O Pensamento Antigo: História da Filosofia Greco-Romana I

Citation preview

ÙL B O frO M A

m b ìt u c

j o u

C) PENSAMENTO ANTIGO RODOLFO MONDOLFO nasceu em Senigalia (Itá lia ) em 1877. E studou n a U niversidade de F lorença onde se form ou em Filosofia em 1899. Foi catedrático de H istória da Filosofia em várias U ni­ versidades italianas. Compelido pelo regim e fascista a exilar-se, transferiu-se p a ra a A rgen­ tina, ocupando cá ted ras n as U niversi­ dades de Córdoba e de Tucum an. M an­ teve cursos em o u tras U niversidades arg e n tin a s e de outros paises am eri­ canos a té 1945, quando lhe foi devol­ vida a cá te d ra de Bologna que ocupara de 1913 a 1938.

'A i '

£ /'

X N-U'

¡ ^ 5r ,

r,p

^

V« ^

,,y ;

K

' yW



'

^

t

^

V -'

:f

A t /

\< P

. t

f

„ % ;,a

\

O govèrno helénico condecorou-o por su as obras de filosofia g reg a e a A cadem ia de Lince, de Roma, outor­ gou-lhe em 1949, o Prêm io Nacional.

ff Ml

E m 1952 foi nom eado “P rofessor em érito”. A s obras de Mondolfo atingem cer­ ca de 400 e tra ta m de tem as de socio­ logia, pedagogia, ética, metodologia, e scbretudo de história da filosofia an ti­ ga, ren ascen tista e moderna. H á vinte anos, dedica-se especialm ente ao estu ­ do da filosofia grega.

w

?■§?

çr;

v fn \f

...

w J í

-

...

N este livro, O Pensam ento A ntigo, encontram os exposta, com o vigor que ca rac teriz a o autor, a história do pen­ sam ento, desde o su rg ir da reflexão fi­ losófica n a G récia a té o neoplatonism o e o cristianism o em Rom a, concluindo com u m a tá b u a cronológica abran g en ­ do o extenso período que vai do século X a.C. ao século VI de nossa era. Com pleta o livro, valiosa bibliogra­ fia atu alizad a pelo autor.

d a J ¿ iU U c ~

d f

U

i u Y '"

1 1

PENSAMENTO ANTIGO HISTÓRIA DA FILOSOFIA GRECO-ROMANA

RODOLFO MONDOLFO

lM

EF

s

HISTÓRIA DA FILOSOFIA GRECO-ROMANA

I

& EDITORA MESTRE JOU São P aulo

Prim eira edição em Terceira edição em Prim eira edição em Q uarta edição em Prim eira edição em Segunda edição em Terceira edição em

italiano italiano espanhol espanhol português português português

......... ......... ......... ......... ......... ......... .........

1927 1961 1942 1959 1984 1966 1971

P R E F Á C IO

T ít u l o

IL

o k ig in a l :

PENSIERO

ANTICO

T radução d e :

LVCURGO GOMES DA MOTTA

Direitos reservados língua portuguêsa idos para todos os países de líi pela EDITÔRA M E STR E JO U Rua Guaipá, ipá, 518 — Vila Leopoldina (Alto da Lapa) São Paulo

Nossa bibliografia filosófica é tão pobre que aos editores, no que se refere a traduções, se impõe cuidadosa seleção, a fim de que o pouco que se faz se faça ao menos com a esco­ lha do que há de melhor e mais adequado às nossas necessi­ dades. Quanto a êste livro de Rodolfo Mondolfo, não há dú­ vida, a escolha foi muito acertada. Já bem conhecido entre nós em sua edição argentina da Editora Losada, sempre o recomendamos aos nossos alunos da Faculdade de Filosofia como um bom livro de iniciação em estudos da Filosofia antiga. Os autores de manuais de História da Filosofia se encon­ tram, na verdade, diante de problemas difíceis. Os manuais são úteis, são necessários. Como, porém, fazer um resumo do que escreveram os filósofos, sem trair o seu pensamento, sem pô-lo em esquemas pobres e entediantes, e até sem afeiçoá-los aos pontos de vista do próprio autor? Mesmo os mais conscienciosos e objetivos sabem que, em resumo, não é possível pôr seus leitores no ambiente cultural em que viveram os filósofos. Assim, os manuais, ainda os melhores, são mais informativos do que formativos. Raramente se en­ contrará entre êles algum que seja capaz de estimular a mente dos jovens para a Filosofia, pois que, em regra, ofe­ recem aos leitores frias abstrações em lugar do pensamento vivo e tantas vêzes dramático dos grandes pensadores. Rodolfo Mondolfo procura escapar a êsses perigos, ao menos em parte, apresentando o pensamento dos filósofos em textos dos próprios filósofos, escolhidos com grande cui­ dado e competência. É claro que tal seleção também poderá ser feita de modo a justificar determinadas interpretações. Em um livro de iniciação, porém, êsse perigo não será grande. Trata-se de selecionar na obra dos filósofos, ou nos fragmen­ tos que dêles nos restam, os textos mais significativos, mais

interessantes, aquêles que justificam as apresentações tra­ dicionais, ou mostram em que sentido devem ser corrigidas. De qualquer modo, há pelo menos a vantagem de pôr o leitor diretamente em contato com os filósofos. No Manual de Rodolfo Mondolfo distingue-se, até pela feição tipográfica, entre o que o filósofo disse e aquilo que o historiador lhe atribui. Assim, procurou o ilustre Áutor aliar a um primeiro contato com os textos uma indispensável orientação inicia­ dora, que se faz de duas maneiras: l.o) A sistematização dos textos em capítulos que têm como assunto os grandes temas de cada filósofo. Por exemplo, os textos de Platão se subordinam aos seguintes títulos: I. — O conhecimento; II. — O ser e o mundo das idéias; III. — Deus e o mun­ do; IV. — O homem e a alma; V. — O bem e a virtude; VI. — A lei e o Estado. 2.°) Entre os textos ou conjunto de textos que tratam de determinado assunto, o autor intercala notas de caráter explicativo, assinalando o sentido e a importância que têm na obra do filósofo estudado e no quadro geral da História da Filosofia. O resultado é compensador. O aspecto um tanto frag­ mentário que resulta do método de exposição escolhido e de sobra corrigido hão só pela já assinalada sistematizaçao em capítulos, como também pela elegância da linguagem nas traduções e de sua simplicidade e clareza nos comentai ios aos textos. _ Em suma, ótimo livro de introdução ao pensamento antigo, tanto para os estudantes universitários, como a títu­ lo de obra de vulgarização filosófica. _ ^ _ Assinalemos, finalmente, que esta tradução é mais ^uma homenagem ao ilustre filósofo e historiador, que fuginao ao “fascismo”, veio para a Argentina, onde há muitos anos vive, oferecendo à nação irmã uma colaboração preciosa como professor em suas universidades e à América espanhola e portuguêsa, uma série de importantes obras filosóficas. Livio T e i x e i r a

IN T R O D U Ç Ã O

AS ORIGENS E OS ELEMENTOS PREPARATÓRIOS DA FILOSOFIA GREGA I.

O problema das origens das culturas orientais: as noções científicas e os conceitos especulativos orientais.

[A H istória da Filosofia Grega encontra-se, em seu início, frente ao discutidíssimo problem a das origens, que se refere particularm ente às re­ lações da Ciência e da Filosofia helénicas com a anterior sabedoria oriental. As grandes civilizações orientais, mesopotâmicas (isto é, sumérica e caldaica ou assírio-babilônica, iraniana, egípcia, fenícia etc.), com as quais já havia estado em relações diretas ou indiretas a civilização pré-helênica (egéia ou creto-micênia), exerceram influxos, por todos reconhecidos, também sôbre a cultura helénica em vários campos, da técnica e da arte aos mitos e às idéias religiosas. Já Heródoto, Platão, Aristóteles, Eudemo e Estrabão^ faziam provir dos caldeus, egípcios e fenícios, ciências cultivadas depois pelos gregos, como a Astronomia, a Geometria, a Aritmética; e Platão fazia, gabar pelo velho sacerdote egípcio a antigüidade da sua sabedoria em com­ paração com a infância da grega].

Os gregos aprenderam com os babilônios o uso do qua­ drante solar, o gnômon e as doze partes do dia (Heródoto, II, 109). Constituídas já tôdas as artes (aplicadas às neces­ sidades e ao conforto da vida), passou-se à descoberta das ciências que não eram dirigidas nem ao prazer nem às ne­ cessidades da existência; primeiramente, nos países onde havia quem desfrutasse o ócio das ocupações intelectuais. Por isso, criaram-se no Egito antes de em qualquer outro lugar, as disciplinas matemáticas, porque aí era concedido êsse conforto à classe sacerdotal (Aristóteles, Metafísica, I, 1, 981 5). O primeiro a observar estas cousas (astronômicas) foi u m estrangeiro (bárbaro). Pois um antigo país gerou os primeiros observadores dessas cousas que, pela beleza da es­ tação estival de que o Egito e a Síria gozam com prodigali­ dade, notavam, por assim dizer, sempre visíveis, tôdas as

estréias, como os que habitavam partes do mundo sempre afastadas das nuvens e da chuva. E desde então (essas no­ ções astronômicas) chegaram a tôdas as partes e também aqui (na Grécia), provadas desde tempos imemoriais e infi­ nitos. .. Mas fixemos que aquilo que nós, os gregos, adqui­ rimos dos estrangeiros (bárbaros) foi finalmente aperfeiçoa­ do por nós (Epígnomis platônico: escrito provavelmente por Filipe de Opunte, 987 a, 987 e). Oh! Sólon, Sólon!; vós, os gregos, sois sempre crian­ ças . . . Não tendes ciência, que, por efeito do tempo, chegou a ser an tiga. . . Neste país (E gito). . . o que é transmitido se considera que seja o mais antigo que existe (Platão, Tini., 22 b; 23). [Mas, a um a derivação da Ciência e da Filosofia gregas da oriental (afirm ada especialmente pelo helenismo tardio e por alguns orientalistas m odernos), a crítica histórica do século XIX objetou que a cultura orien­ tal não podia dar aos gregos aquilo que ela própria não tinha, isto é, o •espírito científico e o processo lógico da pesquisa. A Astronomia caldaica permanecia, com tôdas as suas observações e registros seculares, simples Astrologia, cujo fim essencial era o horóscopo; a Geometria egípcia, limi­ tada a um a técnica de medidas para fins práticos, espécie de Agrimensura; a Matemática do Egito e da Caldéia, limitadas a cálculos empíricos, sem elevar-se às exigências lógicas da demonstração, representariam um estádio pré-científico, que o gênio grego logo superou por virtude própria, tornan­ do-se criador da Ciência e da Filosofia. Todavia, estudos mais recentes reva­ lorizaram em parte a Ciência mesopotâmica e egípcia, reconhecendo, junto à técnica dirigida a fins práticos utilitários, também, às vêzes, um interêsse científico desinteressado, um a tendência à generalidade e um encaminhamen­ to à racionalidade. E junto a êste início de pesquisa científica (reconhecido entre os babilônios especialmente na Matemática, e entre os egípcios na Medicina) admite-se também, nas culturas orientais, dentro da especulação religiosa, a existência e a formação de conceitos, envoltos, é verdade, em form as m íticas, m as capazes de desenvolvimentos filosóficos. Lembremos os principais' 1 ) A idéia da unidade universal, afirm ada entre egípcios e mesopotâmicos sob a form a de unidade divina, em vagas form as de pan­ teísm o ("o Deus dos inumeráveis nomes, que cria os próprios membros, que são os Deuses”; “o Uno, único, pai dos pais, m ãe das m ães”; “soma das existências e dos sêres”, de que surge todo devir, que logo reflui a êle; •2) a Cosmogonia concebida, nas suas várias exposições, como passagem da unidade caótica indistinta prim ordial à distinção dos sêres, c o m o passagem •do caos (caos aquoso: Tiamat, em Babilônia, Nun, no E g i t o ) e das trevas à ordem e à luz (com Marãuk, na Babilônia, Ra ou Rie, no Egito); ¿J as diferentes explicações dadas ao processo cosmogónico quer pela potencia intrínseca do mesmo princípio originário (como na Babilonia Tiamat m a •da totalidade, criadora de tôdas as cousas”), quer p e l a intervenção de um espírito sôbre a m atéria que contém os germes de todos os s e r e s (como A to n Ra, o espírito que sobrenada as águas de Nun, na Cosmogonia g p

•de Heliópolis), quer através da luta entre as potências opostas do caos e d a ordem, das trevas e da luz, da m orte e da vida, do ódio e do am or (Seíft e Horus, no Egito; Tiamar e Marãuk, na Babilônia); 4) a visão de uma conexão e simpatia universal, que une todos os sêres da natureza; 5) a noção de um a necessidade ou lei que a todos governe, e a concepção desta lei como retorno cíclico universal que se completa no grande ano cósmico, com um a volta periódica de tôdas as cousas; 6) a idéia de um ■dualismo entre corpo m ortal e alma im ortal e a preocupação do além-túmulo e do juízo dos m ortos que se liga (como aparece no Livro dos Mortos egípcio) ao desenvolvimento das exigências éticas da justiça e da pure­ za moral. São todos elementos fecundos de desenvolvimentos filosóficos, fáceis de transm itir na roupagem do mito, sob a qual se difundiram, de um a a outra, nas antigas culturas orientais. Como escreveu um autorizado orientalista •contemporâneo (G. Furlani, O poema da criação: Enum a Elis, Bolonha, 1934, pág. 19), “nos últimos decênios começou-se a com preender que todo o Orien­ te antigo teve sempre um a civilização discretam ente uniforme, form ada de inum eráveis e complicadíssimos contatos, intensos e contínuos, entre as seis -ou sete civilizações, da islam ítica à egípcia, das m icrasiáticas à sumérica” . Através de contatos diretos ou indiretos, elementos im portantes destas cul­ turas, da técnica aos mitos, já se haviam transm itido à civilização pré-helênica; e tornam-se a transm itir à grega. E não deixa de ter significação o fato de terem a Ciência e a Cultura gregas nascido e se afirmado prim ei­ ram ente nas colônias da Ásia Menor e n a época (entre os séculos VII e VI) em que Mileto, Samos, Éfeso etc. tinham intensificado as suas relações di­ retas com o Egito e indiretas com a Mesopotâmia e o Irã , especialmente através da Fenícia e da Lídia. Apresentamos aqui, em breves citações, algumas provas das cosmogonias e teorias cósmicas orientais: duas relativas à derivação do cosmos, de um •caos aquoso prim ordial (como no mito grego de Oceano e na Cosmologia de Tales) na Cosmogonia babilónica e na egípcia; a outra relativa à idéia •do grande ano, em que, periodicamente, se desenvolveria o ciclo cósmico].

Quando a parte de cima não era (ainda) chamada Céu, — a parte de baixo, a (Terra) firme, não tinha (ainda) um nome, — Apsu primeiro, o seu gerador, — Mummu e Tiamat, a geratriz de tôdas elas — suas águas misturavam-se entre si — não se havia (ainda) construído habitações (para os D euses), — e a estepe ainda não era visível, — quando (ain­ da) nenhum Deus tinha sido criado, — e (ainda) não ti­ nham nome, e os destinos não haviam sido determinados a nenhum, — os Deuses foram procriados no meio d ê le s.. . {Enuma Elis, poema babilónico da criação: exórdio). [Apsu é o abismo primordial, Mummu, o ruído das águas, Tiamat, o Oceano universal, que formam juntos o Caos aquoso originário, antes de nascer e ter nome algum outro Deus. Continua depois a história do nasci­ mento dos outros Deuses (sêres e fôrças cósmicas) e de formação do cos­

m os e depois a grande luta entre as divindades prim ordiais ou fôrças do· caos tenebroso e as divindades ou fôrças da luz e da ordem cósmica, que term ina com a vitória destas últimas].

No comêço era Nun, massa liqüida primordial, em cuja infinita profundidade flutuavam confusos os germes de tôdas as cousas. Quando o Sol começou a brilhar, a Terra foi aplainada e as águas separadas em duas massas distintas: uma gerou os rios e o Oceano; a outra, suspensa no ar, for­ mou a abóbada celeste, as águas do alto, nas quais, astros e Deuses, transportados por uma corrente eterna, se puse­ ram a navegar (Maspero, Hist. anc. des peuples de l Oi ient 27, de antigos papiros egípcios). ro Sol Atum Rie, é o espirito que sobe acima das águas e dá lugar à geração da prim eira tríade cósmica, de que se origina depois a eneada di­ vina" dos elementos e das potências cósmicas]. Beroso (babilônio), que interpretou Belo, disse que o grande ano cósmico se completa pelo curso das estréias, e afirma-o com tal segurança, como para determinar o mo­ mento da conflagração e do dilúvio (Sêneca). ro grande ano cósmico, que é o período em que se completa o ciclo do eterno retôrno dos giros cósmicos, tem o seu estio na conflagraçao, o seu inverno no dilúvio universal. Beroso, sacerdote caldeu do III seculo a.C. eco de antigas tradições da Babilônia, calculava-o em 432 mil anos (Cfr. Fragm. historie, graec., fr. 4 de Beroso); mas os autores gregos cal­ culavam-no entre 10 e 30 mil anos, no máximo]. 2.

Os elementos preparatórios na reflexão religiosa e moral dos gregos.

a) O nascimento da reflexão e da pesquisa da maravi­ lha (consciência de não compreender ou consciência dos pro­ blemas) : [Conquanto os gregos pudessem auferir, das culturas orientais, num ero­ sos e fecundos elementos de conhecimento e estímulos de reilexao, nao obstante, êles, que eram impelidos, na sua mesma atividade de m ercadores e colonizadores (como Aristóteles, na Constituição dos Atenienses, cap. XI, disse de Sólon), pelo duplo desejo “de comerciar e de ver”, tm ham na sua curiosidade inata e característica, um estímulo eficacíssimo para a criaçao da Ciência e da Filosofia. E os documentos e as notícias que temos sobre

,a sua atividade intelectual, anterior ao surgir das prim eiras escolas filosó­ ficas, m ostram um vivo ferm entar de pensamento, que ia preparando o desenvolvimento da Filosofia: a qual, por outro lado, no seu significado mais geral, de reflexão do homem sôbre si mesmo, a vida e o mundo, é tão antiga como a humanidade pensante].

É característico do filósofo êsse estado de ânimo: o ma­ ravilhoso, porque outro não é o princípio da Filosofia; e aquêle que disse ser íris (a Filosofia) filha de Thaumante (a m aravilha), parece que não estabeleceu mal a genealogia (Platão, Teeteto, 155 d). A maravilha sempre foi, antes como agora, a causa pela qual os homens começaram a filosofar: a princípio perma­ necendo surpresos pelas dificuldades mais comuns; depois, a pouco e pouco, avançando mais, propuseram problemas cada vez mais importantes, como por exemplo os que gira­ vam em tôrno dos fenômenos da Lua, do Sol e dos astros, e finalmente os relativos à gênese do todo (Universo). Ora, quem duvida e se maravilha, crê ignorar. E por isso, sob um certo aspecto, também o amante do mito é filósofo: uma vez que o mito se compõe de maravilhas (Aristóteles, Meta­ física, I, 2, 982 b). b) A primeira forma da reflexão: o m ito e o seu paren­ tesco com a Filosofia. A unidade primordial imediata entre os problemas humanos e problemas cósmicos. — O amante do mito é de certo modo também um filósofo, uma vez que o mito se compõe de maravilhas. (Aristóteles, loc. c it.). Por tradição os antigos, ou melhor, os antiquíssimos, (teólogos), transmitiram a nós, seus descendentes, na forma do mito, que os astros são Deuses e que o divino abrange tôda a na­ tureza . . . Costuma-se dizer que os Deuses têm forma hu­ mana, ou se transformam em semelhantes a outros sêres viventes. . . Porém, pondo-se de lado tudo o mais, e conser­ vando-se o essencial, isto é, se se acreditou que as substân­ cias primeiras eram Deuses, poderia pensar-se que isto foi dito por inspiração divina, e, provavelmente de tôda Árte e Filosofia. . . perdidas (nas catástrofes cósmicas cíclicas), estas opiniões conservaram-se até agora, quase como relíquia (da mais antiga sabedoria). E, assim, as opiniões dos pais e dos primeiros progenitores manifestaram-se na mesma medida (Aristóteles, Metafísica, XII, 8, 1074 b).

Há alguns que crêem que,_tambem os mais a n t ^ s , que viveram muito antes da geraçao atual e 03 Pr^ e a res. ar, tenham pensado do mesmo e de peito da natureza, uma vez que fizeram pelos Tétis os progenitores da geraçao £ ramento dos Deupoetas Estígia, a p r e s e n t a r a m - m com ^ juramento é a L :

«».

I. 3, 983 í» .

cípio deste S ™ 1 0 *“

¿ d0 Hesiodo ou qualquer outro, se

™ s % u e ? r e SSsaTent?e “ doS os imortais” - manilestando f ñ e ' S d a t nos sêres, causa que mova e una as cousas (Aristóteles, Metafísica, I, 4, 984). d

u

m

a

[A form a m ítica e a n t r o p o «

S o S lT M

o s .r —

.ta . « e l e s

grande im portancia sob um outro ;asp« q , ( do mesmo modo compreender a natureza, o Pe— ito “ ^ L m a n o : ou seja, que a re­ possa usar) os conceitos relat reflexão sôbre o mundo natural, flexão sôbre o mundo humano p entrelaçou e se apoiou naquele, que por isso, no seu Pr ™ eir° surgir _da bagta para desorientar as E esta observação, tao evidente qu q , rafia)j de que a atenção convicções tradicionais (lugar-comum mUndo humano, do homem se volte para a natureza fisn°a> " í f 3¿ f a transf0rmar-se em e por isso a Filosofia começa c o m o ^ E m realidade, a Antropologia, sòmente em um a to; e (0 que não é menos precedência da form a mitológica dem °ns £ u aparecimento conserva

5 S ” ã* í . p t r f

das; e já havia sido visto claram ente por Platão, quando notava que os. elementos naturais são personificados pelos cosmólogos, que concebem as­ suas relações recíprocas como matrimônios, gerações e lutas, governadas, pelas fôrças opostas do Amor e do Ódio. “Parece-me que cada um dêles (os filósofos que querem definir quais e· quantas são as cousas) nos relata um a espécie de mito, como se fôssemosmeninos: um, que os sêres são três e que algumas vêzes se combatem entre si, e outras vêzes, tornando-se amigos, convidam-nos p ara assistir às suas· núpcias e nascimentos e educação da prole. Outro, que são dois (úmido e sêco ou quente e frio), une-os e desposa-os. A estirpe dos eleatas entre­ nós, que começa em Xenofonte, ou até antes, conta-nos os seus mitos, como se o que se chama “tôdas as cousas” fôsse um a cousa só. Certas m usas jónicas (Heráclito) depõem, e algumas sicilianas posteriores a elas (Empe­ docles), concordam em pensar que seja mais seguro entrelaçar um mito· com outro, e dizer que o ser é múltiplo e um, e que é conservado unido· pelo ódio e pelo am or” (Sofista, 242 c). Deve-se acrescentar a estas observações que não só as cosmogonías fi­ losóficas se modelam em parte sôbre as precedentes teogonias míticas, do­ minadas pelas relações de geração e luta, mas que o mesmo conceito de­ cosmos é tirado do mundo humano (a acomodação, a ordem da dança, a, ordem dos exércitos) para ser aplicado a natureza, e que a idéia de lei natural é, no comêço, um a idéia de justiça (Dike), com a pena de Talião para tôdas as infrações: ou seja, que tôda visão unitária da natureza é apenas um a projeção da visão da polis (sociedade e estado dos homens) no universo. A prim eira reflexão sôbre a natureza apóia-se e une-se à re­ flexão sôbre o mundo humano, que deve tê-la precedido para poder fomecer-lhe os próprios quadros e conceitos diretivos].

