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Portuguese Pages [96]
Em O que os animais nos ensinam sobre política, o filósofo canadense Brian Massumi discute a questão do animal
Brian Massumi
sob um a ótica inusitada. N oções tais com o jogo, simpatia e criatividade, m enosprezadas pela biologia evolucionista, pelas ciências do com portam ento animal ou pela filosofia, aqui são diretam ente incorporadas ao c< Com isso, a investigação se expande, a não apenas o com portam ento animal mas pensam ento animal e sua distância ou prc relação àquilo cujo m onopólio é reivindic humanos: a linguagem e a consciência ref
O que os animais nos ensinam sobre política
Para Massumi, humanos e animais exis continuum. C om preender tal continuum, conta as diferenças, requer uma nova lóg inclusão”. O autor encontra recursos co lógica no trabalho de vários pensadores, Bergson, Simondon, Ruyer e W hitehead Ao tratar o hum ano como animal, Mas o conceito de uma política animal. Níiú .* política do animal, mas de um a polítiir,: animal, liberada das conotações de “ est prim itivo” e dos pressupostos correlatu que perm eiam o pensam ento moderno. Esse livro, que dialoga com os estU'' humanismo, etologia, cognição encarnai dá subsídios relevantes para repensar ui não-antroDocêntrica.
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O que os animais nos ensinam sobre política Brian M assum i
Brian Massumi
© Brian Massumi, 2014 © n-i edições, 20x7 i s b n 978-85-66943-47-4 Embora adote a m aioria dos usos editoriais do âm bito brasileiro, a n -i edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.
c o o r d e n a ç ã o
e d it o r ia l
Peter Pál Pelbart
e Ricardo M uniz Fernandes t r a d u ç ã o Francisco Trento e Fernanda Mello pre pa r a çã o
O que os animais nos ensinam sobre política
Fernanda Mello Isabela Sanches
r e v is ã o
de n o ta s
pr o je to
g r á f ic o
Érico Peretta
A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer m eio im presso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se fo r necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. Ia
edição | Novembro, 2017
n- ledicoes.org
A n-1 edições agradece 0 apoio à publicação fornecido pelo Conseil de Recherche en Sciences Humaines áu Canada (c r s h )
M
Social Sciences and Humanities Research Council of Canada
Canada
Conseil de recherches en sciences humaines du Canada
TRADUÇÃO
F ra n c is c o T re n to e F e rn a n d a M e llo
Este livro é dedicado a minha amizade de infância com Bruce Boehrer, com quem me tornei um tanto animal e travei batalhas diárias — não menos sérias por serem de brincadeira — contra as devastações do antropocentrism o.
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O que os anim ais nos ensinam sobre p olítica
79
109
PR O P O S IÇ Õ E S
SU P L E M E N T O 1
E screver co m o um rato to rce o rabo
125
SU P L E M E N T O 2
A zoo-logia da brincadeira
167
SU P L E M E N T O 3
Seis teses sobre o anim al que devem ser evitadas
181
R eferências bibliográficas
O que os animais nos ensinam sobre política
0 que os animais nos ensinam sobre política... não é a mais prom issora das proposições à prim eira vista. O que os ani mais teriam a nos ensinar? Isto é, além da resignação às duras necessidades da natureza distinta; da desesperada luta pela sobrevivência; da guerra selvagem de todos contra todos, em que o mais próxim o que se pode chegar de uma vitória é a paz provisória de uma adaptação viável, garantindo uma frágil ilha de normalidade nos mares turbulentos de uma vida “ sórdida, brutal e curta”, com o Hobbes enunciou de form a mem orável na aurora da Idade Moderna da humanidade. M as para nós, que, re tro sp ectiva m en te, nu nca fom os m odernos, o estado da natureza já não é o que era. A lei da com petição teve de se curvar perante um a saudável dose de cooperação, cujas contribuições cruciais para a evolução são agora amplamente conhecidas, com a simbiose sendo aceita com o a origem da vida m ulticelular.1 Em vista desses desen volvim entos, colocar a sim patia em igualdade de condições com a agressão com o um fator na natureza não é mais algo im pensável. A o m esm o tem po, a im agem rígida do animal com o um m ecanism o dom inado pelo autom atism o do ins tinto dá sinais de enfraquecim ento, conferindo uma margem m aior às variações individuais, com o o surgim ento de uma nova área de pesquisa na etologia, dedicada à “personalidade”
1 Ver Lynn Margulis, Symbiotic Planet. Nova York: Basic Books, 1999; Martin A. Nowak com Roger Highfield. Super Cooperators: Altruism, Evolution, and Why We Need Each Other to Succeed. Nova York: Free Press, 2011.
9
anim al, evidencia.2 C o m o verem os, o próprio instin to dá
na natureza, fora dos corredores da ciência, nos meandros da
sinais de elasticidade, e m esm o de um a criatividade que se
filosofia, a fim de divisar uma política diferente, que não seja
poderia rotular de “artística” .
uma política humana do animal, mas uma inteiramente animal,
“ Sim patia” e “criatividade” : sempre que essas palavras apa
livre dos paradigmas tradicionais do sórdido estado da natu
recem perto demais do term o “ animal”, para m uitos soam o
reza e das pressuposições acerca dos instintos que permeiam
alarme. Em seguida, ecoa a acusação de antropomorfismo. Há
tantas facetas do pensamento moderno.
pouca esperança de conseguir driblá-la quando se empreende
Investigações recentes com ênfase similar na criatividade
a tarefa de integrar ao conceito de “natureza” noções com o
na natureza tom aram com o ponto de partida a artisticidade
essas, há tem pos m arginalizadas pelas correntes dom inan
dos rituais de cortejo animal. Esse ponto inicial coloca o foco
tes na biologia evolucionista, no com portam ento animal e na
da discussão na seleção sexual. Por razões que se tornarão
filosofia. O problema reside no caráter qualitativo dos termos.
claras, este não é o caminho que seguirem os aqui. C om o ana
“ Qualitativo” sugere “subjetivo” , e a simples pronúncia dessas
lisada por Elizabeth G rosz, a seleção sexual põe em questão,
palavras traz o que David Chalm ers cham ou de “o problem a
de form a bem -sucedida, a teoria neodarwiniana que defende
difícil” da consciência na soleira da porta, um a visita inespe
que a m utação aleatória é a única fonte de variação da vida,
rada espreitando nos corredores da ciência.3A questão deixa
desatrelando a m orfogênese — a gênese das form as de vida
de ser apenas sobre o com portam en to anim al e alcança o
— da sua aderên cia ao m ero acaso.s Isso tam bém p õe em
pensam ento animal e sua distância — ou proximidade — das
dúvida a teoria associada de que o único princípio de seleção
capacidades sobre as quais nós, animais humanos, julgam os
operando na evolução é a adaptação a circunstâncias exter
ter um m onopólio, e nas quais hasteam os nosso excessivo
nas.6 N a arena do cortejo animal, a seleção incide direto nas
orgulho quanto à existência em nossa espécie: linguagem e consciência reflexiva. A d iante, arrisco-m e volun tariam en te a ser acusado de antropom orfism o4 em prol de seguir o rastro do que é qua litativo e do que é subjetivo na vida animal, e da criatividade
2 Ver Cláudio Carere e Dario Maestripieri (orgs.), Animal Personalities: Behavior, Physiology, Evolution. Chicago: University o f Chicago Press, 2013. 3 David Chalmers, “Facing Up to the Problem o f Consciousness” . Journal ofConsciousness Studies n2 2,1995, pp. 200-219. 4 Como argumenta Jane Bennett, “antropomorfizar tem suas virtudes” . J. Bennett, Vibrant Matter: A Political Ecology ofThings. Durham: Duke University Press, 2010, p. 25; cf. também pp. 98-100. Proveitosamente, Bennet dissocia antropomorfismo de antropocentrismo.
10
5 Elizabeth Grosz, Chaos, Territory, Art: Deleuze and the Framing ofthe Earth. Nova York, Columbia University Press, 2008. 6 E. Grosz, Becoming Undone: Darwinian Refiections on Life, Politics, and Art. Durham: Duke University Press, 2011, parte 3, cap. 8. Sobre aos desafios clássicos ao fundamentalismo neodarwiniano quanto às questões da seleção natural e da adapta ção, cf. Stephen Jay Gould, The Panda’s Thumb: More Refiections in Natural History. Nova York: Norton, 1980; R. C. Lewontin, Steven Rose, e Leon J. Kamin. Not in Our Genes: Biology, Ideology, and Human Nature. Nova York: Pantheon, 1984; Robert Wesson, Beyond Natural Selection. Cambridge: m i t Press, 1991; Brian Goodwin. How the Leopard Changed Its Spots. Londres: Phoenix, 1995; e, obviamente, Bergson, A evolução criadora (trad. bras. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005). A recente confirmação de mecanismos biológicos de herança de traços adquiridos (herança epigenética) enfraqueceu ainda mais o reduzido chamado à completude do modelo neodarwiniano. Para uma análise da pesquisa no campo, que se desenvolve a passos largos, da herança epigenética, cf. Eve Jablonska e Gal Raz, “Transgenerational Epigenetic Inheritance: Prevalence, Mechanisms, and
11
qualidades da experiên cia vivida. O esco p o está na cria ti
Em vez disso, 0 foco será na brincadeira animal, trabalhando
vidade, e não na conform idade adaptativa às restrições de
em particular com o fam oso ensaio de Gregory Bateson sobre
determ inada circunstância. A seleção sexual expressa um a
o tem a.9 É verdade que a brincadeira se consum a com o uma
inventiva exuberância animal associada a qualidades de vida,
arena independente de atividades entre animais “superiores”
sem valo r direto de uso ou de sobrevivência. C om o ap o n
com certo nível de com plexidade, em particular entre mamí
tad o pelo próprio D arwin, os excesso s da seleção sexual
feros.10 Porém, com o verem os, entender o florescim ento da
só podem ser d escritos com o expressão de um “ senso de b e leza ” (basta perguntar à pavoa).7 A presente explanação concord a com todos esses pontos. A razão básica para não tom arm os a seleção sexual com o ponto de partida é que, ao fazê-lo, deixaríamos de lado a maioria das formas de vida que povoam a Terra. Seria pular as criaturas m ais “prim itivas” , m enos ostentativas no m odo de copular, sem m encionar os animais “ mais in feriores”, que persistem em se m ultiplicar de form a assexuada.8 Implications for the Study of Heredity and Evolution”. Qmrterly Review ofBiologyv. 84, na 2,2009, pp. 131-176. Cf. também Nessa Carey, The Epigenetics Revolutíon: How Modem Biology Is Rewriting Our Understanding ofGenetics, Disease, and Inkeritance. Chicago: University of Chicago Press, 2012. 7 Darwin, The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, v. 1. Londres: John Murray, 1871, pp. 63-64. 8 Há outras razões para não privilegiar a seleção sexual aqui. Considerar a seleção sexual como ponto de partida é focar na competição e na rivalidade entre indiví duos (E. Grosz, Becoming Undone op. cit.). Isso direciona a pulsão para o excesso qualitativo na experiência perceptiva do sujeito individual do desejo e lastreia o conceito de desejo com fundamentais conotações de interesse próprio. Também tende a construir a afirmação estética do qualitativo na vida animal como con trária ao instinto (“O artístico é um salto para fora da materialidade, o embalo ■ da virtualidade agora engrenado e extraído da matéria para fazê-la funcionar de maneira imprevisível [...] A arte é o processo de fazer com que as sensações fiquem vivas, de dar vida autônoma à qualidade expressiva e às formas materiais” [E. Grosz, Chaos, Territory, Art op. cit., pp. 75,103]). Isso implica que abaixo do limiar evolutivo em que a seleção sexual opera não haja espaço para as sensações, e os animais sejam inexpressivos e prisioneiros de suas formas materiais. Isso pode ser interpretado como uma aceitação implícita da abordagem tradicional mecanicista da matéria “burra”, respeitadora das leis e desprovida de surpresas,
12
e a ideia correlata do “ instinto” como ação de reflexo mecânico. Sugere que somente um salto da natureza para a cultura, articulado em termos reminiscentes do conceito freudiano de “ sublimação”, pode salvar o animal do mecanismo da matéria burra (“a arte seqüestra os impulsos de sobrevivência e os transforma pelos caprichos e intensificações promovidos pela sexualidade” [Ibid., p. 11]). Finalmente, a definição de “ sexualidade” mobilizada (“o alinhamento de corpos com outros corpos e partes de um mesmo corpo” [Ibid, pp. 64-65]) parece pres supor um corpo pré-constituído, assim como a ideia de “competição” assume um sujeito pré-constituído. Além disso, parece pressupor que as relações dos corpos uns com os outros e deles com eles próprios só podem ser entendidas nos mes mos termos que as relações entre objetos (parte-com-parte, relações externas expressáveis em termos espaciais como “alinhamento”). É preciso enfatizar que a própria Grosz não corrobora essas implicações e as contesta em muitos pontos. A presente descrição procura desenvolver uma explanação que os repasse exaus tivamente desde o primeiríssimo momento. Ela enfatiza o processo transindividual através do qual os indivíduos devêm. Tenta desenvolver um vocabulário que nunca abra mão da ideia de que ambos, corpo e sujeito, são sempre emergentes e jamais figuram como pré-constituídos. Procura repensar o instinto incluindo um elemento de criatividade de uma ponta à outra do continuum da vida. Seu projeto requer pensar a “relação interna” ou imanente, segundo uma lógica de “mútua inclusão” que será desenvolvida ao longo do ensaio — lógica essa que mobiliza primariamente as tendências (entendidas como “subjetividades-sem-sujeito”), e não objetos e sujeitos. Por fim, mostra-se necessário colocar radicalmente em questão a separação categorial entre as operações da matéria e os aspectos qua litativos e subjetivos da dimensão “estética” do excesso, da expressividade, e da artisticidade da vida (essa divisão está implícita na primeira citação de Grosz trazida acima, em que a matéria aparece como morta e burra). Aqui, a seleção sexual será tomada como uma instância particular da “ autocondução” criativa da natureza, um caso especial de brincadeira. 9 Gregory Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy”. Steps to an Ecology ofMind. Chicago: University o f Chicago Press, 1972, pp. 177-193. 10 Gordon M. Burghart em seu compendioso estudo da ciência da brincadeira ani mal (The Genesis of Animal Play: Testing the Limits. Gambridge: m i t Press, 2005), argumenta que comportamentos específicos das brincadeiras são muito mais
13
brincadeira nesse nível exige a teorização das origens da sim
isso pode fazer, com simpatia e criatividade, com eçando e ter
patia e da criatividade, o qualitativo e até m esm o o subjetivo
minando na brincadeira — do m esm o m odo que W hitehead
em todos os pontos do continuum da vida animal. A própria
afirma que a filosofia com eça no assom bro, e, depois de tudo
natureza do instinto, e, assim, da própria animalidade, deve
dito e feito, no assom bro perm anece.11
ser repensada com o uma conseqüência. Esse projeto requer que o humano seja realocado no conti
A discussão de Bateson acerca da brincadeira animal gira em torno da diferença. Esse é o m elhor ponto de partida para
nuum. animal, o que tem de ser feito de uma maneira que não
pensar o continuum animal, que é um espectro de variação
apague o que é diferente no humano, mas sim respeite essa
contínua — um cam po m utante de diferenciações recipro
diferença ao lhe fornecer um a nova expressão no continuum:
cam ente pressupostas, com plexam ente imbricadas umas às
imanente à animalidade. Expressar o pertencim ento singular
outras ao longo de toda a linha. N o decorrer da discussão
do hum ano ao continuum animal tem im plicações políticas,
seguinte, um conceito será aos poucos construído para essa
assim com o toda questão de pertencim ento. A derradeira
imbricação recíproca de diferenças: mútua inclusão. Mas, por
aposta deste projeto é política: investigar que lições podem ser aprendidas ao jo g ar com a anim alidade dessa form a,
ora, a questão é com o entra em jogo a diferença. Dois animais que se entregam à brincadeira, por exem plo,
acerca dos nossos m odos usuais e dem asiado hum anos de
uma brincadeira de luta, desem penham atos que “são simila
lidar com o político. A esperança é que no decorrer da inves
res, porém não os m esm os do com bate” .12 Cada gesto lúdico
tigação possam os ir além de nosso antropom orfism o quanto
envolve um a diferença com um a fachada de sim ilaridade -
a nós mesmos: nossa im agem de nós m esm os com o estando
o que poderia ser considerado um a definição de “analogia” .
hum anam ente apartados dos outros animais; nossa invete
Brincar não envolve produzir uma perfeita semelhança entre
rada vaidade no que se refere à nossa assum ida identidade
dois atos que pertencem a ordens distintas. Não se trata de
de espécie, baseada em razões especulativas de nossa exclu
fazer “com o se” um fosse o outro, no sentido de fazer com
siva propriedade sobre linguagem, pensam ento e criatividade.
que um se passe pelo outro. O gesto de brincar é análogo
Verem os o que os pássaros e as feras têm a dizer instintiva
porque aquilo que está em jo g o não é o M esmo. O gesto de
mente sobre isso.
brincar mantém afastadas as atividades análogas, assinalando
Este ensaio é um prolongado experim ento de pensam ento
um a diferença m ínim a, no m esm o ato p elo qual as reúne.
sobre o que pode ser uma política animal. Busca construir o
Ele reúne atos pertencentes a diferentes arenas em sua dife
conceito de um a p olítica animal e levá-lo ao lim ite do que
rença. É com a não coincidência que se brinca. O gesto lúdico envolve essa disparidade em sua própria execução. Isso é
difundidos do que tradicionalmente se pensa. São observáveis não apenas em ani mais placentários, mas também marsupiais, em um grande número de espécies de aves e em alguns répteis e peixes. Dentre os invertebrados, considera presentes comportamentos limítrofes às brincadeiras em crustáceos, cefalópodes e alguns insetos, como baratas, formigas e abelhas.
14
precisam ente o que faz dele um a brincadeira. Se um gesto u A. N. Whitehead, Modes ofThought. Nova York: Free Press, 1968, p. 168. 12 G. Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 179.
15
num a brincadeira de luta fosse idêntico ao seu análogo no
movidos em conjunto para um registro de existência em que
com bate, a brincadeira logo se tom aria uma luta. Um gesto
o que im porta já não é o que se faz, mas o que se representa.
lúdico tem de assinalar seu pertencim ento à arena da brinca
A força do gesto lúdico é uma força de passagem que induz
deira para não acabar resvalando para fora dela. Por exemplo,
uma mudança qualitativa na natureza da situação. Dois indiví
se dois filhotes de lobo ao brincar de luta desem penham os
duos são arrebatados de uma só vez, mas sem mudar de local,
m ovim entos com m uita similaridade com o com bate, e não
por uma força instantânea de transformação. São absorvidos
em analogia a ele, os parceiros logo se tornarão adversários,
por um a transformação-in-loco que não afeta um sem afetar
com o risco de lesão potencialm ente grave. U m gesto lúdico
o outro. O gesto lúdico libera um a força de transform ação
deve demonstrar, em sua forma de execução, o seguinte: “isto
transindividual. A im ediatez da transform ação que a execu
é um jo g o ” .
ção do gesto induz qualifica o gesto lúdico com o um ato per-
A declaração da brincadeira, “isto é um jo g o ”, explica Bate son, está longe de ser um simples ato de designação. É a ence nação de um paradoxo. Um filhote de lobo que morde o colega
formativo. A brincadeira é feita de gestos perform ativos que exercem uma força transindividual. Bateson parafraseia o sentido que os gestos lúdicos desem
de ninhada ao brincar “ d iz” , pela form a com que morde:
penham na seguinte fórmula: “ Estas ações nas quais agora
“isto não é uma m ordida” . Bateson afirma que a mordida de
nos engajam os não denotam aquilo que iriam denotar as
brincadeira “ representa” ativam ente outra ação, ao mesm o
ações que elas representam”.14Vale a pena observar duas coisas
tem po em que coloca em suspenso o contexto no qual a ação
acerca de com o essa fórm ula se desenrola.
encontra sua força prática e sua função norm al.13A mordida
Prim eiro, Bateson sublinha o fato de que o gesto lúdico é
de brincadeira que diz que não é uma mordida tem o valor da
um a form a de abstração. A lém de ser um ato perform ativo
ação análoga sem sua força ou função. Através dos dentes, o
que efetua uma transform ação-in-loco, carrega um elem ento
filhote de lobo diz: “ isto não é uma mordida; isto não é uma
de m etacom unicação, isto é, de reflexividade. Ele com enta
luta; isto é um jogo; por meio dele estou me colocando num
sobre o que e stá fa zen d o en qu an to está fazend o: “ essas
registro diferente de existência, que, no entanto, representa
ações nas quais agora nos engajam os...” . Esse “ com entário”
seu análogo suspenso” .
ocorre na form a de um a diferença estilística. Na brincadeira
A suspensão exerce a própria força: uma força de indução.
vo cê não m orde, vo cê m ordisca. A diferença entre m order
Quando faço um tipo de gesto que m e coloca no registro da
e m ordiscar é o que abre a lacuna analógica entre com bate
brincadeira, você tam bém é im ediatam ente levado para ela.
e brincadeira. É o estilo do gesto que desfralda a diferença
Meu gesto o transporta com igo para uma arena de atividade
mínima entre o gesto de brincadeira e seu análogo na arena
diferente daquela em que estávamos. Você é induzido a brin
de com bate. O gesto desem penha um m ovim ento, com toda
car comigo. Num só gesto, dois indivíduos são arrebatados e
a im ediatez de um a transform ação-in-loco instantânea, ao
13 Ibid., p. 180.
14 Ibid., grifo do autor.
16
17
passo que, no m esm íssim o m ovim ento, desem penha um a
Sobrepõem -se na unicidade do desem penho sem que a dis
abstração da sua ação, refletindo sobre ela no m etanível do
tinção entre elas seja perdida. São perform ativam ente fundi
com entário e nela inserindo a lacuna de um a distância ana
das sem se confundir. Convergem sem se unir, ocorrendo em
lógica de diferença recíproca. Em segundo lugar, a diferença que a abstração do gesto
conjunto sem coalescência. A zona de indiscem ibilidade não
co loca em jo go está num m odo particular: o condicional.
unem ativam ente.
“ Estas ações [...] não denotam aquilo que iriam denotar as ações que elas representam” . O gesto lúdico impregna a situa
é uma indiferenciação; em v e z disso, é onde as diferenças se O m odo de abstração produzido na brincadeira não res peita a lei do terceiro excluído. Sua lógica é a da mútua inclu
ção de realidade condicional. As ações análogas da arena de
são. Há duas lógicas diferentes na m esm a situação, e ambas
atividade na qual se brinca — a do com bate — estão p re
continuam presentes em suas diferenças e têm participação
sentes no m odo da possibilidade. A ação que então ocorre é
cruzada em suas zonas perform ativas de indiscem ibilidade.
habitada p or ações que pertencem a um a arena existencial
C om bate e brincadeira convergem — e essa convergência
diferente, cujas ações são de fato sentidas no presente, mas,
resulta em três. Há um, há outro, e há o terceiro incluído de sua
em potencial, em suspenso. E, m uito em bora em suspenso,
m útua influência. A zona de indiscem ibilidade que é o ter
exercem um poder. Por analogia, orientam as ações do des
ceiro incluído não adere à santidade da separação de catego
dobram ento da brincadeira, dotando-as de um a lógica nor-
rias nem respeita a rígida segregação das arenas de atividade.16
teadora. Elas dão ao jogo aquilo que Susanne Langer chama
Bateson discute extensivam ente a natureza paradoxal da
de “form a dominante” [commanâingform] ou “m atriz” forma-
abstração efetuada na brincadeira.17 Ele a vê com o um a ins
tiva.15 Os gestos do com bate in-formam o jogo, modulam-no
tância do paradoxo de Epimênides, que ficou famoso por meio
por dentro. Ao mesm o tem po, eles m esm os são ligeiramente
de Bertrand Russell, e consiste em “uma declaração negativa
deformados pelo estilismo da brincadeira e sua própria lógica
contendo um a m etadeclaração negativa im plícita” . A decla
lúdica. É sob efeito dessa deform ação que os golpes do com
ração gestual “ isto não é uma m ordida” contém a seguinte
bate transmutam-se em m ovim entos num jogo.
m etadeclaração im plícita: “ estas ações não denotam aquilo
Onde a m odulação im anente e a deform ação estilística se sobrepõem — isto é, no próprio gesto — , a arena do co m
que iriam denotar” . Porém , ao m esm o tem po, se fosse tão simples que as ações não denotassem aquilo que denotariam,
bate e a da brincadeira entram num a zona de indiscemíbilidaãe, sem que suas diferenças sejam apagadas. As lógicas da luta e da brincadeira abarcam -se em sua diferença; sobre p õem -se em seu gesto com p artilhado, cuja sim plicidade, com o um único ato, constitui sua zona de indiscem ibilidade. 15 Susanne Langer. Feelingand Form. Nova York: Scribner, 1953, pp. 122-123.
18
16 Sobre a zona de indiscemibilidade (também chamada de zona de proximi dade ou vizinhança, zona de intensidade ou zona de indeterminação objetiva), cf. Deleuze e Guattari Mil platôs, v. 3, trad. bras. de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34,1996, p. 106; Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 64-66,68,73-75; e o capítulo “ O que é um conceito?”, em Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, trad. bras. de Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Munoz. São Paulo: Editora 34,1992. 17 G. Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 180.
19
não teriam de negar sua denotação. A declaração da brinca
de m útua inclusão com o um colapso de sua capacidade de
deira diz o que nega e nega o que diz. É logicam ente indecidí-
pensar, e ficarem perturbados com isso (Russell certam ente
vel. Claro que um filhote de lobo não diz nada, estritam ente
ficou, jam ais superando por com p leto). N o entanto, o ani
falando. Ele diz fazendo; atua. Sua “ declaração” e sua “meta-
m al é m enos perturbado do que ativado por eles. O animal
declaração” são um paradoxo enativado, com a simplicidade
brincando afirma o paradoxo ativam ente, efetivamente. Isso
de um único gesto. Na unicidade do gesto, as duas lógicas
aumenta suas capacidades de pelo menos dois modos. Por um
são reunidas numa m etacom unicação, revestindo a situação
lado, os animais aprendem através da brincadeira (na medida
de possibilidades que a superam. O gesto lúdico corporaliza
em que uma luta de brincadeira é a preparação para o envol
essa complexidade. Sua abstração é pensamento incorporado.
vim ento no combate real que pode ser necessário no futuro).
A brincadeira animal aciona o paradoxo. Ela o m obiliza e o
Por outro, o alcance de seus poderes m entais se expande.
dramatiza. A dramatização pega aquilo que, do ponto de vista
N a brincadeira, o anim al se eleva ao nível m etacom unica-
da lógica tradicional, não passaria de sua própria implosão e,
cional, em que ganha a capacidade de m obilizar o possível.
de fato, o implode. Constitui-se assim um paradoxo efetivo. A
Seu poder de abstração se eleva em um grau. Seus poderes
m etacom unicação animal é eficaz. Ela se nivela, e induz ao
de pensam ento são aumentados. Suas capacidades vitais são
nivelam ento, com o seu desem penho, diretam ente na im e
im plementadas de maneira mais completa, ainda que abstra
diatez da execução de seus gestos. Na brincadeira animal, a
tamente. Suas forças de vitalidade são correspondentem ente
indecidibilidade lógica assume um a eficácia que é tão direta
intensificadas. O gesto lúdico é um gesto vital.
quanto paradoxal. Bateson tira daí uma lição: “ seria um péssim o exercício de
O s hum anos tam bém podem praticar um paradoxo e fe tivo quando se perm item a entrega à brincadeira. Nela, o
história natural esperar que os processos mentais e os hábitos
hum ano adentra um a zona de indiscem ibilidade com o ani
com unicativos dos mamíferos estivessem em conform idade
mal. Quando nós, humanos, dizemos “isto é uma brincadeira” ,
com o ideal do lógico. De fato, se pensam ento e comunicação
assum im os nossa anim alidade. A brincadeira dram atiza a
hum anos sempre estivessem em conform idade com o ideal,
participação recíproca do hum ano e do animal, de am bos
Russell não teria — não poderia ter, na realidade — form u
os lados. Quando os animais brincam , estão enativando, em
lado o ideal” .18Aqui Bateson salienta outra m útua inclusão:
term os preparatórios, habilidades humanas. Bateson diz que,
a do animal e o humano. São a animalidade e a humanidade,
em nossas suposições usuais, entendem os equivocadamente
com o um todo e em suas diferenças, que adentraram parado
a ordem evolutiva, pensando que a m etacom unicação tem de
xalm ente uma zona de indiscem ibilidade. A diferença entre o humano e o animal nessa conexão ta l vez resida no fato de os humanos experimentarem paradoxos
vir após a com unicação denotativa que ela enreda. De fato, “ a com unicação denotativa, com o ocorre no nível hum ano, só é possível após a evolução de um com plexo conjunto de regras m etalinguísticas (mas não verbalizadas) que ditam
18 Ibid.
20
com o palavras e sentenças devem se relacionar a objetos e
21
acontecimentos. Logo, é apropriado buscar a evolução dessas
A atualidade da situação se am plia com a possibilidade. A
regras m etalinguísticas e/ou m etacom unicativas num nível
com unicação se com plexifica com a metacom unicação. Cada
pré-humano e pré-verbal”.19
gesto lúdico é carregado dessas diferenças de nível, situação
A brincadeira animal cria as condições para a linguagem.
e m odo de existência ativa. Essa intensificação é provocada
Sua ação m etacom unicativa constrói a base evolutiva para
pela suspensão da lógica tradicional regida pelo princípio do
as funções m etalinguísticas que serão a m arca registrada da
terceiro excluído; mas faz com que a brincadeira seja muito
linguagem humana, e o que a distingue de um mero código.
mais que o m ero colapso dessa lógica, efetua uma passagem
A lógica corporificada da brincadeira animal, pré-hum ana e
para um a pragm ática na qual um a lógica diferente é direta
pré-verbal, já é essencialm ente análoga à linguagem . É efe
m ente corporalizada na ação, nivelada ao gesto. Essa outra
tiva e enativam ente lingüística avant la lettre, com o dizem os
lógica não é nada se não for desem penhada, não é nada se
hum anos em francês. Por que então o op osto tam bém não
não for vivida. A forma da abstração encenada na brincadeira
seria verdadeiro: a linguagem hum ana ser essencialm ente
é uma abstração vivida.2-1
anim al, do ponto de vista das capacidades lúdicas que car
Em que consiste essa pragmática enativa da abstração vivida?
rega, tão intim am ente vinculada aos poderes m etalinguísti-
Tudo depende da diferença mínima entre o gesto lúdico e
cos? Pensem os no hum or. Por que não considerar a lingua
o gesto análogo que ele invoca, e que, por sua vez, o habita.
gem hum ana um a reprise da brincadeira animal, elevada a
Tudo reside na lacuna entre m order e m ordiscar, m over e
um a potên cia mais alta? O u d izer que, na realidade, é na
saltitar, executar um a ação e dramatizá-la. O que escancara
linguagem que o hum ano atinge o mais alto grau de animali
a diferença m ínim a, possibilitan d o a m útua inclusão que
dade? Deleuze e Guattari não insistiram que é na escrita que
caracteriza a lógica da brincadeira, é mais um a v e z o estilo.
o hum ano “ devém -anim al” mais intensam ente; isto é, que
A diferença entre um a m ordida de lu ta e um a m ordida de
entra mais intensam ente num a zona de indiscem ibilidade
brincadeira não está apenas na intensidade do ato no sentido
com a própria animalidade?20 Na brincadeira trata-se precisam ente de um a questão de intensificação. O revestimento num campo não bélico daquilo
quantitativo: com quanta força os dentes cravam. A diferença é qualitativa. O gesto lúdico é desem penhado com um ar tra vesso, um exagero ou uma desorientação brincalhões; ou, no
que é próprio da arena de com bate embala a situação. Cada
extremo mais matizado do espectro, um floreio, ou até mesmo
ato carrega uma dupla carga de realidade, com o se o que esti
certa graciosidade subestim ada cham ando m odestam ente a
vesse sendo feito fosse infundido pelo que se estaria fazendo.
atenção para o espírito em que o gesto é apresentado.22 Um
19 Ibid.
21 Massumi, Semblance and Event: Activist Philosophy and the Occurrent Arts. Cambridge: m i t Press, 2011, p p . 15-19; 42-43; 146-158 epassim.
20 Deleuze e Guattari, Kafka: por uma literatura menor, trad. bras. de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, pp. 32-34,67-73; Müplatôs, v. 4, trad. bras. de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34,1997, pp. 17-33, 42-46; cf. também o Suple mento 1 abaixo.
22
22 Sobre a graça como “uma simpatia virtual, ou mesmo nascente” assinalando um “ progresso qualitativo”, cf. Bergson, Ensaios sobre os dados imediatos da consciência, trad. port. de João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 18.
23
gesto lúdico numa luta de brincadeira não se contenta em ser
O que está em excesso na situação, sua sobrecarga de inten
o m esm o que seu análogo no com bate. Não é tanto “co m o”
sidade, é canalizado pelo valor de brincadeira do jogo. É um
um m ovim ento de com bate, mas combatesco: com o no com
valor de excesso, no excesso: uma mais-valia. É uma mais-valia
bate, mas com um detalhe diferente, um detalhe a mais. Com
de animação, vivacidade — uma mais-valia de vida, irredutivel-
um superávit: um excesso de energia ou espírito.
mente qualitativa, nivelada de forma ativa com o viver.
Esse excesso é sentido com o um entusiasmo palpável que
A m ais-valia de vida, que é um a das -esquidades dos ges
carrega uma força de indução, um envolvim ento contagiante.
tos vitais da brincadeira, corresponde ao qué Raymond Ruyer
Étienne Souriau observa o “entusiasmo do corpo” com o qual
chama de rendimento estético da atividade. O rendim ento esté
um animal se entrega à abstração vivida da brincadeira.23Ao
tico é o excesso qualitativo de um ato vivido puram ente por
brincar, o animal fica intensamente animado. Seus gestos vitais
si só, com o um valor em si, acim a e contra qualquer função
corporificam uma vivacidade aumentada. Expressam o que
que tam bém p ossa ocupar. O rendim ento é um excedente
Daniel Stern chamaria de afeto de vitalidade.24 O entusiasmo do
de vivacidade, trazid o paradoxalm ente à tona por força de
corpo é o afeto de vitalidade da brincadeira tornado palpável.
abstração. A proposição de Ruyer é ainda mais radical: ele
O afeto de vitalidade da brincadeira e o entusiasmo do corpo
afirm a que todo ato instintivo produz um rendim ento esté
que ele expressa coincidem com o -esco em “com batesco”.
tico. Isso situa a brincadeira num continuum de instin to e,
Há uma “-esquidade” no gesto lúdico que marca sua dife
inversam ente, o instinto no espectro artístico. Portanto, é
rença qualitativa em relação aos gestos análogos da arena de
um a questão de ênfase considerar a brincadeira um a varie
atividade com a qual se brinca. A “ -esquidade” dos gestos
dade do instinto ou o instinto um portador da brincadeira.
é a assinatura perform ativa do m odo de abstração na brin
Am bos estão corretos: inclusão d iferencial m útua, com a
cadeira. Ela corporaliza a “ representância” , na fórm ula de
m estria com o operadora da inclusão.
Bateson. Em outras palavras, é o signo enativo do valor da
A brincadeira pertence instintivam ente à dim ensão esté
ação. Em si, é pura representância, puro valor expressivo — o
tica. A fim de con sid erar inteiram ente o que há de singu
próprio elem ento do lúdico na expressão, com o uma form a
lar na brincadeira, é necessário ressituá-la num continuum
de abstração vivida. A “ -esquidade” do ato instancia o valor
que se estende ao longo de toda a vida, em tod o s os seus
de brincadeira do jogo.
níveis, desde o instinto mais básico até as capacidades mais elaboradas de expressão lúdica e abstração vivida — as da
23 Étienne Souriau. Le sens artistique des animaux. Paris: Hachette, 1965, p. 35. Cf. Erin Manning (Always More Than One: lndividuation’s Dance. Durham: Duke Uni versity Press, 2013, pp. 84-203) para uma análise do que - em outro contexto, o da neurodiversidade e da experiência autística - a autora chama de "forma do entusiasmo". 24 Daniel Stem, The Interpersonal World ofthe lnfant. Nova York: Basic Books, 1985, pp. 53-61 [Ed. bras.: 0 mundo interpessoal do bebê, trad. Maria Adriana. V. Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992].
24
linguagem humana. Linguagem humana: pura representância, com poderes inigualáveis de paradoxo, capaz de produzir os mais puros e mais intensam ente abstratos valores expressi vos. Linguagem humana: cujas condições de possibilidade evolutiva são estabelecidas pela brincadeira no continuum do instinto. Ao longo de todo o continuum, de toda a vida, das
25
expressões instintivas mais silenciosas às mais loquazes, ela
A representância do gesto de brincar faz da brincadeira
carrega um a dim ensão estética irredutível. A própria vida é
um a atividade expressiva, essen cialm en te em excesso em
inseparável do rendimento estético do qual usufrui continua
relação à função. A qualidade de animação da brincadeira, a
mente. Ruyer assume o term o self-enjoyment [contentam ento
mais-valia de vida que ela desem penha com o entusiasmo do
de si], de W hitehead, com o um sinônim o para a mais-valia
corpo, supera a instrumentalidade. Seu rendimento por natu
da abstração vivida.23
reza excede o valor de uso funcional de seus atos análogos. O
O rendim ento estético da brincadeira é a m edida qualita
ato lúdico abre um a lacuna entre a própria força situacional
tiva de sua inutilidade. A -esquidade do com batesco corres
e a funcionalidade dos análogos com que ele joga, e investe
ponde à diferença estilística entre executar um ato e dramati
a lacuna com o valor puram ente expressivo da representân
zá-lo, entre cumprir uma função e encenar sua representância.
cia. Essa é um a manobra instável que pode sair dos trilhos a
Um gesto exerce uma função lúdica na exata m edida em que
qualquer m om ento.
não cumpre sua função análoga, a qual o gesto lúdico coloca
Pode-se objetar que a brincadeira tem , sem dúvida, um a
em suspenso em prol da própria representância que dela faz.
função. De fato, isso já foi mencionado: brincar desem penha
Se o valor expressivo da representância não é pronunciado o
um papel de aprendizado. De acordo com as opiniões dom i
bastante; se a diferença correspondente à -esquidade do ato
nantes, quando um animal entra num a luta de brincadeira,
é mínima demais; se a lacuna entre a arena da brincadeira e
está treinando para um futuro com bate real. Segundo essa
sua arena análoga é demasiado estreita; se, em suma, o rendi
opinião, a brincadeira é form alm ente m odelada conform e
m ento estético é insignificante, então a atividade lúdica tam
sua arena de atividade análoga: para ser útil com o treino,
bém pode facilm ente se transform ar em seu análogo. M uito
a form a dos m o vim en tos da luta de brincad eira deve ser
rapidamente a m ordida denota aquilo que ela denota, e não
bastan te sem elhante à do com bate. O serviço in stru m en
mais o que iria denotar. É guerra. Pode haver sangue. A mais-
tal prestado pela brincadeira à função futura dita que o seu
-valia de vida da brincadeira vira um déficit, um a transforma-
p rincíp io nortead or seja que sua form a se conform e. N ão
ção-in-loco tão imediata quanto a inaugurada pela brincadeira.
carrega um a força expressiva, posto que dedicada à função
A dimensão estética do gesto se retrai até se tornar um ato de
adaptativa. Está fundam entalm ente a serviço da guerra de
designação (“ isto é um a m ordida”) e um a ação instrum en
todos contra todos. Ele deve ser entendido em term os de
tal (“querendo ou não, agora efetivam ente faço o que estou
m ero valo r de sobrevivência, não de produção estética de
fazendo, e não mais o que estaria”).
m ais-valia de vida. É inegável que a brincadeira tem um papel no aprendizado,
25 Raymond Ruyer, Le néo-finalisme. Paris: p b f , 1952, p. 103. Como veremos no segundo suplemento, o próprio ato de percepção é um gesto vital que carrega um elemento de transformação-in-loco e de brincadeira; e, portanto, um grau de reflexividade imediata, que Ruyer chama de “inspeção absoluta”. Ecoando Whitehead, Ruyer menciona que a “autofruição” está conectada com a inspeção absoluta.
