O Marfim no Mundo Moderno [1 ed.]
 9788555078330

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O Marfim no Mundo Moderno: comércio, circulação, fé e status social (Séculos XV-XIX) Vanicléia Silva Santos - Organizadora 1ª Edição - Copyright© 2017 Editora Prismas Todos os Direitos Reservados. Editor Chefe: Vanderlei Cruz [email protected] Agente Editorial: Clara Daibert [email protected] Capa, Diagramação e Projeto Gráfico: Brenner Silva Desenho de Capa: Maurílio Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Elaborado por: Isabel Schiavon Kinasz Bibliotecária CRB 9-626

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O marfim no mundo moderno, comércio, circulação, fé e status social (Séculos XV-XIX) / organização de Vanicléia Silva Santos - 1.ed. - Curitiba: Editora Prismas, 2017. 336p.; 23cm ISBN 978-85-5507-833-0 1. Marfim – História – Séculos XV-XIX. 2. Marfim - Comércio. I. Santos, Vanicléia Silva (org.). CDD 679.43(22.ed) CDU 670

Coleção Estudos Ameríndios e Africanos Diretor Científico Jefferson Olivatto da Silva (Universidade Estadual do Centro-Oeste/Paraná)

Conselho Editorial Angela Maria de Souza - Universidade Federal da Integração Latino-Americana Claudia Mortari Malavota - Universidade Estadual de Santa Catarina Daniel B. Domingues da Silva - University of Missouri (EUA) Edson Silva - Universidade Federal de Pernambuco Eugénia Rodrigues - Universidade de Lisboa (Portugal) Jorge Luís de Souza Riscado - Universidade Federal de Alagoas Jose Rivair Macedo - Universidade Federal do Rio Grande do Sul Luisa Tombini Wittmann - Universidade Estadual de Santa Catarina Maria Hilda Baqueiro Paraiso - Universidade Federal da Bahia

Editora Prismas Ltda. Fone: (41) 3030-1962 Rua Morretes, 500 - Portão 80610-150 - Curitiba, PR www.editoraprismas.com.br

Maria Nilza da Silva - Universidade Estadual de Londrina Mariana Paladino - Universidade Federal Fluminense Paulino de Jesus Francisco Cardoso - Universidade Estadual de Santa Catarina Rita Gomes do Nascimento - MEC/Coordenadora Geral da Educação Indígena Rosangela Célia Faustino - Universidade Estadual de Maringá Sílvio Marcus de Souza Correa - Universidade Federal de Santa Catarina Valdemir Donizette Zamparoni - Universidade Federal da Bahia Vanicléia Silva Santos - Universidade Federal de Minas Gerais Wagner Roberto do Amaral - Universidade Estadual de Londrina

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS REITOR Jaime Arturo Ramírez VICE-REITORA Sandra Regina Goulart Almeida DIRETOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS – DRI Fábio Alves da Silva COORDENADORA DO CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS/CEA – UFMG Vanicléia Silva Santos COMITÊ COORDENADOR – CEA/UFMG Cíntia Pereira – ICB Sônia Queiroz – FALE Eduardo Vargas – FAFICH Marcos Hill – EBA CONSELHO CONSULTIVO Amadeu Chitacumula (Instituto Superior de Educação do Huambo, Angola) Ana Cordeiro (Ilhéu Editora, Cabo Verde) Odete Semedo (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Guiné-Bissau) Rafael Díaz Díaz (Pontificia Universidad Javeriana, Colômbia) Sônia Queiroz (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil) Tukufu Zuberi (University of Pennsylvania, Estados Unidos) Vanicléia Silva Santos (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil) REVISÃO Gabriel Prado

Agradecimentos Agradecemos ao apoio fundamental do Centro de Estudos Africanos da UFMG-DRI, pelo financiamento do seminário e também deste livro. Um agradecimento especial aos autores que colaboraram com suas participações no seminário e pelos esforços em produzir o texto para esse livro, assim como aqueles que enviaram textos posteriormente a fim de juntarem esforços em torno do tema dos marfins no Mundo Moderno. Agradeço igualmente aos pareceristas que gentilmente leram os textos e emitiram avaliações que tornaram os textos ainda melhores. Nominalmente agradeço aos colegas Carlos Almeida (Universidade de Lisboa), Mariza de Carvalho Soares (Universidade Federal Fluminense), José da Silva Horta (Universidade de Lisboa), José Newton Coelho Menezes (Universidade Federal de Minas Gerais), Luiz Urbano Afonso (Universidade de Lisboa), Maria do Sameiro (Universidade Nova de Lisboa), Nuno Vassalo e Silva (Fundação Calouste Gulbenkian/ Lisboa), René Lommez Gomes (Universidade Federal de Minas Gerais) e YacyAra Froner (Universidade Federal de Minas Gerais). Agradecemos à direção do Espaço UFMG do Conhecimento por ter abrigado o seminário O Marfim na História Moderna: comércio, circulação, fé status social. Além disso, à equipe do Espaço que produziu o material para exposição “A arte do marfim nas Minas Gerais”. A todos os colegas da UFMG e demais instituições, obrigada por esse trabalho em parceria. À Renata Romualdo Diório – FAFICH/UFMG, Rogéria Cristina Alves – FAFICH/UFMG, Thais Gontijo Venuto – EBA/ UFMG, Alexandre Oliveira Costa – EBA/UFMG e Mariana Rabêlo de Farias – FAFICH/UFMG pelas diferentes funções assumidas na organização do Seminário.

Apresentação da Série Estudos Africanos do CEA/UFMG O Centro de Estudos Africanos, criado oficialmente em 2012, é o primeiro centro de estudos da UFMG no âmbito do projeto de internacionalização da universidade. O CEA/UFMG tem como missão promover o encontro de pesquisadores que trabalham com a África e divulgar os resultados das pesquisas desenvolvidas sobre o tema no âmbito da UFMG, em outros centros de pesquisa no Brasil e no mundo, contribuindo assim para o estabelecimento da área de pesquisa no interior de nossa instituição e para a consolidação dos estudos africanos no País. As parcerias com universidades e outras instituições de ensino e pesquisa têm como objetivo a realização de atividades conjuntas, o intercâmbio de publicações e projetos de mobilidade acadêmica de estudantes e professores. Por meio de acordos internacionais, estudantes e pesquisadores da UFMG já puderam cursar disciplinas de sua área no exterior e alunos estrangeiros vieram à UFMG com o mesmo intuito. Nos primeiros anos de existência, o CEA também promoveu conferências e seminários em torno de temas relacionados à África, além de receber professores estrangeiros para ministrar disciplinas em nossos programas de Pós-Graduação. Organizado por Vanicléia Silva Santos, a obra O marfim no Mundo Moderno é o primeiro título da Série Estudos Africanos, que nasce com o objetivo de publicar obras que envolvam redes de pesquisadores, brasileiros e estrangeiros, filiados ou não a instituições de ensino superior, e que desenvolvem trabalhos com diferentes perspectivas, visando a formação de um pensamento multidisciplinar, contemplando a diversidade étnica característica de nossos povos. Com essa nova frente de trabalho, pretendemos dar materialidade à cooperação Brasil–África que vem sendo construída pelo CEA/UFMG desde sua criação. Sônia Queiroz Centro de Estudos Africanos - CEA/UFMG

Sumário Introdução – Marfins no Brasil e no Atlântico ............................ 13 Vanicleia Silva Santos PARTE 1 O comércio de marfim na África Atlântica e Índica: séculos XV-XIX Capítulo 1 O mpungi nas fontes portuguesas sobre o Congo, 1483-1512........ 33 Mariza de Carvalho Soares Capítulo 2 A caça de elefantes e o comércio de marfim no rio Gâmbia, 1580-1630 ................................................................................. 51 Felipe Malacco Capítulo 3 Oceano Etiópico, elefantes e marfim em iconografias neerlandesas .......................................................... 75 Silvio Marcus de Souza Correa Capítulo 4 O marfim na economia colonial portuguesa do Índico no século XVII: interações comerciais e práticas artísticas ........................ 107 Jorge Luzio Capítulo 5 O comércio de marfim no Presídio de Cambambe, Angola: primeiras décadas do século XIX .............................................. 123 Carolina Perpetuo Correa

PARTE 2 A circulação e os usos do marfim no Brasil Colonial: séculos XVII-XIX Capítulo 6 Artisticamente torneados e talhados no Brasil: os móveis em marfim de Nassau e a história de um escultor que viveu em Recife e em Copenhague ...................................................................... 167 Rene Lommez Gomes Capítulo 7 Marfins, ambientes e contextos: as Minas Gerais e as fontes históricas ...................................................................... 239 Eduardo Franca Paiva Capítulo 8 A arte em marfim nas Minas Setecentistas: o perfil dos proprietários de tornos de rede angolanos, botões, sinetes, imagens religiosas e outros objetos de marfim.......................................................... 255 Vanicleia Silva Santos e Rogeria Cristina Alves Capítulo 9 Marfim e medicina na Modernidade portuguesa: aportes pontuais ...................................................................... 283 Marcio Mota Pereira Capítulo 10 “Facas, garfos, sinete e leque de marfim”: cultura material e diferenciação social em Guarapiranga (Minas Gerais,século XIX) ...................................................... 303 Guilherme Augusto do Nascimento e Silva Autores ................................................................................... 333 O projeto ................................................................................ 337

Introdução Marfins no Brasil e no Atlântico Vanicléia Silva Santos Peças de marfim produzidas na costa Oeste da África começaram a ser levadas para Portugal ainda no século XV, a partir dos primeiros contatos comerciais entre portugueses e africanos. O notável esmero dos escultores, a preciosidade do material e sua origem exótica fizeram dessas peças – colheres, olifantes, saleiros, píxides1 e garfos lavrados – objetos de desejo que passaram a integrar coleções da nobreza europeia e “gabinetes de curiosidades”.2 Por muito tempo identificados como indianos ou mesmo turcos, hoje, esses objetos de marfim são, reconhecidos pelos especialistas, como africanos e estudados como um importante registro dos contatos entre africanos e europeus na Renascença e no início da era Moderna. Em 1959 o estudo deste segmento de marfins ganhou destaque através dos estudos de William Fagg, curador da coleção de arte africana do Museu Britânico, que os classificou como “marfins afro-portugueses”, levando em consideração os seguintes critérios: Eu tenho adotado o termo “Afro-Portuguese” para expressar o consentimento comum dos especialistas que estes marfins eram feitos sob demanda portuguesa aos artífices africanos. Por um lado, em muitos olifantes e saleiros as armas portuguesas estão proeminentemente exibidas, como são menos frequentemente a esfera armilar, a qual agora forma parte do brasão do Brasil, e a cruz dos Cavaleiros da Ordem Militar de Cristo. (....) Por outro lado, a habilidade africana está atestada não apenas pela representação dos africanos e animais africanos, mas pelos métodos africanos de estilizar as figuras e acima de tudo pelas técnicas africanas de lavrar o marfim: 1 Píxide é uma caxinha com tampa para guardar a hóstia sagrada a ser ministrada àqueles que

estavam à beira da morte. 2 VOGEL, Susan. Africa and the Renaissance. In: BASSANI, Ezio; FAGG, William. Africa and the Renaissance: Art in Ivory. New York: The Center for African Art and Prestel-Verlag, 1988, p. 13.

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as esculturas têm a aparência de imitação de obras torneadas, contudo tem sido executadas sem o uso de tornos; (...) e a atenção dos europeus tradicionais escultores de marfim para o mais elevado naturalismo de modelar e a superfície da textura é abandonada a favor da atenção instintiva do escultor africano para moderação como explícito na medida mínima para a escala de detalhes.3

Apesar do interesse de Fagg em defender a importância do trabalho da arte africana e criação de uma nova categoria conceitual, sua perspectiva não deixava de ser eurocêntrica. Ao comparar os escultores de marfim europeus e africanos, ele faz uma distinção entre o refinado “naturalismo” europeu e o “instintivo” trabalho minimalista africano, e sugere que os artistas africanos não desenvolviam uma arte de base racional. Também não é claro porque o especialista pensa que os africanos imitavam os europeus na arte de tornear objetos. Fagg foi o primeiro pesquisador a dividir os centros de produção das peças de marfim em três localidades distintas na Costa Atlântica da África: Serra Leoa, Costa Bacongo região de Loango e Costa dos Escravos (Lagos e Porto Novo), – sendo que, posteriormente, por análises estilísticas, a região de Loango foi desconsiderada.4 As referidas 3 FAGG, Willian Buller. Afro-Portuguese Ivories. London: Batchworth Press, 1959, p. 18. 4 “Um processo de comparação e eliminação levou-me a reduzir para três o número de lugares

na Costa Oeste a qual tem sua importância. Uma destas áreas está em torno da atual Freetown em Serra Leoa, onde portugueses tiveram uma feitoria em Mitombo; o tratamento da cabeça nas figuras afro-portuguesas (nomoli) de Serra Leoa é notavelmente similar, e embora nenhuma tradição real de esculpir em marfim tenha sobrevivido lá, isso é igualmente verdade para os próprios nomolis. Segundo, é a costa Bakongo na região de Loango e a boca do Congo, para a qual, até a Expedição do Benin, esses marfins eram frequentemente atribuídos; os marfins conhecidos por vir de lá, não são muito parecidos em estilo com aqueles que nós estamos considerando, mas podem talvez ser considerados como uma degeneração do mesmo estilo. Certamente, a habilidade estava lá, e a sofisticação, mas mas nenhuma evidência suficientemente clara veio à luz para nos permitir atribuir o estilo para a área com convicção. A terceira área, é, em minha visão, a mais promissora: isso é a antiga Costa dos Escravos, e mais especificamente as cidades de Lagos e Porto Novo, ou talvez Uidá, o porto do Reino do Daomé. Neste caso, os artistas podem ter sido iorubás, e há certamente aspetos estilísticos que favorecem essa tentativa de identificação: a forma das cabeças humanas com face em formato prognato, fortemente sugere as máscaras da Sociedade Geledé do oeste iorubá; algumas das figura em relevo de marfim (...) são como representações de miniaturas dos bem conhecidos ibejis (figuras esculpidas em memória das crianças gêmeas mortas; algumas figuras usam uma touca do tipo iorubá (as quais, contudo, são parecidas àquelas usadas pelo povo mandinga de Serra Leoa e de outros lugares); e em muitos casos os lábios são mostrados em paralelo, não convergindo para a ponta dos cantos (...), normalmente um relevante diagnóstico característico do estilo iorubá (mas novamente, infelizmente, encontrado, embora raramente, ambos em alguns nomoli e na arte Baleongo)”.

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peças se caracterizam por serem obra de artistas africanos com recurso à iconografia africana e europeia. Para Fagg, as peças seriam de Serra Leoa: “De fato, não há similaridade entre ‘Afro-Portuguese’ e ‘Bini’ (Benin) artes, e eu não descobrir nenhuma peça ou fragmento neste estilo que tem sido encontrado no Benin, ou em qualquer lugar na África em tempos modernos.”.5 Desde então, a origem das peças “afro-portuguesas” tem sido motivo de debate entre vários pesquisadores. Para Kathy Curnow, os povos sapes6, de Serra Leoa, foram os responsáveis pela confecção das peças de marfim até 1550 – quando essa sociedade teria sido destruída pelos manes. Assim, o reino do Benin, na atual Nigéria, seria o lugar de procedência das peças fabricadas posteriormente a esta data.7 Ezio Bassani, fundamentado nos aspectos estilísticos das peças, afirmou que, em razão da invasão dos conquistadores manes, os povos sapes de Serra Leoa teriam fabricado os objetos até 1530, e que as peças posteriores a esta data também passaram a ser lavradas na região do Benin. O historiador da arte, Peter Mark, refuta a hipótese da destruição dos povos sapes, sustentada por Bassani porque este não tem metodologia histórica e nem da história da arte para comprová-la. Segundo Mark, a tese de Bassani é “arbitrária” porque não está baseada em fontes históricas, mas apenas em elementos da iconografia europeia do último quartel do século XV e primeiro quarto do século XVI.8 Baseado nos relatos de fontes históricas contemporâneas de jesuítas e comerciantes que viveram em Serra Leoa e que registraram informações da Costa, nos séculos XVI e XVII, Mark ressalta 5 aspectos para provar que os sapes FAGG, Willian Buller. Afro-Portuguese Ivories. p. 19-21. 5 FAGG, Willian Buller. Afro-Portuguese Ivories. p. 19. 6 Os povos sapes habitaram a região de Serra Leoa. E segundo Yves Person, apesar dos portugueses falarem do “Império dos Sapes”, nunca houve um Estado estruturado, mas sim um conjunto de chefarias ou grupos de linhagem unidos por uma cultura comum. In: PERSON, Yves. In: História geral da África, IV: África do século XII ao XVI. Editado por Djibril Tamsir Niane. 2ª Ed. Rev. Brasília: UNESCO, 2010, p. 345. A produção de peças em marfim por estes sujeitos foi variada, indo de talheres (destacando-se as famosas “cucharas” - colheres - em marfim) até os elaborados saleiros. In: MOREIRA, Rafael. Pedro e Jorge Reinel (at.1504-60), Dois cartógrafos negros na côrte de D. Manuel de Portugal (1495-1521). In: 3º Simpósio Iberoamericano de História da Cartografia. Agendas para História da Cartografia Iberoamericana. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010, p. 1-10. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017. 7 CURNOW, Kathy. The Afro-Portuguese ivories: classification and stylistic analysis of a hybrid art form. [s.l.]: [s.n.], PhD Dissertation, University of Indiana, vol. 2, 1983. 8 MARK, Peter. Towards a reassesment of the dating and geographical origns of the LusoAfrican ivories, fifteenth to seventeenth centuries. History in Africa. 34, 2007, p. 197-206.

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continuaram produzindo objetos de marfim: 1) as primeiras evidências históricas sobre o marfim do Benin são de 1588; 2) o comércio de marfim entre Portugal e Benin desapareceu das referências 70 anos depois de 1588; 3) as fontes atestam a permanência de habilidosos escultores de marfim após 1550 e também no século XVII; 4) a presença dos manes de Serra Leoa, não foi uma invasão, mas um “processo de migração e assimilação cultural”, como mostram as tradições orais; 5) objetos com imagens de 1490-1525 podem ter sido feitos em Serra Leoa, mais tarde, com referências à iconografia do período anterior.9 Os estudos de Peter Mark, tem modificado substancialmente o tema em torno do referido conceito, especialmente, no que diz respeito à datação e local de produção dos objetos esculpidos em marfim.10 Ele sugere que o termo “LusoAfrican” é mais apropriado para o estudo dos objetos esculpidos no oeste africano do que “Afro-Portuguese” porque o primeiro “reflete mais precisamente a criação de objetos pelos escultores oeste-africanos que estavam trabalhando na África”. Embora o termo “Luso-african” pareça dar mais enfoque ao lado português nesta produção, Mark ressalta que apesar de se tratar de “híbridos em inspiração”, estes trabalhos artísticos são “mais africanos do que portugueses” porque os povos oeste-africanos “criaram as esculturas dentro do contexto de suas próprias culturas” 11, e não em Portugal, como já afirmaram alguns autores. Recentes trabalhos tem dado um importante contributo para a compreensão do “hibridismo cultural” de objetos luso-africanos, conMARK, Peter. Portugal in West Africa and the creation of the Luso-African Ivories, 1490-1658. In Encompassing the Globe: Portugal and the World in the 16th and 17th Centuries. Washington: Smithsonian Institution, 2008. 10 MARK, Peter. Portuguese Style and Luso-African Identity; precolonial Senegambia, sixteenth to nineteenth century. Bloomington & Indianapolis: Indiana University Press, 2002; MARK, Peter. On the misattribution of the Luso-African ivories: why art historical scholarship must be based on a critical interpretation of historical documents. In: As Artes Decorativas e a Expansão Portuguesa: Imaginário e Viagem. Actas do II Colóquio de Artes Decorativas. Lisboa: FRESS/ CCCM, 2010; MARK, P. The Evolution of ‘Portuguese’ Identity: Luso-Africans on the Upper Guinea Coast from the Sixteenth to the Early Nineteenth Century. The Journal of African History. Volume 40, Issue 2 (1999), p. 173-191; MARK, Peter. Portugal in West Africa and the creation of the Luso-African Ivories, 1490-1658. In: Encompassing the Globe: Portugal and the th th World in the 16 and 17 Centuries. Washington: Smithsonian Institution, 2008; MARK, Peter. Beyond Iconography: Towards a visual semantics of the Luso-African ivory saltcellars, sixteenth – seventeenth century. In: ANTUNES, Catia; HALEVI, Leor- TRIVELLATO, Francesca. (Eds.). Religion and Cross-Cultural Trade in World History, 1000-1900, Oxford University Press, 2014, p.236-266; e MARK, Peter. Bini, Vidi, Vici’; On the misuse of Style in African Art History. History in Africa, vol. 42, 2015, p. 323-334. 11 MARK, Peter. Towards a reassessment of the dating and geographical origns of the LusoAfrican ivories, fifteenth to seventeenth centuries. p. 190. 9

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siderando tanto os aspectos europeus quanto os africanos. Na análise sobre um conjunto de seis olifantes com cenas cinegéticas, Horta e Urbano notaram que nas referidas peças há uma interação entre elementos europeus e africanos. Os olifantes eram símbolos de ostentação da riqueza da aristocracia portuguesa, e serviam para assustar caças, bem como para anunciar a captura destas. Eles defendem a ideia de que a iconografia europeia (fisionomia europeia, indumentária, armamentos, heráldica portuguesa, figuras fantásticas, animais de caça, animais de apoio e ramagens) presentes nos olifantes eram resultado da circulação de modelos visuais europeus na costa oeste africana. A hipótese dos autores é que as imagens devem ter chegado em gravuras avulsas ou os artistas africanos tiveram acesso direto aos livros, levados pelos lançados, que atuavam como intermediários entre europeus e africanos. Os olifantes analisados são oriundos de Serra Leoa e foram lavrados por artistas sapes, entre 1490 e 1540. São considerados “obras híbridas” porque “combinam as tradições locais com temas e motivos portugueses, e europeus, sendo explicitamente produzidas para exportação, dando origem a obras únicas, que fazem fusão, em graus desiguais, de linguagens e tradições artísticas de contextos, e continentes, muito diferentes”.12 Embora importante essa ideia do “hibridismo” para analisar os marfins produzidos no oeste-africano, parece-nos útil a ideia de “marfim-africano”, uma vez que estes trabalhos são mais africanos do que portugueses porque, apesar de terem utilizados “modelos visuais” europeus que circularam na costa oesta africana, os artistas criaram as esculturas no continente africano, a partir do contexto de suas próprias culturas, para ficar no argumento de Mark. Peter Mark afirma que hoje, aproximadamente, 150 objetos de marfim tem sido identificados pelos especialista como pertencentes ao oeste africano. Isso é um avanço porque há 60 anos apenas 100 objetos foram identificados por Fagg.13 Embora estes números sejam importantes, este segmento de marfim para exportação, feito sob demanda ou não, deve representar um número ínfimo, se comparado com os objetos de marfim lavrados para uso local. As coleções do Museu Britântico, 12 AFONSO, Luís Urbano; HORTA, José da Silva. “Olifantes afro-portugueses com cenas de caça, c.1490-c.1540”. Artis. Revista de História da Arte e Ciências do patrimônio. n. 1, 2013, p. 28. 13 MARK, Peter. Towards a reassessment of the dating and geographical origns of the LusoAfrican ivories, fifteenth to seventeenth centuries. p. 189.

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do Metropolitan Museum de New York e o Museu da Universidade da Pennsylvania tem acervos importantes de arte africana, que contem peças de marfim “Afro-Portuguese” ou “Luso-African”, bem como centenas de peças de marfim feitas para demanda e uso locais.14 Embora exista já uma extensa historiografia em torno dos “marfins afro-portugueses” nos Estados Unidos e na Europa, o tema ainda é pouco estudado no Brasil.15 Os principais trabalhos sobre os marfins no Brasil são os catálogos de museus e instituições que abrigam coleções pessoais. Até o momento foi possível mapear apenas sete publicações em torno de coleções que possuem objetos de marfim. Tratam-se de trabalhos realizados por técnicos, curadores e pesquisadores ligados a Museus. O primeiro catálogo de museu publicado no Brasil com um inventário descritivo das peças de marfim foi o “Pequeno Guia do Museu de Arte Sacra de São Paulo”, organizado pelo curador do Museu de Arte Sacra de São Paulo, Pedro de Oliveira Ribeiro Neto, em 1970. 16 14 Em pesquisa realizada na coleção Africana do Penn Museu, em 2017, foram indetificadas

diferentes tipologias de objetos de marfim, as quais organizei pelos tipos de usos: 1) adornos e utensílios pessoais: pinos para cabelo, argolas, braceletes, pulseiras, tornozeleiras; pentes, difentes caixas de rapé, limpador de dente; 2) utensílios para uso doméstico: batedor de tubérculo e colher; 3) música e poder: trombetas para desfiles reais, cerimônia fúnebres, guerra, apitos; 4) insígnias de poder/ autoridade: espadas, trombetas, topos de bastões reais, espanta mosca com cabo de marfim, facas; 5) amuletos/ proteção para a pessoa: figuras humanas, figuras de cabeça, figuras antropomórficas; santos católicos 6) altares para ancestrais – grandes presas esculpidas com referências políticas e religiosas; 7) adivinhação: pequenas presas; e 8) entretenimento: peças para jogo. 15 FAGG, William. Afro-Portuguese ivories. CURNOW, Kathy. The Afro-Portuguese ivories: classification and stylistc analysis of a hybrid art form. [s.l.]: [s.n.], PhD Dissertation, University of Indiana, vol. 2, 1983. BASSANI, Ezio; FAGG, William B. Africa and the Renaissance: Art in Ivory. MARTINEZ, Eugenia S. Crossing-cultures: Afro Portuguese ivories of the fifteenth and sixteenth century Sierra Leone. . Dissertação de mestrado apresentada à Universidade da Flórida, 2007; MARK, Peter. “Towards a Reassessment of the Dating and the geographical Origins of the Luso-African Ivories: fifteenth - seventeenth Century”. p. 189-211. 16 No primeiro catálogo do Museu de Arte Sacra de São Paulo, há 16 peças de marfim (Santa Luzia, Séc. XVIII; N. Sra. com Menino Jesus, Séc. XIX; N. Sra. com Menino, em marfim do Cabo, Séc. XVIII; São Francisco Xavier, Séc. XVIII; São José, Séc. XVIII, de Ouro Preto; São Francisco de Assis, Séc. XVIII; N. Sra. das Dores, Séc. XVIII, de Ouro Preto; Menino Jesus, Séc. XIX; Santa-Mestra, Séc. XVIII, de Ouro Preto; São Bom Jesus, Séc. XVIII; Crucifixo em marfim, Séc. XIX; Senhor Morto, Séc. XVIII; Cristo Crucificado, Séc. XVIII, de Santana do Parnaíba; Crucifixo em madeira com Cristo em marfim, Séc. XVIII; Imaculada Conceição, Séc. XVIII; e pia de Água Benta em alabastro, bronze e marfim). Cf. NETO, Ribeiro Pedro A. de Oliveira; BARRETO, Maria; OLIVEIRA, Alcides Ramos de; SOARES FILHO, José Miguel. Pequeno Guia do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,

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Além deste, outro catálogo com inventário foi publicado nos anos 1970, no qual consta que o museu possui 1817 peças de marfim. A maioria destas foi descrita como “oriental” (4), “europeu” (2), “espanhol” (1) e “italiana”. Certamente, tais hipóteses são baseadas apenas em comparações estilísticas. As demais peças não tem referência sobre as origens e as datas são baseadas em critérios não esclarecidos. Deve-se ressaltar uma peça da coleção, descrita como “Nossa Senhora com o Menino, em marfim do Cabo, século XVIII”.18 Seria “Cabo” uma referência à origem da matéria-prima ou do objeto? Teria passado antes por Cabo Verde? São hipóteses a serem averiguadas em estudos futuros.19 A coleção de peças sacras em marfim de Orlando de Castro Lima, do Museu de Arte Sacra da Bahia, foi a segunda coleção no Brasil a ter um catálogo dedicado à apresentação de peças de marfim. Contudo, a base da análise são os estudos realizados nos anos 1960 por Bernardo Ferrão Tavares e Távora, português, engenheiro e estudioso da imaginária indiana. Outro aspecto ressaltado neste catálogo refere-se ao comércio entre Bahia e Índia, o suposto local de origem da imaginária católica existente em Salvador.20 Segundo o historiador Jorge Lúzio, as imagens religiosas católicas do Museu de Arte Sacra da Bahia é fruto do hibridismo cultural indiano e português, porque foram feitas por artistas indianos e chegaram em Salvador via “carreira da Índia” ou pelas mãos 1970, p. 42, 46, 50. 17 O segundo catálogo do Museu é mais completo porque tem a descrição das peças, incluindo os tamanho destas, e contém mais peças descritas como marfim do que o catálogo anterior, porque o Crucifixo (número 800) e o Cristo Crucificado, Séc. XVIII, da Matriz de Santo Amaro (número 534) foram catalogados a primeira vez como madeira e a segunda vez como marfim. Sendo assim, o Museu tem18 peças, no total. Cf. NETO, Ribeiro Pedro A. de Oliveira; SOARES FILHO, José Miguel. Catálogo do Museu de Arte Sacra de São Paulo. São Paulo: Cia Lithographica Ypiranga, s/d., p.109-111 e 145. Além dos dois catálogos citados, há um terceiro, que tem apenas um texto do curador, Ribeiro Neto, explicando o projeto expográfico e as fotografias das salas do Museu. Cf. NETO, Ribeiro Pedro A. de Oliveira. Museu de Arte Sacra de São Paulo. São Paulo: Gráficos Brunner Ltda., 1973. 18 Descrição completa da peça: “Nossa Senhora com o Menino, em marfim do Cabo, século XVIII. Pela posição da imagem do menino, seria Nossa Senhora dos Prazeres. A lua sob os pés é normalmente de Nossa Senhora da Conceição. Base oval, com decoração de frisos, na mesma peça de marfim. Apresenta vestígios de douração nos cabelos”. In: NETO, Ribeiro Pedro A. de Oliveira; SOARES FILHO, José Miguel. Catálogo do Museu de Arte Sacra de São Paulo, p. 109-110. 19 Agradeço ao pesquisador Jorge Lúzio, que está investigando o acervo em marfim do Museu de Arte Sacra de São Paulo, por ter chamado minha atenção da “Nossa Senhora com o Menino, em marfim do Cabo”, para este aspecto que pode remeter à uma possível origem africana da peça. 20 MAIA, Pedro M. O Museu de Arte-Sacra. Universidade Federal da Bahia. São Paulo: Banco Safra, 1987.

