O mundo da astrologia: estudo antropológico 8771101205

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O mundo da astrologia: estudo antropológico
 8771101205

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Luís Rodolfo Vilhena

ANTROPOLOGIA SOCIAL

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Diretor : Gilberto Velho

Angela Castro Gomes, Dora Flaksman , Eduardo Stotz

Velhos Militantes Celso Castro O Espírito Militar Um estudo de antropologia social na Academia Militar das

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Agulhas Negras

Eduardo Viveiros de Castro Araweté: os deuses canibais

Gilberto Velho Desvio e Divergê ncia Urna crí tica da patologia social Individualismo e Cultura Notas para uma antropologia da sociedade contemporânea Subjetividade e Sociedade Uma experiência de geração A Utopia Urbana Um estudo de antropologia social

Hermano Vianna l) Mundo Funk Carioca

Janice Caiafa Movimento Punk na Cidade A invasão dos bandos sub

Lu ís Rodolfo Vilhena O Mundo da Astrologia Estudo antropológico

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Luiz Fernando D. Duarte

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Da Vida Nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Maria Dulce Gaspar Garotas de Programa Prostituição em Copacabana e identidade social

estudo antropológico

Marshall Sahlins Ilhas de História Myriam Lins de Barros Autoridade & Afeto Av ós, filhos e netos na famí lia brasileira Roque de Barros Laraia Cultura: um conceito antropológico

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O Mundo da Astrologia

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Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro

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SUMÁ RIO

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Agradecimentos

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Introdução

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1.

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O Sistema Astroló gico A cosmologia A classificação a ) Signos: classificaçã o sincr ônica ; b) Signos: classificaçã o diacrónica; c) Casas astrológicas; d ) Planetas

2.

A interpretaçã o

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Astrologia e Modernidade

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O estudo das camadas m édias urbanas no Brasil A crença na modernidade: o caso da astrologia

Copyright

© 1990, Luis Rodolfo Vilhena

Todos os direitos reservados. A reprodu çã o não-autorizada desta publica ção, no todo ou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 5.988)

1990 Direitos para esta ediçã o contratados com

Jorge Zahar Editor Ltda .

4.

Astrologia e Simbolismo Astrologia e psican álise Astrologia e esoterismo Astrologia e religião

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rua México 31 sobreloja 20031 Rio de Janeiro, RJ

Conclusões

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Capa : Gustavo Meyer

Apêndice 1: Os entrevistados

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Impressão: Tavares e Trist ão Ltda.

Apêndice 2: Glossário

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Bibliografia

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ISBN : 85 -7110 120-5 ( JZE, RJ)

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3 . O Mundo da Astrologia As interpretações da astrologia moderna e da “ cultura esot érica” O mundo da astrologia carioca Experi ências e trajetórias

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Lista de Figuras

( localizadas entre as páginas 52 e 53 )

Figura 1: Os signos do zod í aco e suas associações Figura 2: Projeção plana do movimento do sol em torno da abó bada celeste Figura 3: Exemplo de um mapa astrológico simplificado Figura 4: Relaçã o entre signos e planetas na astrologia antiga

NATAL

Nasce um deus. Outros morrem. A verdade Nem veio nem se foi : o Erro mudou . Temos agora uma outra Eternidade, E era sempre melhor o que passou . Cega , a Ciência a inútil gleba lavra. Louca, a Fé vive o sonho do seu culto Um novo deus é só uma palavra. N ão procures nem creias: tudo é oculto.

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FERNANDO PESSOA

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AGRADECIMENTOS

Para Sueli e Luiz Paulo, meus pais, Cleonice e Rodolpho, meus avós e Eduardo, meu irmão. Para Ana e à memória de Nilda , minha avó.

Este livro, da mesma forma que a disserta ção de mestrado que deu origem a ele , n ã o seria possível sem a presença de Gilberto Velho, que me deu a honra de t ê-lo como orientador e, tnais importante que isto, como amigo. Mantendo uma rara combinação de rigor e tolerâ ncia, sempre respeitando a minha independência, teve uma participação decisiva na pesquisa , desde a escolha do tema até o convite para publicá-la. Agradeço ainda a oportunidade de parti¬ cipar da pesquisa por ele coordenada, onde pude também discutir aspectos de minha investigação com Hermano Vianna Jr. e Miriam Lins de Barros, que muito contribuíram para o amadurecimento de minhas idéias. Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na figura de sua coordenação, seus professores, secretaria e biblioteca. N ã o posso esquecer, também, o interesse que v ários pro¬ fessores e colegas demonstraram em ouvir minhas hipóteses e trocar id éias. Enfim, sou grato a todos os meus informantes que, além de, obviamente, terem tornado minha pesquisa possível, por certo tam¬ bém a tornaram mais agradável. Agradeç o também os imprescind íveis recursos financeiros do CNPq e da CAPES, sob forma de bolsa de estudos, bem como da FINEP e da Fundação Ford , no apoio à pesquisa referida acima. Gostaria também de agradecer a tr ês pessoas próximas a mim que formaram uma verdadeira “ equipe” , sem a qual não concluiria este projeto no tempo programado. Em primeiro lugar, contei com a infinita paciência e o companheirismo de Ana, enfrentando os meus “ garranchos” e apoiando meu trabalho durante nossa convi

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o mundo da astrologia

vencia. Tive também o incentivo carinhoso de minha avó Cleonice, que reviu e comentou o texto, e a boa vontade de Sandra Vilaça, com o seu “ apoio técnico” e suas “ dicas” durante a datilografia . A elas, toda a minha gratid ã o. Por fim, agradeço as observações atentas e generosas dos pro¬ fessores Gilberto Velho, Luiz Fernando Dias Duarte e Ot ávio Velho, que examinaram a versão original deste trabalho. Procurei levá las em conta, na medida do possível , ao preparar esta versão.

INTRODU ÇÃO

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Este livro analisa as crenças e representações de um grupo de indi ¬ víduos pertencentes às camadas médias cariocas associados ao uso da astrologia. A astrologia é um sistema divinatório que postula a correspon ¬ d ê ncia entre os movimentos celestes e as características e aconteci¬ mentos da vida de cada indivíduo. Surgida , provavelmente, por volta do século II a.C., produto da associação de idéias gregas e crenças das antigas civilizações mesopotâmicas, ela se dissemina pelo mundo romano no in ício de nossa era. Ao lado da herança greco-romana , é preservada pelas civilizações islâmica e bizantina e introduzida no Ocidente medieval e no mundo indiano. Após seu relativo declínio nas sociedades européias durante o século XVII,1 assistimos no sé¬ culo atual a seu retorno nos grandes centros urbanos modernos, onde florescem os consult órios de astrologia e a imprensa diá ria publica maciçamente suas colunas de “ horóscopos” , que contêm previsões para os nativos de cada signo solar.2 Ao iniciar a pesquisa, entrevistei membros de três grupos de estudo de astrologia, que identificarei pelas letras a, b e c. Os dois primeiros eram coordenados por um astrólogo, Roberto,3 e particiVale a pena consultar dois livros que cobrem um extenso período da história da astrologia : S.J., Tester, A History of Western Astrology, Londres, Boydell, 1987; e Patrick Curry, (org.) , Astrology, Science and Society, Lon ¬ dres, Boydell, 1977. 2 O Apêndice 2 consiste num glossá rio com a explicação de alguns termos astrológicos. 3 Os nomes dos entrevistados são fict ícios. No Apêndice 1, o leitor encon ¬ trará a enumera ção dos 23 entrevistados, seus dados bá sicos e sua inserção no mundo da astrologia .

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o mundo da astrologia

pei regularmente do grupo a . Vários dos integrantes faziam parte, junto comigo, de um coral que ensaiava duas vezes por semana , o que me levou a conhecê-los melhor e permitiu um contato mais fre¬ quente. O contraponto a estes grupos formados por jovens entre 19 e 24 anos foi fornecido pelo grupo c , que se reunia na casa de Ali¬ ce, mãe de Roberto, coordenado por um segundo astrólogo, e com ¬ posto por senhoras de faixa et á ria variada, a mais jovem com 38

anos . Nesse momento, começou também a minha frequ ência ao “‘mundo da astrologia” , inicialmente marcada em cursos introdut ó¬ rios que me permitiram começar a dominar o sistema compartilhado por meus informantes. Ao fim da pesquisa, foram quatro cursos e a eles se somaram os congressos, palestras e ciclos de debates a que assisti durante o trabalho de campo, mesmo após a dissolução dos grupos. Lidando com um universo semelhante à quele estudado pelas recentes produções da antropologia urbana acerca dos estilos de vida e visões de mundo em camadas médias urbanas,4 tomei como hipó¬ tese a seguinte questão; até que ponto podemos dizer que a astrolo¬ gia contribui para a formulação de um desses estilos de visões? En ¬ tretanto, já naquele momento inicial , estava claro que muitas das semelhanças presentes no discurso dos entrevistados decorriam de sua forma de inserçã o no mundo da astrologia enquanto “ estudan ¬ tes” . Era esta atividade que permitia a formação das redes que os definiam enquanto grupos. Passei ent ã o a entrevistar indivíduos fora desse último grupo, pertencentes àquelas camadas e que recorressem regularmente à astrologia . Pude ent ã o notar sensíveis diferenças na visão da astrologia por parte daqueles informantes que, limitando se a consultar os astrólogos, n ã o se interessavam ou não dispunham de tempo para conhecer o sistema . Outros estudantes entrevistados diziam preferir o autodidatismo, dando pouco valor a cursos e con ¬ ferências. Entrevistei também quatro astrólogos. 4 Esta tradi çã o se encontra resenhada em parte por Salem , 1985. Embora a autora tome como eixo de sua análise o tema da família, central para a definiçã o dos estilos de vida que as caracterizam ( p. 10) , também inclui outros trabalhos onde “ a an á lise da fam ília ou do parentesco é, em prin ¬ cípio, trabalhada como um tema subsidiá rio” ( p. 3) .

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introdução

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A bibliografia sobre a astrologia é constituída por três segmen ¬ vasta literatura produzida por astrólogos, uma reduzida bibliografia historiográfica e uma quase inexistente produçã o de caráter sociológico e antropológico sobre o assunto. Essas leituras me levaram a formular a hipótese de que, embo¬ ra cada autor, cada período histórico e cada segmento social defi¬ nam os fundamentos cosmológicos e a utilização específica da as¬ trologia de uma forma particular, suas t écnicas e classificações apre ¬ sentam uma extraordin ária estabilidade. Essa permanência se faz apesar de • ou devido a ter ela sempre aparecido, tanto no passado quanto no presente, em contextos sincr éticos, ligada a ou ¬ tros sistemas divinatórios e curativos e a cren ças das mais diversas origens, reunidas, por vezes, sob denominações como “ esoterismo” , “ ‘tradição oculta ” , “ cultura alternativa” , “ nova gnose ” etc. Como lembra o historiador Brian Vickers ( 1984: 7 ) essa “ resistência à mudança ” é um traço do ocultismo como um todo. Esta tensão é recorrente no discurso de vá rios dos meus informantes: ao mesmo tempo que enfatizam o pluralismo, afirmando a necessidade de se compararem astrólogos e livros para que cada um adote o tipo de astrologia que lhe agrade, reafirmam a antiguidade desse sistema para além das datas que a historiografia reconhece, reforçando sua unidade e sua fidelidade para com a origem . Portanto, este trabalho, que trata da difusão de um sistema mi¬ lenar num setor extremamente restrito da sociedade brasileira, é marcado por essa tens ã o entre geral e particular, an álise abstrata e concreta. Partirei, no Capítulo 1, da análise das classificações sobre as quais se constroem as t écnicas astrológicas e procurando mostrar que, da mesma forma que a estrutura dos mitos investigada por Lévi Strauss, sua estrutura permanece constante em suas vá rias versões. J á o Capí tulo 4 se dedicar á à an álise exclusiva dos discursos dos informantes , buscando delinear a especificidade que a pr ática e a teoria do sistema astrológico assumem em segmentos das camadas m édias urbanas residentes na Zona Sul do Rio de Janeiro, dando uma interpretação global a partir da noção particular de simbolismo que esses discursos desenvolvem. Esses dois capítulos representam contribuições originais ao es¬ tudo das camadas médias, que já possuem uma respeit ável tradiçã o tos numericamente desiguais; uma



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no Brasil, e da astrologia, assim como da “ cultura alternativa” em geral, um setor até aqui pouco explorado pelas ciências sociais. Os demais capítulos representam uma transição dentro do con ¬ tínuo estabelecido por esses dois pólos, realizando contextualizaÇões progressivas do sistema astrológico. Todos eles levantam vários problemas que exigiram importantes investigações num trabalho mais generalizante mas que aqui desempenharão um papel subsidiá rio. No Capítulo 2 , por exemplo, faço uma discussão sobre a natureza da modernidade e do papel estrat égico ocupado pelas camadas mé ¬ dias urbanas na veiculação de seus valores na sociedade brasileira . Al é m de comentar a recente produçã o antropológica sobre o assun ¬ to, irei me deter nas obras de Georg Simmel e Louis Dumont. Ten ¬ tarei demonstrar como podem nos ajudar a compreender a relação ambígua que a modernidade possui com a astrologia: surgindo no seu seio, ela apresenta um discurso marcado por críticas aos valo¬ res modernos. No decorrer deste trabalho, minha hipótese inicial sofreu algu ¬ mas modificações. O esforço em “ localizar experiências suficiente¬ mente significativas para criar fronteiras simbólicas” ( Velho, 1981: 16 ) permaneceu , embora nã o mais ligado, necessariamente, à deli¬ mitação de “ estilos de vida” . Veremos como a prática da astrologia confere ao indivíduo um vocabulário específico, reflexo mediatizado da estrutura astrológica na sua visão de mundo, que permite con¬ ferir a esta prática o estatuto de “ experiência sintetizadora” com a qual os estudos de camadas médias t êm recortado seus objetos. Em ¬ bora apenas uma parcela dos informantes forme grupos delimitados, todos mant êm relações as mais diversas com o mundo da astrolo¬ gia, que pode ser descrita, como procurarei fazer no Capítulo 3, como uma grande rede, categoria igualmente utilizada pela literatu¬ ra de camadas médias, ao lado de “ grupo de ethos” , para delimitar seus objetos (Salem, 1985 ) .

Capítulo 1

O SISTEMA ASTROL Ó GICO

A astrologia pode ser definida como a arte divinatória que postula a existência de uma relação entre os movimentos celestes e tudo aquilo que ocorre na Terra, possuindo um sistema de classificações que lhe permite atribuir determinados significados a cada um desses movimentos, além de um conjunto de t écnicas que estabelecem os procedimentos adequados para interpret á-los. Ser á nestes termos que procurarei descrever o que chamarei de sistema astrológico. A análise dos princípios e classificações astrológicos sem refe¬ rência a sua apropriação particular em um determinado momento histórico ou segmento social é importante neste trabalho não ape¬ nas para esclarecer o leitor acerca do conjunto' de representações que fornece & identidade do grupo pesquisado. Embora ao longo de toda sua existência ela tenha conhecido usos os mais diversos, pro¬ curarei demonstrar que a astrologia pode ser vista como um sistema, ela possui uma lógica própria que deve ser analisada em conjunto com a investigação de sua prática em qualquer dos contextos em que esteja presente. Ê importante, entretanto, antes de fazer esta análise, explicitar os elementos que nos servem de base para esta abordagem, o que nos revelará também seus limites. Usei até agora a palavra astrologia sem nenhum adjetivo, po¬ rém, pode se dizer, num sentido amplo, que existem várias astrolo¬ gias. Este nome, com seus dois radicais gregos, sempre foi associa¬ do ao sistema surgido da helenização de uma “ astrologia” babilóni¬ ca. Este processo fez com que a forma original mesopotâmica, que era apenas uma das várias divinações monopolizadas por sua casta sacerdotal, sofresse v árias modificações, laicizando se e individuali¬ zando se. Tratarei apenas dessa forma laica que chamarei, para dis¬ tingui-la das demais, de astrologia zodiacal. Seus textos mais antigos

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datam do final do século III a .C., escritos em grego no Egito hele ¬ nizado. A partir daí, expandiu-se pelo mundo greco romano na fi ¬ gura dos matematici ou cháldaei, nomes atribuídos aos astrólogos da época . Embora a ciência destes pretendesse ser o depositário da sabedoria ancestral dos babilónios ( e mesmo da dos egípcios, que, hoje já se sabe, n ã o desenvolveram uma astrologia original ) , ela já era produto do sinoretismo da época, com os nomes dos signos e dos planetas latinizados. Com o tempo, surge uma vasta literatura astro¬ lógica , desde o manual relativamente “ cientificista” de Ptolomeu , o Tetrabiblos, escrito no s é culo II A . D., at é os tratados atribu ídos ao mitológico Hermes Trismegisto, compostos, em realidade, nos pri¬ meiros séculos de nossa era (cf . Festugière, 1981: 67-88 ) . A disse minaçã o da astrologia zodiacal no mundo romano se insere na época do florescimento dos cultos orientais que marca o período do Im ¬ p ério que antecede sua cristianização ( cf . op. cit 19-44 e Cumont , 1960: 50-6 ). A id éia de que existiam astrologias chinesa, maia e babilónica , além da forma zodiacal, originalmente batizada com esse nome, se deveu, no caso das duas primeiras, à presença de representações nestas culturas que também tematizavam a homologia entre as or dens celeste e terrestre e, no caso da ú ltima, à necessidade de marcar a sua especificidade diante do produto sincr ético que dela surgiu . Entretanto, do ponto de vista teórico, acredito que isolar as classi¬ ficações astrológicas realizadas por estas sociedades e as crenças e prá ticas a ela associadas do conjunto de classificações que organizam suas culturas seria um erro semelhante à ilusão totêmica denunciada por Lévi-Strauss ( 1962 ) . Mais que uma instituição autónoma , o totemismo é apenas um dos planos do vasto sistema classificatório elaborado por cada uma destas sociedades. Num ensaio que se tor ¬ nou clássico justamente por seu pioneirismo no tema, Duxkheim e Mauss ilustram o sistema classifica' orio chin ês com uma descrição resumida da sua “ astrologia ” ( 1981: 442 7 ) . A leitura de Mareei Granet ( 1981 ) , no entanto, nos mostra como é complexo este sistema e qu ã o imbricadas na cosmologia chinesa est ão suas crenças astro¬ lógicas. Por outro lado, a astrologia propriamente dita, a zodiacal , ad ¬ quiriu , enquanto arte divinatória , uma autonomia relativa que nos permite analisá la separadamente. A literatura grega e latina sobre o assunto foi preservada pela civilização árabe que a introduziu na í ndia e permitiu a sua redescoberta, pouco antes do milénio, no

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Ocidente medieval. A sobreviv ência deste acervo e sua procedência pagã permitiram que ela fosse utilizada e pesquisada, com maior ou menor cuidado, por curiosos, filósofos, m édicos e astrónomos ( se é que existiu esta clareza na divisão do trabalho intelectual na Idade Média ) . Como assinala Jack Goody ( 1968 ) a coerência e a homo¬ geneidade dos sistemas classificat órios das civilizações antigas a que me referi acima podem ser relacionados à existência de um domínio restrito da escrita que mantinha o saber legítimo erudito monopo¬ lizado por certos estratos sociais. J á no final da Idade Média e no Renascimento , sabemos que o dom ínio exclusivo do clero sobre o saber nem sempre foi completo, nem evitou a exist ência de dissidên¬ cias sérias.1 Se analisássemos a história da astrologia zodiacal, per¬ ceberí amos que seus momentos de m á xima expansã o correspondem àqueles de disseminação da educação.2 Essas colocaçõ es já nos permitem entrever alguns traços específi¬ cos da astrologia como forma de divina ção. Suas classificações não são necessariamente aquelas da cultura em que é praticada ( embora ambas possam tender a convergir ) e se organiza a partir da classi¬ ficação dos astros e de seus movimentos, cujos significados são in¬ terpretados de acordo com as técnicas estabelecidas em sua litera ¬ tura. A utilização do termo “ técnica” talvez possa ser considerada inadequada , tendo em vista a oposição que vários antropólogos es¬ tabeleceram entre t écnica e magia, levando se em conta, também , que a divinação é vista classicamente como um procedimento m á-

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Pode-se comparar esta situação com a descrição de Grane.t acerca da China cl ássica: “ As polêmicas entre as Escolas traduziam conflitos de pres t ígio Elas não acarretavam a prova de uma oposição propriamente dou ¬ trinal.” (1981:11 2) 2 Como nos mostra E.R. Dodds, a sociedade helenística do século III a.C , onde nasce a astrologia zodiacal, “ era de v á rias formas a maior aproximação de uma sociedade ‘aberta’ que o mundo tinha visto” , com uma cultura cos¬ mopolita e com suas instituições expostas à crítica racional (1951:237). A expansão do sistema astrol ógico conheceu seu á pice nos primeiros séculos da nossa era, quando o Estado romano se. preocupou em fundar numerosos cen ¬ tros de ensino nos quais era divulgado o conhecimento filosófico e cientí¬ fico antigo. Enquanto que durante o per íodo medieval ele desapareceu do Ocidente, até devido aos complexos cálculos matem á ticos que sua prá tica exigia, para só reaparecer nos primórdios do Renascimento, quando o pano¬ rama intelectual do per íodo foi revolucionado pela redescoberta da cultura greco - romana. 1

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gico ( ver Hubert e Mauss, 1974:169-70 ) . Esta oposição é também desenvolvida por Malinowski ( 1954 ) que reconhecia nas socie¬ dades primitivas n ão só um saber “ sagrado” , que correspondia à magia e à religião, mas também um saber “ profano” . Este cons¬ íamos os tituiria o “ conhecimento primitivo” , no qual encontrar , esse autor relalado ) ( Por outro . 19 p . ê ci ncia da rudimentos ” “ quanto a “ ê ci ncia tanto a que , admitindo essa dicotomia tiviza ) ( Com esta afir ¬ 89 p . . especial é cnica uma t ” desenvolveram magia prática primitivas sociedades a que nas mesmo nos , o mostra çã ma ó rmulas f e procedimentos certos ê ncia a implica obedi magia de restrita cil ou dif í de prest gio e de , í por , vezes é motivo posse cuja obtenção. O que ele parece ter entendido é que, se essa pr á tica se distingue das t écnicas propriamente ditas ( as do “ conhecimento primitivo” ) por sua completa ineficá cia prá tica, tal suposição é do pesquisador e n ão do grupo, que crê evidentemente no poder do m á gico e atribui os seus fracassos ao n ão cumprimento das “ condições estritas” que devem ser observadas na sua pr ática. Esta formulação de Malinowski e os ju ízos de valor que ainda contém nos revelam a delicada mas estratégica posição por ele ocupada na ítica de etno transiçã o da antropologia em seu processo de autocr centrismo evolucionista. Este uso amplo do conceito de t écnica é extremamente ú til para descrever certos aspectos essenciais a uma definição da as¬ trologia, uma vez que ela, enquanto divinação, se earacteriza pelo importante papel da técnica em sua pr á tica. A obtenção da mat é¬ a carta ou mapa astrológico, ria-prima para suas interpretações gráfico em que se encontram registradas as posições planet árias exige complexos cálculos matemá ticos e num dado momento astronómicos. Como demonstra Alexander Murray ( 1978 ) , as ope ¬ rações aritmé ticas exigidas para a confecção dos mapas medievais eram as mais avanç adas da época . Hoje, evidentemente, as coisas sã o mais f áceis . Aquele que não dispõe de um computador, pode ¬ rá utilizar-se do livro das efemérides, que registra as posições pla¬ net á rias à meia-noite ou ao meio-dia de cada dia do ano, e da t ábua das casas, que permite estabelecer as posições das casas as¬ trológicas a cada latitude e cada hora sideral. A partir das infor ¬ mações obtidas através da consulta destas duas publicações, a con ¬ fecção do mapa exigirá apenas algumas operações de soma e sub¬ tração e a utilização de uma t á bua de logaritmos adequada para determinar cada posiçã o de acordo com a hora e o minuto precisos



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desejados. Embora isso pareça mais complicado descrito dessa forma do que na pr ática, n ão chegando a exigir um grande talento matemá tico ( se o indivíduo contar com uma simples má quina de calcular ) , o livro e a t ábua mencionados são geralmente importa dos. Além disso, as t écnicas e os princípios utilizados para a inter¬ pretação do mapa só podem ser adquiridos através da leitura de manuais, a maioria em língua estrangeira , ou da frequência a cursos livres pagos. Como podemos verificar, se a astrologia zodiacal nunca foi monopolizada por uma casta sacerdotal, o domínio de seu conhe¬ cimento exige a posse de um certo capital cultural . Entretanto, é só isto que ela exige. Usando a terminologia weberiana, pode se afir¬ mar que a autoridade do astrólogo tem, em ú ltima análise, uma base racional, repousando sobre o domínio de um saber específico mais ou menos definido e acessível ao exame de todos, prescindin ¬ do da legitimaçã o tradicional ou carismá tica. Desta forma, a prá ¬ tica da astrologia nã o é restringida por nenhum conselho profis¬ sional que obrigatoriamente confira legitimidade ao praticante, como ocorre, por exemplo, nas associações psicanalí ticas, que, por outro lado, possuem uma maior pretensão à cientificidade, ape¬ sar dos seus rituais de iniciação, cisma e expuls ão. Do astrólogo também n ão é exigida nenhuma habilidade extraordinária, não é necessário transe, possessã o nem qualquer tipo de graça para rea¬ lizar sua divinação. Ele conta apenas com suas informações astro¬ nómicas e seu conhecimento e talento na interpretação. É eviden ¬ te que esta é uma distinçã o ideal-típica e que o carisma pessoal de um astrólogo é hoje uma fonte de prestígio, podendo somar-sç a sua legitimidade racional. Podem-se também supor casos de as¬ trólogos do passado que se apoiavam igualmente na sua autorida¬ de tradicional. A esta hipótese, conheço apenas uma aparente exceçã o. Tra ¬ ta se da astrologia praticada no sudeste de Madagascar, descrita por Maurice Bloch. Nessa região, relata-nos o autor, é requerido do astrólogo “ uma combinação da posse de um conhecimento com¬ plexo e da posse de poderes sobrenaturais” . Creio que isso se deve à forma peculiar pela qual a cultura isl â mica, fonte do conheci¬ mento astrológico tradicional malgaxe, penetrou na ilha. Embora esse contato tenha cessado no século XVII, permitiu a adaptação dos caracteres árabes aos dialetos locais, dando origem a uma es¬ crita extremamente complexa na qual foram redigidos seus livros

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sagrados. Uma vez que nesses livros se encontram os conhecimen ¬ tos astrológicos malgaxes, eles foram monopolizados pela aristo¬ cracia letrada da regi ão. Assim, como nos mostra Bloch, a astro¬ logia passou a fazer parte do “ conhecimento tradicional” dessas sociedades, cujo domínio é uma importante fonte de prestígio. Isto fez com que a inserção desse sistema na ilha se apresente de uma forma distinta daquela que podemos encontrar no resto de sua á rea de difusão; sua origem, inicialmente bá rbara , e em seguida pagã, sempre tomou problem á tica a integraçã o com a religi ão tradicio¬ nal dominante. Alé m disso, os dados de Bloch n ã o nos permitem excluir a hipótese de que, durante o isolamento em relação ao resto da cultura isl âmica, a astrologia malgaxe tenha sofrido modifica ¬ ções em sua estrutura, uma vez que as esparsas refer ências forne ¬ cidas pelo autor n ão sã o suficientes para se saber at é que ponto ela permanece fiel aos postulados originais helé nicos.

