O que é filosofar
 3787316663, 9788515033270

Citation preview

JOSEF PIEPER

QUE É FILOSOFAR? Tradução

Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado

Edições Loyola

Ji.

Título original: Was heisst philosophieren? Vier Vorlesungen, in Josef Pieper, Werke in acht Banden. Band 3: Schriften zum Philosophiebegriff, Hamburg, Felix Meiner, 2004, 15-75. © Felix Meiner Verlag, Hamburg, 1995. ISBN: 3-7873-1666-3

SUMÁRIO

PREPARAÇÃO: Maurício B. Leal REVISÃO TÉCNICA: Marcelo Perine DIAGRAMAÇÃO: So Wai Tam REVISÃO: Sandra G. Custódio CONSELHO EDITORIAL:

capítulo 1 A FILOSOFIA E O MUNDO DO TRABALHO

Ivan Domingues (UFMG) Juvenal Savian (UNIFESP)

7

Marcelo Perine (PUC-SP) Mario A. G. Porta (PUC-SP) Rogério Miranda de Almeida (PUC-PR)

Edições Loyola Rua 1822 nº 347 - Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04218-970- São Paulo, SP

(§)

(11) 6914-1922

® (11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: [email protected] Vendas: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

ISBN: 978-85-15-03327-0

© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2007

J

capítulo li O OBJETIVO DA FILOSOFIA ............................................. .

23

capítulo Ili MEIO AMBIENTE E MUNDO ............................................ ..

39

capítulo IV TRADIÇÃO, TEOLOGIA E FILOSOFIA ................................ ..

55

lo 1

A FILOSOFIA E O MUNDO DO TRABALHO

"A razão pela qual o filósofo compara-se com o poeta é esta: ambos têm a ver com a admiração." TOMÁS DE AQUIN0

1

Quando um físico põe a questão: que é física, que é pesquisa física?, ele põe uma pré-questão. Evidentemente, ao indagar desse modo e buscar uma resposta, ainda não se faz física - ainda não é física ou já não é mais física. No entanto, alguém entra diretamente na filosofia ao formular e tentar responder a questão: que é filosofar? Essa questão não é uma pré-questão, mas uma indagação eminentemente filosófica. Com ela nos encontramos dentro da filosofia. Mais especificamente, não posso dizer nada a respeito da essência da filosofia e do filosofar sem fazer um enunciado sobre a essência do homem - e com isso já está designado um domínio central da filosofia. A esse domínio, portanto, à antropologia filosófica, pertence nossa questão: "Que é filosofar?". 1. A epígrafe provém do Comentário à Metafísica de Aristóteles, I, 3 (n. 55). (Nota do ediror alemão)

17

Mas, por ser uma questão fil~fica, também não poderá ser respondida de modo definitivo, pois pertence justamente à essência de uma questão filosófica o fato de não podermos receber nas mãos a resposta como "verdade acabada" (segundo as palavras de Parmênides), tal como se colhe uma maçã. Nesse sentido, será tratada mais adiante a estrutura de esperança da filosofia e do filosofar em geral. Não vamos, portanto, prometer uma definição manipulável, nem uma resposta que apreenda o objeto por todos os lados. Numa primeira aproximação, pode-se dizer o seguinte: filosofar consiste em uma ação na qual o mundo do trabalho é ultrapassado. Trata-se portanto, em primeiro lugar, de definir o que se entende aqui por "mundo do trabalho" (Arbeitswelt), para então determinar o que significa o "ultrapassar" (Überschreiten) desse mundo do trabalho. O mundo do trabalho é o mundo cotidiano do trabalho, o mundo da utilização, da serventia a fins, do rendimento, do exercício de funções; trata-se do mundo da necessidade e da renda, o mundo da fome e do modo de saciá-la. O mundo do trabalho é dominado pelo objetivo de realização da "utilidade comum". É mundo do trabalho na medida em que trabalho tem o mesmo significado de atividade útil (sendo então simultaneamente próprio desta o caráter de atividade e de esforço). O processo de trabalho é o processo da realização da "utilidade comum". Tal conceito não deve ser igualado ao de bonum commune: a "utilidade comum" é uma parte essencial do bonum commune, mas este é muito mais geral. Ao bonum commune pertence, por exemplo (como diz Tomás de Aquino 2), o fato de existir pessoas que se entregam à vida inútil da contemplação; pertence o fato de que se pratique a filosofia - na medida em que, justamente, não se pode dizer que meditação, contemplação, filosofia sirvam à "utilidade comum". 2. Comentário ao Livro de sentenças de Pedro Lombarda 4 d. 26, 1, 2.

8 1 que é filosofar?

Hoje, certamente, bonum commune e "utilidade comum" são dados cada vez mais como idênticos, assim como é certo (o que dá no mesmo) que, de acordo com isso, o mundo do trabalho começa a se tornar, ou ameaça tornar-se, sempre mais exclusivamente o nosso mundo em geral. A reivindicação do mundo do trabalho torna-se cada vez mais total, abarcando progressivamente toda a existência humana. Se é correto dizer que o filosofar é um ato que transcende e ultrapassa o mundo do trabalho, então nossa questão "que é filosofar?", indagação tão "teórica" e "abstrata", torna-se de repente e sem querer uma questão extremamente atual do ponto de vista histórico. Necessitamos dar somente um passo, no pensamento e também geográfico, para nos encontrarmos em um mundo no qual o processo do trabalho, o processo da realização da "utilidade comum" determina toda a esfera da existência humana. É necessário apenas saltar uma linha limítrofe, muito próxima tanto interna como externamente, para se alcançar o mundo total do trabalho, no qual conseqüentemente não existiriam mais filosofia e filosofar autênticos. Supondo que seja correto o enunciado, filosofar significa transcender o mundo do trabalho e, portanto, faz parte da essência do ato filosófico justamente não ser próprio deste mundo das utilidades e eficiências, da necessidade e do rendimento, desse mundo do bonum utile, da "utilidade comum", mas ser, por princípio, incomensurável com ele. De fato, quanto mais total se torna a reivindicação do mundo do trabalho, tanto mais grave vem à tona essa incomensurabilidade, esse não-pertencimento. E talvez possamos dizer que esse agravamento e esse perigo a partir do mundo total do trabalho são o que caracteriza propriamente a situação da filosofia hoje, quase mais que sua problemática de conteúdo. A filosofia adquire - necessariamente! - cada vez mais o caráter do estranho, do mero luxo intelectual, até do autenticamente insustentável e do que não deve ser levado a sério, quanto mais a reivindicação do mundo do trabalho cotidiano domina o homem de maneira exclusiva. a filosofia e o mundo do trabalho 1 9

Todavia, primeiramente deve-s!i&fizer algo ainda sobre essa incomensurabilidade do ato filosófico, desse transcender o mundo do trabalho que acontece no filosofar. Deve-se falar mais uma vez a respeito disso de modo bem concreto. Lembremo-nos das coisas que dominam hoje o cotidiano do trabalho do homem, do nosso cotidiano. Não é necessário aqui nenhum esforço especial do pensamento para torná-lo presente: encontramo-nos drasticamente no interior desse cotidiano. Trata-se, portanto, primeiro da corrida e da caça diária da existência física crua, corrida por alimentação, vestuário, moradia etc. Depois, o cuidado que vai além do indivíduo (e simultaneamente o condiciona), as necessidades de uma nova ordem mundial e de progresso - sobretudo em nossa pátria, mas também no mundo. Lutas de poder pela utilização dos bens da Terra, conflitos de interesse nas coisas grandes e pequenas. Por todo lado, tensão extrema e sobrecarga - abrandadas somente de modo aparente mediante diversões e pausas rapidamente absolvidas: jornal, cinema, cigarro. Não é necessário continuar a esboçar essa situação. Todos conhecemos muito bem o aspecto deste mundo. Não significa de modo algum que precisamos olhar somente para essas culminações críticas que se apresentam justamente nos dias de hoje. Trata-se simplesmente do mundo do trabalho do dia-a-dia, no qual se deve trabalhar energicamente, no qual fins muito concretos são impostos e realizados, com objetivos que devem ser visados por um olhar paralisante, direcionado para o que está perto e mais próximo. Longe de nós querer desvalorizar esse mundo do cotidiano do trabalho a partir de algum suposto ponto de vista superior da filosofia. Por isso é preciso afirmar rigorosamente que esse mundo do trabalho cotidiano pertence essencialmente ao mundo do homem, que justamente nesse mundo do trabalho são realizados os fundamentos de sua existência física, sem os quais nenhum homem pode existir! Imaginemos que entre as vozes que preenchem os locais de trabalho e o mercado - ("como se 10 1 que é filosofar?

'1 li ~

f -~

pode adquirir esta ou aquela coisa necessária para a existência cotidiana?", "de que modo adquirimos isso?", "onde existe tal produto?") -, de repente uma voz se levante com a questão: "Por que existe sobretudo o ente e não antes o nada?" - com esse antiqüíssimo clamor de admiração filosófico que Heidegger3 designou como a questão fundamental de toda metafísica! Será necessário dizer expressamente o quanto essa questão do filósofo é incomensurável relativamente ao mundo cotidiano do trabalho, da utilidade e da serventia a fins? Se essa questão fosse expressa de modo imediato e inesperado entre os homens da produção e do sucesso, não seria considerado um louco aquele que interroga? Em tais contraposições extremas, porém, a diferença realmente existente torna-se clara. Fica claro como com aquela questão foi dado um passo que transcende e remete para além do mundo do trabalho. A questão filosófica em sentido autêntico atravessa o limiar que encerra sob si o mundo do cotidiano burguês do trabalho. No entanto, o ato filosófico não é a única maneira de realizar esse "passo além". A voz da autêntica poesia não é menos incomensurável com o mundo do trabalho do que a questão do filósofo: Immer steht der Baum in Mitt und Enden, Vogel singen und in Gottes Lenden Ruht der Kreis der Schiipfung selig aus4 . 3. Martin HEIDEGGER, Was ist Metaphysik?, Frankfurt, 1943. Aliás, a formulação não é nova; ela se encontra também em LEIBNIZ, Pourqui il y a plustôt quelque chose que rien?, in ID., Philosophische Schriften, Darmstadt, 1965, V. I, P· 426. 4. "Na árvore majestosa cantam os pássaros E no coração de Deus descansa feliz a criação". Konrad WErss, ln exitu (versos iniciais); publicado pela primeira vez na coletânea de poesiaDie cumdische Sibylle, München, 1921. Posteriormente acessível nas obras completas pela Editora Kõsel: Konrad Wmss, Gedichte. 19141939, München, 1961. a filosofia e o mundo do trabalho 1 11

Uma voz como essa também res~a, na esfera dos fins realizados ativamente, como algo totalmente estranho. Não é diferente com as palavras daquele que reza: "Nós vos louvamos, vos exaltamos, vos agradecemos por vossa imensa glória" - como isso poderia ser compreendido a partir das categorias da utilização racional e organização da utilidade! Do mesmo modo o amante é expulso da cadeia de fins desse mundo do trabalho cotidiano, e também todo aquele que mediante um profundo abalo existencial, que sempre é um abalo das relações do mundo, chega à fronteira da existência (Dasein) - tal como na experiência da proximidade da morte ou qualquer outra experiência parecida. Em tal abalo (também o ato filosófico, a poesia autêntica, a vivência artística em geral, a oração fundam-se em um abalo!), o homem experimenta a não-conclusividade desse mundo cotidiano: transcende-o, dá um passo além dele. E, em função da força comum de ultrapassamento e transcendência, todos aqueles modos fundamentais de comportamento do homem possuem entre si um co-pertencimento natural: o ato filosófico, o religioso, o artístico e também o abalo existencial mediante Eros ou mediante a experiência da morte ou qualquer outra dessas relações. Sabemos que Platão pensou o filosofar juntamente com Eros. No que tange ao co-pertencimento entre filosofia e poesia, há uma frase notável e pouco conhecida de Tomás de Aquino, no seu comentário à Metafísica de Aristóteles, que diz: o filósofo tem afinidades com o poeta na medida em que ambos têm a ver com o mirandum, com o admirável, com o que é digno de admiração, que reclama admiração5. Essa frase difícil de ser esgotada ganha mais peso devido a ambos os pensadores, tanto Aristóteles como Tomás, serem duas mentes sóbrias, inteiramente avessas a qualquer confusão romântica entre essas duas áreas. Assim, devido à orientação comum para o mirandum (o mirandum não aparece no 5.

