O Que Os Animais Nos Ensinam Sobre Política 9788566943474

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O Que Os Animais Nos Ensinam Sobre Política
 9788566943474

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Em O que os animais nos ensinam sobre política, o filósofo canadense Brian Massumi discute a questão do animal

Brian Massumi

sob um a ótica inusitada. N oções tais com o jogo, simpatia e criatividade, m enosprezadas pela biologia evolucionista, pelas ciências do com portam ento animal ou pela filosofia, aqui são diretam ente incorporadas ao c< Com isso, a investigação se expande, a não apenas o com portam ento animal mas pensam ento animal e sua distância ou prc relação àquilo cujo m onopólio é reivindic humanos: a linguagem e a consciência ref

O que os animais nos ensinam sobre política

Para Massumi, humanos e animais exis continuum. C om preender tal continuum, conta as diferenças, requer uma nova lóg inclusão”. O autor encontra recursos co lógica no trabalho de vários pensadores, Bergson, Simondon, Ruyer e W hitehead Ao tratar o hum ano como animal, Mas o conceito de uma política animal. Níiú .* política do animal, mas de um a polítiir,: animal, liberada das conotações de “ est prim itivo” e dos pressupostos correlatu que perm eiam o pensam ento moderno. Esse livro, que dialoga com os estU'' humanismo, etologia, cognição encarnai dá subsídios relevantes para repensar ui não-antroDocêntrica.

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O que os animais nos ensinam sobre política Brian M assum i

Brian Massumi

© Brian Massumi, 2014 © n-i edições, 20x7 i s b n 978-85-66943-47-4 Embora adote a m aioria dos usos editoriais do âm bito brasileiro, a n -i edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.

c o o r d e n a ç ã o

e d it o r ia l

Peter Pál Pelbart

e Ricardo M uniz Fernandes t r a d u ç ã o Francisco Trento e Fernanda Mello pre pa r a çã o

O que os animais nos ensinam sobre política

Fernanda Mello Isabela Sanches

r e v is ã o

de n o ta s

pr o je to

g r á f ic o

Érico Peretta

A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer m eio im presso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se fo r necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. Ia

edição | Novembro, 2017

n- ledicoes.org

A n-1 edições agradece 0 apoio à publicação fornecido pelo Conseil de Recherche en Sciences Humaines áu Canada (c r s h )

M

Social Sciences and Humanities Research Council of Canada

Canada

Conseil de recherches en sciences humaines du Canada

TRADUÇÃO

F ra n c is c o T re n to e F e rn a n d a M e llo

Este livro é dedicado a minha amizade de infância com Bruce Boehrer, com quem me tornei um tanto animal e travei batalhas diárias — não menos sérias por serem de brincadeira — contra as devastações do antropocentrism o.

09

O que os anim ais nos ensinam sobre p olítica

79

109

PR O P O S IÇ Õ E S

SU P L E M E N T O 1

E screver co m o um rato to rce o rabo

125

SU P L E M E N T O 2

A zoo-logia da brincadeira

167

SU P L E M E N T O 3

Seis teses sobre o anim al que devem ser evitadas

181

R eferências bibliográficas

O que os animais nos ensinam sobre política

0 que os animais nos ensinam sobre política... não é a mais prom issora das proposições à prim eira vista. O que os ani­ mais teriam a nos ensinar? Isto é, além da resignação às duras necessidades da natureza distinta; da desesperada luta pela sobrevivência; da guerra selvagem de todos contra todos, em que o mais próxim o que se pode chegar de uma vitória é a paz provisória de uma adaptação viável, garantindo uma frágil ilha de normalidade nos mares turbulentos de uma vida “ sórdida, brutal e curta”, com o Hobbes enunciou de form a mem orável na aurora da Idade Moderna da humanidade. M as para nós, que, re tro sp ectiva m en te, nu nca fom os m odernos, o estado da natureza já não é o que era. A lei da com petição teve de se curvar perante um a saudável dose de cooperação, cujas contribuições cruciais para a evolução são agora amplamente conhecidas, com a simbiose sendo aceita com o a origem da vida m ulticelular.1 Em vista desses desen­ volvim entos, colocar a sim patia em igualdade de condições com a agressão com o um fator na natureza não é mais algo im pensável. A o m esm o tem po, a im agem rígida do animal com o um m ecanism o dom inado pelo autom atism o do ins­ tinto dá sinais de enfraquecim ento, conferindo uma margem m aior às variações individuais, com o o surgim ento de uma nova área de pesquisa na etologia, dedicada à “personalidade”

1 Ver Lynn Margulis, Symbiotic Planet. Nova York: Basic Books, 1999; Martin A. Nowak com Roger Highfield. Super Cooperators: Altruism, Evolution, and Why We Need Each Other to Succeed. Nova York: Free Press, 2011.

9

anim al, evidencia.2 C o m o verem os, o próprio instin to dá

na natureza, fora dos corredores da ciência, nos meandros da

sinais de elasticidade, e m esm o de um a criatividade que se

filosofia, a fim de divisar uma política diferente, que não seja

poderia rotular de “artística” .

uma política humana do animal, mas uma inteiramente animal,

“ Sim patia” e “criatividade” : sempre que essas palavras apa­

livre dos paradigmas tradicionais do sórdido estado da natu­

recem perto demais do term o “ animal”, para m uitos soam o

reza e das pressuposições acerca dos instintos que permeiam

alarme. Em seguida, ecoa a acusação de antropomorfismo. Há

tantas facetas do pensamento moderno.

pouca esperança de conseguir driblá-la quando se empreende

Investigações recentes com ênfase similar na criatividade

a tarefa de integrar ao conceito de “natureza” noções com o

na natureza tom aram com o ponto de partida a artisticidade

essas, há tem pos m arginalizadas pelas correntes dom inan­

dos rituais de cortejo animal. Esse ponto inicial coloca o foco

tes na biologia evolucionista, no com portam ento animal e na

da discussão na seleção sexual. Por razões que se tornarão

filosofia. O problema reside no caráter qualitativo dos termos.

claras, este não é o caminho que seguirem os aqui. C om o ana­

“ Qualitativo” sugere “subjetivo” , e a simples pronúncia dessas

lisada por Elizabeth G rosz, a seleção sexual põe em questão,

palavras traz o que David Chalm ers cham ou de “o problem a

de form a bem -sucedida, a teoria neodarwiniana que defende

difícil” da consciência na soleira da porta, um a visita inespe­

que a m utação aleatória é a única fonte de variação da vida,

rada espreitando nos corredores da ciência.3A questão deixa

desatrelando a m orfogênese — a gênese das form as de vida

de ser apenas sobre o com portam en to anim al e alcança o

— da sua aderên cia ao m ero acaso.s Isso tam bém p õe em

pensam ento animal e sua distância — ou proximidade — das

dúvida a teoria associada de que o único princípio de seleção

capacidades sobre as quais nós, animais humanos, julgam os

operando na evolução é a adaptação a circunstâncias exter­

ter um m onopólio, e nas quais hasteam os nosso excessivo

nas.6 N a arena do cortejo animal, a seleção incide direto nas

orgulho quanto à existência em nossa espécie: linguagem e consciência reflexiva. A d iante, arrisco-m e volun tariam en te a ser acusado de antropom orfism o4 em prol de seguir o rastro do que é qua­ litativo e do que é subjetivo na vida animal, e da criatividade

2 Ver Cláudio Carere e Dario Maestripieri (orgs.), Animal Personalities: Behavior, Physiology, Evolution. Chicago: University o f Chicago Press, 2013. 3 David Chalmers, “Facing Up to the Problem o f Consciousness” . Journal ofConsciousness Studies n2 2,1995, pp. 200-219. 4 Como argumenta Jane Bennett, “antropomorfizar tem suas virtudes” . J. Bennett, Vibrant Matter: A Political Ecology ofThings. Durham: Duke University Press, 2010, p. 25; cf. também pp. 98-100. Proveitosamente, Bennet dissocia antropomorfismo de antropocentrismo.

10

5 Elizabeth Grosz, Chaos, Territory, Art: Deleuze and the Framing ofthe Earth. Nova York, Columbia University Press, 2008. 6 E. Grosz, Becoming Undone: Darwinian Refiections on Life, Politics, and Art. Durham: Duke University Press, 2011, parte 3, cap. 8. Sobre aos desafios clássicos ao fundamentalismo neodarwiniano quanto às questões da seleção natural e da adapta­ ção, cf. Stephen Jay Gould, The Panda’s Thumb: More Refiections in Natural History. Nova York: Norton, 1980; R. C. Lewontin, Steven Rose, e Leon J. Kamin. Not in Our Genes: Biology, Ideology, and Human Nature. Nova York: Pantheon, 1984; Robert Wesson, Beyond Natural Selection. Cambridge: m i t Press, 1991; Brian Goodwin. How the Leopard Changed Its Spots. Londres: Phoenix, 1995; e, obviamente, Bergson, A evolução criadora (trad. bras. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005). A recente confirmação de mecanismos biológicos de herança de traços adquiridos (herança epigenética) enfraqueceu ainda mais o reduzido chamado à completude do modelo neodarwiniano. Para uma análise da pesquisa no campo, que se desenvolve a passos largos, da herança epigenética, cf. Eve Jablonska e Gal Raz, “Transgenerational Epigenetic Inheritance: Prevalence, Mechanisms, and

11

qualidades da experiên cia vivida. O esco p o está na cria ti­

Em vez disso, 0 foco será na brincadeira animal, trabalhando

vidade, e não na conform idade adaptativa às restrições de

em particular com o fam oso ensaio de Gregory Bateson sobre

determ inada circunstância. A seleção sexual expressa um a

o tem a.9 É verdade que a brincadeira se consum a com o uma

inventiva exuberância animal associada a qualidades de vida,

arena independente de atividades entre animais “superiores”

sem valo r direto de uso ou de sobrevivência. C om o ap o n ­

com certo nível de com plexidade, em particular entre mamí­

tad o pelo próprio D arwin, os excesso s da seleção sexual

feros.10 Porém, com o verem os, entender o florescim ento da

só podem ser d escritos com o expressão de um “ senso de b e leza ” (basta perguntar à pavoa).7 A presente explanação concord a com todos esses pontos. A razão básica para não tom arm os a seleção sexual com o ponto de partida é que, ao fazê-lo, deixaríamos de lado a maioria das formas de vida que povoam a Terra. Seria pular as criaturas m ais “prim itivas” , m enos ostentativas no m odo de copular, sem m encionar os animais “ mais in feriores”, que persistem em se m ultiplicar de form a assexuada.8 Implications for the Study of Heredity and Evolution”. Qmrterly Review ofBiologyv. 84, na 2,2009, pp. 131-176. Cf. também Nessa Carey, The Epigenetics Revolutíon: How Modem Biology Is Rewriting Our Understanding ofGenetics, Disease, and Inkeritance. Chicago: University of Chicago Press, 2012. 7 Darwin, The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, v. 1. Londres: John Murray, 1871, pp. 63-64. 8 Há outras razões para não privilegiar a seleção sexual aqui. Considerar a seleção sexual como ponto de partida é focar na competição e na rivalidade entre indiví­ duos (E. Grosz, Becoming Undone op. cit.). Isso direciona a pulsão para o excesso qualitativo na experiência perceptiva do sujeito individual do desejo e lastreia o conceito de desejo com fundamentais conotações de interesse próprio. Também tende a construir a afirmação estética do qualitativo na vida animal como con­ trária ao instinto (“O artístico é um salto para fora da materialidade, o embalo ■ da virtualidade agora engrenado e extraído da matéria para fazê-la funcionar de maneira imprevisível [...] A arte é o processo de fazer com que as sensações fiquem vivas, de dar vida autônoma à qualidade expressiva e às formas materiais” [E. Grosz, Chaos, Territory, Art op. cit., pp. 75,103]). Isso implica que abaixo do limiar evolutivo em que a seleção sexual opera não haja espaço para as sensações, e os animais sejam inexpressivos e prisioneiros de suas formas materiais. Isso pode ser interpretado como uma aceitação implícita da abordagem tradicional mecanicista da matéria “burra”, respeitadora das leis e desprovida de surpresas,

12

e a ideia correlata do “ instinto” como ação de reflexo mecânico. Sugere que somente um salto da natureza para a cultura, articulado em termos reminiscentes do conceito freudiano de “ sublimação”, pode salvar o animal do mecanismo da matéria burra (“a arte seqüestra os impulsos de sobrevivência e os transforma pelos caprichos e intensificações promovidos pela sexualidade” [Ibid., p. 11]). Finalmente, a definição de “ sexualidade” mobilizada (“o alinhamento de corpos com outros corpos e partes de um mesmo corpo” [Ibid, pp. 64-65]) parece pres­ supor um corpo pré-constituído, assim como a ideia de “competição” assume um sujeito pré-constituído. Além disso, parece pressupor que as relações dos corpos uns com os outros e deles com eles próprios só podem ser entendidas nos mes­ mos termos que as relações entre objetos (parte-com-parte, relações externas expressáveis em termos espaciais como “alinhamento”). É preciso enfatizar que a própria Grosz não corrobora essas implicações e as contesta em muitos pontos. A presente descrição procura desenvolver uma explanação que os repasse exaus­ tivamente desde o primeiríssimo momento. Ela enfatiza o processo transindividual através do qual os indivíduos devêm. Tenta desenvolver um vocabulário que nunca abra mão da ideia de que ambos, corpo e sujeito, são sempre emergentes e jamais figuram como pré-constituídos. Procura repensar o instinto incluindo um elemento de criatividade de uma ponta à outra do continuum da vida. Seu projeto requer pensar a “relação interna” ou imanente, segundo uma lógica de “mútua inclusão” que será desenvolvida ao longo do ensaio — lógica essa que mobiliza primariamente as tendências (entendidas como “subjetividades-sem-sujeito”), e não objetos e sujeitos. Por fim, mostra-se necessário colocar radicalmente em questão a separação categorial entre as operações da matéria e os aspectos qua­ litativos e subjetivos da dimensão “estética” do excesso, da expressividade, e da artisticidade da vida (essa divisão está implícita na primeira citação de Grosz trazida acima, em que a matéria aparece como morta e burra). Aqui, a seleção sexual será tomada como uma instância particular da “ autocondução” criativa da natureza, um caso especial de brincadeira. 9 Gregory Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy”. Steps to an Ecology ofMind. Chicago: University o f Chicago Press, 1972, pp. 177-193. 10 Gordon M. Burghart em seu compendioso estudo da ciência da brincadeira ani­ mal (The Genesis of Animal Play: Testing the Limits. Gambridge: m i t Press, 2005), argumenta que comportamentos específicos das brincadeiras são muito mais

13

brincadeira nesse nível exige a teorização das origens da sim­

isso pode fazer, com simpatia e criatividade, com eçando e ter­

patia e da criatividade, o qualitativo e até m esm o o subjetivo

minando na brincadeira — do m esm o m odo que W hitehead

em todos os pontos do continuum da vida animal. A própria

afirma que a filosofia com eça no assom bro, e, depois de tudo

natureza do instinto, e, assim, da própria animalidade, deve

dito e feito, no assom bro perm anece.11

ser repensada com o uma conseqüência. Esse projeto requer que o humano seja realocado no conti­

A discussão de Bateson acerca da brincadeira animal gira em torno da diferença. Esse é o m elhor ponto de partida para

nuum. animal, o que tem de ser feito de uma maneira que não

pensar o continuum animal, que é um espectro de variação

apague o que é diferente no humano, mas sim respeite essa

contínua — um cam po m utante de diferenciações recipro­

diferença ao lhe fornecer um a nova expressão no continuum:

cam ente pressupostas, com plexam ente imbricadas umas às

imanente à animalidade. Expressar o pertencim ento singular

outras ao longo de toda a linha. N o decorrer da discussão

do hum ano ao continuum animal tem im plicações políticas,

seguinte, um conceito será aos poucos construído para essa

assim com o toda questão de pertencim ento. A derradeira

imbricação recíproca de diferenças: mútua inclusão. Mas, por

aposta deste projeto é política: investigar que lições podem ser aprendidas ao jo g ar com a anim alidade dessa form a,

ora, a questão é com o entra em jogo a diferença. Dois animais que se entregam à brincadeira, por exem plo,

acerca dos nossos m odos usuais e dem asiado hum anos de

uma brincadeira de luta, desem penham atos que “são simila­

lidar com o político. A esperança é que no decorrer da inves­

res, porém não os m esm os do com bate” .12 Cada gesto lúdico

tigação possam os ir além de nosso antropom orfism o quanto

envolve um a diferença com um a fachada de sim ilaridade -

a nós mesmos: nossa im agem de nós m esm os com o estando

o que poderia ser considerado um a definição de “analogia” .

hum anam ente apartados dos outros animais; nossa invete­

Brincar não envolve produzir uma perfeita semelhança entre

rada vaidade no que se refere à nossa assum ida identidade

dois atos que pertencem a ordens distintas. Não se trata de

de espécie, baseada em razões especulativas de nossa exclu­

fazer “com o se” um fosse o outro, no sentido de fazer com

siva propriedade sobre linguagem, pensam ento e criatividade.

que um se passe pelo outro. O gesto de brincar é análogo

Verem os o que os pássaros e as feras têm a dizer instintiva­

porque aquilo que está em jo g o não é o M esmo. O gesto de

mente sobre isso.

brincar mantém afastadas as atividades análogas, assinalando

Este ensaio é um prolongado experim ento de pensam ento

um a diferença m ínim a, no m esm o ato p elo qual as reúne.

sobre o que pode ser uma política animal. Busca construir o

Ele reúne atos pertencentes a diferentes arenas em sua dife­

conceito de um a p olítica animal e levá-lo ao lim ite do que

rença. É com a não coincidência que se brinca. O gesto lúdico envolve essa disparidade em sua própria execução. Isso é

difundidos do que tradicionalmente se pensa. São observáveis não apenas em ani­ mais placentários, mas também marsupiais, em um grande número de espécies de aves e em alguns répteis e peixes. Dentre os invertebrados, considera presentes comportamentos limítrofes às brincadeiras em crustáceos, cefalópodes e alguns insetos, como baratas, formigas e abelhas.

14

precisam ente o que faz dele um a brincadeira. Se um gesto u A. N. Whitehead, Modes ofThought. Nova York: Free Press, 1968, p. 168. 12 G. Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 179.

15

num a brincadeira de luta fosse idêntico ao seu análogo no

movidos em conjunto para um registro de existência em que

com bate, a brincadeira logo se tom aria uma luta. Um gesto

o que im porta já não é o que se faz, mas o que se representa.

lúdico tem de assinalar seu pertencim ento à arena da brinca­

A força do gesto lúdico é uma força de passagem que induz

deira para não acabar resvalando para fora dela. Por exemplo,

uma mudança qualitativa na natureza da situação. Dois indiví­

se dois filhotes de lobo ao brincar de luta desem penham os

duos são arrebatados de uma só vez, mas sem mudar de local,

m ovim entos com m uita similaridade com o com bate, e não

por uma força instantânea de transformação. São absorvidos

em analogia a ele, os parceiros logo se tornarão adversários,

por um a transformação-in-loco que não afeta um sem afetar

com o risco de lesão potencialm ente grave. U m gesto lúdico

o outro. O gesto lúdico libera um a força de transform ação

deve demonstrar, em sua forma de execução, o seguinte: “isto

transindividual. A im ediatez da transform ação que a execu­

é um jo g o ” .

ção do gesto induz qualifica o gesto lúdico com o um ato per-

A declaração da brincadeira, “isto é um jo g o ”, explica Bate­ son, está longe de ser um simples ato de designação. É a ence­ nação de um paradoxo. Um filhote de lobo que morde o colega

formativo. A brincadeira é feita de gestos perform ativos que exercem uma força transindividual. Bateson parafraseia o sentido que os gestos lúdicos desem ­

de ninhada ao brincar “ d iz” , pela form a com que morde:

penham na seguinte fórmula: “ Estas ações nas quais agora

“isto não é uma m ordida” . Bateson afirma que a mordida de

nos engajam os não denotam aquilo que iriam denotar as

brincadeira “ representa” ativam ente outra ação, ao mesm o

ações que elas representam”.14Vale a pena observar duas coisas

tem po em que coloca em suspenso o contexto no qual a ação

acerca de com o essa fórm ula se desenrola.

encontra sua força prática e sua função norm al.13A mordida

Prim eiro, Bateson sublinha o fato de que o gesto lúdico é

de brincadeira que diz que não é uma mordida tem o valor da

um a form a de abstração. A lém de ser um ato perform ativo

ação análoga sem sua força ou função. Através dos dentes, o

que efetua uma transform ação-in-loco, carrega um elem ento

filhote de lobo diz: “ isto não é uma mordida; isto não é uma

de m etacom unicação, isto é, de reflexividade. Ele com enta

luta; isto é um jogo; por meio dele estou me colocando num

sobre o que e stá fa zen d o en qu an to está fazend o: “ essas

registro diferente de existência, que, no entanto, representa

ações nas quais agora nos engajam os...” . Esse “ com entário”

seu análogo suspenso” .

ocorre na form a de um a diferença estilística. Na brincadeira

A suspensão exerce a própria força: uma força de indução.

vo cê não m orde, vo cê m ordisca. A diferença entre m order

Quando faço um tipo de gesto que m e coloca no registro da

e m ordiscar é o que abre a lacuna analógica entre com bate

brincadeira, você tam bém é im ediatam ente levado para ela.

e brincadeira. É o estilo do gesto que desfralda a diferença

Meu gesto o transporta com igo para uma arena de atividade

mínima entre o gesto de brincadeira e seu análogo na arena

diferente daquela em que estávamos. Você é induzido a brin­

de com bate. O gesto desem penha um m ovim ento, com toda

car comigo. Num só gesto, dois indivíduos são arrebatados e

a im ediatez de um a transform ação-in-loco instantânea, ao

13 Ibid., p. 180.

14 Ibid., grifo do autor.

16

17

passo que, no m esm íssim o m ovim ento, desem penha um a

Sobrepõem -se na unicidade do desem penho sem que a dis­

abstração da sua ação, refletindo sobre ela no m etanível do

tinção entre elas seja perdida. São perform ativam ente fundi­

com entário e nela inserindo a lacuna de um a distância ana­

das sem se confundir. Convergem sem se unir, ocorrendo em

lógica de diferença recíproca. Em segundo lugar, a diferença que a abstração do gesto

conjunto sem coalescência. A zona de indiscem ibilidade não

co loca em jo go está num m odo particular: o condicional.

unem ativam ente.

“ Estas ações [...] não denotam aquilo que iriam denotar as ações que elas representam” . O gesto lúdico impregna a situa­

é uma indiferenciação; em v e z disso, é onde as diferenças se O m odo de abstração produzido na brincadeira não res­ peita a lei do terceiro excluído. Sua lógica é a da mútua inclu­

ção de realidade condicional. As ações análogas da arena de

são. Há duas lógicas diferentes na m esm a situação, e ambas

atividade na qual se brinca — a do com bate — estão p re­

continuam presentes em suas diferenças e têm participação

sentes no m odo da possibilidade. A ação que então ocorre é

cruzada em suas zonas perform ativas de indiscem ibilidade.

habitada p or ações que pertencem a um a arena existencial

C om bate e brincadeira convergem — e essa convergência

diferente, cujas ações são de fato sentidas no presente, mas,

resulta em três. Há um, há outro, e há o terceiro incluído de sua

em potencial, em suspenso. E, m uito em bora em suspenso,

m útua influência. A zona de indiscem ibilidade que é o ter­

exercem um poder. Por analogia, orientam as ações do des­

ceiro incluído não adere à santidade da separação de catego­

dobram ento da brincadeira, dotando-as de um a lógica nor-

rias nem respeita a rígida segregação das arenas de atividade.16

teadora. Elas dão ao jogo aquilo que Susanne Langer chama

Bateson discute extensivam ente a natureza paradoxal da

de “form a dominante” [commanâingform] ou “m atriz” forma-

abstração efetuada na brincadeira.17 Ele a vê com o um a ins­

tiva.15 Os gestos do com bate in-formam o jogo, modulam-no

tância do paradoxo de Epimênides, que ficou famoso por meio

por dentro. Ao mesm o tem po, eles m esm os são ligeiramente

de Bertrand Russell, e consiste em “uma declaração negativa

deformados pelo estilismo da brincadeira e sua própria lógica

contendo um a m etadeclaração negativa im plícita” . A decla­

lúdica. É sob efeito dessa deform ação que os golpes do com ­

ração gestual “ isto não é uma m ordida” contém a seguinte

bate transmutam-se em m ovim entos num jogo.

m etadeclaração im plícita: “ estas ações não denotam aquilo

Onde a m odulação im anente e a deform ação estilística se sobrepõem — isto é, no próprio gesto — , a arena do co m ­

que iriam denotar” . Porém , ao m esm o tem po, se fosse tão simples que as ações não denotassem aquilo que denotariam,

bate e a da brincadeira entram num a zona de indiscemíbilidaãe, sem que suas diferenças sejam apagadas. As lógicas da luta e da brincadeira abarcam -se em sua diferença; sobre­ p õem -se em seu gesto com p artilhado, cuja sim plicidade, com o um único ato, constitui sua zona de indiscem ibilidade. 15 Susanne Langer. Feelingand Form. Nova York: Scribner, 1953, pp. 122-123.

18

16 Sobre a zona de indiscemibilidade (também chamada de zona de proximi­ dade ou vizinhança, zona de intensidade ou zona de indeterminação objetiva), cf. Deleuze e Guattari Mil platôs, v. 3, trad. bras. de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34,1996, p. 106; Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 64-66,68,73-75; e o capítulo “ O que é um conceito?”, em Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, trad. bras. de Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Munoz. São Paulo: Editora 34,1992. 17 G. Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 180.

19

não teriam de negar sua denotação. A declaração da brinca­

de m útua inclusão com o um colapso de sua capacidade de

deira diz o que nega e nega o que diz. É logicam ente indecidí-

pensar, e ficarem perturbados com isso (Russell certam ente

vel. Claro que um filhote de lobo não diz nada, estritam ente

ficou, jam ais superando por com p leto). N o entanto, o ani­

falando. Ele diz fazendo; atua. Sua “ declaração” e sua “meta-

m al é m enos perturbado do que ativado por eles. O animal

declaração” são um paradoxo enativado, com a simplicidade

brincando afirma o paradoxo ativam ente, efetivamente. Isso

de um único gesto. Na unicidade do gesto, as duas lógicas

aumenta suas capacidades de pelo menos dois modos. Por um

são reunidas numa m etacom unicação, revestindo a situação

lado, os animais aprendem através da brincadeira (na medida

de possibilidades que a superam. O gesto lúdico corporaliza

em que uma luta de brincadeira é a preparação para o envol­

essa complexidade. Sua abstração é pensamento incorporado.

vim ento no combate real que pode ser necessário no futuro).

A brincadeira animal aciona o paradoxo. Ela o m obiliza e o

Por outro, o alcance de seus poderes m entais se expande.

dramatiza. A dramatização pega aquilo que, do ponto de vista

N a brincadeira, o anim al se eleva ao nível m etacom unica-

da lógica tradicional, não passaria de sua própria implosão e,

cional, em que ganha a capacidade de m obilizar o possível.

de fato, o implode. Constitui-se assim um paradoxo efetivo. A

Seu poder de abstração se eleva em um grau. Seus poderes

m etacom unicação animal é eficaz. Ela se nivela, e induz ao

de pensam ento são aumentados. Suas capacidades vitais são

nivelam ento, com o seu desem penho, diretam ente na im e­

im plementadas de maneira mais completa, ainda que abstra­

diatez da execução de seus gestos. Na brincadeira animal, a

tamente. Suas forças de vitalidade são correspondentem ente

indecidibilidade lógica assume um a eficácia que é tão direta

intensificadas. O gesto lúdico é um gesto vital.

quanto paradoxal. Bateson tira daí uma lição: “ seria um péssim o exercício de

O s hum anos tam bém podem praticar um paradoxo e fe ­ tivo quando se perm item a entrega à brincadeira. Nela, o

história natural esperar que os processos mentais e os hábitos

hum ano adentra um a zona de indiscem ibilidade com o ani­

com unicativos dos mamíferos estivessem em conform idade

mal. Quando nós, humanos, dizemos “isto é uma brincadeira” ,

com o ideal do lógico. De fato, se pensam ento e comunicação

assum im os nossa anim alidade. A brincadeira dram atiza a

hum anos sempre estivessem em conform idade com o ideal,

participação recíproca do hum ano e do animal, de am bos

Russell não teria — não poderia ter, na realidade — form u­

os lados. Quando os animais brincam , estão enativando, em

lado o ideal” .18Aqui Bateson salienta outra m útua inclusão:

term os preparatórios, habilidades humanas. Bateson diz que,

a do animal e o humano. São a animalidade e a humanidade,

em nossas suposições usuais, entendem os equivocadamente

com o um todo e em suas diferenças, que adentraram parado­

a ordem evolutiva, pensando que a m etacom unicação tem de

xalm ente uma zona de indiscem ibilidade. A diferença entre o humano e o animal nessa conexão ta l­ vez resida no fato de os humanos experimentarem paradoxos

vir após a com unicação denotativa que ela enreda. De fato, “ a com unicação denotativa, com o ocorre no nível hum ano, só é possível após a evolução de um com plexo conjunto de regras m etalinguísticas (mas não verbalizadas) que ditam

18 Ibid.

20

com o palavras e sentenças devem se relacionar a objetos e

21

acontecimentos. Logo, é apropriado buscar a evolução dessas

A atualidade da situação se am plia com a possibilidade. A

regras m etalinguísticas e/ou m etacom unicativas num nível

com unicação se com plexifica com a metacom unicação. Cada

pré-humano e pré-verbal”.19

gesto lúdico é carregado dessas diferenças de nível, situação

A brincadeira animal cria as condições para a linguagem.

e m odo de existência ativa. Essa intensificação é provocada

Sua ação m etacom unicativa constrói a base evolutiva para

pela suspensão da lógica tradicional regida pelo princípio do

as funções m etalinguísticas que serão a m arca registrada da

terceiro excluído; mas faz com que a brincadeira seja muito

linguagem humana, e o que a distingue de um mero código.

mais que o m ero colapso dessa lógica, efetua uma passagem

A lógica corporificada da brincadeira animal, pré-hum ana e

para um a pragm ática na qual um a lógica diferente é direta­

pré-verbal, já é essencialm ente análoga à linguagem . É efe­

m ente corporalizada na ação, nivelada ao gesto. Essa outra

tiva e enativam ente lingüística avant la lettre, com o dizem os

lógica não é nada se não for desem penhada, não é nada se

hum anos em francês. Por que então o op osto tam bém não

não for vivida. A forma da abstração encenada na brincadeira

seria verdadeiro: a linguagem hum ana ser essencialm ente

é uma abstração vivida.2-1

anim al, do ponto de vista das capacidades lúdicas que car­

Em que consiste essa pragmática enativa da abstração vivida?

rega, tão intim am ente vinculada aos poderes m etalinguísti-

Tudo depende da diferença mínima entre o gesto lúdico e

cos? Pensem os no hum or. Por que não considerar a lingua­

o gesto análogo que ele invoca, e que, por sua vez, o habita.

gem hum ana um a reprise da brincadeira animal, elevada a

Tudo reside na lacuna entre m order e m ordiscar, m over e

um a potên cia mais alta? O u d izer que, na realidade, é na

saltitar, executar um a ação e dramatizá-la. O que escancara

linguagem que o hum ano atinge o mais alto grau de animali­

a diferença m ínim a, possibilitan d o a m útua inclusão que

dade? Deleuze e Guattari não insistiram que é na escrita que

caracteriza a lógica da brincadeira, é mais um a v e z o estilo.

o hum ano “ devém -anim al” mais intensam ente; isto é, que

A diferença entre um a m ordida de lu ta e um a m ordida de

entra mais intensam ente num a zona de indiscem ibilidade

brincadeira não está apenas na intensidade do ato no sentido

com a própria animalidade?20 Na brincadeira trata-se precisam ente de um a questão de intensificação. O revestimento num campo não bélico daquilo

quantitativo: com quanta força os dentes cravam. A diferença é qualitativa. O gesto lúdico é desem penhado com um ar tra­ vesso, um exagero ou uma desorientação brincalhões; ou, no

que é próprio da arena de com bate embala a situação. Cada

extremo mais matizado do espectro, um floreio, ou até mesmo

ato carrega uma dupla carga de realidade, com o se o que esti­

certa graciosidade subestim ada cham ando m odestam ente a

vesse sendo feito fosse infundido pelo que se estaria fazendo.

atenção para o espírito em que o gesto é apresentado.22 Um

19 Ibid.

21 Massumi, Semblance and Event: Activist Philosophy and the Occurrent Arts. Cambridge: m i t Press, 2011, p p . 15-19; 42-43; 146-158 epassim.

20 Deleuze e Guattari, Kafka: por uma literatura menor, trad. bras. de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, pp. 32-34,67-73; Müplatôs, v. 4, trad. bras. de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34,1997, pp. 17-33, 42-46; cf. também o Suple­ mento 1 abaixo.

22

22 Sobre a graça como “uma simpatia virtual, ou mesmo nascente” assinalando um “ progresso qualitativo”, cf. Bergson, Ensaios sobre os dados imediatos da consciência, trad. port. de João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 18.

23

gesto lúdico numa luta de brincadeira não se contenta em ser

O que está em excesso na situação, sua sobrecarga de inten­

o m esm o que seu análogo no com bate. Não é tanto “co m o”

sidade, é canalizado pelo valor de brincadeira do jogo. É um

um m ovim ento de com bate, mas combatesco: com o no com ­

valor de excesso, no excesso: uma mais-valia. É uma mais-valia

bate, mas com um detalhe diferente, um detalhe a mais. Com

de animação, vivacidade — uma mais-valia de vida, irredutivel-

um superávit: um excesso de energia ou espírito.

mente qualitativa, nivelada de forma ativa com o viver.

Esse excesso é sentido com o um entusiasmo palpável que

A m ais-valia de vida, que é um a das -esquidades dos ges­

carrega uma força de indução, um envolvim ento contagiante.

tos vitais da brincadeira, corresponde ao qué Raymond Ruyer

Étienne Souriau observa o “entusiasmo do corpo” com o qual

chama de rendimento estético da atividade. O rendim ento esté­

um animal se entrega à abstração vivida da brincadeira.23Ao

tico é o excesso qualitativo de um ato vivido puram ente por

brincar, o animal fica intensamente animado. Seus gestos vitais

si só, com o um valor em si, acim a e contra qualquer função

corporificam uma vivacidade aumentada. Expressam o que

que tam bém p ossa ocupar. O rendim ento é um excedente

Daniel Stern chamaria de afeto de vitalidade.24 O entusiasmo do

de vivacidade, trazid o paradoxalm ente à tona por força de

corpo é o afeto de vitalidade da brincadeira tornado palpável.

abstração. A proposição de Ruyer é ainda mais radical: ele

O afeto de vitalidade da brincadeira e o entusiasmo do corpo

afirm a que todo ato instintivo produz um rendim ento esté­

que ele expressa coincidem com o -esco em “com batesco”.

tico. Isso situa a brincadeira num continuum de instin to e,

Há uma “-esquidade” no gesto lúdico que marca sua dife­

inversam ente, o instinto no espectro artístico. Portanto, é

rença qualitativa em relação aos gestos análogos da arena de

um a questão de ênfase considerar a brincadeira um a varie­

atividade com a qual se brinca. A “ -esquidade” dos gestos

dade do instinto ou o instinto um portador da brincadeira.

é a assinatura perform ativa do m odo de abstração na brin­

Am bos estão corretos: inclusão d iferencial m útua, com a

cadeira. Ela corporaliza a “ representância” , na fórm ula de

m estria com o operadora da inclusão.

Bateson. Em outras palavras, é o signo enativo do valor da

A brincadeira pertence instintivam ente à dim ensão esté­

ação. Em si, é pura representância, puro valor expressivo — o

tica. A fim de con sid erar inteiram ente o que há de singu­

próprio elem ento do lúdico na expressão, com o uma form a

lar na brincadeira, é necessário ressituá-la num continuum

de abstração vivida. A “ -esquidade” do ato instancia o valor

que se estende ao longo de toda a vida, em tod o s os seus

de brincadeira do jogo.

níveis, desde o instinto mais básico até as capacidades mais elaboradas de expressão lúdica e abstração vivida — as da

23 Étienne Souriau. Le sens artistique des animaux. Paris: Hachette, 1965, p. 35. Cf. Erin Manning (Always More Than One: lndividuation’s Dance. Durham: Duke Uni­ versity Press, 2013, pp. 84-203) para uma análise do que - em outro contexto, o da neurodiversidade e da experiência autística - a autora chama de "forma do entusiasmo". 24 Daniel Stem, The Interpersonal World ofthe lnfant. Nova York: Basic Books, 1985, pp. 53-61 [Ed. bras.: 0 mundo interpessoal do bebê, trad. Maria Adriana. V. Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992].

24

linguagem humana. Linguagem humana: pura representância, com poderes inigualáveis de paradoxo, capaz de produzir os mais puros e mais intensam ente abstratos valores expressi­ vos. Linguagem humana: cujas condições de possibilidade evolutiva são estabelecidas pela brincadeira no continuum do instinto. Ao longo de todo o continuum, de toda a vida, das

25

expressões instintivas mais silenciosas às mais loquazes, ela

A representância do gesto de brincar faz da brincadeira

carrega um a dim ensão estética irredutível. A própria vida é

um a atividade expressiva, essen cialm en te em excesso em

inseparável do rendimento estético do qual usufrui continua­

relação à função. A qualidade de animação da brincadeira, a

mente. Ruyer assume o term o self-enjoyment [contentam ento

mais-valia de vida que ela desem penha com o entusiasmo do

de si], de W hitehead, com o um sinônim o para a mais-valia

corpo, supera a instrumentalidade. Seu rendimento por natu­

da abstração vivida.23

reza excede o valor de uso funcional de seus atos análogos. O

O rendim ento estético da brincadeira é a m edida qualita­

ato lúdico abre um a lacuna entre a própria força situacional

tiva de sua inutilidade. A -esquidade do com batesco corres­

e a funcionalidade dos análogos com que ele joga, e investe

ponde à diferença estilística entre executar um ato e dramati­

a lacuna com o valor puram ente expressivo da representân­

zá-lo, entre cumprir uma função e encenar sua representância.

cia. Essa é um a manobra instável que pode sair dos trilhos a

Um gesto exerce uma função lúdica na exata m edida em que

qualquer m om ento.

não cumpre sua função análoga, a qual o gesto lúdico coloca

Pode-se objetar que a brincadeira tem , sem dúvida, um a

em suspenso em prol da própria representância que dela faz.

função. De fato, isso já foi mencionado: brincar desem penha

Se o valor expressivo da representância não é pronunciado o

um papel de aprendizado. De acordo com as opiniões dom i­

bastante; se a diferença correspondente à -esquidade do ato

nantes, quando um animal entra num a luta de brincadeira,

é mínima demais; se a lacuna entre a arena da brincadeira e

está treinando para um futuro com bate real. Segundo essa

sua arena análoga é demasiado estreita; se, em suma, o rendi­

opinião, a brincadeira é form alm ente m odelada conform e

m ento estético é insignificante, então a atividade lúdica tam ­

sua arena de atividade análoga: para ser útil com o treino,

bém pode facilm ente se transform ar em seu análogo. M uito

a form a dos m o vim en tos da luta de brincad eira deve ser

rapidamente a m ordida denota aquilo que ela denota, e não

bastan te sem elhante à do com bate. O serviço in stru m en ­

mais o que iria denotar. É guerra. Pode haver sangue. A mais-

tal prestado pela brincadeira à função futura dita que o seu

-valia de vida da brincadeira vira um déficit, um a transforma-

p rincíp io nortead or seja que sua form a se conform e. N ão

ção-in-loco tão imediata quanto a inaugurada pela brincadeira.

carrega um a força expressiva, posto que dedicada à função

A dimensão estética do gesto se retrai até se tornar um ato de

adaptativa. Está fundam entalm ente a serviço da guerra de

designação (“ isto é um a m ordida”) e um a ação instrum en­

todos contra todos. Ele deve ser entendido em term os de

tal (“querendo ou não, agora efetivam ente faço o que estou

m ero valo r de sobrevivência, não de produção estética de

fazendo, e não mais o que estaria”).

m ais-valia de vida. É inegável que a brincadeira tem um papel no aprendizado,

25 Raymond Ruyer, Le néo-finalisme. Paris: p b f , 1952, p. 103. Como veremos no segundo suplemento, o próprio ato de percepção é um gesto vital que carrega um elemento de transformação-in-loco e de brincadeira; e, portanto, um grau de reflexividade imediata, que Ruyer chama de “inspeção absoluta”. Ecoando Whitehead, Ruyer menciona que a “autofruição” está conectada com a inspeção absoluta.