26
e que o aprendizado serve a fins adaptativos. M enos claro é o fato de que isso significa que a relação da brincadeira com suas arenas análogas é essencialm ente de subordinação
27
co n form ativa.26 O excesso e stilístico da brincadeira, sua
gesto previsível. Se o aprendizado ficasse restrito à m ode
-esquidade, não corresponde apenas a um detalhe a mais que
lagem da form a de um ato instintivo antes de sua execução
floreia o gesto, mas a um poder de variação. A form a do gesto
instrumental, seria perigosamente desadaptativo, moldaria os
é deformada, de modo mais ou menos sutil, sob a pressão do
alunos para a morte. Ruyer sustenta que o poder de improvi
entusiasm o do corpo que o realiza. Na deform ação, a forma
sar é uma dimensão necessária em qualquer instinto.
análoga assume outra forma. A lacuna entre o gesto lúdico e
Não é a brincadeira que é moldada na forma do combate, é a
seu análogo cria uma margem de manobra: abre espaço para
forma do combate que é modulada pela brincadeira. Longe de
a improvisação. A brincadeira é a arena de atividade dedicada
a brincadeira estar servilmente subordinada às funções de suas
à im provisação das form as gestuais, um verdadeiro labora
arenas de atividade análogas, são essas funções que dependem,
tório de form as de ação ao vivo. Aquilo de que se brinca é
para sua funcionalidade contínua, dos poderes de variação
invenção. O rendim ento estético da brincadeira vem com
natos da brincadeira. O sucesso na luta contra um inimigo ou
um a m obilização ativa dos poderes de variação im provisa
na fuga de um predador é reforçado por um poder animal de
dos. A mais-valia de vida é igual à mais-valia de inventividade.
im provisar im ediatam ente. Quando isso acontece, a função
Não fosse esse o caso, a luta estaria perdida. E efetivamente
vital capturou o valor expressivo dos gestos e os canalizou para
o poder de variação aprendido na brincadeira, a proeza impro-
seus próprios fins instrumentais. De fato, é a ação instrumen
visacional que ela aprimora, que dá ao animal a vantagem no
tal que é parasitária em relação à brincadeira. A vida lucra com
com bate; ou, para citar outro exem plo, na fuga de um p re
a mais-valia de vida produzida pela brincadeira, convertida em
dador. Um gesto cuja form a é moldada com o uma função de
valor de sobrevivência. Captura: apenas uma atividade autô
fim reconhecidamente instrumental é um gesto normatizado
noma pode ser capturada. A brincadeira, e a expressividade à
antes mesmo de sua execução, e um gesto norm atizado é um
qual ela mesma se dedica, constitui um domínio autônomo da atividade vital, um domínio fundamentalmente insubordinado
2.6 Burghardt argumenta contra a visão neodarwiniana dominante de que a brinca deira animal pode ser adequadamente explicada em termos de seu valor adaptativo: “ [é] provável que as vantagens iniciais do incipiente comportamento análogo à brincadeira não envolvam nenhuma função particular, como o aperfeiçoamento de comportamentos posteriores, aumento de resistência ou facilitação da flexibi lidade comportamental” (The Genesis of Animal Play: Testing the Limits. Cambridge: mit Press, 2005, p. 172). Uma vez que a brincadeira excede qualquer funcionalidade particular, só pode ser inteiramente explicada, segundo ele, como uma função de “ superávit". Como observa Brian Sutton-Smith, em seu prefácio ao estudo de Bur ghardt, “a brincadeira tanto se origina da quanto cria recursos superavitários” (Ibid., p. x). A “teoria dos recursos superavitários” de Burghardt é cuidadosa ao estabele cer que os recursos superavitários em questão não são adequadamente entendidos em termos de “energia” superavitária. Em outras palavras, não são quantificáveis (fisiologicamente), mas possuem um componente irredutivelmente qualitativo, atinente a fatores “ mentais” e “emocionais” (Ibid., pp. 172-179).
28
à lógica da adaptação, ainda que seja capturado de modo útil por ela em determinadas circunstâncias. Isso inverte a relação entre a brincadeira e suas arenas análogas. Em vez de brincar de forma servil em conform idade com elas, na realidade são variações nas formas que são inventadas pela brincadeira, daí secundariamente assumindo funções adaptativas. Ruyer insiste que os-poderes autônomos de variação estão presentes nas atividades instintivas de qualquer natureza.27 Se o ato instintivo fosse aquilo que é considerado — uma 27 Ruyer, Lagenèse desformes vivantes. Paris: Flammarion, 1958, pp. 17-18; pp. 27-28.
29
seqüência estereotipada de ações pré-m oldadas executadas
contingenciais da situação. Em outras palavras, o instinto é
por reflexo à maneira de um automatismo — , então o instinto
sensível às relações entre os elementos particulares que com
seria incapaz de responder a m udanças contingenciais no
põem a situação vivida. Sua ação varia conform e a singulari
am biente.28 Variações contingenciais no ambiente precisam
dade da situação. Todas as minhocas tapam a abertura de suas
ser com patibilizadas através de variação, o que requer certa
tocas, mas o m odo de assegurar essa função instintiva inva
plasticidade criativa, uma margem improvisacional de mano
riável se diferencia de acordo com os materiais disponíveis, a
bra. Todo ato instintivo, independentemente de quão estereo
forma como se apresentam, sua localização e sua configuração.
tipado em geral pareça ser, carrega uma margem de manobra.
“ Se os verm es agissem somente por instinto [no sentido de]
Todo instinto carrega em si um poder de variação, em um grau
um impulso herdado invariável, eles iriam todos [tapar suas
ou outro. Todo ato instintivo comporta um poder de variação
tocas] da m esm a maneira” .30 Ao contrário, “vem os um indi
que acreditam os ter o direito de chamar de “lúdico”, no sen
víduo lucrar com a sua experiência individual” ao improvisar
tido mais amplo da palavra. O u “estético”, dada a natureza do
uma solução que é adaptada não à generalidade da situação,
rendimento produzido. A margem de manobra da brincadeira
mas à sua singularidade.31 Essa capacidade, observa Darwin, evi
é o “estilo”: a -esquidade que perfaz a possibilidade. Tudo isso
dencia um “poder mental” : um poder de abstração.32
nos obriga a reconhecer a expressão como uma operação vital
Não há razão para considerar esse poder de abstração um
tão primordial quanto o próprio instinto. N ão há vida sem
tipo de reflexividade. A situação geral (tapar o buraco) é refle
mais-valia de vida. Não há instrumentalidade sem expressivi
tida na singularidade vivida (tapar este buraco assim, aqui e
dade. Adaptação nunca surge sem inventividade. Expressivi
agora). Essa é uma reflexividade vivida, uma reflexividade com
dade e inventividade são a ponta de lança da gênese das formas
os gestos inventivos que a expressam. Ruyer, com o Bergson,
de vida. E através de suas margens de manobra que os parâ
estende esse poder m ental não cerebral até chegar às ame
metros operacionais dos modos de existência são expandidos.
bas, ou m esm o às células individuais que com põem corpos
O próprio Darwin disse isso quando exaltou as proezas
animais multicelulares.33“ Seria tão absurdo”, escreve Bergson,
im provisacionais de suas adoradas m inhocas, às quais dedi cou um longo tratado. A operação do instinto, escreve ele, não pode ser equiparada a uma “simples ação reflexiva” , como se o
30 Darwin, TheFormation ofVegetable Mould through theAction ofWorms op. cit., pp. 64-65.
animal “fosse um autômato” .29 Prova disso é que o mesmo estí
31 Ibid., p. 95.
mulo não conduz ao mesmo efeito, dependendo das variações
32 Ibid., pp. 25,34-35.
28 Ibid., p. 147. 29 Darwin, TheFormation ofVegetable Mould tkrough tkeAction o/Worms, with Observations on their Habits. Nova York: Appleton, 1890, p. 24. Ainda sobre as minhocas de Darwin, cf. Bennett (Vibrant Matter: A Political Ecology ofThings. Durham: Duke University Press, 2010, pp, 94-109).
30
33 Ruyer, La genèse des formes vivantes op. cit., pp. 103-106. Whitehead também deveria ser adicionado à lista: “a vida espreita nos interstícios de cada célula viva” (Process and Reality. Nova York: Free Press, 1978, p. 105). E, em sua filosofia, toda ocasião da vida é considerada como tendo um “polo mental” (falaremos mais sobre isso adiante). O biólogo Brian J. Ford argumenta que as células dos animais multicelulares são dotadas de inteligência (“On Intelligence in Cells: The Case for Whole Cell Biology” . Interdisciplinary Science Reviews ne 34 v. 4, 2009, pp. 350-365).
31
“ recusar a consciência a um animal, pelo fato dele não ter cére
Ruyer, Bergson e Bateson consideram esse poder de m en
bro, quanto declará-lo incapaz de se alim entar pelo fato de
talidade expressiva com o a vanguarda da evolução.3S Ele é o
não ter estômago.”34Portanto, mesmo num estágio evolutivo
próprio m otor da evolução, responsável por inventar as for
de antes de a brincadeira reclamar as próprias arenas de ativi
mas que vêm a ser selecionadas com o adaptativas. Bergson
dade independentes — e de registrar essa diferença, como sua
argum enta que essa força inventiva de variação opera até
própria, na -esquidade — , já havia um elemento de brincadeira
mesm o quando as forças de mutações contingentes estão em
em todos os atos instintivos. Todos eles são capazes de afir
ação. Uma m utação em um elem ento requer que os elem en
mar uma força expressiva de variação, bem com o um poder
tos adjacentes se reconfigurem ao seu redor. Os elem entos
de singularização que gera mais-valias de vida. Todo ato, até
reminiscentes improvisam-se numa nova integração ao redor
o mais instrum ental, é margeado por expressividade impro-
da mudança, de um m odo que não pode ser consagrado ao
visacional. O instinto não é limitado à repetição automática
acaso ou explicado por princípios puram ente m ecanicistas,
do arco reflexo disparado por um traço de memória herdado.
que operam em term os locais, parte a parte. Mas uma in te
Este é um aspecto do instinto. Mas é necessário lembrar que
gração é justam ente isto: integral. Isto é, diz respeito à coor
cada repetição “ estereotipada” de um ato instintivo é capaz de
denação e à correlação de todas as partes ao m esm o tem po,
formar potencialmente um arco na futura direção improvisada
em sua maneira de convergir.36
da gênese das formas de vida, da expressão de novas variações sobre os modos de atividade constitutivos da vida. 34 Bergson, A evolução criadora, trad. bras. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 120. Que os poderes mentais podem residir fora do cérebro já foi verificado através de experimentos. Mostrou-se que amebas — as quais, enquanto criaturas unicelulares, são perfeitamente desprovidas de cérebro — têm memória e podem antecipar o futuro (Saigusa et ali., “Amoebae Anticipate Periodic Events”. Physical Review Lettersv. 100, na 1, 2008, pp. 1-4). Poderes mentais extracerebrais também foram demonstrados em animais multicelulares. Platelmintos, que têm o invejável poder de regenerar seus cérebros, foram treinados para realizar uma tarefa. Foram, então, decapitados. E quando seus cérebros cresceram de volta, lembraram-se da tarefa que lhes foi ensinada antes de terem perdido as cabeças (Shomrat e Levin, “An Automated Training Paradigm Reveals Long-term Memory in Planaria and Its Persistence through Head Regeneration” . Journal of Experi mental Biology, 2013). O instinto, claro, envolve um modo de memória, que Ruyer chama de “traço mnêmico” e que é reativado por um estímulo (Ruyer, Lagenèse des formes vivantes op. cit., pp. 113-115). É a diferença entre o traço mnêmico e a singula ridade da situação presentemente vivida o que inaugura uma diferença mínima que coloca uma margem de brincadeira até na mais básica ação instintiva, conferindo a toda percepção um elemento da brincadeira (cf. suplemento 2). A brincadeira alavanca ainda mais essa abertura por meio da esquidade.
32
35 Burghardt (The Genesis of Animal Play op. cit.) também reconhece a brincadeira como o motor da evolução: “reconhecemos agora que a brincadeira pode ser vista tanto como um produto como uma causa da mudança evolutiva; isto é, que as ati vidades lúdicas podem ser uma fonte de funcionamento comportamental e mental aperfeiçoado, assim como um subproduto de acontecimentos evolutivos prece dentes” (p. 121). Seu caráter superavitário faz da brincadeira “tanto um detrito evolutivo quanto um propulsor evolutivo” (p. 180) — sempre em excesso. 36 Bergson, A evolução criadora op. cit., pp. 66-76. Ford (“On Intelligence in Cells” op. cit.) usa argumentos similares em seu estudo de caso sobre inteligência celular, e eles são um traço comum de teorias que buscam contrabalancear a hegemonia do fundamentalismo mecanicista neodarwiniano (cf. nota 2 para mais referên cias). Sobre a importância evolutiva dos “todos integrados” , cf. o clássico texto de Stephen Jay Gould e Robert Lewontin, “The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm: A Critique o f the Adaptationist Programme” . Proceedings ofthe Royal Society ofLondon. Série Biological Sciences, v. 205, n2 1161, 1979, pp. 581, 591, 594. A abordagem da evolução via sistemas complexos feita por Susan Oyama também enfatiza a composição relacionai conjunta: “no que doravante referiremos como seletividade recíproca de influências, ou mútua dependência de causas, não somente todo um conjunto de influências contribui com todo e qualquer fenômeno dado, mas o efeito de todo e qualquer interagente também depende tanto de suas próprias qualidades quanto das de outros, geralmente em
33
A expressividade im p ro visacio n al do in stin to que lh e
gatilhos. Por exemplo, entre as gaivotas-prateadas, um ponto
confere o poder integral para gerar m ais-valia de vida deve
verm elho no bico da fêm ea serve, em circunstâncias normais,
ser recon h ecid a com o um m odo de atividade nato e au tô
com o o gatilho para alim entação.38 O ponto atrai as bicadas
nom o, irredutível aos m odos funcionais que o capturam. A
do filhote, o que estim ula o adulto a regurgitar o cardápio. A
diferença, mínima que seja, entre funcionalidade e expressi
fim de pesquisar exatam ente qual qualidade perceptual cons
vidade, entre instrum entalidade e atividade estética, vigora
tituía o gatilho, Tinbergen se pôs a construir um a série de
sem pre e por toda parte. Por natureza, a atividade em sua
engodos em form a de bicos apresentando um espectro de
dim ensão expressiva está em excesso co m relação às fu n
características variáveis. Seu objetivo era isolar as proprieda
ções norm alizadas das form as gerais de atividade já adapta
des precisas essenciais ao com portam ento instintivo. A fim
das à sobrevivência. O instinto, em seu aspecto de atividade
de entender os parâm etros do com portam ento, estendeu o
expressiva, tem uma tendência inata a superar o normal, por
espectro de variação apresentado m uito “além dos lim ites
força do entusiasmo do corpo. Ele é animado por um ím peto
do objeto norm al” .39 Para sua enorm e surpresa, não conse
im anente rumo ao supemormal. Os pioneiros estudos de Niko Tinbergen sobre o instinto,-
guiu isolar quaisquer propriedades particulares que pudesse
que auxiliaram na criação das bases para disciplina da etolo-
determ inadas configurações, era capaz de enganar. Para sua
apontar com o essenciais. Até m esm o um ponto cinza, em
gia, não saíram incólum es disso tudo. Desde o início, Tinber
consternação, Tinbergen descobriu de m odo ainda mais sur
gen notou um a pronunciada tendência da atividade instin
preendente que, entre os engodos que produziam a resposta
tiva a favorecer o que chamou de "estím ulos supernormais” .37
mais entusiasmada por parte do filhote, estavam aqueles que
Tomando como ponto de partida o modelo padrão do instinto
menos lem bravam a form a norm al do b ico da gaivota-pra-
com o estím ulo-resposta operando estritam ente por reflexo,
teada fêmea. O entusiasmo do corpo da jovem gaivota premia
Tinbergen decidiu investigar quais propriedades particulares
ardentem ente para além do normal.
de determ inados estím ulos instintivos funcionavam com o
Tinbergen concluiu que a seqüência instintiva de ações não dependia, de fato, de nenhuma propriedade isolável que
complexas combinações” (Oyama, The Ontogeny of Information: Developmental Sys tems and Evolution. Durham: Duke University Press, 2000, p. 18). Há um elemento emergentemente performativo e improvisacional na origem dessas “combinações complexas” integrais porque os “padrões não existem como tais antes de serem realizados” (p. 35). Abiologia molecular corroborou recentemente o ponto de vista de Bergson, movendo seu foco de atenção para variações imanentemente conecta das na rubrica de “ mutações secundárias”. Isso remete a uma mutação randômica que causa "efeitos secundários em algum lugar do genoma” de modo a “ impelir a seleção a novas mutações, mesmo na ausência de pressões de seleção ambientais deliberadas” (Vence, “One Gene, Two Mutations.” The Scientist Magazine, 2013.).
vas do objeto” .40 O que provocou resposta não era inteligível
37 Niko Tinbergen, The Study oflnstinct. Oxford: Oxford University Press, 1951, pp.
39 N. Tinbergen, Animal Behavior. Nova York: Time-Life Books, 1965, p. 68.
44-47-
34
.
p ertencesse quer à form a do estím ulo presum ido, quer ao terreno no qual ele se perfilava. “Não há uma distinção abso luta entre signos-estím ulos efetivos e propriedades não efeti
38 N. Tinbergen e A. Perdeck, “On the Stimulus Situation Releasing the Begging Response in the Novaly Hatched Herring Gull Chick” in Behavior v. 3, na 1,1950, PP-1-3940 Tinbergen, The Study oflnstinct op. cit., p. 42.
35
em term os de propriedades isoláveis, mas irredutivelm ente
Para T in b ergen , isso fico u apenas co m o u m ep isó d io
relacionai. “Tais estím ulos ‘relacionais’ ou 'configuracionais” ’,
cu rioso que não o induziu a alterar seu m odelo. O animal,
ele refletiu, “parecem ser a regra e não a exceção” .41 Aquilo a
para ele, co n tin u o u sen d o um a m áquina, ainda que “ de
que o filhote de gaivota-prateada respondia, conclui ele, era
grande com p lexid ade” e bastante incerta, com o um “caça-
um efeito de intensificação produzido por deform ações que
-níqueis” .43 Sua conclusão sobre os estím ulos supernormais?
afetavam integralm ente tod o s os elem en tos presentes em
C o m m ais do que um indício de irritação com os anim ais
suas relações uns com os outros. Deform ações integralmente
não cooperativos, ele observou: “ N inguém nunca foi m uito
conectadas são com petência da topologia. O que Tinbergen
capaz de analisar tais questões, ainda que, de algum m odo,
havia descoberto era um a topologia da experiência na qual os
ten h a m sid o co n su m a d a s” .44 É p re c isa m e n te o “ algum
diversos elem entos em jogo são juntam ente varridos na dire
m o d o ” dessa consum ação dos bebês pássaros em frustrar
ção das próprias variações integrais, num estado dinâmico de
as ex p e cta tiv a s assim ilad as do cie n tista que p recisa ser
m útua inclusão.42
retid o e in tegrad o às nossas n o ções de “ an im alidade” . O fracasso das suposições m ecanicistas da teoria tradicional
41 Ibid., p. 68. 42 Para uma análise extensa dos estímulos supernormais e das variáveis experienciais integralmente conectadas, cf. Massumi “Ceei n’est pas une morsure. Animalité et abstraction chez Deleuze et Guattari” . Philosophie, n2 112, 2011, pp. 67-91; e, embora menos aprofundado, “ The Supernormal Animal” in Richard Grusin (org.), The Nonhuman Tum. Minneapolis: University o f Minnesota Press, 2015. O Supernormal Stimuli, de Deirdre Barret (Nova York: Norton, 2010), um recente best-seller de divulgação científica, é um ensinamento concreto sobre todos os sentidos nos quais não utilizaremos esse conceito — além de se apresentar como um argumento nos moldes de uma reduetio ad absurdum contra a sociobiologia em que está baseado, no qual ele conduz as tendências inerentes à disciplina em dire ção à sua embaraçosa conclusão lógica. Respondemos a estímulos supernormais, segundo o argumento, porque certa vez eles tiveram uma função útil, e a predi leção por eles ainda perdura em nossos genes. Mas no nosso ambiente moderno eles se tornaram perigosamente desadaptativos. Considere o hambúrguer super normal. Nosso gosto excessivo pelas calorias vazias oriundas da gordura e dos carboidratos fazia sentido adaptativo na Era Paleolítica, quando a energia prove niente da comida era escassa. Agora, a última coisa de que precisamos são calorias vazias. Mas nos tornamos culturalmente viciados nelas e em outras tendências supernormais, estendidas de forma artificial para além de suas utilidades evolu tivas em épocas anteriores. Com a função adaptativa natural perdida, eles foram cooptados pela cultura. A resposta aos estímulos supernormais é agora “artifi cial”; seu encanto, puramente “ilusório” . Antes um gigante bife de mamute era um reforço de energia emergencial. Hoje o Big Mac gigante é uma ponte de safena. O rendimento estético que derivamos dessas atrações não é um valor de vida. E a morte coberta de picles, matando-nos pão a pão. A epidemia de obesidade é
36
em explicar a com plexidade produtora de incerteza do com p ortam ento instintivo não pode ser com pensado com uma viagem para Las Vegas. um resultado direto do fato de nossa tendência supernormal ter sido retirada de seu ambiente natural. Então é guerra. É o estímulo supernormal da batida no peito do macho agora artificialmente bombado que, similarmente desenraizado de seu valor tribal de sobrevivência, está nos matando coletivamente, em massa. Nossa tendência supernormal nos fez desviar das “coisas reais” da vida. Temos de voltar à real. Temos que lutar contra as nossas tendências supernormais. Temos de reinar sobre elas. Temos de mobilizar contra elas a mesma cultura que as dei xou seguirem em frente. Temos de usar a cultura para retirar a cultura de baixo das mortalhas das tendências supernormais que ela transmite, fazendo com que voltemos à conformidade funcional com nossa “verdadeira natureza humana” . A cultura deveria ser a serva natural da normatividade. A normatividade deveria ser culturalmente maquinada para reinar suprema naturalmente. Precisamos instalar uma atualização instintual em nós mesmos: Homem das Cavernas 2.0. Esse uso de um estilo de vidapaleolítico imaginado (repleto dos mais arcaicos estereótipos de gênero) como parâmetro para o que é “naturalmente humano”, e equiparando “cultural” e “ antinatural” e desviante, é o esteio da literatura sociobiológica. Para uma crítica clássica da sociobiologia, cf. Lewontin, Rose e Kamin, Not in Our Genes op. cit., pp. 233-264. 43 N. Tinbergen, Animal Behavior op. cit., p. 68. 44 Ibid.
37
A fim de fazer um balanço total do que os estím ulos super-
continua ele, deve ser considerada uma dimensão necessária
normais nos dizem acerca do instinto, a com plexa incerteza
de todo instinto. Outra palavra para esse poder alucinógeno
que eles revelam no cerne do instinto precisa ser construída
nato é a utilizada por Hume: imaginação. Seja qual for o nome,
em termos positivos. A capacidade de produzir resultados ines
não estamos lidando com um caça-níqueis, mas sim com um
perados que não se relacionam de modo linear a inputs discre
primeiro grau de mentalidade no continuum da natureza.47
tos e isoláveis é um aspecto essencial do instinto. Deve-se reco nhecer que os movimentos instintivos são animados por uma tendência a superar as formas dadas, movidos por um ímpeto à criatividade; esse ímpeto imanente à criatividade tem de ser reconhecido com o um poder mental, com mentalidade defi nida nos moldes neo-humeanos — em termos de capacidade de superar o que está dado. O m otor dessa superação não é o reco nhecim ento de um a forma dada, mas sim a deformação inte gral das qualidades da experiência indissociavelmente conec tadas: a produção espontânea daquilo que Deleuze e Guattari chamam de ‘‘blocos de sensação” .45 Nenhuma causa eficiente pode ser isolada como sendo a que empurra por trás esse movi mento de autossuperação da experiência. A comparação com a jogatina não é totalm ente descabida. Há um elemento, não tanto de acaso mecanicista, mas — para tomá-lo positivamente — de espontaneidade. Ruyer dá m uita im portância ao fato de que um instinto pode disparar a si mesmo, mesmo na ausên cia de qualquer estímulo. Ele caracteriza essa habilidade com o “ alucinatória”, no sentido em que é “ diretamente improvisada” no percepto.46 Essa capacidade de im provisação espontânea, 45 Sobre blocos de devir, cf. Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4, op. cit., capítulo “ Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível” ; e Kafka: por uma literatura menor op. cit., item 3, “Montagem”. Sobre o conceito associado, blocos de sensa ção, cf. Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, trad. bras. de Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Munoz. São Paulo: Editora 3 4 ,199a, item “ Percepto, afecto e con ceito”. Gould e Lewontin (“The Spandrels of San Marco” op. cit., p. 597) utilizam a expressão “blocos de desenvolvimento integrados”. 46 Ruyer, Lagenèse desformes vivantes op. cit., pp. 146-147.
38
47 Sobre a mentalidade definida em termos da capacidade de ultrapassar o que está dado, cf. a análise feita por Deleuze da teoria do conhecimento de Hume em Empirismo e subjetividade, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34,2001, pp. 14-30). Deleuze enfatiza que 0 que é transcendido é apropria mente: o movimento de menta lidade, que começa na atividade infraindividual da imaginação e avança em direção a uma invenção supraindividual de instituições, não pode ser contido na interioridade de uma mente entendida como uma faculdade individual. Para o Hume de Deleuze, isso constitui o devir da natureza humana. Aqui o qualificativo "humano" é abandonado. A capacidade de ultrapassar o que está dado é construída como um poder mental da natureza que passa pelas vidas individuais. Nisso, ela ultrapassa Hume e desemboca no "polo mental" de Whitehead. Para Whitehead, a mentalidade é um fator derradeiro da natureza, conjuntamente constitutivo de toda ocasião. Ele também fala da atividade do polo mental como algo que ultrapassa o que está dado, definindo-a em termos de origem de inovação ("uma centelha de inovação em meio às apetições") e de "aumento de intensidade" (Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 184). Ele utiliza "apetição" como um sinônimo para a atividade do polo mental, ao qual ele também confere o termo técnico "preensão conceituai" (p. 33): "as operações básicas da mentalidade são 'preensões conceituais' (p. 33). Ele oferece, como outras palavras para essa capacidade de transcender 0 que está dado em direção à produção do novo, "intuição" - no senti do bergsoniano (com algumas reservas) - e "vislumbre" (pp. 33-34). Bergson também define a mentalidade nos termos de uma força capaz de superar o que está dado. 'Vi sivelmente, diante de nós trabalha uma o força que procura [...] superar a si mesma, dar primeiro tudo 0 que tem e em seguida mais do que tem: como definir de outro modo o espírito? e em que a força espiritual [...] se distinguiria das outras, senão pela faculdade de tirar de si mais do que contém?" (Bergson, A energia espiritual, trad. bras. de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: w m f Martins Fontes, 2009, pp. 20-21). Por fim, em seu clássico estudo sobre a brincadeira como um reino de atividade distinto na cultura humana, Huizinga faz uma pontuação similar a respeito da mentalidade, especificamente no que se refere à brincadeira: o jogo "só se toma possível, pensável e compreensível quando a presença da mente destrói o determinismo absoluto do cos mos" (Johan Huizinga, Homo Ludens: ojogo como elemento da cultura, trad. bras. de João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2000 p. 6). Huizinga também se distancia tan to das conotações substantivistas da palavra "mente" quanto das noções redutoras de "instinto: "Não se explica nada chamando de 'instinto' ao princípio ativo que constitui a essência do jogo; chamar-lhe 'mente ou 'vontade' seria dizer demasiado" (Ibid., p. 4).
39
No seu fracasso em fixar instinto a uma dadidade objetiva de uma causa eficiente, o etologista nos conduziu, a despeito
autocondução do m ovim ento criativo da vida: a autonom ia
de si mesmo, ao afloram ento natural do qualitativo e do sub
autoexpressiva da criatividade vital.51 Eis a lição spinozista do cuco e da gaivota-prateada: o entu
je tiv o com o um fator na natureza: aos blocos im provisacio-
siasmo do corpo animal tem seu poder mental de apetição,52
nais de sensação indicativos de um poder m ental de superar
cuja propulsividade aventa uma autonom ia expressiva avan
espontaneam ente o que está dado. N ão há nada “por trás”
çada pelos gestos vitais da brincadeira do instinto.
dessa tendência direcionada ao supernorm al que seja um a
É fácil ver as vantagens evolutivas de uma tendência super
dimensão inescapável do instinto. O supernormal exerce uma
normal: é algo que dá ao instinto uma m argem criativa de
força positiva que, em v e z de im pulsionar por trás, nos m ol
manobra. O em puxo do supernormal em direção à variação
des de uma força mecanicista que encontra resistência (ainda
relacionai das atividades de form as de vida predispõe o ani
que m inim izada por engrenagens bem lubrificadas), puxa
m al a uma aceitação entusiástica das variações em ergentes.
positivam ente pela frente. A tendência supernorm al é um a
A paixão da apetição move adiante, rumo a variações das for
força atrativa que puxa a experiência para a frente, em dire
mas de vida, na contracorrente das pressões adaptativas que
ção ao próprio limite — o da paixão espontânea pela mútua
fazem com que a seleção final e irrevogável esteja de acordo
inclusão do diverso, em transformação integral.
com as necessidades de sobrevivência. Não há dúvida de que
O próprio Tinbergen diz isso. Um filhote de cuco, explica
o meio ambiente exerce uma pressão seletiva. A adaptação é,
ele, p ossu i traço s supernorm ais que encorajam a fêm ea
de fato, a lei dos meios externos. A lição da tendência super
de outras espécies, cujo ninho o cu co p arasita, a co lo c á
norm al é a de que há mais nos m odos da natureza do que
-lo debaixo da asa e nutri-lo. A fêm ea hospedeira, ressalta
com portam ento cum pridor da lei. O instinto opõe à lei de
Tinbergen, não “ quer” alim entar o invasor. Não, ela “ adora”
adaptação seletiva um poder de improvisação mais que ávido
positivam ente fazê-lo.48 E não o faz com m á vontade, mas
para responder ao cham ado de conform idade a dem andas
positivam ente, com paixão. A força do supernorm al é uma força positiva. Longe de ser uma zrapulsão mecanicista, é uma propulsão apaixonada. Propulsão espontânea/ poder mental de superar o que está dado: apetição.49 Ruyer usa o term o autocondução para essa autopropulsão da vida animal imanente ao m ovim ento do instinto.50 O instinto testem unha a
48 Tinbergen, Animal Behavior, op. cit., p. 67. 49 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 33. 50 Ruyer, La genèse des formes vivantes op. cit., pp. 17, 214; Le néo-finalisme op. cit., pp. 127-192.
40
51 Darwin nota a “veleidade” e o “amor pelo novo” até nos animais inferiores: “os animais inferiores são [...] caprichosos em suas afecções, aversões e senso de beleza. Há também uma boa razão para suspeitar que eles amam o novo por si só” (Darwin, The Descent ofMan, and Selection in Relation to Sex, v. 1. Londres: John Murray, 1871, p. 65). 52 “Sem dúvida, tudo isso mostra com clarreza que tanto o decreto da Mente quanto o apetite e a determinação do Corpo são simultâneos por natureza, ou melhor, são uma só e mesma coisa que, quando considerada sob o atributo Pen samento e por ele explicada, denominamos decreto e, quando considerada sob o atributo Extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso, chamamos determinação” — Espinosa, Ética, Parte m, Proposição 11 (Espinosa, Ética, trad. bras. Grupo de Estudos Espinosanos, coord. Marilena Chauí. São Paulo: Edusp, 2015, pp. 245-247).
41
externas num a virada supernormal. O instinto tom a a liber
novas formas. Paralelamente à m utação, há outro fator para
dade de inventar as soluções propostas. Não se contenta em
a origem da variação: um poder de artifício experiencial não
encontrar suas soluções já traçadas no esboço negativo das
m enos im anente à natureza do instinto do que o instinto é
restrições ambientais. Dada a escolha entre a conform idade
imanente à natureza. Diante do acidente, o instinto está apto
às demandas limitativas da adaptação e a morte, ele inventa
a se replicar sobre a própria autocondução, a própria propulsi-
um a terceira via: a invenção do excesso de um mais-viver.
vidade de autovariação.54Ao enfrentar uma mudança no meio
Uma inventividade imanente à topologia da experiência, com
am biente que exerce um a pressão seletiva, ele retorna à sua
suas qualidades vividas, em sua vanguarda mais subjetiva,
própria margem de manobra, levado adiante em seus gestos
responde espontaneam ente às pressões adaptativas. A essa
perform ativos. O instinto opõe à conform idade demandada
inventividade imanente alguns dão o nome de “ desejo”.53
pelas pressões seletivas de adaptação um poder im anente
Obviam ente, a evolução nunca escapa da seleção adapta-
de invenção supernorm al. A ação instintiva jo g a a própria
tiva. Não é assim tão preto no branco. Mas não é exatamente
criatividade natural contra as condições lim itantes do meio
essa a questão. O problem a é a fundam entação do princípio
externo. Se um a ação instintiva é induzida por um estím ulo
neodarwiniano segundo o qual a única força natural de varia
externo ou uma situação de necessidade externa, ou acontece
ção que contribui para a gênese das form as de vida é a de
na ausência de ambos, há um grau de liberdade “ alucinatória”
m utação. A m utação é puram ente acidental, assim com o as
nas variações deform ativas que ela desempenha. O instinto,
mudanças ambientais que passam a exercer pressão seletiva
enfatiza Bergson, não é apenas acionado, ele é atuado.55 Atua
sobre as variações que as m utações produzem . C om o um
a si mesm o ao brincar. É sempre a atuação de ato verdadeiro,
conceito, o acidental se refere a relações extrínsecas entre elem entos discretos que operam de acordo com leis pura
nunca apenas um estereótipo de ação. O elem ento supernor
m ente m ecanicistas que sofrem um a pane: causalidade efi
rença entre atuar e encenar seja mínima.
m al e inerente do dinam ism o instintivo faz com que a dife
ciente tem porariam ente fora de serviço. Acidentes ocorrem
Ao se replicar na própria intensidade de variação autocon-
pontualm ente, ao acaso. A espontaneidade, ao contrário, diz
dutora, o lúdico do instin to deixa um a m argem de brinca
respeito às variações qualitativas que ocorrem integralmente
deira nas lacunas, nas interações entre indivíduos ou entre o
com o um bloco.
indivíduo e o ambiente. As duras necessidades da vida e a lei
A espontaneidade tem uma lógica, m esm o em sua recusa
de seleção adaptativa associada não contam toda a história.
em cumprir a lei. Ela segue a lógica constitutivam ente aberta da intensificação relacionai, na direção da em ergência de 53 Sobre o desejo como um princípio imanente e autocondutor produtor do real, cf. Deleuze e Guattari, O anti-Édipo, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010. “Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade” (p. 43).
42
54 Essa replicação num poder imanente de invenção é a “involução criativa” com a qual Deleuze e Guattari suplementam a “evolução criativa” de Bergson (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 27-28; Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 18-20). 55 Bergson, A evolução criadora op. cit., pp. 158,195. Em francês, joué— que, assim como a palavra inglesa play, também se refere à dramatização, como em playing a role [encenar um papel]. Na edição inglesa está traduzido como acteã [atuado].
43
Sempre há brincadeira em qualquer mecanism o, e o instinto
do lado do elem ento criativo no instinto, com o o m otor m en
não é um a exceção. N as palavras de Ruyer, há sem pre uma
tal do m ovim ento do devir das form as da vida. Isso porque
“borda fortuita” de espontaneidade im pelindo a autonom ia
a tendência supernorm al corporaliza um desejo de variação
criativa da expressão.56 V oltem os à fam inta gaivota-prateada. Se a tendência do filhote à improvisação tem um efeito insignificante na eficácia
positivo. É através dessa ten dência que o apetite pela vida afirma a variação. Na natureza, “ o fato inicial é a apetição prim ordial” .37 A adaptação dá passagem à tendência super
do comportamento de alimentação, seus gestos supernormais
normal, de modo que ela siga no caminho — ou não. A adap
serão destinados a recuar na imanência da natureza de onde
tação seletiva exerce um controle de fiscalização cujo poder
vieram . Fim da história: serão indiferentes ao sucesso repro
vem da im posição de restrições extrínsecas e que assume a
dutivo da espécie, e não serão passados para a frente na linha
form a de uma sentença de vida ou morte. Impõe a lei daquilo
evolutiva. Mas não é inconcebível que a im provisação entu
que está dado com o um a necessidade de sobrevivência. O
siástica do filhote acerte em cheio a paixão do adulto, resul
controle final que exerce sobre o que passa ou não passa em
tando no aum ento da avidez com que ele alim enta sua cria.
term os de novas variações eqüivale a um julgam ento norm a
Esse aum ento na eficiência do com portam ento de alim enta
tivo. Eqüivale a um teste de conform idade, um teste de apti
ção aumenta o sucesso reprodutivo dos pássaros. A im provi
dão no que se refere às leis de necessidade construídas em
sação e tudo o que se prestou à sua invenção na constituição
condições já dadas. Ainda assim, a longo prazo, o que ganha
instintiva do filhote, na sua relação apetitiva com o que seu
é o poder improvisacional da variação supernormal que ultra
entorno oferece ao longo do caminho das disposições inten-
passa 0 que está dado, rumo a um excesso de qualidade vivida.
sificadoras de experiência, podem então ser passados adiante
Sua propulsividade tom a a prim azia com o originadora das
pelas forças de pressão seletiva. A exceção imaginativamente
formas de vida submetidas ao julgam ento norm ativo da sele
subjetiva acaba se tornando a regra biológica. O supernormal normaliza. A tendência à supernormalidade terá efetivamente
ção adaptativa. Para corroborar a excessividade desse ímpeto
contribuído para a gênese evolutiva de um a variação dura
da natureza em qualquer lugar onde possa ser observada, da
doura de uma form a de vida.
qual o entusiasmo do corpo do gesto instintivo é a expressão
Adaptabilidade e criatividade convergem , sem que a dife rença entre elas se apague. No processo de evolução, suas operações tendenciais se interlaçam sem perder sua distinção.
inventivo, basta dar um a olhada na exuberância sem limites
exemplar. A história da evolução é uma louca proliferação de formas, tão fértil que desafia a imaginação humana. Um a filosofia da natureza deve levar em conta essa prima
Fundem-se, efetivamente, sem coalescer. Ontogeneticamente
zia da expressividade autovariante, bem com o sua autonomia
falando — isto é, do ponto de vista da gênese das formas, da
processual enquanto ten dência autocondutora. Sua prim a
origem de suas variações — cumpre dizer que a primazia está
zia deve ser reconhecida m esm o onde a vida animal é mais
56 Ruyer, Lagenèse desformes vivantes op. cit., p. 142.
57 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 48.
44
45
firm em ente enraizada no enquadram ento de seu am biente,
para a em ergência da linguagem . A linguagem se distingue
com todos os acidentes e imperativos que vêm com isso. M ui
pela capacidade reflexiva de se dobrar — de replicar suas ope
tos animais se enraízam num território. A ocupação proprietá
rações sobre si mesmas, de comentar a respeito daquilo que se
ria de um território fornece aos instintos um meio exclusivo
faz ao fazê-lo. O redobram ento m etacom unicacional permite
para o seu desdobram ento, mas sob condições m uito particu
que a linguagem mapeie as próprias operações, imanentes ao
lares. Agressão interespecífica, gregaridade interespecífica e
seu exercício. O s m esm os atos verbais que produzem a dis
com portam ento de cortejo são, todos, funções territoriais —
tinção entre o nível comunicacional e o m etacom unicacional
assim como, aliás, o com portam ento de alimentação do cuco
fazem com que esses níveis colapsem entre si: você não pode
e da gaivota, que pressupõe um ninho. A partir da perspectiva
falar sobre a linguagem sem utilizá-la. É num só e m esm o
aventada aqui, nosso entendim ento de funções territoriais
gesto que a distinção entre os níveis de linguagem é esta
deve levar em conta os m odos nos quais o desdobram ento
belecida, e que esse distanciam ento reflexivo da linguagem
dos comportam entos instintivos enraizados podem, não obs
em relação consigo mesm a recai na imanência, na im ediatez
tante, superar sua ancoragem funcional. O cortejo, a função
do próprio ato de enunciação que produz a distinção. Isso é
territorial em torno da qual orbita a m aior parte das discus
verdade não só em relação a declarações que com entam expli
sões sobre a exuberância evolutiva, seria apenas um caso par
citam ente sobre a função da linguagem. O humor é um bom
ticular. A brincadeira, uma vez mais, proporciona o ângulo de
exem plo da operação da linguagem piscando para si mesma.
ataque privilegiado.