TOMÁS DE AQUINO,

12 1 que é filosofar?

Comentário à Metafísica de Aristóteles l, 3 (n. 55).

mundo do trabalho!), devido à força comum de transcendência, 0 ato filosófico é aparentado e próximo do poético, mais próximo e estreitamente aparentado do que com as ciências exatas! Voltaremos a isso mais adiante. O co-pertencimento é tão válido que onde quer que um membro pertencente seja negado por princípio também os outros não florescem - de tal maneira que, em um mundo do trabalho total, todas as formas e todos os modos do ultrapassamento de si mesmo fenecem necessariamente (ou melhor: deveriam fenecer se realmente fosse possível destruir completamente a natureza humana). Onde o religioso não pode crescer, onde 0 artístico não encontra nenhum lugar, onde o abalo mediante a morte e o Eros perdem sua profundidade e são banalizados, aí também não vicejarão a filosofia e o filosofar. Pior que o mero emudecer e o apagamento é, por certo, a inversão em formas de engano e mentira. Existem essas pseudorealizações daquelas atitudes fundamentais que somente na aparência ultrapassam o limiar do cotidiano. Há um modo de rezar mediante o qual "este" mundo não é transcendido, mediante o qual se faz antes a tentativa de integrar o divino na cadeia de fins do cotidiano do trabalho como parte funcional. Há o encadeamento da religião na magia: não a entrega ao divino, mas a tentativa de se apropriar do divino e de torná-lo disponível; há o encadeamento da oração numa prática que pretende continuar possibilitando a vida sob aquele limiar. Há, além disso, uma degeneração do Eros na sujeição da força da entrega às pretensões e aos objetivos do limitado eu, que provém da autodefesa angustiada contra o abalo produzido pelo mundo maior e mais profundo, que só quem verdadeiramente ama é capaz de penetrar. Há pseudoformas do artístico, há má poesia que em vez de romper o limiar do cotidiano do trabalho somente pinta ornamentos, por assim dizer, enganosos na parede interna do cotidiano, entregando-se, como "poesia útil", privada ou política, mais ou menos abertamente a serviço do a filosofia e o mundo do trabalho 1 13

mundo do trabalho: essa "poesia" n~ ultrapassa, nem mesmo aparentemente (e é claro que o filosê'ff'ar autêntico tem mais em comum com as ciências exatas particulares do que com essa pseudopoesia!). Por fim, há uma pseudofilosofia cuja característica é justamente esta: nela o mundo do trabalho igualmente não é ultrapassado. Em Platão 6, Sócrates pergunta ao sofista Protágoras: Que ensinas aos jovens que de ti se aproximam? E Protágoras responde: Comigo aprende-se prudência, seja em questões privadas, particularmente como administrar do melhor modo o próprio lar, seja nas questões públicas, como atuar melhor pelo discurso e pela ação no Estado. Essa é a problemática clássica da filosofia como saber de formação, uma filosofia aparente, sem transcendência. Pior ainda, todas essas realizações enganosas concordam no fato de não só não ultrapassarem, mas também de, justamente, fecharem o mundo ainda mais e de modo mais definitivo sob o limiar do cotidiano; de encarcerarem de vez o homem no mundo do trabalho. Desse modo, todas essas pseudoformas, sobretudo a pseudofilosofia, são algo muito pior, muito mais sem esperança que o fechamento ingênuo do homem mundano diante do não-cotidiano. Aquele que mergulha ingenuamente no mundo cotidiano do trabalho pode um dia ainda ser atingido pela força do abalo escondida em uma questão genuína do filósofo, ou em uma poesia. Porém, um sofista, um pseudofilósofo não pode ser abalado! Voltemos, no entanto, a nossa questão inicial. Ao se indagar sobre a essência verdadeira da filosofia, questiona-se com isso justamente para além do mundo do trabalho. Assim, já está claro que essa questão e a sua posição hoje, na medida em que precisamente o mundo do trabalho se apresenta com uma pretensão de totalidade até então desconhecida no Ocidente, 6. PLATÃO, Protágoras 318 a 6ss.

14 1 que é filosofar?

possui uma agudeza histórica especial. Não se trata aqui, não obstante, de uma crítica de época. No fundo, está em pauta um desacordo perene. A risada da criada trácia, ao ver Tales de Mileto, o observador do céu, cair no poço, é para Platão a resposta típica da razoabilidade fixa do cotidiano diante da filosofia. E essa anedota da criada trácia encontra-se no começo da filosofia ocidental. E "em todas as circunstâncias" (assim está no Teeteto de Platão), o filósofo torna-se alvo de galhofa, "não apenas por parte das criadas da Trácia, como de todo o povo, levando-o sua falta de experiência a cair nos poços e na mais triste confusão" 7 • Platão, porém, não se expressa somente e nem acima de rudo num discurso proposicional e em tese formal, mas fala por figuras. É o caso de Apolodoro, uma figura secundária (tal como parece num primeiro momento) nos diálogos Fédon e Banquete. Apolodoro é um daqueles jovens acriticamente entusiasmados em torno de Sócrates, nos quais Platão talvez quisesse apresentar-se a si mesmo. No Fédon é narrado sobre Apolodoro que ele, quando Sócrates na prisão levou a taça de cicuta à boca, foi o único entre os presentes a cair em um choro e em soluços incessantes. Diz Fédon: "Deves saber, com efeito, que homem é ele e qual seja o seu feitio" 8 • De si mesmo, diz Apolodoro, no Banquete9 , que desde muitos anos se dedicou fervorosamente a saber a cada dia o que Sócrates disse e fez, e que "anteriormente, rodando ao acaso e pensando que fazia alguma coisa, eu era mais miserável que qualquer outro". Agora, porém, encontra-se de modo extremado entregue a Sócrates e à filosofia. Na cidade, chamam-no de Apolodoro "louco". Esbraveja contra todos os outros e contra si mesmo, à exceção de um único, Sócrates. Tomado por completa ingenuidade, anuncia 7. ID., Teeteto, 174 a-e. 8. ID., Fédon, 59 b. 9. ID., Banquete, 172 e 4ss.

a filosofia e o mundo do trabalho 1 15

por todos os cantos como seria "feli~acima de toda a medida" se pudesse ele mesmo falar sobre fi'f)sofia ou ouvir um outro. E depois fica novamente infeliz, pois não alcançou ainda o que queria: ser como Sócrates. Esse Apolodoro encontra um dia alguns amigos de então, justamente aqueles que agora o chamam de louco, raivoso. Trata-se, como Platão nota explicitamente, de homens de negócios, de dinheiro, que sabem exatamente como se faz algo e "estão inteiramente convencidos de produzir algo" no mundo. Esses amigos pedem a Apolodoro para narrar algo a respeito dos discursos sobre o amor proferidos em um banquete na casa do poeta Agaton. É claro que esses homens do dinheiro e bem-sucedidos de modo algum pretendem ser instruídos sobre o sentido do mundo e da existência - menos ainda por Apolodoro! É antes o interesse pelo picante ou pelo humorístico, pelo dito de modo belo, pela elegância formal da discussão que está em jogo aqui. Apolodoro não se ilude sobre possíveis "interesses filosóficos" de seus interlocutores. Diz-lhes na cara como se compadece deles: "pois pensais fazer algo quando nada fazeis. Talvez também vós me considerais infeliz, e creio que é verdade o que presumis; eu, todavia, quanto a vós, não presumo, mas bem sei". Mesmo assim, não se nega a relatar a respeito dos discursos sobre o amor. Não pode silenciar: "se vós assim o desejais, devo fazê-lo" deve-se considerá-lo um raivoso! E então Apolodoro narra justamente o Banquete! O Banquete de Platão tem precisamente a forma de discurso indireto, de um relato - a partir da boca de Apolodoro! Penso que se deu pouca importância ao fato de Platão trazer à palavra seus pensamentos mais profundos por meio desse jovem extremado, que se regala em um entusiasmo acrítico, por meio desse estudantezinho fervorosíssimo - e, além disso, diante de um círculo de ouvintes de homens de dinheiro e sucesso, nem capazes, nem desejosos de receber esses pensamentos ou ao menos de levá-los a sério! Há algo de desesperançado nessa situação, uma tentação para o desespero contra o 16 1 que é filosofar?

qual (esta é decerto a opinião de Platão) somente a procura juvenil inabalada pela sabedoria, a autêntica philosoph~a pode manter-se firme. Em todo caso, Platão não poderia exprimir de maneira mais clara a incomensurabilidade de princípio do filosofar e do mundo do trabalho auto-suficiente e cotidiano. Todavia, esse aspecto negativo é só uma face daquela incomensurabilidade. A outra face chama-se: liberdade. A filosofia é "inútil" no sentido de aproveitamento e aplicação imediatos - isso é um lado. O outro consiste no fato de a filosofia não se deixar usar, de não ser disponível para fins que estejam fora dela mesma, de ser ela mesma um fim. Filosofia não é um saber de funcionário, mas, como disse John Henry Newman 10 , saber de gentleman. Não saber "útil", mas "livre". Essa liberdade, porém, significa que o saber filosófico não recebe legitimação a partir de sua utilidade e de sua aplicabilidade, de sua função social, de sua referência à "utilidade comum". Exatamente nesse sentido era pensada a "liberdade" das artes liberales, artes livres - em oposição às artes serviles, artes servis, que, tal como afirma Tomás de Aquino, "são ordenadas para uma utilidade a ser alcançada mediante uma atividade" 11 • Filosofia, porém, é desde sempre entendida como a mais livre entre as artes livres (as "Faculdades dos artistas" [Artistenfakultat], assim denominadas na Idade Média segundo as artes liberales, são idênticas às atuais Faculdades de Filosofia [Philosophischen Fakultat]). Assim, se digo que o ato filosófico ultrapassa o mundo do trabalho ou se digo que o saber filosófico é inutilizável ou, ainda, que filosofia é uma "arte livre'', digo sempre a mesma coisa. Essa liberdade cabe às ciências particulares somente na medida em que são empreendidas de modo filosófico. Aqui se encontra também, tanto histórica como objetivamente, o sentido autêntico da liberdade acadêmica (pois "acadêmico" signifi10. John Henry NEWMAN, The Idea of a University, Discourse V, 5. 11. TOMÁS DE AQUINO, Comentário à Metafísica de Aristóteles 1, 3 (n. 59). a filosofia e o mundo do trabalho 1 17

ca "filosófico"-: ~o co~trário não s!l1~fica nada.!) ..Pretensão à liberdade academica, ngorosamente, so pode existir enquant~ o acadêmico mesmo é realizado no sentido de "filosófico". E assim também do ponto de vista histórico: a liberdade acadêmica perde-se exatamente no mesmo grau em que se perde o caráter filosófico do estudo acadêmico ou, dito de outro modo, na medida em que a pretensão de totalidade do mundo do trabalho conquista o espaço da universidade. Aqui se encontra a raiz metafísica do problema, a assim chamada "politização" é somente conseqüência e sintoma. Com certeza, deve-se notar neste ponto que isso é com toda precisão o fruto justamente da própria filosofia, da filosofia moderna! A respeito disso, logo se dirá mais uma palavra. Primeiramente, digamos algo sobre o tema "liberdade" da filosofia - em sua diferença para com as ciências particulares; liberdade entendida como não-disponibilidade para fins. "Livres" em tal sentido são, como dissemos, as ciências particulares somente na medida em que são empreendidas de modo filosófico, na medida em que participam da liberdade da filosofia. "O saber é livre em um sentido especial" - segundo Newman 12 - "quando e na medida em que é saber filosófico." Consideradas em si mesmas, porém, as ciências particulares são muito bem e essencialmente "disponíveis para fins", são essencialmente referenciáveis a uma "utilidade a ser alcançada 13 mediante uma atividade" (tal como Tomás de Aquino diz das "artes servis"). Falemos mais concretamente! A direção de um Estado pode bem dizer: precisamos agora, a fim de realizar um plano qüinqüenal, de físicos que recuperem nesse ou naquele campo a vantagem das outras nações; ou: necessitamos de médicos que 12. "Knowledge, I say, is then especially liberal, or sufficient for itself, apart from every externai and ulterior object, when and so far it is philosophical"Gohn Henry NEWMAN, The Idea of a University, Discourse, V, 5). 13. TOMÁS DE AQUINO, Comentário à Metafísica de Aristóteles I, 3 (n. 59).