26

e que o aprendizado serve a fins adaptativos. M enos claro é o fato de que isso significa que a relação da brincadeira com suas arenas análogas é essencialm ente de subordinação

27

co n form ativa.26 O excesso e stilístico da brincadeira, sua

gesto previsível. Se o aprendizado ficasse restrito à m ode­

-esquidade, não corresponde apenas a um detalhe a mais que

lagem da form a de um ato instintivo antes de sua execução

floreia o gesto, mas a um poder de variação. A form a do gesto

instrumental, seria perigosamente desadaptativo, moldaria os

é deformada, de modo mais ou menos sutil, sob a pressão do

alunos para a morte. Ruyer sustenta que o poder de improvi­

entusiasm o do corpo que o realiza. Na deform ação, a forma

sar é uma dimensão necessária em qualquer instinto.

análoga assume outra forma. A lacuna entre o gesto lúdico e

Não é a brincadeira que é moldada na forma do combate, é a

seu análogo cria uma margem de manobra: abre espaço para

forma do combate que é modulada pela brincadeira. Longe de

a improvisação. A brincadeira é a arena de atividade dedicada

a brincadeira estar servilmente subordinada às funções de suas

à im provisação das form as gestuais, um verdadeiro labora­

arenas de atividade análogas, são essas funções que dependem,

tório de form as de ação ao vivo. Aquilo de que se brinca é

para sua funcionalidade contínua, dos poderes de variação

invenção. O rendim ento estético da brincadeira vem com

natos da brincadeira. O sucesso na luta contra um inimigo ou

um a m obilização ativa dos poderes de variação im provisa­

na fuga de um predador é reforçado por um poder animal de

dos. A mais-valia de vida é igual à mais-valia de inventividade.

im provisar im ediatam ente. Quando isso acontece, a função

Não fosse esse o caso, a luta estaria perdida. E efetivamente

vital capturou o valor expressivo dos gestos e os canalizou para

o poder de variação aprendido na brincadeira, a proeza impro-

seus próprios fins instrumentais. De fato, é a ação instrumen­

visacional que ela aprimora, que dá ao animal a vantagem no

tal que é parasitária em relação à brincadeira. A vida lucra com

com bate; ou, para citar outro exem plo, na fuga de um p re­

a mais-valia de vida produzida pela brincadeira, convertida em

dador. Um gesto cuja form a é moldada com o uma função de

valor de sobrevivência. Captura: apenas uma atividade autô­

fim reconhecidamente instrumental é um gesto normatizado

noma pode ser capturada. A brincadeira, e a expressividade à

antes mesmo de sua execução, e um gesto norm atizado é um

qual ela mesma se dedica, constitui um domínio autônomo da atividade vital, um domínio fundamentalmente insubordinado

2.6 Burghardt argumenta contra a visão neodarwiniana dominante de que a brinca­ deira animal pode ser adequadamente explicada em termos de seu valor adaptativo: “ [é] provável que as vantagens iniciais do incipiente comportamento análogo à brincadeira não envolvam nenhuma função particular, como o aperfeiçoamento de comportamentos posteriores, aumento de resistência ou facilitação da flexibi­ lidade comportamental” (The Genesis of Animal Play: Testing the Limits. Cambridge: mit Press, 2005, p. 172). Uma vez que a brincadeira excede qualquer funcionalidade particular, só pode ser inteiramente explicada, segundo ele, como uma função de “ superávit". Como observa Brian Sutton-Smith, em seu prefácio ao estudo de Bur­ ghardt, “a brincadeira tanto se origina da quanto cria recursos superavitários” (Ibid., p. x). A “teoria dos recursos superavitários” de Burghardt é cuidadosa ao estabele­ cer que os recursos superavitários em questão não são adequadamente entendidos em termos de “energia” superavitária. Em outras palavras, não são quantificáveis (fisiologicamente), mas possuem um componente irredutivelmente qualitativo, atinente a fatores “ mentais” e “emocionais” (Ibid., pp. 172-179).

28

à lógica da adaptação, ainda que seja capturado de modo útil por ela em determinadas circunstâncias. Isso inverte a relação entre a brincadeira e suas arenas análogas. Em vez de brincar de forma servil em conform idade com elas, na realidade são variações nas formas que são inventadas pela brincadeira, daí secundariamente assumindo funções adaptativas. Ruyer insiste que os-poderes autônomos de variação estão presentes nas atividades instintivas de qualquer natureza.27 Se o ato instintivo fosse aquilo que é considerado — uma 27 Ruyer, Lagenèse desformes vivantes. Paris: Flammarion, 1958, pp. 17-18; pp. 27-28.

29

seqüência estereotipada de ações pré-m oldadas executadas

contingenciais da situação. Em outras palavras, o instinto é

por reflexo à maneira de um automatismo — , então o instinto

sensível às relações entre os elementos particulares que com­

seria incapaz de responder a m udanças contingenciais no

põem a situação vivida. Sua ação varia conform e a singulari­

am biente.28 Variações contingenciais no ambiente precisam

dade da situação. Todas as minhocas tapam a abertura de suas

ser com patibilizadas através de variação, o que requer certa

tocas, mas o m odo de assegurar essa função instintiva inva­

plasticidade criativa, uma margem improvisacional de mano­

riável se diferencia de acordo com os materiais disponíveis, a

bra. Todo ato instintivo, independentemente de quão estereo­

forma como se apresentam, sua localização e sua configuração.

tipado em geral pareça ser, carrega uma margem de manobra.

“ Se os verm es agissem somente por instinto [no sentido de]

Todo instinto carrega em si um poder de variação, em um grau

um impulso herdado invariável, eles iriam todos [tapar suas

ou outro. Todo ato instintivo comporta um poder de variação

tocas] da m esm a maneira” .30 Ao contrário, “vem os um indi­

que acreditam os ter o direito de chamar de “lúdico”, no sen­

víduo lucrar com a sua experiência individual” ao improvisar

tido mais amplo da palavra. O u “estético”, dada a natureza do

uma solução que é adaptada não à generalidade da situação,

rendimento produzido. A margem de manobra da brincadeira

mas à sua singularidade.31 Essa capacidade, observa Darwin, evi­

é o “estilo”: a -esquidade que perfaz a possibilidade. Tudo isso

dencia um “poder mental” : um poder de abstração.32

nos obriga a reconhecer a expressão como uma operação vital

Não há razão para considerar esse poder de abstração um

tão primordial quanto o próprio instinto. N ão há vida sem

tipo de reflexividade. A situação geral (tapar o buraco) é refle­

mais-valia de vida. Não há instrumentalidade sem expressivi­

tida na singularidade vivida (tapar este buraco assim, aqui e

dade. Adaptação nunca surge sem inventividade. Expressivi­

agora). Essa é uma reflexividade vivida, uma reflexividade com

dade e inventividade são a ponta de lança da gênese das formas

os gestos inventivos que a expressam. Ruyer, com o Bergson,

de vida. E através de suas margens de manobra que os parâ­

estende esse poder m ental não cerebral até chegar às ame­

metros operacionais dos modos de existência são expandidos.

bas, ou m esm o às células individuais que com põem corpos

O próprio Darwin disse isso quando exaltou as proezas

animais multicelulares.33“ Seria tão absurdo”, escreve Bergson,

im provisacionais de suas adoradas m inhocas, às quais dedi­ cou um longo tratado. A operação do instinto, escreve ele, não pode ser equiparada a uma “simples ação reflexiva” , como se o

30 Darwin, TheFormation ofVegetable Mould through theAction ofWorms op. cit., pp. 64-65.

animal “fosse um autômato” .29 Prova disso é que o mesmo estí­

31 Ibid., p. 95.

mulo não conduz ao mesmo efeito, dependendo das variações

32 Ibid., pp. 25,34-35.

28 Ibid., p. 147. 29 Darwin, TheFormation ofVegetable Mould tkrough tkeAction o/Worms, with Observations on their Habits. Nova York: Appleton, 1890, p. 24. Ainda sobre as minhocas de Darwin, cf. Bennett (Vibrant Matter: A Political Ecology ofThings. Durham: Duke University Press, 2010, pp, 94-109).

30

33 Ruyer, La genèse des formes vivantes op. cit., pp. 103-106. Whitehead também deveria ser adicionado à lista: “a vida espreita nos interstícios de cada célula viva” (Process and Reality. Nova York: Free Press, 1978, p. 105). E, em sua filosofia, toda ocasião da vida é considerada como tendo um “polo mental” (falaremos mais sobre isso adiante). O biólogo Brian J. Ford argumenta que as células dos animais multicelulares são dotadas de inteligência (“On Intelligence in Cells: The Case for Whole Cell Biology” . Interdisciplinary Science Reviews ne 34 v. 4, 2009, pp. 350-365).

31

“ recusar a consciência a um animal, pelo fato dele não ter cére­

Ruyer, Bergson e Bateson consideram esse poder de m en­

bro, quanto declará-lo incapaz de se alim entar pelo fato de

talidade expressiva com o a vanguarda da evolução.3S Ele é o

não ter estômago.”34Portanto, mesmo num estágio evolutivo

próprio m otor da evolução, responsável por inventar as for­

de antes de a brincadeira reclamar as próprias arenas de ativi­

mas que vêm a ser selecionadas com o adaptativas. Bergson

dade independentes — e de registrar essa diferença, como sua

argum enta que essa força inventiva de variação opera até

própria, na -esquidade — , já havia um elemento de brincadeira

mesm o quando as forças de mutações contingentes estão em

em todos os atos instintivos. Todos eles são capazes de afir­

ação. Uma m utação em um elem ento requer que os elem en­

mar uma força expressiva de variação, bem com o um poder

tos adjacentes se reconfigurem ao seu redor. Os elem entos

de singularização que gera mais-valias de vida. Todo ato, até

reminiscentes improvisam-se numa nova integração ao redor

o mais instrum ental, é margeado por expressividade impro-

da mudança, de um m odo que não pode ser consagrado ao

visacional. O instinto não é limitado à repetição automática

acaso ou explicado por princípios puram ente m ecanicistas,

do arco reflexo disparado por um traço de memória herdado.

que operam em term os locais, parte a parte. Mas uma in te­

Este é um aspecto do instinto. Mas é necessário lembrar que

gração é justam ente isto: integral. Isto é, diz respeito à coor­

cada repetição “ estereotipada” de um ato instintivo é capaz de

denação e à correlação de todas as partes ao m esm o tem po,

formar potencialmente um arco na futura direção improvisada

em sua maneira de convergir.36

da gênese das formas de vida, da expressão de novas variações sobre os modos de atividade constitutivos da vida. 34 Bergson, A evolução criadora, trad. bras. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 120. Que os poderes mentais podem residir fora do cérebro já foi verificado através de experimentos. Mostrou-se que amebas — as quais, enquanto criaturas unicelulares, são perfeitamente desprovidas de cérebro — têm memória e podem antecipar o futuro (Saigusa et ali., “Amoebae Anticipate Periodic Events”. Physical Review Lettersv. 100, na 1, 2008, pp. 1-4). Poderes mentais extracerebrais também foram demonstrados em animais multicelulares. Platelmintos, que têm o invejável poder de regenerar seus cérebros, foram treinados para realizar uma tarefa. Foram, então, decapitados. E quando seus cérebros cresceram de volta, lembraram-se da tarefa que lhes foi ensinada antes de terem perdido as cabeças (Shomrat e Levin, “An Automated Training Paradigm Reveals Long-term Memory in Planaria and Its Persistence through Head Regeneration” . Journal of Experi­ mental Biology, 2013). O instinto, claro, envolve um modo de memória, que Ruyer chama de “traço mnêmico” e que é reativado por um estímulo (Ruyer, Lagenèse des formes vivantes op. cit., pp. 113-115). É a diferença entre o traço mnêmico e a singula­ ridade da situação presentemente vivida o que inaugura uma diferença mínima que coloca uma margem de brincadeira até na mais básica ação instintiva, conferindo a toda percepção um elemento da brincadeira (cf. suplemento 2). A brincadeira alavanca ainda mais essa abertura por meio da esquidade.

32

35 Burghardt (The Genesis of Animal Play op. cit.) também reconhece a brincadeira como o motor da evolução: “reconhecemos agora que a brincadeira pode ser vista tanto como um produto como uma causa da mudança evolutiva; isto é, que as ati­ vidades lúdicas podem ser uma fonte de funcionamento comportamental e mental aperfeiçoado, assim como um subproduto de acontecimentos evolutivos prece­ dentes” (p. 121). Seu caráter superavitário faz da brincadeira “tanto um detrito evolutivo quanto um propulsor evolutivo” (p. 180) — sempre em excesso. 36 Bergson, A evolução criadora op. cit., pp. 66-76. Ford (“On Intelligence in Cells” op. cit.) usa argumentos similares em seu estudo de caso sobre inteligência celular, e eles são um traço comum de teorias que buscam contrabalancear a hegemonia do fundamentalismo mecanicista neodarwiniano (cf. nota 2 para mais referên­ cias). Sobre a importância evolutiva dos “todos integrados” , cf. o clássico texto de Stephen Jay Gould e Robert Lewontin, “The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm: A Critique o f the Adaptationist Programme” . Proceedings ofthe Royal Society ofLondon. Série Biological Sciences, v. 205, n2 1161, 1979, pp. 581, 591, 594. A abordagem da evolução via sistemas complexos feita por Susan Oyama também enfatiza a composição relacionai conjunta: “no que doravante referiremos como seletividade recíproca de influências, ou mútua dependência de causas, não somente todo um conjunto de influências contribui com todo e qualquer fenômeno dado, mas o efeito de todo e qualquer interagente também depende tanto de suas próprias qualidades quanto das de outros, geralmente em

33

A expressividade im p ro visacio n al do in stin to que lh e

gatilhos. Por exemplo, entre as gaivotas-prateadas, um ponto

confere o poder integral para gerar m ais-valia de vida deve

verm elho no bico da fêm ea serve, em circunstâncias normais,

ser recon h ecid a com o um m odo de atividade nato e au tô­

com o o gatilho para alim entação.38 O ponto atrai as bicadas

nom o, irredutível aos m odos funcionais que o capturam. A

do filhote, o que estim ula o adulto a regurgitar o cardápio. A

diferença, mínima que seja, entre funcionalidade e expressi­

fim de pesquisar exatam ente qual qualidade perceptual cons­

vidade, entre instrum entalidade e atividade estética, vigora

tituía o gatilho, Tinbergen se pôs a construir um a série de

sem pre e por toda parte. Por natureza, a atividade em sua

engodos em form a de bicos apresentando um espectro de

dim ensão expressiva está em excesso co m relação às fu n ­

características variáveis. Seu objetivo era isolar as proprieda­

ções norm alizadas das form as gerais de atividade já adapta­

des precisas essenciais ao com portam ento instintivo. A fim

das à sobrevivência. O instinto, em seu aspecto de atividade

de entender os parâm etros do com portam ento, estendeu o

expressiva, tem uma tendência inata a superar o normal, por

espectro de variação apresentado m uito “além dos lim ites

força do entusiasmo do corpo. Ele é animado por um ím peto

do objeto norm al” .39 Para sua enorm e surpresa, não conse­

im anente rumo ao supemormal. Os pioneiros estudos de Niko Tinbergen sobre o instinto,-

guiu isolar quaisquer propriedades particulares que pudesse

que auxiliaram na criação das bases para disciplina da etolo-

determ inadas configurações, era capaz de enganar. Para sua

apontar com o essenciais. Até m esm o um ponto cinza, em

gia, não saíram incólum es disso tudo. Desde o início, Tinber­

consternação, Tinbergen descobriu de m odo ainda mais sur­

gen notou um a pronunciada tendência da atividade instin­

preendente que, entre os engodos que produziam a resposta

tiva a favorecer o que chamou de "estím ulos supernormais” .37

mais entusiasmada por parte do filhote, estavam aqueles que

Tomando como ponto de partida o modelo padrão do instinto

menos lem bravam a form a norm al do b ico da gaivota-pra-

com o estím ulo-resposta operando estritam ente por reflexo,

teada fêmea. O entusiasmo do corpo da jovem gaivota premia

Tinbergen decidiu investigar quais propriedades particulares

ardentem ente para além do normal.

de determ inados estím ulos instintivos funcionavam com o

Tinbergen concluiu que a seqüência instintiva de ações não dependia, de fato, de nenhuma propriedade isolável que

complexas combinações” (Oyama, The Ontogeny of Information: Developmental Sys­ tems and Evolution. Durham: Duke University Press, 2000, p. 18). Há um elemento emergentemente performativo e improvisacional na origem dessas “combinações complexas” integrais porque os “padrões não existem como tais antes de serem realizados” (p. 35). Abiologia molecular corroborou recentemente o ponto de vista de Bergson, movendo seu foco de atenção para variações imanentemente conecta­ das na rubrica de “ mutações secundárias”. Isso remete a uma mutação randômica que causa "efeitos secundários em algum lugar do genoma” de modo a “ impelir a seleção a novas mutações, mesmo na ausência de pressões de seleção ambientais deliberadas” (Vence, “One Gene, Two Mutations.” The Scientist Magazine, 2013.).

vas do objeto” .40 O que provocou resposta não era inteligível

37 Niko Tinbergen, The Study oflnstinct. Oxford: Oxford University Press, 1951, pp.

39 N. Tinbergen, Animal Behavior. Nova York: Time-Life Books, 1965, p. 68.

44-47-

34

.

p ertencesse quer à form a do estím ulo presum ido, quer ao terreno no qual ele se perfilava. “Não há uma distinção abso­ luta entre signos-estím ulos efetivos e propriedades não efeti­

38 N. Tinbergen e A. Perdeck, “On the Stimulus Situation Releasing the Begging Response in the Novaly Hatched Herring Gull Chick” in Behavior v. 3, na 1,1950, PP-1-3940 Tinbergen, The Study oflnstinct op. cit., p. 42.

35

em term os de propriedades isoláveis, mas irredutivelm ente

Para T in b ergen , isso fico u apenas co m o u m ep isó d io

relacionai. “Tais estím ulos ‘relacionais’ ou 'configuracionais” ’,

cu rioso que não o induziu a alterar seu m odelo. O animal,

ele refletiu, “parecem ser a regra e não a exceção” .41 Aquilo a

para ele, co n tin u o u sen d o um a m áquina, ainda que “ de

que o filhote de gaivota-prateada respondia, conclui ele, era

grande com p lexid ade” e bastante incerta, com o um “caça-

um efeito de intensificação produzido por deform ações que

-níqueis” .43 Sua conclusão sobre os estím ulos supernormais?

afetavam integralm ente tod o s os elem en tos presentes em

C o m m ais do que um indício de irritação com os anim ais

suas relações uns com os outros. Deform ações integralmente

não cooperativos, ele observou: “ N inguém nunca foi m uito

conectadas são com petência da topologia. O que Tinbergen

capaz de analisar tais questões, ainda que, de algum m odo,

havia descoberto era um a topologia da experiência na qual os

ten h a m sid o co n su m a d a s” .44 É p re c isa m e n te o “ algum

diversos elem entos em jogo são juntam ente varridos na dire­

m o d o ” dessa consum ação dos bebês pássaros em frustrar

ção das próprias variações integrais, num estado dinâmico de

as ex p e cta tiv a s assim ilad as do cie n tista que p recisa ser

m útua inclusão.42

retid o e in tegrad o às nossas n o ções de “ an im alidade” . O fracasso das suposições m ecanicistas da teoria tradicional

41 Ibid., p. 68. 42 Para uma análise extensa dos estímulos supernormais e das variáveis experienciais integralmente conectadas, cf. Massumi “Ceei n’est pas une morsure. Animalité et abstraction chez Deleuze et Guattari” . Philosophie, n2 112, 2011, pp. 67-91; e, embora menos aprofundado, “ The Supernormal Animal” in Richard Grusin (org.), The Nonhuman Tum. Minneapolis: University o f Minnesota Press, 2015. O Supernormal Stimuli, de Deirdre Barret (Nova York: Norton, 2010), um recente best-seller de divulgação científica, é um ensinamento concreto sobre todos os sentidos nos quais não utilizaremos esse conceito — além de se apresentar como um argumento nos moldes de uma reduetio ad absurdum contra a sociobiologia em que está baseado, no qual ele conduz as tendências inerentes à disciplina em dire­ ção à sua embaraçosa conclusão lógica. Respondemos a estímulos supernormais, segundo o argumento, porque certa vez eles tiveram uma função útil, e a predi­ leção por eles ainda perdura em nossos genes. Mas no nosso ambiente moderno eles se tornaram perigosamente desadaptativos. Considere o hambúrguer super­ normal. Nosso gosto excessivo pelas calorias vazias oriundas da gordura e dos carboidratos fazia sentido adaptativo na Era Paleolítica, quando a energia prove­ niente da comida era escassa. Agora, a última coisa de que precisamos são calorias vazias. Mas nos tornamos culturalmente viciados nelas e em outras tendências supernormais, estendidas de forma artificial para além de suas utilidades evolu­ tivas em épocas anteriores. Com a função adaptativa natural perdida, eles foram cooptados pela cultura. A resposta aos estímulos supernormais é agora “artifi­ cial”; seu encanto, puramente “ilusório” . Antes um gigante bife de mamute era um reforço de energia emergencial. Hoje o Big Mac gigante é uma ponte de safena. O rendimento estético que derivamos dessas atrações não é um valor de vida. E a morte coberta de picles, matando-nos pão a pão. A epidemia de obesidade é

36

em explicar a com plexidade produtora de incerteza do com ­ p ortam ento instintivo não pode ser com pensado com uma viagem para Las Vegas. um resultado direto do fato de nossa tendência supernormal ter sido retirada de seu ambiente natural. Então é guerra. É o estímulo supernormal da batida no peito do macho agora artificialmente bombado que, similarmente desenraizado de seu valor tribal de sobrevivência, está nos matando coletivamente, em massa. Nossa tendência supernormal nos fez desviar das “coisas reais” da vida. Temos de voltar à real. Temos que lutar contra as nossas tendências supernormais. Temos de reinar sobre elas. Temos de mobilizar contra elas a mesma cultura que as dei­ xou seguirem em frente. Temos de usar a cultura para retirar a cultura de baixo das mortalhas das tendências supernormais que ela transmite, fazendo com que voltemos à conformidade funcional com nossa “verdadeira natureza humana” . A cultura deveria ser a serva natural da normatividade. A normatividade deveria ser culturalmente maquinada para reinar suprema naturalmente. Precisamos instalar uma atualização instintual em nós mesmos: Homem das Cavernas 2.0. Esse uso de um estilo de vidapaleolítico imaginado (repleto dos mais arcaicos estereótipos de gênero) como parâmetro para o que é “naturalmente humano”, e equiparando “cultural” e “ antinatural” e desviante, é o esteio da literatura sociobiológica. Para uma crítica clássica da sociobiologia, cf. Lewontin, Rose e Kamin, Not in Our Genes op. cit., pp. 233-264. 43 N. Tinbergen, Animal Behavior op. cit., p. 68. 44 Ibid.

37

A fim de fazer um balanço total do que os estím ulos super-

continua ele, deve ser considerada uma dimensão necessária

normais nos dizem acerca do instinto, a com plexa incerteza

de todo instinto. Outra palavra para esse poder alucinógeno

que eles revelam no cerne do instinto precisa ser construída

nato é a utilizada por Hume: imaginação. Seja qual for o nome,

em termos positivos. A capacidade de produzir resultados ines­

não estamos lidando com um caça-níqueis, mas sim com um

perados que não se relacionam de modo linear a inputs discre­

primeiro grau de mentalidade no continuum da natureza.47

tos e isoláveis é um aspecto essencial do instinto. Deve-se reco­ nhecer que os movimentos instintivos são animados por uma tendência a superar as formas dadas, movidos por um ímpeto à criatividade; esse ímpeto imanente à criatividade tem de ser reconhecido com o um poder mental, com mentalidade defi­ nida nos moldes neo-humeanos — em termos de capacidade de superar o que está dado. O m otor dessa superação não é o reco­ nhecim ento de um a forma dada, mas sim a deformação inte­ gral das qualidades da experiência indissociavelmente conec­ tadas: a produção espontânea daquilo que Deleuze e Guattari chamam de ‘‘blocos de sensação” .45 Nenhuma causa eficiente pode ser isolada como sendo a que empurra por trás esse movi­ mento de autossuperação da experiência. A comparação com a jogatina não é totalm ente descabida. Há um elemento, não tanto de acaso mecanicista, mas — para tomá-lo positivamente — de espontaneidade. Ruyer dá m uita im portância ao fato de que um instinto pode disparar a si mesmo, mesmo na ausên­ cia de qualquer estímulo. Ele caracteriza essa habilidade com o “ alucinatória”, no sentido em que é “ diretamente improvisada” no percepto.46 Essa capacidade de im provisação espontânea, 45 Sobre blocos de devir, cf. Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4, op. cit., capítulo “ Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível” ; e Kafka: por uma literatura menor op. cit., item 3, “Montagem”. Sobre o conceito associado, blocos de sensa­ ção, cf. Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, trad. bras. de Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Munoz. São Paulo: Editora 3 4 ,199a, item “ Percepto, afecto e con­ ceito”. Gould e Lewontin (“The Spandrels of San Marco” op. cit., p. 597) utilizam a expressão “blocos de desenvolvimento integrados”. 46 Ruyer, Lagenèse desformes vivantes op. cit., pp. 146-147.

38

47 Sobre a mentalidade definida em termos da capacidade de ultrapassar o que está dado, cf. a análise feita por Deleuze da teoria do conhecimento de Hume em Empirismo e subjetividade, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34,2001, pp. 14-30). Deleuze enfatiza que 0 que é transcendido é apropria mente: o movimento de menta­ lidade, que começa na atividade infraindividual da imaginação e avança em direção a uma invenção supraindividual de instituições, não pode ser contido na interioridade de uma mente entendida como uma faculdade individual. Para o Hume de Deleuze, isso constitui o devir da natureza humana. Aqui o qualificativo "humano" é abandonado. A capacidade de ultrapassar o que está dado é construída como um poder mental da natureza que passa pelas vidas individuais. Nisso, ela ultrapassa Hume e desemboca no "polo mental" de Whitehead. Para Whitehead, a mentalidade é um fator derradeiro da natureza, conjuntamente constitutivo de toda ocasião. Ele também fala da atividade do polo mental como algo que ultrapassa o que está dado, definindo-a em termos de origem de inovação ("uma centelha de inovação em meio às apetições") e de "aumento de intensidade" (Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 184). Ele utiliza "apetição" como um sinônimo para a atividade do polo mental, ao qual ele também confere o termo técnico "preensão conceituai" (p. 33): "as operações básicas da mentalidade são 'preensões conceituais' (p. 33). Ele oferece, como outras palavras para essa capacidade de transcender 0 que está dado em direção à produção do novo, "intuição" - no senti­ do bergsoniano (com algumas reservas) - e "vislumbre" (pp. 33-34). Bergson também define a mentalidade nos termos de uma força capaz de superar o que está dado. 'Vi­ sivelmente, diante de nós trabalha uma o força que procura [...] superar a si mesma, dar primeiro tudo 0 que tem e em seguida mais do que tem: como definir de outro modo o espírito? e em que a força espiritual [...] se distinguiria das outras, senão pela faculdade de tirar de si mais do que contém?" (Bergson, A energia espiritual, trad. bras. de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: w m f Martins Fontes, 2009, pp. 20-21). Por fim, em seu clássico estudo sobre a brincadeira como um reino de atividade distinto na cultura humana, Huizinga faz uma pontuação similar a respeito da mentalidade, especificamente no que se refere à brincadeira: o jogo "só se toma possível, pensável e compreensível quando a presença da mente destrói o determinismo absoluto do cos­ mos" (Johan Huizinga, Homo Ludens: ojogo como elemento da cultura, trad. bras. de João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2000 p. 6). Huizinga também se distancia tan­ to das conotações substantivistas da palavra "mente" quanto das noções redutoras de "instinto: "Não se explica nada chamando de 'instinto' ao princípio ativo que constitui a essência do jogo; chamar-lhe 'mente ou 'vontade' seria dizer demasiado" (Ibid., p. 4).

39

No seu fracasso em fixar instinto a uma dadidade objetiva de uma causa eficiente, o etologista nos conduziu, a despeito

autocondução do m ovim ento criativo da vida: a autonom ia

de si mesmo, ao afloram ento natural do qualitativo e do sub­

autoexpressiva da criatividade vital.51 Eis a lição spinozista do cuco e da gaivota-prateada: o entu­

je tiv o com o um fator na natureza: aos blocos im provisacio-

siasmo do corpo animal tem seu poder mental de apetição,52

nais de sensação indicativos de um poder m ental de superar

cuja propulsividade aventa uma autonom ia expressiva avan­

espontaneam ente o que está dado. N ão há nada “por trás”

çada pelos gestos vitais da brincadeira do instinto.

dessa tendência direcionada ao supernorm al que seja um a

É fácil ver as vantagens evolutivas de uma tendência super­

dimensão inescapável do instinto. O supernormal exerce uma

normal: é algo que dá ao instinto uma m argem criativa de

força positiva que, em v e z de im pulsionar por trás, nos m ol­

manobra. O em puxo do supernormal em direção à variação

des de uma força mecanicista que encontra resistência (ainda

relacionai das atividades de form as de vida predispõe o ani­

que m inim izada por engrenagens bem lubrificadas), puxa

m al a uma aceitação entusiástica das variações em ergentes.

positivam ente pela frente. A tendência supernorm al é um a

A paixão da apetição move adiante, rumo a variações das for­

força atrativa que puxa a experiência para a frente, em dire­

mas de vida, na contracorrente das pressões adaptativas que

ção ao próprio limite — o da paixão espontânea pela mútua

fazem com que a seleção final e irrevogável esteja de acordo

inclusão do diverso, em transformação integral.

com as necessidades de sobrevivência. Não há dúvida de que

O próprio Tinbergen diz isso. Um filhote de cuco, explica

o meio ambiente exerce uma pressão seletiva. A adaptação é,

ele, p ossu i traço s supernorm ais que encorajam a fêm ea

de fato, a lei dos meios externos. A lição da tendência super­

de outras espécies, cujo ninho o cu co p arasita, a co lo c á ­

norm al é a de que há mais nos m odos da natureza do que

-lo debaixo da asa e nutri-lo. A fêm ea hospedeira, ressalta

com portam ento cum pridor da lei. O instinto opõe à lei de

Tinbergen, não “ quer” alim entar o invasor. Não, ela “ adora”

adaptação seletiva um poder de improvisação mais que ávido

positivam ente fazê-lo.48 E não o faz com m á vontade, mas

para responder ao cham ado de conform idade a dem andas

positivam ente, com paixão. A força do supernorm al é uma força positiva. Longe de ser uma zrapulsão mecanicista, é uma propulsão apaixonada. Propulsão espontânea/ poder mental de superar o que está dado: apetição.49 Ruyer usa o term o autocondução para essa autopropulsão da vida animal imanente ao m ovim ento do instinto.50 O instinto testem unha a

48 Tinbergen, Animal Behavior, op. cit., p. 67. 49 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 33. 50 Ruyer, La genèse des formes vivantes op. cit., pp. 17, 214; Le néo-finalisme op. cit., pp. 127-192.

40

51 Darwin nota a “veleidade” e o “amor pelo novo” até nos animais inferiores: “os animais inferiores são [...] caprichosos em suas afecções, aversões e senso de beleza. Há também uma boa razão para suspeitar que eles amam o novo por si só” (Darwin, The Descent ofMan, and Selection in Relation to Sex, v. 1. Londres: John Murray, 1871, p. 65). 52 “Sem dúvida, tudo isso mostra com clarreza que tanto o decreto da Mente quanto o apetite e a determinação do Corpo são simultâneos por natureza, ou melhor, são uma só e mesma coisa que, quando considerada sob o atributo Pen­ samento e por ele explicada, denominamos decreto e, quando considerada sob o atributo Extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso, chamamos determinação” — Espinosa, Ética, Parte m, Proposição 11 (Espinosa, Ética, trad. bras. Grupo de Estudos Espinosanos, coord. Marilena Chauí. São Paulo: Edusp, 2015, pp. 245-247).

41

externas num a virada supernormal. O instinto tom a a liber­

novas formas. Paralelamente à m utação, há outro fator para

dade de inventar as soluções propostas. Não se contenta em

a origem da variação: um poder de artifício experiencial não

encontrar suas soluções já traçadas no esboço negativo das

m enos im anente à natureza do instinto do que o instinto é

restrições ambientais. Dada a escolha entre a conform idade

imanente à natureza. Diante do acidente, o instinto está apto

às demandas limitativas da adaptação e a morte, ele inventa

a se replicar sobre a própria autocondução, a própria propulsi-

um a terceira via: a invenção do excesso de um mais-viver.

vidade de autovariação.54Ao enfrentar uma mudança no meio

Uma inventividade imanente à topologia da experiência, com

am biente que exerce um a pressão seletiva, ele retorna à sua

suas qualidades vividas, em sua vanguarda mais subjetiva,

própria margem de manobra, levado adiante em seus gestos

responde espontaneam ente às pressões adaptativas. A essa

perform ativos. O instinto opõe à conform idade demandada

inventividade imanente alguns dão o nome de “ desejo”.53

pelas pressões seletivas de adaptação um poder im anente

Obviam ente, a evolução nunca escapa da seleção adapta-

de invenção supernorm al. A ação instintiva jo g a a própria

tiva. Não é assim tão preto no branco. Mas não é exatamente

criatividade natural contra as condições lim itantes do meio

essa a questão. O problem a é a fundam entação do princípio

externo. Se um a ação instintiva é induzida por um estím ulo

neodarwiniano segundo o qual a única força natural de varia­

externo ou uma situação de necessidade externa, ou acontece

ção que contribui para a gênese das form as de vida é a de

na ausência de ambos, há um grau de liberdade “ alucinatória”

m utação. A m utação é puram ente acidental, assim com o as

nas variações deform ativas que ela desempenha. O instinto,

mudanças ambientais que passam a exercer pressão seletiva

enfatiza Bergson, não é apenas acionado, ele é atuado.55 Atua

sobre as variações que as m utações produzem . C om o um

a si mesm o ao brincar. É sempre a atuação de ato verdadeiro,

conceito, o acidental se refere a relações extrínsecas entre elem entos discretos que operam de acordo com leis pura­

nunca apenas um estereótipo de ação. O elem ento supernor­

m ente m ecanicistas que sofrem um a pane: causalidade efi­

rença entre atuar e encenar seja mínima.

m al e inerente do dinam ism o instintivo faz com que a dife­

ciente tem porariam ente fora de serviço. Acidentes ocorrem

Ao se replicar na própria intensidade de variação autocon-

pontualm ente, ao acaso. A espontaneidade, ao contrário, diz

dutora, o lúdico do instin to deixa um a m argem de brinca­

respeito às variações qualitativas que ocorrem integralmente

deira nas lacunas, nas interações entre indivíduos ou entre o

com o um bloco.

indivíduo e o ambiente. As duras necessidades da vida e a lei

A espontaneidade tem uma lógica, m esm o em sua recusa

de seleção adaptativa associada não contam toda a história.

em cumprir a lei. Ela segue a lógica constitutivam ente aberta da intensificação relacionai, na direção da em ergência de 53 Sobre o desejo como um princípio imanente e autocondutor produtor do real, cf. Deleuze e Guattari, O anti-Édipo, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010. “Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade” (p. 43).

42

54 Essa replicação num poder imanente de invenção é a “involução criativa” com a qual Deleuze e Guattari suplementam a “evolução criativa” de Bergson (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 27-28; Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 18-20). 55 Bergson, A evolução criadora op. cit., pp. 158,195. Em francês, joué— que, assim como a palavra inglesa play, também se refere à dramatização, como em playing a role [encenar um papel]. Na edição inglesa está traduzido como acteã [atuado].

43

Sempre há brincadeira em qualquer mecanism o, e o instinto

do lado do elem ento criativo no instinto, com o o m otor m en­

não é um a exceção. N as palavras de Ruyer, há sem pre uma

tal do m ovim ento do devir das form as da vida. Isso porque

“borda fortuita” de espontaneidade im pelindo a autonom ia

a tendência supernorm al corporaliza um desejo de variação

criativa da expressão.56 V oltem os à fam inta gaivota-prateada. Se a tendência do filhote à improvisação tem um efeito insignificante na eficácia

positivo. É através dessa ten dência que o apetite pela vida afirma a variação. Na natureza, “ o fato inicial é a apetição prim ordial” .37 A adaptação dá passagem à tendência super­

do comportamento de alimentação, seus gestos supernormais

normal, de modo que ela siga no caminho — ou não. A adap­

serão destinados a recuar na imanência da natureza de onde

tação seletiva exerce um controle de fiscalização cujo poder

vieram . Fim da história: serão indiferentes ao sucesso repro­

vem da im posição de restrições extrínsecas e que assume a

dutivo da espécie, e não serão passados para a frente na linha

form a de uma sentença de vida ou morte. Impõe a lei daquilo

evolutiva. Mas não é inconcebível que a im provisação entu­

que está dado com o um a necessidade de sobrevivência. O

siástica do filhote acerte em cheio a paixão do adulto, resul­

controle final que exerce sobre o que passa ou não passa em

tando no aum ento da avidez com que ele alim enta sua cria.

term os de novas variações eqüivale a um julgam ento norm a­

Esse aum ento na eficiência do com portam ento de alim enta­

tivo. Eqüivale a um teste de conform idade, um teste de apti­

ção aumenta o sucesso reprodutivo dos pássaros. A im provi­

dão no que se refere às leis de necessidade construídas em

sação e tudo o que se prestou à sua invenção na constituição

condições já dadas. Ainda assim, a longo prazo, o que ganha

instintiva do filhote, na sua relação apetitiva com o que seu

é o poder improvisacional da variação supernormal que ultra­

entorno oferece ao longo do caminho das disposições inten-

passa 0 que está dado, rumo a um excesso de qualidade vivida.

sificadoras de experiência, podem então ser passados adiante

Sua propulsividade tom a a prim azia com o originadora das

pelas forças de pressão seletiva. A exceção imaginativamente

formas de vida submetidas ao julgam ento norm ativo da sele­

subjetiva acaba se tornando a regra biológica. O supernormal normaliza. A tendência à supernormalidade terá efetivamente

ção adaptativa. Para corroborar a excessividade desse ímpeto

contribuído para a gênese evolutiva de um a variação dura­

da natureza em qualquer lugar onde possa ser observada, da

doura de uma form a de vida.

qual o entusiasmo do corpo do gesto instintivo é a expressão

Adaptabilidade e criatividade convergem , sem que a dife­ rença entre elas se apague. No processo de evolução, suas operações tendenciais se interlaçam sem perder sua distinção.

inventivo, basta dar um a olhada na exuberância sem limites

exemplar. A história da evolução é uma louca proliferação de formas, tão fértil que desafia a imaginação humana. Um a filosofia da natureza deve levar em conta essa prima­

Fundem-se, efetivamente, sem coalescer. Ontogeneticamente

zia da expressividade autovariante, bem com o sua autonomia

falando — isto é, do ponto de vista da gênese das formas, da

processual enquanto ten dência autocondutora. Sua prim a­

origem de suas variações — cumpre dizer que a primazia está

zia deve ser reconhecida m esm o onde a vida animal é mais

56 Ruyer, Lagenèse desformes vivantes op. cit., p. 142.

57 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 48.

44

45

firm em ente enraizada no enquadram ento de seu am biente,

para a em ergência da linguagem . A linguagem se distingue

com todos os acidentes e imperativos que vêm com isso. M ui­

pela capacidade reflexiva de se dobrar — de replicar suas ope­

tos animais se enraízam num território. A ocupação proprietá­

rações sobre si mesmas, de comentar a respeito daquilo que se

ria de um território fornece aos instintos um meio exclusivo

faz ao fazê-lo. O redobram ento m etacom unicacional permite

para o seu desdobram ento, mas sob condições m uito particu­

que a linguagem mapeie as próprias operações, imanentes ao

lares. Agressão interespecífica, gregaridade interespecífica e

seu exercício. O s m esm os atos verbais que produzem a dis­

com portam ento de cortejo são, todos, funções territoriais —

tinção entre o nível comunicacional e o m etacom unicacional

assim como, aliás, o com portam ento de alimentação do cuco

fazem com que esses níveis colapsem entre si: você não pode

e da gaivota, que pressupõe um ninho. A partir da perspectiva

falar sobre a linguagem sem utilizá-la. É num só e m esm o

aventada aqui, nosso entendim ento de funções territoriais

gesto que a distinção entre os níveis de linguagem é esta­

deve levar em conta os m odos nos quais o desdobram ento

belecida, e que esse distanciam ento reflexivo da linguagem

dos comportam entos instintivos enraizados podem, não obs­

em relação consigo mesm a recai na imanência, na im ediatez

tante, superar sua ancoragem funcional. O cortejo, a função

do próprio ato de enunciação que produz a distinção. Isso é

territorial em torno da qual orbita a m aior parte das discus­

verdade não só em relação a declarações que com entam expli­

sões sobre a exuberância evolutiva, seria apenas um caso par­

citam ente sobre a função da linguagem. O humor é um bom

ticular. A brincadeira, uma vez mais, proporciona o ângulo de

exem plo da operação da linguagem piscando para si mesma.

ataque privilegiado.