Entretanto, todo ato de linguagem inclui esse elem ento refle
A brincadeira, com o um a atividade independente em seu
xivo em algum nível. T oda declaração tem um papel fático,
próprio direito, pressupõe o território. O território está entre
definido com o o esforço em estabelecer ou continuar a com u
suas condições necessárias. Os filhotes de lobo só podem se
nicação. T odo ato de linguagem perform ativam ente m eta-
perm itir se entregar à brincadeira quando estão próxim os do
gesticula para a própria vocação com unicativa. A diferença
covil que lhes confere proteção contra os predadores, até que
entre os níveis de linguagem é duplicada por uma zona de
estejam grandes o bastante para se tornarem , eles próprios,
indiscernibilidade entre eles. Essa zona é sua mútua inclusão
predadores. Mas a brincadeira não é apenas condicionada
no mesm o ato de linguagem. Os níveis denotativo e reflexivo,
pelo território, é uma operação no território. É um a opera
com unicação e m etacom unicação, o mapa e o território, são
ção de abstração vivida na qual as funções territoriais são, ao
ativamente coim plicados em qualquer gesto, incluindo, para
m esm o tem po, ativam ente convocadas para um novo efeito
doxalm ente, aqueles que os isolam. Os níveis se entrelaçam
e paradoxalm ente colocadas em suspenso.
em pressuposição recíproca, no próprio ato que produz sua
Em sua discussão acerca da dimensão metacom unicacional
distinção, numa espécie de vaivém instantâneo através de sua
da brincadeira, Bateson ressalta que é a reflexividade da brin
diferença. A brincadeira, entendida num sentido mais amplo,
cadeira que inventa a fam osa distinção entre o mapa e o ter
é o que inventa essa dinâm ica. Num sentido mais estrito,
ritório. É essa diferenciação, afirma ele, que cria as condições
com o uma arena de atividade em seu direito próprio, é o que
46
47
mais desenvolve a invenção, brincando intensam ente com a
É evidente que esses prolongam entos para a fren te das
diferença entre o mapa e o território para extrair disso uma nova mais-valia de vida.
form as dinâmicas de vida podem varrer a form a do próprio
A linguagem humana conduz a reflexividade do ato com u
território em m ovim entos de devir. Vim os que os estím ulos supernorm ais que são a paixão das gaivotas-prateadas com
nicativo e de seus poderes cartográficos ao seu poder animal
preendem blocos relacionais de qualidades experienciais cujo
iríáis elevado. Ao mesmo tem po, as possibilidades lúdicas da
acoplam ento integral não respeita a distinção entre figura
vida são conduzidas a um poder maior, potencializadas pelo
e fundo e que não são atribuíveis a nenhum a propriedade
vaivém instantâneo entre os níveis lógicos, entre os domínios
isolável de nenhum deles. Não é difícil imaginar a tendência
díspares de experiência e entre os dom ínios da experiência
supernorm al do filhote atrelando-se ao elem ento estrutural
e os m ovim entos criativos através dos quais eles se superam.
do ninho. N ão é inconcebível que essa pressão deform acio-
Dos trocadilh os mais infam es a mais exaltada poesia, pas
nal possa, em longo prazo, levar a um a vantagem adapta-
sando por todo tipo e nível de hum or e de uso figurado —
tiva associada a um a variação no planejam ento do ninho
para não m encionar os form alism os explicitam ente dedica
que acabe passando pelo crivo da seleção, tudo com o efeito
dos ao mapeamento operacional — , a linguagem está sempre
secundário da autocondução apetitiva dos anim ais. N esse
ocupada flexionando suas capacidades reflexivas, e ocupada
caso, o poder mental da brincadeira terá m odificado o mapa
tam bém em brincar com elas.
físico do território. V oltando à brincadeira no sentido estrito, o vaivém ins
A brincadeira animal desliza essa reflexividade para den tro do gesto não verbal. Uma seqüência de gestos combates-
tantâneo que ela efetua entre presente e futuro trabalha as
cos projeta a form a do combate; repete a form a dinâmica do
pernas de m odo a serem capazes de outro alcance — o de a
com bate sem o com bate. Ao fazê-lo, constitui um a cartogra
inventividade da brincadeira de luta se prolongar na form a
fia enativa diretam ente vivida. Não é um a cartografia que se
do próprio com bate, atravessando a zona de indiscernibili-
lim ita a se conform ar aos contornos dados da form a dinâ
dade da sua m útua inclusão. As variações no com bate que
m ica que delineia, mas que vai além, im provisando sobre a
são improvisadas na brincadeira podem muito bem conduzir
form a dada. Prolonga as linhas gestuais com as quais extrai o
a um a evolução de sua form a dinâmica. Essa é a ideia, já dis
mapa vivido da form a dada através de acréscim os estilísticos
cutida, de que o jogo não se m olda no com bate tanto quanto
e excessos que introduzem o jamais visto. A novidade floresce
o com bate se m odula na brincadeira, em nivelam ento com
no terreno da vida. Esse tipo de cartografia cria o território
os gestos que com põem sua cartografia enativa. O s gestos
que mapeia, em novas variações que emergem numa arena de
cartográficos têm o potencial de reconfigurar a arena de ati
atividade já existente. Nesse m odo lúdico de reflexividade, é
vidade do combate, assim como a bicada impetuosa do filhote
essencialmente o futuro que é encenado. O gesto lúdico inclui
de gaivota podem levar, por fim, a uma reconfiguração de um
o combate e a brincadeira, um no outro, a fim de estabelecer
território físico. No vaivém instantâneo entre o presente da
um vaivém instantâneo entre o presente e o futuro.
brincadeira e o futuro do combate, é estabelecido um circuito
48
49
de troca, pelo qual a brincadeira vem a se expressar em com
com um terceiro incluído. A brincadeira e o com bate se sobre
bate porque o com bate veio a se expressar em brincadeira.
põem sem que a distinção entre eles seja perdida. Convergem
Esse intercâm bio ocorre através da sua diferença em nível
sem se fundir, a qualquer distância no tem po e no espaço.
com unicativo, form a e tipo, bem com o através da distância
O correm conjuntam ente visando a m udanças, sem coales-
que separa a brincadeira da luta, com o arenas de atividade
cência — mas com um entrelaçam ento de tom . Na medida
díspares, cada qual com seus próprios parâm etros espaciais
em que exitosam ente é com batesquidade, a brincadeira é
tem porais — ou, no vocabulário de Félix G uattari, com o
potencial e m ortalm ente séria. Já o com bate, na m edida em
territórios existenciais diferentes.58 O con ceito de “território existencial” é m ais abrangente do que o de “territó rio” no sentido estrito. R em ete ao ter ritó rio no sentid o físico , mas tam bém assim ila as form as dinâm icas, as form as de atividade, que utilizam o território
que é necessariamente improvisacionai, carrega um elemento lúdico. O tom dominante difere de um lado para outro, mas o -esco está num lado e no outro, estendido da maneira super normal entre eles. Na linguagem, a zona de indiscernibilidade correspondente
físico com o tram polim para o devir. Inclui tam bém as rela
é verbal. Enquanto verbal, presta-se a um a definição pura
ções mentais entre os territórios em jo g o e en tre as form as
mente lógica, nos term os do paradoxo de Russell, tratado em
dinâm icas que os territó rio s h ospedam . O territó rio e x is
detalhes por Bateson. Esse paradoxo gira em to m o da im pos
tencial é um bloco de espaço-tem po vivido no qual a vida se
sibilidade de uma classe ser membro dela própria (o paradoxo
pensa enquanto brinca de variação. O conceito de território
de Epim ênides ou o paradoxo do m entiroso creten se).60 O
existencial tam bém , e especificam ente, se refere à com posi
mapa que coincide com o território é outra versão do mesmo
ção estilística das atividades vitais, inclusive o vaivém entre
enigma. A zona de indiscernibilidade da brincadeira exem
as suas arenas díspares efetuando um a m odulação recíproca
plifica ativamente esse tipo de paradoxo. Em sua cartografia
dessas arenas, de maneira a prolongá-las potencialm ente em
enativa, a com posição do mapa e a do território coincidem
term os evolutivos.59 Em resum o, há um a potencialização recíproca da brinca
corporificada dessa cartografia entusiasticam ente supernor
deira pelo combate e do combate pela brincadeira: uma mútua
mal demanda um a definição em term os que não sejam pura
inclusão de potencial distinto. Potenciais para variação que
mente lógicos.
efetivam ente no gesto. A natureza integralm ente enativa e
são enovelados na brincadeira desenovelam -se na luta. Esse circuito de potencialização recíproca é possibilitado, de ambos os lados, pela criação de uma zona m utuam ente inclusiva de indiscernibilidade que replica a afirmação de suas diferenças 58 Guattari, Caosmose op. cit., pp. 11-95 e passim. 59 Cf. Deleuze e Guattari, Milplatôs, v. 4 op. cit., cap. 11.
50
60 “ Todos os cretenses são mentirosos. Sou cretense; logo, estou mentindo” e, neste caso, digo a verdade. De acordo com Russell, o problema se coloca a partir da mistura de níveis lógicos, o metanível pertencente às classes (todos os cretenses) e o nível particular pertencente aos membros das classes (o cretense que eu sou). Russell não encontrou uma maneira lógica convincente de separar as classes de modo efetivo, e disso decorre que não há um modo infalível de o mapa ficar preve nido de se replicar no território. Para a discussão de Bateson, cf. “A Theory of Play and Fantasy” op. cit., pp. 180,184-192.
51
Bateson sublinha que há um fator que n ão é tocado pela
de p o ten cialização recíp roca expresso no afeto de v ita li
suspensão efetuada pela colocação, realizada pelo gesto de
dade da brincadeira é um a potência do falso no sentido em
brincadeira, da atividade subsequente no m odo condicional.
que “postula a sim ultaneidade de presentes incom possíveis”
Esse fator é o afeto. Em bora um gesto lúdico apavorante não
no seu vaivém instantâneo entre o agora e o futuro e entre
denote aquilo que iria denotar, ainda provoca “ o m esm o ter
dom ínios díspares de atividade.63 O afeto que é a verdade da
ror” .6' Esse tam bém é o caso das im agens cinem áticas, res
brincadeira adiciona um a dim ensão verídica à p otên cia do
salta Bateson. O assu stad oresco inspira o pavor. Segundo
falso do afeto de vitalidade. Ele qualifica verdadeiram ente a
B ateson, os g esto s lú d ico s são “ puros signos de h u m o r” :
interação em curso com o envolvendo um tipo conhecido de
puros signos de afeto.62 Q u an do dizem os “ p u ro” em rela
experiência, e atesta a correspondência entre as duas arenas
ção a um signo, só p ode denotar um signo cujo sentid o é
em jo g o , confirm ando e cim entando a analogia: o m esm o
in separável do seu desem p en h o e, p o rta n to , cuja e xp res
terror (ainda que com um a diferença lúdica vital). Esse tipo
são é inseparável de seu conteúdo. Puros signos são signos
de afeto, relacionado ao acréscim o de um a dim ensão de mes-
não d en o tativos que não rem etem a nada fo ra da própria
midade, é 0 que os psicólogos cham am de afeto categórico. O
enação, que é a enação do seu significado. Puros signos são
afeto categórico contribui com a verdade que será golpeada
puros acon tecim en tos, sim ultaneam ente reflexivos (m eta-
pelo paradoxo do p oder do falso do afeto de vitalidade. O
com un icacion ais) e relacionais (ocasionando um a m útua
golpe do paradoxo to m a o gesto inventivamente “indecidível” — além de ser verdadeiro.64
inclusão de níveis, form as e arenas de atividade). Estando sem pre em jo go, a denotação, bastante artificiosa e em ter
O afeto categórico é o “o que” da brincadeira que vem com
mos constitutivos atingida pelo paradoxo, é em inentem ente
o “com o” , num registro afetivo diferente daquele do afeto de
suspeita. E ntretanto, isso não a im pede de ser verdadeira
vitalidade do “ com o” . O afeto categórico é do que verdadei
— afetivam ente verdadeira. A verdade da brincadeira é de
ram ente trata o acontecim ento. É o conteúdo qualificado do
ordem afetiva. A n teriorm ente, o entusiasm o do corpo expressado pelo
evento da brincadeira: “ sua sobredade” . Ocorre num registro
animal que se entrega à brincadeira foi caracterizado com o
enativa, com o um aspecto estritam ente do m esm o gesto. O
um afeto de vitalidade (ou aquilo que acabam os de chamar
afeto de vitalidade e o afeto categórico são aspectos co n co
de “ tom ” ). O afeto de vitalidade é adverbial, diz respeito
m itantes do ato da brincadeira. O afeto de vitalidade corres
ao “ com o” da perform ance: sua m aneira de execução (seu
ponde à -esquidade do ato: sua maneira. O afeto categórico
diferente da dinâm ica form a lúdica do desem penho que o
estilo). O com o foi relacionado ao artifício da -esquidade. E o que D eleuze cham aria de “ potência do falso” . O circuito 63 Deleuze, Cinema 2 - A imagem-tempo, trad. bras. de Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 161. 61 Ibid., p. 254.
64 Deleuze, Conversações, trad. bras. de Peter P& Pelbart. São Paulo: Editora 34,
62 Ibid., p. 253.
1992., p. 51-
52
53
é aquilo sobre o que o ato maneiristicam ente confirm a ser. É
situação bem pode ser de medo em todos os lados, mas cada
o que com um ente é cham ado de “em oção”.65 O afeto categó rico m obilizado na b rin cad eira é o m ais
participante carrega o medo de acordo com um ângulo parti
saliente nas interações da arena de atividades análoga com
dentes aos ângulos de inserção enativam diferenciais de poder.
cular de inserção diferencial na situação. Os papéis correspon
a qual se está brincando. N ão há com bate sem m edo nem
Vimos anteriormente com o 0 afeto de vitalidade marcado pela
p red ação sem terror. P ortan to, m edo e terro r realm ente
-esquidade da dram atização lúdica trazia consigo potenciais
figurarão nos jo g o s corresp on den tes. O m esm o afeto figu
transituacionais abarcando territórios existenciais distantes.
rará tam bém do lado da lacuna analógica aberta pela b rin
Tratava-se de um signo de potencial. O afeto categórico, por sua
cadeira. Sua figuração em am bos os lados co n stró i a ponte
vez, é um signo de poder. O s dois são inseparáveis, com o dois
em seu en trem eio . A situ ação , em todas as suas fa ceta s,
lados de uma mesma m oeda gestual.
será banhada p or essa qualidade experien cial sentida por toda parte. A m ordiscada de brincadeira diz “ isto não é uma m ordida” (este ato não denota aquilo que iria denotar). Ao
O afeto de vitalidade que expressa o entusiasmo do corpo estabelece uma conexão transindividual.66 A transformação-m-loco que acom panha o início da brincadeira não atinge um
m esm o tem po, diz categoricam en te: “ esta, no entanto, é
sem atingir o outro. Ao atingir um, atinge dois (pelo menos
um a situação de m edo” . A verdade afetiva é a garantia do
dois). A transindividualidade dessa transform ação é o que
entusiasm o do corpo do parceiro de brincadeira. Sem isso
tom a a brincadeira um processo fundamentalmente relacionai,
o jo g o careceria de intensidade. O afeto categórico na brin
a partir do m om ento em que é disparado o seu m ovim ento.
cadeira é o ferm ento que perm ite que o afeto de vitalidade
Sua relacionalidade se prolonga potencialm ente numa cone
ven h a à tona. N ão fo sse assim , a fo rça in dutiva do gesto
xão transsituacional. No movimento da brincadeira, territórios existenciais se cruzam enativam ente e se m odulam m utua
lúdico seria insignificante, a transform ação-in-loco que car
mente, através de suas diferenças, arrastados na direção de
rega a força do jo go não daria em nada. O mesmo afeto categórico transpassa o acontecimento, mas
novas expressões de suas form as dinâm icas — cada novo
não de forma homogênea. É assim etricam ente distribuído, é
m ovim ento de brincadeira tendo o valor de um m ovim ento
diferencialm ente distribuído na afetação dos papéis: assus
de luta em potencial improvisacional. A brincadeira se torna
tador/assustado, caçador/caçado, perseguidor/perseguido. A
combatesca, enquanto o combate se torna lúdico. É uma ques tão de desterritorialização recíproca, cada arena diferencial m ente prolongada na outra. Essa dupla desterritorialização é
65 Sobre a distinção entre o afeto de vitalidade e os afetos categóricos enquanto equiparados à emoção, cf. Stern (The Interpersonal World ofthe Infant op. cit., pp. 53-57; Forms ofVitality: Exploring Dynamic Experience in Psychology, the Arts, Psychotkerapy, and Development. Oxford: Oxford University Press, 2010, pp. 27-28). Sobre a necessidade de distinguir o afeto, em geral, da emoção, cf. “The Autonomy o f Affect” in Parablesfor the Virtual: Movement, Affect, Sensation. Durham: Duke Uni versity Press, 2002, pp. 23-45).
54
o próprio m ovim ento da abstração vivida, m obilizando a si 66 Sobre a teoria da transindividualidade, cf. Simondon, Uinformation à la lumière des noticms deforme et d’information. Grenoble: Millon, 2005, pp. 251-316; e Muriel Combes, Gilhert Simondon and the Philosophy ofthe Transindividual, trad. ing. de Thomas Lamarre. Cambridge: m i t Press, 2013, p p . 25-50.
55
m esm a rum o à invenção. Ela reforça e estende a principal
Em um a situ ação de não brincadeira, o afeto categórico
lacuna entre o que um gesto denota e o que iria denotar. E o
registra o im p erativo de viver o a co n te cim e n to na chave
que torna significativa a mínima diferença que separa o que
ex p e rie n cia l d o m in a n te, na qu al a situ ação co stu m e ira -
é daquilo que poderia ser — que o gesto lúdico inclui no seu
m en te se d esd o b ra. Em um a situ ação de m edo que não
próprio fazer. É a form a da força criativa desencadeada pela
seja de brin cad eira, sen tim o s d ireta m en te o im p erativo
brincadeira. É o que garante o circuito potencializante entre
para lutar ou fugir. C ada fibra de nossa existên cia é inter
o presente e o futuro.
p elad a. In d u zid o s ao p ró x im o a co n te c im e n to , nós nos
O afeto categórico p reenche a lacuna que é aberta pelo
p rep aram o s e m ergu lh am o s. T em os a o b rig a çã o de agir,
afeto de vitalidade e que se estende numa desterritorializa-
co locan d o tod as as nossas forças e habilidades, em nom e
ção recíproca. É a qualidade as simetricamente compartilhada
de o n o sso a p e tite p ela vid a ser ca p a z de co n tin u ar em
da experiência, envolvendo a situação evolutiva por todos os
seu cam inho de autocondução para o futuro. N ossas ações
lados, de uma ponta a outra. Contribui com o “o que” que a
in iciais ab so rvem o a fe to ca te g ó rico d ad o, fa ze n d o sua
abstração vivida desterritorializa e se encontra por todos os
tra n sd u çã o im ed iata em v e to re s de ativid ade ancorad os
lados, dando conteúdo qualificado e situacional ao aconteci
na situ ação e orien tad o s ao a co n te cim e n to recém -com e-
m ento estendido. O afeto categórico é a determ inação im e
çado. Essa transd ução do conteú do qualificando a situação
diatamente sentida do que a vida é de fato na complexidade
para um relançam en to da atividade expressiva ancorada e
acontecim ental do m om ento.67
orientada é a produção da corporalidade do acon tecim en to. É co m essa corporalid ad e, lu d icam en te reinduzida, que a
67 A distinção sugerida aqui entre forma e conteúdo não deveria ser tomada como uma validação da visão “hilemórfica” tradicional de que a forma é abstrata enquanto o conteúdo é concreto — com a forma entendida como um tipo de molde que impõe um formato à matéria informe. Forma e conteúdo têm de ser pensados aqui do modo como Deleuze e Guattari os repensam, seguindo Hjelmslev, que desloca a distinção para forma e expressão. Tanto conteúdo quanto expressão possuem formas, e elas estão em “pressuposição recíproca” . Ambos também possuem substância, fazendo da sua pressuposição recíproca um ninho de complexos imbricados de forma-matéria. Assim, conteúdo e expressão per manecem heterogêneos entre si, embora ocorrendo estritamente de modo con junto. Aqui o afeto categórico, como um tipo reconhecível de emoção, como o medo, seria a “forma do conteúdo”. Seu sentimento vivido de modo agitado seria uma “substância do conteúdo” . O ponto é que esse afeto de vitalidade é a forma da expressão do afeto categórico, e ao mesmo tempo constitui o seu próprio sentimento, irredutível ao afeto categórico que ele expressa no acontecimento. Sobre forma/substância do conteúdo/expressão, cf. Deleuze e Guattari (Milplatôs, v. 1, trad. bras. Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34,1995, pp. 56-58; Mil platôs, v. 2, trad. bras. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1995, pp. 33-40). Sobre a
56
brincadeira brinca. A brincadeira registra o im perativo de viver o acon tecim en to no tom experien cial dom inante da situ ação com a qual se brinca, enquan to tom ada no m ovi m en to tran ssitu acion al ca ra cterístico da brincadeira. Ele refrata a absorção do afeto categórico. Vale a pena interrom per aqui para ressaltar dois pontos. Prim eiro, com o o exem plo do m edo indica, o “ entusiasm o do corpo” , expressão do afeto de vitalidade da brincadeira, não pode ser concebido em nenhuma relação um para um no que se refere a um afeto categórico particular. A vitalidade
crítica ao modelo hilemórfico, cf. Simondon, Uinformation à la lumière des notions deforme et d’informatwn op. cit., pp. 39-51) e Combes, Gilbert Simondon and the Philosophy ofthe Transindividual, op. cit., pp. 1-6.
57
afetiva é intensa, mas não necessariam ente “feliz” . A brinca
por outro lado, é produzida no, pelo e para o acontecimento. É
deira, com o aponta Huizinga, não é redutível à “diversão” em
menos uma encarnação de algo de fora do que uma incorpora
qualquer sentido categórico, e com certeza não no sentido
ção no acontecimento, de uma vida adentrando um novo ritmo
do insípido deleite que a palavra assumiu em sua utilização
de seu próprio devir, registrando os imperativos dessa situação.
contem porân ea.68 Segundo, tam bém é n ecessário se valer
A corporalidade não é separável da ação ou da form a de
advertidamente da distinção entre situações de “brincadeira”
expressão da dinâm ica da ação, que é o afeto de vitalidade.
e de “não brincadeira” . C om o dem onstrou a discussão sobre
A corporalidade é a “ sobredade” im ediatam ente sentida da
o circuito reciprocam ente potencializante entre brincadeira
expressão de vitalidade. Sua absorção de sobredade atrela
e com bate, brincadeira e não brincadeira não são categorias
sua gênese ao afeto categórico. A corporalidade emerge com o
m utuam ente excludentes. Com o tudo nesta explanação, elas
sentimento, do afeto categórico, de ancoragem obrigatória na
estão numa relação dinâm ica de m útua inclusão. São corre-
situação; e com a tangibilidade dos imperativos que ocorrem
latos processuais coim plicados. Isso não é um a conclusão,
com 0 território. O obrigatório, o imperativo: o importante. A
mas um ponto de partida: um a problem atização. O modo da
corporalidade é importância vivida. O afeto de vitalidade, como
m útua inclusão deve ser repensado em cada caso. Dado um
dito anteriormente, corresponde à abstração vivida e à dester-
gesto lúdico, o problem a que se deve atacar é qual variante
ritorialização associada ao seu desempenho. A corporalidade
de mútua inclusão ele produziu.
com o im portância vivida é um acom panhamento necessário
Voltando à corporalidade, ela absorve os im perativos da situação em sua própria produção, detalhando progressiva
ao jogo vital de abstração que comunica à situação quais graus de liberdade podem, a partir dela, ser -esquizados.70
mente o conteúdo singular desse acontecimento à medida que o desdobra imperativamente em sua chave categórico-afetiva dom inante. A palavra “ corporalidade” é preferível a “corporalização” . Corporalização tem conotações de encarnação, com o se o corpo fosse um receptáculo vazio no qual é vertido algum conteúdo idealm ente preexistente.69 A corporalidade, 68 O divertimento do jogo “ resiste a toda análise e interpretação lógicas” (Huizinga, Homo Ludens op. cit., p. 5). Como um conceito, não pode ser reduzido a nenhuma outra categoria mental. Para os presentes propósitos, essa declaração precisa ser especificada: O divertimento do jogo resiste a toda análise categórica e interpretação lógica predicada na mútua exclusão. 69 Uma teoria não cognitiva não pode falar em “ a carne” ou “o corpo” como encar nando sentimentos ou ideias e sendo inspirados por eles. Qualquer conotação de encarnação reintroduz sub-repticiamente o dualismo mente/ corpo. O uso do termo “corporificado” cai geralmente nessa armadilha, a despeito de si mesmo.
58
Cf. a crítica feita por Maxine Sheets-Johnstone das conotações de encarnação nos estudos de cognição corporificada (Sheets-Johnstone, The Corporeal Tum: An Interdisciplinary Reader. Exeter: Imprint Academic, 2009, p. 221; “Animation: the Fundamental, Essential, and Properly Descriptive Concept”. Continental Pkilosophy Review n2 42, 2009 , pp. 377,394-395). Aqui preferimos o adjetivo “ incorporado” a “corporificado” . Este, quando utilizado, o foi com reservas. 70 O conceito de “importância” dialoga aqui com Whitehead: “o sentido de impor tância (ou interesse) está embutido no próprio ser da experiência animal” (Whi tehead, Modes ofThought. Nova York: Free Press, 1968, p. 9). Da mesma forma Whitehead fundamenta a importância nos imperativos da situação que estão dados. “A pura questão de fato”, “o caráter inescapável da questão de fato”, é a “base da importância” (p. 4). Ao mesmo tempo, Whitehead enfatiza a vetorização da impor tância em uma direção distinta do “ determinismo compulsivo” (p. 7) da questão de fato, em direção à criatividade, aberta para o futuro (cf. Stengers, Thinkingwith Whitehead: A Free and Wíld Creation ofConcepts, trad. ing. de Michael Chase. Cambridge: Harvard University Press, 2011, pp. 236-237). Assim, “temos de explicar os diversos sentidos em que liberdade e necessidade podem coexistir” (Whitehead,
59
A im portância vivida é um entendim ento não cognitivo
ao afeto de vitalidade em sua relação com a -esquidade. A
do que se passa nessa situação, uma situação com uma ação
corporalidade é um dos fatores refletidos no afeto de vitali
corporal ocorrendo. E diretam ente incorporada no acon te
dade. O afeto de vitalidade confere à corporalidade, por acaso,
cim ento em um registro afetivo, sem nenhum traço de refle
uma virada supernorm al que eqüivale a um com entário per-
xão.71 O elem ento de reflexividade pertence, particularmente,
form ativo sobre ela. A intensidade corpórea do lançam ento obrigatório à ação, subscrito por um afeto categórico com o
Modes ofThought op. cit., p. 5). Whitehead utiliza a expressão “ a importância vivida das coisas sentidas” na p. 11. A própria importância vivida carrega um grau de abstração, na medida em que equipara a situação com outras do seu tipo cate goricamente afetivo. Trata-se do grau mais baixo de abstração que consiste na postulação de uma generalidade: a identificabilidade do afeto categórico é o que um número de situações tem em comum. Ele registra sua mesmidade sentida, a despeito de suas diferenças. Particularmente, registra a mesmidade de situações passadas, já vividas, para a vivência da situação presente. Já que cada situação é concretamente dada com suas diferenças em relação a todas as outras, a experi ência da mesmidade se qualifica como uma ultrapassagem do que está dado, que era a definição de mentalidade. A importância vivida envolve a operação mental de reconhecimento como o grau de abstração mais baixo na vida animal. Desse ponto de vista, a importância vivida pode ser considerada como estando no mesmo continuum que a abstração vivida, a qual, não obstante, é qualitativamente distinta da importância vivida, na medida em que registra a singularidade da situação — não sua mesmidade sentida, mas sua diferenciação sentida. 71 A conhecida e difamada teoria da emoção de James-Lange é uma maneira de pensar acerca da imediatez não reflexiva do entendimento vivido da importância mencionado há pouco. A teoria é encapsulada na seguinte fórmula: “não corre mos porque temos medo, temos medo porque corremos”. Isso é frequentemente interpretado como uma declaração de reducionismo fisiológico. Não é. Para James, o ponto é que de fato esse sentimento de medo se nivela com a ação, que registra em sua orientação imediata a importância vivida da situação (um urso na trilha à nossa frente...). “Minha teoria [...] é que as mudanças corporais seguem diretamente a percepção do fato excitante, e que 0 nosso sentimento das mesmas mudanças, enquanto elas ocorrem, s ã o a emoção” (James, The Principies ofPsychology,v. 2. Nova York: Dover, 1950, p. 449). Olhando por esse ângulo da descarga de emoção com a de ação, com uma consciência de mudança sendo sentida (que, no presente vocabulário, chama-se mais de afeto que de “emoção”), a teoria de James-Lange pode ser considerada não um reducionismo fisiológico, mas uma teoria da corporalidade, entendida aqui como um modo do pensar-sentir em toda a sua imediatez. Vale notar, de passagem, que James situa instinto e “ emoção” (afeto) em uma mútua inclusão através de uma zona de indistinção: “Reações instintivas e expressões emocionais lançam sombra imperceptivelmente uma na outra. Todo objeto que excita um instinto excita também uma emoção” (p. 442).
60
o medo, o arrim o de um a vida nesse pulso de ação na chave im perativa de afetividade, ressoa com a intensidade expres siva do entusiasm o do corpo do afeto de vitalidade. A inten sidade geral do acontecim ento é amplificada pela tensão que resulta do feeáback entre os dois polos.72 O que é com um ente chamado de “corpo” é a corporíficação do acontecim ento através dessa tensão. A vida é tensam ente esticada entre sua ancoragem obrigatória nos imperativos de 72 Para uma explanação completa sobre a relação entre afeto categórico e afeto de vitalidade é crucial evitar qualquer implicação de linearidade entre eles, como se o conteúdo categórico-afetivo viesse primeiro e o afeto de vitalidade, em segundo, para fazer sua transdução. De fato, é apenas retrospectivamente que essas duas dimensões do acontecimento podem ser separadas. Na agitação de um acontecimento, elas ocorrem em conjunto numa zona de indiscernibilidade. O afeto categórico coincide com um relançamento da atividade expressiva anco rada e orientada, que é precisamente o que é registrado como afeto de vitalidade. Afeto categórico e vitalidade são realmente distintos, mas não podem ser anali sados em separado. Por acaso, eles se juntam. Retrospectivamente é outra his tória. Parafraseando Whitehead, “esse sentimento temeroso” (afeto categórico e afeto de vitalidade ocorrendo conjuntamente como experiência), retrospecti vamente, torna-se “ aquele sentimento de medo” (um conteúdo especificado na experiência). Para uma análise dessa coimplicação processual em evolução do afeto de vitalidade e do afeto categórico (correspondendo à “emoção” no pre sente vocabulário) analisada no nível político, cf. Massumi (“ Fear (The Spectrum Said)”. Positions: EastAsia Cultures Critique, edição especial “Against Preemptive War”, v. 13, nE3, 2005, pp. 31-48.; para a referência de Whitehead, cf. ibid., nota 10, p. 48). A situação política em questão (a política do terror de Bush) poderia parecer qualquer coisa, menos lúdica, mas boa parte da análise da brincadeira aqui desenvolvida poderia ser aplicada a ela, mediante ajustes apropriados em vista de entender o “jogo” da política (seus poderes de falsidade, suas forças de abstração inventiva).
61
dada situação e a tendência supernormal, arrancando, de cada
O fracasso de um gesto lúdico numa luta de brincadeira
volta e de cada reviravolta na ação, uma oferta de liberdade.
pode ser pensado nesses term os. Quando o gesto lúdico fra
Não há “ o corpo” . Há uma vida — esticada com o um elástico
cassa e 0 jogo se torna o seu análogo, é porque o peso do afeto
entre os polos afetivos contrastantes entre os quais se dará
categórico ficou muito grande. O im perativo a ele associado
a determ inação progressiva do acon tecim en to.73 Corporifi-
foi sentido com muito pathos, tropeçando na tendência super
car é estar nessa situação, sendo puxado em duas direções
normal. A atração da verdade corpórea da situação era forte
de um a só vez: de um lado, ancorado no que está dado; de
demais. O gesto incorporado, em dem asiada conform idade
outro, tendendo a arranjar um jeito de superá-lo; o recuo da
com os imperativos sentidos da arena de atividade com a qual
necessidade estabelecida e o avanço para o novo. Em outras
se brinca. Os imperativos da situação análoga de medo dizem
palavras: aquiescência ao que não é opcional, de um lado, e a
“ morda, de verdade”. A brincadeira diz “mordisque, com estilo”.
espontaneidade da apetição, de outro; pathos (o sentim ento
Quando a mordiscada de brincadeira é verdadeira demais, o
aferrante de aquiescência ao não opcional) e a fuga da fanta
jo go é arrastado por um a m ordida que, agora, denota uma
sia da paixão; incorporação à dadidade do acontecim ento e
mordida. A -esquidade do afeto de vitalidade é insuficiente
a artificiação de uma via através disso com um entusiasm o
para manter a suspensão do combate. A forma dominante do
supernormal; a corporalidade da im portância vivida e a vita
combate não só é modulada de dentro, ela toma conta, obriga
lidade da abstração vivida, em acidental tensão produtiva. O
o acontecimento a ele mesmo. A tensão entre incorporar a um
que ocorre efetivam ente é com o essa tensão se resolve. Para
acontecim ento e arranjar uma via supernormal para atraves
doxalm ente, por essa definição, “ o” corpo não é redutível à
sá-lo pende muito para a primeira. A lacuna da brincadeira se
corporalidade. Reestilizado com o corporalização, “ o corpo”
fecha. O paradoxo colapsa na seriedade; o poder do falso, na
inclui o m ovim ento através do qual a corporalidade supera a
veracidade. A diferença mínima entre o que o gesto denota e o
si mesma: inclui o polo mental do acontecim ento.74
que iria denotar é apagada. É um caso de demasiada corporali dade, sem exercício suficiente do poder mental para fazer uma
73 Sobre o conceito de “uma vida”, cf. Deleuze (Dois regimes de loucos, trad. bras. de Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34,2016, pp. 407-413).
virada supernormal rumo à corporalização. Muita importância
74 Tal como utilizado aqui, corporalidade evoca em linhas gerais o que Whitehead chama de “polo físico” de um acontecimento. O “polo mental” contrastante é incorpóreo. O corpo é o que se estende entre eles e é determinado pelo exercício dessa tensão. O corpo não se reduz ao corpóreo, que, por sua vez, não é redutível ao físico entendido no sentido usual, já que (tal como explicado no corpo do texto e na nota 71, p. 60) o corpóreo como importância vivida envolve um modo de entendimento e, portanto, pode ser pensado como um grau de mentalidade. Correlativamente, o incorpóreo é guiado pela tendência supernormal de reincorporação em acontecimentos futuros, produzindo, assim, variações na corporalidade. Reco nhecendo essas mútuas inclusões processuais do corpóreo e do incorpóreo, situa os dois polos num continuum, ao mesmo tempo em que respeita suas diferenças,
corporalização muito pouco imaginativa.
62
vivida (porém, inapropriada) e pouca abstração vivida. Uma Ainda que a im portância vivida seja um entendim ento não cognitivo, im ediata dem ais em seu conjunto não opcional sem desfazer a tensão entre eles. Pensar o corpo, nessa abordagem, requer um “ materialismo do incorporai”, afinado ao paradoxo processual produtivo (cf. Mas sumi, Parablesfor the Virtual, op. cit., pp. 5-6,16). O termo tem sua origem em Foucault (A ordem do discurso, trad. bras. de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1999, p. 58).
63
com o acontecim ento para constituir uma reflexão, com o um
medida em que pertence ao campo da consciência, “nem por
entendim ento ela ainda se qualifica com o um ato de pensa
isso [...] está situado fora dos lim ites do espírito”.77 Há nele
mento. É pensamento em seu grau mais ínfimo de criatividade,
um lam pejo de m entalidade. O instinto é um m odo do pen
ancorado em um reconhecim ento do que está dado, ou seja,
sar, um que envolve o fazer. Sendo diretam ente vivido, antes
afinado com a m esm idade do presente ao passado. A abstra
gestualizado do que representado, sua mentalidade é de um
ção vivida, em contrapartida, é voltada para o futuro, num
grau que por natureza resiste à definição cognitiva. Sempre
pensar enativo do novo. Tam bém é um entendim ento não
há algo extra nele, na m edida em que ele entusiasticam ente
cognitivo, mas numa ação orientada para o futuro.
elude a referenciação cognitiva. É sempre um pensar-sentir
E o que é a intuição, senão a cooperação de ambos? Um a liga feita de ambos? U m a dupla dosagem do acontecim ento
excedendo a denotação. Com o vim os na análise dos estím ulos supernormais, o ins
com am bos — mas com um elem ento extra do lado da abs
tin to pensa gestualm ente em blocos qualitativos. Seus ges
tração vivida, enviesando o acontecimento mais na direção da
tos se efetuam e envolvem um “arranjo novo de elem entos
desterritorialização criativa do que da ancoragem obrigatória.
antigos” de maneira correlativa.78 Ele está associado a blocos
O que é a intuição, senão uma corporalização criativa? Uma
de relação, conjuntos de qualidades experienciais integral
corporalização que se faz numa realização do novo?
m ente conectadas. A ssociando-se a essas qualidades, “ dis
Para Bergson, o instinto só pode ser pensado em relação
tin g u e ] propriedades” em vez de objetos de percepção.79 Ele
à intuição. Ele define o instinto com o a intuição que é mais
singulariza as propriedades sob um a deform ação relacionai
“vivida do que representada”.75 Intuição vivida. U m a intuição
que tende à variação, em vez de perceber objetos discretos
que é antes representada do que vivida seria um a cognição,
no m odo do reconhecim ento. Isso confere ao instinto o seu
ocorrendo num nível reflexivo da vida m uito diferente, no
poder mental, novam ente no sentido da capacidade de supe
qual o pensar não está nivelado com o fazer, e as palavras ou
rar o que está dado: confere a ele a inclinação constitutiva
imagens que o representam são capazes de sacudir o m odo
para o supernormal. O instinto sempre tem um primeiro grau
condicional do p erform ativo a fim de efetivam ente e n tre
de m entalidade apetitiva, um a fom e pelo supernorm al, por
gar com o denotação aquilo que eles denotam . E tam bém
mais sobrecarregado e fixado que ele possa estar pela corpo
um pensar que supera o que está dado, chegando a novas
ralidade herdada e sua inclinação para a mesmidade. No caso
con clusões, mas que consegue p erm an ecer no m odo refe
do instinto, a corporalidade assume a form a herdada de uma
rencial. Vividas e/ou representadas, as intuições pertencem
m em ória genética dos im perativos adaptativos de situações
ao cam po ativo da consciência (a consciência é som ente isto, um “cam po” de atividade, não um a coisa).76 O “ instinto”, na 77 Ibid., p. 190. 75 Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 190.
78 Ibid., p. 33.
76 Ibid., p. 194.
79 Ibid., p. 206.
64
65
passadas, reativadas p or um a percepção do presente.80 É a
A parte da formulação referente ao que “ainda não pode ser
tendência apetitiva do supernormal de adentrar o ato instin
conhecido” concerne à “ extensão” , que ocorre precisam ente
tivo que salva o instinto de ser a ação estereotipada de reflexo
no e através d o acontecim ento. Transportados ao coração
que é, em geral, reputado a ser.
do acontecim ento, somos movidos por aquilo que sucede. O
Bergson propõe um conceito desenvolvido para substituir
que está por vir já está fluindo. Mas o que está fluindo ainda
a noção de “cognição” , lamentavelmente tão mal posicionada
está presente apenas nos primeiros indícios de potencial. O
no que se refere ao instinto com o intuição vivida. O instinto,
potencial está sendo ativam en te expresso, mas com o um
afirma Bergson, não é cognitivo. Ele é simpático. E ele não
m ovim ento do ainda-inexprimível, posto que ainda está por
poderia dizer mais claramente: “ o instinto é simpatia”.81 “Cha
vir. C om o intuição vivida, o instinto é a expressão g esticu
mamos aqui de intuição a simpatia pela qual nos transportamos
lada do ainda-inexprim ível; envolve um vivido pensar-fazer
para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que
do m ovim ento irrestrito da expressão, ancorado na situação,
ele tem de único e, por conseguinte, de inexprim ível.82 Para
bem no seu núcleo, mas levando tendencialm ente para além
os propósitos de nosso projeto, é necessário acrescentar uma
do que nele está então dado.
correção a essa definição, assim com o propor um a extensão.
O que a intuição acrescenta ao instinto é a corporalidade
A correção diz respeito ao term o “objeto” . Se o pensam ento
da situação presente. A corporalidade é um polo com ponente
distingue de modo instintivo qualidades experienciais integral
da intuição, com o definido acima: a tensão corporal entre a
mente interconectadas, de olho em seus devires supemormais
abstração vivida da tendência de superar o que está dado e a
potenciais, e não os objetos prontos, seria mais preciso dizer
im portância vivida da corporalidade — com uma acentuação
que a simpatia “nos transporta ao coração do acontecimento” .
na última. Se o instinto fosse vivido sem um impulso da intui
Uma formulação mais completa seria: “ chamamos de instinto,
ção, só seria capaz de im provisar supernorm alm ente sobre
em seu aspecto de intuição vivida, a simpatia que nos trans
o já herdado do passado e, na ausência de um a ancoragem
porta, num gesto que efetua uma transform ação-in-loco, ao
no presente, seria sempre alucinatório, mesmo com um estí
coração de um acontecimento único, que é apenas o começo,
mulo. A intuição fundam enta a herança corporal do instinto
com o qual a nossa vida irá agora coincidir, mas cujo desfecho ainda não é conhecido e, consequentemente, expresso — atado,
apreenda efetivam ente o potencial supernormal da situação.
como o movimento adiante, à tendência supernormal” .