18 1 que é filosofar?

elaborem cientificamente um medicamento efetivo contra a gripe. Pode-se falar e se dispor assim sem que com isso a essência dessas ciências particulares seja contradita. Mas: "Precisamos no momento de filósofos que ... " - sim, o quê? Agora só há uma possibilidade: " ... que desenvolvam, fundamentem e defendam a seguinte ideologia... " - só se pode falar assim com a destruição simultânea da filosofia! Exatamente o mesmo ocorreria se fosse dito: "Precisamos agora de poetas que ... " - sim, o quê? Novamente só há uma resposta:" ... que [tal como o termo diz] utilizem a palavra como arma na luta por determinados ideais postos pelos fins do Estado ... " - só se pode falar assim com a destruição simultânea da poesia. No mesmo instante a poesia cessaria de ser poesia; e a filosofia cessaria de ser filosofia. Não como se não houvesse mais nenhuma relação entre a realização do bem comum e a filosofia ensinada nas nuvens! Porém: essa relação não pode ser formada e regulada pelo administrador do bem comum. Aquilo que possui em si mesmo seu sentido e seu fim, o que é ele mesmo fim, não pode se tornar meio para um outro fim - tal como não se pode amar alguém "para que" ou "a fim de que"! Essa não-disponibilidade, essa liberdade do filosofar está - e notar isso me parece de importância extrema e atual! intimamente ligada com o caráter teórico da filosofia, sendolhe de fato diretamente idêntica. Filosofar é a forma mais pura do theorein, do speculari, do puro olhar receptivo sobre a realidade, no qual só as coisas dão as medidas e a alma é exclusivamente receptora destas. Sempre quando um ente é visado de modo filosófico, aí se questiona "de maneira puramente teórica", de um modo, portanto, intocado por qualquer prática ou vontade de transformação e, justamente por isso, elevado para além de qualquer sujeição a fins. A realização da theoria nesse sentido, porém, está ligada por sua vez a uma pressuposição. Pressuposto é determinada relação de mundo (Weltverhdltnis), relação que parece anteceder toda a filosofia e o mundo do trabalho 1 19

posição e todo fomento consciente ...,;reórico", nomeadamente neste sentido pleno (visando de modo puramente receptivo, sem o vestígio de uma intenção de transformar as coisas, antes, precisamente ao contrário, pronto para fazer depender o sim e o não da vontade unicamente da realidade do ser que se manifesta no conhecimento da essência)-, "teórico", nesse sentido não enfraquecido, só poderá ser o olhar humano quando o ente, o mundo for-lhe algo mais do que o campo, o material, a matéria-prima da atividade humana. "Teoricamente", no sentido pleno, poderá olhar na realidade somente aquele para quem o mundo é de algum modo digno de veneração, criação final em sentido estrito. Somente nesse solo germina o "puramenteteórico" pertencente à essência da filosofia. Desse modo, seria uma união última e profunda, mediante a qual a liberdade do filosofar e, portanto, o filosofar mesmo tornam-se intimamente possíveis! E não é de admirar que a decadência daquela relação de mundo, daquela união (por força da qual o mundo é visto como criação e não como mera matéria-prima), ande passo a passo com a decadência tanto do caráter autenticamente teorético da filosofia como também da sua liberdade e da superioridade sobre o funcional. Há uma linha direta de Francis Bacon, que disse: "saber e poder são uma coisa só" e "o sentido de todo saber é a dotação da vida humana com novas invenções e remédios" 14 - passando por Descartes, que no Discurso sobre o método já formula de modo polêmico sua intenção de colocar no lugar da antiga filosofia "teórica" uma filosofia "prática'', mediante a qual poderíamos "nos tornar senhores e proprietários da natureza" 15 - , até a conhecida formulação de Karl Marx de que a filosofia até agora só viu sua tarefa em interpretar o mundo, trata-se, doravante, de transformá-lo.

Esse é o caminho no qual historicamente a destruição da filosofia se consuma - mediante a destruição de seu caráter teórico, cuja destruição por sua vez se baseia no fato de que o mundo cada vez mais é visto como a mera matéria-prima da ação humana. Se o mundo não é mais visto como criação, então não pode haver mais theoria em sentido pleno. Junto com a theoria, porém, decai também a liberdade do filosofar e vêm a primeiro plano a funcionalização, o tão-somente "prático", a dependência de uma legitimação a partir da função social; vem a destaque o caráter de "trabalho" da filosofia, da que ainda continua a ser chamada de filosofia. Nossa tese, que agora deve ter recebido um contorno mais claro, justamente diz que pertence à essência do ato filosófico ultrapassar o mundo do trabalho. Essa tese, na qual de modo inclusivo tanto a liberdade como o caráter teórico da filosofia são afirmados, não nega o mundo do trabalho (ela antes o pressupõe expressamente como necessário), mas afirma: a verdadeira filosofia funda-se na crença de que a riqueza autêntica do homem não se encontra na satisfação das necessidades, nem em "que nos tornemos senhores e proprietários da natureza", mas em sermos capazes de ver o que é - a totalidade daquilo que é. A filosofia antiga afirma que essa é a máxima plenitude que podemos atingir: que em nossa alma se inscreva a ordem da totalidade das coisas existentes 16 - um pensamento que a tradição cristã recebeu no conceito de visio beatifica: "O que não - os que veem , ''"'17 verao aque1e que tu d o ver .

l 1

14. Francis BACON, Novum Organum I, 3; I, 81. 15. René DESCARTES, Discurso sobre o método, 6.

1

16. Cf. TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 2, 2. 17. GREGÓRIO MAGNO, apud TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 2,2. a filosofia e o mundo do trabalho 1 21

20 1 que é filosofar?

1

O OBJETIVO DA FILOSOFIA

Quem filosofa dá um passo além do mundo do trabalho cotidiano. O sentido de um passo, porém, é determinado menos pelo ponto de partida que pelo ponto de chegada. Continuamos, portanto, a indagar: para onde vai o filosofante ao transcender o mundo do trabalho? Evidentemente, ultrapassa uma fronteira: que tipo de região é essa que se encontra além da fronteira? E como se relaciona o campo no qual o ato filosófico avança com o mundo que justamente por meio desse mesmo ato filosófico é superado e ultrapassado? Será aquele campo o "autêntico" e o mundo do trabalho o "inautêntico"? Será o "todo" em contraposição à "parte"? A verdadeira realidade em contraposição a uma realidade meramente aparente ou sombra do real? Seja qual for a resposta dada a essas questões particulares, em todo caso ambos os campos, o do mundo do trabalho e aquele no qual o ato filosófico avança ao ultrapassar o mundo do trabalho, pertencem ao mundo do homem, que portanto possui uma estrutura evidentemente articulada de modo poliédrico. Eis, portanto, nossa próxima questão: de que espécie é o mundo do homem? - uma questão que obviamente não pode ser respondida sem levar em consideração o próprio homem. 1 23

Precisamos, a fim de alcançar aqui u~ resposta mais ou menos clara, começar bem do início, bem de baixo. Pertence à essência do ser vivo o fato de que viva e esteja em um mundo, em "seu" mundo, de que possua um mundo. Ser vivo significa estar "no" mundo. Mas uma pedra não está também "no" mundo? Não está simplesmente tudo o que em absoluto "existe" "no" mundo? Tomemos a pedra inanimada, que se encontra em algum lugar: ela está com e ao lado de outras coisas "no" mundo? "No", "com", "ao lado de" - essas são palavras de relação. Mas uma pedra não possui realmente uma relação para com o mundo, "no" qual se encontra, nem para com as coisas vizinhas, "ao lado" das quais e "com" as quais está "no" mundo. Relação em sentido genuíno se estabelece de dentro para fora. Só há relação onde há um interior, portanto, um centro dinâmico a partir do qual toda ação surge e ao qual se refere tudo o que se recebe e sofre. O interior (no sentido qualitativo - a respeito do "interior" da pedra só se pode falar no sentido de situação espacial de suas partes!) é a capacidade de algo real de possuir relação, de se pôr em relação com um exterior. "Dentro" significa capacidade de relação e de inclusão (Beziehungs- und Einbeziehungskraft). E mundo? Mundo significa o mesmo que campo de relação (Beziehungsfeld). Somente um ser capaz de relação, somente um ser-interior (Innen-Wesen), e isso quer dizer somente um ser vivo, possui mundo. Somente a ele cabe existir no meio de um campo de relação. Trata-se, por princípio, de formas diferentes de estar ao lado de: a que subsiste na relação entre pedras encontradas em algum lugar, amontoadas na rua - e, portanto, vizinhos - e a forma dada, em contrapartida, na relação de uma planta para com as substâncias nutritivas que se encontram na região de sua raiz no solo. Não há aqui uma proximidade meramente espacial como fato objetivo, mas uma relação autêntica (no sentido original, nomeadamente, no sentido ativo de inclusão): as substâncias nutritivas estão incluídas no âmbito da vida da planta - a partir do interior autêntico 24 1 que é filosofar?

da planta, mediante sua capacidade de relação e inclusão. E tudo o que for abrangido pela capacidade de inclusão da planta - tudo isso perfaz o campo de relação, o mundo da planta. A planta tem um mundo; a pedra não. O primeiro ponto, portanto, é: mundo significa campo de relação. Possuir um mundo significa: ser centro e suporte de um campo de relação. O segundo, porém, é: quanto mais alto o lugar do ser-interior, ou seja, quanto mais extensa e abrangente for uma capacidade de relação, tanto mais amplo e elevado será o campo de relação submetido a esse ser. Dito de outro modo: quanto mais alto um ser estiver na ordenação hierárquica da realidade, tanto mais amplo e elevado o lugar de seu mundo. O mundo mais inferior é o das plantas, que em sua distensão espacial não vai além da proximidade de contato. O mundo hierarquicamente superior, e também mais amplo, dos animais corresponde à maior capacidade de relação dos animais. A capacidade de relação e inclusão dos animais é maior na medida em que o animal é capaz de percepção sensível, de perceber algo: trata-se de um modo, em contraposição ao âmbito meramente vegetal, especial e completamente novo de se colocar em relação com um exterior. Isso não significa de maneira alguma que tudo o que um animal, tomado por assim dizer "abstratamente'', é capaz de perceber (pois possui olhos para ver e ouvidos para ouvir) já pertença também ao mundo desse animal. Não significa de forma alguma que todas as coisas visíveis ao seu redor sejam vistas por um animal dotado de sentido de visão, e nem que possam ser vistas. O espaço ao redor, mesmo o que é perceptível "em si", não é ainda mundo! Essa era a concepção geral até as pesquisas sobre o meio ambiente (Umwelt) do biólogo Jakob von Uexküll. Até então, tal como Uexküll mesmo formulou\ 1. Jakob von UEXKÜLL, Der unsterbliche Geist in der Natur, Hamburg, 19 38, p. 63. o objetivo da filosofia 1 25