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dos religiosos.21 Contudo, faltam evidências mais consistentes dessa rota do marfim no período colonial, bem como faltam dados acerca da origem e datação das peças. A maior coleção privada de peças sacras em marfim existentes no Brasil é a Coleção Souza Lima, que possui 572 peças, “recolhidas e adquiridas pelo titular da coleção em diversos estados do Brasil, aproximadamente entre 1919 e 1930”.22 Em 1933, o colecionador José Luís Souza Lima penhorou a coleção dele na Caixa Econômica Federal do Brasil. Em 1940, o Presidente do Brasil pagou pela penhora e doou a referida coleção ao Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro. Mais de meio século depois da compra, em 1993, esta coleção foi exibida pela primeira vez em exposição realizada no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro.23 Esta exposição deu origem ao catálogo “O marfim e a imaginária. A arte do marfim: do sagrado e da história na Coleção Souza Lima do Museu Histórico Nacional”. Em 2002, foi realizada outra exposição desta mesma coleção na Pinacoteca do Estado de São Paulo, com 200 peças, sob a curadoria de Lucila Morais Santos, que teve outro catálogo, A sagração do Marfim.24 O ponto de partida para análise das origens das peças nos catálogos das referidas coleções, tanto da Bahia quanto do Rio de Janeiro, é a origem “indo-portuguesa” da maioria delas: “A existência dessas imagens entre nós está ligada ao avanço português na Ásia a partir do século XV, ao trabalho de catequese cristã e à condição colonial brasileira mantida por Portugal até o século XIX”, como afirma a organizadora do livro. 25 Inclusive, a bibliografia do livro conta basicamente com referências sobre a arte na Índia. Contudo, não foram apresentadas evidências de que estas peças teriam origem na Índia ou Ceilão. E nem de longe foi aventada a possibilidade de uma origem africana. De todo modo, os estudos se concentram apenas nas imagens católicas da coleção. As outras, quase 400 peças, ainda não foram estudadas. 21 LÚZIO, Jorge. Sagrado Marfim. O Império português na Índia e as relações intracoloniais

Bahia e Goa, século XVII: iconografias, interfaces e circulações. Dissertação de mestrado em História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, 2011. 22 SANTOS, Lucila M. A sagração do Marfim. Coleção do Museu Histórico NacionalIPHAN/RJ, 2002, p. 6. 23 FERREIRA, Reinaldo. O marfim e a imaginária. Arte do marfim: do sagrado e da história na Coleção Souza Lima do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: CCBB, 1993. 24 SANTOS, Lucila M. A sagração do Marfim. 25 SANTOS, Lucila M. A sagração do Marfim. p. 6.

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Outra importante coleção de marfins no Brasil pertenceu ao escritor Mário de Andrade (1893-1945), que reuniu os referidos objetos durante viagens realizadas pelo interior do país nas primeiras décadas do Século XX.26 A referida coleção está alocada no Instituto de Estudos Brasileiro da Universidade de São Paulo. Em 2004, foi publicado o catálogo Coleção Mário de Andrade: Religião e Magia, que divulga os objetos de marfim e de outros materiais da coleção do escritor.27 Essa produção tem análise bastante influenciada pela perspectiva do catálogo organizado pela Lucila M. Santos em 2002. As poucas peças da Coleção Mário de Andrade (reunidas aproximadamente na mesma época que a Coleção Souza Lima) fornecem exemplos variados sobretudo da arte indo-portuguesa, constituindo pequeno “resumo” desta produção, que inclui desde imagens próximas ao protótipo europeu até aquelas totalmente reinterpretadas pelos artistas indianos.28

O enunciado mostra que o viés interpretativo também é baseado na origem indiana de algumas peças. Foram inseridas no catálogo 12 imagens católicas em marfim – O Bom Pastor, duas peças de Cristo agonizante, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora do Rosário, uma placa de Nossa Senhora dos Prazeres, São João Batista, Santo Antônio, São Domingos e São João Evangelista. A maioria das peças foi identificada estilisticamente como ocidentais e as demais como arte “luso-oriental”.29 Apenas uma peça teve sua datação identificada – Nossa Senhora do Rosário, que pertenceu ao Bispo de Mariana Frei Manoel da Cruz, cujo bispado foi durante os anos 1748-1764. Ainda não há pesquisas sobre a origem e datação das demais peças.

26 Uma análise sobre a forma de aquisição de alguns objetos de marfim pelo colecionador pode ser vista no artigo FRONER, Yacy-Ara. O acervo em marfim luso-afro-oriental no Brasil na Coleção Mário de Andrade. In: Coleções de arte em Portugal e Brasil nos séculos XIX e XX: perfis e trânsitos. Lisboa-Portugal: Caleidoscópio, 2014. vol. 1. p. 95-107. 27 BATISTA, Martha Rossetti (org). Coleção Mário de Andrade: Religião e Magia; Música e Dança; Cotidiano. São Paulo: IEB-USP, 2004. 28 BATISTA, Martha Rossetti (org). Coleção Mário de Andrade: Religião e Magia; Música e Dança; Cotidiano. São Paulo: IEB-USP, 2004. 29 BATISTA, Martha Rossetti (org). Coleção Mário de Andrade: Religião e Magia; Música e Dança; Cotidiano. São Paulo: IEB-USP, 2004, p. 63-64.

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Além das sete publicações citadas acima, recentemente, algumas instituições tem divulgado peças em marfim que fazem parte de suas coleções, como o Museu Nacional, que possui uma presa de marfim lavrada, mas ainda não há informação da procedência;30 a Coleção Eva Klabin de São Paulo, que não tem inventário publicado; e a Fundação Brenand de Pernambuco. Contudo, nenhuma apresenta análise profunda acerca dos objetos. De modo geral, os estudos sobre os objetos de marfim no Brasil tem sido superficiais por dois motivos: por um lado, há uma ideia generalizada de que os objetos chegaram pela chamada “carreira da Índia”; de outro lado, as conclusões são baseadas em comparações estilísticas, Desse modo, até o momento, as referidas coleções nunca passaram por um estudo criterioso para datação, identificação de procedência e do histórico de cada peça, em diálogo com o que Arjun Appadurai cunhou como “vida social das coisas” e Kopitoff, numa perspectiva próxima, chamou de “biografia cultural das coisas”.31 E conforme debate apresentado anteriormente, Peter Mark tem mostrado em seus estudos acerca do local de produção das colheres, olifantes e saleiros de marfim, que somente as fontes escritas podem ajudar a elucidar questões como datação e procedência.32 No Brasil, objetos de marfim circularam em São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Grão-Pará, Minas Gerais e em outras capitanias. Novas pesquisas tem mostrado que chegava aos portos do Brasil muito marfim africano bruto vindo de Loango33, do rio Benim, de Angola,34

30 SOARES, Mariza de Carvalho; AGOSTINHO, Michele de Barcelos; LIMA, Rachel

Correa. Conhecendo a exposição Kumbukumbu do Museu Nacional. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2016, p. 39-41. (Série Livros Digital; 4) Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017. 31 KOPYTOFF, Igor. “A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo”. In: APPADURAI, Arjun (ed.) A vida social das coisas. As mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Eduff, 2008, p. 89-121. 32 MARK, Peter. Bini, Vidi, Vici’; On the misuse of Style in African Art History. History in Africa, vol. 42, 2015, p. 323-334. 33 Para o caso do comércio de marfim bruto no Loango e Congo ver: Mariza de Carvalho Soares. “ ‘Por conto e peso’: o comércio de marfim no Congo e Loango, séculos XV-XVII.” Anais do Museu Paulista. vol. 25, n. 1, 2017, p. 59-86. 34 LUÍS, J. Gime. O comércio do marfim e o poder nos territórios do Kongo, Kakongo, Ngoyo e Loango (1796-1825), dissertação de Mestrado em História, na Especialidade de História de África, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2016.

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Benguela35 e Moçambique36 para fins comerciais e não comerciais. Contudo, esse comércio ainda carece de mais estudos. O projeto, ao qual esse livro faz parte tem a finalidade de preencher a lacuna acerca do comércio, produção, posse e tipologia dos marfins no Brasil e no mundo Atlântico. O projeto tem rediscutido questões conceituais, que tem se mostrado insuficientes para o estudo de outros segmentos, como por exemplo, os marfins produzidos no Brasil e também aqueles produzidos em África para atender uma demanda interna.37 Este livro é fruto de um projeto entre a UFMG e a FLUL que nasceu em agosto de 2013, por ocasião da estada do Professor José da Silva Horta da Universidade de Lisboa no âmbito da Cátedra de Professores Residentes do Instituto de Estudos Avançados - IEAT/ UFMG.38 O Programa foi apoiado pelos professores Vanicléia S. Santos, Eduardo Paiva e Yacy-Ara Froner. Em 2014/2015, tanto na UFMG quanto na FLUL, a investigação sobre os marfins teve início. Em 2015, o convênio bilateral entre UFMG e FLUL foi formalmente assinado com o tema “A produção, circulação e utilização de marfins africanos no espaço Atlântico entre os séculos XV e XIX”, ao mesmo tempo em que decorria a preparação do projeto de investigação para ser apresentado à Fundação de Ciência e a Tecnologia de Portugal/FCT. Neste sentido, foi acordado que os dois projetos se articulariam para possibilitar o financiamento da investigação nos dois países. No mesmo ano, a FAPEMIG aprovou o projeto, coordenado pela profa. Yacy-Ara Froner (EBA-UFMG). O projeto Marfins Africanos no Mundo Atlântico – uma reavaliação do marfins luso35 ALVES, Rogéria. “Marfins africanos em trânsito: apontamentos sobre o comércio numa

perspectiva atlântica (Angola, Benguela, Lisboa e Brasil, Séculos XVIII-XIX)”, Faces da História, vol. 3, 2016, p. 8-21. 36 Para o caso do comércio de marfim bruto em Moçambique, ver Luís Frederico Antunes, “Acerca da importância socio-económica do marfim leste africano: alguns elementos para uma descrição cartográfica do comércio de marfim na região de Sofala, no início do século XVI”, Colóquio Internacional Marfim Africano: Comércio e Objectos (sécs. XV-XVIII). CH-ULisboa, ARTIS – IHA, HERCULES/UÉ, e UFMG, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2017. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017. 37 Projeto PTDC/EPHPAT/1810/2014. 38 O Programa Cátedras do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares/ IEAT/ UFMG é patrocinado pela FUNDEP. O Programa de Catedrático Residente da UFMG teve parcerias transdisciplinares com vários grupos de pesquisa, centros e laboratórios da UFMG e PUC-Minas, 2013. Disponível em: . Acesso em 23 jun. 2017.

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-africanos/African Ivories in the Atlantic World - A Reassessment of LusoAfrican Ivories venceu o concurso de projetos/ FCT em Portugal, e os trabalhos em torno do projeto FCT foram iniciados em abril de 2016. PTDC/EPHPAT/1810/2014). A partir de novos dados pesquisados em Portugal e no Brasil, este projeto pretende contribuir para (1) compreender melhor a diversidade de centros de produção de objetos de marfim no continente africano e das linguagens artísticas utilizadas, de modo a oferecer ao mesmo tempo novas perspectivas para a história econômica e cultural da África. (2) estudar a circulação de marfins africanos através do Atlântico e de sua articulação com o Índico. (3) oferecer uma nova imagem da complexidade e diversidade cultural, intelectual e material dos marfins africanos, como um todo; (4) fornecer novas informações sobre a diversidade de intercâmbio cultural estabelecido em diferentes áreas das costas atlântica e índica. Este livro é resultado das pesquisas e discussões em torno do tema dos marfins no espaço Atlântico e também dos debates no seminário internacional O Marfim na História Moderna: comércio, circulação, fé status social, organizado pelo Centro de Estudos Africanos da UFMG, Escola de Belas Artes e Departamento de História da UFMG em 2016. Os autores tiveram seus textos debatidos no Seminário e foram convidados a publicar nesta coletânea. Todos os textos foram submetidos à revisão por pares, para que alcançássemos um nível mais aprimorado das ideias desenvolvidas. O seminário foi pioneiro no Brasil, em razão da originalidade do tema e pela diversidade de pesquisadores que participaram, tais como museólogos, curadores, especialistas em história da arte e a maioria de historiadores. Os textos que compõem esse livro são resultados pioneiros de pesquisas em arquivos brasileiros e estrangeiros acerca da presença de marfins no Brasil Colonial, assim como nas costas do Atlântico e do Índico. Uma grande variedade de fontes foram acessadas, tais como inventários post-mortem, fontes impressas (crônicas e relatos de viagens), iconografias, relatórios de comércio e documentação administrativa. São fontes muito utilizadas pelos historiadores brasileiros, contudo, desta feita, tem sido questionadas para acessar novos objetos e nova problemática – repensar a cultura material do marfim em contexto intercontinental. 24 Vanicléia Silva Santos - Organizadora

O livro tem 10 capítulos, organizados em duas partes. A primeira parte “O comércio de marfim na África Atlântica e no Índico (Séculos XV-XIX)” trata do comércio de marfim bruto em três diferentes regiões da Costa Atlântica da África, nomeadamente as regiões do Oeste (Rio Gâmbia), porto de Pinda e presídio de Cambambe (África Centro-Ocidental) e também do comércio de presas e de objetos ebúrneos no Índico. O ensaio que abre esse livro é o de Mariza Soares, curadora da coleção de arte africana do Museu Nacional do Rio de Janeiro e professora da Universidade Federal Fluminense. A autora dialoga com a mais atualizada historiografia dos estudos classificatórios dos marfins da África Atlântica e faz um avanço importante nesse importante debate. Soares mostra que embora haja muitos estudos e interesses em estudar os marfins de Serra Leoa, chamados de “Sapi” ou “SapiPortuguese”, há estudos pouco profundos sobre os marfins do Congo e Angola. A partir do “Catalogue Raisonné” da obra de Ezio Bassani e William Fagg, Africa and the Renaissance (1988), a autora avança na análise dos olifantes classificados como “apócrifos”, oriundos da África Centro-Ocidental. Soares identifica três padrões não observados antes pelos demais especialistas: a ponta das presas tem formato de pinha, os talos tem uma barra com grafismos e os penduradores não seguem um padrão de localização. Além disso, a partir de um recorte centrado nos anos 1493-1512, a autora mostra que os olifantes/trombetas eram feitos por artistas altamente especializados, que tocavam para a alta hierarquia política do reino do Congo e também em cerimônias diplomáticas. Com base nessas novas evidências, a autora sugere que os marfins oriundos do Congo não mais sejam classificados como apócrifos mas como marfins congoleses, e compreendidos em suas particularidades. Sílvio Marcos Correa centrou sua análise acerca do lugar do marfim no comércio da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, e do destaque que elefantes e presas tiveram na iconografia da corte de Nassau nos 1637 a 1644. Embora o marfim não tenha tido um lugar principal dentre os produtos comercializados pelos comerciantes holandeses, o autor ressalta que este não deve ser menosprezado pela historiografia. Os comerciantes dos Países Baixos conseguiam obter o marfim por meio de permuta, compras, ações beligerantes e saques. A partir da análise de três pinturas da coleção nassoviana, bem como de elefantes O Marfim no Mundo Moderno

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e marfins na cartografia holandesa do século XVII, o autor argumenta em torno da circulação de novas mercadorias na Europa e do interesse das cortes europeias pelas descobertas feitas pelos seus comerciantes na costa africana atlântica. A partir dos relatos de comerciantes e de religiosos, Felipe Malacco faz um estudo do comércio de marfim na região do rio Gâmbia. A principal contribuição deste ensaio é a análise da dinâmica interna do comércio do marfim no interior do rio Gâmbia, a identificação dos principais portos de comércio de marfim ao longo do referido rio, o escambo do marfim por outros produtos, as técnicas de caça do elefante, o consumo local da carne do paquiderme e o comércio de presas feito pelos jalofos e mandingas e os estrangeiros. Carolina Perpétuo Corrêa aborda a evolução do comércio de marfim nas primeiras décadas do século XIX no Presídio de Cambambe, oriundo da feira do Dondo, que era exportado para o porto de Luanda, Angola. A partir dos dados oficiais anotados nos “mapas estatísticos” referentes a Cambambe, fonte inédita, a autora notou que entre 1799 e 1835, quando o comércio era monopolizado pela Coroa, o preço do marfim era mais baixo do que o de escravos e o marfim não se constituía em mercadoria principal. O fim do monopólio do comércio e a extinção do tráfico transatlântico de escravos, fez com que o comércio de marfim junto com o de cera de abelha se tornassem as principais mercadorias. Como estes produtos precisavam ser transportados por pessoas, acabaram também por reacender o uso de mão de obra escrava naquela região. O último texto dessa parte trata d’Os marfins da Índia: interações comerciais e práticas artísticas no subcontinente, escrito por Jorge Lúzio, um estudioso da arte indiana em marfim. O autor discute, a partir da historiografia, as interações comerciais entre comerciantes portugueses e africanos na costa oriental africana, nomeadamente, o comércio de presas de marfim pelo oceano Índico com destino ao Sul da Índia, bem como o funcionamento das trocas comerciais no norte do atual Moçambique, no século XVII. Na segunda parte, o autor discute os fundamentos da formação dos artistas indianos que esculpiam o marfim com motivos da arte hindu e também cristã. Por fim, o autor discorda do conceito utilizado pelos especialistas que classificam este segmento como “arte indo-portuguesa”. A segunda parte do livro trata da produção, circulação e posse do marfim em duas regiões do Brasil Colonial – o Nordeste e o Sudeste, nomeadamente, Pernambuco e Minas Gerais, nos séculos XVII ao XIX. 26 Vanicléia Silva Santos - Organizadora

Analisando período semelhante ao de Corrêa, René Lommez Gomes faz importante avanço acerca dos objetos de marfim na corte de Nassau. Em Belamente talhados e torneados no Brasil, o autor analisa o papel da Kunstkammer real da Dinamarca e a presença de dentes de marfim e de móveis talhados em marfim produzidos no Brasil e adquiridos pelo rei da Dinamarca Frederik III, por volta de 1652. Essas peças, e outras produzidas a partir de outras matérias primais no Brasil, foram doadas ao rei da Dinamarca pelo seu primo, o conde de Nassau. O tema principal do artigo é a conjectura em torno do artista Jacob Jansen Nordmand ter sido o criador dos móveis doados por Nassau. Gomes analisa a atuação de Nordmand no Brasil na corte de Nassau, o retorno dele para a Europa e posterior ingresso na corte dinamarquesa, a alta projeção que alcançou em razão das esculturas feitas para o rei Frederick III, a nomeação para inspetor da Kunstkammer real e as habilidades dele na arte de esculpir e tornear. Embora seja certo que em Recife, em meados do século XVII, foram feitos móveis em marfim, ainda não se sabe ao certo do seu criador. Eduardo França Paiva, especialista em história da escravidão e da cultura em Minas Gerais colonial, apresenta análise de um conjunto de inventários do século XVIII, os quais revelam que os objetos em marfim estavam majoritariamente sob a posse de homens brancos. O autor faz importantes problematizações acerca dos objetos de marfim e a associação deste a outros materiais, como minérios; lança hipóteses sobre as procedências dos objetos, local de produção, possíveis rotas que levaram o marfim para Minas Gerais; e critica os conceitos europeus utilizados para o estudo do segmento do marfim lavrado. Embora no corpus documental do autor, não haja evidência da origem das peças em marfim e nem da produção delas, Paiva alerta sobre a importância de se relacionar a origem de outros bens arrolados nos inventários e os marfins; e aventa também sobre outros circuitos internacionais que teriam levado estes produtos ao Brasil. No ensaio A arte em marfim nas Minas Setecentistas: o perfil dos proprietários de tornos de rede angolanos, botões, sinetes, imagens religiosas e outros objetos de marfim, cuja base empírica são inventários da comarca do Rio das Velhas (Minas Gerais, século XVIII), a análise tem como foco a tipologia dos objetos, os usos dados a estes e o perfil dos usuários. Além de aventar para questões difíceis de alcançar tais como origem, O Marfim no Mundo Moderno

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autoria da produção e valores, as autoras, Vanicléia Santos e Rogéria Alves, consideraram a metodologia da análise comparativa dos bens de cada pessoa, e notaram que mais importante do que o valor pecuniário dos objetos eram os simbolismos que estes representavam para seus proprietários e proprietárias. Além disso, identificaram objetos de “marfim africano”, como os tornos de marfins para redes, bastante utilizados nos reinos de Angola (Ndongo) e Congo, e largamente adotados pela elite branca colonial, que era carregada pelos escravizados negros. A viagem do marfim: cultura material e diferenciação social na vida cotidiana de uma vila mineira de Guilherme Augusto do Nascimento e Silva é um texto baseado em inventários post-mortem do Século XIX e tem uma importante problemática: como o marfim tornou-se um novo padrão de consumo e de diferenciação social em Minas Gerais? Do corpus documental de sua pesquisa de doutorado, o autor selecionou apenas os inventários que tinham objetos de marfim: conjuntos de colheres e garfos com cabos de marfim, imagens sacras (crucifixo e Nossa Senhora do Rosário), leques e sinetes. Ao relacionar objetos e proprietário, o autor notou que o perfil dos proprietários eram homens, brancos, donos de escravos e comerciantes. Estes buscavam distinção e diferenciação social naquelas sociedades por meio de objetos sofisticados importados da Europa e da Índia. A presença de tecidos e de louças da Índia em inventários da freguesia de Piranga, mostram que as cidades do interior, apesar da lonjura do mar não estavam desarticuladas dos negócios que se davam em escala global favorecidos pela circulação de pessoas e mercadorias. Finalmente, mas não menos importante, Márcio Mota Pereira mostra em seu ensaio Marfim e medicina na modernidade portuguesa: aportes pontuais que desde o medievo até os séculos XVI havia um conhecimento popular e também científico que tratava das qualidades medicinais do marfim. Com as expansões dos portugueses pelas diversas partes do mundo, novas receitas foram elaboradas e utilizadas. Além do uso medicinal das raspas de marfim, as presas de elefante também eram usadas como matéria-prima para fabricar os instrumentos dos boticários, como o gral para macerar as receitas, a faca para cortar ervas e outros. No Brasil colonial, o pó de marfim foi utilizado para ser tomado como remédio (adstringente, vermífugo, anticoagulante), assim como encontrados nos equipamentos de boticas (gral, pistilo, espátula e agulhão). 28 Vanicléia Silva Santos - Organizadora

Em forma de conclusão, a análise geral do conjunto de artigos apresentados nessa coletânea apresenta indícios de que, apesar de objetos de marfim terem circulado intensamente pelo chamado “Império português” nos Setecentos e Oitocentos, não terão sido objetos largamente encontrados em posse de moradores das Minas Gerais no referido período. Contudo, seu estudo não pode ser menosprezado pois os objetos de marfim que chegaram à Minas Gerais mostram como elementos da Modernidade circularam entre os brancos e também entre os negros. 39 Assim, algumas considerações parciais podem ser feitas. Acerca da produção de objetos de marfim no Brasil, ainda não há evidências de uma produção local, exceto o mobiliário do Conde de Nassau que viveu em Recife na primeira metade do Século XVI, como mostrou René Gomes. Em Minas Gerais, é possível identificar os marfins e seus proprietários, mas não os artistas. A discussão sobre os tornos de rede marfim abre a possibilidade de estarmos tratando de objetos importados de Angola, desde o Século XVII, a mais antiga evidência de objetos vindos de Angola, ou que em Minas Gerais, estes tornos podem ter sido lavrados localmente, conforme mostrado no capítulo três, segunda parte. O perfil dos proprietários de marfim em Minas Gerais confirmou-se em todos capítulos que trataram sobre a referida região. Em geral, são homens brancos, portugueses ou descendentes, e algumas poucas mulheres brancas. Eles pertenciam as camadas mais abastadas da sociedade, que incluíam padres, comerciantes, lojistas, boticários, médicos, proprietários de fazendas para produção de alimento e criadores de gado. Embora em menor proporção, a população negra também possuía objetos de marfim, em geral, as proprietárias eram mulheres africanas forras. Acerca dos objetos, há uma predominância de objetos utilitário, como colheres e garfos com cabos de marfim, leques, sinetes, espátula para abrir cartas, jogos de tabuleiro, botões, brincos, gral, pistilo, espátula para botica, agulhão, pentes e canas (bengalas). A outra parte é composta de objetos de uso devocional, tais como crucifixos, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora da Glória, crucifixos, Senhor Morto e São João. Das imagens religiosas, a 39 FRONER, Yacy-Ara; PAIVA, Eduardo França; SANTOS, Vanicléia Silva. Acervos em marfim em Minas Gerais: documentos, trânsitos e materialidade. E-hum: Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n. 2, 2014.

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maioria é de crucifixos e de Nossa Senhora da Conceição. Os objetos utilitários de marfim, serviam para decorar a casa e atribuir distinção social. Os objetos religiosos poderiam ser também utilizados para essa finalidade, mas estava especialmente relacionado ao mundo espiritual. Iniciamos esta apresentação tratando do debate em torno dos marfins “luso-africamos”, que abriu uma importante discussão internacional no âmbito da história da arte para os marfins produzidos pelos africanos. Infelizmente, nenhum destes objetos foi identificado no Brasil ainda. Talvez, orientadas por um desejo de consumo de bens da Europa e do Oriente, as elites das Minas não adquiriram objetos “LusoAfricans”, e isso pode explicar porque as coleções museais brasileiras, formadas no Século XX, possuem objetos que remetem para a iconografia europeia e indiana, que teria circulado no Brasil colonial e no período do Império. Este livro abre novos caminhos para a historiografia brasileira e esperamos atrair novos pesquisadores interessados nos estudos dos objetos de marfim e da circulação do marfim bruto no mundo atlântico.