Ela permite que o instinto fatore nos imperativos da situação;
do passado na corporalidade do presente, perm itindo que ela
que m anobre, mais efetivam ente, seu apetite supernorm al 80 Cf. nota 34 p. 32, acima, sobre o papel do “traço mnêmico”.
além deles. A intuição acrescenta a própria dose de apetitivi-
81 Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 191, grifo nosso.
dade à m istura (se ela não tivesse o próprio apetite pela vida,
82 Id., O pensamento e 0 movente, trad. bras. de Bento Prado Neto. São Paulo: Mar tins Fontes, 2006, p. 187. Para uma excelente análise da relação entre simpatia e intuição em Bergson, cf. Lapoujade, Potências do tempo, trad. bras. Hortência Santos Lencastre. São Paulo: n-i edições, 2017, pp. 61-87.
por que se im portaria, antes de tudo, em ser m isturada aos
66
acontecim entos?). A dupla polaridade da intuição capacita o instinto a fatorar em sua operação o que é im portante no
67
presente, enquanto, ao m esm o tem po, mantém a tendência
pragmaticamente pela intuição). Na lógica da mútua inclusão,
apetitiva do instinto de superar. Isso aumenta efetivamente a
diferença de grau e diferença de tipo são ativamente insepa
proeza improvisacional do instinto. Faz com que ele se torne
ráveis, dois lados da mesm a m oeda processual. O continuum
mais pragmaticam ente apto a apreender o inexprimível, para
em que o instinto e a intuição se diferem em graus é o da cor
-esquizar de form a mais expressiva o seu m ovim ento. Cada
poralização animal. A recom binação em que em ergem con
ato instintivo vivido carrega um grau de capacitação intuitiva.
juntam ente, de novo, para além de suas diferenças de tipo, se
O grau depende de muitos fatores, incluindo o nível de com
repete pontualm ente em todo acontecim ento gesticulado da
plexidade evolutiva do animal, mas não se lim itando a isso.
corporalização animal.
Pode não ter passado despercebido que as definições de
Há um sinônim o de um a só palavra para a m útua inclusão
instin to e intuição se entrecruzam , assim com o, inevitavel
diferencial: vida. A vida espreita na zo n a de ind iscernibili
mente, todas as distinções dispostas neste ensaio. O instinto
dade do entrecruzam ento das diferenças de todos os tipos
já carrega a ten dência supernorm al — em bora num m odo
e graus. A cada pulsação de experiência, com cada recom bi
alucinatório, se deixado por sua co n ta — cuja acentuação
nação que ocorre, em erge um a nova variação no continuum
define a intuição. E a intuição já carrega um a polaridade
da vida, estirada por um a m ultiplicidade de distinções de
entre a tendência supernormal e a corporalidade — embora
coim plicação. A evolução da vida é um a variação contínua
em outro tem po, mais presente que passado. Com o sempre,
atravessando iterações recorrentes, repetindo o estiram ento
não se trata de uma lógica sim ples de separação categorial
sem pre co m um a diferença. Por causa desse en trecru za
e sua lei autofrustrante do terceiro excluído. É sempre uma
m ento recorrente de diferenças conjuntam ente envolvidas,
questão gestualm ente recente de m útua inclusão diferencial
a evolução nunca é linear.
de correlatos processuais que se implicam conjuntam ente.
A mesma lógica se aplica a todos os term os contrastáveis. O
O paradoxo é sempre o seguinte: dois modos de atividade
modo em que fará sentido construir seu contraste, com o uma
em m útua inclusão estão tão interligados a ponto de serem
diferença de grau ou uma diferença de tipo, variará de acordo
graus um do outro. Ainda assim, suas diferenças perm ane
com o problem a e a tarefa de construção de conceitos de que
cem. Quando eles emergem juntos, estão perform ativamente
se dispõe. A única form a de evitar essa oscilação é substituir
fundidos sem se confundirem , o que significa que podem se
am bos os term os pela noção de diferença moáal, na qual as
recom binar quando acontecer de, perform ativam ente, emer
distinções a serem feitas são entre m odos de atividade (for
girem juntos de novo. Portanto, na lógica da m útua inclusão,
mas dinâmicas qualitativamente distintas). A diferença modal
pode-se dizer que instinto e intuição estão no m esm o conti-
diz respeito aos diferenciais entre as tendências que são varia
nuum, separados apenas por graus (assim com o foi dito que
velm ente coativas em cada acontecim ento, sua coatividade
o instinto é intuição vivida no primeiro grau de mentalidade),
expressando-se iterativam ente num a linha em ergente de
e pode-se dizer que se misturam, para além de uma diferença
variação contínua. Toda distinção feita neste ensaio situa-se
de tip o (com o quando se diz que o instinto é possibilitado
entre tendências contrastantes. A lógica modal é uma lógica
68
69
ativista radicalmente baseada nos acontecim entos que evita
iniciativa dos indivíduos, ainda que os indivíduos colaborem
tan to a pressuposição im plícita da substância trazida pela
nesse esforço, e não é puram ente acidental” .84 E fácil de ver
noção de “ diferença de tip o ” quanto a con otação de quan
a transindividualidade do instinto. É evidente que uma cópia
tidade m oderada trazida pela noção de “ diferença de grau” .
da coatividade do parceiro de brincadeira é incluída com o
As tendências não são nem substantivas nem quantificáveis.
delineamento negativo na -esquidade do gesto lúdico. O gesto
A lógica da m útua inclusão é, em últim a análise, uma lógica
lúdico é im potente, a não ser quando captura a atenção do
modal de variação contínua. Essa lógica com eça a germ inar
outro. No m odo com o captura a atenção, o gesto rascunha o
em qualquer lugar em que as tendências são levadas a sério
delineamento antecipatório dos contram ovim entos que virão
— e, com elas, os fatores qualitativos e subjetivos da natureza.
do parceiro. O gesto lúdico é um signo do potencial afetivo
Em especial, a tendência supernormal da brincadeira.83
não somente no animal que o executa, mas tam bém no outro,
Mas tudo isso ainda não nos diz de que form a instinto é
cuja própria apetição une forças com a do autor do gesto, com
sim patia. N este ponto da explanação, essa é a questão cru
toda a im ediatez da transformação-m-Zoco que o gesto efetua.
cial porque nos coloca bem na direção do objetivo declarado
O gesto lúdico implica imediatamente ao menos dois, a certa
deste ensaio: com eçar a expressar o que os animais nos ensi
distância e em suas diferenças individuais e papéis distintos,
nam sobre política.
num vaivém instantâneo de ponto e contraponto dinâmicos.
G om o na presente explanação da anim alidade, Bergson
M antendo a lógica da m útua inclusão, pode-se atribuir uma
enfatiza que as operações do instinto são transindividuais, e
diferença de tipo à intuição e à simpatia, com o dois lados ou
que não são redutíveis a um a acum ulação de variações aci
aspectos qualitativam ente diferentes dessa atividade co m
dentais: “ o esforço pelo qual uma espécie m odifica seus ins
partilhada de m útua inclusão transindividual. A intuição é
tin tos e se m odifica tam bém a si m esm a deve ser algo bem
tudo o que “desfaz as barreiras do espaço” para efetuar essa
mais profundo e que não depende unicam ente das circun s
m útua inclusão dinâm ica.85 A simpatia é o devir transindivi
tâncias nem dos indivíduos. N ão depende unicam ente da
dual criado pela exteriorização da intuição. A sim patia é o modo de existência do terceiro incluído.
83 Sustentar uma lógica modal demanda um nível altíssimo de abstração para ser integralmente praticável, já que requer traduzir substantivos em verbos continua mente, na contracorrente da maioria das línguas. Essa dificuldade resulta numa oscilação entre lógica modal e diferença de grau/diferença de tipo. A evolução cria dora, de Bergson, é um estudo clássico sobre a lógica modal da mútua inclusão — e a dificuldade de não retroceder para a vacilação lógica. O que muitos leitores interpretam como “ dualidades” ou “ oposições binárias” no pensamento bergsoniano — e também em Deleuze e Guattari — deve ser reavaliado em termos de tendências contrastantes na mútua inclusão processual. Isso talvez se aplique mais significativamente à distinção, em Bergson, entre “matéria” e “memória” ; em Mil platôs v. 4 op. cit., às distinções deleuzo-guattarianas entre nomadismo/Estado e liso/estriado; e, em O que é afilosofia op. cit., entre filosofia/arte e conceito/percepto.
70
O ato de intuição inclui dramática e mutuamente ao menos duas perspectivas não coincidentes. Ele faz o entrem eio. Na im ediatez de sua enação, já é transindividual, no sentido em que habita as lacunas entre as perspectivas individuais. Ele consegue isso sem se dirigir a um a dim ensão suplem entarm ente mais elevada, que lhe con ced eria um panoram a da 84 Bergson, A evolução criadora, p. 185. 85 Ibid., p. 192, tradução modificada.
71
situação, com o se estivesse fora dela. Isso é o que a cognição
inspeção absoluta é o cam po da consciência, na m edida em
faz. A intuição, na retidão de seu pensar-fazer, atua com o o
que o campo da consciência é “ coextensivo à vida” sob a pro
entremeio imanente abrindo uma brecha na situação.
pulsão de sua tendência autocondutora de trazer a si mesmo a
No vocabulário de Ruyer, essa im ediata abrangência dinâ
uma nova expressão ativa.87 O modo de existência da simpatia
m ica de perspectivas díspares sem o ponto de vista de uma
é o ser do pensar-fazer da vida. Deve ser pensado mais como
dimensão suplem entar é chamada de inspeção absoluta (abso
um verbo do que com o um substantivo, porque na lógica
luta no sentido em que é panoramesco, sem o ponto de vista
da m útua inclusão não há nada “por trás” da atividade. Há
externo que faria dela algo m eram ente relativo à situação,
apenas m odos de atividade entrelaçados que se diferenciam
numa supervisão externa a isso). “ Inspeção absoluta” é outro
com o aspectos ou lados do mesmo acontecim ento.88
nome para o m odo de existência que é a simpatia, induzida a ser, no ato da intuição. Ruyer tam bém a chama de consciência
A c o n s c iê n c ia p rim á ria é n ão co g n itiv a e n ão re p re sentativa. L ogicam en te falan do, não é nem in d utiva nem
primária, correspondendo ao prim eiro grau da m entalidade (para a junção-na-diferença de perspectivas díspares na ins peção absoluta, superando a disjuntividade do que está dado, sem apagá-lo).85 N ão é que um animal tenha uma consciência do entrem eio im anente que é a inspeção absoluta da sim patia. Em v e z disso, o entrem eio im anente é a consciência. A consciência prim ária é o ser de um prim eiro grau de m entalidade: um ser enativo de relação para entrelaçam ento supernorm al. A
86 Cf. Ruyer, Lagenèse desformes vivantes op. cit., pp. 95-131. De sua parte, William James descreve a natureza da consciência primária como um campo transindividual de transformação vital pensada-sentida nos seguintes termos: “Aquilo com o que nós nos identificamos conceitualmente e dizemos que estamos pensando num momento qualquer é o centro; mas o nosso si-mesmo completo é todo o campo, com todas essas possibilidades subconscientes indefinidamente radiantes de expansão que apenas podemos sentir sem conceber, e que dificilmente pode mos começar a analisar. Os modos coletivos e distributivos de ser coexistem aqui, pois cada parte funciona distintamente, faz conexões com sua própria região peculiar no ainda vasto resto da experiência e tende a nos colocar nessa linha, e ainda assim o todo é de algum modo sentido como uma pulsação de nossa vida — não concebido como tal, mas sentido” (W. James, A Pluralistic Universe. Lincoln: University o f Nebraska Press, 1966, p. 132; grifo nosso). Esse pensar-sentir está nive lado com o fazer.
72
87 Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 203. Sobre o ser de relação, cf. Simondon, I/information à la lumière des notions deforme et d’information op. cit., p. 63. Deleuze Cinema 1 - a imagem-movimento op. cit., no capítulo “A imagem-movimento e suas três variedades” , coloca isso nos seguintes termos: a consciência não é de algo (como na fenomenologia), a consciência é algo (Bergson). O que ela “é”, como veremos no suplemento 2, é “extrasser”. 88 É sempre proveitoso recordar a declaração de Nietzsche, eloqüente e frequen temente citada, quanto a esse princípio da autonomia do fazer: “Um quantum de força eqüivale a um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade — melhor, nada mais é senão este mesmo impulso, este mesmo querer e atuar, e apenas sob a sedução da linguagem (e dos erros fundamentais da razão que nela se petrifi caram), a qual entende ou mal entende que todo atuar é determinado por um atuante, um “sujeito” , é que pode aparecer diferente. Pois assim como o povo distingue o corisco do clarão, tomando este como ação, operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe tal substrato; não existe “ser” por trás do fazer, do atuar, do devir, “ o agente” é uma ficção acres centada à ação — a ação é tudo” (Nietzsche, Genealogia da moral, trad. bras. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 1998, p. 36). A filosofia ativista na qual o presente projeto de construir uma política animal se funda menta adere a essa crítica da substância e da lógica de sujeito-predicado a ela associada (que está totalmente a serviço da lógica da mútua exclusão e de suas separações categoriais). O (pensar-)fazer é tudo; fazer tudo é uma subjetividade-sem-sujeito — um “ desejar, querer, efetuar” sem nada por trás, a não ser seu próprio momentum para diante.
73
dedutiva, mas abdutiva.&9 Reproduz as lacunas do entrem eio im anente com aquele m ínim o de diferença que é a lacuna condicional entre o que essa vida — à qual a sim patia é coe-
— não m enos que a cam balhota de um filhote de lobo ou a bicada ávida do pássaro bebê. Agora tem os todas as peças em seus lugares para levan
xten siva — “ é” e “poderia ser” . O ser da consciência inclui
tar a questão de: o que os anim ais nos ensinam sobre polí
essa duplicidade condicional, suspendendo a referência e a
tica. Mas é im portante que deixem os claro. Não se trata, de
representação. Isso já a torna reflexiva, na m edida em que o
maneira algum a, de repensar a política nos m oldes do jogo.
ato de intuição que o cria já carrega em sua incipiência um
A bsolutam ente, não se trata de m odelagem . O que os ani
m ovim ento vital que reflete a im ediatez do acontecim ento
mais nos ensinam sobre política tem a m esm a relação com
em suas possibilidades.
a m odelagem da brincadeira que os gestos lúdicos têm com
Instinto é simpatia, em todos os níveis, em todas as suas formas. A bicada do filhote de gaivota-prateada já é um exer
aquilo que iriam denotar. Trata-se, então, de um a questão de metamodelização, assim como na brincadeira é uma questão de
cício de simpatia. Ela traça, na própria form a dinâmica, o deli-
m etacom unicação.910 que se faz necessário é abrir e manter
neam ento negativo da ação do adulto que a retransmitirá. A
uma lacuna entre a teoria da brincadeira animal da qual essa
paixão da jovem gaivota inclui a do adulto, em contraponto
reflexão se desdobrou e a política que pode derivar dela. Para
im anente. O m esm o pode ser dito da linguagem hum ana.
essa tarefa, não há interesse em flertar com qualquer suposta
Deleuze e Guattari insistem em que até m esm o o mais solitá
dialética entre brincadeira e combate. A desterritorialização
rio ato de linguagem hum ana carrega, em contraponto im a
recíproca através da qual a brincadeira se estende pode abran
nente, todo um “povo por vir” .9° Até m esm o a mais elevada
ger diversos dom ínios de atividade e se estende a relações
e elaborada linguagem participa da consciência primária. A
interespécies (com o na sim biose). O entrem eio é multiface-
ponta da língua e o dedo que tecla m ergulham nela a cada
tado. O entre-dois, que a dialética considera prim ário, é de
meneio. Se instinto é simpatia, então a linguagem é instintiva
fato um caso-limite. Em v e z de m odelar a brincadeira, trata-se de extrair da
89 A abdução, como teorizada por C. S. Peirce, envolve um “julgamento perceptivo” imediato que afeta a singularidade de uma relação ocorrente. Ele fala disso, em termos especulativo-pragmáticos, como uma “hipótese” imediatamente vivida: o gesto de abarcar o “é” e o “poderia ser”. O conceito de “abdução” expressa o teor lógico da consciência primária enquanto pensar-sentir nivelado com 0 fazer subje tivo sem sujeito. Cf. Peirce, Pragmatism as a Principie and Method ofRight Thinking: The 1903 Lectures on Pragmatism. Albany: State University of Nova York Press, 1997, pp. 199-201; The Essential Peirce: Selected Philosopkical Writings, v. 2. Bloomington: University of Indiana Press, 1998, pp. 155,191-195,204-211,226-242 e especialmente pp. 223-234, em que ele comenta o conceito de “abdução” utilizando o exemplo do pensamento canino. 90 Deleuze e Guattari, Milplatôs, v. 4 op. cit., pp. 162-164; 47-48; O anti-Édipo op. cit., p. 32.
74
brincadeira o que, na brincadeira, supera a sua dadidade. É necessário extrair o lúdico da brincadeira, a fim de encená -lo de maneira ainda mais extensa e autônoma. É necessário
91 Sobre metamodelização, cf. Guattari Caosmose op. cit., pp. 34-35,42-44,71-89; e Massumi (Semblance and Event op. cit., pp. 103-104). Guattari define a metamode lização como “atividade teórica [...] capaz de abarcar a diversidade dos sistemas de modelização” (Caosmose op. cit., p. 34). Ele enfatiza que a metamodelização é, por natureza, transindividual: ela “ reside no caráter coletivo das multiplicidades maquínicas” envolvendo uma “ aglomeração de fatores heterogêneos de subjetivação” coimplicados num movimento de “desterritorialização” (p. 43).
75
co lo c a r o lú d ico num m ovim ento ainda m ais inten so de
ideia de p olítica natural já foi totalm ente desbancada pelo
transformação, vibrando com um entusiasmo do corpo ainda
pensam ento crítico ao longo do últim o século. Agora é hora
mais vivaz e abrangente. É preciso fazê-lo com gestos de pen
de relançá-la, -escam ente — m obilizando todos os poderes
sam ento perform ativos.
que a falsa natureza provê.
O elem ento lúdico na brincadeira, a -esquidade, traz con sigo uma transformação-in-loco transindividual que inicia um m ovim ento de evolução potencial, que é fundam entalm ente autoconduzid o, num a autonom ia de expressão inventiva. Esse é o princípio da prim azia da tendência supernormal na vida animal. Entretanto, vim os que essa transformação-in-loco não se inicia sem assegurar que a autonom ia da expressão seja lastreada p or um a dependência quanto ao que já está expresso: uma assunção obrigatória dos im perativos da situa ção enquanto dada. O foco não deveria estar na noção redutiva de uma dialética entre brincadeira e com bate, mas sim nessa pressuposição recíproca entre a autonom ia da expres são, de um lado, e na dependência quanto ao já expresso, de outro: entre abstração vivida e im portância vivida. A abstração vivida através da autonomia da expressão cor responde à estética, que, por sua vez, corresponde à superação do que está dado no m odo condicional de produção de possi bilidade. A im portância vivida, de sua parte, corresponde ao ético: a ancoragem da experiência incorporada nos im perati vos expressados naquilo que já está dado. O que aprendem os dos animais é a possibilidade de cons truir o que Guattari chama de paradigma ético-estético da polí tica natural (em oposição a um a p olítica da natureza).92 A 92 Sobre o paradigma ético-estético, cf. Guattari (Caosmose op. cit, p. 163). A pers pectiva contrastante é desenvolvida por Bruno Latour em Políticas da natureza. Para Latour, devemos deixar de lado o conceito de “natureza” a fim de poder aprender como construir um “ mundo comum” , agregando humanos e não huma nos numa nova instituição democrática que finalmente cumpriria o ideal de ser
76
verdadeira e inclusivamente representativa (Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia, trad. bras. de Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru: Edusc, 2004, p. 23 e passim). Por outro lado, a questão, para Deleuze e Guattari, é reas sumir e reintensificar o continuum natureza-cultura/humano-animal de modo a inventar movimentos de singularização irrepresentáveis constituindo uma demo cracia revolucionária no ato.
77
PROPOSIÇÕES
O que os animais nos ensinam sobre política (Esboço preliminar a ser preenchido de acordo com o apetite)
1. Na esteira da obra de Bruno Latour, muitos encamparam o projeto de integrar às nossas concepções de prática política uma consideração quanto aos “agentes não humanos”. Alguns, preocupados em evitar o antropomorfismo implícito de desig nar o outro apenas como o negativo do humano, começaram a falar em “ entidades não convencionais” .1A lição que o filhote de gaivota-prateada nos ensina é que, quando levam os em consideração a tendência supernormal que arrebata a todos nós, hum anos ou não, é necessário reconhecer que somos as nossas próprias entidades não convencionais. Corolário: somos capazes de superar o que está dado na exata m edida em que assumimos a nossa animalidade instintiva. 2. Um a política que reestabeleça os laços com a nossa ani malidade, em seu m ovim ento im anente de autossuperação naturalm ente supernorm al, não pode ser baseada numa ética normativa, seja ela qual for. A política animal não reconhece im perativo categórico, vive os im perativos da situação dada, imanentes a essa situação, e vive em paradoxo. Uma política como essa não reconhece a sabedoria da utilidade com o crité rio de boa conduta. Antes mesmo, afirma o excesso lúdico. Ela não se atém à proporção áurea; vive excessivam ente fora do i Cf. o colóquio no Collège International de Philosophie, em que o começo deste ensaio foi apresentado: Intersections. 3o5 Anniversaire du Collège International de Philosophie, jornada Écologie: Des entités non-conventionelles. Paris, 15 de junho de 2013.
79
entrem eio. Seus engajamentos ético-estéticos ocorrem entre
dinam icam ente esses dois polos da corporalização coletiva
o tem peram ento im perativo da im portância vivida e a auto
da vida, é correto dizer que o m ovim ento supernormalizante
nomia do m ovim ento vitalm ente afetiva da abstração vivida,
da inventividade vital está a serviço da produção da im portân
com a última assum indo a primazia. Essa primazia, é crucial
cia vivida nas variações em ergentes, assim com o a abstração
salientar, é processual, e não moral. A tendência supernormal
vivida avança para longe dos im perativos que advêm com a
é a vanguarda do devir. Ela abre os cam inhos da vida, mas,
importância vivida. É uma questão de perspectiva. E com o o
ao m esm o tem po, cada novo caminho aberto amadurece na
debate, na teoria neodarwiniana, sobre se o gene está a ser
form a de um a estrada batida. O que é superado se estab e
viço da vida ímpar do organismo ou se o organismo está a ser
lece, se passar no teste da seleção adaptativa. Quando passa
viço da reprodução do gene. A resposta lógica m utuam ente
no teste, passa com o captura, a ser posteriorm ente im posta
inclusiva é: tanto uma coisa quanto a outra (e não exatamente
com o algo que está dado. É do processo da natureza, e da
ambas: uma coisa, a outra e o terceiro incluído da zona pro
natureza do processo, o excesso lúdico passar à importância.
cessual de indiscem ibilidade).
Isso não é nada menos que o processo da natureza, em seu sentido mais amplo. Logo, não se trata simplesmente de esco
3. Da proposição 2 decorre que 0 animal político não reconhece
lher uma em detrim ento da outra, preferindo a autossupera-
qualquer oposição rígida entre 0frívolo e 0 sério, ou seja, entre o
ção criativa à dependência em relação ao já-expresso, porque
dispêndio entusiástico de energias criativas e a âncora da fun
cada um a confere disposição à outra. A im portância vivida
ção e da utilidade. Ele se alim enta do paradoxo produtivo de
confere à criatividade algo para se arranjar e a criatividade
sua aliança processual. A ética-estética não normativa resiste,
devolve o favor com um rendimento de dados recém-cunha-
com erupções de propulsão supernormal, às pesadas deman
dos. O que está dado e o que o supera são articulados na junta
das, tão frequentem ente ouvidas, de que as ações de alguém
gestual num ciclo de coprodução, cada um deles destinado ao
sejam “relevantes” a todo custo e de que “contribuam com a
outro à sua própria maneira. Afirmar um eqüivale a afirmar
sociedade” de uma maneira já reconhecida. A política animal
o ciclo da vida no qual ambos estão mutuam ente incluídos.
de educação precisa seriamente brincar com essas demandas.
Superar a ética norm ativa requer refrear a divisão dessas duas tendências, na tentativa de excluir um a delas (a super
4. O pensamento político floresce com a consciência primária
normal, claro), o que sugere procurar caminhos para habitar
não cognitiva. É pensam ento em ato, nivelado com o gesto
coletivam ente o entrem eio dinâmico do seu entrelaçam ento
vital. A co n sciên cia não cogn itiva é ativamente não repre
processual, a fim de com por com a sua diferença, reconhe
sentativa. No entanto, para todos os efeitos, já é reflexiva. E
cen d o a necessid ad e de so brevivên cia da ancoragem na
reflexiva no sentido especial de que os gestos que corporaliza
im portância vivida, enquanto puxam as cordas gestuais que
deflagram e conservam a lacuna entre o “é” e o “poderia ser” .
ativam a prim azia processual da abstração vivida nas gêne
Ser e devir refletem -se um no outro na unicidade do gesto
ses das form as de vida. C onsiderando o ciclo que conecta
ético-estético. A consciência prim ária é enativa. T udo isso
80
81
sugere uma política do gesto performativo, mesclando-se às
processuais com a corporalidade. É crucial registrar essa
práticas de arte improvisacional e participativa no selvagem
estranheza, particularm ente quando nos referim os ao que é
(para além do território da galeria). Ético-estético = estético-
tradicionalmente considerado o complemento necessário do
-político.2 Essa orientação da política anim al desperta uma
sujeito — 0 objeto. A subjetividade processual acontecimental
suspeita em relação a conceitos como o “parlam ento das coi
aqui em questão não tem nenhum objeto como complemento
sas”, de Bruno Latour. Sobretudo porque o mundo, em ter
estrutural. Só tem coisas porvir, e são menos “ coisas” do que
mos de fato processual, é mais povoado por acontecim entos
suplementos processuais — mais-valia de vida. Sobretudo, não
do que por coisas. O mundo é feito mais primordialmente de
deveria haver ilusões de que o poder mental da subjetividade
verbos e advérbios que de substantivos e adjetivos. Ao farejar
processual resida numa “m ente” (individual ou coletiva). E
o parlamento das coisas, o acontecimento expressivo do ani
uma subjetividade não apenas sem uma causa eficiente por trás,
mal já pode rosnar: cheiros de representação.3 Um esforço a
mas tam bém sem um sujeito por trás dela. O poder mental
mais para deixar a política não representacional atuar até o
dessa subjetividade-sem-sujeito processual pode ser considerado
talo supernormal!
espiritual, desde que signifique simplesmente um avivamento em termos relacionais e intensivos4. Ele comete atos espirituo
5. A política animal também é obrigada a se distanciar do con
sos, com os quais coincide totalmente.5
ceito de “agência”. A transindividualidade do processo de devir vital complica a questão da agência. 0 problema foi assinalado anteriormente: nenhuma causa eficiente pode ser isolada por trás do movimento de autossuperação da experiência. Esse movimento autocondutivo dispara a si mesmo de uma maneira irredutivelmente relacionai. É mais uma questão de catálise do que de causalidade linear. A catálise é experiencial: direta mente vivida, num registro qualitativo, no meio transindividual da inspeção absoluta. Sua natureza qualitativa e vivida nos obriga a chamá-la de “subjetiva” , apesar de toda estranheza no que tange ao entendimento comum da palavra; e a chamar seu potencial inventivo de superar 0 que está dado de “poder men tal”, muito embora esteja no mais estrito dos envolvimentos
2 Sobre isto, do ponto de vista de uma filosofia ontogenética acontecimental, cf. Massumi, Semblance andEventop. cit. 3 Cf. acima, nota 92, p. 76.
82
4 Sobre esse sentido de “ espiritual”, cf. “ No Title Yet” (Manning e Massumi, Thought in the Act: Passages in the Ecology of Experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014, pp. 59-80). 5 Como mencionado anteriormente, a referência aqui é ao conceito de “polo men tal”, tal como desenvolvido por Whitehead. Nunca é demais repetir que o polo mental não é substantivo (o mental, a mente). Ele é um modo de atividade que sempre compõe conjuntamente, em cada ato, com seu complemento, o polo físico (correspondente à “ corporalidade” em nosso vocabulário). Esses dois aspectos de toda e qualquer ocasião estão em envolvimento direto e recíproco, sem um termo ou estrutura de mediação entre eles (seu envolvimento recíproco não é um acoplamento estrutural, mas sim coatividade numa zona de indiscernibilidade na qual distintos modos de atividade entram em ressonância e interferência). Esses polos contrastantes não são propriedades de um ser substancial. Em vez disso, são modalidades constitutivas de acontecimentos no fazer. A falta de mediação nessa “fase primária” da ocorrência dos acontecimentos impede qualquer apelo à representação e à sua companheira de viagem, a cognição, pertencentes àquilo que Whitehead chamaria de “últimos fatores” a entrarem na constituição das oca siões da natureza. “ O conhecimento [usado aqui como sinônimo de ‘cognição’] é relegado à fase intermediária do processo [...] no geral, o conhecimento parece ser insignificante para além de uma complexidade peculiar na constituição de algumas ocasiões atuais” (Whitehead, Process and Reality op. cit., pp. 160-161).
83
6. A inda que não norm ativa, a p olítica ético -e sté tica não
irritação ou a um estím ulo negativo, por evitação ou negação.6
a co n tece sem critério s de avaliação. A avaliação afeta a
Quando a vida sucumbe demais ao jugo da necessidade pática,
intensidade dos potenciais mentais de variação depositados
perde o seu em puxo e o pouco de m ais-valia que ele gera.
na brincadeira. Dada a natureza não cognitiva da atividade
Quanto mais a atividade da vida está sob a influência da ten
ético-estética, a avaliação pertence necessariam ente ao afeto.
dência pática, mais sofre um déficit correspondente de paixão.
Pertence ao afeto em ambos os aspectos, afeto de vitalidade
Não há fundação transcendente para a preferência estético-
e afeto categórico, fazendo o balanço de sua m útua inclusão
-política por mais-valia de vida. É que, em geral, entregar a
em cada uma das situações da vida, com o signos de potencial
vida de alguém para as labutas do pático dificilm ente vale a
ou signos de poder, respectivamente — estando esses últimos
pena. Qualquer coisa que sirva de empuxo à vida percebe isso
correlacionados à autonom ia da expressividade, por um lado,
imediatamente. É uma autoevidência sentida que opera como
e à dependência ao já-expresso, por outro. Brincando entre o
um critério de avaliação vivido imanente à experiência vital.
ainda-por-vir-em -sua-total-expressão, de um lado, e a dadidade do já-expresso, de outro, a política animal é uma política
7. O entusiasmo do corpo não arrebata um sem arrebatar ao
da expressão indissociável de uma política afetiva. O principal
m enos dois. Ele m arca um a transform ação-in-loco instantâ
critério disponível para as avaliações correspon den tes é o
nea que é im ediatam ente transindividual por natureza. Logo,
grau a que o gesto político eleva o entusiasmo do corpo.
o paradigm a ético-estético convoca um a política da relação.
A intensidade é o valor suprem o dessa form a de política,
Um segundo critério de avaliação deriva disso, intimamente
pela simples razão de ser experienciada com o um valor em si,
ligado ao critério da intensidade antipática: aquilo que eleva
um -corpo com os puros signos de tem peram ento do expression esco lúdico. N ão se “fa z ” o en tusiasm o do corpo tal com o, no sentido corrente, dizem os que “fazem os” política. O entusiasm o do corpo é vivido em si e para si, puram ente pela nova qualidade que ele confere ao desenrolar da expe riência e, especialm ente, por sua intensidade, aquele detalhe a mais. O elem ento em excesso da intensidade de um ato constitui, em si, uma mais-valia de vida imediata; e, em seu desdobram ento, um a m ais-valia de vida em ergente ainda-por-vir — ele vale por dois. A afirmação gesticulada junto com o entusiasmo do corpo é, de uma só vez, ética e política. Em sua ausência, a vida tende a atolar na tendência pática de responder corporalmente a uma
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6 Como utilizado aqui, “pático” e “pathos” (cf. acima, na discussão sobre os afetos categóricos; e abaixo, no suplemento 1) estão intimamente relacionados, mas não são sinônimos (ambos derivam da palavra grega para “sentimento”, seus cognatos modernos carregando uma forte conotação de sofrimento passivo). O pático é defi nido aqui como atividade reduzida à reação negativa de evitação diante da dor ou da irritação, ou aos mecanismos de negação que emergem dessas reações. Pathos é o sentimento de submersão que advém com a predominância de uma reatividade pática na vida de alguém. O pático é a forma dinâmica da reatividade (o exercício exclusivamente negativo do poder mental quando a sua atividade é limitada à rea ção). O pathos é o afeto categórico associado a arenas dominadas pelo pático. A defi nição do pático, aqui, em termos de mentalidade, é outra advertência de que não há uma reatividade puramente fisiológica, como está geralmente implícito no conceito de “ reflexo” . Tampouco há atividade puramente fisiológica, sendo a mentalidade e a fisicalidade polos contrastantes mutuamente incluídos, de uma maneira ou outra, por mais insignificante que o polo mental possa ser, em todo acontecimento de corporalização. Guattari utiliza “pático” num sentido diferente, como sinônimo da consciência afetiva primária da intuição; logo, num sentido mais próximo ao modo como aqui é utilizado o termo “ simpatia” (Caosmose op. cit., pp. 42-43).
85
a m útua inclusão dos díspares e dos diferentes a um a potên
fundam entalm ente situacional. Mas há uma diferença impor
cia maior deve ser afirmado. Isso envolve gestos dotados de
tante entre contexto e situação.8
-esquidade que produzem graus mais altos de copossibilidade,
“C ontexto” é um conceito geral. Tem a ver com aquilo que
abrangendo mais panoramas imanentes de inspeção absoluta
está em butido in loco de uma maneira geral particular àquele
desdobráveis em proliferações de variação. Implica intensi
lugar — isto é, de um a maneira que se aplica geralm ente ao
ficar a vida envolvendo, em cada circuito de potencialização
que ali ocorre. O que ocorre é então considerado adequa
recíproca, um núm ero crescente de territórios existenciais,
damente entendido com o uma instância particular da regra
tendendo ao m áxim o supernorm al, partilhando a m ais-va
geral. Quando os im perativos in loco num dado contexto são
lia de vida o mais amplamente que os artifícios de abstração
analisados, é tipicam ente em term os de códigos form ais e
vivida possam permitir. W hitehead define a direção apetitiva
inform ais governando interações de fundo e os papéis que
do movimento da vida com o uma meta de intensificação, que,
por convenção lhes são associados. Um código é uma abstra
por sua vez, ele define em term os da capacidade de um devir
ção cuja forma regente em geral preexiste aos particulares de
manter em si mesmo o máximo de termos contrastantes sem
sua enação contextual (isso é verdadeiro até quando o código
im por a eles a lei do terceiro excluído. Ele equaliza essa meta
é com binatório ou gerativo, no sentido estruturalista). Uma
de intensificação (aqui, a tendência supernorm al) com o o
situação, por outro lado, tem a ver com singularidade, e não
processo estético da apetição, que, posteriorm ente, equipara
com particularidade.
ao “progresso” ético.7 A política animal é um a ético-estética
O singular se encontra em oposição tan to ao particular
da autocondução da apetição por excessos im anentes cada
quanto ao geral (eles vêm num pacote). Tudo numa situação
vez mais inclusivos.
é potencialm ente arrebatado no m ovim ento de enação, com uma abertura para a form a final que ainda será determinada,
8. A exortação é geralm ente considerada, tanto na política
num devir singular catalisado pelos gestos perform ativos que
quanto na teoria cultural, verdadeira ao contexto das ações
ganham forma. Essa singularização afeta até m esm o p oten
de alguém, levando conscientem ente em consideração a his
cialm ente os códigos in loco, suscetíveis aos próprios devires,
tória e o habitus do lugar, admitindo as obrigações implícitas
através de suspensões supernorm ais de sua form a já dada.
em butidas nisso. Essa exortação virou um a toada fam iliar e
As situações não são de conform ação (aplicação que produz
é muito frequentem ente repetida com o um refrão, num tom
conformidade de uma regra), mas de in-formação (um tomar-
de devoção. O animal político reconhece vivam ente os im pe
-forma ou buscar-form a imanente à ação situada).
rativos do contexto em que se encontra (sob o aspecto ena-
O m ovim ento em direção à determinação de novas formas,
tivo da “corporalidade”). A ético-estética da política animal é
ou variações das form as existen tes, atravessa tendencialmente a situação rumo a uma situação nova e diferente que
7 Sobre todos esses pontos, cf. Whitehead (Adventures ofldeas. Nova York: Free Press, 1967, pp. 252-264; Process and Reality op. cit., pp. 162-163,279-280).
86
8 Massumi, Parablesfor the Virtual op. cit., pp. 212-213.
87
irá sucedê-la. Isso envolve potencialm ente um a passagem de
A m icropolítica é a dimensão dos acontecimentos na qual
uma de atividade para outra. O movimento de in-formação é
as tendências supernormais de decodificação e desterritoria
transsituacional por natureza. Se o processo in-formacional
lização tornam -se excessivam ente sentidas. O micropolítico
repete formas dadas ou padrões formais herdados, é somente
não é o oposto do m acropolítico, mas sim seu correlato pro
porque o movimento transsituacional pôde regenerar a forma
cessual. N ão faz sentido falar do m icropolítico fora de sua
prévia do que está dado através de meios im anentes, recor
m útua inclusão com o m acropolítico — o nível dos códigos e
rendo aos próprios recursos processuais. O que é pensado
das regras gerais e éticas normativas — , assim como não faz
com o aplicação conformativa de uma regra preexistente é, na
sentido separar a abstração vivida da corporalidade ou o afeto
verdade, processualmente falando, um tornar-se limitado aos
categórico do afeto de vitalidade. M as tam bém é crucial ter
estreitos parâm etros dispostos por um im perativo herdado
em mente que a m útua inclusão do macro e do micropolítico,
de voltar a fazer brotarem as formas do passado. A codifica
assim com o toda mútua inclusão, não é somente diferencial,
ção, desse ponto de vista, é o mais baixo grau lim itante da
mas tam bém assimétrica. Há um excesso criativo de intensi
ten dência supernorm al. W hitehead explica que o que fa ci
dade do lado do m icropolítico. O m icropolítico é da ordem
lita essa conform ação portadora de código ao passado (o que
do gesto vital, supernormalmente orientado. O macropolítico
neste ensaio foi analisado com o uma dependência ou aquies
é da ordem da conform ação. Portanto, a distinção entre eles
cência ao que está dado) não é a perm anência no lugar das
não é de escala, mas de modos de atividade qualitativamente
form as já determinadas, tam pouco suas transm issões com o
diferentes ou de tendências contrastantes.
entidades prontas, mas sim germ es de in-form ação, buscadores-de-form a embrionários plantados no território, e que
A dupla proposição que advém dessas considerações é a seguinte: a política animal resiste às devoções do contexto e, para
são repetidam ente replantados por m ecanism os de recapta-
ter êxito nessa tarefa, deve praticar a vigilância micropolítica
ção im anentes a cada situação sucessiva, trazidos pelas ten
em relação aos germ es conform ativos infecciosos.11 Conser
dências transituacionais que se alastram por elas com o uma
vando a ética transsituacional, a p olítica animal m icroinocula o elem en to de dependência do já-exp resso com uma
infecção. Esses são os fatores genéticos que perm anecem na m istura catalítica, rebrotando infecciosam ente a form a con form ativa de um apoio imanente ao m ovim ento processual.9 Eles operam naquilo que Deleuze e Guattari caracterizariam com o nível m icropolítico.10
9 Whitehead, Adventures ofldeas op. cit., pp. 203-204. 10 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 68-70, 91, 94, 89; Massumi, “O f Microperception and Micropolitics” . Inflexions: A Journal for Research Creation, n2 3, Montreal, 2009.
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u Quando esses germes conformativos renovam sua aliança com a tendência supernormal, assumindo o encargo da intensidade sem afirmar sua indeterminação, a infecção toma-se virulenta e o contágio “microfascista” resulta disso (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 1 op. cit., pp. 17-18; Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 90-92,110). O microfascismo é um modo de devir entravado, patinando no paradoxo estéril der radeiro de um devir conformativo intensamente apetitivo. Quando um movimento microfascista domina o Estado e outros aparatos políticos molares (como aconte ceu no Nazismo e no Fascismo Italiano), o paradoxo da patinada processual a uma velocidade extremamente apetitiva explode numa violência mortífera e, em última análise, suicida (cf. Ibid., pp. 113-114). O fascismo é uma autonomia de expressão que se toma fundamentalmente destrutiva.