Entretanto, todo ato de linguagem inclui esse elem ento refle­

A brincadeira, com o um a atividade independente em seu

xivo em algum nível. T oda declaração tem um papel fático,

próprio direito, pressupõe o território. O território está entre

definido com o o esforço em estabelecer ou continuar a com u­

suas condições necessárias. Os filhotes de lobo só podem se

nicação. T odo ato de linguagem perform ativam ente m eta-

perm itir se entregar à brincadeira quando estão próxim os do

gesticula para a própria vocação com unicativa. A diferença

covil que lhes confere proteção contra os predadores, até que

entre os níveis de linguagem é duplicada por uma zona de

estejam grandes o bastante para se tornarem , eles próprios,

indiscernibilidade entre eles. Essa zona é sua mútua inclusão

predadores. Mas a brincadeira não é apenas condicionada

no mesm o ato de linguagem. Os níveis denotativo e reflexivo,

pelo território, é uma operação no território. É um a opera­

com unicação e m etacom unicação, o mapa e o território, são

ção de abstração vivida na qual as funções territoriais são, ao

ativamente coim plicados em qualquer gesto, incluindo, para­

m esm o tem po, ativam ente convocadas para um novo efeito

doxalm ente, aqueles que os isolam. Os níveis se entrelaçam

e paradoxalm ente colocadas em suspenso.

em pressuposição recíproca, no próprio ato que produz sua

Em sua discussão acerca da dimensão metacom unicacional

distinção, numa espécie de vaivém instantâneo através de sua

da brincadeira, Bateson ressalta que é a reflexividade da brin­

diferença. A brincadeira, entendida num sentido mais amplo,

cadeira que inventa a fam osa distinção entre o mapa e o ter­

é o que inventa essa dinâm ica. Num sentido mais estrito,

ritório. É essa diferenciação, afirma ele, que cria as condições

com o uma arena de atividade em seu direito próprio, é o que

46

47

mais desenvolve a invenção, brincando intensam ente com a

É evidente que esses prolongam entos para a fren te das

diferença entre o mapa e o território para extrair disso uma nova mais-valia de vida.

form as dinâmicas de vida podem varrer a form a do próprio

A linguagem humana conduz a reflexividade do ato com u­

território em m ovim entos de devir. Vim os que os estím ulos supernorm ais que são a paixão das gaivotas-prateadas com ­

nicativo e de seus poderes cartográficos ao seu poder animal

preendem blocos relacionais de qualidades experienciais cujo

iríáis elevado. Ao mesmo tem po, as possibilidades lúdicas da

acoplam ento integral não respeita a distinção entre figura

vida são conduzidas a um poder maior, potencializadas pelo

e fundo e que não são atribuíveis a nenhum a propriedade

vaivém instantâneo entre os níveis lógicos, entre os domínios

isolável de nenhum deles. Não é difícil imaginar a tendência

díspares de experiência e entre os dom ínios da experiência

supernorm al do filhote atrelando-se ao elem ento estrutural

e os m ovim entos criativos através dos quais eles se superam.

do ninho. N ão é inconcebível que essa pressão deform acio-

Dos trocadilh os mais infam es a mais exaltada poesia, pas­

nal possa, em longo prazo, levar a um a vantagem adapta-

sando por todo tipo e nível de hum or e de uso figurado —

tiva associada a um a variação no planejam ento do ninho

para não m encionar os form alism os explicitam ente dedica­

que acabe passando pelo crivo da seleção, tudo com o efeito

dos ao mapeamento operacional — , a linguagem está sempre

secundário da autocondução apetitiva dos anim ais. N esse

ocupada flexionando suas capacidades reflexivas, e ocupada

caso, o poder mental da brincadeira terá m odificado o mapa

tam bém em brincar com elas.

físico do território. V oltando à brincadeira no sentido estrito, o vaivém ins­

A brincadeira animal desliza essa reflexividade para den­ tro do gesto não verbal. Uma seqüência de gestos combates-

tantâneo que ela efetua entre presente e futuro trabalha as

cos projeta a form a do combate; repete a form a dinâmica do

pernas de m odo a serem capazes de outro alcance — o de a

com bate sem o com bate. Ao fazê-lo, constitui um a cartogra­

inventividade da brincadeira de luta se prolongar na form a

fia enativa diretam ente vivida. Não é um a cartografia que se

do próprio com bate, atravessando a zona de indiscernibili-

lim ita a se conform ar aos contornos dados da form a dinâ­

dade da sua m útua inclusão. As variações no com bate que

m ica que delineia, mas que vai além, im provisando sobre a

são improvisadas na brincadeira podem muito bem conduzir

form a dada. Prolonga as linhas gestuais com as quais extrai o

a um a evolução de sua form a dinâmica. Essa é a ideia, já dis­

mapa vivido da form a dada através de acréscim os estilísticos

cutida, de que o jogo não se m olda no com bate tanto quanto

e excessos que introduzem o jamais visto. A novidade floresce

o com bate se m odula na brincadeira, em nivelam ento com

no terreno da vida. Esse tipo de cartografia cria o território

os gestos que com põem sua cartografia enativa. O s gestos

que mapeia, em novas variações que emergem numa arena de

cartográficos têm o potencial de reconfigurar a arena de ati­

atividade já existente. Nesse m odo lúdico de reflexividade, é

vidade do combate, assim como a bicada impetuosa do filhote

essencialmente o futuro que é encenado. O gesto lúdico inclui

de gaivota podem levar, por fim, a uma reconfiguração de um

o combate e a brincadeira, um no outro, a fim de estabelecer

território físico. No vaivém instantâneo entre o presente da

um vaivém instantâneo entre o presente e o futuro.

brincadeira e o futuro do combate, é estabelecido um circuito

48

49

de troca, pelo qual a brincadeira vem a se expressar em com ­

com um terceiro incluído. A brincadeira e o com bate se sobre­

bate porque o com bate veio a se expressar em brincadeira.

põem sem que a distinção entre eles seja perdida. Convergem

Esse intercâm bio ocorre através da sua diferença em nível

sem se fundir, a qualquer distância no tem po e no espaço.

com unicativo, form a e tipo, bem com o através da distância

O correm conjuntam ente visando a m udanças, sem coales-

que separa a brincadeira da luta, com o arenas de atividade

cência — mas com um entrelaçam ento de tom . Na medida

díspares, cada qual com seus próprios parâm etros espaciais

em que exitosam ente é com batesquidade, a brincadeira é

tem porais — ou, no vocabulário de Félix G uattari, com o

potencial e m ortalm ente séria. Já o com bate, na m edida em

territórios existenciais diferentes.58 O con ceito de “território existencial” é m ais abrangente do que o de “territó rio” no sentido estrito. R em ete ao ter­ ritó rio no sentid o físico , mas tam bém assim ila as form as dinâm icas, as form as de atividade, que utilizam o território

que é necessariamente improvisacionai, carrega um elemento lúdico. O tom dominante difere de um lado para outro, mas o -esco está num lado e no outro, estendido da maneira super­ normal entre eles. Na linguagem, a zona de indiscernibilidade correspondente

físico com o tram polim para o devir. Inclui tam bém as rela­

é verbal. Enquanto verbal, presta-se a um a definição pura­

ções mentais entre os territórios em jo g o e en tre as form as

mente lógica, nos term os do paradoxo de Russell, tratado em

dinâm icas que os territó rio s h ospedam . O territó rio e x is­

detalhes por Bateson. Esse paradoxo gira em to m o da im pos­

tencial é um bloco de espaço-tem po vivido no qual a vida se

sibilidade de uma classe ser membro dela própria (o paradoxo

pensa enquanto brinca de variação. O conceito de território

de Epim ênides ou o paradoxo do m entiroso creten se).60 O

existencial tam bém , e especificam ente, se refere à com posi­

mapa que coincide com o território é outra versão do mesmo

ção estilística das atividades vitais, inclusive o vaivém entre

enigma. A zona de indiscernibilidade da brincadeira exem ­

as suas arenas díspares efetuando um a m odulação recíproca

plifica ativamente esse tipo de paradoxo. Em sua cartografia

dessas arenas, de maneira a prolongá-las potencialm ente em

enativa, a com posição do mapa e a do território coincidem

term os evolutivos.59 Em resum o, há um a potencialização recíproca da brinca­

corporificada dessa cartografia entusiasticam ente supernor­

deira pelo combate e do combate pela brincadeira: uma mútua

mal demanda um a definição em term os que não sejam pura­

inclusão de potencial distinto. Potenciais para variação que

mente lógicos.

efetivam ente no gesto. A natureza integralm ente enativa e

são enovelados na brincadeira desenovelam -se na luta. Esse circuito de potencialização recíproca é possibilitado, de ambos os lados, pela criação de uma zona m utuam ente inclusiva de indiscernibilidade que replica a afirmação de suas diferenças 58 Guattari, Caosmose op. cit., pp. 11-95 e passim. 59 Cf. Deleuze e Guattari, Milplatôs, v. 4 op. cit., cap. 11.

50

60 “ Todos os cretenses são mentirosos. Sou cretense; logo, estou mentindo” e, neste caso, digo a verdade. De acordo com Russell, o problema se coloca a partir da mistura de níveis lógicos, o metanível pertencente às classes (todos os cretenses) e o nível particular pertencente aos membros das classes (o cretense que eu sou). Russell não encontrou uma maneira lógica convincente de separar as classes de modo efetivo, e disso decorre que não há um modo infalível de o mapa ficar preve­ nido de se replicar no território. Para a discussão de Bateson, cf. “A Theory of Play and Fantasy” op. cit., pp. 180,184-192.

51

Bateson sublinha que há um fator que n ão é tocado pela

de p o ten cialização recíp roca expresso no afeto de v ita li­

suspensão efetuada pela colocação, realizada pelo gesto de

dade da brincadeira é um a potência do falso no sentido em

brincadeira, da atividade subsequente no m odo condicional.

que “postula a sim ultaneidade de presentes incom possíveis”

Esse fator é o afeto. Em bora um gesto lúdico apavorante não

no seu vaivém instantâneo entre o agora e o futuro e entre

denote aquilo que iria denotar, ainda provoca “ o m esm o ter­

dom ínios díspares de atividade.63 O afeto que é a verdade da

ror” .6' Esse tam bém é o caso das im agens cinem áticas, res­

brincadeira adiciona um a dim ensão verídica à p otên cia do

salta Bateson. O assu stad oresco inspira o pavor. Segundo

falso do afeto de vitalidade. Ele qualifica verdadeiram ente a

B ateson, os g esto s lú d ico s são “ puros signos de h u m o r” :

interação em curso com o envolvendo um tipo conhecido de

puros signos de afeto.62 Q u an do dizem os “ p u ro” em rela­

experiência, e atesta a correspondência entre as duas arenas

ção a um signo, só p ode denotar um signo cujo sentid o é

em jo g o , confirm ando e cim entando a analogia: o m esm o

in separável do seu desem p en h o e, p o rta n to , cuja e xp res­

terror (ainda que com um a diferença lúdica vital). Esse tipo

são é inseparável de seu conteúdo. Puros signos são signos

de afeto, relacionado ao acréscim o de um a dim ensão de mes-

não d en o tativos que não rem etem a nada fo ra da própria

midade, é 0 que os psicólogos cham am de afeto categórico. O

enação, que é a enação do seu significado. Puros signos são

afeto categórico contribui com a verdade que será golpeada

puros acon tecim en tos, sim ultaneam ente reflexivos (m eta-

pelo paradoxo do p oder do falso do afeto de vitalidade. O

com un icacion ais) e relacionais (ocasionando um a m útua

golpe do paradoxo to m a o gesto inventivamente “indecidível” — além de ser verdadeiro.64

inclusão de níveis, form as e arenas de atividade). Estando sem pre em jo go, a denotação, bastante artificiosa e em ter­

O afeto categórico é o “o que” da brincadeira que vem com

mos constitutivos atingida pelo paradoxo, é em inentem ente

o “com o” , num registro afetivo diferente daquele do afeto de

suspeita. E ntretanto, isso não a im pede de ser verdadeira

vitalidade do “ com o” . O afeto categórico é do que verdadei­

— afetivam ente verdadeira. A verdade da brincadeira é de

ram ente trata o acontecim ento. É o conteúdo qualificado do

ordem afetiva. A n teriorm ente, o entusiasm o do corpo expressado pelo

evento da brincadeira: “ sua sobredade” . Ocorre num registro

animal que se entrega à brincadeira foi caracterizado com o

enativa, com o um aspecto estritam ente do m esm o gesto. O

um afeto de vitalidade (ou aquilo que acabam os de chamar

afeto de vitalidade e o afeto categórico são aspectos co n co­

de “ tom ” ). O afeto de vitalidade é adverbial, diz respeito

m itantes do ato da brincadeira. O afeto de vitalidade corres­

ao “ com o” da perform ance: sua m aneira de execução (seu

ponde à -esquidade do ato: sua maneira. O afeto categórico

diferente da dinâm ica form a lúdica do desem penho que o

estilo). O com o foi relacionado ao artifício da -esquidade. E o que D eleuze cham aria de “ potência do falso” . O circuito 63 Deleuze, Cinema 2 - A imagem-tempo, trad. bras. de Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 161. 61 Ibid., p. 254.

64 Deleuze, Conversações, trad. bras. de Peter P& Pelbart. São Paulo: Editora 34,

62 Ibid., p. 253.

1992., p. 51-

52

53

é aquilo sobre o que o ato maneiristicam ente confirm a ser. É

situação bem pode ser de medo em todos os lados, mas cada

o que com um ente é cham ado de “em oção”.65 O afeto categó rico m obilizado na b rin cad eira é o m ais

participante carrega o medo de acordo com um ângulo parti­

saliente nas interações da arena de atividades análoga com

dentes aos ângulos de inserção enativam diferenciais de poder.

cular de inserção diferencial na situação. Os papéis correspon­

a qual se está brincando. N ão há com bate sem m edo nem

Vimos anteriormente com o 0 afeto de vitalidade marcado pela

p red ação sem terror. P ortan to, m edo e terro r realm ente

-esquidade da dram atização lúdica trazia consigo potenciais

figurarão nos jo g o s corresp on den tes. O m esm o afeto figu­

transituacionais abarcando territórios existenciais distantes.

rará tam bém do lado da lacuna analógica aberta pela b rin ­

Tratava-se de um signo de potencial. O afeto categórico, por sua

cadeira. Sua figuração em am bos os lados co n stró i a ponte

vez, é um signo de poder. O s dois são inseparáveis, com o dois

em seu en trem eio . A situ ação , em todas as suas fa ceta s,

lados de uma mesma m oeda gestual.

será banhada p or essa qualidade experien cial sentida por toda parte. A m ordiscada de brincadeira diz “ isto não é uma m ordida” (este ato não denota aquilo que iria denotar). Ao

O afeto de vitalidade que expressa o entusiasmo do corpo estabelece uma conexão transindividual.66 A transformação-m-loco que acom panha o início da brincadeira não atinge um

m esm o tem po, diz categoricam en te: “ esta, no entanto, é

sem atingir o outro. Ao atingir um, atinge dois (pelo menos

um a situação de m edo” . A verdade afetiva é a garantia do

dois). A transindividualidade dessa transform ação é o que

entusiasm o do corpo do parceiro de brincadeira. Sem isso

tom a a brincadeira um processo fundamentalmente relacionai,

o jo g o careceria de intensidade. O afeto categórico na brin­

a partir do m om ento em que é disparado o seu m ovim ento.

cadeira é o ferm ento que perm ite que o afeto de vitalidade

Sua relacionalidade se prolonga potencialm ente numa cone­

ven h a à tona. N ão fo sse assim , a fo rça in dutiva do gesto

xão transsituacional. No movimento da brincadeira, territórios existenciais se cruzam enativam ente e se m odulam m utua­

lúdico seria insignificante, a transform ação-in-loco que car­

mente, através de suas diferenças, arrastados na direção de

rega a força do jo go não daria em nada. O mesmo afeto categórico transpassa o acontecimento, mas

novas expressões de suas form as dinâm icas — cada novo

não de forma homogênea. É assim etricam ente distribuído, é

m ovim ento de brincadeira tendo o valor de um m ovim ento

diferencialm ente distribuído na afetação dos papéis: assus­

de luta em potencial improvisacional. A brincadeira se torna

tador/assustado, caçador/caçado, perseguidor/perseguido. A

combatesca, enquanto o combate se torna lúdico. É uma ques­ tão de desterritorialização recíproca, cada arena diferencial­ m ente prolongada na outra. Essa dupla desterritorialização é

65 Sobre a distinção entre o afeto de vitalidade e os afetos categóricos enquanto equiparados à emoção, cf. Stern (The Interpersonal World ofthe Infant op. cit., pp. 53-57; Forms ofVitality: Exploring Dynamic Experience in Psychology, the Arts, Psychotkerapy, and Development. Oxford: Oxford University Press, 2010, pp. 27-28). Sobre a necessidade de distinguir o afeto, em geral, da emoção, cf. “The Autonomy o f Affect” in Parablesfor the Virtual: Movement, Affect, Sensation. Durham: Duke Uni­ versity Press, 2002, pp. 23-45).

54

o próprio m ovim ento da abstração vivida, m obilizando a si 66 Sobre a teoria da transindividualidade, cf. Simondon, Uinformation à la lumière des noticms deforme et d’information. Grenoble: Millon, 2005, pp. 251-316; e Muriel Combes, Gilhert Simondon and the Philosophy ofthe Transindividual, trad. ing. de Thomas Lamarre. Cambridge: m i t Press, 2013, p p . 25-50.

55

m esm a rum o à invenção. Ela reforça e estende a principal

Em um a situ ação de não brincadeira, o afeto categórico

lacuna entre o que um gesto denota e o que iria denotar. E o

registra o im p erativo de viver o a co n te cim e n to na chave

que torna significativa a mínima diferença que separa o que

ex p e rie n cia l d o m in a n te, na qu al a situ ação co stu m e ira -

é daquilo que poderia ser — que o gesto lúdico inclui no seu

m en te se d esd o b ra. Em um a situ ação de m edo que não

próprio fazer. É a form a da força criativa desencadeada pela

seja de brin cad eira, sen tim o s d ireta m en te o im p erativo

brincadeira. É o que garante o circuito potencializante entre

para lutar ou fugir. C ada fibra de nossa existên cia é inter­

o presente e o futuro.

p elad a. In d u zid o s ao p ró x im o a co n te c im e n to , nós nos

O afeto categórico p reenche a lacuna que é aberta pelo

p rep aram o s e m ergu lh am o s. T em os a o b rig a çã o de agir,

afeto de vitalidade e que se estende numa desterritorializa-

co locan d o tod as as nossas forças e habilidades, em nom e

ção recíproca. É a qualidade as simetricamente compartilhada

de o n o sso a p e tite p ela vid a ser ca p a z de co n tin u ar em

da experiência, envolvendo a situação evolutiva por todos os

seu cam inho de autocondução para o futuro. N ossas ações

lados, de uma ponta a outra. Contribui com o “o que” que a

in iciais ab so rvem o a fe to ca te g ó rico d ad o, fa ze n d o sua

abstração vivida desterritorializa e se encontra por todos os

tra n sd u çã o im ed iata em v e to re s de ativid ade ancorad os

lados, dando conteúdo qualificado e situacional ao aconteci­

na situ ação e orien tad o s ao a co n te cim e n to recém -com e-

m ento estendido. O afeto categórico é a determ inação im e­

çado. Essa transd ução do conteú do qualificando a situação

diatamente sentida do que a vida é de fato na complexidade

para um relançam en to da atividade expressiva ancorada e

acontecim ental do m om ento.67

orientada é a produção da corporalidade do acon tecim en to. É co m essa corporalid ad e, lu d icam en te reinduzida, que a

67 A distinção sugerida aqui entre forma e conteúdo não deveria ser tomada como uma validação da visão “hilemórfica” tradicional de que a forma é abstrata enquanto o conteúdo é concreto — com a forma entendida como um tipo de molde que impõe um formato à matéria informe. Forma e conteúdo têm de ser pensados aqui do modo como Deleuze e Guattari os repensam, seguindo Hjelmslev, que desloca a distinção para forma e expressão. Tanto conteúdo quanto expressão possuem formas, e elas estão em “pressuposição recíproca” . Ambos também possuem substância, fazendo da sua pressuposição recíproca um ninho de complexos imbricados de forma-matéria. Assim, conteúdo e expressão per­ manecem heterogêneos entre si, embora ocorrendo estritamente de modo con­ junto. Aqui o afeto categórico, como um tipo reconhecível de emoção, como o medo, seria a “forma do conteúdo”. Seu sentimento vivido de modo agitado seria uma “substância do conteúdo” . O ponto é que esse afeto de vitalidade é a forma da expressão do afeto categórico, e ao mesmo tempo constitui o seu próprio sentimento, irredutível ao afeto categórico que ele expressa no acontecimento. Sobre forma/substância do conteúdo/expressão, cf. Deleuze e Guattari (Milplatôs, v. 1, trad. bras. Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34,1995, pp. 56-58; Mil platôs, v. 2, trad. bras. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1995, pp. 33-40). Sobre a

56

brincadeira brinca. A brincadeira registra o im perativo de viver o acon tecim en to no tom experien cial dom inante da situ ação com a qual se brinca, enquan to tom ada no m ovi­ m en to tran ssitu acion al ca ra cterístico da brincadeira. Ele refrata a absorção do afeto categórico. Vale a pena interrom per aqui para ressaltar dois pontos. Prim eiro, com o o exem plo do m edo indica, o “ entusiasm o do corpo” , expressão do afeto de vitalidade da brincadeira, não pode ser concebido em nenhuma relação um para um no que se refere a um afeto categórico particular. A vitalidade

crítica ao modelo hilemórfico, cf. Simondon, Uinformation à la lumière des notions deforme et d’informatwn op. cit., pp. 39-51) e Combes, Gilbert Simondon and the Philosophy ofthe Transindividual, op. cit., pp. 1-6.

57

afetiva é intensa, mas não necessariam ente “feliz” . A brinca­

por outro lado, é produzida no, pelo e para o acontecimento. É

deira, com o aponta Huizinga, não é redutível à “diversão” em

menos uma encarnação de algo de fora do que uma incorpora­

qualquer sentido categórico, e com certeza não no sentido

ção no acontecimento, de uma vida adentrando um novo ritmo

do insípido deleite que a palavra assumiu em sua utilização

de seu próprio devir, registrando os imperativos dessa situação.

contem porân ea.68 Segundo, tam bém é n ecessário se valer

A corporalidade não é separável da ação ou da form a de

advertidamente da distinção entre situações de “brincadeira”

expressão da dinâm ica da ação, que é o afeto de vitalidade.

e de “não brincadeira” . C om o dem onstrou a discussão sobre

A corporalidade é a “ sobredade” im ediatam ente sentida da

o circuito reciprocam ente potencializante entre brincadeira

expressão de vitalidade. Sua absorção de sobredade atrela

e com bate, brincadeira e não brincadeira não são categorias

sua gênese ao afeto categórico. A corporalidade emerge com o

m utuam ente excludentes. Com o tudo nesta explanação, elas

sentimento, do afeto categórico, de ancoragem obrigatória na

estão numa relação dinâm ica de m útua inclusão. São corre-

situação; e com a tangibilidade dos imperativos que ocorrem

latos processuais coim plicados. Isso não é um a conclusão,

com 0 território. O obrigatório, o imperativo: o importante. A

mas um ponto de partida: um a problem atização. O modo da

corporalidade é importância vivida. O afeto de vitalidade, como

m útua inclusão deve ser repensado em cada caso. Dado um

dito anteriormente, corresponde à abstração vivida e à dester-

gesto lúdico, o problem a que se deve atacar é qual variante

ritorialização associada ao seu desempenho. A corporalidade

de mútua inclusão ele produziu.

com o im portância vivida é um acom panhamento necessário

Voltando à corporalidade, ela absorve os im perativos da situação em sua própria produção, detalhando progressiva­

ao jogo vital de abstração que comunica à situação quais graus de liberdade podem, a partir dela, ser -esquizados.70

mente o conteúdo singular desse acontecimento à medida que o desdobra imperativamente em sua chave categórico-afetiva dom inante. A palavra “ corporalidade” é preferível a “corporalização” . Corporalização tem conotações de encarnação, com o se o corpo fosse um receptáculo vazio no qual é vertido algum conteúdo idealm ente preexistente.69 A corporalidade, 68 O divertimento do jogo “ resiste a toda análise e interpretação lógicas” (Huizinga, Homo Ludens op. cit., p. 5). Como um conceito, não pode ser reduzido a nenhuma outra categoria mental. Para os presentes propósitos, essa declaração precisa ser especificada: O divertimento do jogo resiste a toda análise categórica e interpretação lógica predicada na mútua exclusão. 69 Uma teoria não cognitiva não pode falar em “ a carne” ou “o corpo” como encar­ nando sentimentos ou ideias e sendo inspirados por eles. Qualquer conotação de encarnação reintroduz sub-repticiamente o dualismo mente/ corpo. O uso do termo “corporificado” cai geralmente nessa armadilha, a despeito de si mesmo.

58

Cf. a crítica feita por Maxine Sheets-Johnstone das conotações de encarnação nos estudos de cognição corporificada (Sheets-Johnstone, The Corporeal Tum: An Interdisciplinary Reader. Exeter: Imprint Academic, 2009, p. 221; “Animation: the Fundamental, Essential, and Properly Descriptive Concept”. Continental Pkilosophy Review n2 42, 2009 , pp. 377,394-395). Aqui preferimos o adjetivo “ incorporado” a “corporificado” . Este, quando utilizado, o foi com reservas. 70 O conceito de “importância” dialoga aqui com Whitehead: “o sentido de impor­ tância (ou interesse) está embutido no próprio ser da experiência animal” (Whi­ tehead, Modes ofThought. Nova York: Free Press, 1968, p. 9). Da mesma forma Whitehead fundamenta a importância nos imperativos da situação que estão dados. “A pura questão de fato”, “o caráter inescapável da questão de fato”, é a “base da importância” (p. 4). Ao mesmo tempo, Whitehead enfatiza a vetorização da impor­ tância em uma direção distinta do “ determinismo compulsivo” (p. 7) da questão de fato, em direção à criatividade, aberta para o futuro (cf. Stengers, Thinkingwith Whitehead: A Free and Wíld Creation ofConcepts, trad. ing. de Michael Chase. Cambridge: Harvard University Press, 2011, pp. 236-237). Assim, “temos de explicar os diversos sentidos em que liberdade e necessidade podem coexistir” (Whitehead,

59

A im portância vivida é um entendim ento não cognitivo

ao afeto de vitalidade em sua relação com a -esquidade. A

do que se passa nessa situação, uma situação com uma ação

corporalidade é um dos fatores refletidos no afeto de vitali­

corporal ocorrendo. E diretam ente incorporada no acon te­

dade. O afeto de vitalidade confere à corporalidade, por acaso,

cim ento em um registro afetivo, sem nenhum traço de refle­

uma virada supernorm al que eqüivale a um com entário per-

xão.71 O elem ento de reflexividade pertence, particularmente,

form ativo sobre ela. A intensidade corpórea do lançam ento obrigatório à ação, subscrito por um afeto categórico com o

Modes ofThought op. cit., p. 5). Whitehead utiliza a expressão “ a importância vivida das coisas sentidas” na p. 11. A própria importância vivida carrega um grau de abstração, na medida em que equipara a situação com outras do seu tipo cate­ goricamente afetivo. Trata-se do grau mais baixo de abstração que consiste na postulação de uma generalidade: a identificabilidade do afeto categórico é o que um número de situações tem em comum. Ele registra sua mesmidade sentida, a despeito de suas diferenças. Particularmente, registra a mesmidade de situações passadas, já vividas, para a vivência da situação presente. Já que cada situação é concretamente dada com suas diferenças em relação a todas as outras, a experi­ ência da mesmidade se qualifica como uma ultrapassagem do que está dado, que era a definição de mentalidade. A importância vivida envolve a operação mental de reconhecimento como o grau de abstração mais baixo na vida animal. Desse ponto de vista, a importância vivida pode ser considerada como estando no mesmo continuum que a abstração vivida, a qual, não obstante, é qualitativamente distinta da importância vivida, na medida em que registra a singularidade da situação — não sua mesmidade sentida, mas sua diferenciação sentida. 71 A conhecida e difamada teoria da emoção de James-Lange é uma maneira de pensar acerca da imediatez não reflexiva do entendimento vivido da importância mencionado há pouco. A teoria é encapsulada na seguinte fórmula: “não corre­ mos porque temos medo, temos medo porque corremos”. Isso é frequentemente interpretado como uma declaração de reducionismo fisiológico. Não é. Para James, o ponto é que de fato esse sentimento de medo se nivela com a ação, que registra em sua orientação imediata a importância vivida da situação (um urso na trilha à nossa frente...). “Minha teoria [...] é que as mudanças corporais seguem diretamente a percepção do fato excitante, e que 0 nosso sentimento das mesmas mudanças, enquanto elas ocorrem, s ã o a emoção” (James, The Principies ofPsychology,v. 2. Nova York: Dover, 1950, p. 449). Olhando por esse ângulo da descarga de emoção com a de ação, com uma consciência de mudança sendo sentida (que, no presente vocabulário, chama-se mais de afeto que de “emoção”), a teoria de James-Lange pode ser considerada não um reducionismo fisiológico, mas uma teoria da corporalidade, entendida aqui como um modo do pensar-sentir em toda a sua imediatez. Vale notar, de passagem, que James situa instinto e “ emoção” (afeto) em uma mútua inclusão através de uma zona de indistinção: “Reações instintivas e expressões emocionais lançam sombra imperceptivelmente uma na outra. Todo objeto que excita um instinto excita também uma emoção” (p. 442).

60

o medo, o arrim o de um a vida nesse pulso de ação na chave im perativa de afetividade, ressoa com a intensidade expres­ siva do entusiasm o do corpo do afeto de vitalidade. A inten­ sidade geral do acontecim ento é amplificada pela tensão que resulta do feeáback entre os dois polos.72 O que é com um ente chamado de “corpo” é a corporíficação do acontecim ento através dessa tensão. A vida é tensam ente esticada entre sua ancoragem obrigatória nos imperativos de 72 Para uma explanação completa sobre a relação entre afeto categórico e afeto de vitalidade é crucial evitar qualquer implicação de linearidade entre eles, como se o conteúdo categórico-afetivo viesse primeiro e o afeto de vitalidade, em segundo, para fazer sua transdução. De fato, é apenas retrospectivamente que essas duas dimensões do acontecimento podem ser separadas. Na agitação de um acontecimento, elas ocorrem em conjunto numa zona de indiscernibilidade. O afeto categórico coincide com um relançamento da atividade expressiva anco­ rada e orientada, que é precisamente o que é registrado como afeto de vitalidade. Afeto categórico e vitalidade são realmente distintos, mas não podem ser anali­ sados em separado. Por acaso, eles se juntam. Retrospectivamente é outra his­ tória. Parafraseando Whitehead, “esse sentimento temeroso” (afeto categórico e afeto de vitalidade ocorrendo conjuntamente como experiência), retrospecti­ vamente, torna-se “ aquele sentimento de medo” (um conteúdo especificado na experiência). Para uma análise dessa coimplicação processual em evolução do afeto de vitalidade e do afeto categórico (correspondendo à “emoção” no pre­ sente vocabulário) analisada no nível político, cf. Massumi (“ Fear (The Spectrum Said)”. Positions: EastAsia Cultures Critique, edição especial “Against Preemptive War”, v. 13, nE3, 2005, pp. 31-48.; para a referência de Whitehead, cf. ibid., nota 10, p. 48). A situação política em questão (a política do terror de Bush) poderia parecer qualquer coisa, menos lúdica, mas boa parte da análise da brincadeira aqui desenvolvida poderia ser aplicada a ela, mediante ajustes apropriados em vista de entender o “jogo” da política (seus poderes de falsidade, suas forças de abstração inventiva).

61

dada situação e a tendência supernormal, arrancando, de cada

O fracasso de um gesto lúdico numa luta de brincadeira

volta e de cada reviravolta na ação, uma oferta de liberdade.

pode ser pensado nesses term os. Quando o gesto lúdico fra­

Não há “ o corpo” . Há uma vida — esticada com o um elástico

cassa e 0 jogo se torna o seu análogo, é porque o peso do afeto

entre os polos afetivos contrastantes entre os quais se dará

categórico ficou muito grande. O im perativo a ele associado

a determ inação progressiva do acon tecim en to.73 Corporifi-

foi sentido com muito pathos, tropeçando na tendência super­

car é estar nessa situação, sendo puxado em duas direções

normal. A atração da verdade corpórea da situação era forte

de um a só vez: de um lado, ancorado no que está dado; de

demais. O gesto incorporado, em dem asiada conform idade

outro, tendendo a arranjar um jeito de superá-lo; o recuo da

com os imperativos sentidos da arena de atividade com a qual

necessidade estabelecida e o avanço para o novo. Em outras

se brinca. Os imperativos da situação análoga de medo dizem

palavras: aquiescência ao que não é opcional, de um lado, e a

“ morda, de verdade”. A brincadeira diz “mordisque, com estilo”.

espontaneidade da apetição, de outro; pathos (o sentim ento

Quando a mordiscada de brincadeira é verdadeira demais, o

aferrante de aquiescência ao não opcional) e a fuga da fanta­

jo go é arrastado por um a m ordida que, agora, denota uma

sia da paixão; incorporação à dadidade do acontecim ento e

mordida. A -esquidade do afeto de vitalidade é insuficiente

a artificiação de uma via através disso com um entusiasm o

para manter a suspensão do combate. A forma dominante do

supernormal; a corporalidade da im portância vivida e a vita­

combate não só é modulada de dentro, ela toma conta, obriga

lidade da abstração vivida, em acidental tensão produtiva. O

o acontecimento a ele mesmo. A tensão entre incorporar a um

que ocorre efetivam ente é com o essa tensão se resolve. Para­

acontecim ento e arranjar uma via supernormal para atraves­

doxalm ente, por essa definição, “ o” corpo não é redutível à

sá-lo pende muito para a primeira. A lacuna da brincadeira se

corporalidade. Reestilizado com o corporalização, “ o corpo”

fecha. O paradoxo colapsa na seriedade; o poder do falso, na

inclui o m ovim ento através do qual a corporalidade supera a

veracidade. A diferença mínima entre o que o gesto denota e o

si mesma: inclui o polo mental do acontecim ento.74

que iria denotar é apagada. É um caso de demasiada corporali­ dade, sem exercício suficiente do poder mental para fazer uma

73 Sobre o conceito de “uma vida”, cf. Deleuze (Dois regimes de loucos, trad. bras. de Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34,2016, pp. 407-413).

virada supernormal rumo à corporalização. Muita importância

74 Tal como utilizado aqui, corporalidade evoca em linhas gerais o que Whitehead chama de “polo físico” de um acontecimento. O “polo mental” contrastante é incorpóreo. O corpo é o que se estende entre eles e é determinado pelo exercício dessa tensão. O corpo não se reduz ao corpóreo, que, por sua vez, não é redutível ao físico entendido no sentido usual, já que (tal como explicado no corpo do texto e na nota 71, p. 60) o corpóreo como importância vivida envolve um modo de entendimento e, portanto, pode ser pensado como um grau de mentalidade. Correlativamente, o incorpóreo é guiado pela tendência supernormal de reincorporação em acontecimentos futuros, produzindo, assim, variações na corporalidade. Reco­ nhecendo essas mútuas inclusões processuais do corpóreo e do incorpóreo, situa os dois polos num continuum, ao mesmo tempo em que respeita suas diferenças,

corporalização muito pouco imaginativa.

62

vivida (porém, inapropriada) e pouca abstração vivida. Uma Ainda que a im portância vivida seja um entendim ento não cognitivo, im ediata dem ais em seu conjunto não opcional sem desfazer a tensão entre eles. Pensar o corpo, nessa abordagem, requer um “ materialismo do incorporai”, afinado ao paradoxo processual produtivo (cf. Mas­ sumi, Parablesfor the Virtual, op. cit., pp. 5-6,16). O termo tem sua origem em Foucault (A ordem do discurso, trad. bras. de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1999, p. 58).

63

com o acontecim ento para constituir uma reflexão, com o um

medida em que pertence ao campo da consciência, “nem por

entendim ento ela ainda se qualifica com o um ato de pensa­

isso [...] está situado fora dos lim ites do espírito”.77 Há nele

mento. É pensamento em seu grau mais ínfimo de criatividade,

um lam pejo de m entalidade. O instinto é um m odo do pen­

ancorado em um reconhecim ento do que está dado, ou seja,

sar, um que envolve o fazer. Sendo diretam ente vivido, antes

afinado com a m esm idade do presente ao passado. A abstra­

gestualizado do que representado, sua mentalidade é de um

ção vivida, em contrapartida, é voltada para o futuro, num

grau que por natureza resiste à definição cognitiva. Sempre

pensar enativo do novo. Tam bém é um entendim ento não

há algo extra nele, na m edida em que ele entusiasticam ente

cognitivo, mas numa ação orientada para o futuro.

elude a referenciação cognitiva. É sempre um pensar-sentir

E o que é a intuição, senão a cooperação de ambos? Um a liga feita de ambos? U m a dupla dosagem do acontecim ento

excedendo a denotação. Com o vim os na análise dos estím ulos supernormais, o ins­

com am bos — mas com um elem ento extra do lado da abs­

tin to pensa gestualm ente em blocos qualitativos. Seus ges­

tração vivida, enviesando o acontecimento mais na direção da

tos se efetuam e envolvem um “arranjo novo de elem entos

desterritorialização criativa do que da ancoragem obrigatória.

antigos” de maneira correlativa.78 Ele está associado a blocos

O que é a intuição, senão uma corporalização criativa? Uma

de relação, conjuntos de qualidades experienciais integral­

corporalização que se faz numa realização do novo?

m ente conectadas. A ssociando-se a essas qualidades, “ dis­

Para Bergson, o instinto só pode ser pensado em relação

tin g u e ] propriedades” em vez de objetos de percepção.79 Ele

à intuição. Ele define o instinto com o a intuição que é mais

singulariza as propriedades sob um a deform ação relacionai

“vivida do que representada”.75 Intuição vivida. U m a intuição

que tende à variação, em vez de perceber objetos discretos

que é antes representada do que vivida seria um a cognição,

no m odo do reconhecim ento. Isso confere ao instinto o seu

ocorrendo num nível reflexivo da vida m uito diferente, no

poder mental, novam ente no sentido da capacidade de supe­

qual o pensar não está nivelado com o fazer, e as palavras ou

rar o que está dado: confere a ele a inclinação constitutiva

imagens que o representam são capazes de sacudir o m odo

para o supernormal. O instinto sempre tem um primeiro grau

condicional do p erform ativo a fim de efetivam ente e n tre­

de m entalidade apetitiva, um a fom e pelo supernorm al, por

gar com o denotação aquilo que eles denotam . E tam bém

mais sobrecarregado e fixado que ele possa estar pela corpo­

um pensar que supera o que está dado, chegando a novas

ralidade herdada e sua inclinação para a mesmidade. No caso

con clusões, mas que consegue p erm an ecer no m odo refe­

do instinto, a corporalidade assume a form a herdada de uma

rencial. Vividas e/ou representadas, as intuições pertencem

m em ória genética dos im perativos adaptativos de situações

ao cam po ativo da consciência (a consciência é som ente isto, um “cam po” de atividade, não um a coisa).76 O “ instinto”, na 77 Ibid., p. 190. 75 Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 190.

78 Ibid., p. 33.

76 Ibid., p. 194.

79 Ibid., p. 206.

64

65

passadas, reativadas p or um a percepção do presente.80 É a

A parte da formulação referente ao que “ainda não pode ser

tendência apetitiva do supernormal de adentrar o ato instin­

conhecido” concerne à “ extensão” , que ocorre precisam ente

tivo que salva o instinto de ser a ação estereotipada de reflexo

no e através d o acontecim ento. Transportados ao coração

que é, em geral, reputado a ser.

do acontecim ento, somos movidos por aquilo que sucede. O

Bergson propõe um conceito desenvolvido para substituir

que está por vir já está fluindo. Mas o que está fluindo ainda

a noção de “cognição” , lamentavelmente tão mal posicionada

está presente apenas nos primeiros indícios de potencial. O

no que se refere ao instinto com o intuição vivida. O instinto,

potencial está sendo ativam en te expresso, mas com o um

afirma Bergson, não é cognitivo. Ele é simpático. E ele não

m ovim ento do ainda-inexprimível, posto que ainda está por

poderia dizer mais claramente: “ o instinto é simpatia”.81 “Cha­

vir. C om o intuição vivida, o instinto é a expressão g esticu ­

mamos aqui de intuição a simpatia pela qual nos transportamos

lada do ainda-inexprim ível; envolve um vivido pensar-fazer

para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que

do m ovim ento irrestrito da expressão, ancorado na situação,

ele tem de único e, por conseguinte, de inexprim ível.82 Para

bem no seu núcleo, mas levando tendencialm ente para além

os propósitos de nosso projeto, é necessário acrescentar uma

do que nele está então dado.

correção a essa definição, assim com o propor um a extensão.

O que a intuição acrescenta ao instinto é a corporalidade

A correção diz respeito ao term o “objeto” . Se o pensam ento

da situação presente. A corporalidade é um polo com ponente

distingue de modo instintivo qualidades experienciais integral­

da intuição, com o definido acima: a tensão corporal entre a

mente interconectadas, de olho em seus devires supemormais

abstração vivida da tendência de superar o que está dado e a

potenciais, e não os objetos prontos, seria mais preciso dizer

im portância vivida da corporalidade — com uma acentuação

que a simpatia “nos transporta ao coração do acontecimento” .

na última. Se o instinto fosse vivido sem um impulso da intui­

Uma formulação mais completa seria: “ chamamos de instinto,

ção, só seria capaz de im provisar supernorm alm ente sobre

em seu aspecto de intuição vivida, a simpatia que nos trans­

o já herdado do passado e, na ausência de um a ancoragem

porta, num gesto que efetua uma transform ação-in-loco, ao

no presente, seria sempre alucinatório, mesmo com um estí­

coração de um acontecimento único, que é apenas o começo,

mulo. A intuição fundam enta a herança corporal do instinto

com o qual a nossa vida irá agora coincidir, mas cujo desfecho ainda não é conhecido e, consequentemente, expresso — atado,

apreenda efetivam ente o potencial supernormal da situação.

como o movimento adiante, à tendência supernormal” .