S"com o aparece nas p » * » . « * » ■* *

3.

Os primeiros problemas relativos ao universo.

[Tendo presentes as observações já feitas, sôbre a dependência inicial da prim eira reflexão a respeito da natureza da precedente reflexão sôbre o· mundo humano, podemos, sem inconvenientes, seguir a ordem costumeira, na exposição, e examinar as meditações relativas ao universo antes das que se referem ao homem. E sta é um a ordem lógica de exposição, que não· quer significar ordem cronológica de apresentação histórica], I. O PROBLEMA DAS ORIGENS CÓSMICAS EM HOMERO

— Oceano gerador dos Deuses, e Tétis mãe XIV, 201 e 302).

(Ilíada,,

[A lenda de Oceano progenitor de todos os Deuses — isto é, das deri­ vações do cosmos de um princípio aquoso — leva-nos novamente à civilização pré-helênica (egéia), de que Homero representa o eco. Trata-se do mito já. comum a tôdas as antigas civilizações orientais — babilónica, egípcia, he­ braica, fenícia etc. — a cujas provas, relativas à Babilônia e ao Egito, já nos referimos. A interpretação cosmogônica do mito, como se viu já havia sidoconfirmada na Grécia, antes de Aristóteles.

•■Há quem creia que também os mais antigos que viverami muite, antes

e Tétis os progenitores da geração e a agua, — d a ^ ^ "E stígia” apresentaram como juram ento dos Deuses, isto , venerada, ou seja, a mais antiga de tôdas” . » * c a I 983 ^ :E n tre ^ “ alguns” de que fala Aristóteles, e Tétis a m ãe, também vez Homero disse que Oceano e g era d o rd o s Deuses^ e Tetis, * Hesiodo em algum ° das belas ondas, foi o prim eiro que * _ ^ íülelta„ rrâtiln 402 b). Tétis, - sua irm ã nascida da, m e s m a j n a ^ q pen; amento de HoTambém M e m o c® sel^ a 0 neoplotônico Damáscio mais tarde mero sobre a origem das coubat,, ui„rfornn h« nue Homero comece objetava: a Noite é um a por Oceano e Tetis, porque paieo h «DOÍS se absteve de come“

da6 ingratidão^'contra T S e ,

Ma~

gr

que se abisma”. «

r

“domadora dos Deuses e dos homens

a - te

,

XXV, 261).

é tam bém chamada:

(2o9)].

IX. PROBLEMAS DO COSMOS EM HESÍODO

a)

As origem·, o ser v r ir m r d M {Caos)

?

domina no coraçao de todos os moi lho prudente. De Caos nasceram E r e b o e a negra _wo« (Nix) ; e da Noite foram gerados o E t e r e o Dia (Ei ) pois ela os concebeu ao unir-se com É ieba E pnm euo Terra gerou, semelhante a si propna em grandeza o Ce« estrelado (Urano), para que tudo cobrisse, paia qu ^ morada segura para os Deuses ditosos. E g _ _ P d&g grandes M o n t e s , habitações agraaaveis dos Deus s , Ninfas, que habitam as montanhas cheias dy vaies. Cu5ão « d »

um a vez que ainda, porque as tempestades do Caos formação cíclica). E muito mai , extraído delas Anaximandro, podiam sugerir também a idéia q^fi te movimentos rotatórios da formação de remoinhos » ™ pox ^ & ^ seria d i s t r i b u í d a a m atei i a , de¡acor q de um cosmos; f0rmando-se um a ordem concêntrica qu . Q resuitam cosmos coexistentes em mulS « " a eda infinita multiplicidade dos turbilhões, surgidos entre as m últiplas tempestades que agitam o Caos]. III. OS ÓRFICOS

/•a

Ds vrimeiros sêres divinos, a Noite, a função cósmi

Caos e a Noite, o negro ebo Ta ; havia a Terra, nem o Ar o òvo de nerecessos do Erebo gera o P ado ios ventoS) nasce no

Í c t ) O c e S a e a (Terra) e tôda a t o h d d j bem-aventurados. (Aristófanes, Aves, 693 e ss., em Kern, Orphicorum fragmenta, fr. 1). [Além dos dados oferecidos por A m tóíanes sôbre órfica, teles, Metafísica 983 b, 1 071 to, i uai , p gerações divinas, que os órficos disti g geração, disse Orfeu, in terro m p e ¡a or .

£ £

a n tig a J e o g o m a

reconstrução da série das número de seis. “Na sexta oanto». (Platão, Filebo 66 c). ingênito s: Caos, Noite, Érebo

^

“Ee S ~

2 So“ z s z x s r ^ r z £ r ~ . como sede das gerações e dos ajuntam entos, tem-se a serie segumte aas

gerações: 1) Ôvo-Eros; 2) Urano e Gea; 3) Oceano e Tétis; 4) Cronos, Rea e irmãos; 5) Zeus, E ra e irmãos; 6) Dionisios, com o qual “se interrompe a ordem do canto”. Assim, através dêstes dados e esclarecimentos, comprecndem-se, no seu verdadeiro significado, os diferentes testemunhos que atribuem aos órficos a colocação da Noite como princípio originário. “Como dizem os teólogos, que fazem gerar tudo da Noite” (Aristóteles, Metafísica, 1071 b). "A Teologia, reproduzida pelo peripatético EüHemo, como obra de O rfeu ... estabelece o comêço pela Noite” (Damáscio, De Primis principiis, 124). “ó mãe, nutriz, suprem a entre os Deuses, Noite imortal, como, dize-me, como devo estabelecer o principio magnánimo dos Im ortais?” (Versos órficos em Proclo, In Tim. B., pr.; fr. 164 em Kern, Orphic. frag.). Mas, também pode explicar-se por que algum outro testemunho cai no êrro de supor como prim eiro princípio, segundo os órficos, o Caos: “Segun­ do Orfeu, o Caos nasceu primeiro, depois o Oceano, em terceiro lugar a Noite, em quarto o Céu, e depois Zeus, rei dos im ortais”. (Alex. Aplirod. in Metaphys, 1 091; fr. 107, em Kern, op. cit.) Todavia, esta poderia ser um a das tantas variantes, que a Teogonia órfica nos apresenta nas suas varias redações. Diferentes daquelas que resultam de Aristófanes, Platão, Aristóteles e Eudemo, são as três referidas respectivamente: 1) por Apolónio Ródio (Argonaut., I, 494 e ss.); 2) por Damáscio (De prim. princ., 123) tom ada a Jerónimo e Helánico; e 3) do mesmo Damáscio (op. cit.), por Proclo e por outros como Teogonia rapsódica. A prim eira coloca no inicio um a m istura geral de todas as cousas; a segunda, a água e o lôdo: a terceira, Cronos (o Tempo). Cito alguns frag­ mentos destas duas últim as]:

b) Teogonias de Jerónimo e Helánico: as matérias pri­ mordiais: Cronos e Ananke. — “A Teogonia, referida por Jerónimo e Helánico, narra déste modo: no comêço existiam somente a água e o lôdo, de que se formou a térra. . . Dêstes dois princípios gerou-se um terceiro, um dragão. . . chamado Cronos, que não envelhece, e Héracles; a êle junta-se Anan­ ke (Necessidade), que tem a mesma natureza de Adrastéia incorpórea (outra personificação da Necessidade), difundida em todo o cosmo, até atingir os confins. . . Cronos. . . gerou uma tríplice prole: o Éter úmido, o Caos infinito e o Érebo nebuloso. . . Porém Cronos gerou nestes um ôvo. . . E esta Teologia celebra o Protógonos (Primogênito) e chama Zeus o ordenador de tôdas as cousas”. (Damáscio, De prim. princ., 123) c) Teogonia rapsódica: o Tempo gerador dos sêres. — “Nestas rapsódias órficas que nos transmitiram, há uma teologia em tôrno do inteligível, (como os filósofos também

Tempo o chama ao Tempo a P11™ “

L cousas” ae.,0 teótog0 (0 rIeu)

£ ? £ & “p o ^ r i n o s o Éter “ Ca“ S (Froclo, i n W ,< * ). ^‘Denois da única causa dos Deuses, que Orfeu celebra em Cronos diz haver-se produzido o Éter e o Abismo mons tmoso" (Simplicio, Física, 528). “êste Cronos imortal, do conselho eterno, gerou o Éter e uma voragemJ orande üor todos os lados: nenhum limite havia abaixo, nem g n d o ? n e m sustento algum” (Versos órficos, em Proclo, ™ ^ “èep ois1^ grande Cronos gerou no Éter divino um ôvo brilhante como prata” (Versos órficos, em Damascio, o p .c it. 55) E Cronos gerou, da imensidade do seu seio Eter e Eros ilustre de dupla natureza, que olha para todas as pa-tes, paf celebrado da Noite e te r n a .., própria geração, o fogo, o ar e a agua (fr. 37, em Kern). rPínrtnrn é talvez eco dos conceitos órficos: “O Tempo pai de tôdas as cousas” (Olymp. II, 17); “O Tempo, senhor que supera a todos os hem-aventurados”. (Fr. 33)].

rn

a

unidade divina·, unidade do princípio e unidade

^

. •

s

r



r s

n lt^ r e z l^ m o w n à o ^ s e ^ o r ^ to d o 1 o ^ M iv erso ^ íP la tã o , &L e is ,

715 e). [Platto refere-se „ um antigo S«™ ao verso seguinte nêle contido].

, · 7 om n meio de Zeus emanam tôdas Zeus é o principio, Zeus o meio. ae ^ ^seudo-aristotélico

S T

A

T

.

2 1 « em k ern ).

Zeus é o Éter, Zeus a Terra, Zeus o Céu, Zeus é o Todo, e tudo quanto exite além disto (Ésquilo, fr. 70, Nauck, em Kern, 21 a). Um só é Zeus, um só é Hades, um só é Hélios, um só é Dionísios, um só Deus está em todos (fr. 239 b, em Kern). Zeus foi o primeiro, Zeus senhor do raio é o último, Zeus é o comêço, Zeus é o meio, de Zeus tudo d eriva.. . de Zeus fulcro da Terra e do Céu estrelado, Zeus rei, Zeus primeiro autor de tôdas as cousas, é a única potência, o único Deus, grande chefe de tôdas as cousas, único corpo real em que circulam tôdas as cousas, fogo e água, Terra e Éter e Metis (sabedoria) primeira geração, e o mui dileto Eros: porque tôdas estas cousas jazem no grande corpo de Zeus. A sua cabeça e o seu rosto, belos ao olhar, são o Céu cintilante, em tôrno do qual oscilam douradas cabeleiras de estréias ru tila n tes... Seus olhos: o Sol e a oposta Lua; mente não enganosa do Deus o Éter im ortal. . . ; ombros e peito e largo dorso do Deus, o ar de grande fô r ç a ...; a Terra é para êle regaço sagrado, mãe de tudo e os ásperos cumes dos mon­ tes; cintura média o enchimento altíssimo do mar; base profunda as raízes dêste solo, e o escuro Tártaro e os extre­ mos confins da T e r r a ... (fr. 168 em Kern; cfr. também o 169, 245 e 247). e) O domínio do cosmos conferido ao princípio da or­ dem. — Nisto, os antigos poetas estão de acôrdo entre si, quando dizem que o senhorio e o mando pertencem a Zeus e não àquele que é o primeiro no tempo: a Noite, por exem­ plo, o Céu ou o Caos ou o Oceano (Aristóteles, Metafísica, XIV, 4, 1 091 b) . /) A lei universal de justiça. — Deus, como quer o an­ tigo Discurso, tem em suas mãos o princípio, o meio e o fim de tudo o que existe; e porta-se retam en te.. . por todo o Uni­ verso. Acompanha-o sempre Dike, castigadora de todos os que infringem a lei divina (Platão, Leis, 715 e). É a ine­ xorável e veneranda Dike, da qual Orfeu, que nos ensinou os primeiros mistérios sagrados, disse estar sentada perto do trono de Zeus para vigiar tôdas as ações dos homens (Ps. Demóstenes, Contra Aristógito, I, 11).

[Dike cósmica é um a £ p e -tfíe que os órficos julgam rem ar no ^ lem bradas e identificadas entre Ananke e Adrasteia, que já Q conceito de Dike cósmica passa, si na Teogonia de Jerommo e g e la r a j áclito e a Parmênides. De Ananke pois, do oríism o a Anaximandro, _ ^ ^ Damáscio), podem-se ver (sôbre a qual cfr. o frag.■ > 6Q). Euripedes (Helena 513, e fragjá reflexos em Píndaro ( 0 « II, do fuso de Ananke que mentos 115-116) e especia m ^ ^ ^ de origem órfico-pitagórica. atravessa todo o cosmos ÍRep. X, ^ & gl& relatlvos aparecem Quanto à Adrasteia, os J ; e pg Demóstenes, XXV, 37 e em Platão, Fedro, e2S Ê ‘C b 5 e T eS s e Jque a Adrastéia é guardiã de todo o demiurgo S r.' 152 em K ern de Proclo, Theol. plat. IV, 16, 206)].

„) o s elementos e as /ôrgos. - No principio n fa ta w ta m a,. Não existiam antes que Eios unisse aot> Terra, Ar, ··■ p. Terra Oceano (Aristófanes, ní)rPq tôdas as c o u s a s... Ceu, íe n a , wuean \ T„rrt, paies luu r. rfpn pantou como, no começo, a Teria, f 5 u e ° Ò M aí'achavani-se confundidos em um a só massa e cada um, depois daquela mistura cheia de discordia fo d i S o e diferenciado (Apolônio Ródio, A ,g m „ I, 615 e ss.).

IV. OUTEAS TEOGONIAS

ai



Museu e Aaisilau. — Alguns autores dizem q u e da

I

r ^ V

S

"

S r e s c -to T

e ^ m

io

f

existiam o « r t a -

™e

z

se dissolvem (Museu, fr. A, 4, em Diels, Frag. der vorso k a Hesiodo narra que primeiro foi o Caos, depois a ^erra de vasto p e ito .. . e E ro s.. . Acusilau tambem esta de acoido com Hesiodo (Platão, Simpósio, 178 6). cim eiro Parece-me que Acusüau supoe ser o Caos o nnncipio como do todo incognoscivel. . . Erebo e o macho, Í K

á f ê m e a . . . e dta q u e d a s u a u n i ã o f o r a m g e r a d o s o

Éter, Eros e Metis etc. (Damáscio, op. cit. 124).

b) Epimêniães. — Supõe dois primeiros princípios: o Ar s a N oite. . . Por êles foi gerado o Tartaro, o terceiro prin­ cípio, creio, como um resultante misto de entre ambos, deles 0s dois Titãs (chamando com êsse nome a mediania inteli­ gível porque se estende para cima e para o fim); mesclan­ do-se pois um com o outro, sai à luz o Ôvo. . . de que provem ainda uma outra geração (Eudemo, fr. 117, em Damascio). c) Fereciães. O ser perfeito nos começos e não no fim. __ Aqueles dentre êsses (antigos) que, misturando a reflexão à poesia, não se expressaram somente nas formas do mito, oor exemplo Ferecides e alguns outros, puseram o gerador primeiro como bem supremo (Aristóteles, Metafísica, 1 091 b ) . Os três princípios primordiais eternos·, sempre foram Zas, Cronos e Ctônia; e de Ctônia vem o nome de Gea depois que Zas lhe doou a Terra (fr. de Ferecides: cf. Diels, Frag. der Vorsokr.). rZas é Zeus; Cronos é um conceito ambíguo entre o Céu e o Tempo, derivado da contaminação popular entre Kronos e Cronos; Ctônia é a deusa da Terra, a quem Zeus desposando, doou a mesma T erra].

O processo de formação do cosmos. Ferecides de Siros disse que Zas e Cronos e Ctônia foram eternamente os três primeiros p rin cíp ios... e que Cronos, da própria semente, fêz o fogo, o ar e a á g u a ... e dêles, divididos em cinco re­ dutos, deriva tôda a estirpe dos Deuses, chamada dos cinco redutos, que é o mesmo que dizer dos cinco mundos (Da­ máscio, op. cit., 124 b). [Dos cinco redutos (m ychoi) parece que se originou o título da obra de Ferecides; Pentemychos].

A fôrça formadora do cosmos: Eros. Dizia Ferecides que Zeus, preparando-se para formar o mundo, se transformou em Eros, a fim de, pondo juntos o mundo com os contrários, levá-lo à concórdia e à amizade e infundisse a identidade em tôdas as cousas e a unidade que penetra o todo. (Proclo, In Tim., 32 c).

4.

Os problemas relativos ao homem.

A. A vida e o problema do mal; a derivação do mal de um a culpa: a) A idéia de um fato inelutável (ou vontade divina). __ Muitas vêzes os aqueus fizeram-me êste discurso e me censuraram; mas não sou o culpado (Agamémnon), mas Zeus e o Fado e as Erinas habitantes do ar, que na assem­ bléia me inspiraram na alma uma selvagem cegueira no dia em que arrebatei a Aquiles a sua prêsa. Mas, que poderia eu fazer? O Deus executa tudo até o fim (Homero, lltaaa, XIX 85 e ss.). A que conclusão podem chegar os homens sem a intervenção de Zeus? (Ésquilo, Agamémnon, 1485). Deus gera a culpa nos mortais quando quer destruir completamente uma família. (Ésquilo, fragm. de Ntobe) Ninguém pode escapar aos males que Deus manda (Es­ quilo, Os sete em Tebas). b) O conceito da responsabilidade da vontade humana: Ai de mim! De quantas cousas nos acusam os mortais, a nós, os Deuses (fala Z eu s): pois dizem que de nós provém o mal; e êles próprios o procuram com as suas arrogancias contra o destino! (Homero, Odisséia, I, 32 e ss.). Quando Zeus se enfurece com os homens, que na assembléia decre­ tam com violência sentenças injustas e atiram para um lado a justiça sem preocupar-se com o olhar vingador dos Deuses, então os rios furiosos inundam os campos e as enxurradas fragorosas, precipitando-se dos montes, arrasam as mar­ gens . . . (Homero, Ilíada, XVI, 386 e ss.). [O conceito de que os males se originam de culpas de que são respon­ sáveis os homens predomina depois em Hesíodo, Trabalhos e ãias, em todo o relato da culpa de Prometeu (furto do fogo divino) e no do envio de Pan­ dora com o vaso cheio de todos os males, e tôda a história das cinco idades, que assinalam um a decadência progressiva da idade de ouro, como conse­ qüência de culpas crescentes. Aos poucos o conceito da responsabilidade do homem insinua-se como tendendo a ser acolhido também em Ésquilo, por quem já foram citadas as afirmações de fatalidade inelutável do homem. Outras vêzes, em compensação para êle, é a culpa humana que gera a culpa ulterior: “A ação ímpia (dos pais) produz outras semelhantes nas gerações seguintes da sua raça” (Agamémnon, 759 e ss.). E também, dada essa pro­ dução de culpa por culpa, o homem tem a possibilidade de resistir com a sua vontade e, por meio de tais inibições, pode salvar-se da sina que o

espera: “Afasta o princípio do funesto im pulso... Porque o demônio, mu­ dando por troca do querer que acontece com o tempo, poderia talvez transformar-se em vento mais brando”. (Os sete em Tebas, 687, 705 e ss.)]

c) A lei de justiça (Dike) e a infalibilidade da sanção. — Porque tal é a lei que o filho de Cronos institui para os homens: os peixes, os animais selvagens e os pássaros se entredevoram, porque entre êles não existe a Justiça. Porém êle (Zeus) deu aos homens a Justiça, que é o melhor dos bens (Hesíodo, Trabalhos e dias, 275 e ss.). O homem que causa dano aos outros é artífice dos seus próprios males; a má intenção é pior ainda para quem a concebe. O olhar de Zeus vê tôdas as cousas e a tôdas compreende, e, quando lhe agrada fazê-lo, presta-lhes atenção, e não lhe escapa que es­ pécie de justiça encerra dentro de si uma cid a d e... É mau ser justo, se o mais injusto deve ter a preeminência no con­ flito jurídico. Não creio, porém, que isso seja obra do sapientíssimo Zeus (Ibid. 265 e ss.). A Justiça tem o seu assento perto de Zeus, seu pai, filho de Cronos, e comunica-lhe os injustos propósitos dos homens (Ibid., 259 e ss.). E Zeus dá com facilidade a fôrça e com facilidade maltrata os for­ tes; facilmente humilha o soberbo e exalta os humildes; e sem esforço endireita o que estava torto e atormenta o arro­ gante (Ibid., 5 ss.). Um paga logo a culpa, o outro, mais tarde; e se o evi­ tam e não os encontra o divino fado à sua chegada, volta em cada caso mais tarde: sem sua culpa, pagam a culpa os seus filhos ou a geração ulterior (Sólon, fr. 12, versos 29 e ss.). [Êstes conceitos, aplicados ao mundo hum ana por Hesíodo e Sólon, transformam-se depois em conceitos cósmicos, com um a projeção da hu­ manidade no universo. O conceito de Dike cósmica aparece já nos órficos, como se viu; e dêstes passa aos naturalistas jónicos e itálicos. Em Ana­ ximandro eneontra-se também, transferida do mundo humano ao da natu­ reza universal, a representação do Tempo juiz, que Sólon já fazia intervir para proferir a sentença inexorável contra os homens],

d) O mistério do destino insondável para o homem. — A intenção dos Deuses imortais é inteiramente oculta aos homens (Sólon, fr. 17). Filho meu, Zeus tem em mãos o fim de tôdas as cousas e dêle dispõe como deseja. Mas os

homens nada sabem. Criaturas efêmeras, vivemos como animais no prado, ignorantes da maneira como a divindade levará a seu têrmo cousa alguma. Todos vivem de esperan­ ça e ilusões somente, e o seu meditar tende ao inatingível. Velhice, enfermidade, morte no campo de batalha ou nas ondas do mar, atingem o homem antes que êste haja alcan­ çado a sua meta. Outros acabam suicidas. Se me atendes­ sem não amaríamos a nossa própria infelicidade, e não nos atormentaríamos procurando dores incuráveis. (Simônides de Amorgo, fr. 1). e) A consciência das dificuldades temperadas pela fé na atividade fecunda; a consciência dos males aliviada pelo pensamento dos bens alcançáveis. — Pode-se chegar fácil­ mente à condição miserável: a via é lisa e bem próxima a sua morada. Mas os Deuses imortais molharam com suor a que conduz ao bom êxito. Até alcançá-la, o caminho é longo e íngreme, mas, alcançando o cimo, torna-se fácil e desaparece a fadiga da jornada. (Hesíodo, Trabalhos e dias, 286 e ss.). Lembra-te pois da m inha exortação e tra b alh a ... Os Deuses e os homens odeiam o que vive inativo. Asseme­ lha-se, na sua inatividade, aos zangãos que devoram o pro­ duto do trabalho fadigoso das abelhas. . . O trabalho não é vergonha; vergonha é a inoperância (Ibid.). ■ Homero (o homem de Chios) disse uma cousa, a mais bela: os homens são como as fôlhas. Recebem, é verdade, nos seus ouvidos esta noção, mas não a gravam no coração. Porque a esperança que cresce no coração da juventude é inata em cada um. Enquanto estão ainda na flor dos anos, os mortais têm a vontade fraca e desdenham muitas cousas inexeqüíveis. Pois nenhum pensa na velhice e na morte e, durante a higidez, rião se preocupa com a doença. Todos os que assim pensam, e não sabem que aos mortais é conce­ dido um breve período de juventude e de existência. Mas não o esqueças e, pensando no fim da vida, compraze-te em conceder à tua alma alguma cousa de agradável (Simônides de Amorgo, fr. 29). f) A visão pessimista·, a vida é um mal. ■— Nenhum homem é feliz. Assoberbados de fadiga são todos os mortais sob o Sol (Sólon, fr. 15). De tôdas as cousas, a melhor para nós, sêres terrenos, seria não nascer e não ver jamais os

raios vivos do Sol; nascidos, porém, o melhor seria atraves­ sar o mais cedo possível o limiar do Hades e jazer sepultados sob muita terra (Teognis, 424 e s s.). [Esta mesma afirm ação de que o melhor para o homem seria não ter jamais nascido e, nascido, m orrer o mais breve possível, era atribuída ao mítico Sileno interrogado pelo rei Midas: e os órficos, ao repeti-la e fazê-la sua, atribuíam-lhe a significação de que a vida corpórea é um a prisão para a alma, um a expiação dos pecados (Cfr. Aristóteles, Euãemo, fr. 6 Walzer). A afirmação de Teognis passa depois a todo o desenvolvimento sucessi­ vo das correntes pessimistas, com acentuações ulteriores. Cfr. Sófocles, Eletra, 1010 e ss.: "O pior dos males não é m orrer mas desejar m orrer e não poder conseguir nem mesmo isso”. Eurípedes, Creofonte, fr. 449: “Seria preciso chorar quando alguém nasce, por tantas dores que vai en­ contrar; e alegrar-se quando m orre, porque se liberta dos sofrimentos”. Herâelides, 592 ss. e fr. 916: “Tomara que não haja nada debaixo da Terra! Porque se também lá tivermos afãs, nós m ortais que morremos, não sei para onde alguém se voltará, pois a m orte é, segundo se crê, o maior remédio para os males”. Com êsse pessimismo une-se nos poetas gregos, desde Teognis para diante, a advertência de moderação, resignação e humildade, como cons­ ciência da sujeição do homem a um poder transcendente e da sua imensa inferioridade. Também nas sentenças dos Sete sábios esta advertência ocupa um lugar central, e por outro lado, continua um a tradição que já se ori­ gina em Hesíodo].

g) A advertência de moderação e medida. — Insensa­ tos! não sabem quanto os atinge o ditado: “a metade vale mais do que o todo” e que bênção se encontra até na erva mais vil que a terra faz crescer para o homem! (Hesíodo, Trabalhos e dias, 40 e ss.). A mais difícil de tôdas as cousas é perceber a invisível medida da sabedoria que traz em si, somente ela, os limites de tudo o que existe (Sólon, fr. 16). ótim a cousa é a medida (Cleóbulo). Têm existido desde os tempos antigos. . . (sábios), em cujo número se contaram Tales de Mileto, Pítaco de Miti­ lene, Bias de Priene, o nosso Sólon, Cleóbulo de Lindos e Misão de Kenas, e o sétimo chamou-se Quilão de Esparta, todos. . . amantes e discípulos destá sabedoria. . . que, de comum acôrdo, consagraram a Apoio, no templo de Delfos, uma prímícia da sua sabedoria, escrevendo aquelas palavras que todos celebram: “conhece-te a ti mesmo”, e “nada em excesso” . . . Esta era a forma da filosofia dos antigos, uma concisão lacônica (Platão, Protágoras, 343 a).