89
dose liberal de exageração im provisacional e de entusiasmo
A lógica de m útua inclusão nada sabe das oposições exclu
deform ativo-transform ativo — em resum o, autonomia cria
sivas. Ela reconhece contrastes em abundância, mas os ter
tiva de expressão.
m os con trastan tes são sem pre entendidos com o estando num a relação de p ressu p o sição recíp roca, com o m od ali
9. O paradigma ético-estético da política animal é particular
dades de ação que pertencem diferencialm ente ao m esm o
mente atento aos modos de pensam ento enativados nos ges
p rocesso — em resum o: com o “dinam ism os” . C om o fa to
tos não verbais. Mas essa atenção especial à abstração vivida
res contribuintes do processo, os dinamismos contrastantes
em níveis não verbais não implica, de maneira alguma, uma
entrelaçam -se sem que suas diferenças sejam apagadas. Fun
negligência da linguagem. Com o vimos, os atos instintivos dos
dem -se perform ativam ente sem se confundirem . Em seus
animais já incluem a linguagem em potencial nos seus elemen
dinamismos discrepantes, eles são fatores modais: m odos de
tos lúdicos. Os gestos vitais da brincadeira animal mostram
atividade. Sendo fatores m odais de atividade, estão essen
uma reflexividade no-ato que realmente produz as condições
cialm ente em m ovim ento. Embora às vezes seja necessário
da linguagem humana. A política animal e sua metamodeliza-
interpretar seus contrastes em term os de diferenças de grau
ção fazem a linguagem brincar. Brincar com a linguagem signi
num continuum de atividade qualitativo, ou até mesm o com o
fica fazer uso instintivo da mesma, e isso consiste no emprego
diferenças de tip o que entram em várias m isturas, o m odo
gestual das palavras como catalisadores de atos de linguagem
com o são derradeiram ente distinguidos é pela orientação
que efetuam transformações-m-Zoco diretas, as quais chacoa
de seus m ovim entos. Em outras palavras, eles são mais bem com preendidos com o tendências.
lham a corporalidade e recuperam a apetição, propulsionando a atividade vital na direção de uma variação transsituacional.12
As tendências são diferenciadas pelos polos entre os quais se estendem os seus vetores: são definidas pelos seus limites.
10. As reservas que o paradigma ético-estético possui quanto
A lógica da m útua inclusão não concerne, prioritariam ente,
aos modelos cognitivos do pensam ento envolvem pronuncia
a form as ou objetos, ou até m esm os a sujeitos. A tendência
dos receios em relação a qualquer lógica construída em torno
é o que a alim enta. É no entrelaçam ento dos m ovim entos
do princípio do terceiro excluído — mas, de maneira alguma,
tendenciais que form as, objetos e sujeitos são constituídos,
em relação à lógica com o um todo. A política animal afirma
em em ergência perpétua e variação contínua. Com o enfatiza
ativamente uma lógica áe mútua inclusão. Ela saúda o terceiro
Bergson, as tendências não se distinguem um as das outras
incluído com entusiasm o, na form a de efetivos paradoxos
da maneira m utuam ente exclusiva com que as formas, obje
desempenhados.
tos e sujeitos distinguem -se uns dos outros. As tendências podem com binar forças sem se excluírem m utuam ente. De
12 Sobre as “transformações incorpóreas” que são efetuadas na e pela linguagem e atribuem-se às corporificações, cf. Deleuze e Guattari (Mil platôs, v. 2, pp. 19-27). Sobre os poderes de variação da linguagem em sua relação com transformações
fato, é uma vocação misturarem-se. Muito embora sejam logi
incorpóreas (pp. 30-33).
ocorrem naturalmente sozinhas. Toda situação sempre ativa
90
camente distinguíveis por sua polaridade e orientação, nunca
91
um m isto delas. Em toda situação, ocorrem conjuntam ente
absolutam ente autoinspecionantes. Esses graus de consciên
sem coalescer. Elas ressoam e interferem um as nas outras,
cia são sempre enativos. São pensares-fazeres. São tam bém ,
inibem-se ou prolongam -se umas as outras, enfraquecem-se
ao m enos germ inalm ente, reflexivos, da maneira antes evo
ou potencializam -se umas as outras, capturam-se ou entram
cada na discussão sobre a inspeção absoluta e a consciência
em simbiose m utuam ente benéfica. No vocabulário de Berg
primária. Do ponto de vista do afeto com o qual emergem, são
son, elas “ interpenetram ” um a zona de indiscernibilidade
pensares-sentires a-fazentes.
enquanto se mantêm logicam ente distintas quando conside radas com o vetores que por essa zona se movimentam.
A lógica tendencial de m útua inclusão atribui duas tarefas à m etam odelização da vida criativa do animal. Primeiro, sua
A habilidade de interpenetrar, de misturar-se efetivamente
teoria do político deve sempre com eçar com o gesto de anali
sem se confundir, é um a característica definidora da m enta
sar as misturas, entendidas não com o combinações de termos
lidade, de acordo com Bergson.13As tendências não são nada
em relações externas uns com os outros (combinatórias, mon
mais que o movimento criativo do polo mental da natureza —
tagem parte a parte, hibridização), mas em term os de mútua
“criativo” porque de suas interpenetrações dinâm icas em er
inclusão, com os efetivos paradoxos que a acom panham . A
gem variações qualitativas. As tendências, em seu movimento
avaliação dos acontecim entos vitais deve com eçar com uma
“mental” , constituem subjetividades-sem-sujeito: puros faze
avaliação das tendências em jogo. Uma vez que seus polos-
res, sem fazed or por trás — sem nada por trás, exceto seu
-limite e orientações estejam definidos, a questão se torna o
próprio momentum adian te.14 Estes se autopropelem , por
grau e a natureza de suas participações nos gestos enativos
natureza, em direção à superação do que está objetivamente
na brincadeira, os m ovim entos subsequentes que catalisam
dado. Sua form a dinâm ica é o em -andam ento da natureza.
e os territórios existenciais que esses movimentos envolvem.
Em todo lugar na natureza trata-se de m isturas criativas de
Os dois critérios de avaliação acima discutidos pertencentes
tendências de graus variantes de poder autocondutor, corres
à intensidade são calcados nessa análise das misturas tenden-
pondendo a graus de mentalidade integral ou de consciência
ciais e a ela devem suas capacidades discriminatórias.15
13 “A vida, na verdade, é de ordem psicológica, e é da essência do psíquico envolver uma pluralidade confusa de termos que se interpenetram [mútua inclusão numa zona de indiscernibilidade]” (Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 279). “Com efeito, os elementos de uma tendência não são comparáveis a objetos justapos tos no espaço e exclusivos uns dos outros, mas antes a estados psicológicos, cada um dos quais, ainda que seja primeiramente ele próprio, participa, no entanto, dos outros e contém assim virtualmente toda a personalidade a qual pertence” (p. 129).
15 “O estudo do movimento evolutivo consistirá, portanto, em destrinçar um certo numero de direções divergentes, em apreciar a importância do que ocor reu em cada uma delas, numa palavra, em determinar a natureza das tendências dissociadas e em fazer sua dosagem. Combinando então essas tendências entre si, obteremos uma aproximação ou antes uma imitação do indivisível princípio motor do qual procedia seu elã. O que significa que veremos na evolução algo bem diferente de uma série de adaptações às circunstâncias, como o pretende o mecanicismo, algo bem diferente também da realização de um plano de conjunto, como o pretende a doutrina da finalidade” (Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 111). Sobre a necessidade de uma análise cuidadosa das misturas tendenciais a fim de evitar “falsos problemas”, cf. Deleuze, Bergsonismo, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, pp. 7-26.
14 Sobre o conceito de subjetividades sem sujeito em Deleuze, Guattari e Ruyer, cf. Bains, “ Subjectless Subjectivities” in Brian Massumi (org.) A Shock to Thought: Expression after Deleuze and Guattari. Londres: Routledge, 2002, pp. 101-116. 0 puro fazer, sem fazedor por trás, refere-se novamente à passagem de Nietzsche citada na nota 88, p. 73.
92
93
A segunda tarefa é reflexiva. Consiste em desenvolver fer
da relação, se suas construções m etaconceituais incidem no
ram entas para a m eta-descrição das m isturas tendenciais,
pertencim ento, então as técnicas necessárias não podem ser
adicionando-as continuam ente à caixa de ferram entas tão
outra coisa senão as técnicas vivas de relação abstrativa: téc
logo novas situações singulares emerjam e im plorem por um a análise verdadeiram ente capaz de levar em conta suas
nicas relacionais de abstração vivida.17 A m etam odelização da política animal tem de abrir as próprias operações à ten
singularidades. A metamodelização da vida animal e da polí
dência supernormal de superar aquilo que está dado, ao qual
tica natural consiste na produção de um cam po conceituai
concerne prioritariam ente. Um poder m ental de superar o
no qual abrigar o crescente ménagerie de entendim entos sin
que está dado é um a definição de especulação. A form a de
gulares. Isso requer uma atividade metaconceitual dedicada
pragm atism o aqui em questão é o pragmatismo especulativo.
a construir vias de m utuam ente incluir no pensam ento um
Um alerta: há muitas form as de pensam ento especulativo e
ménagerie sempre em expansão dos modos singulares de ten
de pragm atism o que não são tendenciais, criativas ou con
dências pertencendo, em termos processuais, umas às outras,
cernentes ao desenvolvim ento da lógica singular da mútua inclusão (comprador, tenha cuidado!).
enquanto respeitam com cautela suas naturezas irredutivelm ente contrastantes (i.e., sem generalizar e sem confundir
Nota: O propósito do alerta é assinalar um a divergência
sua singularidade com uma instância particular de uma regra
entre o pragm atism o especulativo desenvolvido aqui e, de
geral). Esse pensamento dos pensares-fazeres participatórios não pode se dispor a ficar longe das situações e acontecim en
um lado, as filosofias pragm áticas, para as quais função e a utilidade são primárias; e, de outro, o realismo especulativo e
tos nos quais as tendências interpenetram. A m etam odeli
a ontologia orientada ao objeto. Com o uma ontologia baseada
zação deve ser resolutam ente pragmática, mesmo enquanto
na substância, a 000, tal como desenvolvida por Graham Har-
constrói abstrações vividas da mais alta ordem.16 A necessidade pragmática requer que cada projeto de m eta
man, está fundam entalm ente em desacordo com filosofias
m odelização imagine por si mesmo o que poderia ser um
são mais a atividade e o acontecim ento do que a substância, e cuja tarefa filosófica é pensar m ais a subjetividades-sem -
laboratório filosófico adequado aos seus fins. Toda m etam o
ontogenéticas orientadas ao processo, cujas noções supremas
delização precisa construir um laboratóriofilosófico. Para tanto,
-sujeito do que o objeto sem o sujeito.18 A versão influente
precisa de técnicas. Se a política ético-estética é uma política
de Q uentin M eillassoux para o realism o especulativo aplica
16 Guattari conecta explicitamente a metamodelização a uma lógica do devir baseada na mútua inclusão: “A lógica tradicional dos conjuntos qualificados de maneira unívoca, de tal modo que se possa sempre saber sem ambigüidade se um de seus elementos lhes pertence ou não, a metamodelização esquizoanalítica subs titui uma ontológica, uma maquínica da existência cujo objeto não é circunscrito ao interior de coordenadas extrínsecas e fixas, que supera a si mesmo, que pode proliferar ou se abolir com os Universos de alteridade que lhes são compossíveis”
17 Sobre as técnicas relacionais de onde deriva o presente projeto, cf. Manning e Massumi, “ Propositions for Thought in the A ct” in Thougkt in the Act op. cit., pp. 83-134, em que são discutidas as técnicas e a construção de conceitos do labo ratório filosófico SenseLab (). Sobre pragmatismo especulativo, cf. Massumi, Semblance and Event op. cit., pp. 12-15,29~3&>85).
(Guattari, Caosmose op. cit., p. 95).
94
18 Graham Harman, Guerilla Metaphysics: Phenomenology and the Carpentry of Things. Peru: Open Court, 2005.
95
severamente a lei do terceiro excluído, ou a lei da não contra
com o ocorre no mundo, está nas lacunas constitutivas fato-
dição, e lida com as aporias a isso associadas apelando não à
rando todas as emergências e, novamente, nas lacunas entre as
positividade da mútua inclusão, mas à contingência — enten
estabilizações (capturas). A contingência, como pertencente
dida não criativamente, mas negativamente, como a suprema
à emergência e à insubordinação à captura, deve ser pensada
impossibilidade de aplicar a lei do terceiro excluído de uma
positivamente em term os de espontaneidade, não negativada
form a que de fato exclua a incerteza.19 O pragmatism o espe
com o acidental (a simples ausência de uma causa suficiente)
culativo, por outro lado, abraça apaixonadamente a incerteza,
ou assimilada ao meramente incerto em term os lógicos.21
com todos os poderes produtivos do paradoxo efetivo. Abraça a incerteza, mas não dem onstra qualquer interesse pela con
11. A política animal é uma pragmática da mútua inclusão. Essa
tingência absoluta, nas bases processuais de que, onde quer
m útua inclusão se aplica até m esm o, ou especialm ente, à
que possa penetrar o pensam ento, sem pre já vai ter havido
diferença genérica entre o hum ano e o animal. D iferenças
um tom ar-determ inada forma, de m odo que o mundo está cheio de resíduos de em ergências passadas. Por essa razão, a contingência nunca é absoluta, porque tudo o que dela se desdobra tem de escolher um caminho em meio aos resíduos que constrangem seu curso. Nos term os de W hitehead, o des dobram ento da contingência é sempre relativo ao “mundo estabelecido” . Até mesmo a contingência quântica na física é ou capturada por processos físicos de nível superior que não são puram ente contingentes (a estrutura e a periodicidade do átomo, antes de tudo), ou perece tão rapidamente quando surge, não deixando qualquer efeito e, portanto, não tendo qualquer existência efetiva (partículas virtuais no vazio quântico). Em qualquer lugar, exceto no ponto de fuga não efetivo da existência, a contingência absoluta é um a criação pura mente formal da lógica (como a contradição, pertencendo por diferentes razões ao especioso do negativo).20A contingência, 19 Quentin Meillassoux, After Finitude: An Essay on the Necessity ofContingency, trad. ing. de Ray Brassier. Londres: Continuum, 2008. Para mais informações sobre a 000 e o realismo especulativo, cf. nota 2 p. 125. 20 Para a clássica crítica do negativo de Bergson, cf. A evolução criadora op. cit., pp. 314- 352.
96
21 O mesmo argumento se aplica ao caos. O fato de que sempre houve um ganhar-forma determinado, e de que o mundo está cheio de resíduos de emergências passadas, significa que a situação é sempre, como diz James (Essays in Radical Empiricism. Lincoln: University o f Nebraska Press, 1966, p. 63), de “quase-caos” . Para Deleuze e Guattari, o caos é o limite imanente do pensamento e da existência onde há “variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem" (Deleuze e Guattari, O que é a filosofia? op. cit., p. 259). Esse é o limite de mútua inclusão, onde variabilidades infinitamente conectadas não se afastam mais depressa do que se aproximam umas das outras no “plano de imanência” . Quando um modo de atividade se aproxima desse limite, uma formação “semicaótica” ou “caóide” emerge criativamente por um processo autocondutor de “caosmose” (Ibid., pp. 262-264, 266). O caos não pode ser pensado ou sentido como tal, e ele não tem existência (mais que existir, o caos “subsiste” no virtual, no vazio, ineficaz), exceto quando “reticulado” ou “filtrado” numa forma pelos caóides, dentre os quais figura, de modo proeminente, a arte. O caos, nesse sentido, é “composto”. Outro nome para plano da imanência é “plano da composição” . O caos é o lado oposto da morfogênese, da emergência criativa da forma: uma vez mais, dois lados indissociá veis da mesma moeda processual. Ainda assim, há sempre um excesso ou resíduo do caos, algo que elude a captura, forçando o seu processo de composição a se repetir serialmente. A espontaneidade é 0 movimento positivo em direção ao limite do caos, reverberando em emergência criativa e re-reverberando iterativãmente. Assim entendida, a espontaneidade concerne à solidariedade de caso-limite das variabi lidades infinitamente conectadas definidoras do caos. O próprio limite pode ser considerado como contingência absoluta, mas apenas se a contingência absoluta for sentida como coincidindo com o vazio imanente de uma solidariedade infini tamente movente e dinâmica de elementos que aparecem e desaparecem uns nos outros, e não a infinita soltura entre elementos geralmente conotada pelo termo.
97
genéricas, com o a separação entre esp écies anim ais, per
entre as espécies (um conceito cuja dependência em relação
tencem à lógica da m útua exclusão. Q uando algo excede ou
à lógica do terceiro excluído está sob forte ataque de dentro
escapa à contenção de sua categoria genérica designada, sua
da própria biologia, que, quanto mais se harm oniza com a
singularidade aparece, na lógica da mútua exclusão, com o um
produção de variação contínua da natureza, menos é capaz de
negativo, com o uma falta ou deficiência. A única alternativa
fixar diferenças genéricas, para não m encionar as genéticas,
possível fica entre ser subsum ido à categoria apropriada e a
entre populações animais).23A lógica da mútua inclusão con
indiferença: entre a identidade genérica e a indiferenciação,
cebe essas zonas de indiscernibilidade positivam ente, como
distinção m uito rígida ou indistinção. A diferença genérica
cruciais à emergência do novo. Longe de serem zonas de indi
não diz respeito realmente à diferença: diz respeito a entida
ferença que absorvem e invalidam a atividade, elas estão ape
des m utuam ente exclusivas. O pensar-fazer animal da política recusa-se a reconhecer as
ritivamente superlotadas de atividade no m ovim ento tenden-
diferenças genéricas com o fundacionais, precisam ente a fim
a partir dos quais advém mais diferença. A lógica da m útua
cial. São verdadeiros ninhos de cuco de atividade incipiente,
de pensar o singular. Sua lógica natural de m útua inclusão —
inclusão é a lógica da diferenciação: o processo da contínua
a lógica paradoxal daquele que interpenetra sem perder sua
proliferação de diferenças emergentes.
distinção — é projetada para evitar a escolha infernal entre
C om o já m encionado, para viver sua vocação pragmática,
identidade e indiferenciação. Para a lógica da m útua inclusão, a indiferença não é a única
a política animal não apenas pensa sobre a m útua inclusão, ela precisa praticá-la. Para m em bros da espécie hum ana,
altern ativa à m útua exclu são (em con trap osição a Agam b en ).22 Ela recon hece que há zonas de indiscernibilidade 22 Para Giorgio Agamben, a única alternativa à mútua exclusão é precisamente cair numa zona de indiferença, uma “ zona de irredutível indistinção” (Homo Sacer op. cit., p. 12). Para a política animal, a zona de indiscernibilidade é 0 próprio movimento de autossuperação. Na perspectiva deste ensaio, o livro de Agamben, O aberto: 0 homem e 0 animal, (trad. bras. de Pedro Mendes. Rio de Janeiro: Civi lização brasileira, 2017) sobre o animal carrega o vício da recusa em considerar a possibilidade de inventar um caminho para fora da lógica do terceiro excluído que não seja a indiferenciação. O entendimento pós-heideggeriano do animal como “pobreza de mundo” , em torno do qual gira a análise de Agamben, é inteiramente dependente de uma noção tradicional de instinto como uma seqüência automá tica de ações liberadas por um “desinibidor” (pp. 83-87). Mesmo se a separação homem-animal que isso instila fica “ suspensa” no final, ela jamais é superada. Para Agamben, não há alternativa a ela, a não ser pela via negativa de aceitar seu caráter fundamental tomando-a “ inoperante” , e, com isso, o potencial e a ativi dade do humano animal são reduzidos a uma “grande ignorância [...] fora do ser” (p. 144) — como o animal, do qual o humano agora se distingue ao “apropriar-se”
98
desse estado-base da animalidade (p. 124), em vez de ser instintivamente “ cati vado” por ele como os não humanos são. Entretanto, ainda há um caminho a ser encontrado — conforme observa Agamben em sua conclusão — para o animal e o humano sentarem juntos no “banquete messiânico dos justos” (p. 144). 23 O problema com as espécies até virou notícia. Do The Guardian: “Testes gené ticos em bactérias, plantas e animais revelam, cada vez mais, que diferentes espé cies cruzam mais do que o pensado originalmente, o que significa que, em vez de os genes serem simplesmente transmitidos para galhos individuais da árvore da vida, eles também são transferidos entre espécies que estão em trajetórias evo lutivas distintas. O resultado é uma ‘rede da vida’ mais confusa e emaranhada. Micróbios trocam material genético de maneira tão promíscua que pode ser difí cil distinguir um tipo do outro, mas os animais também cruzam regularmente — assim como as plantas — e as proles podem ser férteis [...] ‘A árvore da vida está sendo educadamente enterrada’, disse Michael Rose, um biólogo evolucionista da Universidade da Califórnia, em Irvine. ‘O que é menos aceito é que toda nossa visão fundamental da biologia precisa mudar’” . Ian Sample, “Evolution: Charles Darwin Was Wrong about the Tree o f Life” . The Guardian, 21 de janeiro de 2009. Disponível em: .
99
sua prática envolve o “devir-animal” , com o conceituado por
respeito às diferenças. Você está falando em pensam ento ani
D eleuze e G uattari.24 O pensar-fazer anim al evita o gesto
mal? Afetos e em oções animais? Desejo animal? Criatividade
dem asiado fácil de sim plesm ente borrar as diferenças gené
animal? Subjetividade animal, até? Projeção! Pura projeção
ricas. Não se contenta com desconstruir ou proclam ar as vir
negadora de diferenças. Não é outra coisa, senão uma falta de
tudes do híbrido (o con ceito de h ibridização baseia-se em
respeito pelas diferenças radicais entre os modos de existên
misturas, não entre tendências, mas entre form as já-dadas, e
cia — mais um ato de dom inação antropocêntrica apagando
sua lógica é mais com binatória que criativa). O pensamento
a diferença do “outro”. A política animal não dá muito espaço
animal afirma, de fato, diferenças genéricas — diferenças de
a essas críticas. Elas ainda estão trabalhando dentro da lógica
tipo — , mas à sua maneira: em inspeção absoluta; sem lhes
tradicional, segundo a qual a única alternativa à m útua exclu
atribuir qualquer status fundacional. Ele as encena, e contra
são é a indiferenciação — neste caso, sob a aparência de uma
cena, com continua de diferença em grau, arrebatando derra
suposta confusão projetiva. Essa alternativa só é reforçada
deiram ente todas elas num m ovim ento interpenetrante de
pela noção de diferença “radical” .
uma tendência produtora-de-ainda-mais-diferença. Ele inspe
Críticas com o essa não levam em conta a possibilidade de
ciona im anentemente a inclusão das diferenças no campo da
uma lógica de tendências que se interpenetram sem se borrar,
vida e da consciência, afirmando-as a partir do ângulo singular
nem levam em conta o m ovim ento de transindividuação que
do devir mutuam ente inclusivo.
cria ainda m ais diferenças, num a exibição animal das varia
12. A política animal é um a política do devir, até m esm o — e
recíproca dos modos de existência na corrente da vida inces santemente autodiferenciadora.
ções vitais. Eles não sabem nada a respeito da pressuposição especialm ente — do humano.
A lógica da m útua inclusão esquiva-se da alternativa infer 13. Críticas enérgicas, com base no antropomorfismo, são por
nal entre a solidão das diferenças genéricas e a gosma de indi-
vezes orientadas contra abordagens — com o a aqui proposta
ferenciações em que essas acusações de antropom orfism o
— que afirmam a mútua inclusão das formas de vida humanas
estão im plicitam ente baseadas. Ela coloca o hum ano num
e não humanas no mesm o continuum da vida animal. A acusa
continuum com o animal precisamente a fim de respeitar mais
ção é a de que esse tipo de abordagem cai necessariamente na
a proliferação de diferenças: o m ovim ento da natureza pelo
armadilha antropom órfica de projetar características hum a
qual a vida sempre segue se a-diferindo. Ela vira facilm ente
nas em animais não hum anos, mais especialm ente quando
a acusação de antropom orfism o contra os acusadores. Não é
0 continuum é tam bém entendido em term os de um a m útua
o auge da arrogância humana supor que os animais não têm
inclusão de consciência e vida. A acusação de antropom orfism o é lançada em nom e do
pensam ento, em oção, desejo, criatividade ou subjetividade? Acaso isso não é delegar novam ente aos animais o status de autômatos? Até mesm o a posição agnóstica, nessas questões,
24 Cf. suplementos 1 e 2.
100
ainda confere credibilidade demais ao modelo mecanicista da
1 01
vida animal. A p osição agnóstica consiste apenas na recusa
natureza; e m ovim entos rum o a um ponto de destino que
a se pronunciar acerca dessas questões, declaradam ente por
nunca é alcançado porque tendências nunca term inam , de
um respeito pela diferença, mas que é sobrecarregado, b ei
m odo que as m isturas nunca cessam . O utro m odo de dizer
rando a devoção. Mas perm anecer calado acerca da natureza
isso é afirmar que as tendências são definidas por limites vir
das diferenças não é perigosam ente próxim o de silenciar a
tuais.7-5 Falar em animalidade é uma maneira de com eçar no
diferença? Que falta de respeito! E se pensam ento, em oção,
meio, com o Deleuze e Guattari afirmam sempre ser melhor.26
desejo, criatividade e subjetividade animais são de fato afir
Pragmaticamente, é sempre melhor com eçar bem no meio da
m ados, mas sem o duro trabalho filosófico de reexam inar
gloriosa bagunça que é o mundo real, onde a abstração vivida
a própria lógica da diferença, isso resulta num pluralism o
já está sem pre adulterada pela im portância vivida, co n ce
m uito fácil baseado num a tolerância m uito humana. A acu
dendo ao pensar-fazer uma participação efetiva. O continuum
sação m ordaz de antropom orfism o erra o alvo e vê a flecha
da natureza poderia m uito facilm ente ser chamado de conti
voltando em sua própria direção. A abordagem da política animal aqui aventada inverte a crí
nuum da criatividade, ou da consciência, ou do instinto, ou da vida, ou até m esm o da matéria (redefinida de m odo a não
tica. Não no sentido, é claro, de afirmar a projeção humana de
ser m utuam ente exclusiva em relação a esses ou ao virtual,
suas próprias características no animal. E ju sto o contrário:
produzindo um “materialismo incorpóreo”).27 Ou — por que
ela envolve o humano num animocentrismo integrado no qual
não? — até m esm o do vegetal. A escolha por “ continuum ani
ele perde sua dom inância a priori sem, entretanto, sua dife
mal” como denominação dominante aqui tem uma motivação
rença ou a de seus pares animais serem borradas ou apagadas.
simples, mas crucial: com um pouco de imaginação, permite
Ela intim a o hum ano a se tornar anim al, não os anim ais a
que as questões em jogo girem em torno da brincadeira.
renunciarem aos seus poderes vitais há tem pos erroneamente assumidos com o sendo território exclusivo dos humanos. Nota: O ponto de corte do “continuum animal” é inatribuível, assim com o o da vida. Anim alidade e vida não podem
“Até mesmo do vegetal”: Bergson, de acordo com sua lógica de m útua inclusão diferencial, descreve um entrelaçam ento de tendências de maneira que as plantas participam da ani malidade e vice-versa:
ser estritam ente delimitadas em relação ao inorgânico. Essa é um a inescapável conseqüência da afirm ação da lógica da
Para começar [...], digamos que nenhuma característica
m útua inclusão. Cham ar de “ anim al” o continuum da natu
precisa distingue o vegetal do animal. As tentativas fei
reza de mútua inclusão é, desse ponto de vista, algo arbitrário.
tas para definir rigorosamente os dois reinos sempre
Continua de m istura tendencial são com preendidos, o mais convenientem ente, a partir de um lugar terceiro: o m eio. Isso porque os polos de m ovim entos tendenciais são ideais:
25 O caos, tal como descrito na nota 21, p. 97, é o limite virtual imanente a todas as tendências vitais. Nesse sentido, é o limite absoluto da vida.
m ovim entos de um ponto de partida que nunca foi ocupado,
26 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 1 op. cit., pp. 12-14.
porque na realidade nunca houve nada além de misturas na
27 Sobre o materialismo incorpóreo, cf. acima, nota 74, p. 62.
102
103
fracassaram. Não há nenhuma propriedade da vida vegetal
Sim ondon faz um a pontuação similar, cham ando o animal
que não tenha sido reencontrada, em algum grau, em certos
de “planta incipiente” e argum entando que não há “diferen
animais; nenhum traço característico do animal que não
ças substanciais” que perm itam distinções categóricas entre
se tenha observado em certas espécies, ou em determina
reinos, gêneros e espécies.29 Desse ponto de vista, o “ conti-
dos momentos, no mundo vegetal. Compreende-se então
nuum anim al” tam bém poderia ser chamado de “ continuum
que biólogos ávidos de rigor tenham tomado por artificial
vegetal”, dependendo de qual meio se escolhe para começar,
a distinção entre os dois reinos. Teriam razão, se aqui a
e por quais razões estratégicas conceitualm ente construtivas
definição precisasse ser feita, como nas ciências matemá
— conduzindo a que definições e distinções, a que efeitos. A
ticas e físicas, por meio de certos atributos estáticos que o
escolha não é nada arbitrária. É totalm ente pragm ática. A
objeto definido possui e que os outros não possuem. Muito
escolha do meio terá conseqüências sobre com o se desenro
diferente, a nosso ver, e o tipo de definição que convém às
lam todos os conceitos filosóficos envolvidos. Antecipá-los
ciências da vida. Não há realmente manifestação da vida
abdutivamente, modulá-los de antemão, constitui o elemento
que não contenha em estado rudimentar, ou latente, ou
especulativo. A coerência do continuum conceituai precisa ser
virtual, as características essenciais [diferenças de tipo] da
integralm ente reinventada a cada recom eço, de m odo que a
maior parte das outras manifestações. A diferença está nas
própria filosofia está em contínua variação emergente.
proporções. Mas essa diferença de proporção [diferença de
E isso nos leva a outro alerta: cuidado com filosofias que se
grau] bastará para definir o grupo no qual pode ser encon
prom ovem , em term os apocalípticos ou m essiânicos exces
trada, se pudermos estabelecer que essa diferença não é
sivam ente sérios, com o a essência e finalidade da filosofia.
acidental e que o grupo, à medida que evoluía, tendia cada
Essas filosofias necessitam de um a pequena dose da m odés
vez mais a enfatizar essas características particulares. Em
tia vegetal e de um a grande dose da ludicidade animal para
resumo, o grupo não será mais definido pela posse de certas
obterem uma distância reflexiva enativa quanto à sua própria
características [seguindo uma lógica de substância-predi-
im portância (o o o , está ouvindo?). O suplem ento 3 vo lta à
cado], mas por sua tendência a acentuá-las [diferenciação
questão das distinções categóricas e dos pontos de corte.
tendencial estabelecendo conjuntamente diferenças de grau e de tipo num movimento de auto transformação]. Se
14. O instinto percorre tod o o continuum animal integrado,
nos colocamos desse ponto de vista, se levamos em conta
pressupondo reciprocam ente linhas de variação sem pre-di-
menos os estados do que as tendências, descobrimos que
versificantes. Essas linhas de variação estendem-se por todo
vegetais e animais se podem definir e distinguir de um modo preciso e que correspondem realmente a dois desen volvimentos divergentes da vida.28 28 Bergson, A evolução criadora op. cit., pp. 115-116, tradução modificada.
104
29 Combes, Gilbert Simondon and tke Philosophy ofthe Transindividual op. cit., pp. 22-23. A ideia de Simondon é de que uma planta completa sua individuação biolo gicamente, ao passo que uma vida animal continua a se individuar psiquicamente, preservando certa neotenia. Isso distingue vegetal e animal como graus de devir no continuum da natureza.
105
o cam inho até a mais hum ana das realizações, inclusive de natureza lingüística. O m ovim ento autocondutor do instinto, sob a propulsão da ten dência supernorm al, é o que inclui operacionalm ente o humano no animal. Pensar o humano é pensar o animal, e pensar o animal é pensar o instinto. Acaso seria possível co n ceber um anim al sem instinto? Por que, então, o dissem inado em baraço sobre o term o? Por que ele sempre precisa ser minorado, como um segredo bestialmente vitoriano que seria melhor deixar escondido? A política animal não tem medo do instinto.
106
SUPLEMENTO 1
Escrever como um rato torce o rabo
Na obra de Deleuze e Guattari há pelo m enos duas maneiras pelas quais o devir-animal do humano se distingue da brinca deira animal não humana — que, ainda assim, pode ser vista como provedora de suas condições de emergência, bem como propulsora de uma linha tendencial na qual acrescentar uma variação lúdica. Primeiramente, o devir-animal do humano é iniciado pela necessidade. O caso exem plar, para D eleuze e G uattari, é Kafka. É diante do horror do lar e da fam ília hum anos que Kafka se refugia nos territórios existenciais animais. A con densação do afeto nas figuras demasiado humanas da família edípica é sentida com o inabitavelm ente lim itante. A escrita, im pulsionada a serviço do supernorm al com o uma caixa de ferramentas para o devir-animal, é utilizada para com por uma linha de fuga da clausura familiar. O recurso à animalidade é um a estratégia de sobrevivência. A necessidade do recurso não contradiz sua criatividade. O fato de o devir-animal ser iniciado sob pressão não o desqualifica com o um a operação fundam entalm ente lúdica. No devir-animal do humano, cria tividade e sobrevivência são uma só coisa. Se a situação não fosse imperativa, não haveria razão para não perm anecer res guardado nos confortos familiares do lar. O problem a é que esses confortos têm um preço: norm a lidade; aquiescência ao já-expresso; o sufocam ento da te n dência supernorm al que agita im anentem ente e desp erta instintivam ente todos os animais, hum anos ou não, na dire ção de superar, nesse jo g o de cartas, a m ão distribuída pelo
109
que está dado. Só há um a escolha a fazer: renunciar aos ins
Gomo na brincadeira não humana, as ações às quais o nar
tin tos anim ais ou deixar o con forto do lar. Só há um a saída:
rador se entrega “não denotam o que iriam denotar aquelas
desterritorializar-se, deixar a arena hum ana e recuperar o
ações que elas representam”. Com o com cada operação lúdica,
territó rio existencial animal. A necessidade da operação só
o devir-animal dram atiza a situação afetiva ao desempenhar
faz com que isso seja ainda m ais intenso. Ela apenas entre
gestos que constituem mordidas sem morder. Paradoxalmente,
laça a corporalidade, a co locação em p rática dos im perati
não é o horror edípico do incesto que Kafka dramatiza, ainda
vo s da situação dada, de m odo ainda mais próxim o de um a
que esse horror só possa ser evocado. O que é dramatizado é
urgência criativa prospectiva. Ela apenas atrela, ainda m ais
o desenquadramento do incesto e seu horror. O devir-animal
fortem ente, a corporalidade à apetição. O devir-anim al do
do narrador suspende o desejo edípico, a seqüência de ações
h um ano in ten sifica a m útua inclusão da co rpo ralid ad e e
a ele mais associada, bem com o as conhecidas conseqüências
da ten d ên cia supernorm al, enquanto reafirm a a p rim azia
tanto de neles se engajar ou de reprimi-los. O devir-animal de
da últim a. N um ponto crítico da vida, ele despeja a depen
Gregor desarma a família edípica ao lhe conceder expressão
dência pática ao lar com o algo dado, assim co m o o pathos
pura e desterritorializante. “Aparece ao mesm o tem po a pos
fam iliar da clausura dom éstica, num m ovim ento intenso de
sibilidade de uma saída para escapar [...], uma linha de fuga” .1
autossuperação.
0 devir-barata de Gregor traça uma linha de fuga expressiva
Para fazer jus à intensidade desse gesto do devir-animal,
para fora da clausura da família incestuosa. Desenha uma car
é necessário focar, mais uma vez, na diferença entre o afeto
tografia enativa, intensam ente excessiva em seu movim ento,
de vitalidade — em sua relação com a brincadeira, em que
que rom pe com o habitat natural do indivíduo edípico para
se une ao entusiasm o do corpo expressando o dinam ism o
recobrar a vasta natureza da transindividualidade: “tudo é
criativo da vida — e o afeto categórico. T odo gesto lúdico
político [...] tudo tom a um valor co letivo” .2 É em nom e do
invoca o saliente afeto categórico norm alm ente atrelado à situação análoga. Para os filhotes de lobo brincando de luta, é o medo. Para Gregor, na Metamorfose de Kafka, é o horror.
“ povo por vir” que alguém devém-animal.3 A outra diferença em relação à brincadeira animal é que aqui a desterritorialização é “ absoluta” .4 Isto é, o desenqua
O horror é o m edo entrelaçado ao pathos. A necessidade da
dram ento abre uma saída de em ergência que leva para fora
operação vem do contexto horrível do desejo animal sendo
de todas as arenas de atividade conhecidas que estão dadas
forçado ao lim itativo enquadramento do triângulo edípico. O .
na natureza. O devir-animal é o nunca antes visto, o jam ais
gesto lúdico do devir-animal não tem escolha, a não ser dra
feito ou previam ente sentido. U m cachorro am arrando os
m atizar o horror, que transpassa cada brecha da situação do lar. O horror é a chave afetiva pela qual os imperativos situa-
1 Deleuze e Guattari, Kafka: por uma literatura menor op. cit, p. 26.
cionais demandam aquiescência. A saída é deixar-se arrebatar
2 Ibid., pp. 36-37.
de modo ainda mais horrorosamente intenso pelo entusiasmo
3 Ibid, p. 38.
do corpo do afeto de vitalidade.
4 Ibid., pp. 52,70-71.
110
111
sapatos. Um rato estrela de ópera. U m m acaco sabido que
excessivo. D ependendo do contexto, poderia ser qualquer
aprendeu demais.s Nunca feito, nunca visto, nem no passado
afeto e a maneira particular com que ele torna im possível
nem provavelm ente no futuro. É um caso transindividual do
de ser vivida a vida da apetição. E o “excesso” estilístico, no
povo, mas “o povo falta” por natureza.6
caso de Kafka, pode ser uma sobriedade excessiva, transbor dando num superávit de simplicidade intensam ente sentido.
O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma
Essa excessividade minimalista talvez seja o mais propício ao
falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos.
devir, porque o gesto autonomizante da pura expressão deixa
O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os
o enquadramento dado da cena, retira-se dos imperativos do
termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que
contexto, suspende os term os estruturados no local e vai para
se torna. O devir pode e deve ser qualificado como devir-a
outra parte, escapa e mergulha de cabeça numa desterritoria
nimal sem ter um termo que seria o animal que se tornou.7
lização absoluta sem saber de antemão aonde ela pode levar — é tudo uma questão de subtração estratégica.9
O devir passa entre o humano e o animal, na margem de mano
A escrita, de acordo com Deleuze e G uattari, possui a capa
bra produzida pela colocação de suas identidades genéricas
cidade expressiva de desencadear um a “partícula de devir” :
em suspenso de modo a incluí-las mutuamente num estado de
um a dramatização integral e indecom ponível do m ovim ento
elevada intensidade — animação suspensa. “ O devir-animal
em direção ao supernormal.10 O gesto desterritorializante do
é uma viagem imóvel e no mesmo lugar, que só pode se viver
devir-anim al do hum ano se efetua em blocos, exatam ente
e com preender em intensidade (transpor lim iares de inten
com o o bico do filhote de gaivota-prateada. Os afetos envol
sidade)”.8 As idiossincrasias estilísticas e os detalhes extras
vidos na dramatização, tanto de vitalidade quanto categóricos,
bizarram ente subestim ados da escrita de Kafka contribuem
dizem respeito a seqüências de ações potenciais que são ena-
para um m ovim ento in loco que ultrapassa discretam ente a si
tivam ente envolvidas na consciência primária dos domínios
mesm o, transbordando num devir expressivo, atravessando
do pensar-fazer na brincadeira. C on vém recordar a defini
os lim iares da fam ília em direção a outras regiões de inten
ção básica de afeto que D eleuze e G uattari adotam a partir
sidade. Decerto, o horror não é o único afeto categórico que
de Spinoza: os “ poderes de afetar e ser afetado” .11 As ações
pode providenciar o tram polim para esse tipo de m ovim ento
potenciais invocadas pela dram atização agrupam conjuntos de capacidades de afetar e de se afetado. Esses agrupamentos
5 Sobre o devir-cachorro, tal como relatado por Vladimir Slepian, cf. Deleuze; Guattari (1987, pp. 258-259). Sobre a Josephine de Kafka, a rata cantora, cf. Deleuze e Guattari (1986, pp. 10-12), e sobre o macaco de “ Um relatório para uma Academia”, de Kafka, cf. Ibid., pp. 25-26). 6 Deleuze, Cinema 2 - A imagem-tempo op. cit., p. 261. 7 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., p. 18. 8 Deleuze e Guattari, Kafka: por uma literatura menor op. cit, p. 69.
