mas eles ficaram me chamando sempre que tinha trabalho de carranca pra fazer. É bacana, lá recebe muito turista, a gente fica muito conhecido. Jocanto viveu um curto período de tempo com muito trabalho, mal dando conta das encomendas. Mas, ao que parece, o surto de carrancas não se sedimentou a ponto de se constituir em uma alternativa de trabalho mais estável. O que mais relaxou o negócio é que eles começaram a fazer carranca de todo tipo de madeira. Usavam madeira verde, que com pouco tempo dá um bicho que fofa a madeira. Eu só faço de

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cedro, madeira seca. Aí foi caindo mais o negócio e agora não está bom não. O negócio caiu porque, de um ano pra cá, tem vários fazedores de carranca. Nem todos fazem igual. Quer dizer, uns fazem porque têm uma criação de fazer cada carranca de um tipo diferente da outra. Já outros vão fazer igual à que faço, não têm criatividade nenhuma – então aquilo vai desvalorizando. Logo aí no começo da ponte tem uma loja, uma botiquezinha; na rodoviária tem outra. Assim, as pessoas que vêm visitar Juazeiro logo de entrada veem as carrancas ali e compram. Quando não havia aquelas ali, então saíam procurando os fazedores de carranca. As carrancas de Jocanto revelam uma acentuada marca pessoal, distanciando-se tanto dos modelos das antigas figuras de proa como das de seus companheiros. Os olhos, por exemplo, são mais arredondados, e a boca e as narinas, mais fechadas. A carranca da foto, com seu cachimbo na boca – elemento inédito nesse tipo de escultura – , é um exemplo da originalidade das peças desse escultor. As carrancas são assim cara de coisa que não existe. Não tem animal do jeito que a gente faz uma carranca: deformado, os olhos grandes, boca e tal. Não pode existir animal com aquelas feições. É coisa da imaginação. A gente faz uma boca e pode acrescentar o tamanho que queira; faz uma orelha e pode fazer do jeito que queira... Suas peças são de tamanho variado, geralmente entre 80cm e 1m, embora se encontrem em sua produção carrancas de até 10cm. Bem trabalhadas, são de madeira natural ou pintadas, predominando, aí, o amarelo, o marrom, o vermelho e o preto. Jocanto compra a madeira em uma serraria em Petrolina, trabalhando em casa. Um pequeno espaço pouco iluminado, mais baixo que o nível da casa, é o seu local de trabalho. Como ferramentas usa serrote, formão, grosa, goiva e enxó.

a dos demais fazedores de carranca, em vista do mercado que, ao que tudo indica, tende a permanecer em baixa. Eu acho, como eu já tinha conversado com os nossos colegas que fazem, da mesma profissão, da gente ir conversar com o prefeito pra ver se ajeitaria um ponto, assim como uma botique, aqui no município, pra todos os artistas poderem expor o trabalho que fazem. Nós temos conversado mas nunca nos dirigimos ao prefeito pra tal finalidade. Também os nossos representantes aqui são pessoas que não ajudam ninguém. Uns homens que têm conhecimento, que sabem dar valor, que conhecem outras pessoas em Salvador e em outros lugares, que podiam arranjar alguma coisa pra o benefício do artista aqui da nossa região... E a gente às vezes, que nem eu, preocupado com muita coisa, com família, com negócio da oficina, do serviço de altofalante, uma carranca ali pra fazer, um radinho ali pra futucar. Então o tempo vai passando. Que nem esse livro aí que diz: As carrancas do São Francisco – Juazeiro e Petrolina, quer dizer, dá nome pra região. Então eu acho o pessoal de Petrolina mais interessado nesse ponto. Dona Ana das Carrancas, por exemplo, tem grande nome. Já as nossas autoridades aqui não se interessam por esse ponto de beneficiar o artista, que é um bem pros artistas e pro município, pra região aqui do São Francisco.

Juazeiro (BA), 1977

Gosto de fazer carranca. Tenho vontade de ter um lugar só pra ficar fazendo isso, vivendo disso. Mas passa muito tempo, dois, três meses, sem eu pegar num formão pra fazer uma carranca. E ainda, quando aparece uma, eu chego a ficar sem vontade de fazer, por causa que o trabalho que dá não compensa. Se continuar ficando fraco o movimento, eu vou acabar deixando. Se fosse como era, eu não ia deixar de fazer minhas carrancas pra trabalhar numa oficina. Não só eu, mas os outros também. Do jeito que as coisas estão, com a família que eu tenho – mulher, três filhos e minha mãe –, se eu ganhasse mais do que eu ganho ainda era pouco. A oficina, por exemplo, me dá um negocinho certo, fixo, a feira toda semana garantida. É pouquinho, mas pra mim é alguma coisa, dá pra ir levando a vida. Só não dá pra juntar nada. O pessoal que pensa ir pra São Paulo, acho que está errado: é ilusão, quando volta não traz nenhuma vantagem. Não carece sair da região e ir pra São Paulo pra poder viver. Jocanto tem uma proposta para tentar resolver não só a sua própria situação como também

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Louco Maluco Filho Doidão Bolão Armando Tamba

Como abordar a arte popular na Bahia? No cinema, na música, na literatura, esse tema tem sido exaustivamente tratado. A Bahia é apontada e enaltecida como nenhuma outra região do país. É o espaço onde a cultura popular é cultivada como forma de expressão dominante. Daí a dificuldade de se pensar a Bahia de forma diferente. Se, por um lado, há o desejo de se fazer mais uma exaltação em torno de uma expressão popular baiana – no caso, a escultura –, por outro, reconhecendo-se a força da cultura popular aí, há necessidade de apontar alguns problemas que contornam ou fazem parte desse saber e prática. O Mercado Modelo, centro mais importante de escoamento dos trabalhos artesanais, é um bom exemplo da situação da arte popular na Bahia. Inaugurado em fevereiro de 1971, após o incêndio do antigo prédio, o novo Mercado funciona no local onde antes era a alfândega de Salvador, com 220 barracas de madeira enfileiradas em estreitos corredores. O clima de festa parece ser constante, sobretudo na época de maior turismo – julho, novembro, dezembro, janeiro e fevereiro. Ao vozerio dos compradores e vendedores somam-se sons de berimbau, de capoeira e de rodas de samba. O colorido intenso das barracas, com uma imensa variedade de mercadorias expostas, amontoadas em prateleiras ou penduradas do teto, chama atenção. Os produtos variam entre as “lembranças da Bahia”, contas e fitas de todos os Orixás, folhas medicinais, comidas regionais, prataria, bijuterias, tecidos rendados, toalhas, roupas, cestarias, bolsas, sandálias e cintos em couro, talhas, esculturas e objetos utilitários em madeira, barro e ferro. A quantidade impressiona e funciona no sentido de criar como efeito a imagem de um grande reduto popular. A quem quer que se detenha mais – no contato direto com os barraqueiros, com a administração e com alguns artistas que vendem ali suas esculturas, para serem revendidas – questões vão sendo colocadas: o que é o artesanato local e como é constituído? Por que tantas peças repetidas, tantas formas padronizadas de um sem-número de esculturas? No Mercado Modelo, muitas das esculturas classificadas como artesanato baiano são até mesmo industrializadas no sul do país, com temas e formas encontrados, principalmente, nos trabalhos da Penitenciária Lemos de Brito, de Salvador. Grande quantidade de bijuterias e de talhas vem de São Paulo; tecidos rendados, toalhas e blusas, de Friburgo (RJ); algumas rendas e tapetes, do Ceará; talhas coloridas, de Recife, e muitas cerâmicas, as mais difundidas, de Caruaru. O que é representativo do local se reduz, principalmente, ao artesanato de couro, algumas pratarias, berimbaus, objetos diversos ligados aos rituais do candomblé e da macumba, trabalhos em concha, coco, baianas de pano, etc... – muitas dessas peças confundindo-se com o artesanato de outros Estados. Uma produção artesanal sem compromisso com a diversificação e enriquecimento da cultura popular. Mas em que condições essa produção se desenvolve e a quem se dirige? O estímulo ao turismo, em torno do folclore baiano, em um certo sentido, não correspondeu à expansão e ao fortalecimento do artesanato local, o que parece contraditório. Uma possível explicação encontrase no fato de essa atividade não ser tão reconhecida, culturalmente, como é apresentada. Por outro lado, as tentativas de integração e apoio oficial trouxeram uma crescente generalização de modelos, padronizados e adaptados ao gosto do turista – seu principal mercado –, afastando, cada vez mais, formas de expressão engajadas no seu contexto. A institucionalização desse saber e prática populares – legitimados como folclore –, tão fortemente arraigada na Bahia, vem trazendo como consequência oposta um esvaziamento ou mesmo a ausência de alternativas mais criativas na cultura popular. De diversas formas, contudo, esta cultura, na Bahia, resiste. Em alguns cultos, danças e mesmo nas artes plásticas ela

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Louco é visível. Essas manifestações, no entanto, são diluídas e permanecem marginalizadas em relação a qualquer estímulo oficial. Na Bahia, tais manifestações encontram-se, em geral, vinculadas à sobrevivência das culturas africanas. Como se sabe, os escravos tiveram uma influência determinante na formação socioeconômica e cultural do Brasil. Apesar da violência da dominação, eles marcaram profundamente os costumes, podendo-se até afirmar que o dominado colonizou culturalmente o colonizador. A influência negra permanece ainda viva, de forma especial na Bahia, graças ao culto religioso africano, seja o candomblé ou outros derivados dele. A estrutura forte da religião africana deve muito à chegada dos iorubás, povo mais rico em cultura do que os de origem banto, que chegaram primeiro. O que não significa negar a importância da influência banto, mas sublinhar a influência dos iorubás, sem os quais muito provavelmente a religião africana não se teria prolongado até hoje. Através do aspecto puramente religioso, toda cultura africana – como a dança, a música e até a própria cozinha – fica presente e alimenta, visivelmente ou não, o ambiente. Os ritos proliferaram. Aqueles de origem banto, sobretudo, deixaram-se influenciar por outros ritos, como o do catolicismo. Mas em todos esses ritos novos transparece a influência africana, havendo ainda muitos em que predominam a prática e o saber do negro. Foi no espaço dos rituais dos candomblés que nasceu a escultura, com função mágica e religiosa, servindo ao recesso dos terreiros, como objetos de culto. E algumas esculturas populares da Bahia – comercializadas no Mercado Modelo e em outros mercados – trazem a marca dessa origem. Os trabalhos de Boaventura da Silva Filho (conhecido como Louco) e de seus discípulos familiares – Almir Ferreira Neto (Maluco Filho), Valdemir Cardoso do Nascimento (Bolão) e José Cardoso de Araújo (Doidão) – têm destaque nesse grupo. Desenvolvendo sua arte na pequena cidade de Cachoeira, ficaram conhecidos por suas esculturas de grande força e originalidade. A influência africana insinua-se através da denominação das peças e de alguns traços, embora Boaventura afirme desconhecê-la.

Boaventura da Silva Filho, conhecido como Louco, é natural de Cachoeira, histórica cidade baiana, às margens do rio Paraguaçu. Foi aí que começou seu trabalho. Pouco a pouco, suas esculturas tornaram-se amplamente conhecidas, garantindo, para Boaventura, um lugar de destaque entre os artistas populares brasileiros. A partir do reconhecimento de sua obra, participou de exposições significativas como a mostra do Centro Domus, em Milão; O Espírito Criador do Povo Brasileiro, através da Coleção de Abelardo Rodrigues, e Sete Brasileiros e seu Universo, em Brasília. Durante um certo tempo, Boaventura tentou aliar ao trabalho artístico a comercialização de suas peças em uma galeria no centro de Cachoeira, onde ele permanecia o dia todo. Não dava certo. Ou bem vendia, ou bem trabalhava. A freguesia me interrompia o dia inteiro. Hoje, Louco trabalha em uma oficina, construída ao lado da casa de sua propriedade, situada na periferia da cidade. Ali, toros, raízes, ferramentas, uma escultura em andamento e outra pronta compõem seu ambiente de trabalho. Quando estou fazendo uma peça não consigo começar outra. Fico nela até acabar. Não sei repetir nenhum trabalho, mesmo que seja com uma foto na frente. Eu sigo mais a madeira. Cada dia é uma coisa nova na mente e tudo tem saída. Não fiz um trabalho ainda pra demorar. As primeiras caras de pessoas que eu fiz foram nos cachimbinhos de madeira. Eu vendia tudo. Tinha aqui um senhor de São Paulo que me animava muito. Quando ele foi embora, eu fiquei fazendo umas esculturas maiores e botando na janela. O povo passava e dizia que era trabalho de louco.

Não tenho conhecimento desses trabalhos africanos, não. Eu nunca vi. Quero trabalhar pela minha mente. Se dá aparência, eu não conheço. Mesmo não estando integrados nesse contexto afro de influência, outros trabalhos destacam-se e escapam àquelas interferências que, como já foi visto, levam à padronização e ao esvaziamento. Entre esses encontram-se as pequenas esculturas coloridas dos irmãos Armando e Cândido, também de Cachoeira, que desde a infância manuseiam o barro, criando peças singelas e despojadas que se aproximam do lúdico. Não se esgotam aqui os exemplos daqueles que, apesar do turismo, conseguem afirmar uma arte que lhes é própria. Artistas da Penitenciária Lemos de Brito, de Salvador, e de Maragogipinho – tema dos capítulos posteriores –, além de outros, situam-se também nesse contexto.

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O proprietário de uma barraca no Mercado Modelo, em Salvador, Sr. Carlos, foi durante muitos anos o grande comprador das peças de Boaventura. Tudo indica que veio dele o batismo de Boaventura e de seus parentes como Louco, Maluco, Maluco Filho e Doidão. Boaventura explica como surgiu seu novo nome: É porque eu sou louco pra trabalhar! Fui o primeiro artista da cidade. Trabalho com inspiração e amor. Às vezes me afasto de tudo – vou pro mato, fico lá sozinho, sem zuada, só com o meu radinho e os troncos de madeira, despreocupado, longe da mulher, dos dez filhos, dos fregueses. Eles conversam muito e atrapalham. E a mulher quer muita coisa. Mulher é como criança, nada chega. Com peças de variados tamanhos, desde 2m de altura até miniaturas de 10cm, sendo sua produção mais sistemática as esculturas de maior porte, Louco trabalha em jacarandá, vinhático, sucupira, jaqueira – madeiras sobre as quais exerce o mesmo domínio. Essas madeiras são quase sempre submetidas a um banho de óleo vegetal que, segundo ele, conserva a peça. Enquanto tiver madeira no mundo eu não paro de trabalhar. Não me falta trabalho. Agora mesmo estou com uma encomenda de quarenta e cinco mesas entalhadas nas beiradas, para um restaurante. Tem dia que trabalho tanto que parece que meu sangue virou água. De noite nem chega sono. Uma noite dessa, eu tive uma inspiração: via o povo naquele século, tudo nu. Já mandei cortar a prancha da madeira. Estou louco pra acabar esse Cristo e começar essa outra peça.

Sua produção é composta de santos, anjos, Cristos, batedores de atabaque, figuras bíblicas, invenções nas quais se fundem o fantástico e o místico, tocados pela religiosidade afro-brasileira, que marca muitas das expressões populares da Bahia. Respeitando a forma primeira que a raiz ou o tronco lhe sugere, Louco esculpe, com liberdade, suas figuras, mantendo algumas características básicas. O destaque das cabeças talhadas com vigor, cabelos em escamas, olhos entreabertos e narizes longos e afilados tornam suas peças inconfundíveis. Todas elas têm um nome: ‘Cabeça de Oxalá’, ‘São Lázaro’, ‘Adoração do Candomblé’, Adoração de Iansã e Oxalá’, ‘Mãe e Filho’, ‘Oxalá de Braços Abertos’ ou ‘Senhor do Bonfim’, ‘Iemanjá’, ‘Santa Ceia’, ‘Adoração do Cavaleiro da Mata’, ‘Adoração de uma Carranca’, ‘Anja das Trevas’, ‘Ogam Tocando o Atabaque’... Recentemente, em uma temporada de um mês passada em Recife, a trabalho, além de quarenta peças que levou prontas, esculpiu muitas outras. Dentre essas, destacou uma delas como sendo sua melhor obra: um Cristo de braços abertos – com o órgão sexual em tamanho avantajado –, intitulado por ele São Nicodemo. Com um nível de preço bem acima do habitual entre os artistas populares, Louco usufrui de uma situação relativamente boa, em comparação com os outros de sua faixa social. No entanto, o ritmo de vendas está bem aquém da sua capacidade de produção, se bem que com sua iniciativa e notável poder de comunicação ele contribua, na medida de suas possibilidades, para o escoamento de seus trabalhos. Já tem mandado esculturas para o exterior, através da Bahiatursa; dá entrevistas; cobra e recebe catálogos das exposições de que participa e ainda os distribui; remete peças e estabelece com seus clientes um agradável relacionamento. Não posso vender diretamente no Mercado Modelo. Eles não deixam – os próprios negociantes dali –, porque dizem que os artistas derrubam os preços deles. Só negocia quem tem barraca ali dentro. Agora, as pessoas que trabalham assim como eu, do interior que vão pra lá, eles não deixam. Ou vende pra eles revenderem, ou senão... Aliás, pro Mercado Modelo, não tenho levado peça. Acontece que quando a gente leva, tem que ser uma coisa muito barata. E não dá – só o transporte já é muito caro. Boaventura desenvolve com seus familiares uma “escola”, ampliando, assim, sua linha de trabalho, a produção, o mercado. Seu irmão – Maluco –, falecido em 1975, e os sobrinhos – Maluco Filho, Doidão e Bolão – apreenderam as principais características da criação do primeiro artista da família e assumiram, cada qual com sua contribuição e marca pessoal, a “loucura” – aproveitando todo o investimento comercial e turístico de que hoje ela é objeto.

Cachoeira (BA), 1976.

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IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Louco

IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Louco

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Maluco Filho Nascido em 1957, na cidade de Cachoeira, Almir Ferreira Neto é hoje conhecido como Maluco Filho. Meu pai quis que eu usasse esse nome e eu acabei gostando. Acho que é maluquice mesmo, pegar a madeira e transformar em alguma coisa. Mas maluquice pra mim não é de jogar pedra, é desenvolvimento espiritual. Comecei com a arte com onze anos, lixando as peças do meu pai e dando acabamento. Ele não me ensinou diretamente, eu sempre olhava ele trabalhando e fui aprendendo. Pegava nas ferramentas escondido. Comecei a trabalhar a madeira com a faca. Só depois é que usei o formão. Meu pai tinha medo que eu botasse as peças a perder. Minha primeira peça foi um São Jorge de placa, como uma talha, gravado na madeira. Fiz de cabeça. Ele em cima do cavalo matando o dragão. Meu pai tinha começado a peça: enquanto ele foi tomar banho peguei o formão e comecei a bater. Quando ele chegou perto, eu já tinha feito o rosto. Ele viu que estava certo, e aí eu continuei. Então ele começou a me dar mais chance. Seguindo a mesma temática e entalhe do pai, irmão e discípulo do Louco, Almir dedica-se mais sistematicamente às figuras sacras: santos, apóstolos, Cristos. Sei desenhar e pintar, mas a escultura é o que vende. O melhor tamanho para a venda é de 80cm a 1m. Estou terminando uma Santa Ceia com 1,90m de tamanho, mas é de encomenda.

Quando trabalha para o Sr. Aluísio – proprietário de uma loja de artesanato em Cachoeira – cobra apenas a mão-de-obra, uma vez que esse mesmo comerciante fornece a madeira. Prefiro fazer encomenda diretamente, mas o Sr. Aluísio me dá apoio, tem consideração por mim. Ele me trata mais do que como trabalhador, me trata como amigo. Em qualquer outra solicitação, seja para particulares, para galerias ou para o Mercado Modelo, consegue a madeira na roça. O pessoal de lá não cobra muito. Trago a madeira pra casa de caminhão. Almir já participou de uma exposição no Teatro Castro Alves, em Salvador, promovida pela Bahiatursa, e já vendeu trabalhos seus na Feira Hippie da Praça da República, em São Paulo – ambas no ano de 1975. Eu antes não sabia o valor que tinha trabalhar na madeira. Quando eu era menor não tinha responsabilidade, ia pra Senhor do Bonfim, perto de Juazeiro, e trabalhava nas fazendas. Achava bonito andar a cavalo, matar boi, essas coisas... Ainda hoje monto muito a cavalo, porque caço, mas não pra ganhar dinheiro. Voltava sempre pra Cachoeira porque a madeira me prendia muito. Acho que essa atração vem do meu amor à natureza. Quando olho uma árvore fico pensando o que posso fazer com a madeira.

Embora prefira criar suas próprias peças, Almir também copia modelos quando a encomenda o exige. Mas mesmo quando copio, o rosto é sempre meu, só faço igual as roupas. Faço figuras do candomblé: Batedor de Atabaque; São Jorge – Oxóssi – de dois tipos: montado a cavalo e caçando sem cavalo, com arco e flecha; Mãe de Santo – o rosto é sempre sério. É o que a gente procura fazer de mais mistério. Sou meio ligado ao candomblé. Essa semana fiz um Moisés e procurei saber na Bíblia qual era o papel importante dele. Adoro o que faço. Acho que a escultura é um trabalho, uma diversão, uma parte do meu corpo. Me julgo um artista, mas não completo, porque cada dia a pessoa aprende mais.

Cachoeira (BA), 1976.

A madeira mais utilizada no trabalho de Maluco Filho é o jacarandá, embora também sejam encontradas peças suas em vinhático, peroba-rosa e jaqueira. Essa eu encontro com mais facilidade, mas prefiro o jacarandá. Acho um mistério o jacarandá. Além de bonita, é boa de trabalhar com esses instrumentos comuns: serrote, enxó, caxiviti, goiva, formão. Gosto de peça rústica.

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IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Maluco Filho

IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Maluco Filho

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Doidão Nascido em Cachoeira, no ano de 1950, José Cardoso de Araújo – Doidão – veio para Salvador ainda menino e até os dezoito anos trabalhou como ajudante de balcão, vendendo verdura. Eu estava tentando a vida. Então, meus tios, o Louco e o Maluco, que forneciam peças para Seu Carlos, me trouxeram para eu trabalhar aqui na barraca, com ele, no Mercado Modelo. Então ele me perguntou se eu tinha jeito pra madeira. Eu disse que tinha muita vontade de aprender, mas tinha acanhamento. Isso é mais um dom. Seu Carlos comprou as ferramentas, um toro de jacarandá e me deu. Dentro da barraca mesmo eu fiz um Exu e, bem não tinha acabado, uma freguesa levou. Aí acreditei. Comprei madeira e continuei trabalhando dentro da barraca pra os turistas verem. Hoje, já não fica mais na barraca, tendo seu ateliê em sua própria casa. Na barraca do Seu Carlos, eu vendo mais ou menos pela metade do preço. Não sou contratado. Vendo também em casa, faço exposição. Eu acho bom vender a ele até aparecer uma situação melhor. Ele me trata bem – outro podia explorar. Assim é melhor ficar com ele.

O trabalho na escultura, que Doidão executa sozinho, é sua única fonte de renda. O orçamento familiar é complementado pela mulher – com quem tem três filhos –, que costura e faz tapeçaria. Acho que pra vencer na vida tenho que sair daqui. Aqui não se dá muito valor à arte. A gente tem que deixar uma camisa acabar pra comprar outra. Uma moça casada com um artista queria me levar pra França. Eu não fui por causa da família. O artista aqui não tem um lugar de vender direto. Só se o turista for em casa ou então no Mercado, com o revendedor.

Para conseguir sua matéria-prima, vai regularmente a Cachoeira, onde a encontra com relativa facilidade. Compro o jacarandá – toros e raízes – aos caras da roça. Sempre que vou a Cachoeira, encontro meu tio, o Louco. Ele se dá muito bem comigo, mas cada um no seu. Ele acha que a expressão das minhas peças é diferente – eu acho que as peças dele são fora de série. Na barraca do Mercado Modelo, apinhada de peças de toda a família, a autoria de muitas das esculturas é confundida – os mesmos cortes seguros, narizes alongados, olhos muitas vezes oblíquos. Representam quase sempre apóstolos, Cristos, Marias e figuras do candomblé. Tenho criações novas: a ‘Panela de Macumba’; a ‘Ceia Rebuliço’, com tudo misturado, um apóstolo embaixo, outro em cima. De cada coisa acredito um pouco. De vez em quando vou ao candomblé pra olhar. Não acredito muito, mas não desfaço. Doidão já participou de exposição no Teatro Castro Alves, em Salvador, e em uma galeria do Rio de Janeiro. Vendeu um bocado, deu pra quebrar o galho, mas não foi muito. Queriam que eu deixasse as peças lá em consignação, pra ficar exclusivo de duas galerias, mas achei que não compensava em termos de dinheiro. Eu quero ficar assim, tentando a vida com a arte.

Salvador (BA), 1976.

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IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Doidão

IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Doidão

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Bolão Conhecido como Bolão, Valdemir Cardoso do Nascimento, natural de Cachoeira, aos vinte e dois anos já se afirma como escultor. Seguro da qualidade de seu trabalho e compromissado com ele, é do jacarandá que tira o seu sustento e sua satisfação pessoal, embora seja formado em Contabilidade. Quando eu tinha dezesseis anos, quebrei o braço e fui pra casa de meu tio, o Maluco – irmão de minha mãe –, e lá comecei a fazer. Ele nem estava em casa. Antes eu era gaioleiro, trabalhava com arame e contas, e também fui marceneiro, que era o ofício de meu pai. A arte não é problema de possibilidade, é problema de gosto. Dê ou não dê, vou continuar fazendo, aqui ou em outro lugar! A arte dá liberdade. A gente adquire uma disciplina sem ninguém impor isso à gente. A escultura de Bolão, se bem que possua as mesmas características e temas da família, traz algumas singularidades bastante acentuadas: uma maior leveza, um certo arredondamento nas formas, e o modo de trabalhar os cabelos das figuras – não em “escamas”, mas em sulcos verticais ou encaracolados. Trabalho só, o que não impede que amanhã eu arranje uma pessoa para ajudar. A madeira que eu uso é jacarandá, vinhático, jaqueira. Além de ter participado de uma mostra coletiva em Cachoeira, já fez duas exposições individuais em Salvador, com o patrocínio da Bahiatursa. Ela foi também responsável, juntamente com a USIS, por minha ida aos Estados Unidos, em julho de 1976. Passei quase um mês num festival. Ganhava dez dólares por dia, independente de tudo – refeição, viagem, tudo. O que eu não gosto é de trabalhar para o pessoal ver, prefiro trabalhar pra mim mesmo. Mas era uma promoção, aí eu tinha de fazer isto. Vendi um candomblé, uma capoeira e uma dona fazendo acarajé. Foi bom. Na exposição de que participou, no Teatro Castro Alves, em Salvador, no ano de 1975, promovida também pela Bahiatursa, considera que seu trabalho obteve grande aceitação, conseguindo bom resultado nas vendas. Agora, nas galerias de Salvador, onde tenho peças em consignação, acho fraco o movimento. Assim mesmo vou levando. Eu já tenho um currículo. O local de trabalho de Bolão fica no centro de Cachoeira, afastado de sua residência. No seu ateliê vende também diretamente a visitantes interessados, o que não é muito frequente. Aqui não tem divulgação, não tem hotel. Esse mês mesmo, não pintou nenhum turista por aqui. Com essa fábrica de charuto fechada, o pessoal está morrendo de fome. A fábrica de papel de Tororó também. Nem gosto de falar nessas coisas.

Cachoeira (BA), 1976

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IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Bolão

IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Bolão

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Armando Nascido em Cachoeira, no ano de 1911, Armando Santos, assim como toda a sua família, sempre morou na histórica cidade baiana.

No barro, Armando produz desde miniaturas até peças de aproximadamente 25cm.

Mas a vida aqui está piorando, o custo de vida aumentando, tudo cada vez pior. Melhorar, mais nada! Aqui já teve duas fábricas de charutos, mas fecharam. O Patrimônio Histórico daqui arranja uns serviços, coisa pouca. Pro lavrador, a mandioca, as fruteiras também não dão muito resultado. O lavrador pra poder plantar paga em dias de serviço. O barro é melhor que isso!

Faço qualquer bicho, é só mostrar a fotografia. Não preciso ver o animal, não. Mostrando assim no livro... são tantos bichos!

Armando situa-se como escultor das cerâmicas coloridas tão representativas da arte popular baiana. Trabalhos semelhantes em tema, singeleza e tonalidades são também encontrados em Taubaté (SP) e em Pombal (PB). O iniciador fui eu. Comecei fazendo pombinhas numa árvore – isso quando tinha doze anos. A ideia foi na escola. A professora daqui fazia isso e botava no balaio pra vender pro presépio. Eu, aprendendo a leitura, e com os olhos em cima. Chegava em casa e fazia. Até hoje está me servindo. Fui inventando, depois todo mundo tomou a fazer: meus irmãos, Cecílio e Cândido – que é conhecido por Tamba –, minha mulher, o menino dela, minha filha, meu filho, minha outra mulher. Gosto desse trabalho, não depende de nada. Trabalho de noite, trabalho de dia, não apanho sol, não apanho chuva. O dinheiro dá menos que um salário, mas é um serviço mais despreocupado. Trabalho dentro de casa. Um sujeito para ganhar salário, hoje, precisa que se empregue, tire documento...

Entre os animais mais produzidos por ele encontram-se, com até 10cm de altura, tatus, cavalos, zebras, burros, pombas, pavões, galinhas, galos, cachorros, bois, etc. – isolados ou em composições. Além dos bichos, modela também Maria e José, esculturas de até 30cm; Iemanjás, em forma de sereia, com cetro e coroa; Exus, de muitos tamanhos e nas mais variadas posturas, isolados ou aglomerados na sua barca; Poeta, sentado, com livro nas mãos, embaixo de uma espécie de ramagem em forma de arco ou dentro de um barco; Sala de Aula, grupo de alunos sentados, com livros nas mãos e o professor à frente; Árvore de Pássaros, com base em forma de cone, da qual saem várias hastes de madeira onde em cada extremidade há um pequeno pombo; Índio, figura isolada, com saia e cocar de penas, arco e flecha, etc. Todas as peças são pintadas com mais de uma cor, predominando o vermelho, o preto, o azul, o amarelo e o branco, com uma combinação de tons de forte contraste. A tinta utilizada é fosca, em pó – alvaiade –, preparada por ele mesmo, à base de água. Pinto com um palitinho (pequeno pedaço de madeira, com algodão na ponta). Não tenho pincel de cabelo. O palitinho é melhor, pincel de cabelo não dá pra mim. O barro para o trabalho é usado puro e, como a água, é conseguido no alto do morro onde vive, e de lá trazido sem mediação de terceiros. O fraco não tem direito a nada, não. Se tivesse aqui um chalé, uma casa boa, tinha água. Ainda acho bom ter esse barranco aqui perto pra eu tirar o barro. Se fosse comprado, não vendia as coisas baratas como vendo. Dele mesmo fiz essa casa de taipa. Dele faço tudo. Nas peças, tem vez que minha mulher ajuda, mas no sempre sou eu quem faço tudo – só com o dedo e a unha. Mesmo se tivesse outro serviço, pendia pra esse. Só trabalho nisso. Já trabalhei na fábrica de charuto, mas não tenho mais fé nessas coisas. A fábrica fechou, morreu tudo, caiu fábrica, tudo! Antes de entrar pra fábrica, já fazia cerâmica. Quando eu entrei, não tive mais tempo. E nisso perdi quinze anos. Perdi todos os meus direitos por causa de dois meses. Na retirada da carteira, botaram o mês errado, aí não ganhei nada, nenhuma indenização. Na Cabana do Pai Tomás, loja situada em uma das principais ruas de Cachoeira, as prateleiras superlotadas mostram a diversificada produção de Armando e sua família. Vendo aqui e a particular também. Tenho um freguês velho no Mercado Modelo que já me compra, faz uns cinco anos, pra revender. Faço uma dúzia de árvores por dia; depois deixo dentro de casa meio dia pra secar. Aí pinto. Comecei a queimar faz pouco tempo. Antes não precisava, porque vendia só aqui mesmo. Pra fora, sou forçado a queimar por causa de tombo pra viajar, pras encomendas.

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IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Armando

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Tamba Pelo estoque do comerciante local, que além da loja tem um depósito repleto, percebe-se como ele – vizinho à fonte – compra de modo mais sistemático o trabalho de Armando e de seus familiares. Meu freguês do Mercado Modelo leva minhas peças. Às vezes entrego lá, pego meus tostõezinhos e venho m’embora. Não faço palestra. Vendo somente pra uma pessoa: Valdemar, que é filho daqui de Cachoeira. Ele não paga muito por minhas peças, mas vai quebrando o galho. O preço que era de antes está até agora. É a camaradagem, viu? A camaradagem vale mais do que os tostões, ou você não sabe disso? Os barraqueiros do Mercado são compradores que compram na mão da gente, aqui e acolá, pra sortir a barraca. São donos da barraca, mas aquelas peças não são deles. Eles são revendedores: compram por barato e vendem muito mais caro. Agora, se fosse eles que fizessem está muito bem, mas não fazem. Eu faço uma peça aqui, entrego por qualquer dinheiro, não tenho nada com o preço que vender. Pagam à vista. A crédito e no fiado não quero não. A importância do Mercado Modelo que eu sei é levar minhas peças, entregar, receber meus tostões e voltar pra minha casa. Agora, o movimento dele, isso não tomo paternidade.

Cachoeira (BA), 1976

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IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Armando

Com quarenta e dois anos, embora aparentando muito mais, Cândido Santos Xavier vive em um minúsculo casebre alugado, na mesma ladeira onde mora seu irmão Armando. Em um vão, menor até do que o comprimento de Cândido quando deitado, apenas uma esteira; no outro, duas vasilhas de barro, um fogareiro de lata de querosene e uma tábua onde modela suas pequenas esculturas. Sou natural daqui e aqui mesmo me criei. Com uns trinta anos fui pra Salvador. Passei uns tempos lá, passei outros em Feira de Santana. Sempre fazendo esse trabalho que faço hoje. Não deixo essa profissão nunca. Já sou habituado, dessa eu não saio pra outra profissão nenhuma. Eu findo nessa vida mesmo, não quero outra vida. Quem começou foi meu irmão mais velho, um que morreu afogado, Cecílio. Aprendemos com ele. Meu pai e minha mãe também faziam isso. A mãe inventava uns bichos e os filhos inventavam outros. Eu faço papagaio, animal, tudo com a massa e uma faquinha. Não queimo, quem queima é Armando. Agora, se achar uma encomenda boa, faço tudo queimado. Boto um pouco de cimento no barro pra ficar mais forte. Suas peças, assim como as de Armando, seu irmão, de Matilde, sua cunhada, e de Expedito, Pedro e Vanda, seus sobrinhos, também em torno de 25cm, são pintadas do mesmo modo, com tinta fosca, em cores vivas. Semelhantes nos temas e no artesanato, sem assinatura, produzidas pelas mãos de vários autores, essas singelas esculturas

IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Tamba

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são, de modo geral, atribuídas a Tamba, apelido de Cândido – talvez por conta do período que passou em Salvador, trabalhando nesse mesmo ofício e, inclusive, pela participação em exposições. Aqui está tudo acabado. A terra está acabada. É um lugar bonito, mas falta serviço pro pessoal trabalhar, falta indústria. Aqui só se trabalha mesmo como servente de pedreiro, esses negócios... Tem plantação por aí nas terras do pessoal. Aqui dá tudo que se planta. Tentando garantir sua sobrevivência apenas com o trabalho no barro, Cândido não encontra meios de aumentar o preço de suas peças, o que o obriga a viver um dia-a-dia em condições sub-humanas. Tenho vontade de morar lá embaixo. O Patrimônio disse que ia fazer uma casa pra mim, e até hoje eu estou esperando e nada. Na frente de sua casa, ladeira abaixo, a mesma manilha de ferro que passa próximo à casa de Armando, trazendo água do reservatório, no topo do morro, ao chafariz, no sopé. Cano gelado, água murmurante, sol escaldante, vista panorâmica de toda a cidade. Aqui, nessa profissão do barro, só tem a gente. Agora, de madeira, conheço diversos. Eu me dou bem com todos, mas gosto mais do Louco. Boaventura, o Louco, mora em uma rua de acesso à ladeira de Cândido. Quando tinha sua galeria, comprava e colocava à venda peças de Cândido e Armando. Estou vendendo muito barato. Diversas pessoas chegam aqui e me dizem que eu estou vendendo muito barato. Eu só vendo a Aluísio. Assim que eu entrego, ele paga. Dá muito menos que um salário. Não aumento porque ele não quer e tem medo. Fico também com receio de não vender se aumentar o preço.

Cachoeira (BA), 1976.

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IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR Tamba

Vitorino Almerentino Boreste Zé Curu Biu e Maurílio Rosalvo

As olarias de Maragogipinho, com suas paredes de palha e chão de terra batida, são quase sessenta às margens do Jaguaripe. O silêncio das peças prontas, dispostas para secagem, misturase com o rangido do torno, movido por pés descalços, e com o ritmo pausado e violento dos amassadores – corpo todo jogado na cadência. Das mãos, brotam no barro novas figuras. Dependendo do dia, os grandes fornos de abóbada podem estar fechados, prenhes, quentes. Vozes e movimentos de crianças se misturam dentro e fora. De um lado, o mangue, o rio. Do outro, a vila. Elevado à categoria de distrito desde 1938, Maragogipinho se encontra no município de Aratuípe, antigo aldeamento de Santo Antônio, organizado no século XVI para a catequese dos índios e oposição à tribo dos Aimorés. No Recôncavo Baiano, a 225km de Salvador pela BR-101, e 71km, atravessando a Baía de Todos os Santos com o ferry-boat, chega-se a Maragogipinho, passando por Nazaré das Farinhas. De lá, é seguir a rua da Igreja Matriz até a praça onde, na Semana Santa, se realiza a Feira dos Caxixis. Depois o rio, a ponte, a praça da feira-livre. Alguns sítios, o cemitério antigo, e logo adiante a estrada para Maragogipinho. De um total de 1.317 habitantes – 16% da população do município –, a quase totalidade (97,2%) se encontra no povoado. As casas distribuem-se em arruados irregulares que convergem para o largo da igreja, aberto para o rio, para as olarias. Este também é o sentido dos passos de grande parte dos habitantes dessa cidade. As olarias são a referência principal da vida, a sobrevivência, o trabalho, o centro das relações, desde um tempo que se perde na memória dos mais velhos. Em crônicas do século XVIII já se encontram depoimentos sobre a importância da atividade oleira em Maragogipinho, o que é do conhecimento dos atuais artistas. A relação do artesão com o trabalho é muito densa. Somam-se a possibilidade de criação, o valor pessoal atribuído à atividade, livre de horário e de mando, a limitação das alternativas locais, a dificuldade de serem absorvidos pelo mercado de trabalho de Salvador, a insuficiência de salários em outras atividades a que têm acesso. Na lavoura da região, o sistema de pagamento para uso das terras é a entrega de 1/3 ou 1/2 do que se planta. Outra opção é a pesca, mas o resultado não é suficiente para garantir a manutenção dos que a ela se dedicam. A luta pela sobrevivência e a grande solidariedade que se faz sentir no ambiente geral das olarias possibilitam um saber que é dividido e que se manifesta na criação de cada peça, tanto no que diz respeito à sua concepção como ao processo de produção. Todos compartilham os mesmos temas, reconhecendo a existência de mestres que os introduziram pela primeira vez, como Silvestre Costa, falecido em 1942, e Vitorino Moreira. Praticamente, toda a cerâmica está voltada para a produção de louça utilitária: porrão, talha, tipos diferentes de jarras, pratos, jarros, copos, moringas, etc... De diferentes tamanhos, coloridas em barro vermelho e branco, com refinado acabamento de textura, forma e desenho, essas peças ultrapassam sua função utilitária para se constituírem sobretudo em objetos decorativos. O desenho de flores, folhas, traços harmoniosos em branco, sobre o vermelho, é o elemento mais original e indicador da cerâmica de Maragogipinho. Quando não aparecem os desenhos, a peça se apresenta no barro branco, o que a torna também característica dessa comunidade oleira. Seguem, nessa mesma linha, peças de uma criatividade singular, misto de esculturas e utensílios. Da tampa de uma farinheira pode brotar a cabeça de uma galinha, as alças transformadas em asas; na moringa pode estar representada a figura da baiana ou, na bilha, a de um boi. Além disso, porquinhos, castiçais, galos, Budas, Atlas... A cerâmica puramente figurativa é mais rara. Assim mesmo, um ou outro artista, trabalhando na louça zooantropomorfa, acaba por tomar esse caminho, mesmo sem abandonar a produção original.

EM TORNO DE OLEIROS

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Se, por um lado, existe o prazer no manuseio do barro, no domínio da técnica e na habilidade inventiva e pessoal que esse trabalho oferece, por outro, a desclassificação dessa mesma atividade – evidenciando-se principalmente através de um preço irrisório dado a essa arte, considerada menor, pelo mercado consumidor – não favorece o seu desenvolvimento como é o desejo daqueles que a executam. Subordinados ao revendedor, esses artistas vivem fundamentalmente de encomendas, com parte do dinheiro já adiantado para compra do material. Prevenidos contra a quebra de peças na fornada, fazem sempre um pouco mais do que o pedido pela encomenda. Quando têm êxito na queima, a sobra é vendida aos turistas que vão diretamente às olarias. Trabalham incessantemente para atender aos pedidos, muitos deles com a determinação de modelos. Valorizada por um mercado que procura nos objetos de barro o “primitivo”, o artesanal, o “belo”, a produção de Maragogipinho, ao mesmo tempo que se expande, perde sua função utilitária. É transformada em peças decorativas, louça turística, segundo os próprios artistas. Assim, garantem sua sobrevivência, a do revendedor das feiras de São Joaquim, de Nazaré das Farinhas, de algumas barracas do Mercado Modelo e de lojas espalhadas pelo país. Mas é também por esse mesmo movimento que os artistas populares lamentam a falta de tempo para inventarem peças novas ou fazerem aquilo que mais desejam. Maragogipinho está inserido num processo de produção onde predomina o torno como principal instrumento de trabalho. Dada a fabricação em série, as olarias – com uma limitada variação de modelos, uma divisão de trabalho bem delineada para feitura das peças, uma troca de experiências constante, que se dá em uma mesma olaria (nunca abrigando uma só pessoa) e a proximidade das demais – funcionam como pequenas manufaturas. A característica fundamental desse núcleo oleiro é a ausência de individualidade, manifesta tanto na elaboração das peças – muitas delas executadas por várias pessoas – como no anonimato do produtor – as peças não têm assinaturas. O processo de produção da cerâmica começa em Aratuípe, localidade próxima, com a retirada dos piloros – blocos de barro bruto – de grande profundidade. Chegando em pequenas embarcações nas olarias, o barro passa primeiro por um processo de limpeza. Retirados os resíduos, é então tratado pelo amassador – figura imprescindível na olaria. No empelador (mesa baixa e comprida) ele executa seu exaustivo trabalho, manipulando a pela (bolão de argila molhada), até uniformizá-la. Somente após esse preparo o barro passa à modelagem, onde o torno é o instrumento básico, embora o acabamento seja feito à mão. Quando se trata de peça esculpida, são utilizados instrumentos simples e improvisados, como pedaços de bambu, madeira ou pente. Após a modelagem, pelo oficial oleiro, um ajudante tira as peças da banca e as coloca na tábua, na sombra, esperando-se que o vento inicie o processo de secagem. É aí que as encontra o emendador – encarregado de unir as diversas partes de uma mesma peça, uma vez que muitas delas são assim compostas. Essa tarefa deve ser feita em um determinado e exato momento durante a secagem. Após essa etapa, passa ainda o ajudante encarregado de tapar as falhas. No caso do porrão, quando a peça está quase seca, volta mais uma vez ao torno, para ser retirado o excesso de barro no fundo. Quando as peças estão praticamente enxutas, são levadas para o sol para que a secagem seja finalizada. Nesse momento, a produção encontra-se pronta para receber o acabamento final. Este processo de trabalho, referido por todos em sua histórias de vida, acontece no dia-adia participado, que se expande até as casas, além das olarias. As mulheres assumem o papel de brunideiras, pintando as peças com tauá (barro vermelho) e brunindo-as com o calhau (pedrinha

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que dá brilho) e um pedaço de pano. São depois decoradas com a tabatinga (barro branco). Os meninos se encarregam do transporte das peças. Enquanto esperam a hora de buscar ou levar, lá estão eles mexendo no barro, treinando formas ou simplesmente brincando de balada – uma guerra em que a munição são pedaços de barro, e o local preferido os fornos frios, que servem de esconderijo. A criança é uma presença constante e necessária no processo de produção da cerâmica local. A própria palavra caxixi, indicativa de pequenas peças, refere-se à obra dos aprendizes. Deste convívio com o barro alimenta-se a reprodução, no surgimento dos novos artistas, das novas propostas, da criação. O último estágio do processo produtivo, realizado após a decoração das peças, é a enfornação, executada em um forno de abóbada, construído sobre uma base de mais de 1m de altura. Há o forno de capete, para as peças grossas – porrões, talhas, potes, bilhas, etc... – e o forno aberto, para moringas. Prepara-se a fornada para a louça grossa e aproveita-se o espaço vazio para a miuçalha – peças pequenas como mealheiros, tigelas, panelinhas, etc... – no forno próprio ou no de um vizinho. Essa produção, exaltada hoje pelos oleiros como sendo uma atividade desenvolvida em comum, é o elemento mais gratificante e um dos principais responsáveis pela preferência dada a esse tipo de atividade frente às demais alternativas de trabalho.

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Vitorino Nascido e criado em Maragogipinho, Vitorino Moreira começou, com a idade de dez anos, a manusear o barro, em companhia de Silvestre Costa, mestre muito famoso no lugar. Com a saída do mestre para outra localidade, prosseguiu no trabalho, idealizando também peças diferentes. Faço de tudo, coisa de minha inspiração e coisas que me peçam pra fazer. Desde coisas pequenas – caxixi – a coisas de tamanho grande. As peças de sua autoria que o tornam mais conhecido por outros artesãos são o boi-bilha, o castiçal e o galo. Essas e outras peças são produzidas em sua olaria, que fica, como a dos outros ceramistas, um pouco afastada da residência, na beira do rio. Consiste numa área ampla, coberta de telhas e paredes de palha. No interior, o torno, o local de secagem das peças, um grande forno e o lugar para guardá-las prontas. Além de Vitorino, trabalham também aí, como seus ajudantes, um cunhado e um filho de criação. O processo de produção desenvolve-se de acordo com o ritmo de cada um para fazer determinada quantidade de peças. O trabalho é dividido em tarefas, e o pagamento é conforme o número de tarefas realizadas. Alguns jovens em Maragogipinho ajudam seus pais na cerâmica, mas não se preocupam em aprender o ofício, pois eles desejam se formar em outra coisa. Tenho seis filhos, mas não gostaria que eles fossem ceramistas, embora eu não seja dos que passam mal. Tem muita gente aí que não está bom não. Tem gente que não podia estar dando esta entrevista que eu estou dando, porque não pode parar o trabalho, porque não pode parar mesmo. Às vezes, doente, vai trabalhar, porque senão a coisa ainda é pior. Tem que arriscar até morrer.

atitude seja suficiente para resolver a precária situação dos ceramistas em relação ao mercado. Por isso foi criada uma cooperativa, mas aconteceu um impasse. Se ela estivesse funcionando ainda, era quem garantia esse capital, valorizava ainda mais. A Cooperativa Artesanal Mista dos Oleiros foi criada em 1970, começando a funcionar em 1971. Vitorino foi o primeiro presidente e, durante sua administração, a cooperativa foi registrada na Junta Comercial, iniciando, em 1972, um movimento de participação de alguns trabalhos no Festival de Folclore de Brasília. O prédio foi construído e equipado com maceira, compressor, pistola e forno, tudo a eletricidade. No momento, os associados estão enfrentando o desânimo que tende a deixar a cooperativa sem funcionar, pelo fato de o atual governo ter tomado o prédio, entregando-o ao prefeito para instalação de uma escola. Os equipamentos foram, assim, transferidos para Paripe. No início da década de 1970, a Secretaria do Bem-Estar Social enviou um professor de nacionalidade portuguesa para dar aulas sobre cerâmica. Estando a lecionar em Maragogipinho, surgiram certas discordâncias entre o professor e os ceramistas, uma das principais a respeito da pintura. Segundo Vitorino, o professor queria que os ceramistas substituíssem a pintura primitiva, feita com o emprego do barro, por uma pintura a óleo. Com a resistência dos ceramistas, o professor foi retirado de Maragogipinho, conservando-se as características da cerâmica local. É que a nossa matéria-prima é o barro, tauá e tabatinga. Nós não usamos outros processos. Tudo

Trabalhar na cerâmica em Maragogipinho é uma tradição familiar. Isso é coisa que vai passando de pai para filho. Isso tem mais de duzentos anos pra lá que vem passando de um para o outro. A criança começa a manejar com o barro e daqui a pouco se senta no torno e, sem ninguém dar bola, ela vai indo, vai indo, e daqui a pouco é um artesão. Quase nenhum mestre ceramista teve mestre, mas sim orientação. Vitorino gosta de dar orientação às pessoas que se iniciam, no sentido daquilo que, no momento, está sendo mais aceito pelo público. Para ele, a maior causa das dificuldades enfrentadas pelos ceramistas é o fato de entregarem seu trabalho a revendedores. Eu sei valorizar bem os meus trabalhos. Tem gente aí que não tem cadeira pra ninguém sentar e vive de ano a ano lutando, e não tem nada na vida. Não passa de uma calça e de uma camisa, e olhe lá as privações que sofre! Porque a maioria passa privações aqui porque não ganha o suficiente, porque vendem suas peças a revendedores. Também muitas vezes nós temos surpresa desagradável: quando vai desarrumar o forno, a metade está quebrada. Então, se o outro não valorizar seu trabalho, não passa de uma calça e de uma camisa. É o que você encontra muito por aí. No seu caso, conseguiu solucionar o problema da venda possuindo sua própria barraca na Feira de São Joaquim, em Salvador, onde vende diretamente sua produção e a de outros artesãos de Maragogipinho. No entanto, não acredita que tal

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EM TORNO DE OLEIROS Vitorino

EM TORNO DE OLEIROS Vitorino

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Almerentino aí é do barro. O tauá é extraído do barro, a tabatinga é extraída do barro. O tauá é óxido do barro amarelo. O barro vem da Ilha das Frutas e do Araçá. É retirado de grande profundidade. Depois é transportado por barca e vem seco em formato de uma bola grande. Quando a peça está completamente seca, passa-se o tauá e com uma pedra lisa dá-se o brilho, o polimento. Esse é um trabalho tinhoso, demora muito para polir uma peça. Desse trabalho e da decoração são encarregadas as moças, mulheres e meninas. Nós ficamos encarregados da confecção das peças. Achamos um trabalho muito duro. Para as mulheres trabalharem no torno, puxa muito. Como se diz, tudo depende da habilidade dos pés e agilidade das mãos. Pra mulher eu acho muito duro.

Almerentino nasceu em Maragogipinho em 1935, e aí sempre viveu. Começou a trabalhar na cerâmica com a idade de sete anos, em companhia de seu pai. Hoje vive exclusivamente desse ofício.

Além do torno, Vitorino utiliza apenas uma palheta de jacarandá para o trabalho em altorelevo, um pedaço de taboca (bambu) e o habitual barbante para desligar a peça do torno, depois da mesma pronta.

De início, eu fazia apenas caxixi. Mais tarde passei para coisas mais importantes. Caxixi é sempre a criação do oleiro. Ele se desenvolve através do caxixi, aí começa a pegar o prumo da mão. Depois vêm as peças maiores. Então é a tradição do caxixi, ele inicia pelo caxixi, peça miúda. Agora, nosso serviço depende do dom – uns levam a vida toda e não aprendem a fazer coisíssima nenhuma. Agora, vem outro com a felicidade e aprende logo.