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Definida dessa forma , a astrologia , enquanto arte divinatória, se inclui na categoria mais específica de “ maneia” . Ela inclui, por exemplo, a quiromancia e as cartomancias ( como o tarô ) que to¬ mam, respectivamente, as m ãos ou as cartas como fenômenos a serem interpretados segundo suas técnicas específicas. Ê evidente que o tipo de respostas que estes oráculos ir ão dar e a sua aplica ¬ ção est ão infimamente relacionados à natureza do fenômeno que tomam como referência . Como apenas os seres humanos possuem m ãos e como cada uma possui linhas absolutamente individuais ( o que ficou provado pela moderna t écnica das impressões digi¬ tais ) , o quiromante pretender á falar sobre a personalidade e o des¬ tino particulares do possuidor das mã os analisadas. J á a aplicaçã o das conclusões tiradas da “ leitura ” de um conjunto de cartas dis¬ postas aleatoriamente sobre uma mesa será diferente. Assim, a pr á tica do tar ô se realiza através de uma dinâ mica de perguntas e respostas.3 As t écnicas dos cartomantes se defrontam com o problema dessa aleatoriedade que faz com que uma mesma pergunta possa ser respondida dife rentemente v á rias vezes . É interessante a resposta que ouvi de um tarólogo sobre essa questão em um curso a que assisti durante o meu período de pesquisa de campo. Para ele, as cartas nunca respondem à mesma questão. Se alguém continuar insistindo em fazer a mesma pergunta, elas passarão a

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Podemos dizer que a astrologia, assim como todas as diversas maneias, apresenta duas classificaçõ es, que podem ser denomina¬ das primárias e secund árias. Na prim á ria , através das qualidades e padrões atribu ídos a cada planeta e a cada signo, certos conjun ¬ tos finitos de esp écies de um gênero específico podem ser classifi¬ cados. Assim, doze partes do corpo humano são associadas aos doze signos ( ver Figura 1 ) da mesma forma como, no passado, cada dia da semana foi associado a um dos sete planetas vis íveis como se pode notar ainda em boa parte das línguas da Europa ocidental.4 É importante reter a capacidade limitada dessa classi¬ ficação, que, embora prim ária, se interrompe no nível do gênero, ou seja , classifica a cabeça e o domingo, mas n ã o um órgão de uma determinada pessoa ou um dia particular. J á as classificações secundá rias da astrologia necessitam da mediação do tempo, o que lhe permite, por outro lado, uma capa¬ cidade de singularização praticamente ilimitada. A forma mais uti¬ lizada por este processo é a assimilação do destino e da persona ¬ lidade de um indivíduo à sua carta ou mapa natal, em que se en ¬ contram as posições planet árias assinaladas de maneira precisa e referenciadas à latitude e à longitude do local de nascimento. A interpretação dessa carta é produzida a partir dos padrões e qua¬ lidades j á referidos, os mesmos que são utilizados pelas classifica ¬ ções prim á rias. Tais padrões se definem de acordo com a posiçã o que cada planeta e signo ocupa no sistema astrol ógico. Ê, portan ¬ to, a estrutura desse sistema que preside as classificações e inter¬ pretações operadas pela astrologia . É possível que alguns assinalem a contradiçã o que existiria entre o car á ter divinat ório que atribuo à astrologia e a cientificidade que alguns astr ólogos associariam à sua prá tica . Este trabalho par

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lhe fornecer novas facetas, desdobramentos do problema inicialmente colo¬ cado . 4 Assim , sábado , domingo e segunda-feira foram associados, como se per ¬ cebe pelas denominações inglesas e alemãs (Saturday; Sunday, Sonntag; Mon¬ day, Montag ) , a Saturno, ao Sol e à Lua. O cará ter lunar da segunda- feira também se encontra assinalado no francês, espanhol e italiano ( Lundi , Lunes e Lunedi ) , que registram igualmente as classificações dos demais dias da se mana, associados, respectivamente, a Marte, Mercúrio, Júpiter e V énus : Mardi , Martes, Martedi ; Mercredi , Miercoles, Mercoledi ; Jeudi , Jueves, Giovedi ; Vendredi , Viernes, Venerdl . ¬

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o sistema astrológico

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Uma questão que deverá estar respondida , pelo menos em parte, é a extensã o dessa unidade. Se escolhi seguir a hipótese de que ela existe, ao fazê-lo sigo a representação dominante no grupo que pesquisei , privilegiando o “ ponto de vista do nativo” , t ão caro à antropologia. A “ antiguidade” da astrologia é um valor funda¬ mental e, embora de formas diferentes, os seus praticantes cons¬ troem sua legitimidade reivindicando uma fidelidade a suas origens, que n ã o precisa ser necessariamente literal; pode expressar-se de formas mais indiretas. Certos autores, por exemplo, defendem a necessidade da compreensão da astrologia “ em termos atuais” e a elucidação “ tanto da estrutura quanto da aplicação desta ci ência em relaçã o à psicologia contemporânea, à psicoterapia e aos con ¬ ceitos de energia ” . Esta é a posição de Stephen Arroyo ( 1985: 14 ) , representante da corrente auto-intitulada astrologia humanística. Entretanto, a constatação de que é inevit á vel a modernizaçã o do discurso astrológico tem uma contrapartida: sua adoçã o pela ideo¬ logia moderna implicar á a possibilidade de uma volta à valoriza¬ ção do conhecimento tradicional. Para o autor, esta ideologia

te da perspectiva de que o modelo de ciência que emerge por volta do século XVII e que, grosso modo , permanece ainda dominante, possui uma validade que deve ser contextualizada histó rica e cul¬ turalmente e que, portanto, n ão nos autoriza a emitir juízos de valor absolutos acerca da astrologia. Entretanto , muitas das vezes

em que os astr ólogos afirmam ser científico o sistema que utili ¬ zam, eles est ão procurando defender-se da desqualificaçã o que ela passou a sofrer desde aquele século, quando o paradigma no qual a astrologia se baseava entrou em declínio. Para tanto, adotam um juízo etnocêntrico comum na cultura moderna , equivalendo o atri ¬ buto de cientificidade ao de verdade. Defendo a necessidade de relativizar-se este juízo e, se procurarei demonstrar como a astro¬ logia afasta-se do moderno modelo de ciência, isto n ão significar á uma condenação. Por outro lado, é importante notar que muitas das defesas desse tipo afirmam n ão só o pretenso caráter científico do siste ¬ ma astrológico, mas também a capacidade que ele teria de ir além das ciências modernas. A radicalização deste argumento poderia levar a um segundo tipo de cr ítica a minha abordagem . Refiro me à condena ção do pensamento científico moderno por certos astró¬ logos que o julgam como um produtor de uma técnica vazia e ma¬ nipulators, enquanto que a astrologia, assim como outras “ man ¬ eias” ou “ ci ências tradicionais” conteriam também , alé m de sua eficácia, uma sabedoria implícita . Embora esta seja uma id éia mui¬ to comum, é necessá rio reconhecer que as interpretações acerca da verdadeira natureza de tal sabedoria são as mais diversas, consti¬ tuindo o pomo de discórdia nos debates que percorrem o campo intelectual esot é rico, como veremos no último capítulo. Al ém disso, vá rios desses int érpretes reconhecem com pesar que grande parte dos usu á rios n ão se interessam por essas quest ões, bucando apenas os benef ícios práticos que cada sistema ofereceria. Portanto, ao definir o sistema astrológico, sigo o princípio weberiano segundo o qual, nas ciências da cultura, a an álise deve ser feita com relação a valores sem, entretanto, buscar legitimar qual¬ quer um deles. Meu objetivo foi o de construir um modelo que se aplique a todos os usos e interpretações da astrologia , permitindonos compreendê-los. Minha hipótese é a de que, subjacente a isso, h á uma estrutura que lhes confere unidade e que dá à astrologia seu caráter de sistema.

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foi longe demais no seu esforço para libertar das limitações e das tra ¬ dições Perdeu contato com as bases arquetlpícas do seu ser e com a fonte de sustentação e de alimentaçã o espiritual e psicológica que estas bases fornecem. A astrologia pode ser usada como um recurso para reunir o homem ao seu eu interior, à natureza e. ao processo evolu ¬ tivo do universo , (p. 45)

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Como se vê, independente do car á ter antitradicional que a cultura moderna possa ter, o valor-tradição é sempre um ingre¬ diente da prática e da crença astrológicas. No entanto, outros as¬ trólogos n ão concordam com a soluçã o de compromisso proposta por Arroyo. Os autores que defendem a chamada astrologia tradicional,5 inspirada no pensador francês René Gu énon , acreditam

O adjetivo “ tradicional ” talvez tenha um sentido excessivamente impre ¬ ciso para definir uma corrente t ão ciosa da sua ortodoxia como esta Algu ¬ mas de suas conotações são mesmo rejeitadas pelo próprio Guénon (1977:53) . Poré m, o termo “ astrologia tradicional” é geralmente utilizado para identificar os astrólogos que seguem este. autor. O tema da tradição é importante não apenas para a astrologia mas também, como veremos, para o esoterismo como um todo. Entretanto, este é o seu segmento que o trata de forma mais radical

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que, desvinculada de seu contexto tradicional como se encontra hoje, ela “ só pode sobreviver como uma p álida caricatura de si mesma” ( Carvalho, 1985: 19 ) , Sua prática passa a ser assim mar ¬ cada por um impasse entre a afirmação da necessidade de sua contextualização nas doutrinas que a originaram e o reconhecimento de que “ a astrologia, praticada hoje no Ocidente, é somente o ves¬ tígio de uma antiga forma de ci ência” ( Oliveira , 1985: 47 ) . Este pequeno exemplo mostra , por é m , como visões de mundo contrastantes podem se apropriar da astrologia, tendo que enfren ¬ tar para isto, certas quest ões comuns. A an álise da história da as¬ trologia, que ser á brevemente abordada, é tamb é m capaz de for ¬ necer uma multiplicidade de exemplos da dialética entre continui¬ dade e descontinuidade que marcam a astrologia. Esta apenas pos¬ tula as relações entre a Terra e os movimentos planet á rios segundo certas classificações e técnicas. Nada nela determina expressamente um uso particular ou fornece seus pressupostos últimos metaf ísi¬ cos ou epistemológicos sobre os quais n ã o há nenhum consenso.6 Minha hipótese é a de que sua plasticidade é limitada e que tais limites podem ser determinados através da compreensão da estrutura que organiza suas classificações e dos princípios que fun ¬ damentam suas técnicas. Tentarei ent ã o realizar, ao menos parcial¬ mente, esta tarefa, ao fim da qual certas constantes empiricamente detectadas, como a importâ ncia do valor-tradiçã o, poder ã o ser fun ¬ damentadas a partir de uma análise teórica. A descriçã o a seguir apresenta conhecimentos compartilhados por todos aqueles que possuem os rudimentos necessá rios para se utilizar da astrologia através da confecção e interpretação de ma ¬ pas. Ela ser á sucinta uma vez que seu objetivo n ão é capacitar nin¬ guém a utilizar se de tais conhecimentos, mas determinar o uso comum do sistema astrológico e analisá-lo, guiado pela teoria an¬ tropológica . Procurarei, na medida do possível, manter-me equi¬ distante das polêmicas doutrin á rias e a bibliografia utilizada foi es¬ colhida sem nenhuma pretensã o de representar uma seleçã o qua ¬ litativa no seu gê nero. Sã o livros com os quais tive contato duran

te a pesquisa , guiado pela curiosidade ou por indica ções de infor¬ mantes, e que ser ão citados apenas à guisa de exemplos daquilo que for relatado.

A cosmologia j •i

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’ Estou me referindo ao que Kemper chama de “ qualidade ‘parcial’ da astrologia ” num artigo sobre astrologia cingalesa. Para este autor, ela sozinha n ã o é capaz de constituir uma cosmologia. (1980:755)

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A palavra cosmologia, al ém de definir um ramo do conhecimento astron ómico, é também utilizada em dois outros sentidos. De uma maneira abrangente, define a visão de mundo, a ideologia de um grupo, de uma cultura ou de uma sociedade. Nesse sentido, a as¬ trologia n ão possui uma cosmologia ú nica . Se a minha hipótese estiver correta , cada corrente astrológica ou cada período históri¬ co agrega ao sistema sua própria visão de mundo que fundamenta a utilidade e os limites de seu emprego e fornece a explicação para sua eficácia. Já num sentido mais restrito, cosmologia significa uma defini¬ ção da composição e da organização do cosmos. £ este que uso para definir a forma pela qual o sistema astrológico concebe as posições e movimentos dos astros que ele toma como ponto de re¬ fer ência para a elaboraçã o de seus mapas . Essa necessidade t écni¬ ca determina o geocentrismo de sua cosmologia: a carta represen¬ ta as posições planet árias em relação àquele a que ela se refere. Ora, todos os objetos e indivíduos sobre os quais a astrologia es¬ tabelece suas interpretações se encontram na Terra . Para a moderna f ísica relativística é irrelevante determinarse se a Terra ou o Sol se encontram no centro do universo, uma vez que, segundo ela , só se pode definir o movimento em relação a um referencial sempre arbitrá rio. Hoje, é mais econ ómico suporse que o nosso planeta gira em torno do Sol, do que acreditar , como faziam os antigos ( que, no entanto, n ã o trabalhavam com a perspectiva relativística ) que todo o universo gira em torno da Terra. Para a Antiguidade, as dimensões do cosmos eram bem me ¬ nores. Visto sem os instrumentos sofisticados desenvolvidos poste riormente, o céu parece apresentar dois tipos de astTos.7 O pri

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A postula ção da finitude ou infinitude do universo n ão depende da ou n ão de aparelhos de observa çã o. Johannes Kepler, mesmo depois

presen ça

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mciro, mais numeroso, sã o as estrelas fixas , que se movimentam mantendo um arranjo e uma dist â ncia constante entre si, como se formassem uma esfera envolvendo a Terra que completasse, a cada 24 horas, uma volta em torno do nosso planeta. O outro tipo é constitu ído de astros que realizam um movimento circular ligeiramente mais lento que as estrelas, parecendo percorrer a esfera que elas compõ em. Sã o chamados planetas por seu cará ter “ errante ” ( este é o significado da palavra grega planétes ) . O Sol e a Lua também apresentam esse tipo de movimento, dando uma volta com ¬ pleta na esfera das fixas, respectivamente, a cada 365 dias e um quarto e a cada 28 dias. A linha que percorre a esfera celeste sobre a qual o Sol rea ¬ liza seu movimento circular anual é a eclí ptica . Os demais planetas nunca se afastam dessa linha mais de cinco graus, determinando uma faixa em torno da eclíptica chamada zodí aco , representando a regi ão do cé u onde eles podem ser encontrados. A faixa zodiacal é dividida em doze signos, de trinta graus cada , cujos nomes lati ¬ nos foram extraídos das doze constelações que se encontravam mais ou menos sobre esta faixa : Aries , Taurus, Gemini, Cancer , Leo, Virgo, Libra, Scorpio, Sagittariu, Capricornius, Aquarius e Pisces,8 Mas sua verdadeira localiza ção é determinada pelas po¬ sições que o Sol ocupa durante o ciclo anual das esta ções, de ma ¬

cks observações telescópicas de Galileu que revelaram novas estrelas, invisí ¬ veis a olho nu , ainda acreditava na finitude do universo e na equidistância desses astros em relação à Terra devido às suas convicções religiosas. (Koyré, (1986: 63-89) 8 Embora os termos latinos tenham permanecido uma refer ência funda mental , servindo no português para a formação dos adjetivos (ariano, taurino etc. ) , algumas l ínguas, como a nossa, traduziram a maioria do zod íaco e adaptaram alguns intraduzí veis . Dessa forma, os signos em português são os seguintes: Carneiro, Touro, Gêmeos, Caranguejo, Leão, Virgem, Balança, Es corpi ão, Sagit á rio ( cf . Aurélio, “ armado de arco e flechas” , identificado na astrologia com um ser mitológico representado por um centauro lançando uma flecha) , Capricórnio (segundo a etimologia latina “ o que tem chifres de cabra” , referindo-se a uma cabra com rabo de peixe) , Aquário (termo uti ¬ lizado para denominar o escravo encarregado de transportar baldes d'água) e Peixes. Entretanto, é muito comum manter intraduzidos Áries, Câncer e Libra , acrescidos dos acentos correspondentes à nossa ortografia (é essa no ¬ menclatura que utilizarei por ser a mais usada no universo pesquisado) . ¬

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neira que, a cada uma delas, ele percorre tr ês signos. Devido ao fenômeno da “ precessã o dos equinócios” , tal coincid ê ncia entre signos e constelações nã o mais existe. Este fen ômeno consiste no onde se inicia a eclíptica e onde deslocamento do ponto vernal da primavera • em relação às dia no primeiro o Sol se encontra entre as constelações de Peixes hoje es á constelaçõ . Este ponto est solar em tomo da eclíp¬ o movimento e Aqu á rio. As relações entre e í tica, a localizaçã o dos signos no zod aco o ciclo das estações no hemisf ério norte ( que é também tomado como referência na astro¬ logia praticada ao sul do Equador ) , podem ser vistas na Figura 2. Embora apresente, durante seu percurso em torno da faixa zodiacal, ligeiras variações regulares na sua velocidade, os dois lu ¬ minares se movimentam sempre no sentido contr ário ao da abó¬ bada , do oeste para o leste , ou , tomando por base a representação gr áfica do zod íaco, no sentido anti horá rio. Os planetas, além de apresentarem acelera ções e desacelerações mais bruscas durante suas rotações nesse mesmo sentido, chegam a alter á lo em deter¬ minados momentos. É o que se chama em astrologia de movimento retrógrado. No entanto, mesmo estas alterações se d ão regular¬ mente, o que permitiu aos matem á ticos babilónicos, a partir do século V a .C., começarem a prever as posições planet árias através de funções matem á ticas ( cf . Neugebauer, 1962: 97 138 ) . Podemos perceber que a cosmologia astrológica é composta por v ários ciclos, durante os quais cada planeta d á uma volta com ¬ pleta em torno do zod íaco, e cada carta registra um instante par¬ ticular de cada um desses ciclos. Antes de descrevê los e mostrar sua representaçã o nos mapas astrológicos, gostaria de fazer refe¬ r ê ncia a um deles, que, por sua amplitude, não é representado graficamente. A astrologia considera que o deslocamento do ponto vernal constitui um ciclo, o do grande ano. A cada 28.500 anos solares o ponto vernal dá uma volta completa em torno do Equa¬ dor e volta a seu lugar inicial. De acordo com a constelaçã o que por ele seja ocupada é determinada a era astrológica em que nos encontramos. Por essa descrição, pode se perceber por que se diz que vivemos a passagem da era de Peixes para a de Aqu á rio. Para a astrologia, as consequ ências dessas passagens se relacionam com todo o planeta ; daí n ã o haver sentido em incluí las no mapa indi¬ vidual. Por outro lado , é justamente esta abrangência que torna as eras astrol ógicas o tópico mais conhecido fora da astrologia.





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Os ciclos planet ários sã o dez.9 O do Sol corresponde à passa ¬ gem dos anos e o da Lua à dos meses. Os dos demais planetas apresentam durações diversas. Em cada mapa se encontra repre¬ sentado em que signo e a que grau cada um desses ciclos se en ¬ contra. Existem ainda, em um mapa, outros pontos assinalados que possuem menor import â ncia que os planetas para a interpretaçã o. São os nódulos lunares ( pontos nos quais a órbita da Terra intercepta a da Lua ) , a Lilith ( o di â metro que liga o apogeu e o perigeu lunares ) , associada a uma personagem m ítica da tradiçã o ju ¬ daica, e os chamados pontos á rabes. Por fim , existe em todo mapa uma representação do ciclo diá ¬ rio, causado pela rotação da Terra, que é registrado atrav és das doze casas astrológicas. Como afirmei, os ciclos planet ários n ã o dão voltas em torno da Terra, mas em torno do zodíaco. Este úl ¬ timo, assim como toda a abóbada celeste, aparenta girar em torno da Terra, produzindo a sequê ncia de dias e noites. Assim, é dese ¬ nhado no mapa um eixo para representar a linha do horizonte . O ponto do zodíaco interceptado pela extremidade esquerda dessa linha ( representando o leste ) é o ascendente, enquanto que a opos ¬ ta é o descendente. Esta linha divide o mapa em dois hemisf érios iguais: dos signos que se encontram visíveis e o dos que se encon ¬ tram invisíveis . Um segundo eixo é tra çado ligando os dois pontos nos quais o meridiano que percorre o zénite e os pólos celestes interceptam a ecl íptica . O ponto do zod íaco interceptado na parte noturna é chamado de Fundo do Céu ( ou I.C , Imum Coeli ) , o outro é o Meio do Céu ( ou M . C., Medium Coeli ) , ponto culmi nante do movimento do Sol no dia e local que o mapa representa . A divisão em quatro partes resultantes não é simétrica, pois o â n ¬ gulo formado pelo eixo do ascendente n ão é perpendicular ao do M.C. Esta distorçã o se deve à obliquidade da eclíptica em relaçã o ao Equador . Cada um desses quatro é subdividido em tr ês partes assim étricas , respeitando essa distorçã o. Assim, a divisã o em doze casas se sobrepõe à divisão zodiacal sem nunca se confundir com ela , n ão só devido aos diferentes tamanhos que as primeiras pos¬

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A astrologia antiga e medieval utilizava , evidentemente, apenas os lumi¬ nares e os cinco planetas visíveis. Urano, Netuno e Plutão só mais tarde foram incorporados ao sistema astrológico. 9

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suem, como também à pequena probabilidade de que seus eixos interceptem o zodíaco a exatamente zero grau de algum signo.10 Cada um dos raios que saem do centro do mapa dividindo o em doze segmentos são chamados cúspides. A cúspide representa o início de cada casa numerada pela ordem , a partir do ascendente , em aígarismos romanos. Assim , a cúspide da casa I é o ascendente, a da IX é o M .C., a da VII é o descendente e o I.C. é a cúspide da casa IV ( ver Figura 3 ). A partir do registro em uma carta natal da posição dos plane ¬ tas e das casas em relaçã o ao zodíaco, o astrólogo dispõe de um grande n ú mero de informações para interpretar a personalidade e o destino daquele que nasceu no momento que ela retrata. Utili¬ zando o simbolismo desses elementos, que é dado pelo sistema de classificação astrológico, o int é rprete é capaz de formular ju ízos a partir das combinações dos planetas e casas com os signos que ocupam e destes primeiros entre si. A mais conhecida dessas com ¬ binaçõ es é a determinaçã o do signo solar ( aquele que é ocupado pelo Sol na carta ) e do signo ascendente ( o que é interceptado pela cúspide da casa I ) . Sem d úvida , estes sã o os elementos mais importantes segundo a astrologia na leitura de um mapa . Entretan ¬ to, h á v árias outras informa ções suplementares que n ã o se referem apenas aos outros planetas e casas. A informaçã o obtida através da an álise da posiçã o ocupada pelo Sol pode ser enriquecida se determinarmos que casa ele ocupa . As implicações de se ter um signo no seu ascendente podem ser modificadas, dependendo da presença de planetas na casa I. Há ainda um quarto elemento na interpretaçã o que, ao con ¬ trá rio dos três últimos , n ão pertence propriamente ao sistema clas sificaJ ório, nã o possuindo um simbolismo autónomo: os aspectos. Eles permitem que o simbolismo dos planetas seja combinado quando formam determinados â ngulos. Cada aspecto determina um tipo de relaçã o entre os dois planetas . Os mais utilizados são a

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io A explicação astron ómica mais exata para essa distorção e para a de ¬ termina ção das dimensões das casas pode ser encontrada em Couderc, 1978:

20-1 e 39-40. Toda a minha descrição é baseada no chamado método Placidus, utilizado pela maioria dos astrólogos brasileiros e pela totalidade dos que contactei. Existe um outro método, muito utilizado na Inglaterra, em que, a partir do ascendente, atribuem-se às doze casas trinta graus exatos. Dessa forma, o M.C. nã o coincide com a cú spide da casa X.

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conjunção ( 0o ) , a oposição ( 180° ) , a quadratura (90°) , o trígono ( 120° ) e a sextilha ( 60° ) . Os â ngulos não precisam ser exatos e pode haver uma margem de oito graus para mais ou menos. Esta margem é chamada orb. A única exceção é a sextilha que, como outros aspectos menos importantes n ão citados, tem uma orb menor ( 5o ) . Na Figura 3 por exemplo, h á, entre outras coisas, uma con ¬ junção entre Mercú rio e Marte em Capricórnio, assim como deve¬ ria ser tra çada uma linha ligando J úpiter à Lua, representando a oposição que existe no mapa entre esses dois planetas. Caracteri zarei os aspectos na parte que irei dedicar, logo a seguir, à análise dos planetas. Concluindo, vimos ent ão que, atrav és da carta natal, a astro¬ logia individualiza e engloba ao mesmo tempo cada instante que procura registrar: cada mapa é a interseçã o ú nica de momentos particulares de diversos ciclos que , separadamente, sempre se re¬ petem . Os conjuntos fechados que compõem os três planos da clas¬ signos, casas e planetas sificação astrológica encontram-se presentes em um mapa formando uma combinação singular. Tais combinações constituem a mat éria-prima a partir da qual se dará a divinação astrológica, ou seja, a leitura do mapa. Entretanto, antes de comentar os procedimentos utilizados na sua realizaçã o, é necessá rio compreender a significaçã o de cada um desses ele ¬

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mentos.