"aceitava-se em geral que todos os anjnais dotados de olhos percebiam os mesmos objetos". Uexkütr'descobriu que isso ocorre de modo totalmente diverso: "Os ambientes dos animais" assim afirma Uexküll2, "não se identificam à ampla natureza'. mas a um habitat estreito, escassamente mobiliado". Por exemplo: deveríamos pensar que uma gralha poderia, pelo fato de possuir "olhos na cabeça", ver um gafanhoto, para ela um objeto especialmente desejado, sempre que o recebesse à vista ou, dizendo de modo mais cuidadoso, sempre que aparecesse diante de seus olhos. Mas não é isso que ocorre! Ocorre na verdade o seguinte (cito novamente Uexküll): "A gralha é completamente incapaz de ver um gafanhoto imóvel[... ] Vamos supor aqui, primeiramente, que a forma do gafanhoto em repouso é bem conhecida pela gralha, mas não pode reconhecê-lo devido à grama que se lhe sobrepõe, tal como nós temos dificuldade de reconhecer uma forma a partir de imagens ocultas em outras imagens (Vexierbilder). Somente no salto é que a forma, segundo essa concepção, se livra das imagens secundárias. Após outras experiências, no entanto, deve-se supor que a gralha não reconhece de modo algum a forma do gafanhoto em repouso, mas só quando a forma está em movimento. Isso explicaria o imobilismo de muitos insetos. Se a forma em repouso não está presente em absoluto no mundo perceptivo do inimigo perseguidor, então, pelo imobilismo escapam em segurança do campo de visão do inimigo e não podem nem ser encontrados por meio de busca"3 • Esse meio restrito (Ausschnittmilieu), no qual o animal se encontra, por um lado, totalmente adaptado, por outro, totalmente preso (de tal modo que não pode de modo algum ultrapassar o limite - pois "nem sequer pela procura", ainda que 2. lbid., p. 76. 3. lo., Streifzüge durch die Umwelten von Tieren und Menschen Berlin 1934 p. 40. ' ' '

26 i que é filosofar?

dotado de um órgão de busca equipado aparentemente para tal, pode encontrar um objeto que não corresponda ao princípio de seleção desse .mundo a~imal) -'. es_sa realida~e-restrita (Ausschnitt-Wzrklzchkezt), determmada e limitada mediante a finalidade biológica do indivíduo ou da espécie, é denominada por Uexküll meio ambiente (em oposição a "ao redor" [Umgebung]; em oposição também a mundo [Welt]). O campo de relação do animal não é o seu ao redor, menos ainda o seu mundo, mas seu "meio ambiente" neste sentido determinado: um mundo no qual algo é deixado de fora, um meio recortado, no qual seu possuidor ao mesmo tempo está adaptado e trancado. Talvez alguém se pergunte agora o que tudo isso tem a ver com nosso tema "que é filosofar?". A relação, porém, não é tão distante e indireta quanto parece. Estamos perguntando sobre 0 mundo do homem, e este é o aspecto sob o qual o conceito de meio ambiente de Uexküll se torna diretamente interessante, particularmente porque, segundo a opinião de Uexküll, nosso mundo humano "de maneira alguma pode pretender ser mais real que o mundo da percepção dos animais" 4 . Portanto, o homem a princípio está limitado, do mesmo modo que o animal, a seu meio ambiente, ou seja, ao meio restrito que foi selecionado do ponto de vista da adequação a fins biológicos. Também o homem não poderia perceber algo colocado fora desse meio ambiente e "nem mesmo encontrar pela busca" (como uma gralha não pode encontrar um gafanhoto em repouso). Poderse-ia, certamente, indagar: como é possível que tal ser, limitado a seu meio ambiente, preso a ele, poderia empreender pesquisa sobre o meio ambiente? No entanto, não pretendemos provocar polêmicas. Vamos deixar esse ponto num primeiro momento e indagar, voltando nosso olhar para o homem e para o mundo que lhe é ordenado, de que espécie e de que força é a capacidade de relação do ser 4. lo., Die Lebenslehre, Potsdam/Zürich, 1930, p. 131. o objetivo da filosofia 1 27

humano? Dissemos que a capacidadJ:Ae percepção dos animais é, em contraposição ao mundo vegetal, uma força de relação nova e mais ampla. Não se deve talvez agora reconhecer a maneira própria do homem, há muito denominada capacidade de conhecimento espiritual, como um modo novo, não realizável no campo da vida vegetal e animal, de se colocar em relação? E a essa capacidade de relação, essencialmente diferente, não está associado também um campo de relação, isto é, um mundo com dimensões essencialmente de outro tipo? Deve-se responder a essa questão que, de fato, a tradição filosófica do Ocidente compreendeu a faculdade do conhecimento espiritual, e justamente a definiu como faculdade de se colocar em relação com a totalidade das coisas existentes. Como foi dito, isso não significa uma mera característica, mas uma determinação essencial, uma definição. O espírito, segundo sua essência, não é determinado tanto pela característica da não-corporeidade, mas primariamente pela capacidade de relação direcionada à totalidade do ser. Espírito significa uma faculdade de relação com tal amplidão e tal abrangência de força, que o campo de relação associado a ele a princípio ultrapassa as fronteiras do meio ambiente. Pertence à natureza do espírito que seu campo de relação seja o mundo. O espírito não possui meio ambiente, possui mundo. É da natureza do ser espiritual romper os limites do meio ambiente e, portanto, superar ambas as coisas: a adaptação e a limitação (aqui já aparece aquilo que é, ao mesmo tempo, libertador e ameaçador, dado diretamente com a essência do espírito). No livro de Aristóteles Sobre a alma5 se lê: "Agora pretendemos, resumindo o que foi dito até agora sobre a alma, enunciar mais uma vez: a alma é no fundo todo o ser" - um enunciado que se tornou na antropologia da alta Idade Média uma locução francamente estabelecida: anima est quodammodo omnia, a alma é

ern certo sentido tudo, o todo. "Em certo sentido": nomeadamente a alma é de tal modo tudo na medida em que é capaz de, conhecendo, se colocar em relação com a totalidade dos seres (e conhecer algo significa: tornar-se realmente idêntico ao que é conhecido). A alma espiritual está, assim afirma Tomás de Aquino em Sobre a verdade, essencialmente disposta a "convenire cum omni ente"6 , convirá conformar-se com todo os seres, a entrar em relação com a totalidade daquilo que possui ser. "Qualquer outro ser possui somente uma participação fragmentária no ser", enquanto o ser dotado de espírito "é capaz de apreender o ser total" 7 • Na medida em que há espírito, "é possível que em um único ser a perfeição do todo completo possua existência (Dasein)" 8 • Eis pois a afirmação da tradição ocidental: possuir espírito, ser espírito, ser espiritual, tudo isso significa: existir em meio à realidade total, voltado à da totalidade do ser, vis-à-vis de l'univers. O espírito não vive "num mundo" ou em "seu" mundo, mas "no" mundo. Mundo no sentido de visibilia omnia et invisibilia [totalidade do visível e do invisível]. Espírito e realidade total são conceitos recíprocos, que respondem um ao outro. Não se pode "possuir" um sem o outro. A tentativa de atribuir ao homem superioridade sobre o meio ambiente, de dizer que o homem possui um mundo (não um meio ambiente), sem porém falar de sua espiritualidade; mais que isso, a tentativa de afirmar que esse fato (de que o homem possui mundo e não um mero meio ambiente) não tem nada a ver com o outro fato de que o homem é um ser dotado de espírito - essa tentativa é empreendida no livro muito comentado e abrangente de Arnold Gehlen O homem. Sua natureza e sua posição no mundo9 • Gehlen volta-se, com razão, contra Uexküll:

5. III, 8.431 b 21.

6. TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 1,1. 7. lo., Summa contra Gentiles 3, 112. 8. lo., De Veritate 2,2. 9. Der Mensch. Seine Natur und seine Stellung in der Welt, Berlin, 1940.

28 1 que é filosofar?

o objetivo da filosofia 1 29

o homem não está, como um animal, Jleso em um meio ambiente, o homem é livre do meio ambiente e aberto ao mundo. Todavia, continua Gehlen, essa diferenciação entre o animal enquanto ser do meio ambiente e o homem enquanto ser aberto ao mundo não se baseia "na característica [...] do espírito 10 [ ... ]" . No entanto, justamente essa capacidade de possuir mundo é o espírito! Espírito segundo sua essência: faculdade de compreensão para o mundo! Para a filosofia mais antiga - para Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás - o co-pertencimento dos conceitos "espírito" e "mundo" (no sentido de realidade total) é tão estreita e profundamente ancorado em ambos os membros que não só é verdadeira a frase "espírito é relação para com a totalidade dos seres", como também a outra afirmação, de que todas as coisas existentes estão em relação com o espírito, e isso em um sentido muito preciso que mal ousamos, num primeiro momento, levar ao pé da letra. Não só pertence à essência do espírito que o seu campo de relação é a totalidade das coisas existentes, mas também que pertence à essência das coisas existentes estarem no campo de relação do espírito. Ainda mais: para a filosofia antiga significa inclusive o mesmo se digo "as coisas possuem ser" ou se digo "as coisas estão no campo de relação do espírito, estão referidas ao espírito" -, se bem que, obviamente, não se trata de uma espiritualidade "que paira livremente" como algo abstrato, mas trata-se de espírito pessoal, de capacidade de relação fundada em si mesma. E de modo algum se trata, no entanto, somente de Deus, mas também inteiramente do espírito criado, não absoluto, do espírito humano! 10. Ibid., p. 24. Impressionado com a crítica aqui exposta, Gehlen modificou sua posição nas edições posteriores. Agora está dito que o conceito estrutural do homem se baseia "não somente na característica do entendimento" (Gesammtausgabe, ed. K.-S. Rehberg, Frankfurt am Main, 1993; itálico do editor). (Nota do editor alemão) 30 1 que é filosofar?