Com esses instrumentos eu faço todas as peças que desejar fazer, sejam elas do tamanho que for. Participou de várias exposições e feiras de artesanato. Em fins de 1975 enviou alguns de seus trabalhos, através de Empresa de Turismo de Salvador (Bahiatursa), para Caruaru, a fim de apresentá-los em uma promoção de caráter regional. Com a cooperativa já podia ter mais dessas coisas para todos.

Maragogipinho (BA), 1976.

Nas horas despreocupadas, escondido de meu pai, eu sentava no torno. Já um dia ele descobriu e aí eu já era um artista. Na família, todos são ceramistas, mas, atualmente, encontram-se dispersos, trabalhando em outras cidades.

Com o tempo, foi modificando a técnica e os temas, desenvolvendo seu trabalho na linha de peça turística – denominação dada pelos artistas à cerâmica mais característica produzida hoje em dia em Maragogipinho. Acha que nessa maneira de trabalhar existe mais procura no mercado. Os compradores descobrem o esmero com que foi feita a peça, saída da inspiração do ceramista. Meu pai fazia panela, prato, porcelana. Ele fazia barro vidrado. Então eu hoje faço também coisas diferentes. Trabalho com mais arte. E me dedico muito. Além de panelas, pratos, canecas, pires, faz esculturas que variam de 10 a 15cm de altura. Na parte de escultura sempre trabalho mais com carranca, índio, Buda transformado em marujo, Atlas – um homem que vinha querendo dominar o mundo e tinha uma bola, que era o mundo, que andava nas costas dele. Tudo isso vem lembrar a história da Bahia. É feito por imaginação própria. A gente imagina, então faz aquilo. Nós estamos sem pedido de mercadoria, aí, nessa hora, essa peça tem aceitação. Às vezes eu sonho com a peça. Almerentino sente também, nos seus trabalhos, a influência de outros ceramistas. Acha interessante o que fazem e destaca sua admiração pela maneira como Vitorino cria a carranca do boibilha. Em sua própria olaria trabalham, com ele, dois ajudantes. Adota o sistema de pagamento mais usual em Maragogipinho, que corresponde ao atendimento de tarefas específicas, como limpeza da olaria, amassamento do barro, polimento das peças, sua arrumação no forno, etc... Por não ter ainda um forno, queima suas peças em outra olaria. O material utilizado em seus trabalhos é a argila branca e a vermelha. Para a pintura das peças, usa tauá, conseguido da argila vermelha, e tabatinga, conseguida da argila branca. Existe também a cor preta, conseguida com a colocação da peça dentro de um depósito para ser queimada. Finalizado esse processo, ela estará

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EM TORNO DE OLEIROS Vitorino

EM TORNO DE OLEIROS Almerentino

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carbonizada. Almerentino trabalha ainda com chumbo para vitrificação de algumas peças. Ao se olhar uma peça vitrificada, tem-se a impressão de que a mesma foi envernizada. No entanto, a vitrificação é conseguida por outro processo. Aqui está o chumbo, a gente prepara a golga e dá o banho na peça. Aí leva ao forno e, quando sai, sai com este brilho. A golga é a mistura do chumbo, da água e do barro. A argila é conseguida nas fazendas São Bernardo e Cavala, pertencentes aos municípios de Aratuípe e Nazaré, sendo transportada em canoas. O preparo inicial dessa matéria-prima consiste em deixá-la secar e depois jogar água em cima para retirar o salitre. As peças são começadas no torno, que se põe em movimento rotativo através de impulsos, dados pelos pés do oleiro, na base do torno. Enquanto isso, na parte superior, encontram-se a massa de barro e as mãos do oleiro. Desse mecanismo, surgem as mais variadas formas de peças. Sua produção é vendida regularmente para feiras e lojas de Salvador e de São Paulo, ou ainda, esporadicamente, para outros lugares, quando aparecem encomendas. Minha situação financeira dá pra eu me manter com minha mulher e os nove filhos pequenos. O maior está com quatorze anos. Se eu arranjasse um outro trabalho que me desse melhor condição que esse, eu trocaria, sem deixar meu estudo de ginásio. No meu modo de pensar, é uma das maneiras da pessoa se elevar.

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EM TORNO DE OLEIROS Almerentino

Como vice-presidente da cooperativa que pretendeu reunir os ceramistas de Maragogipinho, Almerentino mostra-se insatisfeito com o tratamento que vem sendo dado a esse organismo, fundado sob orientação da Secretaria de Trabalho e Bem-Estar Social. Além de estar, agora, de posse do prédio em que funcionava a cooperativa, a prefeitura da cidade nega-se, no momento, até mesmo a reconhecer a existência dela. Apesar desse impasse, vivido pelos ceramistas, Almerentino acha que o artesanato está com muito valor. Eu não quero dizer que seja uma das primeiras artes, mas está quase pra ser. O artista evolui muito, tem muita criatividade. Mesmo assim, eu não estou gostando muito da arte, porque tem hora que eu estou com o cabelo todo branco, me preocupo muito. Às vezes eu quero descansar e não posso. Para cumprir com a palavra, tenho que dar é duro!

Maragogipinho (BA), 1976.

EM TORNO DE OLEIROS Almerentino

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Boreste Enésio Diogo Araújo, conhecido também como Nenen ou Boreste, nasceu em Maragogipinho, há vinte e cinco anos, e sempre viveu nessa cidade. Dispensando muitas vezes o torno, aos dez anos já fazia figuras: baianas, cangaceiros, homem montando, burros com barris indo para roça... Minha especialidade são as peças turísticas: jarras, bichinhos, velhos..., porque é mais para turistas. Não é toda pessoa pobre que compra uma peça dessas, porque não tem onde usar. Eu vendo pra exposição lá em Salvador. Na feira do Pelourinho mesmo, o ano passado, eu levei uma quantidade de coisas, mas a feira não deu boa não. No torno, eu faço tudo, quer dizer, menos a talha e o porrão. Trabalho com bujões, cestas, corbelhas, esses negócios, com cinzeiros também. Começo com o torno e termino com a mão. De figura, qualquer uma que vier. Faço qualquer tipo de bicho. Os que eu mais trabalho são uns galinhos, uns boizinhos, uns cavalinhos, porque são mais procurados e eu me apuro mais neles. Trabalho mesmo manual, não leva torno, é só trabalho na mão. Moringa, eu trabalho, mas não me apuro, não, porque meu trabalho é mais com outra especialização e a moringa tem gente aí que faz direto. O barro utilizado por Enésio é retirado pelos barreiristas, que o revendem pagando uma taxa ao dono do barreiro. Compra-se o barro por cento – um cento equivalendo a cinquenta piloros (blocos de barro).

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EM TORNO DE OLEIROS Boreste

O barro chega aqui sujo. Tem umas pessoas que fazem a limpeza. Depois de limpo vai ser pisado. O barro tem que ser pisado até ficar duro como a vida, misturado com areia e amassado pelos amassadores no empelador. O barro vem rústico, vem brabo de Aratuípe. Aqui ele vai entrar em outro preparo, pra poder ficar numa mistura certa, ficar assim todo numa cor só. Amassar, porque se não amassar, ele rasga os pedaços, ele larga as costelas. Tendo sobre o empelador e sob suas mãos um rolo de barro de uns 70cm de comprimento por uns 25 a 30cm de diâmetro, o amassador joga todo seu corpo em uma cadência onde sua técnica e força encontram a resistência da compacta argila molhada. Ganham seu salário por semana, de acordo com o número de tarefas realizadas. Uma tarefa é tanto. Se eles amassarem dez tarefas, eles recebem por dez; se amassarem vinte, recebem por vinte; se não amassarem nada, nada recebem. Uma tarefa equivale a uma determinada quantidade de barro dividida em porções, denominadas pelas, necessárias para se fazer um determinado número de peças. Por exemplo, os amassadores têm que aprontar uma quantidade suficiente para fazer vinte peças, fazendo assim, uma tarefa. Então eles enrolam vinte pelas. Já uma tarefa de uma talha eles precisam preparar quatorze pelas. Somente após este processo de preparação do barro, as peças são modeladas por Enésio, que utiliza, como os demais artistas de Maragogipinho, instrumentos bem simples.

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Os bichinhos eu trabalho com uma palheta. A peça é puxada na mão. Depois é que, pra dar o acabamento, remodelar um olho, já faço com um pau de fósforo, com qualquer coisa que eu pegar. Mas pode-se dizer que tudo é puxado na mão. Com os dedos e um lápis, molhando sempre o barro, vou puxando as flores para colocar em relevo nos jarros de água. Tem que ser com o barro não muito seco, senão começa a lascar. No tempo de chuva e frieza o barro fica parecendo pedra de gelo. É duro trabalhar com ele tão frio. Vou criando minhas peças por cabeça. Sempre a gente pensa em fazer uma peça diferente, então pega um pedaço de barro e vai ver se faz, se consegue fazer. No fim, acontece que a gente remodela não aquela peça que a gente estava pensando, mas outra. Aí, a gente vai criando a peça. Mas é difícil a gente fazer o que quer. A gente aqui é forçado a copiar modelo, porque muitas vezes uma pessoa chega, pede uma encomenda, só quer aquilo, mas só feito por mim. Então eu tenho que fazer a peça. É forçado a gente roubar o modelo dos outros. Aqui a gente vive assim: um faz; se o outro entender de fazer, está fazendo, porque tem concorrência. Então, na fase de saída daquela peça, todo mundo capricha em só fazer daquele tipo. Não tem confusão, as pessoas não se incomodam. Agora, já minhas peças são difíceis pra pessoa apanhar. Eles não querem se dedicar ao trabalho que eu tenho. Então eles deixam de fazer por causa do tempo. Mas quem quiser pega e faz, não tem problema.

As pessoas daqui mesmo, próprias da terra, compram minhas peças. São peças que vão servir pra uso, pra utilidade dentro de casa mesmo: um jarro para mesa, um porrão pra água... As peças que eu faço pra os turistas, as pessoas daqui admiram, acham importante, mas não podem ter dentro de casa. Algumas eu tiro assim e dou. Tem muita gente mesmo que tem peça em casa dada por mim. Trabalhando quase sempre por encomenda, Enésio entrega a maior parte de sua produção a revendedores, em Maragogipinho. Eles vêm direto comprar na minha mão para exportar: pra Salvador, São Paulo e outros cantos. Muitos levam pra feira de São Joaquim e pra de Nazaré. Às vezes, combinando o frete, eu vendo diretamente e faço a entrega no saveiro. A gente aqui não tem assim um preço certo, fixo. Quando a gente vende a peça ao turista, então, a gente aperta mais ele, pede mais. E pra uma pessoa pobre então a gente analisa assim: uma pessoa pobre não pode pagar aquele preço do turista. A gente aí faz mais um abatimento pra poder sair mais fácil, pr’aquela pessoa ter a peça dentro de casa. Mesmo assim, em Maragogipinho, são poucas pessoas que têm peça de barro em casa, porque chegam as pessoas de fora, apreciam as peças e saem levando. Eu mesmo, não tenho uma de enfeite dentro de casa. Eu boto, vem uma pessoa de lá, e a gente tem que dar. Então a gente costuma dizer: casa de ferreiro, espeto de pau. A gente trabalha aqui, mas é difícil encontrar uma casa com jarro de barro. Já encontra com jarro de vidro, de madeira... Mas já tem outras pessoas que adoram o barro. Na casa de ninguém aqui tem porrão inteiro. É que não dá, tem sempre gente querendo levar. Só ficam em casa os quebrados. Trabalhando por conta própria para uma clientela instável, na olaria de um amigo, Enésio consegue ganhar o suficiente para manter sua mulher e dois filhos e ter uma pequena casa própria. Não dá pra ficar rico, mas dá pra ficar independente. Eu mesmo acho bonito esse trabalho, imagine os outros! Já saí várias vezes pra ir dar duro aí fora e nada deu certo porque eu fui criado desde pequeno aqui e já trouxe o dom mesmo pra isso. Eu tenho outras artes: trabalhei em padaria, trabalhei de pedreiro, de pintor, mas nada disso deu certo, só me dediquei a esse trabalho daqui. Não gostei das outra profissões, a gente sempre acostuma mais com uma, gostei mais dessa.

Maragogipinho (BA), 1976

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EM TORNO DE OLEIROS Boreste

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Zé Curu José Teófilo dos Reis nasceu em 1952, em Maragogipinho, onde todos o conhecem como Zé Curu. Como a maior parte dos habitantes dessa cidade, vive hoje dedicado ao barro. Entretanto, seu interesse por essa atividade é recente. Antes trabalhava como ajudante de carro e motorista, até que foi para Salvador, empregando-se em uma firma de eletricidade, onde era mecânico. Em meados de 1975 abandonou tudo, para não ser mais empregado. Desde então, passou a manusear o barro. Embora ganhando apenas a metade do que ganhava em Salvador, José optou pela vida e pelo trabalho em Maragogipinho. Outros fatores, considerados por ele mais fundamentais, levaram-no a essa decisão. Não existe outro lugar melhor pra mim do que aqui: é um clima melhor e nós trabalhamos à hora que queremos. Faz um ano e dois meses que estou nesse serviço. Nunca tinha trabalhado no barro antes. Era só peça de carro, desde criança. De peça de carro eu entendo tudo! Mas eu achei que não devia mais trabalhar para os outros. Quando eu era empregado, tinha que manter ordem, nunca tinha vez. Lá aconteciam coisas que eu não gostava. No barro, começou fazendo louça: pratos, sopeiras, bilhas... Um dia, viu em um jornal uma peça de barro que lhe chamou atenção: uma panela, com tampa e puxador grosso, de linhas simples, em duas cores. Resolveu copiar e vendeu toda a fornada. Assim iniciou o processo de transformação do barro: olhando, tentando, fazendo, conseguindo. Atualmente, além da louça mais comum em Maragogipinho, faz também boi-bilha e galinhas – esculturas concebidas tanto como objetos utilitários quanto peças decorativas, podendo o primeiro servir como recipiente de água e o segundo como uma farinheira. Feitos em diversos tamanhos, os maiores têm de 20 a 30cm. Quando eu vim pra cá, encontrei um rapaz que se chama Vitorino fazendo essas peças. Aí a gente pegou. Então uns já fazem melhor do que os outros, uns já fazem pior. A galinha a gente começa no torno e o resto é na mão. O boi, a mesma coisa. O serviço da louça é mais fácil. O boi e a galinha têm muita preparação: a gente pega, larga, pega. A gente fecha, depois bota asa, coloca a cabeça, deixa enxugar, bota a cara, cabelouro, rabo, tudo isso. Cada coisa tem que esperar secar pra botar a outra. Não faço figura humana. Não gosto de esquentar a cabeça. É muita paciência. Só para o cara que já vem com aquilo mesmo, que já traz de nascença. Eu nunca me dediquei porque sei tanta coisa já no mundo, que eu acho que já chega. Até há pouco tempo, José trabalhava na olaria de outros quando então construiu, ele próprio, a sua. Todas as suas peças levam pintura. Como é habitual em Maragogipinho, outras pessoas são encarregadas dessa tarefa, sendo pagas para executá-la. Trabalhando por encomenda e ainda enfrentando as dificuldades de acidentes na queima das peças, José não consegue obter uma renda estável.

muito porque eu trabalho para mim mesmo. Então trabalho com mais atenção no serviço pra não ter prejuízo grande. Embora haja aceitação e reconhecimento da qualidade artesanal de suas peças por parte dos compradores, o preço é muito baixo. Essa dualidade não parece ser questionada por José, que se sente satisfeito, vendo o primeiro aspecto como fundamental. Eles conhecem, veem o trabalho mais bem feito, mais brunido, os detalhes feitos com todo cuidado. O preço vai sendo aumentado com o tempo. Também quando eu enjoar esse trabalho, vou tirar outra diferente, porque o serviço pra mim nunca falta, porque eu vou em tudo.

Maragogipinho (BA), 1976

Às vezes a gente ganha, outras tem prejuízo por causa da quebra. Se o cara não souber mesmo trabalhar, faz uma fornada e quebra tudo. Eu não quebro

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EM TORNO DE OLEIROS Zé Curu

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Biu e Maurílio Antônio Santana, ou simplesmente Biu, como é conhecido na cidade, e Maurílio da Paz Almeida, trabalham junto ao pai na manufatura da cerâmica local. Nascidos em Maragogipinho respectivamente nos anos de 1958 e 1954, eles hoje respondem pela produção mais sistemática das peças, devido à precária saúde do pai. Ambos começaram a trabalhar na olaria desde crianças. Aos nove anos Antônio fazia sua primeira peça, um mealheiro pequeno, abandonando pouco a pouco o trabalho de amassador. Em seguida, vieram as moringas chatinhas, jarras, panelas com forma de galinha, passarinho, boi, de tamanhos que variam de 10cm a 50cm. Suas peças são pintadas: os bichos por ele mesmo; as jarras, na maioria das vezes, por outros que são pagos para tal tarefa. Além desse tipo de cerâmica, generalizado em Maragogipinho, Antônio faz também esculturas que não possuem função utilitária e onde o torno não é utilizado. Eu sempre gostei de escultura. Prefiro fazer isto porque eu gosto de arte. Uma vez fiz uma estátua de Jesus Cristo, levei para a feira de Caxixi e vendi lá. De outra vez, vi na televisão um homem fazendo a estátua de uma mulher. Então eu peguei e fui fazer. Botei o barro pra secar e meti a faca pra dentro, até que consegui. Já tomei muita aula de escultura em Itaparica. Gostaria de ser escultor. Eu tenho um Santo Antônio que eu fiz de madeira de cajá. Prefiro trabalhar na madeira, é muito melhor, mas eu não tenho ferramenta, não tenho nada. Gosto também de fazer figura no barro, porque distrai e vendo. Figura é melhor de fazer, louça é que eu acho muito chato.

Aqui tudo é amigo da gente, mas minha vontade é sair daqui e trabalhar noutra coisa. Eu não gosto desse trabalho de louça. Faço porque sou forçado, porque ainda não chegou a hora d’eu me mandar. Fora o trabalho, saio para dar uns passeios. Gosto de cinema, mas cinema aqui não tem, só indo pra Nazaré. Gosto de jogar futebol, mas não sou craque. Já gostei também de estudar, agora não gosto não. Acho que ninguém gosta de estudar, mas vou continuar... Maurílio, demonstrando grande habilidade no manuseio do barro, aos vinte e dois anos tem uma experiência profissional bem mais diversificada do que a do irmão. Durante seis anos tocou tromba na banda local. Passou três anos na casa do avô, estivador em Itaparica, trabalhando como marceneiro. Também se dedicou à funilaria. Sabe consertar relógios. O que não sei, quero aprender. Hoje, dedica a maior parte de seu tempo ao trabalho de modelar. Gosto desse trabalho porque não sou mandado por ninguém. A única vantagem é essa. Gosto mais de movimento e aqui a rotina é muito grande. Se eu trabalhasse por gosto, tranquilo, sossegado, sem dívidas, seria bom demais. Saúde eu tenho muita: nado, fumo e não sinto cansaço. Me divirto, vou à praia, mas sempre intranquilo com as dívidas. Casado desde os dezessete anos, tem dois filhos. Sua mulher ajuda-o brunindo suas peças. Seu problema, segundo ele, é um mercado capaz de absorver sua produção. Posso fazer de quinhentos, até seiscentos mealheiros de 18cm por dia, desde que tenha encomenda. As galinhas já dão mais trabalho. O negócio ruim é receber um pedaço adiantado. A gente fica preso. Às vezes tenho vontade de ir embora, pra qualquer trabalho que dê um salário maior. Se eu aqui achasse uma encomenda certa, dava pra enriquecer.

Na olaria da família de Antônio, construída por Maurílio, o barro utilizado, como sempre acontece, vem de Aratuípe. A gente paga pra tirar o barro e é um serviço muito arriscado. Cavam aquela fundura de não sei quantos metros, que é pra poder pegar o barro lá no fundo, que esse barro dá na base. Já matou até um, uma vez em Aratuípe. Eles descem para ir buscar o barro, por uma corda, e vão puxando os piloros. Aí o barro chega aqui, a gente corta todo com a enxada, molha, cobre com folhas, depois a gente pisa, bota areia, pisa e amassa. Modelando suas peças apenas com o auxílio da tasca, cana e carretilha, Antônio vai criando suas figuras, muitas vezes reproduzindo aquilo que vê. Eu sou assim: se eu vir uma coisa eu faço. Se eu olhar assim uma coisa, negócio de escultura, eu vou fazer. Perco a cabeça ali, até fazer aquilo. O Cristo eu vi na casa de minha avó, tem um quadro dele. Deu vontade de fazer. Aí eu disse: vou fazer, e fiz. Assim também foi o retrato de D. Pedro. Eu faço vários quando chega 7 de Setembro. Mas aí é pintura. Trabalho para escola. Tenho vários aí, nas escolas daqui, tudo na parede. O trabalho no barro, voltado para a produção que encontra maior procura no mercado, a louça, impossibilita Antônio de dedicar maior tempo àquilo que ele mais gostaria de fazer – escultura. Os momentos de prazer que experimenta ao produzir o que deseja, somados ao grande entrosamento dele e de sua família com os demais oleiros de Maragogipinho, não o satisfazem.

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EM TORNO DE OLEIROS Biu e Maurílio

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Rosalvo O preço que consegue obter, quando vende os mealheiros, é irrisório. Subtraindo o custo do barro, da tinta a óleo, do trabalho dos ajudantes, sobra muito pouco para ele. Isso sem levar em conta a quebra que, nessa produção, é em torno de 10%, segundo seus cálculos. Nas tigelas em forma de galinha, a quebra ainda é mais constante. Além de mealheiros (pintados com tinta a óleo, em cores vivas) e galinhas (pintadas com tauá e tabatinga, com tamanhos que vão até 35cm de diâmetro e 25cm de altura), Maurílio faz incensórios em grande quantidade, talhas, moringas em forma de baiana, bois, etc...Acha, como Antônio, que a louça encontra um mercado mais garantido, freguesia certa, sendo mais limitado o escoamento das esculturas. Quando a venda está mais difícil, Maurílio coloca a mercadoria em uma Kombi e procura a quem vender. No princípio de 1976, de sociedade com outro, passou seis meses viajando em direção ao sul do país. Foi muito negativa esta experiência. Quanto mais a gente dava distância, mais o custo da viagem aumentava e baixava o preço da louça. As alternativas para conseguir uma melhor situação de vida parecem esgotar-se para Maurílio, que já tentou tantas saídas diferentes.

O valor varia muito. Aqui não há lógica, não há classificação. O que vale é a fama. Um advogado, por exemplo, às vezes é péssimo, mas tem cartão espalhado por todo canto. Pra mim, nem sou superior a ninguém, nem tem ninguém superior a mim.

Maragogipinho (BA), 1976.

Eu nasci em Maragogipinho, tenho trinta e quatro anos. Toda hora a coisa que eu peço a Deus é que hei de findar meu último dia aqui. Agora, na base da melhoria de minha família, eu vou até para o exterior. Mas então, como diz o outro, olho por olho, para ganhar o mesmo ordenado, eu fico aqui, é melhor. Desde criança, Rosalvo Passos dos Santos convive com o barro. Começou como ajudante, amassando o barro e se encarregando da queima. Depois, passou um tempo viajando nas canoas como embarcado, vendendo a louça de Maragogipinho, em Nazaré e na feira de São Joaquim. Seu pai era barreirista, conduzia o barro. Essa familiaridade com o barro, Rosalvo não pretende para seus quatro filhos, todos homens, o mais velho com sete anos. Pelo meu gosto, os filhos todos iam para a farda. Tudo homem para fazer um batalhão. Em 1963, Rosalvo começou a trabalhar com Vitorino Moreira e, após um período de três anos, passou a modelar suas primeiras peças. Aqui, uma certa época, chegou um rapaz pra trabalhar por nome de Jéter. Nesse tempo, nós trabalhávamos só em negócio comum, louça comum, digamos: talha, moringa, pote, caco... Quando Jéter veio para aqui, ele ensinou a Vitorino umas outras peças. Vitorino começou a fazer e eu fui trabalhar com ele de ajudante. Eu aí, vendo ele fazer, fui gravando o negócio na cuca e depois fui experimentando. E pouco a pouco me aperfeiçoei. Vitorino fazia esses modelos e faz ainda. Em 1965, Rosalvo foi para Itaparica, trabalhar como servente. Mesmo durante os onze meses aí vividos, manteve sua ligação com a cerâmica. Todos os fins-de-semana ia a Maragogipinho e trabalhava amassando barro. Em 1966, eu vim embora. Quando cheguei aqui, comecei a fazer bilha. Eu acho que aqui é melhor do que Salvador, muito melhor. Em Salvador, mesmo que a gente ganhe o salário, não dá de maneira alguma; a não ser para aquelas pessoas que têm casa própria, tudo. Mas pra pagar aluguel, pagar água, pagar isso, pagar aquilo, e mais toda hora um transporte... Lá, nós temos que andar na medida; aqui, não. Aqui, a gente compra dois ou três sacos, fazemos dois ou três calções. E a gente vestindo uma camisa vai até pra casa às vezes. Trabalhando em suas peças na olaria de um amigo, onde fazia seu rancho próprio, Rosalvo só recentemente conseguiu adquirir um espaço seu. Me esforcei, fiz uma economia muito grande, e entrei de sócio do meu amigo. Aqui, a situação, quanto mais tempo tiver passando, mais é pior mesmo. Agora ocupei essa daqui, aí então está melhor. De qualquer maneira é melhor. Nós nos unimos e então aumentou mais, porque um nunca é como dois. Rosalvo chama suas peças de louça turística. São de vários tipos e tamanhos. As baianas e os bois, os mais procurados, chegam até 50cm, variando entre seis tamanhos.

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EM TORNO DE OLEIROS Biu e Maurílio

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Eu trabalho mais é nessa louça: porquinhos, bois, baiana, bilha, pratos, panelas. Toda louça se pode fazer, toda ela eu faço. Agora, essa é mais leve. Digamos, na talha se bota muita força, no porrão e outras peças mais. Essas minhas são mais leves; vou me poupando mais um pouquinho, trabalho mais com a cuca. A modelagem é feita com o auxílio de instrumentos muito simples e improvisados, como, por exemplo, pente, tampa de pasta de dente, colher de alumínio. A pintura das peças é minha mulher quem faz, usando a tabatinga que é rasa, a gente tira de cima da terra, e o tauá, que é tirado de um buraco muito fundo. Compra-se aquelas bolas. Em Maragogipinho, só se faz tudo com o dinheiro adiantado. O material a gente compra, mas se não pagar adiantado ele não vem. Então quando a gente faz a mercadoria, mesmo sendo um preço mais alto, quando entrega e tira a despesa, não fica quase nada com a gente. Às vezes também a gente vai fazer uma queima, enforna tudo e quando tira do forno, tira a metade sã, metade quebrada. Se saísse tudo sã, mesmo com essas despesas todas, ainda dava. Quando me encomendam cinquenta peças, em vez de fazer cinquenta, tenho que fazer sessenta e cinco, esperando já o prejuízo. E quando Deus me ajuda mais um pouquinho, e sai tudo perfeito, então para aquelas pessoas que chegam, eu vendo cinco, dez ou quinze peças. Sua mercadoria é vendida em Maragogipinho, e o comprador se encarrega do transporte, a não ser quando paga o frete e Rosalvo se responsabiliza pela entrega das peças. Trabalhando

sobretudo por encomenda, tem quatro compradores certos – todos eles revendedores – com barraca na feira de São Joaquim. O resto mais é assim um quebra-galho. É uma raridade quando chega um turista aqui. Tem meses que dá até dois salários. E tem meses que nem meio salário dá, porque a chuva vem, nós não podemos passar sem ela, mas quando ela cai demais, pronto, aí já era. Empastela tudo tudo, não pode secar, polir, nem nada. Aí tem que fracassar o serviço. Se fizer um tempo bom, um sol de verão, com quatro dias as peças estão secas. Além dessas dificuldades que Rosalvo encontra em seu trabalho – a compra do material, a precariedade da queima e até mesmo as condições climáticas –, ainda pesa o ritmo lento com que realiza sua produção. Todos esses problemas, no entanto, não o impedem de sentir um grande prazer naquilo que faz. O artesanato eu acho ótimo. E acho tão importante que, se uma pessoa riscar uma peça, eu vou tentar fazer. E para ser franco, quando eu sento no torno, eu sento com satisfação. Agora, o que acontece é que sou um cara muito vagaroso. Então não dá pra produzir que dê para satisfazer os meus desejos e minha precisão, porque não são meus desejos, é a minha precisão. Se fosse desejo eu acho que o homem mais rico do Brasil era eu. Mas com tudo isso, com todas as dificuldades, com minhas economias, eu vou passando com minha família, a gente tem que ir passando. A vida aqui é dura, mas dá pra viver. Se não desse eu não estava vivendo. Em Maragogipinho, a vida da cidade funciona em torno da cerâmica. Mais do que meio de sobrevivência para a maioria da população, é por meio dela, através de suas olarias, que se dá seguimento à história de vida, de trabalho dessa população, há muitos anos ligada ao barro. Configura-se, assim, um espaço marcado por laços de amizade e solidariedade, um espaço muito importante e pessoal para os que vivem aí. Gosto de viver aqui, conheço todo mundo. Meu pai já está enterrado nesse chão. Não tem lugar mais tranquilo que esse. Se um dia eu morrer noutro lugar, já disse, quero ser enterrado aqui mesmo. Aqui eu estou mais tranquilo, em tudo por tudo. Todos aqui são quase irmãos; e se for, então, catar assim no fundo, do princípio, é uma família. Aqui não se vê estes atos que acontecem fora: mortes, desastres, assalto. Nada disso aqui se dá. Aqui é um lugarzinho em que nós vivemos tranquilos.

Maragogipinho (BA), 1976

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EM TORNO DE OLEIROS Rosalvo

EM TORNO DE OLEIROS Rosalvo

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Caxiviti José Inácio Jaciara João batista Braulino Sebastião Walter Valdevino Tita Caxiado Zé do Gato Nivaldo e Josafá

Talvez muitos desconheçam que uma prisão, enquanto espaço de reclusão, é estruturada basicamente em celas, fixadas de forma a garantir o isolamento e a distribuição dos presos, e em espaços coletivos, para o trabalho, a instrução e o lazer – expondo sempre essas pessoas a uma observação constante. Instituição que pretende desempenhar função pedagógica, transformando hábitos e valores. O termo prisão é empregado aqui de forma genérica para designar o local de cumprimento da pena. Não se levam em consideração as diferenças estabelecidas entre prisão comum, presídio, prisão especial e penitenciária. Pretende-se conhecer como se desenvolve, na prisão, a atividade artesanal, que se encontra inserida no espaço designado ao trabalho. Nesse sentido, a pesquisa foi realizada na Penitenciária Lemos de Brito, na Bahia; na Penitenciária Agrícola de Itamaracá, em Pernambuco; e no Reformatório Penal de Sergipe, em Aracaju. Cabe observar que a presente análise tem como referencial os primeiros estabelecimentos, uma vez que não foi possível obter do terceiro os subsídios necessários. Na Penitenciária Lemos de Brito as principais formas de ocupação são o artesanato e os serviços da casa; e, na Penitenciária Agrícola de Itamaracá, o artesanato e a faxina do Estado. O trabalho, mais do que garantir o autossustento da instituição ou do preso e sua família, ideia frequentemente associada ao mesmo na prisão, funciona como mecanismo fundamental de introdução dos princípios de ordem e regularidade. Ocupando planos diferentes, tanto para a direção quanto para os presos, serviços da casa ou faxina do Estado e artesanato não têm o mesmo estatuto. Os dois primeiros são aqueles que servem diretamente à penitenciária, abrangendo os mais diversos setores – carpintaria, marcenaria, sapataria, alfaiataria, padaria, faxina, farmácia, portaria, conservação de estradas de acesso ao presídio, oficina mecânica, etc... Na Penitenciária Agrícola de Itamaracá, existe ainda o departamento de produção, responsável pelos produtos industrializáveis que trazem renda para o estabelecimento – cana, gado, mandioca e principalmente coco. Na diversidade, as mesmas características: regularidade de horário, divisão de tarefas, centralização na direção, salário como forma de pagamento – reprodução do trabalho tal como é desenvolvido fora da prisão. Já no artesanato, cada preso domina sua produção, faz suas peças, conseguindo obter um rendimento muito superior àquele dos trabalhos da casa. Sem horário pré-estabelecido e não envolvendo salário, escapa ao controle restrito, às normas rígidas – marca básica da prisão. Na Penitenciária Lemos de Brito, apenas uma minoria dedica-se ao artesanato: 2% dos detentos. Provenientes das mais diversas profissões – açougueiro, militar, cabeleireiro, pedreiro, boiadeiro, tipógrafo, etc... –, transformam-se em artistas dentro da penitenciária. Geralmente casados, com filhos e sem recursos, veem no artesanato um meio de vida, a melhor forma, nas limitadas oportunidades possíveis, de ajudar seu próprio sustento e o da família. Trabalham incessantemente em suas esculturas, às vezes até 10 horas por dia. Quanto maior a produção, maior o seu rendimento. Há uma preocupação constante em obter estabilidade econômica: investir em propriedades, negócios com imóveis. A caderneta de poupança – ideia instituída pela direção da penitenciária e onde são depositados compulsoriamente 20% do valor de cada peça vendida – funciona também como reserva necessária, enquanto o detento não encontra trabalho ao sair da prisão. Se o presente desses indivíduos é marcado pelo confinamento, a recompensa maior passa a ser identificada com o alcance da liberdade, progressivamente conquistada em um processo que tem início no interior mesmo da prisão. O bom comportamento é o caminho para o livramento condicional e para a “meia liberdade”, representada pela vestimenta do preso: substituição da

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roupa preta pela roupa azul, como se verifica na Penitenciária Lemos de Brito. A roupa azul é a marca, a distinção – a todo momento presente e visível, para aqueles que não a vestem – das vantagens de uma conduta disciplinada. Aqueles que a usam não apenas podem circular livremente em toda a área da penitenciária, como também residir em uma casa, com a família ou sozinhos, dentro desse espaço, e sair com uma autorização especial. Ao deter o poder de punir ou gratificar os presos, de acordo com seu comportamento, a direção exerce o poder de modular a pena, uma vez que designará aqueles que estão em condições de obter o livramento condicional. Nesse contexto, os serviços da casa ocupam um lugar privilegiado em relação ao artesanato. O preso que veste roupa azul não se dedica com exclusividade a essa última ocupação. Geralmente, deve também trabalhar naqueles serviços, condição importante para a redução da pena. Na Bahia, a crítica da direção ao artesanato é de que essa atividade produz “uma ilusão de ganhar mais... Eles estão aprendendo a serem homens, agora. As outras atividades é que preparam para depois.” Os poucos presos que se dedicam ao artesanato, a maioria vestindo roupa preta, fazemno com muito empenho. A loja da Penitenciária Lemos de Brito é um testemunho desse investimento: figas, máscaras, gamelas, batedores de carne, cinzeiros esculpidos, arte-sexi, esculturas parafemininas, talheres entalhados, índios, pretos velhos, figuras de mulheres iguais, sem feições – sombras –, cangaceiros, bois, etc... Em uma primeira visão, um amontoado de jacarandá. Pouco a pouco, vão-se percebendo formas diferenciadas, temas muito semelhantes ao que se vê no Mercado Modelo. Inclusive é aí que se situa um dos principais centros de escoamento da produção artesanal dessa penitenciária. Esses artistas adquirem o gosto pela escultura, aprendem a apreciar a transformação da madeira em formas definidas, mas poucos deles conseguem ultrapassar o limite dos temas conhecidos – a repetição ainda é a característica predominante. Para os que vivem essa situação, é considerado criador aquele que introduz certo modelo ou que tem maior habilidade para esculpir determinada peça. Depõe um dos escultores da Lemos de Brito: Pra trabalhar, a pessoa tem de soltar a inteligência e as mãos. O artista copia e imagina. Quem diz que só deve fazer imaginando está por fora. O importante é saber os dois: é o artista criador e o copiador. No processo de produção artesanal dessa penitenciária chama a atenção a divisão de trabalho na realização de uma peça. Estabelece-se uma hierarquia muito bem explicada por vários artistas: existem os que monopolizam a madeira, os que fazem as peças, os que dão polimento e os que lixam – estas duas últimas tarefas, muitas vezes, são executadas pela mesma pessoa. Ocupandose do acabamento, o trabalho do lixador e do polidor é, em geral, desvalorizado em relação ao trabalho do escultor. Os que monopolizam a madeira às vezes também fazem esculturas, mas os escultores dificilmente aceitam polir ou lixar. A madeira é controlada por alguns presos que, dispondo de maiores recursos, podem comprá-la e revendê-la aos outros, que efetuam o pagamento de várias formas: uns pagam no ato da compra; outros, a prestação ou após a venda da peça. Mas a maioria paga em peças. Dessa última prática resulta um fato singular: muitas vezes o verdadeiro escultor fica no anonimato, sua peça é vendida como se fosse daquele que, na realidade, apenas forneceu a madeira. Outras vezes, não podendo esperar pela venda da peça na loja, por necessidade de dinheiro, o escultor vende seu trabalho para outro preso, que o assume como seu. A direção da Lemos de Brito, interessada em equiparar o artesanato às demais atividades, tem

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como projeto assumir a compra da madeira e o fornecimento aos artistas, os quais receberiam um salário e uma percentagem sobre a venda das peças. Passando a ter esse controle, eliminaria a função do intermediário, desempenhada por um preso, possibilitando assim a subordinação dessa atividade a determinadas regras; e aqueles que a realizam, a uma maior disciplina. Esse processo de integração do artesanato parece estar mais desenvolvido na Penitenciária Agrícola de Itamaracá. Aí a matéria-prima é controlada pela direção, que obtém a madeira e a divide entre os presidiários que se propõem ao serviço de artesanato. É visível o interesse da direção pela atividade artesanal. O Juiz de Execução, presente às entrevistas, refere-se à sua já antiga atuação como deflagrador dos primeiros movimentos de apoio ao artesanato na antiga Casa de Detenção de Recife, hoje convertida em Casa da Cultura. Coloca-se também como estimulador desse tipo de trabalho nos presídios que tem sob sua supervisão, na área do Grande Recife. Nesse sentido, menciona as atividades artesanais desenvolvidas no Presídio Mourão Filho, em Dois Unidos, onde o material básico é o coco, transformado em botões, cinzeiros, máscaras, etc... No Barreto Campelo – que é um presídio fechado, onde os detentos passam o primeiro período de sua pena – encontra-se um artesanato de jangadas, barcos, etc., feitos de chifre, como também carros de boi, talhas, etc., de madeira, conseguida com grande dificuldade, além de objetos de couro. Segundo o juiz, “a arte é uma atividade típica de presídio fechado. Nessas prisões, essa é a melhor forma de enfrentar o problema da ociosidade. Hoje, também aqui nessa penitenciária, damos todo o apoio ao artesanato.” Na Penitenciária Agrícola de Itamaracá, onde se trabalha somente com madeira (sucupira ou imburana), as carrancas constituem o principal produto. Aí, os detentos que desenvolvem essa atividade recebem, integralmente, a importância referente à venda de suas peças. De acordo com o regulamento, o preso tem o direito de guardar consigo, em dinheiro, o equivalente a 10% do salário mínimo. O restante fica com a direção, sendo entregue ao detento parceladamente. Os artistas, no entanto, podem ficar com toda a soma apurada com seu trabalho, o que constitui um privilégio frente às normas estabelecidas. Também lhes é permitido transformar o meio expediente da faxina do Estado em duas horas diárias, havendo casos em que a dispensa é total. Promovendo o artesanato e gratificando os detentos que dele se ocupam, a direção dessa Penitenciária espera, em contrapartida, uma maior disciplina e integração aos valores estabelecidos. Essa situação pode ser constatada através da preocupação em transformar o artesanato numa atividade normalizada e legitimada, promovida e controlada pela Penitenciária e não pelos presos – como ainda ocorre na Lemos de Brito. A atividade artesanal desenvolvida na Penitenciária Agrícola de Itamaracá, como também em outras prisões de Pernambuco, funciona ainda como elemento importante de promoção da própria imagem da prisão. Assim, esse espaço hostil e de punição apresenta-se como um espaço que não apenas possibilita, mas também divulga e valoriza uma forma de expressão reconhecidamente gratificante e livre. Apesar das diferenças em cada presídio, o trabalho de artesanato se traduz sempre em um investimento do corpo, do tempo, de ideias, de esperanças, de distração... A arte na prisão é um desafio.

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José Inácio

Caxiviti Em retorno à Penitenciária Lemos de Brito, que representava uma tentativa de recolher mais alguns dados, teve-se a notícia de que José Rodrigues, conhecido como Caxiviti, se suicidara no dia anterior. Do primeiro encontro, é possível constatar a força e a dimensão do posicionamento de Caxiviti, enquanto artista e enquanto preso. E ainda, através do depoimento de outros companheiros, constatar o respeito que ele inspirava.

José Inácio da Silva, antes de tornar-se artesão no presídio, foi açougueiro e militar. Nascido há quarenta e seis anos, no antigo Barracão Rei Real, hoje Barracão da Bahia, vivia na roça, onde carreava e vaquejava. Quando se mudou para Salvador, foi para a Polícia Militar, e nas horas vagas era açougueiro. Estava nessa vida, quando cometeu um crime. Foi condenado a quatorze anos, estando há onze preso.

Eu sou artista escultor, sou artista nato. Quando cheguei à Escola de Belas-Artes, não tinha mais nada a fazer. Antes do presídio eu era artista. Aqui sou artista, sou sempre artista. Fui lançado, em 1969, pelo Professor Romano Galefi, um italiano que mora aqui em Salvador.

Cadeia é questão de sorte. Já podia ter saído há três anos – conduta eu tenho! Do meio da pena em diante a gente tem direito a três recursos, de noventa em noventa dias. Dificilmente se perde no terceiro. Espero sair até janeiro. Pela lógica, já era pra eu estar liberado há três anos, mas como o poder da justiça não é pra todo mundo ter uma sorte igual, porque assim a cadeia ficava vazia, então é assim: um sai pela metade, antes não pode, a não ser que fuja; outro pode sair com dez anos, com seis anos, com seis meses... De cem presos, vinte ou trinta no ano ganham esse tipo de recurso. Mas justo que não é todo mundo. E quando o cara não é chegado a pedir, como eu, então ligo mais trabalhar.

Seu nome artístico, ao que tudo indica, foi sugestão do referido professor. Esse nome descende de mim. É uma ferramenta italiana, tem um grande desempenho e desafia todas as outras. Eu me orgulho dela. Desde que fui lançado, sempre tive muito sucesso: exposição, notícia de jornal, reportagem e tudo. Os outros aqui são artesãos, eu sou artista. Por isso eu não coloco minhas peças na loja daqui do presídio. Eu tenho um comprador lá fora pra tudo que eu fizer. É pra uma galeria de arte, são umas encomendas especiais do governo. O professor Romano já sabia, antes de acontecer, que eu ia acabar caindo num presídio. É uma privação, é uma provação. Aconteceu logo que eu lancei o Jogo de Xadrez Brasileiro: as peças representavam o Brasil colonial e o Brasil moderno. As peças eram torres de petróleo, reis - coisas brasileiras. O tempo de ficar aqui é com os astros. Aqui eu venho lutando com o psiquiatra e com a psicóloga sobre o meu desenvolvimento e progresso. A arte é o sofrimento. Um pescador que faço é um sacrifício. Eu agora estou fazendo uma gestante de 94cm. Eu quero fazer painéis. O meu gabarito precisa ser reconhecido pelas universidades. Quero demonstrar minha cultura, minha sabedoria nas faculdades, para que a justiça veja a provação que eu sou. Suas peças podem ser encontradas em uma das barracas do Mercado Modelo. Quando ainda vivo, o preço de venda de seus trabalhos era quatro vezes inferior àquele do dia imediato à sua morte. Um cuidadoso tratamento, feito em pequenos machetados muito bem polidos, dá um toque todo especial às suas figuras, feitas em cedro e ipê. Na loja do presídio – agora que ele não pode mais decidir sobre o encaminhamento de suas peças – uma talha muito significativa resta como derradeira lembrança de sua presença ali: um homem algemado, de boca vedada, em relevo sobre a prancha, tendo por trás os dizeres: Algemados, escravizados, amordaçados, entre bocas de fuzis...?!!!

Salvador (BA), 1976

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EXERCÍCIOS DE LIBERDADE

Caxiviti

Em sua cela, no presídio, mora com mais cinco colegas, todos roupa preta. Percebe-se que a preocupação pela sobrevivência econômica e afetiva, nesse espaço fechado, está minada pela tensão constante e pela luta por um lugar tido como melhor. São cinco elementos controlados por mim. A gente tem joias, rádio, óculos... Aí tem que ser aquela seleção de elementos. José Inácio trabalha somente no artesanato, não presta serviço nenhum à casa, o que é incomum, pois o roupa azul tem necessariamente de trabalhar para a casa. Trabalha na carpintaria, beneficiando a madeira para sua peça, independentemente de um vínculo com o presídio. Eu moro junto com os outros, dentro do presídio, mesmo sendo roupa azul. Mas todo roupa azul tem de morar aqui fora (na área da penitenciária, numa casa). Eu fiquei lá dentro porque minha oficina tem muito bagulho e eu não podia botar pra fora. Eu recebi a roupa nessa condição, dormir junto ao bagulho. Tenho TV, ventilador, mesa, fogão... Então aqui fora é arriscado. Podemos estar no trabalho e quando voltar encontrar tudo quebrado. Lá dentro, de ordinário, quem toma conta é o guarda. A gente sai às seis horas e entra às dezessete. Quem me arranjou roupa azul foi a psicóloga daqui. Ela é camarada de todo mundo! Tenho ela como madrinha, de brincadeira, mas eu ganhei qualquer coisa com isso. Ela me deu esta roupa no dia 7 de Setembro. Em quatro anos aqui, nunca tiveram coragem de me dar esta roupa azul. Aqui, o preso vindo da detenção, com quatro meses, como eu vim, com dois a quatro apanha roupa azul. Mas isso quando fica varrendo, apanhando lixinho – e eu não faço isso, não. Faço pra mim. Não é por gostar somente de artesanato, mas é por precisar de dinheiro pra dar conta da turma que eu tenho. O ofício dá pra viver lá fora. Agora, é difícil na capital o artista ter sua barraca própria. Só revendedor tem. Segundo ele, muitos são os tipos de peça que é capaz de fazer; no entanto, três constituem sua especialidade – o talher figurado, o índio e o Preto Velho. Essas eu faço até dormindo, dentro d’água. O talher é grande e tem entalhado uma cara de lado. Os índios são de dois tipos: um de flecha e outro de penacho e flecha. O Preto Velho pode ser

EXERCÍCIOS DE LIBERDADE José Inácio

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peças desse pessoal que quer logo o dinheiro. Vendo tudo no presídio e para uma barraca do lado da Igreja do Bonfim. Do dinheiro apurado, desconto uma quantia para a caderneta de poupança, e com o resto pago a madeira aos escultores e levo para casa. No seu processo de trabalho José Inácio não participa do polimento e de alguns detalhes da peça. A função do lixador é descrita por ele, dando conta de suas tarefas e mostrando a divisão de trabalho existente na atividade artesanal por eles desenvolvida. Eu nunca fiz lixa. Nunca lixei um cachimbo. Vou dizer: quem lixa faz o último ponto. Quem lixa corta o bagulho todo, deixando tudo lisinho, parecendo que colocou um aço e comeu tudo isso. Pelo que eu olho, o lixador poderia ter quase o mesmo valor que a gente. Porque pra fazer uma peça dessas, depois que a gente coloca isso no nosso conhecimento, aí se faz brincando, dependendo da ferramenta pra cortar. E o lixador, não. O lixador tem que dar um murro infeliz. Ele bota mais força que a gente. O lixador pode, catando o bagulho, que ele cata com uma faquinha, tomar um golpe e se aleijar. Em todos os detalhes ele passa uma faquinha, um ferrinho com uma ponta oval, acompanhando tudo isso que ele tira. Isso se chama puxar a peça. Então ele tem de catar tudo, todas as coisinhas que ficam, com essa faca que corta que nem uma navalha. Se ele não catar, ele não lixa. Ele tem que tirar todos os tombos que a gente deixa. Ele tira tudo isso, ele conserta o olho, ele abre unha... Nós não abrimos a unha. Tem especialistas só para abrir unha das figas. Um lixador, a meu ver, poderia ganhar quase igual à gente. É que cada macaco em seu galho, não é? A gente compra a madeira, eles não querem esse compromisso. Do que ganham, eles tiram uma parte pra lixa e ficam com três partes para eles. Não é só lixa, também tem uma cera. De ordinário, o lixador é roupa preta.

sentado ou em pé, de cachimbo e machadinha. É a peça que dá mais dinheiro! O Preto Velho é um cara lá da roça, um velho bem pensativo. Ele chega assim, aí tem um toco, um pau caído. Então ele descansa o pé e, de ordinário, só quem cansa são os velhos. Eu acredito que a origem dessa peça é isso. Agora, tem outros que o chamam de lenhador. Mas então o chapéu é de palha, todo jogado na cabeça. Eu faço um Preto Velho em dois dias. Outro dia fiz um Preto Velho com o chapéu de Jackson do Pandeiro. Essa inspiração saiu da televisão. Outra peça assim que eu já encontrei sendo realizada no presídio, quando eu cheguei, foi o Padre Talé, de mãos postas, do Tema de Lara. É uma peça também muito vendável. A seu ver, 70% das peças feitas no presídio são fruto da imaginação, e o resto, de uma revista a que todos os detentos têm acesso. De ordinário, eu não gravo o nome em peça nenhuma, a não ser que o freguês exija. Não gosto disso, não, mesmo porque tem de ser com uma ferramenta apropriada, que eu não tenho e não gosto de estar pedindo emprestada. Aquela máscara de sucupira é minha, mas no entanto foi outro que diz que fez e tirou fotografia com a peça. Então se a fotografia da peça é com o escultor, então terá de ser. Agora, vamos dizer que amanhã uma galeria qualquer exija o novo lugar onde nós estamos residindo, para que a gente preste um serviço baseado nesse que se encontra aqui. O cara chegando lá vai fazer o quê, se ele não faz nenhuma peça daquela? Então ele contrariou a marcha do serviço. Eu tenho uma equipe de três homens que trabalham pra mim, e também compro as

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EXERCÍCIOS DE LIBERDADE

José Inácio

José Inácio está construindo uma casa no bairro do Roma, na Cidade Baixa. Uma parte é moradia, onde já estão instalados sua companheira e cinco filhos, e outra destinada à montagem de um ponto de venda para depois de sua libertação. Ele tem consentimento para ir à rua, levar dinheiro para a família, com quem tem contato também durante a semana. Fora as festas de São João, Natal e Ano-Bom, que se festejam aqui, ainda tem o dia 2 de agosto, que é o Dia do Sentenciado. Aí nós temos uma noite e um dia de festa, cada um com sua esposa, isto é, só para o casal, nada de criança. As visitas são três dias na semana, sendo dois dias para a família toda e um para as crianças. Quando eu sair de vez, pretendo levar as ferramentas, mas não tenho ideia do que eu vou fazer. Pode ser que eu saia de Salvador, mas só se me oferecerem um salário extra. Eu fui convidado por uns gringos pra ir para o Rio Grande do Sul. José Inácio lembra com tristeza o companheiro Caxiviti, que se suicidou. Ele fazia peça de origem de qualquer nacionalidade. Era só trazer a revista que qualquer peça dali ele fazia. Era um verdadeiro escultor. Nós não somos escultores, nós somos arranjados. Nós arranjamos fazer isso pra ir vivendo. É o banco, é o emprego, é a safra, é o milho, é o feijão. Tudo no preso é o jacarandá.