Ela permite que o instinto fatore nos imperativos da situação;

do passado na corporalidade do presente, perm itindo que ela

que m anobre, mais efetivam ente, seu apetite supernorm al 80 Cf. nota 34 p. 32, acima, sobre o papel do “traço mnêmico”.

além deles. A intuição acrescenta a própria dose de apetitivi-

81 Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 191, grifo nosso.

dade à m istura (se ela não tivesse o próprio apetite pela vida,

82 Id., O pensamento e 0 movente, trad. bras. de Bento Prado Neto. São Paulo: Mar­ tins Fontes, 2006, p. 187. Para uma excelente análise da relação entre simpatia e intuição em Bergson, cf. Lapoujade, Potências do tempo, trad. bras. Hortência Santos Lencastre. São Paulo: n-i edições, 2017, pp. 61-87.

por que se im portaria, antes de tudo, em ser m isturada aos

66

acontecim entos?). A dupla polaridade da intuição capacita o instinto a fatorar em sua operação o que é im portante no

67

presente, enquanto, ao m esm o tem po, mantém a tendência

pragmaticamente pela intuição). Na lógica da mútua inclusão,

apetitiva do instinto de superar. Isso aumenta efetivamente a

diferença de grau e diferença de tipo são ativamente insepa­

proeza improvisacional do instinto. Faz com que ele se torne

ráveis, dois lados da mesm a m oeda processual. O continuum

mais pragmaticam ente apto a apreender o inexprimível, para

em que o instinto e a intuição se diferem em graus é o da cor­

-esquizar de form a mais expressiva o seu m ovim ento. Cada

poralização animal. A recom binação em que em ergem con ­

ato instintivo vivido carrega um grau de capacitação intuitiva.

juntam ente, de novo, para além de suas diferenças de tipo, se

O grau depende de muitos fatores, incluindo o nível de com ­

repete pontualm ente em todo acontecim ento gesticulado da

plexidade evolutiva do animal, mas não se lim itando a isso.

corporalização animal.

Pode não ter passado despercebido que as definições de

Há um sinônim o de um a só palavra para a m útua inclusão

instin to e intuição se entrecruzam , assim com o, inevitavel­

diferencial: vida. A vida espreita na zo n a de ind iscernibili­

mente, todas as distinções dispostas neste ensaio. O instinto

dade do entrecruzam ento das diferenças de todos os tipos

já carrega a ten dência supernorm al — em bora num m odo

e graus. A cada pulsação de experiência, com cada recom bi­

alucinatório, se deixado por sua co n ta — cuja acentuação

nação que ocorre, em erge um a nova variação no continuum

define a intuição. E a intuição já carrega um a polaridade

da vida, estirada por um a m ultiplicidade de distinções de

entre a tendência supernormal e a corporalidade — embora

coim plicação. A evolução da vida é um a variação contínua

em outro tem po, mais presente que passado. Com o sempre,

atravessando iterações recorrentes, repetindo o estiram ento

não se trata de uma lógica sim ples de separação categorial

sem pre co m um a diferença. Por causa desse en trecru za ­

e sua lei autofrustrante do terceiro excluído. É sempre uma

m ento recorrente de diferenças conjuntam ente envolvidas,

questão gestualm ente recente de m útua inclusão diferencial

a evolução nunca é linear.

de correlatos processuais que se implicam conjuntam ente.

A mesma lógica se aplica a todos os term os contrastáveis. O

O paradoxo é sempre o seguinte: dois modos de atividade

modo em que fará sentido construir seu contraste, com o uma

em m útua inclusão estão tão interligados a ponto de serem

diferença de grau ou uma diferença de tipo, variará de acordo

graus um do outro. Ainda assim, suas diferenças perm ane­

com o problem a e a tarefa de construção de conceitos de que

cem. Quando eles emergem juntos, estão perform ativamente

se dispõe. A única form a de evitar essa oscilação é substituir

fundidos sem se confundirem , o que significa que podem se

am bos os term os pela noção de diferença moáal, na qual as

recom binar quando acontecer de, perform ativam ente, emer­

distinções a serem feitas são entre m odos de atividade (for­

girem juntos de novo. Portanto, na lógica da m útua inclusão,

mas dinâmicas qualitativamente distintas). A diferença modal

pode-se dizer que instinto e intuição estão no m esm o conti-

diz respeito aos diferenciais entre as tendências que são varia­

nuum, separados apenas por graus (assim com o foi dito que

velm ente coativas em cada acontecim ento, sua coatividade

o instinto é intuição vivida no primeiro grau de mentalidade),

expressando-se iterativam ente num a linha em ergente de

e pode-se dizer que se misturam, para além de uma diferença

variação contínua. Toda distinção feita neste ensaio situa-se

de tip o (com o quando se diz que o instinto é possibilitado

entre tendências contrastantes. A lógica modal é uma lógica

68

69

ativista radicalmente baseada nos acontecim entos que evita

iniciativa dos indivíduos, ainda que os indivíduos colaborem

tan to a pressuposição im plícita da substância trazida pela

nesse esforço, e não é puram ente acidental” .84 E fácil de ver

noção de “ diferença de tip o ” quanto a con otação de quan­

a transindividualidade do instinto. É evidente que uma cópia

tidade m oderada trazida pela noção de “ diferença de grau” .

da coatividade do parceiro de brincadeira é incluída com o

As tendências não são nem substantivas nem quantificáveis.

delineamento negativo na -esquidade do gesto lúdico. O gesto

A lógica da m útua inclusão é, em últim a análise, uma lógica

lúdico é im potente, a não ser quando captura a atenção do

modal de variação contínua. Essa lógica com eça a germ inar

outro. No m odo com o captura a atenção, o gesto rascunha o

em qualquer lugar em que as tendências são levadas a sério

delineamento antecipatório dos contram ovim entos que virão

— e, com elas, os fatores qualitativos e subjetivos da natureza.

do parceiro. O gesto lúdico é um signo do potencial afetivo

Em especial, a tendência supernormal da brincadeira.83

não somente no animal que o executa, mas tam bém no outro,

Mas tudo isso ainda não nos diz de que form a instinto é

cuja própria apetição une forças com a do autor do gesto, com

sim patia. N este ponto da explanação, essa é a questão cru ­

toda a im ediatez da transformação-m-Zoco que o gesto efetua.

cial porque nos coloca bem na direção do objetivo declarado

O gesto lúdico implica imediatamente ao menos dois, a certa

deste ensaio: com eçar a expressar o que os animais nos ensi­

distância e em suas diferenças individuais e papéis distintos,

nam sobre política.

num vaivém instantâneo de ponto e contraponto dinâmicos.

G om o na presente explanação da anim alidade, Bergson

M antendo a lógica da m útua inclusão, pode-se atribuir uma

enfatiza que as operações do instinto são transindividuais, e

diferença de tipo à intuição e à simpatia, com o dois lados ou

que não são redutíveis a um a acum ulação de variações aci­

aspectos qualitativam ente diferentes dessa atividade co m ­

dentais: “ o esforço pelo qual uma espécie m odifica seus ins­

partilhada de m útua inclusão transindividual. A intuição é

tin tos e se m odifica tam bém a si m esm a deve ser algo bem

tudo o que “desfaz as barreiras do espaço” para efetuar essa

mais profundo e que não depende unicam ente das circun s­

m útua inclusão dinâm ica.85 A simpatia é o devir transindivi­

tâncias nem dos indivíduos. N ão depende unicam ente da

dual criado pela exteriorização da intuição. A sim patia é o modo de existência do terceiro incluído.

83 Sustentar uma lógica modal demanda um nível altíssimo de abstração para ser integralmente praticável, já que requer traduzir substantivos em verbos continua­ mente, na contracorrente da maioria das línguas. Essa dificuldade resulta numa oscilação entre lógica modal e diferença de grau/diferença de tipo. A evolução cria­ dora, de Bergson, é um estudo clássico sobre a lógica modal da mútua inclusão — e a dificuldade de não retroceder para a vacilação lógica. O que muitos leitores interpretam como “ dualidades” ou “ oposições binárias” no pensamento bergsoniano — e também em Deleuze e Guattari — deve ser reavaliado em termos de tendências contrastantes na mútua inclusão processual. Isso talvez se aplique mais significativamente à distinção, em Bergson, entre “matéria” e “memória” ; em Mil platôs v. 4 op. cit., às distinções deleuzo-guattarianas entre nomadismo/Estado e liso/estriado; e, em O que é afilosofia op. cit., entre filosofia/arte e conceito/percepto.

70

O ato de intuição inclui dramática e mutuamente ao menos duas perspectivas não coincidentes. Ele faz o entrem eio. Na im ediatez de sua enação, já é transindividual, no sentido em que habita as lacunas entre as perspectivas individuais. Ele consegue isso sem se dirigir a um a dim ensão suplem entarm ente mais elevada, que lhe con ced eria um panoram a da 84 Bergson, A evolução criadora, p. 185. 85 Ibid., p. 192, tradução modificada.

71

situação, com o se estivesse fora dela. Isso é o que a cognição

inspeção absoluta é o cam po da consciência, na m edida em

faz. A intuição, na retidão de seu pensar-fazer, atua com o o

que o campo da consciência é “ coextensivo à vida” sob a pro­

entremeio imanente abrindo uma brecha na situação.

pulsão de sua tendência autocondutora de trazer a si mesmo a

No vocabulário de Ruyer, essa im ediata abrangência dinâ­

uma nova expressão ativa.87 O modo de existência da simpatia

m ica de perspectivas díspares sem o ponto de vista de uma

é o ser do pensar-fazer da vida. Deve ser pensado mais como

dimensão suplem entar é chamada de inspeção absoluta (abso­

um verbo do que com o um substantivo, porque na lógica

luta no sentido em que é panoramesco, sem o ponto de vista

da m útua inclusão não há nada “por trás” da atividade. Há

externo que faria dela algo m eram ente relativo à situação,

apenas m odos de atividade entrelaçados que se diferenciam

numa supervisão externa a isso). “ Inspeção absoluta” é outro

com o aspectos ou lados do mesmo acontecim ento.88

nome para o m odo de existência que é a simpatia, induzida a ser, no ato da intuição. Ruyer tam bém a chama de consciência

A c o n s c iê n c ia p rim á ria é n ão co g n itiv a e n ão re p re ­ sentativa. L ogicam en te falan do, não é nem in d utiva nem

primária, correspondendo ao prim eiro grau da m entalidade (para a junção-na-diferença de perspectivas díspares na ins­ peção absoluta, superando a disjuntividade do que está dado, sem apagá-lo).85 N ão é que um animal tenha uma consciência do entrem eio im anente que é a inspeção absoluta da sim patia. Em v e z disso, o entrem eio im anente é a consciência. A consciência prim ária é o ser de um prim eiro grau de m entalidade: um ser enativo de relação para entrelaçam ento supernorm al. A

86 Cf. Ruyer, Lagenèse desformes vivantes op. cit., pp. 95-131. De sua parte, William James descreve a natureza da consciência primária como um campo transindividual de transformação vital pensada-sentida nos seguintes termos: “Aquilo com o que nós nos identificamos conceitualmente e dizemos que estamos pensando num momento qualquer é o centro; mas o nosso si-mesmo completo é todo o campo, com todas essas possibilidades subconscientes indefinidamente radiantes de expansão que apenas podemos sentir sem conceber, e que dificilmente pode­ mos começar a analisar. Os modos coletivos e distributivos de ser coexistem aqui, pois cada parte funciona distintamente, faz conexões com sua própria região peculiar no ainda vasto resto da experiência e tende a nos colocar nessa linha, e ainda assim o todo é de algum modo sentido como uma pulsação de nossa vida — não concebido como tal, mas sentido” (W. James, A Pluralistic Universe. Lincoln: University o f Nebraska Press, 1966, p. 132; grifo nosso). Esse pensar-sentir está nive­ lado com o fazer.

72

87 Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 203. Sobre o ser de relação, cf. Simondon, I/information à la lumière des notions deforme et d’information op. cit., p. 63. Deleuze Cinema 1 - a imagem-movimento op. cit., no capítulo “A imagem-movimento e suas três variedades” , coloca isso nos seguintes termos: a consciência não é de algo (como na fenomenologia), a consciência é algo (Bergson). O que ela “é”, como veremos no suplemento 2, é “extrasser”. 88 É sempre proveitoso recordar a declaração de Nietzsche, eloqüente e frequen­ temente citada, quanto a esse princípio da autonomia do fazer: “Um quantum de força eqüivale a um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade — melhor, nada mais é senão este mesmo impulso, este mesmo querer e atuar, e apenas sob a sedução da linguagem (e dos erros fundamentais da razão que nela se petrifi­ caram), a qual entende ou mal entende que todo atuar é determinado por um atuante, um “sujeito” , é que pode aparecer diferente. Pois assim como o povo distingue o corisco do clarão, tomando este como ação, operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe tal substrato; não existe “ser” por trás do fazer, do atuar, do devir, “ o agente” é uma ficção acres­ centada à ação — a ação é tudo” (Nietzsche, Genealogia da moral, trad. bras. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 1998, p. 36). A filosofia ativista na qual o presente projeto de construir uma política animal se funda­ menta adere a essa crítica da substância e da lógica de sujeito-predicado a ela associada (que está totalmente a serviço da lógica da mútua exclusão e de suas separações categoriais). O (pensar-)fazer é tudo; fazer tudo é uma subjetividade-sem-sujeito — um “ desejar, querer, efetuar” sem nada por trás, a não ser seu próprio momentum para diante.

73

dedutiva, mas abdutiva.&9 Reproduz as lacunas do entrem eio im anente com aquele m ínim o de diferença que é a lacuna condicional entre o que essa vida — à qual a sim patia é coe-

— não m enos que a cam balhota de um filhote de lobo ou a bicada ávida do pássaro bebê. Agora tem os todas as peças em seus lugares para levan ­

xten siva — “ é” e “poderia ser” . O ser da consciência inclui

tar a questão de: o que os anim ais nos ensinam sobre polí­

essa duplicidade condicional, suspendendo a referência e a

tica. Mas é im portante que deixem os claro. Não se trata, de

representação. Isso já a torna reflexiva, na m edida em que o

maneira algum a, de repensar a política nos m oldes do jogo.

ato de intuição que o cria já carrega em sua incipiência um

A bsolutam ente, não se trata de m odelagem . O que os ani­

m ovim ento vital que reflete a im ediatez do acontecim ento

mais nos ensinam sobre política tem a m esm a relação com

em suas possibilidades.

a m odelagem da brincadeira que os gestos lúdicos têm com

Instinto é simpatia, em todos os níveis, em todas as suas formas. A bicada do filhote de gaivota-prateada já é um exer­

aquilo que iriam denotar. Trata-se, então, de um a questão de metamodelização, assim como na brincadeira é uma questão de

cício de simpatia. Ela traça, na própria form a dinâmica, o deli-

m etacom unicação.910 que se faz necessário é abrir e manter

neam ento negativo da ação do adulto que a retransmitirá. A

uma lacuna entre a teoria da brincadeira animal da qual essa

paixão da jovem gaivota inclui a do adulto, em contraponto

reflexão se desdobrou e a política que pode derivar dela. Para

im anente. O m esm o pode ser dito da linguagem hum ana.

essa tarefa, não há interesse em flertar com qualquer suposta

Deleuze e Guattari insistem em que até m esm o o mais solitá­

dialética entre brincadeira e combate. A desterritorialização

rio ato de linguagem hum ana carrega, em contraponto im a­

recíproca através da qual a brincadeira se estende pode abran­

nente, todo um “povo por vir” .9° Até m esm o a mais elevada

ger diversos dom ínios de atividade e se estende a relações

e elaborada linguagem participa da consciência primária. A

interespécies (com o na sim biose). O entrem eio é multiface-

ponta da língua e o dedo que tecla m ergulham nela a cada

tado. O entre-dois, que a dialética considera prim ário, é de

meneio. Se instinto é simpatia, então a linguagem é instintiva

fato um caso-limite. Em v e z de m odelar a brincadeira, trata-se de extrair da

89 A abdução, como teorizada por C. S. Peirce, envolve um “julgamento perceptivo” imediato que afeta a singularidade de uma relação ocorrente. Ele fala disso, em termos especulativo-pragmáticos, como uma “hipótese” imediatamente vivida: o gesto de abarcar o “é” e o “poderia ser”. O conceito de “abdução” expressa o teor lógico da consciência primária enquanto pensar-sentir nivelado com 0 fazer subje­ tivo sem sujeito. Cf. Peirce, Pragmatism as a Principie and Method ofRight Thinking: The 1903 Lectures on Pragmatism. Albany: State University of Nova York Press, 1997, pp. 199-201; The Essential Peirce: Selected Philosopkical Writings, v. 2. Bloomington: University of Indiana Press, 1998, pp. 155,191-195,204-211,226-242 e especialmente pp. 223-234, em que ele comenta o conceito de “abdução” utilizando o exemplo do pensamento canino. 90 Deleuze e Guattari, Milplatôs, v. 4 op. cit., pp. 162-164; 47-48; O anti-Édipo op. cit., p. 32.

74

brincadeira o que, na brincadeira, supera a sua dadidade. É necessário extrair o lúdico da brincadeira, a fim de encená­ -lo de maneira ainda mais extensa e autônoma. É necessário

91 Sobre metamodelização, cf. Guattari Caosmose op. cit., pp. 34-35,42-44,71-89; e Massumi (Semblance and Event op. cit., pp. 103-104). Guattari define a metamode­ lização como “atividade teórica [...] capaz de abarcar a diversidade dos sistemas de modelização” (Caosmose op. cit., p. 34). Ele enfatiza que a metamodelização é, por natureza, transindividual: ela “ reside no caráter coletivo das multiplicidades maquínicas” envolvendo uma “ aglomeração de fatores heterogêneos de subjetivação” coimplicados num movimento de “desterritorialização” (p. 43).

75

co lo c a r o lú d ico num m ovim ento ainda m ais inten so de

ideia de p olítica natural já foi totalm ente desbancada pelo

transformação, vibrando com um entusiasmo do corpo ainda

pensam ento crítico ao longo do últim o século. Agora é hora

mais vivaz e abrangente. É preciso fazê-lo com gestos de pen­

de relançá-la, -escam ente — m obilizando todos os poderes

sam ento perform ativos.

que a falsa natureza provê.

O elem ento lúdico na brincadeira, a -esquidade, traz con­ sigo uma transformação-in-loco transindividual que inicia um m ovim ento de evolução potencial, que é fundam entalm ente autoconduzid o, num a autonom ia de expressão inventiva. Esse é o princípio da prim azia da tendência supernormal na vida animal. Entretanto, vim os que essa transformação-in-loco não se inicia sem assegurar que a autonom ia da expressão seja lastreada p or um a dependência quanto ao que já está expresso: uma assunção obrigatória dos im perativos da situa­ ção enquanto dada. O foco não deveria estar na noção redutiva de uma dialética entre brincadeira e com bate, mas sim nessa pressuposição recíproca entre a autonom ia da expres­ são, de um lado, e na dependência quanto ao já expresso, de outro: entre abstração vivida e im portância vivida. A abstração vivida através da autonomia da expressão cor­ responde à estética, que, por sua vez, corresponde à superação do que está dado no m odo condicional de produção de possi­ bilidade. A im portância vivida, de sua parte, corresponde ao ético: a ancoragem da experiência incorporada nos im perati­ vos expressados naquilo que já está dado. O que aprendem os dos animais é a possibilidade de cons­ truir o que Guattari chama de paradigma ético-estético da polí­ tica natural (em oposição a um a p olítica da natureza).92 A 92 Sobre o paradigma ético-estético, cf. Guattari (Caosmose op. cit, p. 163). A pers­ pectiva contrastante é desenvolvida por Bruno Latour em Políticas da natureza. Para Latour, devemos deixar de lado o conceito de “natureza” a fim de poder aprender como construir um “ mundo comum” , agregando humanos e não huma­ nos numa nova instituição democrática que finalmente cumpriria o ideal de ser

76

verdadeira e inclusivamente representativa (Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia, trad. bras. de Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru: Edusc, 2004, p. 23 e passim). Por outro lado, a questão, para Deleuze e Guattari, é reas­ sumir e reintensificar o continuum natureza-cultura/humano-animal de modo a inventar movimentos de singularização irrepresentáveis constituindo uma demo­ cracia revolucionária no ato.

77

PROPOSIÇÕES

O que os animais nos ensinam sobre política (Esboço preliminar a ser preenchido de acordo com o apetite)

1. Na esteira da obra de Bruno Latour, muitos encamparam o projeto de integrar às nossas concepções de prática política uma consideração quanto aos “agentes não humanos”. Alguns, preocupados em evitar o antropomorfismo implícito de desig­ nar o outro apenas como o negativo do humano, começaram a falar em “ entidades não convencionais” .1A lição que o filhote de gaivota-prateada nos ensina é que, quando levam os em consideração a tendência supernormal que arrebata a todos nós, hum anos ou não, é necessário reconhecer que somos as nossas próprias entidades não convencionais. Corolário: somos capazes de superar o que está dado na exata m edida em que assumimos a nossa animalidade instintiva. 2. Um a política que reestabeleça os laços com a nossa ani­ malidade, em seu m ovim ento im anente de autossuperação naturalm ente supernorm al, não pode ser baseada numa ética normativa, seja ela qual for. A política animal não reconhece im perativo categórico, vive os im perativos da situação dada, imanentes a essa situação, e vive em paradoxo. Uma política como essa não reconhece a sabedoria da utilidade com o crité­ rio de boa conduta. Antes mesmo, afirma o excesso lúdico. Ela não se atém à proporção áurea; vive excessivam ente fora do i Cf. o colóquio no Collège International de Philosophie, em que o começo deste ensaio foi apresentado: Intersections. 3o5 Anniversaire du Collège International de Philosophie, jornada Écologie: Des entités non-conventionelles. Paris, 15 de junho de 2013.

79

entrem eio. Seus engajamentos ético-estéticos ocorrem entre

dinam icam ente esses dois polos da corporalização coletiva

o tem peram ento im perativo da im portância vivida e a auto­

da vida, é correto dizer que o m ovim ento supernormalizante

nomia do m ovim ento vitalm ente afetiva da abstração vivida,

da inventividade vital está a serviço da produção da im portân­

com a última assum indo a primazia. Essa primazia, é crucial

cia vivida nas variações em ergentes, assim com o a abstração

salientar, é processual, e não moral. A tendência supernormal

vivida avança para longe dos im perativos que advêm com a

é a vanguarda do devir. Ela abre os cam inhos da vida, mas,

importância vivida. É uma questão de perspectiva. E com o o

ao m esm o tem po, cada novo caminho aberto amadurece na

debate, na teoria neodarwiniana, sobre se o gene está a ser­

form a de um a estrada batida. O que é superado se estab e­

viço da vida ímpar do organismo ou se o organismo está a ser­

lece, se passar no teste da seleção adaptativa. Quando passa

viço da reprodução do gene. A resposta lógica m utuam ente

no teste, passa com o captura, a ser posteriorm ente im posta

inclusiva é: tanto uma coisa quanto a outra (e não exatamente

com o algo que está dado. É do processo da natureza, e da

ambas: uma coisa, a outra e o terceiro incluído da zona pro­

natureza do processo, o excesso lúdico passar à importância.

cessual de indiscem ibilidade).

Isso não é nada menos que o processo da natureza, em seu sentido mais amplo. Logo, não se trata simplesmente de esco­

3. Da proposição 2 decorre que 0 animal político não reconhece

lher uma em detrim ento da outra, preferindo a autossupera-

qualquer oposição rígida entre 0frívolo e 0 sério, ou seja, entre o

ção criativa à dependência em relação ao já-expresso, porque

dispêndio entusiástico de energias criativas e a âncora da fun­

cada um a confere disposição à outra. A im portância vivida

ção e da utilidade. Ele se alim enta do paradoxo produtivo de

confere à criatividade algo para se arranjar e a criatividade

sua aliança processual. A ética-estética não normativa resiste,

devolve o favor com um rendimento de dados recém-cunha-

com erupções de propulsão supernormal, às pesadas deman­

dos. O que está dado e o que o supera são articulados na junta

das, tão frequentem ente ouvidas, de que as ações de alguém

gestual num ciclo de coprodução, cada um deles destinado ao

sejam “relevantes” a todo custo e de que “contribuam com a

outro à sua própria maneira. Afirmar um eqüivale a afirmar

sociedade” de uma maneira já reconhecida. A política animal

o ciclo da vida no qual ambos estão mutuam ente incluídos.

de educação precisa seriamente brincar com essas demandas.

Superar a ética norm ativa requer refrear a divisão dessas duas tendências, na tentativa de excluir um a delas (a super­

4. O pensamento político floresce com a consciência primária

normal, claro), o que sugere procurar caminhos para habitar

não cognitiva. É pensam ento em ato, nivelado com o gesto

coletivam ente o entrem eio dinâmico do seu entrelaçam ento

vital. A co n sciên cia não cogn itiva é ativamente não repre­

processual, a fim de com por com a sua diferença, reconhe­

sentativa. No entanto, para todos os efeitos, já é reflexiva. E

cen d o a necessid ad e de so brevivên cia da ancoragem na

reflexiva no sentido especial de que os gestos que corporaliza

im portância vivida, enquanto puxam as cordas gestuais que

deflagram e conservam a lacuna entre o “é” e o “poderia ser” .

ativam a prim azia processual da abstração vivida nas gêne­

Ser e devir refletem -se um no outro na unicidade do gesto

ses das form as de vida. C onsiderando o ciclo que conecta

ético-estético. A consciência prim ária é enativa. T udo isso

80

81

sugere uma política do gesto performativo, mesclando-se às

processuais com a corporalidade. É crucial registrar essa

práticas de arte improvisacional e participativa no selvagem

estranheza, particularm ente quando nos referim os ao que é

(para além do território da galeria). Ético-estético = estético-

tradicionalmente considerado o complemento necessário do

-político.2 Essa orientação da política anim al desperta uma

sujeito — 0 objeto. A subjetividade processual acontecimental

suspeita em relação a conceitos como o “parlam ento das coi­

aqui em questão não tem nenhum objeto como complemento

sas”, de Bruno Latour. Sobretudo porque o mundo, em ter­

estrutural. Só tem coisas porvir, e são menos “ coisas” do que

mos de fato processual, é mais povoado por acontecim entos

suplementos processuais — mais-valia de vida. Sobretudo, não

do que por coisas. O mundo é feito mais primordialmente de

deveria haver ilusões de que o poder mental da subjetividade

verbos e advérbios que de substantivos e adjetivos. Ao farejar

processual resida numa “m ente” (individual ou coletiva). E

o parlamento das coisas, o acontecimento expressivo do ani­

uma subjetividade não apenas sem uma causa eficiente por trás,

mal já pode rosnar: cheiros de representação.3 Um esforço a

mas tam bém sem um sujeito por trás dela. O poder mental

mais para deixar a política não representacional atuar até o

dessa subjetividade-sem-sujeito processual pode ser considerado

talo supernormal!

espiritual, desde que signifique simplesmente um avivamento em termos relacionais e intensivos4. Ele comete atos espirituo­

5. A política animal também é obrigada a se distanciar do con­

sos, com os quais coincide totalmente.5

ceito de “agência”. A transindividualidade do processo de devir vital complica a questão da agência. 0 problema foi assinalado anteriormente: nenhuma causa eficiente pode ser isolada por trás do movimento de autossuperação da experiência. Esse movimento autocondutivo dispara a si mesmo de uma maneira irredutivelmente relacionai. É mais uma questão de catálise do que de causalidade linear. A catálise é experiencial: direta­ mente vivida, num registro qualitativo, no meio transindividual da inspeção absoluta. Sua natureza qualitativa e vivida nos obriga a chamá-la de “subjetiva” , apesar de toda estranheza no que tange ao entendimento comum da palavra; e a chamar seu potencial inventivo de superar 0 que está dado de “poder men­ tal”, muito embora esteja no mais estrito dos envolvimentos

2 Sobre isto, do ponto de vista de uma filosofia ontogenética acontecimental, cf. Massumi, Semblance andEventop. cit. 3 Cf. acima, nota 92, p. 76.

82

4 Sobre esse sentido de “ espiritual”, cf. “ No Title Yet” (Manning e Massumi, Thought in the Act: Passages in the Ecology of Experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014, pp. 59-80). 5 Como mencionado anteriormente, a referência aqui é ao conceito de “polo men­ tal”, tal como desenvolvido por Whitehead. Nunca é demais repetir que o polo mental não é substantivo (o mental, a mente). Ele é um modo de atividade que sempre compõe conjuntamente, em cada ato, com seu complemento, o polo físico (correspondente à “ corporalidade” em nosso vocabulário). Esses dois aspectos de toda e qualquer ocasião estão em envolvimento direto e recíproco, sem um termo ou estrutura de mediação entre eles (seu envolvimento recíproco não é um acoplamento estrutural, mas sim coatividade numa zona de indiscernibilidade na qual distintos modos de atividade entram em ressonância e interferência). Esses polos contrastantes não são propriedades de um ser substancial. Em vez disso, são modalidades constitutivas de acontecimentos no fazer. A falta de mediação nessa “fase primária” da ocorrência dos acontecimentos impede qualquer apelo à representação e à sua companheira de viagem, a cognição, pertencentes àquilo que Whitehead chamaria de “últimos fatores” a entrarem na constituição das oca­ siões da natureza. “ O conhecimento [usado aqui como sinônimo de ‘cognição’] é relegado à fase intermediária do processo [...] no geral, o conhecimento parece ser insignificante para além de uma complexidade peculiar na constituição de algumas ocasiões atuais” (Whitehead, Process and Reality op. cit., pp. 160-161).

83

6. A inda que não norm ativa, a p olítica ético -e sté tica não

irritação ou a um estím ulo negativo, por evitação ou negação.6

a co n tece sem critério s de avaliação. A avaliação afeta a

Quando a vida sucumbe demais ao jugo da necessidade pática,

intensidade dos potenciais mentais de variação depositados

perde o seu em puxo e o pouco de m ais-valia que ele gera.

na brincadeira. Dada a natureza não cognitiva da atividade

Quanto mais a atividade da vida está sob a influência da ten­

ético-estética, a avaliação pertence necessariam ente ao afeto.

dência pática, mais sofre um déficit correspondente de paixão.

Pertence ao afeto em ambos os aspectos, afeto de vitalidade

Não há fundação transcendente para a preferência estético-

e afeto categórico, fazendo o balanço de sua m útua inclusão

-política por mais-valia de vida. É que, em geral, entregar a

em cada uma das situações da vida, com o signos de potencial

vida de alguém para as labutas do pático dificilm ente vale a

ou signos de poder, respectivamente — estando esses últimos

pena. Qualquer coisa que sirva de empuxo à vida percebe isso

correlacionados à autonom ia da expressividade, por um lado,

imediatamente. É uma autoevidência sentida que opera como

e à dependência ao já-expresso, por outro. Brincando entre o

um critério de avaliação vivido imanente à experiência vital.

ainda-por-vir-em -sua-total-expressão, de um lado, e a dadidade do já-expresso, de outro, a política animal é uma política

7. O entusiasmo do corpo não arrebata um sem arrebatar ao

da expressão indissociável de uma política afetiva. O principal

m enos dois. Ele m arca um a transform ação-in-loco instantâ­

critério disponível para as avaliações correspon den tes é o

nea que é im ediatam ente transindividual por natureza. Logo,

grau a que o gesto político eleva o entusiasmo do corpo.

o paradigm a ético-estético convoca um a política da relação.

A intensidade é o valor suprem o dessa form a de política,

Um segundo critério de avaliação deriva disso, intimamente

pela simples razão de ser experienciada com o um valor em si,

ligado ao critério da intensidade antipática: aquilo que eleva

um -corpo com os puros signos de tem peram ento do expression esco lúdico. N ão se “fa z ” o en tusiasm o do corpo tal com o, no sentido corrente, dizem os que “fazem os” política. O entusiasm o do corpo é vivido em si e para si, puram ente pela nova qualidade que ele confere ao desenrolar da expe­ riência e, especialm ente, por sua intensidade, aquele detalhe a mais. O elem ento em excesso da intensidade de um ato constitui, em si, uma mais-valia de vida imediata; e, em seu desdobram ento, um a m ais-valia de vida em ergente ainda-por-vir — ele vale por dois. A afirmação gesticulada junto com o entusiasmo do corpo é, de uma só vez, ética e política. Em sua ausência, a vida tende a atolar na tendência pática de responder corporalmente a uma

84

6 Como utilizado aqui, “pático” e “pathos” (cf. acima, na discussão sobre os afetos categóricos; e abaixo, no suplemento 1) estão intimamente relacionados, mas não são sinônimos (ambos derivam da palavra grega para “sentimento”, seus cognatos modernos carregando uma forte conotação de sofrimento passivo). O pático é defi­ nido aqui como atividade reduzida à reação negativa de evitação diante da dor ou da irritação, ou aos mecanismos de negação que emergem dessas reações. Pathos é o sentimento de submersão que advém com a predominância de uma reatividade pática na vida de alguém. O pático é a forma dinâmica da reatividade (o exercício exclusivamente negativo do poder mental quando a sua atividade é limitada à rea­ ção). O pathos é o afeto categórico associado a arenas dominadas pelo pático. A defi­ nição do pático, aqui, em termos de mentalidade, é outra advertência de que não há uma reatividade puramente fisiológica, como está geralmente implícito no conceito de “ reflexo” . Tampouco há atividade puramente fisiológica, sendo a mentalidade e a fisicalidade polos contrastantes mutuamente incluídos, de uma maneira ou outra, por mais insignificante que o polo mental possa ser, em todo acontecimento de corporalização. Guattari utiliza “pático” num sentido diferente, como sinônimo da consciência afetiva primária da intuição; logo, num sentido mais próximo ao modo como aqui é utilizado o termo “ simpatia” (Caosmose op. cit., pp. 42-43).

85

a m útua inclusão dos díspares e dos diferentes a um a potên­

fundam entalm ente situacional. Mas há uma diferença impor­

cia maior deve ser afirmado. Isso envolve gestos dotados de

tante entre contexto e situação.8

-esquidade que produzem graus mais altos de copossibilidade,

“C ontexto” é um conceito geral. Tem a ver com aquilo que

abrangendo mais panoramas imanentes de inspeção absoluta

está em butido in loco de uma maneira geral particular àquele

desdobráveis em proliferações de variação. Implica intensi­

lugar — isto é, de um a maneira que se aplica geralm ente ao

ficar a vida envolvendo, em cada circuito de potencialização

que ali ocorre. O que ocorre é então considerado adequa­

recíproca, um núm ero crescente de territórios existenciais,

damente entendido com o uma instância particular da regra

tendendo ao m áxim o supernorm al, partilhando a m ais-va­

geral. Quando os im perativos in loco num dado contexto são

lia de vida o mais amplamente que os artifícios de abstração

analisados, é tipicam ente em term os de códigos form ais e

vivida possam permitir. W hitehead define a direção apetitiva

inform ais governando interações de fundo e os papéis que

do movimento da vida com o uma meta de intensificação, que,

por convenção lhes são associados. Um código é uma abstra­

por sua vez, ele define em term os da capacidade de um devir

ção cuja forma regente em geral preexiste aos particulares de

manter em si mesmo o máximo de termos contrastantes sem

sua enação contextual (isso é verdadeiro até quando o código

im por a eles a lei do terceiro excluído. Ele equaliza essa meta

é com binatório ou gerativo, no sentido estruturalista). Uma

de intensificação (aqui, a tendência supernorm al) com o o

situação, por outro lado, tem a ver com singularidade, e não

processo estético da apetição, que, posteriorm ente, equipara

com particularidade.

ao “progresso” ético.7 A política animal é um a ético-estética

O singular se encontra em oposição tan to ao particular

da autocondução da apetição por excessos im anentes cada

quanto ao geral (eles vêm num pacote). Tudo numa situação

vez mais inclusivos.

é potencialm ente arrebatado no m ovim ento de enação, com uma abertura para a form a final que ainda será determinada,

8. A exortação é geralm ente considerada, tanto na política

num devir singular catalisado pelos gestos perform ativos que

quanto na teoria cultural, verdadeira ao contexto das ações

ganham forma. Essa singularização afeta até m esm o p oten­

de alguém, levando conscientem ente em consideração a his­

cialm ente os códigos in loco, suscetíveis aos próprios devires,

tória e o habitus do lugar, admitindo as obrigações implícitas

através de suspensões supernorm ais de sua form a já dada.

em butidas nisso. Essa exortação virou um a toada fam iliar e

As situações não são de conform ação (aplicação que produz

é muito frequentem ente repetida com o um refrão, num tom

conformidade de uma regra), mas de in-formação (um tomar-

de devoção. O animal político reconhece vivam ente os im pe­

-forma ou buscar-form a imanente à ação situada).

rativos do contexto em que se encontra (sob o aspecto ena-

O m ovim ento em direção à determinação de novas formas,

tivo da “corporalidade”). A ético-estética da política animal é

ou variações das form as existen tes, atravessa tendencialmente a situação rumo a uma situação nova e diferente que

7 Sobre todos esses pontos, cf. Whitehead (Adventures ofldeas. Nova York: Free Press, 1967, pp. 252-264; Process and Reality op. cit., pp. 162-163,279-280).

86

8 Massumi, Parablesfor the Virtual op. cit., pp. 212-213.

87

irá sucedê-la. Isso envolve potencialm ente um a passagem de

A m icropolítica é a dimensão dos acontecimentos na qual

uma de atividade para outra. O movimento de in-formação é

as tendências supernormais de decodificação e desterritoria­

transsituacional por natureza. Se o processo in-formacional

lização tornam -se excessivam ente sentidas. O micropolítico

repete formas dadas ou padrões formais herdados, é somente

não é o oposto do m acropolítico, mas sim seu correlato pro­

porque o movimento transsituacional pôde regenerar a forma

cessual. N ão faz sentido falar do m icropolítico fora de sua

prévia do que está dado através de meios im anentes, recor­

m útua inclusão com o m acropolítico — o nível dos códigos e

rendo aos próprios recursos processuais. O que é pensado

das regras gerais e éticas normativas — , assim como não faz

com o aplicação conformativa de uma regra preexistente é, na

sentido separar a abstração vivida da corporalidade ou o afeto

verdade, processualmente falando, um tornar-se limitado aos

categórico do afeto de vitalidade. M as tam bém é crucial ter

estreitos parâm etros dispostos por um im perativo herdado

em mente que a m útua inclusão do macro e do micropolítico,

de voltar a fazer brotarem as formas do passado. A codifica­

assim com o toda mútua inclusão, não é somente diferencial,

ção, desse ponto de vista, é o mais baixo grau lim itante da

mas tam bém assimétrica. Há um excesso criativo de intensi­

ten dência supernorm al. W hitehead explica que o que fa ci­

dade do lado do m icropolítico. O m icropolítico é da ordem

lita essa conform ação portadora de código ao passado (o que

do gesto vital, supernormalmente orientado. O macropolítico

neste ensaio foi analisado com o uma dependência ou aquies­

é da ordem da conform ação. Portanto, a distinção entre eles

cência ao que está dado) não é a perm anência no lugar das

não é de escala, mas de modos de atividade qualitativamente

form as já determinadas, tam pouco suas transm issões com o

diferentes ou de tendências contrastantes.

entidades prontas, mas sim germ es de in-form ação, buscadores-de-form a embrionários plantados no território, e que

A dupla proposição que advém dessas considerações é a seguinte: a política animal resiste às devoções do contexto e, para

são repetidam ente replantados por m ecanism os de recapta-

ter êxito nessa tarefa, deve praticar a vigilância micropolítica

ção im anentes a cada situação sucessiva, trazidos pelas ten ­

em relação aos germ es conform ativos infecciosos.11 Conser­

dências transituacionais que se alastram por elas com o uma

vando a ética transsituacional, a p olítica animal m icroinocula o elem en to de dependência do já-exp resso com uma

infecção. Esses são os fatores genéticos que perm anecem na m istura catalítica, rebrotando infecciosam ente a form a con ­ form ativa de um apoio imanente ao m ovim ento processual.9 Eles operam naquilo que Deleuze e Guattari caracterizariam com o nível m icropolítico.10

9 Whitehead, Adventures ofldeas op. cit., pp. 203-204. 10 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 68-70, 91, 94, 89; Massumi, “O f Microperception and Micropolitics” . Inflexions: A Journal for Research Creation, n2 3, Montreal, 2009.

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u Quando esses germes conformativos renovam sua aliança com a tendência supernormal, assumindo o encargo da intensidade sem afirmar sua indeterminação, a infecção toma-se virulenta e o contágio “microfascista” resulta disso (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 1 op. cit., pp. 17-18; Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 90-92,110). O microfascismo é um modo de devir entravado, patinando no paradoxo estéril der­ radeiro de um devir conformativo intensamente apetitivo. Quando um movimento microfascista domina o Estado e outros aparatos políticos molares (como aconte­ ceu no Nazismo e no Fascismo Italiano), o paradoxo da patinada processual a uma velocidade extremamente apetitiva explode numa violência mortífera e, em última análise, suicida (cf. Ibid., pp. 113-114). O fascismo é uma autonomia de expressão que se toma fundamentalmente destrutiva.