A classificação

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Ao estudar se a bibliografia das ciências sociais referentes ao sis¬

tema astrológico, percebe-se que a hipó tese levantada por Durkheim e Mauss , segundo a qual tais sistemas ( no caso desses auto¬ res, o chinês ) podem ser analisados como forma de classificação, foi pouco seguida . Entretanto, isto não se deve à pouca fecundidade dessa proposta, mas é, na verdade, uma consequ ência da divisão do trabalho científico. O projeto abrangente de sociologia formu¬ lado por Durkheim foi incapaz de bloquear o processo de especia ¬ lização das ci ências sociais, no qual coube à antropologia o estudo privilegiado das sociedades primitivas. Embora esse exclusivismo

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venha se enfraquecendo nessas ú ltimas décadas em favor de uma investigação ampla dos fenômenos sócio-culturais, as sociedades históricas tradicionais, acessíveis somente através de fontes escritas e onde se deu o surgimento e o florescimento inicial da astrologia , foram ainda pouco atingidas por esse movimento. A astrologia per¬ maneceu um objeto apenas dos historiadores. Em Lévi-Strauss, provavelmente o autor que procurou desen¬ volver mais sistematicamente as implicações do artigo de Durkheim e Mauss, o privilégio do estudo das sociedades primitivas se arti ¬ cula de uma forma complexa com a sua pretensão de determinar as propriedades do “ espírito humano” . Como ele próprio nos es¬ clarece, ela n ã o se deve a uma propriedade intrínseca desses gru ¬ pos, mas às relações que com eles entretemos; ou seja, à possibili ¬ dade de realizarmos um “ olhar distanciado” que nos permitiria captar os “ ‘fatos de funcionamento geral’ ( . . . ) que t êm a possi ¬ bilidade de serem ‘mais universais’ e de terem ‘mais realidade’ ” ( 1976: 35 ) . Ao afirm á-lo, vemos que esse autor reconhece adotar premeditadamente uma d émarche que enfatiza as diferenças entre as sociedades primitivas e a nossa sociedade para chegar a con ¬ clusões que, inclusive, ambicionam demonstrar a unidade do gê ¬

nero humano. Entretanto, essas teorias têm recebido ultimamente várias cr í¬ ticas do antropólogo responsável pela reinclusã o da astrologia no espectro de interesse das ciências sociais, Jack Goody. Infelizmen te, ela só é evocada em seus livros como um exemplo utilizado em suas cr íticas dirigidas ao antropólogo francês. Goody procura de ¬ monstrar através da astrologia, assim como de outros sistemas de classificação semelhantes, como a atividade classificatória seria um produto do surgimento da escrita , nã o sendo assim típica das so¬ ciedades primitivas, uma vez que eles conheceram uma r á pida ex ¬ pansão com per íodos de rá pida alfabetização ( cf . 1977: 70-73 ) . Alé m disso, acredita que a maior ou menor disseminação dessa mesma escrita seria o fator causal que explicaria a diferença entre o pensamento caracter ístico das sociedades primitivas, qualificado por Lévi-Strauss ( 1962 ) de “ selvagem ” e o das sociedades com ¬ plexas, denominado por ele mesmo de “ domesticado” . Para Goody, essa distinção, tal qual formulada por seu colega francês, oferece¬ ria apenas um binarismo empobrecedor na medida em que, por um lado, não explicaria as causas do fenômeno que descreve e,

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por outro, seria incapaz de perceber as matizes intermediá rias entre os tipos extremos ilustradas, por exemplo, pela astrologia com que trabalha. Boa parte da obra mais recente de Goody cons¬ titui se numa reiteração de sua teoria acerca desse pretenso fator a escrita , cuja disseminação, a longo prazo, condena¬ causal o “ pensamento selvagem ” e seus corolários, ao desaparecimento ria ça na magia ( 1977:149 ). , cren , a exemplo como por Se minhas hipóteses com relaçã o à astrologia estiverem cor ¬ retas, este trabalho se constitui uma refutação dessas teorias, uma vez que procura demonstrar como a astrologia apresenta uma ló¬ gica relativamente semelhante à dos sistemas mágicos encontráveis nas sociedades primitivas e analisadas por Lévi Strauss em La pensée sauvage. Apesar disso, encontraremos a prá tica desse siste ¬ ma em setores da sociedade brasileira com um n ível de escolari ¬ dade relativamente elevado, o que demonstra que a influ ência da escrita n ão possui a radicalidade que Goody lhe atribui. Antes , por ém , de analisar a astrologia a partir do aparato teó¬ rico elaborado por Lévi-Strauss, é necessário examinar a segunda crítica de Goody, segundo a qual este aparato apresentaria um binarismo esquem á tico. Ela é particularmente importante do ponto de vista deste trabalho uma vez que se encontra implícita a idéia de que Lévi-Strauss nã o admitiria a presença do “ pensamento sel¬ vagem” nas sociedades com escrita, justamente aquelas em que en¬ contramos os diferentes “ sistemas astrológicos” , que exigem uma complexa computação numérica dos movimentos planetá rios. Ora , Lévi-Strauss afirma explicitamente que n ã o há uma su ¬ ã cess o nem lógica nem cronológica necessá ria entre os dois tipos de pensamento que ele distingue, como tamb ém não afirma a exis¬ tência pura e simples de duas espécies de sociedades, marcadas cada uma delas por um daqueles tipos. Tal esquematismo talvez esteja presente no interior de uma perspectiva evolueionista 11 que acreditaria haver nas sociedades humanas uma tendê ncia inelut á ¬ vel ao desenvolvimento dos meios de comunicação, que produzi¬



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11 Esta parece ser, por vezes , a perspectiva de Goody, quando, por exem ¬ plo, afirma acreditar que a história humana possui uma direção “ especial ¬ mente nas á reas que t êm sido chamadas de ‘controle sobre a natureza’ e ‘crescimento do conhecimento’ ” . ( 1977 : 151 )

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ria um pensamento cada vez mais “ domesticado” . Já Lévi Strauss considera que existem dois modos distintos de pensamento cientí fico, um e outro função n ão de estágios desiguais do desenvolvimento do espírito humano, mas dois ní veis estratégicos nos quais a natureza se deixa atacar pelo conhecimento cient í fico: um aproximadamente ajustado àquele da percepção e da imaginação e outro decalado, como se as relações neces¬ sárias que constituem o objeto de toda ci ência ( . . . ) pudessem ser atingidas por duas vias diferentes: uma muito próxima da intui ção sensí vel , outra muito afastada . (1962:24)

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Para este autor, em vez de se constituírem em sistemas pré científicos, os esquemas m ágico classificatórios realizariam uma “ ciência do concreto” , que ainda subsistiria hoje nas artes, assim como estava presente nas especulações dos naturalistas e dos her¬ mé ticos da Antiguidade e da Idade Média .12 Nesta análise, estamos adentrando naqueles setores da vida social “ não ainda decifrados e onde, por indiferença ou por impotência, e sem que saibamos mais freqiientemente por quê, o pensamento selvagem continua a prosperar” ( 1962: 290 ) . A reflexão antropológica sobre a astrologia nasce sob a in ¬ flu ência do evolucionismo. Quando um sistema astrológico, o chi ¬ n ês, é descrito pela primeira vez como um sistema classificatório, Durkheim e Mauss lhe atribuem um lugar intermedi á rio na escala evolutiva que teria seu extremo inferior nas sociedades tot êmicas australianas e terminaria nas classifica ções científicas modqrnas. A forma do sistema chinês não seria mais derivada da morfologia social, como ocorria naquelas sociedades, mas seus elementos ainda seriam agrupados em classes e espécies a partir de “ afinidades so¬ ciais” (cf . 1981: 453 ) . Assim, embora deva se louvar o esforço pio¬ neiro desses autores para reconhecer na astrologia uma lógica pró¬ pria , esta seria, para eles, apropriada apenas para uma etapa do desenvolvimento do espírito humano. Seguindo essa perspectiva , a presença da astrologia na sociedade moderna só poderia ser vista como um resíduo irracional ou uma sobrevivência. A hipótese de Lévi-Strauss, segundo a qual tanto o pensamento “ selvagem” quan

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12 Após fazer essa ú ltima refer ência , Lé vi-Strauss faz algumas rápidas ob¬ servações acerca das classificações botâ nicas astrol ógicas da antiguidade . So¬ bre tais classificações, ver Festugi ère, 1981 : 123 -82.

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o mundo da astrologia

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to o científico propriamente dito realizariam através de operações de natureza distintas que n ã o se sucederiam nem lógica nem cro¬ nologicamente, é, portanto, estrat égica para este trabalho: O pensamento m ágico não é um princípio, um começo, um esboço , a parte de um todo ainda não realizado; ele forma um sistema bem articulado, independente, deste ponto de vista, daquele outro sistema que constituirá a ciência (. . .). No lugar, portanto, de opor magia e ciência, seria melhor colocá -las em paralelo, como dois modos de co nhecimento desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos ( . . .) , mas nã o pelo gênero de operações mentais que ambas supõem , e que diferem menos na natureza do que em funçã o dos tipos de fen ô menos aos quais elas se aplicam. (1962:21)

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Dessa forma explorei, paralelamente, os princípios da classi ¬ ficação astrológica e da teoria lévi straussiana, interpretando a pri¬ meira através da segunda , e procurando demonstrar minhas hipó¬ teses sobre o cará ter sistemático e estrutural da astrologia zodiacal.

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a.

Signos : classificação sincrônica

Dos quatro elementos constitutivos da interpretação astrológica , somente os aspectos n ão desempenham nenhum papel em uma clas¬ sificaçã o primá ria. A classificação dos signos é realizada segundo dois crit érios que se complementam: um sincr ônico e outro diacrônico.13 Na pri ¬ meira , os signos se organizam a partir de suas características dife ¬ renciais , sem nenhuma refer ência à temporalidade. Na segunda, cada um se define como uma etapa de um ciclo fechado. A classificação sincrônica os divide em duas categorias que podem ser associadas a certas oposições bin á rias an álogas: positi ¬ vo / negativo, masculino/feminino, ativo/passivo, etc. Esta divisão, por sua vez, se desdobra em uma outra quatern ária, de elementos, com os dois primeiros relacionados ao primeiro pólo das oposi ¬ ções: fogo, ar, á gua e terra. Os signos se distribuem entre esses elementos de acordo com a sua sequência: o primeiro é de fogo, o segundo de terra, o terceiro de ar, o quarto de água e assim su ¬

Esta definição foi elaborada para fins descritivos e não encontrei ne¬ nhuma reflexão a seu respeito em manuais ou cursos de astrologia

13

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sistema astrológico

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cessivamente. Sobrepõe-se a esta uma classificação ternária, segun ¬ do a qual cada signo recebe, também pela ordem , uma dessas três qualidades: cardinal, fixa ou mut á vel . Assim, o zodíaco se cons¬ titui numa combinat ória entre elementos e qualidades, da seguinte forma: Aries : fogo e cardinal Gêmeos : ar e mut á vel Leão: fogo e fixo Libra: ar e cardinal Sagitário: fogo e mutável Aquário: ar e fixo

Touro: terra e fixo Câncer: água e cardinal Virgem : terra e mutá vel Escorpião : água e fixo Capricórnio: terra e cardinal Peixes: á gua e mutá vel

Para determinação do simbolismo de cada signo devem ser somadas as propriedades de seu elemento e de sua qualidade, junto com a posição na classifica ção diacrônica. Gostaria de comentar inicialmente a forma pela qual os elementos s ão utilizados. Nos grupos em que me movi durante a pesquisa, este último critério me pareceu ser privilegiado na definiçã o de cada signo. Assim , se por um lado é bastante comum comentar-se que o signo de uma determinada pessoa é, por exemplo, de fogo ou de á gua, nunca observei, a n ão ser nos casos em que isso foi especificamente per¬ guntado, alguém referir se à qualidade de seu signo. Os quatro elementos foram estabelecidos pela primeira vez na Antiguidade por Empédocles e receberam a caracterização defini¬ tiva na f ísica aristotélica . Eles foram definidos como os quatro componentes simples do mundo sublunar , que compunham toda a matéria nele compreendida . Inicialmente, sua definiçã o é produto de uma combinatória entre quatro qualidades sensíveis que se re¬ ferem à temperatura e à umidade.

-

Seco

Ú mido

Frio

Terra

Água

Quente

Fogo

Ar

Por outro lado, eles també m podem ser organizados em um desdobramento da oposição entre alto e baixo, que se relaciona

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o sistema astroló gico

o mundo da astrologia

com a oposição positivo/ negativo. A f ísica aristotélica atribuía a cada um desses elementos um lugar natural para o qual eles ten¬ deriam a dirigir-se caso nenhuma força lhes fosse aplicada. Os dois secos ocupariam os extremos dessa divisã o. Alto ( + )

X Baixo

(

-)

Água

-

-

-

Terra

A umidade seria, ent ão, um fator subordinado; sua funçã o seria a de temperar tanto o calor quanto o frio, caracterizando os elementos intermediá rios à oposição mais extrema fogo / terra.

Seria in ú til tentar demonstrar qu ã o ultrapassada se encontra f a ísica aristot élica que a astrologia toma por base. Hoje, a quí¬ mica moderna estabelece que o menor constituinte da matéria é o á tomo. Entretanto, embora acredite que a maioria absoluta dos astrólogos se encontra informada sobre essa transformação no campo científico, apenas um dos autores que consultei se refere a essa aparente contradição, não para apont á-la , mas para condenar os astrólogos que, devido a ela , abandonam os quatro elementos, n ão percebendo que eles “ são, de fato, a base do zodíaco e conseqúentemente de toda a astrologia” ( Arroyo, 1985: 100 ) . O pequeno entusiasmo demonstrado pelas descobertas da quí ¬ mica moderna talvez possa ser explicado se concordarmos com Lévi-Strauss e reconhecermos que o pensamento científico e o clas sificatório, trabalhando “ por duas vias diferentes” , s ão heterogé¬ neos entre si. Na verdade, os sistemas de classificação buscam “ a sistematizaçã o no n ível dos dados sensíveis” ,14 aos quais a ciê ncia

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..

Ele termina a frase completando: “ ( .) que ela [a ciência] apenas começa a reintegrar na sua perspectiva.” Freqiientemente, para além das dis¬ tinções entre o pensamento cient ífico e o má gico-ciassificató rio, Lévi Strauss acena com um novo paradigma cient ífico emergente, do qual o estrutura lismo certamente pretenderia fazer parte, que teria a pretensão de recon¬ ciliá-los. Esta quest ão acerca das pretensões ú ltimas do estruturalismo antro ¬ pol ógico não ser á desenvolvida aqui, uma vez que ela n ã o interfere na aná ¬ lise propriamente dita do “ pensamento selvagem ” , sendo ela mais programá tica do que anal ítica. Por outro lado, é ela que justifica o uso por parte de 14

h á muito tempo deu as costas (1962:19 ) . O alto grau de abstra çã o com que trabalha a moderna qu ímica torna a imprópria para servir de base a uma ciência do concreto. A diferença entre os modernos elementos qu ímicos e os qua ¬ tro elementos astrológicos tradicionais reside no fato de que, no primeiro caso, trata se de conceitos, e no segundo, de signos; isto, seguindo a caracterizaçã o que nos dá Lévi Strauss. O primeiro tipo “ se quer integralmente transparente à realidade” e procura liber¬ tar se de qualquer referência aos contextos concretos em que apa ¬ rece , sejam eles linguísticos, hist óricos ou pr á ticos. É evidente que toda ciência se d á num contexto hist órico-cultural específico mas o conceito, como no caso do engenheiro da met áfora l évi straussiana , “ procura sempre abrir uma passagem e situar-se além” ( p. 30 ) . Daí o recurso à linguagem matematizada , que se instau ¬ ra definitivamente com Galileu . O signo, tendo também um poder referencial que lhe permite realizar as classificações , é, ao contr ᬠrio do conceito, “ um ser concreto” ( p . 28 ) , mantendo o pensa¬ mento mítico e mágico “ incrustados nas imagens” ( p. 31 ) . Para demonstrar como essa tese se aplica à distinçã o entre os quatro elementos de Empédocles e os da moderna química, gos¬ taria de fazer uma r ápida evocação da obra de Gaston Bachelard . Seus comentadores costumam distinguir duas vertentes, aparente ¬ mente contraditórias : a epistemologia e o estudo da estética e do imagin á rio, por vezes englobados sob o conceito de “ devaneio” ( rêverie ) . Embora a verdadeira natureza da rela çã o entre esses dois segmentos de sua obra permaneça sendo discutida por eles, devido a mudanças de posições tomadas por esse autor, a ú nica coisa que parece clara é sua exclusão recíproca.15

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Fogo

Ar

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Lé vi -Strauss do termo ciência para os dois tipos de conhecimento, tanto para a do concreto quanto a propriamente dita ; terminologia que nã o uso por obscurecer suas diferenças 15 “ Deve se, portanto, opor ao espírito poético expansivo, o espí rito cient í¬ fico taciturno pelo qual a antipatia prévia é uma sã precaução” (1985:10) . E, num livro posterior , comentando a sua própria obra, ele afirma: “ Se eu devesse resumir uma carreira irregular e laboriosa, marcada por diversos livros, o melhor seria colocá-la sob dois sinais contraditórios, masculino e feminino, do conceito e da imagem Entre o conceito e a imagem, nenhuma síntese.” (1961: 45)

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II 38

o sistema astrológico

o mundo da astrologia

Em sua obra, o “ devaneio” aparece inicialmente como um ini¬ migo do trabalho científico. Em La formation de 1’ espr í t scientifi que, ele surge através da análise das evocações simbólicas, das me ¬ t áforas e analogias das quais deve escapar o “ novo espírito cientí¬ fico” , caracterizado segundo Bachelard por uma abstraçã o e uma matematização ainda mais radicais do que aquelas encontráveis na ciência newtoniana. Entretanto, com um livro publicado tr ês anos mais tarde, Laútréamont , ele começa a analisar a literatura e a perceber que as “ imagens” e “ complexos” que antes eram toma ¬ dos como entraves ao desenvolvimento da ciência determinam a din â mica criativa da atividade poética. Dentro dessa segunda vertente, dedicada à imagística, ocupam um lugar importante os livros que dedicou aos quatro elementos de Emp édocles,16 que chegou a chamar de “ os hormônios da ima ¬ ginação” ( p. 19 ) . Embora ele tenha reconhecido numa obra pos¬ terior ( 1947 ) que o privilégio concedido a essas quatro imagens n ão se tenha revelado metodologicamente correto, esta primeira escolha não deixa de ser reveladora da força de seu simbolismo na cultura ocidental. Essa influência se faz sentir principalmente na literatura “ pré científica ” estudada por Bachelard em sua busca dos obst áculos epistemológicos, em que se inclu íam obras de al ¬ quimistas, que freqiientemente também estudavam a astrologia . No entanto, a escolha dos quatro elementos como ponto de partida para a análise cient ífica da mat éria se mostra inteiramente inadequada do ponto de vista epistemológico. Como já vimos antes, sua defini ção é feita através de impressões sensíveis como o calor e a umidade, impróprias para a linguagem abstrata da ciência mo¬ derna . Num primeiro momento da evolu ção dessa última se in ¬ terpuseram instrumentos de precisão entre o observador e seu obje¬ to. Tais instrumentos permitem a introdu çã o de referências mate ¬ má ticas no processo de investigação. Entretanto, esse empirismo mediatizado, que pode ser ilustrado através de um aforismo de Lord Kevin ( pesar é pensar ; pensar é pesar ) , é ainda excessivamente realista para Bachelard ( 1960:26-7 ) . No racionalismo da nova qu ímica , a teoria sobrepõe-se à pr á tica, n ão recebe suas informa ¬

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Os livros são Psychanalyse du feu (1938) , L’ eau et les rêves (1942) , L’ air et les songes (1943), La terre et les rêveries de la volonté e La terre et les rê veries du repos (ambos de 1948) .

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ções ' passivamente desta última, mas realiza o pró prio real: “ Há mais chances de conhecer o açúcar fabricando açúcares do que analisando um açúcar particular .” ( p, 56 ) O mesmo ocorre na ta ¬ bela periódica dos elementos químicos de Mendeleiev. Nela, “ a lei antecede o fato ( . . ) , a ordem das substâncias se impõe como uma racionalidade” (p. 57 ) , pois, estabelecendo uma sequência de elementos a partir do número atómico crescente, ela permite que se descubram as propriedades químicas de á tomos ainda n ã o de tectados na época de sua formulaçã o, mas que já têm seu lugar definido. Essa tendência conhece sua expressão m áxima com a sín¬ tese dos elementos transurâ nicos, artificiais, na qual a teoria cria o fato. Tivemos acima exemplos do car á ter aberto do conceito tal qual foi definido por Lévi Strauss.17 Se o signo linguístico é, por oposiçã o, fechado, isto se deve a sua descontextualização limitada. Entretanto, é justamente o seu “ pré-constrangimento” ( 1962:29 ) que lhe confere a possibilidade de se desdobrar em uma multipli ¬ cidade de significados. Vale para o signo a afirmação que Bache¬ lard fez em relaçã o à imagem poética: ela é variacional, “ não é como o conceito, constitutiva” ( 1957: 3 ) . O filósofo francês reco ¬ nhece, portanto, sua eficácia no discurso poético. Se ele é incapaz de fazê-lo em se tratando do conhecimento pré-científico, isto se deve ao fato de que sua epistemologia se propõe a seguir a traje¬ t ória da ciê ncia e esta , na sua opini ã o, volta cada vez mais as costas ao concreto.18 Irei ilustrar ent ã o como os quatro elementos, que se mostra¬ riam progressivamente inadequados para uma an álise cient ífica abstrata, tomados enquanto signos ou imagens, conseguem tornarse, através das impressões sensíveis que permitem evocar, uma po¬ derosa matriz classificatória. Libertados da relação substancialista que possuíam por per¬ tencerem à f ísica aristotélica, passaram a ser definidos das formas mais diversas, sempre abrangentes. Isto pode ser percebido quan ¬ do lemos a formulaçã o de Charles E. O . Carter , um dos mais res¬ peitados astr ólogos ingleses deste século, que afirma que eles são

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“ O conceito aparece assim como o operador da abertura do conjunto com o quat se trabalha.” (Lévi-Strauss, 1962: 30) Vemos ai que ele discorda de Lévi-Strauss, cf . nota 15 17

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,1 40

o mundo da astrologia

o sistema astrológico

os “ princípios básicos da astrologia” ( citado em Arroyo, 1985: 100 ) . Arroyo relata as dificuldades de Carter, reproduzindo tre¬ chos do seu An Encyclopaedia of Psychological Astrology :

Greio n ão ser necessá rio repetir que a tipologia dos elementos in ¬ terliga se intimamente com a dos signos a eles associados. Essa tipologia se constrói basicamente a partir do eixo alto / baixo. Os elementos positivos produzem personalidades expansivas e ativas, enquanto que os negativos as produzem receptivas e in ¬

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Os elementos podem ser descritos a partir de diferentes pontos de vista e com abundância de pormenores, mas como é óbvio, está longe de ser f á cil descrever, exemplificar e explicar aquilo que é, nada mais nada menos, do que as leis básicas do sistema solar, se não do universo, (p 100)

trovertidas. O fogo, ocupando um dos extremos do eixo, é mais do que qualquer outro caracterizado pela iniciativa e pelo empreen ¬ dimento. Arroyo afirma que seus signos “ exemplificam a decis ão, a grande f é em si mesmo, o entusiasmo, uma força sem fim e uma honestidade direta” ( 1985:107-8 ) . J á a auto-expressã o dos indiv í ¬ duos marcados pelos signos de ar é menos ardente, mais intelectual , demonstrando um “ desejo de comunicar-se, projetando uma ener ¬ gia de base mental” ( Freeman , 1981: 35 ) Dos elementos receptivos, o mais ú mido, a á gua, é o mais flexível, mais inst ável. Sua passividade não exclui uma reação, que, no entanto, permanece interna e emocional. Os signos desse elemento sã o caracterizados pela “ sensibilidade e suscetibilidade” ( p. 36 ) . Por oposição, os de terra são definidos por sua grande estabilidade, o que pode levar , por vezes, “ a uma estreiteza de pontos de vista, a um apego à ro¬ tina e à ordem” ( Arroyo, 1985:112 ) . Mas o que toma os elementos pontos de partida mais ricos para uma tipologia é a imagística associada a cada um deles. Te ¬ mos aí uma rica ilustraçã o da maneira pela qual os signos classificatórios, nos dois sentidos, permanecem no nível do concreto e do sens ível , oferecendo assim um poder evocativo extremamente poderoso: Sobre o impetuoso fogo:

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Utilizando também uma linguagem paracientífica, Arroyo ten ¬ ta sair dessas dificuldades definindo-as como “ forças vitais ou ” “ campos de energia ” ( p. 140 ) , Nem todos os astrólogos t êm essa preocupação de explicitar epistemologicamente suas premissas. A maioria se limita a definir as propriedades de cada símbolo a par ¬ tir de sua capacidade classificat ória. Mesmo quando são propostas definições alternativas para os elementos que n ã o os tratam sim ¬ plesmente como “ símbolos ou conceitos abstratos” , como se queixa Arroyo, elas são suficientemente abrangentes para que pouca ou nenhuma clareza seja introduzida nesse debate. Na prática, a uti¬ lizaçã o dos elementos é quase sempre simbólica . Eles podem acoplar se a outras classifica ções quatern á rias como àquela mencionada por Goody onde se encontram relacio¬ nadas as associações tradicionais dos elementos aos quatro tempe ramentos galênicos e às quatro estações ( ver Figura 1 ) . As quali ¬ dades sensíveis de temperatura e umidade que mencionei anteriormente estabelecem essa última associaçã o. No quadro, portanto, os elementos funcionam como mediadores entre esses dois extremos, temperamentos e estações, as quais, por sua vez, são relacionadas de acordo com o ciclo solar aos doze signos. Com tal sobreposiçã o de classificações, chega-se a uma correlação entre signos e elemen ¬ tos diferente da tradicional, como parece ter notado Goody pelo coment ário que serve de legenda ao quadro. A utilizaçã o mais frequente dos elementos diz respeito, entre¬ tanto , à determina çã o da personalidade dos indivíduos. Aqui j á temos em jogo classificações secund á rias, uma vez que, através de sua frequência em cada mapa , os indivíduos podem ser relaciona ¬ dos a cada um deles. O elemento do signo solar e o do ascendente são bastante importantes . Assim, os manuais astrológicos nos ofe ¬ recem caracterizações tipológicas de cada um deles, de maneira a definir os paradigmas em torno dos quais cada mapa deve girar .

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Ardentes, de fato, eles [os signos de fogo] proporcionam energia, calor e aquela visão criativa que, por vezes, pode ser vista nas labaredas bruxuleantes ou nas brasas quentes na lareira. Mas o fogo pode tam bém consumir se e reduzir se a cinzas se lhe. deixarem sair do con trole Excitação e uma largueza de visão que abarca todas as possibili dades podem ter um certo glamour, mas os signos de fogo constante ¬ mente se frustram , pois podem nã o ser capazes de trazer suas id éias visioná rias para a realidade. (Freeman, 1981: 34)

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Sobre o intelectual ar : O ar é o meio no qual as coisas vivas respiram , é o meio para trans ¬ portar o som , nenhuma fala poderia ocorrer sem ele, ele conecta todas as coisas ( . . . ) Portanto, aqueles mapas em que um ou mais destes

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o sistema astrológico

o mundo da astrologia signos de ar estã o proeminentes tendem a enfatizar a comunicação de alguma forma Eles sã o propensos ao raciocínio, a investigações inte ¬ lectuais, a trabalhar no dom ínio das idéias Eles gostam de pôr em contato pensamentos, pessoas ou lugares (Hone, 1982 : 39)

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Sobre a emotiva á gua : A água reflete, dissolve, lava, auxilia o crescimento. O mar possui profundezas insond á veis e carrega dele muitas coisas. Ele pode ter um exterior calmo que pode ser ilusório, uma vez que tempestades repen ¬ tinas podem surgir e subcorrentes escondidas podem tragar ( . ) Seus [daqueles que têm signos de água proeminentes em seus mapas] de¬ feitos podem provir do fato de serem “ inst áveis como a á gua ” , muito facilmente tomando se um reflexo da ú ltima pessoa com quem esti¬ veram, muito predispostos para tempestades emocionais, (pp. 39 40)

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Esta l ógica também aparece na relação entre pessoas de sig¬ nos de elementos diferentes, como podemos ver através dessa des¬ crição das relações entre os pragmá ticos indiv íduos de terra e os outros elementos: eles sentem que os signos de ar est ão lá em cima, nas nuvens, brincando í nfantilmente com planos impossíveis e sem valor prático. Também acham que os signos de fogo crestarão a terra, passando tempestuosa ¬ mente pela vida, com demasiada pressa . ( . . . ) Os signos de á gua, por outro lado, partilham suas qualidades de aquisitividade, retentividade e autoproteção. Portanto, a terra acha que a água a refrescará e a tor ¬ nará capaz de ser ainda mais produtiva. ( Arroyo, 1985: 112)

Neste ú ltimo trecho, podemos ver a teoria de Arroyo, segun¬ do a qual signos de uma mesma polaridade, negativos ou positi¬ vos, combinam se mais harmoniosamente entre si do que signos de polaridades opostas

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Meu objetivo, através desses exemplos um pouco extensos, foi ilustrar como na elaboração da tipologia dos elementos as ima¬ gens familiares evocadas permitem a construção de ricas metᬠforas que expressam essa tipologia. Como não se trata de uma exposição exaustiva das classificações astrológicas, aqueles já fa¬ miliarizados com elas poder ã o considerar esta exposição esquem ᬠtica , uma vez que focalizei apenas alguns traços dentro da rica ca ¬ racterização de cada um desses elementos. Assim , por exemplo, talvez tenha ficado uma impressão exagerada da rigidez dos indi¬ víduos de signos de terra, mas essa postura pode ser salutar, uma vez que, como afirma Freeman, “ todo crescimento f ísico necessi ¬

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ta de raízes ( . . . ) . A aventura da semente sob a terra começ ando a germinar é um dos mais estimulantes e criativos atos da natu¬ reza.” ( p. 35 ) Os elementos, permanecendo nesse n ível concreto, sensível, realizam um papel sint ético englobador que lhes é exigido pelo

procedimento classificatório. Ê importante deixar claro, no entan ¬ to, como farei mais sistematicamente adiante, que esse poder sim ¬ bólico n ã o é simplesmente uma propriedade intrínseca de cada um deles, que determinaria de maneira inequívoca sua utilização. As três qualidades n ã o possuem um poder evocativo tão po¬ deroso; mesmo assim , devem ser igualmente levadas em conta na caracterização de cada signo. Os signos cardinais fixos e mut áveis definem-se por representarem , respectivamente, o início, o meio e o fim de cada estação. Assim, o comportamento dos signos de cada uma dessas qualidades é o de, pela ordem : iniciar uma a ção, estabilizar o que foi realizado e alterar o que foi estabilizado (Ri ¬ beiro, 1986: 44 ) ; aliás , como as próprias denominações j á evo¬ cam. Pela sua sequ ência lógica, a classificação das qualidades est á mais relacionada à diacrônica.