Para a antiga ontologia, pertence à essência do ser estar ao alcance da alma espiritual. "Possuir ser" significa a mesma coisa que "estar no campo de relação da alma espiritual". Ambos os enunciados querem dizer o mesmo estado das coisas. Este e não outro é, de fato, o sentido da antiga frase, cujo entendimento perdeu-se de nós totalmente: todo ente é verdadeiro (omne ens est verum), bem como da outra frase de mesmo significado: "ente" e "verdadeiro" são conceitos permutáveis. O que significa "verdadeiro" no sentido da verdade-coisa, da verdade da coisa? "Uma coisa é verdadeira" significa: é conhecida e cognoscível, conhecida mediante o espírito absoluto, cognoscível para o espírito não-absoluto. (Infelizmente não é possível aqui fundamentar essa interpretação de modo mais detalhado 11 .) Qualidade de ser conhecido e cognoscível - o que é isso senão referência ao espírito cognoscente! E quando, portanto, a filosofia antiga diz que pertence à essência das coisas existentes serem conhecidas e cognoscíveis, que não há de modo algum entes que não sejam conhecidos ou cognoscíveis (todo ente é verdadeiro!); quando ainda a filosofia antiga diz mesmo que os conceitos "ente", por um lado, e "conhecido, cognoscível", por outro, são permutáveis, que um pode tomar o lugar do outro de tal modo que é o mesmo se digo "as coisas possuem ser" ou se digo "as coisas são conhecidas ou cognoscíveis" - então, a filosofia antiga enunciou com isso justamente que está na essência da coisa mesma ser referida ao espírito. (Esse é o ponto importante para nós no contexto de nossa questão.) Resumamos, portanto: o mundo associado ao ser espiritual é a totalidade das coisas existentes. Isso equivale a dizer que essa associação pertence tanto à essência do espírito - espírito é a faculdade de compreensão da totalidade do ser - como à essência das coisas existentes - ser significa estar remetido ao espírito. 11. Cf. Josef PIEPER, Wharheit, der Dinge. Eine Untersuchung zur Anthropologie des Hochmittelalters, München, 1948 (Werke 5). o objetivo da filosofia 1 31

Vimos que existem graus de "muriâps": o inferior, o mundo das plantas, é limitado já espacialmente à proximidade de contato; sobre este sobrepõe-se o meio ambiente dos animais; por fim, abrangendo por sobre todos esses mundos pequenos e parciais, o mundo associado ao espírito, o mundo autêntico enquanto totalidade do ser. A essa hierarquia dos mundos correspondem os campos de relação, portanto, vimos que há uma hierarquia das capacidades de relação: quanto mais abrangente a faculdade de relação, tanto mais extensamente dimensionado é o campo de relação, o "mundo" subordinado. A essa seqüência gradual dupla deve-se acrescentar agora um terceiro elemento constitutivo: o fato de que à capacidade de relação mais forte corresponde um grau mais elevado de interioridade; que, portanto, a faculdade de relação é mais abrangente e mais ampla na mesma medida em que o portador da relação é "mais dotado de interioridade"; que à faculdade de relação mais baixa corresponde não só a forma mais baixa de mundo, mas também o menor grau do ser-em-si, enquanto ao espírito como faculdade de relação dirigida para a totalidade do ser deve também corresponder o modo mais supremo do ser-em-si. Quanto mais abrangente a capacidade de se remeter ao mundo do ser objetivo, tanto mais profundamente a capacidade de tal abrangência está ancorada no interior do sujeito. Onde existe um grau mais elevado de "amplidão de mundo", especialmente de orientação para a totalidade, aí também é alcançado o grau máximo de fundação-em-si-mesmo, que é o próprio do espírito. Assim, ambas as coisas juntas perfazem a essência do espírito: não somente a faculdade de relação dirigida ao totum do mundo e da realidade, mas também a capacidade exterior do estar em si mesmo, do em-si-mesmo, da independência, da autonomia - precisamente aquilo que na tradição ocidental desde sempre é caracterizado como ser pessoa, como personalidade. Possuir um mundo, ser remetido à totalidade das coi32 1 que é filosofar?

sas existentes só pode ser atributo de um ser fundado em si mesmo, não um quê, mas um quem, um eu-mesmo, uma pessoa. Agora chegou o momento de lançar um olhar retrospectivo à questão da qual partimos. Eram duas, uma mais próxima, outra mais distante. A mais próxima: de que espécie é o mundo do homem? A mais distante: que é filosofar? Antes, porém, de retomá-las, mais uma nota sobre a estrutura do mundo associado ao espírito. Não é somente por meio da ampla distensão espacial que o mundo do ser espiritual se diferencia do meio ambiente do ser não-espiritual (em geral não se presta atenção a isso no debate sobre mundo e meio ambiente). Não é somente por meio da "totalidade das coisas", mas simultaneamente por meio da "essência das coisas" que o mundo associado ao espírito se constitui. Por isso é que o animal está limitado em um meio recortado, pois a essência das coisas se mantém oculta para eles. E somente porque o espírito é capaz de alcançar a essência das coisas é-lhe dado apreender a sua totalidade - cujo contexto a antiga ontologia compreendeu: assim como o universo, também a essência das coisas é "universal". Tomás de Aquino afirma: "porque é capaz de apreender o universal, a alma espiritual possui a capacidade do infinito" 12 • Quem, ao conhecer, alcança a essência universal, a essência total das coisas, adquire justamente a partir disso um ponto de vista de onde a totalidade e o todo do ser, de todas as coisas existentes tornam-se acessíveis e visíveis. No conhecimento espiritual atinge-se a posição de um posto avançado ou ainda alcançável, a partir do qual o campo do universo pode ser visto. Aqui se abre um campo para o qual só podemos lançar um olhar de passagem, mas que conduz ao centro de uma doutrina filosófica do ser, do conhecer, do espírito. Agora, no entanto, voltemos às questões que nos propusemos responder. Primeiro, a questão mais próxima: de que es12. Suma teológica I, 76, 5 ad 4. o objetivo da filosofia 1 33

pécie é o mundo do homem? É o mun!Jo associado ao espírito o mundo do homem? Deve-se responéfe"r: o mundo do homem é a realidade total, o homem vive em meio e em face da totalidade das coisas existentes, vis-à-vis de l'univers - enquanto e na medida em que o homem é espírito! No entanto, ele não só não é puramente espírito, mas é espírito finito. Assim, a essência das coisas e a totalidade destas não lhe são dadas de maneira definitiva e perfeita, mas "em esperança ". Voltaremos a isso adiante. Antes de mais nada, o homem não é espírito puro. Pode-se enunciar essa frase com diversos acentos. É usual enunciá-la no modo de lamento - uma acentuação que costuma ser tomada, por cristãos e não-cristãos, como especificamente cristã. A frase pode também ser enunciada de tal modo que diga: com certeza o homem não é espírito puro, mas o "homem autêntico" é a alma espiritual. Essas opiniões, todavia, não têm apoio nenhum na tradição doutrinal clássica no Ocidente cristão. Em Tomás de Aquino há, a esse respeito, uma formulação muito aguda e pouco conhecida. Ele faz a si mesmo a seguinte objeção: "A finalidade do homem é o assemelhar-se perfeitamente a Deus. Mais do que a alma unida ao corpo, será porém a alma separada do corpo a mais semelhante a Deus, que é incorpóreo. E, por isso, as almas no estado de beatitude última serão separadas do corpo". Essa objeção revela a tese de que o homem autêntico seria a alma espiritual, tese que, por assim dizer, é coroada com o brilho tentador de um argumento teológico. A essa objeção, responde Tomás de Aquino da seguinte maneira: "A alma unida ao corpo é mais semelhante a Deus do que a alma separada, porque possui de modo mais perfeito a sua natureza própria" 13 - uma frase não tão simples de ser compreendida, na qual está afirmado não só que o homem é corpóreo, mas até mesmo, em certo sentido, que a própria alma é corpórea. 13.

TOMÁS DE AQUINO,

34 1 que é filosofar?

De potentia 5, 10, ad 5.

Se, no entanto, é assim, se o homem essencialmente "não é só espírito", se o homem é, não p_or causa de -~m fracasso, nem de um retrocesso de seu ser autêntico, mas positivamente e do modo mais genuíno, um ser no qual o campo da vida vegetal, animal e espiritual se ligam em uma unidade, então o homem também vive essencialmente não só em face da realidade total, do mundo total das essências, mas seu campo de relação é um entrelaçamento entre "mundo" e "meio ambiente", entrelaçamento necessário, de acordo com a natureza do homem. Porque o homem não é espírito puro, não pode viver unicamente "nas estrelas", vis-à-vis de l'univers. Pelo contrário, ele necessita do teto sobre a cabeça, precisa do meio ambiente próximo e familiar do cotidiano, carece da proximidade sensível do concreto, da adequação na forma justa das relações costumeiras - e~ uma p~­ lavra: pertence a uma vida realmente humana tambem o meio ambiente (no sentido em que este se diferencia de mundo). Todavia, pertence ao mesmo tempo à essência do homem corpóreo-espiritual o fato de que a alma espiritual informa os âmbitos do vegetativo e do sensitivo, ~e tal modo que até a alimentação do homem é algo muito diferente da dos animais (sem contar que no âmbito humano existe o "banquete", que é algo inteiramente espiritual). A alma espiritual informa de tal maneira todos os demais âmbitos que mesmo quando o homem "vegeta" isso só é possível em função do espírito (a planta não "vegeta", assim como o animal!). E mesmo esse não-humano a auto-inclusão do homem no meio ambiente (quer dizer, no' mundo restrito determinado pelos fins vitais imediatos), mesmo essa degeneração só é possível por força de uma degeneração espiritual. Humano, ao contrário, significa conhecer além das estrelas, perceber além do invólucro da adequação costumeira ao cotidiano a totalidade das coisas existentes, além do meio ambiente o mundo que o abrange. Com isso, porém, demos de modo inteiramente inesperado o passo para a primeira questão, para nossa questão propriao objetivo da filosofia 1 35

mente dita: que é filosofar? Filosofar ~nifica justamente isto: experimentar que o meio ambiente próximo, determinado pelos fins vitais imediatos, pode ser abalado, mais, deve ser abalado reiteradamente por meio do chamado inquietante do "mundo", da realidade total que espelha as eternas essências das coisas. Filosofar significa (havíamos indagado: para onde vai o ato filosófico ao ultrapassar o mundo do trabalho?): ultrapassar o meio restrito do mundo do trabalho na direção do vis-à-vis de l'univers. Trata-se de um passo que conduz à amplidão das estrelas, que não são um teto sobre a nossa cabeça. Um passo que se mantém constantemente aberto para o retorno, pois o homem não pode viver assim por muito tempo. Quem pretenderia levar a sério a possibilidade de abandonar completa e definitivamente o mundo do trabalho da criada trácia, sem abandonar a própria realidade humana! Aqui vale exatamente o mesmo que Tomás de Aquino afirmou a respeito da vita contemplativa: esta é genuinamente algo sobre-humano: "non proprie humana, sed superhumana" [não propriamente humana, mas sobre-humana] 14. Com certeza, o homem mesmo é algo sobrehumano. O homem supera infinitamente o homem, diz Pascal. A tentativa de uma definição completa passa longe do homem. Não pretendemos aqui continuar desenvolvendo essas idéias, que aparentemente chegam próximo do devaneio, mas reformular de modo inteiramente concreto e, por assim dizer, palpável a questão "que é filosofar?", a partir do que até agora dissemos, e tentar responder em uma nova aproximação. Como se diferencia uma questão filosófica de uma nãofilosófica? Filosofar significa, tal como dissemos, voltar o olhar para a totalidade do mundo. É, portanto, a questão filosófica (e somente ela) que tem expressa e formalmente por tema a totalidade do ser, o todo das coisas existentes? Não! Mas, o próprio e o diferenciador de uma questão filosófica é o fato de ela não 14. lo., De virtutibus. cardinalibus 1. 36 1 que é filosofar?