89

dose liberal de exageração im provisacional e de entusiasmo

A lógica de m útua inclusão nada sabe das oposições exclu­

deform ativo-transform ativo — em resum o, autonomia cria­

sivas. Ela reconhece contrastes em abundância, mas os ter­

tiva de expressão.

m os con trastan tes são sem pre entendidos com o estando num a relação de p ressu p o sição recíp roca, com o m od ali­

9. O paradigma ético-estético da política animal é particular­

dades de ação que pertencem diferencialm ente ao m esm o

mente atento aos modos de pensam ento enativados nos ges­

p rocesso — em resum o: com o “dinam ism os” . C om o fa to ­

tos não verbais. Mas essa atenção especial à abstração vivida

res contribuintes do processo, os dinamismos contrastantes

em níveis não verbais não implica, de maneira alguma, uma

entrelaçam -se sem que suas diferenças sejam apagadas. Fun­

negligência da linguagem. Com o vimos, os atos instintivos dos

dem -se perform ativam ente sem se confundirem . Em seus

animais já incluem a linguagem em potencial nos seus elemen­

dinamismos discrepantes, eles são fatores modais: m odos de

tos lúdicos. Os gestos vitais da brincadeira animal mostram

atividade. Sendo fatores m odais de atividade, estão essen ­

uma reflexividade no-ato que realmente produz as condições

cialm ente em m ovim ento. Embora às vezes seja necessário

da linguagem humana. A política animal e sua metamodeliza-

interpretar seus contrastes em term os de diferenças de grau

ção fazem a linguagem brincar. Brincar com a linguagem signi­

num continuum de atividade qualitativo, ou até mesm o com o

fica fazer uso instintivo da mesma, e isso consiste no emprego

diferenças de tip o que entram em várias m isturas, o m odo

gestual das palavras como catalisadores de atos de linguagem

com o são derradeiram ente distinguidos é pela orientação

que efetuam transformações-m-Zoco diretas, as quais chacoa­

de seus m ovim entos. Em outras palavras, eles são mais bem com preendidos com o tendências.

lham a corporalidade e recuperam a apetição, propulsionando a atividade vital na direção de uma variação transsituacional.12

As tendências são diferenciadas pelos polos entre os quais se estendem os seus vetores: são definidas pelos seus limites.

10. As reservas que o paradigma ético-estético possui quanto

A lógica da m útua inclusão não concerne, prioritariam ente,

aos modelos cognitivos do pensam ento envolvem pronuncia­

a form as ou objetos, ou até m esm os a sujeitos. A tendência

dos receios em relação a qualquer lógica construída em torno

é o que a alim enta. É no entrelaçam ento dos m ovim entos

do princípio do terceiro excluído — mas, de maneira alguma,

tendenciais que form as, objetos e sujeitos são constituídos,

em relação à lógica com o um todo. A política animal afirma

em em ergência perpétua e variação contínua. Com o enfatiza

ativamente uma lógica áe mútua inclusão. Ela saúda o terceiro

Bergson, as tendências não se distinguem um as das outras

incluído com entusiasm o, na form a de efetivos paradoxos

da maneira m utuam ente exclusiva com que as formas, obje­

desempenhados.

tos e sujeitos distinguem -se uns dos outros. As tendências podem com binar forças sem se excluírem m utuam ente. De

12 Sobre as “transformações incorpóreas” que são efetuadas na e pela linguagem e atribuem-se às corporificações, cf. Deleuze e Guattari (Mil platôs, v. 2, pp. 19-27). Sobre os poderes de variação da linguagem em sua relação com transformações

fato, é uma vocação misturarem-se. Muito embora sejam logi­

incorpóreas (pp. 30-33).

ocorrem naturalmente sozinhas. Toda situação sempre ativa

90

camente distinguíveis por sua polaridade e orientação, nunca

91

um m isto delas. Em toda situação, ocorrem conjuntam ente

absolutam ente autoinspecionantes. Esses graus de consciên­

sem coalescer. Elas ressoam e interferem um as nas outras,

cia são sempre enativos. São pensares-fazeres. São tam bém ,

inibem-se ou prolongam -se umas as outras, enfraquecem-se

ao m enos germ inalm ente, reflexivos, da maneira antes evo­

ou potencializam -se umas as outras, capturam-se ou entram

cada na discussão sobre a inspeção absoluta e a consciência

em simbiose m utuam ente benéfica. No vocabulário de Berg­

primária. Do ponto de vista do afeto com o qual emergem, são

son, elas “ interpenetram ” um a zona de indiscernibilidade

pensares-sentires a-fazentes.

enquanto se mantêm logicam ente distintas quando conside­ radas com o vetores que por essa zona se movimentam.

A lógica tendencial de m útua inclusão atribui duas tarefas à m etam odelização da vida criativa do animal. Primeiro, sua

A habilidade de interpenetrar, de misturar-se efetivamente

teoria do político deve sempre com eçar com o gesto de anali­

sem se confundir, é um a característica definidora da m enta­

sar as misturas, entendidas não com o combinações de termos

lidade, de acordo com Bergson.13As tendências não são nada

em relações externas uns com os outros (combinatórias, mon­

mais que o movimento criativo do polo mental da natureza —

tagem parte a parte, hibridização), mas em term os de mútua

“criativo” porque de suas interpenetrações dinâm icas em er­

inclusão, com os efetivos paradoxos que a acom panham . A

gem variações qualitativas. As tendências, em seu movimento

avaliação dos acontecim entos vitais deve com eçar com uma

“mental” , constituem subjetividades-sem-sujeito: puros faze­

avaliação das tendências em jogo. Uma vez que seus polos-

res, sem fazed or por trás — sem nada por trás, exceto seu

-limite e orientações estejam definidos, a questão se torna o

próprio momentum adian te.14 Estes se autopropelem , por

grau e a natureza de suas participações nos gestos enativos

natureza, em direção à superação do que está objetivamente

na brincadeira, os m ovim entos subsequentes que catalisam

dado. Sua form a dinâm ica é o em -andam ento da natureza.

e os territórios existenciais que esses movimentos envolvem.

Em todo lugar na natureza trata-se de m isturas criativas de

Os dois critérios de avaliação acima discutidos pertencentes

tendências de graus variantes de poder autocondutor, corres­

à intensidade são calcados nessa análise das misturas tenden-

pondendo a graus de mentalidade integral ou de consciência

ciais e a ela devem suas capacidades discriminatórias.15

13 “A vida, na verdade, é de ordem psicológica, e é da essência do psíquico envolver uma pluralidade confusa de termos que se interpenetram [mútua inclusão numa zona de indiscernibilidade]” (Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 279). “Com efeito, os elementos de uma tendência não são comparáveis a objetos justapos­ tos no espaço e exclusivos uns dos outros, mas antes a estados psicológicos, cada um dos quais, ainda que seja primeiramente ele próprio, participa, no entanto, dos outros e contém assim virtualmente toda a personalidade a qual pertence” (p. 129).

15 “O estudo do movimento evolutivo consistirá, portanto, em destrinçar um certo numero de direções divergentes, em apreciar a importância do que ocor­ reu em cada uma delas, numa palavra, em determinar a natureza das tendências dissociadas e em fazer sua dosagem. Combinando então essas tendências entre si, obteremos uma aproximação ou antes uma imitação do indivisível princípio motor do qual procedia seu elã. O que significa que veremos na evolução algo bem diferente de uma série de adaptações às circunstâncias, como o pretende o mecanicismo, algo bem diferente também da realização de um plano de conjunto, como o pretende a doutrina da finalidade” (Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 111). Sobre a necessidade de uma análise cuidadosa das misturas tendenciais a fim de evitar “falsos problemas”, cf. Deleuze, Bergsonismo, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, pp. 7-26.

14 Sobre o conceito de subjetividades sem sujeito em Deleuze, Guattari e Ruyer, cf. Bains, “ Subjectless Subjectivities” in Brian Massumi (org.) A Shock to Thought: Expression after Deleuze and Guattari. Londres: Routledge, 2002, pp. 101-116. 0 puro fazer, sem fazedor por trás, refere-se novamente à passagem de Nietzsche citada na nota 88, p. 73.

92

93

A segunda tarefa é reflexiva. Consiste em desenvolver fer­

da relação, se suas construções m etaconceituais incidem no

ram entas para a m eta-descrição das m isturas tendenciais,

pertencim ento, então as técnicas necessárias não podem ser

adicionando-as continuam ente à caixa de ferram entas tão

outra coisa senão as técnicas vivas de relação abstrativa: téc­

logo novas situações singulares emerjam e im plorem por um a análise verdadeiram ente capaz de levar em conta suas

nicas relacionais de abstração vivida.17 A m etam odelização da política animal tem de abrir as próprias operações à ten ­

singularidades. A metamodelização da vida animal e da polí­

dência supernormal de superar aquilo que está dado, ao qual

tica natural consiste na produção de um cam po conceituai

concerne prioritariam ente. Um poder m ental de superar o

no qual abrigar o crescente ménagerie de entendim entos sin­

que está dado é um a definição de especulação. A form a de

gulares. Isso requer uma atividade metaconceitual dedicada

pragm atism o aqui em questão é o pragmatismo especulativo.

a construir vias de m utuam ente incluir no pensam ento um

Um alerta: há muitas form as de pensam ento especulativo e

ménagerie sempre em expansão dos modos singulares de ten ­

de pragm atism o que não são tendenciais, criativas ou con ­

dências pertencendo, em termos processuais, umas às outras,

cernentes ao desenvolvim ento da lógica singular da mútua inclusão (comprador, tenha cuidado!).

enquanto respeitam com cautela suas naturezas irredutivelm ente contrastantes (i.e., sem generalizar e sem confundir

Nota: O propósito do alerta é assinalar um a divergência

sua singularidade com uma instância particular de uma regra

entre o pragm atism o especulativo desenvolvido aqui e, de

geral). Esse pensamento dos pensares-fazeres participatórios não pode se dispor a ficar longe das situações e acontecim en­

um lado, as filosofias pragm áticas, para as quais função e a utilidade são primárias; e, de outro, o realismo especulativo e

tos nos quais as tendências interpenetram. A m etam odeli­

a ontologia orientada ao objeto. Com o uma ontologia baseada

zação deve ser resolutam ente pragmática, mesmo enquanto

na substância, a 000, tal como desenvolvida por Graham Har-

constrói abstrações vividas da mais alta ordem.16 A necessidade pragmática requer que cada projeto de m eta­

man, está fundam entalm ente em desacordo com filosofias

m odelização imagine por si mesmo o que poderia ser um

são mais a atividade e o acontecim ento do que a substância, e cuja tarefa filosófica é pensar m ais a subjetividades-sem -

laboratório filosófico adequado aos seus fins. Toda m etam o­

ontogenéticas orientadas ao processo, cujas noções supremas

delização precisa construir um laboratóriofilosófico. Para tanto,

-sujeito do que o objeto sem o sujeito.18 A versão influente

precisa de técnicas. Se a política ético-estética é uma política

de Q uentin M eillassoux para o realism o especulativo aplica

16 Guattari conecta explicitamente a metamodelização a uma lógica do devir baseada na mútua inclusão: “A lógica tradicional dos conjuntos qualificados de maneira unívoca, de tal modo que se possa sempre saber sem ambigüidade se um de seus elementos lhes pertence ou não, a metamodelização esquizoanalítica subs­ titui uma ontológica, uma maquínica da existência cujo objeto não é circunscrito ao interior de coordenadas extrínsecas e fixas, que supera a si mesmo, que pode proliferar ou se abolir com os Universos de alteridade que lhes são compossíveis”

17 Sobre as técnicas relacionais de onde deriva o presente projeto, cf. Manning e Massumi, “ Propositions for Thought in the A ct” in Thougkt in the Act op. cit., pp. 83-134, em que são discutidas as técnicas e a construção de conceitos do labo­ ratório filosófico SenseLab (). Sobre pragmatismo especulativo, cf. Massumi, Semblance and Event op. cit., pp. 12-15,29~3&>85).

(Guattari, Caosmose op. cit., p. 95).

94

18 Graham Harman, Guerilla Metaphysics: Phenomenology and the Carpentry of Things. Peru: Open Court, 2005.

95

severamente a lei do terceiro excluído, ou a lei da não contra­

com o ocorre no mundo, está nas lacunas constitutivas fato-

dição, e lida com as aporias a isso associadas apelando não à

rando todas as emergências e, novamente, nas lacunas entre as

positividade da mútua inclusão, mas à contingência — enten­

estabilizações (capturas). A contingência, como pertencente

dida não criativamente, mas negativamente, como a suprema

à emergência e à insubordinação à captura, deve ser pensada

impossibilidade de aplicar a lei do terceiro excluído de uma

positivamente em term os de espontaneidade, não negativada

form a que de fato exclua a incerteza.19 O pragmatism o espe­

com o acidental (a simples ausência de uma causa suficiente)

culativo, por outro lado, abraça apaixonadamente a incerteza,

ou assimilada ao meramente incerto em term os lógicos.21

com todos os poderes produtivos do paradoxo efetivo. Abraça a incerteza, mas não dem onstra qualquer interesse pela con­

11. A política animal é uma pragmática da mútua inclusão. Essa

tingência absoluta, nas bases processuais de que, onde quer

m útua inclusão se aplica até m esm o, ou especialm ente, à

que possa penetrar o pensam ento, sem pre já vai ter havido

diferença genérica entre o hum ano e o animal. D iferenças

um tom ar-determ inada forma, de m odo que o mundo está cheio de resíduos de em ergências passadas. Por essa razão, a contingência nunca é absoluta, porque tudo o que dela se desdobra tem de escolher um caminho em meio aos resíduos que constrangem seu curso. Nos term os de W hitehead, o des­ dobram ento da contingência é sempre relativo ao “mundo estabelecido” . Até mesmo a contingência quântica na física é ou capturada por processos físicos de nível superior que não são puram ente contingentes (a estrutura e a periodicidade do átomo, antes de tudo), ou perece tão rapidamente quando surge, não deixando qualquer efeito e, portanto, não tendo qualquer existência efetiva (partículas virtuais no vazio quântico). Em qualquer lugar, exceto no ponto de fuga não efetivo da existência, a contingência absoluta é um a criação pura­ mente formal da lógica (como a contradição, pertencendo por diferentes razões ao especioso do negativo).20A contingência, 19 Quentin Meillassoux, After Finitude: An Essay on the Necessity ofContingency, trad. ing. de Ray Brassier. Londres: Continuum, 2008. Para mais informações sobre a 000 e o realismo especulativo, cf. nota 2 p. 125. 20 Para a clássica crítica do negativo de Bergson, cf. A evolução criadora op. cit., pp. 314- 352.

96

21 O mesmo argumento se aplica ao caos. O fato de que sempre houve um ganhar-forma determinado, e de que o mundo está cheio de resíduos de emergências passadas, significa que a situação é sempre, como diz James (Essays in Radical Empiricism. Lincoln: University o f Nebraska Press, 1966, p. 63), de “quase-caos” . Para Deleuze e Guattari, o caos é o limite imanente do pensamento e da existência onde há “variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem" (Deleuze e Guattari, O que é a filosofia? op. cit., p. 259). Esse é o limite de mútua inclusão, onde variabilidades infinitamente conectadas não se afastam mais depressa do que se aproximam umas das outras no “plano de imanência” . Quando um modo de atividade se aproxima desse limite, uma formação “semicaótica” ou “caóide” emerge criativamente por um processo autocondutor de “caosmose” (Ibid., pp. 262-264, 266). O caos não pode ser pensado ou sentido como tal, e ele não tem existência (mais que existir, o caos “subsiste” no virtual, no vazio, ineficaz), exceto quando “reticulado” ou “filtrado” numa forma pelos caóides, dentre os quais figura, de modo proeminente, a arte. O caos, nesse sentido, é “composto”. Outro nome para plano da imanência é “plano da composição” . O caos é o lado oposto da morfogênese, da emergência criativa da forma: uma vez mais, dois lados indissociá­ veis da mesma moeda processual. Ainda assim, há sempre um excesso ou resíduo do caos, algo que elude a captura, forçando o seu processo de composição a se repetir serialmente. A espontaneidade é 0 movimento positivo em direção ao limite do caos, reverberando em emergência criativa e re-reverberando iterativãmente. Assim entendida, a espontaneidade concerne à solidariedade de caso-limite das variabi­ lidades infinitamente conectadas definidoras do caos. O próprio limite pode ser considerado como contingência absoluta, mas apenas se a contingência absoluta for sentida como coincidindo com o vazio imanente de uma solidariedade infini­ tamente movente e dinâmica de elementos que aparecem e desaparecem uns nos outros, e não a infinita soltura entre elementos geralmente conotada pelo termo.

97

genéricas, com o a separação entre esp écies anim ais, per­

entre as espécies (um conceito cuja dependência em relação

tencem à lógica da m útua exclusão. Q uando algo excede ou

à lógica do terceiro excluído está sob forte ataque de dentro

escapa à contenção de sua categoria genérica designada, sua

da própria biologia, que, quanto mais se harm oniza com a

singularidade aparece, na lógica da mútua exclusão, com o um

produção de variação contínua da natureza, menos é capaz de

negativo, com o uma falta ou deficiência. A única alternativa

fixar diferenças genéricas, para não m encionar as genéticas,

possível fica entre ser subsum ido à categoria apropriada e a

entre populações animais).23A lógica da mútua inclusão con­

indiferença: entre a identidade genérica e a indiferenciação,

cebe essas zonas de indiscernibilidade positivam ente, como

distinção m uito rígida ou indistinção. A diferença genérica

cruciais à emergência do novo. Longe de serem zonas de indi­

não diz respeito realmente à diferença: diz respeito a entida­

ferença que absorvem e invalidam a atividade, elas estão ape­

des m utuam ente exclusivas. O pensar-fazer animal da política recusa-se a reconhecer as

ritivamente superlotadas de atividade no m ovim ento tenden-

diferenças genéricas com o fundacionais, precisam ente a fim

a partir dos quais advém mais diferença. A lógica da m útua

cial. São verdadeiros ninhos de cuco de atividade incipiente,

de pensar o singular. Sua lógica natural de m útua inclusão —

inclusão é a lógica da diferenciação: o processo da contínua

a lógica paradoxal daquele que interpenetra sem perder sua

proliferação de diferenças emergentes.

distinção — é projetada para evitar a escolha infernal entre

C om o já m encionado, para viver sua vocação pragmática,

identidade e indiferenciação. Para a lógica da m útua inclusão, a indiferença não é a única

a política animal não apenas pensa sobre a m útua inclusão, ela precisa praticá-la. Para m em bros da espécie hum ana,

altern ativa à m útua exclu são (em con trap osição a Agam ­ b en ).22 Ela recon hece que há zonas de indiscernibilidade 22 Para Giorgio Agamben, a única alternativa à mútua exclusão é precisamente cair numa zona de indiferença, uma “ zona de irredutível indistinção” (Homo Sacer op. cit., p. 12). Para a política animal, a zona de indiscernibilidade é 0 próprio movimento de autossuperação. Na perspectiva deste ensaio, o livro de Agamben, O aberto: 0 homem e 0 animal, (trad. bras. de Pedro Mendes. Rio de Janeiro: Civi­ lização brasileira, 2017) sobre o animal carrega o vício da recusa em considerar a possibilidade de inventar um caminho para fora da lógica do terceiro excluído que não seja a indiferenciação. O entendimento pós-heideggeriano do animal como “pobreza de mundo” , em torno do qual gira a análise de Agamben, é inteiramente dependente de uma noção tradicional de instinto como uma seqüência automá­ tica de ações liberadas por um “desinibidor” (pp. 83-87). Mesmo se a separação homem-animal que isso instila fica “ suspensa” no final, ela jamais é superada. Para Agamben, não há alternativa a ela, a não ser pela via negativa de aceitar seu caráter fundamental tomando-a “ inoperante” , e, com isso, o potencial e a ativi­ dade do humano animal são reduzidos a uma “grande ignorância [...] fora do ser” (p. 144) — como o animal, do qual o humano agora se distingue ao “apropriar-se”

98

desse estado-base da animalidade (p. 124), em vez de ser instintivamente “ cati­ vado” por ele como os não humanos são. Entretanto, ainda há um caminho a ser encontrado — conforme observa Agamben em sua conclusão — para o animal e o humano sentarem juntos no “banquete messiânico dos justos” (p. 144). 23 O problema com as espécies até virou notícia. Do The Guardian: “Testes gené­ ticos em bactérias, plantas e animais revelam, cada vez mais, que diferentes espé­ cies cruzam mais do que o pensado originalmente, o que significa que, em vez de os genes serem simplesmente transmitidos para galhos individuais da árvore da vida, eles também são transferidos entre espécies que estão em trajetórias evo­ lutivas distintas. O resultado é uma ‘rede da vida’ mais confusa e emaranhada. Micróbios trocam material genético de maneira tão promíscua que pode ser difí­ cil distinguir um tipo do outro, mas os animais também cruzam regularmente — assim como as plantas — e as proles podem ser férteis [...] ‘A árvore da vida está sendo educadamente enterrada’, disse Michael Rose, um biólogo evolucionista da Universidade da Califórnia, em Irvine. ‘O que é menos aceito é que toda nossa visão fundamental da biologia precisa mudar’” . Ian Sample, “Evolution: Charles Darwin Was Wrong about the Tree o f Life” . The Guardian, 21 de janeiro de 2009. Disponível em: .

99

sua prática envolve o “devir-animal” , com o conceituado por

respeito às diferenças. Você está falando em pensam ento ani­

D eleuze e G uattari.24 O pensar-fazer anim al evita o gesto

mal? Afetos e em oções animais? Desejo animal? Criatividade

dem asiado fácil de sim plesm ente borrar as diferenças gené­

animal? Subjetividade animal, até? Projeção! Pura projeção

ricas. Não se contenta com desconstruir ou proclam ar as vir­

negadora de diferenças. Não é outra coisa, senão uma falta de

tudes do híbrido (o con ceito de h ibridização baseia-se em

respeito pelas diferenças radicais entre os modos de existên­

misturas, não entre tendências, mas entre form as já-dadas, e

cia — mais um ato de dom inação antropocêntrica apagando

sua lógica é mais com binatória que criativa). O pensamento

a diferença do “outro”. A política animal não dá muito espaço

animal afirma, de fato, diferenças genéricas — diferenças de

a essas críticas. Elas ainda estão trabalhando dentro da lógica

tipo — , mas à sua maneira: em inspeção absoluta; sem lhes

tradicional, segundo a qual a única alternativa à m útua exclu­

atribuir qualquer status fundacional. Ele as encena, e contra­

são é a indiferenciação — neste caso, sob a aparência de uma

cena, com continua de diferença em grau, arrebatando derra­

suposta confusão projetiva. Essa alternativa só é reforçada

deiram ente todas elas num m ovim ento interpenetrante de

pela noção de diferença “radical” .

uma tendência produtora-de-ainda-mais-diferença. Ele inspe­

Críticas com o essa não levam em conta a possibilidade de

ciona im anentemente a inclusão das diferenças no campo da

uma lógica de tendências que se interpenetram sem se borrar,

vida e da consciência, afirmando-as a partir do ângulo singular

nem levam em conta o m ovim ento de transindividuação que

do devir mutuam ente inclusivo.

cria ainda m ais diferenças, num a exibição animal das varia­

12. A política animal é um a política do devir, até m esm o — e

recíproca dos modos de existência na corrente da vida inces­ santemente autodiferenciadora.

ções vitais. Eles não sabem nada a respeito da pressuposição especialm ente — do humano.

A lógica da m útua inclusão esquiva-se da alternativa infer­ 13. Críticas enérgicas, com base no antropomorfismo, são por

nal entre a solidão das diferenças genéricas e a gosma de indi-

vezes orientadas contra abordagens — com o a aqui proposta

ferenciações em que essas acusações de antropom orfism o

— que afirmam a mútua inclusão das formas de vida humanas

estão im plicitam ente baseadas. Ela coloca o hum ano num

e não humanas no mesm o continuum da vida animal. A acusa­

continuum com o animal precisamente a fim de respeitar mais

ção é a de que esse tipo de abordagem cai necessariamente na

a proliferação de diferenças: o m ovim ento da natureza pelo

armadilha antropom órfica de projetar características hum a­

qual a vida sempre segue se a-diferindo. Ela vira facilm ente

nas em animais não hum anos, mais especialm ente quando

a acusação de antropom orfism o contra os acusadores. Não é

0 continuum é tam bém entendido em term os de um a m útua

o auge da arrogância humana supor que os animais não têm

inclusão de consciência e vida. A acusação de antropom orfism o é lançada em nom e do

pensam ento, em oção, desejo, criatividade ou subjetividade? Acaso isso não é delegar novam ente aos animais o status de autômatos? Até mesm o a posição agnóstica, nessas questões,

24 Cf. suplementos 1 e 2.

100

ainda confere credibilidade demais ao modelo mecanicista da

1 01

vida animal. A p osição agnóstica consiste apenas na recusa

natureza; e m ovim entos rum o a um ponto de destino que

a se pronunciar acerca dessas questões, declaradam ente por

nunca é alcançado porque tendências nunca term inam , de

um respeito pela diferença, mas que é sobrecarregado, b ei­

m odo que as m isturas nunca cessam . O utro m odo de dizer

rando a devoção. Mas perm anecer calado acerca da natureza

isso é afirmar que as tendências são definidas por limites vir­

das diferenças não é perigosam ente próxim o de silenciar a

tuais.7-5 Falar em animalidade é uma maneira de com eçar no

diferença? Que falta de respeito! E se pensam ento, em oção,

meio, com o Deleuze e Guattari afirmam sempre ser melhor.26

desejo, criatividade e subjetividade animais são de fato afir­

Pragmaticamente, é sempre melhor com eçar bem no meio da

m ados, mas sem o duro trabalho filosófico de reexam inar

gloriosa bagunça que é o mundo real, onde a abstração vivida

a própria lógica da diferença, isso resulta num pluralism o

já está sem pre adulterada pela im portância vivida, co n ce­

m uito fácil baseado num a tolerância m uito humana. A acu­

dendo ao pensar-fazer uma participação efetiva. O continuum

sação m ordaz de antropom orfism o erra o alvo e vê a flecha

da natureza poderia m uito facilm ente ser chamado de conti­

voltando em sua própria direção. A abordagem da política animal aqui aventada inverte a crí­

nuum da criatividade, ou da consciência, ou do instinto, ou da vida, ou até m esm o da matéria (redefinida de m odo a não

tica. Não no sentido, é claro, de afirmar a projeção humana de

ser m utuam ente exclusiva em relação a esses ou ao virtual,

suas próprias características no animal. E ju sto o contrário:

produzindo um “materialismo incorpóreo”).27 Ou — por que

ela envolve o humano num animocentrismo integrado no qual

não? — até m esm o do vegetal. A escolha por “ continuum ani­

ele perde sua dom inância a priori sem, entretanto, sua dife­

mal” como denominação dominante aqui tem uma motivação

rença ou a de seus pares animais serem borradas ou apagadas.

simples, mas crucial: com um pouco de imaginação, permite

Ela intim a o hum ano a se tornar anim al, não os anim ais a

que as questões em jogo girem em torno da brincadeira.

renunciarem aos seus poderes vitais há tem pos erroneamente assumidos com o sendo território exclusivo dos humanos. Nota: O ponto de corte do “continuum animal” é inatribuível, assim com o o da vida. Anim alidade e vida não podem

“Até mesmo do vegetal”: Bergson, de acordo com sua lógica de m útua inclusão diferencial, descreve um entrelaçam ento de tendências de maneira que as plantas participam da ani­ malidade e vice-versa:

ser estritam ente delimitadas em relação ao inorgânico. Essa é um a inescapável conseqüência da afirm ação da lógica da

Para começar [...], digamos que nenhuma característica

m útua inclusão. Cham ar de “ anim al” o continuum da natu­

precisa distingue o vegetal do animal. As tentativas fei­

reza de mútua inclusão é, desse ponto de vista, algo arbitrário.

tas para definir rigorosamente os dois reinos sempre

Continua de m istura tendencial são com preendidos, o mais convenientem ente, a partir de um lugar terceiro: o m eio. Isso porque os polos de m ovim entos tendenciais são ideais:

25 O caos, tal como descrito na nota 21, p. 97, é o limite virtual imanente a todas as tendências vitais. Nesse sentido, é o limite absoluto da vida.

m ovim entos de um ponto de partida que nunca foi ocupado,

26 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 1 op. cit., pp. 12-14.

porque na realidade nunca houve nada além de misturas na

27 Sobre o materialismo incorpóreo, cf. acima, nota 74, p. 62.

102

103

fracassaram. Não há nenhuma propriedade da vida vegetal

Sim ondon faz um a pontuação similar, cham ando o animal

que não tenha sido reencontrada, em algum grau, em certos

de “planta incipiente” e argum entando que não há “diferen­

animais; nenhum traço característico do animal que não

ças substanciais” que perm itam distinções categóricas entre

se tenha observado em certas espécies, ou em determina­

reinos, gêneros e espécies.29 Desse ponto de vista, o “ conti-

dos momentos, no mundo vegetal. Compreende-se então

nuum anim al” tam bém poderia ser chamado de “ continuum

que biólogos ávidos de rigor tenham tomado por artificial

vegetal”, dependendo de qual meio se escolhe para começar,

a distinção entre os dois reinos. Teriam razão, se aqui a

e por quais razões estratégicas conceitualm ente construtivas

definição precisasse ser feita, como nas ciências matemá­

— conduzindo a que definições e distinções, a que efeitos. A

ticas e físicas, por meio de certos atributos estáticos que o

escolha não é nada arbitrária. É totalm ente pragm ática. A

objeto definido possui e que os outros não possuem. Muito

escolha do meio terá conseqüências sobre com o se desenro­

diferente, a nosso ver, e o tipo de definição que convém às

lam todos os conceitos filosóficos envolvidos. Antecipá-los

ciências da vida. Não há realmente manifestação da vida

abdutivamente, modulá-los de antemão, constitui o elemento

que não contenha em estado rudimentar, ou latente, ou

especulativo. A coerência do continuum conceituai precisa ser

virtual, as características essenciais [diferenças de tipo] da

integralm ente reinventada a cada recom eço, de m odo que a

maior parte das outras manifestações. A diferença está nas

própria filosofia está em contínua variação emergente.

proporções. Mas essa diferença de proporção [diferença de

E isso nos leva a outro alerta: cuidado com filosofias que se

grau] bastará para definir o grupo no qual pode ser encon­

prom ovem , em term os apocalípticos ou m essiânicos exces­

trada, se pudermos estabelecer que essa diferença não é

sivam ente sérios, com o a essência e finalidade da filosofia.

acidental e que o grupo, à medida que evoluía, tendia cada

Essas filosofias necessitam de um a pequena dose da m odés­

vez mais a enfatizar essas características particulares. Em

tia vegetal e de um a grande dose da ludicidade animal para

resumo, o grupo não será mais definido pela posse de certas

obterem uma distância reflexiva enativa quanto à sua própria

características [seguindo uma lógica de substância-predi-

im portância (o o o , está ouvindo?). O suplem ento 3 vo lta à

cado], mas por sua tendência a acentuá-las [diferenciação

questão das distinções categóricas e dos pontos de corte.

tendencial estabelecendo conjuntamente diferenças de grau e de tipo num movimento de auto transformação]. Se

14. O instinto percorre tod o o continuum animal integrado,

nos colocamos desse ponto de vista, se levamos em conta

pressupondo reciprocam ente linhas de variação sem pre-di-

menos os estados do que as tendências, descobrimos que

versificantes. Essas linhas de variação estendem-se por todo

vegetais e animais se podem definir e distinguir de um modo preciso e que correspondem realmente a dois desen­ volvimentos divergentes da vida.28 28 Bergson, A evolução criadora op. cit., pp. 115-116, tradução modificada.

104

29 Combes, Gilbert Simondon and tke Philosophy ofthe Transindividual op. cit., pp. 22-23. A ideia de Simondon é de que uma planta completa sua individuação biolo­ gicamente, ao passo que uma vida animal continua a se individuar psiquicamente, preservando certa neotenia. Isso distingue vegetal e animal como graus de devir no continuum da natureza.

105

o cam inho até a mais hum ana das realizações, inclusive de natureza lingüística. O m ovim ento autocondutor do instinto, sob a propulsão da ten dência supernorm al, é o que inclui operacionalm ente o humano no animal. Pensar o humano é pensar o animal, e pensar o animal é pensar o instinto. Acaso seria possível co n ceber um anim al sem instinto? Por que, então, o dissem inado em baraço sobre o term o? Por que ele sempre precisa ser minorado, como um segredo bestialmente vitoriano que seria melhor deixar escondido? A política animal não tem medo do instinto.

106

SUPLEMENTO 1

Escrever como um rato torce o rabo

Na obra de Deleuze e Guattari há pelo m enos duas maneiras pelas quais o devir-animal do humano se distingue da brinca­ deira animal não humana — que, ainda assim, pode ser vista como provedora de suas condições de emergência, bem como propulsora de uma linha tendencial na qual acrescentar uma variação lúdica. Primeiramente, o devir-animal do humano é iniciado pela necessidade. O caso exem plar, para D eleuze e G uattari, é Kafka. É diante do horror do lar e da fam ília hum anos que Kafka se refugia nos territórios existenciais animais. A con­ densação do afeto nas figuras demasiado humanas da família edípica é sentida com o inabitavelm ente lim itante. A escrita, im pulsionada a serviço do supernorm al com o uma caixa de ferramentas para o devir-animal, é utilizada para com por uma linha de fuga da clausura familiar. O recurso à animalidade é um a estratégia de sobrevivência. A necessidade do recurso não contradiz sua criatividade. O fato de o devir-animal ser iniciado sob pressão não o desqualifica com o um a operação fundam entalm ente lúdica. No devir-animal do humano, cria­ tividade e sobrevivência são uma só coisa. Se a situação não fosse imperativa, não haveria razão para não perm anecer res­ guardado nos confortos familiares do lar. O problem a é que esses confortos têm um preço: norm a­ lidade; aquiescência ao já-expresso; o sufocam ento da te n ­ dência supernorm al que agita im anentem ente e desp erta instintivam ente todos os animais, hum anos ou não, na dire­ ção de superar, nesse jo g o de cartas, a m ão distribuída pelo

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que está dado. Só há um a escolha a fazer: renunciar aos ins­

Gomo na brincadeira não humana, as ações às quais o nar­

tin tos anim ais ou deixar o con forto do lar. Só há um a saída:

rador se entrega “não denotam o que iriam denotar aquelas

desterritorializar-se, deixar a arena hum ana e recuperar o

ações que elas representam”. Com o com cada operação lúdica,

territó rio existencial animal. A necessidade da operação só

o devir-animal dram atiza a situação afetiva ao desempenhar

faz com que isso seja ainda m ais intenso. Ela apenas entre­

gestos que constituem mordidas sem morder. Paradoxalmente,

laça a corporalidade, a co locação em p rática dos im perati­

não é o horror edípico do incesto que Kafka dramatiza, ainda

vo s da situação dada, de m odo ainda mais próxim o de um a

que esse horror só possa ser evocado. O que é dramatizado é

urgência criativa prospectiva. Ela apenas atrela, ainda m ais

o desenquadramento do incesto e seu horror. O devir-animal

fortem ente, a corporalidade à apetição. O devir-anim al do

do narrador suspende o desejo edípico, a seqüência de ações

h um ano in ten sifica a m útua inclusão da co rpo ralid ad e e

a ele mais associada, bem com o as conhecidas conseqüências

da ten d ên cia supernorm al, enquanto reafirm a a p rim azia

tanto de neles se engajar ou de reprimi-los. O devir-animal de

da últim a. N um ponto crítico da vida, ele despeja a depen­

Gregor desarma a família edípica ao lhe conceder expressão

dência pática ao lar com o algo dado, assim co m o o pathos

pura e desterritorializante. “Aparece ao mesm o tem po a pos­

fam iliar da clausura dom éstica, num m ovim ento intenso de

sibilidade de uma saída para escapar [...], uma linha de fuga” .1

autossuperação.

0 devir-barata de Gregor traça uma linha de fuga expressiva

Para fazer jus à intensidade desse gesto do devir-animal,

para fora da clausura da família incestuosa. Desenha uma car­

é necessário focar, mais uma vez, na diferença entre o afeto

tografia enativa, intensam ente excessiva em seu movim ento,

de vitalidade — em sua relação com a brincadeira, em que

que rom pe com o habitat natural do indivíduo edípico para

se une ao entusiasm o do corpo expressando o dinam ism o

recobrar a vasta natureza da transindividualidade: “tudo é

criativo da vida — e o afeto categórico. T odo gesto lúdico

político [...] tudo tom a um valor co letivo” .2 É em nom e do

invoca o saliente afeto categórico norm alm ente atrelado à situação análoga. Para os filhotes de lobo brincando de luta, é o medo. Para Gregor, na Metamorfose de Kafka, é o horror.

“ povo por vir” que alguém devém-animal.3 A outra diferença em relação à brincadeira animal é que aqui a desterritorialização é “ absoluta” .4 Isto é, o desenqua­

O horror é o m edo entrelaçado ao pathos. A necessidade da

dram ento abre uma saída de em ergência que leva para fora

operação vem do contexto horrível do desejo animal sendo

de todas as arenas de atividade conhecidas que estão dadas

forçado ao lim itativo enquadramento do triângulo edípico. O .

na natureza. O devir-animal é o nunca antes visto, o jam ais

gesto lúdico do devir-animal não tem escolha, a não ser dra­

feito ou previam ente sentido. U m cachorro am arrando os

m atizar o horror, que transpassa cada brecha da situação do lar. O horror é a chave afetiva pela qual os imperativos situa-

1 Deleuze e Guattari, Kafka: por uma literatura menor op. cit, p. 26.

cionais demandam aquiescência. A saída é deixar-se arrebatar

2 Ibid., pp. 36-37.

de modo ainda mais horrorosamente intenso pelo entusiasmo

3 Ibid, p. 38.

do corpo do afeto de vitalidade.

4 Ibid., pp. 52,70-71.

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111

sapatos. Um rato estrela de ópera. U m m acaco sabido que

excessivo. D ependendo do contexto, poderia ser qualquer

aprendeu demais.s Nunca feito, nunca visto, nem no passado

afeto e a maneira particular com que ele torna im possível

nem provavelm ente no futuro. É um caso transindividual do

de ser vivida a vida da apetição. E o “excesso” estilístico, no

povo, mas “o povo falta” por natureza.6

caso de Kafka, pode ser uma sobriedade excessiva, transbor­ dando num superávit de simplicidade intensam ente sentido.

O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma

Essa excessividade minimalista talvez seja o mais propício ao

falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos.

devir, porque o gesto autonomizante da pura expressão deixa

O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os

o enquadramento dado da cena, retira-se dos imperativos do

termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que

contexto, suspende os term os estruturados no local e vai para

se torna. O devir pode e deve ser qualificado como devir-a­

outra parte, escapa e mergulha de cabeça numa desterritoria­

nimal sem ter um termo que seria o animal que se tornou.7

lização absoluta sem saber de antemão aonde ela pode levar — é tudo uma questão de subtração estratégica.9

O devir passa entre o humano e o animal, na margem de mano­

A escrita, de acordo com Deleuze e G uattari, possui a capa­

bra produzida pela colocação de suas identidades genéricas

cidade expressiva de desencadear um a “partícula de devir” :

em suspenso de modo a incluí-las mutuamente num estado de

um a dramatização integral e indecom ponível do m ovim ento

elevada intensidade — animação suspensa. “ O devir-animal

em direção ao supernormal.10 O gesto desterritorializante do

é uma viagem imóvel e no mesmo lugar, que só pode se viver

devir-anim al do hum ano se efetua em blocos, exatam ente

e com preender em intensidade (transpor lim iares de inten­

com o o bico do filhote de gaivota-prateada. Os afetos envol­

sidade)”.8 As idiossincrasias estilísticas e os detalhes extras

vidos na dramatização, tanto de vitalidade quanto categóricos,

bizarram ente subestim ados da escrita de Kafka contribuem

dizem respeito a seqüências de ações potenciais que são ena-

para um m ovim ento in loco que ultrapassa discretam ente a si

tivam ente envolvidas na consciência primária dos domínios

mesm o, transbordando num devir expressivo, atravessando

do pensar-fazer na brincadeira. C on vém recordar a defini­

os lim iares da fam ília em direção a outras regiões de inten­

ção básica de afeto que D eleuze e G uattari adotam a partir

sidade. Decerto, o horror não é o único afeto categórico que

de Spinoza: os “ poderes de afetar e ser afetado” .11 As ações

pode providenciar o tram polim para esse tipo de m ovim ento

potenciais invocadas pela dram atização agrupam conjuntos de capacidades de afetar e de se afetado. Esses agrupamentos

5 Sobre o devir-cachorro, tal como relatado por Vladimir Slepian, cf. Deleuze; Guattari (1987, pp. 258-259). Sobre a Josephine de Kafka, a rata cantora, cf. Deleuze e Guattari (1986, pp. 10-12), e sobre o macaco de “ Um relatório para uma Academia”, de Kafka, cf. Ibid., pp. 25-26). 6 Deleuze, Cinema 2 - A imagem-tempo op. cit., p. 261. 7 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., p. 18. 8 Deleuze e Guattari, Kafka: por uma literatura menor op. cit, p. 69.