b

Signos : classificação diacrônica

sistemas classificatórios primiti¬ no qual retorna a antiga quest ã o a argumenta ção de Totemismo revista a bibliografia cl ássica so¬ bre o assunto, procura dissolver a chamada “ ilusão totêmica” , que toma como uma instituiçã o autónoma um caso particular do fen ô¬ meno classificat ório e , ao fazê-lo, se encontra em terríveis dificul¬ dades para defini-lo de forma precisa.19 Entretanto, esta dissolu ¬ çã o deixa, como ele próprio reconhece, um resíduo: qual o moti

A incursã o de Lé vi-Strauss nos vos foi precedida de um volume do totemismo. Nã o cabe relatar hoje, onde o autor, passando em

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Em La pensée sauvage, Lévi Strauss resume suas conclusões acerca da pretensa instituiçã o totêmica , afirmando que “ n ós não estamos tratando com uma instituiçã o autónoma, defin ível por propriedades distintivas e t ípicas de certas regiões do mundo e de certas formas de civilização, mas com um modus operandi encontr á vel mesmo sob estruturas sociais tradicionalmente definidas em oposição diametral com o totemismo. ” (p. 172) 19

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o mundo da astrologia

o

vo da preferência manifestada pelas sociedades primitivas em to¬ mar como base para suas classificações as espécies naturais? É a resposta a esta quest ão que lhe permitirá clarificar a originalidade de suas novas respostas. Após criticar as explicações funcionalistas, que supõem uma rela ção afetiva entre os totens e os grupos, Lévi Strauss deixa clara sua crenç a de que a interpretaçã o do totemismo só pode ser obti ¬ da através do intelecto. Como já havia deixado claro em sua intro¬ dução, a prefer ência pelo mundo animal e vegetal na construção dos sistemas classificat órios se deve ao fato de que eles “ propõem ao homem um m éfodo de pensamento’’ ( 1980: 104 ) . Eles ofere¬ cem um paradigma a partir do qual os homens podem simbolizar suas relações sociais. É fundamental esclarecer que, antes de for¬ mular essa hipótese, foi necessá rio para ele descartar a teoria durkheimiana que buscava na morfologia social a origem para a forma assumida pelos sistemas classificat órios. A capacidade de es¬ tabelecer oposiçõ es c relações metaf óricas e metonímicas é defini ¬ dora do espírito humano e da sua faculdade de simbolização. Dian ¬ te do projeto da Escola Sociológica Francesa de buscar uma teo ¬ ria sociológica do simbolismo, Lévi Strauss afirma a necessidade de se realizar o oposto: “ procurar uma origem simbólica da socie ¬ dade” ( 1974: 12 ). No entanto, é importante saber que o modelo metaf órico ofe ¬ recido pelas espécies naturais não as torna, necessariamente, um ponto de partida ú nico para os sistemas classificatórios a que elas pertencem . Entre os grupos e indiv íduos concretos e os princípios mais englobadores, elas podem ocupar um papel mediador, uma vez que cada espécie apresenta uma distintividade em relação à s demais e uma generalidade que abarca todas as suas manifestações concretas.20 Referi-me anteriormente a três civilizações antigas que cons¬ truíram um simbolismo astrológico de forma complexa com os seus sistemas de classificação. Elas foram as ú nicas que desenvolveram

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20 “ No fim das contas, se as tipologias zoológicas e botânicas sã o utili ¬ zadas mais frequentemente e rnais habí tualmente que as outras, isto apenas se d á em razão de sua posição intermediária , a igual dist ância lógica entre as formas extremas de classificação, categóricas e singulares.” (Lévi-Strauss, 1962: 179 80)

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sistema

astrol ógico

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uma astronomia original. A an álise em separado que realizo do sis¬ tema zodiacal se deve a uma autonomização histórica procedida a partir de sua absorção pelo helenismo. Assim, podemos repetir uma pergunta semelhante àquela feita por Lévi Strauss: que ca raeterísticas particulares dos movimentos celestes os fazem “ bons para pensar” ? Se me for permitido formular uma hipótese a par ¬ tir de dados extraídos da bibliografia referente à Mesopot âmia e ao helenismo, postularei que uma forte razão foi a descoberta da grande regularidade apresentada por esses movimentos e sua rela¬ tiva sincronia em relação aos ciclos naturais. Como mostra o his¬ toriador Franz Cumont, a teologia caldaiea estabeleceu que esses movimentos seriam uma representação palpável da “ necessidade” , o princípio que comandaria os próprios deuses, identificados aos planetas” ( 1960:17 ) . Estes ú ltimos eram chamados de “ int érpre¬ tes” , pois, através de seu movimento , “ acima de toda a ordem , tornam manifestas para o homem as intenções dos deuses” ( p. 20 ). Num poema latino composto no século I de nossa era que expõe os princípios da astrologia da época, pode-se ver também a ênfase na regularidade celeste e na sua capacidade de nos revelar a Divindade e seus propósitos.

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Neste vasto universo nada é tão surpreendente quanto sua uniformi ¬ dade e ordem constante que aí regula todas as atividades ; o n ú mero de regiões n ã o causa nenhuma confusão, nada se desloca ; os movi ¬ mentos não se adiantam nunca , jamais eles se atrasam ; n ão mudam nunca de direção. Pode-se conceber uma m áquina mais perfeita em suas atividades, mais uniforme em seus efeitos? Na minha opinião, não penso que seja possível demonstrar com maior evidência que o mundo é governado por um poder divino, que ele próprio é Deus ( . ) (Malinus, 1974:49)

..

Quando descrevi a cosmologia astrológica, tentei mostrar como cada signo representa uma etapa do ciclo anual. Os demais ciclos astrológicos se definem, na classificação diacrônica, através dessa homologia. Nela , o significado dos signos é dado por sua po¬ sição numa sequ ência cíclica e fechada, poré m irreversível , ou seja , que se d á sempre numa ú nica direção. Cada signo pode representar, por exemplo, cada etapa no ciclo de germinação, crescimento, colheita e plantação dos vege ¬ tais ( cf . Arroyo, 1985: 54 5 ) No entanto, o poder significativo da classificação diacrônica se expressa mais facilmente ao deter¬ minar o ciclo da vida individual. Na Figura 1, podemo» perceber

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o sistema astrol ó gico

o mundo da astrologia

como o grupo de três signos, relacionados às quatro estações, pu ¬ deram expressar as fases de crescimento de um indivíduo. Além disso, é muito utilizado o desdobramento dessa divisão em doze, de forma a representar fases de um processo de auto-aperfeiçoa ¬ mento, seja ele dado em um nível espiritual ou , como se torna cada vez mais comum hoje em dia, psicológico. Darei agora uma caracterização esquemática de cada signo, mostrando como a convergência das duas classificações tenta pro¬ duzir um retrato coerente que, embora se aplique a uma gama va¬ riada de coisas, busca principalmente uma tipologia da personali¬ dade. Como ficará mais claro no item c, os traços atribuídos a cada um deles representam apenas tend ências que quase sempre estariam presentes em seus nativos, mas que poderiam ser usadas “ positivamente” ou não. Assim, cada tipificação encerra-se com um possível defeito encontrá vel em cada signo. A partir do sétimo signo, procurarei também mostrar como a astrologia atribui aos signos que ocupam posições opostas no círculo zodiacal características que seriam analogicamente opostas. Aries : o primeiro signo , marca o impulso vital inicial que so¬ mado ao elemento fogo e à qualidade cardinal, propicia uma per ¬ sonalidade agressiva, impulsiva. Costuma-se dizer que os arianos seriam aqueles que sempre iniciam as coisas sem pensar, por vezes ,

nas

consequências.

Touro: primeiro signo de terra e fixo, representando a conso¬ çã lida o do esforço criativo do signo anterior. Se Áries seria puro impulso , Touro seria pura acumulação. Os taurinos são todos co¬ modistas e sua vontade acumulativa se manifesta de diversas for¬ mas, ou engordando, ou fazendo coleções etc. Gêmeos: segundo impulso para a exterioridade, n ão mais buscando afirmação, mas comunicação, enquanto signo de ar. O geminiano é qualificado como muito curioso e falante, embora te ¬ nha dificuldade de se concentrar em alguma coisa, como mostra sua qualidade mutável. Câ ncer: sua cardinalidade lhe daria uma iniciativa que, entre¬ tanto, permaneceria interna devido à sua polaridade negativa. Mar ¬ cado pela água , seria um signo de vida emocional muito rica, re ¬ lacionando-se às emoções primeiras, ligadas à maternidade. Os cancerianos seriam, portanto, maternais, podendo at é exagerar nes¬ te traço. i

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Leão: a auto-expressão de fogo ganha um cará ter fixo, ou seja, passaria a estar centrada sobre si mesma. Após os primeiros contatos com o ambiente, tanto intelectuais quanto emocionais, rea ¬ lizados nos signos anteriores, em Le ã o se realizaria a auto-afirma ¬ ção da individualidade. Os leoninos típicos seriam generosos, or ¬ gulhosos, porém, por vezes, egocêntricos. Virgem: depois da definiçã o do Eu, passa-se à fase da distin ¬ ção dos limites e da organização do mundo que o cerca. É o virginiano que realizaria essa tarefa. Sua praticidade terrena lidaria com uma grande variedade de objetos, pois é mut á vel. Suas preo¬ cupa ções s ã o a organização e a limpeza . Seriam pessoas metódicas, críticas e, muitas vezes, céticas. Libra: neste signo de ar , o Eu j á inicia seu contato com o Outro e esta iniciativa é a expressã o de sua cardinalidade. É o signo da intersubjetividade, do equilíbrio e do consenso. Dessa forma, suas qualidades poderiam degenerar numa incapacidade de se autoafirmar perante os outros, com os quais ele, como signo de ar, es¬ taria sempre preocupado em manter contato. Pode enfrentar o pro¬ blema oposto do signo que ocupa o outro lado do zod íaco, Áries. Escorpião: onde as emoções de água , devido à qualidade fixa , se encontram mais sob controle. Elas não diminuem, mas o escor piano adquiriria uma grande capacidade de compreender o interior dos outros ou se fundir emocionalmente com eles. Na sequência dos signos, é a etapa de profundas transformações interiores. Os escorpianos seriam extremamente insinuantes, mas seu poder, ao contrário do dos taurinos, quase sempre pacíficos, pode se tomar perigoso. Sagit ário: o impulso de fogo amplia seu espectro de ação, pois torna-se mutável . Neste signo haveria um desejo de expansão em direção a domínios amplos, aos ideais, à religiã o, ao conheci¬ mento. Esta expansão foi tornada possível pelas mutações internas propiciadas pelo signo anterior e daria sentido aos interesses dis¬ persos dos geminianos. Os sagitarianos caracterizam se pelo oti ¬ mismo e curiosidade intelectual, o que nem sempre os impede de assumir uma atitude fan á tica em relação aos seus valores que tanto prezam . Capricórnio: aqui, a terra toma se cardinal, a praticidade ga ¬ nha um sentido empreendedor, há um esforço de concretizar os ideais da etapa anterior. Se os cancerianos estariam voltados para o passado, para suas lembranças, o capricomiano se voltaria para

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o mundo da astrologia

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o futuro. Ele é tido como ambicioso, responsável, mas poderia de monstrar uma certa rigidez que o tornar á inflexível e autoritário. Aqu ário: é o último signo de ar e, dessa vez, fixo. Sua von tade de conhecimento e contato se concentraria mais, permitindo lhe, entretanto, abranger um domínio maior. O aquariano se preo¬ cuparia com a humanidade e seu futuro, ao contrário do leonino, autocentrado. Mas sua busca pela novidade e liberdade poderia tomá lo excêntrico e revoltado. Peixes: depois de iniciado por um impulso individualizador , o ciclo se fecha com um signo de água e mut ável , dois traços de imprecisã o e dissolvência . O pisciano seria aquele que procura a totalidade, ao contrário de seu oposto, o virginiano, que se preo¬ cupa com os detalhes. Isso pode levá-la à religião e ao misticis¬ mo, mas sua dificuldade em perceber os limites das coisas pode constituir um processo de fuga da realidade. Esta é então , esquematicamente, a classificação diacrônica em sua articulação com a sincrônica. Apresentei uma tipificação muito resumida de cada signo, procurando demonstrar sua relação com cada uma delas. Tal conjugação de princípios classificatórios, en¬ tretanto, possibilita uma caracterização muito mais rica. Isto po¬ der á ser verificado pela leitura de qualquer manual de astrologia , onde são també m, por vezes, fornecidas as classificações primá ¬ rias de metais, cores, partes do corpo etc., cada um deles associa ¬ do a um signo . Ilustrando com alguns exemplos da Figura 1, po¬ de se demonstrar como os padrões de personalidade se relacionam com essas classificações: assim, o pescoço tem como funçã o man ¬ ter a estabilidade, tra ço característico dos nativos de Touro, en ¬ quanto que os pés suportam todo o peso do corpo, simbolizando o esp í rito de auto-sacrif ício presente em muitos piscianos ( cf . Ho¬ ne, 1980: 53. e 84 ) . A isto deve ser somado o fato de que, para a astrologia, ningu ém se enquadra exclusivamente em nenhum desses tipos, já que a carta natal de cada indivíduo possui traços de di ¬

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versos signos.

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Casas astrol ó gicas

Uma vez que as doze casas representam um ciclo, o diário, deri¬ vado dos ciclos zodiacais, sua simbologia provém desses últimos. Isto lhe confere uma posição hierarquicamente inferior dentro da

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interpretação de um mapa. Enquanto o zod íaco constrói uma ma ¬ triz simbólica englobante, a partir da qual todos os demais ele¬ mentos serão interpretados, as casas se referem especificamente às diferentes á reas da vida prá tica do indivíduo. A atribuição dessas á reas a cada casa se define por analogia ao signo correspondente. Assim, a casa II se relaciona com a simbologia de Touro, o se¬ gundo signo. Ela se refere aos bens materiais, á rea em que a acumu ¬ lação, que é uma propriedade taurina, pode se manifestar no indi¬ víduo. Entretanto, em uma carta particular, a c ú spide da casa II pode estar em G ê meos. Isto significa que o dono deste mapa lida com seus bens e valores geminianamente, ou seja, de uma forma dúbia e dispersa. A utilização das casas astrológicas foi introduzida na astrolo¬ gia no per íodo medieval. Na antiguidade, talvez pela impossibili¬ dade de registrar seus deslocamentos, os mais r ápidos da cosmo¬ logia astrológica , elas n ão eram levadas em conta . Os processos matem á ticos que permitiram seu cálculo foram criados por astró logos á rabes e, quando Ptolomeu se refere a “ casas astrológicas” , ele utiliza este termo como um sinónimo de signos ( cf . Tucker, 1981: 66 ) . No seu Tetrabiblos, o astrónomo alexandrino relacio¬ nava esse ciclo a uma divisão quatern ária formada pelos eixos q unem o Meio e o Fundo do Céu e o descendente ( por ele chama ¬ do de Ocidente ) e o ascendente ( chamado de Horóscopo ) . A dis¬ tribuição dos planetas entre essas quatro regiões era muito impor ¬ tante no sistema ptolomaico que, nesse aspecto, não será objete de minha análise, já que tais teorias foram abandonadas pela as¬ ¬

trologia.

Por ém , o horóscopo ou signo ascendente era um dos mais im ¬ portantes na interpretação desse sistema. Hoje, n ã o só sua c úspi ¬ de, mas toda a casa I ocupa um lugar proeminente na interpreta ¬ ção, assim como as chamadas casas angulares ( IV, VII e IX ) . Em manuais antigos havia uma tend ência a dizer-se que os planetas ocupando casas sucedentes ( II, V, VII e XI ) e cadentes ( III , VI , IX e XII ) teriam menos “ força” . Os manuais mais modernos pro¬ curam relacionar esses três tipos às três qualidades , buscando mos¬ trar que n ão se deve atribuir um privilégio arbitr á rio às casas an ¬ gulares; este se relaciona, na verdade, à iniciativa que caracteriza os signos cardinais com os quais pogsui analogia . O ascendente é a única casa que continua ocupando um papel nitidamente supe ¬ rior ao das demais, conjugando se com o Sol para determinar os

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o mundo da astrologia

dois signos que definem os traços principais da personalidade de uma pessoa. Essa importâ ncia pode ser também atribu ída à sua analogia com Áríes, signo da individualidade e da expressão. Em seguida , apresento as á reas “ regidas” por cada uma das demais casas e sua rela ção com o signo homólogo.



Casa II: os bens materiais, os valores Touro se relaciona com a acumulação. Casa III: os irm ã os, os vizinhos, os primeiros estudos G ê meos é o momento dos primeiros contatos com o ambiente. Casa IV: a m ãe, a casa, as ra ízes Câ ncer est á ligado às origens





e ao passado. Casa V: os prazeres, os filhos Leão se relaciona com o bem estar do indiv íduo e sua perpetua ção. Casa VI: a sa ú de, o trabalho se a sa úde parece ter uma rela ¬ çã o mais óbvia com Virgem , é no trabalho que se d á , basica ¬ mente, a relação prá tica com o outro. Casa VII: casamento, as uni ões Libra expressa o contato com o outro quando revestido de um aspecto igualit á rio, equilibrado. Casa VIII: a morte , o sexo, as heranças todos estes fatos apa ¬ rentemente d íspares se relacionam com Escorpião: a trans¬ formaçã o, os sentimentos profundos e o domínio sobre as emoções e valores dos outros. Casa IX: a religião, os altos estudos, as longas viagens temas relacionados à expansividade de Sagit á rio. Casa X: a carreira, as realizações se o trabalho enquanto ro¬ tina diá ria se relaciona com a VI, no seu aspecto de proje¬ ção pessoa ] é regido pela X. As pessoas de Capricórnio com frequ ê ncia sã o classificadas como ambiciosas. Casa XI: as amizades, os interesses expressam as curiosidades de Aqu á rio. Casa XII: os sacrif ícios, a interioridade, os inimigos expres¬ sando Peixes , esta casa sempre representa a submiss ão da in ¬ dividualidade, a expressão do oculto.





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Antes de prosseguir, gostaria de voltar às teorias lévi-straussianas para , mais uma vez, ilustrá -las.

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Ao decidir-se por uma interpretação não-intelectualista das classifica ções totêmicas, Lé vi-Strauss segue a segunda teoria de Radcliffe-Brown , que postulava a exist ência de relações metaf óri¬ cas entre as unidades sociais e as espécies que as representam. No entanto, embora a exposiçã o das an á lises do antropólogo inglês já nos indiquem isto, não alerta para o perigo de se postular simples relações de homologia termo a termo. A an álise que empreende do simbolismo do falcã o e da gralha para as tribos do rio Darling, na Austrália, nos mostra que esses animais são representados en ¬ quanto aspectos de uma oposição. A metáfora, portanto, n ão se estabelece entre cada grupo e cada espécie, mas entre as relações que organizam as séries social e bioló gica. Lévi-Strauss se apóia nas suas teorias sobre o cará ter estrutural do pensamento simbóli¬ co para afirmar que contrar íamente ao que Radcliffe - Brown ainda se inclina a crer, é esta a l ógica das oposições e das correlações , das exclusões e das inclusões, das compatibilidades e das incompatibilidades que explica as leis da associa ção, e não o contrário ( .) (1980: 166)

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Para a an á lise estruturalista , não h á uma correlação un ívoca entre o significado e seu significante, ou seja, entre o grupo repre¬ sentado e a espécie que o classifica. Tentando precisar uma inter ¬ pretação excessivamente literal das formulações de Saussure, LéviStrauss, em textos anteriores, já havia tentado deixar claro que esta relação não é motivada a priori , mas o é a posteriori ( 1958: 105 ) . Isso significa que a rela ção entre os termos n ã o é nem t ã o frouxa como postula Durkheim , quando afirma o car á ter pura¬ mente emblem ático do animal tot ê. nico ( Lévi-Strauss, 1980 : 142 ) , nem t ã o í rgida como na teoria junguiana dos arquétipos ( critica ¬ da em vá rios momentos de sua obra , particularmente em 1962: 88) . O método estrutural privilegia, portanto, de duas formas as relações em preju ízo dos elementos de um sistema: é nelas que se encontra o aspecto universal desse sistema e a produção do senti¬ do de cada elemento. Antes de passar às classificações planet árias gostaria de analisar aspectos já descritos à luz dessas conclusões. Os quatro elementos , por exemplo,, muitas vezes são tratados como “ arqu étipos universais” , devido a seu car á ter central na cos¬ mologia ocidental. Arroyo se esforça para prová-lo, e, em respos¬ ta à presença de cinco elementos nas classificações chinesas, ele

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o mundo da astrologia

menciona o é ter como o quinto elemento componente do sistema ocidental que permite fazer a transposição entre esses dois ( 1985: 102 ) . No entanto, na f ísica de Aristóteles, o éter é qualitativamen ¬ te diferente dos outros quatro, segundo as cosmologias antiga e medieval. Ao contrário do que ocorre com os cinco elementos chineses, ele se encontra em um outro plano em relação aos de¬ mais. Al ém disso, a astrologia seleciona apenas alguns dos signi ¬ ficados que lhe podem ser atribuídos para articulá-los num siste ¬ ma que opõe suas qualidades sensíveis. As evocações poéticas pro¬ vocadas por esses quatro, que Bachelard se dedicou a colher, trans¬ cendem aquelas que a astrologia lhes atribui, uma vez que estas ú ltimas são motivadas pela estrutura do conjunto. Na medida em que os elementos são utilizados para classifi ¬ car determinados tipos de personalidade, é comum atribuir-se a cada um deles as faculdades do ser humano, que, embora presen ¬ tes em todos os indiv íduos , conheceriam maior ou menor desen ¬ volvimento em cada pessoa. Assim , o fogo é associado à vontade, à auto afirmaçã o ; o ar, à inteligência , ao racioc ínio abstrato ; a água, à emoção; e a terra, à percepção sensível, ao raciocínio pr á ¬ tico e aos aspectos corporais do comportamento. Este esquema amplo e impreciso é bastante disseminado. Mas. à medida que de ¬ terminados astrólogos procuram defini-los com maior exatid ão, po¬ demos perceber formulações diferentes. Aqueles que seguem uma abordagem junguiana , comumente associam os elementos às quatro “ funções ectopsíquicas” ( Ribei¬ ro, 1976: 36 ) :

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Por mais conciso que eu procurasse ser, seria, sem d úvida , impos¬ sível tentar resumir a trajetória da semiologia ocidental, assim como descrever as suas várias “ teorias do símbolo” . Esta última expressã o é a tradução do título original francês de um livro de Tzvetan Todorov ( 1972 ) , que distingue v árias tradições particula¬ res na Antiguidade que encontrara, no seu entender, uma síntese na obra de S, Agostinho. Enquanto tal, esta ú ltima representaria o “ nascimento da semiótica ocidental ” , título de seu primeiro ca¬ pí tulo. Uma dessas tradições , denominada pelo autor como “ her¬ menêutica” , poderia ser diretamente relacionada à astrologia an¬ tiga . Ela seria abundante e multiforme uma vez que O próprio reconhecimento de seu objeto parece ter sido adquirido a partir do fim da Antiguidade, dando se apenas sob a forma de uma oposi ção entre dois regimes de linguagem , direto e indireto, claro e obscuro, logos e mythos , e, em consequência, entre dois modos de re ¬ cepção, compreensã o para um, interpreta ção para outro. ( p 28)

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Como vemos, desde a Antiguidade, já se encontra estabeleci¬ da a necessidade de que certos conteúdos n ão devam receber a compreensã o literal pela qual se procede a comunicação cotidiana mente; eles ganham, nesse sentido, a caracterizaçã o de simbóli¬ cos. Para estes últimos, estabelecem-se certos procedimentos exe¬ géticos que se dividem, em resumo, em duas séries, “ bem afasta¬ das uma da outra” , para Todorov: o coment ário de textos, prinripalmente de Homero e da Bíblia, e a divinação, nas formas mais variadas que conheceu na Antiguidade. Lamentavelmente, o texto de Todorov nos dá poucas infor¬ mações sobre esta rica tradição. Mas creio que , dando prossegui ¬ mento à observação que fiz em momentos anteriores deste traba¬ lho, algumas hipó teses podem ser levantadas acerca de seu flores¬ cimento na “ mais alta Antiguidade” , exatamente o período da in-

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n ão é apenas um dado de teóricos limitados a uma audiência universi ¬ t á ria. Ela constitui frequentemente um fenô meno cultural, uma teoria os Ocidentais ou os Ndembu, por exemplo consciente que os nativos possuem de seu pr óprio simbolismo . Esta teoria ind ígena retroage sobre a própria pr á tica simbólica . Ela define como sí mbolos certos ¬ elementos manipuláveis Ela leva ao desenvolvimento exegético do sim , ( p. 60) çõ ó licas simb configura es de formas certas bolismo Ela privilegia



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mum com a ideologia moderna, que também realiza esse tipo de 1 elaboração, por exemplo, na estética ou na psicanálise.

símbolo é definida diferentemente, o que leva Sperber a propor ítica que a desenvolvida por para ela o mesmo tipo de análise cr Needahn acerca da crença ( p. 61 ) , que foi resumida aqui ante riormente. Num segundo plano, Sperber discute teoricamente o cará ter arbitrá rio do que ele chama de ilus ão semiológica, ou seja, da idéia, defendida pela semiologia e pela psican álise, segundo a qual o simbolismo se constituiria em mensagens interpret áveis univoca¬ mente. Tais teorias pecariam por atribuir-lhes formas e significa¬ dos, em ú ltima an á lise, arbitr ários, diante da multiplicidade de manifestações possíveis do simbolismo e de sua polissemia. O es truturalismo representaria a culmin â ncia dessa tradição, mas, ao mesmo tempo, marcaria, para Sperber, seu fim. Esse autor discor¬ da, nesse sentido, da interpretaçã o semiológica que Lévi-Strauss apresenta de sua própria obra, mostrando, por exemplo, que para ela os mitos n ão cont êm mensagens, mas sã o, na realidade, meca¬ nismos cognitivos. Assim, os métodos que cada cultura possui para a “ interpretaçã o” dos símbolos constituem um elemento a mais do seu simbolismo que deve ser inclu ído na an álise global deste últi¬ mo, contribuindo para construí-lo. Dessa forma, a ilusão semio¬ lógica



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o mundo da astrologia

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A astrologia , embora com ênfases diferentes em cada contex¬ to, sempre supôs a idéia de símbolo, tendo formas de exegese im¬ plícitas a seu simbolismo. Os planetas e suas posiçõ es são organi¬ zados num sistema que permite sua interpretação do ponto de vista divinatório. Entretanto, como vá rios astrólogos reconhecem, tal exegese nunca é inequívoca. A única coisa que permanece cons¬ tante no sistema é a sua estrutura, uma vez que sua significação última é objeto de debates, variando nos diferentes contextos cultu¬ rais em que ele é utilizado. Ao mesmo tempo, na elaboração cons¬ ciente de seu simbolismo, a astrologia encontra um terreno co

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í Para um resumo das teorias estéticas do Romantismo, que se caracter : , 1972 Todorov ver , mbolo s í de do çã conceito o valoriza pela justamente zam pp . 285 op 321 cit , . , ver Freud 179-259. Sobre as teorias do simbolismo em e Sperber, 1974 : 46-58. 1