poder ser formulada, refletida e respondida (na medida em que uma resposta é possível) sem que simultaneamente "Deus e o mundo" entrem no jogo, ou seja, a totalidade daquilo que é. Tentemos uma resposta de modo ainda mais concreto. A questão "o que fazemos aqui e agora?" pode, evidentemente, ser entendida de modos diferentes. Ela pode também ser entendida filosoficamente. Vejamos! A questão pode ser formulada de tal modo que se espere uma resposta de tipo eminentemente técnico-organizatório. "O que está acontecendo aqui?", "Aqui está ocorrendo uma conferência, no âmbito da Semana Universitária de Bonn". Trata-se de um enunciado distinto e orientador, inserido em um mundo (ou antes: meio ambiente) claramente limitado e completamente claro. Essa resposta é enunciada com um olhar voltado para o que está mais próximo. Mas a questão pode também ser entendida de outro modo. Poderia acontecer que o indagador não se satisfizesse com tal resposta. "O que fazemos aqui e agora?": alguém fala, outros ouvem a palavra falada e os ouvintes "entendem" o que se diz. Desenrola-se em muitos mais ou menos o mesmo processo mental. O que se diz é apreendido, pensado, refletido, aceito, rejeitado, admitido com restrições, introduzido no próprio tecido de pensamentos. Essa questão visa a uma resposta das ciências particulares. Pode ser entendida de tal modo que a fisiologia dos sentidos e a psicologia (da percepção, da apreensão, do aprendizado, da contenção na memória etc.), as ciências particulares sejam chamadas e sejam suficientes para a resposta. Tal resposta estaria num mundo mais amplo e superior ao da resposta puramente técnico-organizatória anterior. Mas a resposta das ciências particulares não estaria ainda no horizonte da realidade total, poderia ser dada sem que simultaneamente se precisasse falar "de Deus e do mundo". Se, no entanto, a questão "o que fazemos aqui e agora?" for entendida filosoficamente, então não será possível não falar "de Deus e do mundo". Não será possível se a questão for entendida de tal modo que ao mesmo o objetivo da filosofia 1 37

tempo se indague a respeito da essênçl: do conhecer, da verdade ou mesmo apenas da essência do ensinar. O que significa, em absoluto e em seu fundamento último, ensinar? Alguém pode dizer: um homem não pode em absoluto realmente ensinar; assim como quando um doente se recupera, não foi 0 médico que o curou, mas a natureza cuja força curativa (talvez) o médico apenas libertou. Outro pode dizer: É Deus quem ensina interiormente - por ocasião do aprendizado humano. Sócrates poderia dizer: o mestre só faz com que o aprendiz, recordando-se, "adquira o saber a partir de si mesmo'', "não há aprendizado, somente reminiscência" 15 • Finalmente, outro poderia afirmar: nós, humanos, estamos todos diante da mesma realidade; o mestre aponta para ela, o aprendiz, o ouvinte então a vê por si mesmo. O que fazemos aqui, o que está em jogo? Algo organizatório no quadro de uma série de conferências. Algo apreensível e investigável por meio da fisiologia e da psicologia. Algo entre Deus e o mundo. Eis, portanto, o que é próprio e diferenciador de uma questão filosófica: que nesta vem à tona aquilo que perfaz a essência do espírito, o convenire cum omni ente, a conveniência com tudo o que existe. Não se pode questionar e pensar filosoficamente sem que entre em jogo a totalidade do ser, o todo das coisas existentes, "Deus e o mundo".

15.

PLATÃO,

Mênon 85 d 4; 82 a ls.

38 1 que é filosofar?

MEIO AMBIENTE E MUNDO

Dissemos que é próprio do homem necessitar adaptar-se ao "meio ambiente" e, ao mesmo tempo, estar orientado para o "mundo", para a totalidade do ser; e que é da essência do aro filosófico transcender o "meio ambiente" e penetrar no "mundo". Isso, no entanto, não pode significar que exista aí, por assim dizer, espaços separados e que o homem possa sair de um e adentrar no outro. Não é assim, como se existissem coisas caracterizadas por possuírem seu lugar no "meio ambiente" e outras que não ocorrem no "meio ambiente", mas somente na outra região, a do "mundo". Obviamente, meio ambiente e mundo (por mais que utilizemos estes conceitos) não são duas regiões separadas da realidade, de modo que o indagador filosófico saísse de uma região e entrasse na outra! O filosofante não vira o rosto quando, no ato filosófico, transcende o meio ambiente do cotidiano do trabalho. Não tira o olhar das coisas do mundo do trabalho, das coisas concretas, sujeitas a fins, manuseáveis do cotidiano. Não olha em outra direção a fim de ali então enxergar o mundo universal das essências. Não. Antes é para esse mundo mesmo, que se encontra diante de nossos olhos, visível, palpável, que a contemplação 1 39

filosófica se dirige. Porém, esse mundC?.&~ssas coisas, esse estado de coisas são questionados de um modo especial. São questionados em sua essência última, universal, total, e assim o horizonte da questão se torna horizonte da realidade total. A questão filosófica dirige-se inteiramente a "isso" ou "aquilo" que está diante dos olhos, não a algo que esteja "fora do mundo" ou "em outro mundo" além do mundo da experiência do dia-a-dia. No entanto, a questão filosófica pronuncia: o que é "isso" em geral e em última análise? Platão 1 diz: o que o filósofo anseia saber não é se te causo injustiça ou tu a mim, mas o que é justiça em geral; não é se um rei proprietário de muito ouro é feliz ou não, mas o que é dominação, felicidade, miséria em geral - em geral e em última análise. O questionar filosófico, portanto, dirige-se inteiramente para o que se encontra cotidianamente diante dos olhos. Porém: isso que se encontra diante dos olhos torna-se, para quem indaga daquele modo, transparente e translúcido, perde sua compacidade, sua conclusividade aparente, sua obviedade. As coisas mostram uma face estranha, desconhecida, não-familiar e profunda. O Sócrates interrogador, que sabe tirar de repente a obviedade das coisas, compara-se ele mesmo com o peixeelétrico cujo choque faz paralisar. Todo dia falamos que este é "meu" amigo, esta é "minha" esposa, "minha" casa, que, portanto, "possuímos" ou "temos" tudo isso. De repente, ficamos estupefatos: "possuímos" de fato todos esses "bens"? Podem, em geral, ser possuídos? O que significa em geral e em última análise possuir algo? Filosofar significa: distanciar-se, não das coisas do dia-adia, mas das interpretações correntes, das valorações corriqueiramente válidas dessas coisas. E isso não em função de alguma decisão de se diferenciar, de ser "diferente" da maioria, mas pelo fato de que de repente uma nova face das coisas vem à 1. ID., Teeteto, 175 e lss. 40 1 que é filosofar?

tona. Trata-se exatamente desse estado de coisas: nas próprias coisas que estão cotidianamente à mão torna-se perceptível o rosto mais profundo do real (não numa esfera do "essencial" destacada contra o cotidiano, ou como quer que se a chame); portanto, diante do olhar dirigido às coisas encontradas na experiência cotidiana se apresenta o não-cotidiano, o que não é mais óbvio nessas coisas. É exatamente a esse estado de coisas que está associado aquele acontecimento interior no qual se colocou há muito o início do filosofar: a admiração. "Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande admiração o que tudo isso possa ser, e só de considerá-lo, chego a ter vertigens" - exclama o jovem matemático Teeteto depois de Sócrates, o questionador astuto e benévolo, surpreendente e paralisante (paralisado pela admiração!). E no diálogo Teeteto de Platão 2, continua a resposta irônica de Sócrates: "Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou erradamente tua natureza, pois a admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia". Neste ponto, na serenidade matinal e totalmente sem cerimônia, quase de passagem, foi trazido à palavra pela primeira vez o pensamento que, atravessando a história da filosofia, se tornou um lugar-comum: o começo da filosofia é a admiração. No fato de que o filosofar começa na admiração, evidencia-se, por assim dizer, o caráter fundamentalmente não-burguês da filosofia. Pois a admiração é algo não-burguês (seja-nos permitido, não inteiramente sem constrangimento, recorrer a essa terminologia que se tornou corrente). O que significa o emburguesamento em sentido espiritual? Antes de tudo, o seguinte: que alguém tome o meio ambiente próximo, determinado pelas finalidades da vida, de modo tão definitivo e compacto, a ponto de as coisas que encontra não serem mais capazes de se tornar transparentes. O mundo das essências, maior, 2. Ibid., 155 e-d. meio ambiente e mundo 1 41

mais profundo e mais autêntico, de .jício "invisível", não é mais pressentido. O admirável não ocorre mais, não surge mais: o homem não é mais capaz de se admirar. O sentido burguês, que se tornou embotado, acha tudo óbvio. O que é, porém, verdadeiramente óbvio? É por acaso óbvio que existimos? É óbvio que existe a visão? Quem está preso no cotidiano, no cotidiano interior, não pode fazer esses questionamentos porque não consegue (quando com os sentídos despertos ou, no máximo, quando atordoado) esquecer de uma vez os fins imediatos da vida. Mas é exatamente isso que caracteriza quem se admira: para ele, para o homem surpreendido pela face profunda do mundo, os fins imediatos da vida silenciam, pelo menos quando olha surpreendido para a face admirável do mundo. Assim, é aquele que se admira, somente ele, quem na forma pura realiza aquela atitude originária para com o ser, denominada desde Platão theoria, a percepção puramente receptiva da realidade, não turbada por qualquer apelo intermediário da vontade. Só há theoria enquanto o homem não se torna cego para o admirável que há no fato de que algo existe. Pois o que suscita a admiração do filosófico não é o que "nunca se viu", o anormal e sensacional, capaz de provocar alo parecido com a verdadeira admiração num espírito que se tornou embotado. Quem necessita do inusitado para chegar à admiração mostrase justamente nisso como alguém que perdeu a capacidade de dar a resposta certa ao mirandum do ser. A necessidade de sensação, mesmo adorando aparecer sob a máscara da Boheme, é um sinal infalível da perda da autêntica força de admiração e, portanto, da humanidade emburguesada. Perceber no que é cotidiano e familiar o verdadeiramente estranho e não-cotidiano, o mirandum: este é o começo do filosofar. E nisso, tal como Aristóteles e Tomás de Aquino afirmam, o ato filosófico é aparentado ao ato poético. Ambos, o filósofo e o poeta, teriam a ver com o admirável, com aquilo que gera e promove admiração. Aliás, no que diz respeito ao 42 1 que é filosofar?

poeta, assim fecha Goethe, aos 70 anos, um pequeno poema (Parabase) com o verso: "Existo para admirar"; e aos 80 anos diz para Eckermann3 : "o máximo que o homem pode atingir é a admiração". Essa "não-burguesice" do filósofo e do poeta - na medida em que conservam o poder de admiração em forma tão pura e forte - inclui em si com certeza o perigo do desarraigamento do mundo cotidiano do trabalho. A alienação do mundo e da vida é de fato, por assim dizer, o perigo de profissão tanto do filósofo como do poeta (todavia, não há propriamente filósofo profissional, nem poeta profissional - o homem não pode viver assim por muito tempo, como já foi dito). Admirar-se não torna hábil; pois admirar-se significa ser abalado. Quem se decide a existir sob o signo do antigo grito de admiração: "por que afinal existe o ser?", terá de se precaver contra a ameaça de alienação que lhe vem do mundo do trabalho. Aquele para quem tudo se torna mirandum corre o risco de se esquecer do trato manipulador cotidiano com estas realidades que lhe vêm ao encontro. O que é certo, no entanto, é o seguinte: o poder de admiração pertence às supremas possibilidades da natureza humana. Tomás de Aquino vê aqui quase uma prova de que só na visão de Deus o homem pode ser saciado. E vice-versa: vê nessa orientação para o conhecimento do fundamento absoluto do mundo a causa de o homem ser capaz de se admirar. Tomás defende a opinião de que na admiração começa um caminho em cujo fim se encontra a visio beatifica, a visão beatificante da causa última. A prova de que a natureza humana não está disposta a nada menor que a esse fim é o fato de o homem ser capaz de experimentar o mirandum da criação, ser capaz de se admirar. O abalo, sentido por aquele que se admira, o abalo do até então óbvio, que agora de repente, num instante, perde sua 3.