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PARTE 1 O comércio de marfim na África Atlântica e Índica: séculos XV-XIX

Capítulo 1 O mpungi nas fontes portuguesas sobre o Congo, 1483-1512 1

Mariza de Carvalho Soares Chamamos de valiosos aqueles objetos que opõem resistência a nosso desejo de possuí-los. Simmel, The Filosophy of Money

Segundo o historiador da arte Peter Mark, os olifantes (trombetas de marfim) luso-africanos foram pouco acessíveis aos pesquisadores porque a maior parte das informações sobre eles se encontram em fontes portuguesas. Essa dificuldade tem sido ultrapassada por ele e outros pesquisadores para o caso da Serra Leoa.2 Para os olifantes do Congo, o desconhecimento permanece, mesmo entre os pesquisadores com acesso às fontes portuguesas. Em Angola o olifante (chamado mpungi) é hoje um instrumento musical de grande importância cultural. O site do Ministério da Cultura angolano oferece uma seleção de objetos dos povos do país. Para os povos de língua kikongo lista oito objetos, sendo dois pertencentes aos Bakongo: o nkangi kidito (crucifixo longo) e o mpungi.3 A legenda do mpungi diz tratar-se de um instrumento musical cuja função é a “atualização do poder político”.4 Este trabalho é co-financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto PTDC/EPHPAT/1810/2014 1 O texto optou pela grafia “Congo” (também usada no francês e no italiano) em lugar de “Kongo” (grafia usual nas línguas inglesa e alemã). A grafia “Congo” corresponde não apenas ao português moderno, mas também à grafia da documentação portuguesa dos séculos XV e XVI aqui apresentada. 2 MARK, Peter. Towards a reassessment of the dating and the Geographical origins of the LusoAfrican Ivories, Fifteenth to seventeeth centuries. History in Africa, 34 (2007): 210. O projeto “Marfins Africanos no Mundo Atlântico: uma reavaliação dos marfins lusoafricanos” tem como objetivo preencher essa lacuna. 3 Sobre o crucifixo longo ver FROMONT, Cécile. The Art of Conversion: Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo. Chapel Hill: University of North Califonia Press, 2014. p. 72-75. 4 REPÚBLICA DE ANGOLA. Ministério da Cultura. Área Sociocultural Kikongo. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017.

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A obra do antropólogo José Redinha inclui um livro sobre os instrumentos musicais de Angola. Redinha lista o mpungi, mas esclarece que é encontrado apenas no antigo Congo (hoje República Democrática do Congo), onde era considerado um instrumento da realeza kikongo, usado para anunciar cerimônias fúnebres ou a investidura dos reis. Redinha informa ainda que as mais antigas notícias sobre o mpungi datam do final do século XVI através dos relatos de Duarte Lopes e Andrew Battell, ambos com relatos da última década do século XVI.5 Segundo a historiadora Beatrix Heintze, com trabalhos mais recentes, a palavra mpungi significa trombeta em kikongo, língua falada pelos bakongo. Citando François Bontinck em sua Histoire du Royaume du Congo (1972) ela explica que o termo (mpungi, mpungu, plural jimbungo) se aplica a qualquer trombeta e não apenas aos olifantes.6 Redinha e Heintze dão diferentes definições para o mpungi, concordam tratar-se de um instrumento característico do Congo. Assim sendo, o desafio deste texto é, seguindo os passos indicados por Mark, voltar às fontes portuguesas para nelas encontrar novos caminhos para o entendimento do mpungi, o olifante do Congo. O texto está composto em três partes: a primeira retoma a obra de William Fagg e Ezio Bassani sobre os olifantes renascentistas da costa atlântica africana; a segunda apresenta fontes sobre o uso e circulação do marfim bruto e lavrado no Congo entre 1493 e 1512, com destaque para dois cronistas portugueses da década de 1490, Ruy de Pina e Garcia de Resende; e a terceira mostra como a articulação dessas informações contribui para avançar na pesquisa sobre os olifantes do Congo.

Os olifantes da costa atlântica africana William Fagg foi pioneiro no estudo dos olifantes, seguido por Ezio Bassani. Em 1988 foi realizada no The Center for African Art, em REDINHA, José. Instrumentos musicais de Angola: sua construção e descrição. Coimbra: Universidade de Coimbra/Instituto de Antropologia, 1984. p. 15-23. Ao longo da obra oferece nomes diferenciados para os vários aerofones encontrados em Angola. p. 45-75. 6 HEINTZE, Beatrix. A cultura material dos Mbundu segundo as fontes dos séculos XVI e XVII. In: ______ Angola nos séculos XVI e XVII: estudos sobre fontes, métodos e história. Luanda: Kilombelombe, 2007, c. 4, p. 602.

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34 Capítulo 1 - O mpungi nas fontes portuguesas

Nova York, a exposição Africa and the Renaissance: Art in Ivory. Nessa ocasião foi lançado o catálogo da exposição, aqui tomado como fonte de análise.7 O trabalho desses autores se concentra no estudo de objetos de marfim encontrados na Europa, ponto final de uma longa cadeia diplomática e comercial que levou os objetos de marfim africano aos colecionadores europeus. A obra Africa and the Renaissance inclui textos, fotos e no final o Catalogue Raisonne, que apresenta um inventário de 60 olifantes: 37 da Serra Leoa (três Sapi e 34 Sapi-Portuguese; três da Nigéria (todos Bini-Portugueses); nove do Zaire ou Angola, Congo; e 11 da África Ocidental (sem identificação de procedência). Pela distribuição das peças no catálogo é fácil perceber o grande número de olifantes vindos da Serra Leoa em relação aos demais; pelo texto nota-se também a predominância de estudos sobre eles e a carência de trabalhos sobre os demais.8 Peter Mark afirma que a produção de peças de marfim lavradas em Serra Leoa pode ser estimada entre 1490 e 1650. Na listagem dos 37 olifantes da Serra Leoa apenas 25 tem alguma data limite: o mais antigo é anterior a 1710 (n. 202); um manuscrito de 1583 trata de um olifante que pode ser a peça n. 98 ou n. 100. Dos 11 olifantes identificados como sendo da África Ocidental (todos com entalhe facetado) sete apresentam data limite, sendo o mais antigo anterior a 1619 (n. 199). Dos nove olifantes do Congo, dois são anteriores a 1553 (n. 181, n. 182). Ao contrário dos olifantes da Serra Leoa, divididos entre “Sapi” (três) e “Sapi-Português” (34), os nove olifantes classificados como “Zaire ou Angola e Congo-Português (?)” aparecem com um ponto de interrogação, questionando o componente “Português” de cada uma delas. Por outro lado, a classificação “Zaire” ou “Angola, Congo” carece de procedência apurada. Essa precariedade de informações dá ao décimo primeiro capítulo de Africa and the Renaissance o tíFAGG, William. Afro-Portuguese Ivories. London: Batchworth Press, 1958; e mais recentemente BASSANI, Ezio; FAGG, William. Africa and the Renaissance: Art in Ivory. Susan Vogel (ed.) New York/Houston: The Center for Africa Art/The Museum of Fine Arts, 1988. 8 Além dos textos já citados: AFONSO, Luís Urbano; HORTA, José da Silva. “Olifantes afro-portugueses com cenas de caça, c.1490-c.1540”. Artis. Revista de História da Arte e Ciências do patrimônio. n. 1, 2013. p. 20-29. BLIER, Suzanne Preston. “Imaging Otherness in Ivory: African Portrayls of the Portuguese ca. 1492. The Art Bulletin, Sep 1993, vol. LXXV, n. 3. p. 375-396. MOTA, António Teixeira da. “Gli avori africani nella documentazione portoghese dei secoli XV-XVII”. Africa, 30, n. 4, dec. 1975, p. 580-589. 7

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tulo The Afro-Portuguese Apocrypha. Reproduzo abaixo as informações do Catalogue Raisonne: Tabela 1 – Olifantes do “Zaire ou Angola, Congo-Português (?)” n. do Comprimento Localização catálogo da peça Museo degli Argenti 181 83cm Florença Museo degli Argenti Flo182 57,5cm rença Museo Nazionale Preistorico 183 63cm e Etnografico Roma Museo de Infanteria 184 61cm Toledo Musée National des Ther185 70cm mes e de l’Hôtel de Cluny Paris Linden Museum 186 69cm Stuttgard Proprietário e localização 187 43cm desconhecidos Museu Nacional de Arte 188 40cm Antiga Lisboa 189

71cm

Fondation Dapper Paris

Observações complementares Consta do inventário da Coleção Cosimo I de Medici, 1553. Consta do inventário da Coleção Cosimo I de Medici, 1553. Adquirido do Museo Nazionale/Nápolis, 1887. Atribuído a Garcilaso de la Veja (entre 1561 e 1616) Adquirido antes de 1843 (hoje Musée National du Moyen Âge) Ex-coleção Krongut Christie’s sale, 1985. Falta a ponta Ex-coleção Charles Ratton (texto informa ser do séc. XVI, p. 206) (hoje Musée Dapper)

Fonte: “Catalogue Raisonne”. In: BASSANI e FAGG. Africa and the Renaissance. p. 233-250. (As informações entre parêntesis foram adicionadas por mim).

A identificação desses nove olifantes foi feita a partir da variedade de padrões decorativos em zigue-zague encontrados em todos eles. Assim como os olifantes, os tecidos de ráfia, as esculturas de madeira e as escarificações corporais seguem o mesmo padrão.9 Apesar da cuidadosa análise dos padrões encontrados, o catálogo produzido mantém a classificação “Zaire ou Congo, Angola”. 9 Ver fotos do olifante n. 189 (século XVI), de uma escultura em madeira, de pessoa com

escarificações nas costas e de um tecido, todos identificados como de procedência Congo (com variação de data). FAGG. Africa and the Renaissance, p. 202-203, 206.

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Desse conjunto destaquei o exemplar pertencente ao acervo do Museu de Arte Antiga de Portugal. Esse exemplar, como destacado no quadro acima, perdeu a ponta, provavelmente em forma de pinha, como os demais. Note-se ainda que este exemplar apresenta um tipo de tintura no desenho em baixo relevo. Figura 1 – Olifante do Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal (Inv. n. 21/Esc.), 40 cm. Desenho de Maurílio Oliveira, 2017

Beatrix Heintze faz uma importante contribuição para a identificação dos nove olifantes catalogados por Bassani e Fagg. Lamentavelmente, como o livro é sobre Angola seus comentários sobre o Congo são bastante resumidos. Segundo ela, os olifantes analisados por Bassani (em texto de 1981, ela não cita a publicação de 1988) são todos do Congo e não do Zaire ou de Angola (Ndongo): Dos numerosos instrumentos da época conservaram-se, ao que parece, somente algumas cornetas de marfim particularmente bonitas, oriundas do reino do Congo e não da antiga Angola propriamente dita. São guarnecidas com ornamentos característicos dessa região, que surpreendem o observador, uma vez que nas fontes escritas não se encontra qualquer indicação sobre a sua excelente execução artesanal e artística. Esses instrumentos que possuíam sempre embocadura lateral, estavam sobretudo relacionados com a corte do reino do Congo e, no ano de 1575, eram também tocados na corte do rei do Ndongo.10 10 A autora cita o artigo “Antiche manufatti dell’Africa Nera nelle collezioni europee del

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Se de um lado Heintze reduz a área de procedência dos olifantes listados por Bassani (todos Congo), de outro amplia seu raio de uso ao Ndongo, pelo menos a partir de meados do século XVI. Heintze dá pistas de como procedeu a essa identificação. A autora mostra a variedade dos tecidos feitos com fibra vegetal em toda a região, desde o Loango até Angola, e informa que os tecidos do Congo eram produzidos em Mbata, no vale do rio Nkisi, e mais para leste, no vale do rio Kwango. Esses panos, tecidos com grafismos bem característicos, eram negociados na feira de Mwene Kunde, por isso eram chamados “panos cundes”.11 A comparação dos grafismos dos tecidos com os grafismos dos olifantes foi, embora isso não seja dito explicitamente, o caminho seguido por Heintze para sua afirmação de que os olifantes estudados por Bassani são Congo. Infelizmente a autora não fornece elementos que deem maior sustentação a seu argumento. Como complemento Heintze faz menção aos “ponges” (ou pongos, termo português para mpungi) das bandas de música descritas pelo inglês Andrew Battell que vivem em Angola (c.1590).12 Heintze não cita os relatos de Rui de Pina e Garcia de Resende analisados adiante neste texto. Considera Cavazzi a fonte mais importante: “mais uma vez, Cavazzi é de longe, a melhor fonte e, graças às suas aquarelas também a mais explícita e, por isso, a mais inequívoca”.13 Por fim lamenta: “nas fontes escritas não se encontra qualquer indicação sobre a sua excelente execução artesanal e artística”. Curiosamente não faz menção às trombetas que aparecem nas pranchas de Cavazzi. Heintze Rinascimento e dell’età barocca” publicado por Bassani em Quaderni Poro 3: 3-34. HEINTZE. “A cultura material dos Mbundu”, p. 601-602. 11 HEINTZE. “A cultura material dos Mbundu”, p. 581-582; fig. 14, 20, p. 590. 12 Battell descreve trombetas feitas de dentes de elefante, ocas por dentro e medindo uma jarda e meia (cerca de 1,4 metros) com uma abertura lateral que podiam ser ouvidas a uma milha de distância. Se refere a elas também por ocasião da rendição e avassalamento do soba de Ingombe. O soba derrotado em dura batalha apresentou-se diante das tropas portuguesas em grande pompa, acompanhado por uma banda de tambores e “pongos”. RAVENSTEIN, E. G. (editor)  The Strange Adventures of Andrew Battell of Leigh, in Angola and the Adjoining regions. [ca. 1590]. Oxford: Hakluyt Society, 1901, p. 9, 15, 47, 86. 13 Giovanni Cavazzi da Montecuccolo (1621-1678) foi um missionário capuchinho que viajou a Angola e deixou um extenso relato intitulado Istorica Descrizione de’ tre regni Congo, Matamba ed Angola, em meados do século XVII. A edição póstuma dessa obra, em 2 volumes, aconteceu em Bolonha, 1687. Existe uma edição portuguesa moderna da obra: MONTECUCCOLO, João António Cavazzi (Pe.). Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Junta de Investigação do Ultramar. Lisboa, 1963, vol. 2.

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reproduz nove pranchas, entre elas “Missione Evangelica” que apresenta o séquito da rainha Njinga com dois trombeteiros. Essa prancha merece atenção. Um olhar atento mostra que as trombetas têm um formato diverso dos olifantes. Embora com embocadura lateral apresentam uma abertura em ângulo bastante mais acentuado que o encontrado nos dentes de elefante. Essa abertura desproporcional, que aparece em outras pranchas, pode indicar serem essas trombetas feitas de algum outro material que não marfim. Suspeito serem trombetas de búzio.14 Na mesma direção em seu livro Art of Conversion (2014) a historiadora da arte Cécile Fromont recorre ao arqueólogo James Denbow que encontrou fragmentos de cerâmica (terracota) decorados nas margens do rio Zaire. Fromont mostra que os mesmos motivos da cerâmica estão presentes no olifante da coleção Cosimo I de Medici (n. 181) e nos tecidos de ráfia. Atentamente, adverte que a continuidade da forma não necessariamente implica em continuidade de significado; e que faltam análises históricas sobre os grafismos na época.15 Citando fontes diversas, Fromont faz várias menções a trombetas de marfim tocadas nas bandas de música que acompanhavam as cerimônias festivas, a mais antiga delas citando Duarte Pacheco Pereira (c. 1460-1533).16 A autora cita Ruy de Pina, mas não sobre as trombetas e não menciona Garcia de Resende. Por fim, faz uma interessante análise dos crucifixos de ferro, com breve referência a crucifixos de marfim, a partir de um processo da Inquisição de Luanda (1598). Segundo ela, quase certamente tais objetos eram feitos por artesãos locais.17 Seguindo essa linha de argumentação, passo agora a uma breve contextualização do Congo nas primeiras décadas da presença portuguesa de modo a dar elementos para a leitura das fontes apresentadas.

14 HEINTZE. “A cultura material dos Mbundu”, p. 601-602; prancha 14, p. 631; Redinha descreve trombetas de búzio, encontradas em Cabinda, mas esse tema foge aos limites do presente texto. REDINHA. Instrumentos musicais de Angola, p. 91. 15 FROMONT. The Art of Conversion. p. 76. Para uma visão geral dos grafismos dos povos da foz do Zaire ver o catálogo da exposição Kongo. Power and Majesty. LAGAMMA, Alisa. Kongo. Power and Majesty. New York. Metropolitan Museum of Art, 2015. 16 FROMONT. Art of Convertion, p. 26. 17 FROMONT. Art of Convertion, p. 72-75.

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O marfim do Congo, 1483-1512 A história do Congo e suas relações com Portugal tem sido objeto da atenção de vários historiadores que escreveram sobre os povos da África Centro-Ocidental. Quase todos enfocam a região a partir do século XVII, quando, devido ao comércio de escravos, são mais fartas as fontes disponíveis. Nenhum deles dá atenção ao comércio do marfim bruto, e menos ainda aos objetos de marfim lavrado.18 O Congo é parte de um conjunto de povos distribuídos nas duas margens do baixo rio Zaire. A unidade política e territorial denominada Congo, ou “Reino do Congo” variou de extensão. No final do século XV, quando da chegada dos portugueses, pode-se estimar o seguinte território: ao norte ia até rio Zaire (talvez ultrapassando a margem esquerda); ao sul até o Ndongo, acima do rio Dande; a leste até o rio Nkisi; e a oeste fazendo fronteira com o Sonyo, que ocupava a faixa litorânea.19 Por ocasião da chegada dos portugueses, não sem tensão, o Congo era governado por uma autoridade única, o manicongo, que tinha sob sua influência oito “províncias” (termo da documentação portuguesa). O Sonyo, governado pelo manisonyo, era uma delas. A produção de bens especializados que circulavam entre o Congo e suas “províncias” era distribuída espacialmente: na zona central (Mbata) havia fartura de palmeiras das quais eram tiradas as fibras e feitos os tecidos; ao norte, margem direita do Zaire (Nsundi), 18 Para as obras clássicas da historiografia da África centro ocidental entre os séculos XV e XVII cito: BIRMINGHAN, David. Alianças e conflitos. Os primórdios da ocupação estrangeira em Angola, 1483-1790. Luanda: Arquivo Histórico de Angola/Ministério da Cultura. 2004; HILTON, Anne. The Kingdom of Kongo. Oxford: Clarendon Press, 1985; MARTIN, Phyllis M.. The External Trade of the Loango Coast, 1576-1870. The effect of Changing Commercial Relations on the Vili Kingdom of Loango. Oxford. The Clarendon Press. 1972; MILLER, Joseph C. Poder político e parentesco. Os antigos estados Mbundu em Angola. Luanda: Arquivo Histórico Nacional. 1995. SILVA, Filipa Ribeiro da. Dutch and Portuguese in Western Africa: States, Merchants and the Atlantic System, 1580-1674. Leiden: Brill, 2011; THORNTON, John K.. Civil War and Transition, 1641-1718. Madison: University of Wisconsin Press. 1983; THORNTON, John K.. The Kongolese Saint Anthony. Dona Beatriz Kimpa Vita and the Anthonian Movement, 1684-1706. Cambridge: Cambridge University Press; VANSINA, Jan. Paths in the Rain Forests. Towards a History of Political Tradition in Equatorial Africa. Madison: The University of Wisconsin Press.1990; VANSINA, Jan. How societies are born. Governance in West Central Africa before 1600. Charlottesville: University of Virgina Press. 2004. 19 HILTON. The Kingdom of Kongo, c. 2, p. 3-4. Ver também mapa em FROMONT. Art of Convertion, p. 3.

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ficavam minas de cobre; no litoral o Sonyo produzia sal e recolhia conchas ao longo da costa. Hilton não faz qualquer menção ao marfim.20 Os primeiros contatos dos portugueses com o Congo se dão no tempo de Nzinga a Nkuwu que governou o Congo entre 1470 e 1506 (batizado João). Todo o acesso ao rio Zaire e depois ao Congo, desde 1483, era feito a partir da ilha de São Tomé. Já em 1485 D. João II ali introduziu o sistema de capitania, tendo São Tomé, como sede. A capitania, abarcava o arquipélago e toda a costa desde a foz do Níger até Angola, aí incluídos ao norte as ilhas do Corisco e Ano Bom e os chamados “rios dos escravos”, entre eles o rio Benim; e ao sul toda a costa do Loango, a foz do Zaire, Congo e depois Angola.21 As fontes do reinado de D. João II mostram o crescente comércio de dentes de elefante no Congo e fazem questionar a ocorrência de algum comércio de marfim, já então, no rio Benim, sendo todas as carregações, posteriormente enviadas a São Tomé, para atender ao controle alfandegário. Todos os capitães de embarcações portuguesas que comerciavam na costa faziam parada obrigatória na ilha de São Tomé para verificação da carga. Na ocasião a carga era conferida e emitido documento com a lista dos produtos embarcados que deveria ser entregue para nova conferência em Lisboa, na Casa de Guiné.22 Os cronistas de D. João II de Portugal dão as primeiras informações sobre o Congo e também sobre os olifantes ali encontrados. Dois deles, Ruy de Pina e Garcia de Resende23, deixaram registros sobre 20 HILTON. The Kingdom of Kongo, p. 40, 6-7. 21 O arquipélago foi descoberto em 1471. De 1485 a 1522 teve seis donatários e em 1573

voltou à administração da coroa. HENRIQUES, Isabel de Castro. São Tomé e Príncipe – A invenção de uma sociedade. Veja Editora, Lisboa, 2000. 22 Sobre os registros de São Tomé ver SOARES, Mariza de Carvalho. “Por conto e peso: o comércio do marfim no Congo e na costa do Loango, 1490-1620”. Anais do Museu Paulista. História e Cultura Material, vol. 25, n. 1, jan-abril: 59-86, 2017. 23 Ruy de Pina (1440-1522) foi cronista da Casa de Bragança, tendo sucedido a Zurara neste posto. Tornou-se oficialmente cronista em 1497, mas desde 1490 atuava como tal. PINA, Ruy. “Chronica d’ElRey D. João II, escrita por Ruy de Pina, chronista mór de Portugal, e guarda mór da Torre do Tombo”, In: SERRA, José Correa. Collecçaõ de Livros Inéditos de Historia Portugueza. Lisboa: Oficina da Academia de Real de Ciências. 1792. Tomo II. p. 5-204. Garcia de Resende (1470-1536) foi cronista, poeta, músico, desenhista, arquiteto e editor. Em 1490, já era considerado próximo a D. João II; em 1491, foi designado seu secretário particular, cargo que exerceu até o falecimento do rei em 1495. Ver RESENDE, Garcia. Chronica dos valoroses e insignes feytos del Rey Dom Joam II de gloriosa memoria, em que se refere sua vida, suas virtudes, seu magnanino esforço, excellentes costumes, & seu christianissimo zelo. (1a. edição Évora, 1554). Lisboa. Officina de Manoel da Sylva, 1752.

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os presentes enviados por Nzinga a Nkuwu (rei do Congo) a D. João II. Ambos eram próximos a D. João II e seus relatos tiveram, pelo menos em parte, as mesmas fontes. Ruy de Pina narra a chegada da expedição de Ruy de Souza ao Sonyo em 1491; e, na sequência, sua entrada em Ambasse (capital do Congo e residência do manicongo). Da primeira disse: “e para isso se ajuntou logo muita gente com arcos e flechas e com atabaques e trombetas de marfim e com violas, tudo segundo seu costume”.24 Sobre a segunda registrou um cortejo “com muitas trombetas de marfim e atabaques…”. Contou ainda que o “rei”, ricamente vestido, ornava o braço esquerdo com um bracelete de marfim.25 Garcia de Resende assinalou “muitas trombetas de marfim, e atabaques, e outros instrumentos”, descrevendo, em mais detalhes, o próprio “rei”: “(…) posto em um estrado rico, e nu da cintura para cima, com uma carapuça de pano de palma, e ao ombro um rabo de cavalo guarnecido de prata, e da cinta para baixo coberto com panos de damasco, que el rei lhe mandara, e do braço esquerdo um bracelete de marfim.”26 Deixando de lado o mpu (carapuça ou barrete de pano de palma), o espanador (rabo de cavala guarnecido de prata) e os panos de damasco (oferecidos como presentes pelos portugueses no primeiro encontro) chamou atenção o bracelete de marfim. Ruy de Pina narrou também a conversão de Caçuta, dito “fidalgo” do Congo, e listou os presentes por ele levados ao rei de Portugal: “dentes de elefantes, e coisas de marfim lavradas, e muitos panos de palma bem tecidos, e com finas cores”.27 Garcia de Resende registrou tratar-se de “um presente de muitos dentes de elefantes e coisas de marfim lavradas, e muito panos de palma bem tecidos, e com finas cores”.28 Não há registro desses presentes nas coleções contemporâneas.29 Fica a 24 PINA, Ruy. “Chronica d’ElRey D. João II”. Tomo II, p. 152. É difícil estabelecer o que há de prática própria ao Congo antes da chegada dos portugueses e o que, em tais festas, já resulta do conhecimento e da apropriação dos ritos portugueses de poder e diplomacia pelo Congo. 25 PINA.“Chronica d’ElRey D. João II”, tomo II, p. 160. 26 RESENDE. Chronica, p. 70. 27 PINA.“Chronica d’ElRey D. João II”, tomo II, p. 148. 28 Em retribuição, reforçando o projeto de conversão, os portugueses levaram ao Congo “muitos e ricos ornamentos e cruzes; castiçais e galhetas campainhas e sinos; e órgão; muitos livros; e todas outras coisas necessárias para igrejas tudo em muita perfeição”. RESENDE. Chronica, p. 68-69. 29 Tampouco se tem notícias do dente de marfim oferecido por Alvise de Cadamosto a D.

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dúvida: havia entre os presentes dentes de marfim lavrado, havia olifantes? O que seriam as tais “coisas”, braceletes, o que mais? Não foram encontrados registros para a entrada de marfim (bruto ou lavrado) em Lisboa nesse período, nem tampouco para os primeiros anos do século XVI. Citando transcrição de Teixeira da Mota, Peter Mark recupera a entrada de peças de marfim lavrado em Portugal nos livros da Casa de Guiné e nas cartas de quitação dos anos de 1504 e 1505.30 As mercadorias embarcadas incluíam as carregações dos contratos, os presentes e tudo mais adquirido pelos membros das expedições e da tripulação das embarcações, autorizados a trazer pequenos volumes, aí incluído algum comércio. Pode-se notar na transcrição de Teixeira da Mota, que muitas das colheres listadas foram registradas como pertencentes aos “marinheiros”. Na viagem da caravela Falconette (registradas em janeiro de 1505), quatro marinheiros transportaram um total de 54 colheres, todas elas, supostamente, da Serra Leoa.31 A partir dos contatos diplomáticos, da entrada da Igreja e do comércio com Portugal, Nzinga a Nkuwu ( João I do Congo) empreendeu muitas mudanças, mas ainda estabelecia restrições ao comércio que não atendiam aos interesses de Portugal. Por ocasião de sua morte (1506) e da disputa sucessória, os portugueses tenderam a apoiar Mvemba a Nzinga que, desde c.1485, governava Nsundi (“província” rica em minas Henrique. O relato de sua segunda viagem informa que um “dente de doze palmos de comprido” e um “pé” de elefante foram mandados por Cadamosto ao Infante D. Henrique que os ofereceu sua irmã, princesa Isabel (1397-1471), já então Duquesa de Borgonha. CADAMOSTO, Luiz de. “Navegação segunda de Luiz de Cadamosto”. In: Noticias para a historia e geografia das nações ultramarinas, que vivem nos dominios portuguezes, ou lhes são visinhas. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Sciencias, 1812, tomo II da coleção Noticias, p. 68. Sobre a duquesa ver TAYLOR, Aline S.. Isabel of Burgundy: The Duchess who Played Politics in the Age of Joan of Arc, 1397-1471. Madison: Madison Books, 2001. Sobre a duquesa de Borgonha, o marfim e os presentes “exóticos” da corte portuguesa ver SIMÕES, Catarina Santana. “The Symbolic Importance of the ‘Exotic’ in the Portuguese Court in the Late Middle Ages”. Anales de Historia del Arte, vol. 24, n. especial, nov. 2014: 517-525, p. 251. 30 MARK, Peter. “Towards a reassessment of the dating and the Geographical origins of the Luso-African Ivories”. p. 195. Segundo Afonso e Horta, essa documentação, não encontrada nos arquivos portugueses para outros anos, deve ter-se perdido por ocasião do terremoto de Lisboa. AFONSO e HORTA. “Olifantes afro-portugueses”, p. 23. O The Trans Atlantic Slave Trade Database, único banco de dados de abrangência atlântica contabiliza 36 mil viagens transatlânticas, mas registra apenas escravos e não outras mercadorias. THE TRANSATLANTIC SLAVE TRAD DATABASE VOYAGES. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017. 31 MOTA, António Teixeira da. “Gli avori africani nella documentazione portoghese dei secoli XV-XVII”. Africa, ano 30, n. 4, dec. 1975: 580-589, p. 581.