Salvador (BA), 1976

EXERCÍCIOS DE LIBERDADE José Inácio

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Jaciara Givaldo Cardoso Jaciara, nascido e criado em Ilhéus até os vinte anos, veio depois para Salvador. Antes de ser preso, em 1958, para cumprir uma pena de vinte anos, exercia a profissão de tipógrafo. Estudei em colégio de padre até a primeira série. Depois fui para a Escola de Aprendizes de Marinheiro, e aí me dei mal. Tinha vinte e dois anos. Assim que chegou ao presídio se interessou pelo artesanato e terminou se especializando em dominó e pente de osso. Como tinha muita dificuldade em adquirir o material, mudou para o trabalho na madeira, mais comum a todos os presidiários. Atualmente, a produção artística de Jaciara se constitui quase que exclusivamente de três tipos: o Abraço, a Paloma, e Arte-Sexi. O primeiro e o terceiro se assemelham mais: são corpos entrelaçados, com ou sem cabeça, trabalhados na mesma peça de madeira, soltos um do outro, sem, no entanto, se desligarem. Ou então uma figura rodeada por uma cobra, que também é parte do mesmo bloco de madeira. Mas é a Paloma que ele considera sua peça mais importante. Nessa, as duas figuras encontramse entrelaçadas, como nas primeiras, esculpidas no mesmo bloco, mas capazes de se largarem para o abraço em doze posições. São peças de 20 a 30cm, aproximadamente. É como um quebra-cabeça. Da primeira vez passei duas semanas pensando como fazer. Eu pego uma madeira só e vou soltando. Seria muito mais difícil pegar duas madeiras soltas e depois

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EXERCÍCIOS DE LIBERDADE

Jaciara

querer encaixar. Já bolei uma peça seguindo a evolução da juventude. Já li alguma coisa e faço coisas modernas. Eu faço também peças mais comuns, como figa, Preto Velho, cinzeiro – mas não é minha especialidade. Não gosto e não faço cópia. Gosto de transformar, de criar. Quando vou fazer, quero sempre uma coisa nova, um tipo primitivo. Minha inspiração para a arte erótica começou assim: eu estava tomando banho e aí o rapaz achou que a gente estava fazendo algazarra no banheiro. E para a gente sair, jogou água assim, com mangueira, e aí desenhou na parede. Eu fiquei impressionado com aquilo. A forma que ele desenhou não foi essa, foi uma coisa muito mais bacana que isso. A peça que eu fiz logo, nunca mais eu fiz, foi um estalo mesmo. Eu fiz tudo para tentar fazer e nunca mais consegui. Até aquele momento, eu trabalhava com osso, chifre. Fazia pente, anel, bugiganga, essas bobagens... E minha mulher estava em estado de gestação. Faltavam três meses para ela ter a criança, e todo dia falava: “Jaciara, cadê o enxoval do meu filho?” Então, puxa vida, como é que eu ia arranjar este dinheiro? Aí aconteceu esse troço, esse estalo. Eu fiz a peça e vendi por muito. Trabalhei terça, quarta, quinta e sexta. Na quinta eu já estava catando, quer dizer, tirando os fiapos. Para mim, foi uma alegria. Só que a peça que eu fiz nunca mais eu fiz. É como aquele sábado que acontece na vida da gente. Esse tipo que eu faço agora é um tipo mais popular, que derivou daquela peça primeira. Só que a primeira era uma peça só e essa são duas. Era uma espécie de mulher ajoelhada, pensando, como um ser pensante e com um cocó. Uma coisa fantástica. Foi a maior imaginação que eu já fiz dentro do presídio! Hoje, se eu fosse vender, aquela peça estaria custando de um milhão para lá.

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João Batista Jaciara trabalha somente no artesanato, dez horas por dia. Gostaria de deixar suas peças no jacarandá bruto, com os cortes do canivete mais aparentes. Manda polir, no entanto, cedendo à preferência do comprador.

Nascido em Coaraci, perto de Salvador, em 1951, João Batista dos Santos saiu de sua cidade natal com dezessete anos, diretamente para o presídio, a fim de cumprir uma pena de cinco anos. Esta pena já foi reduzida para quatro anos e três meses, dos quais três anos já foram cumpridos.

Na arte eu me encontro. Esse meu trabalho também me distrai. Essa peça, composta das figuras que se soltam, é capaz de realizar doze posições diferentes porque uma peça sai da outra. Aí, dá pra se divertir com os colegas. Arte, trocado e divertimento.

Naquele tempo eu não tinha ideia suficiente pra fazer nada. Vivia na boleia de caminhão, como ajudante. Quando cheguei aqui já fui direto na escultura. Preferi porque achei bonito. Um colega do mesmo interior que eu me emprestava o dinheiro da madeira, depois eu pagava a ele. Ainda hoje eu não tenho dinheiro pra comprar a madeira: trabalho de mão-de-obra pela condição de não poder comprar a madeira. Aí o vendedor da madeira compra a peça e vende ele mesmo.

Trabalha, em geral, com o jacarandá, como aliás todos os presidiários ligados ao artesanato. É uma madeira de lei, que recomenda a Bahia. É de valor, está até proibida sua exportação. De mais de cem quilos que chegam, são aproveitados uns vinte quilos, o resto vem ocado. No presídio, gasta-se uns mil quilos de jacarandá por semana. O trabalho de artesanato, aqui, começa assim: tem o pessoal que chega sem profissão e passa a ser lixador, até se transformar em polidor. Com a experiência, aprende a fazer alguma coisa e assim se transforma em escultor. Tem aqueles que têm mais fundos de renda e compram dos mais analfabetos. O nome assinado é de quem tem dinheiro pra comprar a peça do outro. Quem faz, muitas vezes, é um anônimo. Há ainda aqueles, que são mais ou menos 70% do presos, que vêm do interior. Encontram madeira fácil, não têm habilitação, mas conhecem o material. Então começam fazendo máscaras e figas, que são mais fáceis. Escultores artistas tem muito poucos, a maioria é artesão. Dois ou três têm mais paciência, estudam a madeira para sentir o que fazer.

Dessa situação resulta que, na lojinha do presídio, nada tem seu nome, na medida em que suas peças aí chegam através do presidiário proprietário da madeira. O artesanato é um investimento. A gente está trabalhando, está se divertindo. Naquela hora não se pensa em nada mal, só se pensa mesmo o que é bom, que é fazer a arte. A gente se desliga de tudo, só se liga nela. A arte tem de ser ali mesmo. Iniciando-se no artesanato dentro do presídio – pra dizer a verdade, antes eu nem nunca tinha visto –, começou esculpindo uma barca com São Francisco, que descobriu em uma gravura de revista.

Jaciara vende suas peças na loja do presídio e no Mercado Modelo. No presídio, o artista só recebe o dinheiro após a venda da peça, com um desconto de 20% para a caderneta de poupança e 3% para ao grêmio. Daí sua preferência pelo Mercado Modelo, pois o pagamento é efetuado na entrega da peça ao comerciante, garantindo a Jaciara o envio de certa quantia para sua família. Esta segurança faz com que aceite vender mais barato aí do que no presídio. Eu faço duas peças por semana: uma para aqui e outra para o exterior. Isso é bom, porque eu vou ficando conhecido e quando sair... Tem uns elementos que saem e conseguem se soerguer na vida, depende do preparo que tiver, senão afunda. Teve um que saiu daqui e hoje tem uma agência de automóveis. Com o que eu já ganhei aqui no presídio, já comprei uma casa, terreno, um negócio... Eu vendo bem. Atrás de minhas peças às vezes eu coloco o preço. Os comerciantes não querem isso. O preço aqui é muito relativo, mas daqui a muito tempo, quando eu estiver de bengalinha, com o cabelo todo branco, isso está valendo muita coisa! Então esse preço aqui, puxa vida, é uma coisa muito boa, porque fica um preço histórico. Enquanto não chega o dia da liberdade, todo dia quando chego na cela, de noite, faço um resumo do que ocorreu no dia, de tudo que ocorreu. Depois estudo inglês com um professor, vejo TV e vou dormir.

Salvador (BA), 1976

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EXERCÍCIOS DE LIBERDADE

Jaciara

EXERCÍCIOS DE LIBERDADE João Batista

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Braulino Aí comecei a olhar, até que consegui fazer. Daí em diante, tudo que aparecia eu ia fazendo. Agora eu não preciso mais da revista. Hoje em dia faço caçador, Preto Velho, de qualquer tamanho, pescador, máscaras, índio, baiana...

Braulino Martins Machado nasceu em Tiuruçu, sertão da Bahia. Depois passou uns tempos em Ilhéus, antes de ir para Salvador, onde praticou o delito que o levou ao presídio, em agosto de 1969.

Algumas diferenças marcantes entre os presos que se dedicam ao artesanato e aqueles que se ocupam dos serviços da casa são apontados por João Batista.

Tenho duas idades, a certa é sessenta e quatro, a discerta é sessenta e três. Estou tirando duas cadeias. A primeira foi de nove anos, eu saí com cinco anos. Passei nove anos no mundo e depois voltei: dezoito anos. Espero em Deus sair logo e não voltar. Aqui se aprende de tudo, o bom e o ruim. Sabe como é: em terra de sapo a gente aprende a saltar. Antes de vir pra cá eu trabalhava no campo, com gado, cavalhada, foice, machado... Aqui, eu faço muita coisa: talheres, bandejas, figas, caricaturas (máscaras) e escultura parafeminina, isto é: cintos, colares, pulseiras e argolas. Minha dona (sua mulher) chegou aqui no dia seguinte da minha entrada. É modista, mas isolou a máquina e aprendeu comigo a fazer esses tipos parafeminina. Eu tenho oito filhos, um é escultor. Minha família pra mim é importante...

Eu sou um artista, meu nome é conhecido em muitos lugares. E eles são conhecidos também, mas por outra parte: somente pelos da casa mesmo, pelos funcionários, só por quem trabalha naquele setor de serviço. Também o ganho não dá: tem setor de serviço aí que ganha uma mixaria por semana, que é o que eu ganho dentro de uma ou duas horas. Então é uma diferença muito grande. Além disso, enquanto os serviços da casa seguem um horário préestabelecido – das 8h30 às 11h30 e das 13h30 às 16h – os artesãos têm horário livre de trabalho, o que assinala mais uma diferença. A gente para a hora que quer, ninguém manda. Cada um é dono de si. Agora, eu acredito que todos os trabalhos são importantes. A faxina faz bondade para a casa. A marcenaria serve para a casa porque faz porta, porque faz cama, faz cadeira para a casa. Colchoaria faz colchão pra todo mundo, pra preso, funcionário, tudo. Sapataria, alfaiataria, a mesma coisa. Provavelmente o artesanato também. O dinheiro aqui a gente desconta 20%. Tudo para a casa. Aí eu digo que tudo é uma coisa só: aí não tem diferença. As distrações de João Batista são as revistas que a família traz, o futebol aos domingos e as conversas na cela, que partilha com mais cinco detentos. Mas o que eu mais gosto mesmo é do trabalho: meu negócio é trabalhar! Acho bom porque trabalho quando quero. Acho também que as peças dos outros presos são todas boas, porque o camarada trabalha quanto eu trabalho. Então eu não posso dizer que a minha é boa e a do meu companheiro é ruim. Tem que ser tudo igual. Quando eu sair, se Deus permitir, vou continuar na mesma profissão.

Salvador (BA), 1976

Além do artesanato, tem um roçado próprio e casa de farinha, que contribuem para sua manutenção. O serviço de artesanato é o ouro da cadeia. Eu não conheço outro ramo melhor. Eu comecei nessa atividade copiando e também inventando umas coisas novas. Eu tanto faço como compro muitas peças feitas pelos outros. Compro e vendo na loja de artesanato daqui do presídio. Às vezes um preso vai sair da prisão, então vende tudo o que tem. E ainda tem os que não podem comprar a madeira. Eu compro em quantidade, pra trabalhar e pra vender. Então tem gente que me paga em peça. Na casa tudo pra mim é fácil. Os homens (o diretor, os funcionários), abaixo de Deus, fazem de mim um filho. Gosto de todos, todos me amam, todos me querem bem. Até o pessoal de fora me quer bem. Não sei porque, graças a Deus, me sinto tão bem! Braulino ultimamente vem abandonando o comércio da madeira com os outros presidiários, preferindo empregar todo o seu tempo no artesanato, na roça e na arrumação de suas propriedades. Tenho tudo aí. Meu capital está todo empregado. Tenho muitas casas, meu dinheiro está empregado em propriedades. Luto muito, trabalho muito. Tem dias que sofro muito com falta de ar, arranjado com poeira nos brônquios. Tem dias que me ataca que eu tenho que trabalhar sentado. Dia a dia, estou preparando meu futuro. Às vezes vou dormir uma hora da manhã trabalhando. Não bebo, não fumo, não jogo, não sambo. No dia que eu sair daqui, desmancho todas as casas que tenho dentro do presídio e levo o material.

Salvador (BA), 1976.

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EXERCÍCIOS DE LIBERDADE

João Batista

EXERCÍCIOS DE LIBERDADE Braulino

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Sebastião Desde 1970, Sebastião encontra-se na Penitenciária Lemos de Brito, cumprindo uma pena de dezessete anos. Agora eu perdi o primeiro livramento. Se seu ganhar o segundo, no próximo ano eu estou livre. Nascido no interior da Bahia e criado na capital, Sebastião Teles dos Santos tem vinte e nove anos. É casado e tem um filho. Antes eu tinha a profissão de pedreiro, era construtor. Aqui, não comecei o trabalho de artesanato como muitos, lixando e polindo as peças feitas pelos outros. Comecei fazendo, comprando madeira, cortando, perdendo... Gosto muito desse trabalho: distrai. E quando a gente sente um pouco de rancor de uma pessoa, apanha uma madeira no torno e começa a trabalhar – parece que está se vingando. Então por aí a gente vai vivendo. Suas peças são máscaras, talheres, cinzeiros, batedores de carne e figuras de mulheres iguais sem feições – sombras. O que mais faço são as máscaras de olho redondo, com visão maior das coisas. Muitas vezes eu vejo na televisão essas carrancas (máscaras), então me engraço, acho que devo fazer e tento fazer. Faço nas minhas máscaras um buraco pra colocar uma luz atrás. De um tipo de máscara, faço quinze por dia. De outro modelo, faço três por dia, e ainda tem outro, que arrumei agora, que só dá para fazer uma, trabalhando muito. Já recebi encomenda de gente de fora de umas duas mil máscaras pequenas para colocar em quadros. No tempo dessa encomenda grande cheguei a fazer umas vinte e cinco peças por dia. Quando a peça é grande e bem cuidada é que só dá para fazer uma por dia.

grossa; depois com a 80, que é a mais fina. Depois ele compra uma cera de carnaúba, derrete no fogo, para tampar alguns furos que tem na madeira esculpida. Depois que ele fizer esse serviço da cera, vai ter que raspar todinha de novo a cera da madeira. Aí vai dar o polimento com a lixa 120. Tem de lixar a peça até parar de sair pó. Os que lixam, muitas vezes não sabem fazer esculturas, e os que sabem, não querem se rebaixar para lixar porque acham a profissão de lixador muito baixa. Não faço nenhum serviço da casa. E outra forma de ganhar dinheiro, além dos serviços da casa e do artesanato, é o comércio aqui dentro. Vende-se rádio, televisão, radiola, relógio... que visita de fora traz e entrega ao parente preso. Aí se faz o negócio. Mas o que dá mais dinheiro é o artesanato. Quando estou trabalhando com vontade mesmo, tiro uma boa quantia por dia do dono da madeira, só com minha mão-de-obra. Quando eu sair daqui, pretendo seguir com essa arte para ver se ajuda mais um pouco.. Salvador (BA), 1976

Juntamente com mais cinco detentos, Sebastião trabalha por encomenda daqueles que possuem a madeira, explicando a seu modo o mecanismo estabelecido. Quem assina a peça é o dono da madeira. Se eu pego uma encomenda da mão de uma pessoa, a pessoa me dá a madeira e, com a madeira, eu já peguei certidão do preço e tudo. Então eu vou acertar com os outros por quanto eles fazem junto comigo. Depois eu pego o que eles fizeram e pago a eles. Depois junto as que eu fiz com as que eles fizeram e vou entregar à pessoa que é dona da madeira. A pessoa paga meu serviço, só a mão-de-obra. É um negócio bem complicado. Recebe a madeira bruta, faz a peça e a entrega, sem acabamento, ao dono, que por sua vez a passa ao lixador para o trato final. O lixador, cuja profissão é só lixar, dá o acabamento. As lascas e brechas na madeira, ele tira todas na faca. Depois puxa a madeira, vai puxando aquele pó até a madeira ficar certinha. Então é que ele vai lixar. Primeiro com a lixa 60, que é a mais

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EXERCÍCIOS DE LIBERDADE

Sebastião

EXERCÍCIOS DE LIBERDADE Sebastião

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Walter Walter trabalha na oficina de artesanato e na barbearia que montou perto da casa onde vive. Embora situada na área do presídio, a barbearia é independente do mesmo – todo o resultado financeiro ali conseguido é seu. Para a casa, ele trabalha como auxiliar de porteiro. No artesanato eu ganho mais do que no serviço da casa. Mas não podemos viver sem ajudar a casa. Se a gente não ajudar a casa, como é que a casa pode ajudar a gente? Começou a esculpir em princípios de 1971, fazendo, além das figas, cara de índio na própria figa e máscaras. Eu gosto mais de fazer rosto embutido dentro do recorte da madeira. Faço também um tipo de máscara africana: um pássaro ou um morcego. Nessa eu já fiz várias modificações. Antes era muito trabalhosa e gastava muita madeira. Eu passava o dia todo para fazer uma. Aí fui mudando e executando outros tipos. Um dia, eu tinha um pedaço de madeira e queria ver se conseguia fazer um busto parecido assim com Getúlio, de imaginação, porque nem retrato dele eu tenho. Comecei a cortar e tal, mas depois uma costeleta ficou mais baixa e outra mais alta; aí parei. Nunca mais peguei. Uma hora dessas vou pegar outro pedaço de pau e tentar de novo. Tenho que pensar e tentar até conseguir. O objetivo da arte é esse mesmo. Então eu acho que é o único objetivo, porque o sujeito nunca termina de aprender. Ele morre e nunca aprende. Sempre de um dia para o outro se tem uma ideia nova. Eu nem sempre tenho tempo para inventar um novo tipo pra fazer porque minha luta é grande aqui dentro e tenho família. Às vezes trabalho até dez horas da noite. Parte da sua produção é vendida para um comerciante do Mercado Modelo, atendendo a regulares encomendas de máscaras. Esse tipo de peça é o preferido pelos turistas. O comerciante fornece a madeira a Walter, que faz as máscaras, colocando suas iniciais. As outras peças, ele faz para a loja do presídio.

Walter Fernandes de Sena tem quarenta e cinco anos, nasceu em Minas Gerais e criou-se, desde os sete anos de idade, no bairro da Barra, em Salvador. Mora com a família numa casa dentro da área do presídio. Da pena de nove anos e quatro meses, iniciada em 1970, tem de cumprir ainda, aproximadamente, um ano. Isso aqui não é lugar pra gente não procurar harmonia. Se todo mundo pensasse como eu nessa casa, isto aqui era um paraíso. De vez em quando eu estou dizendo a eles: ‘Aqui tem que ser um por todos e todos por um. Aqui a gente tem que procurar se unir, procurar conviver com o outro.’

Não encontro dificuldades para vender porque determinados tipos, por exemplo figas, só quem faz sou eu. Agora, nunca tenho um cálculo para saber quanto ganho – é variável. A gente aqui não pode dar valor à arte. Se eu for fazer uma peça dessas pra cobrar dentro da medida do possível, eu vou ter que fazer por muito dinheiro. A gente aqui não pode cobrar isso. Mas o que é importante é que o artesanato, além de ser uma arte, é uma profissão. Em qualquer lugar que se chega, e tiver um pedaço de madeira, dá pra se fazer qualquer coisa.

Salvador (BA), 1976

Antes de ser preso, Walter era cabeleireiro e açougueiro. No presídio, antes de se iniciar no artesanato, trabalhava na barbearia. Nas horas que eu estava folgando, ia lá embaixo na oficina de um camarada meu que tinha aí, chegava lá e ficava olhando. Um dia eu disse a ele que ia fazer uma figa. Ele disse: ‘Você não faz.’ Eu disse: ‘Eu faço.’ Comecei a cortar e tal e a fazer. Não saiu uma figa legal não, mas uma figa saiu. Depois desse dia continuei e, ultimamente, pra não me desanimar, ele diz que eu estou trabalhando melhor do que ele.

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Walter

EXERCÍCIOS DE LIBERDADE Walter

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Valdevino Valdevino Martins dos Santos criou-se no sertão, como boiadeiro. Desse tempo, guarda uma fotografia sua com Lampião. Em 1957, estava em Juazeiro, quando foi para o presídio. Nasceu em Curaça, interior da Bahia, em 1922. Esteve preso durante oito anos e sete meses. Com o pecúlio, retirado ao ser liberado, comprou sua casa no bairro de Mata Escura, próximo ao presídio, como muitos outros ex-presidiários. Além de um depósito repleto de artesanato, tem ainda, no quintal, em uma área coberta, seu ateliê, onde trabalha com mais três auxiliares. Quando eu cheguei na penitenciária, passei três dias olhando o movimento. Recebi vários convites para lixar peças. Aceitei todos, mas achei de bem inventar qualquer trabalho por conta própria. Comecei. Fiz uma pecinha com a faca. Depois fui desenvolvendo. Comprei uma oficina fiado, depois paguei a oficina, e aí continuei. Recebi muitos convites pra trabalhar nas outras oficinas – nos serviços da casa. Escolhi o artesanato porque é um dos melhores que tem. Um preso que queira progredir, queira ter condições de sobreviver e dar sobrevivência à sua família, não tem outro, é o artesanato. O serviço da casa é um trabalho assalariado. Teve um tempo que a direção exigia que os presos fossem pra essas oficinas. Exigiam que a pessoa trabalhasse para a casa. Hoje, não. Hoje o preso de farda preta não é obrigado a trabalhar para a casa, pode ficar só no artesanato. O artesanato é dos presos. Quem tem oportunidade de receber a farda azul tem que trabalhar para a casa. Pode fazer o artesanato, mas é obrigatório trabalhar para a casa também. Lá o esquema era esse: três dias para a casa e três dias para o artesanato. A pessoa trabalhando para a casa, existe uma vantagem, porque ela tem possibilidade de ser ajudada. Qualquer recurso que ela tenha na justiça tem a ajuda da casa. Tem outro atenuante: ele trabalhando para a casa já é meio caminho andado para obter a meia liberdade da roupa azul e morar no campo. No artesanato, sempre, sempre, o que a pessoa aprende a fazer primeiro é a máscara, porque é mais fácil. A pessoa tira aquela fotocópia, mete o formão, não tem recortes, a coisa é mais simples. Eu sempre gostei de fazer peças que os outros não fazem. Nunca fiz peças que os outros fazem. Eu tenho uma peça que idealizei, um puxador de boi que ainda existe no Maranhão e em São Paulo. Já fui boiadeiro e assisti no Maranhão a uma boiada. Minhas peças são gamela, boi, cavalo, vaqueiro, boiadeiro, cangaceiro, Lampião – da forma como eu vi ele. Aprendi, nem sei mesmo como – sempre procurando fazer uma peça diferente. Já fiz uma peça de encomenda, pra Universidade da Bahia, que só quem deu conta fui eu. Agora mesmo estou com uma porta entalhada, representando uma igreja baiana, pra mandar para Goiás. Tudo depende da pessoa entender da madeira que é devida para aquela peça. Às vezes tem pessoas que querem pegar a madeira para fazer o boi no comprimento, mas não dá pra fazer no comprimento. Tem de pegar uma madeira que tenha largura. Tem de ser atravessada porque, se pegar no comprimento, se quebra. Às vezes uma pessoa sabe trabalhar numa arte, mas não tem tino administrativo de executar aquele trabalho e arranjar a matériaprima, de pegar aquela peça e saber vender.

escultor e como intermediário entre o artesão e o comprador. Aprendeu regras de venda da madeira e estabeleceu um mecanismo. Conseguia do diretor um cartão que facilitava o acesso à guia florestal, e com o qual era possível, através de um amigo, obter a madeira nas fazendas. Entrei no comércio da madeira porque fiz economia e trabalhei muito, não só com a cabeça, porque isso é importante, mas como já falei e mais uma vez repito: a origem de muitos às vezes não arranjarem uma situação é porque não têm tino administrativo. Toda madeira que entrava ultimamente, no presídio, passava pelas minhas mãos. Antes de eu começar a vender a madeira tinha um investigador e um comerciante que vendiam por mais de quatro vezes do preço que compravam. Era a maior dificuldade conseguir madeira. Eu achei de bem enfrentar a situação de madeira com o apoio de um guarda. Mandei o guarda comprar uma balança pra mim e ele trouxe a balança. Mandei um rapaz trazer a madeira, comprei por um tanto, passando a vender somente por um pouco mais. Então travou-se uma guerra. Apareceu muita campanha pra me derrubar, mas eu lutei até conseguir equilibrar a situação. Ainda hoje Valdevino mantém contato com o presídio através do fornecimento da matéria-prima e do recebimento das peças para vender, às vezes faltando ainda providenciar o acabamento. Obtém, no sul da Bahia, o jacarandá e a violeta. A forma de pagamento da madeira pelos presos varia muito. A maioria paga em peça ou em prestação e muitos estão me devendo. Quando pagam em peça, essa peça fica como sendo minha, mas o feitio é de outro. No seu trabalho, Valdevino diz encontrar não apenas a possibilidade de garantir sua sobrevivência, como também acha que dá condições para que outros continuem a desenvolver sua atividade. Muitas vezes a pessoa sabe fazer uma peça boa, mas não tem condições de arranjar matéria-prima. Muitas vezes dá um preço exagerado na sua escultura, fica sem vender. E, muitas vezes, num aperto grande, dá a peça de graça.

Salvador (BA), 1976

Desde o tempo do presídio, Valdevino mantém-se como

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EXERCÍCIOS DE LIBERDADE

Valdevino

EXERCÍCIOS DE LIBERDADE Valdevino

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Tita Caxiado Meu nome é José Caxiado da Silva, mas desde criança sou conhecido como Tita Caxiado. Nasci em Alagoinha, Estado de Pernambuco, no ano de 1951. Minha família vivia de roça. É melhor só dizer assim. Falar do que plantava não convém: às vezes a gente planta, não chove, não dá nada, aí não vale a pena a gente falar. Nesse tempo eu não fazia nada. Eu fui criado com avó. Minha família em Alagoinha e eu em Venturosa, uma cidadezinha perto, estudando o primário. Com quatorze anos comecei a tocar, comecei com o violão e a sanfona. Meu avô era um dos afinadores mais inteligentes da região. Ele era tão inteligente que fez uma sanfona de oito baixos todinha sem ferramenta. Ele tocava sanfona e violão. Dentro dessa farra eu comecei esta arte que foi a minha primeira. Em 1968 vim para o Recife e um dia me apresentei num programa de calouro. Daí por diante fiquei me apresentando na televisão e no rádio. Comecei a tocar também guitarra. Aí conheci um músico que acabou me levando para uma gravadora e, com isso, terminou saindo um compacto duplo de músicas nordestinas. Daí começou minha vida de músico em Recife. Era direto em show pelo interior, por todo canto, tocando em tudo. Eu gosto muito de tocar. Aqui mesmo é assim: a gente tem um conjuntinho, então a gente fica perturbando aqui de noite. Pego no acordeom, depois passo pra guitarra. Bom, voltando ao assunto, um dia resolvi ir pra São Paulo tentar uma vida melhor na música, mas quebrei a cara. Impossibilitado de gravar como eu tinha pensado, pra desabafar comecei a fazer literatura de cordel. Em 1975, por motivos financeiros, resolvi voltar pra Venturosa. Em fevereiro eu estava preso lá e lá fiquei até novembro. Em outubro de 1975 fui condenado a oito anos e então fui pra Barreto Campelo. Logo que fui preso, lá em

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Tita Caxiado

Venturosa, meu pai levou pra mim, numa visita, uma estátua de Lampião pra me mostrar. Eu não tinha o que fazer e, curioso como o cara tinha feito aquilo, peguei a madeira, uma faquinha e comecei a cortar. Foi minha primeira estátua: um nu feminino. Hoje esta escultura é da coleção do meu filho Marcos, que está com quatro anos. Quando eu senti que tinha jeito pra coisa, comecei a fazer minhas estátuas, só fazia estátuas. No gabinete do diretor – onde Caxiado está sendo entrevistado –, sobre uma mesa, várias peças dão mostra das fases de seu trabalho, e algumas fotografias ilustram a atual. Duas figuras de mulheres esculpidas em madeira – amarela –, com aproximadamente 30cm, uma pintada a óleo e a outra natural, fazem parte de sua primeira fase. Continuei nas estátuas enquanto estava lá em Venturosa. Sim, é importante ressaltar as dificuldades que eu tinha de enfrentar: arranjar madeira, ferramenta primária. O problema da madeira era muito difícil. Minha família trazia do interior aqueles pedaços de imburana, mas era difícil, mesmo com eles vindo sempre. Lá no presídio fechado não há obrigação de trabalho, não tem faxina do Estado, nem essas outras ocupações. Quem trabalha são os privilegiados, quer dizer, trabalham os que têm mais condições. É porque lá tem muitos perigosos – então é mais pelo comportamento. Os melhores podem trabalhar. Lá é um ambiente totalmente dependente desse presídio aqui – eles recebem tudo daqui. No Barreto Campelo vi a primeira talha na minha vida e achei que também sabia fazer. Então comecei a aparecer como escultor e a ter mais colher-de-chá com o diretor. Ele iniciou a divulgar o meu trabalho e levar gente para comprar. Levava as visitas na minha cela – tinha uma cela toda arrumada. Então comecei a arranjar um dinheirinho pouco. Até esse tempo eu recebia tudo da minha família. Foi quando o diretor daqui (da Penitenciária Agrícola de Itamaracá) solicitou a alguns detentos que tocassem para animar a festa de São João de 1976. Foi aí que surgiu minha oportunidade. Teve um jantar na casa do diretor. Foi muito bom, tinha muita gente – o juiz, autoridades... Então o juiz me perguntou se eu gostaria de me mudar pr’aqui. Nesse mesmo dia eu fui transferido em caráter excepcional: eu não tinha cumprido ainda o terço da pena que todo preso tem que passar na Barreto Campelo. Pelo meu comportamento ele viu que eu tinha condições de estar num meio melhor, que lá eu não tinha meios de propagar minha arte. Aqui eu podia ter mais contatos com pessoas que vêm do mundo, como a gente diz aqui. O diretor mesmo me disse: ‘Eu quero que você se sinta aqui melhor do que lá no outro.’ Ele conseguiu pra mim um caminhão de madeira: deu pra mim e deu pros outros. Eu nesse tempo estava fazendo mais talhas e, vendo aqui uma carranca de Gambá, um presidiário que já saiu, resolvi fazer também e deu certo. Aí parti pra serviços maiores. Meu primeiro grande serviço foi uma porta entalhada, para o juiz. Fiz com um desenho de um cavalo-marinho. Essa porta foi que me divulgou mais: a perfeição que ficou foi tanta que pensaram que

EXERCÍCIOS DE LIBERDADE Tita Caxiado

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Zé do Gato eu não era capaz de fazer outra igual. Parti depois pra outra maior – esculpir a fisionomia da pessoa na talha. Foi uma experiência. Combinei com o secretário e ele me deu a conclusão de ficar só numa cela, sem o diretor saber, pra fazer uma surpresa. A pessoa da talha era o governador do Estado. Depois de vinte dias de trabalho consegui e apresentei minha ideia no dia de audiência. O diretor, o advogado, o juiz, todos gostaram, ficaram muito admirados. Então combinaram de me levar pessoalmente ao governador. Isso foi no Natal de 1976. Fomos eu e o diretor, o juiz, o secretário da Justiça. Foi muito bacana, ele recebeu a gente muito bem e aí surgiu minha grande oportunidade. É bom ressaltar isso: graças a esse quadro do governador parei as carrancas e comecei a fazer só fotografia. Foram aparecendo encomendas de pessoas importantes. Eu tenho aqui todos os nomes. Aqui tem outros trabalhos diferentes. É cada um na sua, eu admiro muitos. Esse trabalho que estou fazendo agora requer muita calma: primeiro, porque é muito cansativo, tanto físico como mental, e eu não faço faxina, só artesanato. O diretor conseguiu um ateliê perto da casa grande pra eu trabalhar. Eu me sinto bem com esse trabalho porque ele é muito difícil. Ninguém faz, dá nome, e eu consegui me libertar, através da arte, do nervosismo que eu tinha antigamente. O que é que está faltando mais? Já estou conseguindo muito com o apoio que recebo aqui. É importante dizer isto. Tenho a arma, que é a arte, mas não tinha munição, que é o apoio da autoridade. Acredito que vou ter muito sucesso.

Itamaracá (PE), 1977

Desde que entrei na cadeia, mesmo quando estou sem concessão (isolado na cela), estou esculpindo. É o que eu mais gosto de fazer. Vai fazer doze anos que estou preso. Foi no dia 25 de agosto de 1965, e ainda faltam oito anos. Nasci em Bezerros, Pernambuco, em 1942. Meu pai era pedreiro, carpinteiro, mas nunca seguiu mesmo uma profissão. Eu, bem novo, comecei a correr em Caruaru, como jóquei de prado: corrida de dois cavalos, 600m, 800m, de acordo com a raça do cavalo. Eu vivia em Caruaru, mas meu caso foi em Bezerros mesmo. Quando fui condenado, vim pra Casa de Detenção. Foi lá que eu comecei a fazer artesanato em chifre. Isso foi em 1965. Quem primeiro fez este tipo de trabalho foi Luís do Chifre. Eram vários que faziam: uns davam conta da peça inteira, outros faziam por parte. Nesse tempo, quase só tinha isso. Um dia, tendo por modelo uma foto, Luís do Chifre reproduziu em madeira, com perfeição, um carro de boi. Isso foi em 1968. Daí por diante, era carro de boi, jangada, barco. A turma foi desenvolvendo. Em 1972, fui pra o presídio Barreto Campelo no primeiro carro, logo que foi inaugurado. Lá fiz uma talha com uns cavalos, e o mais era no torno. Eu torneava e os outros lixavam. Foi quando vim pr’aqui que comecei a fazer carranca. Tinha Gambá, que fazia, e eu também vi uma foto de um pintor. Aí comecei, mas não fiz do tipo que ele fazia. Não gosto de opinião, tudo depende de minha decisão. Aqui cada um tem o seu jeito. Fora as duas horas de faxina que passo ajeitando a estrada, só faço artesanato. As esculturas de Zé do Gato são vendidas tanto na lojinha de artesanato da penitenciária como na Casa da Cultura, antiga Casa de Detenção, em Recife. O movimento está muito fraco. Na Casa de Detenção só sai peça pequena, o resto tem sobrado. Apesar disso, sempre tenho me dado bem nas minhas vendas, calculando o preço pelo trabalho que dá, pelo tipo de peça.

Na lojinha do presídio, um trabalho de sua autoria chama a atenção: uma escultura de grande porte, de madeira natural, entalhe seguro e acentuado, acabamento bem cuidado, revela, sem dúvida, a habilidade artesanal de José Severino de Lira – Zé do Gato.

Itamaracá (PE), 1977

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EXERCÍCIOS DE LIBERDADE

Tita Caxiado

EXERCÍCIOS DE LIBERDADE Zé do Gato

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Nivaldo e Josafá No presídio de Aracaju, majestosa réplica de castelo medieval, uma loja de artesanato, com alguns poucos trabalhos dos presos, funciona ao lado. Josafá, um detento, é o responsável pela comercialização do material. Nascido em Maruim, município de Sergipe, hoje ele está com quarenta e quatro anos. Eu já fui massagista de senhora, cabeleireiro, banqueiro de jogo do bicho, no Rio de Janeiro... Agora, sempre gostei de arte, sempre tive mania de visitar museu. Já fui também seminarista. Depois eu me estabeleci em Estância, uma cidade perto daqui. Lá mora Judite, uma artista que trabalha no barro. Nessa cidade trabalhei em bar, sorveteria, fui barbeiro, até o dia em que perdi a calma. Peguei vinte anos – isso em 1968. Aqui dentro eu comecei vendo que tinha gente que sabia fazer muita coisa. Aqui teve um diretor, filho de uma família muito pobre, que deu muita força à arte e à religião. Ele era pobre, humilde e humano. Todo mundo tinha possibilidade de ser alguma coisa junto desse homem. Ele, com os próprios presos, procurava as vocações. Depois da saída dele, em 1975, o artesanato caiu. Só se atira pedra em árvore que dá fruto. Foi no tempo dele que eu comecei a ensinar aos outros presos o significado da pintura, dos temas nordestinos, do folclore brasileiro. Mas depois fui vendo que pintura não adiantava. Pintura, hoje, só para os grandes. Então eu comecei animando o pessoal para o artesanato. Aqui tem um grande artista – Nivaldo. Ele é um brilhante que não foi lapidado. A situação dele, como a dos outros daqui, é muito difícil. Eu conheci um jovem aqui que a mãe dele era empregada doméstica. Engravidou e foi abandonada pelo pai do menino. Quando teve o filho, um dia botou ele no colo de uma senhora na feira, mandou ela segurar e desapareceu. O coitado, quando cresceu, deu pra roubar. Aqui no Nordeste só tem duas categorias: ou é filho de fazendeiro, e só entende de cana, ou o outro que não entende de nada. Tenho pena, entendo o sofrimento deles. Nesses casos, em geral, a estrutura vem sempre apertando de baixo, no início. Essa sociedade só vem pra condenar, nunca pra apoiar. Ninguém vê essa criança que vive crescendo ali na miséria; que, por necessidade, vai pegando uma farinha, essas coisas... Quando chega aos dezenove anos, se pega uma coisa que dá mais na vista, sacodem ele na cadeia: aí começa a desordem. Uma sacola de pão, um rádio, uma camisa, esse tipo de roubo pra mim não é roubo. Às vezes penso, em quando eu sair daqui, abrir uma pequena indústria para colocar todos os presos que quiserem. Mas sei que vai ser muito difícil. Mesmo se arranjasse dinheiro, pela lei um preso não pode se estabelecer no seu nome – e quem vai dar o nome? Isso é apenas uma das razões de não se poder recuperar os presos. Eu não pude abrir um negócio, imagine os outros! Ninguém quer ver o preso recuperado. Assim, por isso mesmo, gosto de ensinar. Gosto mais de ensinar do que fazer. Como São Pedro, a quem viviam pedindo peixe, viciados em pedir, até que um dia ele resolveu ensinar a pescar.

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EXERCÍCIOS DE LIBERDADE

Nivaldo e Josafá

Josafá mostra uma grande peça de Nivaldo, logo à entrada da loja: um toro volumoso, esculpido com vigor, retrata uma figura expressiva e sofrida, ressaltada no traço firme e tratamento esmerado dado à madeira. Nivaldo é muito bom artista. Eu arranjo a madeira e pago uma quantia por cada peça, dessas grandes. Depois boto o preço aqui. O contato com Nivaldo, no interior do presídio, não é fácil. Em companhia de um guarda, chega-se à oficina, onde alguns detentos manuseiam a madeira. Pequenas caixas com tampas entalhadas, mesas, portas – objetos de madeira espalhados pelo grande galpão. Junto a uma escultura, em tamanho natural, representando o Senhor Atado, Nivaldo trabalha sem cessar. Tenho trinta anos, sou natural de Ilha das Flores, aqui em Sergipe mesmo. Nasci e me criei lá. Até quinze anos, não saí. Meu pai era pescador do rio São Francisco e tinha plantio de arroz e mandioca. Tinha também uma vila de quartos. Eu trabalhava de carpinteiro – fazia canoas. Cheguei a possuir duas canoas, que acabei virando num caminhão. Eu aqui tenho casa, comida e ganho algum dinheiro por uma peça dessa aí, recebendo a madeira. Quem está aqui fica pensando em muitas coisas... A família em casa, sem ter quem ampare. Tenho mulher e dois filhos. É melhor dez anos de sofrimento fora daqui do que um dia de alegria aqui dentro. Minha pena acaba no fim desse ano. Não sei o que é que eu vou fazer – não estou gostando da venda das peças. Em novembro de 1976, em retorno ao presídio, encontrou-se novamente Josafá na lojinha – agora praticamente desfeita, com alguns poucos móveis encostados nas paredes. Das peças encontradas na visita anterior, restavam apenas dois quadros a óleo. Nenhuma escultura de Nivaldo. Ele saiu. Continua trabalhando, está mais animado. Ele só se sente realizado perto de mim. Agora mesmo ele enjeitou de fazer dez peças pra o dono de uma fábrica. Eu pago a metade, mas ele cismou e preferiu ficar comigo. Ele agora está fazendo uma peça muito boa: O Sofrimento da Mãe Nordestina. Está trabalhando no local da exposição de animais. Essa exposição é uma promoção do governo. Lutei muito pra ele ir pra lá. Instei com o diretor do presídio e a exposição já estava no segundo dia – e nada. Aí eu mesmo fui falar e arranjei. Na exposição, uma tenda é o local de trabalho de Nivaldo. Ali ele expõe e esculpe, à vista do público, O Sofrimento da Mãe Nordestina – uma figura de mulher em tamanho natural. Junto à madeira, que vai sendo trabalhada, encontram-se goivas, formão e lixa. Um Cristo, esguio e expressivo, como todas as suas figuras, atrai a atenção. De um grupo de populares ouve-se o comentário: “Quem desenha uma figura dessa é preciso respeitar, é muito bem feita!”

Aracaju (SE), 1975/76

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Mestre Dezinho Expedito Edmar José Soares Cornélio Francisco Soares Manuel Martins

Nas margens do rio Parnaíba, como em outras regiões úmidas do Nordeste, as carnaubeiras multiplicam-se. À beira da estrada Fortaleza-Teresina, esparsas ou mais densamente reunidas, parecem abandonadas. Muitas pendidas, espremidas entre outras vegetações, emaranhadas por ervas daninhas dos pés aos frutos. Ao seu redor, inumeráveis brotos nascem, crescem, continuam os carnaubais. Durante a estação mais seca, a carnaubeira – “Árvore da Vida”, segundo Humboldt, estudioso alemão da nossa flora – reveste-se em suas folhas de uma cera especial que, impedindo a transpiração mais abundante, lhe garante as imprescindíveis reservas para sua sobrevivência nesse período. Sabedoria da natureza plagiada por seus irmãos – homens da terra, inventores como ela, que organizam a força que os alimenta na travessia da longa estiagem de suas vidas. À sombra dos carnaubais vive grande parte da população do Piauí. Segundo um observador popular da região, “o Piauí já foi o maior produtor de carnaúba, mas hoje o valor da cera caiu muito, talvez devido à importação de outros produtos mais baratos. Os Estados Unidos eram o maior comprador da carnaúba. Hoje os discos são de plástico. Nesse tempo também não adiantava muito para o Piauí: a maior parte da cera saía, e ainda sai, tudo pelo Ceará, pela fronteira, no clandestino.” Na precária economia nordestina, o problema social, e nele a mão-de-obra marginalizada, gera preocupação, exige providências. À sombra de carnaubeiras improdutivas encontram-se homens improdutivos. Uma economia estagnada ou, mais grave ainda, regressiva – do ponto de vista da perda de sua riqueza vegetal –, é objeto de preocupação, objeto de consenso geral, mesmo quando traduzido em forma de brincadeira: “Conheça o Piauí antes que ele acabe.” Diante do quadro desolador procuram-se soluções imediatas, ajustamento de aspectos mais críticos. Nesse contexto, a ociosidade de grande parte da população constitui fator que exige resposta premente. Assim, a criação de frentes de trabalho torna-se meta prioritária do Estado diante da necessidade de atenuar a crise de desemprego ou prevenir uma crise social maior. É nesse quadro que, a partir da década de 70, o artesanato, a arte, como atividades sempre presentes na história do homem, tornam-se objeto sistemático de programas oficiais. O Centro de Artesanato do Piauí – entidade mantida pelo governo do Estado para a orientação e venda do artesanato local, com trinta e dois funcionários entre coordenador, gerente, mestre (para cursos de artesanato), serventes, etc... – situa-se como uma das propostas desses programas. O Centro visa a aproveitar e a formar mão-de-obra, integrando-a na economia de mercado através de uma ação de caráter assistencialista. Segundo a responsável pelo Centro, “desde o governo passado, professores de fora, cursos de três meses em Parnaíba foram aperfeiçoando muito os trabalhos e também orientando, como foi o caso do Mestre Xavier – antigo especialista em selas e arreios. Ele passou a fazer miniaturas de chapéus de couro e de sandálias, assim como cintos.” O Centro de Artesanato compra agave no Rio Grande do Norte; buriti e palha de carnaúba no Piauí, esta última quase toda em Campo Maior. Aí a carnaúba é adquirida, já trançada em metros, para ser convertida em bolsas, sandálias, etc., pelos artesãos cadastrados no Centro. Ao lado desse artesanato mais seriado estão as peças mais individualizadas – as esculturas, as talhas. Algumas mais singulares, outras repetidas quase tanto quanto o artesanato, como é o caso da Cabeça de Cuia – figura típica de uma lenda da região. “Desde o governo Elvídio Nunes já existia um trabalho pelo artesanato, mas esse trabalho foi oficializado mesmo no governo Alberto Silva. A senhora dele e a cunhada mandaram buscar técnicos de fora para o aperfeiçoamento do artesanato que já havia e para outros que iam aparecendo. Assim aumentou muito o número de artesãos. Eu mesma morava em Ipiranga, onde meu marido era prefeito, então comecei a orientar lá um centro de aproveitamento do buriti.”

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Com esse movimento por parte de algumas pessoas ligadas ao governo, tentava-se dar uma certa resposta às iníquas condições de trabalho. Em Coqueiro, onde funciona hoje uma cooperativa de tapete de fibra, a única ocupação era “consertar” (estripar, salgar) peixe, a um preço irrisório o milheiro. As fibras, as palhas – resistentes, variadas, trabalhadas por mãos hábeis – transformam-se em objetos de uso, os mais belos: desde bolsas de pescadores e de feirantes, grandes sacas para gêneros, chapéus para o dia-a-dia, até inumeráveis outras bolsas, chapéus, sandálias e sapatos que enchem prateleiras de barracas turísticas e lojas sofisticadas, sobretudo no sul do país. Para esse novo mercado movem-se artesãos isolados, pequenos grupos reunidos em centros e cooperativas, como o Artesanato do Piauí, em Teresina, como a Cooperativa de Natal, mais dedicada ao agave, ou ainda a Cooperativa de Barreirinha, no Maranhão. Aí cabe, em geral, para uns, a manufatura dos “tecidos”; para outros, a execução do objeto. Além de estar presente através de suas folhas em toda esta linha de produção, a “Árvore da Vida” ainda contribui efetivamente para o teto, a sombra de muitos: é comum no Piauí a armação dos telhados ser toda ela em toros, caibros, ripas de carnaubeira. Depõe um artista popular do Piauí:

até agora garante o escoamento estável de suas peças, esses artistas vivem um contexto que, conjunturalmente, favorece e valoriza sua produção. A interferência do Estado no campo da atividade artística popular – embora guardando determinadas semelhanças com outras regiões do Nordeste – tem destaque no Piauí. Aí, tal interferência parece ser exercida não só mais sistematicamente como também de forma mais abrangente pelos órgãos oficiais. Com um esquema montado e amparado pelo governo, a chamada promoção do artesanato invade o Piauí, o que, muitas vezes, acarreta condições não tão propícias quanto parecem para o próprio desenvolvimento dessa atividade. Concorrendo, por um lado, para a elitização, para o destaque isolacionista de determinados artistas, também contribui, por outro lado, para a uniformização de uma produção potencialmente muito mais diversificada e criativa.

A carnaubeira é para o nosso Piauí uma das maiores riquezas – até do Brasil –, apesar da desvalorização. No meu tempo de menino, na maior desvalorização do desenvolvimento do Brasil, a carnaúba valia mais. Hoje que o Brasil está mais desenvolvido, a carnaúba está valendo menos. Hoje a indústria da máquina é que está se desenvolvendo mais. No Maranhão tinha muitos homens e mulheres no babaçu. Hoje, com esse desenvolvimento do Brasil com a máquina, tudo é fácil, mas o nordestino ficou desvalorizado. Mas se a carnaúba encontra-se presente no cotidiano de grande parte da população desse Estado, tornando-se, inclusive, matriz para muitos dos trabalhos artesanais desenvolvidos na região, ela não se impõe da mesma forma nos trabalhos de escultura. Aí, a matéria-prima dominante é o cedro, comprado nas serrarias de Teresina ou obtido através do Centro de Artesanato. Os artistas aqui reunidos trabalham, todos eles, com essa madeira. Integrados ao esquema de promoção oficial da arte, artesanato popular, esses artistas participam de um processo dinâmico em que os dois polos envolvidos – eles mesmos e o governo – estão em constante confronto. Os escultores populares entrevistados, reconhecendo o investimento oficial, não se colocam como simples receptores de seus benefícios. De certa forma, a atitude do governo é vista como consequência do próprio trabalho que desenvolvem, na medida em que este promove o Estado. Assim, a dinâmica é montada como um jogo: o governo promove o artista e este promove o Estado. O ciclo completa-se em um movimento no qual todas as partes envolvidas têm um papel específico e efetivo. Nesse processo de promoção do artesanato, aliadas às autoridades governamentais, encontram-se, muitas vezes, as autoridades eclesiásticas. Substituindo as imagens de gesso por imagens de madeira, abriram uma nova frente de demanda que se constituiu também em incentivo fundamental para os escultores. Dezinho de Valença, o mais famoso artista popular do Piauí, é um exemplo dessa ação. Na trilha do sucesso desse artista, outros surgiram “filiados” à sua “escola”: Expedito, Edmar, José Soares, Cornélio, Francisco Soares. Mestre Dezinho, ao firmar uma escola, conferiu certa unidade aos trabalhos de seus seguidores, o que não significou, contudo, a perda de características próprias. Mesmo Manuel Martins, com uma produção mais diferenciada, não escapa totalmente à aproximação de seu estilo. Partilhando de um espaço que

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Mestre Dezinho Nasci em Valença, no interior do Piauí, há sessenta anos. Lá eu era marceneiro: fazia móvel colonial, com aqueles enfeites em relevo. Foi daí que vieram os enfeites das saias dos santos que eu faço hoje. Fazia também essas peças pra promessa, mas por isso eu não cobrava nada. Em Valença não faltava trabalho pra mim, e eu era amigo de todos. Mas faz quinze anos resolvi me mudar pra cá e tentar um futuro melhor pra meus filhos. O pessoal de Valença dizia que Teresina era pra capitalista, mas eu e minha mulher resolvemos tentar. Logo que chegamos, passamos três meses muito difíceis. Depois eu consegui um emprego na prefeitura, com direito a Instituto; só que, em vez de marceneiro, eu era vigia: vigia dessa praça aí perto, durante sete anos. O pessoal de Valença, quando aparecia e me via ali no serviço, ficava dizendo: ‘Mestre Dezinho, vigia de praça!’ Eu estava conformado, mas também estava constrangido. Eu e minha mulher botamos uma barraquinha de comida na praça pra ajudar o orçamento e aí, desse jeito, passamos sete anos de luta – eu, a mulher e os seis filhos. Nesse tempo vendemos uma casinha em Valença e ficamos com esse dinheiro de reserva. A outra casa de Valença nós deixamos de garantia pra uma volta, se as coisas aqui não dessem certo. Um dia começaram a reformar a igreja da Vermelha, bem junto da praça onde eu dava vigia. Então o padre me chamou pra eu fazer as armações de madeira. Ele já tinha visto uns ex-votos que eu continuava a fazer quando recebia uma encomenda. Quando o decorador da igreja resolveu tirar os santos de gesso e botar outros de madeira, o padre, que conhecia meus ex-votos, achou por bem que eu fizesse os santos e do tamanho de gente. Eu temia botar a madeira a perder. Eu só sabia fazer partes de gente, e queriam que eu fizesse logo o Cristo da primeira vez! Sofri e suei muito, e não era de calor nem de cansaço, era de agonia mesmo. Acabei fazendo o Cristo, mas os pés dele não conseguiram ficar um sobre o outro – ficaram emparelhados mesmo. A segunda imagem foi de Nossa Senhora de Lourdes. A recomendação era de não copiar nada e fazer do meu jeito. Meu receio maior era em relação ao bispo: o que é que ele ia achar? Pra mim era muito esquisito tirar aquelas imagens de gesso, todas pintadas, retocadas, pra botar as de um Dezinho qualquer. Eu dizia: ‘Se o bispo vier reclamar, eu digo que o culpado é o senhor.’ Eu nem queria fazer! Eu estava muito nervoso até o dia em que o bispo chegou. Ele não apenas gostou como ficou entusiasmado: ‘Você vai ser o segundo Aleijadinho!’ E eu nem sabia quem era esse. ‘Você vai ser um grande escultor!’ E eu nunca tinha ouvido esta palavra – escultor. Mas o bispo me explicou tudo, e hoje eu conheço bem as obras do Aleijadinho. Assim, de tranquilo e seguro mestre marceneiro da pequena cidade do interior, Dezinho passou à posição de representante da arte popular do Piauí, prestigiado por autoridades eclesiásticas e governamentais. Já participou de duas bienais em São Paulo e, em 1975, foi levado a Brasília para hastear o pavilhão nacional no dia reservado ao seu Estado, em uma cerimônia oficial. Era tanta gente que vinha olhar meu trabalho! Os jornais falando, a televisão – que tinha acabado de chegar em Teresina – mostrando meu trabalho na igreja. De lá pra cá a mesma coisa, há cinco anos. Eu ajudo o Piauí a ser mais conhecido

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e o governo também me prestigia. Já tive até um cartão do governador pra entrar no Palácio a qualquer hora. Eu já viajei bastante pelo Brasil representando o meu Estado: estive na Bahia, São Paulo, Ouro Preto, Belo Horizonte, Fortaleza. Fiquei muito triste por não ter podido assistir à exposição Sete Brasileiros e Seu Universo, de que eu participei. Gosto muito de viajar. Quando viajo me sinto tão bem que parece que não estou vivendo. Fico gratificado sempre que eu saio porque tenho novas ideias. Tenho até mais ânimo para o trabalho! Hoje eu não dou conta das encomendas e eu não vendo nas lojas de Teresina. Não consigo fazer estoque: sempre tenho compromisso três meses na frente. Todo mundo vem aqui em casa. Hoje são poucas as encomendas de igreja. Quase todos os meus santos, os meus anjos, são pra decoração de apartamentos. As peças de Dezinho, bem polidas no cedro, são singelas em sua composição e desenho. No corpo em cone, cajus, flores e folhagens em relevo rodeiam as saias dos santos e dos anjos. Nos rostos, uma expressão patética. Santos e anjos, em tamanho natural, empunhando lanças e luminárias, são as peças mais procuradas. Já foi anjo meu pra Milão, pra Israel... Mas eu gostaria mais de fazer peças históricas. Eu assino Dezinho de Valença do Piauí. Acho que assim fica bonito. Uso somente cedro do Maranhão, que compro nas serrarias da cidade. Na oficina, que hoje funciona em um galpão junto à casa, trabalha com alguns rapazes que o ajudam no corte e na lixa. Primeiro eles começam a aprender a se cortarem. É o primeiro aprendizado. O trabalho é perigoso mesmo, as facas são muito afiadas. Eu penso como vai ser a figura, e o rosto sou eu que faço. Os rapazes fazem o resto. Eles passam aqui uns tempos aprendendo e não pagam nada. O camponês não compra peças como as minhas porque não tem dinheiro para embelezar a casa. Quem compra aqui são os turistas. O governo dá muita cobertura a esses pobres artesãos que, à falta de dinheiro, não podem comprar o material. Lá na Loja do Artesanato do Piauí, os trabalhos são os mais belos possíveis. Não cheguei lá no Artesanato porque o governo me designou para uma ligação direta com os turistas. Os secretários vêm aqui, sempre me deram muito apoio. Hoje eu sou o presidente da Associação dos Artistas Plásticos. No princípio era eu e Expedito. Hoje tem uns dez, doze artistas, cada qual melhor. Hoje a vida está mais fácil – tanto a casa como a oficina são próprias. Em tudo eu me acho satisfeito. Agora, o que mais me encabula é mal saber assinar o nome: isso já deu muita decepção. É o grande fracasso do artista não ter certa cultura. Fico muito triste com isso e o pior é que nem tenho consciência do que faço. Sai muita reportagem nos jornais e nas revistas falando no meu trabalho, no meu nome, mostrando meu retrato. Eu não sei nem como foi isso: nunca paguei pra nada disso e, quando vejo, está minha cara na televisão fazendo propaganda de alguma coisa. Um dia desses foi a propaganda de um banco. Teresina (PI), 1975.