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9 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 1 op. cit., pp. 14-15; Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 72-74­ 10 Sobre “partículas de devir” , cf. Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 63-64,67-69. 11 Deleuze, Espinosa - filosofia prática, trad. bras. de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002, p. 128.

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desenvolvem -se com o tendências. As tendências interpene-

animal estende a integralidade das relações internas das ten ­

tram -se numa im anência recíproca. Assim com o os blocos

dências in-atuadas ao horizonte absoluto e integral do animal.

de sensação “alucinados” pela gaivota-prateada, esses agru­

Num devir-animal escrito, diferentem ente de uma brinca­

pam entos tendenciais afetivos são com postos de “ relações

deira animal não humana com o a dos filhotes de lobo, aquilo

internas” . As tendências se ativam conjuntam ente em inten­

com o que se brinca não é uma função particular do animal,

sidade, mas clamam, em ressonância e interferência, em com ­

com o a predação. O “enredo” da história é um invólucro para

petição e simbiose, pelo desdobram ento extensivo, e não de

o animal integral se expressar com toda a sua intensidade

uma maneira normal.

im anente. As ações que são expressam ente dram atizadas

O que o gesto da desterritorialização absoluta faz é sus­

transduzem , sim, algo da form a dom inante do anim al aná­

pender o desdobram ento extensivo. Ele não encena as ações

loga ao devir: seu algo-extra. O princípio com posicional está

potenciais. Ele as mantém juntas, puram ente em sua relação

mais no nível do estilo de m ovimento do animal, uma vez que

um a com a outra, no envolvim ento m ais cerrado e íntim o,

in-forma todos os seus com portam entos. O que é expresso é

num a zona escrita de indiscernibilidade. Ele as m-atua. Dá

a assinatura do afeto de vitalidade do animal, a -esquidade de

pura expressão às suas im anências recíprocas. Nessa zona

suas ações arqueando-se sobre todos os seus m ovim entos, a

de indiscernibilidade, as relações internas invocadas com o

maneira com que o animal desem penha continuam ente algo

ações poten ciais tendenciais que vão de en con tro ao co n ­

extra às funções de seus com portam entos. Esse excesso per-

texto fam iliar fazem -se sentir em toda a sua integralidade

form ativo em relação à função genérica é aquilo que define a

covariante, sem que suas diferenças sejam borradas, mas,

singularidade do animal. É a maneira com o o animal supera

paradoxalm ente, na ausência real de um contexto alternado

a si próprio, excedendo o ser de sua espécie de um m odo que

correspondente ao território existencial com o qual se brinca.

o situa num continuum supernormal com outras espécies, em

Um devir-pássaro humano, por exem plo, não invade o ninho

seu próprio modo singular. Há uma baratidade da barata, uma

com o um cuco. As ações potenciais são puram ente encena­

ratidade do rato, e são esses estilos de assinatura de formas-

das, desenquadradas e, portanto, sem lim ites atribuíveis. São

-de-vida que se inserem no ato de escrever. O estilo da escrita

puram ente expressas, coim anentes ao gesto expressivo da

com põe-se em torn o dessa -esquidade do anim al análogo,

escrita. São dram atizadas por esse gesto no papel de puras

absorvendo seu excesso específico na linguagem criativa. A

e futuras possibilidades, desenquadradas — seu único limite ,

escrita de Gregor é a invenção do extrabarata, uma mais-valia

sendo o próprio h orizonte de animalidade. C om o qualquer

de baratidade escrituralm ente produzida. U m puro extras-

horizonte, o horizonte do animal recua quando dele se apro­

ser de baratidade.12A captação especificam ente escrita desse

xima: é um limite absoluto; um lim ite real, virtual. Também

extrasser estende criativam ente o continuum da animalidade

com o todos os horizontes, envolve liminarmente o campo de possibilidade do m ovim ento em sua integralidade. Na sus­ pensão do contexto animal de fato, a aproximação do limite

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12 Deleuze, Lógica do sentido, trad. bras. de Luiz Roberto Salinas. São Paulo: Per­ spectiva, 2007.

115

integral sob enação para incluir o humano — o único animal

de um a população indefinida (que fa lta ).14 M oby D ick é o

cujos agrupamentos de capacidades afetivas incluem a escrita

h orizon te retrocedente do ser-baleia. Ele é o devir de balei-

literária. É o continuum animal que é integralm ente colocado

dade transindividuante e extraespécie em pessoa. Mas ele

no jo go escrito, no registro da barata. G regor é o animal inte­

não é um a pessoa. Ele é um invólucro do potencial de devir-

gral escrito em barata.

-anim al. E um in vó lu cro do devir poten cial anim al, e n v o l­

A -esquidade já era um elem ento de pura expressão em gesto anim al não hum ano. A escrita esten de a -esquidade à anim alidade integral, levando a pura expressão ao lim ite.

vendo o continuum da anim alidade integral no registro afe­ tivo da baleidade — com o só um a baleia escrita pode fazer. O A n om al é m arcado p or um a qualidade esp ecia l que

Quando a escrita concede pura expressão à animalidade inte­

serve com o ín d ice de sua supernorm alidade: um a -esqu i­

gral, ela não denota “ o” animal. Gregor não é “ a” barata. Não

dade exem plar que resum e tod o o agrupam ento do -esco

se trata de denotar nada, em geral. Trata-se de produzir algo

potencial que o animal exem plar envolve em seus m ovim en­

singular. N ão “ o” : um. Uma barata, um cachorro, um m acaco,

tos. Em Moby Dick, é a branquitude da baleia: a branquitude

um rato, cada um deles evocando, na individualidade expres­

extranatural que atiça um a paixão igualm ente não natural

siva, o poder do continuum animal — animais singularmente

na contraparte hum ana escrita da baleia que com bina com

exemplares envolvendo-se em seus m ovim entos e na movên-

sua própria intensidade, em contraponto. Ahab é induzido

cia dos seus m ovim entos rum o ao lim ite afetivo da animali­

a um a brincadeira inten siva de devir pela branquitude da

dade, um a m ultiplicidade indefinida de m odos diferenciais

baleia — e, com ele, o leitor, p or contágio transindividual.

de existência potencial.13

Q uais im perativos de escape condicionaram essa linha de

A baleia branca de Moby Dick é outro animal exem plar no

fuga? Quando 0 devir cascateia — do escritor à figura escrita

ménagerie deleuzo-guattariano da pura expressão. M oby Dick

ao leito r da escrita — , os im perativos e a paixão de dester-

não é a baleia com um . Ele não representa sua espécie. Não

rito ria liza r p erm an ecem os m esm os ou tam bém sofrem

d enota o que é ser um a baleia ou quais são os co m p orta­

variação contínua? C ertam en te, a segunda opção. O devir

m entos normais e adaptativos das baleias. Ao contrário, ele

cruza com as séries. Isso im possibilita entender os devires

expressa a ten d ên cia supernorm al que p reen ch e a balei-

na escrita através da teoria da recepção. Nada em particular

dade de dentro para fora e a posiciona no continuum animal

é transm itido. Algo singular é recatalisado. Não é um a com u­

integral. Ele não é o anim al norm al, é o Anomal, o anim al

nicação, é um a série de acontecim entos.

anômalo: a expressão tendencial de um a força de supernor-

D eleu ze e G u attari tam bém falam de um a -esquidade

m alidade deform adora capaz de en volver em sua m aneira

escrita exem plar em relação aos ratos. Eles invocam o jeito

singular, afetiva e qualitativam ente, a integralidade lim inar

bizarram ente com oven te que um ninho de ratos agoniza numa história de Hofmannstahl, dizendo que aquilo que seus

13 Sobre o artigo indefinido e o devir-animal, cf. Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4, op. cit., pp. 36,45-46.

116

14 Sobre o animal anômalo (o anomal), cf. Ibid., pp. 25-29.

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gestos induzem não é pena, mas uma “participação antinatu­

desterritorialização. Dupla abstração. É isso que todos os ges­

ral”. Por “ antinatural” não querem dizer “fora do continuum

tos lúdicos de devir têm em com um . O que é especial quanto

da n atu reza” . Q u erem , sim, dizer: em devir rum o a um a

ao gesto escrito é que ele dá um livre acesso ao m ovim ento

“natureza desconhecida” .15 Um a v e z mais, a escrita concede

instintivo da supernormalidade percorrendo toda a extensão

pura expressão supernormal ao animal integral, dessa vez no

do continuum animal im anente à vida tan to dos hum anos

registro do rato. A escrita denota aquilo que essa supernor-

quanto dos não humanos.

malidade iria denotar integralmente. A animalidade do roedor

A expressão dram atizada da animalidade integral é vivida

devém -hum ana (suspende-se em gesto escrito) ao m esm o

ainda mais intensam ente na escrita porque escapa a toda pos­

tem po em que o hum ano devém -anim al (renova passional-

sibilidade de reterritorialização. O homem -cachorro com edor

mente seus laços constitutivos com o núcleo instintivo de sua

de m etal incrivelm ente dotado de mandíbula é reterritoriali-

própria supernormalidade).

zado com o um espetáculo secundário: capturado pela arena

É assim que funciona todo devir-animal, até mesmo os não

já-dada de atividade circen se. M as v o c ê jam ais consegue

escritos, como é o caso que Deleuze e Guattari citam, no qual

pegar uma baleia mais branca do que a página em que ela está

o ato efetivo de roer m etal com o se fosse um brinquedo de

escrita. A expressão da animalidade é mais superlativamente

m astigar era o gesto supernorm al catalisando um devir-ca-

natural, quanto mais integralmente sejam colocados em sus­

chorro, em contraste com o exemplo da amarração escrita de

penso as funções e os contextos naturais. Em suspenso, eles

sapatos de cachorro com patas humanas.16 É o mesmo princí­

são sentidos com um entusiasm o do corpo tão longo que se

pio básico quando um humano engaja um devir-animal num

estendem por todo o continuum animal, e tão ubiquam ente

gesto não verbal: um ato expressivo que dispara afetivamente

envolventes que espreitam em cada entrem eio; tão peram-

um devir entre, sem um tornar-se que seja terminante. A dife­

bulantes que habitam todas as lacunas entre o que é e o que

rença é quão longe no horizonte da animalidade o ato pode

poderia ser (mas, fora da expressão, nunca será).

tender; quão intensa a expressão pode ficar; quão integral­

N a m edida em que esse m ovim ento de expressão animal

m ente longe vai o seu m ovim ento de superação do que está

frustra qualquer reterritorialização adaptativa com o sua des-

dado. O ato escrito vai o mais longe, o mais intensamente. Na

tinação, ele ocorre no contrapelo da animalidade, cuja dire­

atuação gestual, com o na in-atuação verbal, tanto o humano

ção natural inclui muito frequentemente a recaptura corporal

quanto o animal são extraídos de seus contextos norm ais,

com o parte do ciclo vital natural de variação da vida. A reno­

abstraídos de seus enquadram entos costum eiros. Seus g es­

vação de laços do humano com seu núcleo animal instintivo

tos são subtraídos das funções já conhecidas e desenvolvi­

é uma “participação antinatural [participation contre naturé] ” .17

das adaptativam ente. Desenquadram ento recíproco. Dupla

É um a contraparticipação da mais intensa natureza, levada ao mais alto grau de abstração vivida, suspensa no artifício

15 Ibid., p. 21. 16 Ibid., p. 61.

118

17 Ibid., pp. 21,23,46, 65.

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da escrita. Nesse modo de abstração vivida, o humano não é

atuá-lo, ele in-atua o contágio dessa transformação-m-Zoco

cônscio “do” animal. A escrita não é discursar “ sobre” o ani­

sem o animal real em jogo. Ele subtrai o animal real em jogo

mal. O humano está fazendo o animal no gesto de pensar-es-

na natureza a fim de colocar em jogo a própria natureza do

crever: in-atuando um a pura expressão animal, num mútuo

animal. Ainda mais potencialm ente. Essa contraparticipação

envolvim ento entre um e outro, e o nem -um -nem -outro de

m axim am ente abstrata no potencial da natureza, só alcan­

sua zona de indiscernibilidade em devir.

çada com o extrem o do artifício, é a expressão mais intensa do valor da natureza. C om o valor, ela representa um a coisa:

Escreve-se sempre para os animais [...] “participação anti-

a simpatia animal universal.21

natural”, simbiose, involução. Só se dirige ao animal no homem. O que não quer dizer escrever sobre seu cachorro,

Aqui chamamos de “intuição” a simpatia pela qual alguém

seu gato [...] Não quer dizer fazer os animais falarem. Quer

é transportado para dentro de um objeto de maneira a

dizer escrever como um rato traça uma linha, ou como ele

coincidir com o que nele há de único e, consequentemente,

torce o rabo, como um pássaro lança um som, como um

inexpressível.22

felino se move ou dorme pesadamente.18 O devir-animal escrito é o acontecim ento integral da animali­ “ C o m o ” um rato torce o rabo. “ C o m o ” u m pássaro canta.

dade instintiva, in-atuada numa passagem para o limite abso­

“ C o m o ” um gato dorm e. “ C o m o ” , aqui, não denota o que

luto do que está dado. É a abstração vivida da vida animal,

iria “ d e n o ta r” m e ta fo rica m en te .19 N ão d en o ta, n a m ais

singularmente ilimitada. Uma pura e necessária expressão do

pura expressão não m etafórica. O devir, segundo Deleuze e

que há de inexpressível no devir.

Guattari, requer a abolição da m etáfora.20 Longe de ser um a

Seria uma saída uma expressão resultar tão pura a ponto de

m etáfora, o devir-anim al é um a participação real contra a

estar efetivam ente em suspenso? Nunca diretamente. Nunca

natureza, seguindo a própria tendência supernormal da natu­

de um a m aneira que p ossa ser diretam ente aplicada para

reza, sobrecarregada num m ovim ento rum o ao lim ite abso­ luto. O gesto do devir escrito é tão real quanto o paradoxo gesticulado não verbalm ente que catapulta o animal para a arena da brincadeira na natureza, num a transform ação-in-loco que não afeta um sem afetar os dois. M as mais do que

18 Deleuze e Parnet, Diálogos, trad. bras. de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998., p. 89, tradução modificada. 19 Mil platôs, v. 4, op. cit., p. 162. 20 Ibid., pp. 65-66,162.

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21 “ Um único e mesmo animal abstrato, uma única e mesma máquina abstrata” (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 1, op. cit., p. 60, cf. também p. 13; e Mil platôs, v. 4, op. cit., p. 40). Nessa passagem, Deleuze e Guattari referem-se à “unidade de composição” do estrato orgânico. No presente ensaio, o “único e mesmo animal abstrato” está integralmente estendido ao longo do continuum da natureza, tanto orgânica quanto inorgânica, sob os auspícios da tendência supernormal, trazendo­ -a mais para a órbita daquilo que Deleuze e Guattari posteriormente, em Mil platôs, chamam de “pura animalidade” (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5, trad. bras. de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34,1997, p. 212). Cf. também a nota 6, p.85, bem como o suplemento 3, ponto 4, abaixo. 22 Bergson, O pensamento e 0 movente op. cit., p. 135.

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resolver problemas colocados por uma necessidade não vivível. Mas talvez, apenas possivelm ente, a pura expressão terá inventado uma form a dominante do mais intenso escape que possa advir espontaneam ente, de nenhum lugar exprim ível, para in-formar uma terrível situação que intuitivamente brota da im anência do animal no ponto crítico, ressonando inte­ riormente em direção a uma atuação recém-emergente. Então a tarefa muda: escolher um a arma no m ovim ento de escape para lutar contra a recaptura.23 Ou, mais relacionai e pragma­ ticam ente, encontrar um a ferramenta.24Não um a ferramenta que funcione. Uma ferram enta que invente. Um a ferramenta para construir as condições que perm item que o movimento de escape continue a evitar as capturas pela constituição de uma prática de sua própria abdução, devindo autoabduzente, autoinduzindo serialm ente seu próprio puxar-para-diante, gesticular pelo gesto de pensar-fazer, perseguindo a si mesmo com o uma tendência intuitivam ente autocondutora, abrindo um caminho, com medidas iguais de proeza improvisacional e técnica, em direção a territórios existenciais ainda-não-conhecidos, nunca antes vistos, conservando o potencial ani­ mal supernormal que aloja o proclam ado povo por vir numa natureza aberta, autossuperadora dentro de um horizonte de possibilidade sempre em expansão. A autonom ia de expres­ são especulativo-pragmática, elevada à mais alta e politizada potência transindividual, não mais apenas devir-animal, mas revolucionária: mais-valia de vida, vivida o mais amplamente em sua intensidade integral.25 23 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 78-79. 24 Ibid., p. 37. 25 Um apontamento sobre desviar de/com Deleuze e Guattari. Em Kafka: por uma literatura menor, pp. 70-71, Deleuze e Guattari ressaltam que os devires-animais de Kafka “mostram uma saída que são incapazes de seguir” devido ao

122

poder reterritorializante da família edípica. Eles escrevem a respeito de “alguma coisa diferente agindo subterraneamente” nos devires-animais de Kafka que leva a desterritorialização absoluta ainda mais longe, rumo a saídas mais efetivas. São os “devires-moleculares” e os “devires-imperceptíveis” que pertencem à “vida anorgânica” (Mil platôs, v. 4, op. cit., pp. 32, 72-74). O anorgânico não deve ser confundido com o inorgânico (embora o uso de Deleuze e Guattari vacile entre utilizar “anorgânico” e “inorgânico” em sentido estendido). A vida anorgânica é a vida ilimitada à “organização dos órgãos” da forma animal funcional/adaptativa. Ela percorre todo o continuum do que normalmente é classificado como inorgâ­ nico e orgânico, sem respeitar esse binarismo. A estratégia da presente explanação tem sido a de abordar esse continuum “ anorgânico” da natureza enfatizando a imanência ao animal da “ coisa diferente que age subterraneamente” referida por Deleuze e Guattari. Aqui, essa coisa outra é construída em termos de tendên­ cia supernormal de exceder a função e a adaptação, entendida como movimento criativo da natureza. O problema a partir do qual deriva o presente projeto — o de constituir um conceito de política animal a partir do movimento criativo da criatividade — implica escolhas terminológicas diferentes das de Deleuze e Guattari (como chamar de continuum apenas o da “vida” e tornar a tendência supernormal o movimento de “animalidade” ao longo de todo o continuum) e prescinde do gesto de estabelecimento de uma ordem de prioridade dos devires. No suplemento 3, abaixo, a tendência supernormal será vista como o irrefreável na vida orgânica. Isso abre alas para nos reconectarmos aos conceitos de “anor­ gânico” e “devir-imperceptível” de Deleuze e Guattari, bem como entre este pro­ jeto e construções conceituais — derivando de problemas distintos — para os quais esses conceitos são emprestados. Em Mil platôs, diferentemente de Kafka, Deleuze e Guattari não apresentam os devires-animais como impasses. Eles são apresentados mais positivamente, com muito mais poder de desterritorialização, mas ainda considerados portas de entrada para devires-imperceptíveis ainda mais poderosos (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 72-73; e todo capítulo “Devir-intenso, Devir-animal, Devir-imperceptível” , pp. 11-115, que vài da anima­ lidade ao devir-imperceptível). O vocabulário próprio de Deleuze e Guattari já se intersecciona com o deste projeto nos pontos-chave em que a animalidade é estendida por todo o continuum: “a pura animalidade é vivida como inorgânica, ou supraorgânica” (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5 op. cit., p. 212).

123

SUPLEMENTO 2

Azoo-logia da brincadeira

Gregory Bateson relata que suas reflexões sobre a brincadeira foram inspiradas por um a visita ao zo ológico de São Fran­ cisco. Dois m acacos brincando um com o outro lhe chama­ ram a atenção. Ficou “ evidente, m esm o para um observador hum ano” , que suas ações lúdicas eram “ similares, mas não as m esm as do com bate” .1 As análises de Bateson resultam dessa observação da brincadeira, incluindo uma observação da inclusão do observador hum ano na cena. Entretanto, no restante de seu texto, Bateson nunca retorna à questão da inclusão do observador humano e da “evidência” daquilo que ele vê. É com o se — contra tudo o que ele diz a respeito da brincadeira, da reflexividade e da linguagem — ele retornasse, nesse ponto, à suposição não reflexiva de que o animal e sua relação evolutiva com o humano possam ser sim plesm ente denotados; de que a presença do observador hum ano seja distraidam ente apagada. O que a anim alidade denotaria se uma das coisas que ela não denotou fosse esse esquecimento? Onde fica a brincadeira na própria análise, baseada na obser­ vação, feita por Bateson? A política animal da brincadeira pre­ cisa se confrontar com essas questões que giram em torno da espectatorialidade.2 1 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 179. 2 Não é uma opção para a presente explanação proceder como se fosse possível falar diretamente de objetos, na ausência do humano, esquecendo conveniente­ mente que é um animal humano que está falando. O esforço em fazê-lo, que é o gesto fundador do realismo especulativo, é feito numa tentativa de escapar do “correlacionismo” . Entretanto, colocar o ato do pensamento entre parênteses torna

125

Se no continuum animal é sempre um a questão de mútua ainda mais difícil a tarefa de construir uma explanação efetivamente não correlacionista da mútua inclusão diferencial do humano na natureza não humana (o que será discutido no suplemento 3, ponto 3, como 0 “mais-que-humano” ). Meillassoux (After Finitude, op. cit.) simplesmente coloca de lado a tarefa com a noção de que o pensamento tem acesso especulativo direto ao real, um feito que só pode ser atingido reafirmando a primazia e a autossuficiência do raciocínio lógico-matemático, num retomo a uma ideia altamente tradicional da filosofia, atribuindo a ela uma vocação universalista. Quem ou o que pensa, e quais as implicações no mundo, tal como ele se dá, da participação do ato de pensar nunca são questões levantadas (i.e., o fato de que um pensar é sempre um pensar com uma corporificação). Harman (Guerilla Metaphysics op. cit.) segue uma estratégia diferente. Diz-se do real que ele é composto de objetos em si, apartados da relação. A fim de explicar a relação, outro conceito filosófico hipertradicional tem de ser ressusci­ tado do cemitério da história do pensamento ao qual Whitehead, entre outros, há muito tempo 0 relegou: a distinção entre qualidades primárias e secundárias, ou o objeto em si e o objeto sensual — para a crítica de Whitehead acerca da “bifur­ cação da natureza”, cf. Whitehead, O conceito de natureza, trad. bras. de Julio B. Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 33-59. Essa velha distinção é revivida com uma torção. Historicamente, as qualidades primárias eram propriedades dos objetos e as qualidades secundárias pertenciam ao sujeito que as percebe. Harman, conservando sua abordagem orientada ao objeto, migra as qualidades secundárias para o lado do objeto. Tudo no pensamento correlacionista que era atribuído ao sujeito agora é arrogado ao objeto. Em outras palavras, uma filosofia do objeto sem o sujeito é alcançada simplesmente ao decretar tudo o que era considerado subjetivo no pensamento correlacionista como sendo objetivo. Isso possibilita que o objeto-em-si apartado se mantenha em sua unidade absoluta, à custa de entrar num “duelo” (Harman, Guerilla Metaphysics op. cit., pp. 148-149) com suas próprias qualidades múltiplas, que aparecem na relação. O que, então, mantém juntos os aspectos em duelo (“ substância versus relação” , p. 183)? Há, como apren­ demos, uma “ cola” mágica (pp. 153-154) que mantém unido todo o universo: seu nome é “metáfora”. A metáfora magicamente “converte as qualidades de objetos em objetos por direito próprio” (“ elementos”) (p. 162). Porém, se as qualidades secundárias são agora objetos elementares, elas também não se apartam? Entra­ mos então numa complicada casuística que apela a um “éter” misterioso, um tipode emanação das “notas” do objeto, nas quais “ nós” , preceptores humanos, nos “banhamos”. Nesse banho, entramos vicariamente na órbita do “buraco negro” do objeto — que, em si, permanece “escondido da vista” (p. 20), enquanto “vaza” qua­ lidades e relação. Acaso essa cola metafórica não seria uma hipóstase daquilo que anteriormente era chamado de subjetivo, tendo se reorientado ao objeto, tal como um casaco vestido do avesso como um novo estilo ousado? Acaso “ nós”, precep­ tores desse vazamento, não estaríamos gerando qualidades secundárias enquanto nos “banhamos” nas emanações do éter, como fizemos o tempo todo, segundo o

126

inclusão, é necessário articular o modo de inclusão do humano no animal e do animal no hum ano. No caso do zoológico, assim com o em outros contextos em que os humanos traba­ lham para se manter a certa distância, no papel do observador não implicado — seja no campo, no laboratório ou na frente de uma tela — , é visivelmente uma questão de uma operação rigi­ damente excludente. A m útua inclusão pareceria ser o últim o con ceito ao qual vo cê recorreria para entender o que está em jo go nessas circunstâncias. Mas são precisam ente essas circunstâncias que predom inam nos encontros animal-humanos de nossa era, tardiamente batizada de “Antropoceno” . correlacionismo? Todas as questões do pensamento correlacionista não foram sim­ plesmente desviadas para o lado do objeto? Faz-se necessário ainda mais casuística para suturar os problemas criados pela própria explanação. Há falsos problemas implicados pelas pressuposições fundadoras dessa empreitada: a necessidade de uma ontologia baseada na substância e a ideia de que o objeto está essencialmente apartado — Whitehead (O conceito de natureza op. cit., pp. 169-170), ao contrário, define o objeto como aquilo que retoma. Na perspectiva aventada neste ensaio, a 000 é pouco mais que uma produção em massa de falsos problemas filosóficos ves­ tindo velhos conceitos e enigmas em roupas novas e chamativas. A falsidade dos problemas é traída pelo uso conspícuo do “nós” quando chega a hora de explicar a percepção e a relação. Que “nós” é esse? O “nós” permanece genérico. O “nós” genérico é sempre um sinal garantido de um sujeito implicado-, uma colocação entre parênteses do ato de pensamento tal como ele ocorre. “Nós” realmente devemos acreditar que voltar, por intricadas veredas, ao genérico sujeito humano implicado — corroborando agora a retórica de uma metafísica orientada ao objeto — seja um avanço filosófico? Devemos “nós”, sujeitos implicados, hipotecar à metáfora nossa atividade de pensar-fazer? Eterizar nossos devires relacionais? Que política é essa? Há muitas rotas alternativas ao pensamento não correlacionista — elas são todas antes relacionalistas que substancialistas. Bergson, Whitehead, Deleuze, Ruyer e Simondon (sem mencionar Peirce): todos desenvolvem exaustivamente uma metafísica relacionai não correlacionista capaz de explicar a presença do humano e respeitando, ao mesmo tempo, a anatomia ontogenética do não humano; reco­ nhecendo plenamente a realidade do que jaz para além do humano. O problema não é como pensar o objeto sem o humano. E pensar a implicação do humano em uma realidade que, por natureza, o supera. O problema é o mais-que-humano — especialmente do próprio ato de pensar.

127

Exemplares devires-animais, sem objetivo funcional ou destino

No zoológico, os animais colocados em primeiro plano são

final, podem parecer irrelevantes no contexto dessa predomi­

realçados do fundo de m odo a serem exibidos com o figuras

nância de situações em que o animal é reduzido ao estatuto

essencialm ente visuais. O enquadram ento zoológico instrui

de um objeto a serviço de um observador humano proposital-

o espectador quanto ao fato de que as prem issas que suce­

mente não envolvido, m uitas vezes em detrim ento da vitali­

dem para o animal não devem ser estendidas às vizinhanças

dade do animal, quando não à sua pura e simples sobrevivência.

hum anas, nas quais o animal está exclusivam ente incluído.

À primeira vista, a visita ao zoológico, que é a cena prim i­

As premissas que operam dentro da m oldura são mostradas

tiva do desenvolvim ento da teoria de Bateson, pareceria ser

com o sucedendo na “natureza”. Por contraste, as premissas

a antítese da brincadeira. Verdade, o conteúdo da observa­

opostas da “ cultura” aplicam-se às vizinhanças imediatas das

ção é um a cena de brincadeira. Mas é este precisam ente o

quais a figura do animal é destacada: o território humano da

problema: a cena é contida, no sentido literal de enclausura-

instituição do zo ológico. Esse enquadram ento zo o-lógico

m ento numa jaula. Com o desenvolvido neste ensaio, a noção

repete o gesto que Giorgio Agamben identifica com o o gesto

de “mútua inclusão” é a de um gesto enativo de dupla dester-

fundador da política humana. O animal é reduzido ao status

ritorialização. No texto de Bateson, isso acontece em term os

da “zoé” — m era vida biológica sob a regra categórica das

mais lógicos e, ao m esm o tem po, mais visuais. Bateson fala

leis da natureza — e, consequentem ente, excluído da pólis

extensivam ente sobre enquadramento, referindo-se, concre-

(ou, m ais p recisam ente, incluído apenas com o excluído).

tam ente, à m oldura de um a pintura e, mais abstratam ente,

Os espectadores hum anos gozam do estatuto da “ bios” : “ a

ao gesto de m anter um a separação bem organizada entre

form a ou m aneira de viver própria de um indivíduo ou de

categorias de seres e entre os níveis lógicos e m etalógicos

um grupo” ; uma “vida qualificada”, reconhecida com o uma

envolvidos nessa tarefa.3 Em ambos os casos — o visual e o

pessoa, e dotada do estatuto ju ríd ico que acom panha esse

lógico — é uma questão de exclusão por inclusão. A moldura do

reconhecim ento (personalidade moral) .s

quadro inclui certo número de elementos visuais organizados

A exclusão inclusiva do animal zoé-lógico é tudo, m enos

com o uma gestalt perceptual. A inclusão na m oldura coloca

paradoxal. A m oldura se m antém firm e no lugar. M esm o

em primeiro plano as figuras pintadas que ali aparecem, real­

quando a jaula do animal no zoológico inclui elem entos que

çando-as contra o fundo form ado por aquilo que a m oldura

evocam seu habitat natural — de m odo que algo próprio do

exclui. Um enquadram ento visual é tam bém um enquadra­

fundo natural da figura animal, que é estrangeiro aos entor-

m ento lógico. É “uma instrução para o espectador de que ele

nos hum anos, seja incluído na jau la — , isso só eqüivale a

não deveria estender as premissas que obtém entre as figuras

“um a m oldura dentro de outra m oldura” que nada faz para

no quadro ao papel de parede atrás dele” .4

minar a separação entre categorias lógicas e sua aplicação do princípio do terceiro excluído. A lógica dem asiado humana

3 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., pp. 187-189. 4 Ibid., p. 189.

128

SAgamben, Homo Sacer op. cit., p. 9.

129

do um ou outro “precisa” do “ duplo enquadram ento” a fim

co n cern e à estrutura, cujo traço co n stitu tivo é o desenho

de “delim itar o fundo contra o qual as figuras serão percebi­

de uma fronteira entre o dentro e o fora dem arcando o que

das” .6 Se o fundo incluído não é tão bem delim itado quanto

a estrutura inclui em sua figura deslocada e aquilo que ela

a própria figura, a separação entre as prem issas que operam

deixa na sombra de fundo do seu ambiente. A zona de “indis­

dentro da moldura e aquelas que operam fora dela pode ficar

tin ção” ou indiferença que resulta de um borram ento dessa

borrada (um “perigo” com o qual boa parte da arte moderna

dem arcação é o m ero oposto da estrutura.9 É o fundo indi-

brinca conscientem ente). É necessário duplicar o fundo para

feren ciado co n tra o qual se d estaca a d iferença figurai da

enquadrar efetivam ente a figura.

estrutura em relação ao seu ambiente.

N a verdade, é im preciso dizer que a exclusão inclusiva do

Seguindo o princípio do duplo enquadram ento, essa zona

animal zoé-lógico não é paradoxal. De certa maneira, ela se

de indiferença, que é o m ero oposto da estrutura, deve ser

presta m uito bem ao paradoxo. Mas não o tip o de paradoxo

recon hecida com o um elem en to constitutivo da estrutura­

que figurou proem in en tem en te neste estudo. N ão o para­

ção. E o disform e do qual se sobressai essa form a de enqua­

doxo produtivo da colocação perform ativa em m ovim ento

dram ento (o acop lam en to co rrelativo da estru tu ra e seu

de um a zona criativa de indiscernibilidade na qual as dife­

am biente). A diferença estrutural (no caso zoé-lógico, ani­

renças ocorrem conjuntam ente sem coalescer, fundem -se

mal versus h um ano), figurada com o o conteú do do enqua­

enativam en te sem se confundir, num a proxim idade dinâ­

dram ento, fica realçada em relação ao fundo duplicado da

m ica que catapulta a vida a um m ovim ento transindividual

indiferença. Mas faz isso à custa de ter se com prom eter com

de superação do que está dado em direção ao novo. Ao co n ­

ele, com o sua própria cond ição lógica de possibilidade. A

trário, é um paradoxo estéril que consiste m eram ente num

zo n a de indiferença é a prem issa negativa em oposição à

borram ento de categorias. O que é suspenso nesse caso não

qual a diferença estrutural se ergue. Enquanto logicam ente

são as funções norm ativas, com o na brincadeira, mas a pró­

condicionado, o duplo enquadram ento é uma dupla op osi­

pria diferença. A lém disso, a suspensão não é enativa, mas

ção: hum ano versus anim al e humano-verszís-animal versus

m eram ente lógica.7 A diferença fundam ental que borra é a

indiferenciação. Por outro lado, nos paradoxos animais pro­

distinção “ entre o que está dentro e o que está fo ra ” .8 Em

dutivos, as diferenças em jogo não são redutíveis a oposições.

outras palavras, o estéril paradoxo em questão não concerne

Em vez de um a zona de indiferença, elas possuem a zona de

ao dinamismo da vida em sua processualidade; antes mesm o,

indiscernibilidade áa diferença (o terceiro incluído). Eles não apelam para condições de possibilidade apenas lógicas, mas

6 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 188, grifo do autor. 7 O conceito de Agamben de “ suspensão” como aquilo que produz apenas indis­ tinção irredutível tem de ser precisamente contrastado com a suspensão lúdica aqui teorizada, a qual suspende a fim de abranger diferenças e as reúne para a produção de ainda mais diferença. 8Agamben, Homo Sacer op. cit., p. 26.

130

inserem-se enativamente em condições reais de emergência.10

9 Ibid. 10 Sobre a distinção entre as reais condições de emergência (potencialização catalítica) e as condições lógicas de possibilidade (causa formal), cf. Deleuze,

131

Sua constituição não é de uma natureza predominantem ente

intim am ente relacionada com os problem as im postos pela

lógica, m ediada pela oposição, mas naturalm ente vital, em

operação de enquadram ento. Em últim a análise, afirma ele,

toda a sua imediatez.

a operação de enquadram ento não é tan to visual (a analo­

Agam ben dem onstra de m odo convincente que todo gesto

gia com a pintura), tam pouco form alm ente lógica (concer­

político humano inclui logicam ente essa base indiferente em

nindo às regras de form ação e classificação de categorias).

suas exclusões estruturais, de um m odo esterilm ente parado­

É “psicológica” .14 Isto é, no vocabulário do presente ensaio,

xal ou, de outro, em geral ocultado. Mas quando essa exclusão

é apetitiva: concerne ao m ovim ento “m ental” da abstração

incluída confere a si mesma uma figura, é na form a paradoxal

vivida, na m edida em que tende a superar o que está dado

da exceção que funda sua regra, recon stituindo a regra no

na direção da criatividade, e pertence às subjetividades-sem -

ato de suspendê-la. Essa é a própria definição agambeniana

-sujeito. A necessidade de duplicar o enquadram ento, com o

de soberania. O ato paradoxal de soberania ainda m erece ser

um m ecanism o de segurança para m anter a separação entre

cham ado de “ estéril” , m uito em bora seja constitutivo. Pois

categorias, “ relaciona-se à preferência por evitar os parado­

ele não inventa, refunda. Ele não supera o que está dado, dá

xos da abstração” : os paradoxos, diríamos aqui, da abstração

novamente. Ele reproduz em essência a mesm a estrutura. “A

vivida.15 Proteger a fronteira estrutural contra a m útua inclu­

exceção que define a estrutura da soberania... cri [a] e defin[e]

são criativa é um modo de evitar a todo custo a superação do

o próprio espaço no qual a ordem jurídico-política pode ter

que está dado, ao qual a abstração vivida, animada pela ten ­

valor” .11 Trata-se de colocar de volta no lugar, em term os for­

dência supernormal, nos impele. Porém , o oposto estrutural

mais, as prem issas da p olítica humana: enquadrando-a de

dessa proteção da fronteira estrutural é apenas outro m odo

m odo redobrado para outra rodada.

de expressar a m esm a “preferência” — entenda-se: “desejo”

O zoológico é um exercício da soberania hum ana sobre­



por evitar o m ovim ento criativo da vida, d esta v e z sus­

posta ao animal. A zoo-logia participa da estruturação dapólis,

pendendo-a numa zona de indiferença, em vez de extirpá-la

que enxota o animal para o lado da vida não qualificada; em

com o terceiro excluído.

outras palavras, vida que é “ m atável”, p or natureza — em oposição a ser “ sacrificável” , por cultura.12

O estado de exceção soberano é a dialética constitutivam ente estéril entre essas duas estratégias opostas de evitar

Bateson u tiliza sua teoria da brincadeira para construir

a afirm ação da abstração vivida. Bateson ressalta que, na

a definição do patológico.13Ele vê a patologia com o estando

ausência de paradoxos de abstração (vivida), a evolução da com unicação, que ele afirma ser inseparável da evolução da

Bergsonimo op. cit., p. 78; e o item “ Diferença conceituai: a maior e a melhor”, em Diferença e repetição, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

vida, “estaria num beco sem saída” .16 A estrutura soberana

11 Agamben, Homo Sacer op. cit., p. 26.

14 Ibid., p. 186.

12 Ibid., p. 17.

15 Ibid., p. 189.

13 Bateson, “A Theory of Play and Fantasy” op. cit., pp. 190-193.

16 Ibid., p. 193.

132

133

da política humana é antidevir. Na medida em que cada vida possui sua evolução criativa, a política hum ana é antivital.

Que se entenda por político-patológica qualquer tendên­ cia que se enquadra num desejo de evitar a abstração vivida.

Todos os três com ponentes da política hum ana — a figura

Reforçar a linha divisória entre as diferenças estruturadas

do humano, a base do animal da qual ela se sobressai e a zona

a fim de com inar o enquadram ento ao deslizam ento e ao

de indiferença explorada pelo estado de exceção através do

apagam ento que em ergem com o paradoxo corresponde à

qual essa diferença estrutural é suspensa visando a um reen-

norm atividade neurótica, que se investe de corpo e alma na

quadramento refundacional — podem ser considerados pato­

com pulsão de repetir o mesmo, na medida do humanamente

lógicos de acordo com os critérios de Bateson. A preocupação

possível. É a normopatia de Jean Oury.18A norm opatia amplia

com o enquadramento, o duplo-enquadramento e o paradoxo

a mínima diferença, deflagrada pelo paradoxo da brincadeira,

com partilhada por Bateson e Agam ben nos autoriza a p en ­

numa diferença m onum ental que é levada a sério demais. A

sar conjuntam ente o político e o “psicológico” — lembrando,

lacuna é erigida num divisor estrutural, o qual é defendido

mais um a vez, que estam os falando não sobre “ o ” sujeito,

a todo custo em nom e “ de com o as coisas são” . Nenhum a

mas sobre subjetividades-sem -sujeito. Ou, para sermos exa­

m istura é perm itida: brincadeira ou luta — por am or à sua

tos, estam os falando sobre m ovim entos qualitativos de uma

sanidade, não ouse fazer as duas de uma vez.

natureza tendencial na qual o sujeito não possui ser, mas ape­ nas extrasser, coincidindo com o elemento de pura expressão

Se, contra essa defesa, apesar dos maiores esforços da sani­ dade norm opática, as diferenças se fundem num a zona de

em devir. Isso significa, no fim, que existe apenas um sujeito,

indiferença em que as categorias do ser não podem mais ser

e ele é múltiplo: o sujeito transindividual do animal integral

tendencialm ente discernidas, a lacuna entre os níveis lógicos

superando a si m esm o (com o discutido no suplem ento 1).17

e 0 divisor entre os term os mutuamente exclusivos implodem.

Continuando:

O signo é levado a sério com o o que denota o que iria denotar. Isso im plica um a confusão entre o que “é ” e o que “poderia ser”, na ausência efetiva de qualquer linha potencial de um

17 O conceito deleuziano de “extrasser”, tal como aqui mobilizado, converge com a teoria de Whitehead do sujeito como supeijecto: “Essa é a doutrina da unidade emergente do supeijecto. Deve-se conceber uma entidade atual tanto como um sujeito que preside sua própria imediatez de devir [como uma forma dinâmica se transindividuando] e um superjecto, que é uma criatura atômica exercendo sua função de imortalidade objetiva [o ato de deixar para trás do potencial em formà de rastro para devires subsequentes assumirem suas próprias constituições]. Ele se tornou um ‘ser’, e pertence à natureza de qualquer ‘ser’, que é um potencial para qualquer ‘devir’ (Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 45). O “ ser” do superjecto é um devir atingindo sua culminação (“ satisfação”) e, nesse momento preciso, “perecendo” no potencial que lega ao mundo, contribuindo para as con­ dições reais de emergência do que poderia vir em seguida. O superjecto corres­ ponde intimamente à “ síntese disjuntiva de consumo” de Deleuze e Guattari em O anti-Édipo (“então era isso!”, pp. 116-118).