[Estas duas sentenças, célebres entre tôdas as outras da antiga sabedo­ ria, têm ambas o mesmo caráter de advertência ao homem p ara ter cons­ ciência de sua limitação e de não exceder a medida do que é concedido ao homem, para não cair no pecado de insolência (hybris). E sta seria ferida pelo castigo divino, em defesa do privilégio divino contra tôda pretensão de usurpação humana (inveja dos deuses). Êste conceito acha-se presente no mito de Prometeu, em Hesíodo],

B.

A alma e a sua imortalidade:

a) Os órficos e Ferecides. — Há uma doutrina antiga (órfica) que diz existirem além (no Hades) almas chegadas daqui, e que de lá voltam novamente para aqui, e que res­ suscitam os mortos e nascem dêles novos sêres (Platão, Fédon, 70 c ) . É necessário crer nos antigos Discursos sagra­ dos, que nos advertem de que somos almas imortais e que teremos juizes e que encontraremos as maiores penas (Pla­ tão, Epístola, VII, 335 a). Ferecides Sírio foi o primeiro a afirmar que as almas dos homens são eternas (Cícero, Tuscul, I, 16, 38). [A idéia da imortalidade da alma desenvolve-se na Grécia prim eiram en­ te nos mistérios eleusinos, dos quais passa depois aos m istérios órficos e aos mitólogos e filósofos gregos],

b) O dualismo de alma e corpo no orfismo: o pecado original e a vida corpórea como expiação. — Os que cele­ bram as iniciações dizem que a alma paga a culpa e que vivemos em expiação de certos grandes pecados (Aristóte­ les, Protrept, fr. 10 b, W alzer). Afirmam também os antigos teólogos e adivinhos que, por algum castigo, a alma está uni­ da ao corpo e neste sepultada como em um túmulo (Clemen­ te Alexandrino, Stromata, III, 433). As palavras que se ouvem pronunciar em certos misté­ rios, de que nós os homens estamos como em um a espécie de cárcere, e de onde não nos podemos libertar por nós mes­ mos . . . (Platão, Fédon, 62 b ) . Alguns dizem que o corpo (soma) é túmulo (sema) da alma, visto que esta está sepul­ tada no corpo onde se ach a . . . Parece-me que Orfeu e os seus lhe deram, principalmente êsse nome (soma) enquanto a alma expia a pena dos pecados que tem de descontar; e que o invólucro, imagem de um cárcere, a tem para salvar-

-se (sozesthai), uma vez que para a alma isso é justamente aquilo de que toma o nome, isto é, um corpo (som a), até que a alma não haja pago o seu débito (Platão, Crátilo, 400 c). [O pecado original na mitologia órfica é o dos Titãs rebeldes a Zeus, que despedaçam e devoram Dionisio menino. Zeus fulmina-os, e com as suas cinzas cria o homem; por isso existe neste um a parte titânica pecaminosa (o corpo) e um a parte dionisíaca divina (a alma) que aspira a libertar-se da união com a outra].

c) O ciclo dos nascimentos (transmigração) e a liber­ dade da alma segundo o orfismo. — Orfeu também transmi­ te claramente estas cousas, quando, depois da mítica expia­ ção dos Titãs e a sua geração dêstes mortais viventes, disse, antes de tudo, que as almas permutam as vidas em certos períodos, e entram mais vêzes em diferentes corpos de ho­ mens: “os mesmos espíritos transformam-se alternadamen­ te, pela troca das gerações, em pais e filhos nos palácios e bem ordenadas esposas e mães e filhas”. Dêste modo, rea­ lizam a sua transmigração de corpos humanos para huma­ nos . . . Além disso, existe também uma passagem de almas humanas para animais: também isto Orfeu ensina em têrmos precisos, quando determina: “por isso, mudando se­ gundo o ciclo do tempo, a alma do homem provém de outra parte em outros animais: ora transforma-se em ca v a lo ... ora em carneiro, ou então aparece comò uma ave monstruo­ sa ou também com a aparência de cão e voz grave e, em ou­ tras ocasiões, em rasteira geração de frias serpentes, na terra divina (Proclo, em Rern publ. II, 338 e ss. na edição Teubner). [Esta concepção da transm igração das almas, que tom ou depois o nome impróprio de metempsicose, foi considerada por Heródoto (II, 123) de ori­ gem egipcia. “Também isto foi dito pela prim eira vez pelos egípcios: que a alma do hom em é imortal, e, dissolvendo-se o corpo, penetra sem pre em outro vivente gerado, porque, depois que haja percorrido tôda a série de animais terrestres, marinhos e voláteis, penetra novamente no corpo gerado de um homem; e tal ciclo realiza-se em três mil anos. Desta opinião são aquêles gregos que, alguns antes e outros depois, a sustentaram como se fôsse sua própria; conheço os seus nomes m as não quero escrevê-los. Os gregos aqui acusados de plágio são, além dos órficos, os pitagóricos e Empédocles; Heródoto, porém, incorria em êrro ao assim ilar a teoria órfico-pitagórica da transm igração com a crença egípcia na possibilidade de ressurreição, da qual se derivava tam bém o rito mágico da ressurreição animal. Nos m istérios egípcios vigorava, precisamente, a crença de que o

m orto, após o juízo do tribunal divino, ante o qual pronunciava a sua “confissão negativa”, ou declaração de não haver cometido nenhum dos pe­ cados da lista, podia, se justificado, renovar a sua vida também na casa dos vivos, revestindo, sucessivamente, a form a de qualquer dos animais divinos. Mas essa ressurreição egípcia é o prêmio dos m ortos e a espe­ rança dos vivos, enquanto que o ciclo dos nascimentos no orfismo é um a condenação para expiar o pecado original, um a vez que a aspiração dos órficos é orientada para obter, através das purificações da alma, a libertação da “roda do destino e da geração”, do "ciclo dos nascimentos e da m iséria”].

O divino demiurgo determina o destino de todos segun­ do o mérito “na roda do destino e da geração”, da qual, con­ forme Orfeu, é impossível libertar-se sem enternecer a êsses Deuses, aos quais Zeus determina “libertar do ciclo e fazer escapar da miséria” as almas humanas. (Simplicio, comen­ tário a De coelo, II, 1, 284). (Libertam-nas) levando cada alma à vida bem-aventurada, longe do errar na geração, a quem os iniciados também por Orfeu nos mistérios de Dio­ nisio e de Core, imploram obter “a libertação da roda (do destino) e o cessar da miséria” (Proclo, In Tim., 42 c ã ) . [A salvação da alma ou a libertação do ciclo dos nascimentos obti­ nha-se, segundo os órficos, através da iniciação dos mistérios e a obser­ vância de todos os ritos e regras da vida órfica. Para êles, a alma purificava-se e merecia voltar, assim, ao convívio dos Deuses im ortais (bem-aventura­ dos), ela, cujo pecado a fizera cair na vida corpórea dos m ortais. Por isso, dos iniciados no mistério cantava Píndaro: “Bem-aventurado aquêle que, depois de ter visto estas cousas, desce aos Infernos, porque sabe o princí­ pio e o fim da sua vida” (Threnoi, fr. 137). As inscrições das lamínulas de ouro encontradas nos sepulcros órficos de Thuri referem-se à purificação, libertação do ciclo dos nascimentos e volta à beatitude divina originária].

Venho pura do meio dos puros, o’ rainha dos Infernos! o’ Eucles e Eubúleo e todos os que sois Deuses e demônios!; porque me glorio de ser da vossa estirpe bem-aventurada, e expiei a pena das obras não justas, para que não se abatesse a Moira ou o Deus lançador dos raios. Agora venho supli­ cante diante de ti, resplendente Perséfone, para que me en­ vieis, benigna, à morada dos puros, (lamínula de Thuri: Cfr. em Diels, fragm. der Vorsokr., em Kern, Orphic. frag.). [Outras destas lamínulas contêm inscrições análogas. E m uma, a alma depois das invocações e a recordação do pecado pelo qual a Moira a venceu, ou o Deus fulgurante dos astros, acrescenta:

“Mas voando saí do ciclo, profundamente aflita e trem endo, e com pés velozes cheguei à ambicionada coroa, descendo ao teu regaço, rainha, se­ nhora dos Infernos”. E a Deusa resp o n d e:... “Bem-aventurada e feliz, serás (transform ada em) num e”. . “A ambicionada coroa”, segundo alguns intérpretes, e a que rodeia a morada dos bem-aventurados: o que nos recorda a crença órfica de que provêm as almas do éter celeste e a êle regressam quando obtêm a liber­ tação e o acolhimento entre os bem-aventurados. E sta sede celeste, em Platão, depois, transforma-se em supra celeste (iperurania), e com Proclo, mais tarde, tom a o nome de Empíreo (de fogo puríssim o), com o qual passa à teologia medieval e a Dante. Mas a idéia do éter, fim^ e origem das almas, que contém o cosmos, encontra-se já expressa no epitáfio aos mortos de Potidéia (432 antes de Cristo), em Epicarm o e em fragmentos pitagóri­ cos antigos. _ . Quanto ao caminho das purificações e da salvação da alma do ciclo dos nascimentos, acha-se originariamente constituído no orfismo pela ini­ ciação nos ritos misteriosos e na observância das norm as da vida órfica, mas através dêste significado ritual passa a um significado ético, de ele­ vação espiritual acima dos interêsses materiais e dos bens corpóreos, que já encontramos expresso em Epicarmo. E com os pitagóricos, pois, passa-se a considerar, como principal e suprem a via de purificação e de salvação da alma, a iniciação à ciência e à contemplação filosófica ( theoria), que também Platão (Fedro, 248) coloca depois em prim eira linha entre os caminhos para alcançar a felicidade eterna da alma. Assim, das crenças e dos ritos do orfismo, encontra a sua prim eira origem, a formação do ideal filosófico da vida].

LIVRO I i

i

1;

!

O PREDOMÍNIO DO PROBLEMA COSMOLÓGICO

[ E n tre o fim do V II século e o com êço do V I a.C., o p ro b le m a cosm ológico é o p rim e iro a d estacar-se c la ra m e n te , com o o b je to de p e s q u isa sis te m á tic a d iferen te, do im p re ciso co m p lex o d e p ro b lem as q u e já o cu p a v am a m e n te d o s gregos, a in d a a n te s do su rg ir de u m a reflex ão filo só fica v e rd a d e ira e p ró p ria . Ê sse d esen v o lv im en to sis­ te m á tic o é re su lta d o d e v á rio s fa to re s : a a ssim ilaç ão d e co n h ecim en ­ to s cien tífico s (esp e cia lm e n te astro n ô m ic o s e m a te m á tic o s) p ro v e­ n ie n te s d a s civilizações o rie n ta is ( p a rtic u la rm e n te d a M eso p o tâm ia e do E g ito ) : o a u m e n to d e in te re sse p ela o b se rv ação d a n a tu re z a , com o co n seq ü ê n cia do p ro g re sso d a nav eg ação e d a colonização, d a a g ri­ c u ltu r a e d a té cn ic a; a m a io r fac ilid a d e de o b se rv a r o m u n d o ex te rio r e de a p re e n d e r a s g ra n d e s lin h as d o s fen ô m e n o s m a io re s e d as su a s v ic issitu d es re g u la re s e c o n sta n te s. De tu d o isso ad v ém , n o s com eços d a F ilo so fia grega, o p re d o m ín io do p ro b le m a d a na tu re za : isto é, do p rin c íp io g e ra d o r de tô d a s as co u sas, d o p ro c e sso d e fo rm a ç ã o e d e o rd e m d o co sm o s, d o ciclo d e g eraçõ es e d isso lu çõ e s d a rea lid a d e u n iv e rsa l. M as os co n ceito s d ire tiv o s e sis te m á tic o s d a s p rim e ira s concep­ ções n a tu ra lis ta s , to m a d o s do m u n d o h u m a n o e social, d e m o n stra m , ev id en tem en te, qu e o p ro b le m a d a n a tu re z a se a c h a asso cia d o ao s rela tiv o s à v id a e às criaçõ es do h o m e m e d a so cied ad e. P latão já n o ta v a ( S o fista , 242 c ) q u e ta m b é m os filó so fo s n a tu ra lis ta s se re fe re m a u m a esp écie d e m ito s, fala n d o d e g u e rra s, n ú p c ia s e g eraçõ es e n tre o s elem en to s, e A ristó te les ( M eta física , 982 e 984) av izin h av a o m itó ­ logo do filósofo, e H esío d o a P arm ên id es, p o rq u e n a o rig em do C osm os co lo cam ig u a lm e n te E r o s . . . P o ré m , m a is im p o rta n te a in d a é o fa to de q u e o m esm o co n ceito d e C o sm o s d e riv a do m u n d o h u m a n o ( o r ­ d em d a d an ça, do a d ô rn o p esso al, do ex ército e do E s ta d o ) e dêle ta m b é m e m a n a o co n ceito de lei, sem o q u a l n ão se c o n s titu iria a id é ia d a n a tu re z a com o to ta lid a d e o rg ân ica. R ealiza-se (co m o ta m b é m o b se rv a Ja e g e r, Paiãeia, I, pág. 255, ed. ita l.) u m a p ro je ç ã o d a polis n o u n iv erso , u m a tra n s fe rê n c ia ao aco n ­ te c e r n a tu ra l, de tô d a u m a fa m ília d e co n c eito s to m a d o s d e e m p ré sti­ m o à v id a ju r íd ic a : a c a u sa ia itia ), q u e j á a n te rio rm e n te significava “im p u ta ç ã o ”; a ju s tiç a ( D ik e ), p rim e ira fo rm a d e a firm a ç ã o de u m a lei n a tu ra l, q u e é a in d a lei ju ríd ic a co m o se u c a r á te r im p e ra tiv o e n o rm a tiv o e co m o elem en to d a sa n çã o p a r a o s tra n sg re sso re s.

E n tã o , se (c o m A naxim andro, H erác lito , P a rm e n id e s e o u tro s ) a o rd e m h u m a n a é u s a d a com o chave p a r a a ^ “ S ’ é ev id en te q u e e la p re c e d e u ao m u n d o n a tu ra l co m o o b je to â e reflexão, e q u e c o n tin u a a se r c o n sid e ra d a com o ta l ju n to a ele E , co m e feito, n o s filó so fo s n a tu ra lis ta s os p ro b le m a s m o ra is e p o lític o s e osi interê sse s h u m a n o s d a v id a (in d iv id u a l e social, te rr e n a e dei alem -tu m u lo ) acham -se se m p re p re se n te s e d isc u tid o s; p o r isso , ju s ta m e n te , o p ro b le m a cosm ológico n ão sign ifica exclusão dos o u tro s. E , esse m e s­ m o, com o investig ação de u m p ro b le m a u n itá rio e p e rm a n e n te do d evir m ú ltip lo e m u táv el do u n iv erso , re p re s e n ta u m a a firm a ç a o d as exigências d a raz ão a n te os d ad o s d a ex p e riên c ia sensível q u e j a co m H e rá c lito e P arm ên id es, se a firm a ex p licitam en te , p a r a c o n s titu ir a p rim e ira p osição do p ro b le m a do co n n e cim en to ].

C a p ítu lo

I

APRESENTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DOS PROBLEMAS SEGUNDO ARISTÓTELES

1.

Primeira posição do problema filosófico: o devir e o ser: o conceito da natureza (princípio primordial e substância universal).

A maioria dos primeiros filósofos pensava que os prin­ cípios de tôdas as cousas se encontravam na espécie e na substância material; pois aquilo de que se formam todos os sêres e de que primeiramente são gerados e em que final­ mente se dissolvem, permanecendo a substância no mudar da modalidade, diz-se que êste é o elemento e princípio dos sêres. — Eternidade da substância. — E concluem êsses fi­ lósofos que nada nasce e nada morre, porque esta natureza sempre se conserva. . . É necessário, pois, que exista uma tal natureza, única ou múltipla, da qual se originam tôdas as outras cousas, conservando-se ela a mesma. — Determi­ nação dos princípios e das substâncias. —- Quanto, pois, ao número e à espécie dêstes princípios não estão todos de acôrdo (Aristóteles, Metafísica, I, 3). [O conceito de natureza (physis) é, na sua origem, o do princípio ge­ rador das cousas, em que se unifica depois a multiplicidade destas. (Cfr. Platão, Leis, 892, c. 2: “Por natureza querem significar o princípio gerador das cousas prim ordiais”. E Aristóteles, Física, XI, 1: “Por isso alguns dizem que é o fogo, outros, que é a terra, outros, o ar, outros, a água, outros, que alguns dêstes e outros depois que todos êstes são a natureza dos sêres”. O problema da relação entre o ser e o devir corresponde por isso, a uma tríplice exigência: de encontrar aquilo que gera tôdas as cousas, o que per­ manece na variação e o que unifica a multiplicidade. A esta tríplice exi­ gência já correspondia, no pensamento religioso e nas teogonias anteriores ao aparecimento da Filosofia, a concepção do princípio divino (to theíon), contendo em si, gerando de per si todo o universo. Os prim eiros naturalis­ tas, como Anaximandro, identificam explicitamente com êste princípio di­ vino, a natureza (physis), princípio de tôdas as cousas. Êles a concebem sob a forma de realidade corpórea, porém, não de m atéria inerte, como

quisera fazer parecer Aristóteles, na passagem que inserirm os no^ número seguinte. A natureza dos cosmólogos é vida natura naturans e não m até­ ria m orta].

2.

Passagem ao segundo problema: da substância à causa.

Mas, procedendo dêste modo, a própria realidade abriu-Ihes o caminho e obrigou-os a realizar ulteriores pesquisas: seja que tôda corrupção e tôda geração derive de um único princípio ou de muitos, por que isso acontece e qual é a cau­ sa? Com efeito, não é o mesmo substrato, certamente, que opera a própria transmutação, como por exemplo, a madei­ ra e o bronze não são, cada um déles, a causa das próprias transformações, nem fazem, um o leito e o outro, a estátua; é outra a causa das próprias mutações. Ora, procurar esta causa é procurar um segundo princípio: aquêle, como dizía­ mos, do qual provém o princípio do movimento (Aristóteles, Metafísica, I, 3). [Aristóteles apresenta esta passagem do primeiro ao segundo problema, como transição dos prim eiros filósofos aos seus sucessores. Em verdade, essa divisão cronológica não corresponde inteiram ente à realidade histórica; um a vez que, desde Tales, veremos estabelecida, juntam ente com a afir­ mação do movimento, também a de um a causa motora. Mas, no comêço, essa causa é considerada intrínseca à m atéria e não distinta da mesma: tem-se um a concepção de m atéria animada e vivente, também por éle cha­ m ada princípio divino. É um a concepção de natura naturans que pôde, pois, ser definida como hilozoísmo ou como hüopsiquismo].

3.

O terceiro problema: da causa ao fim: a inteligência.

Mas, estabelecidos êstes problemas, que se mostravam insuficientes para a resolução do problema da geração da natureza dos sêres, os filósofos posteriores, premidos pela mesma verdade, entregaram-se novamente à tarefa de in­ vestigar, como já o dissemos, o princípio ulterior: pois, os entes estão, em parte, e em parte tornam-se dispostos em boa e bonita ordem, e nem o fogo nem a terra, nem ne­ nhum outro de tais elementos pode ser nem parecer-lhes, provàvelmente, a causa; nem mesmo era possível confiar convenientemente no acaso ou na sorte. Assim, quem disse que também na natureza há uma inteligência, como nos

animais, que é a causa da ordenação e da distribuição, pa­ receu um homem esperto em confronto com as divagações dos predecessores. (Aristóteles, Metafísica, I, 4). [Esta passagem é interpretada geralmente no sentido de que representa um simples retorno sôbre o conceito já expresso antes (cfr. n.° 2), para esclarecer melhor que a substância material, por si só, não basta para explicar o devir cósmico. Mas, em realidade, as duas passagens represen­ tam duas exigências distintas: a prim eira põe em relêvo a necessidade de assinalar um a causa da geração e da corrução (isto é, a causa efi­ ciente); o segundo, em compensação, aclara a necessidade de indicar a causa da ordem e da distribuição conveniente das cousas (que não pode ser acaso ou sorte), quer dizer, apresenta um problem a posterior: o das duas causas, formal e final. Aristóteles então esboça aqui um terceiro momento do desenvolvimento lógico progressivo dos problemas. Mas apresenta êle a série lógica como sucessão cronológica, fazendo surgir o terceiro problem a unicamente com Anaxágoras, afirm ador da existência de um a inteligência na natureza. E esta distribuição cronológica não é historicam ente exata. O problem a da ordem e da lei apresenta-se, pois, na origem mesma d.o conceito de natureza: que se afirm a (cfr. Anaximandro, Heráclito etc.) como totalidade governada por um a lei de justiça, isto é, aplicando à natureza o conceito da lei jurídica, com todos os seus elementos, do fim e do imperativo de ordem, e da san­ ção para tôda transgressão, de acôrdo com a medida de talião. Justamente por êste conceito da natureza, o princípio prim ordial já em Tales e Anaxi­ mandro é chamado o divino, e considerado, ao mesmo tempo, substância e fôrça, razão reguladora e finalidade formadora. Todos os problemas, pois, estão implicados juntam ente desde o comêço. À indistinção originária se­ gue, pois, um a distinção entre substâncias materiais e princípios espirituais; porém, antes de Anaxágoras, a quem Aristóteles atribui a sua introdução, ela já era delineada por Empédocles, que fazia intervir o Amor e o ódio para operar sôbre os quatro elementos m ateriais].