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Expedito Nasci em São Pedro, cidadezinha do interior do Piauí, em 1933. Lá eu trabalhava de marceneiro, junto com meus irmãos e outros parentes. Tinha aquela vocação pra essas coisas de agora, mas não dava continuação. Vivia mais só e não continuava no trabalho da escultura. Foi quando aconteceu uma Feira dos Municípios, em Teresina, e o prefeito de São Pedro procurou trazer o que tinha de bom por lá. Meu, ele trouxe uns jarros coloridos de madeira – uns que eu fazia com umas flores e umas folhas em relevo. Trouxe os jarros, um cálice e um Santo Antônio. Eu estava até cismado de trazerem santo e pensei: logo agora que não está se usando mais. Mas o povo até gostou! Nesse momento, Expedito se projetou como artista. De volta a São Pedro, começou a receber encomendas – tantas, que o animaram a se transferir para Teresina, em 1969. Faz quase seis anos que eu vivo somente dos santos que eu imaginava que estavam fora de moda. Primeiro meus santos eram no estilo barroco; depois fui vendo outros mestres trabalharem e fui modificando o estilo. Antes tinha o movimento dos panos, os pregueados. Eu achava bonito e gostava de fazer aquilo, e o povo que encomendava também gostava. Mas eu resolvi entrar nesse outro estilo daqui da terra e, na continuação, venho sempre aperfeiçoando. O pessoal ainda gosta do pregueado, mas eu é que não faço mais. Desde 1972 que não sai mais aquilo. Passei cinco anos só atendendo às encomendas do governo e ensinando entalhe também. Eu só trabalho particular. Não tenho peça em nenhuma loja, não dá tempo. Trabalho o dia todo até 11 horas, 12 horas da noite, de segunda a sábado, e assim mesmo não dou conta. Já tenho encomenda dois meses adiante, quase tudo pra Rio, São Paulo e Brasília. As esculturas de Expedito representam santos e anjos. Com acabamento esmerado, trazem,

sobre as saias, flores, frutas, folhas de carnaúbas e, às vezes, até mesmo figuras regionais, como cangaceiros e vaqueiros. É cada figura com um desenho diferente. E eu continuando e aperfeiçoando sempre mais e o pessoal conhecendo e gostando. De vez em quando eu vejo uma coisa num livro ou então pego uma ideia dos outros e passo para aquilo que é meu mesmo. Há dois meses fiz uma figura bem diferente, me deu vontade. Eu não estava pensando em nada e saiu uma coisa bem diferente. Não é uma cópia, que eu nunca vi nada assim, é feito um Buda, feito um deus. A escultura em questão só se assemelha às suas peças habituais no volume arredondado. É uma figura em pé, lisa, forte, sem as tradicionais ramagens. Outra peça original na produção atual de Expedito é um jogo de xadrez com grandes figuras esculpidas em madeiras de colorações diferentes, encomendada por um cliente de Recife. Eu também pinto. Já participei de várias exposições coletivas, já vendi quadros. Já fui ao Rio de Janeiro duas vezes para congresso de artesãos e estive em Fortaleza numa grande exposição de artesanato. É, eu gosto também de conhecer outros artistas, os trabalhos deles. Aqui, quem eu mais admiro é Dezinho e Edmar. O secretário da Agricultura liberou, por deferência, uma carrada de cedro do Pará pra mim e pra Dezinho. O governo representa muito a gente por aí afora. Tem muito artista novo. Aqui mesmo, vários começaram comigo e hoje estão por aí sozinhos. O interesse oficial do Estado – que Expedito considera um de seus principais promotores – mantém uma sequência de encomendas. A presença do poder público, como consumidor e promotor da arte e artesanato popular do Piauí, favorece, a um grupo de artistas desse Estado, o alcance de uma remuneração acima da obtida pelos artistas populares em geral. Hoje eu vendo um anjo de 80cm ou 1m por um preço bem melhor do que vendia antes. O primeiro Santo Antônio que vendi na Feira de Artesanato, com 25cm, custou cinco vezes menos do que o que vendo agora, do mesmo jeito, e estou pensando ainda em subir o preço. Vou calculando não só pelo tamanho da peça, mas também pelo trabalho que dá. E acredito que cada vez vou ter mais sucesso. Teresina (PI), 1975.

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José Soares

Edmar Tenho vinte e um anos. Já conclui o científico e tentei o vestibular de Letras, mas não passei. Estou pensando em fazer outro, mas ainda não decidi em que área. Foi no ginásio que eu peguei na pintura – pintava uns potes de barro. Hoje em dia, Edmar dedica-se com sucesso à talha e, sobretudo, à escultura. Oratórios, santos e figuras regionais compõem sua produção. Suas peças são de contornos arredondados, seguindo a escola de Mestre Dezinho, com quem trabalhou durante dois meses. Em madeira eu trabalho desde criança. Meu pai tinha uma serraria e eu me acostumei bem cedo com a madeira. Com quatorze anos já fazia escultura. Passei quase um ano trabalhando com Expedito – ele é um grande artista. Deixei de pintar por falta de condição: o pessoal só quer trabalho de madeira. Além disso, é o que eu mais gosto. As esculturas são mais vendáveis pra o pessoal de fora. Dão mais trabalho mas também dão mais dinheiro – é melhor pra mim. Lá na Cooperativa o meu trabalho é dos mais vendidos. Vende melhor aquele que tem mais fama, feito Roberto Carlos. Mesmo que outra pessoa seja muito melhor, quase só se compra dos mais conhecidos. Todo artista tem seu estilo, a não ser que não seja instintivo. Quando ele é instintivo, mesmo que trabalhe com outro, sempre tem o jeito próprio dele. A minha caricatura, por exemplo, é diferente da dos outros. O preço da peça eu avalio pela qualidade do trabalho: o que é bem mais trabalhado merece melhor preço. A madeira não encarece muito a peça. O cedro não é caro. Na loja da Cooperativa, que é do governo, eles aumentam muito pouco em cima do preço da gente. Entrego quase tudo lá. Só às vezes é que vem uma pessoa aqui e compra. Tem outros artistas que botam peça lá na Cooperativa. Outro dia vi um Cristo, de José Soares, um rapaz que trabalhou uns tempos com Mestre Dezinho. Me espantei como ele faz bem feito! O Cristo desse rapaz é do feito dele – se conhece logo.

José Soares nasceu em Valença, a mesma terra do Mestre Dezinho, com quem se iniciou na arte. Ele tanto me chamou para aparecer na oficina dele que eu terminei indo e ficando lá uns tempos. Fiquei como aprendiz, sem ganhar dinheiro. Gostei do trabalho, descobri que tinha até muito jeito, mas era muito cansativo. Eu trabalho dois expedientes na Agespisa (serviço de saneamento da cidade) e, quando largava o serviço, de noite, é que eu ia para a oficina do Mestre Dezinho. Ficava até quando aguentava. Fazia tudo nas esculturas dele, tanto nas grandes como nas pequenas. Só a impressão (concepção) e a cara é que ele não deixa ninguém fazer. José deixa transparecer nas palavras, nos gestos, um grande cansaço que chega a comover pela teimosa insistência em fazer arte. É o que mais gosto de fazer, muito mais do que o outro trabalho, mas não tenho coragem de largar um dinheiro certo, mesmo que seja pouco. Era um esforço muito grande quando eu estava na oficina de Mestre Dezinho. Quando eu vi que não dava, eu disse a ele. As encomendas lá tinham aquela data certa e, com isso, a responsabilidade era maior ainda. Quando eu dei minha decisão a ele, ele então quis contribuir. Mas aí eu não aceitei porque, de todo jeito, o trabalho era muito pesado mesmo. Agora ainda me canso, mas é

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Cornélio diferente: acabo o trabalho quando posso, sem aquele tempo marcado. Além de algumas poucas encomendas, José Soares leva o que faz hoje para a loja da Cooperativa. Eu acho bom o atendimento lá. A saída é boa, o pessoal vende bem. Também tem vezes que eles adiantam a madeira. Só acho ruim porque só querem que eu faça Cristo – acham que são as peças mais procuradas. Tenho muita vontade de fazer pra lá umas figuras de mulher, o corpo todo, como vi numas revistas, mas não posso querer que eles fiquem com peças minhas sem vender. Bem entalhados, em linha despojada e simples, José Soares produz dois ou três Cristos por mês, de aproximadamente 35cm de altura. A figura de mulher, o São Francisco e o vulto – homem encostado na ramagem que lhe cobre parte do corpo – trazem uma unidade na composição de traços bem próprios, no excelente polimento que acentua o bom tratamento artesanal dispensado à madeira. Desenvolver meu trabalho é um velho sonho de menino, desde o tempo que eu ficava vendo meu avô trabalhar na madeira. Naquele tempo era difícil um motor, e ele tinha uma bolandeira movida a vento. Eu era muito pegado com ele, ele passava a mão na minha cabeça e me contava muitas histórias. Ele me chamava de perguntador – tudo eu queria saber.

Tenho vinte anos, já estou muito velho. Comecei há cinco anos na arte. Eu fazia, mas não sabia o valor. Aí não praticava muito. No terraço, nos fundos da casa de sua mãe, José Cornélio de Abreu improvisa sua oficina de trabalho. Um anjo grosso, roliço – no estilo próprio da “escola” de Mestre Dezinho – fala de seus dons. A peça lembra mais ainda os trabalhos de Expedito, sem deixar de trazer a marca pessoal do artista que é Cornélio. A recriação demonstra vigor e singularidade dentro do evidente “parentesco”. Cornélio faz anjos, santos, santuários e tipos regionais, como uma figura de mulher carregada de cajus, quase em tamanho natural. O pouco tempo de seu exercício como artista já indica uma potencialidade que começa a se mostrar, prometendo muito mais. Eu comecei com um Cristo. Quando a igreja do parque foi construída, chamaram um artista cearense para fazer os santos. O padre achou que eu saía do ritmo de santo, aí eu perdi. Mas a madeira veio aqui pra casa. Eu tinha receio porque eu nunca tinha feito uma peça grande. Mas com Carlos, o outro artista que foi escolhido, eu fiz o Cristo da igreja: uma peça de 1,60m. Depois teve uma concorrência do Estado para uma exposição com prêmios. Eu tirei o 2° lugar com uma talha. Teve outra exposição na Galeria do Teatro, mas aí ganharam os elementos de mais nome. Tive também um convite pra ir ao Recife, mas o Estado não me ajudou. Disseram: ‘Isso compete ao artista.’

Eu cheguei de Valença há dez anos, já estou acostumado. Teresina está melhorando, embora não tenha muito emprego pra quem quer trabalhar. O emprego que ainda tem mais por aqui é a agricultura, com o plantio de arroz, e o comércio, mas esse é muito fraco. O artesanato aqui surgiu com mais força no governo Alberto Silva, com o apoio de D. Avelar. Dezinho foi dessa hora, foi aí que pegou a fama. Parece até que querem pegar a época do Aleijadinho. Ele é muito esforçado. Eu não sou profissional como artista, Dezinho é.

Teresina (PI), 1975.

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À SOMBRA DOS CARNAUBAIS José Soares

À SOMBRA DOS CARNAUBAIS Cornélio

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Francisco Soares Eu não pude ir, sobrei, mas foi uma peça minha – a Secretaria mandou – para o Museu de Arte Contemporânea de Olinda. Em casa, com Cornélio, são sete pessoas: ele, os pais e quatro irmãos. O pai, além de trabalhar como carpinteiro em uma firma, faz móveis por conta própria. Eu também faço qualquer tipo de móvel colonial, mas o que eu gosto mesmo é desse trabalho. Sofro um pouco, mas não dá outra coisa. Já arranjei até outros empregos. O emprego dá mais segurança, tem outras vantagens, mas prefiro isso aqui. Eu hoje estou sendo mais procurado pela minha arte. No fim de 1974, um homem lá de Vitória do Espírito Santo soube de mim e veio diretamente me procurar. Ele tem uma loja muito grande, muita matéria-prima. Ele veio aqui procurar um artista pra destruir a madeira que ele tinha, em trabalho. Ele queria que eu fizesse copiando, me dava até um ordenado bom. Comercializei muito, produzi bastante pra ele e ganhei dinheiro. Mas vi que não gostei, me senti preso. Preferi voltar. Eu aqui gosto do ambiente. A matéria-prima, cedro, é mais fácil. Fico por aqui um certo tempo, não posso afirmar até quando. Posso andar muito, mas sempre voltando, até encontrar um lugar onde eu tenha mais possibilidades. Eu agora estou sentindo mais dificuldade de sair porque já estou sendo assim mais procurado. Tudo que eu faço a Loja do Artesanato do Piauí compra, fora algumas peças que eu vendo em casa. A gente representa o Estado muito bem, mas o Estado não dá ainda o valor que a gente merece. Teresina (PI), 1975

Francisco nasceu e se criou em roça do interior do Piauí, em terras de uma usina de açúcar. Foi lá que seu pai passou toda a vida como professor de escola primária, e hoje está aposentado. Se eu pudesse viria morar em Teresina, trazendo os velhos. Mas acho muito difícil a mudança. Lá também não está fácil. Ele aposentado, e todos os filhos ausentes do trabalho da cana. Por isso não tenho paradeiro, vendo o que posso fazer. São cinco léguas toda semana, nas sextas-feiras, de lá até aqui, pra trazer as peças para a Cooperativa. Nunca tive gosto pelo trabalho da roça. Desde os seis anos que eu faço esse trabalho de madeira, por minha conta mesmo, sem ensinação nenhuma. Ninguém ligava – outros diziam que não valia nada. Não tinha mesmo saída o que fazia, e eu também não dava muito valor. Pegava aqueles pedaços de madeira e fazia do jeito dos santos das igrejas. Me metia a fazer e fazia mesmo, até que apareceu um frade, há dois anos, lá nas terras do engenho. Viu meu trabalho e ficou abismado, me ofereceu até uma viagem à Alemanha! Mas eu não tive coragem de deixar os velhos pra ir tão longe. Aceitei vir para Teresina, trazendo meus trabalhos. Aqui ele me trouxe nessa loja. Até hoje vendo tudo aqui: moça lavando tacho, moça varrendo – tudo na escultura. O pessoal da loja gostou do meu trabalho e deu orientação pra eu fazer uma figura chamada Cabeça de Cuia, que é um personagem de uma lenda daqui da região: é uma figura de um menino com a cabeça bem grande, quase do tamanho do resto do corpo, com um osso na mão. Diz a lenda que ele jogou o osso na mãe e aí ficou encantado, sentado na beira do rio, esperando que passem dez virgens pra última desencantar ele. É a peça que tem mais saída. Francisco Soares, o jovem camponês que largou os canaviais pela escultura, está ligado ao Centro de Artesanato há cinco anos. Com a criação do Cabeça de Cuia, repetida nesses anos, afirma não sentir necessidade de partir para outras. Só dá pra eu fazer cinco Cabeças de Cuia por semana. A antiga gerente do Artesanato inventou d’eu fazer o Cabeça de Cuia. Caiu no agrado deles, do pessoal da Secretaria do Estado, e deu nisso, não para de ter saída. Quanto mais eu faço, mais gosto de fazer e mais bem feito. Faço ele sentado, de banda, trepado em riba de uma flor. O invento do Cabeça de Cuia foi meu mesmo, quer dizer, da figura da lenda. Vivo somente disso. Francisco faz sempre essa estranha figura (em geral de 30cm de altura), assim como suas outras esculturas, em cedro ou imburana, que encontra à venda com facilidade, muitas vezes através da própria Cooperativa. As peças, pintadas com extrato de nogueira e enceradas, são bem polidas em suas formas simplificadas. Todo o serviço eu faço sozinho. Dos artistas que conheço aqui no Piauí, pra mim, o excepcional é Expedito. Entendo um pouco o que é a arte. Sei que ainda tenho muita coisa pra aprender. Só não gosto que me deem explicações. Me explicando é pior. Assim não faço. Não sou aprendiz, como muita gente aí. Eu vou indo bem com meu trabalho. Teresina (PI), 1975.

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À SOMBRA DOS CARNAUBAIS Cornélio

À SOMBRA DOS CARNAUBAIS Francisco Soares

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Manuel Martins Um Cristo em tamanho natural, modelado no cimento, de porte vigoroso e bem proporcionado, em frente à casa do artista, é referência para o visitante. Da esquina a pessoa vê logo o Cristo. A casa é própria. Está sendo paga com o meu trabalho e o dela. Ivanildes, sua mulher, entalha gamelas e terrinas com motivos regionais – folhas de carnaubeira e, principalmente, cajus são característicos de suas peças. Manuel, mostrando uma talha que fez, explica seu tema: É a louvação da carnaúba, um folclore do Maranhão. Quando o pessoal vai tirar a cera faz a festa. Essas peças que faço, vendo na Cooperativa. Agora mesmo, minha mulher saiu. Foi levar as peças dela lá. Eu estou aqui, trabalhando e tomando conta dos meninos, que são quatro. Aqui a gente combina: quando eu preciso sair, então a mulher fica. Nós dois é que damos conta de tudo aqui. Não gosto de distração, não gosto de estar em lugar com muita gente. Sou enrolado mesmo, não gosto de festa nem de passeata. Gosto dos meus desenhos, do meu trabalho. Em cedro e imburana de espinho – que o bicho não gosta porque é amarga – Manuel elabora suas talhas e esculturas. Uma Virgem da Floresta, emergindo da copa de uma árvore, é detalhada em cortes firmes. Nos desenhos em baixo-relevo da folhagem ou nos traços da figura, a peça – em madeira escurecida, encerada – chama a atenção, tanto pela sua concepção como pelo seu acabamento. Eu sempre gostei muito de trabalho em madeira. Ainda menino, quando Juscelino esteve em Campina Grande, visitando o SENAI, viu lá uns trabalhos meus e falou: ‘Esse menino vai longe!’ Quando fui servir no Exército, em Recife, comecei a fazer escultura. Eu era um simples soldado, mas um dia me concentrei, pensei e amanheci com a impressão de pegar um pedaço de pau e fazer algo diferente. Quando comecei a cortar a madeira, chegou um oficial e espantou-se: ‘Você sabe fazer isto?’ Respondi que nunca tinha feito. Aí ele falou: ‘Você sabe e não quer dizer!’ Então eu resolvi assumir: ‘Sei sim senhor!’ Desde esse dia me mandaram para o artesanato do quartel. Com o meu primeiro trabalho barrei todos os outros que estavam lá. Apareceu logo um outro oficial que me comprou a peça e me disse: ‘Isso tem valor!’ Então veio outra inspiração e fiz uma imagem do mesmo jeito dessa: criação de Nossa Senhora de Fátima, que não era Nossa Senhora de Fátima. Era puxando a ela, em cima de uma árvore que não era mesmo uma árvore. Ficou muito bonita e vendi logo. O tenente me incentivou muito e eu fiz uma arca, que foi vendida a uma pessoa que entendia muito de arte. E essa arca já até apareceu na revista Casa e Jardim. De lá pra cá, as coisas estão melhorando; com dificuldade, mas estão. Aliás, na minha vida toda, eu tenho lutado muito. Na vida, a gente pra vencer tem que levar um empurrão. Mesmo com toda a inteligência, toda a coragem, sem um empurrão não vai.

Tenho lutado muito. Tenho uma história muito complicada. Nasci em Porto Alegre. Perdi meus pais num acidente quando era bem pequeno. Os vizinhos me mandaram pra um casal sem filhos, em Campina Grande. O velho era muito conhecido na cidade e tinha um salão de barbearia num prédio bem grande. Tão bom que até auditório e cinema tinha. Quando eu tinha nove anos, perdi meus pais adotivos. Logo um depois do outro, e fiquei novamente jogado no mundo. Nesse tempo eu já frequentava o SENAI e já fazia qualquer móvel. Eu tenho muito amor à madeira. Até dezessete anos fiquei na Paraíba; depois mudei aqui pra Teresina. No tempo que eu fui servir no Recife, terminei ficando como massagista do Clube Náutico de lá. Sei também fazer massagem em quem teve paralisia infantil, e também opero animais. Eu não aprendi com ninguém, mas tenho jeito pra medicina. Só não gosto é de ver sangue. Posso dizer que a gente vive só da arte. E está dando. Primeiro eu desenho, para ver se dá certo. Se o desenho aprovar e ficar bonito, passo pra madeira. Aí, o melhor juiz é a criança. Se a gente desenhar uma zebra e cortar as listras, a criança diz que é jumento. A criança é mesmo o maior crítico do artista. Por isso eu mostro sempre o que faço aos meus filhos. E gosto de ouvir os palpites deles. Depois que acabo de fazer, fico olhando. E aí penso no preço. Sobre uma mesa da sala – que serve também de oficina – Manuel mostra uma pasta contendo desenhos de peças projetadas, recortes de jornais e uma foto sua recebendo um prêmio das mãos do governador. Este ano participou do II Salão de Artes da UFPI, com uma águia lutando com uma cobra, escultura chamada A Luta pela Sobrevivência. E foi convidado, há alguns meses, para restaurar as portas da Igreja de São Benedito – uma das mais antigas da cidade de Teresina. Meu prazer era ver um trabalho meu em cada Estado. É raro vir uma pessoa encomendar peça aqui em casa. Vendo tudo na Loja do Artesanato do Piauí – tudo meu é nessa loja. Já dei até um curso de talha lá. Eu explicava do meu jeito, e num instante todo mundo se animava e trabalhava. A cidade está crescendo, mas eu não sei das coisas que estão acontecendo por aí. Nas artes eu vejo um movimento. O governador que saiu valorizou muito os artistas.

Teresina (PI), 1975.

Animado, riso clareando ainda mais sua fisionomia alegre, Manuel parece responder com força e decisão às dificuldades que vai encontrando. É com certo sabor de vitória que reafirma com ênfase:

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À SOMBRA DOS CARNAUBAIS Manuel Martins

À SOMBRA DOS CARNAUBAIS Manuel Martins

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Antônio Pedro Judite João do Gado Francisca Alves João Santeiro Teodora Paulina Júlio Cassiano Luzia Dantas Etewaldo Zé do Carmo

Tendo chegado ao Brasil através dos europeus, as imagens dos santos – expressões plásticas carregadas de contribuições das raízes populares de sua terra, santificadas pela religiosidade católica – integraram-se, como vários outros elementos, ao processo colonizador, desempenhando seu papel na transmissão dos saberes do além-mar. Missões e bandeiras, em suas ações de catequese e desbravamento, assim como a organização social subsequente – no exercício da supremacia de seus valores – ignoraram, como outro valor, o canto do pássaro nativo, o rufar do tambor negro, a linguagem da emergente população brasileira. Nesse contexto, como consequência, o apoio e estímulo seriam sistematicamente canalizados para expressões que tivessem, como ponto de referência, os valores dominantes, o que, aliando força e persuasiva metodologia, viria por sua vez criar a aceitação desses modelos como forma viável de sobrevivência. A população, encaminhada à ordem estabelecida e à religiosidade católica, receptora e agente de tantos e tão contraditórios valores, passou a ter a imagem do santo como motivo de respeito e devoção. Com o crescimento demográfico, com o aumento do volume dos deveres, das dificuldades econômicas, crescia também a devoção. O desejo de rezar, de pedir a Deus e aos santos o remédio para suas aflições, junto à dificuldade de locomoção até as capelas dos vilarejos, teria levado alguns devotos a improvisarem as primeiras imagens para seus oratórios caseiros. Outros, estimulados no convívio das ordens religiosas, foram levados ao exercício de uma atividade integrada à ação missionária. Surgia assim no Brasil um novo artífice – o imaginário, como eles mesmos se denominavam –, de início atendendo à devoção familiar para, com o tempo, ampliar sua clientela. Em singelo artesanato, utilizando a matéria-prima mais próxima e adequada aos seus objetivos – quase sempre a imburana, madeira boa de corte –, o santeiro, munido de improvisados instrumentos, procura reproduzir, com a maior precisão, o difundido modelo. Na limitação do espaço imposta pelas circunstâncias, ele desenvolve uma linha de produção artística mais uniforme, comprometida com a opção de refletir o “belo”. Hoje, em sua maioria, irmãos, pais, filhos e netos de outros santeiros, afeitos ao trato da madeira desde meninos, restauradores de imagens antigas, estes artistas desenvolvem com grande habilidade seu ofício. De tímidos experimentadores da arte santeira doméstica passam a solicitados artífices desse tipo de escultura, atendendo a diferentes níveis de demanda. Essas esculturas, sendo procuradas por seus valores religiosos ou estéticos, tornam-se, de uma forma ou de outra – ou na combinação de ambas –, fator de sobrevivência econômica para seus autores. Antônio Pedro, conseguindo atender às exigências de uma clientela familiarizada com as imagens antigas, destaca-se por uma produção mais refinada. Seus santos são ricos nos entalhes, na pintura, no rendado a folha de ouro, inclusive no movimento barroco de sua roupagem – réplicas das mais perfeitas imagens encontradas nos altares católicos. Judite, muito solicitada e apontada nos meios oficiais de seu Estado como significativa expressão artística local, também se sobressai por trabalhar em barro com raro domínio. Teodora, imaginária como o avô, tios, irmãos – da família Dinis, de muitos santeiros –, é a mais original dentre os companheiros. Embora guardando algumas características das peças antigas, seus santos têm uma apresentação muito própria. Outros artistas assumem o modelo, independentemente da temática santeira. Estimulados, solicitados pelo mercado, passam a esculpir tipos regionais, obedecendo aos critérios que os irmana com os imaginários. Sendo ainda santeira, Luzia Dantas elabora hoje, do mesmo modo, vaquejadas, casas de farinha, etc... Etewaldo, diante da perspectiva de um mercado mais compensador, toma os tipos populares de sua terra e os reproduz em barro. Dentro da mesma

REFLEXOS DO BELO

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Antônio Pedro temática, Zé do Carmo funde, de modo singular, épocas, fatos e escolas diversas, com sua bagagem popular. Das imagens europeias do início da colonização, abrasileiradas através das atividades de padres estrangeiros, aqui radicados, e de seus seguidores mestiços, os atuais imaginários mantêm a mesma linha e a preocupação com o tratamento refinado, o mesmo acontecendo com os referidos escultores de tipos populares. A pintura, usualmente encontrada nas peças antigas, apesar de ainda hoje contar com a preferência do santeiro, foi praticamente abolida em função de uma determinada clientela – que exige a madeira natural – e pelo imediatismo do atendimento a romeiros e turistas. Para oratório caseiro ou para lembrança de romaria, as exigências são menores. A simplificação e o despojamento sucedem o panejamento barroco, levando o escultor, embora ligado ao modelo, a aproximar suas figuras dos personagens que povoam seu cotidiano. Este tipo de produção artística, realizada por pessoas do meio popular, foi chamado por Hermilo Borba Filho de “popular acadêmico”, por se tratar de trabalho de certa forma condicionado a referências de modelos tradicionais, estranhos a seu universo. Elaboração significativa, empobrecida por algumas circunstâncias, cheia de grandeza por outras tantas, essa produção é marcada sempre pela invencível força da vida, capaz de infinitas invenções no seu exercício.

Em sua oficina, no Círculo Operário de Penedo – do qual é presidente –, Antônio Pedro trabalha, tendo em torno de si suas ferramentas, grandes toros, mesas repletas de santos, uma infinidade de objetos. Imagens para restaurar ou terminar completam o ambiente. Têm destaque, aí, um busto do Sagrado Coração, uma Nossa Senhora em estilo barroco, santos pintados em ouro e um Santo Antônio feito há trinta anos, trazido para ser retocado. Nasci em Piaçabuçu, Estado de Alagoas, no ano de 1904. Desde criança que eu gostava de fazer boneco de cajá. Muitas pessoas aconselhavam meu pai a me mandar pra uma escola de arte, mas ele queria que eu me tornasse mecânico. Vindo para Penedo com nove anos de idade, quatro anos depois Antônio Pedro conheceu Mestre Cesário Procópio, falecido em 1956. Ele foi um dos maiores artistas de Alagoas! Durante dois anos fiquei somente olhando aquilo que o mestre fazia. Ele me dizia: ‘É uma arte muito difícil!’ Eu não me contive e implorei ao meu velho, que me comprou umas facas e uns formões. De lá pra cá, não parei mais. Mas foi preciso muita paciência, muita perseverança. O mestre me fez passar dois anos somente observando. Só que, enquanto ele fazia uma imagem, eu, escondido, fazia outra igual. Em casa tinha uma gaveta cheinha! Minha mãe, aos poucos, foi dando tudo. Chegava um, chegava outro, pedia – e ela dava. Na minha família ninguém fazia santo. Só me lembro de um tio que trabalhava na madeira, mas sendo carpinteiro. Também faço pintura de igrejas e douramentos. A igreja do convento, passei dois anos dourando. Botei abaixo tudinho que estava velho, dourei e pintei tudo. Agora, noutra igreja, assentei duas mil e quinhentas folhas de ouro, em três arcadas antigas. Todos os meus filhos também desenham e pintam. Só um tinha muito jeito pra escultura, mas não quis continuar porque viu a vida sacrificada do pai. Antônio Pedro trabalha sozinho na escultura e se preocupa por não ter ninguém para deixar em seu lugar nesse ofício. Muitos vêm tentar, mas é uma arte difícil e eles desistem. A imagem que faço, e que o povo mais gosta, é Nossa Senhora da Conceição. Santo Antônio e Santana também saem muito. Um professor de cultura francesa, de Maceió, encomendou uma Santana com cadeira, a menina do lado e o livro. Disse que ia fazer presente a um museu na França, e levou pra lá. Tanto que botei embaixo: Antônio Pedro – Penedo – Alagoas – Brasil. Nunca faço um santo sem antes pesquisar a história dele nos livros. Um dia quis prestar uma homenagem ao Bispo D. Fernando. Ninguém conhecia a vida de São Fernando, mas descobri num livro que ele foi um rei espanhol casado com Isabel, a Católica. Então fiz a imagem de um rei com o cetro e a espada. Um padre discutiu e disse que São Fernando não existiu – então provei mostrando o livro. No trabalho, as madeiras preferidas de Antônio Pedro são o cedro e a laranjeira. Como instrumentos, usa goiva, enxó, formões e serrote; e, para a pintura de algumas imagens, o ouro.

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REFLEXOS DO BELO

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Há trabalhos seus espalhados por várias capitais brasileiras – Maceió, Recife, Salvador, Rio, São Paulo, Porto Alegre. Tudo tem trabalho meu. A maior procura é pelas esculturas de 25, 30 e 35cm; e o que mais sai são as de 35cm. É assim: as pessoas vêm aqui, compram e levam pra lá. Ultimamente, preferem esculturas sem pintura. Eu também prefiro, porque assim mostram melhor a minha arte. A pintura cobre falhas; ao natural, se vê os detalhes. No Rio tem muitas imagens do Crucificado. O Cristo é de madeira de laranjeira, a cruz é de cedro. Os turistas apreciam muito essas imagens de laranjeira, porque imitam marfim. Não tenho vontade de visitar outras cidades pra mostrar meus trabalhos. Quando o camarada é moço, fica iludido, se apresenta. Já não estou mais pra isso, não! Meus filhos estão todos criados, não tenho essa ambição de viajar, me projetar. Mas se vierem por aqui, a gente conversa. As visitas não atrapalham, não. Fico trabalhando, conversando... O pessoal por aí afora já sabe e, quando quer, vem aqui. O pessoal da Bahia, de Recife, de São Paulo – tudo passa por aqui.

chateia a gente um pouco. Vir especialmente fazer uma reportagem e nem botar o nome da gente! Artista do interior não tem cartaz. Eu não pedi nada: eu fico aqui fazendo o meu trabalho. Quem vem aqui eu mostro, eu gosto que admirem. Vivo aqui há mais de sessenta anos. Naquela época, as artes eram mais desenvolvidas e o comércio era melhor porque os navios vinham até o porto de Penedo, trazendo mercadorias e embarcando os produtos da região. As festas populares eram melhores. Só progrediu no setor de educação. O aspecto da cidade também melhorou: surgiram novas praças e avenidas, bom calçamento e iluminação. Assim o santeiro de Penedo vai vivendo, com o tempo todo tomado, dividido entre as encomendas de esculturas, pinturas, restaurações e as aulas de desenho e pintura que ministra no Círculo Operário. Antes do fim do ano vou ver se tiro uma folguinha pra fazer uns trabalhos e apresentar na exposição de janeiro de 1977. Agora vai ter sempre este Festival de Cinema e vem muita gente de fora. Ao menos pela última vez quero apresentar meus trabalhos.

Antônio Pedro já participou de duas exposições: uma individual, em 1972, no Centro de Turismo de Penedo, e outra coletiva, no Festival de Cinema de 1975, também nessa cidade. Esse ano não botei nada, nem me avisaram. Vieram na hora buscar! Nem disseram: ‘Olha, prepara uns trabalhos pra botar na exposição.’ O que botei o ano passado eu não ia botar esse ano porque não era interessante. Os visitantes iam dizer: ‘Ah, isso eu já vi, aquilo eu já vi!’ Querem coisa nova. Agora, vem aí elogio medonho sobre os trabalhos de escultura de outros que são apenas artesanato. Não é propriamente escultura. Escultura mesmo, no duro, não é!

Penedo (AL), 1976

Há cerca de quatro anos, um jornal de Alagoas fez um artigo sobre Antônio Pedro, de três páginas, ilustradas com fotografias com o título: “Ele Imita o Próprio Deus, Mas Ganha Pouco por seu Trabalho.” No jornal, pendurado na parede, já amarelado, lê-se o seguinte trecho: “Antônio Pedro diz que tem a arte como ingrata. Uma casa sequer não tem para morar. Os homens do governo de seu Estado visitam-no, empolgam-se com seu trabalho, os elogios são fortes, mas escassos os meios para difusão de suas obras. Consideram-no igual ou maior que Chico Santeiro, famoso internacionalmente. Prefere o tipo clássico de escultura. Suas imagens estão espalhadas por muitas igrejas de Alagoas, Sergipe, Bahia. Muitos visitantes do Sul fazem encomendas, que são sua fonte de renda...” Isso não significa mais nada pra mim, que estou velho! Quando eu era moço e precisava, não apareciam. Quando eu tinha doze filhos pra criar, fiquei anônimo. Agora, finalmente, os filhos já estão criados. Quando já é tempo de me aposentar, aí é que aparecem! Tem aparecido muitos repórteres da Globo, da Cruzeiro, da revista Veja, dos jornais da Paraíba. Tiram tanta fotografia que é um horror! E, finalmente, não sai em nada. Veio um repórter da Cruzeiro, tomou tanta da nota e, quando saiu a notícia, nem meu nome botou. Botou assim: ‘de um santeiro da época.’ Isso

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REFLEXOS DO BELO Antônio Pedro

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Judite Judite de Melo Andrade nasceu e se criou em Estância, para onde seus familiares, vindos de Propriá, se mudaram há muitos anos. Seus cinquenta anos foram todos vividos nessa cidade. Daqui não quero sair. Amo muito minha terra! Me chamam muito pra Salvador, mas aqui me casei, tive meus filhos. Quero ficar dando nome a Sergipe! Mesmo sem o pessoal daqui dar muito valor ao meu trabalho, quero ficar assim mesmo. Fui criada na igreja, muito religiosa. Por isso prefiro fazer imagem, apesar de saber fazer tudo. Jorge Amado, quando esteve aqui, disse que nunca tinha visto um trabalho tão fino em barro. Uma Pietá, com uns 40cm de altura, em estilo clássico e acabamento refinado, em barro natural, ao lado de um vendedor de cajus, com as mesmas características, ilustra bem o que ela acaba de dizer. Comecei a trabalhar no barro grávida, já tinha trinta e nove anos. Meu marido estava desempregado. A fábrica de tecido onde ele trabalhava tinha fechado e ele, idoso, não conseguia outro emprego. Tudo começou com um presépio que eu consertei: no santo faltavam as mãos e os pés. Fiz de barro, quis colar e não consegui, então fiz de pau. Mas resolvi fazer os bichinhos de barro pra botar no presépio e ficou bom. Aí eu me animei e continuei a fazer: presépios completos e santos isolados. Tipos regionais eu faço mas não gosto – acho menos arte, mais popular. Um pintor famoso – José de Dome – comprou um Santo Antônio e me animou muito. Uma vez eu fiz um presépio, com as figuras de um palmo mais ou menos, e vendi tudo a uma advogada sergipana, primeira promotora do Brasil. Essa advogada comprou o presépio e revendeu na Feira da Providência por quatro vezes mais. Ela foi legal demais comigo, me dando mais dinheiro.

Nesse mesmo tempo me compraram um Moisés que foi vendido a um juiz de Curitiba por dez vezes mais. Era um estouro a escultura, aquela altivez! Saiu uma reportagem em revista e jornal do Sul. Foi uma emoção muito grande. Tem muita gente que não entende de arte, ainda por cima se esta arte é feita de barro, embora hoje eu já não possa reclamar. Procuram muito os meus trabalhos aqui, e quando não acham ficam tristes. Além de vender para o sul do país, tem pessoas de Sergipe que me dão muito valor. Autoridades compram peças minhas para representar Sergipe nas exposições, ou então fazem encomendas de bustos ou medalhões, como foi o caso de D. Pedro e de Caxias, que fiz para a Semana do Exército, em 1972. Quando digo quanto custa, me dizem que está pouco e até dizem: ‘Peça mais, dê valor à sua arte, senão ela cai!’ Tem um doutor que quer levar os meus trabalhos para São Paulo. Às vezes eu tenho vontade de não expor mais aqui em Sergipe. Judite diz ter participado de muitas exposições, como a do auditório Villa-Lobos, na qual a Embratur estava presente. Nessa mesma ocasião ela foi convidada para ir ao Rio expor seus trabalhos, e ouviu de um dos convidados: “Uma obra dessas deve ir para Bruxelas!” No momento, ela se prepara para uma exposição individual, a ser realizada em uma galeria de Aracaju. Tem dias que fico pegada no serviço até duas, três horas da manhã. Não gosto de encomenda com prazo: fico vexada e às vezes boto a peça no fogo antes do tempo e se quebra tudo. Já estou ficando de vista cansada. De uns meses pra cá estou sentindo uma perturbação esquisita: de repente sinto uma mancha na vista e umas fagulhas. Fiz até uma promessa pra ver se fico boa: não vejo mais televisão, nem novela nenhuma, nem nada, por toda minha vida. Nem se eu aparecer na televisão eu não olho! Tem que ser uma mortificação. Em casa, conto com todo apoio – o marido é quem mais gosta. Até fez um espetinho bem fino que eu uso para desenhar as peças. Meus filhos, que são quatro – o maior com vinte anos e o menor com nove anos –, também apreciam muito tudo o que eu faço. Ficam dizendo: ‘Mamãe, está lindo!’ Às vezes eu também pinto um retrato por outro retrato, mas meu trabalho mesmo é o barro. Na cidade, fora da época dos festejos juninos, o desânimo é grande. Tem muita gente desempregada. Os fazendeiros de bois não deixam ninguém consertar a casa, depois pedem pra pessoa sair. As fábricas não têm vaga, estão se acabando. Tem ainda a de tecido, a de charuto e a de glicose. As outras – de óleo, de coco, de manteiga, de mamona – foram abaixo. Às vezes o dono de uma compra a outra. Por isso mesmo estou satisfeita com o meu trabalho. Imagine se não fosse ele!

Estância (SE), 1975/76.

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REFLEXOS DO BELO Judite

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João do Gado Natural de Currais Novos (RN), hoje com sessenta e nove anos de idade, João Bezerra dos Santos – João do Gado – estabeleceuse em Pilões de Dentro, em 1919, depois de uma passagem de três anos em Lagoa Grande. Na casa de chão batido, paredes de taipa, escura e de aspecto muito pobre, ele e a mulher partilham um viver que se resume, sobretudo, na esculturação de santos e no trato do quintal, cheio de flores, pés de milho e fruteiras. Habituado desde criança ao trabalho agrícola, João chama a atenção para três enxadas apoiadas na parede, no canto da sala. Dou prova que fui trabalhador de roçado, como todo mundo na minha família. Por isso amo o roçado: foi o que mais vi em toda a minha vida. Também nunca trabalhei para os outros. Antigamente, os proprietários cediam aquele pedaço de terra e nem pediam serventia nenhuma. Hoje já é diferente: o trabalhador trabalha cinco dias para ele e um dia pro dono da terra. O plantio por aqui é mais de milho e de feijão, e no dia do serviço do dono da terra se trata do agave, que é o plantio dele. Se a gente pudesse plantar agave era bom demais: agave rende mais que tudo. Hoje em dia, João, mesmo com o auxílio da mulher, mal pode roçar o seu quintal: além de muito alquebrado, faz questão de reservar a maior parte de suas energias para a atividade que mais lhe agrada. Desde sete anos que eu espiava pro oratório de meu avô e fazia minhas figurinhas. Esse avô foi o pai que conheci. Ele fez tudo pra eu aprender outra arte: nem flandeiro, nem pintor de casa, nem marceneiro eu quis ser. Durante uns tempos fiquei fazendo passadeira de engenho, mas sofria muito. Eu amava o roçado, mas o que eu abracei com mais gosto e adoro é essa minha arte. Em Lagoa Grande, já rapaz, eu ia fazendo os santos e mostrando a Mestre Manuel Paulino, um santeiro de lá, já falecido. E assim fui aperfeiçoando... Quem via gostava e pedia pra comprar. Um padre de João Pessoa, que tem uma loja de artesanato no Espírito Santo, começou a comprar mais certo, mas por último ele fez uma encomenda e não apareceu mais. Mas o que eu faço eu vendo. Os parentes de minha mulher – Silvinha –, que têm engenho de rapadura aqui perto, sempre aparecem e levam uma peça. Fora disso, levo os santos pra Guarabira (PB), ou então para uma loja de Tambaú, em João Pessoa. O padre daqui também já comprou uma pra mandar pra Holanda. Nessa arte trabalho mais descansado e mais com o juízo. É verdade que já levei muitos golpes. Tem vezes que as coisas não dão certo, mas assim mesmo acho bom.

Mas todas as minhas encomendas pra João Pessoa, Recife, Bahia, são todas na madeira natural. O pessoal de Pilões aprecia meu trabalho, mas ninguém pode comprar – é tudo pobrezinho. Quando arranja um dinheirinho é pra comprar fava. Seus instrumentos são rudimentares, e vários são elaborados por ele mesmo: um pequeno serrote, grosas, alguns gogivins e facas – usadas, partidas, as quais ele habilmente transforma, deixando suas lâminas bem reduzidas, afiadas e pontiagudas. Ou então compro uma peixeira nova, quebro e afio do meu jeito. João do Gado, além de escultor, é também restaurador, repintando santos com tinta a óleo, em cores fortes, e purpurina. Ultimamente, quase todo o seu tempo é tomado pelas encomendas de imagens do Menino Jesus de Praga. Sou positivo: nunca tinha visto esta imagem. Mas uma velhinha, quer dizer, ela é velha mas é uma moça, me arranjou um Menino desse pra eu ver. Aí fiquei fazendo. O pessoal deu muito valor, e eu estou achando isto bom. Acho muito bonito e gosto de fazer. É o padroeiro do Rio de Janeiro. Nos rostos bem talhados e no panejamento mais solto, João dá um toque barroco nos seus santos. Sem rebuscar, trabalha com segurança os traços leves de suas esculturas.

Pilões de Dentro (PB), 1976

A madeira que João utiliza é a imburana, que vai buscar em Cacimba de Dentro, distante de Pilões doze léguas. Usa também entrecasca de cajá para os cantinhos pequenos – mãos e cruzes das peças menores. Eu faço trabalho de encarnação pro pessoal daqui, que é como eu: gosta dos santos assim, pintados.

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REFLEXOS DO BELO João do Gado

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João Santeiro

Francisca Alves Nasci em Parnaíba, Estado do Piauí. Eu era bem pequena quando cheguei em São Luís, com toda minha família. Aqui me casei. Meu marido é maranhense, a gente tem dez filhos. Meu pai era santeiro e, dos dez filhos dele, quatro escolheram o mesmo ofício. Desde pequena, com oito anos, me encantei com esse trabalho. Nem estudei: o tempo todo era pra arte e até hoje é assim. Toda folga que eu arranjo aqui em casa, pego logo na faquinha e vou fazendo imagens, ouvindo música no radinho de pilha do meu filho mais velho. Quando comecei, fazia esses santinhos bem pequenos (2cm), pintados e colocados dentro de um vidrinho. Tão pequenos que pra pintar tinha que enfiar eles num espetinho de madeira e assim sustentar. Com o tempo, o tamanho dos santos foi crescendo. É Santana, São José, presépio, o que me vem na cabeça. Hoje faço quase tudo na média de 20, 30cm. Todo meu trabalho é pintado com tinta a óleo, desmanchada em gasolina pra ficar com as cores mais claras e transparentes. Não gosto de receber encomenda com modelo pra fazer igual. Acho difícil ficar olhando uma estampa pra copiar. Tiro de minha cabeça ou olho uma vez e pronto. Prefiro tirar da minha imaginação. Copiando, eu me atrapalho. Quando os meninos estão fazendo muito barulho, tranco tudo no quarto para eu poder trabalhar na sala. Essa casa aqui é muito melhor do que a outra em que a gente morava antes. Lá no bairro João Paulo, onde meus irmãos ainda moram, a gente vivia numa taperinha. Para Francisca, a nova moradia, numa vila popular, parece significar muito. Eu fiquei muito agradecida à dama do Estado. Eu a conheci na loja da Fundação do Bem-Estar Social, que é pra onde eu levo todas as minhas peças. Foi lá que ela viu um trabalho meu e mandou me buscar em casa pra eu falar com ela. Ela adorava meu trabalho: me adiantava a madeira e comprava o que eu ia fazendo. Levou muita peça minha pra Brasília. Passei três anos trabalhando pra ela. Luto muito, tirando o sustento da família desses santos. Entrego lá na Fundação por um tanto, descontando a madeira (cedro) que eles adiantam. A gente também faz o santinho miniatura, mas não adianta quase nada. A produção é grande, mas o preço que ele dá é pequeno. A gente vende ainda pintado, dentro do vidrinho.

De uma família de santeiros, João de Deus Alves desde cedo começou nesse ofício. É descendência de pai e são quatro irmãos que fazem essas esculturas assim, com esse mesmo motivo: tudo santo. Natural de Parnaíba (PI), hoje com trinta e nove anos de idade, João mudou-se para São Luís, com toda a família, em 1951. Nesse tempo meu pai já morava aqui, e aqui ficou até morrer. Ele era muito conhecido: chamava-se Nonato. Muita gente aqui tem santo feito por ele. Essas coisas, pra mim, a gente já nasce sabendo. É um saber que, ensinando, a gente não aprende e não tem outro que possa invadir a arte da gente. Sinto gosto nesse trabalho. Não preciso desenhar, nem olhar paisagem. Eu faço esses vultos só com o pensamento. Por exemplo, São José do Ribamar: eu faço ele aqui em São Luís, e a imagem dele está lá, a sete léguas de distância. Eu reconheço meus vultos pelas feições: são vivas! Se não forem bem vivas não são minhas. Não assino, não gosto de me identificar. Só quando o comprador pede ou exige, mas assim mesmo sou conhecido como João Santeiro. Até de São Paulo e Brasília já vem gente diretamente na minha casa fazer encomenda. Bem elaborados, sempre na madeira natural, seus santos lembram, no entalhe, aqueles dos primeiros mestres santeiros que ainda povoam os altares das igrejas.

Suas imagens – assim como as de seus familiares que partilham o mesmo ofício – se integram de forma significativa no espaço onde se encontram os “reflexos do belo”. A Santana de mãos dadas com Maria, no panejamento solto de suas vestes, e seus demais santos, entalhados com o mesmo esmero, evidenciam uma maior preocupação em reproduzir com fidelidade os modelos difundidos. Fora a menina de treze anos que também me ajuda, o mais novo no ofício é meu marido. Ele está desempregado há muito tempo. Já trabalhou em almoxarifado e essas coisas de comércio. Desempregou-se, e não acha mais nada: só serviços assim como esses; mas com contrato de três meses, e aí não dá. Tem sido muito difícil sustentar a família só com esses santos. Puxando muito, dá pra fazer três santos numa semana. Eu espero, com o tempo, desenvolver mais o meu trabalho e ficar mais conhecida, como o meu pai era aqui. De vez em quando chega uma imagem feita por ele, pra eu consertar. Reconheço todas: o nome dele era Raimundo Nonato Alves.