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de cobre) que os portugueses acreditavam ser passagem para as terras do Prestes João.32 Com o apoio português, Mvemba a Nzinga (Afonso I do Congo) enfrentou seus oponentes e foi finalmente reconhecido como manicongo. Ao longo de seu governo estreitou os laços com Portugal, tanto nos acertos comerciais quanto na recepção ao catolicismo que se tornou religião oficial no Congo.33 O comércio regular não eliminou as costumeiras relações diplomáticas estabelecidas por D. João II, aí incluídos os presentes. Catarina S. Simões argumenta que embora os presentes exóticos fossem uma prática da monarquia portuguesa desde o Medievo, foi a partir do reinado de D. Manoel I (1495-1521) que essa prática se acentuou.34 A diplomacia de D. João II no Congo certamente contribuiu para isso.35 Os dois monarcas se preocuparam com as duas coisas na medida em que comércio e diplomacia sempre estiveram ligados. No mesmo ano de 1485 D. João II publicou uma carta régia sobre os privilégios dos povoadores de São Tomé onde tratava dos resgates (entenda-se comércio) nos “rios dos escravos”. Já nessa época começavam as disputas entre os comerciantes de Lisboa e os comerciantes sediados na vila de Santo António, sede da capitania de São Tomé. Entre 1483 e 1512 muitas expedições percorreram a costa e fizeram comércio, tanto no Congo quanto no rio Benim.36 O objetivo, nos dois casos, era o mesmo: escravos e marfim. No caso do Congo o cobre era também alvo de interesse. A entrada regular de marfim bruto em Portugal ocorreu no reinado de D. Manoel (1495-1521). O governo de Mvemba a Nzinga 32 HILTON. The Kingdom of Kongo, p. 53-54. 33 Sobre a conversão ver FROMONT. The Art of Conversion, p. 4. 34 SIMÕES, Catarina Santana. “The Symbolic Importance of the ‘Exotic’ in the Portuguese

Court in the Late Middle Ages”. Anales de Historia del Arte, nov. 2014, vol. 24, n. especial, p. 517-525 35 Sobre a troca de presentes existe uma importante bibliografia recuperada e discutida por Arjun Appadurai. APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas. As mercadorias sob uma perspectiva cultural [1986]. Niterói: EdUFF, 2008. A troca de presentes entre os reis de Portugal e dos diferentes reinos africanos foi uma prática que se estendeu até o final da presença colonial portuguesas. Sobre a troca de presentes com o Reino do Daomé nos séculos XVII e XIX ver SOARES, Mariza de Carvalho. “Trocando galanterias: a diplomacia do comércio de escravos, Brasil-Daomé, 1810-1812. Afro-Ásia, 2014, n. 49, p. 229-271. 36 Um exemplo desse interesse ficou registrado em uma denúncia que chegou a Portugal informando que 1516 os comerciantes de São Tomé teriam enviado uma embarcação de 120 toneladas ao rio Benim e de lá trazido 400 escravos, 100 quintais de marfim (5,9 toneladas) e outras mercadorias, tudo fora do contrato. “Inquirição”. BRÁSIO. MMA-I, vol. 1, doc. 105, p. 372. Ver SOARES. “Por conto e peso”.

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(Afonso I) corresponde ao aumento das exportações do Congo. Entre 1506 e 1511 o Congo exportou 5.200 manilhas de cobre e também marfim, tecidos de ráfia, peles, mel e escravos prisioneiros de guerra. Hilton não dá estimativas do volume de marfim envolvido nessas transações, mas reforça as relações estabelecidas entre Mvemba a Nzinga e o capitão mor de São Tomé, encarregado dos negócios.37 Em 1512, com a autoridade de um regimento, embarcou para o Congo uma expedição vinda de Portugal encarregada de regulamentar o comércio de escravos, cobre e marfim.38 O regimento, datado de 1512, foi composto em duas partes. A primeira parte ratificava o ritual diplomático: entrega de cartas, encomendas e saudações ao manicongo. Na ocasião deveria ficar claro que a ele estaria sendo dispensado o mesmo protocolo adotado frente aos demais “reis e príncipes cristãos”. A segunda estabelecia normas para o embarque das carregações (basicamente escravos, marfim bruto e cobre).39 O regimento de 1512 mostra claramente o início de uma nova fase nas relações entre o Congo e Portugal, motivo pelo qual o presente texto optou por este ano como data limite para a análise.

O que as fontes portuguesas agregam ao estudo dos olifantes do Congo Volto aqui então aos nove olifantes renascentistas de Fagg e Bassani. Mesmo com datação duvidosa, pode-se aventar que quatro deles possam ter chegado a Portugal durante o reinado de D. Manoel (1495-1521), ou ao longo do século XVI. Seguir a rota do marfim bruto é uma alternativa para identificar os possíveis caminhos percorridos pelos olifantes levados a Europa como lembrança ou presente pelos viajantes que visitaram o Congo. Aqueles que comerciavam também confraternizavam e trocavam presentes, e levavam lembranças de viagem. 37 HILTON. The Kingdom of Kongo, p. 55. 38 HILTON. The Kingdom of Kongo, p. 56-57. Hilton cita as mudanças sem, entretanto,

aprofundar a análise do novo regimento. 39 Regimento de D. Manoel a Simão da Silva (1512). Para uma análise do regimentos ver SOARES. “Por conto e peso”.

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Entre os nove olifantes do catálogo, dois constam do inventário da coleção Cosimo I de’ Medici, feito em 1553. Esses e outros olifantes com data limite posterior à 1525 precisam de informações adicionais para traçar seu caminho entre o Congo e as mãos dos colecionadores europeus. O século XVI marca a entrada de outras nações europeias na exploração da África Atlântica, em busca de ouro, marfim, cobre, tinturas, etc. No caso da foz do rio Zaire os primeiros comerciantes concorrentes a chegar foram os franceses. Em 1526 o manicongo Nzinga Mbemba enviou a D. João III (1521-1557) de Portugal uma carta avisando que, contra sua vontade, haviam embarcações francesas comerciando marfim, manilhas (argolas de metal) e tacula (madeira vermelha usada como tintura) com o manisonyo no porto de Mpinda.40 A rota francesa ia da foz do Zaire à Normandia, subindo o Sena, até Rouen.41 Por fim, não encontrei registros de localização de oficinas de marfim nas escavações arqueológicas realizadas no Congo.42 Pesquisas arqueológicas têm enfocado a metalurgia, importante complemento para as pesquisas históricas. Um dos estudos mais interessantes é o livro Crown and Ritual (1998) de Zdenka Volavka que estudou as insígnias reais do Ngoyo, vizinho do Congo. A autora trabalha um conjunto arqueológico de 16 peças do Musée de l’Homme, com destaque para um barrete de cobre usado por ocasião da investidura dos governantes do Ngoyo. O uso dos barretes parece ter sido partilhado por vários povos da região. Eram feitos de fibra vegetal tecida e seu uso era extensivo à toda hierarquia política, com variações de tamanho e decoração. Lembro a menção de Garcia de Resende a uma “carapuça de pano de palma”.43 Um dos capítulos do livro de Volavka é dedicado à extração e às oficinas de beneficiamento do cobre. Não há nele, nem em outra parte do livro, qualquer menção a objetos de marfim ou oficinas de marfim.44 40 Documento transcrito na íntegra em Monumenta Missionária Africana. Ver SOARES. “Por conto e peso”. 41 Data de 1531 uma carta do Doutor Gaspar Vaz, enviado português à corte francesa, ao rei D. João III onde informa a chegada a Rouen de uma nau francesa carregada de malagueta, algodão, couros, 150 quintais de marfim e outras mercadorias obtidas ao sul da Ilha de Cabo Verde. Conforme estipulado nas Ordenações Manuelinas, um quintal equivalia a quatro arrobas (ou 58,752 quilos), o que daria um total de 8.812,8 quilos, ou 8,81 toneladas. 42 Um levantamento preliminar de publicações não revelou estudos sobre localização de objetos de marfim nas escavações do Congo. SCARRE, Chris. Antiquity: a review of word archaeology. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017. 43 Ver exemplar do Nationalmuseet Etnografisk Samling, coletado antes de 1674. Reprodução em BLIER. “Imaging Otherness in Ivory”, p. 385, fig. 9. 44 Diferentemente do mpu, o barrete do Nogyo, tecido em fios de cobre, tem uma abertura na

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Cécile Fromont analisa a simbologia do bracelete de ferro usado pelo manicongo (malunga), descrito pelo missionário Mateus Cardoso (c.1620).45 Já sobre o trono os relatos divergem. Segundo Andrew Battell (c.1590) o rei sentava em uma cadeira “incrustrada de marfim” em cima de uma plataforma. João de Barros menciona um largo terreiro com o rei sobre um alto “cadafalso” de madeira, sentado em uma “cadeira de marfim com algumas peças de pau lavradas”. Segundo a crônica do Pe. Francisco de Santa Maria (1653-1713), o rei sentava “em uma cadeira de marfim, colocada sobre um trono de madeira”. Não encontrei descrições de tronos nos relatos da década de 1490.46 O trono descrito no século XVII pode ter existido, mas ser posterior e sua introdução estar associada ao crescimento do comércio do marfim. Na década de 1490 os primeiros visitantes dão mais destaque à banda (tambores e trombetas) e ao bracelete. A escassez de descrições dos objetos de marfim se soma a ausência de informações sobre sua confecção. Não há registro de oficinas de marfim. Sensatamente Fromont intui que o marfim lavrado era confeccionado por artesãos locais47, mas as fontes nada dizem sobre isso. A parte do dente usada nas esculturas corresponde à dentina (camada interior) cujo uso exige a remoção do cemento (camada externa), implicando em uma significativa perda de matéria prima.48 Esse é um problema a ser levantado na medida em que o cemento removido teria que ficar depositado em algum lugar. Assim sendo, vejo pelo menos duas parte superior. VOLAVKA, Zdenka. Crown and Ritual. The Royal Insignia of Ngoyo. Introduction and Conclusions by Colleen E. Kriger, edited by Wendy A. Thomas. Toronto: University of Toronto Press. 1998. Para o barrete de cobre, p. 13-22; ilustração 6. Para as oficinas de metal ver c. 5 e apêndices. 45 Para o bracelete ver FROMONT, Art of Convertion, p. 40-41. 46 Segundo Andrew Battell (1565-1614) o rei sentava em uma cadeira “incrustrada de marfim” em cima de uma plataforma. RAVENSTEIN (editor). The Strange Adventures of Andrew Battell, p. 109. João de Barros repete a descrição da cena, informando que os portugueses foram recebidos fora da cidade com “grande estrondo de atabaques, buzinas e outros bárbaros instrumentos”. Diz que o rei esperava pelos portugueses em um largo terreiro, sobre um alto “cadafalso” de madeira, sentado em uma “cadeira de marfim com algumas peças de pau lavradas”. João de Barros, Ásia. Década 1, liv III, cap IX, publicado em MMA-I, vol. 1, doc. 21, p. 82. MARIA, Francisco de Santa. O ceo aberto na terra. Historia Das Sagradas Congregações dos Conegos Seculares De S. Jorge Em Alga De Veneza & De S. Joaõ Evangelista Em Portugal. Lisboa, 1697. 47 FROMONT, Art of Convertion, p. 72-75. 48 FRANÇA, Conceição L.; BARBOZA, Kleumanery M.; QUITES, Maria Regina E.. “Estudo da tecnologia construtiva das esculturas em marfim”. Anais do 19o. Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Cachoeira-BA, set. 2010, p. 2647.

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possibilidades: ou as oficinas não foram localizadas pelos arqueólogos; ou o trabalho de entalhe em marfim para feitura do mpungi, de braceletes e outras peças era feito em número reduzido, por artistas altamente qualificados e não por oficinas coletivas, como era o caso do cobre. De todo modo, mesmo que em menor escala, devem existir depósitos de sobras em algum lugar. Essa segunda hipótese talvez explique, pelo menos em parte, o fato dos olifantes do Congo serem mais raros que os da Serra Leoa, feitos sob encomenda, seguindo modelos europeus como os que chegam ao requinte de reproduzir cenas de caça.49 Esse argumento reforça também o fato de que à diferença dos olifantes luso-portugueses da Serra Leoa, os nove olifantes do Congo apresentam fortes marcas culturais Bakongo na sua morfologia, decoração e uso. O mpungi traz sempre uma ponta em formato de “pinha torneada”; o taco é esculpido com um ressalto furado para passagem de um cordão de couro ou fibra vegetal; do lado interno apresenta uma cava côncava e ovalada que forma a embocadura para o tocador. Redinha esclarece que a alça é pendurada no pescoço. Quanto a seu uso, é descrito como um “instrumento real”, tocado em bandas do manicongo e outros altos dignatários, assim como em seus funerais. O uso de uma tintura (segundo Redinha uma massa preta ou vermelha) destaca o relevo da decoração (n. 184, n. 188). Eram confeccionados com dentes de diferentes tamanhos que depois de desbastados resultam em peças entre 80 e 40 centímetros. As menores, segundo Redinha usadas por autoridades de hierarquia inferior, como comandantes de guerra, eram chamadas “buzinas”.50 A essa descrição acrescento uma única variação significativa não destacada por nenhum dos autores. Todos os olifantes identificados como Congo trazem a ponta em formato de pinha e uma barra na extremidade oposta. Ao longo do talo, sete apresentam decoração em espiral e dois decoração paralela à barra (n. 188, n. 189). Essa variação carece de qualquer elaboração.51 Todos apresentam duas alças com distribuição 49 Afonso e Horta mencionam o acesso a livros impressos com gravuras para reprodução das cenas de caça. AFONSO e HORTA. “Olifantes afro-portugueses com cenas de caça”, p. 26. 50 REDINHA. Instrumentos musicais de Angola,p. 49. 51 Para o século XIX, os dentes de marfim esculpidos em espiral são todos atribuídos ao Loango. Blier mostra um exemplar identificado como Congo. Trata-se de uma identificacão antiga (numeração III C 429) cuja identificação já pode ter sido atualizada. Para os exemplares identificados como do Loango ver LAGAMMA, Kongo. Power and Majesty.

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variada ao longo do talo. Curiosamente apenas o olifante atribuído ao Inca Garcilaso de la Veja (n. 184) apresenta fragmentos de uma alça de fibra vegetal. Os registros de Ruy de Pina e Garcia de Resende, obtidos com base em informações diretas de membros das expedições que viajaram ao Congo na última década do século XV são as primeiras informações sobre os olifantes do Congo. Descrevem seu material (marfim) e uso (instrumento musical). Entretanto, nem eles nem outras fontes do século XV e XVI até agora encontradas, esclarecem sobre sua forma, tamanho e decoração. Por outro lado, os dois olifantes do Congo mostrados no catálogo da exposição Africa and the Renaissance (n. 181 e n. 183, datados como anteriores a 1552), podem lançar alguma luz sobre os relatos. Ambos apresentam a ponta em forma de pinha, o talo decorado com motivos em espiral. Os relatos de Ruy de Pina e Garcia de Resende mostram que já por ocasião da chegada dos portugueses os olifantes integravam os cortejos promovidos pelo manicongo como a recepção festiva aos visitantes portugueses (não apenas cerimonias fúnebres como destaca Redinha). Essas bandas, compostas de tambores, olifantes e outros instrumentos, continuam a existir, tendo sido descritas por vários viajantes. Três olifantes do Congo tem como data limite meados do século XVI: dois do Museo degli Argenti de Florença (n. 181 e n. 182), exemplares da coleção Cosimo I de Medici, que já se encontravam na Toscana antes de 1553; e um do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa (n. 188) que aparece sem data no catálogo, mas cuja legenda na exposição permanente do Museu de Arte Antiga indica século XVI.52 Um quarto olifante pertencente ao Museo de Infanteria de Toledo (n. 184) é atribuído a Garcilaso de la Veja. Caso tenha realmente pertencido ao escritor deve ter sido por ele adquirido entre 1561 (ano que chega à Espanha) e 1616, ano de sua morte. Nesse caso, uma vez mais poderia ser datado como anterior ao século XVII. Embora não tenha sido localizado nenhum mpungi trazido do Congo na última década do século XV pelo menos algum dos nove listados podem ser anteriores à segunda metade do século XVI. De qualquer modo, os relatos da década de 1490 aqui apresentados mostram sua visibilidade nas cerimônias de recepção aos portugueses e a atração que seu alarido despertou nos visitantes. Se 52 Segundo a legenda da exposição: “Buzina – Oliphant. Produção afro-portuguesa, marfim

com policromia. Zaire (?), Angola (?). (ref.: Inv. 21 Esc)”. A indicação de policromia pode ser associada à informação de Redinha sobre o uso de um tipo de massa escura, preta ou vermelha.

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não fizeram parte dos presentes, não seria difícil imaginar terem sido objeto de disputa por parte de membros da expedição. Se eles teriam ou não conseguido romper o cerco do uso cerimonial a que tais instrumentos estavam submetidos é impossível dizer. Só a leitura cuidadosa dos registros das coleções da época poderá dar conta da entrada, ou não, de tais olifantes, ainda no final do século XV ou na primeira metade do século XVI, especialmente entre 1493 e 1512, os primeiros anos da convivência entre representantes diplomáticos do Congo e de Portugal. Em resumo os nove olifantes classificados por Bassani e Fagg como “Zaire ou Congo, Angola” podem começar a sair do “limbo dos apócrifos afro-portugueses” ao qual foram por eles condenados.53 Não são “apócrifos”, entenda-se, sem autoria reconhecida, fora dos cânones ou menores. Do ponto de vista da história, compõem uma selecta de olifantes do Congo (mpungi em kimbundu) e integram o elenco dos instrumentos musicais tocados nas bandas que animavam os cortejos do manicongo. Eram confeccionados por artistas especializados e tocados para autoridades da hierarquia política do Congo. Sua associação ao poder e a ausência de elementos “lusos” pode, pelo menos em parte, explicar o pequeno número de exemplares em circulação na Europa. Os olifantes precisam ser entendidos em sua particularidade para, só então, serem reinseridos no conjunto dos 60 olifantes estudados. As primeiras informações sobre eles datam da década de 1490, portanto, tão antigas quanto as informações disponíveis para os olifantes da Serra Leoa.54 Seu estudo se ampara na historiografia sobre o Congo que oferece a contextualização necessária à sua identificação e estão entre mais antigos hoje encontrados na Europa. Por fim, seria ingênuo pensar que, tendo tomado parte dos primeiros 50 anos do contato com os portugueses e das profundas modificações passadas pelo Congo naquele período, tenham ficado imunes a mudanças, seja na forma, seja no seu uso social. Apesar disso, a análise aqui apresentada permite dizer que, ao menos pelos exemplares hoje conhecidos, pode-se dizer que mantiveram em grande parte suas características, atendendo a uma demanda local de uso cerimonial e diplomático. Talvez por isso, tenham circulado em menor número que os olifantes da Serra Leoa que, na mesma época, eram concebidos e confeccionados para atender à demanda europeia.

53 BASSANI e FAGG. Africa and the Renaissance, p. 212. 54 MARK. “Towards a reassessment of the dating and the Geographical origins of the Luso-

African Ivories”, p. 195, 202-203.

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Capítulo 2 A caça de elefantes e o comércio de marfim no rio Gâmbia, 1580-1630 1

Felipe Malacco O rio Gâmbia se estende por 1130 km, desde o planalto do Fouta Djallon, até atingir o oceano Atlântico. Seu curso é cheio de meandros, com a formação de vários lagos e lagoas. Há uma distância de 100 km até a foz, e ele é gradualmente alargado, chegando a atingir 10 km de extensão entre as margens, na região de encontro com o mar. É localizado em uma zona de encontro entre domínios morfoclimáticos: ao norte, savana; ao sul, floresta tropical. Dessa forma, seu vale era um local estratégico para a realização de trocas comerciais, tendo em vista que os produtos de uma região, por razões naturais, eram diferentes dos da outra. Além dessa importância para o comércio regional da África Ocidental, a região também estava conectada com o mundo mediterrânico séculos antes do contato com os europeus via oceano Atlântico. A ligação se dava por meio das rotas transaarianas, que conectavam o sul do Sahel2 à África e à Europa Mediterrânea. Do Norte da África para o rio Gâmbia, eram levados cavalos, roupas de algodão, sal e artigos apreciados pelos islamizados, como os livros encadernados com os escritos do Alcorão, entre outros. Do Gâmbia para o norte eram exportados marfim, ouro, peles, cera e escravizados, entre outros. A chegada dos navios portugueses à foz do Gambia, em 1446, transformou as relações comerciais dos povos da região. Após cerca de 10 anos de primeiros contatos, uma nova via comercial foi aberta, o que gerou novos produtos, em uma escala maior, que passaram a ser acessíveis a estes agentes. O mar ganhou outro significado nas vidas dessas sociedades e um novo comércio internacional se instaurou na região. 1 Este texto é parte da discussão sobre comércio no rio Gâmbia, realizada na dissertação de

mestrado intitulada: O Gâmbia no Mundo Atlântico - Fulas, Jalofos e Mandingas no comércio global Moderno (1580-1630), defendida no Programa de Pós-graduação em História da UFMG, em 2016, sob orientação da professora Vanicléia Silva Santos. 2 Região de transição entre o deserto do Saara e a savana.

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Para o entendimento dessa nova via comercial, o rio Gâmbia é um espaço privilegiado, pois a boa navegabilidade do seu curso fez com que houvesse certa interiorização do comércio atlântico na região. Apesar desta via ter sido aberta, como dito, em torno de 1456, o recorte escolhido para esta pesquisa é entre 1580-1630. Isso se deve, sobretudo, ao alargamento das redes comerciais atlânticas que se conectaram ao rio Gâmbia a partir de 1580. Foi a partir deste momento que outras nações europeias, que não os pioneiros portugueses, intensificaram suas relações comerciais com esta região.3 Como o nosso objetivo principal é analisar o comércio de marfim no rio Gâmbia, é pertinente que nossa pesquisa se inicie a partir do momento em que as redes se ampliaram ao se conectar a agentes holandeses e ingleses, por exemplo, o que aumentou e diversificou4 o leque de fontes sobre a problemática que pretendemos aqui discutir. Além da ampliação das possibilidades de análise, outro fator importante para esse recorte é que a intensificação de não-portugueses no trato atlântico via rio Gâmbia provavelmente causou um aumento do comércio de marfim, uma vez que até 1630 estes não comercializavam escravizados na região.5 Encerramos o recorte temporal em 1630, por fatores políticos, sociais e naturais inerentes à região do rio Gâmbia. Conforme argumentado por George Brooks6 e Philip Havik7, 1630 é o marco final de um período úmido na África Ocidental, ao qual se seguiu um longo período de secas, com duração até 1860. Os autores citados associam 3 HAVIK, Philip. Silences and Soundbytes: The gendered dynamics of trade and brokerage in

the pre-colonial Guinea Bissau Region. Leiden: Lit Verlag, 2004, p. 47. 4 Ao se trabalhar com fontes cujos autores provêm de diferentes nacionalidades, amplia-se os stocks culturais sobre a representação do “outro”, o que torna, no caso da nossa pesquisa, mais complexas as bases para a inteligibilidade da agência comercial dos fulas, mandingas e jalofos no comércio atlântico de marfins. Para mais, ver HORTA, José. A representação do africano na literatura de viagens do Senegal à Serra Leoa (1453-1508). Lisboa: Mare Liberum, n. 2, 1991. 5 Esses dados sobre a nula participação de não-portugueses no comércio de escravizados na região é acessível a partir da base de dados do tráfico atlântico de escravos, cujos pesquisadores principais são David Eltis e Martin Halbert, que reúne informações de mais de trinta e cinco mil viagens de navios negreiros, acessível pelo site http://www.slavevoyages.org/. Segundo a base de dados, entre 1580 e 1630, saíram 58.194 escravizados dos portos da Senegâmbia, todos levados por navios portugueses ou espanhóis. De fato, no período, levando em consideração todas as regiões analisadas pela base de dados, navios dos Países Baixos são responsáveis apenas por 0,62% dos 564,999 escravizados que saíram da África, enquanto os navios da Grã-Bretanha são responsáveis por 0,06%, cabendo todo o resto para navios ibéricos. Outros países, como a França, nem aparecem na pesquisa. 6 BROOKS. Eurafricans in Western Africa, p. 102. 7 HAVIK. Silences and Soundbytes, p. 42-43.

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estas mudanças climáticas à tendência dos grupos residentes a migrarem durante os períodos mais secos do ano. Essas migrações facilitaram um significativo crescimento do comércio transatlântico de escravizados, em razão das guerras para a realocação territorial dos grupos migrantes. Dessa forma, o comércio de escravizados cresce em importância, trazendo variáveis que não são cabíveis para a nossa análise, cujo principal foco é o comércio de marfim.

Mandingas, fulas e jalofos Tal era a importância da região para o comércio interno e de longa distância através do Atlântico, que vários povos passaram e se instalaram na região. Dessa forma, é temerário pensar em uma descrição etnográfica estável para a região do rio Gâmbia na longa duração histórica. De fato, no período escolhido para esta pesquisa, as fontes evidenciam a presença de três principais povos vivendo às margens do rio: os mandingas, mais numerosos, estabelecidos tanto na margem norte, quanto na sul, oriundos da expansão do Mali entre os séculos XII e XVI; os jalofos, estabelecidos na foz e em pontos na margem norte do rio; e os fulas, estabelecidos em vários pontos ao longo do vale do rio. Os mandingas são originários do Mali, cujo centro se localizava na região do Alto Níger. Essa formação política8 tem origem, segundo as tradições orais, por volta do ano de 1230. O “herói” fundador do Mali foi Sundjata Keita. É importante salientar que, a partir de sua fundação, houve uma expansão gradual em direção ao oeste, e a organização política estendeu seu poder até a região da Senegâmbia. Uma das rotas de expansão do império do Mali o levou ao Gâmbia. A presença desse povo no período em questão é bastante acentuada, de forma que, no ano de 1621, o comerciante inglês Richard Jobson os denominou “senhores e comandantes do local”.9 8 Optou-se por essa definição genérica, uma vez que os termos que comumente são associados

às organizações políticas da África Ocidental, tais como “Império”, “são essencialmente exógenas, geralmente de origem portuguesa, britânica ou francesa, e recentes, impostas ao longo do século XIX e XX”. BOILLEY, Pierre; MARÈS, Antoine. Empires. Introduction. Monde(s), 2012/2, n. 2, p. 20-21. 9 GAMBLE, David; HAIR, Paul. H. The Discovery of River Gambra (1623) by Richard Jobson.

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Conforme discutido em trabalhos historiográficos recentes, no primeiro quartel do século XVII, os mandingas que viviam às margens do rio Gâmbia eram islamizados10, e a expansão desse povo era conduzida tanto pelo aspecto político, quanto pelo comercial e pelo religioso. Os dois últimos pontos eram exercidos por um agente em comum, o Bixirim, Marabuto ou Caciz. Este, além de religioso, era um importante agente comercial, que se beneficiava das redes comerciais islâmicas para disseminar sua fé. Outro povo que vivia à margem do Gâmbia eram os fulas, que tinham vida nômade e provavelmente chegaram ao Gâmbia entre 1480 e 1490 em função da invasão liderada por Koli Tengela, que partiu do Sahel Maliano com numerosos fulas para se instalar nos altos platôs do Futa Djalon. Apesar da invasão de Koli Tengela, os fulas não se estabeleceram permanentemente na região. Os que estiveram lá durante o primeiro quartel do século XVII chegaram posteriormente, advindos da expansão da criação nômade de gado, em expansão devido à insaciável demanda europeia por couro bovino.11 A coabitação entre fulas e mandingas no Gâmbia ocorria a partir da prática local que George Brooks chamou de landlord and strangers reciprocities, que diz respeito ao costume cultural e social dos povos da África Ocidental de acolher e abrigar os estrangeiros, em função do desejo de acessar redes comerciais que ligariam a região às localidades de onde são naturais seus hóspedes, através do comércio de longa distância.12 Os jalofos, por fim, viviam ao sul do rio Senegal. A princípio, formavam uma confederação que se estendia ao longo da costa, até a foz do Gâmbia, e era constituída pelo Gran-Jalofo e por unidades políticas que lhe deviam subserviência.13 Com o advento do comércio atlântico e Edited, with Additional Material. London: The Hakluyt Society, 1999, p. 104. 10 Para discussão mais aprofundada sobre a islamização mandinga durante o século XVI, ver MOTA, Thiago. Portugueses e Muçulmanos na Senegâmbia: História e Representações do Islã na África (c. 1570-1625). Paraná: Prismas, 2016. 11 SILVA, Alberto da Costa. O Jihad do Futa Jalom. IN: RIBEIRO, Alexandre; GEBARA, Alexsander; BITTENCOURT, Marcelo (orgs). África Passado e Presente. Rio de Janeiro: PPGHistória UFF, 2010, p. 8. 12 BROOKS, George E. Eurafricans in Western Africa: commerce, social status, gender, and religious observance from the sixteenth to the eighteenth century. Athens: Ohio University Press, 2003. 13 SILVA, Alberto da Costa. A Enxada e a Lança: A África Antes dos Portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 159.