C a p ítu lo

II

OS JÓNICOS

[A escola jónica, com a qual se inicia na Grecia a pesquisa científica e filosófica, introduz no mundo grego, com Tales, elementos da ciência caldaica (Astronomia) e egípcia (Geometria). É tam bém chamada escola ãe Mileto, da pátria de Tales, Anaximandro e Anaxímenes; mas aqui se usa o nome de jónicos porque, a exemplo de Gomperz, reúne a êsses três Heráclito de Éfeso (que é tratado à parte por outros, como sustentador de um a posição pessoal) enquanto apresenta o pleno desenvolvimento dos germes de maior im portância contidos nas doutrinas dos três m ilênios. o fluxo universal e a mobilidade da substância eterna (Tales); o ciclo da geração e da destruição e o devir como desenvolvimento dos contrários (Anaximandro); a distinção de dois caminhos opostos. (Anaxímenes), que no duplo ciclo de Anaximandro aparecem como coincidentes em sua mesma oposição; o valor religioso da unidade (Anaximandro), considerado como o divino ou o deus por excelência. Adverte-se que a divisão dos capítulos segundo as escolas não permite acompanhar, para os filósofos individuais, a ordem cronológica, pela qual me reporto ao índice cronológico no fim do XI volume]. 1. TALES DE MILETO [Floresceu pelo ano de 585 antes de Cristo: não deixou escritos, e os que lhe foram atribuídos são falsificações posteriores. A data do florescimento de Tales foi estabelecida baseando-se na do eclipse solar por ele predito e que geralmente se identifica com a de 28 de maio de 585 a.C.].

1.

A água, princípio das cousas.

Tales, fundador de semelhante filosofia, disse que é a água (o princípio dos sêres) — e para isso demonstra tam­ bém que a Terra está sôbre a água — derivando talvez essa concepção de observar que a umidade é a nutrição de todas as cousas, e que até o calor nela nasce e vive: ora, aqui o de que tudo se origina é necessariamente o princípio de to­ das as cousas; destas considerações derivam tais concepções, e por terem natureza úmida as sementes de tôdas as cousas,

e de ser a água nas cousas úmidas o princípio da sua natu­ reza. E há quem creia que os mais antigos (antiquíssimos), que teologizaram muito tempo antes da geração atual, pen­ saram da mesma forma a respeito da natureza, porque fi­ zeram de Oceano e de Tétis os pais da geração (Aristóteles, Metafísica, 1, 3). [Os antiqüíssimos a que alude Aristóteles são representados por Ho­ mero (Ilíada, XIV, 201: Oceano, geração dos Deuses, e Tétis, mãe) e por outros autores de Teogonias, especialmente órficas. (Cfr. Platão, Crátilo, 402 b: ‘‘Homero disse: Oceano, geração dos Deuses e Tétis, mãe. E creio que também Hesíodo. E também Orfeu disse que Oceano das belas ondas foi o prim eiro que introduziu as núpcias, que desposou Tétis, sua irm ã, nascida da mesma m ãe”. Na mesma Ilíada (VII, 99) diz-se: "m as nós não somos senão terra e água”. O que dem onstra que a procura da substância construtiva dos sêres é mais antiga do que Tales, mesmo fora da forma mítica. Certamente, a idéia da água como princípio prim ordial deriva de um a vasta tradição mitológica, comum a tôdas as teogonias ou cosmogonias do Oriente antigo, sumérico, caldeu, egípcio, hebreu, fenício, egeu: todos representando o mito de um Caos aquoso prim ordial de que seria gerado o cosmos. Destas tradições o mito se transm ite aos gregos, desde Homero a Ferecides de Siros, contemporâneo de Tales. Aristóteles apresenta e atri­ bui a Tales duas ordens de considerações, que poderiam chamar-se uma estática e outra, dinâmica. Estática, a da T erra flutuando sôbre a água em que a substância é verdadeiramente o sustento. Cfr. também Aristóteles, De coelo, II, 13: ‘‘Dizem que Tales afirmou que a T erra se mantém porque flutua como um navio ou algo semelhante (uma vez que nenhum dêstes se acha habilitado a manter-se no ar mas, certamente, sôbre a água)”. Êste argumento, a que Aristóteles objeta que também a água precisa, por sua vez, de um sustentáculo, seria, segundo Simplício (De coelo, 522, 14), tirado de um mito egípcio. O outro argumento (dinâmico) da geração e alimentação das cousas pela água é dado como provável por A ristóteles: está relacionado a um terceiro argumento referido na passagem seguinte, que se antecipa à obser­ vação de Heráclito sôbre o fluxo universal das cousas. Também Aristóteles, Meteor., I, 9, liga o mito do grande rio Oceano, correndo em tôrno da Terra, com o ciclo da evaporação das águas, que saem como vapores e voltam como chuva. “Deve-se imaginar como um rio que corre em círculo para cima e para baixo... E isto deve acontecer ininterruptam ente segundo um a ordem fixa; de modo que os antigos, sob o véu do mito de Oceano, queriam significar, provavelmente, que êste rio corre em circulo em redor da T erra’’].

3.

A umidade elementar está penetrada da potência divina que a coloca em movimento (Aécio, I). Parece que Tales também seja daqueles que, segundo se diz, supuseram ser a alma como algo móvel; diz-se que a pedra (magnética) tem uma alma porque move o ferro (Aristóteles, De anima, I, 2). E alguns dizem que a alma se acha misturada no uni­ verso, de modo que também Tales talvez acreditasse que tudo se acha cheio de deuses (Aristóteles, De anima, I, 5). II.

O fluxo universal.

Para Tales tôdas as cousas são arrastadas como um flu­ xo, segundo a natureza do primeiro princípio da sua geração (Philosophumena, I, 1).

ANAXIMANDRO DE MILETO

[Nascido em 610-9 e m orto em 547-6 a.C.: escreveu um a obra, E m tôrno ãa natureza, de que apenas temos um fragmento citado por Simplício, e aJgumas frases lembradas por Aristóteles].

1.

O infinito (ápeiron).

Anaximandro de Mileto, sucessor e discípulo de Tales, disse que o princípio e elemento primordial dos sêres é o infinito, sendo o primeiro que introduziu êste nome de “prin­ cípio” (arché). Afirmou que êste não é a água nem nenhum dos outros que se chamam elementos, mas um outro prin­ cípio gerador (natureza) infinito, do qual nascem todos os céus e os universos nêle contidos (Simplício, Física, 24, 13). [Também Aristóteles (De coelo, III, 5): “mais leve do que a água, mais denso do que o ar, que dizem circundar todos os céus, sendo infinito”. E na Física, III, 5: “há alguns que o fazem infinito, mas não água ou ar, e para evitar que as outras cousas sejam destruídas por sua infinidade: um a vez que têm um a oposição recíproca (por exemplo o a r é frio, a água úmida, o fogo quente), e, se um a delas fôsse infinita sem mais nem menos as outras seriam anuladas; ora, êles dizem que aquilo de que derivam estas cousas é algo diferente”].

2. 2.

A causa motriz: a alma.

A infinidade no tempo (eternidade) e divindade do infi­ nito: unidade de substância e causa.

Não há um princípio primordial: pois seria um limite. Como princípio, é ingênito e indestrutível; porque o que é gerado é necessário que tenha um fim, e há um término para

cada destruição. Por isso, como dissemos, não parece haver princípio dêste, mas, pelo contrário, êste é o princípio das outras cousas e as contém e rege a tôdas, como dizem os que não supõem outras causas (tais como a inteligência e a ami­ zade) além do infinito. E pensam ser o divino: imortal e indestrutível, como dizem Anaximandro e a maioria dos na­ turalistas (Aristóteles, Física, III, 4). [Nesta passagem de Aristóteles parece que estão escritas duas frases extraídas do texto da obra de Anaximandro (Em tôrno da natureza). Com referência à inteligência e à amizade, Aristóteles quer distingui-lo de Anaxágoras e de Empédocles],

3.

A geração dos sêres como separação dos contrários.

Êle não faz consistir a geração em um transformar-se da substância elementar; mas no separar-se dos contrários por obra do movimento eterno (Simplicio, Física, 24, 13). Anaximandro disse que os contrários inerentes à subs­ tância, que é um corpo infinito, se separam, chamando êle, pela primeira vez, a substância pelo nome de -princípio. E os contrários são calor e frio, sêco e úmido e semelhantes (Simplicio, Física, 150, 20 D). [O movimento que dá lugar à separação dos contrários é um movimen­ to rotatório ou vórtice, que talvez por efeito das tempestades que já Hesíodo supunha que agitavam o Caos originário — surge aqui e ali em múltiplos pontos do infinito primordial, como surgem os torvelinhos ou trom bas de ar nos temporais, arrastando os corpos mais densos e pesados para o seu centro e os mais leves para a sua periferia].

4.

O eterno ciclo de geração e dissolução dos sêres: a lei eterna de justiça imanente na natureza.

Aí, de onde vem a geração dos sêres, também se realiza a sua dissolução, segundo uma lei necessária, pois êles de­ vem (assim disse em sua linguagem poética) pagar recipro­ camente a culpa e a pena da injustiça na ordem do tempo (Simplicio, Física, 24, 13). [Crê-se que esta passagem seja tôda um a referência textual às palavras de Anaximandro. A injustiça recíproca dos sêres, pela qual devem pagar a pena com a dissolução, consiste, seja na sua mesma geração, que é um

desprendimento do seio do ser infinito por meio de separação de opostos (quente, frio, sêco, úmido etc.), seja na luta sucessiva a esta cisão dos contrários em que cada qual trata de superar o outro. A injustiça deve seguir a expiação segundo o conceito de lei m oral e jurídica, que Sólon já aplicava à sociedade humana, com o Tempo como juiz inflexível, que castiga os culpados na sua pessoa ou n a dos seus descendentes. Tem-se assim um a visão de legalidade universal, que constitui a metafísica d e .Ana­ ximandro: a noção de comunidade jurídica, extraída da experiência social humana, é projetada no cosmos, tornando imanente a êste um a lei e uma ordem. O mundo do humano, da cultura, propicia os conceitos fundamentais para a interpretação do mundo da natureza; e o divino princípio prim ordial resulta não somente princípio m aterial e fôrça geratriz de tôdas as cousas, mas também razão ordenadora e reguladora do cosmos. Os problemas da substância, da causa, do fim e da ordem, cujo aparecimento Aristóteles apresenta como progressão de três fases sucessivas (cfr. Metafísica, I, 3, 4 citada mais acima), acham-se, em compensação, englobados todos juntos desde as prim eiras concepções do naturalism o jónico].

5.

A infinita sucessão dos mundos: infinita fonte de infinita geração.

Anaximandro disse que o princípio dos sêres é infinito; porque dêle tudo vem e nêle tudo se dissolve. Por êle tam­ bém são gerados infinitos mundos e novamente separados por dissolução no princípio onde nascem. Depois dá a razão pela qual é ilimitado, e é que a geração produtora não deve faltar em nada (Aécio, I, 3, 3). [Para o conceito de infinidade dos mundos Simplício coloca Anaxi­ mandro com os atom istas: “Aquêles que admitem mundos infinitos, como Anaximandro, Leucipo, Democrito e mais tarde Epicuro, sustentavam que nascem e m orrem em número infinito, nascendo alguns e outros dissol­ vendo-se” (Física, X121, 5). Êstes e outros testemunhos dem onstrariam que o infinito número dos mundos não fôsse firm ado só na sucessão, como querem Zeller e outros, mas tam bém na coexistência, como susten­ tam Burnet e outros].

6.

A formação do nosso mundo: as esferas.

Disse que, no nascimento dêste mundo, do princípio eterno, se separou o princípio gerador do quente e do frio; e se formou uma esfera de chamas em volta do ar que cir­ cunda a Terra, como cresce a casca em tôrno de uma ár­

vore. Quando ela se rompeu e se encerrou em certos cír­ culos, o Sol, a Lua e as estréias surgiram à vida (Pseudo-Plutarco, Stromata, 2). [No movimento rotatório do torvelinho, que lança o fogo à periferia, partes dêsse fogo são arrancadas da massa e aprisionadas em rodas de ar; e através dos rasgos dessas rodas giratórias aparecem como astros (Sol Lua, estrelas) em movimento rotatório. Assim, com Anaximandro, o con­ ceito das rodas celestes antecipa e prepara o das esferas celestes, nas quais a Astronomia posterior supõe os astros engastados como pedras, em anéis].

7.

A Terra no centro sustentada por equilíbrio de fôrças.

(E disse que) A Terra se mantém equilibrada sem estar sustentada por nada, permanecendo em repouso por causa da igual distância em que se acha de tôdas as partes (Hipó­ lito, Philosophumena, I, 6). Há quem afirme que se mantém em repouso por motivo de igualdade, como Anaximandro, entre os antigos. Com efei­ to (dizem) o que é colocado no meio e a igual distância dos extremos não é solicitado a mover-se para o alto como para baixo ou para os lados; é impossível que realize ao mesmo tempo um movimento em direções contrárias, assim, neces­ sariamente, acha-se parado (Aristóteles, De coelo, II, 295). [É notabilíssima esta concepção em que desaparece a necessidade de representar-se para a Terra um sustentáculo m aterial em imediato contato (seja a água, o ar ou outra cousa) e aparece a capacidade de representa­ rem-se as ações a distância (atrações). A imobilidade da T erra sem neces­ sidade de apoio é derivada da falta de predomínio de alguma dentre as fôrças atrativas. Êste conceito, todavia, (que Aristóteles repeliu por seu caráter de concepção mecânica) é um conceito de equilíbrio de fôrças, que se neutralizam reciprocamente; não é, como parece a Gomperz e a outros, o princípio da inércia (tendência dos corpos a perseverar no estado de repouso ou de movimento se não intervier um a ação exterior para mudá-lo)].

8.

A conformação das espécies animais em relação às pos­ sibilidades de sobrevivência.

Também disse, que na origem o homem nasceu de ani­ mais de outra espécie, porque, enquanto os outros animais sabem alimentar-se logo por si mesmos, o homem tem ne­

cessidade de um longo período de lactação; também por isso, em sua origem, não teria podido sobreviver se tivesse sido tal como é agora (Pseudo-Plutarco, Stromata, 2). Explica êle que os homens, no comêço, nasceram dentro dos peixes e, depois de terem sido nutridos como os peixi­ nhos e tornados capazes de se protegerem, foram finalmente lançados para fora e tocaram a Terra (Plutarco, Quoest. conviv., 730). [Nesta maneira ingênua e grosseira, aparece em Anaximandro um con­ ceito que será de capital im portância na m oderna teoria da evolução: o da relação entre a conformação orgânica e a possibilidade da sobrevivência da espécie. Falta em Anaximandro o conceito das mutações lentas e pro­ gressivas para a adaptação às condições de vida], XII. ANAXÍMENES DE MILETO [Nascido em 585-4 e falecido em 528-4 a.C.); escreveu: natureza].

1.

Em

tôrno à

O ar infinito, princípio das cousas.

Anaximenes de Mileto, filho de Eurístrato, que foi discí­ pulo de Anaximandro, disse também, como aquêle, que o princípio primordial subjacente é único e infinito, mas não o afirmou, como êle, indeterminado mas determinado, decla­ rando que é o ar. (Teofrasto, Simplício: Fís., 24, 28). 2.

Sustentáculo e invólucro.

Do mesmo modo, dizia, como a nossa alma, que é ar, nos sustenta, assim o sôpro e o ar circundam o mundo in­ teiro (Aécio, I, 3, 4). [Fragmento textual extraído da obra de Anaximenes].

3.

Geratriz de todos os sêres.

Dêle (ar infinito) dizia terem nascido tôdas as cousas que existem, as que existirão, e os deuses e as cousas divinas, enquanto que as outras restantes provêm da descendência dêsse mesmo ar (Hipólito, Refutat., I, 7).

4.

A perceptibilidade da diferenciação.

E a forma do ar é a seguinte: quando é muito igual tor­ na-se invisível ao olhar: torna-se visível com o frio e com o calor, com a umidade e o movimento (Hipólito, loc. cit.).

IV.

[Floresceu em 504-500 a.C. Escreveu também um livro, Da natureza, de que possuímos muitos fragmentos referidos por autores posteriores].

1. 5.

O movimento eterno e a mudança.

Está sempre em movimento; porque não apresentaria tantas mudanças quantas apresenta, se não estivesse em movimento (Hipólito, loc. cit.). (Assim) Também êle afirma a eternidade do movimento como causa do gerar também da mutação (Teofrasto, loc. cit.). 6.

O duplo processo de transformação.

(O ar) Diferencia-se, em virtude da rarefação e da con­ densação, em várias substâncias. E rarefazendo-se trans­ forma-se em fogo, condensando-se torna-se vento, depois em nuvem, e ainda mais (condensado) em água, depois em ter­ ra, e por último em pedra (Teofrasto, loc. cit.). 7.

Frio e calor por meio da rarefação e condensação.

Segundo o que acreditava o antigo Anaxímenes nem o frio nem o calor devemos supor existentes na substância, mas como afecções comuns da matéria, sobrepostas às mu­ tações. Disse que a sua parte, restringida e condensada, é fria, a parte dilatada e relaxada (chamando-a assim, de certo modo, pelo seu têrmo) é quente (Plutarco, De prim. frig., c. 1).

A antítese de experiência e razão:

a) O dado da experiência: o fluxo incessante das cou­ sas e do sujeito cognoscitivo. Não é possível descer duas ve­ zes no mesmo rio, nem duas vêzes tocar uma substância mortal no mesmo estado; mas pelo írnpeto e a velocidade da mutação (se) dispersa e novamente se reúne, e vem e desaparece (fr. 91). A quem desce os mesmos rios alcança-o novos e novas águas (fr. 12). Descemos e não descemos em um mesmo rio, nós mesmos somos e não somos (fr. 49). [Neste princípio do fluxo universal dos sêres faz-se comumente consistir a essência da sabedoria de Heráclito (panta rhei). Mas com êle (já nota­ vam Platão e Aristóteles) o conhecimento torna-se impossível, não podendo estabelecer-se relação alguma entre dois têrm os o objeto e o sujeito ambos em constante m utação. O discípulo de Heráclito “Crátilo acabou por crer que não se deve sequer falar, e limitava-se a fazer sinais com o dedo e criticava Heráclito por ter dito que não é possível submergii-se duas vêzes no mesmo r io : na sua opinião, nem mesmo um a só vez e possível (Aristóteles, Metafísica, XV, 5, 1 009). Somente que o fluxo universal é unicamente o prim eiro momento da especulação de Heráclito: é dado da experiência à qual êle opõe a exigência da razão e a necessidade leligiosa da unidade permanente; necessidade que Heráclito crê que se satisfaz uni­ camente por via diversa da 'experiência sensível, ou seja pelo caminho da fé e da autoconsciência. Perm item elas descobrir a razão eterna iLogos) imanente no homem e nas cousas, harm onia oculta e identidade dos contrários, em que, por êle, também entra e é explicado o fluxo uni­ versal dos sêres. Assim, nesta explicação, a antítese inicial de experiência e razão elimina-se, conciliando se a oposição com a identidade, o múltiplo com a unidade, a mudança com a permanência. São pois três momentos de um desenvolvimento contínuo, que deve ser aprendido no seu nexo íntim o: a experiência do fluxo, a exigência racional da permanência, o re­ conhecimento da sua identidade recíproca].

b) [Acrescenta Plutarco que Anaximandro observava que “não é por êrro que se diz que também o homem solte pela bôca o calor e o frio: um a vez que a expiração, comprimida e condensada pelos lábios, se esfria ao sair pela bôca aberta, e pela rarefação se torna quente”].

HERÁCLITO DE ÉFESO

A exigência da razão: a noção do uno divino.

Existe somente uma sabedoria: conhecer a Inteligência, que tudo governa, penetrando em tudo (fr. 41). A lei e a sentença é acompanhar o Uno (fr. 33).

2.

O caminho da conciliação da antítese:

a) Valor e dificuldade do conhecimento. O pensar é a maior virtude, e é sabedoria dizer a verdade e agir de acôrdo com a natureza compreendendo-a (fr. 112). De todos aquêles cuja palavra ouvi, nenhum chegou a conhecer que a sa­ bedoria é uma cousa separada de tôdas as outras (fr. 108). Os que procuram ouro, cavam m uita terra e encontram pouco (fr. 22). Os limites da alma talvez nunca consigas encontrar, qualquer que seja o caminho que percorras: tão profunda é a sua razão (fr. 45). b) A condição do verdadeiro conhecimento·, a fé. Se não esperas, não encontrarás o inesperado, que é inalcançável e inacessível (fr. 18). Não se alcança o conhe­ cimento por falta de fé (fr. 86). c) O caminho da sabedoria: conhece-te a ti mesmo. É possível a todos os homens conhecer-se a si mesmos e ser sábios (fr. 116). Procurei-me a mim mesmo (fr. 101). É pró­ prio da alma a razão que se acrescenta a si mesma (fr. 115). A educação é para o educando um outro sol (fr. 134, de au­ tenticidade incerta). d) A descoberta âa Razão divina imanente. Quem fala com inteligência deve apoiar-se no que é comum a todos, como uma cidade sôbre a lei, e ainda mais firmemente. Por­ que tôdas as leis humanas são baseadas na única lei divina; pois esta domina tudo o que quer, basta a todos e triunfa (fr. 114). Por isso convém que se siga a universal (Razão), quer dizer, a (razão) comum: uma vez que o universal é o comum. Mas, embora essa Razão seja universal, a maioria vive como se tivesse uma inteligência absolutamente pessoal (fr. 2). Desta Razão, que entretanto é eterna, os homens não têm consciência, seja antes de tê-la ouvido, seja tendo-a ouvido pela primeira vez: pois, apesar de tôdas as cousas su­ cederem-se de acôrdo com esta Razão, êles parecem inexper­ tos, apesar de experimentar palavras e atos, tais como lhes exponho, distinguindo cada cousa segundo a natureza e dizendo como é. Todos os outros homens permanecem sem saber o que fazem enquanto despertos, como esquecem o que fazem, dormindo (fr. 1).

(Cfr. também o frag. 36): “aquêles que não entendem, tendo ouvido, se semelham aos insensatos (kõfoisin = tam­ bém surdos e cegos); a êsses aplica-se o ditado: presentes; estão ausentes”. 3.