São Luís (MA), 1975.

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REFLEXOS DO BELO Francisco Alves

REFLEXOS DO BELO João Santeiro

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Teodora No Piauí eu usava, para fazer essas esculturas, imburana-de-cheiro ou de espinho. É uma madeira boa, mas aqui no Maranhão é muito difícil. Por isso agora só trabalho no cedro. Eu compro nas serrarias com facilidade, quando assim tenho o dinheiro. Tenho dez filhos. O mais velho, Francisco, já faz santo melhor do que eu e vende tudo. Ele ajuda em casa nas despesas, só não gosta é de aparecer. É a coisa mais difícil ele querer conversar assim como eu faço. O dinheiro que a gente ganha com a arte ajuda, mas se fosse só ela não dava pro sustento da família de jeito nenhum. Trabalho também numa firma que faz serviços de limpeza. Lá o meu horário é das 16 às 22h45 e, nos sábados, das 7h às 13h. Na sobra do tempo, eu faço os vultos: um pequeno em um dia, um grande em dois ou três. João tem outro irmão, Paulo, que também é santeiro, referido por muitos como escultor de peso e talento. Um santo de roca (cabeça, braços e pernas compostos em armação de madeira, próprio para ser vestido), de sua autoria, encontra-se em exposição na Casa Regional. Mas ele vive por dentro dos matos, no interior, andando pra lá e pra cá. É muito difícil encontrálo. No meu trabalho, faço tudo sozinho. Entrego lá na Casa Regional. Tem um rapaz lá que vende muito bem. O preço eu calculo pela metragem. O que consigo na firma, onde ganho salário mínimo, e na arte, vai dando pra viver apertado. São Luís, de 1965 pra cá, está se desenvolvendo mais. O Patrimônio Histórico está cuidando dos prédios antigos. No movimento de arte é que eu não vejo diferença pra melhor.

Minha mãe era rendeira e meu pai era imaginário, do mesmo jeito que eu sou hoje. Lá em casa foram vinte irmãos, mas muitos morreram pequenos. Dos que se criaram, que eu sei, três deram pra esse ofício. Tem Júlio Cassiano, que mora em Jardim do Seridó, e comadre Paulina, que eu não vejo desde 1944. Informada do paradeiro de Paulina – que mora em Lagoa Seca (PB) –, Teodora, segundo informações, viajou para lá a fim de rever a irmã. Vivo em Acari há vinte e nove anos. Estou com sessenta e um anos de idade, e posso dizer que desde os dez anos trabalho nessas imagens de madeira. Eu faço santo, esses negócios de pagar promessa (ex-votos), que são encomendados pelos romeiros de Canindé, São Severino dos Ramos e Juazeiro. Faço também boneca, soldado, vaqueiro, boi – tudo conforme as encomendas. É como eu gosto mais de trabalhar – por encomenda. O dinheiro vem certo. Pra mim é a mesma coisa se a peça é de encomenda ou não é: eu faço do jeito que sei fazer. Eu tenho um contrato com a Fundação José Augusto, de Natal, para fazer toda semana um tanto de santo. Se for dos pequenos (15cm), faço dez; dos maiores (30cm), faço cinco. Só acho ruim porque não tenho por quem mandar, e fico esperando que venham buscar. Às vezes demoram muito. O preço foi combinado pelo pessoal da Fundação. O dinheiro é sempre pouco e difícil de chegar. Quando chega, já estou devendo tudo na bodega. Suas imagens, esculpidas na madeira com uma pequena faca afiada,

São Luís (MA), 1975.

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REFLEXOS DO BELO João Santeiro

REFLEXOS DO BELO Teodora

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Paulina representam, geralmente, figuras corpulentas, arredondadas, pintadas a óleo em cores fortes, com coroas e brincos também de sua autoria. Uma expressão ingênua, interrogativa, dá um toque bastante pessoal ao trabalho de Teodora. Na singularidade da expressão, da cor e do volume, ela se destaca, indiscutivelmente, entre os artistas desse agrupamento. Em uma casa de taipa, das mais pobres, vive com Antônio, seu velho. Sobre uma mesa, entalha suas figuras. Tamboretes, pequenos pedaços de madeira, troncos de imburana, uma rede dependurada em um canto compõem o ambiente que ilustra a precária situação de seus moradores. Eu não tenho filho, nem tenho pai, nem tenho mãe, nem tenho marido. Ele é meu velho faz dois anos, desde que eu fiquei viúva. Ele gosta de ficar aí na rede depois do almoço, lendo esses livrinhos de feira pra mim. A gente não tem rádio, eu nunca vi televisão, revista também não, não uso nada disto. Eu não sei ler, sou como cega. Faz três semanas que eu estou frequentando o MOBRAL. Estou gostando. Escrever é fácil, é só botar na frente que eu copio. Agora, ler é difícil! Por aqui o pessoal é muito pobre: uns são aposentados, outros são bodegueiros. As mulheres batem roupa. Tem umas professoras também. Tem pesca. Eu gosto muito de pescar: todo dia eu dou uma saída até o rio aqui perto. Meu velho também. Entre pescar e fazer santo, nem sei o que eu gosto mais!

Em Lagoa Seca – vilarejo a cinco quilômetros de Campina Grande – vive Paulina Dinis, com seus cinquenta e seis anos de idade, exercendo a profissão de imaginária. Quando saí do Jardim do Seridó, onde eu nasci, fui morar em Lagoa Remígio, aqui na Paraíba. Depois morei em Esperança. Em 1941 foi que me mudei para Lagoa Seca. Com dois anos aqui, me casei. Tive dezoito filhos, mas só se criaram nove. Em 1963, meu marido foi embora e deixou tudo aqui com fome. A gente morava num sítio e eu passei ainda uns tempos lá, mas a situação ficou muito difícil. Foi então que eu comecei a fazer estas peças pra vender, coisa que eu já sabia fazer desde a idade de dez anos. Aprendi com meu pai, que também era imaginário. Foram os padres do convento de Lagoa Seca os responsáveis pelas primeiras vendas de peças de Paulina, estabelecendo contato entre ela e o dono de uma loja em Campina Grande. Em 1970 saí do sítio e vim morar aqui em Lagoa Seca mesmo, nessa casa que foi doada pelo governador. Eu não conhecia ele, mas foi uma assistente social que achava bom o meu trabalho. Ela falou com ele e ele deu a casa. Situada no centro da vila, a casa tem um espaço reservado para o trabalho. Ali Paulina mantém a madeira que será utilizada nas esculturas, esculpe e guarda as peças em uma estante, à espera do cliente. Compro a imburana na feira de lenha, em Campina Grande. Pra trazer até aqui, pago o

Acari (RN), 1975

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REFLEXOS DO BELO Teodora

REFLEXOS DO BELO Paulina

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Júlio Cassiano transporte, que é feito numa caminhonete. Prefiro trabalhar com imburana mole, mas, não achando, trabalho mesmo com a dura. Tenho dois filhos trabalhando comigo: José e Salete. Cada um recebe o que fez, não tem história de salário. Salete só faz Cristo ou pecinhas de frutas e cinzeiros; José trabalha em imagens. Os instrumentos são os usuais, acrescidos de algumas invenções de José, como a suveba, arame grosso com uma ponta afiada e com o outro lado torcido, pra facilitar fazer os furos, e ainda uma concha amolada, que serve para cavar cinzeiros e raspar as esculturas. O preço das peças é feito pelo tamanho e não adianta a gente fazer peça pequena, que dá mais trabalho, e o dinheiro que o pessoal paga não adianta. Mas, pra mim, não existe nenhuma peça pior ou melhor de fazer. Na volta de trabalho, gosto de fazer toda qualidade, do que vier. Paulina, referindo-se à sua participação em diversas exposições, destaca uma no Museu de Arte de Campina Grande e outra no Teatro Municipal. Recentemente, apresentou seus trabalhos na I Exposição de Artesanato do Nordeste, realizada no Ceará. Um toro de imburana, de aproximadamente 50cm, apresenta sobre uma face o rosto de Cristo, coroado de espinhos. Vez por outra, troncos com formas que favorecem o entalhe são aproveitados pela artista. Cabeças de Cristo e Ceias, peças que requerem uma madeira com características mais especiais, são trabalhos com os quais ganha um pouco além do habitual. Na madeira natural – comum a todos os seus santos –, com seus rudimentares instrumentos Paulina traça, com firme singeleza, a imaginária apreendida de seu pai.

Júlio Cassiano tem setenta e dois anos, nasceu na cidade de Areia – interior da Paraíba – e atualmente vive em Jardim do Seridó, para onde se mudou há quarenta anos. Nessa cidade, além de imaginário, é sax-tenor da banda local. A casinha onde eu moro fica na entrada do Jardim do Seridó, pra quem vem de Caicó, ou na saída, pra quem vem de Acari. Ao contrário do que acontece com a maioria dos artistas populares, ele não trabalha na própria casa. O lugar onde esculpe suas peças está situado nos fundos da sede da Banda Euterpe Jardinense. Euterpe era a deusa da música, por isso é o nome dessa sede. Faz muito tempo que estou aqui. Gosto desse canto pra trabalhar. Na pequena oficina sem janelas – de aproximadamente 2m² –, latas de tinta, facas, serrote e folhas de lixa misturam-se, sobre uma mesa velha, a pequenos pedaços de imburana; os maiores destes encontram-se amontoados em um canto do cubículo. Por aqui tem da imburana dura, mole, roxa, branca. Mas a melhor é a amarela: essa, sim, é toda boa. Quem tira a que presta lá no mato sou eu – já trago limpa. Aqui eu serro, desbasto e vou dando os desgastes com a faca. Desses desgastes vão surgindo santos, negros do rosário e músicos da banda que ele tão bem conhece. Semelhantes às esculturas de Teodora, no acabamento e no colorido, suas peças,

Lagoa Seca (PB), 1975

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REFLEXOS DO BELO Paulina

REFLEXOS DO BELO Júlio Cassiano

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Luzia Dantas no entanto, são bem mais esguias do que as da irmã. Em Júlio Cassiano, o escultor e o músico parecem coexistir com igual força, desde 1920, quando se iniciou nessas atividades. Daí, talvez, o maior entusiasmo que transparece quando ele fala das bandas de música que saem de suas mãos – como uma síntese de seus dois ofícios. Eu gosto também de fazer os santos, os negros do rosário, os cantadores e vaqueiros. Como diz a história – tenho aquela inspiração no pensamento! Faço a cabeça e vou descendo. Aprendi essa arte, quando era menino, com meus tios – Júlio Dinis, Francisco Dinis e Manuel Dinis. Morreu tudo! Eles faziam esses trabalhos e ficavam viajando por esse meio de mundo, vendendo as pecinhas. Eu também gostava disso. Hoje, para mim, a distração é aqui mesmo, fazendo isso na sombra. A banda que Júlio esculpe na imburana, peça mais procurada, é composta de doze figuras de músicos: três clarinetes, um sax-tenor, um saxofone, um bombo, um tarol, um bombardino, uma tuba, pratos, trombone e o baixo. Os músicos – geralmente na altura de 20cm – estão colocados em três colunas, formando filas de quatro figuras, todos fardados e pintados a óleo, em cores vivas. Um músico deste, para ser feito, leva uma média de um dia. Júlio não sabe se seu trabalho já participou de alguma exposição, mas vende com regularidade toda a sua produção para a Fundação José Augusto, que funciona em Natal, na Biblioteca Câmara Cascudo.

Luzia Dantas de Araújo nasceu em 1937 no sítio de Rio Cachoeira, município de São Vicente (RN), e hoje está em Currais Novos, para onde se mudou há dois anos. Em São Vicente comecei a fazer meus primeiros trabalhos. Nem sei como veio a ideia. Ninguém mais fazia, nem na família e nem na vizinhança. De artista, em toda minha vida, só conheci Maria do Santíssimo, que fazia pinturas no papel. Ela hoje está doente e velha demais. Deixou de trabalhar. Fora ela, só sei de Ana, minha irmã, que faz esses mesmos trabalhos que eu. Comecei fazendo bonecos de madeira, quando tinha cinco anos de idade. Fazia porque gostava mesmo de fazer. Depois abusava e jogava no mato. O pessoal viu e foi encomendando pra pagar promessa (ex-votos). Fora isto eu ainda fazia coelho, gato e outros bichos. Aí fui continuando e o pessoal achando bom. Depois fui fazendo vaca, bezerro, cavalo, e passando a vaquejada, casa de farinha, rendeira, coisas da terra mesmo. Um dia fiz uma Nossa Senhora de Fátima lá pra casa, que uma moça de fora viu, pediu pra comprar e comprou. Daí por diante, não parei mais. Começaram também as encomendas de santos. Trazem uma figura no papel e por ali eu faço. Quando eu copio desse jeito, depois de duas ou três vezes, não preciso mais de modelo. As esculturas de Luzia revelam uma excelente artesã: corte, detalhes, polimento esmerado, grande domínio dentro de seu gênero. As figuras de gente ou de bicho são reproduções perfeitas, algumas dando ideia de movimento, como a vaquejada. Todas marcadas por uma fidelidade “fotográfica”, sem

Passei dois anos vendendo os santos maiores, de 20cm, pelo mesmo preço. Agora aumentei um pouco, mas vou ver se ainda dou uma subidinha. Eu trabalho sozinho. Às vezes chamo uma pessoa pra lixar uma peça. A encomenda aqui é coisa muito pouca. As peças vão mesmo quase tudo pra Fundação. Além de seus familiares, Júlio Cassiano menciona outros antigos artesãos. Conheci tudinho. Os Aquino, de Caicó, já morreram – eram uns imaginários bons. Paulina e Teodora, que são minhas irmãs. Teodora mora aqui perto, em Acari, e Paulina, ouço dizer que está em Campina Grande. Tinha Manuel Felício, também de Caicó, Chico Santeiro, de Natal, Chico Caú, de Pajeú. Esses também já morreram. Eram bons.

Jardim do Seridó (RN), 1975

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REFLEXOS DO BELO Júlio Cassiano

REFLEXOS DO BELO Luzia Dantas

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Etewaldo fantasias nem acréscimos. Foi assim que ela fez a Nossa Senhora dos Navegantes para a cidade de Touros, com 80cm de altura – sua maior escultura. Peças desse porte, Luzia só faz para atender a encomendas especiais. Seu maior gosto é pelas vaquejadas, retirantes, casas de farinha, pelos tipos e costumes regionais, em geral – tudo em torno de 30cm. Não paro de trabalhar. Às vezes estou aprontando uma peça para uma pessoa, chega outra e fica insistindo tanto que, quando eu posso, cedo. As peças mais procuradas são as que apresentam cenas e tipos regionais, a Santana e o São Jorge. A madeira utilizada por Luzia é sempre a imburana, e seus instrumentos de trabalho resumem-se a um pequeno serrote, uma afiada faquinha, a sovela (espécie de espeto para furar a peça) e uma carretilha, para desenhar a escultura, quando é o caso. Cada peça dessas leva quase oito dias pra ser feita. São muito trabalhosas. A vaquejada são dois vaqueiros a cavalo, galopando atrás do boi. Vou fazendo por partes, cada figura de uma vez, e pregando na base de madeira com a cola Tenaz. Somente a Santana é feita de um pedaço só de madeira, mas assim mesmo dá muito trabalho: são duas santas numa só. Por isso é a que eu gosto menos de fazer. Aqui em Currais Novos as peças têm mais saída e dão mais preço que em São Vicente. Também a cidade aqui dá três da outra, e cada dia aumenta mais. Se bem que o pessoal da terra, geralmente pobre, aprecie muito seu trabalho, não pode comprá-lo. Seus compradores são quase que exclusivamente pessoas de fora que chegam a Currais Novos, muitas vezes somente à procura de suas peças, o que a gratifica muito. Mesmo se tivesse outra coisa pra fazer, ainda assim faria minha arte. Só deixo quando um dia a vista não der mais. Trabalho quase o dia todo. De noite gosto de assistir televisão – uma novela, um repórter, um noticiário... Também me distraio com revista. De vez em quando me arranjam umas com figuras de santos. Luzia tem peças por todo o Brasil e no exterior, embora nunca tenha ido, nem a Natal, ver seus trabalhos expostos.

Currais Novos (RN), 1975

‘Rapaz, o que você faz é artesanato! Em São Paulo isso tem um valor danado!’ Foi assim que um cunhado de Etewaldo, escultor residente naquela cidade, o despertou para a importância de sua habilidade. Nascido em Açu (RN), no ano de 1939, com dois anos de idade Etewaldo mudou-se para Natal. Quando eu era garoto fazia umas pecinhas com esse barro de estrada, torrado, ou então pegava um pedaço de madeira. A ideia de fazer vinha da minha própria cabeça. Em Natal eu era letrista. Depois de casado, eu mudei pra Ceará-Mirim – isso em 1970. Cheguei aqui como fotógrafo. Era o que eu fazia pra sustentar a família. E de vez em quando eu fazia uma pecinha de madeira. Sempre fiz essas mesmas figuras. Toda a vida gostei de velho, dessas pessoas sofridas. Foi quando meu cunhado, que mora em São Paulo, viu um trabalho meu e me animou muito. Eu não sabia nem o que é que eu fazia, só sabia que gostava. Então ele me disse: ‘Aqui tem barro de louça?’ Eu disse: ‘Tem.’ Aí ele disse: ‘Você pega aquele barro do jeito que você faz assim na madeira.’ Ele me incentivou muito. O que me fez trabalhar mais foi me lembrar que eu tinha chegado aqui há pouco tempo e estava trabalhando só de fotógrafo – tempo ruim, situação difícil. Queria que Deus me mostrasse um meio de arranjar dinheiro pra poder manter a família. Pensei: eu não tenho condição de pegar um dinheiro e inventar uma coisa: eu queria um negócio que não gastasse dinheiro. Então parece que Deus me ajudou e veio esse cunhado de São Paulo, que me incentivou. Quando ele me mostrou o valor do artesanato, eu fiquei doidinho. Arranjei logo uma lata de barro, e passei a noite toda fazendo boneco até clarear o dia. Deitava um pouco e pegava de novo. Eu tinha tanta vontade de fazer esse negócio de barro que eu queria comprar um boneco na loja pra quebrar e ver como é que eu armava ele, se ele tinha armação por dentro. Mas eu não podia comprar porque custava muito caro pra mim. Pra ver como era a minha situação! Aí fui fazendo. No começo eu perdi muita peça. Quando ia queimar estourava tudo no forno. Um dia fiz dez peças de uma vez. Quando botei no forno estourou tudo. Quis quebrar o forno, esquentei a cabeça, mas aí eu disse: ‘não’! Botei tudo de novo até ir acostumando. Quebrava porque era o jeito de queimar. Eu não sabia dar temperatura, queria botar logo o fogo perto e também porque eu fazia esses velhos cheios. Depois comecei a fazer peças ocas. Descobri tudo sozinho. As esculturas de Etewaldo Cruz Santiago têm aproximadamente 20cm de altura, exceto quando se trata de uma encomenda especial. Tinturadas em preto com um preparo de sua fabricação, representam agricultores, pescadores, rendeiras, cangaceiros, violeiros, lenhadores, lavadeiras... Gosto mais de fazer agricultor e pescador. São os que têm mais saída. Quase tudo velho. Aqui, sempre ando aí por fora pra pegar modelos de velho. Pelo carnaval eu gosto muito de conversar com eles. Se eu descobrir um canto que tem uns velhos do meu tipo, começo logo a conversar com eles. Pago até cachaça pra ficar olhando a roupa, o jeito, o chapéu... Etewaldo repete, no barro, seu ofício de fotógrafo. Retrata, em

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REFLEXOS DO BELO Luzia Dantas

REFLEXOS DO BELO Etewaldo

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Zé do Carmo suas peças, figuras que mais o tocam no seu cotidiano: a mãe esquálida sentada no chão, amamentando o filho; o velho encurvado, com enxada no ombro; os pescadores também alquebrados, na luta pela sobrevivência... Todos muito expressivos. Quando eu fiz minhas primeiras peças, eu vendia na loja dos retratos. Essas mesmas peças eu vendi, em 1971, na feira de São Paulo, por muito mais. Quando voltei, aumentei o preço na praça. Depois botei umas peças numa exposição de uma galeria de Natal. Então minhas peças foram se valorizando. Um dos meus maiores incentivadores foi o Almirante Milton Braga. Ele valorizou muito minhas peças. Por sinal que ano passado ele patrocinou uma exposição minha em Brasília. Agora posso dizer que vivo mesmo desse meu trabalho. Etewaldo esculpiu uma peça de 1,70m de altura, sob encomenda do governo, para o Bosque dos Namorados, em Natal. É um casal abraçado, se beijando. Me deu muito trabalho: levantei de barro, depois cobri de cimento e depois descasquei o cimento. Passei um mês trabalhando, nervoso, com medo que não desse certo. Ela é toda oca, como as peças pequenas, sendo que na pequena eu já tinha o jeito. Na pequena, eu enrolo um cilindro de barro, enfio um graveto pra furar e enrolo de novo. Fica então um cano de barro: esse é o corpo do boneco. Isso foi um jeito que descobri sozinho, depois de muito fracasso. O pessoal de Ceará-Mirim não compreende de arte. Por sinal, quase que me conhecem só como fotógrafo. Uma vez botei umas prateleiras aqui, chegava gente só pra mangar. Também o lugar é muito pobre: aqui só tem usina de açúcar, eles pagam muito pouco, uma mixaria, o pessoal vive apertado. Outro dia chegou um menino meu da escola, reclamando: ‘Papai, um menino lá disse que o senhor fazia boneco de Xangô.’ Aí eu disse a ele que fazia artesanato. Ele então voltou satisfeito.

Ceará-Mirim (RN), 1975.

Em Goiana, pequena cidade da Zona da Mata de Pernambuco, José do Carmo tem sua loja. É uma loja dupla. De um lado, os artesanatos, feitos pelos meus aprendizes – pra que mentir? Coisas feitas em série, bugigangas –, coisas baratas que os turistas compram sempre de lembrança. Do outro lado, a galeria, com minha arte. Na loja, pequenas esculturas de aproximadamente 20cm, em barro natural, são produzidas pelos aprendizes, semelhantes às figuras características de Zé do Carmo: pedintes, retirantes, trabalhadores com enxada, pescadores, etc. Com base na inspiração e na temática desse artista – o mais conhecido da cidade –, o seriado da produção diminui a força de expressão dessas peças, em contraste com as de Zé do Carmo. Estas, expostas na galeria – tamanho variando entre 30cm e 2m de altura –, enchem todo o espaço. Nem são primitivas, nem é coisa acadêmica, ultrapassada. Eu comecei com os bichinhos desde bem pequeno, com uns seis anos. Minha mãe era lavadeira e meu pai padeiro. Eu ajudava na casa, vendendo na feira galinha de pinto, garça, bonequinho – tudo de barro cru ou então pintado, às vezes, com tinta d’água. Com nove anos eu fui descoberto pelo prefeito da época, que me incentivou bastante. Ele fazia muita propaganda do meu trabalho, e até me arranjou um forno. O barro, no princípio, eu usava o de olaria: é um barro muito forte e muito fácil de conseguir por aqui. Eu, que antes não tinha nenhum conhecimento sobre o barro e só sabia que queria levantar uma figura, fui trabalhando, e aí fazendo pastoril, cavalo-marinho, mamulengo, pescador de caranguejo, mulher rendeira, capitão de campo, mendigo... São os tipos que eu mais gosto de fazer, são a minha especialidade. Ainda hoje utilizo o barro daqui de Goiana, que é muito bom. Faço misturas com o massapê e areia, conforme queira, mais fraco ou mais forte. Escolho o lugar onde quero cavar e pago a alguns meninos para retirarem o barro e levarem até minha loja, onde modelo as peças. A descoberta da consistência do barro consegui através de várias experiências. No começo as peças quebravam muito. Eu não sabia nem amassar nem curtir o barro. Uns diziam que o barro estava forte, outros que estava fraco. Descobri então que o barro era muito forte. O tipo das calorias era pouco em relação à resistência – e isso fazia estourar. Passei anos pra saber como deveria ser. Hoje não há mais problema. Nas esculturas de Zé do Carmo, os sulcos cavados no barro – com instrumentos ou com os próprios dedos – são fortes e, ao mesmo tempo, leves, deixando a textura mais livre do refinamento de um alisado cuidadoso – uma característica marcante de seu estilo. Todas as figuras são ocadas, ficando com espessuras diversas, conforme os tamanhos. O tempo da queima também é diferente, mais ou menos prolongado. A espessura pode chegar até 7cm, e o tempo, no forno, levar de até três a quatro dias.

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REFLEXOS DO BELO Etewaldo

REFLEXOS DO BELO Zé do Carmo

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O tempo de caldear também é variado. Caldear é ficar incandescente, ficar vermelho, cor de brasa. Esse tempo é importante, senão as peças diminuem muito de tamanho. O forno fui eu mesmo que fiz. Só se fala agora nas coisas primitivas de Tracunhaém. Não sinto vontade de fazer esse trabalho bem popular, mas também não faço um trabalho clássico. Gosto muito de ler a vida dos grandes escultores, como Miguel Ângelo, Rodin, Camona, Leonardo da Vinci... Acho que foi Cézanne que se enterrou na África do Sul e mandou mulher e filha, tudo, para o inferno. Morreu na miséria, mas deixou grandes obras. Não sou acadêmico, nunca frequentei academia. Esses livros que tenho, com o trabalho desses artistas célebres, é só para eu saber o que não devo fazer. Provavelmente, a leitura e a observação dos clássicos da escultura contribuíram para algumas incursões mais audaciosas de Zé do Carmo em termos de artesanato e composição, como bem exemplifica o seu São Pedro de 2m de altura – peça atualmente em execução em sua galeria-oficina. Esse São Pedro Pescador tem meia tonelada de peso, tem estrutura de ferro e foi todo feito por pedaço e depois armado com muito cuidado. Tive que aumentar o forno pra poder queimá-lo. Já está vendido para a capela de São Pedro, na base naval de Natal. Eu já fui servente de pedreiro, vendedor ambulante, sacristão... Nessas peças que eu faço eu uso meus conhecimentos, minhas recordações. Como sacristão, me lembro dos santos. Já essas armações de ferro vêm do meu tempo de pedreiro. São trinta e cinco anos de arte nos meus quarenta e um anos de idade. Já viajei para o Rio, São Paulo, Santos, Rio Grande do Sul, Minas. Uma vez tomei um empréstimo e fui mostrar o meu trabalho no Sul. Levei uma carta de apresentação, fui muito bem recebido, fiz exposições, vendi bastante, fiquei uns anos lá. Quando voltei, passei ainda uns tempos em Recife. Só voltei pr’aqui há três anos: estava sentindo falta da cidade, do meio, do barro, desses motivos populares. Faço minha arte como quem gosta de música ou quem nasceu para as coisas do dinheiro. O dinheiro ajuda mas não é o suficiente: o importante mesmo é fazer a peça. Se as pessoas pudessem largar tudo o que toma tempo para fazerem sua vocação, muitos outros apareceriam por aí, nas artes e nas outras coisas. Se eu pudesse largava o artesanato, as bugigangas. É verdade que elas me ajudam no dinheiro e são boas também para os artesãos, que são gente muito pobre, mas tomam muito tempo. Mas tenho que sustentar isso. Ainda não reconhecem o justo valor do meu trabalho, nem o preço das peças recompensa bem. Ao contrário, recebo até muitas críticas, porque meu trabalho não é mais primitivo. Viver de arte no Nordeste é muito duro, mas mesmo no inverno – que a gente tem de apertar o cinto – eu não desprezo a arte e ainda sustento o preço. Minhas peças não são artesanato!

Goiana (PE), 1975

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REFLEXOS DO BELO Zé do Carmo

Mestre Noza Franciner Nino Cícera Araújo Cícera Lira Maria Cassiana e Galdino Zé Duarte Dedé Francildo

De terra de romaria são os artistas aqui reunidos, emigrados quase todos de vários pontos do Nordeste. Canindé e Juazeiro, no Ceará, entre outras localidades da região, destacadas pelo misticismo, receberam-nos um dia, quando vieram em peregrinação e, como tantos, aí ficaram. Em Canindé, reina a imagem de São Francisco de Chagas, trazida por frades europeus no século XVIII. Nesta cidade e em Juazeiro, recentemente, um impresso vendido à porta das igrejas, intitulado Prontuário com os Dados mais Característicos da Ordem Franciscana, anunciava: “No dia 16 de janeiro de 1221, em Marrocos, são trucidados os primeiros Frades Menores, denominados Protomártires Franciscanos. Quando Francisco soube, chorando de dor, de consolação e de inveja, exclamou: ‘Agora posso dizer que tenho dois irmãos... ’” Dos conventos emana uma solicitação de trabalho. A mão-de-obra nativa, sempre mobilizada, a partir de sua resposta, é estimulada, normalizada, alguma vezes organizada. A construção de abrigos para os colonizadores; a produção de objetos de trabalho, de uso doméstico, em substituição gradativa a tudo o que vinha da metrópole; a restauração de imagens dos santos importados e a consequente iniciação do ofício da imaginária; a reprodução, pelos artesãos locais, dos bonecos de mamulengo trazidos da Europa pelos jesuítas para a catequese – são o resultado de algumas dessas solicitações. Hoje, a demanda encontra sua sequência na presença ativa do frade de Canindé. Em Juazeiro, a imagem entronizada é bem mais próxima no tempo e no espaço. Padre Cícero viveu entre eles até 1934. Ministro rebelde da Igreja na prática personalista de seu sacerdócio, pai-padrinho rígido, moralista, pregador de mistérios e de profecias, perseguido e humilhado no exercício de seu magistério, amigo de políticos influentes, chegado a beatas e a subversivos – como o era Lampião em seu tempo –, Padre Cícero abriu, com essa sua controvertida figura, um espaço para a manifestação eminentemente popular que deu fama à cidade. Na multidão que chega, no Juazeiro que a recebe, está o povo do Nordeste, reunido em massa, sobretudo seus trabalhadores. Estão os artistas populares (os naturais da terra e os que vieram em romaria e ficaram), todos os que já são habituais e os que não conseguem chegar à cidade, por total impossibilidade, mas fazendo sentir sua presença no reconhecido desejo de ali estarem. “Se Deus quiser, antes de morrer ainda vou a Juazeiro ver meu padrinho...” – é o que se ouve, no Nordeste inteiro, de pessoas do povo. Uma romeira, sentada durante doze horas no último banco do ônibus, sobre o motor, exclama em dado momento: “Que calor!” Para logo depois retificar: “Que calor nada, mais quente são nossos pecados...” Ao ir junto com romeiros de um bairro popular de Recife a Juazeiro, ao participar do mesmo ônibus, mesma hospedaria, mesmo roteiro durante três dias na cidade, sente-se a força da relação desses homens com essa manifestação. Todos estão inscritos, em vários níveis, como protagonistas da grande cena. A procura, a escuta do artista é absorvida pelo fenômeno da romaria que, na complexidade de sua manifestação, do espaço onde ela se dá, exige prioridade na abordagem. A face da população do Nordeste, composta nas expressões dos cento e cinquenta mil romeiros reunidos, é um impacto – olhar, canto, gestos, roupas, tudo, de forma muito eloquente, estampando a aceitação penitencial de uma cruz introjetada há séculos, incorporada à potencialidade, força, resistência, na experimentação do sofrer. Chegam quase todos nos caminhões pau-de-arara, onde sob um toldo surrado se comprimem, sentados nas tábuas usadas como banco, sem encosto. Para o repouso das grandes estiradas até ali – desde a Bahia ao Maranhão –, armam redes e deitam no próprio caminhão, nas poucas paradas ou mesmo na cidade, quando não encontram lugar nas hospedarias de

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improviso. Vêm cantando e voltam cantando nos dois, três, quatro dias que levam de destino a destino. Durante os dias da romaria, reverenciam o Mistério – na experiência de seu saber, de seu sentir. A repetição das situações comuns, das expressões faciais, dos ritos, dos cânticos e das preces soa como a batida de um imenso xangô. Em transe, estendem a mão à imagem de Nossa Senhora das Dores trazida da Europa pelo Padre Cícero; em fila, sucedem-se, colocando sobre a cabeça de outra imagem – desta vez a do próprio Padrinho – o seu surrado chapéu; acendem de uma só vez maços inteiros de velas; depositam sua esmola em quase todas as bacias, bandejas e cofres colocados nos santuários e templos; em grupos de familiares, amigos, recém-conhecidos, comentam suas vidas, a viagem, a frequência à romaria; trazem iniciantes até com dias de nascidos; visitam o túmulo do Padrinho, dos parentes romeiros que haviam passado a residir na cidade e de outros, falecidos durante a peregrinação... Além das obrigatórias visitas às igrejas, ao túmulo, ao Horto – onde está a gigantesca imagem de Padre Cícero –, vivem, nestes dias, um clima de recreação, de festejo. Passeiam pela cidade, conversam, assistem à noite ao espetáculo musical realizado em sua homenagem e, quando podem, fazem compras. A autonomia experimentada na organização das viagens, no direito à praça, no monopólio de tantas atenções aparece aí como fator de muito peso. Vindo, pagam com o maior esforço e alegria o preço dessa experiência. Para a população local, as relações daí decorrentes se desenvolvem mais ou menos no mesmo nível. Instalados ali, acolhem com afeto os que chegam. Com o aluguel de suas casas – convertidas naqueles dias em hospedaria –, participam exiguamente do imenso volume de dinheiro deixado na cidade pelos romeiros durante essas manifestações. O movimento de compra e venda aparece extremamente ligado à motivação cultual da romaria. “Eu vou a Juazeiro a negócio – conta um homem em Jaboatão, Pernambuco, trazendo na gola um broche com o retrato do Padrinho – e, como eu, muitos. A gente aproveita a peregrinação. Tudo junto não dá confusão com a fiscalização. O que eu trago, eu vendo logo. O povo tem aquele complexo que tudo que vem de lá é bento pelo Padrinho Cícero, aí voa tudo: faca, broche, tudo...”. Em outro plano colocam-se as relações com outros participantes do mecanismo econômicofinanceiro, hoje implantado na cidade. Um fato parece inconteste: nestas terras de romaria, empresas do sul do país encontram um amplo espaço que favorece a multiplicação de seus lucros. Do grande Mercado – recentemente construído após o incêndio do antigo e inaugurado pelo presidente da República – desdobra-se um outro, por toda a cidade. Mais desorganizado, mais dinâmico, mais ligado à romaria. Brincos, facas, medalhas, revólveres, indulgências, espingardas, fumo, cédulas ao modelo do Tesouro Nacional, com cinco mil bênçãos de Padre Cícero e de São Francisco, e até “diplomas” de romeiro, assinados pelo prefeito e pelo presidente do Lions, são alguns dos artigos que abarrotam este mercado. Muitos são os folhetos com histórias de cordel e benditos, assim como estampas do Padrinho nas mais variadas montagens. Impressos que hoje, na sua quase totalidade, vêm de Fortaleza e do Sul do país diretamente para o mercado da romaria, onde os protagonistas menores lutam por um espaço, disputando uns com os outros uma clientela numerosa, mas muito solicitada. “Quem explora mais é a igreja – diz um ambulante junto ao seu tabuleiro de bugigangas. Vá ver quanto custa um quadrinho desses lá na loja do convento...” A joalheria industrializada, que hoje brilha no Mercado, nas lojas, nas barracas da feira, tirou de circulação o trabalho do artesão do ouro de Juazeiro. Tornou inviável uma forma de produção identificada como cultura local, executada por gente da terra, com matéria-prima da

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região. Também as imagens de gesso, coloridas, industrializadas, de São Francisco e do Padre Cícero, que chegam de fora aos milhares para este mesmo Mercado, competem, de forma desigual, com a produção artesanal da região. Dois fatores parecem sobressair no fortalecimento deste mecanismo: a dificuldade crescente de funcionamento de microempresas – como o eram, por exemplo, as ourivesarias locais – e a mobilização de intermediários, facilmente encontrados, pelo desemprego gritante da região, como revendedores da produção importada. No espaço permitido, muitos conseguem entrar no jogo do mercado, sem no entanto se submeterem às regras dominantes. Os editores de cordel, na impressão de seus folhetos e benditos, os artesãos do barro, do couro, de flandre, dos ex-votos, do pitoresco, os vendedores de ervas, os fabricantes e vendedores de armas e os entalhadores inventam dia a dia sua nova fórmula de sobrevivência. Destacados daí, os escultores de Juazeiro e Canindé, sem ameaçar, com sua produção artesanal, contribuem para ampliar a clientela que, reagindo aos santos de gesso, gostaria de levar uma lembrança mais tosca, mais primitiva de sua visita à cidade. Neste contexto, esses escultores existem, trabalham. Na medida de seu gosto, de sua aptidão e ainda de alguns outros fatores externos – sobretudo a resposta objetiva do mercado –, escolhem sua linha de trabalho. Surpreende a ausência de sinais de uma presença mais forte e generalizada do misticismo, que se espera encontrar, informando a produção desses artistas de terra de romaria. O número, a proximidade dos templos, o clima místico, se garantem o acesso mais fácil, mais regular ao culto, não parecem enfatizar, no entanto, nesses artistas, a postura religiosa, comum a tantos nordestinos espalhados na região. Eles são, aí, o que já eram – romeiros. A peculiaridade dos que fazem arte em terra de romaria – pelo menos em Juazeiro e Canindé – encontra-se na ausência quase total de características representativas de uma maior identificação com a religiosidade própria dessas terras. As figuras em barro cru, pintadas a tinta de água, de Cândido e Armando, em Cachoeira, estão muito próximas das de Cícera Lira, Cícera Araújo e Cassiana, na forma, matéria-prima e maneira de produzir. As barcas de Exu, de uns, e os reisados, de outros, lembram os folguedos, as cores locais da mitologia. Franciner, Francildo e Dedé – membros de tradicional família de santeiros – por certo exerceriam esse mesmo ofício, como seus parentes e outros companheiros, fora de Juazeiro e de Canindé. Zé Duarte, Nino e Noza, abrindo caminho há mais ou menos tempo, atendem ao mercado do regional, folclorizado pela demanda do primitivo, do pitoresco. Noza e Dedé, multiplicando Padre Cícero e São Francisco às centenas, parecem querer entrar no páreo da industrialização com seu instrumental rudimentar. Embora dedicando-se às esculturas dos padroeiros das cidades, sua clientela é composta não pelos romeiros, mas, em geral, por turistas, pesquisadores, gente para quem as reproduções de gesso são desprezíveis. A romaria é o grande acontecimento que a todos interessa: “Quem quiser impedir a romaria fica de fora. Meu Padrinho dizia que a romaria ia crescer cada vez mais e eu lhe digo: não há cabresto que dê jeito...” – diz um popular em Juazeiro. Assim, a romaria é um fato em ordem crescente, onde coexistem, simultaneamente, fé, recreio, faturamento, transe, culto, trabalho.

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Mestre Noza Inocêncio da Costa Nick – Mestre Noza – é considerado o escultor e gravador popular mais famoso do Ceará. Nascido em Taquaretinga (PE), no ano de 1897, mudou-se para Juazeiro do Norte com seus pais quando tinha quinze anos. Isso foi em 1912, depois de uma romaria. Foram 600km de estrada à pé – dezesseis dias de viagem. Aqui comecei trabalhando nos roçados e depois pendi para o ofício de funileiro, até que eu roubei uma moça e tive que enfrentar a confusão que deu. Pra ir melhorando minha situação, resolvi ser imaginário. Por precisão, fiz um São Sebastião que logo troquei por um carneiro. Um dia me encomendaram uma ilustração pra um folheto chamado O Homem do Maxixe. Foram minhas primeiras gravuras. Daí por diante eu escolhi. Aqui, só duas coisas dão pra viver: comércio e arte. Hoje, minha roça é o mercado. Escolhi a arte e também compro e vendo umas armas, uns relógios, umas coisas antigas. Como imaginário, Noza começou fazendo santos, até que um dia, aproveitando a ideia de um conhecido, resolveu esculpir um Padre Cícero. Fiz e levei pra ele ver. Meu Padrinho Cícero achou graça e perguntou: ‘Eu sou assim?’ Daí eu fiquei fazendo – tantos, que já perdi a conta. Só pra um negociante que tinha uma loja no mercado já fiz mais de dois mil Padre Cícero. Depois que o mercado pegou fogo, em 1974, fiquei muito prejudicado. O fogo acabou com tudo. Foi um prejuízo pra todo mundo que trabalhava lá. Uns morreram, outros se mudaram e tem outros que estão por aí, doentes, desanimados... O governo deu uma ajuda mas não adiantou muito. Noza também iniciou há muito tempo outro tipo de produção artesanal em madeira – cabos de revólver –, que hoje mantém sob sua orientação, mas totalmente entregue à habilidade de duas moças que trabalham para ele. Se a imagem do Padre Cícero e os cabos de revólver asseguram sua sobrevivência, o nome e a fama vieram de suas xilogravuras. No ano de 1963 um fato modificou sensivelmente a vida de Mestre Noza. Sérvulo Esmeraldo – um artista do Crato – lhe deu uma série de gravuras da Via-Sacra. Encomendou as matrizes naquele tema, o que Noza prontamente executou: Aqui a gente faz o que o povo manda...

Cícero, gosto também de fazer São Francisco e Santo Antônio, mas Padre Cícero sai mais ligeiro. O preço de venda é baixo mas compensa pela quantidade. Minhas ajudantes são muito boas. Elas também trabalham nos Padre Cícero. Fazem até um certo ponto e, dali pra diante, o acabamento é meu. Minhas imagens vão desde o tamanho de 15cm até 70cm. As imagens de antigamente tinham mais arte do que as de agora. O vexame é quem tem culpa disso. Às vezes o povo fica esperando que eu acabe de fazer a peça. No primeiro andar do pequeno sobrado, alcançado através de uma escada íngreme e estreita – ladeada por um corrimão feito em corrente, com chocalhos nas extremidades –, está a oficina de Noza. Em três prateleiras separadas vão sendo colocadas as esculturas, dependendo do seu estágio de acabamento. Serrote, canivetes e lixas, usados no trabalho, estão ali, ao alcance de todos. Sentado em uma cadeira de balanço, rodeado de pedaços de madeira, ele dá acabamento numa escultura do Padre Cícero. A peça simplificada, tosca, com cortes incisivos na madeira natural, mostra a tradicional figura, de chapéu e cajado na mão. A demanda parece deixar poucas alternativas de criação ao escultor. A madeira é imburana, do pé da serra de São Pedro. Compro e recebo aqui na minha porta. Trabalho é só o que me interessa. Fora disso, mais nada. Acho tudo bom. Não falo nem em religião, nem em política. Como quem viaja de avião: vejo tudo azul, não discuto ciência. Como é frequente em Juazeiro, Noza é afilhado do Padre Cícero, a figura mística da terra, ainda hoje presença marcante e poderosa. Ele só nos fez benefícios, mas sofreu muita injustiça, sobretudo do governo e dos padres. Não queriam se convencer dos milagres que ele já fazia em vida. A hóstia escorria sangue quando a beata comungava. Padrinho Cícero mostrou a Padre Monteiro, que confirmou e disse que sustentava: ‘Se eu negar, que cegue!’ Mais tarde, quando apertaram ele, negou – negou e cegou. Milagres como esse houve muitos, por mais que quisessem negar.

Juazeiro (CE), 1975

Muito satisfeito com o trabalho, o artista do Crato, indo para a França em 1965, levou-o consigo. Lá, conseguiu produzir uma edição especial prefaciada por ele, Sérvulo, com apenas vinte e dois exemplares – todos eles impressos à mão. Em Paris, a receptividade levou a uma nova edição de mil exemplares, em pouco tempo esgotada. Em 1973, a Via-Sacra de Mestre Noza – edição brasileira – era citada pela revista Visão e situada entre “presentes raros e caros”. De lá pra cá as encomendas aumentaram muito, tanto de matriz grande (40cm x 20cm) como de capa pra folheto. Já fiz também rótulo de aguardente. Mas hoje quase só faço ViaSacra, quer dizer, como gravador. Nas imagens, fora os Padre

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EM TERRA DE ROMARIA Mestre Noza

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Franciner Nasci na Paraíba. De lá, com apenas um ano, fui pra Fortaleza. Depois passei quatro anos em Salvador e dois em São Luís. Já viajei muito. Faz seis anos que vim pro Juazeiro, visitar meu pai. Filho e neto de escultores – seu avô fazia, e seu pai faz até hoje, figuras em madeira –, desde os doze anos de idade Franciner Macário Dinis trabalha na escultura e na pintura. Para ele, foi aos dezesseis anos que a sua arte começou a ter um rumo mais profissional, com a contribuição de Mestre Bibiano, de Campina Grande (PB), e do Coronel Esmeraldo, de Juazeiro (BA). Hoje, com trinta e oito anos – casado e pai de cinco filhas –, Franciner mantém, paralelamente à atividade artística, uma outra – o garimpo. Gosto muito. Sempre garimpei: no Rio Grande do Norte, na Bahia, aqui no Ceará – na região de Quixeramobim. Pedras preciosas e pedra industrial. Eu me dou muito bem com a garimpagem, podia viver disso, mas gosto muito de escultura. Se eu pudesse não vendia meus trabalhos, mas, infelizmente, a gente tem que sobreviver. Garimpo é um verme que a gente tem. O Ceará é mais rico em minério que a Bahia e Minas. Aqui o pessoal não conhece, não dá valor, por isso vão vender lá em Governador Valadares. Tem turmalina, águas-marinhas, colombita, rubilita, ametista – a do Ceará é a melhor do Brasil. Como escultor em madeira, Franciner faz figuras de santos, tipos populares, bem como talhas. Seus trabalhos fizeram parte de duas exposições, em Juazeiro, em 1973 e 1974. Meu estilo é único, não gosto de cópia. Eu crio, mesmo quando é cópia. Meu estilo é mais o barroco. Hoje pouca gente faz isso, o estilo agora é mais popular. Faço qualquer tipo – santos, pessoas... Por sinal, gosto mais de outros motivos do que de santos – o lavrador, o lenheiro, o velho sofrido, o mendigo...

e são explorados. Quando eles chegam, saem à procura de casa e a gente daqui aluga por um preço que a gente sente que é exploração. Quando é época de romaria aumenta tudo, a partir da carne, a própria água, mais até do que em Canindé. Eles (os romeiros) trabalham o ano todo, passam até dificuldade, pra vir ao Juazeiro fazer a visita e deixar sua colaboração. Agora, aqui em Juazeiro, tem mais movimento, mais animação, tem a Cooperativa... Mas para o artesão está pior. O artista deixa as peças na Cooperativa que, como tem um lucro menor, sustenta um preço mais baixo. Aí as lojas não querem comprar mais nada da gente. Depois desse trabalho que estou fazendo em cimento, vou voltar pra madeira, que é o meu certo mesmo. Esses outros trabalhos eu faço porque chega encomenda. Então eu largo a madeira pra atender; mas estou pensando não continuar na madeira por muito tempo. Estou pensando explorar a pedra, trabalhar a pedra porque quase todo mundo está trabalhando na madeira há muito tempo. Estive pensando em esculpir no mármore ou em outra pedra, porque a madeira não vai chegar muito longe, vai ter uma queda grande – é mais fácil encontrar quem faça. O artista tem que se especializar numa coisa mais difícil de fazer. Além das esculturas da Via-Sacra, recém-concluídas, há outras esculturas de grande porte de Franciner em Fortaleza e em Recife – todas revelando a força investida por ele em seus trabalhos e a sua grande habilidade artesanal.

Juazeiro (CE), 1977

As peças de Franciner são feitas preferencialmente de cedro do Pará ou de timbaúba, madeira da região, mas ele usa também jaqueira e violeta, compradas em serraria. Vende principalmente para Fortaleza, Salvador, Brasília, Rio – por encomenda –, tendo como peças mais procuradas a Ceia Larga, talha de 1,20m x 0,60m e esculturas de Cristo. Recentemente, Franciner passou oito meses dedicado ao seu último trabalho: a Via-Sacra, para a subida do Horto, em Juazeiro, onde fica a grande imagem do Padre Cícero. São cinquenta e seis esculturas, cada uma delas com 1,70m de altura, em cimento, encomendadas pelo governo. Terminado o serviço – por causa dele Franciner abandonou todas as demais encomendas –, veio outra solicitação do mesmo porte: fazer um monumento em homenagem ao romeiro, para ser colocado na entrada da cidade. Tenho respeito pelo Padre Cícero, mas não sou fanático. Quem tem devoção são os romeiros de Alagoas. Acho que 70% dos romeiros são de lá. Os romeiros sofrem muito

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Nino João Cosmo Félix, conhecido como Nino, nasceu em 1920 em Juazeiro (CE), onde vive até hoje. Antes de iniciar-se nas esculturas, que caracterizam sua produção artística atual, fazia uns jipezinhos de criança, que vendia no mercado de Juazeiro. Após o incêndio desse estabelecimento, começou a fazer figuras de toros de imburana. Perpétua, sua mulher, é quem conta: Ele começou com uns dezessetezinhos, ou com rabo ou com capacete na cabeça (macaco de braços e pernas móveis e rabo de corda). Essa ideia vem daqueles tempos em que dizem que os bichos falavam. Gente com cabeça de bicho, bicho com jeito de gente. Esta inspiração relaciona-se com a história do cangaço, quando os “volantes” da polícia, que perseguiam Lampião e seu bando, eram chamados de macacos. Primeiro eu fazia as peças pequenas e saía vendendo pela rua, mas o dinheiro não dava. Agora, com a Cooperativa, o pessoal de lá comprando alguma coisa, aumentei o tamanho das peças. Se vender, bem; se não vender, fica lá de demonstração. Aqui em Juazeiro é difícil sair essas peças, mas pra São Paulo já tem ido umas esculturas grandes, tanto de gente como de bicho. Sua mulher, animada com um certo crescimento mais recente das vendas, resolveu também aderir ao ofício. Suas peças são, em geral, réplicas femininas das figuras do marido – bonecas que movem os braços e as pernas. As figuras de Nino, representando dezessetes, mulheres, pássaros, jacarés, em torno de 1m – na madeira quase crua, pintadas apenas com pinceladas

soltas de cores escuras superpostas –, impressionam pela força que transmitem em suas formas despojadas e singelas. Antes eu só pintava com tinta d’água. Agora estou comprando essas latas de tinta a óleo que custam muito mais. É um material muito caro, e ainda tem pincel, prego... Para fazer as peças eu uso facão, machado, martelo, furador, escopo, formão, grosa. Nino parece realmente mais estimulado com a recente abertura de um movo mercado para suas peças. A direção da Cooperativa – animada pelo esforço de jovens gravadores há muito preocupados com a arte popular da terra – enfrenta várias dificuldades. Sem capital de giro, tendo como maioria de associados pessoas extremamente pobres e com possibilidades muito limitadas de comercialização, a Cooperativa tenta firmar-se e sobreviver. Recebe e paga as peças mais vendáveis e fica com as de escoamento mais difícil em consignação. As peças menores de Nino são adquiridas, permanecendo as maiores em exposição, à espera do cliente, que algumas vezes aparece na pessoa de um turista de São Paulo ou de um ou outro apreciador desse tipo de arte popular. Em sua pequena casa, entre os poucos móveis, amontoam-se troncos de imburana, comprados ou conseguidos por ele mesmo nas matas. Uma das paredes está quase totalmente coberta pelos quadros com estampas de santos, rodeados de flores de papel. Aí tem santo de mais três amigos meus, que foram pra São Paulo. Eles deixaram os santos aqui com a gente, pra todo mês a gente fazer a renovação. Não deixaram dinheiro, mas Deus é um só, vai ajudando. A gente acende as velas, se junta e reza os benditos. O padre daqui mesmo diz: ‘Deixem o dia da romaria pra os romeiros.’ Nesse dia tem muito empurrão, muito acocho, vem muita gente. Os romeiros dão muito valor à palavra do Senhor, aqui. E eles vêm prevenidos, deixam muitos milhões em Juazeiro. Juazeiro (CE), 1977

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Cícera Araújo A moradia de Cícera Maria de Araújo, quase um corredor de aproximadamente 2m x 4m, demonstra a extrema pobreza em que vive. Neste espaço, junto com seus poucos móveis, amontoam-se, sobre o chão de terra batida, latas, lenha, barro. Aí, além de Cícera, mora Maria das Dores, a filha caçula de quatorze anos, que participa efetivamente da produção artística da mãe.

vou e cato com uma vassoura os feijõezinhos lá na feira de Barbalho. Eu aqui me dou bem com todo mundo, mas na hora do aperto cada um que se vire mais no seu canto. Cada um está muito aperreado; então cada um que se faça por si, não é? Os trabalhos por aqui eu nem sei direito: tem gente que planta feijão, faz banha, carrega tijolo, faz corda, faz cadeira de balanço... Tem uma falta de emprego muito grande. Tudo tem de fazer muita força.