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o fortalecimento econômico e, consequentemente, militar e político das províncias costeiras, somado a acontecimentos internos, como a invasão fula ao território jalofo – liderada por Koli Tengela entre 1490 e 1501 –, essa confederação se esfacelou ao longo do século XVI.14 A relação entre os jalofos e os mandingas no rio Gâmbia era conflituosa, no sentido da delimitação de suas fronteiras. Assim como os mandingas, os jalofos também eram islamizados.

As fontes Dentro desse período (1580-1630), mobilizamos três tipologias de fontes para a análise que pretendemos fazer: as cartas de missionários; a documentação oficial de Cabo Verde; e quatro relatos de viagem escritos entre 1594 e 1630 – André Álvares de Almada (1594), Richard Jobson (1623), André Donelha (1625) e Pieter Van Den Broecke (1630). Os documentos oficiais e cartas de missionação utilizados neste artigo estão publicados na obra do padre Antonio Brásio, intitulada Monumenta Missionária Africana.15 Os quatro relatos de viagem foram escritos por indivíduos naturais do arquipélago de Cabo Verde e da Europa. André Álvares Almada16, cabo-verdiano, foi eleito pelos habitantes da ilha de Santiago para ir a Portugal, com a justificativa de pedir ao rei Felipe I de Portugal e II da Espanha o direito de colonizar Serra Leoa. Embora não haja evidências claras da realização dessa visita, Almada escreveu o Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde, endereçado ao rei. Em seu relato, o autor fez uma minuciosa descrição acerca dos produtos comerciais que podiam ser trocados no rio Gâmbia. 14 Para mais, ver BOULÈGUE, J. Les Royaumes Wolof dans L’espace Sénégambien (XIIIe-

XVIIIe siècle). Paris: Editions Karthala, 2013. 15 BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionária Africana: edição digital. CD-ROM Rodrigues, Miguel Jasmins (coordenação) Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 2011, série 2, vol. 3, 4, 5. Disponível em CD-ROM (2011), coligida e anotada pelo religioso entre 1952 e 1979. Essa coletânea documental é composta por vinte e dois volumes divididos em duas séries, das quais a segunda diz respeito ao recorte que propomos aqui. 16 ALMADA, André. Tratado Breve dos rios de Guiné do Cabo Verde dês do Rio Sanagá até os Baixos de Santa Ana. Porto: Tipografia comercial portuguesa. Largo de São João Novo, 1841, n. 12.

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André Donelha17 foi outro viajante nascido em Cabo Verde. Infere-se que ele tenha passado a infância em Cabo Verde, na ilha de Santiago, e que tenha nascido entre 1550 e 1560. Em 1585, o navegante fez uma viagem em que subiu o rio Gâmbia até Cantor. O relato contém informações acerca do trato possível no rio Gâmbia e uma descrição de seus portos. Richard Jobson18 era um viajante inglês que foi ao rio Gâmbia, entre 1620 e 1621, e permaneceu no local por sete meses. Há indícios de que ele era natural de Londres ou Yorkshire, tendo vivido e trabalhado na Irlanda. O autor pretendia usar o relato para garantir financiamento da coroa inglesa para voltar ao Gâmbia. Em seus escritos, Jobson apresenta uma notável visão do comércio euro-africano no rio Gâmbia, envolvendo vários tipos de mercadorias. Pieter Van Den Broecke19 foi um agente comercial flamengo, nascido na Antuérpia, em 1585. Os seus escritos constituem uma significativa fonte porque mostram, detalhadamente, as estratégias comerciais dos mercadores holandeses na costa atlântica da África. Esse relato se diferencia dos outros por ter sido escrito em forma de diário. Em conjunto com as outras descrições, ele auxiliou no mapeamento do comércio euro-africano no Gâmbia. Por meio das fontes, pode-se destacar a presença de cinco diferentes agrupamentos de agentes realizando comércio no entorno do rio Gâmbia. O primeiro agrupamento eram os povos que viviam na região entre 1580 e 1630, fulas, mandingas e jalofos, que de diferentes formas se conectaram às redes comerciais atlânticas. O segundo eram os cabo-verdianos, na condição de colonos portugueses, e que oficialmente atuavam em favor da Coroa, mas que também possuíam agenda própria. O terceiro grupo eram os lançados20, o quarto, os missionários, e o quinto eram os comerciantes europeus. 17 DONELHA, André. Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde (1625).

Edição, introdução, notas e apêndices: Avelino. T. da Mota. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977. 18 GAMBLE, David; HAIR, Paul. H. The Discovery of River Gambra, 1623. 19 LA FLEUR, James. Pieter Van Den Broecke’s: Journal of Voyages to Cape Verde, Guinea and Angola (1605 – 1625). London: The Hakluyt Society, 2000. 20 Agentes emigrantes que se fixavam no continente africano com a concordância dos mandatários locais. Como se instalavam em terras continentais, eles tinham muitas vantagens em relação a outros agentes externos que tentassem comerciar na África, pois possuíam conhecimento das estruturas políticas, sociais e comerciais locais. Se aproveitavam do costume cultural que George Brooks chamou de landlord and stranges reciprocities. Para mais ver: BROOKS. Eurafricans In Western Africa, 2003.

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É importante salientar que o comércio empreendido por estes agentes era multifacetado no sentido de produtos que circulavam em suas redes. André Almada escreveu, em 1594, sobre as mercadorias que eram vendidas por estrangeiros no rio Gâmbia: Das mercadorias que neste Rio [Gâmbia] valem, o principal é o vinho, porque morrem por ele; cavalos, roupa branca da índia, contaria da índia, de Veneza, margarideta grossa e delgada, fio vermelho, pano vermelho, vinta-quatreno, grão, búzio, papel, cravo, manilhas de cobre, bacias de barbear, caldeirões de cobre de um arrátel até dois, cobre velho, e entre todas a mais estimada é a cola.21

Em troca destas mercadorias, Almada cita que era possível obter escravos, ouro, marfim, couros, dentre outros produtos. Explicitada a variada dinâmica das mercadorias que corriam no rio Gâmbia, passamos à discussão específica sobre o comércio de marfim na região.

As fontes: o comércio de marfim no rio Gâmbia Dentro deste multifacetado comércio, o marfim é um produto recorrente nas fontes consultadas que tratam sobre o rio Gâmbia. Nos relatos de viagem de Almada, Broecke, Jobson e Donelha há fortes indícios sobre compra de marfim por parte dos estrangeiros. De acordo com a análise dessas fontes, os povos que vendiam o marfim nos portos gambianos eram os jalofos e os mandingas, como demonstrado no organograma abaixo.

21 ALMADA. Tratado Breve dos rios de Guiné do Cabo Verde, p. 276.

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Gráfico 1 – Organograma de produtos comprados e vendidos pelos fulas, mandingas e jalofos

Fonte: MALACCO. O Gâmbia no mundo atlântico: fulas, jalofos e mandingas no comércio global moderno. Nota: As setas que saem dos pontos que simbolizam os fulas, mandingas e jalofos são os produtos vendidos por eles; as que chegam até esses pontos, as mercadorias que foram compradas. As duas setas marcadas em azul são produtos que os mandingas tanto venderam quanto compraram.

Ao que indica André Almada, o volume de marfim vendido pelos mandingas e pelos jalofos era relevante, e isso se devia, sobretudo, ao grande número de elefantes que viviam às margens do rio Gâmbia: “há muito marfim, mais que em nenhum outro Rio de Guiné; porque acontece muitas vezes, indo as embarcações por ele, verem bandos de elefantes em terra, como de vacas, e encontram-[se] muitas vezes os navios com bandos deles, que passam o Rio de uma parte para a outra”.22 22 ALMADA. Tratado Breve dos rios de Guiné do Cabo Verde, p. 272.

58 Capítulo 2 - A caça de elefantes e o comércio de marfim no rio Gâmbia

Embora tenha pontuado que existia comércio de marfim em profusão no rio Gâmbia, o relato de Almada elucida que o produto estava sendo vendido para agentes não portugueses: E da Ilha do Cabo Verde iam todos os anos carregados de cavalos e de outras mercadorias a este resgate. Sucedeu neste Reino o Rei chamado Budumel, Bixirim, fazia maus pagamentos aos nossos, e recolhia nos seus portos os Franceses, e folgava com eles. E por essa causa deixaram os moradores da Ilha este resgate; E [também] Portugueses são os que dão despachos aos Ingleses e Franceses, adquirindo-lhes os despachos de rio em rio, e muitas léguas pelo sertão. E todos os anos tiram os ingleses e Franceses no rio de Gâmbia (...) muito marfim (...) E andam estes nossos Portugueses lançados muito mimosos destes inimigos. E o dia de eles receberem as pagas e entregarem as suas mercadorias, lhes dão os Ingleses em terra banquetes, com muita música de violas de arco e outros instrumentos músicos. E por esta causa estão estes resgates de toda esta costa do Cabo Verde até o Rio de Gâmbia perdidos.23

A citação é elucidativa quanto ao momento de ampliação das redes comerciais atlânticas da Guiné do Cabo Verde como um todo, e especificamente no rio Gâmbia. Embora os portugueses e os agentes cabo-verdianos que atuavam em seu favor tentassem assegurar o monopólio comercial com a região da Guiné Cabo Verde, o fato é que, a partir de 1580, cada vez mais agentes europeus de diferentes nações participavam ativamente do comércio atlântico na região. Essa busca por um monopólio foi o principal mecanismo oficial que os agentes cabo-verdianos exerceram durante os séculos XV e XVI. O panorama mudou com o advento da União Ibérica (15801640). Com o acontecimento, uma série de fatores contribuiu para o desmantelamento desse pretenso monopólio português com a região da Guiné. O principal fator é que o monopólio nunca existiu de fato. Os poderes africanos em momento algum cederam a pressões externas. Conforme escreve Antonio Correa Silva: “O espaço comercial africano, apesar de ostensivamente reivindicados pelos portugueses como área de 23 ALMADA. Tratado Breve dos rios de Guiné do Cabo Verde,.p. 251, grifo nosso.

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domínio político, não estava, no entanto, ligado à coroa portuguesa por nenhum laço real e efetivo de dependência política (...) Os poderes africanos conservavam-se radicalmente independentes.”.24 Além disso, os agentes afro-portugueses chamados lançados ou tangomaus, não aceitavam passivamente as imposições fiscais que Portugal lhes impunha. Ora, os lançados já tinham que pagar taxas para os mandatários africanos, e ceder a outro tipo de imposto levaria à diminuição da sua margem de lucro. Em um plano político-econômico estritamente europeu, a união das coroas ibéricas fez com que a dedicação à tentativa de obter o monopólio comercial da região da Guiné do Cabo Verde se arrefecesse ainda mais. Os intentos de manter a Guiné sob um monopólio português, regulado por Cabo Verde, não dava resultado. Várias outras nações europeias estavam fortalecendo sua presença comercial na região. Um dos principais fatores para isso foi que o período da União Ibérica levou Portugal ao confronto com nações rivais dos espanhóis. Inglaterra, Holanda e França, que já não respeitavam o pretenso “monopólio” lusitano antes do advento da União Ibérica, depois da união das duas coroas, não tomaram nenhum conhecimento do exclusivismo português sobre a região da Guiné e foram beneficiados pelos agentes africanos, que negociavam com qualquer estrangeiro que lhes oferecesse boas condições comerciais. Em relação ao rio Gâmbia, inclusive, há indícios de que os agentes internos ao continente, se necessário, reorientavam o comércio por terra para regiões costeiras para negociarem com outros parceiros comerciais, que não os portugueses. Sobre isso, escreveu outro agente cabo-verdiano, André Donelha: “Aqui em Cação (...) há grande trato de panos, algodão, cera, marfim, ouro, couros de diversos animais, mas todo o ouro, cera, marfim, couros levam à costa dos Jalofos aos Franceses, Ingleses e outras nações”.25 Estas informações se confirmam no relato de Pieter Van den Broecke, que informa acerca da possibilidade de comprar marfim em Porto

24 SILVA, Antonio. Cabo Verde e a Geopolítica do Atlântico. In: SANTOS, Maria Emília Madeira (coord.) História Geral de Cabo Verde. Volume II. Lisboa (Portugal): Instituto de Investigação Científica Tropical; Praia (Cabo Verde): Instituto Nacional de Cultura,1995, p. 11. 25 DONELHA. Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde, p. 154.

60 Capítulo 2 - A caça de elefantes e o comércio de marfim no rio Gâmbia

D’Ale e Joala (costa dos Jalofos) oriundo do rio Gâmbia.26 Broecke é elucidativo sobre qual produto era trocado por marfim e outros produtos. Ao final de seu relato, ele fez a Tabela 1 com as convergência da quantidade de barras de ferro necessárias para pagar os produtos que ele comprou27: Tabela 1 – Price of the goods which I bought at Portodaele [=Portudal] Âmbar, os melhores Os ruins Dentes de elefante, dois em um quintal Pequenos a médios dentes de elefante Cera Arroz Couros vendidos pelos portugueses Couros vendidos pelos locais

14, 15, ou 16 barras de ferro por onça 10, 11 [barras] 15, 16 barras por quintal Nenhum preço dado 10, 11 barras por quintal 2, 3 barras por quintal 1, 1 ¼ por barra 2, 1 ¼ , [mas] as vezes, quando haviam poucos barcos, que raramente acontecem, eles davam 3, 4 ou 5 por barra de ferro.

Fonte: LA FLEUR. James. Pieter Van Den Broeckes: Journal of Voyages to Cape Verde, p. 41-42.

Ao colocar o ferro como produto base para a troca comercial entre europeus e africanos na Senegâmbia, Van Den Broecke elucidou que esse produto era o mais procurado pelos povos do local. Isso se deve, sobretudo, a busca por parte dos povos costeiros africanos por matéria prima para confecção de armas para fazer frente aos poderes interioranos. Outro indício da importância do ferro para as trocas comerciais euro-gambianas é o fato do ferro ter sido o principal produto que Richard Jobson levou da Inglaterra para fazer trocas comerciais no Gâmbia.28 Jobson, Almada, Broecke e Donelha atribuem o ferro como mercadoria mais procurada para ser cambiada pelo marfim. Embora o ferro fosse um produto já existente na lógica comercial interna ao oeste africano, as minas deste metal eram localizadas no interior do continente, o que dificultava o acesso por parte dos povos costeiros. Extremamente 26 LA FLEUR. Pieter Van Den Broeckes, p. 40. 27 LA FLEUR. Pieter Van Den Broeckes, p. 41. Vale notar aqui a complementaridade ao relato

de Broecke e a base de dados ao passo que o flamengo não mapeou escravizados em sua tabela. Disponível em: . Acesso em 19 jun. 2017. 28 GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra, p. 29.

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importante para a confecção de armas, a oferta deste produto por vias atlânticas em muito auxiliou as nações que viviam próximas ao oceano na construção de forças militares que pudessem fazer frente aos interioranos. Além da troca de mercadorias locais por ferro, Jobson conseguiu comprar marfim trocando por outro produto, o sal, com um bixirin, agente religioso e comercial mandinga, chamado Buckor Sano29: Durante todo dia ele [Buckor Sano] ficou doente após ter bebido, tanto que ele me disse que ele não poderia fazer negócios naquele dia, somente me mostrando certas jovens mulheres negras, que tinham cordas brancas cruzando seus corpos, que ele me falou que eram escravas que tinha trago para eu comprar, ao que eu respondi que nós somos um povo que não fazem acordo com este tipo de mercadoria, e que nem comprávamos ou vendíamos qualquer que tivessem nosso próprio corpo; ele pareceu maravilhado com isso e nos disse que era a única mercadoria que levavam para baixo no país, que trocavam todas por sal, e que elas eram vendidas a homens brancos que anteriormente a desejavam, especialmente estas jovens mulheres como ele havia trazido para a gente: nós respondemos que eram um tipo de povo diferente do nosso, mas de nossa parte se não tivessem outras mercadorias, voltaríamos novamente: ele respondeu que eles tinham peles, marfim, algodão e roupas locais: dissemos a ele que suas peles não poderíamos comprar, já que nosso barco era pequeno e nós não poderíamos carrega-las convenientemente, mas se eles a levassem mais abaixo no rio, onde nosso grande navio poderia vir, nós poderíamos comprar todas elas, assim como o marfim, o algodão e as roupas.30 29 Provavelmente “Saho”, famosa família de mercadores no Gâmbia, existente ainda hoje. 30 GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra (1623), p. 140. Tradução nossa: All that

day hee found himselfe so sicke, after his drinking, that hee told me hee could tend no businesse, onely hee shewed unto mee, certaine young blacke women, who were standing by themselves, and had white strings crosse their bodies, which hee told me were slaves, brought for me to buy, I made answer, We were a people, who did not deale in any such commodities, neither did wee buy or sell one another, or any that had our owne shapes; he seemed to marvell much at it, and told us, it was the only marchandize, they carried downe into the countrey, where they fetcht all their salt, and that they were solde there to white men, who earnestly desired them, especially such young women, as hee had brought for us: we answered, They were another kinde of people different from us, but for our part, if they had no other commodities, we would returne againe: he made reply, that they had hides and Elephants teeth, cotton yarne, and clothes of the country:

62 Capítulo 2 - A caça de elefantes e o comércio de marfim no rio Gâmbia

Percebe-se que Jobson recusou-se a comprar as escravizadas que lhe foram oferecidas, preferindo outros produtos, dentre eles o marfim.31 Além disso, Jobson afirma que além do ferro as mercadorias eram trocadas pelo sal. De fato, nos portos mais distantes da foz do rio e, consequentemente, mais distantes dos locais de extração de sal marinho, o produto tinha grande demanda por parte dos fulas, mandingas e jalofos. Gamble e Hair ratificam essa alta valorização do sal, “a principal mercadoria importada parece ter sido o ferro, mas esta experimentou pouco interesse no alto curso do rio. Em seu lugar, o sal era a mercadoria mais demandada”.32 A forma que os europeus conseguiam obter marfim no rio Gâmbia não era apenas através do escambo. Em outro momento Jobson relata que recebeu marfins como cortesia de um líder local: “Enquanto eu estava jantando [Em Sutuko], um mensageiro dele [do bixirin que Jobson diz ser o chefe da cidade] veio até a mim, trazendo palavras de desculpas por não ter podido se juntar a nós, e trouxe uma grande pele e marfim, como um presente gratuito pelos presentes que trouxe a ele.”.33 A partir dessa passagem do relato de Jobson, conclui-se que, além de um produto sumamente importante para ambas as partes, exportado dos portos do rio Gâmbia, o marfim também fazia parte das trocas diplomáticas que precediam o comércio. Os mapas abaixo, por nós confeccionados com base nas fontes que compõem esta pesquisa, demonstram em escala reduzida os principais portos em que ocorria comércio atlântico no rio Gâmbia, especificando os principais produtos vendidos pelos habitantes do local:

he was answered, for their hides, we would not buy, in regard our boate was little, and wee could not conveniently carry them, but if they would bring them lower downe the River, where our bigger vessels could come, we would buy them all, but for their teeth, cotton, and clothes. 31 O comportamento de Jobson em relação ao tráfico de pessoas não era uma exceção. Gamble e Hair afirmam que, embora em viagens anteriores de ingleses à região da Guiné houvesse indícios de comércio de escravizados, “Jobson não comprou escravos, as viagens inglesas para rio Gâmbia também não, e as muitas viagens para a Guiné entre 1580 e 1630, quase sem exceção, também não”. GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra (1623), p. 31. 32 GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra (1623), p. 29. Tradução nossa: The main commodity imported seems to have been iron, but this proved of little interest up-river. Instead, salt was the commodity mainly in demand. 33 GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra (1623), p. 125. Tradução nossa: I was at dinner, a messenger came from him, bringing word he was very sorry to heare I fed not, and likewise by him sent unto me a large hide, and an Elephants tooth of a good bignesse, as a gratuity for the present I had brought him

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Figura 1 – Portos do rio Gâmbia. In: MALACCO. O Gâmbia no mundo atlântico - fulas, jalofos e mandingas no comércio global moderno (1580-1630).

Figura 2 – Portos do rio Gâmbia. In: MALACCO, Felipe. O Gâmbia no mundo atlântico - fulas, jalofos e mandingas no comércio global moderno (1580-1630).

64 Capítulo 2 - A caça de elefantes e o comércio de marfim no rio Gâmbia

Figura 3 – Portos do rio Gâmbia. In: MALACCO. O Gâmbia no mundo atlântico - fulas, jalofos e mandingas no comércio global moderno (1580-1630).

Figura 4 – Portos do rio Gâmbia. In: MALACCO. O Gâmbia no mundo atlântico - fulas, jalofos e mandingas no comércio global moderno (1580-1630).

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Figura 5 – Portos do rio Gâmbia. In: MALACCO. O Gâmbia no mundo atlântico - fulas, jalofos e mandingas no comércio global moderno (1580-1630).

Conforme se percebe através dos mapas, os estrangeiros compravam marfim sobretudo nos portos de Julufré, Ilhas dos Elefantes, Degumasamam, Nhamenhancunda e Sumacunda. As duas primeiras são localidades atribuídas pelas fontes à organização política mandinga de Barra, e as três últimas, ao Farim Gabo, grafia que diz respeito ao governante da organização política mandinga do Kaabu, sendo, portanto, agentes que pertenciam a esse povo os principais vendedores de marfim no Gâmbia. Outro fator elucidativo para compreendermos a importância que o marfim tinha para os europeus que o procuravam ao longo do rio Gâmbia é o fato de irem até Nhamenhacunda e Sumacunda para comprar a mercadoria. À medida que o curso do rio se afasta da foz, ele fica mais estreito, cheio de curvas, e o fundo cheio de pedras, o que tornava a navegação cada vez mais difícil. O fato dos europeus irem tão longe em busca do marfim, com todas as dificuldades de navegação que o rio proporciona, demonstra que a compra do produto era algo altamente compensador.

66 Capítulo 2 - A caça de elefantes e o comércio de marfim no rio Gâmbia

A caça de elefantes Marfim é o nome dado à matéria que forma as presas dos elefantes. O termo também é usado para as defesas de outros animais, como o hipopótamo e o narval. Porém, de acordo com relatos seiscentistas acerca do rio Gâmbia, a principal matéria prima de onde vinha o marfim exportado dessa região era as presas de elefantes. Todos os relatos de viagem analisados falam de uma profusa população de elefantes nas margens do rio Gâmbia. A título de exemplo, Richard Jobson, ao descrever os animais que encontrou em sua estadia no Gâmbia, dá especial destaque aos elefantes: “O primeiro dos animais a se falar é o Elefante (...) Eles não tem nenhum destes animais domados ou sob comando: como em outros locais do mundo”.34 Jobson informa também que os elefantes traziam problemas para as nações locais ao invadir as plantações: “grandes são os espólios que eles fazem, nas plantações de milheto e especialmente nas plantações de algodão, indo em pequenos bandos, embora sua alimentação natural seja o junco”.35 A presença dos animais nestas duas plantações pode, de fato, ser considerada algo muito problemático, tendo em vista que o milheto era a principal base alimentar dos povos que viviam às margens do rio Gâmbia e, as roupas de algodão, um dos principais produtos da lógica comercial interna à região. Richard Jobson, observando o modo de vida destes animais, também escreveu explicações para os diferentes tamanhos e níveis de qualidade do marfim vendido no local. Sem levar em consideração outros possíveis fatores para os diferentes tamanhos de presa, como a idade dos animais, o viajante inglês afirma que os elefantes tinham o costume de bater com a cabeça em árvores, de modo a derrubá-las e, assim, obter alimento. Nesse processo, muitos deles quebravam ou lascavam os dentes, o que, de acordo com Jobson, explicaria o fato de muitos dos 34 GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra (1623), p. 174. Tradução nossa: The first whereof is the Elephant (...) they have not any of them tame, or under command: as in other places of the world they have. 35 GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra (1623), p. 174. Tradução nossa: much, and great is the spoiles they doe them, both among their corne, and especially in their Cotton grounds, going in small companies together (...) [although] their naturall feeding is amongest this sedge.

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marfins que ele comprou serem quebrados ou de tamanhos notadamente diferentes.36 Além dessas informações sobre os elefantes, a caça a estes animais, principalmente pelos mandingas, é um tema tratado com profundidade pelos europeus que produziram relatos de viagem. Dois dos viajantes citados aqui, Almada e Jobson, presenciaram e ouviram falar sobre as caçadas e anotaram as informações. Segundo Almada, “Em toda a Costa e Rio de Gâmbia os matam pelejando com eles às azagaiadas, deles à pé, deles à cavalo, como pode (...); achando-me no Rio de Gâmbia em um porto, em obra de um mês matou o Rei daquele lugar mais de doze elefantes”.37 Já Richard Jobson descreve a caçada à seguinte maneira: Eu desejei saber como eles matavam os elefantes; e eles me mostraram um dos negros e disseram, não há nenhum que o faça, além dele sozinho; e pegando uma lança, que estava na casa, ele a arremessou a dez pés de distância. O aço da ponta era enrolado com roupa, que eles abriram e me mostraram, e era todo coberto de veneno. Ele disse que sua maneira era, quando ele via o elefante comendo junco, ele ficava próximo, arrastando, se escondendo atrás deles, ficava próximo o bastante, e acertava sua lança no corpo da fera, e deixando ali, acertava outras lanças enquanto o elefante foge. O sangue quente dissolvia o veneno da lança, e começava a se espalhar, para a cruel tortura da besta, e a extremidade da lança acaba os matando. Enquanto isso, as pessoas ficavam em cima de arvores e outros lugares de vantagem, o observando, e assim que o elefante caia, vinham a ele, cortando muito da carne que estava inflamada com a poção, que eles jogavam fora, reservando o resto para se alimentarem. E dessa forma eles mataram muitos para mim (...)38 36 GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra (1623), p. 174. 37 ALMADA. Tratado Breve dos rios de Guiné do Cabo Verde, p. 305. 38 GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra (1623), p. 174. Tradução nossa: I desired

to know how he killed them; And he shewed me one of his blacke people, and sayd, That was none but hee alone durst doe it; and taking downe a Iavelin, which hung in the house, the staffe some ten foote long; the Iron or head whereof was bound up in a cloth, which he opened and shewed me, and it was laid with poyson all over; he sayd, his manner was, when hee saw the Elephants feeding in the high sedge, he would steale in amongst them, & by creeping, still keeping himselfe behinde them, he would recover so neare, as to strike his Iavelin into the body

68 Capítulo 2 - A caça de elefantes e o comércio de marfim no rio Gâmbia

A recorrência desse tipo de informação demonstra que havia um certo fascínio por parte dos europeus sobre as formas que os mandingas e jalofos utilizavam para caçar os grandes animais; e também revelam que os europeus tinham preocupação porque as armas poderiam ser usadas pelos nativos contra eles.39 O longo excerto do relato de Richard Jobson mostra principalmente que a caça dos elefantes era feita por um mandinga altamente especializado no ataque com lança envenenada à média-distância. Afinal, de acordo com o viajante inglês: “(...) eles me mostraram um dos negros e disseram, não há nenhum que o faça, além dele sozinho”. O inglês notou que essa especialização era realmente necessária porque ele tentou abater um elefante, atirando com arma de fogo40 por três vezes, mas o animal era muito rápido e conseguiu fugir. Posteriormente, mandingas que habitavam o local localizaram o elefante e levaram o marfim ao viajante.41 Isso mostra que para caçar o elefante não bastava ter apenas um bom armamento. Para garantir o sucesso da empreitada era importante ter especialização sobre como caçar estes animais, como tinham os mandingas. Nessa última citação do relato de Jobson, há outros dois indícios importantes sobre a caçada aos elefantes. Em primeiro lugar, a caça servia como cerimônia de demonstração de habilidade do caçador, que era observado pelos outros do alto das árvores. Em segundo lugar, a caça servia of the beast, and leaving it there, take to his heeles, and through the long reeds scape away: and the warme bloud dissolving the poyson uppon the Iavelin, it presently spreads it selfe, to the cruell torture of the beast, the extremitie whereof killes him; the people in the meane time, upon trees, and places of advantage, being set round about to watch him, and so soone as he is downe, come to him, presently cutting away so much of the flesh as is inflamed with the poyson, which they throw away, reserving the rest for their owne sustenance: and in this manner he hath killed mee so many. 39 Os registros sobre os armamentos que os agentes mandingas utilizavam para caça de elefante poderiam, também, ser útil em outros momentos. A título de exemplo, o relato de André Almada, o mais rico em relação à descrição dos armamentos usados pelos povos do continente africano, tinha como intenção argumentar junto ao rei que a colonização era lucrativamente viável, além de que, estando em terras continentais, seria mais fácil a manutenção de um monopólio comercial com os africanos. Dessa forma, inferimos que a descrição das armas seria uma forma de mapear uma possível resistência dos africanos perante um projeto colonial. 40 No momento da presença de Richard Jobson no rio Gâmbia, a utilização europeia das armas de fogo já não era algo novo para os habitantes das margens do rio. Desde o primeiro contato euro-gambiano, documentado por Alvise de Cadamosto em 1455, há escritos que indicam que tiros de bombarda foram disparados contra almadias mandingas. 41 GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra (1623), p. 174.