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o mundo da astrologia

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trodução dos cultos orientais no mundo romano, do sincretismo religioso e do surgimento do cristianismo. Sem d úvida, a prática da divinação muitas vezes inclui uma elaboração consciente do seu cará ter simbólico, uma vez que ela representa a interpretaçã o de determinados sinais definidos, requerendo do seu exegeta certas características específicas, que, como venho propondo, podem ser ideal tipicamente de natureza tradicional, carism á tica ou racional . O or áculo de Delfos, por exemplo, representava um caso que com ¬ ísticas, uma vez que os sacer¬ binava essas duas primeiras caracter dotes interpretavam o discurso confuso de uma pitonisa em transe ( cf . Conteneau, 1951:139 ) . Segundo Heráclito, este oráculo “ n ão diz nada nem esconde nada, mas sim significa” ( citado em Todorov, 1972: 28 ) . Mas as principais reflexões sobre esse assunto per¬ tencem a um período posterior, o dos autores citados por Todorov , como Plutarco, de onde é extra ído esse fragmento do filósofo présocrático. Ora, esse período é caracterizado por dois traços que atingem o seu á pice na modernidade: a fragmentação social e a convivência de tradições culturais distintas . O livro de Veyne ( 1983 ) nada mais é do que a descrição de todas as estrat égias de interpre ¬ tação dos mitos gregos, desenvolvidas por filósofos e historiadores como um reflexo dos “ programmes de vérité” distintos utilizados por estes intelectuais em relação às massas, que os tomavam de forma literal. A exegese de textos sagrados conhecer á seu á pice com o sis¬ tema agostiniano, que ser á por v ários séculos a base do cristianis¬ mo ocidental. Essa religião nasce em meio à proliferação dos mis ticismos orientais e do neoplatonismo, absorvendo influ ências dessas duas manifesta ções . Por exemplo, a data escolhida para o nasci ¬ mento de Cristo corresponde às festas pagãs pelo solst ício de in ¬ verno, representado como o renascimento do Sol , assim como v á ¬ rias dessas festas foram associadas a santos cristãos e incorpora ¬ das ao calend á rio católico ( cf . Thomas, 1973: 54 ) . Ao mesmo tempo, colocava-se para a religi ã o nascente a necessidade de se conciliar com os preceitos da tradição judaica, à qual ela se filia¬ va. Para tanto, ser ão importantes as hipóteses do neoplatônico judeu Filon de Alexandria, que propunha a interpretação alegórica das escrituras, o que facilitava sua tentativa de assimilação da tradi çã o judaica à filosofia grega (cf . Mondolfo, 1973:179 80 ) . Outro neo¬ plat ô nico, Plotino, irá fornecer uma das primeiras formulações de que temos registro, que define a astrologia claramente como ba-

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scada numa relação simbólica , analógica, entre os movimentos ce¬ lestes e o homem: Devemos dizer que o movimento das estrelas existe para a preservação do universo, mas que elas desempenham também outro serviço; este é que aqueles que sabem como ler este tipo de escrito podem , olhandoas como se fossem letras, ler o futuro em seU 3 padrões, descobrindo o que est á significado pelo uso sistem á tico da analogia. (Citado por Long, 1982: 186)

Santo Agostinho, apesar de sua atitude hostil para com as formas de divinação, é fortemente influenciado pelo neoplatonis¬ mo, o que fica claro quando notamos, por exemplo, que ele toma o mundo material sensível enquanto um símbolo que, “ de modo vago e imperfeito, reflete algo do esplendor e da Glória de Deus” ( Koyré, 1983: 33 ) . Essa influ ência também est á presente na tradi¬ ção ocultista que associa um ecletismo caracterizado pela assimi¬ lação de tradições religiosas distintas da crist ã , como a hermética e a judaica, presente na cabala. Vemos assim que a noção de sím ¬ bolo surge no Ocidente extremamente ligada à interpretação de sistemas divinatórios e à busca de uma coerência interna a conjun ¬ tos religiosos sincréticos. As concepções neoplatônicas entram em declínio com a revo¬ luçã o cient ífica, geometrizando e matematizando a natureza, cujo aspecto qualitativo passa a ser ofuscado, Nesse sentido, se poderia dizer que a passagem da ênfase na “ analogia ” para a ênfase na “ identidade” a qual se refere Vickers ( 1984: 95-163 ) ao definir o declínio do pensamento ocultista com a revolução científica, cons¬ titui um enfraquecimento da perspectiva simbó lica no pensamento ocidental. Como já me referi e ilustrarei detalhadamenlc na descriçã o que se irá seguir a estas colocações introdutórias, os informantes ressaltaram na astrologia a capacidade de resgatar esse pensamen¬ to, recalcado pelo nacionalismo da modernidade. Ao afirmarem isto, eles est ão apenas repetindo algo presente nas análises dos teóricos da astrologia e do esoterismo moderno. Para Ren é Guénon, a mentalidade moderna demonstra uma hostilidade, “ mais ou menos declarada” , em relação ao simbolismo, uma vez que ele é “ inteiramente o oposto do que convém ao racionalismo” e “ o meio melhor adaptado ao ensino de verdades de ordem superior, religio¬ sas e metaf ísicas” . Dessa forma, afirma o autor que, “ se o simbo

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astrologia e simbolismo

lismo é hoje incompreendido, esta é uma razão a mais para insis ¬ tirmos sobre ele” ( 1984:7 ) . Apesar das diferenças que opõem as definições do dom ínio simbólico no esoterismo da astrologia tra dicional e na astrologia humanística, o diagnóstico sobre a moder ¬ nidade é semelhante. Stephen Arroyo afirma que “ a cultura oci ¬ dental” já n ão tem “ qualquer mitologia viável” que mostre o “ re¬ lacionamento do homem com uma realidade maior , mais univer ¬ sal” . O simbolismo astrológico poderia preencher essa fun çã o, uma vez que ele pode ser visto “ como a estrutura mitológica mais com ¬ preensível que já surgiu na cultura humana ” ( 1985: 44 ) . Se h á um fundo de verdade na idéia de que a sociedade mo¬ derna concedeu , comparativamente a outros momentos históricos, um papel muito menor ao simbolismo o que pode ser banal ¬ verificado atrav é s mente da posição secund á ria nela ocupada pela magia e pela mitologia essa afirmação deve ser, por outro lado, relativizada, em face da própria complexidade e fragmentação in é ¬ ditas que ela apresenta. Não só o pensamento simbólico perma ¬ nece na modernidade, uma vez que ele é um atributo do “ espírito humano” , como diria Lévi Strauss, como também movimentos cultu ¬ rais tidos como típicos de sua ideologia tomam a sua defesa. Como exemplo, pode ser citada a apresentaçã o de Todorov das idéias est éticas do Romantismo, que, como ele mostra, se constroem a partir da valorização do conceito de símbolo ( 1973: 235 ) . Este se oporia à noçã o de alegoria e, resumindo um tan - o esquematica ¬ mente a rica descrição daquele autor, essa oposição traduziria as existentes entre a arte rom â ntica e a cl ássica , entre a produçã o e a imita çã o, entre a arte que afirma possuir um valor em si mesma e a que apenas se pretende uma representaçã o da natureza. Esse último aspecto nos mostra como o Romantismo é talvez o primei ro movimento estético a enfatizar a autonomia da arte em relação às demais “ ordens do mundo” . Para seus representantes, “ escrever um poema é construir uma realidade à parte auto suficiente” , como aponta Octavio Paz. Essa idéia encontra sua expressão mais com¬ pleta na oposição entre “ arte” e “ vida” . Ela possui um efeito pa ¬ radoxal, já que a tradição moderna, que se inicia, segundo Paz , justamente no Romantismo, “ é uma apaixonante negação da mo¬ dernidade” e da sociedade que ela produziu . Crítica de uma cultu ¬ ra que elegeu a crítica como seu princípio, “ a literatura moderna se nega e, ao negar-se, afirma-confirma sua modernidade” ( Paz, 1974: 43 ) , ¬





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Essa tendência, desencadeada pelos românticos, se aguça nos movimentos artísticos posteriores. A vanguarda, cuja idéia é reapropriada, como vimos, por teóricos contraculturais e alternativos, é, enquanto movimento artístico, uma aceleraçã o das rupturas mo¬ dernas através das quais os mesmos artistas inauguram e renegam novas linguagens, às vezes no espaço de poucos anos, percorrendo os novos caminhos por eles abertos “ com tal pressa que n ão de ¬ moram a chegar ao fim e tropeçar em um muro” ( p. 146 ) . Assim , o que chamamos de modernismo nas artes n ão é apenas um estilo de época, mas uma proliferação de estilos, com a multiplicação de escolas e “ ismos” , movidos pela id éia comum de renovação formal . Essa tendência é uma expressã o da crítica ao princípio da forma que Simmel identificava na cultura moderna em seu j á mencionado artigo sobre sua crise. Ele identifica nos artistas do momento em que escreve o artigo, particularmente os expressionistas, a mesma “ difundida busca de originalidade” , caracter ística da arte moderna ( 1971: 384 ) . Entretanto, ao descrever esse texto, mostrei como Sim ¬ mel via essa tend ência nos mais diversos setores da cultura moder ¬ na , inclusive no económico. Portanto, embora o desenvolvimento da vida económica tenha exigido a sua racionalização o que gerou um antagonismo acentuado entre o entrepreneur burguês e o artista de vanguarda há um parentesco entre esses dois típicos produtos do mundo moderno, como ressalta Daniel Bell ( 1976:16-8 ) . O car á ter paradigm á tico da oposição entre o formalismo cl ás¬ sico e o simbolismo rom â ntico dentro da cultura moderna permi ¬ tiu que ele fosse reapropriado por outros autores que o aplicaram a domínios n ão necessariamente relacionados à arte. Assim, Mi ¬ chel Serres, num pequeno artigo escrito originalmente em 1961, utiliza esses dois conceitos para comentar a obra de Gaston Ba chelard . Este último poderia , graças à distinção que realiza entre conceitos científicos e imagens poédcas, figurar na relação que fi¬ zemos no in ício do capítulo. Entretanto, mais do que da distinção entre dois tipos de objeto, Bachelard se utiliza, na verdade, de dois m étodos diferentes, absolutamente irredut íveis entre si, com ¬ pondo com cada um deles a sua epistemologia do novo espírito científico e sua estética. Para Serres, em última an álise, esses dois m étodos representariam a culmin â ncia das tend ências clássica e ro¬ mâ ntica, presentes na filosofia ocidental :





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( . . . ) há classicismo l á onde as culturas são exclu ídas em benef ício da razão, lá onde o sentido é ignorado em benef ício da verdade ( . . . )

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o mundo da astrologia

astrologia e simbolismo

o romantismo é uma tentativa de elevação e promoção dos conteúdos culturais como tais ( ), de compreender o pluralismo das significa ¬ ções e. decodificar todas as linguagens que não sã o necessariamente aquelas da razão (1969:22)

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Assim, esse autor acredita que, no século seguinte ao XVIII, no qual se havia consolidado a revolução científica e o racionalismo, pensadores como Hegel, Nietzsche e Freud desenvolvem a t éc¬ nica da análise simbólica. Em contraposição ao formalismo matematizado cl ássico, eles teriam procurado construir seus modelos a partir da escolha de arqu étipos da história mítica, como, por exemplo, Apoio, Diônisos, Ariadne, Zaratustra , Electra, Édipo etc. A complexidade dessa oposição pode ser percebida atrav és de uma leitura atenta dos coment ários de Todorov das teorias se ¬ miológicas pós rom â nticas, ou seja , dos teóricos daquilo que Ser ¬ res chamou de an álise simbólica . O linguista búlgaro, de certa forma, parece ir ao encontro das críticas dos teóricos esot éricos ao afirmar que grandes pioneiros desse método, tais como Lévy Bruhl , Piaget , Saussure e mesmo Freud , representariam um pen¬ samento neoclássico ( cf . 1973: 337-8 ) . Apesar das in ú meras dife¬ renças que opõem suas teorias, esses autores convergiram na sua imensa dificuldade em reconhecer a realidade do símbolo. Assim



como é dif ícil ignorar inteiramente o sí mbolo, declaramos que nós somos des os homens adultos normais do Ocidente contemporâneo providos das fraquezas ligadas ao pensamento simbólico, é que este só existe entre os outros: os animais, as crianças, as mulheres, os loucos, os selvagens, os ancestrais estes loucos inofensivos os poetas que, em consequ ência , conhecem apenas este pensamento, ( p. 262)



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Intimamente ligada a essas concepções, est á a idéia do cará ¬ ter intrinsecamente irracional do pensamento simbólico. Para To¬ dorov, a reabilitação desse último se dará com Jakobson e as van ¬ guardas artísticas do século XX ( p. 341 ) . N ão é à toa que a arte modernista ir á reforçar seu car á ter transgressor e sua oposição à sociedade da qual nasce. També m não é casual a ligação frequente que brota entre o pensamento ocultista e esot érico e esses artistas. Diz Octavio Paz, de Blake a Yeats e Pessoa, a história da poesia moderna do Ocidente est á ligada à hist ória das doutrinas herm é ticas e ocultas, de Swenden borg a Madame Blavatsky. ( 1984: 123)

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Por outro lado, n ão apenas o poeta Paz, mas sociólogos como Daniel Bell reconhecem o esgotamento desse impulso nas artes, at é porque a atitude vanguardista cada vez mais se banaliza , inva ¬ dindo os meios de comunicação de massa e a moda, não provo¬ cando mais a repulsa do passada. É interessante notar que as úl ¬ timas d écadas, em que a atitude vanguardista , de crítica a valores sociais tidos como dominantes, se generaliza, saindo dos limites restritos das artes ( período que Bell identifica com o pós moder nismo ) , sejam também as da disseminação da astrologia, assim como de outros sistemas esotéricos e alternativos. Como se pode perceber por esses breves comentários, o sím ¬ bolo ocupa um lugar privilegiado em diversos domínios, alguns formadores da sociedade moderna, outros normalmente identifi ¬ cados com ela. Ele estaria presente , portanto, na religi ão , na filo¬ sofia, nas artes modernas. Deve se inclusive lembrar a import ân ¬ cia da pró pria tradição ocultista que, apesar de um relativo declí ¬ nio, permaneceu viva mesmo após a Revolução Cient ífica . Apesar de suas ligações com a astrologia , à exceção de Clá u¬ dio, que é m úsico, a arte não aparece nas entrevistas associada a esse sistema. Sei de astrólogos que fazem esta associação, e vá ¬ rios informantes apreciam e mesmo se dedicam a diversas formas de atividades artísticas. Mas eles não parecem perceber uma rela¬ ção direta entre esses dois interesses, refletindo uma atitude que, apesar das exceções, parece ser comum no mundo da astrologia carioca observado. A concepção de simbolismo dos informantes, na verdade, permite a aproximação desse sistema a três domínios

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presentes na cultura moderna ocidental que compartilham com ele esse cará ter simbólico os três mencionados no capítulo anterior: psicanálise, religião e esoterismo. A seguir, portanto, discorrerei a respeito deles e da forma como aparecem nas entrevistas, pro¬ curando articular a concepçã o de simbolismo pela qual os infor¬ mantes definem a astrologia. Através dela , o sistema astrológico será aproximado de outras manifestações da cultura ocidental e moderna.



Astrologia e psicanálise Antes de descrever as relações e distinções que os informantes fa ¬ zem entre o sistema astrológico e as teorias psicológicas, gostaria

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de explicar o uso do termo psicanálise que emprego no t ítulo deste segmento. De um ponto de vista rigoroso, este conceito tem um sentido preciso, definindo as teorias de Sigmund Freud e seus dis¬ cípulos, sua prá tica cl ínica e os m é todos inspirados por essas teo¬ rias. Os temas que irei abordar do ponto de vista de meus infor ¬ mantes, sem d úvida , vão al ém dessa definiçã o estrita . Assim , por exemplo, quando eu perguntava aos entrevistados sobre sua experiên¬ cia com a psican á lise , eles freqú entemente incluíam neste tópico seus interesses e contatos com as teorias junguianas. Ora, como se sabe, embora Carl Gustav Jung tenha sido, no início de sua car¬ reira, um dos mais importantes discípulos de Freud , suas relações se romperam em 1911, passando o primeiro a desenvolver teorias e m étodos próprios, chamados, por vezes, de “ psicologia analí ti¬ ca ” ou “ psicologia profunda” . Em outros momentos, certos infor ¬ mantes entendem como psican álise qualquer terapia psicológica que se utilize de sessões regulares nas quais o paciente converse sobre seus problemas com o terapeuta, sem que sejam seguidos preceitos rígidos propostos por Frcud quanto à prá tica cl í nica ou à relação entre analista e analisando. Poderia talvez substituir esse termo por psicologia, que, pela sua generalidade, me pouparia de tais explicações iniciais. Mas, ao evocar essa disciplina ampla da qual a psicanálise é apenas uma corrente, estaria sendo muito genérico, ignorando um detalhe que parece explicar essa utilização frouxa do conceito cunhado por Freud para denominar a ciência que fundou . Quando se falou de psicologia nas entrevistas, isso nada tinha a ver com o behaviorismo ou com a teoria do conhecimento gestaltista, por exemplo. Os in ¬ formantes se referiam a um tipo de terapia que se baseia no uso da interpretação simbólica e na busca do desenvolvimento de uma individualidade autónoma, temas n ã o exclusivos de Freud , mas cuja introduçã o na “ ciência do comportamento” se deve em grande par¬ te a ele. Assim, ao se referirem à psican álise para designar uma outra teoria psicológica , eles est ão ressaltando nesta última algo que o freudiano encarna mais do que qualquer outro segmento da psicologia. Em última an álise, esse uso amplo e, de certa forma , impreciso do termo se deve ao fato de eu n ão estar aqui interessa¬ do em discutir exclusivamente a obra de Freud e de seus seguido¬ res, mas sim em abarcar os seus subprodutos, n ã o necessariamente relacionados ao mundo intelectual. Refiro-me à “ cultura da psi¬ canálise” .

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Este último conceito, proposto por Sérvulo Figueira (1985 ) , pode ser, em linhas gerais, aproximado do conceito de mundo so¬ cial, tal qual venho aplicando à astrologia. Figueira se refere assim a um “ psicologismo” que “ se difunde centrifugamente, contribuin ¬ do para a instauração de uma cultura psicanalítica ” , o que, por sua vez, n ã o é reconhecido ou é negado pelos psicanalistas profissio¬ nais, que sofrem, sem pejrceber, a ação recíproca deste psicologis¬ mo sobre sua pr á tica ( p. 9 ) . Assim , mesmo os grupos sociais que ainda n ã o viveram a experiência analítica , sofrem a influ ência, em graus maiores ou menores, do "eidos", do “ ethos” e do “ dialeto" psicanalíticos ( p . 10 ) . A definição de uma cultura da psican álise não nos impede de reconhecer os conflitos internos ao campo psi canalítico que se refletem , de uma forma ou de outra, nos segmen ¬ tos mais perif éricos dessa cultuira . Dada a grande penetraçã o que ocupou essa cultura em vá rias sociedades modernas e, entre elas, a brasileira, sua veiculação não se limita às Sociedades de Psicanálise e seus membros. Vimos como Dwight MacDonald identificava a “ vulgarização” da psicanálise como uma das manifestações da “ midcult” . Assim, nas mesmas revistas de grande circulação onde podemos encontrar os horósco¬ pos, a cultura da psican álise é veiculada através de artigos que se utilizam de seu dialeto e expõem seus princípios, muitas vezes de

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forma simplista. Do ponto de vista do simbolismo, a obra de Freud teve uma import â ncia grande dentro da cultura moderna, se levarmos em conta que seu primeiro livro, A interpretação dos sonhos, retoma ( reivindicando agora uma autoridade científica ) uma antiga ver¬ tente da tradiçã o hermenêutica antiga . A partir daí, a teoria freu ¬ diana dos símbolos se desenvolveu de maneira a abarcar mitos, contos de fadas e, principalmente, o próprio comportamento do indivíduo. Este último traço, por exemplo, está presente de manei¬ ra marcante na cultura da psican álise com a vulgarização da teoria dos “ atos falhos” , através da qual a crença numa instância incons ciente capaz de produzir e alimentar desejos e impulsos amplia largamente as dimensões dos setores da vida de cada indivíduo so¬ bre os quais ele possuiria alguma determinação. A própria situação analítica, como ressalta Figueira, apresenta um determinismo em relação ao comportamento do analisando, que “ repete, ao afugen ¬ tar o acaso, a segurança do hiperdeterminismo do pensamento m ᬠgico” (1981: 184 ). Nesse sentido, podemos também evocar o* fa

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Podemos relacionar a isso a crítica , nas entrevistas, à utiliza¬ ção puramente pragmá tica da astrologia . Ela não est á presente apenas entre os astrólogos entrevistados e os membros dos grupos de estudo que pesquisei . Tal atitude pode ser encontrada em outros estudantes de astrologia n ão relacionados àqueles grupos como, por exemplo, Carla:

mosos artigos em que Lévi-Strauss atribui à psican á lise a utilizaçã o invertida das l ógicas da “ eficá cia simbólica” xamanística, não mais utilizando a mitologia coletiva, mas a individual ( 1975:Cap. IX e X ). Embora o simbolismo da psicanálise tenha como foco, sem d ú vida alguma, o inconsciente individual, ela n ão deixa de dar atenção a manifestações coletivas, como mitos e contos de fadas. Como o romantismo ( cf. Todorov, 1977: 247 ) , ela recupera, atra ¬ vés da noção de símbolo, o valor da mitologia . Pela interpretação os mitos ganham um valor de verdade relativo, algo que a astro¬ logia faz de maneira mais radical. Mas o autor que foi mais longe nessa direçã o é, sem d úvida, Jung, com a formulação da hipótese da existência do inconsciente coletivo. Para ele, o simbolismo in ¬ dividual se encontra diretamente ligado ao coletivo, pois tanto um quanto o outro expressam, nas suas mais diferentes manifestações, os mesmos conteú dos por ele denominados arqu é tipos. Nã o é à toa portanto, que essa vertente da teoria psicológica tem conseguido influenciar mais que a psicanálise propriamente dita a astrologia, principalmente, levando se em conta o fato de Jung ter estudado seriamente esse sistema, embora nem sempre demonstrando por ele o entusiasmo que lhe é atribu ído por vá rios astrólogos .2

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( ) a coisa da previsão na astrologia eu n ão aceito n ão. Aquela coisa : “ vai acontecer” ; eu não aceito. Acho que a astrologia é mais uma forma de autoconhecimento, mais uma psicologia (. ) Então, eu uso esse caminho e nada de previsões, de coisas fatalistas ( . ) Eu não gosto, eu acho que é destrutivo e n ã o leva a nada .

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Alé m da simples exploração da simbologia astrológica para o esta ¬ belecimento de tipos de personalidade, a associação da astrologia e da cultura psicanalítica geralmente consiste na valorização do autoconhecimento como instrumento de aperfeiçoamento individual . Dessa forma, o aspecto preditivo do sistema astrológico é tomado como um elemento secund á rio diante das possibilidades que o su ¬ jeito tem de interferir na direção das influ ências planet á rias que sofre. Ainda nessa direção, o car á ter simbólico da astrologia tam ¬ bém é enfatizado, uma vez que ele permite definir de maneira mais flexível a natureza dessas mesmas influências.

Num texto escrito em 1950, ele chegou a afirmar que “ se., com raras exceções, os astrólogos se tivessem dedicado mais à estatística e examinado cíentificamente a legitimidade de sua interpretação astrológica, teriam des coberto h á muito tempo que suas afirmações repousam em bases muito frágeis” (1984: 49) . Mais tarde, porém , voltou a alimentar esperanças quanto a comprovação de sua eficácia (p. 90) 2

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Entre os clientes, a posição é mais variada, além do fato deles se sentirem menos à vontade para teorizarem sobre o sistema as¬ trológico. Bá rbara, entretanto, consegue distinguir entre os astró¬ logos que frequentou , alguns de linha mais psicologizante e outros mais determin ísticos, os primeiros mais preocupados em falar sobre sua personalidade, os segundos estabelecendo fatos que ocorreram ou ocorrerão na sua vida. Ela afirma preferir estes últimos, no que se distingue de Renato e Francisco. As posturas entre eles se dife¬ renciam também em outros pontos. A primeira n ão se interessa em conhecer o sistema astrológico, nem seus m étodos, valorizando a astrologia pelo seu lado “ m ágico” e “ desconhecido” . Já os dois úl¬ timos procuraram conhecer alguns rudimentos desse sistema, em ¬ bora nunca se tenham interessado em aprofundar seus conhecimen ¬ tos, alegando falta de tempo. Comentei anteriormente como Fran ¬ cisco, enquanto psicanalista , toma o signo solar ou ascendente de um analisando como uma refer ê ncia interessante para conhecer sua personalidade, embora só o faça quando ele, eventualmente, o mencione. Flaroldo, por outro lado, desenvolve um grande plura¬ lismo, onde busca informações para seu autoconhecimento nos mais diferentes sistemas divinatórios com os quais teve contato nas diversas partes do mundo em que esteve. Essa relação distanciada que mant ém com todos esses sistemas, sem aderir a nenhum deles ou neles se aprofundar, faz com que ele dê uma import â ncia ape¬ nas relativa aos elementos fornecidos por cada um. A astrologia, em sua opiniã o, lhe daria “ certas tend ências, certas possibilidades” sobre sua vida e sua personalidade, muitas das quais lhe sã o ú teis no seu autoconhecimento. Entretanto, reconhece que nunca deixa ¬ ria de fazer uma viagem já marcada, por exemplo, se um astrólogo

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lhe recomendasse isso. Ele vê sempre uma esfera de livre-arbítrio, apesar da eficácia que possam ter esses sistemas, lembrando a advertência de um velho amigo seu , o primeiro a ler o seu mapa : “ o homem pode mais do que essas determinações” . O fato de se encontrarem mais envolvidos com a astrologia nã o leva os estudantes a alimentar uma interpreta çã o determinista das indicações que detectam no seu mapa e nos “ trânsitos planet á ¬ rios” . A id éia de simbolismo astrológico lhes permite defender coe ¬ rentemente uma tese contrária: justamente por dominarem melhor o sistema astrológico torna-se possível escapar a este determinis¬ mo. Eles admitem a idéia de livre- arbítrio, que é pensada em fun ¬ ção de uma maior consciência de suas limitações, em vez do sim ¬ ples exercício livre de suas vontades e caprichos. Assim , Helen afirma que “ quanto mais desenvolvida a sua autoconsciência, mais você tem controle das energias dos astros” . Mencionei no Capítu ¬ lo 1 que , em alguns autores, a linguagem energética é empregada alternadamente com uma teoria simbólica para expressar a relação entre o homem e os astros. Como tentei demonstrar lá, isso não implica nenhum mecanicismo, pois a lógica do sistema permanece sendo o hiperdeterminismo m ágico. A import ância da id éia de simbolismo para a noção que os informantes desenvolvem acerca do livre arbítrio é a de que ele explicita a indeterminação que marca, como venho insistindo aqui , essa mesma lógica m á gica . Este traço é visto positivamente enquan ¬ to reflexo da polissemia dos símbolos astrológicos. Podemos veri ¬ ficar isso quando Carla narra a an á lise do mapa de um amigo que havia sofrido um acidente, onde ela percebeu que, quando se deu esse desastre, Urano passava pelo seu ascendente:

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Quando Urano passa, ele é como um corte que acontece. Pode ser uma coisa ruim ou uma coisa maravilhosa; vai depender de como você est á, como é que você está harmonizado. No caso dele, não estava bem, houve um desastre, ele se arrebentou ( ) Para cada indivíduo o ascendente com Urano vai dar uma coisa Vão ser cortes, separações, v ão ser coisas maravilhosas, uma viagem que você n ão esperava ( . . ) . Vai depender do uso que você faz daquela potencia ¬ lidade.