O que vai acabar minha paciência é essa casa estreita. Mas se achar bom, é aqui; se não achar bom, é aqui também, porque, se eu vender essa casa, não compro outra, que não dá.

As pequenas esculturas de Cícera participaram do Primeiro Salão de Outubro, realizado no Crato, em 1974; e da grande exposição de abertura do Centro de Convenções do Ceará, realizada em Fortaleza, com trabalhos e fotografias da artista.

Sobre a mesinha, em um oratório de madeira e vidro, Cícera guarda vários santos de gesso, um Padre Cícero de madeira e alguns outros de barro, feitos por ela. Foi o Padinho Cícero que me batizou, mas não me lembro dele. Eu tenho devoção demais por ele. Eu ouvia falar dele mas não conheci ele, eu era muito pequena. Hoje já tenho sessenta anos. Ele mandava o povo rezar e até hoje o povo reza. As romarias estão aumentando demais, mas é muito difícil eu ir. É o mês de setembro todinho de festa. Eu nunca vou. Sou uma pessoa sem alegria.

Alguns meses depois de realizada a presente entrevista, foi feito um novo contato. Cícera havia casado novamente, encontrando-se em situação menos precária do que a constatada anteriormente. As fotos aqui reunidas datam desse segundo contato. Juazeiro (CE), 1975/76

Um agrupamento numeroso de peças coloridas, todas no tamanho máximo de 20cm, reproduzem personagens de folguedos populares característicos da região. Cores vivas sobre o branco e algumas penas enfeitam as singelas figuras do Reisado, da Banda de Cabaçal e de algumas outras mais originais, como sapos e outros bichos mostrando outras figuras dentro do seu corpo. Todas no barro cru, o que as torna muito frágeis. O barro que eu faço essas pecinhas vou buscar numa distância de duas léguas. É o mesmo de fazer telha. Bato, amasso, molho, bato de novo pra poder trabalhar. Aí, depois de seco, pinto com essas tintas d’água mesmo. Eu não queimo não. Quem disse que eu pude fazer um forno? Faço isso há muito tempo. Parece que comecei mais ou menos com vinte e cinco anos. Faço com muito sacrifício, e se quebra muito. Faço mais quando aparece uma encomenda. Vem gente de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Bahia – e às vezes também vem um pessoal do Crato. Mas essas encomendas não dão pra melhorar nada. Todo dinheiro fica na comida e não dá pra nada. Tem vez que não aparece ninguém pra fazer uma encomenda; tem vez que chega gente aqui de atacado. Sobre a mesa, dois reisados – cada um deles com vinte figuras –, representando o tradicional espetáculo popular, aguardam a vinda do cliente que, com 50% adiantado, já garantiu a posse. Eu só vendo aqui em casa, pra feira eu não levo não. Às vezes eu faço duas dúzias de uns bichinhos pequenos, uns galinhos – a feira é tão boa que eu volto com tudo. Por isso eu gosto mais de encomenda. Faço bonito é um noivado. Tenho um retrato dos noivos que eu faço. Faço santo também: Senhor dos Passos, Jesus, Maria e José, dentro de um oratório... Faço tudo, assim encomendem. Tudo do meu juízo, de minha cabeça. Quando aparece uma encomenda assim, eu compro um metro de pano, um par de chinelo, uma coisinha pra comer... Às vezes faço também um chapeuzinho de palha, mas não rende nada. O que me sustenta mesmo é o feijão que eu varro na feira. Quando acaba tudo, eu

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Cícera Lira Cícera Cândido de Lira tem trinta e oito anos de idade. Nascida e criada em Juazeiro do Norte, aprendeu a trabalhar no barro, desde pequena, com um tio. Era tão pequena que nem à feira eu ia. Nesse tempo eu só fazia panelinhas, dessas de menino brincar. Meu pai, que não via futuro naquilo, me tirou desse serviço e me levava pra roça com ele. Aos dezenove anos, depois de casada, voltou às miniaturas de panelas – hoje feitas pelos filhos –, aos cofres em forma de bicho, à louça comum de feira. Por volta de 1966, comecei fazendo leiteira, a vaca solteira, essas figuras de reisado, Maria Bonita e Lampião, Banda de Cabaçal... Faz pouco tempo, pelo carnaval, um rapaz de Juazeiro me deu um desenho de uma máscara e fez uma encomenda. Eu fiz e deu certo. Essas máscaras revelam um encontro harmonioso entre a solicitação do mercado e a criatividade da artista. Recentemente as peças de Cícera participaram da Primeira Feira de Artesanato do Nordeste, realizada em Fortaleza. Tudo isso fui fazendo e o pessoal gostando! De dez anos pra cá, comecei a pintar as louças e as figuras. Gosto muito de fazer isso. O trabalho no barro trouxe muita melhoria pra família. Aqui em casa somos eu, Arlindo – meu marido –, a mãe dele e os sete filhos. Ah, se tivesse tudo vivo! Tive quatorze. Já faz uns sete anos que a gente está comendo mais desaperreado. No princípio da vida de casado, Arlindo sofreu muito, trabalhando aqui e ali pra sustentar a família, alugado, se mortificando, esperando amanhecer pra sair, procurando um trabalho. Hoje estou muito bem satisfeita, graças a Deus. Pelo menos meu marido vive dentro de casa e, daqui desse barrinho, a gente come, se veste, se calça. Estou ajeitando os meninos pra ver se eles ficam nesse trabalho. Outros empregos, por aqui, quase não existem – o que tem é muito fraco. No seu trabalho, Cícera não encontra maiores problemas. A sogra pisa o barro – um massapê escuro, adquirido nos arredores, que se torna branco depois da queima. Depois de pisado, o barro é peneirado, molhado e amassado, sem nenhuma outra mistura, passando-se então à modelagem. Os meninos fazem as louças; ela e o marido, as figuras, ajudados pelo filho mais velho e por uma moça que mora com eles.

pancadas diretas de vento, a louça vai aos poucos cozinhando. Sua cerâmica, mesmo queimada, é de grande fragilidade – talvez devido à qualidade do barro ou por algum problema no processo de cozimento. As peças, com traços e flores em relevo, compõem um painel colorido com figuras da temática regional. Em branco, amarelo e azul, a vaca leiteira tem um bezerro encostado às suas pernas; no reisado, em duas cores, dez figuras dividem-se entre tocadores de pífano e de zabumba; as máscaras, recriadas, distanciam-se cada vez mais do modelo um dia apresentado, identificando-se com as demais peças de Cícera na coloração e nos desenhos superpostos. Levando em conta o custo do material e o trabalho despendido na feitura de cada peça, Cícera calcula o preço. A venda é, de modo geral, realizada em sua casa. O atendimento às encomendas, aos eventuais compradores, acontece na pequena sala onde, no canto do chão, as peças se encontram apinhadas. As paredes estão repletas de estampas de santos e de fotografias de familiares, emolduradas, rodeadas de flores de papel rosa e prata. De Padrinho Cícero tenho logo duas estátuas. Faço tenção de ter fé nele. Não sei se é de coração. Outras fontes de escoamento da produção de Cícera são a feira do Crato, todas as segundas-feiras, o Mercado de Juazeiro e outros revendedores particulares. Com essas vendas ela consegue dar vazão ao que produz. Esse trabalho está dando bem. Tendo ele, nós estamos ricos.

Juazeiro (CE), 1975

O acabamento sempre quem faz sou eu mesma, com as mãos e uns pauzinhos pra alisar e fazer os olhos. A moça que ajuda, a gente paga com a roupinha e o alimento. A anilina a gente compra no comércio de Juazeiro e prepara com cola fervendo. A lenha pro forno também é comprada e está cara que é uma coisa. Precisa muita atenção pra queimar as peças. Primeiro as peças têm que entrar secas de todo, no forno, sem levar nem sol nem muito vento. Dentro do forno a gente cobre tudo com cacos de panelas quebradas e vai botando fogo de longe. Quando a quentura vai chegando, a gente vai também chegando a lenha mais pra perto até botar os paus dentro do forno. Aí, sem levar

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EM TERRA DE ROMARIA Cícera Lira

EM TERRA DE ROMARIA Cícera Lira

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Maria Cassiana e Galdino Maria Cassiana dos Santos e Francisco Galdino de Oliveira moram em Tiradentes, bairro de Juazeiro (CE). Nasci aqui mesmo, em Juazeiro, na terra do Padim Cícero, por volta de 1952. Penso que estou pegando os vinte e três anos. Meu pai vivia no roçado, minha mãe fazia cavalinhos e panelinhas de barro. Faz uns doze anos que comecei a fazer essas coisas: as figuras do reisado, a Banda de Cabaçal e bichinhos de barro. Faço também umas máscaras, que um cliente pediu um dia – diz Cassiana. Galdino tem cinquenta e quatro anos e passou a maior parte de sua vida trabalhando na roça. De uns tempos pra cá estou trabalhando no barro. Comecei copiando umas figuras difíceis que um rapaz – dono de uma loja de artesanato – me pediu pra fazer. Guardo, com o maior zelo, minha primeira escultura de barro. Tentei, deu certo e, agora, não me separo dessa peça de jeito nenhum. Dessa ideia daí vou fazendo outras. Mas Cassiana é que é a mestra, sabe mais do que eu. Atrás da casa há um pequeno forno. E foi depois que Galdino o construiu que os dois começaram a fazer peças maiores. O barro é comprado perto, em Fazenda Nova. Cassiana comenta a experiência de ter participado de um curso, promovido recentemente pelo Ministério do Trabalho. Ajudei Cícera Lira numas aulas de cerâmica. No fim, ganhei quase nada por quarenta e cinco dias de aula. Pra mim não mudou nada. Saber, eu já sabia, tanto que estava dando aula, e as vendas ficaram na mesma. A produção de Cassiana tem muito em comum com os trabalhos de Cícera Lira e Cícera

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EM TERRA DE ROMARIA Maria Cassiana e Galdino

Araújo, principalmente com os da primeira, sua vizinha. A mesma matéria-prima, pintura a tinta de água e temas não uniformizam, contudo, seus trabalhos. As máscaras, sobretudo, são recriadas por Cassiana com maior singularidade. Produzidas inicialmente por Cícera Lira, e até hoje executadas por ambas, têm suas feições elaboradas em desenhos e recortes variados, em placa de cerâmica de fina espessura. Tudo em colorido vivo, alegre. Algumas peças, como as figuras de reisado e da Banda de Cabaçal, têm boa procura e estão em exposição, à venda, na Cocada – Cooperativa de Artesanato. Além disso, apenas uma ou outra encomenda esporádica e o estímulo de alguns particulares garantem alguma renda, se bem que insuficiente. A situação de vida da família é bastante precária, com quatro crianças para sustentar.

Hoje em dia – diz Galdino –, do jeito que as coisas estão, o dinheiro que se ganha não dá pra gente viver com seis pessoas em casa. Agora mesmo, eu parado, e a conta, o fiado no armazém, já vai alta nesse mês. O preço das peças é muito baixo. Calculando tudo, não dá. Outro dia fizemos quatrocentas peças e passamos oito dias só para pintação. Aqui na cidade, a melhoria é pouca. A romaria está aumentando cada vez mais. Então, sobre a melhoria pra igreja, pra romaria, esses mistérios eu estou entendendo. Agora, pra nós, até aqui eu não posso dizer porque não entendo. Quando eu entender o regimento, eu digo.

Juazeiro (CE), 1975

EM TERRA DE ROMARIA Maria Cassiana e Galdino

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Zé Duarte A aparência alegre, vigorosa, sugere uns sessenta anos. Saboreando o desacerto, José Duarte de Oliveira diz que está entrando nos noventa: ‘Mas tem atividade de menino de doze anos’ – comenta, rindo, Ana, a mulher com quem ele casou há três meses. Nasci em Cachoeira de Minas, município de Princesa, na Paraíba, há muito tempo. Lá é um lugar muito rico, tem um mineral muito grande. Naquele tempo, Dr. Morais veio pra ver se encontrava platina. Não encontrou porque não cavou bem, mas achou prata, ouro, cobre, zinco e esse material de fazer esse lápis, grafite. Isso ainda tem lá e mais outras coisas. Então os ingleses vieram trabalhar: Eugênio, Conde Adolfo, Conde Fernando... Conde Adolfo morreu aqui em Juazeiro. Esses condes, aliás, foram os derradeiros. Eles exploraram essas veias muito tempo. Lá tinha ferro, aço... Lá Dr. Morais botou uma máquina e encontrou também ouro. Nessas minas tinha veio tão fundo, tão pesado, que só cortava de machado. Só a Companhia podia explorar. Eles não davam muito valor ao ouro, só queriam a platina. Isso era naquele tempo da guerra com a Alemanha. Em 1912, peguei fazendo romaria aqui pra Juazeiro – uma, duas por ano. Quando foi se formando uma questão muito grande na Paraíba – coisas do tempo de Lampião –, pra não ofender ninguém nem virar bandido, vim de vez. Minhas terras ficaram por lá. Me mandei e nunca mais tive notícia de nada. Na história do artista José Duarte tem grande peso a vitalidade dos seus noventa anos, iluminando sua memória de testemunha do roteiro de exploração e luta do Nordeste. O escultor conheceu os condes dos minérios e também Lampião. Conheci Lampião e outros cabras: Elivino, Antônio Ferreira, Sabino, Dr. Marcolino, que protegia Lampião. Acontecia muita coisa. Lembro da morte de Dr. Elias; de um caso de nove mortes lá pro lado de Triunfo; de um pobre coitado que foi morto e só tinha um cruzado no bolso. Uma vez eu troquei um rifle com Lampião: o delegado descobriu que o rifle era de José Clementino, que tinha aparecido morto. Então eu me compliquei um pouco com essa descoberta. Tinha o sargento Clementino Quelé, Antônio Moriço, Mané Benício, tudo perseguindo Lampião. Nesse tempo, eu era subdelegado de Cachoeira das Neves. No meu entender, Lampião era um homem até bom. Não tão bom como Antônio Silvino, porque esse sim, já era um criminoso decente: não ofendia a ninguém. Ele pedia: se dessem, muito bem; se não dessem – ou se soltassem uma piada com ele, ou então algum desaforo –, aí então é que ele atacava. E os cabras de Antônio Silvino tinham que ser na obediência dele, o que não acontecia com Lampião, que tinha até medo dos cabras dele, que faziam o que bem queriam. Com a vinda para Juazeiro, em 1925, foi na agricultura que Zé Duarte pretendeu continuar a trabalhar. Estava sempre plantando um roçado aqui por perto, no terreno dos outros. Se plantava arroz, pagava uma cota por tarefa. Sendo milho,

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EM TERRA DE ROMARIA Zé Duarte

era a mesma coisa. Eu não posso ficar parado: se eu não botar uma rocinha todo ano, fico doente só de pensar. Não acho bom vadiar. Trabalhando, a gente está sempre ganhando alguma coisa – mais vale cuspir que engolir. Tenho uma rocinha pra acolá. Gosto muito da lavoura. Nunca fui à escola. Me criei correndo atrás de cabra, vaca, ovelha. Já fiz muita coisa: já fui ambulante de troçado e de vassoura, vendedor de ouro, de mineral. E hoje estou aqui trabalhando em apito de nambu, casa de farinha, Lampião, Maria Bonita, outras figuras, rifles imitando os antigos, etc... – nessas peças de madeira. O apito, do mesmo jeito das outras peças, é feito de imburana. Fazer figura que enfeita o apito todo mundo faz. Agora, a garganta do apito, isso é que é difícil. Tem que fazer o som igual do nambu, bem bonito. Meu filho João também sabe fazer isso muito bem. Mas fazer apito é coisa de muita obscuridade. Juazeiro é grande mas não tem quem faça – só eu e meu filho. Andaram trazendo muitos de Caruaru, mas não é a mesma coisa. As figuras das pessoas eu faço assim: olho, vejo, faço. Não tem esse negócio de jeito, não. As primeiras coisas não ficaram muito boas, mas fui melhorando e, se viver mais, ainda melhoro mais. Um cangaceiro e uma casa de farinha ilustram o trabalho de Zé Duarte – uma escultura tosca, onde é visível o corte do canivete afiado. Linhas simplificadas definem o personagem escolhido. Ele não pinta nem enverniza suas peças. Lampião e Maria Bonita, no tamanho de 20cm, feitos quase que em série, são vendidos, como o restante de sua produção, em casa. A madeira é comprada por aqui mesmo e está ficando cada vez mais cara e mais difícil. Antes do mercado de Juazeiro pegar fogo, em 1974, eu tinha uns compradores certos por lá. Depois as coisas foram relaxando, e aí queriam comprar tudo muito barato. O povo de fora já estava conhecendo minha mercadoria, mas chegava lá e ninguém ensinava, só diziam: ‘Ele mora lá no Horto, lá no socavão dos infernos, ninguém chega lá, só de avião.’ Por isso eu não trabalho pra ninguém, não sou sujeito a ninguém. Quando não der mais aqui, pego minhas coisas e vou pra Paraíba, plantar algodão. O preço dessas peças depende de muita coisa. Se a pessoa é aperreada, vendo até com prejuízo, ficam até me devendo um pedaço. Se a escultura lhe dá prazer e algum dinheiro, o que parece contribuir mais efetivamente para o sustento da família é a oficina que Zé Duarte mantém no terreno de sua casa. Na moradia, faço as esculturas; na oficina, com a serra e o torno elétricos, produzo, com madeira dura, uma quantidade de peças torneadas pra vender em São Paulo. Mas isso aí quem faz mesmo são os filhos e os netos. Tem um magote de menino por aí que aprendeu tudo aqui. Agora, está cada um fazendo seu movimento pra lá. Cinzeiros de vários tipos, amontoados, ilustram bem esse tipo de demanda. Com a autoridade de seus cinquenta anos de moradia em Juazeiro, Zé Duarte tece considerações sobre a cidade, Padre Cícero e as romarias. Essa cidade já foi muito atrasada. Por aí tudo era mato, roça de mandioca, engenho. Hoje é a rodovia, o Romeirão, que é o estádio de futebol, a igreja, o Colégio dos Franciscanos. O povo sofre muito. Mas é como toda cidade grande, que tem o pobrezinho passando necessidade e só quem não sabe disso são os ricos. Mas quem quer viver consegue. Se a pobreza for muita, tira-se um feixe de lenha no mato e vende-se. Padinho Cícero ajudava muita gente nessa terra. Era a pessoa mais rica e mais pobre de Juazeiro: porque ele tinha muito, mas também dava muito. Deu o terreno para os padres barbudos construírem a igreja e o colégio e ajudava todo mundo que precisasse. Um dia recebeu um pacote de dinheiro de um viajante. Nisso chegou um rapaz pedindo a ele

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Dedé ajuda. Aí ele passou pra o rapaz o pacote, do mesmo jeito que tinha recebido, sem nem abrir. Então o viajante disse: ‘Padre Cícero, o senhor sabe quanto deu àquele rapaz?’ Ele respondeu: ‘Sei porque vi quando você contou lá na sua terra, em Alagoas. Eram trinta moedas esterlinas de ouro.’ Ouvindo isso, a Beata, filha adotiva de Padinho Cícero, quis correr atrás do rapaz, mas ele não deixou. Sabia que, se não tivesse dado, o rapaz se enforcava – era gente muito rica que devia muito. Uma vez Padinho Cícero esteve muito doente e, quando melhorou, ele disse: ‘Eu não podia vir mais pra essa terra, mas vi o povo como filho sem pai e pedi à mãe de Deus pra passar uns dez anos mais com vocês, contanto que vocês rezem muito.’ Pois quando completou dez anos, ele foi embora para sempre e eu pensava que a gente ia e ele ficava. Acredite que, no dia em que ele morreu, morreu também muita gente pisada. Foi em 1934. Os aviões eram tantos que faziam nuvem. Ninguém sabe quantos milhões de pessoas vieram. Meu Padinho Ciço dizia que um tostão além botava o camarada a perder. Eu estou na regra dele. O que ele pediu pr’eu fazer foi rezar todo dia. Rezo todo dia e não preciso de um tostão de qualidade nenhuma. Deus é pai de todos nós, ele que tome as providências. O Padinho Cícero ensinou todo mundo aqui a ser honesto, que o alheio não dá de jeito nenhum. A autoridade do Padinho não era de padrasto não, era de pai. Aquelas pessoas mais ruins é que ele abraçava. Ele conhecia as pessoas por dentro e por fora. Quando confessava as pessoas não dizia como os outros padres: ‘Acuse seus pecados.’ Dizia: ‘Você não faça mais isso, mais aquilo...’ A devoção está aumentando cada vez mais. Ele mesmo disse: ‘Essa romaria aqui do Juazeiro não tem força do mundo que empate.’ Dizia também: ‘Quem chegar aqui no Juazeiro, em vez de trazer uma carga de dinheiro, traga um carga de paciência que aqui é terra de sofrimento. Quem ficar aqui dez anos é um menino de dez anos. Os pecados que deixou pra trás, acabaram.’ Esse negócio de suspender ele da Ordem é porque ele não trabalhava pra Santa Sé. Todo o dinheiro que davam a ele, ele dava de esmola ao povo. Aí o senhor bispo via que ele não trabalhava pra Santa Sé e suspendia ele da Ordem. Mas aquilo era a marca de Deus mesmo. Padinho Cícero dizia também: ‘Vocês vão ter três inimigos pra enfrentar: fome, peste e guerra. Mas quem rezar o rosário da Santíssima Virgem no fim vai triunfar.’ Há muitos anos, bem uns trinta, ajudei a fundar uma cooperativa de dinheiro que funcionava ligada com um banco. Muitas pessoas importantes – o prefeito e muitos doutores – é que organizaram ela. Quando a necessidade apertava, todo mundo podia pedir. Aqui tem também uma Fundação Padre Cícero que tem médico, dentista, só não faz dar o remédio. Tem catacumba bem grande para os sócios e dá funeral de graça. Também tem escola e ginásio. O pessoal vai pra lá nos domingos e dá sua cooperação aos pobres mais pobres que eles.

Juazeiro (CE), 1975/77

Eu comecei com esse serviço com quatorze anos. Meu pai já fazia. Depois ele passou a farmacêutico e eu fiquei nisso sozinho. Em criancinha eu trabalhava escondido. Meu pai não queria não. Eu pegava um pedacinho de pau, quando ele me chamava eu escondia os pedacinhos de pau, a faquinha e chegava lá onde ele estava. ‘Que é que o senhor estava fazendo?’ – era o jeito que ele perguntava. Então eu dizia: ‘Eu estava por aí caçando com baleadeira.’ Um dia fiz uma escultura bem parecida e cheguei pra junto dele, meio desconfiado: ‘ Olha, pai, o que estava fazendo.’ Ele chamou logo minha mãe: ‘Maria, vem ver o que esse camarada quer fazer!’ Daí por diante, perdi a cerimônia e comecei a trabalhar junto com ele. Ele morreu e eu fiquei. Toda escultura de santo que existe no Céu ele fazia, como eu faço também. Só que a gente não faz diretamente porque o pessoal não pede. A gente vai pelo que o pessoal pede. O que mais pedem é o São Francisco. Se nesse instante eu tivesse duzentos São Francisco eu levava tudo pra Fortaleza. Tem uma loja lá que me compra muito. Em uma cesta, alguns São Francisco de Chagas, entre 15 e 20cm de tamanho, mostram o trabalho de José Soares Dinis – Dedé. É uma produção paciente, repetindo em série infindável a escultura magra, de feições afiladas, mãos feridas cruzadas sobre o peito – todas na imburana, sem pintura. Eu faço muito santo. O São Francisco de Chagas faço de 1,70m até 5cm. Mas, com tudo isso que faço, o que a gente ganha não dá pras despesas porque tudo aumentou. Toda mercadoria aumentou e o dinheiro ficou aquele mesmo. E eu aqui sou sozinho. São vinte e seis filhos e eu não tenho um só comigo. Agora o pessoal quer me botar pra Fortaleza. Às vezes tenho vontade, de repente tenho uma pena. Já está com vinte e quatro anos que moro aqui, em Canindé. Sou do lugar que o pessoal diz que não gosta não. Sou da Paraíba. Dizem que os paraibanos são uns metidos a doidos. Nasci em São José das Pombas, em 1911. Tenho sessenta e quatro anos, já vivi o que tinha de viver. Há cinquenta anos que eu faço rosto de santo. Dizem que sou santeiro de imburana. Não é possível que eu não encontre o caminho do Céu. Gosto mais de fazer São Francisco. Quando vou fazer já estou achando graça. Hoje, tudo quanto faço é pras lojas e pra o convento. No convento tem um museu. As peças, quase todas, são de madeira. Lá elas têm muito valor. De vez em quando chegam as encomendas. Eles pedem mais Cristo. O pessoal que vem de fora compra mais. Esse pessoal, que vem por aqui, nunca vem pra não levar uma coisa. Aqui em Canindé, a meninada toda gosta da minha casa, mas não sabe fazer nada. É quem nasce pr’aquilo mesmo. Meus filhos passam horas e horas olhando e não sabem fazer nada. Quem nasceu pr’aquilo é antigo. Tenho dois sobrinhos que fazem santo também: Francildo e Bibi – esse está no Rio, vieram buscá-lo aqui. É um grande artista! No convento, tudo que é de cimento foi ele que fez. Na entrada de minha casa tem um São Francisco dele. Ao ser solicitado a escrever seu nome em uma peça recém-esculpida, Dedé declara: Não faço muita questão de assinar. Fica melhor mesmo assinado, pra todo mundo saber quem fez. Mas o tempo que eu estou escrevendo ‘Dedé’ é o tempo que estou fazendo a venta de outro santo. Por isso é que às vezes não assino. Vou dizer uma coisa: a gente não tem qualidade. Tem dias que amanheço meio atravessado, com desgosto da vida, porque trabalho demais e sou pobre. Então faço dois, três santos no dia. Quando estou pensando que estou rico, só faço um.

Canindé (CE), 1975

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EM TERRA DE ROMARIA Zé Duarte

EM TERRA DE ROMARIA Dedé

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Francildo Em Quixeramobim (CE), nasceu Francildo Soares Dinis, de uma família que sempre trabalhou em madeira. Marceneiros, entalhadores, escultores, imaginários – fazedores de imagens –, gente que vivia somente de sua arte. Tinha uns que exerciam duas, três profissões dessas, de uma vez. Meu pai, Euclides, sempre se dedicou à escultura. Agora mesmo ele está no Crato, trabalhando lá. E já andei também em Petrolina, fazendo umas carrancas. Franciner, meu irmão, está em Juazeiro do Padre Cícero, fazendo escultura pra um comerciante de lá. Bibi, seu primo – considerado por Francildo o artista mais conhecido da família –, tem trabalhos em vários museus do Ceará e na própria cidade de Canindé, onde, além de esculturas espalhadas na praça e nas lojas, de sua autoria, existe ainda uma Via-Sacra, quase em tamanho natural, na Avenida do Monte, que dá acesso à igreja de Cristo Rei. Antes de vir pra Canindé, passei um bocado de tempo em Fortaleza. Do ano de 1959, quando nos mudamos de Quixeramobim, até 1970, passei trabalhando na Cooperativa de Consumo dos Bancários. Quando foi em 1971 larguei esse serviço e, com mais dois amigos, formamos o trio vocal que foi minha ocupação durante quatro anos. Atuamos muito nos programas de televisão, num show chamado ‘Porque hoje é sábado.’ Mas a praça de Fortaleza é muito fraca pra artista desse tipo. Ainda fomos para o Recife, gravamos um disco, depois desistimos. Foi quando veio a ideia de me mudar pra Canindé, há um ano. A afluência constante de um grande número de romeiros, o interesse pela devoção a São Francisco de Chagas, a valorização dada pelos frades às atividades artísticas em geral – e de modo particular àquelas inspiradas no culto religioso – e a tradição de quase toda família nos trabalhos em madeira apresentam-se como fatores que estimularam Francildo nessa nova experiência. Dedicar-se às talhas, às esculturas de santos, aos tipos da região e “milagres” (exvotos) constitui alternativa animadora.

Francildo entalha, há vinte dias, uma porta de 3m de altura por 1,20m de largura, para a igreja da vizinha cidade de Caridade. Uma figura de Cristo, quase solta pelos seus cortes profundos na madeira, mostra a qualidade do trabalho de Francildo, seu excelente artesanato. Eu uso quase sempre pranchas de cedro, de quatro polegadas de espessura. Os modelos e quase todas as encomendas são do frade. Mas faço também peças por conta própria e vendo em casa mesmo. Faço retiradas, homens vendendo peixe, carregando fruta. Umas eu tiro de estampas, outras eu crio. Agora, esses tipos regionais eu faço numa madeira mais fina e menor. Resolvo tudo com o formão, goiva, buril ou com faca mesmo, quando a peça é de imburana. Se pedirem, encero a peça; se não, deixo no natural. Já atendi a uma encomenda de cento e vinte e cinco talhas para um grande hotel de Fortaleza, mas não achei negócio. Quando pedem muitas peças querem pagar menos, e não dá, porque a madeira é cara e o trabalho pra fazer é o mesmo. Francildo também faz móveis – como os bancos, entalhados sob encomenda para um convento de Fortaleza –, usando, como nas grandes portas, o cedro do Amazonas; para as esculturas de santos, de tipos regionais e de milagres, usa imburana, adquirida em Canindé. Desenha, talha, dá os primeiros cortes. Um auxiliar seu escava e lixa. Os bancos e portas são complementados por marceneiros. Tendo serviço, está dando pra viver. E isso só falta no inverno. Aí às vezes dá umas crises. Tenho uns conhecidos que trabalham nos roçados de milho e de feijão. Têm sítio próprio ou fazem o serviço a foro, plantando, ficando com 50% e pagando com a outra metade o aluguel da terra. Posso dizer que não saio de casa. Nuns cantos eu não posso ir; noutros, eu nem penso. Meu tempo aqui é trabalhando.

Canindé (CE), 1975

Em Fortaleza, eu às vezes fazia uma pecinha de gesso. Mas foi aqui, na madeira, que eu desenvolvi o trabalho. O frade, pároco da cidade, tem me ajudado muito. Ele é muito entendido nesse negócio de arte. É um alemão que faz muitas coisas e vai movimentando quem quer trabalhar. Mas tem gente que ainda fica de braço cruzado, olhando. Lá no convento, os frades têm um museu com uma lojinha do lado. Em sua casa, na sala da frente, sobre um enorme pranchão de cedro, com 10cm de espessura,

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EM TERRA DE ROMARIA Francildo

EM TERRA DE ROMARIA Francildo

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Anete Dona Biu Neilton Antônio Paulo Antônio Matos Angelino Tonho Cosme Dary

A diversidade da matéria-prima, a forma pela qual é utilizada e o modo de inserção da produção no contexto da arte popular são elementos que se destacam no grupo de artistas aqui reunidos. O fundamental não é contrapor o resultado do trabalho aqui focalizado e realizado com raízes, tamboril, coco-pebo, papel, pedra, cabaço, tecido, osso, etc., àquele feito com barro ou madeira maciça e produzido pela maior parcela dos artistas reunidos nesta pesquisa, mas dar destaque à importância que essas diversas matérias-primas assumem na feitura do objeto. Poder-se-ia dizer que o produto desse trabalho é determinado e valorizado mais pelo material utilizado do que por sua forma final. O impacto é maior com aquilo que o material sugere, como ele é transformado, ou apenas completado, para se compor uma peça, do que propriamente com a habilidade artesanal ou o resultado último encontrado. Nesse sentido, a matéria-prima é tomada como uma obra, inacabada algumas vezes, despercebida outras, exigindo acentuação ou acréscimo de traços, ou ainda, composição, com diversos elementos, descobrindo-se ou conferindo-lhe uma forma que a realce e lhe dê força. O processo de criação tem assim como mediação básica o aproveitamento da forma primeira – encontrada, enquanto tal, na natureza –, ou então a utilização do material como elemento principal de valorização do objeto produzido. Nessa perspectiva, torna-se, muitas vezes, minimizado o valor artístico atribuído ao produto final. A relação que se estabelece entre o artista e seu trabalho é, em certa medida, definida pelo mercado que consome esse tipo de produção. O que não significa, necessariamente, que exista uma imposição de modelos ou formas. Existe sim, e sem dúvida, um espaço que garante e estimula essa produção. Na medida da demanda, esses trabalhos, em variados níveis de elaboração, multiplicam-se, dirigindo-se quase sempre ao público turista. O modo específico pelo qual se insere esse tipo de produção no mercado é outro elemento que, ao mesmo tempo, garante unidade a esse agrupamento e o diferencia dos demais. Aqui, a relação produtor/consumidor não parece ser mediada pela noção de arte popular. De um modo geral, o produtor não é considerado artista, mas sim artesão. O consumidor não é basicamente aquele que se interessa ou procura o objeto de arte, mas sim o que busca o pitoresco, o folclórico. Nesse sentido, a concepção de arte, para esse tipo de trabalho, não corresponde ao que se normalizou classificar de arte popular. É interessante observar que os materiais usados por esses escultores, como coco, osso, tamboril e outros, estão sempre presentes em lojas de souvenirs. O circuito de comercialização de objetos produzidos com esses materiais esgota-se, quase sempre, nessas lojas, nas feiras de artesanato ou nas vendas realizadas pelos próprios autores. Raramente tais trabalhos são encontrados em galerias ou exposições especializadas em arte popular. Atendendo à demanda de um mercado em geral menos elitista, os artistas aqui agrupados posicionam-se com a mesma estratégia de tantos outros autores que também se dedicam à produção dessas peças mais difundidas. Nessa invenção diversa, todos eles hábeis artesãos, quando não estendem seu domínio a várias formas de criação, conseguem exaustivamente o máximo em perfeição dentro da forma escolhida. Cabe ressaltar, no entanto, nos trabalhos dos artistas aqui agrupados, uma certa diferença: embora usando os mesmos materiais e partilhando um mercado semelhante, conseguem imprimir às suas esculturas um outro nível de elaboração. A rendeira de Anete – com seus óculos na ponta do nariz e dedos de unhas finas – sustenta os pequenos bilros no trançado da renda iniciada sobre a almofada. Além dos múltiplos detalhes, consegue ainda dar expressão facial às suas esculturas de tecido. Severina Bruno (Biu), no mesmo

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Anete material de Anete, mas em uma linha muito mais simples e despojada, cria suas Doquinhas – pequenas bonecas de pano –, palhacinhos e bonecas. Recriação mais cuidada das tradicionais “bruxinhas”, encontradas em feiras. Antônio Cosme, por sua vez, esculpindo cabeças em pedra calcária, atende às incessantes solicitações dos visitantes do Forte de Santa Catarina, em Cabedelo. Ainda nesta cidade, Antônio Paulo garante sua sobrevivência esculpindo um outro tipo de cabeça, em coco-pebo – fruto ressequido excepcionalmente na própria árvore. Trabalho repetido por mais alguns na região, com mais ou menos habilidade, e sempre encontrado em quase todas as lojinhas de artesanato. Os bichos de Antônio Matos, em tamboril – madeira que se diferencia das demais por sua extrema leveza e maciez –, réplicas das mais convincentes, podem com facilidade ser tomados por vivos. As cobras de Angelino, executadas em raízes e cipós, despertando curiosidade e medo nos passantes, acentuam alguns aspectos catalisadores desse determinado mercado – a ideia original em parceria com a matéria-prima impressiona. Os fantoches, bichos, cabeças e demais figuras de Neilton, em panã ou cabaço, reforçam a ideia da aliança da inventividade e habilidade artesanal com a matéria-prima. É sobretudo nos cabaços, onde o fruto ressequido em várias formas oferece múltiplas possibilidades, que Neilton melhor realiza essa aliança. Dary, utilizando ossos de baleia e de boi, faz seus mendigos, negros, santos, cachimbos, etc..., conseguindo uma enorme clientela turística, principalmente para seus mendigos. Invenção sem precedentes na tradição profissional familiar, ou mesmo do grupo social mais próximo, reforça a singularidade desse agrupamento e o interesse despertado por seu trabalho. A partir de um convívio cotidiano com o material e o prazer em transformá-lo ou usá-lo de forma lúdica, surgem adornos seriados, enriquecidos pela curiosidade e paciência de sua construção, valorizados ainda pela capacidade de seus autores em descobri-los e transformá-los em um meio de vida.

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TUDO SE TRANSFORMA

Fiz minha primeira boneca com cinco anos e fiquei fazendo para eu mesma brincar. Nasci em Guarabira, na Paraíba, em 1929. Meu pai era ambulante, já morreu. Ele passou três anos doente e, nesse tempo, eu já sustentava a casa. A gente levou uma vida de cigano. Eu nem estudei em escola, somente um pouco em particular. Passamos uns tempos em Nova Cruz – foi lá que meu pai morreu. Depois a gente foi para Areias e lá passamos mais tempo. Em Campina Grande chegamos há oito anos, e aqui vou ficar até morrer. Na sua pequena casa, em um armário envidraçado, os tipos de figuras feitos por Anete ilustram sua produção: rendeira, moça no confessionário, rapazes jogando em mesa de bar, babá com menino no colo, bordadeira, vaqueiro, Romeu e Julieta, Saci-Pererê, Papai Noel, Branca de Neve e os Sete Anões, etc. Construídos em tecido, esses bonecos são exaustivamente elaborados, com riqueza de detalhes: unhas, óculos, cabelos naturais; pedrinhas e fios dourados nas joias de Julieta; bilros e pedaços de renda iniciados na almofada da rendeira; arreios, sela desenhada no cavalo do vaqueiro; caixinha cheia de linhas e agulha nas mãos da bordadeira debruçada sobre o bastidor... Além de tudo isso, as figuras são ainda muito expressivas: a moça de ar penitente conta ao padre atento seus pecados e a rendeira idosa demonstra esforço no desempenho de seu ofício. Em todas as peças evidencia-se a extrema paciência e habilidade manual da artista, na singularidade de seu trabalho.

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Dona Biu Em Nova Cruz eu trabalhava num salão de beleza e costurava. Tinha um conhecido de meu pai que trabalhava com relógio, e às vezes me pedia pra ampliar um mostrador de relógio. Eu ampliava a olho! Bonecas, Anete sempre fez, mas foi em 1950 que passou a se dedicar mais às figuras que a tornaram conhecida. A primeira rendeira, fiz pra mim mesma. Aí fui fazendo, mas sem conhecimento, com uma freguesia pouca. Vendia muito barato e posso dizer que faço esse trabalho de graça. Teve um coronel que, há sete anos, deu um preço e disse que, se ninguém comprasse, ele comprava tudo. De lá pra cá todo ano eu venho aumentando um pouco. Foi em 1973 que recebi a primeira encomenda de peças de juta. Nunca tinha feito. Me trouxeram o modelo e eu fiz um presépio, então me interessei muito. Hoje estou gostando mais de trabalhar nessas figuras de juta: são muito menos trabalhosas, é um material só. Nas figuras de pano fino, se faltasse uma besteirinha, empatava tudo e precisava muita paciência. Nessas peças eu usava muita coisa – compensado, feltro, pano de diversas qualidades, arames, muita coisa, fora as joias... Agora, tanto para essas como para as de juta, os instrumentos são tesoura e uma alicatezinho. As peças antigas em tecido são hoje para Anete quase somente recordações que ela guarda no armário envidraçado. Estão à vista, mas fora do alcance dos compradores que, muitas vezes, chegam a lhe oferecer, inutilmente, um preço muito mais alto do que o pedido por ela por suas peças atuais. Como excelente artesã que é, executa também, com perfeição, o trabalho na juta. Com muito menos detalhes e na cor natural do tecido, essas peças revelam, contudo, apenas uma parte das habilidades das quais Anete já demonstrou ser possuidora. O que eu fizer de juta sai. Então, São Francisco, quantos tenha! Faço também Santo Antônio, Nossa Senhora, rendeira... Essas peças andam muito mais ligeiro. Numa rendeira das antigas eu levo uns treze dias. As mais procuradas são a rendeira e o Papai Noel. Tem aí um caderno com um bocado de encomenda. Vem gente aqui, de longe – quem se interessa, não vê a distância. Prefiro esses trabalhos do que costurar. Aqui em casa somos só eu e minha mãe – e assim dá pra viver. Mas, se parar, cai. Só faço isso; e ela faz umas caixinhas de croché, com linha bem fina, armadas com goma de mandioca. Daqui não saio pra canto nenhum. Às vezes preciso ir ao comércio para comprar material, mas isso no máximo duas vezes por mês. O mais eu peço aos outros. Não gosto de diversão de qualidade nenhuma. A gente aqui só tem rádio, para música e repórter. Novela, de qualidade nenhuma! Já basta a novela que se vive. Basta o que a gente já vê sem querer. Quem no tempo de moço não gozou... Só trabalho, entretendo a vida, até a morte chegar!

Campina Grande (PB), 1975.

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‘Gente, Biu chegou!’ É assim que Severina Bruno da Silva anuncia, onde quer que chegue, sua figura ingênua, amável. Biu é escultora de bruxinhas de pano – uma invenção antiga, marginalizada pela produção de bonecas de plástico. Uma, resultado de técnicas sofisticadas, produzidas em série, com um mercado garantido e ampliado por uma refinada programação publicitária; a outra, geralmente vendida em feiras, fruto de singelo trabalho caseiro, feita com pequenos retalhos de tecido, agulha, algodão e – no caso de Biu – arame. Nascida em 1919, na cidade de Bulhões, município de Jaboatão (PE), Biu vive até hoje cercada de cana. Tanto o seu pai como o padrasto trabalharam, durante toda a vida, nos antigos engenhos de açúcar. E o seu marido é lavrador até hoje. A gente tem um sítio arrendado no engenho, quer dizer, uma cota de tonelada de cana pra plantar e receber aquele tanto por ela. Meu marido vai trabalhando e vai recebendo aqueles pedaços de dinheiro, no Banco de Recife. Ele mesmo foi buscar umas vezes, mas achava ruim. Agora um conhecido daqui do engenho vai pegar o dinheiro. Não é muito não, mas dá pra pagar os trabalhadores, o adubo, e fazer uma feirinha. Agora, juntar pra entressafra não dá. Mesmo o resto do dinheiro que ele recebe, quando acaba de moer as canas, num instante vai-se embora. E ele tem que arranjar outro meio de vida, pra ir levando, até a hora de moer de novo. O roçado próprio ou a mandioca – comprada para ser transformada em farinha e vendida na feira – são algumas das saídas para conseguir algum recurso nessa fase mais difícil. Desse jeito era a vida dele quando a gente se casou. Aí, eu, com dezoito anos, já fazia boneca de pano – desde menina que eu fazia. Já foi com o dinheirinho que apurava que comprei as roupas do meu casamento. Eu achava bonitinho o serviço, tinha muita paciência, mais do que hoje. Gostava de me entreter com aquilo e ganhar um dinheirinho vendendo. Quando eu casei, continuei. Eu diminuía um pouco a produção quando ficava de menino novo, mas, quando ia folgando, pegava logo a produzir mais. Uma mulher que passava lá por casa levava as bonecas pra vender a um tostão, dois tostões. Muito disposta e animada, Biu está sempre atenta a outras solicitações que lhe possam render algum dinheiro extra: faz beiju, doces de toda qualidade, e também costura. Isso tudo com eficiência e incansável disponibilidade. Uma vez peguei uma costura de um rapaz lá da rua, de Jaboatão: camisa e calça de homem, doze peças por semana. Ele dava todo o material e entregava tudo cortado. Eu costurava, fazia casas, pregava botão... As meninas ajudavam e ficava tudo pronto no dia certo. Tive dezesseis filhos, mas só treze vivos – tudo nascido e criado aqui, com muita dificuldade. Eu lamento demais não ter estudado. Agora mesmo, pra tirar minha carteira de trabalho, na Cooperativa, foi a maior agonia. Eu não sei nada de mim. Mãe não ligava, não se interessava pela vida e tinha o costume de dizer: ‘Severina

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é ele que sustenta o gasto da alimentação, mais ou menos sem precisar muita ajuda dos filhos que estão trabalhando. O dinheiro das bonecas sempre ajudou pra vestir a família. A Doquinha – como foi batizada há doze anos a bruxinha de Biu, no tempo em que ela fazia parte de um “clube de mães”, no engenho em que mora – é uma boneca de 15cm, leve, ar ingênuo como o de sua autora, cabelos de fiapos, pretos ou castanhos, olhos espantados, roupas em colorido forte e, quase sempre, um buquê de flores de celofane na mão. São produzidas em grande quantidade, todas elas com o mesmo cuidado. Junto com o nome de Doquinha, apareceu a sugestão de “armá-la” com arame – inovação que, sem descaracterizar a boneca, lhe deu uma certa flexibilidade. Biu experimentou e gostou da ideia. Essa pessoa que deu essa ideia do arame também falou para eu experimentar fazer as perninhas da boneca de um enviés, uma tira de fazenda bem comprida, costurada com um cordão dentro. Ela é muito ideiosa. Eu faço assim mesmo: quando vou puxando o cordão, já vou enfiando o algodão com o arame. Cada vez faço mais de metro de perna! Em variadas posturas, propiciadas pela armação de arame, penduradas em fios, as Doquinhas, em grupos de cinco, compõem um móbile alegre e singelo. Eu só compro o arame e, às vezes, umas fitas pra enfeitar. O mais eu arranjo dado. Outro dia a mata me deu dois sacos de barriguda: botaram abaixo dois pés bem grandes, aí o algodãozinho se espalhou pelo canavial e eu saí apanhando. Vai dar pra encher muita cabeça de boneca.

não vai aprender a ler, não, porque se ela aprender a ler ela não vai querer lavar roupa.’ Esse serviço era só o que ela fazia. Eu, menina já grande, ficava ajudando a pegar os panos das lavagens e fazendo outros mandados dela. Depois, mãe foi se empregar no Recife. Aí eu adoeci muito e vim passar uns tempos na casa em que ela trabalhava. Findei ajudando a tomar conta de dois meninos. Foi quando meu padrasto se mudou para esse engenho, onde eu vim conhecer Antônio e me casei. Sempre achei o engenho muito esquisito. O marido trabalhando na cana e eu em casa fazendo boneca – isso nas horas em que não estava ajudando ele no roçado ou na casa de farinha. Quando os filhos foram chegando eu fui tendo mais companhia. Depois foi tudo saindo e eu ficando sozinha de novo. Antônio também está se sentindo sozinho e cansado. O povo ganha sofrido. A conta que é pra tirar no correr do dia, o povo morre e não tira. Os trabalhadores pensavam que, sendo por tarefa, podiam acabar mais cedo e ir pra casa. Mas parece que aumentaram a medida e, quando o administrador manda passar a vara, faz aquele quadrado grande, tão grande que não tem quem aguente. Aí eles passam o que fica faltando pro dia seguinte, e só ganham o dia quando acaba aquela conta. Agora está faltando até gente pra cortar a cana. O ano passado ficou muita cana no campo. Mesmo os homens mandando tocar fogo nas canas, pra facilitar o corte, ainda não dá pra tirar tudo. A difícil luta pela sobrevivência, sua e de seus vizinhos, parece marcar profundamente a artesã das bruxinhas de pano.

Na mesma linha das Doquinhas, formando também móbiles, encontram-se os palhacinhos. A partir da armação de arame, Biu coloca pequenos pedaços de tecido de várias cores, cortados em forma circular, os quais, unidos uns aos outros, formam o corpo do boneco, complementado pela cabeça feita com enchimento de algodão. No rosto, o mesmo jeito ingênuo das Doquinhas e os mesmos detalhes: olhos, sobrancelhas, nariz e boca bordados em branco, preto e vermelho. Por último, um chapéu em forma de cone, enfeitado com contas, e lacinhos de fita dando acabamento aos pés e às mãos. Além dessa produção, Biu faz, com menor frequência, bonecas de aproximadamente 60cm. Essas, sem armação de arame, seguem o mesmo estilo de suas Doquinhas. Com muita dificuldade, ela está construindo uma pequena casa em Vila Rica, arrabalde de Jaboatão. Já estou cansada de andar a pé, até em casa, légua e meia da cidade. Então no inverno é um sacrifício, com os pés atolados na lama. Com a ajuda de uma filha, comprei o terreno e estou levantando a casa. Minha parte foi toda de dinheiro de boneca. Antônio também tem ajudado, mas diz que sair do engenho só morto – para essa casa nova não vai. É meu maior aperreio quando penso, eu naquele lugar cada vez mais esquisito, num escuro medonho. De noite não posso pegar uma agulha!

Jaboatão (PE), 1975

O dinheiro que Antônio ganha é pouco mas é certo – pelo menos durante a safra. De todo jeito,

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Neilton Neilton Guedes dos Santos, nascido em 1949, é paraibano de Acaú – uma vila de apenas dois mil habitantes, no litoral, perto de Goiana. Um dia, quando a vontade de estudar foi grande, parti para João Pessoa. Lá, na Casa do Estudante, pagava-se pouco e eu ia levando. Trabalhava no que aparecia, quase sempre ligado ao artesanato: fazia cabeças de coco e estatuetas de uma madeira leve, chamada panã. Quando tudo ficou muito difícil mesmo, vim para o Recife. Isso, há mais de cinco anos. Fiquei uns tempos na casa do meu irmão, e trabalhava como vendedor de persianas. Nas horas vagas eu continuava no artesanato: miniaturas, medalhas, chaveiros, gargantilhas... – tudo em madeira de cajá. Acho o cajá muito bom de trabalhar, porque é uma madeira dura. Pode até quebrar, mas não lasca. Com ela a gente pode trabalhar em detalhes pequenos, que é o que eu mais gosto de fazer. Quando ainda era criança, em Acaú, Neilton já fazia trabalhos na madeira. Conhecido por suas habilidades, era procurado para todo tipo de encomendas. Na Semana Santa era solicitado para fazer cabeças de Judas, esculpidas em coco-pebo, que é o coco seco, que se forma sem água. Durante o verão, com a chegada dos veranistas, sempre apareciam encomendas de brinquedos. Eu fazia bonecos de mamulengo, que lá se chama babau. Nesse tempo, tinha muitos mamulengueiros em Acaú. Os espetáculos eram muitos e muito animados. Os mamulengueiros recolhiam dinheiro no chapéu depois do espetáculo, ou então a brincadeira era feita encomendada pelos veranistas. O pessoal queria era dar o espetáculo, não se importavam muito com a fisionomia dos bonecos. Aí eu comecei a me interessar por isso – o rosto de cada um. Na minha família ninguém trabalhava com artesanato. Nunca aprendi com ninguém. Foi sempre o que dava na cabeça que eu ia fazendo. Às vezes começava um objeto sem ter nem ideia do que ia ficar no fim. Quando ficou tudo difícil de novo, fui procurar o CECOSNE (Centro de Comunicações do Nordeste), em Recife, que tinha sido indicado por uma amiga. Daí tive mais condições de trabalhar e inventar mil e uma, fazendo bonecos para o mamulengo.