134

gesto enativam ente desem penhável que forneça um a linha de fuga transform ativa. A supressão norm opática da zona de indiferença em erge. O fundo de toda estrutura em erge à superfície. A apetição, é claro, nunca cessa. É da natureza da apetição nunca cessar. Sob essas co n d ições, seu m ovi­ m ento incessante só pode agora andar em círculos. Ele pode discernir a diferença e a distinção entre categorias lógicas

18 Caosmose, trad. bras. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34,2006, p. 99.

135

som ente até o ponto de cair novam ente em um a confusão

fazendo-a voltar para a indiferença antes que ela se desdobre

entre o “ é” e o “poderia ser’7. Isso resulta num a hiperprodu-

transform ativam ente. O fascism o é um regime m isto no qual

ção de conexões associativas indiferentes à distinção entre o

há uma oscilação louca entre a norm opatia coletiva e a para­

fato corporal e a possibilidade, um muito facilmente seguindo

nóia da psicose coletiva.

para o outro. Estranham ente, a im plosão do signo na deno-

O próprio Bateson não toca no terceiro com ponente polí-

tação daquilo que ele iria denotar resulta num deslizam ento

tico-patológico: a pedra angular da exceção soberana. Mas

com pulsivam ente associativo. O que desliza é o potencial

não é difícil dar um nome que se alinhe aos dois diagnósticos

para um a transform ação enativam ente desem penhável. Na

que acabam os de apresentar: sociopatia. A soberania agam-

ausência processual do potencial gestual para a transform a-

beniana é a sociopatia constitutiva da política humana. Que

çã o -in-loco, instala-se um sentim ento de im potência. Esse

se entenda por sociopata qualquer m ecanism o que funcione

sentim ento segue a própria ladeira escorregadia, tendendo a

para reproduzir mais norm opatia e psicose, em seus antidevi-

evoluir para um presságio e, então, uma ameaça — até mesmo

res com plem entarm ente infernais. A sociopatia da soberania

uma perseguição. A tendência, em resum o, vai em direção a

está intim am ente relacionada ao fascism o, ainda que a ele

um a paranóia. Essa é a pira psicótica da norm opatia (usando

não se reduza.

a palavra psicótico num sentido não técnico e amplo).

A sociopatia, com o a esquizofrenia nos term os de Deleuze

E crucial ter em m ente que essa figura desestru tu rada

e Guattari, é um a tendência im pessoal. É transindividual e

da p sicose não tem nada a ver com a figura processual da

transsituacional ao seu próprio modo; logo, jam ais afeta um

esqu izofren ia, tal com o teorizad a p or D eleu ze e G uattari.

sem afetar, pelo m enos, dois. É transsituacional, na m edida

O esq u izo frên ico de D eleu ze e G uattari é a figura da afir­

em que seu estado de exceção é sempre um limiar entre duas

m ação absoluta da tendência supernorm al e tem a ver com

reordenações. Diferentemente da tendência esquizofrênica, a

a in ten sificação do m ovim en to anim al da variação super­

tendência sociopática é político-patológica por natureza, em

norm al — logo, com a produção de diferenciações cada vez

todos os casos: tanto no sentido trans(individual/situacional)

m ais efetivas. O p sicótico, no sentido desestru tu rado, é o

quanto no personalizado, para se adequar aos contornos da

“trapo” hum ano produzido pelo bloqueio da tendência dese-

corporalização individual. A individualização dessa patologia

jan te pela im posição da indiferenciação com o única alter­

soberana ocorre quando a tendência sociopática im pessoal

nativa à norm opatia.19 O p sicótico, no sentido p atológico,

perde ou renuncia ao seu poder transindividual fundacional

tra z a indiferenciação que bloqueia o desejo supernorm al

e vira monossituacional. Isso ocorre por força da privatização,

num a expressão frenética, pressurizada pela colisão do ape­

na retirada do campo relacionai da animalidade (e até mesmo

tite contra um im passe. Em v e z de m onum entalizar a dife­

do seu representan te hum ano atrofiado, a esfera pública).

rença mínima, o psicótico a declina na velocidade de dobra,

A so cio p atia, ta n to no nível individual qu an to no ju ríd ico-político, é a tendência antivital que estrutura a política

19 Deleuze e Guattari, O anti-Edipo op. cit., pp. 15,34-35,121-123.

136

humana. Ela abarca as tendências norm opáticas e psicóticas,

137

absorvendo ambas em seu m ovim ento soberano. Todos os

com o um a cam ada de papel de parede. N esse caso, som os

regimes de soberania, não só o fascismo, são regimes sociopa-

ativam ente encorajados a confundir a figura pintada com o

ticamente mistos que abarcam esses níveis e tendências. Cada

papel de parede. E poderia ser diferente disso, quando o papel

um inventa a própria resolução dinâmica para sua respectiva

de parede da identificação se sobrepõe à pesada moldura da

tensão constitutiva entre os polos norm opático e psicótico.

distinção zoé/bios? A operação de sobreposição id entificatória é alcançada

Uma simples visita ao zoológico é uma instanciação menor dessa estrutura demasiado humana: um conto de moralidade

através de projeção. Som ente em oções projetadas são sufi­

peludo, plumado ou escam oso que repete um a variação zoo-

cientem ente flexíveis para driblar as grades, passando por

-lógica da história da política humana. A rigidez neurótica da

cima da segregação que sua própria operação pressupõe. Se

separação zoé-animal/&zos-humano não é suficiente para pre­

psicose significa cair num a zona de indiferenciação, então

venir que se forme uma zona de indiferença. O zoológico, na

projeção identificatória se qualifica com o um grau variante

verdade, favorece ativam ente a sua form ação, por meio de

dela. Com o uma confusão categorial, situa-se no espectro psi­

suas atividades interpretativas e de relações públicas. Uma

cótico, mas numa de suas pontas, bem próxima do normopata,

constante dessas atividades é a hum anização dos animais.

compartilhando alegremente de sua generização normativa e

Eles são conhecidos p elo nom e, escolh idos com a devida

de seus gêneros narrativos. A operação de projeção identifica­

atenção ao quesito fofura. Seus rom ances e os nascimentos

tória injeta um a dose controlada de histrionism os parapsicó-

deles resultantes, não m enos que suas lastim adas m ortes,

ticos na instituição do zoológico. Abrangendo o normopático

geram sempre notícia. Todo o possível é feito para incitar o

e o psicótico ao seu m odo, aplica um toque final sentim ental

público hum ano a se identificar com os anim ais do zo o ló ­

à estratificação sociopática específica do zoológico.

gico a fim de arrecadar fundos. Uma confusão identificatória é sobreposta à separação categórica inerente à instituição

A figura exclusivam ente incluída do animal com o definido pela zoé some de vista, ficando atrás do papel de parede zoo-

do zoológico. Sabemos de que lado das grades nós estamos.

-lógico. Os animais agora têm rostos e pensam os ver nos seus

Ainda assim, não sentim os alegrias e aflições pelos animais?

olhos a imagem refletida de nossa própria humanidade. Isso

N ão com partilham os vicariam ente de suas vitórias e derro­

facilita o desconhecim ento dos visitantes acerca da natureza

tas? O zoológico não é apenas um local de confinam ento, é

da política e da política da natureza que testemunham.

tam bém a porta de entrada para um melodrama que dota d e ,

A chave da operação é uma conversão do afeto dominante

bios os seres que são consignados à definição categórica de zoé.

da situação. O horror ao visível sufocamento da vitalidade dos

Os contornos felpudos dessa mútua inclusão em ocional não

animais é convertido em diversão — a diversão, em grande

substituem a dura exclusão constitutiva da política humana.

m edida, é reconhecer-se no outro. É claro que a operação

Eles se acrescentam a ela, paralelam ente e em outro nível,

nem sem pre funciona. As crianças, que são seus principais

ou com o um palimpsesto; ou, ainda, com o um a sobreposição

alvos, são frequentemente as menos capazes de negligenciar o

decorativa aplicada às duras paredes da soberania hum ana

horror e fazer vista grossa para a singularidade do animal, ao

138

139

passo que os adultos que as acompanham, sedentos por uma

do zoológico com o um território de encontro interespecífico

pausa divertida no trabalho duro de criar a próxim a geração

que produz, dele, um a distorção anam órfica (ana-antropo-

de normopatas, adicionam histrionicamente seus esforços em

m órfica)? M anter um olho na anam orfose é crucial porque

doses identificatórias. Q uando isso funciona, o que vem os

a superfície de identificação não é, de maneira alguma, um

é uma encenação do cinism o estrutural da p olítica humana.

mapa não distorcido da estrutura da política hum ana à qual

O cinism o consiste no revestim ento da barbárie estrutural

forn ece suporte m oral. O borram ento da estrutura é um a

de sua exclusão inclusiva com uma superfície humanizadora

parte funcional dessa instanciação particular da estrutura.

aplicada. Esse é um exem plo do tipo de antropom orfização

Em outras palavras, enqu an to um gesto de m apeam ento,

que m erece ser veem entem ente denunciada. C o m o um a p o lític a anim al deve lid ar com a p o lítica

isso não cobre propriam ente o território ao qual aplica sua m etacam ada, no sentido de ligar cada ponto de sua superfí­

humana da estrutura zoo-lógica, dado que sua estratégia pre­

cie a um ponto correspondente no território. Enativam ente,

ferida não é a denúncia? Às vezes a denúncia é necessária,

o mapa é, na verdade, um a peça adicionada à estruturação

mas nunca é o suficiente. A política animal sempre busca uma

m ultinível do território. Ele é um a parte disso, com uma fun­

m aneira de alavancar a criatividade, m esm o nas situações

ção seletiva em relação ao território do zoológico: editá-lo

mais fortem ente fechadas e passíveis de denúncia, abrindo

distorcidam ente.

um a fresta pela qual a ten dên cia supernorm al consiga se

O que é editado anamorficamente é o fato de que há uma

safar, alçando voo em direção à superação do que está dado.

atividade de outra natureza que segue em frente, a despeito

Onde é que um a abertura com o essa pode ser encontrada

da estruturação. Essa atividade segue esburacando m inim a­

na face hum anizada do confinam ento estrutural do animal?

mente a estrutura, impulsionada pela pressão de um apetite,

No confinam ento do animal à dependência total ao que lhe

não totalm ente sufocado, de transbordá-la. Por mais rígida

é zoo-logicam ente dado? Na escravidão corporal do animal à

que seja a separação categorial subjacente, e por mais senti­

mão (ou ao polegar opositor) daquele que o trata, m atizado

m entalm ente efetivo que seja o seu revestim ento, resta um

som ente com um a cam ada de cinism o sentim ental? Todas

resíduo animal incontido. Também acontece outra coisa que

essas perguntas resum em -se a uma: com o é que, apesar de

não pode ser reduzida nem à separação m utuam ente exclu­

tudo, o zoo-lógico ainda é lúdico?

siva entre zoé e bios, nem à zona com pensatória de indiferen-

Bateson inclui, de form a interessante, o “histrionism o” no.,

ciação da identificação projetiva, nem sequer à sociopatia de

“com plexo de fenôm enos” que com põem o cam po da brinca­

seu funcionam ento zoo-lógico conjunto.21 Algo ainda se move

deira, tudo isso envolvendo algum tipo de jo go na distinção entre o m apa e o território.20 A superfície da identificação zoo-lógica não poderia ser considerada um mapa projetivo 20 Bateson, “A Theory of Play and Fantasy” op. cit., p. 181.

140

21 No vocabulário de O anti-Edipo, a estrutura da política humana é a “ represen­ tação recalcante” do excepcionalismo humano que serve como uma isca para o desejo animal. Deleuze e Guattari (O anti-Édipo op. cit., pp. 157,218-220) argumen­ tam que o discurso psicanalítico é parte integrante da representação recalcante da família edípica. O pensamento de Agamben, por todo o seu interesse, tem de

141

de m odo im perceptível por baixo da superfície do teatro sen­

estrutura.23 É sempre esse o caso. Sempre há m ovim entos de

tim ental das em oções humanas, percolando distorcidam ente

fuga incipientes até m esm o na estrutura mais humanamente

a estrutura da qual constitui o fundo.

im perm eável, esburacando-a com minifissuras, am eaçando

A estrutura da política humana não é tudo que há em vigor.

m iná-la com o um dique com vazam entos. Há sem pre uma

Há um a sobra de política animal, um excesso residual disso

tendência supernorm al a escapar, até m esm o dos prazeres

que se m ove no fundo do fundo, na tendência autotransbor-

m acios da sentim entalidade que com pensa o horror da bar­

dante que preenche o cam po do continuum da natureza. O

bárie da qual o humano mais se orgulha, talvez mais arrogan­

duo zoo-lógico figura/fundo — o mapa distorcido e o terri­

tem ente onde o orgulho passa despercebido com o questão

tório institucional, respectivam ente — destacam -se contra

política: a excepcionalidade do seu ser específico.

esse fundo movente. O fundo da tendência supernormal ain-

“ É provável” , escreve Bateson, “que não som ente o histrio-

da-movente enquadra duplamente a estrutura zoo-lógica em

nism o, mas tam bém a espectatorialidade, devam ser incluí­

seu próprio subterraneam ento potencial. Representa a des­

dos nesse cam po” da brincadeira.24 Se a espectatorialidade

territorialização potencial da estrutura. Esse fundo de sub­

faz parte do cam po da brincadeira, então não podem os con­

terraneamento nada mais é que a autoafirmação da vitalidade

siderá-la um a via de m ão única. C om o Bateson sublinha, no

animal, o entusiasmo do corpo autocondutor que nunca pode

cam po da brincadeira sem pre se trata de diferentes papéis

ser inteiram ente acalmado.22 Comoções vitais microagitam a

m utuam ente incluídos no m esm o “ com plexo” . O com plexo inclui m u tu am en te disparando ações e suas “recíp ro cas” : as ações do o u tro ou dos o u tro s tra zid a s para a b rin ca ­

ser considerado como parte integrante da representação-recalcante da estrutura zoé-bios, na medida em que impõe a alternativa infernal entre essa ordem de dife­ renciação e indiferenciação humano-política. Isso leva ao impasse do potencial negativizante. Para Agamben, o mais alto potencial, a “pura potência” , só pode ser construído como o “poder de não”: a potência suspensa e sem saída, numa zona irredutível de indistinção que mantém o agir e o não agir e o pensar e o não pensar numa contradição insolúvel — ou, para sermos mais precisos, a única saída não é a afirmação ou a apetição, mas a indiferença elevada à última potên­ cia, onde a contradição se dobra sobre si mesma em uma negação da negação (Agamben, Potentialities: Collected Essays in Philosophy, trad. ing. de Daniel Heller-Roazen. Stanford: Stanford University Press, 1999, pp. 141,143). O pensamento ■ de contradição e negação só consegue captar “condições lógicas de possibilidade” (causa formal), o que ele encontra não nas lacunas dinâmicas do mundo, mas na aporia (causa formal elaborada numa teologia negativa, na qual àquilo que é considerado paradoxo estéril, na perspectiva aqui desenvolvida, atribui-se a um poder messiânico). zz Sobre o chão sem fundo da experiência vital que o ultrapassa, cf. Deleuze, em Diferença e repetição op. cit., p. 138) e o item “Segunda característica: afirmar a diferença” do mesmo livro.

142

deira pela fo rça transind ividu al da tran sfo rm a ção-in-loco que o gesto lúdico enativa.25 Q uando aplicado à espectatoralidade, esse p rincíp io tem im p licações im portantes. Em v e z de um a via de m ão única, a espectatorialidade tem de ser entendida com o um a relação. A relação deve ser co m ­ preendida com o recíproca, com o um a atividade bidirecional que abarca o diferencial entre os papéis que se reúnem em contraponto. Isso significa que todos os envolvidos são, de algum a m aneira, participantes ativos, apesar do ostensivo

23 Isso é o que chamo de “atividade nua” (Massumi, Semblance and Event op. cit., pp. 1-3,10-11; 2010), discutida abaixo no suplemento 3, ponto 4. 24 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 182. 25 Ibid., pp. 181-182.

143

m onopólio de atividade de um lado ou de ou tro (no teatro,

imperceptível, deixado para trás na operação humano-política

do lado dos atores; no zoológico, do lado dos espectadores

da conversão afetiva? Esse algo extra poderia ser um resíduo

que peram bulam e identificam -se projetivam ente). N ão há

inconversível da simpatia animal? Pertencente a outra política?

jogador passivo. A brincadeira é um com plexo dinâmico, um

D ebaixo dos pegajosos paralelepípedos da estru tu ra da

cam po integral de ação diferencial, aglutinando-se diversa­ m ente em m útua inclusão.

hum ana ja z a praia da sim patia animal. Ou: às m argens do

sentim entalidade identificatória e do horror de sua política

“O ” espetáculo não é monolítico. Para utilizar uma frase de

mar indiferenciado do sentim ento humano submergindo os

Ruyer, é um “com plexo espetáculo-espectador”.26 A relação

destroços da separação zoé-bios jazem os turbilhões da maré

espectatorial é um campo de atividade distribuído. É saturado

da animalidade transindividual, traçando de um a só v e z as

pela reciprocidade da relação. Quando os m acacos estavam

linhas diferenciais de seus movimentos tendenciais nas areias

brincando diante do antropólogo que os observava, o antropó­

de todos os continentes, independentem ente das distâncias

logo estava ativamente implicado com eles no complexo lúdico

estruturais que os separam. Ou ainda: ladeando e fissurando

que seus gestos ocasionavam , numa transform ação-in-loco

a em oção humana ja z o afeto vitalm ente animal.

que arrebatava ambos os lados, de um modo não inteiramente

A sim patia, com o previam ente argum entado, não opera

alheio ao tipo de puro devir duplamente desterritorializante

a partir do ponto de vista de um dado participante. N ão é

discutido no suplem ento 1. Quando a feliz m ultidão de pro­

uma ancoragem individual na situação a partir de um ângulo

jeções aguarda em fila pela oportunidade de ceder a alguma

particular. É um a perspectiva de reciprocidade situacional

projeção sentimental com as celebridades que são os pandas

de todos os ângulos. É m enos um a perspectiva situada do

recém-nascidos, os animais observados entram imediatamente

que uma perspectiva situacional: uma inspeção imanente da

num complexo campo de relação com a multidão humana atra­

mútua inclusão diferencial das ações potenciais de tudo o que

vés das grades. Há devires em curso, a pé e a pata; e se não

foi gesticulado no acontecim ento que acaba de se deflagrar.

passam de agitações, elas são tudo, menos imperceptíveis.

Vim os que a reação de um participante já foi incluída poten­

O anim al dentro da jaula não está tão con tido quanto

cialmente na ação do outro, presente em germe na -esquidade

parece num primeiro momento. Talvez a maior arma da polí­

do gesto lúdico. A simpatia é essa im ediatez transindividual.

tica humana seja fazer parecer que ele esteja. Acaso não são as

Com o discutido anteriormente, a perspectiva situacional ena-

crianças que sentem o horror, sentindo algo vital através d e .

tivada no ato simpático é chamada, na term inologia de Ruyer,

horror? Algo que é radicalmente alheio à estrutura da política

de “ inspeção absoluta” . Isso é um englobam ento integral

humana e à sentim entalidade indiferenciante e tão humana

da situação no pensar-fazer, na im ediatez da situação, sem

segundo a qual o horror deve ser anam orficam ente conver­

o ponto de vista de um a dim ensão suplem entar a partir do

tido? O que elas sentem , intuitivam ente, não é algo extra

qual, com o que de fora, olhar para ou olhar de cima a situação. A simpatia é o entrem eio imanente da situação, diretam ente

26 Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., pp. 203-221.

144

sentido no pensar-fazer da ação por vir.

145

O que é sentido na simpatia é aforma dinâmica da situação.

tendencial da situação. É o “o que” que está acontecendo, na

Isto é sentido não a partir do ponto de vista de um ou outro

medida em que orientado por um m ovim ento tendencial que

participante, mas a partir da perspectiva situacional daquilo

arrebata a situação. Há uma genericidade no desdobramento

que, potencialm ente, passa entre eles. A simpatia não é iden-

tem ático, no qual os parâm etros gerais do resultado estão

tificatória e não envolve, de maneira alguma, um a indiferen-

dados de antem ão. N a brincadeira, o resultado genérico é:

ciação. Ela m ovim enta a experiência com um entendim ento

expressar inventivam ente o entusiasm o do corpo. N o com ­

enativo do diferencial entre os respectivos papéis a serem

bate, é: lutar ou fugir, ganhar ou perder. Na predação: com er

interpretados reciprocam ente entre os participantes: o que

ou ser com ido. Apesar de os parâm etros estarem geralmente

Ruyer chama de “tem a form ativo” da situação.27 O tem a for-

dados e serem entendidos intuitivam ente desde o prim ei­

m ativo é o que foi cham ado anteriorm ente de “form a dom i­

ríssim o gesto, o fim nunca corresponde inteiram ente a uma

nante” . Para retom ar ao principal exemplo utilizado no corpo

conclusão prévia, e isso tam bém é imediatamente entendido

deste ensaio, o com bate é o tem a form ativo tan to da luta

a partir da primeira descarga gestual de atividade que dispara

quanto da luta de brincadeira, a diferença está na ponderação

o acontecim ento. A abertura vai além da incerteza sobre a

relativa do fator criativo da mais-valia de vida que advém com

qual incidirá o fim alternativo genérico. Há sempre tam bém

o entusiasmo do corpo, relativa ao valor de sobrevivência que

a possibilidade criativa de que uma improvisação espontânea

advém com o esforço corporal diante dos imperativos dados

— um a invenção estética enativa — inflexione o desdobra­

da situação (ou entre a intensidade da abstração vivida e a

m ento tendencial, conferindo à genericidade do tem a uma

com pulsoriedade da im portância vivida).

virada singular, um algo extra que supera o conhecido “ o que”

O tem a está de um lado e do outro. Está em todos os luga­

do que está acon tecen d o com um im previsto “ co m o ” isso

res da situação, d iferencialm ente distribu ído pela diversi­

terá acontecido. O “ entendim ento” sim pático da orientação

dade de papéis definidos na brincadeira. Aqui e acolá, e por

tendencial do tema, incluindo um entendim ento intuitivo da

toda parte distribuído, o tem a é “não localizável” .28 É o sabor

m aneira pela qual sua dadidade genérica poderia ser supe­ rada no acon tecim en to por vir, advém com a im ediatez da

27 Ibid., pp. 17-18. Bergson também fala de “instinto” em termos de temas. Com ­ parando o comportamento instintivo em insetos sociais, ele diz que os comporta­ mentos não são reunidos parte a parte, mas ocorrem em blocos temáticos cujos elementos sofrem, todos, variação integral. “ Com toda probabilidade, a maior ou menor complicação dessas diversas sociedades não se prende a um maior ou menor número de elementos adicionados. Encontramo-nos, antes mesmo, diante de um tema musical que se teria primeiro transposto, como um todo, em um certo número de tons e sobre o qual, ainda como um todo, teriam sido depois executa­ das variações diversas, umas muito simples, as outras infinitamente engenhosas. Quanto ao tema original, ele está por toda parte e em parte alguma” (Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 186, tradução modificada). 28 Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., 1952, p. 12.

146

“ consciência prim ária” . A consciência prim ária que advém com a simpatia é uma consciência relacionai e situacional. Isso significa, uma vez mais, que é não localizável. Não é redutível à consciência de um indivíduo. É o com partilham ento recíproco de indivíduos envolvidos na consciência da situação. É a consciência dife­ rencial da integralidade da situação: a unidade dinâm ica de sua ação enquanto aquilo que inclui m utuam ente o diverso. E o entendim ento intuitivo do que não afeta um sem afetar o

147

outro. Em outras palavras, é a consciência afetiva do dinamismo

sentir em erge com o que de um a dim ensão suplem entar, a

da situação, registrando o “ o que” que está tem aticamente em

uma distância mediada. Isso modifica a compleição afetiva da

jo g o nisso com o “co m o” do desdobram ento tendencial do

situação. A ponderação muda a favor do afeto categórico em

tema, incluindo tanto a genericidade da situação quanto sua

jogo e de seu tem atism o genérico, convertendo efetivamente

inflexão potencial direcionada à evolução supernormal.

a absorção primária pelo indivíduo no afeto transindividual

Sim-: ju n to / patia: ser afetado. A quilo com o que a cons­

da situação numa em oção privadamente possuída e conven­

ciência dinâmica “ sim patiza” é aforma dinâmica do que está

cionada. Essa conversão interiorizante do com plexo afetivo

por vir, afetando a um e a tod os, diferentem ente ju n tos e

transindividual na m oeda da em oção humana convencional

orientados tem aticam ente. Em resumo, a consciência afetiva

é o que traz a situação para a seara da política humana.29 Ela

é a experiência im ediata do afeto transindividual do acon te­

traduz simpatia animal em emoção humana.

cim ento que se desenrola. “A feto ” é utilizado aqui sem um

Algo se perde nessa tradução hum ano-política. A interio-

qualificador para englobar tanto o afeto de vitalidade quanto

rização do afeto categórico, m inim izando o entusiasm o do

o afeto categórico, um a v e z que eles se reúnem tem atica­

corpo do afeto de vitalidade, confina a experiência em sua

m ente num com plexo. A sim patia é a consciência primária

própria generalidade. É a genericidade do tema que agora tem

do complexo afetivo na brincadeira. Ela inclui uma percepção,

o maior peso. O potencial inventivo singular da situação é dei­

im ediatam ente sentida, da compleição afetiva da situação (a

xado de lado, bem com o sua dimensão transindividual. Essa

textura do afeto de vitalidade e do afeto categórico; o modo

produção da em oção hum ana individualizada é altam ente

com o se misturam e sua proporção tendencial).

política, onde quer que ocorra. É um m odo de m inim izar o

A sentimentalidade humana edita a compleição. Ela salienta

p oten cial inventivo ten dencialm ente em jo go. Ela ajuda a

o afeto categórico, devidam ente convertido, e enfatiza de

, assegurar que o que transpira no final seja uma refundação

m odo seletivo seu “o que” tem ático. Isso m inim iza o “com o”

de um a antiga ordem baseada em distinções categóricas já

singular do elem ento do afeto de vitalidade. Enfatiza a generi­

genericam ente in loco. Ela cria um a situação na qual o tem a

cidade da situação em detrimento da sua singularidade e silen­

pouco provavelm ente excederá seus parâm etros e as alter­

cia o seu dinamismo. Com o resultado desse silenciamento da form a dinâm ica do acontecim ento, o “o que” fica parecendo

nativas já dadas neles inscritas. Considere uma discussão de

menos uma dimensão de um acontecimento e mais uma coisa,

traçado de antem ão. V ocê não sabe com o vai term inar só

Ele é sentido com o o conteúdo qualificado do acontecim ento.

porque ainda não é certo qual dos dois finais m utuam ente

casal genérica. Seu desdobram ento está, em larga medida,

Através de projeção identificatória, a sentimentalidade reflete

exclusivos vai acontecer (ruptura ou reconciliação). Em todas

o conteúdo relacionai de volta no indivíduo. O “o que” de que

as situações nas quais a experiência do afeto de vitalidade foi

se trata é sentido com o algo que cada indivíduo tem dentro de si, com o um a função de seu ponto de vista particular na situação. Ponto de vista: um panorama sobre o conteúdo. O

148

29 Sobre a conversão do afeto envolvente em conteúdo emocional, cf. Massumi, “Fear (The Spectrum Said)” op. cit., pp. 37-38.

149

desenfatizada em relação ao afeto categórico, de modo que o

ao m elodram a, o qual dedilha as cordas do já reconhecível

lado em ocional da m oeda afetiva sempre caia com a face para

no violin o da sensação. O m elodram a, e mais am plam ente

cima, há duas alternativas hedônicas: prazer ou dor; feliz ou

o histrionism o, não é só um a variação da em oção hum ana

triste. Hollywood, aí vam os nós.

entre outras. É seu epítom e.

A intensidade do entusiasm o do corpo anim al é, por co n ­

A em oção hum ana é a sensação lim itada a repetir-se, na

traste, não hedônica; e com porta uma carga de sensações com

medida do possível, dentro de parâmetros conhecidos: a velha

qualquer núm ero de resultados m utuam ente inclusivos a

ladainha. A intensidade do afeto de vitalidade, por outro lado,

cada passo do cam inho, não som ente dos dois convenciona­

sempre enfatua vitalm ente a si mesma. Seu confinam ento é

dos. A intensidade é, por natureza, qualitativam ente extra:

contravital. É a antivida animal clam ando contra o excesso

um a mais-valia de vida. Ela responde apenas a critérios ima­

inventivo. A excessividade que resta na emoção é uma expres­

nentes pertencentes à sua própria carga de potencial, não a

são do afeto de vitalidade e do entusiasm o do corpo pressio­

critérios genéricos de ju ízo aplicados de fora. Em si, é sin­

nando para se fazer sentir. O restante do excesso na emoção é

gularm ente inqualificável. “F e liz” ou “triste ” , até m esm o

vestigialmente lembrado na raiz etim ológica da palavra. E-mo-

“prazer” ou “dor”, nem sequer com eçam a expressá-lo. Feliz e triste, dor e p razer são experim entad os em graus quan­ titativo s, com o um term ôm etro de sensação vital, ou um

vere: m over(-se) para fora; superar-se dinamicamente. Quando o entusiasmo do corpo vem a ser emocionalmente contido, fica pressurizado p elo confinam ento. Só pode ser

p lu v iô m e tro cap tan d o lágrim as. A in ten sid a d e da v ita li­

expresso de m aneira distorcida. Ele se expressa não com o

dade m arcada pelo entusiasm o do corpo é im ensurável. É

um m ovim ento de autossuperação-em -devir, m as apenas

p uram ente qualitativa. N ão há com o m edi-la. É som ente p en sável-realizável, sen tid a com um e x ce sso e m o cio n a l­

com o um (de form a freqüente e em baraçosa transform ado

m ente inexpressível de sua própria qualidade de vida. Em

erroneamente com o paixão animal). A sentim entalidade iso­

outras palavras, só pode ser intuitivam en te entendida ao

la-se até m esm o dessa saída de em ergência histriônica, cons­

vivo. N unca pode ser com pletam ente analisada, aposteriori,

trangida aos m oderados graus medianos do term ôm etro do

em clichê) estar em ocionalm ente fora de controle (tom ado

co m o em oção (que sem pre convida a um a superinterpre-

histrionism o humano-emocional. Na escala humana de em o­

tação, quando não dada com o certa). É algo sobre o que de

ção, a simpatia animal é traduzida em seu análogo humano

fato podem os pensar; mas cada vez que pensam os nela, esta­

esmaecido: empatia. O epítom e dessa tradução é encontrado

m os efetuando-a de novo, de m odo diferente, num p o ten ­

no m elodram a (a mágoa e a pena).

cial realmente sentido. O conteúdo em ocional, isolado com o

A sentim entalidade faz com o se não houvesse nenhum a

tal da força perform ativa do afeto de vitalidade, está sob o

saída além das alternativas já conhecidas. M as sem pre há

dom ínio daquilo que já está dado. É um a das expressões

algo que escapa ao confinam ento, ainda que isso não co n ­

m ais hum anas da dependência genérica em relação ao que

siga achar por onde se expressar. Há um a contrapressão ten-

já foi tem aticam ente expressado. É por isso que ele se presta

dencial ao confinam ento. Há sem pre algo revolvendo nas

150

151

m icrofissuras da estru tu ra da personalidade hum ano-polí-

entendida no sentido imitativo, nunca faz “ com o se” .30A im i­

tica, preparando-se para vazar. É tão anim alm ente certo ser

tação é a identificação quando projetada de volta à sua fonte,

esse o caso que se torna possível utilizar a sentim entalidade

sobrepondo a form a do outro no espectador. É uma sobrepo­

com o um índice contraintuitivo de um devir-em-espera. Há

sição de volta à fonte a partir da qual em ana a identificação

um a positividade paradoxal ao sentim ento com o um signo

projetiva discutida acima. Em ambos os casos, a zona de indi­

do devir. É dem asiado fácil denunciar a sentim entalidade

ferença identificatória serve com o meio de transporte para a

(com o acabamos de fazer). Mas talvez a denúncia não venha

mesmidade da forma. Na visita ao zoológico, a antroforma se

ao caso. Talvez o que esteja em questão seja outra coisa. E tão

anamorfiza no animal. Na imitação, o m ovim ento vai na dire­

fácil denunciar a sentim entalidade que a própria denúncia

ção oposta. É a forma do animal observado que se anamorfiza

se torna uma m elodia embotada. É m uito fácil investir em o­

no espectador humano, revestindo-o com um m otivo animal.

cionalm ente na denúncia. O problem a é que a denúncia, ela própria, é m uito humana.

É um a reprojeção secundária — um a retrojeção distorcida — condicionada por um a projeção ana-antropom orfizante

Denunciar é uma coisa. Traçar uma cartografia do gesto vital

prévia. Som ente hum anos im itam animais. Até m esm o nas

é outra. Todas as ações e sensações são gestos vitais de uma

situações mais íntimas e humanamente ordenadas nas quais

maneira ou de outra. Até mesmo o mais antivital dos gestos

os animais convivem com os hum anos, no papel do animal

borbulha de vida em algum nível. Uma cartografia dos gestos

de com panhia ou na criação de animais, eles jam ais imitam

vitais registra essas borbulhas. Ela desce ao nível das micro-

os hum anos. Eles se relacionam com eles. N esse sentido, a

fissuras para intuir qual o potencial de singularização que elas

identificação só vai num sentido.31

anunciam . Isso só pode ser uma cartografia vivida fazendo com que o tema seja de novo formativo — infectável de uma maneira inventiva, vitalmente improvisável. Em vez de reprisar a m esm a e velha trilha sonora, a cartografia vivida do senti­ mento reencena a situação, ajustando-a para que ultrapasse a si mesma. Isso requer que o indivíduo assuma completamente sua implicação transindividual na situação. O confinam ento na emoção é traduzido de volta em lampejos de potencial de escape transsituacional. A reterritorialização da paixão animal em emoção humana é atraída de volta para uma desterritorialização potencial. O humor emocional basicamente estático é traduzido de volta ao modo condicional da possibilidade ativa. A sentimentalidade “faz como se” ... (como se não houvesse saída além da alternativa já conhecida). A cartografia vivida,

152

jo Como parte de uma constelação conceituai distinta, o “ como se” pode ser tomado num sentido de potencialização estética. Cf. “Just Like That” (Manning e Massumi, Thought in the Act op. cit., pp. 31-58), no qual a questão conceituai é a relação entre linguagem e movimento. 31A atenção crítica à dinâmica humana de identificação possibilita estratégias para uma reivindicação de treinamento e de domesticação, a despeito das assimetrias de poder autoevidentes, como nos trabalhos de Donna Haraway (When Species Meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007) e Vinciane Despret (Despret e Porcher, Être bête. Paris: Actes Sud, 2007). Parenteticamente, há uma interpreta­ ção errônea, em Haraway, da infame asserção de Deleuze e Guattari de que “todos aqueles que amam os gatos, os cachorros, são idiotas” (Mil platôs, v. 4 op. cit., p. 21). A citação é tomada fora de contexto. Deleuze e Guattari estão falando especifica­ mente acerca da familiarização edípica dos animais domésticos (gatos e cachorros tratados sentimentalmente como crianças humanas). A crítica é contra esse gesto humano de identificação projetiva. Ela não se dirige, de modo algum, a cães e gatos, ou pets em geral — ou tampouco a humanos que têm animais de estimação, em geral. Qualquer animal, continua a passagem, até mesmo cães e gatos, até mesmo

153

A cartografia vivida jam ais im ita. Seu elem en to não é o

dim ensão de desterritorialização potencial na brincadeira.

im itativo “ com o se” . E o “ assim” inventivo. O “assim ” é o

Algo borbulha, e a catálise incipiente que isso representa per­

“ com o se” com um detalhe extra que excede todas as expecta­

tence não à form a animal entendida num sentido estático e

tivas. Fazer “ como se” é reproduzir uma forma. “Fazer “assim”

substancial, mas sim à forma dinâmica da consciência primá­

confere à form a um a virada singular. Traz autossuperação à

ria simpática, inspecionando a situação a partir da perspectiva

form a, não por m eio de projeção, mas de um gestual -esco

animal integral de sua capacidade de superar o que está dado.

criativamente catalítico. Quando uma criança humana brinca

N ão subestime os poderes vitais de “ im itação” animal.

de animal, é fácil confundir o que ela está pensando-fazendo

Pense num a criança brincando de animal. D ecerto é fácil

com um jo g o hum ano de im itação, com o se a criança esti­

sentim entalizar a cena. Mas e se a levarm os a sério, isto é, se

vesse tentando fazer com que a própria forma se conformasse

observarmos os seus aspectos que são verdadeiram ente lúdi­

com a do animal. É tudo tão fo fo e facilm ente sentim entali-

cos no sentido mais criativo? Sim ondon escreve que a cons­

zado. Mas, de acordo com Ruyer e Simondon, a imitação é um

ciência do animal de que a criança dispõe envolve muito mais

conceito mal construído. N a realidade, nunca simplesmente

que um simples reconhecimento de sua form a substancial.33E

se imita uma forma, no sentido de se conformar à forma dada

só olhar para um tigre, ainda que de maneira fugaz e incom ­

de outro ser. Pode-se certam ente fazer com o se estivesse efe­

pleta, seja num zoológico, livro, filme ou vídeo, e pronto! A

tivam ente imitando. Entretanto, o que acontece é outra coisa,

criança é entigrezada. Transform ação-in-loco. A própria per­

na verdade, tácita e inexpressivamente. Com o diz Ruyer, “só

cepção é um gesto vital. A criança im ediatam ente com eça não

se pode imitar aquilo que se é quase capaz de inventar”.32 Aquilo

a imitar a form a substancial do tigre que acabou de ver, mas

que é sentim entalm ente considerado imitação é, na verdade,

a dar vida a ela — dando a ela mais vida. A criança brinca de

a catalisação de um germ e de invenção. Ele pode cair no solo

tigre em situações nas quais nunca viu nenhum tigre. Mais que

infértil da fam ília hum anam ente-política, com sua inclina­

isso, ela brinca de tigre em situações em que nenhum tigre

ção à edipianização. Ainda assim: sem pre há aquela outra

jam ais foi visto, nas quais nenhum tigre terreno jam ais colo­ cou a pata. A criança imediatamente se lança num movimento

animais de zoológico, pode participar de devires com os humanos (p. 22). “ Haveria animais edipianos, com quem se pode ‘brincar de Édipo’, fazer família, meu cachorrinho, meu gatinho e, depois, outros animais que nos arrastariam, ao contrário, para um devir irresistível? Ou então, uma outra hipótese: o mesmo animal poderia estar tomado em duas funções, dois movimentos opostos, dependendo do caso? (p. 12, tradução modificada). Deleuze e Guattari claramente pendem para o lado da segunda hipótese: não é uma questão de uma característica essencial qualquer dos humanos ou dos animais, mas sim de “funções e movimentos opostos” . 32 Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., p. 138. Cf. “É sempre o imitador quem cria seu modelo e o atrai” (Deleuze e Guattari, Müplatôs, v. 1 op. cit., p. 23). Sobre a crítica de Deleuze e Guattari acerca da imitação em relação com o devir-animal, cf. ibid., pp. 19-20; Müplatôs, v. 4 op. cit., pp. 17-20).

154

de superação do que está dado, perm anecendo de m odo notá­ vel fiel ao tema do tigre — não convencionalm ente, mas a partir do ângulo de sua potencialidade processual.34

33 Simondon (Uinformation à la lumière des notions deforme et d’information op. cit., p. 236). Cf. também o comentário de Muriel Combes (Gilbert Simondon and the Philosophy ofthe Transindividual op. cit., p. 27). 34 Para uma análise complementar de um encontro humano-animal lúdico, num zoológico, entre um bonobo adulto e um adulto humano, cf. Manning, Always More Than One op. cit., pp. 210-214).