O ensinamento da Razão:

a) A identidade do Uno eterno (fogo) e o devir univer­ sal. Escutando a Razão e não a mim, é sábio reconhecer que o Uno é tôdas as cousas (fr. 50). Êste mundo, que é o mes­ mo para todos, não criou nenhum dos deuses ou dos homens, mas sempre foi, é e será fogo eternamente vivo, que se acen­ de com medida e se apaga com medida (fr. 30 ). Com o fogo mudam-se tôdas as cousas e o fogo com tôdas, como os obje­ tos com o ouro e com o ouro os objetos (fr. 90). [Esta troca das cousas com o fogo não é concebida por Heráclito, so­ mente como contínua alternância das cousas singulares, m as também como periódico acontecimento universal, por aquela concepção dos ciclos cósmi­ cos, o que o pensamento grego tinha extraído da Astrologia caldaico-babilônica. Isto aparece em um fragmento de Heráclito que alude à confla­ gração universal·, sobrevindo o fogo, julgará e condenará tôdas as cousas (fr. 66). E sta conflagração que Hipólito, (Philosophum., IX, 10) ao refe­ rir-se ao fragmento, disse que está concebida como um juízo universal, corresponde ao conceito de um a lei universal de justiça e de expiação, que já vimos em Anaximandro, e aproxima Heráclito da religião dos mistérios, como outros fragmentos nos confirmarão mais adiante],

b) A realidade do ser como desdobramento de opostos e harmonia de contrários. O ser, sempre em luta e sempre em harmonia (Platão —■ referindo-se a Heráclito — in Sofista, 242, E). Unindo-se o completo e o incompleto, o concorde e o discorde, o harmônico e o dissonante: e de todos o uno e do uno todos (fr. 10). Tudo o que é contrário se concilia e das cousas diferentes nasce a mais bela harmo­ nia e tudo é gerado por via de contraste (fr. 8). A harmonia oculta é melhor do que a aparente (fr. 54). Êles não com­ preendem como o que é diferente conspira consigo mesmo: harmonia por tensões opostas como do arco e da lira (fr. 51). O Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome (fr. 67). É necessário saber que a guerra é comum, e a justiça contraste e que pela via do contraste tôdas as

cousas nascem e chegam a faltar (fr. 80). e rainha de tôdas as cousas (fr. 53).

A guerra é mãe

c) O recíproco condicionador d m opostos. Somente a doença torna doce a saúde, o mal o bem, a fome a saciedade, a fadiga o repouso (fr. 111). Não se conheceria mesmo o nome da justiça se não houvesse esta (a ofensa) (fr. 23). d) A permutação e a identidade dos contrários. As cousas frescas aquecem-se, o calor resfria-se, a umidade se­ ca-se, a aridez torna-se úmida (fr. 126). Em nós é a mesma cousa o vivo e o morto, o desperto e o dormente, o môço e o velho; porque estas cousas mudando-se são aquelas, e aquelas por sua vez transformando-se são estas (fr. 88). É comum o princípio e o fim na periferia de um círculo (fr. 103). No parafuso da prensa o caminho reto e o curvo são um e o mesmo (fr. 59). Um e mesmo o caminho para cima e para baixo (fr. 60). . O mar é a água mais pura e a mais impura; potável e salutar para os peixes, é impotável e funesta para os ho­ mens (fr. 61).

im ortais porque nestes a alma é imperecível: e os contrapõe porque a morte de uns ó vida de outros e vice-versa. E assim o último fragmento prenuncia aos homens a eternidade depois da morte. Aqui se acha certa­ mente o reflexo de crenças derivadas dos mistérios órficos].

5.

Moral e política.

Se a felicidade consistisse nos prazeres do corpo, chama­ ríamos de felizes aos bois quando encontram forragem para comer (fr. 4). A guerra é mãe de tôdas as cousas e de tôdas as cousas rainha, e destinou uns a serem Deuses, e outros, homens; a uns tornou livres e a outros, escravos (fr. 53). E é lei que se obedeça à vontade de um só (fr. 33).

[Neste últim o fragmento a identidade dos contrários é derivada da relatividade].

4.

A alma.

Para as almas (fogo) é morte tornarem-se água, para a água é morte tornar-se terra, mas da terra produz-se a água e da água a alma (fr. 36). Vivemos a morte daquelas (as almas) e aquelas vivem a nossa morte (fr. 77). Imor­ tais mortais, mortais imortais, vivendo a morte daqueles, morrendo a vida dêstes (fr. 62). Aos homens depois da morte esperam tais cousas, que não esperam e não ima­ ginam (fr. 27). [Êstes fragmentos exigem algum esclarecimento. O primeiro diz res­ peito à transm utação recíproca das substâncias, considerando as ^ almas (elemento divino) semelhantes ao fogo. Mas ao penetrar no corpo (úmido), a alm a (fogo) sofre um período de m orte, da qual ressurge com a m orte do corpo, libertando-se do elemento úmido. Isto diz o 2,° fragmento, e por isso o 3.° considera os im ortais (as almas) m ortais, e os m ortais (homens)

#

C a p ít u l o I I I

OS PITAGÓRICOS OU ITALICOS

I.

O PITAGORISMO MAIS ANTIGO

[Com Pitágoras de Samos — nascido por volta de 580, passado (talvez depois de outras viagens, ampliadas pela lenda) a Magna Grécia: a Crotona 532-1 e depois ao Metaponto, onde m orreu no ano de 497-6 — a Filosofia estende-se do Egeu à Itália meridional. Daí serem os pitagóricos chamados também itálicos (cir. Aristóteles) embora na Itália surja também a escola de Eléia, por Impulso de Xenófanes de Colofão. As doutrinas na escola pi­ tagórica, não são distinguidas por autores; e tam bém Aristóteles fala sempre dos pitagóricos, impessoalmente. O desenvolvimento destas doutrinas no curso de um século e meio, aproximadamente, que vai desde a idade de Pitágoras à de Filolau e Arquitas (contemporâneos respectivamente, m as um pouco mais velhos do que Sócrates e Platão), realizou-se por fases que não temos meios de distinguir cronológicamente e de reconstruir históricamente. A distinção usual (que seguimos aqui por motivo de exposição) entre a iase do primeiro pitagorismo e os progressos da idade de Filolau e Arqui­ tas não pretende ter outro significado senão indicar que elementos da dou­ trina se podem atribuir com relativa certeza ao período inicial da escola, e qual é o quadro complexivo que se apresenta no período de desenvolvi­ mento mais maduro. Mas muitos dos elementos da mais m adura sistem a­ tização vêm-se desenvolvendo no intervalo; e alguns (especialmente os re ­ ferentes à Cosmologia) já se apresentaram na fase inicial].

1.

A sabedoria de Pitágoras: mistura de Ciência e crenças religiosas. A Filosofia como meio de purificação espi­ ritual.

Pitágoras, filho de Mnesareo, levou as investigações mais longe do que todos os outros homens (Heráclito, fr. 129). [Acrescenta o fragmento de Heráclito: “e escolhendo entre êsses escritos (por êle estudados) reivindicou como sabedoria sua pessoal o que não era senão vasta sabedoria (polimathia) e arte de m aldade”. E o fragmento 40 do mesmo Heráclito diz: “O fato de aprender m uitas cousas não instrui a inteligência, pois, de outra maneira, teria instruído a Hesíodo e Pitágoras,

como a Xenofonte e Hecateu”. Nestes fragmentos acha-se expresso, com a hostilidade contra Pitágoras, também o reconhecimento da vasta doutrina que o fazia célebre entre os seus contemporâneos].

Pitágoras, filho de Mnesarco, ocupou-se primeiro de Matemática e de números; mais tarde, porém, não se abs­ teve de fazer milagres, à maneira de Ferecides (Aristóteles, fr. 186). [Ferecides de Siros, aqui lembrado, autor de um a Teogonia intitulada Pentemuchos, representa um a especulação religiosa semelhante à dos órficos, a cujas doutrinas religiosas se relaciona estreitam ente o pitagorismo. Sôbre o caráter sagrado da filosofia para Pitágoras, cfr. Jâmblico (Vita Pythag., £8) que tom a a Heráclides Pôntico: “A mais pura espécie de homem é a que se eleva à contemplação das supremas belezas, e tal é a do filósofo”; que não quer dizer-se sábio, porque ninguém é sábio, além de Deus, mas amigo da sabedoria (Diog. L., pr. 12; cfr. Rostagni, op. cit., 278). A introdução do nome de filósofo, por antiga tradição, atribui-se justam ente a Pitágoras. Mas êsse am or à sabedoria (filosofia) tem um valor religioso no pita­ gorismo, pois é considerado meio e caminho de purificação espiritual e de salvação da alma. De fato, os pitagóricos têm em comum com_os órficos as idéias de um a origem divina da alma e de um pecado originai que a alma deve expiar no cárcere corpóreo, passando de um corpo a outro em uma série de vidas (v. na pág. seg. n.° 2), enquanto não alcançar a purificação, e, por meio dela, a libertação dos ciclos dos nascimentos. E sta purificação, para os órficos, realiza-se através da iniciação religiosa e da participação nos ritos sagrados; Pitágoras, em compensação, introduz a idéia de uma purificação do culto do saber. Tal idéia já se vê refletida em Píndaro, frag. 133; “Mas àqueles que pagaram a Perséfona a expiação do antigo pe­ cado ela envia, após nove anos, a alma à suprema luz do Sol, onde vivem reis ilustres e homens poderosos d.e fôrça e superiores em sabedoria; e logo são chamados pelos homens, para sempre, santos heróis”. Assim a vida dedicada à sabedoria é indicada como caminho de retorno da alma ao es­ tado divino (santos h eró is): cfr. Platão, Menone 81 ab, Féãon, 69 d e 114 c e Feãro, 247 d, 249 a, que explica tratar-se dos “purificados da filosofia”, que são libertados do cárcere corpóreo e voltam a viver o tempo futuro nas regiões celestes. A mesma crença pitagórica vê-se refletida no fr. 146 de Empédocles, onde a purificação final das almas purificadas é apresentada nas pessoas de ‘‘profetas, poetas, médicos e príncipes de homens sôbre a Terra; de onde depois surgem Deuses plenos de honras”. Também em Parmênides, fr. 1, verso 3, conforme a emenda Meinelte-Jaeger, e em Epicarmo, fr. 297 Kaib. (45 Diels), e em Eurípedes fr. 198 e 910 encontram-se reflexos desta idéia. Cfr. Aristóteles, Protréptico, fr. 11, Walzer: " . . . É pois um a realidade êste fim para o qual a natureza e Deus nos geraram. In­ terrogado Pitágoras sôbre qual era êsse fim, respondeu: “para contem­ plar o Céu”, e êle próprio chamou-se contemplador da natureza, e que para isso viera à vida”].

2.

As doutrinas: imortalidade e transmigração, parentesco dos viventes, ciclo das cousas.

O que êle (Pitágoras) dizia aos seus companheiros nin­ guém pode dizer com segurança, pois também o silêncio entre êles não era casual. Por outro lado, eram particular­ mente conhecidas entre tôdas estas doutrinas: 1) a que afir­ ma ser a alma imortal; 2) que ela transmigra de uma a outra espécie de animais; 3) além disso, que dentro de cer­ tos períodos os acontecimentos de uma vez voltam ainda e que nada mais existe de absolutamente nôvo; 4) que é ne­ cessário acreditar que todos os sêres vivos sejam parentes entre si. De fato, parece que na Grécia estas crenças foram introduzidas pela primeira vez por Pitágoras (Dicearco, cit. em Porfirio, Vida de Pitágoras, 19). [Estas doutrinas, como resulta de todo o exposto na introdução sôbre as crenças órficas, são comuns ao pitagorismo e ao orfismo. Sôbre o si­ lêncio na escola pitagórica, veja-se mais adiante no n.° 7. O conceito órfico-pitagórico da im ortalidade da alma e da sua oposição ao corpo pode ver-se tam bém em Píndaro, fr. 131, B: “O corpo de todos está sujeito à m orte fatal, porém sempre permanece viva um a imagem, que provém dos Deuses: ela dorme quando os membros trabalham , m as em muitos sonhos profé­ ticos revela aos dorm entes o futuro juízo dos males e dos bens” (trad. Rostagni)].

Conta-se que um dia, achando-se em presença de um cão que estava sendo castigado, se comoveu e proferiu estas palavras: deixa de castigá-lo, porque é a alma de um homem amigo meu, que reconheci ao ouvi-lo chorar (Xenófanes, fr. 7). [O testemunho de Xenófanes, contemporâneo de Pitágoras, confirma que a doutrina da transm igração, n a escola pitagórica, deve atribuir-se ao mes­ mo fundador. Cfr. tam bém : “Com efeito, o discurso de Pitágoras é m ere­ cedor de crédito por êles: que às almas dos homens coube ser im ortais e durante determinados anos viver novamente, entretanto a alma em um outro corpo” (Diodoro, V, 28 Schl.). “Falava Euforbio (pitagórico) do ciclo da alma, como realiza o seu ciclo e em quantas plantas e animais entra” (Heráclides Pont., em Diog. L, V III, 4). “Nenhuma alma (na sua opinião) m orre, nem cessa senão por breve tempo enquanto se transfunde de um corpo para outro; veremos quando, e sofrendo que espécies de vicissitudes, e depois de quanto tempo volta ao homem, após haver passado por dife­ rentes moradas. E ntretanto, êle inspirou aos homens o te rro r de cometer delito, e parricídio, se, inconscientemente, fôsse contra a alma do pai, e

violassem com o ±'orro ou mordidas o corpo em que estivesse hospedado algum espírito parente” (Socion em Sêneca, ep. 108, n.° 19, Rostagni). Daqui Empédocles, ver mais adiante].

3.

A alma, princípio de movimento.

Parece que o que foi dito pelos pitagóricos tem o mes­ mo significado; pois diziam alguns dêles que a alma é o pó que se agita no ar, outros que é o princípio motor da­ quele. Falaram dêle, porque aparece em contínuo movimen­ to, embora o ar se encontre em perfeito repouso (Aristóte­ les, De anima, I, 2, 404). [A alma, assim concebida, entraria no corpo do recém nascido com a prim eira inspiração, e constituiria o princípio motor, saindo com o último alento do agonizante, para dar lugar à imobilidade da morte. E assim po­ deria passar de um corpo a outro de homem ou de animal; o que é criti­ cado por Aristóteles: “Mas éles o tentam dizer o que seja a alma, e não determ inam nada mais sôbre o corpo que deve acolhê-la como se qualquer alma, segundo as fábulas dos pitagóricos, pudesse entrar em qualquer corpo que a recebesse”. (De anima I, 3, 407). A crítica que pode parecer aplicável a esta concepção do prim eiro pitagorismo, não abrange mais a teoria da alm aharm onia, que se apresenta mais tarde, nos tempos de Filolau; porém, já no primeiro pitagorismo é de notar-se que a teoria da transm igração relaciona a natureza do nôvo corpo adotado com a demons­ trada pela alma na vida anterior. Porém que a idéia da alma princípio m otor pertença aos prim eiros pitagóricos resulta também do fato de já ser a mesma encontrada em Alcméon de Crotona, que o próprio Aristóteles supõe em estreita relação com o primeiro pitagorismo. Aristóteles fala-nos assim de Alcméon, que viveu por volta do ano de 515 (quando, diz Aristó­ teles, Pitágoras era velho): “O crotonense chama a alma de im ortal porque se assemelha às cousas imortais; esta semelhança reside no mover-se sem ­ pre, pois também as cousas divinas movem-se constantemente, sem pre: a Lua, o Sol, os astros e o Céu inteiro”. (De anima, I, 2, 405). Aqui tende a precisar-se o movimento contínuo da alma, que, à semelhança dos as­ tros, deve ser circular: é pois, o ciclo dos nascimentos ou da transm igra­ ção, afirmado pelos órficos e por Pitágoras. Cfr. o testemunho de Socion em Sêneca, ep. 109 (20-21): “E não só os astros celestes giram em círculos fixos, mas os animais se encontram envoltos em rodeios, e as almas per­ correm um círculo”].

4.

O universo vivente: a respiração, o vácuo.

Dizem também os pitagóricos que o vácuo existe, e que é introduzido no Céu quase por uma respiração do infinito (pneuma) ; e que o vácuo permite distinguir as naturezas

dos corpos, por ser o vazio uma separação e distinção das cousas colocadas um a após a outra; e êstes dizem que isto acontece, antes de tudo, nos números, um a vez que o vácuo distingue a natureza dos mesmos (Aristóteles, Física, IV, 6, 213). [Stobeo (Ecloga Physica, I, 18, 1) diz analogamente que, segundo os pi­ tagóricos, o vácuo determ ina os lugares de cada cousa. O vácuo, que dis­ tingue a natureza dos números, é o intervalo de um a unidade que existe entre cada número e o precedente ou o sucessivo: análogo ao espaço que separa cada corpo de qualquer outro. Assim o espaço (vácuo) é considerado como um ente real, ou seja, como um real intervalo, e como a realidade ou substância infinita, que abraça e contém todos os sêres delimitados. “Os pitagóricos e Platão não consideram o infinito como acidente (atribu­ to) de outra substância, mas por si, como substância êle mesmo. Mas os pitagóricos incluem-no entre as cousas sensíveis... e dizem que o infinito é o que está fora do Céu” (Aristóteles, Física, III, 4, 203). Na teoria do vácuo qual ser, que se introduz no universo por meio de uma respiração, identifica-se evidentemente com o ar; é criticada por Aristóteles e também por Anaxímenes ("o vácuo cheio de a r” em Física, IV, 6, 213; “o vácuo parece ser a r” em De animal., II, 10, 419). Já o fato de ter Xenófanes (cfr. Diógenes Laércio, IX, 19) repelido a teoria da respiração do universo parece indicar que ela pertence ao prim eiro pitagorismo; confirma-o a circunstância de ter sido também combatida por Parmênides (cfr. fr. 8, versos 5 e ss., onde rechaça a hipótese de um desenvolvimento ou acrés­ cimo do cosmos). Mas, parece que para Pitágoras o infinito não se identifica somente com o a r e com o vácuo mas tam bém com a obscuri­ dade, em oposição ao limite, que se identifica com o fogo. Tais identifi­ cações sistematizam-se mais tarde na tábua das oposições, porém, na Astro­ nomia de Pilolau, o infinito parece ser o elemento luminoso, éter ou fogo, que contém, dentro de si, todo o cosmos].

5.

Os números, essência das cousas.

Parece que Pitágoras apreciou, sôbre tôdas as cousas, as investigações em tôrno dos números, procurando adian­ tá-las muito além do estado antecedente, conduzindo-as além das necessidades do comércio (Aristoxeno, sobre a Matemá­ tica, cit. em Stobeo, I, 20, 1). Os assim chamados pitagóricos, tendo-se aplicado às Matemáticas, foram os primeiros a fazê-las progredirem, e, imbuídos por elas, acreditaram que o seu princípio fôsse o de tôdas as cousas. Os números são, por sua natureza, os primeiros em Matemática, e nêles pareceu-lhes observar mui­ tas semelhanças com os sêres e com os fenômenos, muito

mais do que no fogo, ou na terra ou na água (por exemplo tal determinação dos números parecia-lhes a justiça; e por assim dizer, qualquer outra cousa sem elhante); e como tam­ bém viam nos números as determinações e as proporções das harmonias; e como, por outro lado, parecia-lhes que tôda a natureza fôra feita à imagem dos números e que os núme­ ros fôssem os elementos de todos os sêres, e que o universo inteiro fôsse harmonia e número; e muitas concordâncias que puderam demonstrar nos números e nas harmonias com as condições e as partes do universo e com a sua or­ denação total, recolheram e coordenaram (Aristóteles, Me­ tafísica, I, 5, 985). Os pitagóricos, ainda antes de Demócrito, definiram algumas poucas cousas, cujas razões reduziam a números, tais como a oportunidade, o justo ou o matrimônio (Aristó­ teles, Metafísica, XIII, 4, 1 078). [A alusão que faz Aristóteles de que os pitagóricos viram nos números as determinações e proporções das harmonias, refere-se à descoberta feita por Pitágoras, dos acordes musicais de oitava, de quinta e de quarta, e da correspondência entre cada nota e o comprimento da corda vibrante, pelo que as variedades dos sons se tornam geometricamente mensuráveis. Uma lenda recolhida por Varrão atribuía, entretanto, a descoberta à observação dos intervalos harmônicos nos sons dos m artelos de um ferreiro sôbre a bigorna, considerados correspondentes às diferenças de pêso entre os m ar­ telos. Que o conceito de harm onia musical surja ao prim eiro pitagorismo resulta do fato de já se encontrar o mesmo em Heráclito, por derivação do pitagorismo (fr. 10 e 51), e que nos prim eiros capítulos do escrito pseudo-hipocrático Sôbre o número 7, correspondente à época de Parmênides, já se encontra o conceito do meio harmônico].

6.

já existentes, crês que o número permanece sendo o mesmo? — Certamente n ã o . . . Então, o que muda por natureza e jamais permanece no mesmo estado parece-me que está para tornar-se diferente do mudado (Epicarmo, fr. 2 Diels, trad. R ostagni). [Alude-se aqui ao uso pitagórico de representar os núm eros com pedrinhas ou com pontos dispostos em form a de figuras geométricas. Obtinham-se, dêsse modo, a diversidade dos números ím pares e pares e a série dos nú­ meros triangulares, quadrados, retangulares, cúbicos etc. Cfr. Aristóteles, Metafísica, 1 092 b : “Aqueles que traduzem os núm eros pelas figuras, trian­ gulares, quadrados etc.” Do hábito de usar pedrinhas (cálculos) para assinalar as unidades e os números é que se derivou, no cómputo aritmético, o nome de cálculo].

Ao princípio da unidade, do ser idêntico e ig u a l. . . cha­ mou-se U no. . . Em compensação, ao princípio da diversida­ de e da desigualdade, de tudo o que é divisível e mutável e ora se acha em um estado, ora em outro, chamou-se duali­ dade (Porfirio, Vita Pyth., 52, trad. Rostagni). c) Tendência às oposições (Preparação da tábua dos opostos). — Alcméon de Crotona disse que a maior parte das cousas humanas são pares de op osto s.. . seja que êle te­ nha emprestado tal teoria dos pitagóricos, seja que aquêles dêste (Aristóteles, Metafísicai, I, 5). [Do hábito pitagórico de enum erar opostos, de que resulta mais tarde a tábua das oposições, há evidentes reflexos em Epicarmo, na polêmica de Xenófanes, Parmênides e Zenão, e mais ainda na polêmica de Heráclito, que, contra o dualismo dos pitagóricos, afirm a a unidade dos opostos e a identidade das oposições com a unidade].

Os elementos dos números e as oposições.

a) Dualidade dos pares e dos ímpares (ilimitado e li­ mitado) . — Parece que êles consideram elementos do número o par e o ímpar, e déles, o primeiro ilimitado e o segundo limitado. O Uno participa de ambos, visto que é par e ímpar ao mesmo tempo, e o número provém da unidade (Aristóte­ les, Metafísica, I, 5, 988). b) Mutabilidade dos números e imutabilidade do uno. — Quando a um número ímpar, ou como achares melhor, a um par, se acrescentar uma pedrinha, ou se tirar uma das

7.

A escola e a sua ordenação.

Êstes (os admitidos ao noviciado) a princípio chama­ vam-se, no período em que deviam calar-se e escutar, acústi­ cos. Mas, quando aprenderam as cousas mais difíceis entre tôdas, isto é, calar-se e escutar, e começaram a adquirir eru­ dição no silêncio, o que era chamado echemuthia, adquiriam então a faculdade de falar e fazer perguntas e escrever o que haviam sentido e exprimir o que pensavam. Em tal pe­ ríodo chamavam-se matemáticos, derivando êsse nome da­

quelas artes que começaram a aprender e meditar: pois os antigos gregos chamavam m athém ata (ciências) a Geome­ tria, a Gnomônica, a Música e as outras disciplinas mais elevadas. Depois, adornados com tais estudos de Ciência, começavam a considerar a obra do mundo e os princípios da natureza e, então, eram finalmente chamados físicos (Tau­ ro, cit. de A. Géllio, Noites Áticas, I, 9). [A distinção de acústicos (ou acusmáticos) e matemáticos — dada por outros como distinção de exotéricos e esotéricos, ou de pitagoristas e pita­ góricos, — é considerada, por algum crítico moderno, como invenção pos­ terior. A obrigação do silêncio místico e do segredo de que fala Aristo­ xeno (cit. por Diógenes Laércio, V III, 15), segundo alguns críticos, ter-se-ia referido às doutrinas religiosas, e conforme Tannery às Matemáticas (por isso Hipaso de Metaponte foi expulso da ordem por tê-las revelado), de acôrdo com Burnet, somente ao ritual da ordem pitagórica e segundo Rostagní, mais justamente, aos ritos e às concepções místicas conjuntamente].