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de alimento para a população que assistia e esperava para ter seu pedaço de carne. Contudo, a carne de elefante não parece que era um tipo de carne comum, porque foi oferecida para Jobson como carne nobre: Dentro de quatro milhas além de onde construímos nossa habitação, ficava uma espaçosa plantação do chefe que chamávamos de Ferambra [mandatário local], que sempre foi um amigo dos nossos; como nos estávamos e nosso abrigo, no dia de natal, no jantar, ocasião em que comíamos uma grande variedade de carnes. Para nosso assombro, na hora do jantar, vieram até nós quatro negros, dentre os quais dois carregavam grandes cabaças em suas cabeças, tão cheias quanto era possível, uma com vinho de palma, e outra com carne, que era um presente enviado a mim pelo Ferambra, que mandou avisar que ele tinha matado um elefante e me mandou uma parte de sua carne; nossos delicados estômagos não podia com aquela carne grosseira, e embora a tenhamos recebido cortesmente, e enviamos aos nossos vizinhos negros, que a comeram com prazer. No dia seguinte eu fui à casa do Ferambra, e a regra do lugar era nos receber bem, com sua melhor alimentação, dentre qual tínhamos carne de elefante, onde tanto eu quanto meus consortes comemos, e achamos uma carne boa e saborosa.42

O viajante ganhou um cabaça de carne juntamente com o vinho de palma. Desse modo, nota-se que a oferta da carne de elefante também era práxis nos encontros euro-mandinga no rio Gâmbia. Ou seja, a carne, assim como as presas do elefante de marfim, eram ofertadas como parte da diplomacia entre europeu e povos do Gâmbia. Não 42 GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra (1623), p. 174. Tradução nossa: Within foure miles where our habitation was, there stood a good spatious plantation, the Commander whereof we called Ferambra, who was alwayes a friend of ours; as we were in our dwelling, upon our Christmasse day, at dinner; where (God be praised) wee had varieties of meate: to mend our fare, iust in the dinner time, there came foure blacke people unto us, whereof two were laden, and had great gourds uppon their heads, as much as they could stand under, the one full of Palmeta wine, the other of raw flesh, which were Presents sent me from this Ferambra, who sent me word, hee had killed an Elephant, and had sent me some part thereof; our daintie stomacks looked asquash at such grosse flesh, yet I received it kindly, and gave it away to our blacke neighbours, who eat it very merrily. The next day I went to Ferambra’s house, & the fashion of the Country is to entertain us, with their best provision of diet, amongst which we had Elephants flesh, whereupon both my selfe, and consorts that were with me, fed very heartily, and found it good and savoury meate.

70 Capítulo 2 - A caça de elefantes e o comércio de marfim no rio Gâmbia

foi por mera cortesia que o chefe de Sutuko ofereceu ao inglês grandes trompas de marfim. A diplomacia abria as portas para o comércio com os estrangeiros. Por fim, é importante ressaltar que o marfim é produto de destaque nas exportações a partir do rio Gâmbia para as redes comerciais atlânticas para os compradores europeus. Prova disso é a detalhada descrição que fazem sobre a obtenção das presas de marfim: escreviam sobre a caça aos elefantes, os principais portos onde as presas poderiam ser obtidas e até mesmo o valor a ser pago pelo produto. Foram também os viajantes que descreveram os principais locais de compra – Julufré, Ilhas dos elefantes, Degumasamam, Nhamenhancunda e Sumacunda, localidades cuja estrutura de mando eram mandingas. Logo, não é coincidência que as informações escritas por Richard Jobson43 e André Almada44 sobre as caças aos elefantes dizem respeito a caçadores mandingas, sendo estes, portanto, os principais vendedores de marfim do Gâmbia.

A historiografia: o comércio de marfim no Gâmbia e na “Guiné do Cabo Verde” 45

Segundo José Horta e Luis Afonso, marfim de elefante é “uma das raras matérias de origem orgânica que foi suficientemente forte para rivalizar com matérias mais preciosas, de origem inteiramente mineral, como as gemas e os metais nobres”.46 A própria ambição dos europeus em adquirir a mercadoria “muitas vezes levou à necessidade de que os 43 GAMBLE; HAIR. The Discovery of River Gambra (1623), p. 174. 44 ALMADA. Tratado Breve dos rios de Guiné do Cabo Verde, p. 305. 45 Guiné do Cabo Verde, segundo José da Silva Horta, corresponde a um espaço de presença

portuguesa e luso-africana que desenvolveu estreitos laços com o arquipélago cabo-verdiano, desde que a colonização deste se iniciou: laços políticos, pela alçada que sobre a costa tinham os representantes da Coroa nas ilhas; religiosos, pela área direta de influência do poder episcopal e, sobretudo, laços econômicos, pela área de comércio adstrita ao arquipélago e à sua “cabeça”, Santiago, indissociáveis estes, dos laços familiares e pessoais que, em rede, os sustentavam, fazendo a ponte entre as ilhas e a costa. Para mais, ver: HORTA, José Silva. O Nosso Guiné: Representações Luso-Africanas do Espaço Guineense (sec. XVI- XVII). In: Actas do Congresso Internacional “Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades.” Lisboa, 2005. 46 HORTA, José Silva; AFONSO, Luis. Olifantes Afro-Portugueses com Cenas de Caça (c. 1490 – c. 1540). Artis, 2013, n. 1, p. 28.

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navegantes levassem para a troca bens mais elaborados que panos, miçangas, bacias de barbeiro ou manilhas de cobre e latão”47, sobretudo em locais cujas organizações políticas eram mais fortes e conseguiam, por isso, ser mais exigentes nas transações comerciais. Era certamente o caso das mansayas mandingas e do Siin e do Saalum sereres/jalofos que estavam situados nas margens do rio Gâmbia. Peter Mark levanta a hipótese de que o marfim exportado em toda Guiné do Cabo Verde, no começo do século XVII, aumentou em razoáveis proporções. Afirma, ainda, de acordo com o historiador Toby Green, que em conjunto com as peles, o marfim ultrapassou os escravizados em importância entre as exportações a partir da região da Senegâmbia.48 Essa argumentação nos parece razoável, uma vez que, dos quatro relatos de viagem utilizados como fonte, o marfim e os couros aparecem como os mais importantes produtos de exportação do rio Gâmbia. Conforme detalhou Pieter Van den Broecke, entre 1580 e 1630, o marfim superou vários outros produtos em termos de valor agregado e volume de exportações a partir da região. De acordo com o comerciante flamengo, um quintal (cerca de 36 kg) de marfim podia ser trocado por quinze ou dezesseis barras de ferro, superando em valor o âmbar cinzento (entre quatorze e dezesseis barras), a cera (entre dez a onze barras), o arroz (entre duas e três barras) e as peles (entre duas barras e uma e meia). Ou seja, o marfim tem o maior valor agregado, pois um quintal equivalia a 15 barras de ferro. E o couro é o produto de maior volume em exportação. Os escravizados aparecem apenas nos relatos dos dois cabo-verdianos. Outro fator importante em relação ao debate historiográfico que se dedica ao estudo sobre o comércio do marfim na África Ocidental é em relação aos objetos de arte esculpidos em marfim feitos pelos africanos. Se destacam, sobretudo, os olifantes e os saleiros, ricamente entalhados e adornados. Peter Mark49, José da Silva Horta e Luis Afonso50 relacionam a produção destas obras de arte aos povos sapes, terminologia usada pelos portugueses para descrever grupos etnolin47 HORTA; AFONSO. Olifantes Afro-Portugueses com Cenas de Caça (c. 1490 – c. 1540), p. 26. 48 MARK, Peter. Towards a Reassessment of the Dating and the Geographical Origins of the luso-

african Ivories, Fifteenth to Seventeenth Centuries. History in Africa, 2007, n. 34, p. 205. 49 MARK, Peter. “Bini, Vidi, Vici” – On the Misuse of “Style” in the Analysis of Sixteenth Century Luso-African Ivories. African Studeies Association, 2015, p. 323-334. 50 HORTA; AFONSO. Olifantes Afro-Portugueses com Cenas de Caça (c. 1490 – c. 1540), p. 24.

72 Capítulo 2 - A caça de elefantes e o comércio de marfim no rio Gâmbia

guísticos que habitavam a costa da Alta Guiné, do norte da Serra Leoa até o sudeste da Guiné-Bissau. Os sapes compreendiam vários grupos como os bolões, temne, nalus, landumans e bagas e que, ao final do século XVI se misturaram culturalmente aos manes, de origem mandinga. Esses artesãos, com base em incunábulos europeus, além de panos com emblemas oficiais ou elementos ligados ao cristianismo, “estavam preparados para ajustar a oferta, em termos de tipologias, tema e linguagem visual das peças, aos interesses e necessidades específicas criadas pela procura europeia”.51 Os autores associam a presença dos lançados ou tangomaus como elemento de intermediação entre os artesãos sapes. Segundo Horta e Afonso, “seria através desses intermediários que os modelos iconográficos tardo-medievais com cenas cinegéticas e figuras fantásticas passariam às mãos dos artífices locais”.52 Também é importante nossa análise o que argumentou Peter Mark, ao dizer que os objetos de marfim eram altamente portáteis, e que viajavam ao longo da África Ocidental. O autor afirma que através dos séculos XVI e XVII, os lançados faziam intenso comércio costeiro, ligando diferentes comunidades africanas, ao ponto que os marfins africanos viajaram ao norte, até o rio Gâmbia.53 Porém, na análise que fizemos das fontes, não há indícios da venda de objetos para exportação feitos de marfim pelos povos que viviam às margens do rio Gâmbia, entre 1580 e 1630. O que está documentado para o rio Gâmbia é o comercio de presas de marfim in natura, de variados tamanhos. Assim, inferimos que o marfim oriundo do rio Gâmbia, comprado pelos comerciantes europeus, era levado diretamente para a Europa em razão da alta procura de artesãos europeus por este material. Especialmente, o marfim comprado por Jobson e Van den Broecke, que efetivamente retornaram para a Europa com seus navios abastecidos de marfim e outras ricas mercadorias. Por fim, é importante salientar que, como nas outras trocas realizadas entre europeus e fulas, mandingas e jalofos no rio Gâmbia entre 1580 e 1630, o comércio de marfim foi agenciados pelos povos gam-

51 HORTA; AFONSO. Olifantes Afro-Portugueses com Cenas de Caça (c. 1490 – c. 1540), p.

26-27. 52 HORTA; AFONSO. Olifantes Afro-Portugueses com Cenas de Caça (c. 1490 – c. 1540), p. 29. 53 MARK. Bini, Vidi, Vici, p. 333.

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bianos.54 No caso específico do marfim, havia de um lado uma grande demanda europeia pelo marfim, e de outro, caçadores especializados na caça aos elefantes, o que deu aos agentes gambianos, maior possibilidade de barganha no comércio de marfim.55

54 Para discussão mais aprofundada sobre o protagonismo comercial dos fulas, mandingas e jalofos nas redes comerciais atlânticas que se interligavam ao rio Gâmbia, ver: MALACCO, Felipe. O Gâmbia no mundo atlântico - fulas, jalofos e mandingas no comércio global moderno (15801630). Belo Horizonte: UFMG, 2016 (História, Dissertação de mestrado). 55 HORTA; AFONSO. Olifantes Afro-Portugueses com Cenas de Caça (c. 1490 – c. 1540), p. 28.

74 Capítulo 2 - A caça de elefantes e o comércio de marfim no rio Gâmbia

Capítulo 3 Oceano Etiópico, elefantes e marfim em iconografias neerlandesas Sílvio Marcus de Souza Correa Da copiosa iconografia neerlandesa do século XVII, algumas imagens servem de fonte visual ao presente ensaio que propõe uma perspectiva global à formação do então Oceanus Æthiopicus e, por conseguinte, da Modernidade em seus primórdios. Desse modo, destaca-se o quanto o comércio do marfim africano favoreceu transformações estruturais em diversas sociedades, integrando-as numa “economia-mundo”. Outrossim, as permutas euro-africanas fizeram do marfim uma mercadoria ancilar ao comércio transatlântico de escravos no século XVII. A partir de pinturas, desenhos, gravuras e ilustrações da cartografia neerlandesa evidenciam-se alguns modos de participação africana na história moderna.

Oceanus Æthiopicus nos mapas neerlandeses Desde o primeiro quartel do século XVI, aparece nos planisférios portugueses o Mare Æthiopicum, cuja importância está diretamente relacionada com o périplo africano. No final dos Quinhentos, o termo Oceanus Æthiopicus é mais recorrente nos mapas.1 Para ficar em dois exemplos flamengos, o Theatrum Orbis Terrarum (1570), de Abraham Ortelius, e o Atlas (1595), de Gerhard Mercator (1595). O termo em latim Oceanus Æthiopicus designa aproximadamente o espaço marítimo que viria a ser o Atlântico Sul, entre a linha do Equador e o trópico de Capricórnio.2 O nome tem a ver com o vasto território da Alta e da 1 LOIS, Carla; GARCIA, João Carlos. Do oceano dos clássicos aos mares dos impérios: transformações

cartográficas do Atlântico sul. Anais do Museu Paulista. São Paulo, 2009, vol. 17, n. 2, p. 24.

2 Na cartografia quinhentista havia ainda outros termos como Oceanus Occidentales e Mare

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Baixa Etiópia, termos para a África subsaariana, respectivamente superior e inferior. O topônimo esteve em voga nos mapas neerlandeses e aparece na cartografia de Johann Janssonius, Johannes Blaeu, Claes JanszoonVisscher, Frederik de Wit e Pieter van der Aa. Os mapas seiscentistas publicados em Amsterdam e que trazem o termo Oceanus Æthiopicus, como, por exemplo, Guineae Nova Descriptio e Africae Nova Tabula, de J. Hondius, e Africae Nova Descriptio e Guinea, de J. Blaeu, denotam a importância da costa ocidental da África para a formação de um espaço comercial sem precedentes na história moderna. Da Gâmbia ao Congo, o marfim foi uma das principais mercadorias do comércio no Oceano Etiópico. Nos mapas neerlandeses do século XVII, tem-se o topônimo Tandkust que significa literalmente “costa do dente” [de elefante]. Olfert Dapper informa em sua Naukeurige Beschrijvinge der Afrika gewesten (1668) que Tandkust era o nome dado pelos neerlandeses àquela região por causa da quantidade de marfim. Além do topônimo, ilustrações de elefantes nos mapas indicam de onde provém o marfim.

Elefantes e marfim na cartografia neerlandesa No mapa Orbis Universalis (1512), do veneziano Marini, há duas imagens de animais: a de um camelo e a de um elefante, ambos situados na Ásia onde a utilidade desses animais era notória. O camelo servia para as caravanas e o elefante como animal de tração e também como “carro de guerra”. Num mapa datado de 1513, de autoria do otomano Piri Reis, um elefante africano é representado na altura da Gâmbia.3 Trata-se de uma das primeiras informações visuais do marfim africano em mapas quinhentistas. No mapa da África (1554) do alemão Sebastian Münster, um elefante aparece na parte meridional do continente. O cartógrafo alemão deveria estar informado sobre Atlanticum. A denominação Oceanus Atlanticus aparece também num hemisfério do último quartel do século XVI. 3 Fac-símiles de ambos os mapas se encontram na Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro.

76 Capítulo 3 - Oceano Etiópico, elefantes e marfim

a ingerência dos portugueses no comércio de presas de elefantes na contra-costa. Desde cedo, os macuas forneceram presas de elefantes aos portugueses que, mais pelo ouro do que pelo marfim, buscaram estabelecer suas feitorias e enclaves.4 Mais do que o exotismo da fauna, os mapas assinalam a utilidade de copiosa animália à economia mercantil em expansão desde o século XV. Na cartografia neerlandesa do século XVII ainda é recorrente as ilustrações de animais. Dentre outros, destaca-se a representação do elefante africano. Imagens de elefantes em cenas históricas ou mitológicas ou em simples alegorias aparecem em profusão na iconografia neerlandesa dos tempos modernos. Gravuras como a “batalha de Zamp”, de Cornelis Cort (1533-1578), ou “a cena de caça ao elefante”, de Jan van der Straet (15231605), desenhos como “elefante”, de Rembrandt H. van Rijn (1606-1669), e pinturas como “a punição de um caçador”, de Paulus Potter (16251654), ou a “sátira ao processo de Johan van Oldenbarnevelt”, de Cornelis Saftleven (1607-1681) são alguns exemplos.5 Mas a representação iconográfica do elefante não se limitou ao animal de batalhas e pugnas ou do animal gigante já admirado pelos antigos como Plínio. Tem-se o paquiderme, igualmente, por uma sinédoque de suas presas. No caso africano, elefante e marfim formam um binômio indissociável nas ilustrações da literatura viática e de livros de história natural. Devido ao marfim, a imagem do elefante africano se torna recorrente nos mapas feitos em Amsterdam. Muitos deles eram produzidos para fins comerciais e para embasar novas descobertas, novas rotas ou novas estratégias à geopolítica das companhias de comércio. Assim como os relatos de viagem e as descrições de terras longínquas, os mapas neerlandeses enfatizam os atrativos comerciais de cada região por meio de ilustrações de suas riquezas naturais. A produção cartografia atende um público burguês, potencialmente acionário das companhias de comércio. 4 COSTA E SILVA, Alberto. A Manilha e o Libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700.

Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2002, p. 639.

5 Justifica-se a utilização de aspas para os títulos de estampas, desenhos e pinturas pelo fato

de que muitos títulos de obras referidas no presente capítulo não foram dados pelos artistas. Empregou-se aspas para todos os títulos de iconografia quando as traduções do holandês apresentavam sentidos distintos em inglês, italiano, francês, alemão, espanhol e/ou português.

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Politicamente, o regime republicano dos Estados Gerais das Províncias Unidas favorece uma tolerância religiosa e uma forma de civismo sem equivalente nos países monárquicos da Europa, o que faz com que o mercado editorial neerlandês tenha um público particular. Cidades como Delft, Haarlem, Leiden e Amsterdam concentram um número significativo de cidadãos alfabetizados, muitos deles aprenderam a ler nas escolas dominicais das igrejas calvinistas. A comunidade judaica dos Países Baixos também faz parte do público alvo do mercado das artes e das letras. Os habitantes da nova potência marítima passam a se interessar mais pelas terras distantes. O editor Cornelis Claesz publica, por exemplo, os relatos de Hans Staden e Jean de Léry, em holandês, respectivamente em 1595 e 1597. O mesmo editor foi responsável pela publicação de Itinerario (1596), de Jan Huygen van Linschoten, e Beschryvinge ende historische verhael vant Gout Koninckrijck van Gunea (1602), de Pieter de Marees.6 Em Amsterdam, o livreiro Isaac Commelin publicou, em 1644, uma coletânea de vinte e um relatos de viagens às Índias.7 Na mesma cidade, o livreiro Jacob van Meurs publicou, em 1665, o livro de Johan Nieuhof sobre a embaixada da Vereenigde Oost-Indische Compagnie (VOC) na China. Para Adam Jones, o sucesso editorial desse livro motivou o livreiro, juntamente com Olfert Dapper, a fazer os livros in-folio e ilustrados sobre a África (1668) e a Ásia (1670-1671).8 Como no caso de Jacob van Meurs, não raro os livreiros eram também gravuristas e editores. Na primeira metade do século XVII, duzentos e quarenta e quatro livreiros estavam inscritos na guilda de Amsterdam. Esse número dobra na segunda metade do Seiscentos.9 Como as Províncias Unidas dependiam cada vez mais de um comércio ultramarino, parece por demais plausível que o seu mercado editorial favorecesse o desenvolvimento da literatura de viagem e da cartografia de outras terras e outros mares. 6 SUTTON, Elizabeth A. Early Modern Dutch Prints of Africa. Surrey: Ashgate, 2012, p. 33-

35, 43. 7 ZUMTHOR, Paul. A Holanda no tempo de Rembrandt. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 264. 8 JONES, Adam. Olfert Dapper et sa description de l’Afrique, in: Objets Interdits, Paris: Fondation Dapper, 1989, p. 78. 9 ZUMTHOR. A Holanda no tempo de Rembrandt, p. 265.

78 Capítulo 3 - Oceano Etiópico, elefantes e marfim

Os mapas, terrestres ou marítimos, atlas e plantas de cidades eram impressos com alta qualidade técnica e por vezes de grande valor artístico, como o Atlas do flamengo Gerhard Kremer, vulgo Mercator.10 No século XVII, pinturas, gravuras, mapas e livros eram acessíveis ao consumo de uma população neerlandesa ávida por bens simbólicos. Assim como as pinturas, os mapas também eram objetos decorativos. Ao menos é o que se evidencia em algumas telas de Jacob Ochtervelt (1634-1682) e Johannes Vermeer (1632-1675).11 Os trabalhos do geógrafo e editor Johannes Blaeu traduzem o melhor da cartografia neerlandesa do século XVII. De sua autoria, tem-se uma série de mapas do “Brasil Holandês” e que foram publicadas no livro Rerum per octennium in Brasilia (1648) de Gaspar Barléu. Para a impressão de alguns dos mapas do livro, o próprio editor se valeu de ilustrações de Franz Post e informações coligidas por George Marcgraf. Como cartógrafo oficial da VOC, Blaeu produziu vários mapas das Índias Orientais e um atlas de uma dezena de volumes e que foi editado em várias línguas. Das várias imagens de elefantes no Atlas de Blaeu (1662), nota-se uma certa estandardização. As ilustrações não distinguem as duas espécies africanas do Loxodonta e tampouco as seis subespécies de elefantes asiáticos. Com base no repertório iconográfico neerlandês, pode-se inferir ainda que as imagens de elefantes asiáticos foram usadas como modelo ou mesmo recopiadas para representar elefantes africanos. No mapa Regna Congo et Angola, por exemplo, além do elefante, tem-se ainda um rinoceronte indiano.12 Provavelmente, Blaeu recorreu à gravura de Albrecht Dürer inspirada no famoso rinoceronte de Don Manuel, pois o editor holandês reproduz o mesmo erro anatômico do gravurista alemão.13 10 ZUMTHOR. A Holanda no tempo de Rembrandt, p. 264. 11 Como a tela “Venda de uvas” (1669), de J. Ochtervelt (óleo sobre tela, 81 x 67 cm), que se

encontra no Museu Hermitage, em São Petersburgo, ver também “Oficial e moça sorridente” (1658), de J. Vermeer, (óleo sobre tela, 51,3 x 46,6 cm) Frick Collection de New York; “A leitora” (1664), (óleo sobre tela, 46,5 x 39 cm), do Rijksmuseum de Amsterdam; e, “A alegoria da Pintura” (c.1666), (óleo sobre tela, 120 x 100 cm), do Kunsthistorisches Museum de Viena. 12 BLAEU, Johannes. De Grote Atlas van de Wereld in de 17e EEUW. Uitgegeven in Samenwerking met de Royal Geographical Society. Lisse: Zuid Boekprodukties, 1997, p.150. 13 Rhinozeros (1515), de Albert Dürer (desenho, 27,4 x 42 cm), Gabinete de gravuras do British Museum, Londres.

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Na imprensa neerlandesa seiscentista era recorrente o uso das placas de gravuras em mais de uma publicação ou edição. Elas podiam também ser vendidas para outros editores e gravadores. Entre os últimos, alguns eram bastante renomados como Joost de Hondt, autor das gravuras do Atlas de Mercator. Apesar do alto nível técnico e científico da cartografia neerlandesa do século XVII, os editores e gravadores não seguiram com rigor os avanços do conhecimento de anatomia para as ilustrações de exótica animália. Mesmo que os seres fabulosos do bestiário medieval tivessem desaparecido dos mapas modernos, elefantes e rinocerontes indianos passavam por africanos nos mapas neerlandeses do Seiscentos. Acontece que os ilustradores dos mapas neerlandeses não pretendiam fazer um registro fidedigno, naturalista, do Loxodonta. As imagens de elefantes demonstram simplesmente a abundância de marfim naquelas terras africanas. Um exemplo é o mapa Guinea, no qual a imagem de uma presa de elefante indica uma das riquezas daquela região. Vale apontar ainda as imagens de três elefantes ilustrando o interior da Tandkust e de dois outros, respectivamente nas cercanias do rio dos Camarões e do rio do Gabão, locais onde se fazia o comércio de marfim. Figura 1 – Mapa Guinea, 1662. BLAEU, Johannes. De Grote Atlas van de Wereld in de 17e EEUW. Uitgegeven in Samenwerking met de Royal Geographical Society. Lisse: Zuid Boekprodukties, 1997, p. 150.

80 Capítulo 3 - Oceano Etiópico, elefantes e marfim

No Golfo da Guiné, o marfim foi uma das primeiras mercadorias nas permutas entre neerlandeses e africanos. Em 1603, a bordo de um navio holandês, o alemão Andreas Josua Ultzheimer relata que as presas de elefantes eram trocadas por mercadorias pouco antes de Cabo Palmas.14 Durante a sua viagem, o maior carregamento de presas se deu às margens do Rio dos Camarões. Após algumas semanas entre Cabo Palmas e Cabo Lopez, o navio retornou para Amsterdam carregado de marfim, ouro e pimenta.15 Por meio da oralidade africana e da intermediação de comerciantes europeus, surgem nos mapas neerlandeses alguns seres que atualizam, de certa forma, certas informações de textos gregos ou latinos. No mapa Guinea, a imagem de um símio entre dois guineenses é a mesma reproduzida na Description de l’Afrique de Olfert Dapper. Provavelmente, o seu editor e gravador Jacob van Meurs fez a placa com base na imagem do Atlas de Blaeu. Porém, na obra de Dapper, a figura antropomórfica faz referência a um “sátiro” das florestas do Reino de Quoja e também de Angola.16 Olfert Dapper se valeu, igualmente, dos mapas Guinea e Regna Congo et Angola de J. Blaeu para ilustrar Naukeurige Beschrijvinge der Afrika gewesten (1668).17 A comparação das imagens dos elefantes nestes mapas permite inferir que sua posição varia um pouco. Não obstante, o cruzamento das informações visuais da cartografia com outras fontes neerlandesas como Pieter de Marees, Pieter van den Broecke e Olfert Dapper permite cogitar que a localização dos elefantes nos mapas não era aleatória. Além de elefantes, a imagem do rinoceronte “africano” aparece no mapa alusivo ao Reino do Congo e Angola e publicado no livro de Olfert Dapper. Mesmo que Dapper tenha informado sobre diferentes tipos de elefantes, inclusive sobre algumas diferenças entre o africano e o indiano, as gravuras reproduzidas em seu livro seguem um modelo padrão de elefante. Nos mapas reproduzidos na sua obra, as figuras de animais foram certamente tomadas de empréstimo de um corpus ico14 ULTZHEIMER, Andreas J. Wahrhafte Beschreibung etlicher Reisen in Europa, Afrika, Asien

und Amerika (1596-1610). Tübingen-Basel: Horst Erdmann Verlag, 1971, p.118 15 ULTZHEIMER. Wahrhafte Beschreibung ..., p. 132 16 JONES. Olfert Dapper et sa description de l’Afrique, p.169, 297. 17 Para os mapas Guinea e Regna Congo et Angola da edição holandesa de Naukeurige Beschrijvinge der Afrika gewesten (1668) ver, respectivamente, p. 545, 753.