112
9 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 1 op. cit., pp. 14-15; Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 72-74 10 Sobre “partículas de devir” , cf. Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 63-64,67-69. 11 Deleuze, Espinosa - filosofia prática, trad. bras. de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002, p. 128.
113
desenvolvem -se com o tendências. As tendências interpene-
animal estende a integralidade das relações internas das ten
tram -se numa im anência recíproca. Assim com o os blocos
dências in-atuadas ao horizonte absoluto e integral do animal.
de sensação “alucinados” pela gaivota-prateada, esses agru
Num devir-animal escrito, diferentem ente de uma brinca
pam entos tendenciais afetivos são com postos de “ relações
deira animal não humana com o a dos filhotes de lobo, aquilo
internas” . As tendências se ativam conjuntam ente em inten
com o que se brinca não é uma função particular do animal,
sidade, mas clamam, em ressonância e interferência, em com
com o a predação. O “enredo” da história é um invólucro para
petição e simbiose, pelo desdobram ento extensivo, e não de
o animal integral se expressar com toda a sua intensidade
uma maneira normal.
im anente. As ações que são expressam ente dram atizadas
O que o gesto da desterritorialização absoluta faz é sus
transduzem , sim, algo da form a dom inante do anim al aná
pender o desdobram ento extensivo. Ele não encena as ações
loga ao devir: seu algo-extra. O princípio com posicional está
potenciais. Ele as mantém juntas, puram ente em sua relação
mais no nível do estilo de m ovimento do animal, uma vez que
um a com a outra, no envolvim ento m ais cerrado e íntim o,
in-forma todos os seus com portam entos. O que é expresso é
num a zona escrita de indiscernibilidade. Ele as m-atua. Dá
a assinatura do afeto de vitalidade do animal, a -esquidade de
pura expressão às suas im anências recíprocas. Nessa zona
suas ações arqueando-se sobre todos os seus m ovim entos, a
de indiscernibilidade, as relações internas invocadas com o
maneira com que o animal desem penha continuam ente algo
ações poten ciais tendenciais que vão de en con tro ao co n
extra às funções de seus com portam entos. Esse excesso per-
texto fam iliar fazem -se sentir em toda a sua integralidade
form ativo em relação à função genérica é aquilo que define a
covariante, sem que suas diferenças sejam borradas, mas,
singularidade do animal. É a maneira com o o animal supera
paradoxalm ente, na ausência real de um contexto alternado
a si próprio, excedendo o ser de sua espécie de um m odo que
correspondente ao território existencial com o qual se brinca.
o situa num continuum supernormal com outras espécies, em
Um devir-pássaro humano, por exem plo, não invade o ninho
seu próprio modo singular. Há uma baratidade da barata, uma
com o um cuco. As ações potenciais são puram ente encena
ratidade do rato, e são esses estilos de assinatura de formas-
das, desenquadradas e, portanto, sem lim ites atribuíveis. São
-de-vida que se inserem no ato de escrever. O estilo da escrita
puram ente expressas, coim anentes ao gesto expressivo da
com põe-se em torn o dessa -esquidade do anim al análogo,
escrita. São dram atizadas por esse gesto no papel de puras
absorvendo seu excesso específico na linguagem criativa. A
e futuras possibilidades, desenquadradas — seu único limite ,
escrita de Gregor é a invenção do extrabarata, uma mais-valia
sendo o próprio h orizonte de animalidade. C om o qualquer
de baratidade escrituralm ente produzida. U m puro extras-
horizonte, o horizonte do animal recua quando dele se apro
ser de baratidade.12A captação especificam ente escrita desse
xima: é um limite absoluto; um lim ite real, virtual. Também
extrasser estende criativam ente o continuum da animalidade
com o todos os horizontes, envolve liminarmente o campo de possibilidade do m ovim ento em sua integralidade. Na sus pensão do contexto animal de fato, a aproximação do limite
114
12 Deleuze, Lógica do sentido, trad. bras. de Luiz Roberto Salinas. São Paulo: Per spectiva, 2007.
115
integral sob enação para incluir o humano — o único animal
de um a população indefinida (que fa lta ).14 M oby D ick é o
cujos agrupamentos de capacidades afetivas incluem a escrita
h orizon te retrocedente do ser-baleia. Ele é o devir de balei-
literária. É o continuum animal que é integralm ente colocado
dade transindividuante e extraespécie em pessoa. Mas ele
no jo go escrito, no registro da barata. G regor é o animal inte
não é um a pessoa. Ele é um invólucro do potencial de devir-
gral escrito em barata.
-anim al. E um in vó lu cro do devir poten cial anim al, e n v o l
A -esquidade já era um elem ento de pura expressão em gesto anim al não hum ano. A escrita esten de a -esquidade à anim alidade integral, levando a pura expressão ao lim ite.
vendo o continuum da anim alidade integral no registro afe tivo da baleidade — com o só um a baleia escrita pode fazer. O A n om al é m arcado p or um a qualidade esp ecia l que
Quando a escrita concede pura expressão à animalidade inte
serve com o ín d ice de sua supernorm alidade: um a -esqu i
gral, ela não denota “ o” animal. Gregor não é “ a” barata. Não
dade exem plar que resum e tod o o agrupam ento do -esco
se trata de denotar nada, em geral. Trata-se de produzir algo
potencial que o animal exem plar envolve em seus m ovim en
singular. N ão “ o” : um. Uma barata, um cachorro, um m acaco,
tos. Em Moby Dick, é a branquitude da baleia: a branquitude
um rato, cada um deles evocando, na individualidade expres
extranatural que atiça um a paixão igualm ente não natural
siva, o poder do continuum animal — animais singularmente
na contraparte hum ana escrita da baleia que com bina com
exemplares envolvendo-se em seus m ovim entos e na movên-
sua própria intensidade, em contraponto. Ahab é induzido
cia dos seus m ovim entos rum o ao lim ite afetivo da animali
a um a brincadeira inten siva de devir pela branquitude da
dade, um a m ultiplicidade indefinida de m odos diferenciais
baleia — e, com ele, o leitor, p or contágio transindividual.
de existência potencial.13
Q uais im perativos de escape condicionaram essa linha de
A baleia branca de Moby Dick é outro animal exem plar no
fuga? Quando 0 devir cascateia — do escritor à figura escrita
ménagerie deleuzo-guattariano da pura expressão. M oby Dick
ao leito r da escrita — , os im perativos e a paixão de dester-
não é a baleia com um . Ele não representa sua espécie. Não
rito ria liza r p erm an ecem os m esm os ou tam bém sofrem
d enota o que é ser um a baleia ou quais são os co m p orta
variação contínua? C ertam en te, a segunda opção. O devir
m entos normais e adaptativos das baleias. Ao contrário, ele
cruza com as séries. Isso im possibilita entender os devires
expressa a ten d ên cia supernorm al que p reen ch e a balei-
na escrita através da teoria da recepção. Nada em particular
dade de dentro para fora e a posiciona no continuum animal
é transm itido. Algo singular é recatalisado. Não é um a com u
integral. Ele não é o anim al norm al, é o Anomal, o anim al
nicação, é um a série de acontecim entos.
anômalo: a expressão tendencial de um a força de supernor-
D eleu ze e G u attari tam bém falam de um a -esquidade
m alidade deform adora capaz de en volver em sua m aneira
escrita exem plar em relação aos ratos. Eles invocam o jeito
singular, afetiva e qualitativam ente, a integralidade lim inar
bizarram ente com oven te que um ninho de ratos agoniza numa história de Hofmannstahl, dizendo que aquilo que seus
13 Sobre o artigo indefinido e o devir-animal, cf. Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4, op. cit., pp. 36,45-46.
116
14 Sobre o animal anômalo (o anomal), cf. Ibid., pp. 25-29.
117
gestos induzem não é pena, mas uma “participação antinatu
desterritorialização. Dupla abstração. É isso que todos os ges
ral”. Por “ antinatural” não querem dizer “fora do continuum
tos lúdicos de devir têm em com um . O que é especial quanto
da n atu reza” . Q u erem , sim, dizer: em devir rum o a um a
ao gesto escrito é que ele dá um livre acesso ao m ovim ento
“natureza desconhecida” .15 Um a v e z mais, a escrita concede
instintivo da supernormalidade percorrendo toda a extensão
pura expressão supernormal ao animal integral, dessa vez no
do continuum animal im anente à vida tan to dos hum anos
registro do rato. A escrita denota aquilo que essa supernor-
quanto dos não humanos.
malidade iria denotar integralmente. A animalidade do roedor
A expressão dram atizada da animalidade integral é vivida
devém -hum ana (suspende-se em gesto escrito) ao m esm o
ainda mais intensam ente na escrita porque escapa a toda pos
tem po em que o hum ano devém -anim al (renova passional-
sibilidade de reterritorialização. O homem -cachorro com edor
mente seus laços constitutivos com o núcleo instintivo de sua
de m etal incrivelm ente dotado de mandíbula é reterritoriali-
própria supernormalidade).
zado com o um espetáculo secundário: capturado pela arena
É assim que funciona todo devir-animal, até mesmo os não
já-dada de atividade circen se. M as v o c ê jam ais consegue
escritos, como é o caso que Deleuze e Guattari citam, no qual
pegar uma baleia mais branca do que a página em que ela está
o ato efetivo de roer m etal com o se fosse um brinquedo de
escrita. A expressão da animalidade é mais superlativamente
m astigar era o gesto supernorm al catalisando um devir-ca-
natural, quanto mais integralmente sejam colocados em sus
chorro, em contraste com o exemplo da amarração escrita de
penso as funções e os contextos naturais. Em suspenso, eles
sapatos de cachorro com patas humanas.16 É o mesmo princí
são sentidos com um entusiasm o do corpo tão longo que se
pio básico quando um humano engaja um devir-animal num
estendem por todo o continuum animal, e tão ubiquam ente
gesto não verbal: um ato expressivo que dispara afetivamente
envolventes que espreitam em cada entrem eio; tão peram-
um devir entre, sem um tornar-se que seja terminante. A dife
bulantes que habitam todas as lacunas entre o que é e o que
rença é quão longe no horizonte da animalidade o ato pode
poderia ser (mas, fora da expressão, nunca será).
tender; quão intensa a expressão pode ficar; quão integral
N a m edida em que esse m ovim ento de expressão animal
m ente longe vai o seu m ovim ento de superação do que está
frustra qualquer reterritorialização adaptativa com o sua des-
dado. O ato escrito vai o mais longe, o mais intensamente. Na
tinação, ele ocorre no contrapelo da animalidade, cuja dire
atuação gestual, com o na in-atuação verbal, tanto o humano
ção natural inclui muito frequentemente a recaptura corporal
quanto o animal são extraídos de seus contextos norm ais,
com o parte do ciclo vital natural de variação da vida. A reno
abstraídos de seus enquadram entos costum eiros. Seus g es
vação de laços do humano com seu núcleo animal instintivo
tos são subtraídos das funções já conhecidas e desenvolvi
é uma “participação antinatural [participation contre naturé] ” .17
das adaptativam ente. Desenquadram ento recíproco. Dupla
É um a contraparticipação da mais intensa natureza, levada ao mais alto grau de abstração vivida, suspensa no artifício
15 Ibid., p. 21. 16 Ibid., p. 61.
118
17 Ibid., pp. 21,23,46, 65.
119
da escrita. Nesse modo de abstração vivida, o humano não é
atuá-lo, ele in-atua o contágio dessa transformação-m-Zoco
cônscio “do” animal. A escrita não é discursar “ sobre” o ani
sem o animal real em jogo. Ele subtrai o animal real em jogo
mal. O humano está fazendo o animal no gesto de pensar-es-
na natureza a fim de colocar em jogo a própria natureza do
crever: in-atuando um a pura expressão animal, num mútuo
animal. Ainda mais potencialm ente. Essa contraparticipação
envolvim ento entre um e outro, e o nem -um -nem -outro de
m axim am ente abstrata no potencial da natureza, só alcan
sua zona de indiscernibilidade em devir.
çada com o extrem o do artifício, é a expressão mais intensa do valor da natureza. C om o valor, ela representa um a coisa:
Escreve-se sempre para os animais [...] “participação anti-
a simpatia animal universal.21
natural”, simbiose, involução. Só se dirige ao animal no homem. O que não quer dizer escrever sobre seu cachorro,
Aqui chamamos de “intuição” a simpatia pela qual alguém
seu gato [...] Não quer dizer fazer os animais falarem. Quer
é transportado para dentro de um objeto de maneira a
dizer escrever como um rato traça uma linha, ou como ele
coincidir com o que nele há de único e, consequentemente,
torce o rabo, como um pássaro lança um som, como um
inexpressível.22
felino se move ou dorme pesadamente.18 O devir-animal escrito é o acontecim ento integral da animali “ C o m o ” um rato torce o rabo. “ C o m o ” u m pássaro canta.
dade instintiva, in-atuada numa passagem para o limite abso
“ C o m o ” um gato dorm e. “ C o m o ” , aqui, não denota o que
luto do que está dado. É a abstração vivida da vida animal,
iria “ d e n o ta r” m e ta fo rica m en te .19 N ão d en o ta, n a m ais
singularmente ilimitada. Uma pura e necessária expressão do
pura expressão não m etafórica. O devir, segundo Deleuze e
que há de inexpressível no devir.
Guattari, requer a abolição da m etáfora.20 Longe de ser um a
Seria uma saída uma expressão resultar tão pura a ponto de
m etáfora, o devir-anim al é um a participação real contra a
estar efetivam ente em suspenso? Nunca diretamente. Nunca
natureza, seguindo a própria tendência supernormal da natu
de um a m aneira que p ossa ser diretam ente aplicada para
reza, sobrecarregada num m ovim ento rum o ao lim ite abso luto. O gesto do devir escrito é tão real quanto o paradoxo gesticulado não verbalm ente que catapulta o animal para a arena da brincadeira na natureza, num a transform ação-in-loco que não afeta um sem afetar os dois. M as mais do que
18 Deleuze e Parnet, Diálogos, trad. bras. de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998., p. 89, tradução modificada. 19 Mil platôs, v. 4, op. cit., p. 162. 20 Ibid., pp. 65-66,162.
120
21 “ Um único e mesmo animal abstrato, uma única e mesma máquina abstrata” (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 1, op. cit., p. 60, cf. também p. 13; e Mil platôs, v. 4, op. cit., p. 40). Nessa passagem, Deleuze e Guattari referem-se à “unidade de composição” do estrato orgânico. No presente ensaio, o “único e mesmo animal abstrato” está integralmente estendido ao longo do continuum da natureza, tanto orgânica quanto inorgânica, sob os auspícios da tendência supernormal, trazendo -a mais para a órbita daquilo que Deleuze e Guattari posteriormente, em Mil platôs, chamam de “pura animalidade” (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5, trad. bras. de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34,1997, p. 212). Cf. também a nota 6, p.85, bem como o suplemento 3, ponto 4, abaixo. 22 Bergson, O pensamento e 0 movente op. cit., p. 135.
121
resolver problemas colocados por uma necessidade não vivível. Mas talvez, apenas possivelm ente, a pura expressão terá inventado uma form a dominante do mais intenso escape que possa advir espontaneam ente, de nenhum lugar exprim ível, para in-formar uma terrível situação que intuitivamente brota da im anência do animal no ponto crítico, ressonando inte riormente em direção a uma atuação recém-emergente. Então a tarefa muda: escolher um a arma no m ovim ento de escape para lutar contra a recaptura.23 Ou, mais relacionai e pragma ticam ente, encontrar um a ferramenta.24Não um a ferramenta que funcione. Uma ferram enta que invente. Um a ferramenta para construir as condições que perm item que o movimento de escape continue a evitar as capturas pela constituição de uma prática de sua própria abdução, devindo autoabduzente, autoinduzindo serialm ente seu próprio puxar-para-diante, gesticular pelo gesto de pensar-fazer, perseguindo a si mesmo com o uma tendência intuitivam ente autocondutora, abrindo um caminho, com medidas iguais de proeza improvisacional e técnica, em direção a territórios existenciais ainda-não-conhecidos, nunca antes vistos, conservando o potencial ani mal supernormal que aloja o proclam ado povo por vir numa natureza aberta, autossuperadora dentro de um horizonte de possibilidade sempre em expansão. A autonom ia de expres são especulativo-pragmática, elevada à mais alta e politizada potência transindividual, não mais apenas devir-animal, mas revolucionária: mais-valia de vida, vivida o mais amplamente em sua intensidade integral.25 23 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 78-79. 24 Ibid., p. 37. 25 Um apontamento sobre desviar de/com Deleuze e Guattari. Em Kafka: por uma literatura menor, pp. 70-71, Deleuze e Guattari ressaltam que os devires-animais de Kafka “mostram uma saída que são incapazes de seguir” devido ao
122
poder reterritorializante da família edípica. Eles escrevem a respeito de “alguma coisa diferente agindo subterraneamente” nos devires-animais de Kafka que leva a desterritorialização absoluta ainda mais longe, rumo a saídas mais efetivas. São os “devires-moleculares” e os “devires-imperceptíveis” que pertencem à “vida anorgânica” (Mil platôs, v. 4, op. cit., pp. 32, 72-74). O anorgânico não deve ser confundido com o inorgânico (embora o uso de Deleuze e Guattari vacile entre utilizar “anorgânico” e “inorgânico” em sentido estendido). A vida anorgânica é a vida ilimitada à “organização dos órgãos” da forma animal funcional/adaptativa. Ela percorre todo o continuum do que normalmente é classificado como inorgâ nico e orgânico, sem respeitar esse binarismo. A estratégia da presente explanação tem sido a de abordar esse continuum “ anorgânico” da natureza enfatizando a imanência ao animal da “ coisa diferente que age subterraneamente” referida por Deleuze e Guattari. Aqui, essa coisa outra é construída em termos de tendên cia supernormal de exceder a função e a adaptação, entendida como movimento criativo da natureza. O problema a partir do qual deriva o presente projeto — o de constituir um conceito de política animal a partir do movimento criativo da criatividade — implica escolhas terminológicas diferentes das de Deleuze e Guattari (como chamar de continuum apenas o da “vida” e tornar a tendência supernormal o movimento de “animalidade” ao longo de todo o continuum) e prescinde do gesto de estabelecimento de uma ordem de prioridade dos devires. No suplemento 3, abaixo, a tendência supernormal será vista como o irrefreável na vida orgânica. Isso abre alas para nos reconectarmos aos conceitos de “anor gânico” e “devir-imperceptível” de Deleuze e Guattari, bem como entre este pro jeto e construções conceituais — derivando de problemas distintos — para os quais esses conceitos são emprestados. Em Mil platôs, diferentemente de Kafka, Deleuze e Guattari não apresentam os devires-animais como impasses. Eles são apresentados mais positivamente, com muito mais poder de desterritorialização, mas ainda considerados portas de entrada para devires-imperceptíveis ainda mais poderosos (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 72-73; e todo capítulo “Devir-intenso, Devir-animal, Devir-imperceptível” , pp. 11-115, que vài da anima lidade ao devir-imperceptível). O vocabulário próprio de Deleuze e Guattari já se intersecciona com o deste projeto nos pontos-chave em que a animalidade é estendida por todo o continuum: “a pura animalidade é vivida como inorgânica, ou supraorgânica” (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5 op. cit., p. 212).
123
SUPLEMENTO 2
Azoo-logia da brincadeira
Gregory Bateson relata que suas reflexões sobre a brincadeira foram inspiradas por um a visita ao zo ológico de São Fran cisco. Dois m acacos brincando um com o outro lhe chama ram a atenção. Ficou “ evidente, m esm o para um observador hum ano” , que suas ações lúdicas eram “ similares, mas não as m esm as do com bate” .1 As análises de Bateson resultam dessa observação da brincadeira, incluindo uma observação da inclusão do observador hum ano na cena. Entretanto, no restante de seu texto, Bateson nunca retorna à questão da inclusão do observador humano e da “evidência” daquilo que ele vê. É com o se — contra tudo o que ele diz a respeito da brincadeira, da reflexividade e da linguagem — ele retornasse, nesse ponto, à suposição não reflexiva de que o animal e sua relação evolutiva com o humano possam ser sim plesm ente denotados; de que a presença do observador hum ano seja distraidam ente apagada. O que a anim alidade denotaria se uma das coisas que ela não denotou fosse esse esquecimento? Onde fica a brincadeira na própria análise, baseada na obser vação, feita por Bateson? A política animal da brincadeira pre cisa se confrontar com essas questões que giram em torno da espectatorialidade.2 1 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 179. 2 Não é uma opção para a presente explanação proceder como se fosse possível falar diretamente de objetos, na ausência do humano, esquecendo conveniente mente que é um animal humano que está falando. O esforço em fazê-lo, que é o gesto fundador do realismo especulativo, é feito numa tentativa de escapar do “correlacionismo” . Entretanto, colocar o ato do pensamento entre parênteses torna
125
Se no continuum animal é sempre um a questão de mútua ainda mais difícil a tarefa de construir uma explanação efetivamente não correlacionista da mútua inclusão diferencial do humano na natureza não humana (o que será discutido no suplemento 3, ponto 3, como 0 “mais-que-humano” ). Meillassoux (After Finitude, op. cit.) simplesmente coloca de lado a tarefa com a noção de que o pensamento tem acesso especulativo direto ao real, um feito que só pode ser atingido reafirmando a primazia e a autossuficiência do raciocínio lógico-matemático, num retomo a uma ideia altamente tradicional da filosofia, atribuindo a ela uma vocação universalista. Quem ou o que pensa, e quais as implicações no mundo, tal como ele se dá, da participação do ato de pensar nunca são questões levantadas (i.e., o fato de que um pensar é sempre um pensar com uma corporificação). Harman (Guerilla Metaphysics op. cit.) segue uma estratégia diferente. Diz-se do real que ele é composto de objetos em si, apartados da relação. A fim de explicar a relação, outro conceito filosófico hipertradicional tem de ser ressusci tado do cemitério da história do pensamento ao qual Whitehead, entre outros, há muito tempo 0 relegou: a distinção entre qualidades primárias e secundárias, ou o objeto em si e o objeto sensual — para a crítica de Whitehead acerca da “bifur cação da natureza”, cf. Whitehead, O conceito de natureza, trad. bras. de Julio B. Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 33-59. Essa velha distinção é revivida com uma torção. Historicamente, as qualidades primárias eram propriedades dos objetos e as qualidades secundárias pertenciam ao sujeito que as percebe. Harman, conservando sua abordagem orientada ao objeto, migra as qualidades secundárias para o lado do objeto. Tudo no pensamento correlacionista que era atribuído ao sujeito agora é arrogado ao objeto. Em outras palavras, uma filosofia do objeto sem o sujeito é alcançada simplesmente ao decretar tudo o que era considerado subjetivo no pensamento correlacionista como sendo objetivo. Isso possibilita que o objeto-em-si apartado se mantenha em sua unidade absoluta, à custa de entrar num “duelo” (Harman, Guerilla Metaphysics op. cit., pp. 148-149) com suas próprias qualidades múltiplas, que aparecem na relação. O que, então, mantém juntos os aspectos em duelo (“ substância versus relação” , p. 183)? Há, como apren demos, uma “ cola” mágica (pp. 153-154) que mantém unido todo o universo: seu nome é “metáfora”. A metáfora magicamente “converte as qualidades de objetos em objetos por direito próprio” (“ elementos”) (p. 162). Porém, se as qualidades secundárias são agora objetos elementares, elas também não se apartam? Entra mos então numa complicada casuística que apela a um “éter” misterioso, um tipode emanação das “notas” do objeto, nas quais “ nós” , preceptores humanos, nos “banhamos”. Nesse banho, entramos vicariamente na órbita do “buraco negro” do objeto — que, em si, permanece “escondido da vista” (p. 20), enquanto “vaza” qua lidades e relação. Acaso essa cola metafórica não seria uma hipóstase daquilo que anteriormente era chamado de subjetivo, tendo se reorientado ao objeto, tal como um casaco vestido do avesso como um novo estilo ousado? Acaso “ nós”, precep tores desse vazamento, não estaríamos gerando qualidades secundárias enquanto nos “banhamos” nas emanações do éter, como fizemos o tempo todo, segundo o
126
inclusão, é necessário articular o modo de inclusão do humano no animal e do animal no hum ano. No caso do zoológico, assim com o em outros contextos em que os humanos traba lham para se manter a certa distância, no papel do observador não implicado — seja no campo, no laboratório ou na frente de uma tela — , é visivelmente uma questão de uma operação rigi damente excludente. A m útua inclusão pareceria ser o últim o con ceito ao qual vo cê recorreria para entender o que está em jo go nessas circunstâncias. Mas são precisam ente essas circunstâncias que predom inam nos encontros animal-humanos de nossa era, tardiamente batizada de “Antropoceno” . correlacionismo? Todas as questões do pensamento correlacionista não foram sim plesmente desviadas para o lado do objeto? Faz-se necessário ainda mais casuística para suturar os problemas criados pela própria explanação. Há falsos problemas implicados pelas pressuposições fundadoras dessa empreitada: a necessidade de uma ontologia baseada na substância e a ideia de que o objeto está essencialmente apartado — Whitehead (O conceito de natureza op. cit., pp. 169-170), ao contrário, define o objeto como aquilo que retoma. Na perspectiva aventada neste ensaio, a 000 é pouco mais que uma produção em massa de falsos problemas filosóficos ves tindo velhos conceitos e enigmas em roupas novas e chamativas. A falsidade dos problemas é traída pelo uso conspícuo do “nós” quando chega a hora de explicar a percepção e a relação. Que “nós” é esse? O “nós” permanece genérico. O “nós” genérico é sempre um sinal garantido de um sujeito implicado-, uma colocação entre parênteses do ato de pensamento tal como ele ocorre. “Nós” realmente devemos acreditar que voltar, por intricadas veredas, ao genérico sujeito humano implicado — corroborando agora a retórica de uma metafísica orientada ao objeto — seja um avanço filosófico? Devemos “nós”, sujeitos implicados, hipotecar à metáfora nossa atividade de pensar-fazer? Eterizar nossos devires relacionais? Que política é essa? Há muitas rotas alternativas ao pensamento não correlacionista — elas são todas antes relacionalistas que substancialistas. Bergson, Whitehead, Deleuze, Ruyer e Simondon (sem mencionar Peirce): todos desenvolvem exaustivamente uma metafísica relacionai não correlacionista capaz de explicar a presença do humano e respeitando, ao mesmo tempo, a anatomia ontogenética do não humano; reco nhecendo plenamente a realidade do que jaz para além do humano. O problema não é como pensar o objeto sem o humano. E pensar a implicação do humano em uma realidade que, por natureza, o supera. O problema é o mais-que-humano — especialmente do próprio ato de pensar.
127
Exemplares devires-animais, sem objetivo funcional ou destino
No zoológico, os animais colocados em primeiro plano são
final, podem parecer irrelevantes no contexto dessa predomi
realçados do fundo de m odo a serem exibidos com o figuras
nância de situações em que o animal é reduzido ao estatuto
essencialm ente visuais. O enquadram ento zoológico instrui
de um objeto a serviço de um observador humano proposital-
o espectador quanto ao fato de que as prem issas que suce
mente não envolvido, m uitas vezes em detrim ento da vitali
dem para o animal não devem ser estendidas às vizinhanças
dade do animal, quando não à sua pura e simples sobrevivência.
hum anas, nas quais o animal está exclusivam ente incluído.
À primeira vista, a visita ao zoológico, que é a cena prim i
As premissas que operam dentro da m oldura são mostradas
tiva do desenvolvim ento da teoria de Bateson, pareceria ser
com o sucedendo na “natureza”. Por contraste, as premissas
a antítese da brincadeira. Verdade, o conteúdo da observa
opostas da “ cultura” aplicam-se às vizinhanças imediatas das
ção é um a cena de brincadeira. Mas é este precisam ente o
quais a figura do animal é destacada: o território humano da
problema: a cena é contida, no sentido literal de enclausura-
instituição do zo ológico. Esse enquadram ento zo o-lógico
m ento numa jaula. Com o desenvolvido neste ensaio, a noção
repete o gesto que Giorgio Agamben identifica com o o gesto
de “mútua inclusão” é a de um gesto enativo de dupla dester-
fundador da política humana. O animal é reduzido ao status
ritorialização. No texto de Bateson, isso acontece em term os
da “zoé” — m era vida biológica sob a regra categórica das
mais lógicos e, ao m esm o tem po, mais visuais. Bateson fala
leis da natureza — e, consequentem ente, excluído da pólis
extensivam ente sobre enquadramento, referindo-se, concre-
(ou, m ais p recisam ente, incluído apenas com o excluído).
tam ente, à m oldura de um a pintura e, mais abstratam ente,
Os espectadores hum anos gozam do estatuto da “ bios” : “ a
ao gesto de m anter um a separação bem organizada entre
form a ou m aneira de viver própria de um indivíduo ou de
categorias de seres e entre os níveis lógicos e m etalógicos
um grupo” ; uma “vida qualificada”, reconhecida com o uma
envolvidos nessa tarefa.3 Em ambos os casos — o visual e o
pessoa, e dotada do estatuto ju ríd ico que acom panha esse
lógico — é uma questão de exclusão por inclusão. A moldura do
reconhecim ento (personalidade moral) .s
quadro inclui certo número de elementos visuais organizados
A exclusão inclusiva do animal zoé-lógico é tudo, m enos
com o uma gestalt perceptual. A inclusão na m oldura coloca
paradoxal. A m oldura se m antém firm e no lugar. M esm o
em primeiro plano as figuras pintadas que ali aparecem, real
quando a jaula do animal no zoológico inclui elem entos que
çando-as contra o fundo form ado por aquilo que a m oldura
evocam seu habitat natural — de m odo que algo próprio do
exclui. Um enquadram ento visual é tam bém um enquadra
fundo natural da figura animal, que é estrangeiro aos entor-
m ento lógico. É “uma instrução para o espectador de que ele
nos hum anos, seja incluído na jau la — , isso só eqüivale a
não deveria estender as premissas que obtém entre as figuras
“um a m oldura dentro de outra m oldura” que nada faz para
no quadro ao papel de parede atrás dele” .4
minar a separação entre categorias lógicas e sua aplicação do princípio do terceiro excluído. A lógica dem asiado humana
3 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., pp. 187-189. 4 Ibid., p. 189.
128
SAgamben, Homo Sacer op. cit., p. 9.
129
do um ou outro “precisa” do “ duplo enquadram ento” a fim
co n cern e à estrutura, cujo traço co n stitu tivo é o desenho
de “delim itar o fundo contra o qual as figuras serão percebi
de uma fronteira entre o dentro e o fora dem arcando o que
das” .6 Se o fundo incluído não é tão bem delim itado quanto
a estrutura inclui em sua figura deslocada e aquilo que ela
a própria figura, a separação entre as prem issas que operam
deixa na sombra de fundo do seu ambiente. A zona de “indis
dentro da moldura e aquelas que operam fora dela pode ficar
tin ção” ou indiferença que resulta de um borram ento dessa
borrada (um “perigo” com o qual boa parte da arte moderna
dem arcação é o m ero oposto da estrutura.9 É o fundo indi-
brinca conscientem ente). É necessário duplicar o fundo para
feren ciado co n tra o qual se d estaca a d iferença figurai da
enquadrar efetivam ente a figura.
estrutura em relação ao seu ambiente.
N a verdade, é im preciso dizer que a exclusão inclusiva do
Seguindo o princípio do duplo enquadram ento, essa zona
animal zoé-lógico não é paradoxal. De certa maneira, ela se
de indiferença, que é o m ero oposto da estrutura, deve ser
presta m uito bem ao paradoxo. Mas não o tip o de paradoxo
recon hecida com o um elem en to constitutivo da estrutura
que figurou proem in en tem en te neste estudo. N ão o para
ção. E o disform e do qual se sobressai essa form a de enqua
doxo produtivo da colocação perform ativa em m ovim ento
dram ento (o acop lam en to co rrelativo da estru tu ra e seu
de um a zona criativa de indiscernibilidade na qual as dife
am biente). A diferença estrutural (no caso zoé-lógico, ani
renças ocorrem conjuntam ente sem coalescer, fundem -se
mal versus h um ano), figurada com o o conteú do do enqua
enativam en te sem se confundir, num a proxim idade dinâ
dram ento, fica realçada em relação ao fundo duplicado da
m ica que catapulta a vida a um m ovim ento transindividual
indiferença. Mas faz isso à custa de ter se com prom eter com
de superação do que está dado em direção ao novo. Ao co n
ele, com o sua própria cond ição lógica de possibilidade. A
trário, é um paradoxo estéril que consiste m eram ente num
zo n a de indiferença é a prem issa negativa em oposição à
borram ento de categorias. O que é suspenso nesse caso não
qual a diferença estrutural se ergue. Enquanto logicam ente
são as funções norm ativas, com o na brincadeira, mas a pró
condicionado, o duplo enquadram ento é uma dupla op osi
pria diferença. A lém disso, a suspensão não é enativa, mas
ção: hum ano versus anim al e humano-verszís-animal versus
m eram ente lógica.7 A diferença fundam ental que borra é a
indiferenciação. Por outro lado, nos paradoxos animais pro
distinção “ entre o que está dentro e o que está fo ra ” .8 Em
dutivos, as diferenças em jogo não são redutíveis a oposições.
outras palavras, o estéril paradoxo em questão não concerne
Em vez de um a zona de indiferença, elas possuem a zona de
ao dinamismo da vida em sua processualidade; antes mesm o,
indiscernibilidade áa diferença (o terceiro incluído). Eles não apelam para condições de possibilidade apenas lógicas, mas
6 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 188, grifo do autor. 7 O conceito de Agamben de “ suspensão” como aquilo que produz apenas indis tinção irredutível tem de ser precisamente contrastado com a suspensão lúdica aqui teorizada, a qual suspende a fim de abranger diferenças e as reúne para a produção de ainda mais diferença. 8Agamben, Homo Sacer op. cit., p. 26.
130
inserem-se enativamente em condições reais de emergência.10
9 Ibid. 10 Sobre a distinção entre as reais condições de emergência (potencialização catalítica) e as condições lógicas de possibilidade (causa formal), cf. Deleuze,
131
Sua constituição não é de uma natureza predominantem ente
intim am ente relacionada com os problem as im postos pela
lógica, m ediada pela oposição, mas naturalm ente vital, em
operação de enquadram ento. Em últim a análise, afirma ele,
toda a sua imediatez.
a operação de enquadram ento não é tan to visual (a analo
Agam ben dem onstra de m odo convincente que todo gesto
gia com a pintura), tam pouco form alm ente lógica (concer
político humano inclui logicam ente essa base indiferente em
nindo às regras de form ação e classificação de categorias).
suas exclusões estruturais, de um m odo esterilm ente parado
É “psicológica” .14 Isto é, no vocabulário do presente ensaio,
xal ou, de outro, em geral ocultado. Mas quando essa exclusão
é apetitiva: concerne ao m ovim ento “m ental” da abstração
incluída confere a si mesma uma figura, é na form a paradoxal
vivida, na m edida em que tende a superar o que está dado
da exceção que funda sua regra, recon stituindo a regra no
na direção da criatividade, e pertence às subjetividades-sem -
ato de suspendê-la. Essa é a própria definição agambeniana
-sujeito. A necessidade de duplicar o enquadram ento, com o
de soberania. O ato paradoxal de soberania ainda m erece ser
um m ecanism o de segurança para m anter a separação entre
cham ado de “ estéril” , m uito em bora seja constitutivo. Pois
categorias, “ relaciona-se à preferência por evitar os parado
ele não inventa, refunda. Ele não supera o que está dado, dá
xos da abstração” : os paradoxos, diríamos aqui, da abstração
novamente. Ele reproduz em essência a mesm a estrutura. “A
vivida.15 Proteger a fronteira estrutural contra a m útua inclu
exceção que define a estrutura da soberania... cri [a] e defin[e]
são criativa é um modo de evitar a todo custo a superação do
o próprio espaço no qual a ordem jurídico-política pode ter
que está dado, ao qual a abstração vivida, animada pela ten
valor” .11 Trata-se de colocar de volta no lugar, em term os for
dência supernormal, nos impele. Porém , o oposto estrutural
mais, as prem issas da p olítica humana: enquadrando-a de
dessa proteção da fronteira estrutural é apenas outro m odo
m odo redobrado para outra rodada.
de expressar a m esm a “preferência” — entenda-se: “desejo”
O zoológico é um exercício da soberania hum ana sobre
—
por evitar o m ovim ento criativo da vida, d esta v e z sus
posta ao animal. A zoo-logia participa da estruturação dapólis,
pendendo-a numa zona de indiferença, em vez de extirpá-la
que enxota o animal para o lado da vida não qualificada; em
com o terceiro excluído.
outras palavras, vida que é “ m atável”, p or natureza — em oposição a ser “ sacrificável” , por cultura.12
O estado de exceção soberano é a dialética constitutivam ente estéril entre essas duas estratégias opostas de evitar
Bateson u tiliza sua teoria da brincadeira para construir
a afirm ação da abstração vivida. Bateson ressalta que, na
a definição do patológico.13Ele vê a patologia com o estando
ausência de paradoxos de abstração (vivida), a evolução da com unicação, que ele afirma ser inseparável da evolução da
Bergsonimo op. cit., p. 78; e o item “ Diferença conceituai: a maior e a melhor”, em Diferença e repetição, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
vida, “estaria num beco sem saída” .16 A estrutura soberana
11 Agamben, Homo Sacer op. cit., p. 26.
14 Ibid., p. 186.
12 Ibid., p. 17.
15 Ibid., p. 189.
13 Bateson, “A Theory of Play and Fantasy” op. cit., pp. 190-193.
16 Ibid., p. 193.
132
133
da política humana é antidevir. Na medida em que cada vida possui sua evolução criativa, a política hum ana é antivital.
Que se entenda por político-patológica qualquer tendên cia que se enquadra num desejo de evitar a abstração vivida.
Todos os três com ponentes da política hum ana — a figura
Reforçar a linha divisória entre as diferenças estruturadas
do humano, a base do animal da qual ela se sobressai e a zona
a fim de com inar o enquadram ento ao deslizam ento e ao
de indiferença explorada pelo estado de exceção através do
apagam ento que em ergem com o paradoxo corresponde à
qual essa diferença estrutural é suspensa visando a um reen-
norm atividade neurótica, que se investe de corpo e alma na
quadramento refundacional — podem ser considerados pato
com pulsão de repetir o mesmo, na medida do humanamente
lógicos de acordo com os critérios de Bateson. A preocupação
possível. É a normopatia de Jean Oury.18A norm opatia amplia
com o enquadramento, o duplo-enquadramento e o paradoxo
a mínima diferença, deflagrada pelo paradoxo da brincadeira,
com partilhada por Bateson e Agam ben nos autoriza a p en
numa diferença m onum ental que é levada a sério demais. A
sar conjuntam ente o político e o “psicológico” — lembrando,
lacuna é erigida num divisor estrutural, o qual é defendido
mais um a vez, que estam os falando não sobre “ o ” sujeito,
a todo custo em nom e “ de com o as coisas são” . Nenhum a
mas sobre subjetividades-sem -sujeito. Ou, para sermos exa
m istura é perm itida: brincadeira ou luta — por am or à sua
tos, estam os falando sobre m ovim entos qualitativos de uma
sanidade, não ouse fazer as duas de uma vez.
natureza tendencial na qual o sujeito não possui ser, mas ape nas extrasser, coincidindo com o elemento de pura expressão
Se, contra essa defesa, apesar dos maiores esforços da sani dade norm opática, as diferenças se fundem num a zona de
em devir. Isso significa, no fim, que existe apenas um sujeito,
indiferença em que as categorias do ser não podem mais ser
e ele é múltiplo: o sujeito transindividual do animal integral
tendencialm ente discernidas, a lacuna entre os níveis lógicos
superando a si m esm o (com o discutido no suplem ento 1).17
e 0 divisor entre os term os mutuamente exclusivos implodem.
Continuando:
O signo é levado a sério com o o que denota o que iria denotar. Isso im plica um a confusão entre o que “é ” e o que “poderia ser”, na ausência efetiva de qualquer linha potencial de um
17 O conceito deleuziano de “extrasser”, tal como aqui mobilizado, converge com a teoria de Whitehead do sujeito como supeijecto: “Essa é a doutrina da unidade emergente do supeijecto. Deve-se conceber uma entidade atual tanto como um sujeito que preside sua própria imediatez de devir [como uma forma dinâmica se transindividuando] e um superjecto, que é uma criatura atômica exercendo sua função de imortalidade objetiva [o ato de deixar para trás do potencial em formà de rastro para devires subsequentes assumirem suas próprias constituições]. Ele se tornou um ‘ser’, e pertence à natureza de qualquer ‘ser’, que é um potencial para qualquer ‘devir’ (Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 45). O “ ser” do superjecto é um devir atingindo sua culminação (“ satisfação”) e, nesse momento preciso, “perecendo” no potencial que lega ao mundo, contribuindo para as con dições reais de emergência do que poderia vir em seguida. O superjecto corres ponde intimamente à “ síntese disjuntiva de consumo” de Deleuze e Guattari em O anti-Édipo (“então era isso!”, pp. 116-118).