II.

DESENVOLVIMENTO DO PITAGORISMO NA IDADE DE FILOLAU

[Após a dispersão da ordem pitagórica de Crotona, e a dissolução da que se acolhera depois em Régio Calábria, alguns pitagóricos passam à Grécia: Filolau e Lisis radicam-se em Tebas, de onde, porém, Filolau vol­ tara à Itália por ocasião da m orte de Sócrates (399 a.C.). Símias e Cebes, interlocutores de Fédon platônico, tinham sido seus alunos. No IV século a.C. o centro da escola é Tarento, e o seu chefe é Arquitas, senhor da cidade, amigo de Platão, que por seu influxo, foi cada vez mais atraído para o pitagorismo. . Outros pitagóricos da mesma época são: Eurito, Timeu de Locres e outros. Vários fragmentos foram transm itidos sob o nome de Filolau e Arquitas. A autenticidade dos de Filolau é confirmada por vários críticos, entre os quais, Diels, editor dos Fragmente der Vorsokratiker, e é negada por outros, como Bywater e Burnet, e principalmente por Frank, que acre­ dita sejam falsificações de Espeusipo: o seu conteúdo, porém, acha-se de acôrdo com as doutrinas pitagóricas e o testemunho de Aristóteles; e até podem ser usados com expressões das doutrinas do pitagorismo mais maduro, deixando sempre sub judice a questão da sua autenticidade. Mais contestada ainda é a autenticidade dos fragmentos de Arquitas],

1.

Condições do conhecimento humano: a essência das cousas.

Há certas razões superiores a nós mesmos (Filolau, fr. 16). A essência das cousas, que é eterna, e a mesma nature­

za admitem, sim, o conhecimento divino, porém não o hu­ mano além dêste ponto: que não poderia existir nenhum dos entes, nem ser por nós conhecido, se não existissem as essências das cousas de que consta o universo, seja das limi­ tadas, seja das ilimitadas (Filolau, frag. 6). [A oposição entre ciência divina e hum ana já existia em Alcméon: “das cousas invisíveis e das m ortais os deuses têm certeza, mas a nós, como homens, é-nos dado conjeturar da experiência” (Diógenes Laércio, V III, 83). Para Filolau, porém, a condição do conhecimento humano não está mais na experiência, mas na intuição do número como essência das cousas].

2.

O número, condição do conhecimento e da verdade.

Tôdas as cousas conhecidas têm um número, porque sem êle não seria possível que algo fôsse compreendido ou conhecido (Filolau, fr. 4). . . . Sem o número, tôdas as cousas seriam ilimitadas e incertas e obscuras, uma vez que a natureza do número é lei, guia e mestra de cada um para qualquer cousa duvidosa e desconhecida. Pois, se o número não fôsse também a subs­ tância das cousas, estas não se manifestariam a ninguém, nem em si mesmas, nem a respeito das outras. Ora, êste (o número), harmonizando relativamente à alma tôdas as cou­ sas, torna-as cognoscíveis à sensibilidade e põe-nas em re­ lação recíproca, segundo a natureza do gnomo, revestindo-as de corpos e distinguindo, cada uma separadamente, as razões das cousas ilimitadas e das finitas. Poderás ver, não só nos fatos demoníacos e divinos, a natureza e a potência do nú­ mero desenvolverem a sua fôrça, mas também em todos os atos e raciocínios humanos, e em tôdas as produções da arte e na música. Nem a natureza do número nem a harmonia encerram em si qualquer falsidade, porque não está conforme com elas. A falsidade e a inveja são da natureza do infinito, do insensato e do absurdo. A falsidade não se insinua, de mo­ do algum, no número, porque é hostil e inimiga por sua natureza; em compensação, a verdade está de acôrdo com a estirpe do número de que é congênita (Filolau, fr. 11).

3.

A substância das cousas: os números, confusão de sen­ sível e supra-sensível.

Os filósofos chamados pitagóricos valem-se de princípios e elementos mais remotos do que os que empregam os filosofos naturalistas. E a causa disso reside no fato de nao os terem extraído das cousas sensíveis; dos entes, de fato, aquêles matemáticos são sem movimento, exceto no que concerne à Astronomia. Não obstante, a sua discussão e o seu tratado desenvolvem-se em tôrno da natureza, pois ex­ põem a gênese do universo, e observam o que acontece nas suas partes, mutações e movimentos, e nêle exaurem (a função de) seus princípios e (de) suas causas, como se esti­ vessem quase de acôrdo com os outros naturalistas em con­ siderar que o ente seja propriamente o que é sensível e é contido no que se chama Céu. Mas, como dissemos, as cau­ sas e os princípios de que falam convêm também a princí­ pios mais elevados e até se acliam mais conformes com êstes do que com os raciocínios sôbre a natureza (Aristóteles, Metafísica, I, 8, 990). [Continua Aristóteles: “Uma vez que êles, partindo dos princípios que supõem e afirmam, nada mais dizem dos corpos matemáticos do que dos sensíveis... Além disso, como se deve entender que de um a parte as deter­ minações do número e o número sejam causa das cousas que se acham e nascem no universo desde a origem e também agora, e que, por outra parte, não haja nenhum número, senão êste numero do qual foi constituído o próprio universo? Quando, de fato, colocam em dado lugar a opinião e a oportunidade e um pouco mais acima ou um pouco mais abaixo a in­ justiça e a justiça, ou a separação e a m istura, e dizem como prova disso que cada um a dessas cousas é um número, e por outra parte resulta que neste lugar já exista um certo número de grandezas compostas (m ateriais), pois essas determinações do número estão fixas cada um a em seu lugar, o problema é: êste número que se deve tom ar como substância de cada um a destas cousas, é o mesmo que está no céu ou é um outro diferente?” (.Metafísica, I, 8). A dificuldade que Aristóteles aqui assinala origina-se do fato de serem concebidas como número, tanto as realidades materiais quanto as espirituais e que, ao mesmo tempo, as determinações do número se acham ligadas às de lugar. Assim as cousas extensas e inextensas, sendo igual­ m ente números, encontram-se juntas nos mesmos lugares pela comunidade do número a que são igualmente reconduzidas. Ora, pergunta Aristóteles: pode ser o mesmo número o de sêres tão diversos?].

4.

A identidade entre cousas e números e as suas dificul­ dades.

Os pitagóricos, percebendo muitas determinações dos números inerentes aos corpos sensíveis, concluíram que os sêres são números, não separados, porém, embora os entes constem de números. E por quê? Porque as determinações dos números são inerentes à harmonia, ao Céu e a muitas outras c o u sa s... E é claro que não existem entidades ma­ temáticas separadas. Então, não se devem criticar os pita­ góricos neste particular; mas sim quando dizem que consti­ tuem corpos físicos com números, isto é, quando, por meio do que não tem gravidade nem leveza, constituem o que é dotado de gravidade e leveza, parecem falar de outro uni­ verso e de outros corpos, não dos sensíveis (Aristóteles, Me­ tafísica, XIV, 3, 1 090). [Encontra-se novamente a mesma crítica em De coelo, III, X, 300: “O mesmo acontece também àqueles que fazem constar o universo de números: com efeito, alguns fazem constar de números a natureza, como certos pi­ tagóricos. Agora, os corpos físicos parecem dotados de gravidade e leveza e as unidades, colocadas juntas, não é possível que formem corpo, nem que tenham pêso. Aristóteles nota outras dificuldades contra a teoria pitagórica, porque ela afirm a “serem os corpos compostos de números, e êste número ser matem ático” : p ara os pitagóricos, disse êle, as unidades têm grandeza, mas as grandezas não podem ser indivisíveis e nem constar de indivisíveis (Metafísica, XIV, 3, 1091). E em outro lugar: “Dizem tam bém os pitagóricos que o prim eiro dos entes é o uno matemático, m as não separado (das cousas sensíveis); dizem até que dêle constam as substâncias sensíveis. De fato, constituem todo o universo de números, porém não monádicos; crêem também que as unidades são dotadas de grandeza. Mas parecem achar-se em dificuldades, incapazes de determ inar de que m aneira se formou o pri­ meiro uno que teve grandeza”. Sôbre esta falta de determinação da gera­ ção dos números, cfr. tam bém Metafísica, 3, 1091, onde se observa: “não há dúvida sôbre se os pitagóricos concebem ou não um a geração, pois dizem claram ente que, constituída a unidade, seja de superfície, de côr, de germe, seja do que não sabem dizer, de imediato, as partes do infinito que se achavam mais perto dêle começaram a ser atraídas e determinadas pelo limite. Mas, um a vez que constroem o cosmos e querem falar em lingua­ gem naturalista, seria justo pesquisar em tôrno da natureza, afastando-se do caminho atual. Procuramos os princípios nas cousas móveis: por isso é necessário investigar a geração de semelhantes núm eros”].

5.

Oscilações na teoria: os números modelos (imitação) ou substância das cousas?

Dizem os pitagóricos que as cousas existem por imitação dos números; Platão disse, entretanto, que por participa­ ção . . . Deixaram igualmente de indagar em que consiste esta imitação ou participação das idéias. . . À semelhança dos pitagóricos, Platão disse que o uno é substância de si mesmo, e não atributo que se aplique a outro ente; e, como aquêles, declarou que os números são causa da substância de outras cousas; m a s ... afirmou que os números estão além das cousas sensíveis, os outros dizem, entretanto, que os números são as cousas mesmas, e não põem os entes m ate­ máticos como intermediários entre estas cousas (e as idéias) (Aristóteles, Metafísica, I, 6, 987). Parece, então, que tam­ bém êstes (os pitagóricos) crêem que o número seja princi­ pio, tanto como matéria dos sêres quanto como determina­ ções e maneiras de ser (Aristóteles, Metafísica, I, 5, 985). [Entre a teoria da imitação, pela qual os números seriam modelos (paradigmas) das cousas, e a afirmação de que os números são substân­ cias das cousas, ou antes, das mesmas cousas, há um a diferença notável, que parece ter passado despercebida aos pitagóricos. Encontramos no pi­ tagorismo muitos exemplos destas faltas de distinção e também de tendên­ cia à mudança de conceitos. Cfr. para o tem po: “uns dizem ser (o tempo) o movimento do Céu, outros, a própria esfera”. (Aristóteles, Física, IV, 218. Também Aécio, I, 21, escreve: Pitágoras disse que o tempo é a esfera do continente). E assim para alm a: “por isso, muitos sábios dizem que a alma é uma harmonia; outros, que tem uma harm onia” (Aristóteles, Polit, V III, 5, 1 340). Para a côr: “porque a côr está no térm ino ou é o térm ino: por isso, os pitagóricos cham aram côr à superfície” (Aristóteles, De sensu, 3, 439). Para os odores: “não é razoável o que dizem os pitagóricos, pois falam que alguns animais se nutrem de odôres” (De sensu, 5, 445). Em todos êstes casos existe a tendência de trocar a propriedade pelo ser a que pertence: assim, de terem um número, as cousas passam a ser um número].

6.

Determinações numéricas e espaciais.

Parece a alguns que os limites do corpo, como a superfí­ cie, a linha, o ponto e a unidade são substâncias, ainda mais do que o corpo e o sólido (Aristóteles, Metafísica, VII, 2, 1 028). Mas o corpo é menos substância do que a superfície,

e a superfície menos do que a linha, e a linha menos do que a unidade e o ponto: visto que por êstes se acha limitado o corpo. E parece que podem existir sem o corpo, mas, em compensação, parece impossível que o corpo exista sem êles. Por isso, enquanto os mais antigos acreditaram que o corpo fôsse a substância e as demais cousas fôssem as suas deter­ minações, de modo que também os princípios dos corpos fôs­ sem princípios dos sêres, não obstante, outros posteriores, e considerados como mais sábios, acreditaram que fôssem os números (Metafísica, III, 5, 1 002). [Aqui Aristóteles (e em suas pegadas, depois, também Alexandre de Afrodísia, no comentário a Metafísica, I, 6, e mais tarde Aécio, II, 6, 5) indica outra das razões que levaram os pitagóricos a fazer do número a substân­ cia das cousas. Do estudo da Geometria deriva-se a persuasão de que as determinações espaciais dos corpos têm um a realidade superior à sua solidez ou materialidade; mas, porque essas determinações se individua­ lizam ou se medem numèricamente, assim o número se torna substância dos sêres. Cfr., com êste processo do pensamento, o moderno de Descar­ tes, para quem a m atéria é extensão e por êle a Física torna-se Geometria e Matemática],

7.

Os elementos do ser e as espécies do número: limitado e ilimitado, ímpar e par.

A substância (natureza) no universo é composta de cou­ sas ilimitadas e limitadas, e o universo inteiro e tôdas as cousas nêle contidas também o são (Filolau, fr. 1). É ne­ cessário que os entes sejam todos limitados ou ilimitados ao mesmo tempo; mas, todos limitados ou todos ilimitados so­ mente, não seria possível. Porque, como é possível observar que os entes não se formam somente de todos os elementos limitados nem de todos ilimitados, é evidente por isso que o universo e as cousas que nêle existem são compostas de elementos limitados. Isto também se observa nos fatos. Uma vez que entre êles os que se compõem de elementos limitados são finitos, os compostos por limitados e ilimita­ dos são finitos e infinitos, e os compostos de ilimitados apa­ recem como infinitos (Filolau, fr. 2). O número tem duas espécies próprias: pares e ímpares e há ainda uma terceira espécie resultante da mistura de

ambas, o par-ímpar; e de ambas as espécies há muitas for­ mas, como cada uma delas o demonstra por si mesma (Filolau, fr. 5). Parece, pois, que êles julgam que os elementos do nú­ mero são o par e o ímpar, e um dêles é finito e o outro infinito, e a unidade, portanto, composta de ambos (visto que é também par e ímpar), e consideram que o número consta de unidade, e o universo, de números, como já se disse. . . O que lhes é próprio é o seguinte: acreditaram que o finito, o infinito e o uno não eram outras substân­ cias, como o fogo e a terra ou outra cousa semelhante, mas consideraram o mesmo infinito e o mesmo uno como subs­ tância das cousas de que são predicados; por isso também acreditaram que o número era substância de tôdas as cousas (Aristóteles, Metafísica, I, 5, 986-987). [Por que motivo um é participe do par (infinito) e do ím par (finito), conta-nos Téon de Esm irna (A. V.): “Aristóteles, na sua obra sôbre os pitagóricos, disse que o uno participa das duas naturezas. Com efeito, reunido a um número par gera um ímpar; unido a um ím par, origina um par, o que não poderia fazer se não participasse das duas naturezas. Por isso, a unidade chama-se par-ímpar”. (fr. 199 de Aristóteles). Que esta idéia da dupla natureza do uno fôsse já afirmada na mais antiga fase do pita­ gorismo resulta do fragmento de Epicarmo já citado, onde se disse que a unidade, acrescentada a um número par ou ím par, m uda a natureza de cada um, fazendo-a passar ao seu contrário. Aristóteles, na Física (III, 4, 203) confirma o que disse na Metafísica acima citada. “Todos os que parecem ter-se ocupado dignamente de semelhante filosofia trataram do infinito; e todos o concebem como um princípio dos sêres. Porém, alguns, como Pla­ tão e os pitagóricos, concebem-no por si mesmo, não como atributo de qualquer outra cousa, mas como se o mesmo infinito fôsse substância. Salvo se os pitagóricos o colocam nas coisas sensíveis (já que não con­ cebem o número separado) e dizem que o infinito está fora do C éu ... e acrescentam depois que o infinito é o par, pois êste, compreendido e con­ cluído pelo ím par, oferece a infinidade aos entes”. A razão pela qual o par estava identificado com o infinito acha-se explicada diferentemente por Simplicio e Plutarco. Diz o prim eiro: “Êstes, (os pitagóricos) diziam que o infinito é o número par, pelo fato de todo par (como dizem os exegetas) dividir-se em partes iguais, e o divisível em partes iguais é infinito na divisibilidade por dois; um a vez que a di­ visão em partes iguais e metades procede ao infinito; em compensação, o ím par acrescentado limita-o, pois impede a divisão em partes iguais... É claro que não tomam dos números esta divisão ao infinito mas das grandezas” (Simplicio, Física, 455, 20). Plutarco explica-o melhor (em Stobeo, I, 19): “E das cousas divididas em duas partes iguais, do ím par permanece um a unidade no centro, do

p ar fica um espaço vazio, sem padrão e sem número como defeituoso e incompleto”. E sta explicação é confirmada em outra passagem de Plutarco e Nicômaco. Para compreendê-la deve pensar-se no costume pitagórico de representar os números geomètricamente, por meio de pedrinhas ou pontos. Dispondo os pontos aos pares : : :, percebe-se que, nos números pares, uma reta divisória não encontra um limite que a detenha -r -fenquanto que, no ím par, o ponto intermédio -s- -r-, lhe opõe um lim ite].

8.

O uno (mônada), a tríade, a tétrade, a década. Números e figuras geométricas.

A m ônada. . . é princípio de tôdas as cousas, segundo Filolau (fr. 8). Deus é de fato senhor e princípio de tôdas as cousas, o uno eterno, único, imóvel, idêntico a si mesmo, diferente de todos os demais (fr. 20: duvidoso). Dizem tam­ bém os pitagóricos que o primeiro dos entes é o uno, o m ate­ mático, mas não separado (das cousas), afirmando que as cousas sensíveis se compõem dêle (Aristóteles, Metafísica, XIII, 6, 1080). De que modo o uno é princípio? enquanto é indivisível, dizem . . . A unidade é o ponto que não tem posição (Aristó­ teles, Metafísica, XIII, 8, 1 084). Cfr. em Metafísica, V, 6, 1 016. “Aquilo que segundo a quantidade e como quantidade é indivisível, que é inteiram ente e sem posição chama-se uni­ dade: o que é inteiram ente e tem posição chama-se ponto; o que é divisível segundo o uno, linha; o que é divisível segundo o dois, superfície; o que é inteiram ente e divisível por três, com respeito à quantidade, corpo”.

Segundo dizem também os pitagóricos, o todo e tôdas as cousas estão determinados em três dimensões; pois o fim, o meio e o princípio têm o número do todo, e êstes, o nú­ mero da trindade (Aristóteles, De coelo, I, 1, 268). Porque tôdas as cousas êles as reduziam a números desde a unidade e a díada, e chamavam números a todos os sêres, e o nú­ mero completa-se no dez, e o dez é a soma dos quatro pri­ meiros, contados continuamente, por isso, também todo o número tétrates (número quaternário) (Pithag, Vita, ap Phot. Bibl. cod., 249, pág. 439). [ 1 + 2 + 3 + 4 = 10. Os pitagóricos juravam sôbre o número quater­ nário (cfr. Carmen aureum, 47-48, e Luciano: De lapsu inter. salut., 5)].

É necessário conhecer a eficácia e a essência do número segundo o poder que há na Década, pois ela é grande, per­ feita, onipotente e divina e princípio e guia comum da vida celeste e humana (Filolau, fr. 11). Como a Década lhes parece constituir cousa perfeita e compreender em si tôda a natureza dos números, também afirmam que são dez os corpos em movimento no Céu, e, como somente nove são visíveis, juntam a antiterra que completa os dez (Aristóteles, Metafísica, I, 5, 985). 9.

Os quatro elementos físicos e o éter (ardente), invólucro da esfera cósmica.

E são cinco os corpos da esfera: os (quatro) que estão na esfera, fogo, água, terra e ar, e quinto, o invólucro da esfera (Filolau, fr. 12). O fogo envolvente por cima de tudo (Filolau, em Diels A, 16). [Os quatro elementos que se acham na esfera cósmica são os já distin­ guidos por Empédocles; aos quais se junta, como quinto, o invólucro do éter luminoso ou puríssim o fogo superior, também chamado Olimpo (nome que já aparece repetido por Parmênides e pelo escrito seu contemporâneo Sôbre o número sete). Êste éter luminoso é considerado por órficos e pi­ tagóricos fonte das almas e m eta do seu retôrno depois de obtida a liber­ tação do ciclo dos nascimentos. Tal concepção religiosa reflete-se depois em Platão e transmite-se aos neoplatônicos, entre os quais Proclo, que dá ao éter luminoso o nome de Empíreo (abrasado), que se transm ite à teo­ logia medieval (cfr. Dante). Advirta-se que no fragmento de Filolau, sôbre os cinco elementos, não há referencia alguma à identificação dos mesmos com os cinco poliedros regulares (terra = cubo, água = icosaedro, a r = octaedro, fogo = tetraedo, éter = dodecaedro), que, em compensação, apa­ rece em parte no Timeu de Platão (do qual o tom am depois os neoplatónicos e o Renascimento) e em parte no Epignomis. Com efeito, os estudos de Eva Sachs dem onstraram (e os de K. von Fritz confirmaram) que a construção matemática dos cinco poliedros é posterior a Filolau, e deve-se a Teetetos. Désses poliedros os pitagóricos só conheciam três (cubo, pirâ­ mide e dodecaedro), e talvez só empiricamente e não por construção ma­ temática. Daí, pois, ter-se que repelir como errada a afirmação de Aécio, II, 6, 5, que atribui a Pitágoras (isto é, aos pitagóricos) a afirmação dos cinco elementos com os cinco poliedros, dizendo que “também nisso Platão pitagoriza”].

10.

As oposições e a harmonia.

Relativamente à natureza e à harmonia, as cousas acham-se da seguinte m aneira. . . Pois como os princípios subsistem não similares nem afins, seria impossível reuni-los em ordem cósmica, se não se lhes juntasse a harmonia, de qualquer modo que ela interviesse. Com efeito, as cousas similares e afins entre si não têm necessidade da harmonia, mas as que são dissímeis e distintas têm necessidade de reunir-se por esta harmonia, pela qual possam reunir-se no cosmos (Filolau, fr. 6). A harmonia é, pois, unidade das misturas e concordâncias (Filolau, fr. 10). Outros dêstes mesmos dizem que são dez os princípios das cousas, dispostos em série (de pares de contrários): fi­ nito, infinito — ímpar, par — unidade, multiplicidade — destra, sinistra — macho, fêmea — repouso, movimento — reta, curva — luz, trevas — bem, mal — quadrado, oblon­ go. Parece que também Alcméon de Crotona pensou da mesma maneira, seja que tenha êle tomado a teoria dos mesmos, seja que êstes a tenham tomado dêle, porque, quan­ do Pitágoras já era muito idoso, Alcméon se achava em ple­ na juventude, e sustentou doutrinas similares às dêles; disse, efetivamente, que a maior parte das cousas humanas se acha disposta em pares de opostos, mas sem expor, como aquêles, tais oposições em ordem determinada, mas ao acaso, como branco, prêto — doce, amargo — bom, mau — grande, pequeno.^ Êste amontoou-as confusamente com as outras; os pitagóricos, entretanto, determinaram o número e a re­ lação das oposições. Então, podemos aprender com ambos que o princípio dos sêres são os contrários; mas só de uma parte (isto é, dos pitagóricos) o número e o nome dêles (con­ trários) (Aristóteles, Metafísica, I, 5, 986). [A tendência dualista — isto é, de estabelecer oposições e colecionar relações de contrários — aparece no pitagorismo desde o seu comêço, como resulta das paródias de Epicarmo, das polêmicas de Heráclito, Parmênides e Zenão, das imitações de Empédocles. A tentativa de escolher entre os pares de contrários um a série de dez principais (em homenagem ao valor da década) percebe-se já refletida em Empédocles, fr. 122-123. Para os pita­ góricos tôda realidade (números, cousas, universo), resulta da união dos elementos opostos (tem peramento ou harm onia), e êste conceito, aplican­ do-se à vida, estende-se também à alma (cfr. mais adiante, n.° 13).