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descoberta como o corte. A parte melhor é a raiz, difícil de ser arrancada das margens dos riachos. Muita gente confunde o panã com a madeira de jangada, mas é diferente. O panã-fêmea é tão macio que se pode apertar com os dedos. Está cada vez mais raro. É uma árvore de lagoa de água doce ou mesmo de rio. O pé parece com o de graviola. A raiz é que é usada por causa de sua leveza. O tronco também serve para as esculturas. O panã que é encontrado agora não é do ótimo, porque a raiz está descoberta, com os rios mais secos – levando sol ela endurece. Neilton trabalhava bastante no laboratório, dando suporte às atividades do teatro de bonecos. Quando estavam montando uma peça, ele acompanhava a leitura, as discussões, os ensaios e só fazia um boneco depois de conhecê-lo bem, através do grupo que ia apresentá-lo ao público. Eu gostava muito de trabalhar no laboratório, pesquisando, criando, me sentindo solto para fazer mil coisas. Tinha dia que não saía nada, mas tinha dia que era um dia cheio. Em 1975, quando deixou o Centro de Comunicações – por questão de salário... –, Neilton, após intensa procura de empregos, assumiu aulas de “Artesanato” e de “Prática Comercial”, em várias escolas. A feitura de bonecos ficou para as poucas horas vagas que lhe restaram. De vez em quando aparecia uma ou outra encomenda, que funcionava como gancho para suprir as deficiências do orçamento doméstico. Foi nessa época que, estimulado por amigos, começou a desenvolver uma antiga descoberta sua – o aproveitamento de cabaços para suas criações. As figuras são assim meio indefinidas, aproveitando a própria forma do cabaço: forma de animal e de gente. Eu olho o cabaço e tento ver o que é que a forma me diz. Quando não consigo perceber, daí não dá para aproveitar e eu elimino. Não é que não tenha forma de nada, minha imaginação é que não consegue ver. Quando comecei, fazia mais passarinho e também expressões humanas, rostos. Agora estou fazendo bichos: formigão, boi e também alguns pássaros de forma indefinida, com cabeça de outro animal. Tem ainda os folharais, na linha do mamulengo, que são pequenas cabeças de bicho, de pássaros, de gente, para serem completados com roupagens esfarrapadas. Em 1976, Neilton conseguiu concluir o curso superior de Administração de Empresas.

Quando o teatro de bonecos do Centro não estava em atividade, Neilton trabalhava no laboratório de artes plásticas, experimentando todo tipo de material, criando bonecos e outras peças que podiam, ou não, vir a ser aproveitadas depois. Usava principalmente papel e madeira, além de tinta e lápis. O papel era de vários tipos, incluindo a massa de papel.

Meus estudos sempre foram feitos com muita dificuldade, sem ter ninguém por mim. Já vivi e dormi por aí, tentando sempre vida melhor, sem deixar de estudar. Gostaria mesmo era de ficar na arte, que é a minha profissão. Mas até hoje não vi nada seguro, nada claro nesse campo. Por isso continuei a estudar. Preciso de algo seguro pra me decidir. Não gosto de me jogar sem pensar nas consequências. O estudo é sempre um suporte, mas o que eu queria mesmo era a arte. No Nordeste isso ainda não dá, principalmente pra mim, que vim de um lugar distante e tive pouca gente pra me apoiar. Com duas filhas, aumenta a preocupação, tenho que pensar muito.

Minha madeira preferida era o panã, que é muito macia e própria para as caras e as mãos dos bonecos. Eu descobria o panã procurando por aí. É um trabalho muito difícil, tanto a

Mesmo com o constante apoio de Nicinha – sua mulher –, que o ajuda na costura das roupas dos bonecos de mamulengo e na colagem e pintura dos bichos de cabaço, Neilton vive, com intensidade, o conflito entre a necessidade de criar, de fazer seus bonecos e bichos, de poder se dedicar

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Antônio Paulo à sua arte, e a luta pela subsistência. Seus bonecos, criados no tempo em que trabalhava para o Centro de Comunicações, já foram vendidos para o exterior, participando de várias exposições. Recentemente, chamado pelo Instituto Joaquim Nabuco para restaurar as figuras do famoso “Maracatu de Dona Santa”, chegou, em alguns casos, a recriá-las, com base nos depoimentos de quem as havia visto anteriormente. Nos bonecos de mamulengo, no cuidado com o rosto de cada um, Neilton demonstra o melhor de sua habilidade artesanal e do seu potencial criativo. Alguns deles são de uma admirável expressão comunicativa, compensando talvez uma impossibilidade sua. Não consigo brincar o mamulengo. Já tentei, mas minha voz não ajuda pra esse tipo de trabalho.

Olinda (PE), 1977.

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Desde criança que eu faço trabalhos diferentes. Os outros meninos brincando, e eu com o canivete fazendo coisas. Em casa ninguém trabalhava assim, só eu. Antônio Paulo Freire nasceu em Penha – praia próxima de João Pessoa – em 1904, e veio para Cabedelo com apenas dez anos. Há trinta anos mora em uma pequena casa de sua propriedade, rodeada de coqueiros, bem perto do mar. Ali, ele vive com sua mulher, Angelina. A primeira cabeça de coco eu fiz com dezesseis anos. Foi o rosto do homem que criou meu pai. Era coco normal: furei pra tirar a água e fiz a fisionomia dele. Depois foi que dei pra fazer as cabeças no coco-pebo, que é um coco atrofiado, sem carne. O difícil é conseguir o coco, o resto é fácil. Os meninos é que catam esses cocos por aí, pra mim. Sempre fiz minhas peças sem imitar nada nem ninguém. Um dia inventei uma cobra feita de pedaço de madeira leve, que se mexia toda. Quando muita gente começou a fazer, eu deixei. Fiz uma cobra, que também se mexia, saindo do oco do pau. Depois que eu fiz aquela primeira cabeça, passei seis meses na Escola de Artífices, em João Pessoa. Lá eu aprendi muita coisa, dei a carta de ABC, a cartilha das mães e o primeiro livro. Não foi necessário ficar estudando pela vida afora. Eu fico espantado hoje com o tempo que os meninos passam na escola e não aprendem nada. Seis meses pra mim foi o suficiente. Eu sempre gostei de desenhar. Tive dois professores de desenho – um ensinava desenho lineante. Depois da escola eu trabalhei em muita coisa: trepava em coqueiro pra tirar coco, consertava e fazia santo de madeira, pintava quadros nas paredes das casas, pintava navios – os de pescar baleia, lá na

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Antônio Matos praia da Penha. Fui embarcadiço, no tempo da guerra: fui taifeiro, cozinheiro, pintor. Pintei muito nome de navio, me lembro de todos. Morei no Rio uns dois anos: trabalhava em Niterói e morava em Coelho Neto. Fui até Porto Alegre. Um dia pensei: Que nome bonito! Vou ver como é isso. Conheci pouca coisa do mundo. Só fui até a Venezuela, no Porto de la Cruz. Já estive um tempo na praia do Janga, em Pernambuco. Lá eu fiz uma decoração que ficou foi boa na cerca da casa de um doutor: boneco, cata-vento, carrossel, marinheiro, bandeira – tudo se movimentando com o vento. Também já fiz muitas peças na casca do cajá-mirim. Vendo o jeito da casca, os veios da madeira, veio a ideia de fazer as cidades e as cenas da Bíblia: Jerusalém, o Reino de Judá, a cidade de Nínive... Era só fechar os olhos e imaginar. Isso comecei a fazer há uns seis anos. Tinha um bocado dessas pecinhas aqui, guardadas com muito carinho, mas, na necessidade, fui vendendo tudo. Já fiz escultura em tudo que é material: pedra, barro, madeira, massa de papel, madeira de jangada, coco, isopor... Fiz máscara de carnaval, com massa de papel; boneco pra propaganda de caminhão, de madeira... Antônio Paulo coloca ainda no mesmo nível de envolvimento e importância sua atividade como compositor. Gosto muito de música. Já toquei violão quando era rapazinho. Eu mesmo fiz o violão e aprendi sozinho. Já fiz muita coisa. Essas canções, sei tudo de cabeça. Não escrevo nem a letra nem a música. Já ensinei muita marcha para os clubes de Cabedelo. Até no hospital, quando me operei, a cabeça funcionava. Quando eu ouvia alguém contar um fato, como um pai que estava contando a história de sua filha que fugiu com um cabeludo, quando ele disse a palavra, já veio o som. A palavra traz o som. A partir dos fatos, o juízo funciona. Faço letra e música na mesma hora. Assim foi o samba de Maria Cristina, um sobre a carne da baleia, outro sobre o cabo do botequim. Esse último nasceu de uma discussão sobre quem fazia melhor o passo, se era o pernambucano ou o paraibano. Tem também a marcha-canção da morena de Abreu e Lima, tão bonita que chamou atenção na estrada. Tem muita coisa! Tenho tanta coisa no meu juízo, e vou voltar com tudo isso! Com a saúde abalada nos últimos anos, ele canta com dificuldade algumas canções – todas falando do cotidiano familiar, com leveza e humor. Mas para ele – faz questão de dizer – o que dá mesmo mais gosto é pintar o mar, talvez por já não poder frequentá-lo.

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Antônio Matos Alves nasceu em Aracati-Açu, município cearense, em 1935. Morei numa fazenda de gado, onde tem uma pedra muito grande, feita por obra da natureza, com um olho d’água e um banheiro que dá gosto. De lá, quando eu tinha oito anos pra dez anos, me mudei pra Sobral, viajando dentro de um caçuá. Meu pai veio tomar conta de um armazém de um velho conhecido dele que andava se sentindo doente. Meu pai sabia fazer conta muito bem e dominava a leitura. Lembro ainda os dois pés de tamarindo que tinha ao lado do armazém. Eu ajudava meu pai no serviço de balcão, vendendo fardo de chapéu, pele de criação, etc... Deste trabalho, durante dois anos, ele sustentou minha mãe e dez filhos. Em Sobral ele adoeceu e morreu. Aí minha mãe espalhou todos os filhos pelo pessoal rico, pra eles tomarem conta, e eu fiquei no poder do filho do dono do armazém, que era como meu irmão de criação e meu padrinho de crisma. Com quatorze anos pra quinze, saí do poder dele e fui pro alto sertão, passando pela serra de Ibiapaba. Lá eu dei duro mesmo: no cafezal e no canavial, sendo que mais no canavial. Trabalhava num engenho a motor, com uma moenda monstra. Eram dois, três homens pra sacudir a cana na diária. Nunca ouvi falar em salário. Depois passei dois anos num sítio, tomando conta de duas vacas e um boi. Também trabalhei no agave: capinava e fazia os outros serviços. A água do agave é o mesmo que a gororoba do cimento: corta os dedos e também tem muito espinho. Era um serviço muito perigoso. Vindo para Fortaleza, Antônio conseguiu emprego em uma fábrica de refrigerantes, depois em uma companhia de tratamento de óleo de juta. Um dia eu tive um palpite – o salário estava muito baixo e eu não gosto de ver meus filhos passando fome. Da lembrança dos cágados grandes, que eu cansei de ver no sítio, tirei a ideia de fazer uma tartaruga de madeira e vendi logo pelo mesmo tanto de um dia de serviço. E dava pra fazer duas por dia! Larguei o emprego e peguei a fazer tartaruga. Minha cunhada desconsiderando: ‘Homem, vá procurar emprego!’ Mas continuei nas tartarugas. Tentei mais, fiz a primeira quantidade e vendi tudo. O pessoal começou a pedir e eu fui aperfeiçoando. Aí me senti montado na lei, na lei que eu fiz. Faço paturi, gente dançando, tatu grande e pequeno, sanfoneiro. Mas o que faço mesmo é a tartaruga. Uma maleta feita por ele mesmo, com duas tartaruguinhas aplicadas e com sua assinatura ao lado, mostra a alegria de seu acerto. Enfeita também o chapéu com outras duas, perfeitas réplicas de filhotes do animal de sua preferência. Essa caixa já é um documento, eu considero que seja assim. Quando eu andava batalhando por aí, e ainda não me conheciam, ficavam olhando meio assim pra mim. Agora, quando a polícia me vê, já sabe quem sou eu. Gosto muito dessa atividade. Trabalho muito, às vezes de dia e de noite. Quando tem uma encomenda grande, trabalho até de madrugada. Nas tartarugas bem pequenas minha mulher é campeã – e os dois meninos, de dezesseis e quinze anos, também.

Já pintei navio, pesca de baleia, naufrágio, outras pescarias... Pintei até uma caçada de búfalo no mar. A Bíblia é minha grande fonte, além do mar... Deus é minha grande esperança... Sou aposentado da pesca da baleia, e o que recebo não dá pra nada. As cabeças de coco eu vendo muito barato. Não posso morrer de fome depois de criado. Quando eu estava bem de saúde trabalhava bastante nos cocos e fazia o dobro de dinheiro que faço agora.

Zélia narra, com solicitude, o processo de trabalho que hoje é desenvolvido por toda a família:

Cabedelo (PE), 1975.

Os pés e a cabeça são ligados ao corpo por um minúsculo gancho de arame que lhes permite

A madeira é o tamboril. É bem leve, a gente corta com toda facilidade com uma faquinha amolada. Depois a gente dá o jeito na madeira, vai cortando o casco, dando o abaulado. Aí os meninos desenham o casco com uma serra de ferro e pintam. Eu pego de novo e monto: coloco os pés, a cabeça e o rabo...

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Angelino Angelino Mariano da Silva nasceu em Recife, em 1939. Aos sete anos de idade já andava com o pai pelas matas à procura de madeira. Meu pai fazia carvão, e eu, atrás dele, desde já descobrindo aquelas raízes bonitas, gostando de pegar aqueles cipós, aquelas obras da natureza. Quando perdeu o pai, passou a trabalhar na serralheria de uma tia, onde aprendeu o ofício. Como soldador, Angelino andou por várias firmas de Recife e de João Pessoa. o movimento, tornando a tartaruguinha ainda mais “viva”. As cabeças e o rabo têm que ser tudo numerado porque o tamanho varia um pouco. Se não fizer isto, não dá certo. Eu gosto desse trabalho, só dá mais dificuldade porque faço todo o serviço da casa. Antônio comprou um terreno e, com muito esforço, fez um muro nos fundos – pra ficar defendido da imobiliária, que está loteando tudo e podia não respeitar os limites. Aos poucos está construindo a casinha onde moram, hoje composta de um quarto, um alpendre e um pequeno espaço, apenas coberto, onde trabalham. Aqui a gente se dá bem com a vizinhança, mas cada um vive trabalhando no seu canto. Uma é lavadeira, não tem carteira nem nada, porque é cada dia na casa de um; outro é motorista; outro é endireitador de bicicleta; e tem uma senhora que ensina por conta dela mesma, o destino dela deu pr’aquilo. Recentemente eu entrei na Associação Brasileira de Artesãos. Tenho uma carteira e pago mensalidade. Antônio Matos, o inventor, dividindo com a mulher e os filhos a produção da pequena escultura, transformada em exclusivo meio de vida para a família, parece ter reforçado seu entusiasmo. Tenho sede desse trabalho: quanto mais faço, mais tenho vontade. Há uns quatro ou cinco anos fui chamado por uma senhora para ensinar outras pessoas a fazerem as tartarugas lá no seminário. Aí veio com esses propósitos pra mim: me pagavam um salário e dez por cento por fora, pela produção. Pedi um mês pra pensar, falei com minha mulher, e a gente viu que ia ser ruim – a minha arte ia cair. A produção do pequeno grupo familiar tenta dar conta das encomendas, que são muitas. Tantas, que normalmente deveriam reverter numa situação financeira bem melhor do que a constatada. No entanto, o baixo preço do objeto e o tempo consumido na sua produção tornam a tartaruguinha um meio de vida precário, ainda que engenhosamente criado e cuidadosamente desenvolvido por Antônio, Zélia e os filhos. Trabalha-se muito: aqui a gente trabalha até nos domingos. Só tem um dia em todo o ano que eu respeito: é o Dia da Paixão.

Fortaleza (CE), 1975.

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Assinavam minha carteira, mas nunca ganhei Instituto. Sempre tinha uma coisa pra atrapalhar. Aí, abusei a arte de serralheiro. Eu estava desempregado e, passando aqui por perto, vi um homem vendendo umas peças parecidas com essas minhas de hoje. Trouxe do mato pra mostrar a ele uns cipós que eu tinha achado. Ele me animou muito e disse que comprava as peças que eu arranjasse, sobretudo as que tivessem jeito de bicho. Foi um tempo bom. O homem tinha muita freguesia e eu até ganhava um dinheirinho! Estou vivendo com muito aperreio. Tenho sete filhos e um pra nascer. Um é sanfoneiro e até ganha um dinheirinho. Outro, que tem doze anos, me ajuda muito. O nome dele é Moisés. Vai comigo pro mato e fica aqui vendendo também. Eu tenho que fazer muita força pra registrar esses meninos. Nem isso eu pude até hoje. Não tenho dinheiro pra isso. No ponto de venda – uma esquina da Rua Sete de Setembro, no centro de Recife – Moisés ajuda a espalhar as peças pela área: um beco sem saída, de chão batido, de onde Angelino está ameaçado de despejo. Estou aqui nesse local há oito anos. A carroça da prefeitura de vez em quando me cobrava uma coisinha. Aí eu apelei pra eles e deixei de pagar. O dinheiro não está dando pra nada, e a mulher vive reclamando pra eu arranjar outra coisa. Eu faço tudo que posso. Passo o dia dentro do mato. Pra não perder o dia, quando não acho tronco, nenhum cipó bonito, eu trago umas plantas e boto aqui pra vender. A mulher, às vezes, arranja uma lavagem de roupa. Mas isso só faz puxar mais por ela, não adianta nada. As esculturas de Angelino são troncos de variados portes e feitios – com discretos entalhes feitos com a goiva – ou são obras da natureza que eu termino. Tem vez que eu não tenho nem vontade de cortar. E ainda tem gente que vem perguntar se eu fiz no torno. Nesse caso, os cipós, raízes e troncos recebem uma leve complementação quase despercebida. Envernizadas, por vezes manchadas em cores, suas peças interessam, de modo geral, a todos os que passam por aquela esquina onde ele tem seu ponto. Uma cobra, com mais de 1m, toda retorcida, ilustra muito bem a parceria de Angelino com a natureza. Está viva! – diz Moisés, brincando, para algumas pessoas que olham espantadas. O movimento de admiração é bem maior, no entanto, do que o de compra. No momento, eu estou ameaçado de despejo do terreno onde moro já há cinco anos. Eu já tinha sido despejado pela CELPE. Então fui para um terreno morto, lá no Córrego da Bica. Eu, o engenheiro da firma – dona do terreno – e mais alguns vizinhos plantamos os piquetes pra fazer a cerca e

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Tonho Cosme marcar tudo. Aí ganhei a carteira com a nota do que é pra gente pagar. Nunca mais apareci lá: pagar com quê? Então agora há esse movimento: estão vendendo outros terrenos e tapando as passagens pra bica e pra cacimba, num lugar que não tem um chafariz! Não pode! Ele tem que deixar a passagem da água. Agora estão dizendo que vão passar os terrenos pra prefeitura. Eu não estou vendo como é que eu vou sair desse lugar. Quando eu cheguei pr’ali era um terreno morto. Comecei a dormir, pode-se dizer, no campo, rodeado de pau e pano, no maior frio. Fui ajeitando a casa com o maior sacrifício, e agora estão falando essas coisas. É muito difícil eu entrar numa confusão, mas também não tenho medo de falar dos meus direitos. Moisés, abraçado com a grande cobra, brincando com os passantes, faz questão de dizer que vai todo dia com o pai para a mata.

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O autor das cabeças esculpidas em pedra calcária, sem assinatura, encontradas em um Centro de Artesanato de João Pessoa, trabalha atualmente em Cabedelo. No Forte de Santa Catarina – uma construção-monumento do século XVI, que está sendo restaurada pelo Patrimônio Histórico – Antônio Cosme é localizado. Natural de Paudalho (PE), aparenta bem menos idade do que os cinquenta e oito anos que presume ter. Trabalho no Patrimônio desde 1953. Só no Forte Orange, em Pernambuco, passei três anos. Posso dizer que já fiz serviço em quase todas as igrejas de Recife e Olinda: serviço de pedra, alvenaria, coberta – como carpina ou pedreiro. Pego no chão e deixo pronto. Minha vida é nesse trabalho. O dinheiro dá na base das horas extraordinárias. Trabalho 14 horas por dia, 8 horas da diária normal e 6 horas extras. No sábado trabalho 10 horas, no domingo, 12 horas: são 40 horas extras que ajudam muito. Não acho muito pesado, não. De noite as horas passam mais ligeiro.

Chega estou com as pernas todas picadas de tiririca. Eu vou porque ele chama. E também vejo tanta coisa bonita! Em casa tem uma raiz que eu arranjei sozinho: é um marreco sentado numa cadeira, com as mãos pra trás; e ele tem um braço cotó. Eu sou o mais velho. Sou eu pra fazer tudo dentro de casa: boto água, tomo conta dos meninos, ajudo papai... É uma luta muito grande!

Antônio Cosme, atualmente, é um dos responsáveis pela obra de restauração que o Patrimônio realiza no Forte de Santa Catarina.

Recife (PE), 1977

No estilo dos santos e anjos do seu convívio nas igrejas em conserto, Tonho Cosme vai trabalhando a pedra, depois de largar o serviço assalariado.

É hoje aqui em Cabedelo, ontem no Recife, no Rio Grande do Norte, amanhã em qualquer canto que tiver um serviço desses – sempre no trabalho dessas construções antigas, tomando conta da turma.

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Dary Trabalho na escultura até 11 horas da noite, quase todo dia. E nos domingos também. Quando saio é pra uma voltinha ligeira. Aqui, só eu faço esse trabalho de escultura. É realmente interessante registrar a ausência de parceiros do mesmo ofício naquele espaço, onde a disponibilidade de tempo, matéria-prima e mercado é a mesma. Eles apreciam. Às vezes querem fazer, mas não têm paciência. Faço estas cabeças há um bocado de anos, há mais de vinte anos. Eu tinha um irmão que gostava de bater em pedra, e então a gente fazia cada um sua cabeça de cachorro... Mas isso foi há muito tempo. Essas cabeças de gente são de minha autoria. Não aprendi com ninguém, e se quiserem me dar um modelo não faço. Não assino: pra quê? A pedra é mole, quem quiser tirar, tira. O que eu faço de peça, aqui, eu vendo pra o pessoal do Patrimônio e para os turistas que visitam o Forte. O pessoal do Rio e São Paulo é que compra mais. Levam do jeito que estiver, mesmo sem acabamento. O pessoal gosta de qualquer jeito, mas eu não: gosto bem feita, bem acabada, bem lixada. Quanto mais se lixa, mais branca fica a pedra. Agora mesmo eu acabei de fazer um busto de índio que o reitor da Paraíba encomendou. Mostrando uma cabeça que está sendo esculpida, Tonho Cosme fala de como chegou a obter esse resultado: Corto a pedra com serrote, depois uso escopo e naveta. Pego a pedra, bato, bato, até sair a cabeça. Já fiz mais de um milheiro de cabeças!

Cabedelo (PB), 1975

Dary Miranda nasceu em 1930, no município de Serra Negra do Norte (RN). Em 1949, com dezenove anos, emigrei para Natal e fui servir na Aeronáutica. Aí, consegui certo cartaz como retratista. Aliás, desde cedo eu tive tendência para o desenho, pra caricatura, pra retratar as pessoas... Em 1951, saiu da Aeronáutica e começou a trabalhar como ambulante de joias e bijuterias: comprava no Rio e em São Paulo e vendia no sertão da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Em 1966, eu vi um amigo meu – Antônio Lucas, um violeiro – fazendo uma peça de osso pra viola dele. Me interessei pelo detalhe e procurei verificar o que podia fazer. Me animei mais quando meu amigo me disse: ‘Olha, Dary, todo osso é marfim, a diferença está na classificação – o de elefante é melhor, é o verdadeiro marfim!’ Eu trabalho sempre sozinho. Minhas peças retratam, de preferência, figuras de mendigos, negros, alguns santos... Também faço fivelas, cachimbos, colares e terços pra decoração. A procura dos turistas só é mendigos, não querem outra coisa não. Logo que eu comecei, eu entalhei um mendigo numa pá (omoplata) de boi, com toda a dedicação. Ela ficou perfeita nos detalhes, no acabamento, na delicadeza dos traços. Nesse tempo eu estava precisando de dinheiro, pois faltava até leite pra minha filha menor. Ofereci a peça em Natal por muito pouco, e ninguém comprou. Hoje já me ofereceram muito dinheiro por ela e eu não me interesso porque ela é parte da minha coleção particular. A dificuldade de venda de suas peças parece ter desaparecido completamente. O pitoresco da figura do mendigo nordestino, a singularidade do material, a qualidade de seu artesanato, tudo isso complementado pelo pequeno tamanho e peso das peças – boas de transportar –, são elementos importantes de seu sucesso atual. Tenho muitas encomendas: às vezes pra França, Líbano, Alemanha... Tenho um cliente muito especial – Roberto Carlos. Faço cachimbos pra ele, em marfim de baleia, ou galhada de veado. Desenvolvo meu trabalho movido por dois objetivos importantes: o desafio e o estímulo de um amigo, que é proprietário de uma galeria aqui em Natal. Um dia ele me disse que ninguém superava os japoneses em miniaturas, principalmente em relação aos detalhes. Em Natal, já participei de algumas exposições e tenho peças expostas numa loja do centro, mas não gosto de vender aqui. Subestimam muito a prata da casa. Não gosto de sair de casa, mas quando vou ao Rio e São Paulo é diferente. Lá eles me dão cobertura total, além da xepa. Da última vez que fui, levei cento e cinquenta peças e vendi tudo em apenas dois dias. No Recife, recebi um convite pra morar em Hamburgo, na Alemanha, mas eu não quis ir. Já participei de cinco programas de televisão e sou muito procurado pela imprensa. A imprensa do Sul me ajuda muito: o Globo, o Estadão... Tenho duas reportagens no Estadão... Diante de sua coleção particular – composta de mendigos, Santos Dumont, sereia, velhos, muitos cachimbos – Dary expõe seu trabalho e seu sistema de produção. Eu utilizo sempre dentes de boi ou de baleia, canelas de boi e pá, compradas na fábrica de adubo. As partes da baleia compro em

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Cabedelo, na Paraíba. Sou eu mesmo que compro e faço tudo. Uso a minha química – a água Marilene, que é um detergente muito forte. Eu escolho os ossos dependendo do que eu quero fazer. Se antes eu levava dois dias pra confeccionar uma peça, hoje faço, bem entalhada, em um pedaço de tíbia – osso da perna do boi – em apenas seis minutos. O preço da peça não tem nada a ver com o tamanho. Uma peça que dá mais trabalho é uma peça mais cara, mesmo que seja bem pequena. Tenho peças de diversos preços. Em sua oficina, Dary conta com todo o instrumental necessário para tornar mais ágil a sua produção frente à demanda atual: limas, formões, grosas, tornos e motores elétricos com brocas finas que são utilizadas, fundamentalmente, nas contas dos colares e terços. Se possível, vou morar em São Paulo. Natal é um bom local pra morar, mas pra vida artística não dá. Da próxima vez que eu receber o convite pra Alemanha, eu vou! Por mim, meus filhos continuariam no mesmo trabalho que eu, mesmo depois de formados. Isso dá pra gente viver e eu tenho que trabalhar nos ossos até morrer!

Natal (RN), 1977

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Nhô Caboclo Benedito Paulo Bigode Manuel de Camaragibe

Emigrantes do meio rural, com uma trajetória de vida comum a tantos outros nordestinos, Caboclo, Benedito, Manuel, Paulo e Bigode encontram-se em uma grande cidade, tão diferente de suas regiões de origem. À esperança propulsora que alimenta o seu êxodo, sucede uma outra, fincada nos córregos, nos “altos”, nos alagados de Recife. É aí, no tumulto do cotidiano de um espaço urbano incapaz de absorver o imenso contingente de mão-de-obra expulso dos campos, que eles se firmam. Passando por uma série de experiências, onde o seu saber fazer não consegue garantir-lhes as condições básicas de sobrevivência, encontram, em outra arte, uma melhor alternativa – e nela investem com tenacidade. O trato com a madeira – transformada em rachos, talhas, totens, esculturas – tem, na produção de cada um desses artistas, uma história bem singular. Em momentos bastante diferenciados e de formas diversas, eles iniciam esta sua produção. A destreza com que desenvolvem sua proposta de trabalho, a afirmação segura da mesma, o destaque alcançado no contexto da arte popular, a conquista de um significativo mercado, identifica-os, no entanto, estabelecendo uma determinada unidade entre eles. Em todos esses aspectos, esteve presente a contribuição de uma galeria de arte de Recife – a Nega Fulô. No desafio da aliança comércio e cultura, esta galeria foi lugar de encontro, de estímulo, de escoamento. Compartilhando da luta dos artistas por melhores condições para o desenvolvimento de seu trabalho, este espaço passa a representar um instrumento de reforço à viabilidade de suas aspirações. Levando-se em conta as dificuldades de uma produção individual, de instável rentabilidade e ainda alvo de permanente pressão para integrar-se à demanda do mercado de arte, compreende-se melhor a conquista desses artistas frente a seu trabalho. Assim, diante das injunções daí decorrentes, são impulsionados a uma resposta mais explícita, gerando, nessa rede de interesses, uma definição ou redefinição de uma estratégia. A partir do discurso dominante relativo à sua produção, apropriam-se de alguns de seus valores e vão além. Mesmo envolvidos e assediados por todo um contexto que se reserva o poder de classificar e situar seu trabalho como arte, mantêm-se críticos e conseguem preservar a parte vital de seu território. Uma afirmativa encontra-se presente na luta desses artistas: se, como “arte”, sua produção é enaltecida, se é objeto de tantos e tão variados interesses, como mercadoria deveria corresponder, consequentemente, a um preço que tivesse alguma equivalência com o valor simbólico que lhe é atribuído. Situando sua arte como a melhor opção possível de sobrevivência, defendem e demonstram sua capacidade de criação, ora atendendo mais ao gosto da demanda, ora atendendo mais ao seu, o que para eles é muito significativo. Esses dois movimentos – atender à demanda e preservar seus interesses – constituem, para esses artistas, uma arma eficaz no processo de valorização de seu trabalho. Caboclo, o mais radical desse contexto – recusando-se sempre a fazer concessões –, desafia os artifícios do poder, inventa uma linguagem própria, inacessível aos eruditos, e de forma muito especial inverte a hierarquia. Critica uma certa concepção de “arte moderna” – segundo ele importada – que termina em reduzir a arte a cópias caricaturadas, sem história. Com uma posição firmada, revolta-se contra aquele que não aceita o preço por ele determinado ou que coloca defeitos no seu trabalho para desvalorizá-lo – muitas vezes quebrando a peça ou negando-se a vendê-la ao pechincheiro. Para ele, sua arte encontra-se intimamente associada à ideia de movimento – movimento que remete à própria dinâmica da sociedade moderna, da força da máquina, da guerra. Presentes, em suas esculturas, engrenagens se articulam, figuras se

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Nhô Caboclo equilibram, pássaros rodam – traduzindo seu entendimento do mecanismo da sociedade, ao qual, caboclamente, contrapõe seu ritmo. Benedito, à sua maneira, defende também a sua invenção, a satisfação proporcionada pela liberdade de imaginar, de sonhar. Tendo sempre muito claro o jogo do mercado, defende-o como condição para continuidade de seu trabalho, critica-o quando limita seus interesses. Dessa forma, conquista uma numerosa clientela e assegura sua sobrevivência. Com lucidez, avalia seu poder de afirmação, investe em novas experiências. Benedito retoma suas primeiras esculturas, em raízes, que, embora tenham um mercado mais restrito, são consideradas, por ele, mais valiosas do que sua produção mais sistemática. Esse é apenas um aspecto da defesa de seus interesses. Vendendo por mais o que em sua concepção valeria menos, e por menos o que valeria mais, garante a possibilidade de continuar desenvolvendo o trabalho pelo qual se sente mais atraído. De antigas experiências de menino, em tempos roubados de serviço do sítio do avô, Bigode guarda lírica fidelidade. O artesanato, meticuloso, cuidadoso e – neste exercício de tantos anos – seguro, parece estar, para ele, envolto em lembranças de toda uma história de vida. Anjos e santos, recriados do sabor de sua fantasia de menino de engenho, tecelão, sapateiro, escultor de Olinda, mostram – assim como as interpretações que faz do trabalho de outros – o sentido mágico por ele atribuído à arte. Fragilidade e força convivem nele em difícil adequação. Diante do mercado, a este Bigode reúne-se um outro, objetivo, inflexível, hábil, negociando sua produção, sua sobrevivência, na certeza de sua capacidade artística, na tranquilidade com que decide o preço, nas considerações fluentes sobre o valor de seu trabalho. Paulo, conhecedor da arte de pedreiro, cambiteiro e de muitas outras, encontra na arte do entalhe o melhor ofício. Na obstinação do tentar e na vitória do conseguir, chega a um lugar de destaque no circuito da arte popular. Reconhecido como artista e reconhecendo-se como trabalhador, ele mantém sempre presente a importância de seu serviço como a melhor opção possível de sobrevivência. A partir dessa perspectiva, com versatilidade, altivez, vigor e sabedoria, divide-se entre o perder, o preservar, o inventar. Assim, diminui sua produção de esculturas em toros e raízes, descobre as talhas, encontra as jardineiras, os escora-livros – garante seu espaço. Manuel, também de terras distantes e hoje escultor em Recife, talha firme a madeira, reinventa seu cotidiano, com a habilidade adquirida no exercício de ofícios anteriores. Tentando ampliar as possibilidades de venda, povoa a calçada de beira-mar de Boa Viagem com suas esculturas. Lutando por um maior reconhecimento, por um mercado mais estável, tem ainda a desafiá-lo sua produção, composta basicamente de peças de grande porte. Problematizada no discurso desses emigrantes de ontem, no centro urbano de hoje, a questão do mercado é determinante para todos os demais artistas reunidos neste livro. A proximidade maior com o grupo aqui destacado, se possibilita um melhor entendimento dessa questão, nem por isso traz certezas.

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Com exuberância de gestos e palavras, Manuel Fontoura, conhecido como Nhô Caboclo, estende aos outros – em simbologia fantástica – seu universo. Alegre e incansável contador de histórias, diverte-se em manter o interesse do ouvinte pela sua prosa, suas experiências, seus conceitos. Sem conceder mais do que o necessário, sabe preservar-se. Parece ter bem clara a fronteira do permissível – nas trocas necessárias ao convívio e à sobrevivência –, afirmando, ante qualquer aparente sinal de ameaça, uma independência braba, muitas vezes fanfarrona. Com muitos amigos e admiradores de sua prosa e de sua obra, tudo vai bem com Caboclo, desde que sejam respeitadas as regras por ele mesmo estabelecidas para preservar a integridade deste seu mundo particular. Caboclo é, assim, bastante singular em muitos aspectos. Sua figura, seu modo de viver, seus hábitos de alimentação, de higiene, seu trabalho e sua linguagem revelam um viver cheio de sabedoria. Em geral, afirma enfaticamente ter trezentos e sessenta anos de idade. Outras poucas vezes admite estar em redor dos cinquenta anos. No seu dialeto privado, saboreando a ignorância alheia do significado de muitas de suas expressões – as quais nem sempre ele decifra para o interlocutor –, Caboclo vai falando. Eu me chamo assim, não sei como vim antes. Só sei que me chamo assim – de um lado o bruxão. Nasci na Aldeia de Águas Belas, na serra de Urubá. Eu não sou índio, como o pessoal aí diz; eu sou caboclinho: casco de cuia, venta chata, pele vermelha, gente que não presta nem pra morrer. Tão ruim esse pessoal que nem saiu do Brasil. Mas são brasileiros verdadeiros, uns selvagens mesmo. Nunca foram escravos, são mulatos – nem de senzala, nem de cozinha. O pessoal moreno tem olho de lula: quer que seja seu o que não pode ser. Se vê um rico possuir um objeto, ele quer também. Já o pessoal de Águas Belas é preguiçoso, tem olho de camboja: não deseja nada dos outros. Todo rico tem olho de lula, por isso é rico. Olho de camboja é do povo que não é trabalhador, é preguiçoso e não trabalha e não fica rico. Agora, olho de padre é olho de lula grande. Matuto dá valor a padres. Aí eles fazem capela, maior que a igreja completa, botam o nome da santa capela e, então, não tem quem tire mais. Eu sei muita história, sou mais velho que Matusalém. Não sei certo meus anos porque nunca marquei minha idade. Não me lembro bem das coisas de antes, mas quando eu arregalei os olhos estava na fazenda do Dr. Figueira, em Garanhuns. Fui criado lá. Vim pro Recife já grande. No tempo da fazenda eu fazia muitos trabalhos, muita gente apreciava. Já outros diziam que eu era preguiçoso, porque tinha preguiça de trabalhar na diária. Nesse tempo prinspiei trabalhando com barba-de-bode – que é como pipiri, que nem coqueiro, que nasce numa chapada de riacho d’água, a mesma pipiri de fazer esteira – fazendo esqueleto, casa, prédio, sobrado, muitas coisas. Trabalhava também com mandioca linheira, que depois de bem sequinha é boa de trabalhar, fica como se fosse de gesso. Eu usava

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também muitos tipos de barro que tinham qualidades de cor diferente: cor de oca, cor de gesso, marrom e preto. Era barro bom de trabalhar com faca, com corte muito macio. Eu fazia qualquer coisa, qualquer lembrança que vinha no corgo. Corgo é um sentido, é uma coisa que aquele que não tem o dom pode ter. Eu não tenho o poder de possuir o dom, sou perverso, mas tenho corgo, que é a pessoa fechar os olhos e, o que vier no sentido, fazer. Por exemplo, tem cantor que só canta na escala – pode ser muito bom quanto quiser, mas só canta o tantinho da escala. Mas tem os cantores de oitiva, que quanto mais cantam mais sabem cantar e mais veem, é da nascença deles. O de escala é só aquele tanto. Pros musiqueiros da rua, os professores têm que dar aquela gradezinha de música pra eles espiar, com uma letra. Eles só cantam até aí, não podem passar pra frente que não sabem. O de nascença é o que o sentido der, porque sabedoria é obra da natureza, do espírito de luz. As pessoas que sabem ler têm uma sabedoria só emprestada, que o cardograma ensinou. É só profecia. Mas Jesus Cristo não ensinou profecia, ensinou sabedoria. Eu não imito ninguém. Tudo o que eu faço é carcatura minha mesmo, as carcaturas que eu quero fazer. Antigamente eu prinspiei a fazer um piscuí de acubagem: uma pecinha morta, que não tinha graça. Depois eu peguei a fazer peça manual pra trabalhar no vento, com um corta-vento, ligado a um vaivém, do jeito da máquina do trem que locomove uma elce. Aí a elce trabalha e em tudo que o vaivém tiver enganchado tem de bulir: todo mundo trabalhando. Depois disso, prinspiei a fazer a roda-d’água: a caçamba enchia de água, ficava pesada, aí as máquinas tinham força pra puxar um dínamo e moer a cana. Antigamente, na língua do pessoal, dizem que a arte era atrasada. Nesse tempo não tinha dínamo e se fazia então a rodad’água pra puxar a força e a luz. Tem roda-d’água de força, que é maior, e tem também pequena, com força menor. Se o espírito não me engana, a força do motor de carro é força de três cavalos – três cavalos encangados pra botar força é muita coisa. Tem peça de um cavalo, de dois cavalos, até de cem cavalos. A máquina de trem, se o espírito não me engana, é força de cem – é uma máquina de pressão, de fogo e água. Agora, hoje eu faço mais uma elce, com dois bonecos puxando o toré, que tem quinze bonecos, e o aricuri, que é o de mais bonecos. Se eu botar tudo, é uma sociedade de caboclo inteira.

num copo e aí quebra. É um mal que vinha e que, se tivesse pegado na pessoa, era o mesmo que acontecia a ela – o copo quebrou, mas a pessoa escapou. Isso chama-se espírito mau, olho mau e vento mau. A cor encarnada tira essas coisas, porque ela é respeitada em todo material em cima da terra. As encomendas dessa peça eram muitas. Eu também habitei uns tempos em Santana de Dentro, Chacon e Cobrodó, um canto lá por detrás da Casa de Saúde São José, tudo no bairro de Casa Amarela e no Jardim Triunfo. Depois eu conheci um sapateiro que ficou sendo o meu revendedor. Ele passava pra apanhar as peças e vender lá pela Praça Maciel Pinheiro, pela Ponte do Pina e pela Ponte Velha. Depois eu mesmo pendi pr’aquelas bandas. Morei uns tempos lá, no pé da Ponte Giratória. Vivia com uns crentes. Eram dois irmãos e mais outro bocado de gente. Tudo se apreciava bem. Tinha um pastor que gostava muito de minhas palestras. Eu lá era crente de mentira, porque fumava e bebia. O pessoal me conhecia como bonequeiro de Casa Amarela. Dei também pra fazer peça de passarinho e racho – racho é um trabalho estaleado, vazado. Antigamente eu fazia talha, mas muita gente pegou a trabalhar igual, aí eu deixei pra ser diferente dos outros. Esses que fazem talha, pra mim, são apenas uns grandes desenhistas em corte. Não gosto de fazer peça moderna, inspirada em outra, bem carcaturada, bem copiada, que a gente fica sem saber se pode dizer que é uma escultura ou um marnequim. Peça muito carcaturada é marnequim que é pra botar em alojamento de material de pano, esses que a pessoa faz o vestido da mulher e bota ali pra demonstrar a venda. Não gosto de coisa de loja. Gosto de trabalhar peça pra museu: museu de matuto. Peça tem de ser matuta: peça ruta que tem mais valor que a moderna. Estrangeiro é que dá valor a essas. Ele traz as peças modernas de lá pros brasileiros, que

Eu, quando estava na fazenda, trabalhava muito e entregava tudo pro pessoal de lá. Mas eu não gostava do dinheiro que eles me davam. Eu botava no mato ou então jogava no rio. Era um dinheiro grande, feio. Umas moedas que eu não compreendia, aí sacudia fora. Quando foi depois, eu vim aqui pra cidade. Aí, eu fiz que me perdi. Fiz uma engrenagem pra ficar trabalhando em Casa Amarela, lá na Travessa Padre Lemos, bem em frente da biblioteca. Eu trabalhando e o pessoal gostando. Eram seis meses de verão sem arredar dali, fazendo equilibrista, sinaleiro, lutador de espada, toré, aricuri, girador, rodante, escravidão, vendedor de arroz, esqueleto, caveira. Caveira é uma peça pra fazer como mal-assombro. Eu pintava de encarnado o espírito mau, o olho mau. Fazia pra botar na cumieira das casas, porque tem vez que a pessoa vai pegar

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gostam muito só porque é de lá, mas os estrangeiros gostam de peça matuta, que tem história. Peça moderna não tem história, feito as de igreja, que são muito carcaturadas e ninguém arranja uma história pra contar. Minhas peças têm história. Gosto de fazer peça de penas e guerras. É muita luta e o derradeiro a ficar vivo sou eu mesmo. Não gosto de mudar a língua pra coisa moderna, feito palavra de bico, que caboclo não sabe falar. Palavra de bico é macho, é de matuto que não sabe falar. Palavra de caboclo, mesmo, tem que ser de boca bem aberta, é palavra fêmea. Quem não sabe ler é cego, bruto e ruto, mas, mesmo sem saber ler, deve saber entrar e sair. Eu, por exemplo, sei entrar e sair: bater papo com o Presidente, ou mesmo em Roma. Nem todo mundo sabe bater papo com o Papa, mas eu sei. Com o Papa Pio Piador Piando. Eu boto classe nele que é um homem muito sabido. Ele imita o grande profeta que tem sabedoria. Só faltam aí uns graus pra atingir o adivinhar. O profeta era Jesus Cristo, agora ficou o Papa, que é um homem muito sabido que dá as ordens, tem sabedoria e entende. Eu sei disso porque tenho a história, são três pessoas. Era uma criancinha que era Deus, cavando um buraquinho pra botar as águas do mar dentro. Se ele fizesse isto, ele descobria as palavras, então as palavras ficavam públicas. É uma história muito comprida, eu já contei ela até pra padre, pensando que era um doutor. Também, todo padre tem olho de lula. E ainda tem as histórias de Mussafer e Lúcifer. Caboclo tem as invenções do seu juízo e só faz o que quer. Quando me dá vontade, eu como cinco quilos de peixe de uma sentada só. Também passo um mês todinho no café. Se eu me aperrear num canto, pego minhas ferramentas e vou pra debaixo de um pé de pau. Banho eu tomo às vezes. Já passei doze anos sem tomar banho: não gostava de água de cano. Agora, quando me dá vontade, eu tomo. Preço de peça minha só quem sabe sou eu e mais ninguém. Não quero conversa com pechincheiro. Prefiro trocar a peça pelo cigarro de um maloqueiro do que estar baixando o preço – é aquilo, é aquilo. Agora, caboclo só quer ser o que pode ser, por isso não me casei. Uma mulher é mais caro do que uma cabra. Uma cabra a gente amarra num pé de pau e ela ainda dá leite. Mulher não, fica em casa como passarinho no ninho, com o bico aberto: ‘Marido, quero comida; marido, a geladeira do vizinho é maior; marido, o fogão do vizinho é mais bonito.’ Mulher só quer ser o que não pode ser. O instrumental de Caboclo, com o qual consegue os mais precisos efeitos, faz parte de sua produção própria, é quase todo construído por ele: velhas facas de mesa, com apenas 3cm de gume, afiadíssimas; hastes de guarda-chuva, improvisadas em estiletes; um monte de tampas de latas de filmes, recortadas, esperando a vez de servirem como cata-vento; marretas, martelos, pregos e parafusos de todos os tamanhos; prensa, pua, grosas, serrotes, tesouras; extrato de nogueira, verniz, breu, colas, penas, cordões, fitas, cabaços, contas; e uma infinidade de bugigangas que ele não pode ver passar sem pegar, no desejo de, um dia, aproveitá-las em uma invenção. Tudo iluminado por uma lâmpada de duzentas velas, com muitos metros de fio ligados a um tripé rudimentar, que ele puxa com facilidade para onde quer que resolva trabalhar. E ainda o som de um rádio, ligado – muitas vezes a todo volume – e desligado à distância, por uma engrenagem também de sua autoria – fruto de uma engenhosa articulação com uma antiga enceradeira elétrica. A força da personalidade de Caboclo, aliada à consciência que tem do valor de seu trabalho, marcado enfaticamente por uma ânsia de liberdade, fazem-no um árbitro quase que absoluto de seus próprios costumes, de suas resoluções, escapando a qualquer possibilidade

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de aprisionamento à norma. Caboclo desarticula o mundo que tenta cercá-lo, contrapondose a ele, afirmando e inventando alternativas no seu viver cotidiano – sempre com ironia, com humor. Aceitando um convite para ser entrevistado diante de um auditório, com mais de cem pessoas, durante a programação de uma “Semana do Folclore”, Caboclo comenta depois essa experiência. Eu ainda não tinha me apresentado numa julião (reunião) dessas. Aí preparei uma batida com sessenta limões e uma garrafa de Pitu. Tomei esse preparo e fui pra lá. Quando espiei que vi aquele bocado de gente, tudo assim junto, conheci pela primeira vez o que era a vergonha. É um bicho feio, desse tamanho (com um gesto, indica uns 70cm), com os cabelos arrastando no chão. O bicho vinha de lá onde o pessoal estava sentado, até chegar junto de mim. Ele vinha e voltava – e eu sentindo aquele mal-estar. Pra espantar o bicho puxei assunto com uma pessoa da primeira fila. A vergonha foi embora e eu botei todo mundo no bolso. Em abril de 1976, uma gripe desencadeou uma perturbação violenta e fatal no organismo de Caboclo. Todas as marcas deixadas pelas suas extravagâncias alimentares, pelas muitas lapadas de cana e, até mesmo, de gasolina – pra espantar os abelhudos –, e mais uma deficiência cardíaca, cujos sintomas eram interpretados com excentricidade (ele dormia sentado numa espreguiçadeira – Caboclo só dorme assim), conspiraram definitivamente contra ele, levando-o à morte. Uma grande facilidade de comunicação e um saboreio todo particular sempre levaram Caboclo a falar muito do seu trabalho e de sua visão do mundo. Extensas e significativas gravações podem hoje ser encontradas em entidades de ação cultural, bem como na lembrança de quantos o conheceram, admiraram e amaram. Através dos trabalhos do jovem Adriano Jordão de Souza, a obra de Caboclo encontrou continuidade. Entre 1975 e 1976, na Galeria Nega Fulô, em Recife, Adriano conviveu com Caboclo, tornando-se seu admirador, auxiliar e discípulo. Três meses após a morte de Nhô Caboclo, passou a fazer rachos, torés, equilibristas, acrescentando temas novos, dando, à linha de trabalho de seu mestre, seu próprio direcionamento.

Recife (PE), 1975/76.

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Benedito Meu nome é Benedito José dos Santos. Nasci em Maceió, no ano de 1937. Vim pra Recife já de maior, e atualmente vivo em Olinda. Quando eu cheguei aqui no Recife negociava com miudeza no mercadinho de Santa Rita. Foi quando houve um incêndio que acabou com tudo. Pra mim foi muito ruim! Eu não tinha reserva. Peguei a vender pelas feiras, mas não estava dando pra sustentar a família. Eu sou praticamente analfabeto – nunca entrei numa escola. No tempo que eu negociava aprendi um pouquinho: quando uma pessoa pedia uma qualidade de sabonete e apontava, eu ia ligando. Hoje leio alguma coisa no jornal, assino o nome e até votar eu voto. Faz seguramente uns cinco anos que eu comecei a trabalhar na madeira. Tinha um pensamento de fazer umas peças de madeira, sem nunca ter visto ninguém fazer. Já tinha visto outras peças prontas, mas essas não tinha no pensamento de jeito nenhum – inventei. Comecei com raízes que eu achava no mato. Fazia cobra, lagartixa, qualquer tipo de bicho. Por exemplo, de uma raiz, da parte de cima eu faço um índio, uma pessoa; embaixo, lagartixa, cobra... Quando comecei, pensei em fazer um trabalho pra vender. Hoje tomei gosto. Mesmo se um dia tirasse a loteria, ficava fazendo uma peça e outra. Uma madeira retorcida, guardada no canto da sala, é lembrança dos primeiros tempos de seu trabalho como escultor. Depois, fui pensando e fui fazendo essas figuras de hoje, com a ajuda dos sonhos. Acho que é porque adormeço com aquilo no juízo. Passo o dia pegado na madeira; aí de noite vem o sonho. Quando acordo, chega a imaginação. Então tenho uma felicidade estranha. Um dia sonhei fazendo uma estátua: uma pessoa, mas eu não me via entalhando. No sonho eu já estava na pintura, acabava e pregava na parede, uma banda só, de cima a baixo. Acho que foi porque não sonhei eu fazendo mesmo, que passei muito tempo sem conseguir fazer aquela figura. As figuras humanas e de bichos, incrustadas nas raízes, pouco a pouco foram sendo substituídas por esculturas isoladas, em cedro, oiticica, imburana, amarelo e cerejeira – madeiras de qualidade –, devido à preferência do mercado. Atualmente suas peças representam, basicamente, imagens religiosas, embora Benedito não as reconheça como tal. Esguias – de tamanhos que variam entre 15cm e 1,60m –, cabelos compridos, mantos ou vestes até os pés, apresentam expressões semelhantes: boca sempre marcada por um traço curvo, com ar sorridente, olhos rasgados, nariz geralmente proeminente, em forma triangular. Em linhas bem definidas e bastante simplificadas, as figuras de Benedito trazem apenas o essencial em suas formas. Seu entalhe singular marca as peças tanto quanto sua assinatura. As roupas e os cabelos – quando não são mantos – destacam-se apenas pelo relevo na madeira que faz sobressair essas partes, sem nenhum entalhe sobre as mesmas. Mãos e pés, quando aparecem, são marcados por recortes arredondados ou retos, detalhados por pequenos traços. Os mantos têm, quase sempre, cores fortes, como vermelho, verde, ocre e roxo; os cabelos, quando aparecem, são pretos. O rosto e, às vezes, partes da escultura, ou toda ela, são deixados na madeira natural. Depois da raiz, o meu costume sempre foi assim, fazendo as figuras desse jeito que eu faço agora. Têm uma aceitação formidável! Sinto felicidade porque faturo dinheiro. Se as pessoas acham isso ou aquilo de minhas peças, eu não entendo. Dou valor à aceitação, só quero um futuro sempre

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Benedito

melhor. Por isso eu adoro trabalhar nesse serviço. Faço assim porque gosto, mas, se quiser, faço um busto copiando a feição de uma pessoa. O pessoal diz que eu faço santo, mas não é santo, não! Boto esses mantos compridos em uns porque, nesse caso, a veste dele deve ser completa. Faço uma base de cinquenta peças diferentes umas das outras. Ultimamente, o que mais gosto de fazer é a mãe e a filha, que chamam de Santana, e o pai e o filho, que são dois pedaços de pau cruzados, quatro mãos, quatro pés e duas cabeças, o filho dentro do pai. Faço também o filho carregando a cruz, finalmente é a peça que eu também gosto mais. É muito difícil – só fiz umas cinco ou seis. Foi uma ideia minha, nunca tinha visto em lugar nenhum. Foi quase um sonho, uma imaginação. Faço essas peças porque acho bonito, mas não por uma fé de que é santo. Acredito em Deus, mas não tenho religião nenhuma. Que um homem sofreu na cruz, também não acredito, não. Deus pra mim é a natureza. Benedito faz ainda Cristo Crucificado, São Francisco, São Sebastião, santas, enterro – com o morto na rede conduzido por duas pessoas. Esta última peça tem sido produzida com menor frequência, dada a dificuldade de encontrar a madeira que propicie o trabalho. Atualmente ele compra a madeira nas serrarias, não mais a conseguindo no mato, onde antes encontrava suas raízes e troncos. A tinta, preparada por ele mesmo com mistura de anilina e vernizes, tem a propriedade de secar rapidamente. No acabamento é auxiliado por sua mulher, que lixa as peças. A escultura na raiz eu faço por amor. É muito mais trabalho e não tem a mesma aceitação das outras peças. Ela pode ficar bonita, mas não tem movimento nem vende logo. São poucas as pessoas que dão valor. Quando faço uma raiz é por amor, mesmo dando muito mais trabalho, vendo por menos. Nas outras peças tenho menos prazer que na raiz, e também menos trabalho, mas pela aceitação eu vendo por mais. Assim, fica o ganho pela receita. Agora a venda das minhas peças está ficando mais equilibrada. Quando eu via juntar muita peça eu ficava louco. Pra mim, o importante é vender! Está dando pra viver. Antes o dinheiro era pouquinho. Eu não entendia, aí vendia por qualquer preço. Agora estou ganhando mais, já sei o preço da madeira. Vejo tudo pra poder tirar a alimentação de minha família – a medida é essa. Mas a vida está ficando cada dia mais difícil. Estou pensando em tomar um empréstimo pra fazer uma barraquinha junto de casa, pra vender jaca, banana, miudeza... Se a gente não arranjar outra coisa pra roer, não dá! Estou pensando nisso. Aí, minha mulher toma conta. Ela arranja o pão da manhã e da noite, e eu arranjo o do meio-dia. Pode ser que o lucro da jaca, das miudezas, vá dando pra ajudar.