155

Perm anecer processualm ente fiel a um tem a vital não tem

N ão há sem elhança entre a form a da criança autoperfor-

nada a ver com reproduzi-lo. Pelo contrário, envolve dar a

mando tigrescam ente e a form a visível, corpórea de um tigre.

ele um a nova interpretação, no sentido m usical de d esem ­

A criança não recebe e reproduz um a imagem visível do tigre.

penhar, dele, uma nova variação. A criança não imita a form a

Em v e z disso, a tigretude anima visionariam ente a corpora­

corporal visível do tigre. Ela prolonga o estilo de atividade

lização da criança, na direção de um a diferenciação. É pre­

do tigre, tran sp osto nos m ovim en tos da própria co rp o ra ­

cisam ente esse processo que é definidor da imagem. N ão há

lidade da criança. O que a criança captou fo i um vislum bre

algo da ordem de uma imagem passiva. N ão há algo da ordem

do dinam ism o do tigre com o um a form a de vida. A criança

de um a im agem privadam ente recebida na interioridade do

viu o afeto de vitalidade do tigre: os poderes de vida p oten­

sujeito. Todas as im agens são ativas e suas atividades ocor­

cialm en te criativos en vo ltos na form a co rp o ral visível. O

rem situacionalm ente, ou seja, relacionalm ente. O tigresco

afeto de vitalidade do tigre perpassa o que um a análise fo r­

ruge enquanto form a dom inante dessa situação de brinca­

mal pode isolar com o sua form a corporal, mas nunca co in ­

deira. Ele carrega um potencial análogo enquanto oposto ao

cide com a form a visível. O s poderes de vida que chegam à

poder conform ativo. O potencial análogo é o poder da varia­

expressão através das deform ações da form a arrebatam a

ção integralm ente conectada, da m útua inclusão diferencial.

form a para dentro de seu próprio dinam ism o supernorm al,

A criança não p roduz um a corresp on d ên cia conform ativa

o qual se m ove através da situação dada em direção a outras

entre sua própria form a corporal e a do seu análogo de tigre.

m ais abaixo da fila. Esse m ovim ento transsituacion al está

Ela em presta entusiasticam ente sua própria corporalidade à

em excesso em relação à form a. É o próprio m ovim ento de

in-form ação lúdica por m eio da form a dom inante da tigre­

autossuperação processual da form a visualm ente dada. Isso

tude sob deform ação visionária e variação.

é o que a criança viu — tu d o num instan te, num lam pejo.

Os g esto s lú d ico s da criança en vo lvem um a elaborada

N ão só um a form a animal genérica: um m ovim ento vital sin­

análise enativa daquilo que está dado nas situações em que

gular arrebatadoram ente im anente à form a visível. O que

um tigre possa se encontrar, extrapolando as posturas típi­

as crianças veem : a im anência de um a vida. N ão “ o ” tigre:

cas da form a corporal visível e lançando-as ao m ovim ento

tigretude. As crianças não divisam a form a do tigre. Elas têm

im provisacional de um a cartografia vivid a que possui sua

um a visão in tu itivam en te e stética do tig re sco com o um a

p rópria atividade. Em que circu n stân cias um tigre ataca?

form a dinâm ica da vida. É isso que elas transpõem quando

O que esse felin o tem que o p erm ite nadar, devorar um a

brincam de anim al. N ão sobre suas próprias form as, mas

criança, escalar um a árvore? Espere: a -esquidade de um

dentro de seus próprios m ovim entos vitais. Isso é o que W hi­

tigre é suficientem ente felina para inspirá-lo a escalar, a ser

tehead quer dizer quando afirma que um sinônim o de intuir

determ inado, a ser inventado? Q uando é que um tigre viaja

é “visionar” .35

para ou tros planetas? O que faz um tigre voar? A análise enativa da tigretude feita pela criança não parte das form as

35 Whitehead, Process and Reality op. cit., pp. 33-34.

156

visuais captadas estaticam ente com o posturas. Ela parte de

157

situ ações dinâm icas que esten dem a -esquidade hum ana

identificatório do humano para si m esm o). A criança se situa

para além de todo território conhecido.

no cam po de tensão transindividual da situação, polarizado

As situações de partida são abordadas de uma perspectiva

em co m p o siçã o co n tra p o n tu a l.37 N a brin cad eira in tu iti­

que não é a do tigre, mas também não exatamente a da criança.

vam ente visionária da criança, o ponto do tigre in-form a o

De acordo com Simondon, o gesto lúdico de brincar de animal

contraponto do devir-tigre da criança. A relação é imanente.

expressa a “orientação” da situação de partida “ integralmente”,

N ão é uma relação de ação-reação, no sentido corrente, que

como um complexo. Ele explica que, com isso, quer dizer que a

co n ota um a relação extrínseca. O que está em jo g o é uma

situação é captada a partir do ponto de vista de suas “polarida­

relação imanente de modulação. A criança não imita o tigre a

des” e “ tensões”.*6 Esse é um modo de dizer que a análise é afe­

certa distância. A criança é en-tigrada, numa vivida e infinita

tiva, não (con)formal. As polaridades têm a ver com os papéis

proximidade da tigretude.

diferenciais dramatizados na brincadeira, bem como com seus

Que criança brinca de animal só uma vez? Brincar de ani­

potenciais. Cada movimento de uma criança-tigre inclui o deli-

mal é um a vo cação séria. O entusiasm o do corpo na brin­

neam ento negativo da ação ou da reação dos outros partici­

cadeira move-se de situação em situação, de brincadeira em

pantes na situação, ainda que lá estejam apenas virtualmente.

brincadeira repetidam ente variada. As variações seriais sobre

Esses entalhes de outros papéis traçam a composição afetiva da

a tigretude compõem uma cartografia vivida da corporalidade

experiência: modos recíprocos de afetar e ser afetado na situa­

tigresca. Toda form a de dependência em relação ao que está

ção representando a si mesmo na ação-reação. Ação-reação: o

dado, toda form a de dependência vivida a que uma corporali­

ponto-contraponto gestual. A “compleição afetiva” da situação

dade tigresca é suscetível é dramaticamente superada. Todas

discutida anteriormente tem a ver com a ponderação relativa

as composições afetivas experimentadas derivam, por extrapolação

do afeto categórico e do afeto de vitalidade. A “composição afe­

vital, da polaridade espetáculo-espectador da cena primitiva da

tiva” tem a mesma complexidade a partir do ângulo de como

percepção animal que catalisou a atividade contínua. Todas

os gestos compõem-se em contraponto. Com pleição afetiva e

as variações sobre o com plexo afetivo que se experim enta já

composição afetiva são dois modos complementares de anali­

estavam m utuam ente incluídas na form a dinâm ica em brio­

sar o mesmo complexo. A simpatia engloba ambos.

nária da unicidade do gesto perceptual que desencadeou as

O ponto principal é que a criança não se coloca na form a

séries de brincadeiras.38

do tigre, tam pouco coloca a form a do tigre em si mesm a (o que, em term os identificatórios, redunda na m esm a coisa, a depender se olham os do ângulo da p rojeção hum ana no animal ou da contraprojeção do animal retornando o gesto

36 Simondon, Vinformation à la lumière des notions deforme et d’information op. cit., p. 236; grifo nosso.

158

37 Cf. a “teoria composicional da natureza” de Jacob von Uexküll (A Foray into the Worlds of Animais and Humans, trad. ing. de Joseph D. 0 ’Neill. Minneapolis: University o f Minnesota Press, 2010, pp. 171-194) e a variação sobre ela realizada por Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., p. 120. Cf. também Deleuze, Espinosa -filosofia prática, op. cit., pp. 127-135). 38 Ronald Rose-Antoinette (Vimage est une expérience, tese de doutorado. Paris: Universidade de Paris 8, 2013), trabalhando especificamente com a imagem cinemática, desenvolve uma ontologia da imagem como “transaparição” consonante

159

A tigretude começa a vazar pelas variações seriais. Com eça a

brincadeira animal do hum ano à m ais alta potência, a uma

superar as situações dadas, nas quais razoavelmente podemos

pureza de expressão supremamente tensorial: o puro extrasser em devir.

esperar que um tigre se encontre, e os m odos de importância que essas situações apresentam. As tensões da corporalidade tigresca in-formam a corporalidade infantil na brincadeira. A prim eira anima im anentem ente a segunda — e, em contra­

Qual a utilidade do devir-animal da criança? Para que serve o extrasser? Estritam ente falando: nada. M as e stilo s in ven ta d o s de alça m en to de vo o , m odos

partida, é animada por ela. As séries de repetições estendem

im provisados de ultrapassar o que está dado na abstração

as tensões tigrescas, prolongando-as a um tensor individual. As

vivida exploratória e órbitas experim entais de fuga das situa­

tensões situacionais colocadas em jogo subm etem -se a uma

ções conhecidas e de seus tem as gen éricos podem sugerir,

pressão inventivam ente deform ante que as vetoriza na dire­

p or analogia, linhas de fuga criativas para fora das outras

ção do supernormal. A tigretude alça voo. O que está dado da

situ ações em que um a fo rte d ep en d ên cia ao já -ex p resso

situação tigresca, tal com o convencionalm ente conhecida, é

im põe-se com o peso esm agador do im perativo de co n fo r­

superado, seguindo os tensores exploratórios extrapolados

mação. No suplem ento anterior vim os que a m etam orfose

do entusiasmo do corpo da criança.

anim al de Kafka abriu cam inhos poten ciais para além dos

É isso que é a simpatia. N ão há nada mais dinâmico. Não

im passes da estrutura confinadora da fam ília edípica. Bate­

há nada menos atolado no conform ism o. Nada menos senti­

son aponta na m esm a direção: não há cura, ele diz, a não ser

mental. Nada menos projetivo e identificatório. A decolagem

que o p ro cesso lú dico seja capaz de iniciar a si m esm o de

da brincadeira eleva a tigretude a altitudes em que nenhum

dentro da situação patológica.39

tigre ou nenhum a criança jam ais colocou seus pés ou patas:

Cura: um a palavra ainda m uito com prom etida pelo para­

transportou-os, ju ntos, à pura expressão. A pura expressão,

digma patológico. Palavras melhores: reanim ação, revigora-

sendo abstração puramente vivida, é um território existencial

ção. T udo diz respeito a reanim ar a vida. Cada revigoração

onde ninguém jam ais coloca os pés. C om o pura expressão

segue o itinerário de uma cartografia vivida de natureza tran­

animal, a brincadeira de criança participa do m esm o m ovi­

sindividual, ludicam ente tensorada em direção ao supernor­

m ento extraexistencializante que o jo g o literário de devir-

mal. A revigoração lúdica é expressiva. É inventiva. Em sua

-animal descrito no suplem ento 1. O devir-anim al escrito é

transindividualidade, é ética. Em sua -esquidade, é estética.

um a extensão da brincadeira de criança, que, ela mesm a, é

Em todos os seus aspectos, é afetiva. Analítica é o que ela não

um a extensão da corporalidade animal enquanto anim ada

é, nem no sentido psicanalítico nem no formal. Tam pouco é crítica, no sentido denunciatório.

pela ten dência supernorm al do instinto. E screver eleva a

O que a brincadeira animal do humano aporta à zoé-logia ou ao pensam ento da política humana? Ela contribui com a ideia a essa abordagem da percepção. A imagem é analisada em termos de força expres­ siva imanente de intensidade transindividual, com especial atenção para sua dimensão mais-que-humana.

160

39 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., pp. 192-193.

161

de que até m esm o os com plexos espetáculo-esp ectador —

e sentim entalm ente selado. Irá term inar seu curso. Porém:

cuja própria percepção é o caso-limite — são germinalmente

seu fim será o que está dado na próxima pulsação do processo,

in-form ados por, pelo menos, turbilhões de devires incipien­

que irá disparar em si mesmo uma atividade numa dependên­

tes. E com a ideia de que essas agitações podem ser afirmadas;

cia herdada com relação a este já expresso recém -cunhado:

e de que, ao afirmá-las, o hum ano assum e sua animalidade.

um a im portância vivida recém-cunhada. Material para outra

Isso é verdade mesmo para os com plexos espetáculo-especta-

rodada de tendência supernormal, graças à abstração vivida.

dor da mídia popular e das indústrias de entretenimento, bem

E assim segue o ciclo afetivo da vida, espiralando-se sempre

com o, mais abjetamente, para o zoológico. Quantas crianças

-escamente em tom o do centro de gravidade da corporalidade

não voltaram do zoológico para casa em plena tigretude? Ou

e do conteúdo tem ático.

em autoinspeção serpentesca? Ou numa paródia tarantulesca?

Considerada desse ângulo, a expressão da tendência super­

O s devires-animais arranham, mordem e picam nas situações

normal na form a dinâmica do afeto de vitalidade é uma verda­

de vida norm opática e sociopática de um m odo que só são

deira produção em série de importância — um a contínua rein­

capazes os gestos que não denotam aquilo que iriam denotar.

venção daquilo que é im portante para a vida. Isso significa

E crucial m anter a distinção entre afeto de vitalidade e

que uma pura form a de expressão — seja deslizando sobre a

afeto categórico. O afeto de vitalidade, não sendo hedônico,

barriga, seja escrita à mão — carrega um significado potencial.

é irredutível a qualquer afeto categórico. Pode ser agradável,

A fuga que ela inventa em intensidade anuncia im portantes

mas tam bém pode morder. A brincadeira e sua política não

m odos de vida ainda por vir. Um a expressão ludicam ente

são necessariam ente alegres e prazerosas. De fato, nunca o

pura ocupa uma zona de indiscem ibilidade entre o sério e o

são, no sentido categórico. Elas são, em todos os casos, inten­

frívolo. Quando levada a sério, soa frívola. Mas quando depre­

sas. Todo afeto de vitalidade é uma form a dinâm ica de inten­

ciada, deixa passar batido que há algo extra se agitando, já

sidade que, em si, é desqualificada em relação ao conteúdo

enrolado, pronto para morder.

em ocional da situação dada. N o m ovim ento de invenção

N a busca pela política animal não é necessário abster-se de

cuja form a dinâmica é o afeto de vitalidade é precisamente o

denunciar os com plexos de espetáculo-espectador e a estru­

conteúdo da vida que pode acabar transform ado. O afeto de

tura opressiva que eles enquadram. Tampouco é indicado parar

vitalidade é a form a dinâmica de expressão do movim ento de

de analisar as formas de poder, sejam elas da arena midiática

devir que leva à reinvenção do conteúdo da vida. O que ele irá

ou da política, em seu entendim ento tradicional. Mas aquilo

trazer, uma vez percorrido seu curso, terá sido o expressado

que é exigido é não contentar-se com a denúncia ou com aná­

da situação pela qual seu m ovim ento de invenção se arreba­

lises. Sob o espetáculo... porco-espinhitude. Sempre e por toda

tou. Após o ocorrido, esse expressado será total e com pleta­

parte há explorações supernormais germinando, expressões

m ente reconhecido e autorizado com o o “ o que” ao qual a

para se haver com a -esquidade do anim al, espinhos para

situação disse respeito. Retroativamente, irá se tornar o con­

lançar, portas de fuga para abrir analogicam ente, situações

teúdo convencionalm ente reconhecido da situação, assinado

para repolarizar, tensores para extrapolar, potencialidades

162

163

inauditas para inventar, conteúdos de vida para reinventar,

As respostas para essas perguntas m erecem um desenvol­

tudo através dos gestos revigorantes de uma cartografia vivida.

vim ento aprofundado que está para além do esco p o deste

Sempre há, em todo lugar, algo a ser feito politicam ente. Pois

ensaio; para além, de fato, do escopo da escrita. Não é na pura

não há lugar sem corporalidade e sua dependência ao que

expressão que o tipo de m ovim ento pode ser levado adiante

está dado. Os im perativos da im portância já expressa estão

de m odo a m etam odelar a superação da estrutura zo o -ló ­

por toda parte em que chegar a vida. Por toda parte em que

gica numa verdadeira reinvenção da im portância vivida das

a herança é sentida com o sufocante, por toda parte em que o

relações animal-humano. N um a arena tão carregada de co r­

já-expresso fala num tom imperativo demais, por toda parte

poralidade e com plexidade afetiva, um a diversidade de pen-

em que uma corporalidade se choca contra um impasse estru­

sares-fazeres exploratórios e dram atizações experim entais

tural em seus esforços de revigorar a si mesma, por toda parte

— dentre muitas, um a arena da atividade expressiva — deve

em que a sentim entalidade confina em ocionalm ente o afeto,

vir à expressão recíproca. Som ente um a ecologia enativa de

há trabalho a ser feito, repetindo a situação e brincadeira a ser

diversidade de práticas animais, em tensão criativa de mútua

reelaborada enativo-cartograficamente.

inclusão diferencial, pode conseguir essa façanha. O que o

A zoo-logia é um convite à viagem animal. Caso você ainda

puro devir-animal-escrito da filosofia, tal com o empreendido

não esteja convencido da pertinência de viagens de desterri­

neste ensaio, pode fazer é brincar de deflagrar a mínima dife­

torialização tão expressamente supérfluas, cuja seriedade está

rença que é a condição de em ergência abstratam ente vivida

sempre m uito à frente delas, então considere que, se há uni­

do m ovim ento de superação do que está dado, ajudando a

versais da existência humana, a propensão infantil a brincar de

alavancar a mais-valia de vida potencialm ente ético-estética

animal está certam ente no topo da lista. Nunca houve criança

e in-formação.

que não deveio-anim al ao brincar. O projeto da política ani­ mal: fazer com que o mesmo possa ser dito dos adultos.

Pode ser dito que a política animal com o concebida aqui é a representação ecológica de uma filosofia ativista e pluralista.

Q ue estratégias específicas a p olítica animal deve seguir

Reciprocamente, a filosofia animal, entendida de form a super­

com relação à política dem asiado hum ana do zoológico? O

normal, é a in-atuação de uma política da brincadeira singular.

gesto denunciatório deveria ser favorecido com o um a exce­ ção nesse caso, perante o cinism o estrutural do zoológico, o sufocam ento da vitalidade de seus internos e o revestim ento de sua própria barbárie? Acaso a nova vocação do zoológico é uma arca para animais ameaçados que é suficiente para resga­ tá-los? Se o zoológico fosse abolido, as rem anescentes expe­ riências dos animais, baseadas em vídeos, às quais a maioria das crianças estaria então confinada, carregariam tão intensa­ mente um aprendizado de escape do humano pelo humano?

164

165

SUPLEMENTO 3

Seis teses sobre o animal que devem ser evitadas

1. N ão presum a que você tem acesso a um critério para sepa­ rar categoricam en te o hum ano do anim al. O critério m ais am plam ente convocado é a linguagem . Se a cultura é assi­ m ilada à linguagem , com o freq u en tem en te o é, então ela tam bém resvala para a com p etência exclusiva do hum ano. E ntretanto, com o vim os, a linguagem já está presente, em potencial, na brincadeira animal. A brincadeira anim al p ro­ duz, de fato, as reais condições de em ergência da linguagem. Uma v e z que essas condições concernem aos poderes reflexi­ vos da vida, um m odo ou grau de consciência já está em vigor. Então não coloque na cabeça que a consciência vai prover a linha divisória. Considerando que a linguagem humana, em suas form as m ais elaboradas, im plem enta seus poderes de invenção mais puram ente expressivos, em vez de se separar do animal, ela retorna instintivam ente a ele, na form a super­ norm al com a qual a vida animal sempre esteve acostum ada a ultrapassar a si mesma. 2. Não confunda criatividade com um desvio do instinto para os reinos sim bólicos (sublim ação). Isso ainda é um pouco m elhor do que a abordagem oposta, de confinar a expressão às molduras constritoras da função e da adaptação. De qual­ quer maneira, a criatividade é reduzida a um epifenôm eno e o estilo e a graça de seus algo-extras expressivos, à superfluidez e à ornam entação. N a natureza, a criatividade e o instinto estão inextricavelm ente entrelaçados. Eles estão presentes con ju n tam en te no ato e atuam ju n to s no arrebatam ento

167

adiante da ten d ên cia supernorm al qu e co n d u z am bos a potências mais elevadas.

nas obras de ficção científica dos anos 1950. Mas se conside­ ramos que o humano se torna mais animal quanto mais longe leva o seu poder mental; que ele se torna mais vital quanto

3. N ão profetize com tanta seriedade o fim do hum ano e a

mais vive a abstração, então fica ainda mais difícil imaginar

alvorada de um a era pós-hum ana. Pronunciam entos com o

que o nó da mútua inclusão — que une animalidade, vida e

esse presum em , m u ito freq u en tem en te, a habilidade de

consciência — possa ser desatado. Talvez não esteja fora de

separar de form a categórica o humano do animal. Ainda que

questão que um dia essa mútua inclusão possa ser, ela mesma,

o hum ano seja entendido com o estando em pressuposição

maquinada. A natureza, afinal de contas, é cheia de artifícios.

recíproca com o animal, a transcendência do humano é tam ­

De fato, não há nada mais efetiva e paradoxalm ente artificial

bém a transcendência do animal. Invocar o pós-hum ano é

do que a natureza sob a propulsão de sua tendência constitu­

invocar o pós-animal. Mas, então, se o animal é im buído de

tiva voltada para o supernormal.

consciência, de m odo que consciência e vida animal andam

A essa altura vo cê pode sim plesm ente se livrar do em bo­

de mãos dadas, com o querem Ruyer e Bergson, o pós-animal

tado cortejo dos “p ós” , pois a questão é reingressar o m ovi­

tam bém seria o pós-vital. Isso significa que, a fim de chegar ao

m ento do supernorm al na direção da autossuperação, ten-

tão almejado “pós-” , seria necessário arrancar a consciência

sorando-o para mais longe, através de qualquer artifício que

e a vida dos territórios existenciais existentes do humano e

pareça funcionar, em v e z de pular para um novo quadro. A

do animal, e confiná-las na tecnologia. O “pós-” chega, assim,

questão tod a é só aparentem ente apocalíptica. Em últim a

à já tão batida noção do “ciborgue” com o vida prostética —

análise, é lúdica. Tecnicamente lúdica: uma questão de encon­

vida radicalm ente deslocada e prolongada para além de seu

trar o artifício correto e deixar-se arrebatar por ele.

fim. Entretanto, a imagem do ciborgue hiperfuncional é muito

Seguindo esse movimento, nunca se chega à finalidade apo­

frequentem ente superada em popularidade pelo arrastar dos

calíptica da era pós-humana, categoricam ente além da esfera

m ortos-vivos. A cascata de pós---- hum ano, animal, vital —

humana. Em v e z disso, sem pre se depara com o já mais-que-

deságua de m odo exangue no zum bi. Mas no zum bi a cons­

-humano: m utuam ente incluído no continuum animal integral,

ciência se eclipsa. Então, não se ganhou muita coisa, ao passo

na medida em que se segue o seu caminho natural em direção

que se perdeu mais do que sangue quente.

à sua autossuperação imanente. O m ais-que-hum ano: o ter­

E claro que ainda resta a opção de um retom o a um “pós-”

ceiro incluído do devir-anim al, sem pre-já em processo, no

pré-pós-cascata, de uma época anterior, quando não parecia

progresso do divertido peregrino rum o a seu próprio h ori­

totalm ente extravagante o fato de que a consciência pudesse

zo n te.1 C item os Judith Butler, que escreve a partir de uma

ser desacoplada da vida, e a consciência, conservada sozinha (ou p elo m enos a inteligência, sua prim a pobre intuitiva). Esse é o velho sonho da inteligência artificial, tal com o prefigurada enorm em ente na imagem do cérebro dentro do pote

168

1 Em Always More Than One, Erin Manning desenvolve um conceito de “mais-que-humano” como uma alternativa ao discurso do pós-humano. Seu conceito é derivado independentemente e não se refere à noção bastante distinta de mais-que-humano de David Abram (The Spell of the Sensuous: Perception and Language

169

linha filosófica m uito diferente, mas com a qual cruzam os

4. Não se confunda ao pensar que o mais-que-humano fica do

neste ponto: “Tanto a animalidade quanto a vida constituem

lado de fora, cercando o humano, no ambiente. O mais-que-hu­

e excedem tudo aquilo que chamamos de humano. O ponto

mano também está na própria composição do humano. Pois o

não é encontrar a tipologia certa, mas entender onde o pen­

corpo humano é um corpo animal e a animalidade é imanente

sam ento tipológico desm orona”.2Onde o pensam ento tipoló-

à vida animal (e vice-versa). Quanto mais a fundo se inves­

gico de separações categoriais desm orona será encontrada a

tiga a composição do corpo animal, mais se encontram níveis

necessidade — e a oportunidade — de em preender o projeto

de inumanidade. Processos físicos e químicos aninham-se no

positivo de construir uma lógica de m útua inclusão diferen­

corpo animal, não cedendo a ele nada da sua alteridade, ainda

cial dos modos de existência, e das eras da natureza, ou seja,

que contribuam para compô-la. Os processos fisiológicos em

mais para o escopo do animal-político.3

contínua operação no corpo contribuem com vários níveis de

Onde desm orona o pensam ento tipológico? Seria... desde

sensação não consciente in-formando a ação e a consciência.

o início, no fim e, mais especialm ente, no terceiro (que ele

Basta pensar na maneira com o o “cérebro intestinal” do sis­

ousa excluir): o meio.4

tem a nervoso entérico m odula a experiência consciente; ou nas inflexões do afeto, em segundo plano, pelos hormônios; ou

in the More-Than-Human World. Nova York: Vintage, 1997). Para Abram, o mais-que-humano se refere ao mundo não humano em oposição ao mundo humano. Concebido dessa maneira, o conceito valida o humano essencialmente como um sujeito fenomenológico, alienado pela tecnologia e pela vida moderna e convocado a superar essa alienação, renovando seus laços com a natureza — como se humano e natureza pudessem estar numa relação de mútua exterioridade, mesmo num movimento lapsariano.

na orientação contínua da experiência pelo sistem a proprio-

2 Butler e Athanasiou, Dispossessed: The Performative in the Political. Cambridge: Polity Press, 2013, p. 35.

m entos experienciais infraindividuais que ocorrem nesses

3 Para outra explanação, mais uma vez de uma perspectiva filosófica muito dife­ rente — que opera no limite da lógica tradicional da vida — , cf. Thacker, After Life. Chicago: University o f Chicago Press, 2010. Thacker não adere ao projeto positivo de construir uma lógica alternativa, preferindo trabalhar com as com­ plexidades aporéticas produzidas no limite da lógica tradicional, sob a égide do negativo (contradição).

Press, 2013) é uma proeminente exceção. Ainda que o discurso pós-humanista como um todo tenha extremo medo do instinto, a ponto de a palavra quase nunca aparecer — a não ser para ser jogada para escanteio. O continuum natureza-cultura é construído como pós-natural, precisamente a fim de exorcizar o instinto, consi­ derado como tendo sido deixado na lata de lixo da história natural pela reconstru­ ção artificial do continuum através das máquinas e da tecnologia. Repetindo: não há nada mais efetiva e paradoxalmente artificial do que a natureza sob a propul­ são de sua tendência constitutiva voltada para o supernormal — que tem tudo a ver com o instinto. As abordagens pós-humanas também conservam, como parte de sua herança dos estudos culturais, “o sujeito” como uma categoria analítica priyilegjada — isso é verdade até mesmo para Braidotti (The Posthuman op. cit.), que, nos termos das suas referências filosóficas, é o mais próximo da abordagem aqui desenvolvida. Em resumo, o pós-humanismo acadêmico é insuficientemente supem om al e muito severamente vacinado contra as subjetividades-sem-sujeito. Os pós-humanos, afirma Haraway, são irônicos. Mas: será que eles brincam?

4 Tratamentos acadêmicos do pós-humano abordam a questão, é claro, com muito mais nuances do que o pós-itinerário superficial aqui esboçado (Hayles, How We Became Posthuman: Virtual Bodies in Cybemetics, Literature, and Informatics. Chicago: University o f Chicago Press, 1999; Haraway, “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século x x ” in Tomaz Tadeu (trad. e org.), Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, pp. 33-118; Braidotti, The Posthuman. Londres: Polity Press, 2013). A maioria afirma que o animal e o humano, a natureza e a cultura, estão num continuum — Wolfe (Before the Law: Humans and Other Animais in a Biopolitical Frame. Chicago: University o f Chicago

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ceptivo; ou na aprendizagem do que é popularmente chamado de “mem ória muscular” ou, mais no escopo deste ensaio, no instinto. Todos estes são, por natureza, não conscientes. “ Sujeitos larvais” é com o D eleuze denom ina os acon teci­

171

níveis.5 O s sujeitos larvais são superjectos aninhados co n ­ tribuindo cum ulativam ente com suas form as de vitalidade assubjetivam ente-subjetivas para a inspeção integralm ente em ergente da consciência primária. A dim ensão do infrain-

p o r m ovim entos que o superam . Sua existência é membranosa e, com o todas as membranas, precária.9. L em bre-se: "N o fu n d o do hom em não existe nada de hum ano” .10

dividual é tão im p ortan te quanto a d o transind ividu al, e p ro cessu a lm en te in separável dela. As duas co n ectam -se diretam ente, entrando e saindo um a da outra, contornando frequentem ente a reflexão consciente. O feedback infra/trans ocorre na incipiência de toda experiência, atingindo ou não o m áxim o de sua reflexão consciente. O m odo com o esse circuito form ativo ativa o pensar-sentir da consciência p ri­ m ária para um a co lo ca çã o em ação é o qu e eu cham o de "atividade nua” .6 A atividade nua é o antídoto conceituai para a “vida nua” de Agamben, com toda sua dependência em relação à distin­ ção zoé/bios e sua preocupação fundacional com o estabeleci­ mento de uma fronteira entre o dentro e o fora (nem que seja apenas para suspendê-la na dialética-sem-síntese da inclusão exclusiva).7A atividade nua, de sua parte, constrói o dentro e o fora com o acionam ento e desligam ento de cada um deles: a mudança de fase designa os polos num m esm o processo de m útua inclusão. O transindividual se junta ao individual, que se desdobra de volta no transindividual.8 O mais-que-humano não está do lado de fora. Antes m esm o, o hum ano — onde ocorre por si só na natureza — está no meio, transecionado 5 Deleuze, Diferença e repetição op. cit., pp. 111,118,122-123,203. 6 Massumi, Semblance and Event op. cit, pp. 1-3,10-11; 2010. 7 Cf. Para mais sobre Agamben, ver notas 22 p. 98,7 p. 130 e 21 p. 141. 8 Em outros momentos chamei isso de “ retomo das formas elevadas”, para enfa­ tizar como as operações de linguagem efetuam, em particular, uma volta ao nível infraindividual de ação incipiente, onde figuram como um fator imediato em devir (Massumi, Parablesfor the Virtual, pp. 10-12,35-39,198-199).

172

9 Deleuze (Foucault, trad. bras. de Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2005, pp. 101-130) desenvolve uma teoria topológica similar do dentro e do fora em termos da dobra, assim como Simondon: “ as verdadeiras formas implíci­ tas [que correspondem aproximadamente aos sujeitos larvais de Deleuze] não são geométricas, mas topológicas” (Simondon, Uinformation à la lumière des notions de forme et d’information op. cit., p. 53). Para Simondon, “o vivente vive no seu limite”, concebido como uma membrana de mão dupla (p. 225). Uma vez que as formas implícitas se embutem umas nas outras de um modo complexo, a “ membrana” não é simplesmente redutível ao invólucro da pele, mas deve ser concebida de maneira fractal. Sobre topologia, cf. também Simondon, pp. 28,210-211,224-229, 254-304. 0 monadismo pós-leibniziano de sistema aberto proposto por Whitehead divisa uma infinidade de ocasiões atuais (também chamadas de entidades atu­ ais) embutidas umas nas outras. Ele enfatiza que os níveis se inter-relacionam não através de suas formas físicas, tampouco por suas conexões quantificáveis parte a parte, mas — de maneira mais abstrata — através de suas “formas sub­ jetivas”. Essas ele define qualitativamente, em termos afetivos (0 que eqüivale, aqui, ao “afeto de vitalidade”). Sobre a forma subjetiva como determinadora da inter-relação entre as ocasiões atuais e definida em termos afetivos, cf. Whitehead (Adventures ofldeas op. cit., pp. 176-177,182-183). 10 Lapoujade, Potências do tempo op. cit., p. 72. É a filosofia da animalidade de Niet­ zsche, tal como analisada por Vanessa Lemm (Nietzsche’s Animal Philosophy: Culture, Politics, and theAnimality ofthe Human Being. Nova York: Fordham University Press, 2009), que é a que mais se aproxima da presente explanação. Nietzsche abarca o instinto num continuum natureza-cultura/humano-animal; é exemplarmente sensí­ vel aos sujeitos larvais; desenvolve centralmente o conceito de subjetividades-sem-sujeito (feitos sem fazedores por trás); recusa-se a confinar a vida ao orgânico ou a atribuir uma linha divisória entre ele e a matéria; reconhece a centralidade do afeto; repensa a política como função da animalidade e, definitivamente, brinca com a linguagem. Lemm interpreta corretamente o “ super-homem” de Nietzsche não como uma superação da natureza, mas como uma reinvenção da natureza que possibilita ao humano superar a si mesmo. “No termo nietzschiano ‘super-homem’, o prefixo ‘super-’ não é usado nem para separar o humano do animal, tampouco para posicionar um acima do outro, mas para estabelecer distância suficiente [a diferença mínima necessária], de modo a abrir o espaço para um encontro agonístico” (p. 21). Agonístico: combatesco. A filosofia animal de Nietzsche é uma inversão do paradigma pós-humano. Para Nietzsche, “a natureza utiliza o humano como meio para sua própria compleção, e não o contrário” (p. 3).

173

5.Não tenha a esperança de que a categoria da matéria inorgâ­

Requeremos que [...] a noção de “vida” envolva a noção

nica irá salvar o dia categórico provendo um a linha divisória

de “natureza física” [...]. Nem a natureza física nem a vida

em pírica que perm itirá que você analise onde anim alidade,

podem ser entendidas, a não ser que possamos fundir as

consciência e vida com eçam e terminam. Ruyer:

duas como fatores essenciais na composição das coisas “realmente reais” , cujas interconexões e características

Em relação ao átomo, assim como para o ser vivo e o ser

individuais constituem o universo.13

consciente, não é possível separar o que eles são do que eles fazem [...] Enquanto houver a crença na “substância” mate­

P ós-pronunciam entos à parte, o que é requerido é um co n ­

rial tradicional, o tempo poderá ser concebido como uma

ce ito de “ atividade u n iversal” , que n aturalm ente se auto-

dimensão vazia através da qual a substância é passivamente

conduz para um a aposta na liberdade, estendendo a m útua

transportada. Quando o conceito tradicional de matéria é subs­

in clu são da anim alidade, da v id a e da co n sciên cia, assim

tituído pelo conceito de atividade, o tempo não aparece mais

com o do instinto, da intuição e da espontaneidade, na dire­

como um enquadramento vazio e alheio, e o tempo da ação

ção do lim ite especulativo da abstração vivida, fundindo a

[devir] deve ser visto como inerente ao tempo, à guisa de

n atu reza física co m o p o d er m en tal de ultrapassar o que

uma melodia temporal, um ritmo mnêmico próprio à ativi­

está dado.

dade. Há certa memória que é aquela com ritmos físicos [...] Há um isomorfismo perfeito entre a atividade finalista dos

Precisamente porque a pura animalidade é vivida como

organismos mais elevados e a atividade dos seres físicos [...]

inorgânica, ou supraorgânica, pode tão bem combinar-se

Nós devemos falar [...] da liberdade [...] dos seres físicos."

com a abstração, e mesmo combinar a lentidão ou o pesadume de uma matéria com a extrema velocidade de uma

A vida, escreve W hitehead, é uma “aposta na liberdade” .12Em

linha que é unicamente espiritual. Essa lentidão pertence

qualquer lugar do continuum — do humano às profundezas da

ao mesmo mundo da extrema velocidade.16

matéria, passando por tudo o que há no m eio; dos filhotes de lobo às gaivotas e m inhocas, para não m encionar as amebas

Essa “linha” é um a “força vital própria da Abstração” .17 Sua

— , a aívida’ significa novidade”.13O novo não possui enquadra­

“extrem a velocidade” e a intuição constituem um a só coisa.18

m ento predefinido: “não há lacuna absoluta entre ‘vivente’ e

E isso não porque tud o é orgânico ou organizado, mas, ao

‘não vivente” ’.14

u Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., pp. 158-160; grifo nosso.

15 Whitehead, Modes ofThought op. cit., p. 150.

12 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 104.

16 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5 o. cit., p. 212.

13 Ibid., p. 104.

17 Ibid., p. 213.

14 Ibid., p. 102.

18 Ibid., p. 212.

174

175

contrário, “porque o organism o é um desvio da vida” .19 Na

as espécies, tom am -se m uito m enos im portantes” .24 O que

intuição, “tudo passa entre os organism os” .20 “A vida espreita

im porta é a naturalidade da participação não natural na ten­

nos in terstício s” .21 N ão no organism o. N ão em nenhum a

dência universal, num a im ediatez transindividual da ativi­

organização dada. “ É evidente que, de acordo com essa defi­

dade cuja im portância é vivida, tal com o a abstração in-atua

nição, nem um a única ocasião pode ser dita viva. A vida é a

um pensar-fazer que aposta na liberdade em todo gesto vital.

coordenação das espontaneidades m entais no decorrer das

Nesse jogo ético-estético de relação, “tudo é político” .25

ocasiões de um a sociedade”, com “ so cied ad e” tom ada no sentido mais am plo de um agrupam ento de atividades que

6 .“ É a marca que faz o território”.26 Esse é um modo de dizer

participam do fazer de um acontecim ento.22

que o mapa enativo cria o território. N ão caia na armadilha

A vida, em todas as suas dim ensões, pertence ao transin­

da suposição do senso com um de que o que está em jo g o

dividual, nunca ao indivíduo considerado separadamente. É

preexiste ao sujeito já constituído, em interação funcional

no elem ento do transindividual que a vida se estende, pro­

com objetos sem elhantem ente pré-constituídos num enqua­

cedendo através de blocos qualitativos absorvidos num pro­

dram ento espacial já traçado. Por um lado, “as funções num

cesso de variação contínua, arrebatando tu d o em conjunto

território não são prim eiras” .27 Por outro, o enquadramento

num a unidade dinâm ica de m útua inclusão, enquanto que,

é sem pre excedido na abstração vivida. A realização do ato

ao m esm o tem po, dispersa a unidade num a m ultiplicidade

expressivo coloca em m ovim ento o espaço de superação de

de variantes sim ultaneam ente constrastantes que vêm mar­

sua própria operação — embora ele não seja tanto um espaço,

car de form a singular cada passo ao longo do cam inho, para

m as um espaço-tem po. U m a cartografia criativa enativa o

serem tão logo arrebatadas de volta à variação. “ Tendência

espaço-tem po processual de seu próprio desdobram ento.

U n i v e r s a la vid a se im p ulsion a para a fren te através da

Não há sujeito por trás do ato criativo, existindo previamente

superação de tudo o que estiver putativam ente fixado, que

ao processo. O sujeito sempre está à frente de si mesmo, no

estiver dado de m odo individualizável; da propulsão relacio­

m ovim ento de expressão. O sujeito é um “ supeijecto”28 sem­

nai através do que está dado rum o à em ergência do novo.23

pre por vir, ou já superado num a próxim a pulsação da vida.

A essa altura, “ os problem as relacionados às fronteiras

O m ovim ento autocondutor da expressão é essencialm ente

entre os ‘rein os’ da N atureza, e ainda mais àquelas entre

uma subjetividade-sem-sujeito. Isso de maneira alguma signi­ fica que existem apenas objetos, com o quereria uma ontologia

19 Ibid. 20 Ibid.

24 Simondon, Vinformation à la lumière des notions deforme et dHnformation op. cit., p. 112.

21 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 105. Cf. também Didier Debaise (“A Philosophy of the Interstices: ThinMng Subjects and Societies from Whitehead’s Philosophy” Subjectivity,v. 6, n2 1,2013, pp. 101-111).

26 Deleuze; Guattari, Mil platôs, v. 5 op. cit, p. 122.

22 Whitehead, Adventures ofldeas op. cit., p. 207.

27 Ibid., p. 122.

23 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5 op. cit., p. 89.

28 Sobre o superjecto, cf. ver nota 17 p. 134.

176

25 Deleuze e Guattari, Kafka:por uma literatura menor, p. 36.

177

orientada ao objeto. Há, no fundo, som ente atividade e ten ­ dência afetando blocos qualitativos de relação plástica sob variação. Por fim, não deixe que a alegoria da cognição “corporificada” o leve erroneamente a pensar o corpo com o algo que está esperando — com a paciência infinita de uma maté­ ria burra — para encarnar um a mente. Se tudo está vivo, é p orque os gestos expressivos da natureza seguem se a-corporalizando. C orp oralizações-sem -“ o ” -corpo para subjetividades-sem -sujeito. Se tudo está vivo, é porque a vida vive sua própria abstração — cada gesto seu é um a especulação pragmática sobre a natureza do fazer.

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Dados Internacionais de C atalo gação na Publicação (CIP)

'I M

Vagner Rodolfo CRB-8/9410

O livro com o im agem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não M422q

Massumi, Brian

basta dizer Viva 0 múltiplo, grito de resto difícil

O que os animais nos ensinam sobre política /

de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica,

Brian M assum i; Francisco Trento, Fernanda Mello. - São Paulo:

lexical ou m esm o sintática será suficiente para

n-i edições, 2017.

fazê-lo ouvir. E preciso fazer 0 múltiplo, não

192 p . : i l .; 14011 x 2icm.

acrescentando sem pre uma dim ensão superior, m as, ao contrário, da maneira m ais

Inclui índice.

sim ples, com força de sobriedade, no nível das

ISBN: 978-85-66943-47-4

dim ensões de que se dispõe, sem pre n-1 1.

Ciências políticas. I. Trento, Francisco. II. Mello,

Fernanda. Título.

2 0 1 7 -6 7 3

(é som ente assim que o uno faz parte do ' múltiplo, estando sem pre subtraído dele).

C D D 3 2 .0

Subtrair o único da m ultiplicidade a ser

CDU 32

constituída; e screver a n-1. G illes Deleuze e Félix Guattari

índice para catálogo sistemático 1. Ciência política 320 2. Ciência política 32

,