Que as oposições fôssem depois aplicadas ao universo resulta do De coelo, de Aristóteles: “Há quem afirme que existe um a direita e um a es­ querda (parte) do Céu, como os pitagóricos (tal é com efeito a sua opinião)”, (II, 2, 284). Aristóteles reprova-os por “terem descuidado as outras quatro diferenças (acima-abaixo, diante-atrás)” que se aplicam não só aos animais mas também a todos os viventes, porém êle mesmo acrescenta que os pi­ tagóricos se enganavam ao conceber o nosso hemisfério colocado acima e à direita, e o pólo não visível abaixo e à esquerda (II, 2, 285). Com isto va­ loriza-se o testemunho de Simplicio (em Stobeo, 386, 20): "chamavam tam ­ bém à direita, acima e adiante e bem, à esquerda, abaixo, atrás e mal, como disse Aristóteles na colheita das opiniões dos pitagóricos”. Com istc concorda também o fragmento 17 de Filolau, onde aparece igualmente a oposição de abaixo e acima: "O universo é uno e começou a nascer no centro, e do centro para o alto, através das mesmas cousas que abaixo. Fois as cousas que estão sôbre o centro se acham em posição contrária às de abaixo. Com as de mais abaixo, as centrais encontram-se na mesma relação que com as de mais acima, e com o resto igualmente. Portanto, com respei­ te ao centro, ambas acham-se da mesma maneira, quando não são mudadas de lugar”. Todavia, de tudo isto resulta que os pitagóricos estabeleciam, além das dez oposições, mais outras].

11.

A Cosmologia: o fogo periférico terminal e o fogo cen­ tral, a antiterra, o movimento da Terra e a infinidade do universo.

Enquanto a maior parte afirma que (a Terra) está co­ locada no centro (todos os que afirmam que o universo é limitado), em compensação os itálicos, chamados pitagóri­ cos, dizem o contrário: asseveram que no centro se acha o fogo, e que a Terra, sendo um dos astros, girando em tôrno do centro, produz a noite e o dia. Além disso constroem outra Terra em frente a esta, que denominam antiterra, não procurando as razões e as causas nos fenômenos, mas con­ duzindo os mesmos a certos raciocínios e a certas opiniões próprias, no afã de combiná-los todos. Pareceria também a muitos outros que não é necessário atribuir à Terra a po­ sição central presumindo esta crença não dos fenômenos, mas dos raciocínios. Crêem que ao corpo mais excelente compete o lugar mais excelente; e que o fogo é mais exce­ lente do que a Terra, e que o término é mais excelente do que as cousas intermédias; e que o extremo e o centro são términos. De modo que, raciocinando de acôrdo com estas premissas, não crêem que no centro da esfera se encontre a Terra, mas o fogo. Além disso, os pitagóricos, também

pelo fato de lhes convir, principalmente, que seja protegido o que domina sôbre todo o resto, e que é o centro, chamam custódia de Zeus ao fogo que ocupa tal posição (Aristóteles, D e coelo, II, 13, 293). [Note-se que aqui Aristóteles afirm a que o fogo (o mais excelente) supõe-se igualmente colocado nos dois térm inos: o extremo (periferia) e o centro. A acusação de imaginar a antiterra por opiniões preconcebidas e não por meio de referência aos fenômenos encontra-se também em Metaf., I, 5: "Muitas concordâncias que puderam m ostrar nos números e nas har­ monias com as condições e as partes do universo e com a ordem com­ pleta déste os pitagóricos coordenavam, reunindo-as. Se algo faltava, idea­ lizavam a maneira de conseguir que estivesse bem entrosado todo o seu sistema. Por exemplo, como lhes parecia que a década era cousa perfeita e que compreendia em si tôda a natureza dos números, afirmam que os corpos em movimento do Céu são dez, e, pósto que somente nove são síveis, acrescentaram como décimo a an titerra”. Mas no De coelo, II, 12, um pouco mais abaixo da referida passagem, diz-se: “parece a alguns que tnmbém possam mover-se muitos dêsses corpos em tôrno do centro, invi­ síveis para nós pela interposição da Terra. Por isso, dizem também que os eclipses da Lua são mais freqüentes do que os do Sol, pois cada um dêstes corpos girantes se opõe à Lua e não somente à T erra”. E sta hipó­ tese dos planetas escuros para explicar a freqüência dos eclipses era de Anaxímenes e Anaxágoras: os pitagóricos reduziram-na à hipótese da an­ titerra que, portanto, deve explicar tam bém os fenômenos e não somente responder aos preconceitos. Naturalmente, acha-se im plícita aí a teoria de que também a luz do Sol, como dos planetas, é refletida e derivada do fogo central],

A Terra, movendo-se como um dos astros em tôrno do centro, produz o dia e a noite, segundo a posição em que se acha em relação ao Sol. A antiterra, movendo-se em tôrno do centro e tendo atrás a Terra, não é vista por nós devido à constante interposição do corpo da Terra. . . E dizem que o fogo central é a potência demiùrgica, que do centro vivi­ fica tôda a Terra e aquece a sua frialdade. Por isso, alguns o chamam a cidadela de Zeus (como êle — Aristóteles — relata no livro Sôbre os Pitagóricos), outros, custódia de Zeus (como diz aqui no De coelo) ; outros, trono de Zeus. Além disso diziam que a Terra era astro, enquanto instru­ mento do tempo, pois é a causa dos dias e das noites. De fato, a parte iluminada para o Sol produz o dia; a noite, em compensação, é gerada pela parte dirigida para o cone da sombra (Simplicio, De coelo, II, 13, contendo o fr. 204 de Aristóteles, Sôbre os Pitagóricos).

[Os pontos de m aior relêvo nesta Cosmogonia pitagórica dos tempos de Filolau são: 1) haver tirado a Terra da posição de centro imóvel, para dela fazer um planêta giratório em movimento de revolução: isso abre caminho ao posterior heliocentrismo de Heráclides Pôntico e de Aristarco de Samos (280 a.C.), o pitagórico precursor e inspirador de Copérnico; 2) haver, em oposição ao geocentrismo (ligado, como observa Aristóteles, à limitação do mundo), estabelecido o conceito da infinidade do universo. Isto se torna já necessário à Astronomia filolaica frente à objeção que se lhe opôs: que, supondo realizar a Terra um a revolução em tôrno do fogo central, deveria apresentar-nos um aspecto bem diferente do Céu estre­ lado ao contemplar de pontos diametralmente opostos da órbita terrestre. A esta objeção, como aparece em Aristóteles, De coelo, 293, respondiam os pitagóricos que “a T erra não se achando no centro, mas distante de todo um hemisfério, não pode impedir que os fenômenos se apresentem como se nos apresentariam ; que não estaríam os no centro da Terra, também, se esta estivesse no centro do cosmos; pois nem mesmo em tal caso produz um efeito evidente o meio diâmetro de que distamos do centro”. Ora, o poder considerar desprezível a distância do observador do centro, a respeito da visão da periferia celeste, implica que o diâmetro da órbita percorrida pela T erra em que se encontra o observador represente um tamanho in­ significante ou possa considerar-se como um ponto matemático a respeito da distância da esfera celeste: vale dizer que as estréias se encontram a distância infinita da Terra. E sta idéia do infinito aparece explícita e claramente afirm ada e de­ m onstrada no problem a de Arquitas. “Arquitas, como diz Eudemo, assim argumentava. Chegado que fôsse à extrema esfera celeste, isto é, à esfera das estréias fixas, poderei estender a m ão ou a bengala mais além, ou não? Não poder estendê-las seria absurdo; mas se pudesse fazê-lo, signi­ ficaria que existe ainda espaço e m atéria mais além ... E assim sempre êle avançará do mesmo modo para cada nôvo limite fixado e argumen­ tará da mesma maneira; e, se sempre houver algo em que estender a bengala, é evidente que (éste algo) será também infinito”].

dades tenham proporções de sinfonia, por intervalos, afir­ mam que se produz um sonido de perfeito acôrdo com o movimeno circular dos astros. Mas, como parecia absurdo que não escutássemos semelhante sonido, dizem que a causa resi­ de no fato de ouvirmos semelhante som desde que nascemos, de maneira que falta o contraste com o silêncio necessário à sua percepção; dizem que são reciprocamente dependentes a percepção do silêncio e a do som, pois em geral acontece aos homens a mesma cousa que aos forjadores, a quem, pelo hábito, parece que nada lhes fere o ouvido (Aristóteles, De coelo, II, 9, 290).

12.

[A diferença entre as duas teorias, do ser e do ter um a harmonia, refere-se provavelmente ao problema da sobrevivência da alma. Cfr. Platão, Fédon, 85-86, onde Símias, discípulo de Filolau, observa que, como se se dissesse que, quebrada a lira e despedaçadas as suas cordas, a harmonia subsiste ainda, assim aconteceria com a alma, harm onia do corpo: “sendo o nosso corpo formado de calor e frio e mantido pela sequidão e umidade e cousas semelhantes, nossa alma é um a espécie de m istura e harmonia destas cousas, quando se acham unidas entre si, convenientemente, e nas medidas exigidas. Se a nossa alma é, pois, um a harmonia, é evidente que, quando o nosso corpo se acha lasso ou tenso pelas enfermidades ou outros males, a alma deve m orrer imediatam ente”. E sta crítica, posta em lábios de um pitagórico, tende a pôr em guarda contra as grosseiras interpre­ tações da alma-harmonia, que levariam à negação da im ortalidade da alma, que, ao contrário, se acha entre os pontos capitais da doutrina órfico-pitagórica. A teoria da alma-harmonia, professada conjuntam ente com a da pre­ existência e sobrevivência da alma ao corpo e da transm igração, não pode,

 harmonia das esferas.

Também a afirmação de que se gera uma harmonia do movimento dos astros, como de sons produzidos sinfónica­ mente, foi feita com elegância e nobreza, mas isso não é verdade. De fato, parece a alguns que, necessàriamente, o movimento de corpos tão grandes deve produzir um sonido, pois se produz também pelos corpos entre nós, e que não obstante não têm tão grande tamanho nem são transporta­ dos com semelhante velocidade; e que é impossível que não produza um som de prodigiosa grandeza o movimento de tanta velocidade, do Sol, da Lua e dos astros de tão grande número e tamanho. Supondo estas cousas, e que as veloci­

[Note-se a im portância e a agudez da observação psicológica que con­ diciona a percepção das impressões pela variação e pelo contraste!].

13.

 alma-harmonia e a sobrevivência: o corpo-tumba e a libertação.

A música, por sua natureza, acha-se entre as cousas mais doces. E parece que há (em nós) uma afinidade com as harmonias e os números; por isso muitos sábios dizem, a uma voz, que a alma é uma harmonia; outros, que tem uma harmonia (Aristóteles, Política, VIII, 5, 1 340). E di­ zem que a harmonia é uma mistura e composição das cousas mistas, e a alma não pode ser nem uma nem outra de tais cousas (Aristóteles, De anima, I, 4, 407).

pois, compreender-se senão como correspondência entre o caráter da alma mesma e da estrutura do corpo. Tôda alma (im ortal), para cada vida (m ortal) entra no corpo, que se acomoda às tendências assumidas por ela já na vida precedente: por isso há correspondência entre a alma e a es­ tru tu ra corporal, e conserva-se até que alma permaneça no corpo para m anter a vida (constituição), dissolvendo-se no instante em que a alma sai do corpo, de onde esta (demônio) aspira a libertar-se, justam ente para conseguir a pureza da vida espiritual. A idéia de que a alma e a inteligência sejam equilíbrio ou harmonia de elementos opostos vê-se refletida não só nas teorias médicas conexas ao pitagorismo (de Alcméon a Pilolau e a Filistion de Locres), mas também na ãoxa de Parmênides, e em testemunhos relativos a Zenão e em frag­ mentos de Platão, que no Timeu, 35 e seguintes, compõe a alma do mundo como m istura e harm onia dos contrários, de cujas sobras se constituem depois as almas humanas. Estas são im ortais, porém, na mutabilidade da sua composição, permanecem ligadas à estrutura do corpo, da qual o mes­ mo Platão, no mesmo Timeu (86 e seguintes), faz derivar as enfermidades da alma, a loucura e a ignorância. Por isso êle quer que se m antenha entre a alma e o corpo um a simetria, purificando ambos harmônicamente com o associar de Matemática, Música e Filosofia à ginástica e à Medi­ cina. São todos reflexos de idéias pitagóricas: 1) idéia da alma-harmo­ nia; 2) idéia do seu vínculo com o corpo e da sua purificação com a do corpo que escoava já em Epicarmo, fr. 26 Diels; 3) exigência da purificação da alma por meio do am or ao saber, cujo exercício representa o verdadeiro caminho de libertação do ciclo dos nascimentos, para a volta à beatitude da vida divina].

E Cebes perguntou-lhe: — Como dizes isto, Sócrates? Como manifestas que não é lícito fazer violência a si mes­ mo e todavia o filósofo teria desejo de acompanhar aquêle que morre? — Como, Cebes, não ouvistes falar disto, tu e Símias, que estivestes na intimidade de Filolau? — Sim, mas não claram ente. . . E por que dizem, Sócrates, que não é lícito matar-se a si mesmo? Certamente eu já o ouvi, como acabas de perguntar, também de Filolau, quando se achava junto a nós, e também de qualquer outro; mas uma razão clara não ouvi jamais de ninguém. — Talvez a o u v irei... Ficarás admirado se às vêzes a alguém seria melhor morrer que viver, não obstante não lhe ser permitido escolher êste benefício por si mesmo, mas sim esperar a morte por outra c o u s a .. . Certamente que parece irracional o que digo; mas, não obstante, talvez haja uma razão que o fundamente. O que se disse nos Mistérios que nós, os homens, estamos presos em um cárcere, de que não nos é lícito libertar-nos ou fugir, parece-me uma grande sentença, porém, um pouco obscura; mas, em compensação, Cebes, creio, disse com juste­

za que os Deuses cuidam de nós, e que lhes pertencemos: não te parece?.. . Pois bem, talvez neste sentido seja razoá­ vel que ninguém se possa matar antes que Deus lho haja imposto como uma necessidade (Platão, Féãon, 61-62). Asseveram os antigos teólogos e adivinhos que, por ex­ piação, a alma se acha sujeita ao corpç e como sepultada neste (Filolau, fr. 14). [A razão que Platão extrai dos m istérios órficos completa-se com a teo­ ria da transm igração, em que h á um ciclo de vidas que se deve cum prir para a expiação e a purificação da alma, antes de obter a libertação final. Dêste ciclo fala Platão mais adiante, no Féãon}.

14.

O ciclo universal e o eterno retorno.

Poder-se-ia permanecer em dúvida sôbre se o tempo nasce, como alguns dizem, ou n ã o . . . A crer-se nos pitagó­ ricos, da mesma maneira que nas cousas idênticas pelo nú­ mero, assim, eu também tornarei a falar, tendo êste bastãozinho na mão, e vós estareis sentados como agora; e tôdas as outras cousas comportar-se-ão do mesmo modo, fazendo pensar que o tempo seja o mesmo. Sendo, pois, um só o movimento mesmo, igualmente também de muitas cousas iguais, a anterior e a sucessiva serão uma e idêntica, e também o seu número; tôdas as cousas as mesmas, estão incluindo também o tempo (Eudemo, Física, II, 3, fr. 51 em Simplicio, Física, 732, 26). 15.

A aquisição do conhecimento e a harmonia moral e social.

Devemos, de fato, adquirir conhecimento aprendendo com os outros ou procurando nós mesmos aquilo que igno­ ramos. O aprendizado faz-se com outros e por meios estra­ nhos, a investigação faz-se por si mesmo e por meios pró­ prios; mas achar sem procurar é difícil e raro; entretanto, é fácil aprender, investigando, mas, para quem não sabe procurar, é impossível. Encontrada a razão, esta faz cessar a rebelião, e aumenta a concórdia, pois não é possível com­ petição, quando aquela existe e a igualdade reina; por seu intermédio, podemos reconciliar-nos nos nossos vínculos.

sociais. Por ela, os pobres recebem dos poderosos e os ricos dão aos necessitados, confiando ambos nela para receberem depois o igual. Regra e obstáculo dos injustos, obriga à de­ sistência aquêles que sabem refletir antes de cometerem injustiça, persuadindo-os a não permanecerem omissos quan­ do voltarem ao mesmo lugar; e aos que não sabem, revelan­ do-lhes a sua injustiça no momento de a cometerem, impe­ dindo-os, assim, de praticá-la. (Arquitas, fr. 3 da Harmônica).

C a p ítu lo

IV

OS ELEATAS

I.

O PRECURSOR: XENÓFANES DE COLOFÃO

[Floresceu por volta de 540 — Dedicou pelo menos 67 anos dos 92 da sua vida a viagens (cfr. fr. 8). Estêve talvez em Eléia (fundada em 540) e m orreu certam ente na Magna Grécia, em Sicília. Escreveu elegias e sátiras].

1.

O nôvo caminho: da Cosmogonia à Ontologia: negação do devir e do movimento do universo.

Xenófanes de Colofão, seguindo uma via própria e dife­ rente dos precitados (Tales, Anaximandro, Anaxím enes), não admitiu nem nascimento nem dissolução; mas disse que o universo é sempre o mesmo. Pois se nascesse (disse) seria necessário que não existisse antes; ora, o que não existe não pode nascer êle mesmo, não pode produzir nada, nem por outro lado, nada pode nascer do que não existe. (Plutarco, Stromat. 4 — em Eusébio, Praep. evang., I, 8, 4). Permanece sempre no mesmo lugar sem mover-se, nem lhe convém voltar-se ora para uma parte ora para outra (Xenófanes, fr. 26). [A nova via, que abre o caminho aos eleatas, está, pois, em haver nega­ do o ciclo da gênese e da dissolução do mundo e o movimento universal de rotação afirmados pelos jónicos. Mas em Xenófanes isso acha-se entrela­ çado com a sua concepção religiosa do cosmos].

2.

A concepção religiosa do universo (panteísm o): a eter­ nidade e a unidade do todo.

Xenófanes que foi o primeiro dêstes (os eleatas) a afir­ mar a unidade do ser (diz-se que, de fato, Parmênides foi seu discípulo), não esclareceu, de modo algum (se fôsse fi­ nito ou infinito), nem parece haver tratado de alguma des-

tas duas naturezas; mas, olhando o universo todo inteiro, disse que o Uno é Deus (Aristóteles, Metafísica, I, 5, 986),

4.

[Cfr. também Platão, Sofista, 242, onde o interlocutor de Eléia diz: “a família dos eleatas entre nós, a começar de Xenófanes e ainda antes, supõe que aquilo que se costuma chamar tôãas as cousas seja um ser só, e relata os seus mitos em conformidade”. Estabelecida a divindade do universo, parece ímpio atribuir-lhe um nas­ cimento].

Homero e Hesíodo atribuíram aos Deuses tôdas as cousas que são objeto de vergonha e de censura entre os homens; furtos, adultérios e enganos recíprocos (fr. 11). Relataram êles, sôbre os Deuses, uma quantidade de ações contrárias às leis: furtos, adultérios e recíprocos enganos (fr. 12). Os mortais crêem, porém, que os Deuses têm um nascimento, e roupas, vozes e corpo iguais aos seus (fr. 14). E os etíopes representam os seus Deuses platirrínios e negros, e os trácios dizem que têm os olhos azuis e os cabelos vermelhos (fr. 16). Mas se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e com elas pudessem desenhar e realizar obras como os homens, os cavalos desenhariam figuras de Deuses semelhantes aos ca­ valos, e os bois aos bois, e formariam os seus corpos à imi­ tação do próprio (fr. 15).

Diz Xenófanes que quem afirma que os Deuses têm um nascimento comete impiedade igual à do que assevera que morrem: em ambas as hipóteses, acontece que, em certo momento, os Deuses não existam (Aristóteles, Retórica, II, 23, 1 399). Há um só Deus, o maior entre os Deuses e os homens, que não se assemelha aos homens nem pelo corpo nem pelo pensamento (fr. 23). Simplício (Física, 22) "diz que Xenófanes supõe um só princípio, ou seja um e todo. A êsse uno e todo Xenófanes denomina Deus, e dem onstra que é uno porque é o mais poderoso de todos; disse, pois, se houvesse mais, o poder deveria pertencer a todos igualmente; mas Deus é o mais poderoso e excelente de todos. Demonstrava que é ingênito, porque o gêneto deve nascer ou de um semelhante ou de um dissímil. Mas (disse) que o se­ melhante não admite isto do semelhante: pois não há razão mais forte para que o semelhante gere antes que ser gerado do semelhante; e, se nascesse do dissímil, o ser viria do não ser. E dessa m aneira dem onstra­ va-o ingênito e eterno”. [O testemunho de Simplício concorda com tudo o que se encontra afir­ mado no pseudo-aristotélico De Melisso Xenophane et Gorgia (977 a). Enquanto Aristóteles diz que Xenófanes não cuidou d.e esclarecer se o universo era finito ou infinito, e enquanto um fragmento do próprio Xe­ nófanes (26 já citado) afirm a a imobilidade de tudo, em compensação, Simplício, de acôrdo com De Melisso Xenophane et Gorgia, diz que teria negado igualmente os dois pares de atributos opostos: “nem limitado nem infinito, nem em movimento nem em repouso”, explicando que o infinito e o imóvel não podem ser senão o não-ente, e que a limitação e o movi­ mento implicam a pluralidade do ser. Além disso, do fragmento 26 que afirm a a imobilidade pode-se recordar que o 28 (que citamos mais adiante) afirm a que as raízes da Terra se prolongam ao infinito].

3.

Unidade do ser e do pensamento.

Tudo vê, tudo pensa, tudo sente (fr. 24). Governa, po­ rém, tôdas as cousas, sem fadiga, com o poder da sua mente (fr. 25).

5.

Crítica do antropomorfismo na religião: a relatividade das concepções religiosas.

O conhecimento humano: a sua incerteza e o seu desen­ volvimento progressivo.

Não houve nem haverá jamais homem algum que tenha um conhecimento certo sôbre os Deuses e sôbre tôdas as cousas de que falo. Porque, se acaso alguém dissesse a mais perfeita verdade, não teria êle mesmo consciência disso, pois sôbre tôdas as cousas não há senão opiniões (fr. 34). * Os Deuses não mostraram aos homens tudo desde o princípio, mas êstes procuram e com o tempo encontram o melhor (fr. 17). * [A incerteza do conhecimento humano é afirm ada também por Alcméon, contemporâneo de Xenófanes (veja-se o cap. precedente, II.a parte, parágr. 1, nota). Xenófanes confirma-a, principalm ente, com intenção polêmica con­ tra as concepções religiosas correntes (politeísmo antropomórfico) e contra as teorias físicas dos jónicos (gênese do mundo). Mas a parte polêmica (céptica) contrasta com a dogmática da sua obra, como já notavam os antigos: “Xenófanes tem dúvida sôbre tôdas as cousas, exceto quando es­ tabelece o dogma de que o universo é uno, e que é Deus, limitado, racio­ nal, imutável” (Galeno, Hist. philos., 7). E Epifânio (III, 9): “Xenófanes assegura que tudo nasce da terra e da água, mas que em tôdas as hipóteses que adianta nada há seguro, tão obscura é a verdade: não há, sôbre cada cousa, senão opiniões e especialmente sôbre o que é invisível”. E Plutarco,

oi

na passagem já citada (em Eusébio, Praep. evang., I, 8, 4) acrescenta: “Afirma êie que os sentidos são enganosos e inteiram ente junto com êles, acusa também a mesma razão”. Mas tudo iso se refere provavelmente mais ã parte polêmica e às hipóteses físicas: pela concepção da divindade do todo, eterno e imóvel, Xenófanes é dogmático; quanto ao resto, admite a possibilidade da pesquisa e da descoberta progressiva do melhor],

6.