ESPAÇO IMAGINAR Benedito

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Paulo Benedito trabalha em uma barraca de palha que construiu ao lado de sua casa. Entrega toda sua produção a uma única loja, gastando quase a metade do que ganha no material necessário para executar suas esculturas. Se essa loja um dia se fechar, eu vou embora pro Amazonas – quer dizer, um absurdo assim. Abandono tudo e volto a ser negociante, porque achei muito ruim quando vivia oferecendo meu trabalho a um e outro. Depois vi chegar a oportunidade de darem valor ao meu trabalho. Antes só ouvia crítica da vizinhança. Acho bom como estou trabalhando: sem máquina, sem botar gente pra ajudar, pra não aumentar a produção e ter que colocar peças noutros lugares. Agora, a coisa que eu tinha mais vontade na vida era ver um retrato meu com uma reportagem sobre o meu trabalho. Não é pra ninguém dar mais valor, que o que importa é vender e estou vendendo, mas eu queria uma reportagem assim pra deixar de lembrança para os meus filhos quando eu morrer. Pobre só sai em notícia em tempo de enchentes ou quando faz uma desgraça.

Olinda (PE), 1975/76.

Nasci em 1932, no engenho Sete Ranchos, município de Amaragi, em Pernambuco. Ainda bem menino perdi meu pai e minha mãe e me criei com um irmão mais velho. Com ele e com outros irmãos tive meu primeiro trabalho na enxada. Depois fui cambiteiro nos engenhos, carregando cana e lenha, pastorador de boi e servente de pedreiro. Aí me destinei a sair pelo mundo e a andar. Fui pro lado do sertão, pendi pra cidade grande, nem sei mais onde eu andei. Isso, ainda trabalhando de servente e ajudante de pedreiro. Por volta de 1955 vim pra Recife, continuando algum tempo nesse ofício. Então minha mulher conheceu uma senhora de Iputinga, D. Cecé, e falou com ela pra servir de madrinha pra uma filha da gente. Eu não sabia fazer nada mas tinha uma ideia e, de experiência, fiz uma casinha de massa de papel – um chalé – e dei de presente pra ela. A senhora mandou me chamar pela minha mulher, insistindo que eu aparecesse, mas eu, com vergonha, demorei muito a ir falar com ela, até que um dia fui. A senhora me animou demais e disse que eu dava pra qualquer alguma coisa. Ela fazia uns colares com as contas de massa de papel. Então ela me encomendou umas contas maiores pra fazer um terço. Fiz e deu certo. Ela me perguntou se eu não fazia uns quadros na massa, de qualquer figura que eu quisesse. Pelo meu entendimento fui fazendo Ceia Larga, Moisés, flores, terços, Cristos... Ela achando bom e eu fazendo. Depois fui vendo que a massa de papel tinha um defeito: com a continuação, dava bicho. Então comecei a fazer talha de madeira velha que às vezes me davam e outras vezes eu comprava, como compro ainda hoje nas demolições. Só compro em serraria quando é pra entalhar os toros das estantes. Mas essa madeira nova é arriscada, muitas vezes racha e não tem tanto valor como a velha. Em formas simplificadas – desenho e entalhe conjugados –, o trabalho de Paulo é preciso, definido. Com serrote, formão, grosa e enxó, produz com hábil segurança suas talhas, que variam entre 15cm e 2m: escora-livros, jardineiras, totens, grandes cabeças em troncos de árvores. Neste saber fazer, a madeira escolhida dá uma contribuição importante à singularidade de sua produção. A textura encontrada nas madeiras de demolição que utiliza – aproveitando quase sempre as camadas de tinta já existentes, queimando-as a maçarico – incorpora-se ao efeito conseguido, ao desenho, ao entalhe. Ramagens, frutos e pássaros compõem as talhas com seus temas preferidos: figuras de Adão e Eva, Última Ceia, Cristo, Maternidade – mulher com criança esculpida no ventre –, Lampião, Maria Bonita... A figura feminina distingue-se da masculina mais pela cabeleira – em alongados sulcos – do que pela roupagem. Outra especificidade nas figuras humanas de Paulo é não possuírem mãos nem pés. Braços e pernas geralmente são finalizados na continuação de outra figura, na composição das ramagens ou ainda na base que constitui a moldura. Destaca-se ainda em seu trabalho a própria forma do entalhe. A superfície originária da madeira é conservada plana nas partes que formam a figura e a moldura, sendo todo o restante desbastado e reduzido a um outro plano, também uniforme, rebaixado em geral apenas 1cm. A pintura primitiva da parte que é mantida ressaltada, ainda pela sua textura, acentua a disposição dos planos. A partir de 1976, Paulo começou a produzir talhas vazadas. Na mesma linha das primeiras, apresentam como inovação o aprofundamento do recorte da madeira, suprimindo o que antes formava a superfície de fundo. Não são mais os dois planos que produzem o efeito desejado, mas sim os espaços vazios intercalados pelas figuras, ligadas entre si e à moldura, que servem agora como suporte. A essas e outras talhas nas mais variadas formas e tamanhos, às suas esculturas – estas em geral sob encomendas – reúnem-se peças com finalidade utilitária. É o caso dos cubos de

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Benedito

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madeira maciça entalhados em três faces, usados como suporte para pranchas de madeira de estantes; dos escora-livros, formados por um par de cubos de madeira maciça, também entalhados em três faces, utilizados como apoio para livros; das “jardineiras” – talhas retangulares, com altura variando em torno de 10 a 15cm, com uma armação especial, servindo para arranjos de plantas e flores. Sucedem-se candelabros, molduras para espelhos, estrados de camas, etc... Trabalho meu é de minha cabeça. Não é nada que vi nem de desenho. Tudo que faço é pela minha cabeça, meu juízo – Adão e Eva, Cristo, Ceia... Tudo do meu juízo. Penso: vou fazer tal coisa. Pego a cortar, e aí sai o que quero. Esse jeito de queimar, de passar outra tinta quando a tinta velha não presta, isso aí também não vi em canto nenhum. Vou experimentando, dou uma reação de pintura e vejo no que dá. Paulo trabalha sempre sozinho e assina as peças com suas iniciais: P. O. S. – Paulo Orlando da Silva. Ligado à Cooperativa Mista Artesanal de Recife há onze anos, atende aí de forma assistemática a algumas encomendas. Em duas galerias, de Recife e Boa Viagem, e ainda com uns poucos particulares, mantém um comércio de certa forma regular. Sua casa, situada numa elevação de uns 30m, é de difícil acesso, sobretudo para seu material de trabalho. Na parede principal da sala, talhas de sua autoria compõem um painel similar ao que se encontra na casa da senhora que o estimulou no primeiro contato com a arte. Às vezes tenho vontade de ajeitar mais a casa; outras vezes tenho vontade de vender, mas ainda não achei quem dê o dinheiro que eu botei nela. Luz não tem, e é o que mais falta faz para meu trabalho. Também tenho vontade de me mudar pelo sacrifício que é trazer a madeira aqui em cima na casa: o carro fica a bem uns 300m de distância. Mas, mesmo assim, pra mim, com sacrifício, vai dando bem. Se eu fosse depender desses salários de hoje em dia, meus filhos já tinham morrido de fome. Gosto de minha arte, sinto bastante. Quando saio que chego vou logo ficando de calção pra pegar no trabalho. Se eu não tivesse a arte, tinha que pegar outro serviço, era o jeito. Mas sei que do meio pro fim da semana ia ser aquele aperreio pra matar a fome. Queria que meus filhos vivessem do mesmo ramo que eu vivo.

Recife (PE), 1975/76

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Paulo

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Bigode Nascido em Goiana (PE), em 1929, José Alves da Silva, conhecido como Bigode, faz esculturas em madeira. Comecei a trabalhar na madeira menino ainda, com seis anos. Eu morava com meu avô, que era lavrador e plantava cana. Ele não queria que minhas irmãs brincassem de boneca. Um dia, a sogra de minha tia, que fazia bonequinha de pano, deu duas bonecas pra minhas irmãs. Meu avô tomou, rasgou, botou fora e disse: ‘Cresceu aqui, tem que semear cana, cortar capim para os cavalos e atucalhar os passarinhos pra não comer o milho, o feijão.’ Eu só sei que as meninas botaram pra chorar. Aí eu disse pra elas: ‘Tem nada não. Eu vou pra o assento do mato, vou fazer uma faquinha e vou fazer uma boneca, pra cada uma, de raiz de mulungu’ – que é uma madeira dura e fofa. Aí, eu fiz duas bonecas: o rostinho, os braços. Meu avô viu e quebrou. Então danei a fazer boneca. Só vivia no mato, catucando pedaço de pau. Fui assim: cismei de fazer e fazia. Um dia dei dez tostões a meu tio e pedi pra ele comprar uma faca na feira. Eu ajeitei a faquinha e resolvi fazer santo, santinho, que minha avó tinha no oratório para rezar no mês de maio. E todo santo que eu via eu queria fazer. O primeiro foi o São Vicente que minha avó tinha. Depois foi um Santo Onofre, aquele que pede esmola. Lá se vai eu roubei o santo e fiquei no mato, olhando pra ele e catucando o pau, um pedacinho de mulungu. E daí eu vim aprendendo, evoluindo... Mas nem sempre exerci essa arte. Logo que cheguei aqui em Olinda, pra morar com meu padrinho, comecei foi aprendendo a trabalhar com sapato. Com pouco tempo passei a mestre e, com pouco mais, eu já era sapateiro. Durante muitos anos fiz sapatos, tanto nas fábricas de Recife como em Nazaré da Mata. Lá em Nazaré eu era luís-quinzeiro, quer dizer, eu era especialista em fazer sapato Luís XV pra moça rica, tudo com salto bem alto. Em Olinda, tinha minha barraquinha e todo mundo gostava de mim. Era um ídolo em sapataria! Mesmo assim eu sempre me recordava das imagens pequenas que fazia pra minhas irmãs. Aí deixava o sapato pra fazer minhas esculturas. Em 1968, tendo já se definido como escultor e entalhador, Bigode participou da Escolinha de Arte de Olinda, uma iniciativa da Empetur, da Arquidiocese e de alguns particulares. Era uma escolinha que dava orientação aos pequenos guias. Eu explicava a eles como fazia talhas. Lá todo mundo fazia e vendia. O pessoal gostava muito dos meus bonecos. Até hoje, às vezes, pra ajudar algum rapaz de Olinda, dou uma insinuação de como é que deve ser a escultura, porque escultura não se tem base de ensinar. É preciso que a pessoa mesmo se dedique, na posição que quer fazer, e pense no seu trabalho. Quando se trabalha não se pode conversar muito porque isso acaba tirando a gente do itinerário. Uma vez, fiz um São Francisco com o rosto pra trás e acabei botando as mãos pelas costas porque estava conversando, conversando. Estímulos, encomendas, um mercado mais sistemático foram animando o artista. Esculturas foram se sucedendo, marcando cada vez mais seu estilo, seus temas. Quando faço minhas figuras procuro fugir um pouco ao tema religioso. Quero fazer mais pra decoração, pra ornamentação. São santos, mas em termos de ornamentar, porque se fosse em termo religioso precisava colocar olho de vidro, aquelas coisas todas,

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Bigode

pra ficar muito adorável. Prefiro fazer pra ornamentar, isto é, pra realçar uma sala. O estilo religioso está muito manjado; o folclórico já é melhor. Mesmo assim, prefiro o meu estilo. Bigode afirma com ênfase a propriedade do seu pensamento – sem tirar ideias nem de revistas nem de igreja. Do jeito que eu penso, porque tudo tem o bem e o mal. Fiz então uma vez um anjo escuro e um anjo claro, um deles com a mão na barriga, como que paralisado. É assim, em termo de imagem que não justifica coisa alguma, como uma espécie de um pedestal: uma coisa parada. Eu faço a iniciativa pela cabeça. A inspiração vem assim: eu estou em casa, aí vem aquela vontade de trabalhar. Mesmo quando estou passando mal – porque de vez em quando fico doente – parece que naquela hora eu me sinto bem. Aí eu preparo seja lá o que for, alguma coisa, e faço. Sua produção se concentra sobretudo nos santos, e, aí, principalmente nos São Francisco – de Assis, dos Pombos e das Chagas –, que se diferenciam pela posição dos braços e das mãos. Digamos, o São Francisco com as mãos cruzadas no peito significa a parábola ‘sempre no meu coração’. O que tem as mãos abertas diz: ‘a paz sempre está convosco’. Variando de 60cm a 1m – maior não gosto não. É um trabalho muito penoso –, Bigode faz também São José de Botas, Jesus Homem, Cristo, anjos, Buda, pombas-gira... Já fiz um São Pedro com braço na tipoia. Li um trecho que dizia que São Pedro, quando era Papa de Nápoles, fingia que tinha um braço quebrado. Ninguém tinha certeza se estava quebrado ou não. Isso, na mão esquerda, porque na direita estava com a chave. Aí fiz assim mesmo. A madeira utilizada nas suas esculturas é comprada nas serrarias ou de alguns meninos de seu conhecimento – familiarizados com o trato da madeira, como entalhadores, e habituados a conseguir madeiras velhas, “tocos”, encontrados a esmo. Se a madeira for boa, eu trabalho; se não, eu encosto. Quando compro na serraria prefiro o amarelo ou perobinha. Não são todas as peças que eu lixo, não. Dou destaque só com o extrato de nogueira. Para fazer um santo de 60 a 80cm passo mais de três dias. O preço eu calculo pelo meu trabalho e pelo tempo gasto, não pelo tamanho. Faço cálculo de um preço, mas sempre vendo por menos daquilo. Eu não me sinto bem com isso não. Quando eu encontro um pedaço de madeira que sai mais barato, ainda dá. Mas e quando eu vou pra serraria comprar? Apesar das precárias condições de vida, Olinda é para Bigode a sua cidade, o lugar onde encontrou espaço para desenvolver um trabalho pelo qual sempre se sentiu atraído. Vivo aqui em Olinda desde 1949, e antes disso eu passei tempos aqui também. Só voltei pra Goiana durante dois anos, pra trabalhar na fábrica de tecidos. Gosto muito daqui e nunca desejei sair de Olinda pra canto nenhum, a não ser para o cemitério da mesma. Para Bigode, o importante no seu ofício é marcar a peça com alguma singularidade. Nesse sentido, destaca o trabalho do Louco, escultor popular da Bahia, e de Nhô Caboclo, seu companheiro em Pernambuco.

ESPAÇO IMAGINAR Bigode

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Manuel de Camaragibe O serviço do Louco tem uma separação dos outros que é aquele estilo arrepiado, aquele estilo selvagem. Uma coisa que é feia mas torna-se bonita. O feio demais é bonito, e o bonito demais se torna feio porque, muito bonito, a pessoa de longe não divulga e de perto não vê nada. Existe isso perante a arte. Existe e, como se diz, o feio, de perto, a gente vê tudo, e de longe vê a beleza onde está: realça, cresce, é uma mágica. A gente vai se afastando e aquilo vai crescendo. Eu acho que o serviço do Louco tem realce. Também gostava demais do serviço de Caboclo, pelo menos daquelas ideias, daquilo que ele tinha, daquele racho. Aquilo foi um termo quase criado por ele, pelo menos a modificação das talhas para racho. Já tem uma diferença até no nome. Talha é uma coisa, racho é outra, escultura é outra. O negócio mesmo é penetrar na madeira para insistir até encontrar a posição através do corte. Toda peça que eu faço fico gostando dela. Para começar a trabalhar é preciso um certo apetite. Começo a namorar e a conquistar – aí então é que chega o prazer de enfrentar um pedaço de pau e fazer uma peça.

Olinda (PE), 1975/76

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Bigode

Foram muitas as atividades experimentadas por Manuel antes de se tornar escultor. Nascido em um engenho do município de Ipanema, no Estado de Alagoas, ainda bem pequeno começou a trabalhar. Com sete anos eu já amarrava cana e cambitava com meu irmão. Só não cortava cana porque era muito pequeno. Depois a gente saiu do engenho e eu, já com dez anos, peguei trabalhando numa olaria, carregando lenha e amassando barro pra fazer tijolo manual. Daí fui pra uma cerâmica, onde eu ajudava a tirar areia do rio. Até brita em pedreira eu já quebrei. Mas achei que essa arte não era competente e resolvi ser ajudante de meu pai, que era carpinteiro. Foi com quem aprendi a tratar a madeira. Sei fazer móvel, esquadria... Também ganhei um dinheirinho como machadeiro. Um dia eu conheci Daniel – um escultor de peças bem grandes, que tem muitos conhecimentos. Peguei ajudando ele, lixando e ajeitando as peças, até que um dia recebi uma encomenda de um Padre Cícero. Pra fazer esse trabalho botei três madeiras a perder, fazendo teste. Mas quando consegui ficou muito boa. Aí me encomendaram um anjo de mãos postas e um São José com 1,70m de altura, e disseram que se tivesse mercado eles faziam outro pedido. Nessa espera, fui trabalhar como pedreiro em Caixa-D’Água, um bairro do Recife. Foi quando recebi uma encomenda de doze estátuas. E de lá pra cá não parei mais. A partir dessa época – 1972 – Manuel, palmo a palmo, vem conquistando seu lugar como escultor. Em 1973, uma exposição individual em uma galeria de Recife, promovida por um comprador particular, chamou mais atenção para seus trabalhos. Nessa e em outras galerias, como também a particulares, ele continuou a vender.

ESPAÇO IMAGINAR Manuel de Camaragibe

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Depois do Padre Cícero, teve uma Santa Teresa que eu quis fazer, mas acabei perdendo a madeira por causa de um oco que tinha dentro dela. Eu não tinha uma psicologia no juízo, uma mentalidade certa, e botei a perder a madeira. Tentei então uma Santa Luzia, que ficou muito bonita nos detalhes, tudo bem recortado, mas o rosto não ficou proporcional. Quando aprendi melhor a arte, endireitei o rosto da santa. E só assim consegui vender. Nas estampas e nas imagens das igrejas, Manuel se inspira, procurando conservar dos modelos as características convencionais de cada santo: a chave de São Pedro, os pássaros de São Francisco, os anjos da Nossa Senhora da Conceição... A postura, o vigor, o ar desafiante de São Sebastião cravado de flechas, por exemplo, são elementos próprios de Manuel. Foi assim a origem que me trouxe a personalidade em apurar o juízo, toda a imaginação do pensamento. Assim fui apurando, apurando, até que chegou o ponto de me traduzir em fazer por conta própria, sem o ensinamento de ninguém. Faço segundo o estilo moderno, que dá menos trabalho. O antigo dá duas vezes mais porque tem muito detalhe, muita decoração, muito declive no manto, no gesto e na posição. Faço santo, sertanejo, Lampião e Maria Bonita... Hoje faço mais gente, mas fiz também escultura de animais: passarinho, carneiro, cavalo, boi, leão. Esses bichos faço mais de acordo com o pedido do cliente. Lampião e Maria Bonita já tinha visto em figura de cinema; e já tinha uma imaginação no juízo, uma imaginação purificada. Pra tirar alguma dúvida, arranjei um livro, mas não gostava nem gosto de fazer igual. Só gosto de fazer novidade, gosto diferente, sempre modificado, de acordo com uma personalidade, um jeito fora de série.

Manuel já fez escultura de 40cm até 2m de altura, como um Adão e Eva de encomenda. A seu ver, as esculturas mais fáceis de vender são as de tamanho médio, até 1,50m, como São Francisco, São José e Santo Antônio... Faço três modelos de São Francisco: de Assis, de Canindé e de Paula. O Francisco de Canindé tem o manto mais proporcional que o de Assis e tem uma cruzinha na mão. O rosto é modificado – é bem barbudo e é careca –, sendo a veste sempre a mesma. No desempenho de seu ofício, Manuel conta com a ajuda de Biuzinho, um auxiliar a quem paga por diária. Como matéria-prima, tem preferência pela jaqueira. As outras madeiras são muito caras. A jaqueira compro nos sítios. Compro a árvore em pé, derrubo e pego a trabalhar. Saio procurando por aí as jaqueiras antigas, às vezes doentes, que não frutam mais. Falo pra comprar ao dono do sítio, se ele quer desocupar o terreno. Toro com o machado e pego a trabalhar. Depois, no encaminhamento do trabalho, uso a machadinha, o enxó, os formões, goiva, goigivim, grosa, raspa, lixa, arco de pena, serrote... Tudo eu fui comprando pouco a pouco. O preço das peças, ele fixa de acordo com o valor da madeira, do transporte e das diárias – suas e do ajudante. A maioria do pessoal acha caro. A vida em Pernambuco é sempre mais dura de se levar. Vende-se mais em galeria. Aqui a situação é muito difícil, mas assim mesmo estou satisfeito com a arte. Não tenho tanta preocupação como tinha com a arte de pedreiro e marceneiro, que mal davam para a alimentação. Além de tudo que já experimentou em termos de trabalho, Manuel também pinta. Já juntei uns quadros e acho a arte da pintura muito mais bonita, mais decente. É um trabalho mais valorizado e mais aperfeiçoado que a escultura, apesar da escultura ser mais difícil porque tem que ter aquela ciência de desenhar e de cortar. Sou também compositor. Tenho várias músicas minhas, mas o único instrumento que eu toco é o tambor. É com ele que eu toco no centro da minha religião de Umbanda. Trabalho sempre em reunião de mesa – no toque, na obrigação dos setenta e nove filhos da seita. Já tenho a licença de ser chefe de tenda. Ao lado da minha casa e da minha oficina, eu tenho o lugar do culto. De acordo com o executamento, o desenvolvimento, a capacidade que eu vejo que a pessoa tem, aquela competência, então dou autorização pra ele tomar conta de si próprio. Os santos da seita de Umbanda, traçada no africano, são os mesmos da Igreja Católica. O primeiro é São Bartolomeu, depois São Jorge, São Expedito, São Lázaro... Todos os santos da Igreja Católica compartilham também a mesma referência. Nossa Senhora de Santana, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Nossa Senhora Auxiliadora, São João Batista, Santa Bárbara, Joana D’Arc, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora da Conceição, da Glória, São José, Senhor do Bonfim – são os orixás introduzidos e representados na seita africana. A Umbanda representa a origem da paz, da união, da fé e da conspiração espiritual.

Recife (PE), 1975.

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ESPAÇO IMAGINAR

Manuel de Camaragibe

ESPAÇO IMAGINAR Manuel de Camaragibe

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ÍNDICE ONOMÁSTICO ALAGOAS

PENEDO Antônio Pedro 217, 219, 220, 221

BAHIA

CACHOEIRA Armando 130, 140, 141, 142, 143, 144, 245 Bolão 130, 133, 138, 139 Louco 130, 131, 132, 133, 134, 136, 137, 144, 303, 304 Maluco Filho 130, 132, 133, 134, 135 Tamba 130, 140, 143, 144, 245 JUAZEIRO Bitinho 110, 111, 119, 120, 121, 123 Jocanto 110, 111, 123, 124, 125 Manelito 110, 111, 121, 122 MARAGOGIPINHO Almerentino 153, 154, 155 Biu 162 Boreste 156, 157, 158, 159 Maurílio 162, 163, 164 Rosalvo 165, 166, 167 Vitorino 147, 150, 151, 152, 153, 160, 165 Zé Curu 160, 161 SALVADOR Braulino 183 Caxiviti 174, 177 Doidão 130, 132, 133, 136, 137 Jaciara 178, 179, 180 João Batista 181, 182 José Inácio 175, 176, 177 Sebastião 184, 185 Valdevino 188, 189 Walter 186, 187

CEARÁ

CANINDÉ Dedé 245, 261 Francildo 245, 261, 262, 263 FORTALEZA Antônio Matos 268, 279, 280 JUAZEIRO Cícera Araújo 245, 252, 253, 257 Cícera Lira 245, 254, 255, 256, 257 Franciner 245, 248, 249, 262

ÍNDICE ONOMÁSTICO

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Galdino 256, 257 Maria Cassiana 245, 256, 257 Mestre Noza 245, 246, 247 Nino 245, 250, 251 Zé Duarte 245, 258, 259, 260

MARANHÃO

SÃO LUÍS Francisca Alves 226 João Santeiro 227, 228

PARAÍBA

ACAÚ Dedé 93, 103, 104, 105 CABEDELO Antônio Paulo 268, 277, 278 Tonho Cosme 268, 283, 284 CAMPINA GRANDE Anete 267, 268, 269, 270 LAGOA SECA Paulina 229, 231, 232, 234 PILÕES DE DENTRO João do Gado 224, 225

PERNAMBUCO

CARUARU A família Vitalino: Vitalino 21, 26, 29, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 68, 69, 71, 77, 81, 84, 85, 87, 89 Amaro 63, 66 Manuel 60, 63 Mariquinha 63 Severino 63, 65, 66 Ernestina 60, 71, 84, 85 Ivonete 89, 90 Luís Antônio 86, 87, 88 Manuel Antônio 60, 71, 86, 87 Manuel Eudócio 60, 65, 69, 71, 74, 77, 78, 79, 80, 82, 84, 87, 90 Odete 86, 87, 88 Zé Caboclo e família: Zé Caboclo 60, 64, 65, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 80, 82, 84, 87, 89 Antônio 71, 74 Carmélia 71, 73, 75 Celeste 71, 72, 74, 75 Helena 71, 73

312

ÍNDICE ONOMÁSTICO

Horácio 71, 72, 74 José 71, 74 Marliete 71, 72, 73 Paulo 71, 72, 74 Socorro 71, 73, 74, 75, 76 Zé Henriques 89, 90 Zé Rodrigues 60, 64, 71, 81, 82, 83, 84, 87 GOIANA Zé do Carmo 218, 239, 240 ITAMARACÁ Tita Caxiado 190, 191, 192 Zé do Gato 193 JABOATÃO D. Biu 267, 271, 272, 273 OLINDA Bigode 289, 290, 302, 303, 304 Neilton 268, 274, 275, 276 Benedito 289, 290, 296, 297, 298 PETROLINA Ana das Carrancas 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 123, 125 Domingos 110, 111, 113, 115, 116, 117, 118 RECIFE Angelino 268, 281, 282 Capitão Pereira 93, 101, 102 Ginu, o Professor Tiridá 93, 95, 96, 97, 98 Manuel de Camaragibe 289, 290, 305, 306, 307 Nhô Caboclo 289, 290, 291, 292, 293, 294, 295, 303, 304 Paulo 289, 290, 299, 300, 301 TRACUNHAÉM Antônia Leão 27, 39, 40, 41 Betinho 27, 54, 55 Elisete 49, 50, 51 Luís 27, 43, 49, 50, 51, 54 Maria 44, 45, 46 Maria Amélia 42, 43 Nuca 27, 44, 45, 46 Severina Batista 52, 53 Severino de Tracunhaém e os Vieiras: Severino 26, 28, 29, 30, 31, 32, 34, 35, 36, 37, 38 João Prudêncio 28, 31, 32, 34, 37, 38 Lídia 26, 28, 29, 30, 31, 34, 35, 37, 38, 41, 45, 47, 53 Regina 26, 28, 34, 35, 37 Toinha 26, 28, 31, 32, 34, 35, 37 Zé Antônio 26, 28, 29, 31, 32, 34, 37, 48 Zezinho de Tracunhaém 27, 40, 41, 45, 47, 48, 49, 50, 51, 54

ÍNDICE ONOMÁSTICO

313

MAPEAMENTO DOS ESCULTORES POPULARES ENTREVISTADOS PIAUÍ

TERESINA Cornélio 200, 209, 210 Edmar 200, 205, 206 Expedito 200, 203, 204, 205, 206, 209, 211 Francisco 200, 211 José Soares 200, 206, 207, 208 Manuel Martins 200, 212, 213 Mestre Dezinho 200, 202, 203, 205, 206, 207, 208, 209

RIO GRANDE DO NORTE ACARI Teodora 217, 229, 230, 233, 234 CEARÁ-MIRIM Etewaldo 217, 237, 238 CURRAIS NOVOS Luzia Dantas 217, 235, 236 JARDIM DO SERIDÓ Júlio Cassiano 229, 233, 234 NATAL Antônio Pedro 93, 99, 100 Dary 268, 285, 286

SERGIPE

ARACAJU Nivaldo 194, 195 ESTÂNCIA Judite 194, 217, 222, 223

314

ÍNDICE ONOMÁSTICO

ANEXO

315

Relação de escultores populares localizados no decorrer da pesquisa e não entrevistados ALAGOAS

OLHO D’ÁGUA DAS FLORES Zé Mãozinha (José Melquíades de Melo)

BAHIA

JUAZEIRO Bosco Messias SALVADOR Fausto Alves da Silva José Adálio dos Santos José do Nascimento

CEARÁ

CANINDÉ Bibi Lisboa CASCAVEL Chico (Francisco Pereira da Silva) Luzimar Dinis Pedro Ciríaco Sebastião Dinis JUAZEIRO Cizim Euclides Expedito Francisca Lopes Francisco Ferreira João Ferreira José Celestino

MARANHÃO

ALCÂNTARA Diógenes João do Farol SÃO LUÍS Antônio Alves Cruz Heloísa Paulo Risoleta Vanda Ramos

ANEXO

317

PARAÍBA

LAGOA SECA José Dinis Salete Dinis POMBAL Chica Isabel

PERNAMBUCO

BEZERROS José Apolônio Costa BOM CONSELHO Cláudio dos Anjos Dalrea Irineu José Anjo CARUARU Amaro Rodrigues Antônio Miguel da Silva Antônio Rodrigues da Silva Antônio Sebastião Berenice Cleonice Otília da Silva Corina Alves dos Santos Dionice Elias Vitalino Galdino Geraldo José da Silva Heleno Ezídio Heleno Manuel Heleno Rodrigues Horácio Rodrigues da Silva João Ezequiel João José José Antônio da Silva Lauro Ezequiel Manuel Antônio da Silva Maria Josefa da Silva Maria de Lurdes do Vale Maria Sônia da Silva Maria Vilma Silva Natalícia da Silva Petronila M. do Vale Regina Rodrigues

318

ANEXO

Ronaldo José de Paiva Severino Batista Gomes Teresinha GOIANA Ediládio Geronício João JABOATÃO José Vicente de Freitas Maria José Nepomuceno Pepino Valdeci OLINDA Adriano Jordão Honório Louro Maria Amélia da Silva OURICURI Genivaldo Ferreira PAULISTA Vavá (Valdomiro Paulo de Andrade) RECIFE Arnaldo Barbosa Severino Barros Valdemiro TEJUCUPAPO Manuel de Goitá TRACUNHAÉM Antônio Vitorino Armando Batista da Silva Baé Domingos Dulce Edite Flor Helena Ivaldo Barbosa de Lima Ivanildo Ferreira dos Santos João José da Silva João Justino Joaquim Alves Pereira Josafá Lopes José Carlos José Correia de Oliveira José Francisco Josenaldo

ANEXO

319

BIBLIOGRAFIA Juácia Luisa Pereira de Lima Manuel Alves Pereira Manuel Tavares dos Santos Marcos Borges da Silva Maria do Carmo Nilson Tavares Nina Noca Petrônio Roque de Lima Tamba Tibúrcio Vanildo Zuza (José Edivaldo Batista)

PIAUÍ

PARNAÍBA Francisco Ribeiro TERESINA Antônia Vieira Dico (Raimundo Soares) Gajinho

RIO GRANDE DO NORTE

CAICÓ Raimunda CURRAIS NOVOS Ana Dantas EXTREMOS Ramiro Barbosa NATAL Elias Jales da Silva Jordão SÃO GONÇALO DO AMARANTE Neném (Maria das Neves Felipe) SÃO JOSÉ DO MIPIBU Divanílton Maria Lúcia Porfírio

Marta Jô Porfírio.

320

ANEXO

LIVROS ALMEIDA, Renato. Inteligência do Folclore. Rio de Janeiro: CEA, 2ª edição, 1974. Vivência e Projeção do Folclore. Rio de Janeiro: Agir, 1971. ANDRADE, Humberto Henrique de. Carnaúba. Fortaleza: Fortaleza, 1939. ANDRADE, Mário de. “Folclore”, in: Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Sousa, 1949. ARAÚJO, Alceu Maynard. Cultura Popular Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 2ª edição, 1973. BARROS, Sousa. Arte, Folclore e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 2ª edição, 1977. BASTIDE, Roger. A Sociologia do Folclore Brasileiro. São Paulo: Anhembi, 1959. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Ed. Nacional, 1961. BORBA FILHO, Hermilo. Apresentação do Bumba-meu-boi. Recife: Universidade Federal de Pernambuco/Imprensa Universitária, 1967. Arte Popular no NE. Recife: Prefeitura Municipal, 1966. Espetáculos Populares do NE. São Paulo: São Paulo, 1966. Fisionomia e Espírito do Mamulengo. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1966. BORBA FILHO, Hermilo & RODRIGUES, Abelardo. Cerâmica Popular do NE. Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro/MEC, 1969 CAMPOS, Renato Carneiro. Arte, Sociedade e Religião. Salvador: Universidade da Bahia, 1960. CARNEIRO, Edison. “Artes Populares: Seu Universo e Diversidade”, in: PONTUAL, Roberto (org.). Dicionário de Artes Plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969 Folguedos Tradicionais. Rio de Janeiro: Conquista, 1974. Religiões Negras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1936. A Sabedoria Popular. Rio de Janeiro: INL, 1957. CARVALHO NETO, Paulo de. La Creación Artística Popular en Brasil. Montevideo: Arca, 1959. CASCUDO, Luís da Câmara. Made in Africa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1965. Tradição, Ciência do Povo. São Paulo: Perspectiva, 1971. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: INL, 1962. Antologia do Folclore Brasileiro. São Paulo: Livraria Martins, 2ª edição, 1956. CHRISTENSE, Erwin Ottomar. Arte Popular e Folclore. Rio de Janeiro: Lidador, 1965.

BIBLIOGRAFIA

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DREYFUS, Jeni. Artes Menores. São Paulo: Anhembi/INL, 1959. ESMERALDO, Sérvulo. “L’imagerie Populaire au Brésil”, in: Via-Sacra, gravada por Mestre Noza. Haute Provence: Robert Morel, 1965. ESPINHEIRA, Ariosto. Arte Popular e Educação. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938. ETZEL, Eduardo. Arte Sacra Popular Brasileira. São Paulo: Melhoramentos/USP, 1975. FOUCAULT, Michel. Surveiller et Punir: Naissance de la Prision. Paris: Gallimard, 1975. FROTA, Lélia Coelho. Mitopoética de 9 Artistas Brasileiros: Vida, Verdade e Obra. Rio de Janeiro: Fontana, 1975. LIMA, Carlos de. Bumba-meu-boi. São Luís: Departamento de Turismo do Estado, 1968. LOPES, Juarez Rubens Brandão. Desenvolvimento e Mudança Social: Formação da Sociedade Urbano-Industrial no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional/MEC, 3ª edição, 1976. LOURENÇO FILHO, Manuel B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, 3ª edição, 1959. MAURÍCIO, Ivan. Arte Popular e Dominação (O Caso De Pernambuco: 1961-1977). Recife: Ed. Alternativa, 1978. MEIRELES, Cecília. “Artes Populares”, in: ANDRADE, Rodrigo Melo de (org.). Artes Plásticas no Brasil. Rio de Janeiro, 1952. MONTENEGRO, Abelardo Fernando. História do Fanatismo Religioso no Ceará. Fortaleza, 1959. MOTA, Mauro. Votos e Ex-votos, Aspectos da Vida Social do Nordeste. Recife: Universidade Federal de Pernambuco/Imprensa Universitária, 1968. PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1974. PEREIRA, Carlos José da Costa. A Cerâmica Popular na Bahia. Salvador: Universidade da Bahia, 1957. Artesanato e Arte Popular no Sertão Baiano. Rio de Janeiro: SENAI, 1956. Artesanato e Arte Popular. Bahia. Edição Conjunta com o Instituto de Economia e Finanças da Bahia, 1957. Artesanato da Bahia. Bahia: Departamento Nacional, 1955. Organização do Artesanato e da Pequena Indústria em Sergipe. Aracaju: Condese, 1961. PINHEIRO, Irineu Nogueira. O Juazeiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1938. PONTUAL, Roberto. Dicionário de Artes Plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

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BIBLIOGRAFIA

QUERINO, Manuel R. Costumes Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. As Artes na Bahia: Esforço de uma Contribuição Histórica. Salvador: of. do Diário da Bahia, 1913. RABELO, Sílvio. Os Artesãos do Pe. Cícero: Condições Econômicas do Artesanato de Juazeiro do Norte. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1965. RAMOS, Artur. O Folclore Negro no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935. RIBEIRO, Joaquim. Folklore Baiano. Rio de Janeiro: MEC/Serviço de Documentação, 1956. RIBEIRO, René. Vitalino, Ceramista Popular do NE. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1972. RODMAN, Selden. Genius in the Backlands: Popular Artist of Brazil. Connecticut: The Devin-Adair Company, 1977. RODRIGUES, José Francisco. Artesanato e Arte Popular. Bahia, 1957. RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1945. SAIA, Luís. Escultura Popular Brasileira. São Paulo: Gaveta, 1944. SALES, Vicente. “Criatividade Popular”, in: Atlas Cultural do Brasil. Rio de Janeiro: MEC/CFC/FENAME, 1972. “As Artes e os Ofícios: O Artesanato”, in: História da Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: CFC/ FENAME, vol. I, 1973. SANTOS, José de Jesus. O Bumba-meu-boi do Maranhão. São Luís: Gráfica São Paulo, 1971. SILVA, José Calazans Brandão da. Folclore Geo-Histórico da Bahia e seu Recôncavo. Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, DAC/MEC, 1972. SODRÉ, Muniz. A Comunicação do Grotesco. Petrópolis: Vozes, 1972. SOUSA, Oswald. Romaria dos Penitentes. Natal: Universidade do Instituto de Antropologia, vol. 2, 1966. O Romeiro do Rio São Francisco. Natal: Universidade do Instituto de Antropologia, 1964. TAVARES, Odorico. Bahia, Imagens da Terra e do Povo. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967. THOMPSON, Augusto F. A Questão Penitenciária. Petrópolis: Vozes, 1966. VALADARES, José. Artes Maiores e Menores: Seleção de Crônicas de Arte (1951-1956). Bahia: Universidade, 1957.

BIBLIOGRAFIA

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VIEIRA FILHO, Domingos. Folclore do Maranhão. São Luís, 1976.

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ARTIGOS EM REVISTAS E SUPLEMENTOS ALMEIDA, Renato. “Artes Plásticas Folclóricas”. Revista Brasileira de Folclore, ano IX, n°27, mai./ago., 1970. “O Verdadeiro Vitalino”. Documento da CNFL, n°491, IBECC, Comissão Nacional do Folclore/Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, 1963. ALMEIDA, Rômulo Barreto de. “Artesanato da Bahia”. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de Janeiro, A.15, n° 57/58, 1962. ANDRADE, Francisco A. de; GALENO, Cândida Maria; SERAINE, Florival. “A Cerâmica Utilitária de Cascavel (CE)”. Boletim de Antropologia da Universidade do Ceará, ano I, n° 1, Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará.

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BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Mário de. “Das Origens da Arte: Os Primitivos”. Depoimentos 2, São Paulo: Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 1966. “Escultura Nordestina”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17/09/1944. ANDRADE FILHO, Oswald de. “O Feio nas Artes Folclóricas”. Documento da CNFL, n°467, 1961. “Norma para Pesquisa da Cerâmica”. Cadernos de Folclore, Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro, n°11, 1971. “Pop Art e Arte Folclórica”. Revista Brasileira de Folclore, n° 20, jan./abr., 1968. “Técnica da Cerâmica Feita nas Cidades do Vale do Paraíba: Os Presépios, Bois Caseiros e Gado do Céu”. Para Todos, 1956. ANDRADE, Teófilo de; GAUTHEROT, Marcel. “Carrancas de Proa do São Francisco”. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, agosto, 1947. ANTIPOFF, Helena. “A Escola e as Atividades Artesanais em Zonas Rurais”. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, vol. 23, n° 59. ATAÍDE, Othon de Lima. “História das Carrancas do Rio São Francisco”. Monitor Campista, Campos, 31/11/1939. AZEVEDO, Carlos Alberto. “Bumba-meu-boi na Zona dos Canaviais de Pernambuco”. Revista Brasil Açucareiro, Recife, agosto, 1972. “O Realismo Mágico na Literatura Popular da Zona dos Canaviais”. Revista Brasil Açucareiro, Recife, agosto, 1973. BARATA, Mário. “Conceito e Metodologia das Artes Populares”. Cultura, Rio de Janeiro, ANDI, n° 3, mai./ ago., 1969. “A Escultura de Origem Negra no Brasil”. Brasil, Arquitetura Contemporânea, Rio de Janeiro, n° 9, 1957. BARBALHO, Nelson. “Feira de Caruaru”. Revista Brasil Açucareiro, Recife, agosto, 1970. BARROS, Sousa. “Artesanato e Arte Popular”. Revista Brasiliense, São Paulo, mar./abr., 1958. BORBA FILHO, Hermilo. “Três Espetáculos Populares de Pernambuco”. Revista Brasil Açucareiro, Recife, agosto, 1967. CAMPOS, Eduardo. “Cerâmica Popular Cearense”. Para Todos, 2ª quinzena, 1957. Estudos do Folclore Cearense (Cerâmica). Imprensa Universitária do Ceará, Fortaleza, 1960. “Folclore do Nordeste”. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1960. COSTA, José Veríssimo da. “Tipos e Aspectos do Brasil: Barqueiros do São Francisco”. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, out./dez., 1943. DANTAS, Audálio. “O País do São Francisco”. Realidade, São Paulo, março, 1972. DUARTE, Ruy. “Explicação do Nordeste: A Feira”. Revista Brasil Açucareiro, Recife, agosto, 1968.

BIBLIOGRAFIA

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327

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Maria do Carmo Buarque de Hollanda (Piii)

Págs. 29, 30 (esquerda e direita superior), 32 (inferior), 33, 35 (esquerda), 36 (inferior), 41(direita – duas santas), 43, 44 (superior), 50, 52, 53, 54, 64 (inferior esquerda), 65 (inferior direita), 66, 67, 68 (inferior), 70, 71, 72, 73, 75, 76, 77, 78, 79 (superior), 82, 83 (inferior), 84, 86, 87, 88, 89, 90, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 112, 113, 115, 116 (inferior), 117, 119, 120, 121, 124, 125, 131, 132, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 150 (inferior), 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 174, 175, 176, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 188, 189, 190, 191, 193, 194, 195, 202 (superior), 206 (inferior), 208, 209 (superior), 210, 211 (inferior), 219, 220, 221, 222, 223 (inferior), 224, 225, 226, 227, 228, 237, 240 (inferior), 246, 248, 249, 250, 251, 252, 253, 254, 255, 256, 258, 259, 260, 261 (inferior), 269, 270, 271, 272, 274, 275, 276, 279, 280, 281, 282, 284 (superior), 292, 293, 295, 296, 297, 302 (inferior), 303, 304.

Dalvino Troccoli França

Págs. 28, 30 (direita inferior), 32 (superior), 36 (superior esquerda), 37, 38, 40 (esquerda), 41 (esquerda – três músicos), 44 (inferior), 45, 46, 47, 48, 49, 51, 64 (superior direita), 69, 116 (superior), 202 (inferior), 203, 204, 205, 206 (superior), 207, 209 (inferior), 212, 213, 223 (superior), 231, 232, 233, 234 (inferior), 235 (inferior), 236, 238 (inferior), 247, 257, 261 (superior), 262, 263, 273, 277, 278, 283, 284 (inferior), 285, 286, 298, 302 (superior), 305, 306.

Daniel Campos

Págs. 35 (direita), 36 (superior direita), 40 (direita), 42, 64 (inferior direita), 65 (superiores e inferior esquerda), 68 (superior), 79 (inferior), 81, 83 (superior), 96, 239 (superior), 300, 301.

Luisa Albuquerque de Mello

Capa, 4ª capa, lombada, guardas e págs. 3, 12, 15, 16, 18, 310, 330, 333 e 336.

Márcia de Holanda Cavalcanti

Págs. 229, 230, 234 (superior), 235 (superior), 238 (superior).

Foto-Fofoca

Pág. 239 (inferior), 240 (superior).

Cafi

Pág. 291.

Ana Maria B. Reis Pág. 150 (superior).

Totó

Pág. 211 (superior).

Cedida por Augusto Rodrigues Págs. 63, 64 (superior esquerda).

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BIBLIOGRAFIA

CRÉDITOS DE FOTOGRAFIA

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CURRÍCULOS RESUMIDOS DAS TRÊS AUTORAS

SÍLVIA RODRIGUES COIMBRA Reconhecida como uma das maiores autoridades em Arte Popular brasileira. Participou na criação e desenvolvimento da COMAR – Cooperativa Mista Artesanal do Recife (19651969). Criadora e Diretora da Galeria Nêga Fulô Artes e Ofícios, Recife (1969-1980). Coordenou o projeto de pesquisa “A Arte Popular no Nordeste – Escultura”, financiado pela Organisation Catholique Canadienne pour le Developpement et la Paix e pela FINEP (1975-1979). Participou do projeto “Tendência e Viabilidade do Artesanato na Área Programa de Suape”, Centro Nacional de Referência Cultural e CONDEPE (19781979). Participou da equipe de implantação do Mercado de Olinda, convênio Prefeitura de Olinda, Centro de Preservação de Sítios Históricos e Projetos Cura (1979-1983). Participou do projeto “Interação entre a Escola e diferentes Contextos Culturais”, convênio Prefeitura de Olinda, Instituto Nacional do Livro e Fundação Pró-Memória (1982-1984). Participou do “Processo de Capacitação com Trabalhadores Rurais”, convênio OCEPE / ASSOCENE (1987-1992). Participou do projeto “Memória em Movimento – Serviço de Pesquisa e Documentação da História de Vida dos Trabalhadores do Bairro de Recife (1988-1990). Foi Diretora do Museu Regional de Olinda (1996-1998). Sócia fundadora e membro desde 1989 da “Oficina do Saber”, ONG no campo da transformação/ elaboração de saberes. Coordenadora de dois projetos em andamento: “O Pote e o Santo – Cultura & Economia no Nordeste Brasileira”, e “Cajueiro Pé de Vida”, um estudo sobre o aproveitamento e desperdício das potencialidades da nativa arvore brasileira. É co-autora do livro O Reinado da Lua - Escultores Populares do Nordeste, Editora Salamandra, 1980, fruto do projeto de pesquisa “A Arte Popular no Nordeste – Escultura”. É co-autora, também, do livro “Bairro do Recife, Porto de Muitas Histórias”, Edição LBA, 1989. É autora do livro “Cajueiro – Pé de Vida, Edições Oficina do Saber, 2004. Escreveu o texto “Viagem pelo Imaginário Popular Nordestino”, publicado na Revista do IPHAN, 1999. É também organizadora do livro “Poesia e Gravura de J. Borges”, 1993.

FLÁVIA MARTINS DE ALBUQUERQUE Socióloga formada pela PUC-RJ (1975) e mestre em Ciência Política pela USP (1990). Foi pesquisadora no projeto “A Arte Popular no Nordeste – Escultura”, coordenado por Sílvia Rodrigues Coimbra, financiado pela Organisation Catholique Canadienne pour le Developpement et la Paix e pela FINEP (1975-1979). Foi pesquisadora do NEPES - Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais da UERJ (1981 a 1989), onde coordenou o projeto de pesquisa “O Processo de Produção Artesanal e sua Promoção na Região Sul Fluminense do Estado do Rio de Janeiro”, financiado pelo SESC/RJ (1982-1985), e o projeto de pesquisa “Produção de Brincadeira dos Bonecos no Carnaval de Olinda”, com o apoio do Instituto Nacional do Folclore / FUNARTE (1986). Foi técnica em Promoção e Divulgação Cultural do Paço Imperial / IPHAN (1987-1991). Trabalha no Museu Villa-Lobos / IPHAN desde 1991 como pesquisadora e coordenadora do processo de informatização do seu acervo. É

co-autora do livro O Reinado da Lua – Escultores Populares do Nordeste, Editora Salamandra, 1980, fruto do trabalho de pesquisa “A Arte Popular no Nordeste – Escultura”. É autora do texto “Bonecos do Carnaval de Olinda”, do catálogo da Exposição Fotográfica No 39, Instituto Nacional do Folclore / FUNARTE, 1988. É autora, também, do trabalho Imagens da Liberdade – O Carnaval de Olinda, que obteve, em 1994, menção honrosa no Concurso Sílvio Romero (FUNARTE).

MARIA LETICIA DUARTE WARNER Bacharel em Ciências Políticas e Sociais e em Economia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). Licenciada em Sociologia e Política, também pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), com pós-graduação em Administração Pública, pela Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP), da Fundação Getúlio Vargas. Foi pesquisadora no projeto “A Arte Popular no Nordeste – Escultura”, coordenado por Sílvia Rodrigues Coimbra, financiado pela Organisation Catholique Canadienne pour le Developpement et la Paix e pela FINEP (1975-1979). É co-autora do livro O Reinado da Lua – Escultores Populares do Nordeste, Editora Salamandra, 1980, fruto do trabalho de pesquisa “A Arte Popular no Nordeste – Escultura”. Ingressou no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1988, onde, hoje, ocupa o cargo de assistente técnica da Diretoria de Pesquisas.

Impresso pela Gráfica Santa Marta, em papel couchê 150 g/m². Texto composto em Arno Pro e títulos em Franklin Gothic e em VTC Switchblader Romance. Terminou-se de imprimir em outubro 2010, ano em que a primeira edição do Reinado da Lua completa 30 anos.