GOETHE,

Gesprdche mit Eckermann, 18/2/1829. meio ambiente e mundo 1 43

obviedade compacta, esse abalo pode, .mo foi dito, desarraigar aquele que se admira. Porém, não· é só dessa forma que perde a segurança do trato cotidiano do trabalho (isso no fundo é algo inofensivo), mas também no sentido perigoso de que a ele, como cognoscente, não apenas como agente, o chão sob os seus pés começa a faltar. É estranho que, sobretudo na filosofia moderna, quase só essa face da admiração tenha sido vista, de modo que a antiga afirmação da admiração como o começo da filosofia tenha se convertido na afirmação de que no início da filosofia encontrase a dúvida. Assim afirma Hegel em suas Lições sobre a História da Filosofia, quando se refere a Sócrates e a seu método de conduzir o interlocutor à admiração diante do aparentemente óbvio, dizendo que a confusão é o elemento principal: "Esse fato meramente negativo é o ponto capital. É com a confusão que a filosofia começa em absoluto, uma confusão que ela produz para si mesma: é preciso duvidar de tudo, abandonar todos os pressupostos a fim de possuí-los novamente, gerados então pelo conceito" 4 • Em plena sintonia com essa linha, no fundo cartesiana, Windelband, em sua famosa Introdução à filosofia, praticamente germaniza a palavra grega 8avµáÇnv ao traduzi-la como o "enlouquecimento do pensamento em si mesmo" 5 • (Chesterton, note-se aqui de passagem, a respeito dessa "ausência de pressuposto", cunhou a seguinte afirmação: há uma forma especial de loucura que consiste em alguém perder tudo, menos a razão.) Será que o sentido verdadeiro da admiração realmente se encontra no desarraigamento, na evocação da dúvida? Ou antes no fato de que um novo e mais profundo arraigamento se torna possível e necessário? É certo que a admiração inclui cer4. HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie II, in Sdmtliche Werke üubilauns-Ausgabe), ed. H. Glockner, Stuttgart, 1927ss., v. 18, p. 69. 5. W. WINDELBAND, Einleitung in die Philosophie, Tübingen, 1923, p. 6.

44 1 que é filosofar?

ta desilusão - que, no fundo é algo positivo: a libertação da ilusão - para aquele que admira, pois as obviedades perdem sua validade até então indubitada e fica claro que elas não são definitivas. No entanto, o sentido da admiração é a experiência de que o mundo é mais profundo, mais amplo, mais misterioso do que parece ao entendimento comum. O sentido interno da admiração vai na direção do mistério. Ela não visa à provocação da dúvida, mas ao despertar do conhecimento de que o ser enquanto ser é incompreensível e misterioso - que o ser mesmo é um mistério, no sentido genuíno: não mera inviabilidade, não absurdo, nem mesmo propriamente obscuridade. Mais que isso: mistério significa que uma realidade é incompreensível porque sua luz é inesgotável e inexaurível. É isso que experimenta propriamente aquele que se admira. Nesse ponto fica evidente que admirar e filosofar estão ligados um ao outro num sentido muito mais essencial do que à primeira vista parece estar expresso na frase "a admiração é o início da filosofia". A admiração não só é o começo da filosofia - no sentido de initium, início, primeiro estágio, grau anterior. Mais do que isso, admiração é principium, origem interna e permanente do filosofar. Não é que o filósofo, ao filosofar, saia "para fora da admiração" - ele, justamente, não sai da admiração, a não ser que deixe de filosofar em sentido autêntico. A essência do filosofar é praticamente idêntica à essência da admiração. Por isso, já que levantamos a questão "que é filosofar?", precisamos ainda examinar mais atentamente a essência da admiração. Na admiração há algo negativo e algo positivo. O negativo consiste em que aquele que se admira não sabe, não compreende, não conhece o que "está por trás"; como diz Tomás de Aquino, "a causa daquilo a respeito do qual nos admiramos énos oculta" 6 • Portanto, quem se admira não sabe; ou não sabe 6.

TOMÁS DE AQUINO,

De potentia 6, 2. meio ambiente e mundo 1 45

perfeitamente, não compreende. Que.lf" compreende não se admira. Não se pode dizer de Deus que ele se admira, pois Deus sabe tudo do modo mais perfeito. E mais: o que se admira não só não sabe, ele tem consciência de que não sabe, entende o fato de não saber. Todavia, esse não é o não-saber da resignação. Ao contrário, o que se admira é alguém que se põe a caminho. À admiração pertence tanto que o homem silencie pasmado por um instante como se ponha à procura. Em Tomás de Aquino, na Suma teológjca7 , a admiração é diretamente definida mediante o desiderium sciendi, o anseio por saber, reivindicação ativa por saber. Admiração, embora seja um não-saber, não é apenas nãoresignação, pois da admiração advém o deleite, como diz Aristóteles8. A Idade Média repetiu-o: "omnia admirabilia sunt delectabilia"9, ou seja, tudo o que provoca admiração causa deleite. Talvez até se ouse dizer: onde quer que se encontre deleite espiritual, aí também deve-se encontrar o admirável, e onde quer que se encontre capacidade de deleite, aí também se encontra a faculdade de se admirar. O deleite daquele que se admira é o de um iniciante, de um espírito voltado e tensionado sempre a algo novo, inaudito. Nesta ligação entre positivo e negativo, porém, abre-se a estrutura de esperança da admiração, a forma construtiva da esperança - própria justamente também do filosofar, assim como da própria existência humana. Somos essencialmente viatores, caminhantes, "ainda não" somos. Quem poderia dizer que já possui o ser que lhe cabe? "Não somos, esperamos ser", afirma Pascal1°. E no fato de que a admiração também possui a forma construtiva da esperança, mostra-se o quanto ela pertence à 7. I, II, 32, 8. 8. ARISTÓTELES, Retórica I, 11, 1371 a 30ss. 9. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica I, II, 32, 8. 10. PASCAL, Pensées, n. 72 (segundo a numeração de L. Brunschvicg).

46 1 que é filosofar?

existência humana. A filosofia antiga entendia de fato a admir:ção como.algo d.istintivamente humano. O espírito absoluto n:o s~ a~mira, pms não lhe cabe o negativo, porque em Deus nao h: nao-sa~er - somente quem não compreende se admira. Tambem o animal não se admira, pois, como diz Tomás de Aquino, "não pertence à alma sensível se intranqüilizar em função do.c~nhecimento das causas" 11 • No animal não há 0 aspecto posltlvo da estrutura de esperança da admiração que é . d ' o deseJO e saber. Só pode se admirar quem "ainda não" sabe. Para os antigos a admiração era algo tão distintivamente humano, que se usou, nas disputas doutrinais cristãs um "argum~nto a par~ir da admiração:' como argumento p~ra a verdadeira humanidade de Cristo. Ario negara a divindade de Cristo. Apolinári~, ao contrário, formulou a tese: 0 Logos eterno tomou em Cnsto o lugar da alma espiritual e ligou-se imediatamente com, o corpo. (Não interessa aqui 0 aspecto teológico, no ·.entanto, e ~esses contextos teológicos que a intenção da antiga on,tolog1a se. expressa como que "sob juramento"!) . , ~ornas de Aqumo apre.sentou, contra a doutrina de Apolmano, segundo a qual a Cnsto não seria atribuível uma humanida~e ~ompleta, de corpo e alma, o argumento a partir da adm1raçao. ~omás de.Aquino diz: a Sagrada Escritura (Lc 7,9) narra que Cnsto admirou-se (na narrativa do centurião de Cafarnaum: "Senhor, eu não sou digno, mas dize somente uma palavra [... ]", em seguida: "Jesus ouviu isso e admirou-se"· tBavµCí~v). Se, porém, Jesus pôde se admirar, então, diz Tomá~ de Aqumo, seria necessário admitir algo "fora da divindade do Verbo e.da alma sensível" (é própria a ambas a impossibilidade da.admiração!), assim seria necessário admitir alguma coisa em Cnsto pela qual a admiração lhe pertencesse, e esta seria: a mens humana, "a alma espiritual humana" 12 • Somente para aquele 11. TOMÁS 12. Ibid.

DE AQUINO,

Contra gentiles 4, 33.

meio ambiente e mundo 1 47

que se ~dmira, isto é, somente para '1 poder espiritual de conhecimento, que não possui e não vê tudo de uma vez, a realidade dada pelos sentidos pode se tornar transparente aos poucos e as suas profundezas mais essenciais podem se tornar cada vez mais evidentes. Justamente esse algo distintivamente humano pertence também ao filosofar. "Nenhum deus filosofa ou deseja ser sá13 bio, pois já é", assim diz Diotima, no Banquete de Platão, "nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios ... Não deseja, portanto, quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso." "Quais são, Diotima, pergunto eu [Sócrates], os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes?" Ao que ela replica: "É o que é evidente desde já até a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos". Esse meio é precisamente o terreno do verdadeiramente humano. Verdadeiramente humano é, de um lado, não compreender (como Deus) e, de outro, não se endurecer, não se fechar no mundo do cotidiano, que se crê plenamente iluminado, não se satisfazer com o não-saber, não perder a maleabilidade infantil, própria de quem tem esperança e somente dele. Desse modo o filósofo, como o que se admira, é superior à limitação desesperada da estupidez - ele é um esperançoso! No entanto, ele é inferior àquele que possui definitivamente, aquele que sabe, que compreende. O filósofo, aquele que se admira, é um homem cheio de esperanças. É também mediante essa estrutura da esperança (entre outras!) que a filosofia se diferencia das ciências particulares. Nas ciências particulares e na filosofia há por princípio uma relação diferente com o objeto. A questão das ciências particulares é por princípio definitivamente passível de resposta ou, pelo menos, não é por princípio irrespondível. Pode-se dizer conclusivamente (ou: poder-se-á supostamente um dia dizer de 13.

PLATÃO,

Banquete 204 a 1-b 2.

48 1 que é filosofar?

modo definitivo), por exemplo, quem é o agente de determinada doença infecciosa. A princípio é possível que um dia se possa dizer: a partir de agora está provado cientificamente, sem objeções, que as coisas são assim e não de outro modo. Nunca, porém, uma questão filosófica (por exemplo, que é isso "em absoluto e em última análise"? Que é doença em absoluto, que é conhecer, que é o homem?) poderá ser respondida de modo definitivo e conclusivo. "Nenhum filósofo jamais foi capaz de compreender completamente a essência nem mesmo de uma , d e Aqumo . 14, d e quem também provém a mosca", d"1z T ornas outra frase, quase contraditória: "o espírito cognoscente avança para a essência das coisas" 15 • O objeto da filosofia é dado ao filósofo na esperança. A isso se refere a expressão de Dilthey: "As exigências que se apresentam ao filósofo são irrealizáveis. Um físico é um ser agradável,, útil para si e para outros. O filósofo existe, tal como o santo, somente como ideal" 16 • Está na essência das ciências particulares que estas se livrem da admiração na mesma medida em que alcançam "resultados". O filósofo, no entanto, nunca se livra da admiração. Com isso, ficam claros, ao mesmo tempo, o limite e a grandeza da ciência, bem como a estatura e a problematicidade da filo_sofia. Com certeza, morar "sob as estrelas" é algo "em si" mais nobre. No entanto, o homem não foi criado de modo a sup~r:ar por muito tempo tal moradia! De fato, a questão que se dmge para o todo do mundo e para a essência última das coisas é "em si" de maior valor. Porém, a resposta não nos é simplesmente acessível como a resposta às questões das ciências particulares! O aspecto negativo que encontramos na estrutura da esperança foi o que caracterizou o conceito de filosofia desde o 14. TOMÁS DE AQUINO, Symb. Apost., Prólogo (n. 864). 15. Suma teológica, I, II, 31, 5. 16. Briefwechsel zwischen Wilhelm Dilthey und dem Grafen Paul Yorck v. Wartenburg 1877-1897, Haale-Saale, 1923, p. 39. meio ambiente e mundo 1 49