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nográfico anterior. Se não foram reaproveitadas placas de gravura, ao menos, foram feitas cópias a partir de coeva iconografia. Devido às limitações técnicas para compor um mapa a partir de mais de uma placa, os animais foram, provavelmente, redesenhados e novas placas permitiram a impressão de imagens com elementos decorativos e informativos de outros mapas. Figura 2 – Regna Congo et Angola, Joahnnes Blaeu, Naukeurige Beschrijvinge der Afrika gewesten (1668), p. 753

Mesmo depois da primeira edição, os elefantes “africanos” continuaram a ser reproduzidos em outras edições e mesmo em outras publicações.18 Segundo Adam Jones, o editor de Dapper tinha interesse em 18 Em mapas ingleses como A General Chart of the West India’s (1677) de John Seller, John

Colson, William Fisher, James Atkinson e John Thornton, tem-se também a imagem de um elefante indiano com vários arqueiros sobre si apesar do mesmo ilustrar a África ocidental.

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fazer traduzir ou ao menos revender as placas das ilustrações aos editores estrangeiros.19 As edições estrangeiras das obras de Dapper comprovam que algumas placas foram revendidas, o que era uma prática comum entre os editores e livreiros.

O comércio de marfim no Oceano Etiópico As presas de elefantes fizeram parte das permutas euro-africanas desde os primeiros contatos nos rios da Guiné. Isso significa que o comércio de marfim no Golfo da Guiné precedeu a denominação de Oceano Etiópico na cartografia moderna. E marfim era quase sinônimo de presas de elefantes. Em 1456, o veneziano Ca’da Mosto viu três elefantes às margens do rio da Gâmbia. Viu também um outro, morto pelos caçadores de um régulo que residia não longe da embocadura do rio. O régulo ofertou ao forasteiro uma pata de um outro elefante, sendo a mesma entregue ao Infante Dom Henrique, juntamente com uma presa de 12 palmos de cumprimento.20 Ca’da Mosto informou ainda em seu relato como os nativos caçavam os elefantes naquelas paragens. Em junho de 1468, o rei D. Afonso V concede o monopólio do comércio da Guiné ao lisboeta Fernão Gomes. Entre as condições da concessão, a venda exclusiva ao soberano português de toda quantidade de marfim importada dessa região e no valor de mil e quinhentos reais o quintal21. Em 1489, o rei do Congo presenteou o rei português D. João II, com “dentes d’alifantes e cousas de marfim lavradas e muitos panos de palma bem tecidos e com finas coores.”22 Já nos primeiros anos dos Quinhentos, Duarte Pacheco Pereira e Valentim Fernandes ressaltaram a qualidade técnica dos entalhes em 19 JONES. Olfert Dapper et sa description de l’Afrique, p.75. 20 CA’DA MOSTO, Alvise, Voyages en Afrique noire d’Alvise Ca’da Mosto (1455-1456). Paris:

Editions Chandeigne, 1994, p.125-126. 21 BALLONG-WEN-MEWUDA, J. Bato’ora. São Jorge da Mina (1482-1637). La vie d’un comptoir portugais en Afrique occidentale. (1 vol.) Fondation Calouste Gulbenkian. LisbonneParis, 1993, p.46. 22 RADULET, Carmem M. O cronista Rui de Pina e a “Relação do Reino do Congo”. Mare Liberum. Comissão nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses. Lisboa, 1992, p.138.

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marfim por mãos africanas. Não tardou para que certos objetos, produzidos por uma mão-de-obra qualificada composta por africanos entalhadores de marfim, fossem adaptados à nova clientela. Algumas peças eram feitas já na lógica das permutas euro-africanas como, por exemplo, os olifantes e os sofisticados saleiros e talheres feitos por artesãos da Serra Leoa.23 Comerciantes flamengos também atuavam no Golfo da Guiné. Eustache de la Fosse foi um deles.24 Apesar das represálias dos portugueses, comerciantes de outras nacionalidades, como ingleses, franceses e holandeses, se aventuravam sob a linha do Equador. Na primeira metade do século XVI, as estruturas econômicas e sociais de alguns reinos do Golfo da Guiné haviam se modificado com a intensificação do comércio com os europeus. A caça ao homem e ao elefante, para satisfazer à demanda cada vez mais forte de escravos e marfim, duas categorias de mercadorias muito procuradas, teve imensas repercussões sobre o equilíbrio do meio humano e da fauna, implicando a desagregação de sociedades africanas.25 De Cabo Palmas às margens do rio Volta, as mudanças não foram apenas sociais e econômicas, mas também políticas, inclusive com o fito de controlar o comércio interno que interligava os mercados da hinterlândia e o comércio externo por meio dos entrepostos litorâneos. Na Baixa Guiné, os europeus dependeram de alianças locais para poder mercadejar. Algumas delas foram mais duradouras que outras. Um dos reinos mais emblemáticos foi o Reino de Eguafo. A sua política de alianças com os europeus é um exemplo do protagonismo africano na formação do mundo atlântico.26 23 Sobre estes objetos, ver por exemplo: FAGG, William. Afro-Portuguese ivories, Londres,

British Museum, 1959; MOTA, Avelino T. “Gli avori africani nella documentazione portoghese dei secoli XV-XVII”, Africa 30 (1975), 580-592; BASSANI, Ezio. “Gli olifanti afro-portoghesi della Sierra Leone”, in Critica d’Arte, 163-165, Florença, 1979, p. 175-201. Também os trabalhos mais recentes: como: MARK, Peter. Towards a Reassessment of the Dating and the Geographical Origins of the Luso-African Ivories, Fifteenth to seventeenth centuries, History in Africa 34 (2007), 189-211;, J.; AFONSO, L. Olifantes afro-portugueses com cenas de caça (c.1490-c.1540). ARTIS. Revista de história da arte e ciências do patrimônio, 2013, n.1, p. 20-29. 24 ESCUDIER, Denis. Voyage d’Eustache de la Fosse sur la côte de Guinée, au Portugal et en Espagne (1479-1480), Paris : Editions Chandeigne, 1992. 25 BALLONG-WEN-MEWUDA. São Jorge da Mina (1482-1637), p.486. 26 Sobre o Reino de Eguafo e suas relações políticas e comerciais no século XVII, notadamente com holandeses e franceses, ver CHOUIN, Gérard. Eguafo. Un royaume africain “au cœur françois” (1637-1688). Paris: Afera éditions, collection Essais et Documents, 1998.

84 Capítulo 3 - Oceano Etiópico, elefantes e marfim

Com o aumento da concorrência entre os europeus, as alianças entre nativos e adventícios se tornaram mais complexas e instáveis. Da segunda metade do século XVI às primeiras décadas do século XVII, houve o declínio da hegemonia dos portugueses na Costa da Guiné, onde ingleses, franceses e neerlandeses buscam ouro, marfim, pimenta, panos e escravos.27 A União Ibérica (1580-1640) favoreceu uma ofensiva das companhias de comércio da República Batava no Ultramar. Para os Estados Gerais das Províncias Unidas, a luta contra as potências marítimas ibéricas era também uma “luta de liberação nacional”.28 Depois da fundação da VOC em 1602, não tardaria para ver-se confirmada a omnipresença marítima dos neerlandeses da ilha de Manhattan a de Java. Afinal, a VOC chegou a contar com a maior frota mercante entre as nações modernas nos meados do século XVII.29 Além das especiarias do Oriente, a prata e o açúcar sob o domínio das coroas ibéricas em suas possessões no Novo Mundo despertavam o interesse comercial dos neerlandeses. Os neerlandeses contam com algumas feitorias no Golfo da Guiné, inclusive erguem algumas fortalezas. Para isso, as alianças são imprescindíveis. Um consórcio com o Reino de Sabu permite aos neerlandeses fundar um estabelecimento comercial e militar em 1612. Em 1621, com a fundação da West-Indische Compagnie (WIC), os neerlandeses estão prestes a obter a supremacia militar e comercial no então Oceano Etiópico. Em 1624, os neerlandeses investem sem sucesso contra Salvador da Bahia e Luanda. Um ano depois, mais uma tentativa malograda na Costa da Mina, onde as alianças locais favoreceram os portugueses. Mas novos pactos envolvendo os reinos de Eguafo, Sabu e Fetu seriam decisivos para o futuro da fortaleza d’El-Mina.30 Na terceira década do Seiscentos, os neerlandeses se afirmam no então Oceano Etiópico. Entre 1630 e 1642, as alianças de neerlande27 BALLONG-WEN-MEWUDA. São Jorge da Mina (1482-1637), p.457. 28 DELAUNAY, K. Voyages à la Côte de l’Or (1500-1750). Etude historiographique des

relations de Voyage sur le littoral ivoirien et ghanéen. Paris: AFERA Éditions, 1994, p.13. 29 Sobre a frota da V.O.C., ver PARTHESIUS, Robert. Dutch Ships in Tropical Waters. The Development of the Dutch East India Company (VOC) Shipping Network in Asia 15951660. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2010. 30 BALLONG-WEN-MEWUDA. São Jorge da Mina (1482-1637), p. 480.

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ses com alguns reinos africanos foram cruciais para o sucesso da empresa militar e comercial da WIC.31 Nessa época, os comerciantes dos Países Baixos estão presentes desde a América do Norte até a Indonésia.32 De pele de castor à noz-moscada, o comércio ultramarino enriquece a República Batava, na qual o comerciante não apenas mantém o Estado mas ainda participa do governo.33 Atraídos inicialmente pelo ouro, pelo marfim e pela pimenta, os neerlandeses se envolvem também no tráfico de escravos, a pedra angular sobre a qual se estruturou um complexo comércio atlântico no século XVII. Segundo Luiz Felipe de Alencastro, o escravo era a mercadoria aglutinante e no rastro do circuito principal fluíam as mercadorias ancilares.34 Aqui vale um bemol. Várias mercadorias como as conchas, os panos africanos e o marfim não foram mercadorias ancilares do comércio de escravos durante todo o século XVII. Alguns estudos têm mostrado o quanto o comércio de certas mercadorias oscilou devido a dinâmicas internas e externas, variações regionais e mudanças - algumas conjunturais, outras estruturais - que nem sempre tiveram relação direta com o comércio de escravos. Como lembrou John Thornton, diversos têxteis africanos eram exportados para a Europa, assim como as esteiras de palha da Senegâmbia. Os africanos produziam também outros artigos para os clientes europeus, sendo os mais famosos deles os objetos em marfim no estilo híbrido “afro-português”.35 Vale ainda lembrar que comerciantes como Pieter van den Broecke, fizeram negócios na Costa da Guiné antes da fundação da WIC e seu posterior envolvimento no comércio de escravos. Apesar de algumas resistências do Conselho da WIC, imiscuir-se no tráfico de escravos era a alternativa para controlar o mercado econômico do Atlântico.36 Assim como os engenhos de açúcar do 31 BALLONG-WEN-MEWUDA. São Jorge da Mina (1482-1637), p. 468. 32 O termo Países Baixos equivale às Províncias Unidas libertas do jugo espanhol em 1579.

Depois do Tratado de Utrecht (1579), a república das Províncias Unidas proclama a sua independência pelo Ato de Haia (1581). 33 BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edições USP, 1974, p. 9. 34 ALENCASTRO, Luiz F. O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 114. 35 THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (14001800), Rio de Janeiro: Editora Campus, 2004, p. 99. 36 Sobre a relação da WIC com o tráfico de escravos, ver: POSTMA, Johannes. The Dutch

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Brasil e os portos negreiros da África, a conquista do porto de Buenos Aires, de onde saia a prata de Potosí e entrava copiosa escravaria, também fez parte dos planos da WIC que visava vantagens no lucrativo comércio de escravos na região platina.37 O Atlântico se configurava como um espaço marítimo comercial e, ao mesmo tempo, como teatro para ações beligerantes.38 Mesmo depois da Paz de Münster, as rivalidades europeias continuaram fora a Europa. Se o chamado “século de ouro” foi próspero para o comércio e as artes dos Países Baixos, cabe ressaltar que as companhias holandesas praticavam o comércio e a guerra no Ultramar. Nas palavras de Gaspar Barléu, “Mercúrio e Marte prestaram-se muitos auxílios”, pois “nossos mercadores se fizeram guerreiros e nossos guerreiros se fizeram mercadores.”39 A conquista de Recife em 1630, a tomada do Castelo d’El-Mina em 1637 e de Luanda e Benguela e São Tomé em 1641 foram alguns exemplos da ação beligerante da WIC. Dessa sua ofensiva decorre uma série de novos desafios para a WIC tanto no Brasil quanto na África; e, por conseguinte, o malogro da WIC em manter o monopólio comercial que ela havia usurpado dos portugueses no Atlântico. Nos relatórios enviados aos diretores da WIC, a concorrência comercial europeia e a “inconstância” africana foram apontadas como as principais causas do fracasso dos planos de controlar o comércio atlântico, de estabilizar os preços e eliminar a competição estrangeira.40 Além de sua inexperiência no tráfico de escravos, as instáveis políticas de alianças comprometiam os interesses comerciais dos neerlandeses. Com o Reino de Eguafo, por exemplo, a WIC tentou impor um monopólio comercial, o que fez mais tensas as relações neerlandesas nos portos de Akitekyi e Ampeni. Assim como o monopólio pretendido pelos neerlandeses na Costa do Ouro, o modelo de administração separada do “Brasil Holandês” e das possessões africanas não rendeu in the Atlantic Slave Trade 1600-1815. New York: Cambridge University Press, 1990. Para o comércio de escravos na Costa do Ouro antes de 1700: Van DANTIZG, A. Forts and Castles of Ghana, Accra: Sedeo Publishing Ltd., 1980, p. 114-116. 37 BOXER, C. The Dutch in Brazil, 1624-1654. Oxford: Oxford University Press, 1957, p. 147. 38 PUNTONI, Pedro. A mísera sorte: escravidão africana no Brasil Holandês e as guerras do tráfico no Atlântico Sul. São Paulo: Ed. Hucitec, 1999. 39 BARLÉU. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, p. 8. 40 THORNTON. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800), p. 113.

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melhores resultados para os negócios da WIC. O comércio de escravos se revelou muito mais complexo no século XVII do que era antes. Acontece que houve um aumento significativo nas exportações de escravo na primeira metade do Seiscentos, especialmente da Costa da Guiné e da África central. Essas exportações seriam ainda mais expressivas depois de 1650.41 Em relação ao comércio do marfim, os neerlandeses buscaram impor o seu controle tanto na costa da Guiné quanto na costa da África central, notadamente nos entrepostos de Cabinda, Luanda e Benguela. No Reino do Loango, o marfim era um monopólio real. Fazia-se o seu escoamento pela foz do rio Chiloango ou Loango. Com a concorrência europeia no século XVII, na baía do Loango e em outros reinos como o Ngoyo, Kakongo e Congo, o marfim se torna uma mercadoria ancilar do comércio de escravos.42

O marfim no comércio de grande distância Navegando na esteira dos portugueses, os neerlandeses passam a mercadejar em lugares onde antes os portugueses tinham sido os únicos europeus a praticar um comércio direto.43 Também reproduziram algumas práticas comerciais já estabelecidas nas permutas luso-africanas, luso-brasileiras e luso-asiáticos. No final do século XVI, Jan H. Linschoten informou que os portugueses levavam de Moçambique para a Índia, “ouro, âmbar gris, ébano e marfim, e muitos escravos e escravas”.44 O marfim 41 THORNTON. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800), p. 176-177. 42 Mesmo não sendo uma mercadoria aglutinante, o marfim foi um dos principais produtos

daquela região. Foram extraídas mais de 56.992 (cinquenta e seis mil novecentas e noventa duas) pontas de marfim dos elefantes do Congo, Kakongo, Ngoyo, Loango e dos reinos de Angola e Benguela, entre os anos de 1796 e 1825. LUIS, João Baptisa. O comércio do marfim e o poder nos territórios do Kongo, Kakongo, Ngoyo e Loango: 1796-1825, [dissertação de mestrado em história da África] Universidade de Lisboa, 2016, p. 112. 43 SEED, Patrícia. Cerimônias de Posse na Conquista Européia do Novo Mundo (1492-1640). São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 211. 44 LINSCHOTEN, Jan H. Itinerário, Viagem ou Navegação de Jan Huygen van Lischoten para as Índias Orientais ou Portuguesas [1596]. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 82.

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chegava também por mãos portuguesas à China.45 Em certos mercados orientais, os neerlandeses passaram a competir com os portugueses, inclusive com mercadorias obtidas nos seus entrepostos africanos. No início do século XVII, o comércio do marfim foi uma das principais atividades de um complexo ultramarino em expansão e da qual os neerlandeses tentaram tirar grande proveito.46 Porém, o marfim não teria o mesmo peso na balança comercial da VOC e da WIC. Se as especiarias, drogarias e pedrarias predominaram nas atividades comerciais da primeira, os negócios com o açúcar brasileiro e com o comércio de escravos prevaleceram entre os interesses da segunda. Acrescenta-se ainda o interesse dessa última pela prata de Potosí. Todavia, o carregamento regular de toneladas de marfim africano sob o controle da WIC não deve ser subestimado.47 Escusado é lembrar que parte do marfim africano que chegava nos navios da WIC em Amsterdam partia nos navios da VOC para as Índias Orientais. O tipo de marfim que era vendido na Europa não era o mesmo que seguia para o Oriente, onde havia uma preferência por presas de grande tamanho, de cor branca e com melhor textura para o entalhe. Por isso, as presas dos elefantes das savanas da África oriental eram, geralmente, destinadas aos portos das Índias Orientais. O marfim era obtido em trocas comerciais, mas também ocasionalmente por saques e pilhagens. No final de outubro de 1600, a tomada de São Tomé pela frota do almirante Peter van der Doess resultou num grande butim. Além de mil caixas de açúcar, estofos de sedas e panos de lã, caiu em mãos holandesas “grande cópia de dentes de elefantes”.48 Em meados de 1604, a frota sob comando de Etienne van der Hagen sitiou a Ilha de Moçambique. O saque de dois navios portugueses que lá estavam resultou em muitos “dentes de elefantes”.49 No início de 1664, os holandeses se tornaram senhores de um forte construído 45 LINSCHOTEN. Itinerário..., p. 134. 46 Para uma visão global do império marítimo holandês, ver BOXER, Charles R. The Dutch

Seaborne Empire: 1600-1800, New York: J.H. Plumb, 1965. Ver também HEIJER, H. den, Goud, ivoor en slaven. Scheepvaart en handel van de Tweede Westindische Compagnie op Afrika, 1674-1740, Zutphen: Walburg pers, 1997. 47 HEIJER, H. den. Geschiedenis van de Westindische Compagnie (1621-1791). Zutphen: Walburg pers, 2007. 48 BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, p. 221. 49 MOCQUET, Jean. Voyage à Mozambique. La relation de Jean Mocquet (1607-1610). Paris: Editions Chandeigne, 1996, p. 162.

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pelos ingleses numa ilha do rio da Serra Leoa. Entre os despojos havia de quatrocentas a quinhentas presas de elefantes.50 Não foi preciso muitos anos para que o comércio atlântico de marfim, outrora quase exclusividade português, entrasse na órbita mercantil da nova potência marítima. Vale lembrar que a literatura sobre a Costa do Marfim e a Costa do Ouro aumenta no século XVII, sobretudo na segunda metade, sendo a maioria em língua holandesa e alemã.51 Ainda nas primeiras décadas do Seiscentos, a variedade de mercadorias trazidas pelos neerlandeses para escambo nos entrepostos litorâneos da África ocidental e central atesta a idiossincrasia das demandas locais. Não raro comprava-se marfim com “moedas” locais como os libongos, peças de tecido de fibra vegetal e muito apreciadas no Loango.52 Como a oferta de mercadoria também variava de um entreposto para outro, a qualidade e a quantidade de certas mercadorias poderiam fazer oscilar os valores da permuta. O valor do marfim não era o mesmo no Golfo da Guiné e no Golfo de Biafra. Os relatos de viajantes informam sobre algumas valorações devido à eventual escassez ou aumento da demanda. Dapper comenta que no Reino do Loango, das montanhas de Sondi, no caminho para Pombo, vinha muito marfim. Distante 150 léguas da costa, chegava quantidade de marfim de boa qualidade. Mas o volume diminuía a cada ano.53 A diminuição de manadas de elefantes ocorreu em outras regiões africanas onde houve o aumento do comércio do marfim no século XVII. Outros impactos ecológicos decorreram da expansão europeia, notadamente das permutas de animais e plantas pelo Atlântico e pelo Índico e que favoreceram o ingresso de inúmeras espécies alienígenas em biomas diversos. Sem predadores naturais ou sem a mesma competição ecológica dos biomas de origem, algumas espécies foram protagonistas de uma invasão biológica que comprometeu a biodiversidade em vários ecossistemas. 50 MOCQUET, Jean. Voyage à Mozambique, p. 160. 51 JONES, Adam. Zur Quellenproblematik der Geschichte Westafrikas 1450-1900. Studien zur

Kulturkunde (99). Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 1990, p. 41. 52 Olfert Dapper comenta que, antes da Companhia das Índias Ocidentais, quando era ainda permitido aos comerciantes das Províncias Unidas negociar livremente naquelas paragens, os holandeses trocavam cobre, marfim e outras mercadorias por libongos, o que aumentava o preço, mas, depois que o comércio passou para o controle da WIC, o preço desses produtos baixou sensivelmente. Informa ainda que o câmbio era equivalente a 5 libongos por uma livra de marfim. DAPPER, Olfert. Description de l’Afrique, p. 253. 53 DAPPER. Description de l’Afrique, p. 253.

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Especiarias como a pimenta, o sândalo, o cravo, a canela e a noz-moscada tinham cada vez maior demanda, o que implicava numa intensificação da exploração dos recursos naturais. A oferta de algumas mercadorias eram irregulares e não colocavam em risco a sua fonte natural como, por exemplo, o âmbar gris. Outras, no entanto, como peles, almíscar e marfim, tinham impacto direto na fauna. No que tange às manadas de elefantes na África Ocidental, a sua drástica redução no século XVII tem a ver diretamente com o aumento da demanda de marfim. No século XVII, a concorrência europeia no Atlântico e também no Índico favoreceu o aumento do comércio do marfim numa rede comercial de longa distância. Além do seu próprio interesse consumidor, os comerciantes europeus também compravam marfim algures para o revender alhures. Em muitos mercados africanos e asiáticos, os comerciantes europeus desempenharam uma função intermediária. Muitas mercadorias africanas ou indianas eram preferidas em detrimento dos produtos trazidos da Europa. Para ficar num exemplo, entre os acãs, o tecido mais caro e mais procurado não era o da Europa, mas o de Mandinga importado das regiões norte da Costa do Ouro.54 Desse modo, alguns comerciantes europeus tiveram que se abastecer de produtos africanos para poder trocar por outras mercadorias africanas, como o marfim, que, por sua vez, entrariam no rol de mercadorias para novas trocas.

Alguns usos “culturais” para elefantes e suas presas As presas de elefantes e objetos derivados tinham múltiplos usos em diversas sociedades africanas. A arqueologia registra artefatos de marfim por quase todo continente.55 Além das presas de elefantes, objetos em marfim circulavam pelo Atlântico desde os primeiros conta54 THORNTON. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800), p. 96. 55 Para ficar num exemplo, três presas de elefantes foram encontradas com outros objetos

de uma provável tumba real durante uma escavação arqueológica realizada entre 1959 e 1960 em Igbo-Ukwu, no sudeste da Nigéria. NOLL, Elisabeth. „Vorkoloniale Metallfunde im subsaharischen Afrika“, in: Kissipenny und Manilla. Geld und Handel im alten Afrika. Duisburg, 1995, p. 15.

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tos luso-africanos, inclusive por intermédio de judeus.56 Os chamados marfins “luso-africanos” são o melhor exemplo dessas permutas, sendo que a origem geográfica variou do século XV ao século XVII.57 Difícil saber o valor agregado da arte escultórica no comércio do marfim desde os golfos da Guiné e de Biafra até o golfo de Bengala. Da Serra Leoa ao Ceilão, variavam os trabalhos, assim como a qualidade da matéria prima. Além da Serra Leoa e de outras partes da África, a arte escultórica do marfim era altamente desenvolvida na China, na Índia e nas ilhas do Sudeste asiático. O holandês Jan van Linschoten comentou sobre um crucifixo de marfim com um côvado de comprimento, feito por um habitante da ilha de Ceilão: elaborado de forma tão engenhosa e primorosa que o cabelo, a barba e o rosto pareciam tão naturais como os de uma pessoa viva, e em tudo tão bem lavrado e proporcionado de membros que não se poderia igualar em toda a Europa. Por alvitre do arcebispo D. Vicente da Fonseca, o crucifixo foi enviado para a Sua Majestade El-Rei de Espanha, “como coisa admirável e digna de ser guardada por um grande senhor entre as suas peças preciosas.”58

No Reino de Cambaia, observou o viajante holandês que havia objetos como mesas de jogo e tábulas de marfim, assim como sinetes, anéis e outras curiosidades em marfim e dentes de hipopótamos.59 Informou ainda que as presas de elefantes, “que são de marfim, são muito usadas na Índia, principalmente em Cambaia, porque do marfim fazem muitas curiosidades, como as manilhas que as mulheres usam, dez ou doze em cada braço, pelo que lá se gasta muito dele, e ainda chega aí em grandes quantidades da Etiópia, Moçambique e outras partes”.60 56 MARK, Peter & HORTA, José da Silva. The Forgotten Diaspora: Jewish Communities in West

Africa and the Making of the Atlantic World. Nova York: Cambridge University Press, 2011. 57 MARK, Peter. Towards a Reassessment of the dating and the Geographical origins of the Luso-african ivories, Fifteenth to seventeenth centuries. History in Africa, 34, 2007, p. 189-211. 58 LINSCHOTEN. Itinerário..., p. 104-105. O flamengo Jan Huygen van Linschoten viveu em Goa entre 1583 e 1588, onde foi secretário particular do arcebispo D. Vicente da Fonseca. Depois do seu regresso aos Países Baixos, em 1592, dedicou-se à sua obra cuja primeira edição foi em 1596. 59 LINSCHOTEN. Itinerário..., p. 95. 60 LINSCHOTEN. Itinerário..., p. 197.

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Também Jean Mocquet testemunhou grande carga de presas de elefantes embarcada na Ilha de Moçambique e transportada para Goa durante a monção de 1609.61 Antes dos portugueses, o marfim africano chegava ao Oriente pelas mãos dos árabes e de outros mercadores que frequentavam a costa oriental da África. A Carreira das Índias inaugurou uma nova rota comercial para várias mercadorias, inclusive para o marfim africano. Sobre as mercadorias que os portugueses traziam e do que valiam na Índia, o escrivão da feitoria de Cananor informou que a faraçola do marfim valia oitenta até cem fanões.62 No século XVII, as companhias de comércio neerlandesas lograram uma supremacia em vários mercados nas regiões tropicais. Aos portos dos Países Baixos chegavam marfim de várias partes do continente africano. O marfim também chegava em outros sítios sob domínio da WIC e da VOC, como Recife e Batávia. Uma vez que a WIC logra se afirmar no comércio de ouro e escravos na África ocidental, o marfim se torna mais uma mercadoria complementar mas não menos importante para o escambo no Oceano Etiópico, como bem demonstra a concorrência entre neerlandeses e ingleses no primeiro quartel do século XVIII.63 Apesar das diferenças culturais entre europeus, africanos e asiáticos, parece que foi unânime a admiração pelo maior mamífero terrestre. Por uma série de atributos, tornou-se o elefante um ícone majestático. Na Dinamarca, a mais alta e antiga condecoração é a Ordem do Elefante e cujo emblema remete a uma estampa de Melchior Lorck (1527-1626).64 Em alguns reinos africanos, cetros, olifantes e outros artefatos de marfim foram insígnias da realeza. No Oriente, o marfim foi também usado para a confecção de objetos com atributo de poder. Em várias partes da África e da Ásia, a caça ao elefante se fazia apenas com autorização régia e o comércio de marfim estava sob controle régio. 61 MOCQUET. Voyage à Mozambique, p. 75. 62 BARBOSA, Duarte. Livro do que viu e ouviu no Oriente Duarte Barbosa. Lisboa: Alfa/

Biblioteca da Expansão Portuguesa, 1989, p. 168. 63 FEINBERG, H.M.; JOHNSON, M. The West African ivory trade during the eighteen century: “The... and ivory Complex”. The International Journal of African Historical Studies, 15 (3), p. 435-453. 64 Chefes políticos africanos como o imperador etíope Hailé Selassié I, o presidente tanzaniano Julius Nyerere e o presidente sul-africano Nelson Mandela foram condecorados com a Ordem do Elefante, respectivamente em 1954, 1970 e 1996.