134
gesto enativam ente desem penhável que forneça um a linha de fuga transform ativa. A supressão norm opática da zona de indiferença em erge. O fundo de toda estrutura em erge à superfície. A apetição, é claro, nunca cessa. É da natureza da apetição nunca cessar. Sob essas co n d ições, seu m ovi m ento incessante só pode agora andar em círculos. Ele pode discernir a diferença e a distinção entre categorias lógicas
18 Caosmose, trad. bras. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34,2006, p. 99.
135
som ente até o ponto de cair novam ente em um a confusão
fazendo-a voltar para a indiferença antes que ela se desdobre
entre o “ é” e o “poderia ser’7. Isso resulta num a hiperprodu-
transform ativam ente. O fascism o é um regime m isto no qual
ção de conexões associativas indiferentes à distinção entre o
há uma oscilação louca entre a norm opatia coletiva e a para
fato corporal e a possibilidade, um muito facilmente seguindo
nóia da psicose coletiva.
para o outro. Estranham ente, a im plosão do signo na deno-
O próprio Bateson não toca no terceiro com ponente polí-
tação daquilo que ele iria denotar resulta num deslizam ento
tico-patológico: a pedra angular da exceção soberana. Mas
com pulsivam ente associativo. O que desliza é o potencial
não é difícil dar um nome que se alinhe aos dois diagnósticos
para um a transform ação enativam ente desem penhável. Na
que acabam os de apresentar: sociopatia. A soberania agam-
ausência processual do potencial gestual para a transform a-
beniana é a sociopatia constitutiva da política humana. Que
çã o -in-loco, instala-se um sentim ento de im potência. Esse
se entenda por sociopata qualquer m ecanism o que funcione
sentim ento segue a própria ladeira escorregadia, tendendo a
para reproduzir mais norm opatia e psicose, em seus antidevi-
evoluir para um presságio e, então, uma ameaça — até mesmo
res com plem entarm ente infernais. A sociopatia da soberania
uma perseguição. A tendência, em resum o, vai em direção a
está intim am ente relacionada ao fascism o, ainda que a ele
um a paranóia. Essa é a pira psicótica da norm opatia (usando
não se reduza.
a palavra psicótico num sentido não técnico e amplo).
A sociopatia, com o a esquizofrenia nos term os de Deleuze
E crucial ter em m ente que essa figura desestru tu rada
e Guattari, é um a tendência im pessoal. É transindividual e
da p sicose não tem nada a ver com a figura processual da
transsituacional ao seu próprio modo; logo, jam ais afeta um
esqu izofren ia, tal com o teorizad a p or D eleu ze e G uattari.
sem afetar, pelo m enos, dois. É transsituacional, na m edida
O esq u izo frên ico de D eleu ze e G uattari é a figura da afir
em que seu estado de exceção é sempre um limiar entre duas
m ação absoluta da tendência supernorm al e tem a ver com
reordenações. Diferentemente da tendência esquizofrênica, a
a in ten sificação do m ovim en to anim al da variação super
tendência sociopática é político-patológica por natureza, em
norm al — logo, com a produção de diferenciações cada vez
todos os casos: tanto no sentido trans(individual/situacional)
m ais efetivas. O p sicótico, no sentido desestru tu rado, é o
quanto no personalizado, para se adequar aos contornos da
“trapo” hum ano produzido pelo bloqueio da tendência dese-
corporalização individual. A individualização dessa patologia
jan te pela im posição da indiferenciação com o única alter
soberana ocorre quando a tendência sociopática im pessoal
nativa à norm opatia.19 O p sicótico, no sentido p atológico,
perde ou renuncia ao seu poder transindividual fundacional
tra z a indiferenciação que bloqueia o desejo supernorm al
e vira monossituacional. Isso ocorre por força da privatização,
num a expressão frenética, pressurizada pela colisão do ape
na retirada do campo relacionai da animalidade (e até mesmo
tite contra um im passe. Em v e z de m onum entalizar a dife
do seu representan te hum ano atrofiado, a esfera pública).
rença mínima, o psicótico a declina na velocidade de dobra,
A so cio p atia, ta n to no nível individual qu an to no ju ríd ico-político, é a tendência antivital que estrutura a política
19 Deleuze e Guattari, O anti-Edipo op. cit., pp. 15,34-35,121-123.
136
humana. Ela abarca as tendências norm opáticas e psicóticas,
137
absorvendo ambas em seu m ovim ento soberano. Todos os
com o um a cam ada de papel de parede. N esse caso, som os
regimes de soberania, não só o fascismo, são regimes sociopa-
ativam ente encorajados a confundir a figura pintada com o
ticamente mistos que abarcam esses níveis e tendências. Cada
papel de parede. E poderia ser diferente disso, quando o papel
um inventa a própria resolução dinâmica para sua respectiva
de parede da identificação se sobrepõe à pesada moldura da
tensão constitutiva entre os polos norm opático e psicótico.
distinção zoé/bios? A operação de sobreposição id entificatória é alcançada
Uma simples visita ao zoológico é uma instanciação menor dessa estrutura demasiado humana: um conto de moralidade
através de projeção. Som ente em oções projetadas são sufi
peludo, plumado ou escam oso que repete um a variação zoo-
cientem ente flexíveis para driblar as grades, passando por
-lógica da história da política humana. A rigidez neurótica da
cima da segregação que sua própria operação pressupõe. Se
separação zoé-animal/&zos-humano não é suficiente para pre
psicose significa cair num a zona de indiferenciação, então
venir que se forme uma zona de indiferença. O zoológico, na
projeção identificatória se qualifica com o um grau variante
verdade, favorece ativam ente a sua form ação, por meio de
dela. Com o uma confusão categorial, situa-se no espectro psi
suas atividades interpretativas e de relações públicas. Uma
cótico, mas numa de suas pontas, bem próxima do normopata,
constante dessas atividades é a hum anização dos animais.
compartilhando alegremente de sua generização normativa e
Eles são conhecidos p elo nom e, escolh idos com a devida
de seus gêneros narrativos. A operação de projeção identifica
atenção ao quesito fofura. Seus rom ances e os nascimentos
tória injeta um a dose controlada de histrionism os parapsicó-
deles resultantes, não m enos que suas lastim adas m ortes,
ticos na instituição do zoológico. Abrangendo o normopático
geram sempre notícia. Todo o possível é feito para incitar o
e o psicótico ao seu m odo, aplica um toque final sentim ental
público hum ano a se identificar com os anim ais do zo o ló
à estratificação sociopática específica do zoológico.
gico a fim de arrecadar fundos. Uma confusão identificatória é sobreposta à separação categórica inerente à instituição
A figura exclusivam ente incluída do animal com o definido pela zoé some de vista, ficando atrás do papel de parede zoo-
do zoológico. Sabemos de que lado das grades nós estamos.
-lógico. Os animais agora têm rostos e pensam os ver nos seus
Ainda assim, não sentim os alegrias e aflições pelos animais?
olhos a imagem refletida de nossa própria humanidade. Isso
N ão com partilham os vicariam ente de suas vitórias e derro
facilita o desconhecim ento dos visitantes acerca da natureza
tas? O zoológico não é apenas um local de confinam ento, é
da política e da política da natureza que testemunham.
tam bém a porta de entrada para um melodrama que dota d e ,
A chave da operação é uma conversão do afeto dominante
bios os seres que são consignados à definição categórica de zoé.
da situação. O horror ao visível sufocamento da vitalidade dos
Os contornos felpudos dessa mútua inclusão em ocional não
animais é convertido em diversão — a diversão, em grande
substituem a dura exclusão constitutiva da política humana.
m edida, é reconhecer-se no outro. É claro que a operação
Eles se acrescentam a ela, paralelam ente e em outro nível,
nem sem pre funciona. As crianças, que são seus principais
ou com o um palimpsesto; ou, ainda, com o um a sobreposição
alvos, são frequentemente as menos capazes de negligenciar o
decorativa aplicada às duras paredes da soberania hum ana
horror e fazer vista grossa para a singularidade do animal, ao
138
139
passo que os adultos que as acompanham, sedentos por uma
do zoológico com o um território de encontro interespecífico
pausa divertida no trabalho duro de criar a próxim a geração
que produz, dele, um a distorção anam órfica (ana-antropo-
de normopatas, adicionam histrionicamente seus esforços em
m órfica)? M anter um olho na anam orfose é crucial porque
doses identificatórias. Q uando isso funciona, o que vem os
a superfície de identificação não é, de maneira alguma, um
é uma encenação do cinism o estrutural da p olítica humana.
mapa não distorcido da estrutura da política hum ana à qual
O cinism o consiste no revestim ento da barbárie estrutural
forn ece suporte m oral. O borram ento da estrutura é um a
de sua exclusão inclusiva com uma superfície humanizadora
parte funcional dessa instanciação particular da estrutura.
aplicada. Esse é um exem plo do tipo de antropom orfização
Em outras palavras, enqu an to um gesto de m apeam ento,
que m erece ser veem entem ente denunciada. C o m o um a p o lític a anim al deve lid ar com a p o lítica
isso não cobre propriam ente o território ao qual aplica sua m etacam ada, no sentido de ligar cada ponto de sua superfí
humana da estrutura zoo-lógica, dado que sua estratégia pre
cie a um ponto correspondente no território. Enativam ente,
ferida não é a denúncia? Às vezes a denúncia é necessária,
o mapa é, na verdade, um a peça adicionada à estruturação
mas nunca é o suficiente. A política animal sempre busca uma
m ultinível do território. Ele é um a parte disso, com uma fun
m aneira de alavancar a criatividade, m esm o nas situações
ção seletiva em relação ao território do zoológico: editá-lo
mais fortem ente fechadas e passíveis de denúncia, abrindo
distorcidam ente.
um a fresta pela qual a ten dên cia supernorm al consiga se
O que é editado anamorficamente é o fato de que há uma
safar, alçando voo em direção à superação do que está dado.
atividade de outra natureza que segue em frente, a despeito
Onde é que um a abertura com o essa pode ser encontrada
da estruturação. Essa atividade segue esburacando m inim a
na face hum anizada do confinam ento estrutural do animal?
mente a estrutura, impulsionada pela pressão de um apetite,
No confinam ento do animal à dependência total ao que lhe
não totalm ente sufocado, de transbordá-la. Por mais rígida
é zoo-logicam ente dado? Na escravidão corporal do animal à
que seja a separação categorial subjacente, e por mais senti
mão (ou ao polegar opositor) daquele que o trata, m atizado
m entalm ente efetivo que seja o seu revestim ento, resta um
som ente com um a cam ada de cinism o sentim ental? Todas
resíduo animal incontido. Também acontece outra coisa que
essas perguntas resum em -se a uma: com o é que, apesar de
não pode ser reduzida nem à separação m utuam ente exclu
tudo, o zoo-lógico ainda é lúdico?
siva entre zoé e bios, nem à zona com pensatória de indiferen-
Bateson inclui, de form a interessante, o “histrionism o” no.,
ciação da identificação projetiva, nem sequer à sociopatia de
“com plexo de fenôm enos” que com põem o cam po da brinca
seu funcionam ento zoo-lógico conjunto.21 Algo ainda se move
deira, tudo isso envolvendo algum tipo de jo go na distinção entre o m apa e o território.20 A superfície da identificação zoo-lógica não poderia ser considerada um mapa projetivo 20 Bateson, “A Theory of Play and Fantasy” op. cit., p. 181.
140
21 No vocabulário de O anti-Edipo, a estrutura da política humana é a “ represen tação recalcante” do excepcionalismo humano que serve como uma isca para o desejo animal. Deleuze e Guattari (O anti-Édipo op. cit., pp. 157,218-220) argumen tam que o discurso psicanalítico é parte integrante da representação recalcante da família edípica. O pensamento de Agamben, por todo o seu interesse, tem de
141
de m odo im perceptível por baixo da superfície do teatro sen
estrutura.23 É sempre esse o caso. Sempre há m ovim entos de
tim ental das em oções humanas, percolando distorcidam ente
fuga incipientes até m esm o na estrutura mais humanamente
a estrutura da qual constitui o fundo.
im perm eável, esburacando-a com minifissuras, am eaçando
A estrutura da política humana não é tudo que há em vigor.
m iná-la com o um dique com vazam entos. Há sem pre uma
Há um a sobra de política animal, um excesso residual disso
tendência supernorm al a escapar, até m esm o dos prazeres
que se m ove no fundo do fundo, na tendência autotransbor-
m acios da sentim entalidade que com pensa o horror da bar
dante que preenche o cam po do continuum da natureza. O
bárie da qual o humano mais se orgulha, talvez mais arrogan
duo zoo-lógico figura/fundo — o mapa distorcido e o terri
tem ente onde o orgulho passa despercebido com o questão
tório institucional, respectivam ente — destacam -se contra
política: a excepcionalidade do seu ser específico.
esse fundo movente. O fundo da tendência supernormal ain-
“ É provável” , escreve Bateson, “que não som ente o histrio-
da-movente enquadra duplamente a estrutura zoo-lógica em
nism o, mas tam bém a espectatorialidade, devam ser incluí
seu próprio subterraneam ento potencial. Representa a des
dos nesse cam po” da brincadeira.24 Se a espectatorialidade
territorialização potencial da estrutura. Esse fundo de sub
faz parte do cam po da brincadeira, então não podem os con
terraneamento nada mais é que a autoafirmação da vitalidade
siderá-la um a via de m ão única. C om o Bateson sublinha, no
animal, o entusiasmo do corpo autocondutor que nunca pode
cam po da brincadeira sem pre se trata de diferentes papéis
ser inteiram ente acalmado.22 Comoções vitais microagitam a
m utuam ente incluídos no m esm o “ com plexo” . O com plexo inclui m u tu am en te disparando ações e suas “recíp ro cas” : as ações do o u tro ou dos o u tro s tra zid a s para a b rin ca
ser considerado como parte integrante da representação-recalcante da estrutura zoé-bios, na medida em que impõe a alternativa infernal entre essa ordem de dife renciação e indiferenciação humano-política. Isso leva ao impasse do potencial negativizante. Para Agamben, o mais alto potencial, a “pura potência” , só pode ser construído como o “poder de não”: a potência suspensa e sem saída, numa zona irredutível de indistinção que mantém o agir e o não agir e o pensar e o não pensar numa contradição insolúvel — ou, para sermos mais precisos, a única saída não é a afirmação ou a apetição, mas a indiferença elevada à última potên cia, onde a contradição se dobra sobre si mesma em uma negação da negação (Agamben, Potentialities: Collected Essays in Philosophy, trad. ing. de Daniel Heller-Roazen. Stanford: Stanford University Press, 1999, pp. 141,143). O pensamento ■ de contradição e negação só consegue captar “condições lógicas de possibilidade” (causa formal), o que ele encontra não nas lacunas dinâmicas do mundo, mas na aporia (causa formal elaborada numa teologia negativa, na qual àquilo que é considerado paradoxo estéril, na perspectiva aqui desenvolvida, atribui-se a um poder messiânico). zz Sobre o chão sem fundo da experiência vital que o ultrapassa, cf. Deleuze, em Diferença e repetição op. cit., p. 138) e o item “Segunda característica: afirmar a diferença” do mesmo livro.
142
deira pela fo rça transind ividu al da tran sfo rm a ção-in-loco que o gesto lúdico enativa.25 Q uando aplicado à espectatoralidade, esse p rincíp io tem im p licações im portantes. Em v e z de um a via de m ão única, a espectatorialidade tem de ser entendida com o um a relação. A relação deve ser co m preendida com o recíproca, com o um a atividade bidirecional que abarca o diferencial entre os papéis que se reúnem em contraponto. Isso significa que todos os envolvidos são, de algum a m aneira, participantes ativos, apesar do ostensivo
23 Isso é o que chamo de “atividade nua” (Massumi, Semblance and Event op. cit., pp. 1-3,10-11; 2010), discutida abaixo no suplemento 3, ponto 4. 24 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 182. 25 Ibid., pp. 181-182.
143
m onopólio de atividade de um lado ou de ou tro (no teatro,
imperceptível, deixado para trás na operação humano-política
do lado dos atores; no zoológico, do lado dos espectadores
da conversão afetiva? Esse algo extra poderia ser um resíduo
que peram bulam e identificam -se projetivam ente). N ão há
inconversível da simpatia animal? Pertencente a outra política?
jogador passivo. A brincadeira é um com plexo dinâmico, um
D ebaixo dos pegajosos paralelepípedos da estru tu ra da
cam po integral de ação diferencial, aglutinando-se diversa m ente em m útua inclusão.
hum ana ja z a praia da sim patia animal. Ou: às m argens do
sentim entalidade identificatória e do horror de sua política
“O ” espetáculo não é monolítico. Para utilizar uma frase de
mar indiferenciado do sentim ento humano submergindo os
Ruyer, é um “com plexo espetáculo-espectador”.26 A relação
destroços da separação zoé-bios jazem os turbilhões da maré
espectatorial é um campo de atividade distribuído. É saturado
da animalidade transindividual, traçando de um a só v e z as
pela reciprocidade da relação. Quando os m acacos estavam
linhas diferenciais de seus movimentos tendenciais nas areias
brincando diante do antropólogo que os observava, o antropó
de todos os continentes, independentem ente das distâncias
logo estava ativamente implicado com eles no complexo lúdico
estruturais que os separam. Ou ainda: ladeando e fissurando
que seus gestos ocasionavam , numa transform ação-in-loco
a em oção humana ja z o afeto vitalm ente animal.
que arrebatava ambos os lados, de um modo não inteiramente
A sim patia, com o previam ente argum entado, não opera
alheio ao tipo de puro devir duplamente desterritorializante
a partir do ponto de vista de um dado participante. N ão é
discutido no suplem ento 1. Quando a feliz m ultidão de pro
uma ancoragem individual na situação a partir de um ângulo
jeções aguarda em fila pela oportunidade de ceder a alguma
particular. É um a perspectiva de reciprocidade situacional
projeção sentimental com as celebridades que são os pandas
de todos os ângulos. É m enos um a perspectiva situada do
recém-nascidos, os animais observados entram imediatamente
que uma perspectiva situacional: uma inspeção imanente da
num complexo campo de relação com a multidão humana atra
mútua inclusão diferencial das ações potenciais de tudo o que
vés das grades. Há devires em curso, a pé e a pata; e se não
foi gesticulado no acontecim ento que acaba de se deflagrar.
passam de agitações, elas são tudo, menos imperceptíveis.
Vim os que a reação de um participante já foi incluída poten
O anim al dentro da jaula não está tão con tido quanto
cialmente na ação do outro, presente em germe na -esquidade
parece num primeiro momento. Talvez a maior arma da polí
do gesto lúdico. A simpatia é essa im ediatez transindividual.
tica humana seja fazer parecer que ele esteja. Acaso não são as
Com o discutido anteriormente, a perspectiva situacional ena-
crianças que sentem o horror, sentindo algo vital através d e .
tivada no ato simpático é chamada, na term inologia de Ruyer,
horror? Algo que é radicalmente alheio à estrutura da política
de “ inspeção absoluta” . Isso é um englobam ento integral
humana e à sentim entalidade indiferenciante e tão humana
da situação no pensar-fazer, na im ediatez da situação, sem
segundo a qual o horror deve ser anam orficam ente conver
o ponto de vista de um a dim ensão suplem entar a partir do
tido? O que elas sentem , intuitivam ente, não é algo extra
qual, com o que de fora, olhar para ou olhar de cima a situação. A simpatia é o entrem eio imanente da situação, diretam ente
26 Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., pp. 203-221.
144
sentido no pensar-fazer da ação por vir.
145
O que é sentido na simpatia é aforma dinâmica da situação.
tendencial da situação. É o “o que” que está acontecendo, na
Isto é sentido não a partir do ponto de vista de um ou outro
medida em que orientado por um m ovim ento tendencial que
participante, mas a partir da perspectiva situacional daquilo
arrebata a situação. Há uma genericidade no desdobramento
que, potencialm ente, passa entre eles. A simpatia não é iden-
tem ático, no qual os parâm etros gerais do resultado estão
tificatória e não envolve, de maneira alguma, um a indiferen-
dados de antem ão. N a brincadeira, o resultado genérico é:
ciação. Ela m ovim enta a experiência com um entendim ento
expressar inventivam ente o entusiasm o do corpo. N o com
enativo do diferencial entre os respectivos papéis a serem
bate, é: lutar ou fugir, ganhar ou perder. Na predação: com er
interpretados reciprocam ente entre os participantes: o que
ou ser com ido. Apesar de os parâm etros estarem geralmente
Ruyer chama de “tem a form ativo” da situação.27 O tem a for-
dados e serem entendidos intuitivam ente desde o prim ei
m ativo é o que foi cham ado anteriorm ente de “form a dom i
ríssim o gesto, o fim nunca corresponde inteiram ente a uma
nante” . Para retom ar ao principal exemplo utilizado no corpo
conclusão prévia, e isso tam bém é imediatamente entendido
deste ensaio, o com bate é o tem a form ativo tan to da luta
a partir da primeira descarga gestual de atividade que dispara
quanto da luta de brincadeira, a diferença está na ponderação
o acontecim ento. A abertura vai além da incerteza sobre a
relativa do fator criativo da mais-valia de vida que advém com
qual incidirá o fim alternativo genérico. Há sempre tam bém
o entusiasmo do corpo, relativa ao valor de sobrevivência que
a possibilidade criativa de que uma improvisação espontânea
advém com o esforço corporal diante dos imperativos dados
— um a invenção estética enativa — inflexione o desdobra
da situação (ou entre a intensidade da abstração vivida e a
m ento tendencial, conferindo à genericidade do tem a uma
com pulsoriedade da im portância vivida).
virada singular, um algo extra que supera o conhecido “ o que”
O tem a está de um lado e do outro. Está em todos os luga
do que está acon tecen d o com um im previsto “ co m o ” isso
res da situação, d iferencialm ente distribu ído pela diversi
terá acontecido. O “ entendim ento” sim pático da orientação
dade de papéis definidos na brincadeira. Aqui e acolá, e por
tendencial do tema, incluindo um entendim ento intuitivo da
toda parte distribuído, o tem a é “não localizável” .28 É o sabor
m aneira pela qual sua dadidade genérica poderia ser supe rada no acon tecim en to por vir, advém com a im ediatez da
27 Ibid., pp. 17-18. Bergson também fala de “instinto” em termos de temas. Com parando o comportamento instintivo em insetos sociais, ele diz que os comporta mentos não são reunidos parte a parte, mas ocorrem em blocos temáticos cujos elementos sofrem, todos, variação integral. “ Com toda probabilidade, a maior ou menor complicação dessas diversas sociedades não se prende a um maior ou menor número de elementos adicionados. Encontramo-nos, antes mesmo, diante de um tema musical que se teria primeiro transposto, como um todo, em um certo número de tons e sobre o qual, ainda como um todo, teriam sido depois executa das variações diversas, umas muito simples, as outras infinitamente engenhosas. Quanto ao tema original, ele está por toda parte e em parte alguma” (Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 186, tradução modificada). 28 Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., 1952, p. 12.
146
“ consciência prim ária” . A consciência prim ária que advém com a simpatia é uma consciência relacionai e situacional. Isso significa, uma vez mais, que é não localizável. Não é redutível à consciência de um indivíduo. É o com partilham ento recíproco de indivíduos envolvidos na consciência da situação. É a consciência dife rencial da integralidade da situação: a unidade dinâm ica de sua ação enquanto aquilo que inclui m utuam ente o diverso. E o entendim ento intuitivo do que não afeta um sem afetar o
147
outro. Em outras palavras, é a consciência afetiva do dinamismo
sentir em erge com o que de um a dim ensão suplem entar, a
da situação, registrando o “ o que” que está tem aticamente em
uma distância mediada. Isso modifica a compleição afetiva da
jo g o nisso com o “co m o” do desdobram ento tendencial do
situação. A ponderação muda a favor do afeto categórico em
tema, incluindo tanto a genericidade da situação quanto sua
jogo e de seu tem atism o genérico, convertendo efetivamente
inflexão potencial direcionada à evolução supernormal.
a absorção primária pelo indivíduo no afeto transindividual
Sim-: ju n to / patia: ser afetado. A quilo com o que a cons
da situação numa em oção privadamente possuída e conven
ciência dinâmica “ sim patiza” é aforma dinâmica do que está
cionada. Essa conversão interiorizante do com plexo afetivo
por vir, afetando a um e a tod os, diferentem ente ju n tos e
transindividual na m oeda da em oção humana convencional
orientados tem aticam ente. Em resumo, a consciência afetiva
é o que traz a situação para a seara da política humana.29 Ela
é a experiência im ediata do afeto transindividual do acon te
traduz simpatia animal em emoção humana.
cim ento que se desenrola. “A feto ” é utilizado aqui sem um
Algo se perde nessa tradução hum ano-política. A interio-
qualificador para englobar tanto o afeto de vitalidade quanto
rização do afeto categórico, m inim izando o entusiasm o do
o afeto categórico, um a v e z que eles se reúnem tem atica
corpo do afeto de vitalidade, confina a experiência em sua
m ente num com plexo. A sim patia é a consciência primária
própria generalidade. É a genericidade do tema que agora tem
do complexo afetivo na brincadeira. Ela inclui uma percepção,
o maior peso. O potencial inventivo singular da situação é dei
im ediatam ente sentida, da compleição afetiva da situação (a
xado de lado, bem com o sua dimensão transindividual. Essa
textura do afeto de vitalidade e do afeto categórico; o modo
produção da em oção hum ana individualizada é altam ente
com o se misturam e sua proporção tendencial).
política, onde quer que ocorra. É um m odo de m inim izar o
A sentimentalidade humana edita a compleição. Ela salienta
p oten cial inventivo ten dencialm ente em jo go. Ela ajuda a
o afeto categórico, devidam ente convertido, e enfatiza de
, assegurar que o que transpira no final seja uma refundação
m odo seletivo seu “o que” tem ático. Isso m inim iza o “com o”
de um a antiga ordem baseada em distinções categóricas já
singular do elem ento do afeto de vitalidade. Enfatiza a generi
genericam ente in loco. Ela cria um a situação na qual o tem a
cidade da situação em detrimento da sua singularidade e silen
pouco provavelm ente excederá seus parâm etros e as alter
cia o seu dinamismo. Com o resultado desse silenciamento da form a dinâm ica do acontecim ento, o “o que” fica parecendo
nativas já dadas neles inscritas. Considere uma discussão de
menos uma dimensão de um acontecimento e mais uma coisa,
traçado de antem ão. V ocê não sabe com o vai term inar só
Ele é sentido com o o conteúdo qualificado do acontecim ento.
porque ainda não é certo qual dos dois finais m utuam ente
casal genérica. Seu desdobram ento está, em larga medida,
Através de projeção identificatória, a sentimentalidade reflete
exclusivos vai acontecer (ruptura ou reconciliação). Em todas
o conteúdo relacionai de volta no indivíduo. O “o que” de que
as situações nas quais a experiência do afeto de vitalidade foi
se trata é sentido com o algo que cada indivíduo tem dentro de si, com o um a função de seu ponto de vista particular na situação. Ponto de vista: um panorama sobre o conteúdo. O
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29 Sobre a conversão do afeto envolvente em conteúdo emocional, cf. Massumi, “Fear (The Spectrum Said)” op. cit., pp. 37-38.
149
desenfatizada em relação ao afeto categórico, de modo que o
ao m elodram a, o qual dedilha as cordas do já reconhecível
lado em ocional da m oeda afetiva sempre caia com a face para
no violin o da sensação. O m elodram a, e mais am plam ente
cima, há duas alternativas hedônicas: prazer ou dor; feliz ou
o histrionism o, não é só um a variação da em oção hum ana
triste. Hollywood, aí vam os nós.
entre outras. É seu epítom e.
A intensidade do entusiasm o do corpo anim al é, por co n
A em oção hum ana é a sensação lim itada a repetir-se, na
traste, não hedônica; e com porta uma carga de sensações com
medida do possível, dentro de parâmetros conhecidos: a velha
qualquer núm ero de resultados m utuam ente inclusivos a
ladainha. A intensidade do afeto de vitalidade, por outro lado,
cada passo do cam inho, não som ente dos dois convenciona
sempre enfatua vitalm ente a si mesma. Seu confinam ento é
dos. A intensidade é, por natureza, qualitativam ente extra:
contravital. É a antivida animal clam ando contra o excesso
um a mais-valia de vida. Ela responde apenas a critérios ima
inventivo. A excessividade que resta na emoção é uma expres
nentes pertencentes à sua própria carga de potencial, não a
são do afeto de vitalidade e do entusiasm o do corpo pressio
critérios genéricos de ju ízo aplicados de fora. Em si, é sin
nando para se fazer sentir. O restante do excesso na emoção é
gularm ente inqualificável. “F e liz” ou “triste ” , até m esm o
vestigialmente lembrado na raiz etim ológica da palavra. E-mo-
“prazer” ou “dor”, nem sequer com eçam a expressá-lo. Feliz e triste, dor e p razer são experim entad os em graus quan titativo s, com o um term ôm etro de sensação vital, ou um
vere: m over(-se) para fora; superar-se dinamicamente. Quando o entusiasmo do corpo vem a ser emocionalmente contido, fica pressurizado p elo confinam ento. Só pode ser
p lu v iô m e tro cap tan d o lágrim as. A in ten sid a d e da v ita li
expresso de m aneira distorcida. Ele se expressa não com o
dade m arcada pelo entusiasm o do corpo é im ensurável. É
um m ovim ento de autossuperação-em -devir, m as apenas
p uram ente qualitativa. N ão há com o m edi-la. É som ente p en sável-realizável, sen tid a com um e x ce sso e m o cio n a l
com o um (de form a freqüente e em baraçosa transform ado
m ente inexpressível de sua própria qualidade de vida. Em
erroneamente com o paixão animal). A sentim entalidade iso
outras palavras, só pode ser intuitivam en te entendida ao
la-se até m esm o dessa saída de em ergência histriônica, cons
vivo. N unca pode ser com pletam ente analisada, aposteriori,
trangida aos m oderados graus medianos do term ôm etro do
em clichê) estar em ocionalm ente fora de controle (tom ado
co m o em oção (que sem pre convida a um a superinterpre-
histrionism o humano-emocional. Na escala humana de em o
tação, quando não dada com o certa). É algo sobre o que de
ção, a simpatia animal é traduzida em seu análogo humano
fato podem os pensar; mas cada vez que pensam os nela, esta
esmaecido: empatia. O epítom e dessa tradução é encontrado
m os efetuando-a de novo, de m odo diferente, num p o ten
no m elodram a (a mágoa e a pena).
cial realmente sentido. O conteúdo em ocional, isolado com o
A sentim entalidade faz com o se não houvesse nenhum a
tal da força perform ativa do afeto de vitalidade, está sob o
saída além das alternativas já conhecidas. M as sem pre há
dom ínio daquilo que já está dado. É um a das expressões
algo que escapa ao confinam ento, ainda que isso não co n
m ais hum anas da dependência genérica em relação ao que
siga achar por onde se expressar. Há um a contrapressão ten-
já foi tem aticam ente expressado. É por isso que ele se presta
dencial ao confinam ento. Há sem pre algo revolvendo nas
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151
m icrofissuras da estru tu ra da personalidade hum ano-polí-
entendida no sentido imitativo, nunca faz “ com o se” .30A im i
tica, preparando-se para vazar. É tão anim alm ente certo ser
tação é a identificação quando projetada de volta à sua fonte,
esse o caso que se torna possível utilizar a sentim entalidade
sobrepondo a form a do outro no espectador. É uma sobrepo
com o um índice contraintuitivo de um devir-em-espera. Há
sição de volta à fonte a partir da qual em ana a identificação
um a positividade paradoxal ao sentim ento com o um signo
projetiva discutida acima. Em ambos os casos, a zona de indi
do devir. É dem asiado fácil denunciar a sentim entalidade
ferença identificatória serve com o meio de transporte para a
(com o acabamos de fazer). Mas talvez a denúncia não venha
mesmidade da forma. Na visita ao zoológico, a antroforma se
ao caso. Talvez o que esteja em questão seja outra coisa. E tão
anamorfiza no animal. Na imitação, o m ovim ento vai na dire
fácil denunciar a sentim entalidade que a própria denúncia
ção oposta. É a forma do animal observado que se anamorfiza
se torna uma m elodia embotada. É m uito fácil investir em o
no espectador humano, revestindo-o com um m otivo animal.
cionalm ente na denúncia. O problem a é que a denúncia, ela própria, é m uito humana.
É um a reprojeção secundária — um a retrojeção distorcida — condicionada por um a projeção ana-antropom orfizante
Denunciar é uma coisa. Traçar uma cartografia do gesto vital
prévia. Som ente hum anos im itam animais. Até m esm o nas
é outra. Todas as ações e sensações são gestos vitais de uma
situações mais íntimas e humanamente ordenadas nas quais
maneira ou de outra. Até mesmo o mais antivital dos gestos
os animais convivem com os hum anos, no papel do animal
borbulha de vida em algum nível. Uma cartografia dos gestos
de com panhia ou na criação de animais, eles jam ais imitam
vitais registra essas borbulhas. Ela desce ao nível das micro-
os hum anos. Eles se relacionam com eles. N esse sentido, a
fissuras para intuir qual o potencial de singularização que elas
identificação só vai num sentido.31
anunciam . Isso só pode ser uma cartografia vivida fazendo com que o tema seja de novo formativo — infectável de uma maneira inventiva, vitalmente improvisável. Em vez de reprisar a m esm a e velha trilha sonora, a cartografia vivida do senti mento reencena a situação, ajustando-a para que ultrapasse a si mesma. Isso requer que o indivíduo assuma completamente sua implicação transindividual na situação. O confinam ento na emoção é traduzido de volta em lampejos de potencial de escape transsituacional. A reterritorialização da paixão animal em emoção humana é atraída de volta para uma desterritorialização potencial. O humor emocional basicamente estático é traduzido de volta ao modo condicional da possibilidade ativa. A sentimentalidade “faz como se” ... (como se não houvesse saída além da alternativa já conhecida). A cartografia vivida,
152
jo Como parte de uma constelação conceituai distinta, o “ como se” pode ser tomado num sentido de potencialização estética. Cf. “Just Like That” (Manning e Massumi, Thought in the Act op. cit., pp. 31-58), no qual a questão conceituai é a relação entre linguagem e movimento. 31A atenção crítica à dinâmica humana de identificação possibilita estratégias para uma reivindicação de treinamento e de domesticação, a despeito das assimetrias de poder autoevidentes, como nos trabalhos de Donna Haraway (When Species Meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007) e Vinciane Despret (Despret e Porcher, Être bête. Paris: Actes Sud, 2007). Parenteticamente, há uma interpreta ção errônea, em Haraway, da infame asserção de Deleuze e Guattari de que “todos aqueles que amam os gatos, os cachorros, são idiotas” (Mil platôs, v. 4 op. cit., p. 21). A citação é tomada fora de contexto. Deleuze e Guattari estão falando especifica mente acerca da familiarização edípica dos animais domésticos (gatos e cachorros tratados sentimentalmente como crianças humanas). A crítica é contra esse gesto humano de identificação projetiva. Ela não se dirige, de modo algum, a cães e gatos, ou pets em geral — ou tampouco a humanos que têm animais de estimação, em geral. Qualquer animal, continua a passagem, até mesmo cães e gatos, até mesmo
153
A cartografia vivida jam ais im ita. Seu elem en to não é o
dim ensão de desterritorialização potencial na brincadeira.
im itativo “ com o se” . E o “ assim” inventivo. O “assim ” é o
Algo borbulha, e a catálise incipiente que isso representa per
“ com o se” com um detalhe extra que excede todas as expecta
tence não à form a animal entendida num sentido estático e
tivas. Fazer “ como se” é reproduzir uma forma. “Fazer “assim”
substancial, mas sim à forma dinâmica da consciência primá
confere à form a um a virada singular. Traz autossuperação à
ria simpática, inspecionando a situação a partir da perspectiva
form a, não por m eio de projeção, mas de um gestual -esco
animal integral de sua capacidade de superar o que está dado.
criativamente catalítico. Quando uma criança humana brinca
N ão subestime os poderes vitais de “ im itação” animal.
de animal, é fácil confundir o que ela está pensando-fazendo
Pense num a criança brincando de animal. D ecerto é fácil
com um jo g o hum ano de im itação, com o se a criança esti
sentim entalizar a cena. Mas e se a levarm os a sério, isto é, se
vesse tentando fazer com que a própria forma se conformasse
observarmos os seus aspectos que são verdadeiram ente lúdi
com a do animal. É tudo tão fo fo e facilm ente sentim entali-
cos no sentido mais criativo? Sim ondon escreve que a cons
zado. Mas, de acordo com Ruyer e Simondon, a imitação é um
ciência do animal de que a criança dispõe envolve muito mais
conceito mal construído. N a realidade, nunca simplesmente
que um simples reconhecimento de sua form a substancial.33E
se imita uma forma, no sentido de se conformar à forma dada
só olhar para um tigre, ainda que de maneira fugaz e incom
de outro ser. Pode-se certam ente fazer com o se estivesse efe
pleta, seja num zoológico, livro, filme ou vídeo, e pronto! A
tivam ente imitando. Entretanto, o que acontece é outra coisa,
criança é entigrezada. Transform ação-in-loco. A própria per
na verdade, tácita e inexpressivamente. Com o diz Ruyer, “só
cepção é um gesto vital. A criança im ediatam ente com eça não
se pode imitar aquilo que se é quase capaz de inventar”.32 Aquilo
a imitar a form a substancial do tigre que acabou de ver, mas
que é sentim entalm ente considerado imitação é, na verdade,
a dar vida a ela — dando a ela mais vida. A criança brinca de
a catalisação de um germ e de invenção. Ele pode cair no solo
tigre em situações nas quais nunca viu nenhum tigre. Mais que
infértil da fam ília hum anam ente-política, com sua inclina
isso, ela brinca de tigre em situações em que nenhum tigre
ção à edipianização. Ainda assim: sem pre há aquela outra
jam ais foi visto, nas quais nenhum tigre terreno jam ais colo cou a pata. A criança imediatamente se lança num movimento
animais de zoológico, pode participar de devires com os humanos (p. 22). “ Haveria animais edipianos, com quem se pode ‘brincar de Édipo’, fazer família, meu cachorrinho, meu gatinho e, depois, outros animais que nos arrastariam, ao contrário, para um devir irresistível? Ou então, uma outra hipótese: o mesmo animal poderia estar tomado em duas funções, dois movimentos opostos, dependendo do caso? (p. 12, tradução modificada). Deleuze e Guattari claramente pendem para o lado da segunda hipótese: não é uma questão de uma característica essencial qualquer dos humanos ou dos animais, mas sim de “funções e movimentos opostos” . 32 Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., p. 138. Cf. “É sempre o imitador quem cria seu modelo e o atrai” (Deleuze e Guattari, Müplatôs, v. 1 op. cit., p. 23). Sobre a crítica de Deleuze e Guattari acerca da imitação em relação com o devir-animal, cf. ibid., pp. 19-20; Müplatôs, v. 4 op. cit., pp. 17-20).
154
de superação do que está dado, perm anecendo de m odo notá vel fiel ao tema do tigre — não convencionalm ente, mas a partir do ângulo de sua potencialidade processual.34
33 Simondon (Uinformation à la lumière des notions deforme et d’information op. cit., p. 236). Cf. também o comentário de Muriel Combes (Gilbert Simondon and the Philosophy ofthe Transindividual op. cit., p. 27). 34 Para uma análise complementar de um encontro humano-animal lúdico, num zoológico, entre um bonobo adulto e um adulto humano, cf. Manning, Always More Than One op. cit., pp. 210-214).