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O mapa forneceria , assim, potencialidades para cada pessoa. Não apenas em relação a sua personalidade e sua saúde, mas tam¬ bém aos períodos propícios para determinados eventos, às fases

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pelas quais ela passa , aos ciclos periódicos, representados pelo movimento circular dos planetas mais lentos. Aquele que, através da astrologia ou de outro sistema qual ¬ , quer seja incapaz de compreender a natureza das limitações que o caracterizam, será um escravo dessas últimas. Assim, Carla co¬ menta o mapa de suas filhas que, pela sua menor maturidade, re¬ fletem de maneira mais automá tica o que ele indica. Num encon ¬ tro de conferências sobre o tema do livre-arbí trio e determinismo,3 o astrólogo Carlos Alberto Botton relatou uma pesquisa da qual participava em que os mapas e os tr â nsitos de indivíduos esquizo¬ fré nicos eram estudados. Ela seria útil para a comprovação da as¬ trologia uma vez que se acreditava que eles reagiriam mecanica¬ mente ao que as influências indicassem . Como na psican álise, há nesse tipo de astrologia a busca de uma “ outra coisa” , “ inscrita no plano pessoal ” , que possa explicar o comportamento dos indi¬ víduos ( Figueira, 1985: 8 ) , identificada , no primeiro caso, com o inconsciente e, no ontro, com o mapa astral .4 Poré m, na visão psicologizada dos informantes, coerentemente com o que afirma tanto a vertente junguiana quanto a freudiana, a inst â ncia consciente ocupa o primeiro plano na busca do equilíbrio psíquico do indivíduo. A interessante metáfora proposta por Figueira, segundo a qual a psicanálise seria capaz de fornecer um mapa ao indiv íduo da sociedade moderna fragmentada , se aplica literalmente à astrologia: Uma das primeiras coisas que você escuta quando vai estudar astro ¬ ) , todos os seus pro ¬ logia é: “ est á tudo no mapa” , quer dizer ( problemas para est ã o ali tam ¬ seus çõ os blemas, mas também as solu es bém. Para um aspecto de dificuldade, de tensão, você vai sempre poder pesquisar em cima dele para buscar sua solu ção (Beatriz)

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Como um gr áfico absolutamente individualizado, que fornece uma combinatória específica de determinados elementos universais a carta natal torna-se um veículo os símbolos astrol ógicos ideal para a expressão da singularidade de cada pessoa, produzindo um individualismo qualitativo. Figueira chama a atenção , no caso da psican álise ( cf . 1981:170 ) , para o quanto de produ ção prática





1 Ciclo Mandala de Palestras, realizado no 1BAM RJ, 27 e 28 / 7 / 1987. A identificaçã o entre inconsciente e mapa astral foi realizada por três informantes ; Teresa, Clá udio e Laura.

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possui, embora ela seja representada por seus participantes como a revelação de uma realidade recalcada, através de um processo de “ liberação polí tico-pessoal ” ( 1985: 8 ) . Dentro de certos limites, a interpretação de um mapa astrológico e, caso ocorra, a posterior identificaçã o do cliente com essa carta , apresentam certas analogias com o processo analítico. Evidentemente, este último se define como um processo longo e intenso, que busca necessariamente operar profundas mudanças no analisado. Já a relação do astrólogo com seu cliente é muito mais flexível. Apesar de existirem muitas va ¬ riações na prá tica das vá rias correntes e escolas que compõem o mundo da psican álise, na astrologia a heterogeneidade é certamen¬ te maior, pois n ão há nenhum tipo de defini çã o comum quanto à duração, frequ ência e, mesmo, objetivo da consulta . Ainda assim, as entrevistas nos indicam três n íveis pelos quais a interpretação astrológica contribui para a produçã o do indivíduo singularizado. Um dos maiores atrativos que a leitura do mapa parece ofe¬ recer inicialmente aos indivíduos é aquilo que poderíamos chamar de auto-reconhecimento. Não há dúvida de que, mesmo entre os crí ticos mais ferrenhos de uma astrologia pragm ática , uma grande impressão é causada pelas previsões, ou seja, pela capacidade do astrólogo se referir a acontecimentos passados que ele não conhe¬ cia previamente ou a futuros que se concretizam. Eventualmente, elas são evocadas como exemplos que comprovam a eficácia do sistema. Entretanto, nas descrições das primeiras experiências com a interpretação de seus mapas, os informantes geralmente desta ¬ cam como fator mais importante a descrição de aspectos pessoais, íntimos, de cada um deles . Beatriz relata que começou a se inte¬ ressar por astrologia depois que Roberto leu seu mapa pela pri ¬ meira vez : Eu me identifiquei à beça com as coisas que ele falou . Apesar dele ser meu primo, uma pessoa que já me conhecia, ele falou de coisas que ele não deveria saber mesmo, entendeu? Coisas minhas, sentimentos, essas coisas. Eu fiquei superencantada e comecei a estudar mais tarde .

O “ encantamento” produzido pela leitura da carta natal se deve, em parte, a uma revelação da interioridade de cada indivíduo que, coerentemente com o ethos individualista também presente na cultura da psican álise, não representa nenhum tipo de violação de algo que n ão poderia ser exposto, mas, pelo contr ário, significa para os informantes o acesso a uma inst ância mais aut êntica e es¬

pont â nea do seu self . Em alguns casos, esse efeito pode n ão ser imediato, como no caso de Helen, que afirma que, somente dois anos após a primeira leitura, começou a se identificar com seu mapa. O verbo utilizado por muitos deles para expressar a identificação mostra o impacto que esta revelaçã o pode assumir: “ bater” . Assim, pode-se dizer que tal aspecto do mapa “ bateu” ou “ n ão bateu ” , ou que as coisas que algu ém tem lido sobre seu signo “ t êm batido” em maior ou menor grau. Embora Marcos tenha participado do grupo b, à época da entrevista n ão estudava mais astrologia. Ele se utiliza de uma outra gíria para expressar o tipo de observações sobre sua personalidade que a maioria dos clientes busca: “ toque” . Ele afirma que depois da dissolução do grupo, ele teve uma consulta com A., que lhe deu como a sua negligência com hor á rios, o fato vários “ toques” que dele n ão assumir responsabilidades na casa em que mora lhe foram muito úteis e que lhe permitiram refletir sobre esses seus defeitos. Para os clientes que entrevistei, esses “ toques” são, nas palavras de Renato, meras “ contribuições” , ú teis na sua busca de autoconhecimento, mas que n ã o possuem nesse processo um lugar privilegiado. Eles s ão acrescidos a outras “ contribuições” prove ¬ nientes de outras fontes, como a homeopatia no caso de Marcos, a psican álise no de Francisco, e outros sistemas divinat órios no de





Renato. A eficá cia desse mecanismo de auto-identificaçã o reside na ca ¬ pacidade que ele possui de articular as impressões que cada um tem de sua singularidade, percebidas de maneira mais ou menos precisas, através de um sistema articulado como o astrológico, dan ¬ do lhe uma coerência e uma causa: as posições planet á rias à hora do nascimento. Dependendo do grau de adesão à astrologia , ela se fará através de simples “ toques” ou poder á até constituir aquilo que Rosa descreve como “ identidade cósmica” . A sua descrição da primeira ida a um astrólogo, D., nos d á um exemplo expressivo do seu funcionamento:

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Eu era uma pessoa muito complicada , muito sensível ( . . . ) . Eu sem¬ pre me comparava com outras pessoas, que não esquentavam com isso, com aquele sofrimento, aquela angústia . Então eu sentia que eu tinha uma marca , um sinal . ( . . . ) Que coisa era essa? Educação, gênio, tem ¬ peramento, o que era isso? Não tinha nome aquilo. Quando eu fiz o mapa , falei: “ é isso , é Netuno na casa XII, é ascendente em Câncer ."

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Na constituição dessa “ identidade cósmica” , a astrologia apre ¬ senta algumas peculiaridades que a tornam particularmente eficaz na fragmentada cultura moderna. Como já chamou a atenção Steve Kemper, uma das suas características é a de que “ ela permite à pessoa desenvolver se tornando a consciente das suas identidades m últiplas” ( 1980: 753 ) . Assim, signos diferentes do solar e do as¬ cendente ir ã o freqiientemente ocupar cada uma das doze casas as trológicas, determinando, com os planetas que eventualmente tam ¬ b ém as ocupem, maneiras de agir específicas em cada área da vida do indivíduo: doméstica ( casa IV ) , profissional ( casas VI e X ) . conjugal ( casa VII ) etc. Mais do que quebrar “ cada indiv íduo em muitas partes” , como enfatiza Kemper , as entrevistas nos demons¬ tram que um mapa astral pode permitir que seu possuidor articule duas ou mais tend ências principais aparentemente contraditórias em seu mapa, caso ele possua signo solar e ascendente contrastan ¬ tes. É o caso de Marcos, virginiano com ascendente em Peixes, que associa seu cará ter indeciso, “ complicado” , à convivência desses dois signos que ocupam posições opostas no zod íaco. Renato, que também possui essa mesma caracter ística em seu mapa , descreve assim como isso se expressa na sua personalidade em geral e, espe ¬ cialmente, em sua arte:

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por outro lado, estou sempre querendo mudar e fazer uma coisa dife ¬ rente. (Teresa) Devido ao meu ascendente em Virgem , estou sempre procurando fazer as coisas dentro de um mé todo, de uma sequência, mas, ao mesmo tempo, eu não gosto de coisas met ódicas. Isso é uma contradição, talvez o meu Netuno em conjunção aí embaralhou um pouco o negócio ( José) ,

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Os astrólogos em geral dizem que eu sou uma pessoa dividida entre uma faixa de muito pragmatismo, de muita organização, e uma outra de muita fantasia e muito del írio . Estas coisas são muito marcadas , tanto é que se fundem na minha pintura. Porque a pintura , a arte de maneira geral , é uma coisa de fantasia. E até para eu expressar minha fantasia eu expresso com arte geométrica . Então eu faço uma pintura geométrica de um rigor extremo.

Esses dois exemplos são de informantes que identifiquei como clientes e, compreensivelmente, se utilizam de referências mais ge ¬ rais, como os signos solar e ascendente, devido a sua menor “ alfa ¬ betizaçã o astrológica ” . J á os estudantes e os astrólogos, conhecen ¬ do maiores detalhes do seu mapa , dominando melhor o seu signi ficado, sã o capazes de definir a fragmentação de sua personalidade a partir de tra ços mais específicos, como a conjun çã o de um pla ¬ neta com ascendente, que pode contrabalanç ar a presenç a do signo que ocupa essa posição.

Como o leitor deve estar notando, independente da flexibili ¬ dade que a concepção simbólica atribui ao determinismo astrol ó¬ gico, a própria forma pela qual opera este sistema implica que , nele, o livre arbítrio possua limites. Estes são dados pelo próprio mapa , que pode se atualizar no indivíduo de formas diferentes, mas do qual ele jamais poderá fugir. Evidentemente que essa id éia n ã o está presente nos clientes de astrologia, que o encaram como uma simples fonte de informações sobre sua personalidade e sua vida , não deixando, porém, de se utilizar de outras fontes. Mas os estu¬ dantes conhecem a fundo o seu mapa e pautam por ele, em grande parte, sua busca de auto-aperfeiçoamento. Os astrólogos, então, são mais incisivos nessa quest ão. Rosa afirma que o primeiro passo para quem começa a fazer uso da astrologia é “ assumir o seu mapa” : a partir daí, como ela diz, podem ser feitos apenas “ retoques” , “ lapidadores” etc. Regina reconhece que esse é um dos problemas mais importantes que o astrólogo deve ter em mente, ao lidar com seus clientes:

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Chega um momento em que o astrólogo se pergunta : “ o que é que eu vou fazer cem essa pessoa cujo mapa indica uma dureza, que é uma pessoa r ígida, fria, dura e implacável?” Ela é assim . Não adianta você chegar para ela e dizer : “ ah, não fica assim não” . Então, o que você tem que fazer é procurar tirar o máximo de proveito poss ível daquilo que é da natureza dela . A pedra é dura, a água é mole. Ora a pedra sendo rí gida, tem alguma coisa importante no fato dela ser daquela maneira . Então ele tem que canalizar aquela energia , trabalhar aquela energia. ,

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Como eu tenho Urano bem em cima da cúspide da casa I, em Touro, eu sou uma pessoa muito prática , de senso muito prá tico, mas que,

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Al ém da auto-identificaçã o, um segundo mecanismo pelo qual a astrologia realiza seu mapeamento individualizador é a autoobservação. Segundo Figueira, esse mecanismo també m est á presen te na psican álise, por ele definido como um “ processo de colheita de idiossincrasias” ( 1981:182 ) . A maior diferença reside no fato de que, na astrologia , esta colheita obviamente não é guiada pela “ in¬ terpretação psicanalítica” . Entre os clientes, ela pode se originar de

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observações dos astrólogos n ão identificadas imediatamente, ou seja, de “ toques” que não “ batem” no momento da consulta. A possibilidade de reter essas observações é facilitada pela prá tica comum de vários astrólogos de gravarem em fitas cassete a con ¬ sulta, permitindo ao cliente ouvi-la novamente quantas vezes qui¬ ser. Em outros casos, como no de um exemplo relatado por Rena ¬ to, o astrólogo pode fornecer uma interpretaçã o que é retida na memória pela estranheza que provoca. Assim, C. se teria referido a uma agressividade de Renato no trato com os amigos. Ele, que sempre se considerara uma pessoa dócil e sociável, comentou essa observação com velhos conhecidos, que, para sua surpresa, confes¬ saram que, no início de sua convivência, sentiram essa agressivi¬ dade. Mas a auto-observação astrológica pode ser muito mais apro¬ fundada por estudantes e astrólogos, que possuem seus mapas e são capazes de realizar sua interpretação. Acompanhando os tr ân ¬ sitos dos planetas nas posições de seu mapa , estudando e adqui ¬ rindo mais conhecimentos sobre determinadas situaçõ es nele pre¬ sentes, seu possuidor começa a reconhecer lhe uma inteligibilidade cada vez maior. Como tentei esboçar no Capítulo 1, a exist ência de diversos símbolos na astrologia, que podem, numa carta natal, combinar-se de diversas formas, transforma uma interpretação exaus¬ tiva num trabalho quase infinito:

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Tem trilhões de coisas no meu mapa que eu ainda não tenho a menor id é ia do que sejam, tem coisas que eu vejo no meu mapa e eu já consigo constatar: “ é, realmente, eu sou totalmente Lua oposição Sol ” , quer dizer , coisas que eu já consegui sacar na minha vida e nas mi ¬ nhas atitudes. E tem coisas que eu ainda nem sei por onde eu vou conseguir sacar ( . . . ) . E cada dia pinta uma informação diferente : “ olha, tem um ponto tal , Roda da Fortuna , ponto de afinidades, que se calcula assim , e. tal ” ; aí eu vou e vejo como se faz no meu mapa . ( . . . ) Quer dizer , tem trilhões de técnicas, é infindável mesmo! (Beatriz ) Eu realmente estudo o meu mapa , está aqui ele , meio rasgadinho, feito pela minha astr ó loga, ( . . . ) . E fico fazendo todas as relações pos¬ s í veis : vamos supor que eu hoje tenha tido uma briga com a minha mãe , daqui a pouco eu vou l á no meu mapa e vou verificar minha rela ção com a Lua, com a casa IV, enfim, vou dar uma olhada e tentar sacar os mecanismos dentro disso que rolam , que tipo de com ¬ promisso que eu tenho com minha mãe que possam fazer eu me afetar tanto com uma discussão. Aí, eu fico assim , pescando dados no mapa . ( Cl áudio )

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Embora muitas vezes centrada no próprio indivíduo, a obser ¬ vação proporcionada pela astrologia pode também tomar outros objetos. Nesse sentido, é necessá rio lembrar como a linguagem simbólica astrológica é também capaz de classificar coisas, ativi ¬ dades, obras de arte etc. Por outro lado, ela também é um recurso para a compreensão e o conhecimento do outro. As senhoras que compunham o grupo c, mais do que os demais informantes, se preo cupavam em estudar os mapas de parentes e amigos que estariam vivendo determinados problemas. Uma vez que quase nenhuma tra balhava , o dom ínio da astrologia reforçava o seu papel de “ dona de casa” dentro da família. Assim , Vânia menciona que esse do ¬ mínio a valorizava muito perante o marido, que a consultava quan¬ do tinha problemas nos negócios; por outro, Helen conta que a astrologia lhe permitiu compreender muito melhor seus parentes e aceitar, por exemplo, a “ â nsia de liberdade” experimentada por sua neta aquariana. Se levarmos em conta todos esses exemplos, tanto através da auto-identificação quanto da auto-observação, a as ' rologia contri ¬ bui na individuação de cada informante, não tendo, por outro lado, o papel produtor que Figueira atribui à psican á lise. Do primeiro para o segundo processo, h á uma participação crescente do sistema astrológico nessa individuaçã o ; inicialmente ele articula uma percepção da própria individualidade que o cliente já possuiria , en ¬ quanto que, no último, ele guia a descoberta de novas dimensões dessa individualidade. Mas, nos dois casos , esta última é anterior à introdução da astrologia . Aliás, a postura de autonomia em rela¬ ção a ela , que assumem estudantes e clientes que entrevistei, nos demonstra que eles já se encontravam bastante impregnados de re¬ presentaçõ es individualistas. Essa postura estaria ausente em deter¬ minados personagens citados pelos entrevistados com os quais n ão tive contato, aqueles que tomavam o astrólogo por “ guru ” , ou seja , permaneciam fixados a um profissional e a um sistema . é dif ícil determinar as características desse tipo, que é quase sempre descrito com um certo exagero pelos informantes, já que sua função é criar uma oposição contrastiva que ajuda a construir a identidade destes. Exemplos dele sã o raros, mesmo nas entrevis¬ tas dos astrólogos , uma vez que estes, coerentemente com a sua concepção creator-oriented da sua atividade, reprovam, ao menos em tese, essa postura. Rosa se refere a alguns clientes que, entre¬ tanto, talvez se aproximem dela. Com um deles, ela reconhece, ¬

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existe uma relação “ extra-astrológica ” . Ele vive procurando-a para desabafar, contar seus problemas, telefonando para ela pelo menos uma vez por dia. Segundo Rosa, “ às vezes ele nem quer que eu veja o mapa, ele só quer falar” . A astróloga diz que tenta chamar a atenção para os aspectos astrológicos, mas tem pouco sucesso, sentindo que o cliente está agarrado à sua pessoa. Embora n ão satisfeita com a situação, ela n ão consegue rejeit á-lo, deixando-se envolver por ele e tentando resolver seus problemas, uma vez que Rosa se reconhece “ altamente canceriana” . Ela também cita outros clientes, dos quais se orgulha que a consultaram durante um longo período. Gostaria de reproduzir re¬ sumidamente, sua descrição de um deles: Um era um cara que vinha aqui , tinha quarenta anos, superenrustido , secão, durão , ( . . . ) . Sentou ali e , durante duas horas e meia ele não tirou o terno . E o mapa era simplesmente de um porra louca, de um artista, de uma pessoa sensibil í ssima. Aí eu falei: “ você vai me des¬ culpar, mas sua história é outra. Você é um cara criativo, artista , aquariano, tem Aquário e Urano pra tudo que é lado, casa V nitida mente cheia, que é que você t á fazendo aqui?” Não falei exatamente assim , porque você não tem o direito de interferir dessa forma, mas , basicamente, fui mostrando aquilo pra ele. Bom , dois meses depois, ele largou tudo que fazia e foi ser artista, decorador ( . . . ) , faz Shiatsu, 5 enfim , virou um outro lado total . É uma pessoa que se ¬

encontrou .

Evidentemente, seria perigoso tentarmos tirar muitas conclu ¬ se dispõe apenas da versão de um dos participantes. Entretanto, ele nos é ú til mesmo assim. Em primeiro lugar, esta descriçã o corresponde ( se n ão ao que ocor¬ reu nesse caso concreto ) a um processo de transformação ideal¬ mente imaginado pelos informantes como aquele que o autoconhe cimento proporcionado pela astrologia e por outros sistemas deve permitir. Ele nos ilustra a maneira pela qual o indiv íduo “ assumi¬ ria o seu mapa” , apresentando algumas semelhanças com as repre ¬ sentações que cercam o processo analítico. A realização dessa “ au toliberação” da singularidade representaria o terceiro nível pelo qual a astrologia contribuiria para a produ ção do indiv íduo quali sões a respeito desse processo do qual

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5 Terapia corporal semelhante à acupuntura que , em vez de utilizar agu ¬ lhas , é feita através de massagens com os dedos.

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cativo. A configuração apresentada pelo mapa aparece como uma realidade recalcada do indiv íduo e ele conseguiria adot á la na me¬ dida em que se libertasse de constrangimentos sociais e familiares repressores. A individuação significa, nesse caso, uma indepen ¬ d ê ncia pessoal que leva o indivíduo a agir de acordo com sua singularidade. N ão é à toa que Rosa conclui sua narração contantando que seu cliente, naquele momento, se encontrava fazendo uma “ terapia alternativa” , além de se referir, mais adiante, que ele tamb ém começara a estudar astrologia. É importante deixar claro que essa produçã o da individualidade nunca aparece como tal para os informantes, que naturalizam as premissas da ideologia individualista, acreditando na exist ência dessa singularidade ante¬ rior ao contato com a astrologia e representada pela carta natal. Rosa conclui seu relato referindo-se a seu cliente como

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uma pessoa que estava numa casca, estava em outra, e talvez perma¬ necesse um tempo enorme nessa. Então, de repente, aquela carta re ¬ velou para ele uma coisa que , com certeza, ele já sabia , mas não tinha o aval .

Como disse, para a maioria dos meus informantes essa id éia de independência individual e liberdade perante os sistemas terapê u¬ ticos e esotéricos é anterior ao contato com a astrologia , pois, no decorrer desse contato, eles já a atualizam. Parecem acreditar que, mesmo quando a astrologia desempenha um papel desencadeador ( como no caso do cliente de Rosa ) ou privilegiado ( como é o caso de vários estudantes ) , isso nunca implica exclusividade. Em¬ bora essa busca da liberaçã o da pessoa pela consciência de sua singularidade esteja presente na psican álise, tendo esta última um papel privilegiado na disseminação desse valor na sociedade bra¬ sileira, ela é, por vezes, utilizada contra a própria psican álise. Evi¬ dentemente, essa terapia n ã o supõe um controle e uma determina ção absolutos na vida do cliente. Mas ela os exerce num nível intole¬ r á vel para muitos dos informantes. Todos eles, à exceção de Francisco, psicanalista profissional, fizeram durante sua entrevista algumas restrições à psicanálise , as¬ sinalando as desvantagens que ela apresentaria em relaçã o à as¬ trologia. Isso ocorreu mesmo entre aqueles que se encontravam em pleno tratamento analítico no momento da entrevista. O as

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sunto foi evocado em todas, uma vez que, desde as primeiras en ¬ trevistas, percebi sua import â ncia e o mencionei mesmo àqueles que não se referiram espontaneamente a ele.

Dois foram os principais tipos de críticas e um deles se rela ¬ ciona justamente com a incompatibilidade do ethos da indepen ¬ dência perante os sistemas e o excessivo attachment que os infor ¬ mantes acreditam perceber na relaçã o analítica. Já mencionei no capítulo anterior como Ruth, apesar de achar que a psicanálise se aproximava mais da astrologia do que a religião, criticava a pri¬ meira. Embora o objetivo de autoconhecimento seja comum, as amigas que ela conhece “ vão ao analista ( . . . ) e levam dez, vinte anos, num sofrimento terr ível” . Esse sofrimento se relacionaria ao caráter intenso que envolve esse tratamento e, principalmente, à suposta possibilidade do desenvolvimento de uma relaçã o de de ¬ pendência entre o analista e o cliente, o que torna a interrupção do tratamento altamente traumá tica . Ao contr á rio do que normalmente acontece com os informantes, que circulam entre vários astró logos , comparam as diferentes interpretações e fazem as suas próprias uma vez que estudem astrologia a relaçã o com o psicanalista apresenta um exclusivismo criticável para alguns entrevistados. Mas a essa crítica genérica, que pode ser sempre rebatida pelo argumento de que ela se aplicaria apenas ao mau uso da psican á ¬ lise, segue se outra, mais decisiva. Das manifestações simbólicas associadas à astrologia, a psicanálise é normalmente julgada como a mais “ integrada” dentro dos valores da modernidade . Isso per ¬ mite que sua distinção do sistema astrológico seja realizada atra ¬ vés da sua exclusão da identidade desviante atribu ída pelos infor ¬ mantes às várias crenças esotéricas e alternativas. Assim, Ruth diz que quem procura a an álise para se autoconhecer sã o “ as pessoas mais ligadas na cultura ocidental” , que acabam seguindo um ca¬ minho mais dif ícil, mais complicado” . Se at é aqui venho citando apenas as críticas à psicanálise de Ruth, o faço porque ela parece ter resumido vá rios elementos so¬ bre esse tema , que reaparecem em outras entrevistas . A idéia de uma maior simplicidade da astrologia é bastante recorrente e sinte ¬ tiza as duas críticas principais. Por um lado, ela pode se referir ao relacionamento mais superficial do cliente com o astrólogo, o que proporciona uma maior liberdade para o primeiro . Esta opinião

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é a de vários estudantes e principalmente dos clientes, para os quais a própria astrologia n ão ocupa um lugar central no processo de autoconhecimento. Para Renato, por exemplo, a psicanálise, pela sua intensidade, envolve um grande risco: Me deixa fazer uma met áfora para explicar melhor o que eu acho : é como se. eu tivesse uma pereba na perna: o sujeito pode tirar ela, mas pode també m tirar a perna inteira . Não é que eu tenha medo, mas eu não vou correr um risco desses .

Dessa forma, ela acredita que a psican álise teria um método “ mais tortuoso, mais complicado” expondo a pessoa “ a derrapa ¬ gens enormes” , ao contrário do que ocorre, em sua opinião, na as¬ trologia. Para B á rbara, a simplicidade da astrologia, assim como a do tarô , do qual também se utiliza, est á no fato de que neles não se fica elaborando demais, “ as coisas são ditas porque estão na carta, são respostas mais imediatas” . Ela reconhece que, dependendo da linha do profissional, as interpretações podem exigir reflexões e discussões intensas, mas persiste, para ela, “ uma diferença crucial” : sempre “ é uma consulta, quer dizer, é uma hora e meia e n ão sete anos” . Mas a busca de uma linguagem mais simples também é, segundo Renato, a busca de algo diferente, marginal: Eu procuro me conhecer, como todo mundo, só que não pelo método que está aí, ofertado na vitrine. Eu procuro outro. Talvez vontade de ser diferente , sei l á . ( . . . ) Toda a minha gera ção, todos os meus ami ¬ gos, todos v ão ao psicanalista.

Mas se os clientes també m sã o capazes de valorizar a astrolo¬ gia em detrimento da psicanálise devido ao seu cará ter “ marginal ” , são os estudantes de astrologia, com sua visão mais teórica , que vã o aprofundar essa idéia . A excessiva elaboração da psican álise, que Bárbara contrapõe ao fato de que, na astrologia, as “ determina¬ ções” est ão fora do sujeito, é atribu ída pelos estudantes ao seu sim¬ bolismo limitado, o que explica sua aceitação pela “ cultura ociden ¬ tal” A crí tica desse uso restrito do simbolismo pode se dar em duas direções. A primeira delas se relaciona com o car á ter “ tortuo¬ so” da prá tica analítica, censurando-a por sua excessiva raciona ¬ lização. Ao contr ário dos sistemas simbó licos , que s ão conhecimen ¬ tos intuitivos, ela possuiria uma discursividade típica da mentali

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dade ocidental.6 Clá udio explica sua prefer ência pela astrologia como seu meio para o autoconhecimento através desse tipo de ar ¬ gumento:

para encarar as pessoas, as minhas relações; acho que faltaria outra coisa, como idéias desse tipo ( ), de uma percepção mais do uni ¬ verso, de um todo, entendeu?