Ba eternidade imutável do todo ao devir dos fenômenos particulares: as hipóteses físicas: a infinidade da Terra e do Cosmos, e a derivação da Terra e da água, dos sêres e dos fenômenos meteorológicos e astronômicos.

Vemos sob os nossos pés êste limite da Terra que no alto se acha em contacto com o ar; porém, embaixo a Terra con­ tinua até o infinito (fr. 28). . Cfr. Aristóteles (De coelo, II, 13, 294). “Alguns, com efeito, (para explicar que a Terra é firme) dizem que a parte que se acha debaixo da mesma é infinita, e que no infinito tem as suas raízes, como Xenófanes de Colofão, por não ter tido o trabalho de investigar a causa. Por isso, Empédocles criticou-os da seguinte m aneira: Se a profundidade da T erra e o éter difuso são infinitos, como os ditos da língua se acham inütilmente espalhados por m uitas bôcas, que muito pouco vêem do universo”. [Alguns historiadores, baseando-se neste fragmento, crêem que Xenófa­ nes tenha afirmado ser o éter também infinito; outros, entretanto, susten­ tam que Empédocles, dizendo as muitas bôcas, aludisse não só a Xenófanes, m as tam bém a Anaxímenes e aos pitagóricos aos quais pertencia a afirm a­ ção da infinidade do ar (que para os pitagóricos é igual ao vácuo). Que Xenófanes participasse da opinião da infinidade do éter, e portanto do cosmos em tôdas as direções, pode surgir de testemunhos provenientes de Teofrasto, segundo os quais êle teria considerado infinito o ar e infi­ nita a trajetória do Sol, e tam bém do testemunho de Cícero, que, basean­ do-se talvez em Filodemo, declara que Xenófanes “infinitum voluit esse” o universo-Deus].

Tôdas as cousas vêm da Terra e na Terra vão terminar (fr. 27). Tôdas as cousas que nascem e crescem são terra e água (fr. 29). Pois todos nós nascemos da terra e da água (fr. 33). Xenófanes crê que existe uma mistura da terra com a água e que com o tempo ela se liberta da umidade, dizendo que existem provas de que no meio da terra e nos montes se encontram conchas, e que nas latomias de Siracusa se acham impressões de peixes e de focas e em Paros uma im­ pressão de lasca na profundidade da pedra, assim como em

Malta, placas de restos marinhos de tôdas as espécies. E tudo isso acontece, na sua opinião, porque antigamente tudo se achava coberto de lôdo e neste conservaram-se as impres­ sões e as pegadas. E todos os homens desaparecem quando a terra, abismada no mar, se transforma em lôdo; e depois começa novamente a geração e esta mudança ocorre em to­ dos os mundos (Hipólito, Refutat., I, 14). ^ O mar é a fonte da água e do vento; porque nao surgi­ riam nem sopros de vento bafejando nas nuvens sem o grande mar, nem correntes de rios, nem água de chuva ce­ leste. Mas a grandeza do mar é geradora de nuvens, de ventos e de rios (fr. 30). ^ Das nuvens inflamadas vem o Sol (Aécio II, 20, 3). Das nuvens inflamadas nascem os astros; extinguindo-se cada dia, reacendem à noite como carvão; o^ seu nascer e o seu ocaso são abrasamentos e extinções (Aécio, II, 13, 14). [Assim, a ocorrência de nascimento e de m orte e a mufcação n e g a d a s nara a unidade do todo, são afirmadas, nao obstante, paxa os sei es pa ticulares. A oposição entre a unidade imóvel do todo e a múltipla varia­ bilidade das cousas particulares prepara a oposição que entre o ser e os fenômenos estabelece Parmênides, fazendo um a antítese entre a verdade (razão) e a opinião (sentidos). Mas talvez já exista de tais antíteses uma vaga antecipação em Xenófanes (fr. 35): “tende tôdas estas por opimoes, que têm a aparência de verdade”]. II.

O FUNDADOR: PARMÊNIDES DE ELÊIA

[Floresceu por volta de 500 a.C. e escreveu um poema filosófico Sobre a natureza, em duas partes - além da introdução - Da verdade e da opi­ nião. Resta-nos uma boa parte da prim eira (sobre o ser uno imutável), da segunda (explicações dos fenômenos, extraídas das doutrinas pitagóri­ cas) sòmente escassos fragmentos].

1.

Repúdio da sensação (contradição do ser e não-ser) — único critério: a razão.

Eu te afasto. . . daquele (caminho de pesquisa) sôbre o qual eram os mortais de duas cabeças, que nada sabem, pois a insensatez dirige nos seus peitos o vacilante pensamento. E agitam-se aqui e ali, mudos e cegos, tontos; multidões de

insensatos, a cujos olhos o ser e o não-ser parecem o mesmo e não o mesmo, e o caminho de tôdas as cousas acha-se em direções opostas (fr. 6; versos 4-9).

A mesma cousa é o pensar e pensar que é (o objeto do pensamento), porque sem o ser, no que está expresso, não poderias encontrar o pensamento (fr. 8, 34-36).

[De duas cabeças chamam-se os homens que confiam no testemunho dos sentidos, porquanto, na multiplicidade e mutabilidade do devir, se entrecruzam o ser e o não-ser e dois caminhos em direção oposta: nasci­ mento e morte. Acreditou-se com razão encontrar aqui um a polêmica con­ tra Heráclito, o que não exclui que seja também contra o devir cíclico dos prim eiros jónicos e dos pitagóricos, os últimos dos quais concebiam o ser como resultante de opostos, unidos pela harmonia],

[O conceito fundamental nestes fragmentos é o seguinte: a conceptibi­ lidade (e, em conseqüência, o poder de expressar) é critério e prova da realidade do que é concebido (e expresso), porque somente o real pode ser concebido (e expresso) e o irreal não se pode conceber (nem expressar-se). Com isso Parmênides chega a dizer, não sd que pensar um a cousa equivale a pensá-la existente, mas também que a possibilidade de um a cousa não prova a existência; porque, se sòmente o real é suscetível de ser pensado, o pensado se torna necessariamente real. Que os contemporâneos de Parmênides com preenderam a sua doutrina neste sentido depreende-se clara­ mente da polêmica antieleática do sofista Górgias (veja-se mais adiante), o qual, contra a tese de que as cousas pensadas devem existir, objeta que não é absolutamente verdade alguém pensar que um homem voa ou que carros corram pelo m ar; assim como não é certo que o não existente não possa ser pensado, pois se pensa também em Scila e na Quimera e em m uitas outras cousas irreais. Mas esta interpretação dos contemporâneos (que é a justa), foi subs­ tituída depois por Plotino e Clemente, por outra, idealista, atribuindo a Parmênides a tese da identidade do ser e do pensar; e seguindo êste ca­ minho, intérpretes modernos chegaram a falar de antecipação de Descartes ou de K ant e de identidade de sujeito e objeto. Todavia, nos últimos de­ cênios abriu-se caminho a um movimento de revisão crítica destas inter­ pretações anacrônicas, mercê de vários estudiosos (Burnet, Heidel, Hoff­ mann, Covotti Calógero, Albertelli e outros), cujas observações' e propo­ sições, apesar das divergências particulares, chegaram a convergir para o resultado de restabelecer e reconhecer um resultado aceitável como genuíno e que corresponde à posição histórica de Parmênides],

Mas^ afasta o teu pensamento desta via de investigação e que não te atraiam para ela o hábito empírico de deixar dominar o olhar desprovido de um fim e o ouvido rumorejante e a língua. Julga, porém, com a razão, a prova tão discutida por mim referida (fr. 1, 33, 37). Considera com segurança, com a tua razão, as cousas distantes de ti, como se estivessem próximas (fr. 2, 10). Para mim é indiferente a parte por onde começar, visto que voltarei novamente a êste ponto (fr. 3). 2.

As duas vias: o ser e o não-ser — antítese inconciliável.

Vamos, eu te direi — e ouvindo o discurso conserva-o em ti — as duas únicas vias de investigação que se podem conceber. Uma, que (o ser) é e não pode não ser: e é esta a via da Persuasão, porque é acompanhada da Verdade; a outra, que não é e que é necessário que não seja: e êste digo-te, é um caminho em que ninguém aprenderá nada (fr. 4, 1-6). 3.

Critério do verdadeiro e do falso: a conceptibilidade e a inconceptibilidade implica a existência do pensado.

Como não poderás conhecer o não-ser — o que não é possível — não poderias exprimi-lo (fr. 4, 7-8). É necessá­ rio dizer e pensar que o ser existe, porque é possível que êle exista, mas o nada não e possível: eis o que te peço que consideres. Afasta-te, pois, desta primeira via de investiga­ ção (fr. 6, 1-3). A mesma cousa é o pensar e a existência (do pensado) (fr. 5).

4.

O ser é.

Um só caminho resta ao discurso: (fr. 8, 1-2). 5.

que

(o ser)

é

Os atributos do ser.

Nisto há muitos indícios de que o ser é ingênito e in­ destrutível, todo completo, único em sua espécie e imóvel e sem fim (fr. 8, 2-4). [Burnet, preferindo a lição de Plutarco à de Simplício, seguida por Diels, lê: porque isso é completo, em vez de toão completo, único em sua espécie].

R.

6.

M

o n d q l fo

A eternidade imutável: caráter contraditório e inconce­ bível do devir.

Nunca foi nem será, pois é agora tudo em conjunto, uno e contínuo. Com efeito, que espécie de origem procurarias para êle? Como e onde teria crescido? Não te deixarei dizer nem pensar que provenha do não-ser; porque não é possível dizer nem pensar que (o ser) não seja. E se viesse do não-ser, que necessidade o teria forçado a nascer antes ou depois1? Assim, pois, ou é necessário que seja do todo ou que não seja de fato. Nem mesmo a fôrça da verdade permitiria a qualquer cousa nascer do rião-ser ou junto a êle; porque a justiça não permite, a qualquer cousa que seja, nascer nem dissolver-se, soltando-a de suas cadeias, mas retendo-a nas mesmas, e a nossa opinião sôbre estas cousas acha-se ex­ pressa nestes têrmos: é ou não é? Está julgado, pois, como necessário, que uma das duas vias deve abandonar-se corno inconcebível e inexprimível (porque não é o caminho da ver­ dade), e que a outra é real e verdadeira. Como poderia, pois, ser no futuro aquilo que é? Ou como poderia ter nascido? Se teve nascimento, não é· nem (é) se fosse para ser no futuro. Assim é concelado o nascimento e nao se pode falar em destruição (fr. 8, 5-21) o Destino condenou-o a ser todo inteiro e imóvel: por isso são apenas nomes todas as cousas que os mortais assentaram crer como verdadeiras: o nascer e o morrer, o ser e o não-ser, o mudar de lugar e o mudar da côr brilhante (fr. 8, 37-41). [Neste fragmento é notável a afirmação do conceito da eternidade como mutável presente, um a vez que o ser não admite distinção de passado e de futuro, de antes e de depois. A eternidade do ser é deduzida: 1) da inconceptibilidade do não-ser; 2) da impensabilidade da gênese = contradi­ ção de ser e não-ser; 3) da inexplicabilidade dessa gênese, a qual, intro­ duzindo a distinção temporal, exige também um a razão suficiente para justificar a sua apresentação em tal momento e não em outro diferente. Deve-se também destacar que, no início desta passagem, há um indício de polêmica antipitagórica na negação da possibilidade de um acréscimo do ser: com efeito, os pitagóricos atribuíam ao prim eiro Uno ou Céu, uma vez formado, um desenvolvimento progressivo por meio da inalação do vacuo ou pneuma circundante; o que significava, precisamente, conceber a lorm açao do cosmos como acréscimo do ser por meio do não-ser (vácuo)].

7.

A unidade, indivisibilidade, homogeneidade.

Não há nem haverá nunca cousa alguma fora do ser, pois o destino o condenou a ser inteiro e imóvel (fr. 8, 38-38). Nem é divisível, porque é todo igual; nem pode chegar a ser mais nesse lugar (o que o impediria de formar um todo contínuo) nem ainda menos; mas está todo cheio de ser. E tudo nêle é contínuo; porque o ser está em con­ tacto com o ser (fr. 8, 22-25). Não poderias fazer perder ao ente o contacto com o ente, nem espalhando-o inteiramente por tôdas as partes do mundo, nem reunindo-o (fr. 2, 2-4). 8.

A imobilidade.

Além disso, é imóvel nos confins dos vínculos potentes, sem princípio nem fim, pois o nascimento e a destruição têm sido repelidos para bem longe, e a convicção verídica os tem recusado. E é sempre idêntico e, permanecendo no mesmo lugar, jaz em si mesmo, e assim permanece sempre, constantemente, no seu lugar, pois uma rigorosa Necessida­ de o conserva nos liames do limite, que o mantém firme por tôdas as partes (fr. 8, 26-31). 9.

Igual propagação em todo sentido (esfericidade do ser) sem impedimentos: ò ser como esfera infinita.

Pelo que ao ser não é lícito ser incompleto, porque nada lhe falta, e sendo (incompleto), faltar-lhe-ia tudo (fr. 8, 32-33). Uma vez que tem limite extremo, é completo em todo sentido, semelhante à massa de uma esfera redonda, de igual fôrça a partir do centro em tôdas as direções, pois não pode ser mais forte ou mais débil em um lugar do que em outro. Pois não há nada que lhe impeça estender-se igualmente, nem é possível que aqui haja mais ser do que ali, porque é de todo inviolável; aí onde em cada parte é igual, exerce pressão igual nos limites (fr. 8, 42-49). [A forma esférica, atribuída aqui ao ser, quer significar a sua completa homogeneidade e igual extensão em todos os sentidos. Mas esta igual ex­ tensão, realizando-se “com igual fôrça a p artir do centro em tôdas as

S6m qUe nada P° SSa imPedWa ou enfraquecê-la em algum ponto .pode eneerrar-se em um a esfera limitada, cuja periferia constituiria um impedimento e detenção à mesma extensão, e nao-ser. Portanto, a representação do ser, delineada por Parmênides é a de um a esfera infinita: ou seja, tem um a significação dinâmica e não estática AihP t - l r 10 33 p5 v ra s’ pois tem um Ita ite extremo”, adverte justam ente Albertelli que nao se deve entender em sentido espacial, e querem repetir o que foi dito acima: “pois um a rigorosa Necessidake o m aS ém nos s E

10.

ou M o i r a ] qUer d“ er’ QUe ° S6r é d0mtaadO pela lei da Nec^

Em frente da verdade, a opinião:

a) O d e v i r . Aqui termino o meu discurso digno de fé e o pensamento em tôrno da verdade; daqui em diante aprende as opiniões dos mortais, ouvindo a ordem enganosa das minhas palavras (fr. 8, 50-52). Assim, segundo a opi­ nião, as cousas nasceram e agora existem, e continuando a partir de agora, depois de haver crescido, chegarão ao’ íim . a cada uma destas cousas os homens deram um nome determinado (fr. 19). sa« CMPÍ ? gment° S d6Sta Parte apresenta«i-nos um a composição das cou“ dl l l Um! , T 0 , ^ 6SferaS Celestes até 03 sêres humanos) se­ gundo as teorias difundidas então na Magna Grécia, e que eram as nitagoncas. Talvez Parmênides fôsse adepto do pitagorismo, como asseguram eSa?. SOeS’ 6 separou-se dePOis, fundando a sua doutrina e a sua

b) O s e l e m e n t o s o p o s t o s : o f o g o e a n o i t e . “Êles esta­ beleceram a decisão de nomear duas formas, uma das quais nao deviam nomear (nisto êles erraram). Julgaram-nas de forma oposta e atribuíram-lhes signos separados reciproca­ mente, a uma o fogo da chama celeste, que é doce, muito leve, igual a si mesma em todo sentido, porém, contrária da outra. Mas, também aquela (a outra), é o contrário por si Rle^ ^ 0UaÍ?~a’ ^ n ° ite escura> corP° espesso e pesado” (fr. Í ]: obstante, pôsto que tôdas as cousas são cha­ madas dia e noite, e o que pertence ao seu poder é atribuído e de nm°fU ^ ° ° usas’ tudo é cheio a um tempo de luz n h u n S . f mbaSa iguais’ é comum a ne­ nhuma das duas (com outra) pois (fr. nada 9 ).

[Kecordem-se as oposições pitagóricas de luz e trevas, calor e frio. Com estas oposições se entrelaça a teoria do fogo central e das esferas “ celestes]:

c) As esferas celestes alternadas de fogo e de noite. “Os círculos mais estreitos estão cheios de fogo sem mistura, e os que estão depois dêles se acham cheios de noite, e no meio estende-se uma porção de fogo. No meio dêstes círculos está a divindade que a tudo governa; pois é o princípio universal do nascimento doloroso e da união impelindo a fêmea à união com o macho e o macho a unir-se com a fêmea” (fr. 12). d)' O temperamento (dos elementos) e a índole hum a­ na. “Da mesma maneira como em todo tempo encontra a mistura dos mutáveis membros, assim, da mesma maneira, se acha a mente dos homens, porque o que pensa é a mesma cousa que a natureza dos membros, para todos os homens e para cada um, pois o seu pensamento é o que nêles pre­ pondera” (fr. 16). [Esta teoria do temperamento (do calor e do frio) acha-se já em Alcméon e na doutrina pitagórica da alma-harmonia (dos elementos corpó­ reos). Desta teoria conclui-se que o pensamento é determinado pelo ele­ mento que prepondera]. I II.

O POLEMISTA: ZENÃO DE ELÉIA

[Floresceu em 464-460: lança combativa da escola a que Platão chamou Palamedes eleático. No livro de polêmica contra os adversários da escola, opunha-lhes um a série de dificuldades (aporias). Aristóteles chama-o cria­ dor da dialética].

1.

O intento da polêmica.

Sim, disse Zenão, não ouviste ainda o verdadeiro senti­ do dos meus escritos. . . É verdade que êstes escritos dese­ jam servir de auxílio ao discurso de Parmênides, contra aquêles que têm. pretendido zombar dêle, querendo demons­ trar que, se o ser é uno, se originam muitas e ridículas con­ seqüências e contrárias ao mesmo raciocínio. Então, êste meu escrito contradiz aquêles que afirmam a multiplicidade dos sêres, tirando a desforra, e, ainda mais, tentando de­

monstrar que a sua hipótese de que existem os múltiplos leva a conclusões muito mais ridículas do que a do ser uno » (Platão, Parmêniães, 128, B). ' 2.

As conseqüências contraditórias do multíplice.

Realmente, não sabem todos que o Palamedes eleático discutia com tal arte que, aos ouvintes, as mesmas cousas lhes pareciam semelhantes e dessemelhantes, e uno e múl­ tiplo, e firmes e em movimento? (Platão, Fedro, 261, D). 3.

Primeira contradição: o número das cousas, finito e in­ finito.

Se as cousas são multíplices, é necessário que sejam tan­ tas quantas são, e não mais nem menos do que estas. Porém se são tôdas as que são, são em número limitado. Se as cousas são multíplices, são também infinitas: uma vez que sempre há outras intermediárias entre os sêres, e novamente outras no intervalo entre estas, e assim os entes são de número infinito (fr. 3). [Que a m ira aqui sejam os pitagóricos torna-se evidente, porque, justa­ m ente para os pitagóricos, o intervalo (espaço vazio) era um ente real].

4.

Outra contradição: infinita grandeza e infinita peque­ nez no multíplice composto de unidades:

a) Porque as unidades têm grandeza. Se a unidade não tivesse grandeza não existiria sequer. Mas se existe é necessáiio que cada uma (parte do multíplice) tenha uma certa grandeza e uma certa espessura, e que uma esteja a certa distância da outra. E o mesmo discurso pode repetir­ -se para a que se acha à sua frente. Porque também ela terá uma grand.eza e terá algo à sua frente. Mas isto pode, com igual razão, dizer-se uma vez e repetir-se sempre (ao infinito); porque nenhuma parte dêle (multíplice) será a ultima, nem nenhuma estará sem relação com outra (que se ache à sua frente). * .

b) Porque são indivisíveis as unidades (isto é) priva­ das de grandeza e nulas. Pois, se (tal unidade) fôsse junta a outro ente, não o tornaria maior, pois, sendo privada de grandeza, se estiver junta, não tem nenhum a capacidade de contribuir para a grandeza. E assim a agregação serian ula. Porém, se tirando de outra cousa, esta outra não se tornará menor, nem ajuntando-a, aumentará, é claro que era nulo o que se juntou, e nulo o que se tirou. Em conclusão: ora, se as cousas são uma pluralidade, é necessário que sejam grandes e pequenas ao mesmo tempo: tão pequenas para não terem grandeza, e tão grandes para serem infinitas (fr. 1-2). [Também aqui é evidente que se visam especialmente os pitagóricos, talvez peio conceito do ponto (indivisível e possuindo ao mesmo tempo grandeza), ou talvez também, pelo conceito do infinitesimal, que se vinha desenvolvendo entre os pitagóricos, em conseqüência do descobrimento (fei­ to em relação com o teorema de Pitágoras) da incomensurabilidade da dia­ gonal com o lado do quadrado. E sta descoberta havia produzido um a grave crise dos fundamentos da Matemática pitagórica e da própria Me­ tafísica, para a qual tôdas as cousas são números, e então deviam ser tôdas comensuráveis com a unidade. Procura-se uma solução para a difi­ culdade (cfr. Aristóteles, Metaf., 983a) na divisão progressiva das grandezas incomensuráveis, para se conseguir encontrar, no infinitamente pequeno ou infinitesimal, uma unidade de medida comum. Através destas tentativas, chegava-se ao conceito do infinitesimal, tão pequeno que, somado, não au­ mentaria, e subtraído não dim inuiria a grandeza. Mas ao mesmo tempo esta grandeza resultava composta de um a soma de tais partículas mínimas, às quais alcançava o processo divisório: daí a contradição que Zenão ataca com a sua aporia Da aporia (dificuldade) referida antes, dizia Eudemo (fr. 7, em Simpli­ cio: Física, 97, 13), que “Zenão tratava de dem onstrar que não é possível que os entes sejam multíplices, pelo fato de que nos entes a unidade não é nada, e os multíplices são um a m ultidão de unidades”. Aristóteles (em Metaf., II, 4, 1001) diz: ‘‘todavia se a própria unidade é indivisível, se­ gundo a proposição de Zenão seria nula. Uma vez que aquilo que acres­ centado ou tirado não torna maior ou menor, não é um ente real, diz êle; pois, evidentemente, o ser real é um a grandeza. Mas se é grandeza, tem um corpo, visto que êste é real em todo o sentido etc.”].

5.

Inconceptibilidade do espaço (lugar) como ente real.

Zenão propõe esta dificuldade: se o lugar é alguma cou­ sa de real, onde estará? A dificuldade de Zenão exige algum (reconhecimento de) razão: pois, se cada ente real está em

um lugar, é claro que também deverá haver um lurar rir, lugar, e assim sucessivamente até o infinita t a · Fm. Física, IV, 3 , 210, e 1, 209) (Aristóteles, [Recorde-se tam bém aqui a tporin nitanvv·.,·,, intervalo, concebidos como entes reais],

6'

a

■ VaCU° (espaço) e do

? , . duf ] ° .1dilema Çontra o movimento: primeiro nar de dificuldades na hipótese da divisibilidade infinita: a di­ cotomia e Aquiles. São quatro os raciocínios de Zenão sôbre o movimento

rO primeiro Dr S e l m UÍam/ Ma