155
Perm anecer processualm ente fiel a um tem a vital não tem
N ão há sem elhança entre a form a da criança autoperfor-
nada a ver com reproduzi-lo. Pelo contrário, envolve dar a
mando tigrescam ente e a form a visível, corpórea de um tigre.
ele um a nova interpretação, no sentido m usical de d esem
A criança não recebe e reproduz um a imagem visível do tigre.
penhar, dele, uma nova variação. A criança não imita a form a
Em v e z disso, a tigretude anima visionariam ente a corpora
corporal visível do tigre. Ela prolonga o estilo de atividade
lização da criança, na direção de um a diferenciação. É pre
do tigre, tran sp osto nos m ovim en tos da própria co rp o ra
cisam ente esse processo que é definidor da imagem. N ão há
lidade da criança. O que a criança captou fo i um vislum bre
algo da ordem de uma imagem passiva. N ão há algo da ordem
do dinam ism o do tigre com o um a form a de vida. A criança
de um a im agem privadam ente recebida na interioridade do
viu o afeto de vitalidade do tigre: os poderes de vida p oten
sujeito. Todas as im agens são ativas e suas atividades ocor
cialm en te criativos en vo ltos na form a co rp o ral visível. O
rem situacionalm ente, ou seja, relacionalm ente. O tigresco
afeto de vitalidade do tigre perpassa o que um a análise fo r
ruge enquanto form a dom inante dessa situação de brinca
mal pode isolar com o sua form a corporal, mas nunca co in
deira. Ele carrega um potencial análogo enquanto oposto ao
cide com a form a visível. O s poderes de vida que chegam à
poder conform ativo. O potencial análogo é o poder da varia
expressão através das deform ações da form a arrebatam a
ção integralm ente conectada, da m útua inclusão diferencial.
form a para dentro de seu próprio dinam ism o supernorm al,
A criança não p roduz um a corresp on d ên cia conform ativa
o qual se m ove através da situação dada em direção a outras
entre sua própria form a corporal e a do seu análogo de tigre.
m ais abaixo da fila. Esse m ovim ento transsituacion al está
Ela em presta entusiasticam ente sua própria corporalidade à
em excesso em relação à form a. É o próprio m ovim ento de
in-form ação lúdica por m eio da form a dom inante da tigre
autossuperação processual da form a visualm ente dada. Isso
tude sob deform ação visionária e variação.
é o que a criança viu — tu d o num instan te, num lam pejo.
Os g esto s lú d ico s da criança en vo lvem um a elaborada
N ão só um a form a animal genérica: um m ovim ento vital sin
análise enativa daquilo que está dado nas situações em que
gular arrebatadoram ente im anente à form a visível. O que
um tigre possa se encontrar, extrapolando as posturas típi
as crianças veem : a im anência de um a vida. N ão “ o ” tigre:
cas da form a corporal visível e lançando-as ao m ovim ento
tigretude. As crianças não divisam a form a do tigre. Elas têm
im provisacional de um a cartografia vivid a que possui sua
um a visão in tu itivam en te e stética do tig re sco com o um a
p rópria atividade. Em que circu n stân cias um tigre ataca?
form a dinâm ica da vida. É isso que elas transpõem quando
O que esse felin o tem que o p erm ite nadar, devorar um a
brincam de anim al. N ão sobre suas próprias form as, mas
criança, escalar um a árvore? Espere: a -esquidade de um
dentro de seus próprios m ovim entos vitais. Isso é o que W hi
tigre é suficientem ente felina para inspirá-lo a escalar, a ser
tehead quer dizer quando afirma que um sinônim o de intuir
determ inado, a ser inventado? Q uando é que um tigre viaja
é “visionar” .35
para ou tros planetas? O que faz um tigre voar? A análise enativa da tigretude feita pela criança não parte das form as
35 Whitehead, Process and Reality op. cit., pp. 33-34.
156
visuais captadas estaticam ente com o posturas. Ela parte de
157
situ ações dinâm icas que esten dem a -esquidade hum ana
identificatório do humano para si m esm o). A criança se situa
para além de todo território conhecido.
no cam po de tensão transindividual da situação, polarizado
As situações de partida são abordadas de uma perspectiva
em co m p o siçã o co n tra p o n tu a l.37 N a brin cad eira in tu iti
que não é a do tigre, mas também não exatamente a da criança.
vam ente visionária da criança, o ponto do tigre in-form a o
De acordo com Simondon, o gesto lúdico de brincar de animal
contraponto do devir-tigre da criança. A relação é imanente.
expressa a “orientação” da situação de partida “ integralmente”,
N ão é uma relação de ação-reação, no sentido corrente, que
como um complexo. Ele explica que, com isso, quer dizer que a
co n ota um a relação extrínseca. O que está em jo g o é uma
situação é captada a partir do ponto de vista de suas “polarida
relação imanente de modulação. A criança não imita o tigre a
des” e “ tensões”.*6 Esse é um modo de dizer que a análise é afe
certa distância. A criança é en-tigrada, numa vivida e infinita
tiva, não (con)formal. As polaridades têm a ver com os papéis
proximidade da tigretude.
diferenciais dramatizados na brincadeira, bem como com seus
Que criança brinca de animal só uma vez? Brincar de ani
potenciais. Cada movimento de uma criança-tigre inclui o deli-
mal é um a vo cação séria. O entusiasm o do corpo na brin
neam ento negativo da ação ou da reação dos outros partici
cadeira move-se de situação em situação, de brincadeira em
pantes na situação, ainda que lá estejam apenas virtualmente.
brincadeira repetidam ente variada. As variações seriais sobre
Esses entalhes de outros papéis traçam a composição afetiva da
a tigretude compõem uma cartografia vivida da corporalidade
experiência: modos recíprocos de afetar e ser afetado na situa
tigresca. Toda form a de dependência em relação ao que está
ção representando a si mesmo na ação-reação. Ação-reação: o
dado, toda form a de dependência vivida a que uma corporali
ponto-contraponto gestual. A “compleição afetiva” da situação
dade tigresca é suscetível é dramaticamente superada. Todas
discutida anteriormente tem a ver com a ponderação relativa
as composições afetivas experimentadas derivam, por extrapolação
do afeto categórico e do afeto de vitalidade. A “composição afe
vital, da polaridade espetáculo-espectador da cena primitiva da
tiva” tem a mesma complexidade a partir do ângulo de como
percepção animal que catalisou a atividade contínua. Todas
os gestos compõem-se em contraponto. Com pleição afetiva e
as variações sobre o com plexo afetivo que se experim enta já
composição afetiva são dois modos complementares de anali
estavam m utuam ente incluídas na form a dinâm ica em brio
sar o mesmo complexo. A simpatia engloba ambos.
nária da unicidade do gesto perceptual que desencadeou as
O ponto principal é que a criança não se coloca na form a
séries de brincadeiras.38
do tigre, tam pouco coloca a form a do tigre em si mesm a (o que, em term os identificatórios, redunda na m esm a coisa, a depender se olham os do ângulo da p rojeção hum ana no animal ou da contraprojeção do animal retornando o gesto
36 Simondon, Vinformation à la lumière des notions deforme et d’information op. cit., p. 236; grifo nosso.
158
37 Cf. a “teoria composicional da natureza” de Jacob von Uexküll (A Foray into the Worlds of Animais and Humans, trad. ing. de Joseph D. 0 ’Neill. Minneapolis: University o f Minnesota Press, 2010, pp. 171-194) e a variação sobre ela realizada por Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., p. 120. Cf. também Deleuze, Espinosa -filosofia prática, op. cit., pp. 127-135). 38 Ronald Rose-Antoinette (Vimage est une expérience, tese de doutorado. Paris: Universidade de Paris 8, 2013), trabalhando especificamente com a imagem cinemática, desenvolve uma ontologia da imagem como “transaparição” consonante
159
A tigretude começa a vazar pelas variações seriais. Com eça a
brincadeira animal do hum ano à m ais alta potência, a uma
superar as situações dadas, nas quais razoavelmente podemos
pureza de expressão supremamente tensorial: o puro extrasser em devir.
esperar que um tigre se encontre, e os m odos de importância que essas situações apresentam. As tensões da corporalidade tigresca in-formam a corporalidade infantil na brincadeira. A prim eira anima im anentem ente a segunda — e, em contra
Qual a utilidade do devir-animal da criança? Para que serve o extrasser? Estritam ente falando: nada. M as e stilo s in ven ta d o s de alça m en to de vo o , m odos
partida, é animada por ela. As séries de repetições estendem
im provisados de ultrapassar o que está dado na abstração
as tensões tigrescas, prolongando-as a um tensor individual. As
vivida exploratória e órbitas experim entais de fuga das situa
tensões situacionais colocadas em jogo subm etem -se a uma
ções conhecidas e de seus tem as gen éricos podem sugerir,
pressão inventivam ente deform ante que as vetoriza na dire
p or analogia, linhas de fuga criativas para fora das outras
ção do supernormal. A tigretude alça voo. O que está dado da
situ ações em que um a fo rte d ep en d ên cia ao já -ex p resso
situação tigresca, tal com o convencionalm ente conhecida, é
im põe-se com o peso esm agador do im perativo de co n fo r
superado, seguindo os tensores exploratórios extrapolados
mação. No suplem ento anterior vim os que a m etam orfose
do entusiasmo do corpo da criança.
anim al de Kafka abriu cam inhos poten ciais para além dos
É isso que é a simpatia. N ão há nada mais dinâmico. Não
im passes da estrutura confinadora da fam ília edípica. Bate
há nada menos atolado no conform ism o. Nada menos senti
son aponta na m esm a direção: não há cura, ele diz, a não ser
mental. Nada menos projetivo e identificatório. A decolagem
que o p ro cesso lú dico seja capaz de iniciar a si m esm o de
da brincadeira eleva a tigretude a altitudes em que nenhum
dentro da situação patológica.39
tigre ou nenhum a criança jam ais colocou seus pés ou patas:
Cura: um a palavra ainda m uito com prom etida pelo para
transportou-os, ju ntos, à pura expressão. A pura expressão,
digma patológico. Palavras melhores: reanim ação, revigora-
sendo abstração puramente vivida, é um território existencial
ção. T udo diz respeito a reanim ar a vida. Cada revigoração
onde ninguém jam ais coloca os pés. C om o pura expressão
segue o itinerário de uma cartografia vivida de natureza tran
animal, a brincadeira de criança participa do m esm o m ovi
sindividual, ludicam ente tensorada em direção ao supernor
m ento extraexistencializante que o jo g o literário de devir-
mal. A revigoração lúdica é expressiva. É inventiva. Em sua
-animal descrito no suplem ento 1. O devir-anim al escrito é
transindividualidade, é ética. Em sua -esquidade, é estética.
um a extensão da brincadeira de criança, que, ela mesm a, é
Em todos os seus aspectos, é afetiva. Analítica é o que ela não
um a extensão da corporalidade animal enquanto anim ada
é, nem no sentido psicanalítico nem no formal. Tam pouco é crítica, no sentido denunciatório.
pela ten dência supernorm al do instinto. E screver eleva a
O que a brincadeira animal do humano aporta à zoé-logia ou ao pensam ento da política humana? Ela contribui com a ideia a essa abordagem da percepção. A imagem é analisada em termos de força expres siva imanente de intensidade transindividual, com especial atenção para sua dimensão mais-que-humana.
160
39 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., pp. 192-193.
161
de que até m esm o os com plexos espetáculo-esp ectador —
e sentim entalm ente selado. Irá term inar seu curso. Porém:
cuja própria percepção é o caso-limite — são germinalmente
seu fim será o que está dado na próxima pulsação do processo,
in-form ados por, pelo menos, turbilhões de devires incipien
que irá disparar em si mesmo uma atividade numa dependên
tes. E com a ideia de que essas agitações podem ser afirmadas;
cia herdada com relação a este já expresso recém -cunhado:
e de que, ao afirmá-las, o hum ano assum e sua animalidade.
um a im portância vivida recém-cunhada. Material para outra
Isso é verdade mesmo para os com plexos espetáculo-especta-
rodada de tendência supernormal, graças à abstração vivida.
dor da mídia popular e das indústrias de entretenimento, bem
E assim segue o ciclo afetivo da vida, espiralando-se sempre
com o, mais abjetamente, para o zoológico. Quantas crianças
-escamente em tom o do centro de gravidade da corporalidade
não voltaram do zoológico para casa em plena tigretude? Ou
e do conteúdo tem ático.
em autoinspeção serpentesca? Ou numa paródia tarantulesca?
Considerada desse ângulo, a expressão da tendência super
O s devires-animais arranham, mordem e picam nas situações
normal na form a dinâmica do afeto de vitalidade é uma verda
de vida norm opática e sociopática de um m odo que só são
deira produção em série de importância — um a contínua rein
capazes os gestos que não denotam aquilo que iriam denotar.
venção daquilo que é im portante para a vida. Isso significa
E crucial m anter a distinção entre afeto de vitalidade e
que uma pura form a de expressão — seja deslizando sobre a
afeto categórico. O afeto de vitalidade, não sendo hedônico,
barriga, seja escrita à mão — carrega um significado potencial.
é irredutível a qualquer afeto categórico. Pode ser agradável,
A fuga que ela inventa em intensidade anuncia im portantes
mas tam bém pode morder. A brincadeira e sua política não
m odos de vida ainda por vir. Um a expressão ludicam ente
são necessariam ente alegres e prazerosas. De fato, nunca o
pura ocupa uma zona de indiscem ibilidade entre o sério e o
são, no sentido categórico. Elas são, em todos os casos, inten
frívolo. Quando levada a sério, soa frívola. Mas quando depre
sas. Todo afeto de vitalidade é uma form a dinâm ica de inten
ciada, deixa passar batido que há algo extra se agitando, já
sidade que, em si, é desqualificada em relação ao conteúdo
enrolado, pronto para morder.
em ocional da situação dada. N o m ovim ento de invenção
N a busca pela política animal não é necessário abster-se de
cuja form a dinâmica é o afeto de vitalidade é precisamente o
denunciar os com plexos de espetáculo-espectador e a estru
conteúdo da vida que pode acabar transform ado. O afeto de
tura opressiva que eles enquadram. Tampouco é indicado parar
vitalidade é a form a dinâmica de expressão do movim ento de
de analisar as formas de poder, sejam elas da arena midiática
devir que leva à reinvenção do conteúdo da vida. O que ele irá
ou da política, em seu entendim ento tradicional. Mas aquilo
trazer, uma vez percorrido seu curso, terá sido o expressado
que é exigido é não contentar-se com a denúncia ou com aná
da situação pela qual seu m ovim ento de invenção se arreba
lises. Sob o espetáculo... porco-espinhitude. Sempre e por toda
tou. Após o ocorrido, esse expressado será total e com pleta
parte há explorações supernormais germinando, expressões
m ente reconhecido e autorizado com o o “ o que” ao qual a
para se haver com a -esquidade do anim al, espinhos para
situação disse respeito. Retroativamente, irá se tornar o con
lançar, portas de fuga para abrir analogicam ente, situações
teúdo convencionalm ente reconhecido da situação, assinado
para repolarizar, tensores para extrapolar, potencialidades
162
163
inauditas para inventar, conteúdos de vida para reinventar,
As respostas para essas perguntas m erecem um desenvol
tudo através dos gestos revigorantes de uma cartografia vivida.
vim ento aprofundado que está para além do esco p o deste
Sempre há, em todo lugar, algo a ser feito politicam ente. Pois
ensaio; para além, de fato, do escopo da escrita. Não é na pura
não há lugar sem corporalidade e sua dependência ao que
expressão que o tipo de m ovim ento pode ser levado adiante
está dado. Os im perativos da im portância já expressa estão
de m odo a m etam odelar a superação da estrutura zo o -ló
por toda parte em que chegar a vida. Por toda parte em que
gica numa verdadeira reinvenção da im portância vivida das
a herança é sentida com o sufocante, por toda parte em que o
relações animal-humano. N um a arena tão carregada de co r
já-expresso fala num tom imperativo demais, por toda parte
poralidade e com plexidade afetiva, um a diversidade de pen-
em que uma corporalidade se choca contra um impasse estru
sares-fazeres exploratórios e dram atizações experim entais
tural em seus esforços de revigorar a si mesma, por toda parte
— dentre muitas, um a arena da atividade expressiva — deve
em que a sentim entalidade confina em ocionalm ente o afeto,
vir à expressão recíproca. Som ente um a ecologia enativa de
há trabalho a ser feito, repetindo a situação e brincadeira a ser
diversidade de práticas animais, em tensão criativa de mútua
reelaborada enativo-cartograficamente.
inclusão diferencial, pode conseguir essa façanha. O que o
A zoo-logia é um convite à viagem animal. Caso você ainda
puro devir-animal-escrito da filosofia, tal com o empreendido
não esteja convencido da pertinência de viagens de desterri
neste ensaio, pode fazer é brincar de deflagrar a mínima dife
torialização tão expressamente supérfluas, cuja seriedade está
rença que é a condição de em ergência abstratam ente vivida
sempre m uito à frente delas, então considere que, se há uni
do m ovim ento de superação do que está dado, ajudando a
versais da existência humana, a propensão infantil a brincar de
alavancar a mais-valia de vida potencialm ente ético-estética
animal está certam ente no topo da lista. Nunca houve criança
e in-formação.
que não deveio-anim al ao brincar. O projeto da política ani mal: fazer com que o mesmo possa ser dito dos adultos.
Pode ser dito que a política animal com o concebida aqui é a representação ecológica de uma filosofia ativista e pluralista.
Q ue estratégias específicas a p olítica animal deve seguir
Reciprocamente, a filosofia animal, entendida de form a super
com relação à política dem asiado hum ana do zoológico? O
normal, é a in-atuação de uma política da brincadeira singular.
gesto denunciatório deveria ser favorecido com o um a exce ção nesse caso, perante o cinism o estrutural do zoológico, o sufocam ento da vitalidade de seus internos e o revestim ento de sua própria barbárie? Acaso a nova vocação do zoológico é uma arca para animais ameaçados que é suficiente para resga tá-los? Se o zoológico fosse abolido, as rem anescentes expe riências dos animais, baseadas em vídeos, às quais a maioria das crianças estaria então confinada, carregariam tão intensa mente um aprendizado de escape do humano pelo humano?
164
165
SUPLEMENTO 3
Seis teses sobre o animal que devem ser evitadas
1. N ão presum a que você tem acesso a um critério para sepa rar categoricam en te o hum ano do anim al. O critério m ais am plam ente convocado é a linguagem . Se a cultura é assi m ilada à linguagem , com o freq u en tem en te o é, então ela tam bém resvala para a com p etência exclusiva do hum ano. E ntretanto, com o vim os, a linguagem já está presente, em potencial, na brincadeira animal. A brincadeira anim al p ro duz, de fato, as reais condições de em ergência da linguagem. Uma v e z que essas condições concernem aos poderes reflexi vos da vida, um m odo ou grau de consciência já está em vigor. Então não coloque na cabeça que a consciência vai prover a linha divisória. Considerando que a linguagem humana, em suas form as m ais elaboradas, im plem enta seus poderes de invenção mais puram ente expressivos, em vez de se separar do animal, ela retorna instintivam ente a ele, na form a super norm al com a qual a vida animal sempre esteve acostum ada a ultrapassar a si mesma. 2. Não confunda criatividade com um desvio do instinto para os reinos sim bólicos (sublim ação). Isso ainda é um pouco m elhor do que a abordagem oposta, de confinar a expressão às molduras constritoras da função e da adaptação. De qual quer maneira, a criatividade é reduzida a um epifenôm eno e o estilo e a graça de seus algo-extras expressivos, à superfluidez e à ornam entação. N a natureza, a criatividade e o instinto estão inextricavelm ente entrelaçados. Eles estão presentes con ju n tam en te no ato e atuam ju n to s no arrebatam ento
167
adiante da ten d ên cia supernorm al qu e co n d u z am bos a potências mais elevadas.
nas obras de ficção científica dos anos 1950. Mas se conside ramos que o humano se torna mais animal quanto mais longe leva o seu poder mental; que ele se torna mais vital quanto
3. N ão profetize com tanta seriedade o fim do hum ano e a
mais vive a abstração, então fica ainda mais difícil imaginar
alvorada de um a era pós-hum ana. Pronunciam entos com o
que o nó da mútua inclusão — que une animalidade, vida e
esse presum em , m u ito freq u en tem en te, a habilidade de
consciência — possa ser desatado. Talvez não esteja fora de
separar de form a categórica o humano do animal. Ainda que
questão que um dia essa mútua inclusão possa ser, ela mesma,
o hum ano seja entendido com o estando em pressuposição
maquinada. A natureza, afinal de contas, é cheia de artifícios.
recíproca com o animal, a transcendência do humano é tam
De fato, não há nada mais efetiva e paradoxalm ente artificial
bém a transcendência do animal. Invocar o pós-hum ano é
do que a natureza sob a propulsão de sua tendência constitu
invocar o pós-animal. Mas, então, se o animal é im buído de
tiva voltada para o supernormal.
consciência, de m odo que consciência e vida animal andam
A essa altura vo cê pode sim plesm ente se livrar do em bo
de mãos dadas, com o querem Ruyer e Bergson, o pós-animal
tado cortejo dos “p ós” , pois a questão é reingressar o m ovi
tam bém seria o pós-vital. Isso significa que, a fim de chegar ao
m ento do supernorm al na direção da autossuperação, ten-
tão almejado “pós-” , seria necessário arrancar a consciência
sorando-o para mais longe, através de qualquer artifício que
e a vida dos territórios existenciais existentes do humano e
pareça funcionar, em v e z de pular para um novo quadro. A
do animal, e confiná-las na tecnologia. O “pós-” chega, assim,
questão tod a é só aparentem ente apocalíptica. Em últim a
à já tão batida noção do “ciborgue” com o vida prostética —
análise, é lúdica. Tecnicamente lúdica: uma questão de encon
vida radicalm ente deslocada e prolongada para além de seu
trar o artifício correto e deixar-se arrebatar por ele.
fim. Entretanto, a imagem do ciborgue hiperfuncional é muito
Seguindo esse movimento, nunca se chega à finalidade apo
frequentem ente superada em popularidade pelo arrastar dos
calíptica da era pós-humana, categoricam ente além da esfera
m ortos-vivos. A cascata de pós---- hum ano, animal, vital —
humana. Em v e z disso, sem pre se depara com o já mais-que-
deságua de m odo exangue no zum bi. Mas no zum bi a cons
-humano: m utuam ente incluído no continuum animal integral,
ciência se eclipsa. Então, não se ganhou muita coisa, ao passo
na medida em que se segue o seu caminho natural em direção
que se perdeu mais do que sangue quente.
à sua autossuperação imanente. O m ais-que-hum ano: o ter
E claro que ainda resta a opção de um retom o a um “pós-”
ceiro incluído do devir-anim al, sem pre-já em processo, no
pré-pós-cascata, de uma época anterior, quando não parecia
progresso do divertido peregrino rum o a seu próprio h ori
totalm ente extravagante o fato de que a consciência pudesse
zo n te.1 C item os Judith Butler, que escreve a partir de uma
ser desacoplada da vida, e a consciência, conservada sozinha (ou p elo m enos a inteligência, sua prim a pobre intuitiva). Esse é o velho sonho da inteligência artificial, tal com o prefigurada enorm em ente na imagem do cérebro dentro do pote
168
1 Em Always More Than One, Erin Manning desenvolve um conceito de “mais-que-humano” como uma alternativa ao discurso do pós-humano. Seu conceito é derivado independentemente e não se refere à noção bastante distinta de mais-que-humano de David Abram (The Spell of the Sensuous: Perception and Language
169
linha filosófica m uito diferente, mas com a qual cruzam os
4. Não se confunda ao pensar que o mais-que-humano fica do
neste ponto: “Tanto a animalidade quanto a vida constituem
lado de fora, cercando o humano, no ambiente. O mais-que-hu
e excedem tudo aquilo que chamamos de humano. O ponto
mano também está na própria composição do humano. Pois o
não é encontrar a tipologia certa, mas entender onde o pen
corpo humano é um corpo animal e a animalidade é imanente
sam ento tipológico desm orona”.2Onde o pensam ento tipoló-
à vida animal (e vice-versa). Quanto mais a fundo se inves
gico de separações categoriais desm orona será encontrada a
tiga a composição do corpo animal, mais se encontram níveis
necessidade — e a oportunidade — de em preender o projeto
de inumanidade. Processos físicos e químicos aninham-se no
positivo de construir uma lógica de m útua inclusão diferen
corpo animal, não cedendo a ele nada da sua alteridade, ainda
cial dos modos de existência, e das eras da natureza, ou seja,
que contribuam para compô-la. Os processos fisiológicos em
mais para o escopo do animal-político.3
contínua operação no corpo contribuem com vários níveis de
Onde desm orona o pensam ento tipológico? Seria... desde
sensação não consciente in-formando a ação e a consciência.
o início, no fim e, mais especialm ente, no terceiro (que ele
Basta pensar na maneira com o o “cérebro intestinal” do sis
ousa excluir): o meio.4
tem a nervoso entérico m odula a experiência consciente; ou nas inflexões do afeto, em segundo plano, pelos hormônios; ou
in the More-Than-Human World. Nova York: Vintage, 1997). Para Abram, o mais-que-humano se refere ao mundo não humano em oposição ao mundo humano. Concebido dessa maneira, o conceito valida o humano essencialmente como um sujeito fenomenológico, alienado pela tecnologia e pela vida moderna e convocado a superar essa alienação, renovando seus laços com a natureza — como se humano e natureza pudessem estar numa relação de mútua exterioridade, mesmo num movimento lapsariano.
na orientação contínua da experiência pelo sistem a proprio-
2 Butler e Athanasiou, Dispossessed: The Performative in the Political. Cambridge: Polity Press, 2013, p. 35.
m entos experienciais infraindividuais que ocorrem nesses
3 Para outra explanação, mais uma vez de uma perspectiva filosófica muito dife rente — que opera no limite da lógica tradicional da vida — , cf. Thacker, After Life. Chicago: University o f Chicago Press, 2010. Thacker não adere ao projeto positivo de construir uma lógica alternativa, preferindo trabalhar com as com plexidades aporéticas produzidas no limite da lógica tradicional, sob a égide do negativo (contradição).
Press, 2013) é uma proeminente exceção. Ainda que o discurso pós-humanista como um todo tenha extremo medo do instinto, a ponto de a palavra quase nunca aparecer — a não ser para ser jogada para escanteio. O continuum natureza-cultura é construído como pós-natural, precisamente a fim de exorcizar o instinto, consi derado como tendo sido deixado na lata de lixo da história natural pela reconstru ção artificial do continuum através das máquinas e da tecnologia. Repetindo: não há nada mais efetiva e paradoxalmente artificial do que a natureza sob a propul são de sua tendência constitutiva voltada para o supernormal — que tem tudo a ver com o instinto. As abordagens pós-humanas também conservam, como parte de sua herança dos estudos culturais, “o sujeito” como uma categoria analítica priyilegjada — isso é verdade até mesmo para Braidotti (The Posthuman op. cit.), que, nos termos das suas referências filosóficas, é o mais próximo da abordagem aqui desenvolvida. Em resumo, o pós-humanismo acadêmico é insuficientemente supem om al e muito severamente vacinado contra as subjetividades-sem-sujeito. Os pós-humanos, afirma Haraway, são irônicos. Mas: será que eles brincam?
4 Tratamentos acadêmicos do pós-humano abordam a questão, é claro, com muito mais nuances do que o pós-itinerário superficial aqui esboçado (Hayles, How We Became Posthuman: Virtual Bodies in Cybemetics, Literature, and Informatics. Chicago: University o f Chicago Press, 1999; Haraway, “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século x x ” in Tomaz Tadeu (trad. e org.), Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, pp. 33-118; Braidotti, The Posthuman. Londres: Polity Press, 2013). A maioria afirma que o animal e o humano, a natureza e a cultura, estão num continuum — Wolfe (Before the Law: Humans and Other Animais in a Biopolitical Frame. Chicago: University o f Chicago
170
ceptivo; ou na aprendizagem do que é popularmente chamado de “mem ória muscular” ou, mais no escopo deste ensaio, no instinto. Todos estes são, por natureza, não conscientes. “ Sujeitos larvais” é com o D eleuze denom ina os acon teci
171
níveis.5 O s sujeitos larvais são superjectos aninhados co n tribuindo cum ulativam ente com suas form as de vitalidade assubjetivam ente-subjetivas para a inspeção integralm ente em ergente da consciência primária. A dim ensão do infrain-
p o r m ovim entos que o superam . Sua existência é membranosa e, com o todas as membranas, precária.9. L em bre-se: "N o fu n d o do hom em não existe nada de hum ano” .10
dividual é tão im p ortan te quanto a d o transind ividu al, e p ro cessu a lm en te in separável dela. As duas co n ectam -se diretam ente, entrando e saindo um a da outra, contornando frequentem ente a reflexão consciente. O feedback infra/trans ocorre na incipiência de toda experiência, atingindo ou não o m áxim o de sua reflexão consciente. O m odo com o esse circuito form ativo ativa o pensar-sentir da consciência p ri m ária para um a co lo ca çã o em ação é o qu e eu cham o de "atividade nua” .6 A atividade nua é o antídoto conceituai para a “vida nua” de Agamben, com toda sua dependência em relação à distin ção zoé/bios e sua preocupação fundacional com o estabeleci mento de uma fronteira entre o dentro e o fora (nem que seja apenas para suspendê-la na dialética-sem-síntese da inclusão exclusiva).7A atividade nua, de sua parte, constrói o dentro e o fora com o acionam ento e desligam ento de cada um deles: a mudança de fase designa os polos num m esm o processo de m útua inclusão. O transindividual se junta ao individual, que se desdobra de volta no transindividual.8 O mais-que-humano não está do lado de fora. Antes m esm o, o hum ano — onde ocorre por si só na natureza — está no meio, transecionado 5 Deleuze, Diferença e repetição op. cit., pp. 111,118,122-123,203. 6 Massumi, Semblance and Event op. cit, pp. 1-3,10-11; 2010. 7 Cf. Para mais sobre Agamben, ver notas 22 p. 98,7 p. 130 e 21 p. 141. 8 Em outros momentos chamei isso de “ retomo das formas elevadas”, para enfa tizar como as operações de linguagem efetuam, em particular, uma volta ao nível infraindividual de ação incipiente, onde figuram como um fator imediato em devir (Massumi, Parablesfor the Virtual, pp. 10-12,35-39,198-199).
172
9 Deleuze (Foucault, trad. bras. de Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2005, pp. 101-130) desenvolve uma teoria topológica similar do dentro e do fora em termos da dobra, assim como Simondon: “ as verdadeiras formas implíci tas [que correspondem aproximadamente aos sujeitos larvais de Deleuze] não são geométricas, mas topológicas” (Simondon, Uinformation à la lumière des notions de forme et d’information op. cit., p. 53). Para Simondon, “o vivente vive no seu limite”, concebido como uma membrana de mão dupla (p. 225). Uma vez que as formas implícitas se embutem umas nas outras de um modo complexo, a “ membrana” não é simplesmente redutível ao invólucro da pele, mas deve ser concebida de maneira fractal. Sobre topologia, cf. também Simondon, pp. 28,210-211,224-229, 254-304. 0 monadismo pós-leibniziano de sistema aberto proposto por Whitehead divisa uma infinidade de ocasiões atuais (também chamadas de entidades atu ais) embutidas umas nas outras. Ele enfatiza que os níveis se inter-relacionam não através de suas formas físicas, tampouco por suas conexões quantificáveis parte a parte, mas — de maneira mais abstrata — através de suas “formas sub jetivas”. Essas ele define qualitativamente, em termos afetivos (0 que eqüivale, aqui, ao “afeto de vitalidade”). Sobre a forma subjetiva como determinadora da inter-relação entre as ocasiões atuais e definida em termos afetivos, cf. Whitehead (Adventures ofldeas op. cit., pp. 176-177,182-183). 10 Lapoujade, Potências do tempo op. cit., p. 72. É a filosofia da animalidade de Niet zsche, tal como analisada por Vanessa Lemm (Nietzsche’s Animal Philosophy: Culture, Politics, and theAnimality ofthe Human Being. Nova York: Fordham University Press, 2009), que é a que mais se aproxima da presente explanação. Nietzsche abarca o instinto num continuum natureza-cultura/humano-animal; é exemplarmente sensí vel aos sujeitos larvais; desenvolve centralmente o conceito de subjetividades-sem-sujeito (feitos sem fazedores por trás); recusa-se a confinar a vida ao orgânico ou a atribuir uma linha divisória entre ele e a matéria; reconhece a centralidade do afeto; repensa a política como função da animalidade e, definitivamente, brinca com a linguagem. Lemm interpreta corretamente o “ super-homem” de Nietzsche não como uma superação da natureza, mas como uma reinvenção da natureza que possibilita ao humano superar a si mesmo. “No termo nietzschiano ‘super-homem’, o prefixo ‘super-’ não é usado nem para separar o humano do animal, tampouco para posicionar um acima do outro, mas para estabelecer distância suficiente [a diferença mínima necessária], de modo a abrir o espaço para um encontro agonístico” (p. 21). Agonístico: combatesco. A filosofia animal de Nietzsche é uma inversão do paradigma pós-humano. Para Nietzsche, “a natureza utiliza o humano como meio para sua própria compleção, e não o contrário” (p. 3).
173
5.Não tenha a esperança de que a categoria da matéria inorgâ
Requeremos que [...] a noção de “vida” envolva a noção
nica irá salvar o dia categórico provendo um a linha divisória
de “natureza física” [...]. Nem a natureza física nem a vida
em pírica que perm itirá que você analise onde anim alidade,
podem ser entendidas, a não ser que possamos fundir as
consciência e vida com eçam e terminam. Ruyer:
duas como fatores essenciais na composição das coisas “realmente reais” , cujas interconexões e características
Em relação ao átomo, assim como para o ser vivo e o ser
individuais constituem o universo.13
consciente, não é possível separar o que eles são do que eles fazem [...] Enquanto houver a crença na “substância” mate
P ós-pronunciam entos à parte, o que é requerido é um co n
rial tradicional, o tempo poderá ser concebido como uma
ce ito de “ atividade u n iversal” , que n aturalm ente se auto-
dimensão vazia através da qual a substância é passivamente
conduz para um a aposta na liberdade, estendendo a m útua
transportada. Quando o conceito tradicional de matéria é subs
in clu são da anim alidade, da v id a e da co n sciên cia, assim
tituído pelo conceito de atividade, o tempo não aparece mais
com o do instinto, da intuição e da espontaneidade, na dire
como um enquadramento vazio e alheio, e o tempo da ação
ção do lim ite especulativo da abstração vivida, fundindo a
[devir] deve ser visto como inerente ao tempo, à guisa de
n atu reza física co m o p o d er m en tal de ultrapassar o que
uma melodia temporal, um ritmo mnêmico próprio à ativi
está dado.
dade. Há certa memória que é aquela com ritmos físicos [...] Há um isomorfismo perfeito entre a atividade finalista dos
Precisamente porque a pura animalidade é vivida como
organismos mais elevados e a atividade dos seres físicos [...]
inorgânica, ou supraorgânica, pode tão bem combinar-se
Nós devemos falar [...] da liberdade [...] dos seres físicos."
com a abstração, e mesmo combinar a lentidão ou o pesadume de uma matéria com a extrema velocidade de uma
A vida, escreve W hitehead, é uma “aposta na liberdade” .12Em
linha que é unicamente espiritual. Essa lentidão pertence
qualquer lugar do continuum — do humano às profundezas da
ao mesmo mundo da extrema velocidade.16
matéria, passando por tudo o que há no m eio; dos filhotes de lobo às gaivotas e m inhocas, para não m encionar as amebas
Essa “linha” é um a “força vital própria da Abstração” .17 Sua
— , a aívida’ significa novidade”.13O novo não possui enquadra
“extrem a velocidade” e a intuição constituem um a só coisa.18
m ento predefinido: “não há lacuna absoluta entre ‘vivente’ e
E isso não porque tud o é orgânico ou organizado, mas, ao
‘não vivente” ’.14
u Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., pp. 158-160; grifo nosso.
15 Whitehead, Modes ofThought op. cit., p. 150.
12 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 104.
16 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5 o. cit., p. 212.
13 Ibid., p. 104.
17 Ibid., p. 213.
14 Ibid., p. 102.
18 Ibid., p. 212.
174
175
contrário, “porque o organism o é um desvio da vida” .19 Na
as espécies, tom am -se m uito m enos im portantes” .24 O que
intuição, “tudo passa entre os organism os” .20 “A vida espreita
im porta é a naturalidade da participação não natural na ten
nos in terstício s” .21 N ão no organism o. N ão em nenhum a
dência universal, num a im ediatez transindividual da ativi
organização dada. “ É evidente que, de acordo com essa defi
dade cuja im portância é vivida, tal com o a abstração in-atua
nição, nem um a única ocasião pode ser dita viva. A vida é a
um pensar-fazer que aposta na liberdade em todo gesto vital.
coordenação das espontaneidades m entais no decorrer das
Nesse jogo ético-estético de relação, “tudo é político” .25
ocasiões de um a sociedade”, com “ so cied ad e” tom ada no sentido mais am plo de um agrupam ento de atividades que
6 .“ É a marca que faz o território”.26 Esse é um modo de dizer
participam do fazer de um acontecim ento.22
que o mapa enativo cria o território. N ão caia na armadilha
A vida, em todas as suas dim ensões, pertence ao transin
da suposição do senso com um de que o que está em jo g o
dividual, nunca ao indivíduo considerado separadamente. É
preexiste ao sujeito já constituído, em interação funcional
no elem ento do transindividual que a vida se estende, pro
com objetos sem elhantem ente pré-constituídos num enqua
cedendo através de blocos qualitativos absorvidos num pro
dram ento espacial já traçado. Por um lado, “as funções num
cesso de variação contínua, arrebatando tu d o em conjunto
território não são prim eiras” .27 Por outro, o enquadramento
num a unidade dinâm ica de m útua inclusão, enquanto que,
é sem pre excedido na abstração vivida. A realização do ato
ao m esm o tem po, dispersa a unidade num a m ultiplicidade
expressivo coloca em m ovim ento o espaço de superação de
de variantes sim ultaneam ente constrastantes que vêm mar
sua própria operação — embora ele não seja tanto um espaço,
car de form a singular cada passo ao longo do cam inho, para
m as um espaço-tem po. U m a cartografia criativa enativa o
serem tão logo arrebatadas de volta à variação. “ Tendência
espaço-tem po processual de seu próprio desdobram ento.
U n i v e r s a la vid a se im p ulsion a para a fren te através da
Não há sujeito por trás do ato criativo, existindo previamente
superação de tudo o que estiver putativam ente fixado, que
ao processo. O sujeito sempre está à frente de si mesmo, no
estiver dado de m odo individualizável; da propulsão relacio
m ovim ento de expressão. O sujeito é um “ supeijecto”28 sem
nai através do que está dado rum o à em ergência do novo.23
pre por vir, ou já superado num a próxim a pulsação da vida.
A essa altura, “ os problem as relacionados às fronteiras
O m ovim ento autocondutor da expressão é essencialm ente
entre os ‘rein os’ da N atureza, e ainda mais àquelas entre
uma subjetividade-sem-sujeito. Isso de maneira alguma signi fica que existem apenas objetos, com o quereria uma ontologia
19 Ibid. 20 Ibid.
24 Simondon, Vinformation à la lumière des notions deforme et dHnformation op. cit., p. 112.
21 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 105. Cf. também Didier Debaise (“A Philosophy of the Interstices: ThinMng Subjects and Societies from Whitehead’s Philosophy” Subjectivity,v. 6, n2 1,2013, pp. 101-111).
26 Deleuze; Guattari, Mil platôs, v. 5 op. cit, p. 122.
22 Whitehead, Adventures ofldeas op. cit., p. 207.
27 Ibid., p. 122.
23 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5 op. cit., p. 89.
28 Sobre o superjecto, cf. ver nota 17 p. 134.
176
25 Deleuze e Guattari, Kafka:por uma literatura menor, p. 36.
177
orientada ao objeto. Há, no fundo, som ente atividade e ten dência afetando blocos qualitativos de relação plástica sob variação. Por fim, não deixe que a alegoria da cognição “corporificada” o leve erroneamente a pensar o corpo com o algo que está esperando — com a paciência infinita de uma maté ria burra — para encarnar um a mente. Se tudo está vivo, é p orque os gestos expressivos da natureza seguem se a-corporalizando. C orp oralizações-sem -“ o ” -corpo para subjetividades-sem -sujeito. Se tudo está vivo, é porque a vida vive sua própria abstração — cada gesto seu é um a especulação pragmática sobre a natureza do fazer.
178
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Dados Internacionais de C atalo gação na Publicação (CIP)
'I M
Vagner Rodolfo CRB-8/9410
O livro com o im agem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não M422q
Massumi, Brian
basta dizer Viva 0 múltiplo, grito de resto difícil
O que os animais nos ensinam sobre política /
de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica,
Brian M assum i; Francisco Trento, Fernanda Mello. - São Paulo:
lexical ou m esm o sintática será suficiente para
n-i edições, 2017.
fazê-lo ouvir. E preciso fazer 0 múltiplo, não
192 p . : i l .; 14011 x 2icm.
acrescentando sem pre uma dim ensão superior, m as, ao contrário, da maneira m ais
Inclui índice.
sim ples, com força de sobriedade, no nível das
ISBN: 978-85-66943-47-4
dim ensões de que se dispõe, sem pre n-1 1.
Ciências políticas. I. Trento, Francisco. II. Mello,
Fernanda. Título.
2 0 1 7 -6 7 3
(é som ente assim que o uno faz parte do ' múltiplo, estando sem pre subtraído dele).
C D D 3 2 .0
Subtrair o único da m ultiplicidade a ser
CDU 32
constituída; e screver a n-1. G illes Deleuze e Félix Guattari
índice para catálogo sistemático 1. Ciência política 320 2. Ciência política 32
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