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A astrologia está muito ligada à experiência mesmo, à vivência das coisas, e nã o à elaboração de teorias como é a psicologia, com aquela elaboraçã o toda

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Para a maioria dos informantes, o simbolismo da psican á lise, restrito a quatro paredes, se constituiria num tipo inferior em relação à astrologia, que fala dos elementos, da vida cotidiana , com sua linguagem do concreto. O segundo tipo de crítica ao simbolismo psicanalítico não visa a sua forma, mas a sua extensão. Para Freud, a atividade simbó¬ lica é produzida pelo inconsciente do indivíduo e, se ela envolve objetos e outros indiv íduos, esses sí mbolos só existem enquanto projeções desse mesmo inconsciente. Em consequência , ela se exer cerá basicamente sobre aquilo que se encontre próximo desse últi ¬ mo. Dessa forma, Beatriz, que fazia um tratamento analí tico no momento da entrevista, reconhece méritos na psicanálise, mas afir ¬ ma que “ a astrologia é muito mais abrangente” . Ela demonstra isso referindo-se à sequência das casas astrológicas, que parte de uma primeira casa individual, vai gradativamente atingindo níveis cada vez mais perif éricos ao indivíduo , chegando à doze, ligada ao do¬ mínio espiritual, chamada pelos astrólogos reencarnacionistas de casa do Karma, ou seja, aquela que determina o lugar desse indi víduo na totalidade. Assim, à psicanálise falta , segundo Beatriz , qualquer referência ao sagrado, ao espiritual. Enquanto a astrologia procura ligar com uma totalidade, utilizando uma linguagem sincronística.

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Pelo que se pode perceber nas palavras de Beatriz, o pluralis¬ mo que os informantes valorizam nã o significa a adesão' a um indi¬ vidualismo radical . É muito comum , al ém disso, que este último adjetivo seja usado para qualificar pejorativamente a psican álise. O fato deles reconhecerem as diferenças de estilos entre astrólogos e praticantes, explicada pela própria carta de cada um, e as inter ¬ pretações diversas que cada mapa possa ter, baseados na concep¬ ção de simbolismo que venho descrevendo, leva os a justificarem a multiplicaçã o de pontos de vista, sem, entretanto, abandonar a ideia de um nível englobador. Pelo contrário, os dois níveis se complementam : cada microcosmo é particular apenas na medida em que reflete o macrocosmo. Dessa forma, Teresa foi a três astró¬ logos diferentes, fez, durante sua entrevista , críticas a cada um deles, mas concordou que os relatos que eles traçaram de sua per¬ sonalidade estavam todos corretos, enfocando a, cada um, por um â ngulo distinto. Por sua vez, Alice afirma que a pessoa que quer aprender astrologia deve assistir a todos os cursos e confer ências e ler todos os livros possíveis, para ent ão formular sua opiniã o sobre o assunto, “ sem fugir da verdade da astrologia” . Se se acredita, como é o caso de meus informantes, que a carta natal realmente fornece a verdade do indivíduo que a possui, a multiplica ção de consultas astrológicas e de referências a seu respeito não é simplesmente um acú mulo aleat ó rio de opini ões, mas a tentativa de identificar a natureza de um ponto comum entre elas, que é o próprio mapa. Na psicanálise, onde não há esse ponto fixo e a multiplicação de terapeutas é menos vi ável, os informantes ten ¬ dem a achar muito provável que o analisando se deixe envolver pela visã o pessoal do analista.7 Isso pode ser ilustrado através do

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a psican álise é baseada totalmente na relaçã o de causa e efeito. Ela te restringe muito: você é o produto da fam ília em que viveu ( . . ) , produto de pai e m ãe. Tanto que você vai lá pra se livrar de pai e mãe, entendeu, se achar um pouco dentro da bagunça toda ( . . . ) . Eu faço an álise e acho ótimo, é superbom para mim, mas eu acho limi tada, n ão é só isso, Não adianta eu sair supersegura de mim, pronta

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Estou relatando, evidentemente, apenas as opiniões dos informantes, sem querer discutir a fundo a teoria freudiana, cuja validade não me cabe ava ¬ liar agora . Mesmo assim, é bom lembrar que Freud compartilha com os informantes dessa valorização da independência individual Assim , como res ¬ salta Figueira , ele recomenda que a interpretação seja fornecida segundo um determinado timing, através do qual ela é oferecida somente “ quando o pa -

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É bom lembrar, entretanto, que a idéía de que o conhecimento sim ¬ bólico é de natureza intuitiva e sensível já é admitida pelo romantismo, tendo sido primeiramente formulada por Kant (cf . Todorov, 1977:236)

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entrar em contato com seu inconsciente ( . ..) n ã o querer brigar com o que você é, nã o querer criar um personagem incompat ível com as suas tendências. Se o mapa astral te dá esta possibilidade, é ó timo; se é a psicaná lise, se é o tarô, se é o padre que faz isso, eu acho irrele¬ vante .

Vemos acima um exemplo do pluralismo que domina o mundo esot érico e alternativo e que ser á comentado adiante. Vemos que esta informante, em especial que, até por sua formação, se en ¬ contra mais ligada à psicologia vai ao ponto de incluir a psica¬ nálise entre os sistemas que aceita. Entretanto, isso nã o impede que haja um tipo de análise que ela critica, que ela já havia aban ¬ donado na época . Muitos informantes, menos críticos da terapia psicanalítica, costumam , por outro lado, dividir esta última em dois campos; um ortodoxo, que permanece mais rigidamente fiel aos princípios freudianos e intolerante em relação a qualquer sistema magico, e outro heterodoxo ou alternativo, mais eclético e “ aber¬ to’’. Como ocorreu com Rosa e Laura, os do primeiro grupo cos¬ tumam não levar a sério as suas experiências com a astrologia, o que os leva a procurar terapeutas do segundo. Estes são, portanto, aceitos, enquanto que os ortodoxos rejeitados, por permanecerem aqu é m da flexibilidade e da toler ância que está presente no psicologismo desses grupos. Assim, Laura critica retrospectivamente sua primeira experiência com a psicanálise, justamente por ela n ã o lhe

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depoimento de Laura, que, antes de se decidir a estudar astrologia, era cliente regular de astrólogos com uma visão pragmá tica e de termin ística. Com formaçã o em psicologia, ela já fazia an álise à época da entrevista ; porém, naquele período anterior, ia a um ana ¬ lista de formação kleiniana , que hoje critica. Para ela, a funçã o da an álise, assim como da astrologia e de outros sistemas divinatórios, seria

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ciente já está a um passo de descobri-la ele pr óprio” (1981: 187) . Além disso, pode-se sempre argumentar que essa verdade sobre o indivíduo seria induzida pelo analista, acusação que, por outro lado, se aplicaria à astro logia ou a qualquer sistema do qual se discorde. Este timing seria com ¬ parável ao tato que Rosa teve com o segundo cliente ao relatar a incom patibilidade entre suas atitudes e seu mapa , justificado pelo argumento de que “ n ão se pode interferir assim” . ¬

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ter permitido, como faz a astrologia, o contato com sua individua¬ lidade singular, presente no inconsciente e / ou no seu mapa astral:

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A minha mem ória desses cinco anos de an á lise kleiniana ( . . ) foi de uma camisa-de força, foi de uma coisa que nada tinha a ver com o que eu entendo por inconsciente hoje em dia. Era uma coisa peda¬ gógica , didá tica: o analista tinha lá uns pressupostos do que ele con ¬ siderava uma pessoa sadia e ele tentava me enquadrar

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Assim , mesmo quando os informantes criticam a psican álise ou algumas de suas formas, eles o fazem para reafirmar aspectos de seu ethos também presentes, em parte, na “ cultura psicanalí ti¬ ca” , ou seja, a valorização do autoconhecimento enquanto instru ¬ mento de liberação pessoal e expressão de sua singularidade. Nesse sentido, alguns informantes acreditam que a astrologia é capaz de ir até alé m do que promete a teoria psicanalítica . Por outro lado, eles se preocupam com a quest ã o do simbolismo , acreditando que ela n ão se aplica apenas ao inconsciente de cada indivíduo, o que faz com que eles se aproximem das teorias de Carl G. Jung. Para este último, a astrologia, a alquimia e outras manifestações do ocultismo representariam acessos ao inconsciente disponíveis antes do advento da psiquiatria. Assim , ao fornecer explicações para a eficácia desses sistemas esotéricos assim como para a de outras divinações como o I Ching, associados por ele , respectivamente, à natureza arquetípica do inconsciente coletivo e ao fen ômeno da sincronicidade, Jung é tomado como um teó rico do esoterismo , É sobre esta convivê ncia de v á rias formas de autoconhecimento que tratarei a seguir.

Astrologia e esoterismo A ampliação do conceito de psican álise, provocada pelos usos que os informantes dele faziam, é análoga ao uso amplo que tenho feito do esoterismo neste trabalho. Como vimos no capítulo anterior , há uma emergente bibliografia em ciências sociais que tem pro¬ curado trat á-lo como uma “ cultura” difusa, cujos eidos, éthos e dialetos estariam penetrando em segmentos da sociedade moderna. Nã o tendo contornos teóricos ou institucionais t ão precisos quanto

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os da cultura psicanalítica, a delimitação desse campo tem apre sentado vá rias dificuldades. Se deixarmos da lado o termo “ alter nativo” , usado por Ferreira, e que, mesmo que de forma impreci¬ sa , denotaria um amplo estilo de vida atingindo áreas múltiplas como alimentação, política etc., e tentássemos dar uma idéia apro¬ ximada do que caracterizaria o esoterismo como movimento inte¬ lectual, poderíamos defini lo como um esforço em integrar tradi¬ ções religiosas as mais distintas supondo a exist ência de um n ú cleo comum entre elas, Essa aceitação ampla de religiões aparentemente díspares entre si produz no pensamento esotérico a distinção entre um aspecto literal de cada uma delas “ exotérico” e o seu sentido propriamente esotérico, no qual suas conexões verdadeiras apareceriam. A vinculação do esoterismo com o simbolismo residiria aqui, pois esta segunda dimensão revelaria a “ significaçã o simbólica profunda” dos princípios literais que constituem o exoterismo de cada religião. Tal tipo de concepção pode ser encontrada tanto em socieda ¬ des iniciá ticas e secretas, como os rosa cruzes ou a franco maço liaria, quanto em pensadores neoplatônicos e ocultistas. Por ém, a partir dessa aceitaçã o a priori de formas religiosas diversas, desenvolve se um esforço para estabelecer as bases de sua conciliação. É nesse plano que surgem as divergências entre as várias corren¬ tes do “ movimento esot érico” . Assim como no caso da categoria “ alternativo” , a de “ esot érico” pode também t õrnar-se um mecanis¬ mo para o estabelecimento de fronteiras ao definir as formas legí¬ timas de interpretar-se os conteúdos dos sistemas religiosos e dos sistemas divinatórios e terapêuticos a eles associados. Dessa forma, uma delimitaçã o do mundo esotérico em qualquer local tem que partir das definições de seus próprios integrantes, atenta às negociações e conflitos que elas refletem . Aqui, meus objetivos s ã o bem mais modestos: pretendendo descrever e analisar basicamente as refer ê ncias de meus informantes ao esoterismo e às práticas e cren ças a ele associadas e suas relações com a astrologia. Antes, por ém, apresentarei alguns dos temas básicos do eso¬ terismo, procurando mapear este extenso domínio, guiado pelas in¬ dicações de Antoine Faivre, titular de “ hist ória das correntes eso¬ t éricas e místicas na Europa moderna e contemporânea” , na École Pratique des Hautes Études, desde 1979. Deve-se ressaltar que, de ¬ vido a rara posição de um esoterista na academia que ocupa, ele representa um setor “ erudito” do esoterismo, que pode se distan-

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ciar muito, por exemplo, do esoterismo da “ nova gnose” , presente nos media. Al ém disso, muitos usuá rios de sistemas esotéricos po¬ dem justificar o uso conjunto de v á rias prá ticas esot é ricas baseados apenas na eficácia prá tica que a elas atribui, sem se importar com os sutis debates da intelligentsia esot érica acerca da coerência teó¬ rica entre essas pr áticas. Segundo Faivre, a palavra ésoterisme só surgiu, na Europa , no século XIX, tendo sido inventada por Éliphas Lévi. At é ent ã o, esse domínio era geralmente definido por expressões como “ philo sophia perenais” ou “ philosophia occulta” . Ele associa esta carên ¬ cia conceituai à própria ausência de necessidade de se delimitar um terreno comum para suas várias manifestações ( “ teosofia, hermetismo, Cabala, alquimia , teurgia, astrologia . uma vez que esse conjunto “ se integrava suficientemente bem à paisagem à volta” ( p. 13 ) . Tal necessidade só foi sentida com a gradativa emergên ¬ cia da sociedade moderna e a relativa marginalidade em que esses conhecimentos foram colocados. A etimologia grega desse conceito ( eso thodos ) significaria , segundo Faivre, m étodo ou caminho interno. No seu sentido res¬ trito, portanto, corresponderia a “ uma entrada em si ( . . . ) , que passa por uma gnose um conhecimento para atingir a uma forma de iluminação e salvação individuais” ( p. 14 ) . Michel Mirabail apresenta outra etimologia, esotéricos, que atribui às pala ¬ vras escondido , secreto Os conhecimentos esot éricos se oporiam , assim, aos exot éricos, ou seja, à queles cujo acesso seria livre ( 1981: 88 ) . Esta distinçã o se inspira não somente nas sociedades secretas e iniciá ticas ( como os rosa cruzes e a franco maçonaria ) , que se utilizam de v á rias noções do ocultismo, mas também nos próprios filósofos gregos antigos, como Pitágoras. Faivre, entretanto, faz quest ão de explicitar seu desacordo com a id éia de que o esoteris¬ mo estaria necessariamente ligado à idéia de segredo. Limit á -lo, diz esse autor, “ a esta única dimensão provém freqúentemente da ma-f é, da ignorância, ou , ainda, da preguiça intelectual ” ( 1986: 31-2 ) . Por um lado, h á um argumento evidente que afasta inteira¬ mente a possibilidade de qualquer vinculaçã o estreita entre a no¬ ção de esoterismo e essa id éia , qual seja, o fato de que, contempo¬ raneamente, aqueles que se proclamam representantes do pensamen ¬ to esot érico publicam livros e penetram cada vez mais nos meios de comunicaçã o de massa. Por outro, parece clara a qualquer obser ¬ vador superficial dessa literatura a defesa desse tipo de vinculação.

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Durante sua entrevista, um informante, Haroldo, refletiu so¬ bre esse paradoxo e, ao fazê-lo, apresentou conclusões muito se¬ melhantes às de vá rios autores esot éricos sobre o assunto , Para ele, hoje era dia, você não precisa entrar numa Rosa-Cruz, numa socie¬ dade maçónica, onde você tem que fazer iniciações e a coisa é toda porque o conhecimento está todo a í. É só procurar que secreta você encontra . E encontra coisas fantásticas.

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Se a exist ência desse “ livre mercado” , como ele expressa, apre¬ sentaria aspectos positivos, ele tamb ém implicaria perigos. O gran ¬ de risco seria representado pelo mau uso desses conhecimentos, que, “ se usados por cada um de acordo com sua personalidade” podem “ fazer mal a muita gente, como t êm feito” . Tais riscos, como vi¬ mos, também levavam os informantes a criticar o mau uso da psi¬ can álise. Más, para Haroldo, eles são inevitáveis e devem ser cor¬ ridos devido à crise que ele associa, como vimos no in ício do Ca ¬ pítulo 2, à sociedade moderna. No momento em que os valores dessa sociedade se encontram cada vez mais precá rios, e a sua própria sobrevivê ncia se vê ameaçada pelo perigo nuclear, ele julga que esta “ abertura” é a única maneira de se acelerarem as mudan¬ ças sociais que vincula à era de Aqu á rio e à subsequente supera¬ ,

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do em Alexandrian, 1983:261 ) . Sua preocupação em popularizar o esoterismo se reflete na fundaçã o, em 1887, da “ Escola de ciên ¬ cias herm é ticas” e na publicação de vá rios manuais sobre o assun ¬ to, um dos quais ( Papus, 1986 ) , foi prefaciado por Anatole Fran ¬ ce. Por outro lado, embora possuindo numerosos alunos, a Escola também preparava os candidatos para uma organização iniciática ligada a Papus, a Ordem Martinista, “ que pretendia ter como ori¬ gem uma transmissã o regular da antiga Ordem dos Eleitos de Co¬ hens, fundada no século XIX, por Martinès de Pasqually ” ( Car ¬ valho, 1977: 10 ) . Já no mundo anglo-saxão, uma das figuras mais importantes desse revival esotérico do fim do século passado foi Helena Petrov ¬ na Blavatsky ( 1831 1891 ) , que também adotou esta posição am ¬ bígua que associa ao esoterismo, ao mesmo tempo, publicidade e segredo. Russa de nascimento, Mme. Blavatsky, como era conhe¬ cida, fundou , em 1875, a Sociedade Teosófica. Esta foi uma orga ¬ nizaçã o importante para a história da astrologia, porque um dos seus membros, William F. Allan, ou simplesmente Alan Leo ( 1860 1917 ) , é considerado o responsável pelo renascimento moderno da astrologia ( cf . Hone, 1980:295 ) . Para Blavatsky, um dos objetivos dessa sociedade, que existe at é hoje, é o de “ reconciliar todas as religiões, seitas e nações sob um sistema comum de verdades eter¬ nas” ( 1978: 18 ) . A novidade introduzida por essa autora no sincretismo que caracteriza o pensamento esot érico foi a de associar o neoplatonismo a religiões orientais que, até ent ão, não haviam sofrido influências dessa filosofia como é o caso do budismo. En ¬ tretanto, devido à incompatibilidade existente entre a doutrina dessa religião e as teorias da tradição ocultista, Blavatsky admite a hi¬ pótese de que Buda tenha transmitido conhecimentos esot éricos a certos discípulos que os teriam mantido secretos, embora não haja registro a esse respeito ( cf . pp. 25 6 ) . Como vimos, para essa au ¬ tora, assim como para vá rios teóricos ocultistas, todas as religiões apresentariam um lado visível, exotérico, destinado a satisfazer ne¬ cessidades ritualísticas e dogmá ticas das massas, e uma sabedoria esot érica, onde as diferenças doutrin árias se dissolveriam. Para Bla ¬ vatsky, a teosofia constituiria a síntese e a revelação dessa ú ltima dimens ão Segundo sua fundadora , a escolha do nome da sociedade foi absolutamente natural, pois acreditava que seu sentido permane¬ ce o mesmo desde que foi primeiramente formulado pelos fil óso»

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çã o dessa crise. Dessa forma , desde que foi cunhado pela primeira vez, o con¬ ceito de esoterismo esteve ligado à noção de segredo, mesmo in ¬ cluindo sistemas que conheceram, tanto no presente quanto em v árias fases do passado, uma extrema popularidade, como é o caso da própria astrologia, Lévi, abade cujo nome verdadeiro era Alphonse Louis Constant (1810-1875 ) , foi o responsá vel n ão só pela retomada do interesse por alguns desses sistemas, como a Cabala e o tarô, como também por uma certa divulgação do próprio pen ¬ samento esot érico e ocultista, exercendo influ ência no meio intelec¬ tual parisiense de sua época e lido, por exemplo, por Victor Hugo ( cf . Alexandrian, 1983: 96 101 ) . A popularidade desse pensamento na Franç a aumentou, em seguida, graças à figura de Fapus, ali ás Gérard Encausse ( 1865-1916 ) . Quando estudante de medicina, des¬ contente com o ensino evolucionista que recebia , ele descobre na Bibliotè que Nationale antigas obras herméticas que lhe ensinaram, segundo suas próprias palavras, “ a manejar este maravilhoso mé¬ todo analógico, t ão pouco conhecido dos filósofos modernos que permite agrupar todas as ciências em uma síntese comum” ( cita-

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fos alexandrinos neoplat ônicos e que haveria uma completa con¬ tinuidade entre as teorias desses primeiros ocultistas e as suas. Faivre, mais preocupado em estabelecer conceituações precisas, faz um cuidadoso levantamento sobre o emprego desse nome, prin ¬ cipalmente após a Renascenç a . Ao fim da descrição de sua histó¬ ria, Faivre propõe um sentido restrito e um amplo, condenando a confus ão provocada pelos “ ensinamentos muito sincré ticos” de Mme. Blavatsky ( 1986:22 ) . O primeiro sentido se liga mais es¬ treitamente à sua etimologia ( theos sophia, sabedoria de Deus ) e ao seu emprego inicial pelos Padres da Igreja, referindo se ao es tudo da natureza divina , dos “ mist érios ocultos da divindade” (p. 50 ) . Já sua definição ampla a coloca como um elemento bᬠsico do esoterismo. Este último distingue se da id éia tradicional de m ística por n ão possuir a tendência subjetivista muitas vezes associada com esta última . O contato com Deus é sempre media¬ do pela natureza, uma vez que esta reflete simbolicamente a Sua glória . Fundada sobre a idéia de correspond ências universais, a teosofia se aplica ao tempo, através da identificaçã o de arqu étipos intemporais no “ simbolismo mitológico” , e ao espaço, procurando nas “ estruturas ocultas do universo” o reflexo da natureza divina ( PP. 27-8 ) . Como Faivre ressalta , o pensamento teosófico tem a tendên¬ cia a privilegiar aspectos do mito muitas vezes negligenciados pelas igrejas constituídas . Assim, a dist ância entre a visão esotérica de uma religi ão e a visão comum sempre se relaciona com a capaci ¬ dade dessa ú ltima , em maior ou menor grau, se afastar da inter¬ pretação literal dos mitos e ritos e com uma flexibilização em re¬ lação a seus aspectos dogm áticos , na direção de um maior plura¬ lismo. A relação com o mito, por exemplo, assume um aspecto distinto, não incluindo mais a adesão à religião à qual ele per¬ tence, mas dando-se em fun çã o da possibilidade da interpretação da mitologia, que teria uma fun çã o cognitiva. Isso se verifica quan ¬ do homeopatas ligados à astrologia se utilizam do relato bíblico da génese n ão mais como uma narração que explicaria a origem do mundo, entrando em contradiçã o com as teorias científicas so¬ bre o assunto, mas como o relato simbólico da queda do homem . Sem tirar desta última as consequências teológicas do catolicismo, um autor a relaciona ao surgimento da dor, do sofrimento e da doença, ou seja , da perda da harmonia entre o homem e o cos¬ mo, que a homeopatia pretende restabelecer ( cf . Fontes de Car-

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valho, 1985 ). Neste, como na maioria dos casos, a interpretação literal n ão contradiz inteiramente a simbólica. Outro exemplo se¬ ria a utilização em cursos de astrologia de mitos gregos para a ex¬ plicação do sentido dos símbolos astrológicos, que atribui aos pri¬ 8 meiros a representação de princípios universais. Faivre atribui aos sistemas divinatórios, terapêuticos ou m á ¬ gicos do esoterismo um lugar específico, representando o seu lado prá tico.9 Este seria o ocultismo,10 domínio que se dedicaria a “ apli¬ car” o conhecimento das correspond ências analógicas sobre as ¬ quais a teosofia teoriza ( 1986: 28-9 ) . Embora teoricamente liga ¬ senti um receber pode da a essas teorias, a prá tica do ocultismo do pejorativo, uma vez que não seja acompanhada por uma orien ¬ ¬ tação teórica adequada . No entanto, é muito dif ícil definir a pre ¬ ê n tend das uma a filiar sen ça dessa última univocamente sem se , como vezes , por cias do esoterismo. Assim, o conceito é utilizado categoria de acusaçã o, que condena variedades do esoterismo, sem deixar de neles reconhecer alguma eficá cia prá tica. Faivre, parti ¬ cularmente, usa o termo para criticar a vulgarização do esoteris¬ mo, afirmando que a definiçã o que ele emprega de ocultismo sur¬ ¬ giu , no século XIX, coincidindo “ com a apariçã o de um esote rismo trivial” ( p. 6 ) . Integrando teosofia e ocultismo, o esoterismo seria , para Fai¬ vre, uma busca de “ salvaçã o e iluminação individual” . A estes

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temporal . Um “ Dei apenas exemplos do que Faivre chama de teosofia ção que fiz descri na encontrado pode ser espacial teosofia de bom exemplo procurava que , Carvalho de da análise simbólica empreendida por Olavo inteligência , que a çõ entre es rela as solar sistema do encontrar na estrutura à Lua. seria simbolizada pelo Sol , e o pensamento , que corresponderia como no comum o t ã é o ã n esoterismo ao homeopatia 9 da çã A associa o Dentro . XVIII é s culo no elaborada caso da astrologia , até porque ela foi opi ¬ esposando ê ncias tend diversas existem , homeop á tico campo prio do pró o mostrar ” procuram ricas é esot niões diferentes sobre o assunto . As mais “ , tradicionais medicinas outras a deveu , Hahnemann , fundador seu quanto como à hipocrática e à gal ênica. sinó¬ 10 Faivre reconhece que este conceito é , por vezes , utilizado como seguindo , empreguei o á que j forma nimo de esoterismo (p. 30) . Foi dessa vários esoteristas e pesquisadores da história e do mundo esotérico. Assim , a utilizando um m étodo várias vezes seguido pelo pr óprio Faivre, usarei sua que a outra seria enquanto ” , termo do restrito “ sentido o çã como defini o o “ sentido amplo” .

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corresponderia aproximadamente as ideias de “ auto-aperfeiçoa mento” e “ harmonia” encontradas no discurso de meus informan ¬ tes. Elas seriam obtidas, segundo Faivre, através de uma forma de conhecimento, definido como “ gnose” , da qual o movimento gnóstico dos primeiros séculos de nossa era é apenas um caso particu ¬ lar . Esse autor prefere utilizar esta palavra, pois sua raiz grega n ã o desvincula o saber da experiência m ística e religiosa. A gnose pode levar, portanto, a uma transformaçã o e libertação individuais ( 1986: 15 6 ) , A iluminaçã o e a gnose, embora ligadas, constituem dois pólos de um contínuo, estando a mística mais próxima do primeiro extremo. A pr á tica astrol ógica da maioria de meus in ¬ formantes se encontra no extremo oposto desse contínuo, junto provavelmente com a maioria dos sistemas divinatórios, embora alguns participem de outros segmentos do mundo esotérico mais místicos, como a meditação, já praticada por Haroldo, e as prá ¬ ticas propriamente religiosas, como veremos no próximo segmento. Assim, pode se dizer que as etimologias conflitantes para o esoterismo, uma ligada à idéia de “ interno” e a outra às de “ se¬ gredo” e “ oculto” n ã o deixam de convergir quando pensadas no contexto de uma “ gnose individual” . Nesta, o conhecimento bus¬ cado seria obtido lentamente, mesmo não sendo secreto, pois, na verdade, ele iria além das “ aparências” em que permaneceria o “ conhecimento comum” do real, nele desvendando as suas cone¬ xões simbólicas profundas. Por outro lado, sua obtenção trans¬ formaria intemamente o indivíduo, não sendo assim um “ conhe¬ cimento desinteressado” . Desvinculado de uma concepção . literal de segredo, a idéia de “ oculto” se aproxima da noção de interio¬ ridade presente no conceito psicanalítico de inconsciente, como p ôde ser percebido em várias entrevistas, o que nos mostra mais uma vez as possibilidades de assimilação da psicaná lise ao esote ¬ rismo. ¬

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Mostrei, no capítulo anterior, que v á rios estudantes de astrologia tinham també m uma grande curiosidade em relaçã o a outros sis¬ temas divinatórios, mitologia, religiões orientais, terapias alterna ¬ tivas etc. Há sempre a percepção de uma convergência entre esses domínios. Haroldo, que se interessa pela astrologia enquanto m é¬ dico homeopata , ao relatar seu interesse na juventude pelas reli¬ giões orientais, pela ioga, pela macrobi ótica etc., usa a expressã o

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“ uma coisa puxa a outra” . Alguns estudantes tiveram seus primei¬ ros contatos com a astrologia em outras á reas do esoterismo. Te¬ resa e Sônia ouviram falar dela pela primeira vez em suas acade¬

mias de ioga . A astróloga Regina só chegou à astrologia após ter estudado n ã o só a psicologia junguiana, como também sistemas di¬ vinat ó rios ( como a grafologia , a numerologia e o palmismo) , a “ filosofia indiana” , a “ poesia taoísta” , segundo ela , “ coisas que a cultura oficial renega” . No entanto, a maioria dos informantes fez sua entrada no mundo esot érico através da astrologia, uma vez que, dos sistemas que o compõem, ela é um dos que têm maior penetração nos meios de comunicação Portanto, é muito comum o fato de um indivíduo chegar a outros setores do mundo esoté¬ rico a partir de um primeiro contato com a astrologia. Apesar da grande pluralidade expressa pelos informantes, eles estabelecem limites para ela. José diz admirar uma declaração do escritor Millôr Fernandes, segundo a qual ele procurava ler abso¬ ¬ lutamente tudo: desde “ altos estudos” até receita de bolo, classifi ¬ agradabi cados e an ú ncios funerários, “ onde se pode ter notícias a líssimas” , ironiza. Para esse informante, a astrologia nos ensina “ conhecer Deus e as pessoas” , n ão permitindo que fiquemos “ limi¬ tados, restritos, preconceituosos” . Embora a maioria dos astrólo¬ gos e estudantes reconheçam, como diz Beatriz, que a “ astrologia é apenas uma das linguagens para se chegar ao autoconhecimento” , eles admitem que n ão se pode conhecer todas elas e é preciso realizar escolhas O mesmo grau de exigência que os estudantes e astrólogos que que entrevistei cobram dos meios de comunicação e dos clientes sobre recai astrologia da superficial o se limitam a ter uma visã eles pró prios, servindo para justificar o fato de n ão praticarem ou ¬ tros sistemas esotéricos: “ afinal ” , nas palavras de Regina, “ n ão se pode aprofundar em tudo” . Mesmo em casos como o de Haroldo, que tomou contato com vários segmentos, houve a escolha de ape ¬ nas alguns, a astrologia e a homeopatia , a partir de critérios ba ¬ seados justamente nesta exigência .