começo. Desde a sua origem, a filosofiJ:não se entendeu como uma forma especial e superior de saber, mas expressamente se designou ;:orno uma forma consciente de automodera?ão. As palavras "filosofia" e "filósofo" foram, segundo uma antiga lenda, cunhadas por Pitágoras, inclusive em oposição declarada às palavras sophia e sophos: nenhum homem é sábio e sapiente, sábio e sapiente é somente Deus. Desse modo, o homem pode, no máximo, denominar-se um amante da sabedoria: um philosophos. É assim que pensa Platão. No Fedro 17 , lança-se a questão do nome que convém a Sólon, e também a Homero. Sócrates decide: "O nome de sábio, Fedro, me parece excessivo; só vai bem com referência a Deus; o de amigo da sabedoria, ou outra designação equivalente, além de ser mais modesto, conviria melhor". Essas narrações são conhecidas e tendemos a tomá-las como algo meramente anedótico, algo pertencente ao âmbito da retórica. Há, todavia, creio eu, motivo suficiente para ser muito preciso neste ponto e levar a sério essa origem etimológica em seu sentido enunciado. O que, exatamente, está enunciado? Sobretudo, duas coisas. Primeiro, que não "possuímos" o saber, a sabedoria visada pela questão filosófica. Em seguida, que não só o possuímos de modo provisório e casual, mas por princípio não podemos possuí-lo. Trata-se aqui de um eterno ainda-não. A questão sobre a essência contém propriamente a reivindicação do compreender (Begreifen). Compreender significa, segundo Tomás de Aquino, conhecer algo na medida em que é em si cognoscível; transformar toda cognoscibilidade em conhecimento de fato, conhecer algo "até o fim" 18 • Ora, não há simplesmente nada que o homem possa conhecer desse modo, no sentido estrito da compreensão. Assim, pertence à natureza da 17. PLATÃO, Pedro 278 d 2ss. 18. TOMÁS DE AQUINO, Super ]oh. I, 11 (n. 213).

50 1 que é filosofar?

questão da essência, ou seja, da questão filosófica (enquanto for expressa por um homem), que ela não pode ser respondida no mesmo sentido em que foi formulada. Pertence à natureza da filosofia tender para uma sabedoria que, todavia, lhe permanece inalcançável. Certamente não de modo que não houvesse em absoluto nenhuma relação. Essa sabedoria é objeto da filosofia, mas como algo procurado com amor, não como algo possuído. Eis, portanto, a primeira coisa que está expressa na interpretação pitagórica e socrático-platônica da palavra philosophia. Esse enunciado foi recebido e esclarecido na Metafísica de Aristóteles. Penetrou também, por meio de Aristóteles, nas obras dos grandes pensadores medievais. Por exemplo, encontram-se no comentário escrito por Tomás de Aquino a esse capítulo da Metafísica de Aristóteles algumas variações notáveis e profundas a respeito desse pensamento. Assim, ele diz: porque é procurada em função de si mesma, a sabedoria não poderia ser inteiramente propriedade do homem. Podemos "possuir" completa e inteiramente os resultados das ciências particulares. No entanto, pertence à natureza desses resultados serem "meios", de modo que não podem nos levar a procurá-los em razão de si mesmos. O que pode nos satisfazer e o que é procurado em função de si mesmo é justamente o que nos é dado na esperança: "Só é procurada por ela mesma [assim afirma Tomás de Aquino] aquela sabedoria que não pertence ao homem como uma propriedade". É próprio dessa sabedoria ser procurada amorosamente em função dela mesma, ser concedida ao homem como um empréstimo ("sicut aliquid mutuatum") 19 • Pertence, portanto, à natureza da filosofia o fato de que "possui" seu objeto sob a forma da procura amorosa. Com isso, afirma-se algo muito importante e muito contestado. Por exemplo, a Hegel essa autodeterminação parece contradizer expressamente a filosofia, quando, no prefácio à Fenomenologia do Es19. ID., Comentário à Metafísica de Aristóteles I, 3, (n.64). meio ambiente e mundo

1

51

pírito, diz que pretende trabalhar para11e a filosofia "aproxime-se do objetivo de deixar de lado o nome de 'amor do ·saber' e se torne saber real - é a isto que me proponho". Com isso, estaria formulada uma pretensão que a princípio ultrapassa as possibilidades humanas, uma pretensão que levou Goethe a falar de modo irônico de Hegel e dos filósofos como "desses ' d ominar . D eus, a1ma e mun d o "20 . senhores que creem Naquela interpretação original da palavra filosofia há, porém, ainda um segundo enunciado que raramente costuma ser considerado de modo expresso. Tanto na expressão legendária de Pitágoras como no Pedro de Platão e ainda em Aristóteles, o philosophos humano é contraposto ao sophos divino. Portanto, a filosofia não é procura amorosa do homem dirigida a qualquer sabedoria, mas refere-se à sabedoria tal como Deus a possui. Aristóteles caracterizou justamente a filosofia pela pretensão de voltar-se para uma sabedoria que somente Deus detém completamente, como "ciência divina" 21 • Esse segundo enunciado, contido na autodeterminação originária da filosofia, possui várias faces. Primeiramente, o enunciado anterior (a filosofia não pode compreender completamente o seu objeto) é reforçado. O limite apresentado aqui é determinado mais proximamente como limite entre homem e divindade: o homem é incapaz de possuir aquela sabedoria autêntica porque deixaria de ser homem. Além disso, é afirmado que pertence ao conceito de filosofia estar referido à teologia. No conceito originário de filosofia está expressa uma abertura para a teologia, algo que contradiz inteiramente o conceito de filosofia que se tornou corrente na época moderna, uma vez que esse conceito novo de filosofia afirma justamente ser característica decisiva do pensamento filosófico separar-se da teologia, da fé e da tradição. 20. 21.

GOETHE

em uma carta a Zelter de 27 de outubro de 1827. Metafísica, I, 2. 983a 6-7.

ARISTÓTELES,

52 1 que é filosofar?

E ainda um terceiro ponto é enunciado na antiga autodefinição da filosofia, ou seja, a recusa da filosofia de considerarse a si mesma uma doutrina de salvação. .,,;-1ªs que s.e entende por ."sabe~oria tal como Deus a possm . O co?ceito de sabedoria aqm subentendido significa 0 seguinte: "E sábio em sentido estrito aquele que conhece a cau22 sa suprema" ("causa" não deve ser entendida meramente no sentido de causa-eficiente, mas sobretudo de causa final). Ora, "conhecer a causa suprema'', conhecer não a causa de algo determinado e especial, mas conhecer "em absoluto" a causa suprema de tudo, a causa suprema da totalidade das coisas, isso significa conhecer em absoluto o de onde e o para quê, a origem e o fim, o princípio constitutivo e a estrutura, o sentido e a ordenação articulada da realidade, o "mundo" de maneira total e no fundamento último. Esse conhecer, porém, no sentido de saber compreensivo, só pode ser atribuído ao espírito absoluto, a Deus. Só Deus compreende o mundo "a partir de um ponto", isto é, a partir de si mesmo como sua causa unitária e última. "Sábio é aquele que conhece a causa suprema": nesse sentido, só Deus deve ser chamado sábio. Eis, pois, o objetivo visado pela filosofia: a compreensão da realidade a partir de um princípio último de unidade. Pertence, porém, à essência da filosofia estar de fato "a caminho" desse objet~v~ (a1:1orosamente, procurando, esperando!), mas por prmcip10 nao ter condições de alcançar esse objetivo. As duas coisas pertencem ao conceito de filosofia tal como a Antiguidade o desenvolveu e entendeu. Com. isso, tocamos o ponto decisivo: é impossível, a partir do conceito de filosofia, adquirir de modo filosófico uma int~rpretação racional do mundo deduzida de um único princípio e de "causa suprema". Isso significa que não pode haver um "sistema fechado" da filosofia. A pretensão de deter "a fórmula 22. Suma teológica, II, II, 9, 2. meio ambiente e mundo 1 53

" é do ponto de vista concei. .:al, necessariamente d o mun do ' 1 uma não-filosofia e uma pseudofilosofia. , . . T 0 davia Aristóteles23 vê na filosofia, na metafisic.a, ~ mais ' f - d obJetlVO (de elevada das ciências, justamente em unçao e esse onhecer a causa última) ser alcançável, mesmo que tTao-s~­ C , · homem ornas mente na esperança e ();orno um e~presnmo ao . " . ouco de A uino, em seu comentário, diz nesse ponto. .Esse p que ;e ganha nela (metafísico~ p.es~:24todavia, mais que tudo aquilo que é conhecido nas ciencias . fil Precisamente nesta estrutura dupla e d~ fa~e dupla da i osofia precisamente no fato de que com admiraçao entra-se nu~ cami~ho infindável, precisamente no fato de a filoso~a poslsuir · amente nisso e a se a forma constitutiva da esperança, precis manifesta como algo inteira e totalmente humano e, em certo sentido, como a realização da própria existência humana.

23. ARISTÓTELEAS, MetafísCicoam,Ie,n~d~:~a~~:~IYsica de Aristóteles I, 3 (n. 60). 24. TOMAS DE QUINO, 1'

TRADIÇÃO, TEOLOGIA E FILOSOFIA

No ato de filosofar realiza-se a relação do homem com a totalidade do ser. Filosofar dirige-se para o mundo como um todo. Porém, ao homem é dada "sempre", "desde sempre", antes de qualquer filosofia, antecedendo-a sempre, uma interpretação da realidade. E essa interpretação da realidade é dada sob a forma de uma tradição (em doutrinas e histórias), que justamente diz respeito ao todo do mundo. "Desde sempre" o homem se encontra em uma tradição religiosa que oferece uma imagem do mundo como uma totalidade. Pertence à essência dessa tradição existir e valer "desde sempre", antes e previamente a toda filosofia, a toda interpretação do mundo que se constitui a partir da experiência. Há uma posição teológica que reconduz essa tradição originária à revelação originária, quer dizer, a uma comunicação ocorrida no começo da história humana, uma revelação (revelatio) do sentido do mundo e do sentido da história humana no todo. Um anúncio que, mesmo hipertrofiado e incrustado, continua vivo nos mitos e nas tradições dos povos. A esse respeito, não é possível discorrer agora com mais detalhes. Importante, porém, em nosso contexto, é ver que os grandes iniciadores da filosofia ocidental, dos quais vive ainda o 1 55

54 1 que é filosofar?

filosofar hodierno, sobretudo Platão e.,jristóteles, não só encontraram e confirmaram eles mesmos tal interpretação prévia do mundo, mas também filosofaram partindo dessa interpretação de mundo existente "desde sempre". "Já ouvi contar uma história dos homens de antigamente. Eles conheciam a verdade. Se pudéssemos descobriu-la, ainda nos importaría1 mos com a opinião dos homens?" - diz Platão . Muito amiúde diz que esta ou aquela doutrina "transmitida pelos antigos" é não só digna de honra, mas também verdadeira de modo eminente e intocável. "Tal como uma antiga doutrina diz, Deus detém o começo, o fim e o meio de todas as coisas e dirige-as para o melhor segundo sua natureza" - assim fala o Platão ancião nas Leis2. O mesmo diz Aristóteles na Metafísica: "Uma tradição, em forma de mito, foi transmitida aos pósteros a partir dos antigos e antiqüíssimos [ápxaíwv Kat nnµn