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No fundo, todas essas coisas são interessantes, mas poucas vão fundo realmente ( . . .) . Eu acredito atualmente que. a maioria destas coisas que existem neste mercado são polimentos e não caminhos de trans pro¬ formação. Eu fui optando pelos caminhos que transformavam mais . simplistas menos por serem fundamente ¬

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o mundo da astrologia

A homeopatia e a astrologia, enquanto “ linguagens para a transformação” , seriam as línguas dif íceis de se aprender, como “ o alemão ou o chinês” . Ele reconhece que existem cursos nos quais, “ em dois meses você sai fazendo mapa ou prescrevendo rem édios” , mas, na sua opinião, “ isto é charlatanice” . Diferentemente de Haroldo, a maior parte dos “ estudantes” n ã o fez em suas entrevistas grandes cr íticas a outros sistemas esotéricos. Um ou outro, eventualmente, mencionou experiências negativas, mas que n ã o podiam ser generalizadas a todos os prati ¬ cantes daquela área. Em linhas gerais, pode-se dizer que há uma crença a priori na eficá cia de todos os sistemas esoté ricos antigos,11 e, uma vez que tomem contato com alguns deles, em termos teó¬ ricos ou pr á ticos, as críticas que porventura surjam se dirigir ã o a sua utilização inadequada. Isso porque , tendo aceitado a validade da lógica simbólica e anal ógica da astrologia , torna se possível a admissão da existência de outros sistemas que a empreguem . Esses são, como vimos, sistemas fechados, que n ão podem ser verifica ¬ dos ou refutados experimentalmente. A teoria do simbolismo de meus informantes é uma elaboração consciente desse traço. Como mostrei no Capítulo 1, o caráter fechado da astrologia implica a sua estabilidade. Sua elaboração, para a maioria dos informantes, se perde em tempos imemoriais:

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A astrologia é uma ciência sagrada Sagrada em que sentido? É no sentido de que era uma ciência que lia símbolos, um saber de sím ¬ bolos que reportam o homem a sua matriz original (Rosa)

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Esta ê nfase, freqiientemente exagerada em relaçã o aos dados disponíveis, na antiguidade da astrologia é semelhante à que encon ¬ tramos nos próprios teóricos do esoterismo a respeito da origem de suas doutrinas. Esta atitude é antiga . Os filósofos dos primeiros sé¬ culos da nossa era tentavam hierarquizar a sabedoria dos povos orien ¬ tais de acordo com sua antiguidade e acreditavam, muito frequen ¬ temente, que os filósofos gregos clássicos foram instru ídos pela “ sa¬ bedoria bárbara ” ( Festugière, 1981: 20 3 ) . Os egípcios eram quase sempre os escolhidos e o deus Tot, relacionado, mais tarde, a Her ¬ mes Trismegisto, era considerado o pai de toda a ciência. Yates, por sua vez, nos relata que Ficino, na Renascença, estabeleceu Trisme¬ gisto “ como fons et origo de uma tradiçã o de sabedoria que seguia numa linha cont ínua a Plat ão” , e que també m incluía Zoroastro, Orfeu e Pitágoras, por exemplo ( 1964:15 ) . Os representantes mo¬ dernos do esoterismo procedem de maneira semelhante, declarando Papus que suas idéias se ligam às “ ensinadas nos templos do Egito desde 2600 antes de Cristo” ( 1986: 17 ) , enquanto que Blavatsky afir¬ ma que sua doutrina “ é muito anterior a todas as dos teósofos de Alexandria” , tendo sido preservada pelos “ iniciados de todos os paí ses” (1978: 21-2 ) . No entanto, em rela ção aos teóricos esot éricos do século pas¬ sado e do início deste, os estudantes e astrólogos que entrevistei en ¬ fatizam menos o cará ter secreto do esoterismo. Para eles, o mais importante é a compreens ã o mais “ profunda” que este último pos¬ sui dos fenômenos religiosos e ocultos. Dentro da sua vis ã o sim ¬ bólica, eles se definem pela capacidade de transcender as concep¬ ções literais ou pragmá ticas. Convergem, assim, como Faivre que argumenta que o verdadeiro sentido do “ segredo” do esoterismo re¬

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Porque a astrologia vem desde quatro mil anos antes de Cristo, e os povos daquela época já se guiavam pelos astros, (Alice) O que pega na astrologia ( . . . ) é procurar através do simbolismo, que est á aí há não sei quantos mil anos, tentar ver o quanto yocê está ligado em toda esta história. (Clá udio)

A astrologia é uma heran ça antiga, você tem que levar isto em conta . Não é como a psicanálise, que nasceu dentro do sistema capitalista atual . É uma herança mais antiga ( . ) que pode ser aplicada no mundo atual. (Sônia)

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side no fato de que

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É importante ressaltar que, mesmo dentro do esoterismo, há uma forte corrente, na qual se incluem Blavatsky e Papus, que tenta cientificizá - io. Por outro lado, existem astrólogos que se dedicam a explicar a eficá cia da as¬ trologia por meio de levantamentos estat ísticos e estabelecimento de influên ¬ cias eletromagnéticas entre os planetas. Embora isso seja um assunto fas¬ cinante, ele n ã o surgiu na maioria das minhas entrevistas, o que me leva a nã o d íscuti-lo aqui para nã o me estender excessivamente

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os mistérios da religião ( . . . ) , as forças escondidas da ordem cósmica ( . . . ) , nã o podem se prestar a uma compreensão literal nem a uma explicação did ática ou un ívoca, mas devem ser objeto de uma pene ¬ tração progressiva, em v ários n íveis, por cada homem em busca do conhecimento. (1986:32)

Como venho insistindo, a astrologia apresenta um duplo as¬ pecto. Seu domínio é produto de estudo e é obtido através do co

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nhecimento. Ao lado desse aspecto “ racional” ela tem um lado sim¬ bólico, intuitivo. Se os estudantes e os astrólogos se definem por possuírem em maior grau este domínio, o que lhes permite com¬ preender melhor suas potencialidades, eles valorizam o conhecimento antigo por escapar do racionalismo cientificista . O mundo dos an¬ tigos, assim como o dos orientais, “ é mais simbólico” , como res¬ salta Clá udio. Os mais ligados à vis ão psicologística diriam que eles se encontram mais próximos do inconsciente. Eles possuem, segundo Sônia, um conhecimento mais “ intuitivo e próximo ao sensível” . Al¬ guns chegam a afirmar que, fora do mundo racionalizado das gran ¬ des metrópoles, a necessidade de sistemas divinatórios, como a as¬ trologia, seria menor. O homem do campo não precisa de hor óscopo para decidir a vida dele

porque ele conhece as leis da natureza. J á o homem da cidade, como perdeu os referenciais, precisa de uma bússola. (Regina)

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Esta concepção da astrologia faz com que eles desenvolvam uma postura crítica às limitações do pensamento cient ífico. Falando cm nome dos astrólogos, Rosa afirma que, “ para nós, não interessa o status de ciê ncia” para a astrologia. Carla, que é f ísica, diz ser “ furado tentar torná-la científica” , porque “ a astrologia é outro tipo de conhecimento” , n ã o sendo capaz de apresentar experimen ¬ talmente a repetitividade exigida para a aquisição do estatuto cien ¬ t ífico. É verdade que alguns informantes admitem a possibilidade de que, no futuro, a ci ê ncia poderia ser capaz de dar conta dos fenô¬ menos investigados pelos sistemas do esoterismo, mas que, na sua forma atual , é incapaz de fazê-lo. É necessá rio, nesse momento, precisar as limitações dessa des¬ criçã o, que deve ser restringida aos estudantes e astr ólogos, pois a postura dos clientes é outra. José e Renato, embora atribuam à astrologia um cará ter “ m ágico” , reconhecem nela um maior “ em¬ basamento científico” do que nos demais sistemas divinatórios. En ¬ tre esses, Renato estabelece graus de confiabilidade, afirmando que o dela se encontra numa posiçã o melhor do que o tarô ou o caf é turco, por exemplo. Dessa forma, os clientes, que se preocupam menos em conhecer os fundamentos do sistema astrológico, ou n ão se interessam pela questão da sua cientificidade cu se deixam im ¬ pressionar pelo seu aspecto t écnico.

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Por outro lado, a visã o de astrologia que venho descrevendo não é comum a todos os estudantes. Sua concepção simbólica é apenas uma das possibilidades da astrologia erudita , ligada a algu ¬ mas de suas correntes teóricas. Embora minha experiência de campo me leve a sugerir que ela poderia ser uma forma t ípica do recente boom astrológico carioca, mesmo hoje existem outras visões. Uma delas, como afirmei anteriormente, se apresenta na entrevista de Eliana, única a se afastar significativamente dessa concepçã o sim bólica e seus corolá rios, afirmando o car á ter científico da astrolo¬ gia. Resumindo suas opiniões, pode-se dizer que ela interpreta a as¬ trologia de maneira mais determinística, comparando-a ao “ serviço de meteorologia” que lhe informa “ se vai haver bom ou mau tem ¬ po” . No caso da segunda alternativa, a ú nica coisa que se pode fa¬ zer é “ pegar a capa e o guarda-chuva” . Além disso, Eliana n ão possui a visão pluralista que venho descrevendo: ¬

A astrologia é uma coisa muito concreta, entende ? Tem números hora exata etc. ( ) Então, não é uma coisa feito tarô, I Ching, Elas não t ê ra cinco por sabe, que é uma coisa vaga, poética cento da precisão da astrologia, que é uma coisa “ batata ”

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É curioso verificar que outros sistemas divinatórios sã o quali¬ ficados por ela como “ poé ticos” , ou seja, como mais simbólicos do que “ concretos” .

Tenho tentado relativizar o quadro de pluralismo que, à primeira vista, aparece ao se observar o mundo esot érico. Neste último, a existência de uma lógica simbólica e fechada nas suas vá rias ma¬ nifestações leva à admissão da eficácia de outros sistemas seme¬ lhantes. A busca da coer ência entre estes é facilitada pelo car á ter classificatório que quase sempre possuem . As tentativas de englobamento de segmentos distintos é comum no mundo esot érico. Al guns desses j á nascem associados, como no caso do simbolismo dos metais na alquimia, que sã o relacionados aos planetas. Por vezes, tenta-se conciliar tradições distintas que convergiram em determi¬ nados momentos, como no caso da associa ção das esferas plane¬ t á rias aos “ nomes de Deus” ou Sephiraths, da Cabala hebraica, pro¬ postas por Pico de Mirandola ( cf . Yates, 1964 : 99 101 ) . Anterior ¬ mente, tais esferas já haviam sido vinculadas aos sete principais pro¬ fetas da tradição isl â mica por Muhyiddin Ibn Arabi ( 1165-1240 ), um dos principais representantes do sufismo, corrente esotérica á ra ¬

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be. 12 Novos tipos de englobamento são sempre possíveis e estão sempre sendo propostos. Assim, o Jornal do Brasil (8/ 3/86) pu¬ blicou uma reportagem sobre uma astróloga, Ana Graziela Prodan, que associou os doze signos do zod íaco a doze orixás. Nem sempre são possíveis essas associações devido a diferen ¬ ças na estrutura de cada sistema , além do fato de que elas sempre podem ser contestadas. Para a homeopatia unicista, por exemplo, cada indivíduo tem um remédio único que seria capaz de enfrentar o seu desequilíbrio específico, que se manifesta nos múltiplos sin¬ tomas que apresenta. Para realizar esta classificação homeopática de seus clientes, vimos que Haroldo se utiliza da astrologia. No entanto, ele reconhece que n ão há uma forma de comutação direta de um sistema classificatório a outro: Dizer que “ tal tr ígono aqui sempre pintou nos pacientes com pulsatila e, ent ão, quando tiver, eu vou sempre dar pulsatila” é loucura ( . , a coisa não é matemática, cartesiana.

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Dessa forma, ele crê que a an álise do mapa dá apenas indi¬ cações gerais ao terapeuta, ajudando-o em suas perguntas que visam a identificar o problema do paciente. Mas, apesar desse fracasso, deve-se reconhecer que o rico simbolismo da astrologia, com sua estrutura complexa, apresentando quatro elementos, doze signos e casas, dez planetas (ou apenas os sete visíveis ), torna-a capaz de realizar vá rios englobamentos. Outra informante, que, como Harol¬ do, teve acesso a vá rios sistemas do mundo esotérico, Regina, jus¬ tifica sua escolha pela astrologia por sua capacidade de não a dei¬ xar dispersa . “ A astrologia” , afirma, “ junta tudo: cores, pedras, me¬ tais etc.”

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Esta associação é feita através da descrição de uma ascensão espiritual semelhante à da Divina Comédia, na qual um peregrino encontra, em cada esfera, um desses profetas e que é descrita na sua obra Epístola das Luzes ( Risâlat al -anw âr ) . Para este livro e a obra de Ibn Arabí, ver Chodkiewcz, 1986. As descrições dos céus planetários são muito semelhantes ao simbo¬ lismo astrológico que permanece até hoje, como a de Marte, onde se en ¬ contra “ terror, medo, aflição” e está Aar ão (em á rabe H ârún ) general de Moisés (p. 203) , ou a de Vénus, “ o mundo da formação, da ornamentação e da beleza ” , onde reside José (Y úsuf ) , “ que é por excelência o intérprete dos sonhos, aquele que decifra as formas” (p. 201)

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Como nos lembra Mirabail, essa hermenêutica aparentemente infinita n ão esgota seus limites na sua exeqiiibilidade estrutural : “ os critérios e a grade” , pelos quais ela é realizada “ são aqueles da Tradição” ( 1981:89 ) . A possibilidade de supor-se a compatibilidade entre os diversos sistemas deriva de seu cará ter tradicional comum. Os sistemas m ágicos africanos tradicionais, mencionados por Hor ¬ áter ton, extraem de um passado m ítico a legitimidade de seu car ¬ tempora . A presente tempo ao neo é heterog este fechado, passado passado esse que de fato no reside des socieda lidade cíclica dessas não apenas antecede o presente, mas o fundamenta. As sociedades nas quais floresce a astrologia assim como os demais sistemas eso¬ t éricos n ão só possuem uma perspectiva temporal mais profunda, ¬ como são plurais. O desafio do esoterismo é justamente o de con ciliar tradições distintas, vá rias das quais n ão tiveram origem nas culturas em que são sintetizadas. ¬ Como afirmei no Capítulo 1, quanto mais complexa a socie a dade se toma, mais dif ícil fica determinar-se a verdadeira naturez do conhecimento tradicional. A palavra tradição vincula se à idéia ¬ de transmiss ão; implica, portanto, que um grupo preserve o conhe herme cimento original , permitindo o acesso a ele . É isso que o se ini ¬ que e corrent sua com cer estabele queria tismo renascentista utili¬ cia em Hermes e Zoroastro, terminando em Plat ã o. Mesmo , das zando hipóteses acerca de transmissões secretas de doutrinas , o tais ã m ç ar lan em hesitam o n ã é ricos esot quais muitos autores teorias suas de valor do cimento reconhe o autores só podem obter ção, a atrav és da persuasã o. Apesar de fazerem referência à tradi é racio¬ legitimidade tanto do astrólogo quanto do teórico esot érico autoridade nal . A pluralidade de Igrejas e seitas reivindicando uma para o delas uma cada de e validad da tradicional joga o debate campo teórico, que é hoje o do esoterismo. ¬ O foco do debate nesse campo é, portanto, a natureza da coe Fai o es Segund . çõ r ê ncia de doutrinas e símbolos nas vá rias tradi a, vre, tr ês seriam as vias para a quest ão da tradiçã o. A primeir ). : 34 1986 ( pulos í disc classificada de purista, é a de Gué non e seus , é m . Por eiras verdad Eia toma, a princípio, todas as tradições como , o fechad menos ou cada uma delas forma um todo solidário mais ente de maneira que cada um dos seus elementos só faz inteiram sempre sendo , es çõ sentido no seu contexto. O princípio das tradi ¬ divino, é uno ; mas, para que ele se apresente no plano da mani icidade multipl da festação, ele se torna m últiplo, porque é no reino

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que nos encontramos. Cada religião se apresenta exotericamente como exclusiva e esotericamente como uma das possíveis, mas ela só faz sentido integrando estas duas dimensões. Ao manifestar-se, esse princípio vai gradativamente se degradando, e “ a crise do mundo moderno” corresponde ao fim da Idade de Ferro de Homero ou da Idade Sombria ( Kali Youga ) da tradição hindu . Torna-se cada vez mais dif ícil uma religiosidade aut êntica no Ocidente, onde o cris¬ tianismo perdeu seu cará ter esot é rico, degenerando se num sentimen talismo, e multiplica-se um “ ocultismo” despido, segundo Guénon, de qualquer cará ter tradicional ( cf . Gu énon , 1977 e 1984 ). As teorias de Gu énon n ã o apenas sã o bastante disseminadas no universo que pesquisei, como também representam um caso limite das exigências que a reflexão sobre o esoterismo coloca aos prati cantes de astrologia. Para seus defensores, essa prá tica, assim como a de todos os sistemas esotéricos, só tem um caráter realmente vá ¬ lido quando associada à prá tica de uma das religiões tradicionais que o incorporam na sua dimensão esotérica, o cristianismo e o islamismo. Nos grandes eventos astrológicos, onde tomam contato com ouvintes menos familiarizados com suas teorias, os astrólogos tradicionais fazem críticas, por exemplo, ao uso da ioga fora do hindu ísmo ou da acupuntura fora do taoísmo. Em um artigo, Olavo de Carvalho critica a macrobiótica, dieta naturalista que se baseia na classificação dos alimentos a partir da oposiçã o taoísta do Yin / Yang. Mostrando como na tradição chinesa ela se aplica nã o só à alimentação, mas a outros planos como tempo, espaço etc., Car ¬ valho argumenta que, com simples tabelas de alimentos, o macro ¬ biótico jamais poderá usar esse sistema de classificação correta ¬ mente. 13 Faivre chama a segunda via de hist órica. Ela se resumiria em constatar a multiplicidade de tradições e misturá-las sincreticamente, no estilo de Mme. Blavatsky. O autor francês ironiza essa corrente, afirmando que seus representantes “ permanecem geralmente, e ale¬ gremente, no ‘shoping around’ ” ( 1986: 36 ) . Mais do que uma clas¬ sificação de dois segmentos do esoterismo moderno, Faivre nos ofe-

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13 “ É somente a tola grosseria da nossa ‘cultura de massas’ que imagina poder espremer conceitos cosmol ógicos em quadros e tabelinhas dietéticas de correspondências rasas, lineares e, ademais, puramente fictícias. ” (Carva¬ lho, 1985 : 31 )

rece dois pólos de um contínuo, no qual há uma gradação no nível de rigor com que é tratada a quest ão da tradição. Se os teósofos são mutias vezes tachados de sincretistas, Mirabail, por exemplo, atribui a Gu énon “ uma intransigê ncia sectária” ( 1981: 247 ) . Faivre não é t ão crítico a este último, mas propõe uma “ terceira via” . É dif ícil dizer até que ponto ela representa um segmento importante , do esoterismo ou um recurso para o autor expor sua visão pessoal com logo o di á o çã e erudi , que tenta defender, ao mesmo tempo a ¬ a ciência e a modernidade ( 1986: 40 8 ). Ele cita outros autores pou , que via esta seguiriam , co conhecidos no esoterismo brasileiro que pode ser relacionada a sua posição ambígua de um esoterista na universidade. O debate sobre a compatibilidade entre os sistemas esotéricos não só procura definir de que forma sua utilização é v álida, como também se refere, em última an álise, à natureza de sua eficácia. Dessa forma, cada teoria esotérica busca elaborar uma cosmologia que guie o uso daqueles sistemas. Em sua palestra no I Congresso ¬ Internacional de Astrologia, Luiz Roberto B. Oliveira procurou for com ó gica astrol pr tica á da necer um quadro desse debate no âmbito sua confer ência “ Prolegômenos a uma epistemologia da astrologia ” . in ¬ Após algumas considerações introdutórias sobre a natureza da , em que correntes s ê tr as vestigação epistemológica, ele descreveu . sua opiniã o, comporiam o campo intelectual astrol ógico brasileiro nos presente , teosofia ncia da ê Em primeiro lugar, comentou a influ , Etnmy diversos alunos da alemã, radicada no Brasil após a guerra hu astrologia da teorias as de Mascheville. Em seguida, descreveu . man ística como uma segunda fonte importante Oliveira identificou-se com a astrologia tradicional , terceira ten as duas , d ência que examinou. A partir de seus pressupostos criticou , por segundo , no , e caso anteriores por seu sincretismo, no primeiro , moderno cientificismo ao sua transigê ncia com paradigmas ligados ¬ apre o ã n Oliveira de ó teses , hip como a psican álise. Evidentemente as carioca, sentam uma descrição completa do mundo da astrologia tica, ou á sua pr de te ricos ó pois a preocupa ção com os fundamentos óricos te os que rigor . O seja, com o esoterismo, não é homogénea restri¬ es çõ condi e das tica tradicionais exigem de sua pró pria prá mundo o todo em presente tivas em que ela deve se dar não está astrológico carioca, mas explica o fato deles terem aparecido com¬ mais destaque na minha descrição das questões esot éricas na astro logia. Mais do que para qualquer grupo, o fundamento da astrolo-

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o mundo da astrologia

astrologia e simbolismo

gia se encontra, segundo eles, na religi ã o. Entretanto, mesmo para os humanistas, para os quais, como mostrei no Capítulo 1, o valor tradição se encontra mais mediatizado, a base da eficácia astrol ó¬ gica, no caso, os arquétipos, sã o “ transcendentes em si ( isto é, de¬ masiadamente sutis ou imateriais para uma compreens ão imediata ) ” ( Arroyo, 1985: 48-9 ) . Haveria nos fundamentos do sistema astro¬ lógico um fator n ão-racional, misterioso, que legitima os postula ¬ dos não-verificáveis que o sustentam , compará vel à origem m í tica das cren ças tradicionais africanas. Procurei, neste segmento, apresentar uma descrição das repre ¬ sentações associadas ao esoterismo presentes em minhas entrevistas, que complementei com algumas indicações básicas sobre o debate esot érico. Por estar, como no caso da psicanálise, mais interessado nas repercussões dessas teorias no universo pesquisado do que ne¬ las em si mesmas, corri o risco de ser esquem á tico em minhas des¬ crições resumidas. Procurei demonstrar, ao menos, como elas cons¬ tituem um rico conjunto de discussões sobre a tradição, a alteridade e a religião, oferecendo, em alguns de seus segmentos, interesse para a antropologia e as ciências sociais em geral, merecendo sair do gueto em que se encontram limitadas.

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buir um car á ter religioso a uma multiplicidade de fenômenos so¬ ciais que també m possuem esses traços. Esse tipo de soluçã o deixa de lado um antigo debate da an ¬ tropologia evolucionista, mas que a transcende, que buscou definir o fenômeno religioso através do estabelecimento de seus contrastes em relação às pr á ticas m ágicas. Uma de suas versões mais conhe cidas foi a famosa hipótese evolucionista de James Frazer segundo a qual a magia seria uma tentativa de dominar a natureza através do uso das “ leis” da semelhança e da contiguidade, ou seja, “ meramente duas aplicações equivocadas da associação de idéias” ( Fra zer, 1980: 53 ) . Por contraste, o pensamento religioso seria aquele que abandona a crença ingénua na onipot ència do homem, julgando que este se encontra sob o jugo de seres divinos com os quais seria necessária uma conciliação ( p. 222 ). Para Frazer parecia evidente que o raciocínio religioso, em¬ bora ainda pr é-cient ífico, era superior ao m ágico. Isto o leva a pos¬ tular a anterioridade cronológica da magia: a humanidade teria co¬ nhecido uma etapa em que, apesar da presença do pensamento m ᬠgico, ela n ã o possuiria nenhuma forma de religião ( cf . p. 226) . Ao mesmo tempo, ao admitir que o “ radical conflito de princípios” existente entre essas duas formas teria ficado claro “ relativamente tarde na hist ória da religi ão” . Frazer parece estar deixando implí cito que o cristianismo, particularmente em sua forma protestante, representaria uma fase superior da evolução da religião, na qual a magia teria sido inteiramente eliminada . Frazer parece ter exercido uma grande influência sobre os his¬ toriadores da astrologia . No início do século, o belga Franz Cumont identificava como o grande enigma oferecido pelo estudo desse sis¬ tema divinatório o motivo dessa “ aliança, que à primeira vista pa¬ rece monstruosa ( . . . ) , formada pela matemá tica e pela superstição” ( 1960: xiii ) . Isso faz com que ele não admita que um sistema t ão racionalizado como o astrológico possa ter um fundo essencialmente m á gico, preferindo apresentá-lo como uma

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Astrologia e religião Diferentemente dos dois temas anteriores relacionados à prá tica as¬ trológica de meus informantes, a religião não é um objeto de in¬ teresse recente por parte das ciências sociais; muito pelo contr á rio, há uma sólida e antiga tradição de estudos sobre esse tema que, porém, at é hoje, não parece ter chegado a um consenso sobre a natureza de seu objeto de estudos. Por exemplo, um competente balanço sobre as teorias que as ciências sociais produziram sobre o tema realizado por E.E. Evans-Pritchard , após indicar os equ í ¬ vocos que caracterizavam as teorias evolucionistas que dominaram esse debate at é a década de 1920, reconhece que, além dessas, a religiã o recebeu apenas definições vagas, como as de que ela iria se relacionar às esferas “ a-lógicas” ou “ não racionais” da vida so¬ cial ( 1978 : 157-63 ) . Tais tipos de raciocínio podem levar -nos a atri-

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( . . ) teologia erudita , que, incluindo em suas especula ções o mundo inteiro, iria eliminar crenças mais estreitas e, alterando as características da idolatria antiga, prepararia em v á rios aspectos o advento do cristianismo, ( p. xvi)

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Vimos, no capí tulo 1, como Lévi-Strauss critica esse tipo de formula çã o evolucionista . No que se refere à s relações entre a re

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