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Diferentemente dos europeus, africanos, indianos e cingaleses sabiam tirar outros proveitos do elefante. Em várias partes da África, a sua carne era apreciada e consumida e utensílios como escudos eram feitos com o couro do elefante. Em Luanda, faziam-se colares e cintos de xinga (rabo do elefante).65 Na Índia e no Ceilão, os elefantes eram usados como animal de carga e de tração, também eram adestrados para fins militares etc. Duarte Barbosa informa que os elefantes do Reino de Pegu eram procurados por mercadores dos reinos de Malabar e Cambaia e que esse comércio estava sob controle régio.66 O escrivão da feitoria de Cananor comentou em seu livro que os elefantes mais estimados dos reis da Índia eram os cingaleses e cujo valor podia alcançar os mil e quinhentos cruzados.67 O português João Ribeiro, que viveu quase vinte anos no Ceilão, comentou a estima que os cingaleses nutriam pelos seus elefantes e que, entre seus vários ídolos, havia um sob a forma de elefante com muitos braços.68 Provavelmente, os diferentes usos e funções atribuídas aos elefantes em certas culturas orientais condicionaram à oferta e a demanda de marfim e, por conseguinte, a ação comercial dos europeus nesse mercado já muito concorrido, notadamente pelos comerciantes árabes, indianos e chineses. No seu relato sobre as Índias Orientais, Jan H. Linschoten mencionou a quantidade “milagrosa” de marfim no Ceilão.69 Acrescenta ainda que os elefantes cingaleses “são os melhores do mundo”. Cabe ressaltar que o viajante holandês não fez um juízo de valor com base na qualidade do marfim e sim na suposta inteligência e domesticidade dos elefantes do Ceilão. Diferente é o aporte do seu compatriota Olfert Dapper cuja tipologia dos paquidermes acusa o valor atribuído às presas. Elefantes das florestas, das montanhas e dos pântanos tinham presas de tamanho diverso e coloração variada, sendo algumas melhores que outras para esculpir. Essas informações revelam o carácter venal do marfim para o comércio neerlandês no século XVII. O autor de Naukeurige 65 DAPPER. Description de l’Afrique, p.253. Antes de Dapper, Gaspar Barléu comentou que,

no Reino do Congo, “fazem para si colares de caudas de elefantes.” Barléu, Op. cit., p. 256. 66 BARBOSA. Livro do que viu e ouviu no Oriente, p. 139. 67 BARBOSA. Livro do que viu e ouviu no Oriente, p. 126. 68 RIBEIRO, João. Fatalidade histórica da ilha do Ceilão (1685). Lisboa: Alfa/Biblioteca da Expansão Portuguesa, 1989, p. 37-38. 69 LINSCHOTEN. Itinerário..., p. 104.

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Beschrijvinge der Afrika gewesten (1668) informa ainda que o comércio de marfim era abundante na província de Bamba no Reino do Congo, onde havia um grande número de elefantes e de um tamanho tão prodigioso que seus dentes podiam pesar dois quintais. Acrescenta Dapper que todos os dentes de elefantes não eram da mesma qualidade. Vendiase ainda alguns rotos, encontrados fortuitamente nas florestas. Porém, informa Dapper, nos últimos tempos, não vinha muito marfim desses confins como outrora. Carregou-se tanto marfim desde cinquenta ou sessenta anos que os nativos tinham que caçar os elefantes mais longe.70 A redução de algumas manadas indica que o marfim africano teve uma forte demanda, o que permite relativizar a sua condição de mercadoria ancilar do comércio atlântico de escravos. Com base em alguns relatos de viajantes, compilações e descrições da África e da Ásia, pode-se inferir que o marfim africano foi “moeda” e mercadoria empregada pelos comerciantes neerlandeses em suas permutas com africanos e asiáticos. Além de seus múltiplos usos nas trocas comerciais na África e no Oriente, o marfim africano chegou também ao Brasil e a Europa. A partir da terceira década do Seiscentos, a WIC passa a controlar boa parte do comércio do marfim africano no Oceano Etiópico.

Representações de marfim e elefantes no espólio nassoviano A fauna e a flora brasileiras foram inventariadas por naturalistas sob os auspícios do conde Johan Maurits van Nassau entre 1637 e 1644. Além dos estudos zoológicos e botânicos, foram feitos alguns mapas do “Brasil Holandês”. Uma produção artística sem precedentes das paisagens e das gentes do Brasil foi realizada por pintores como Franz Post (1612-1680) e Albert Eckhout (1610-1665). Entre os trabalhos artísticos e científicos que integraram a coleção brasiliana do conde de Nassau, encontram-se algumas representações pictóricas de africanos e também de marfim. 70 DAPPER. Description de l’Afrique, p. 275.

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Retratos do embaixador congolês Dom Miguel de Castro e de dois homens de sua comitiva, Pedro Sunda e Diego Bemba, servem de registro visual da embaixada enviada em 1643 pelo manicongo D. Garcia II para tratar das relações comerciais com os neerlandeses. Provavelmente, os retratos foram pintados por Jasper Becx na Holanda, destino final da embaixada depois de uma escala no Brasil.71 Figura 3 – Pedro Sunda, Jasper Becx [?], c.1643. In: FROMONT, Cécile. The Art of Conversion: Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo. University of North Carolina Presse, 2014, p. 166-168

71 Para H. E. van Gelder, o autor dos três retratos teria sido o pintor neerlandês Jasper Becx. Sobre a provável autoria dessas telas, ver: WHITEHEAD, Peter J. P.; BOESEMAN, Martin. Um Retrato do Brasil Holandês do Século XVII: animais, plantas e gente, pelos artistas de Johan Maurits de Nassau. Rio de Janeiro: Kosmos, 1989, p.173-174. Por seu turno, Paulo Herkenhoff considerou Jasper Becx o autor dos três retratos da embaixada congolesa, porém desconheciase quem eram os retratados. HERKENHOFF, Paulo. “Representação do Negro nas Índias Ocidentais”, in: O Brasil e os Holandeses 1630-1654. Rio de Janeiro: GMT Editores, 1999, p.142. No site oficial do MSK (http://www.smk.dk), os três retratados constam com suas respectivas identificações. Ver também FROMONT, C. The Art of Conversion, p.166-168. O MSK sugere Jaspar Becx e Albert Eckhout como os possíveis autores dos retratos. Para uma síntese das diferentes interpretações sobre a autoria dos retratos em questão, ver GOMES, René Lommez. Homens e Frutos do Brasil. História e recepção da obra de Albert Eckhout nas coleções dinamarquesas. Belo Horizonte: PPGHIS/FAFICH, UFMG, 2016, p. 241-242, nota 818. (tese de doutoramento). Ver também FRANÇOSO, Mariana de Campos. De Olinda a Olanda: Johan Maurits van Nassau e a circulação de objetos e saberes no Atlântico holandês (século XVII), Campinas (tese de doutorado/Unicamp) 2009, p. 237.

96 Capítulo 3 - Oceano Etiópico, elefantes e marfim

O retrato de Pedro Sunda é especial pelo destaque atribuído a um pajem africano. Sua importância reside, outrossim, no destaque para a presa de elefante em suas mãos, pois o devir do comércio de marfim estava na agenda da embaixada. Naquela altura, o “Brasil Holandês” era uma placa giratória desse comércio atlântico de escravos, ouro, prata, açúcar, conchas, marfim, peles e copiosa animália como papagaios e monos. Serviçais africanos não eram raros na iconografia europeia. Para ficar em dois exemplos, a “jovem moura Catharina”, de Albrecht Dürer (1471-1528) e a “natureza morta com um jovem negro”, de Barent van der Meer (1659-1700).72 Geralmente, os pajens aparecem de forma discreta em cenas bíblicas como portadores de presentes ou de cartas, como nas obras A adoração dos reis, de Juan Batista Maino (1578-1649), a pintura homônima de Nicolas Poussin (1594-1665) e Bathseba à fonte, de Peter Paul Rubens (1577-1640).73 O retrato de Pedro Sunda é único pelo objeto que carrega em suas mãos. Trata-se de um registro visual daquilo que na documentação neerlandesa consta como crevellen ou scrivillos, um apodo para as presas muito pequenas dos elefantes jovens e cujo peso médio era 3,5 kg.74 Além do tamanho da presa, o termo pode também estar relacionado a um tipo de coloração e qualidade do marfim.75 Em geral, as presas de elefantes das florestas da África ocidental eram menores do que aquelas dos elefantes das savanas da África oriental. A WIC fazia o comércio de presas de vários tamanhos e coloração e de variada qualidade. Provavelmente, o marfim nas mãos do pajem africano foi um presente da embaixada do Congo. Cale lembrar que “dentes de elefantes” integravam os bens do Conde de Nassau ao deixar o Brasil.76 72 O retrato de Catharina, 20 anos, doméstica na casa do português João Brandão, na

Antuérpia, foi gravada em papel (20 x 14 cm) por Albrecht Dürer em 1521 e se encontra no gabinete de desenhos e estampas da Galleria degli Uffizi, em Florença. Já a pintura suprareferida de B. van der Meer é óleo sobre tela (150 x 117 cm) e faz parte da coleção da Antiga Pinacoteca de Munique. 73 A tela “adoração dos reis”, de J. B. Maino, faz parte do acervo do Museu do Prado e as duas outras obras supracitadas, de Poussin e Rubens, integram o acervo da Pinacoteca de Dresden. 74 FEINBERG, H.M.; JOHNSON M. The West African ivory trade during the eighteen century: “The... and ivory Complex”, p. 441. 75 RIJKELIJKHUIZEN, Marloes. Large or small? African elephant tusk sizes and the Dutch ivory trade and craft, in: BARON, J.; Kufel-Diakowska, B. (ed.) Written in Bones. Studies on technological and social contexts of past faunal skeletal remains, University of Wrocklaw, 2011, p. 230-31. 76 Para uma listagem parcial do “espólio brasileiro” do conde de Nassau, ver: MELLO,

O Marfim no Mundo Moderno

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Em 1654, o conde de Nassau presenteou o rei da Dinamarca, Frederico III, com várias pinturas.77 A oferta de boa parte de sua coleção brasiliana pode ser interpretada como uma retribuição pela condecoração da Ordem do Elefante em 1649, a mais alta e antiga ordem dinamarquesa.78 Ainda em meados dos Seiscentos, uma parte do seu tesouro seria dada ao eleitor de Brandenburgo, Friederich Wilhelm, como cadeiras com detalhes em marfim e oito grandes presas de elefante. Uma delas tinha nove pés de comprimento. Para Mariana de Campos Françoso, o marfim das cadeiras e as presas de elefante foram certamente conseguidos em transações comerciais quando da conquista da cidade de Luanda, em 1641, ou mesmo no episódio da conquista do forte de São Jorge da Mina, em 163779. Além dessas hipóteses, é plausível que parte do marfim que chegou às mãos do Conde de Nassau tenha sido também presentes das embaixadas africanas que estiveram em Recife.80 Do espólio nassoviano, duas folhas com imagem de um filhote de elefante fomentam a imaginação sobre a circulação de animais africanos pelo Oceano Etiópico. Provavelmente, o pequeno paquiderme foi trazido para o Brasil. Mas nenhuma informação sobre o animal se encontra nos documentos, além dos registros visuais de artista anônimo. Christian Mentzel organizou o material disperso de pinturas e desenhos que o marquês de Brandenburgo havia recebido do conde de Nassau. Sob o título de Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, quatro tomos foram compilados em 1660. Na ilustração do frontispício do terceiro tomo Icones Animalium tem-se um elefante entre alguns exemplares da fauna brasileira. O mesmo elefante aparece em duas páginas do terceiro tomo. Teria sido o desenho feito no Brasil ou na Holanda?

Evaldo Cabral de, Nassau: Governador do Brasil Holandês. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 202. 77 Os presentes de Nassau para o rei da Dinamarca, Frederick III, para o eleitor de Brandenburgo, Friedrich Wilhelm, e para o rei da França, Louis XIV, devem ser entendidos numa lógica de dom e contra-dom em voga nas trocas simbólicas da aristocracia europeia do século XVII. 78 FRANÇOSO. De Olinda a Olanda, p. 237. 79 FRANÇOSO. De Olinda a Olanda, p. 227. 80 Sobre as embaixadas do rei do Congo, do conde do Sonho e do duque de Bamba, BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, p. 254-255.

98 Capítulo 3 - Oceano Etiópico, elefantes e marfim

Figura 4 – TRNB, Frontispício do Tomo III, 1660. In: Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, 1660

O registro pictórico de um elefante testemunha a sua circulação como mercadoria, mas também se reveste de um valor simbólico enquanto possível dádiva a alguma autoridade da WIC. Cabe lembrar que animais exóticos eram enviados para Europa desde o início da expansão ultramarina. Para ficar em três exemplos, a girafa de Lorenzo de Medici, o rinoceronte de Don Manuel e o elefante do Papa Leão X. Olfert Dapper informou em sua Description de l’Afrique que havia um elefante em Antuérpia em meados do século XVII. O Marfim no Mundo Moderno

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Difícil saber a procedência e o destino do pequeno paquiderme cuja imagem Christian Mentzel usou para compor o frontispício do terceiro tomo do TRNB. Porém é plausível que o elefante tenha sido um presente da embaixada do Congo que esteve no Brasil e na Holanda em 1643. Gaspar Barléu não fez nenhuma menção ao elefante em seu comentário sobre as embaixadas africanas. Das dádivas para o anfitrião Nassau, mencionou apenas 200 escravos, um colar e uma bacia de ouro.81 O autor de História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil informa, no entanto, sobre “ovelhas chilenas” (alpacas) e cabras africanas, cujas imagens se encontram no terceiro tomo da TRNB. Cogitou-se a possibilidade de ter havido elefante e alpacas no “zoológico” de Boa Vista. Porém, nenhum documento menciona um pequeno elefante.82 Outra hipótese é que estes desenhos de elefantes e alpacas não tenham sido feitos no Brasil.83 O pequeno elefante cuja imagem ilustrou o terceiro tomo da TRNB poderia ter sido um presente de uma embaixada africana para alguma autoridade do Conselho da Companhia das Índias ou a um Stadhouder da República Batava. Uma outra folha chama atenção nesse terceiro tomo do TRNB. Trata-se de um africano albino. Seria ele um escravo? Ou foi trazido como uma curiosidade? Cabe lembrar que as cortes europeias tinham os seus bufões. Anões e liliputianos faziam parte de um grupo seleto de bizarras companhias de reis e rainhas.84 No Reino do Benin, parece que alguns “seres especiais” também faziam parte do séquito real. Olfert Dapper informa sobre “um bom número de anões e de surdos que servem de divertimento ao rei”.85 No Reino do Loango, alguns albinos e “anões” das florestas fazem parte da comitiva que integra o cortejo do rei em certas ocasiões especiais.86 Dapper comenta que esses “pequenos 81 BARLÉU. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, p.254. 82 Se bem que o conde de Nassau poderia ter tido um elefante empalhado em sua residência em

Haia. BOOGAART, Ernest van den. Johan Maurits van Nassau-Siegen – 1604-1679. A Humanist Prince in Europe and Brazil. The Hague: The Joahn Maurits van Nassau Stichting, 1979. 83 Albertin, Petronella J. Arte e ciência no Brasil holandês. Theatri Rerum Naturalium Brasiliae: um estudo dos desenhos, Revista Brasileira de Zoologia, 3(5), 1985, p. 263. 84 “As meninas” (1656), de Velázquez, é um exemplo dessa representação de personagens da corte como a anã Mari-Barbola, uma alemã que acompanhava a infanta Margarida, e o italiano Nicolau Pertusato que fazia parte do séquito palaciano. 85 DAPPER. Description de l’Afrique, p. 232. 86 DAPPER. Description de l’Afrique, p. 256-257.

100 Capítulo 3 - Oceano Etiópico, elefantes e marfim

homens” são chamados de Bakke-Bakke e que os mesmos tem a reputação de ser grandes caçadores de elefantes.87 Na folha em que foi desenhado o africano albino, nota-se ainda o esboço de um elefante. Provavelmente, as primeiras linhas da imagem do elefante que ilustrou o frontispício do terceiro tomo da obra organizada por Christian Mentzel e que também aparece numa página do referido tomo, mas sem mais detalhes.88 Se Albert Eckhout é o autor da maioria das ilustrações de TRNB, inclusive a imagem do albino, então, ele deve ter visto também o pequeno elefante no Brasil. Uma terceira imagem do espólio nassoviano e que faz alusão ao comércio de marfim é a famosa representação de um guerreiro acã, de autoria de Albert Eckhout e pintado provavelmente no Brasil em 1641. A obra foi realizada no mesmo período que outras três do mesmo autor.89 Trata-se de uma pintura idealizada, pois, até prova contrária, Albert Eckhout nunca esteve na África. Essa tela do artista holandês foi alvo de exegeses eruditas como as de Jill Dias, Luiz Emygdio de Mello e Filho, Paulo Herkenhof e Alberto Costa e Silva. Para não repetir o que já foi apontado pelos especialistas, cabe apenas fazer um adendo. A figura do homem acã representa um aliado do império marítimo holandês. Um guerreiro e/ou comerciante de um estado litorâneo africano. A paisagem costeira evoca o Oceano Etiópico. Na praia, além de conchas, tem-se uma presa de marfim ao pé do guerreiro. A sua coloração corresponde àquela mencionada por Olfert Dapper para as presas dos elefantes de pântanos, ou seja, “dentes azulados, ocos e difíceis de arrancar”.90 No primeiro plano, têm-se ainda o estorno, Ammophila arenaria, e a salsa-da-praia, Ipomea pes-caprae. Esta última planta medra no litoral de regiões tropicais e tem propriedades analgésicas e anti-inflamatórias. Como suas qualidades medicinais faziam parte dos saberes locais, é bem provável que os adventícios se inteirassem de suas proprie-

87 Provavelmente, trata-se de uma alusão aos bakas das florestas da África central, outrora chamados de “pigmeus”. 88 A maioria das imagens dos quatro tomos foi identificada por Christian Mentzel que consultou as obras de Zacharias Wagener e Wilhelm Piso. 89 As telas “Homem negro” (óleo sobre tela, 273 x 167 cm); “Mulher negra” (óleo sobre tela, 282 x 189 cm); “Mestiço” (óleo sobre tela, 274 x 170 cm); e, “Mameluca” (óleo sobre tela, 271 x 170 cm), de A. Eckhout, fazem parte do acervo do Museu Nacional da Dinamarca. 90 DAPPER, Olfert, Description de l’Afrique, p.105.

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dades assim como da salsaparrilha e de outras plantas medicinais.91 Por isso, a salsa-da-praia não é um mero elemento decorativo da paisagem. Por ser drogaria, algumas plantas tropicais tinham mais valor que outras, embora sem equivalência ao valor do marfim e de algumas conchas. Algumas conchas serviam de moeda em vários entrepostos africanos desde a Costa do Ouro até Luanda.92 Conchas que tinham também valor como mercadorias nos Países Baixos conforme acusa a obra pictórica intitulada De handelaar in rariteiten, de Cornelis de Man (1621-1706).93 Aliás, a obra referida do pintor de Delft tem um detalhe que interessa ao presente ensaio. Trata-se de uma espada similar àquela que carrega o “homem negro” de Eckhout.94 Cabe lembrar que o provável ano de execução da tela “homem negro” coincide com o tratado de armistício, firmado entre os Estados Gerais e as coroas ibéricas, e que previa para ambas as partes comércio livre na costa africana. Entretanto, pelo tráfico de ouro, de escravos e de marfim nas mesmas terras se pagaria ao senhor do lugar os mesmos direitos que os portugueses costumavam pagar.95 Ainda em 1641, a WIC logra um tratado com o Reino de Eguafo.96

91 Em seus estudos sobre a botânica brasileira, G. Marcgraf e W. Piso adotaram os nomes

indígenas de plantas e recorreram aos saberes locais sobre as propriedades de ervas, raízes etc. Olfert Dapper informa que os holandeses faziam o comércio da salsaparrilha na costa africana. 92 Sobre os cauris como moeda no comércio neerlandês no século XVII, ver: HOGENDORN, Jan; Johnson, Marion. The Shell Money of the Slave Trade. Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p.37-46. 93 De datação aproximada (1675-1680), a obra “o vendedor de raridades” (64,5 x 51,5 cm) faz parte da coleção do Museu Dapper (Paris). 94 Na referida tela de Cornelis de Man, a espada se encontra pendurada na parede entre um chifre de um cervídeo e dentes de um peixe-serra. Nota-se a folha de ouro no punhal da espada, porém despojada da bainha de couro de arraia, da crina e da concha que ornam a espada do guerreiro acã de Eckhout. 95 BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, p.241. 96 CHOUIN, Gérard. Un royaume africain “au cœur françois” (1637-1688), p. 60-61, 84-85.

102 Capítulo 3 - Oceano Etiópico, elefantes e marfim

Figura 5 – Homem negro, por Albert Eckhout, 1641. Óleo sobre tela. Nationalmuseet Danmark, Copenhague

A figura do guerreiro acã de Eckhout revela a transformação ocorrida na primeira metade do Seiscentos quando os coromantis tornaram-se, de importadores, exportadores de escravaria.97 O guerreiro aliado dos neerlandeses é um daqueles agentes, possivelmente um “príncipe 97 BALLONG-WEN-MEWUDA, J. Bato’ora. São Jorge da Mina (1482-1637), p.477. Para

Alberto Costa e Silva, essa transformação teria ocorrido mais tarde. COSTA E SILVA, Alberto. A Manilha e o Libambo, p.815.

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mercador”, sem os quais a WIC não teria acesso às mercadorias aglutinantes e suas ancilares no comércio atlântico.

Considerações finais Em seu livro O Atlântico negro, Paul Gilroy buscou redefinir a modernidade a partir da diáspora africana. Para o professor do King’s College London já era tempo de “reconstruir a história primordial da modernidade a partir dos pontos de vista dos escravos”.98 Nesse sentido, a sua arqueologia do pensamento de intelectuais da diáspora africana, como Frederick Douglass e W. E. B. Du Bois, faz parte de uma história cultural da diáspora africana que reavalia a relação entre escravidão e modernidade.99 Ainda em seu livro, Paul Gilroy elege o navio como primeiro dos cronótopos modernos para “repensar a modernidade por meio da história do Atlântico negro e da diáspora africana no hemisfério ocidental”.100 Por seu turno, Marcus Rediker definiu o navio negreiro como “uma instituição estruturante do capitalismo atlântico”.101 Acontece que uma variedade enorme de mercadorias circulava pelo Atlântico nessas embarcações durante os primórdios da modernidade.102 O marfim foi uma delas. Recolhido em vários entrepostos como mercadoria ou como butim, o marfim africano partia para vários portos da Europa, do Oriente e das Américas. Na Holanda, o marfim africano se tornou mais comum nas casas de uma burguesia mercantil e financeira em ascensão social. Por séculos restrito quase à arte sacra de esculturas, dípticos e trípticos com cenas bíblicas ou hagiológicas e crucifixos, o marfim parece ter se tornado uma matéria-prima para objetos mais 98 GILROY, Paul. O Atlântico negro, Rio de Janeiro: Editora 34, 2001, p. 125-126. 99 GILROY. O Atlântico negro, p. 109. 100 GILROY. O Atlântico negro, p. 61. 101 REDIKER, Marcus. O navio negreiro. Uma história humana. São Paulo: Companhia das

Letras, 2011, p.350. 102 Com o incremento do comércio transatlântico de escravos, o navio negreiro foi sendo modificado ao longo do século XVIII. Os traficantes de escravos britânicos e americanos usavam embarcações diversas como a chalupa, a escuna, o brigue e o bergantim. Para a evolução do navio negreiro, REDIKER, Marcus. O navio negreiro, p. 50-82.

104 Capítulo 3 - Oceano Etiópico, elefantes e marfim

seculares a partir do século XVII.103 Ao menos é o que se pode inferir pela iconografia neerlandesa. Além de objetos em marfim, outros exotismos aparecem na pintura holandesa do Seiscentos como as conchas de praias tropicais e os pássaros coloridos como as araras do Brasil e os papagaios africanos. A moda de fumar tabaco em longos cachimbos também é recorrente nas telas e tantos outros exotismos da modernidade neerlandesa se encontram nas obras de Rembrandt, Jordaens, Vermeer e outros.104 Também a divulgação de mapas por meio de atlas e estampas permite aproximar o longevo, ao menos no imaginário coletivo dos neerlandeses. Torna-se a figura do exótico algo familiar, inclusive como objeto decorativo conforme o suporte material da imagem. O Oceanus Æthiopicus foi palco à modernidade nos seus primórdios. Nesse mundo atlântico do Seiscentos, J. M. van Nassau foi um prócer da modernidade.105 Não menos importante que o “príncipe humanista e negreiro” e Cavaleiro da Ordem do Elefante, foram os “príncipes mercadores” como Edward Barter e John Kabes.106 Não menos modernos foram ainda africanos como Dom Miguel de Castro, Pedro Sunda e Diego Bemba que circularam naquele espaço economicamente e culturalmente híbrido então chamado Oceano Etiópico. Aliás, a presa de elefante nas mãos de Pedro Sunda representa um dos símbolos dessa modernidade. Mas tornar-se moderno não significa tornar-se ocidental. Ao contrário da perspectiva eurocêntrica de uma teoria clássica da modernização, aportes inovadores de uma global history from below têm mostrado como os subalternos configuram a modernidade. Além de milhões de indivíduos escravizados, outros livres foram partícipes na formação do mundo atlântico. Muitos deles foram caçadores de elefantes, outros 103 Cabe ressaltar que temas profanos de uma literatura romanesca já eram esculpidos em

marfim na Península Ibérica durante a Baixa Idade Média. RANDALL, Richard. Popular Romances carved in ivory. In: BARNET, P. (ed.) Images in Ivory: precious objects of the Gothic Age. Detroit: Princeton University Press, 1997, p. 63-79. 104 Para uma visão geral da pintura holandesa do século XVII: HAAK, B. Das Goldene Zeitalter der holländischen Malerei. Köln: Dumont, 1996. 105 ALENCASTRO, Luiz F. O Trato dos Viventes, p. 211. 106 Alberto da Costa e Silva informa que Edward Barter foi educado na Inglaterra às expensas da Royal African Company e retornou à África onde foi grande comerciante por conta própria. Já John Kabes foi agente de holandeses e ingleses e atuou em Comenda como mercador e chefe político, sendo famoso pela sua habilidade diplomática diante das intrigas de reinos costeiros, estados interioranos e fortes europeus. COSTA E SILVA, Alberto. A Manilha e o Libambo, p. 813.

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comerciantes de presas e alguns escultores de marfim. A propósito, o comércio de presas de elefante continuou na baía do Loango durante os séculos XVIII e XIX. Desenvolveu-se também a arte escultórica do marfim naquela região.107 Por fim, a figura do guerreiro acã de Albert Eckhout personifica uma variante do homem moderno dos meados do século XVII e para quem comércio e guerra são indissociáveis. Por meio de suas armas e da natureza aos seus pés, inclusive uma presa de elefante, logra o comerciante guerreiro ou o guerreiro comerciante participar daquilo que era a modernidade para os coromantis e para outros grupos africanos. Se o tráfico de escravos no Oceano Etiópico impeliu milhares de homens e mulheres a uma condição moderna, suas mercadorias, como o marfim, conchas e panos, ensejaram outras formas de ingresso à modernidade.

107 JANZEN, John M. (ed.). A Carved Loango Tusk: Local Images and Global Connections. Kansas: University of Kansas, 2009.

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Capítulo 4 O marfim na economia colonial portuguesa do Índico no século XVII: interações comerciais e práticas artísticas Jorge Lúzio Com as inúmeras demandas de um comércio transimperial1 entre Europa, África e Ásia, itens de maior peso no mercado do espaço Índico, como especiarias, escravos, metais, têxteis, alimentos e bens materiais passaram a ser mais requisitados em outros mercados, sobretudo o europeu, notavelmente o maior consumidor da produção afro-asiática, e das novas praças comerciais de então na América portuguesa. Um grande volume de importações passou a ser feito pela Coroa lusitana em comercialização de ouro, prata e escravos, mercadorias utilizadas nas trocas entre os polos coloniais nos séculos XVII e XVIII. No sistema financeiro de uma economia-mundo, algumas mercadorias2 desempenharam o papel de estabilizadores econômicos para manter o fluxo mercantil e consequentemente o seu valor de mercado em processos produtivos hierarquizados, ou seja, provenientes das relações intracoloniais3, de espaços considerados periféricos, e torna1 De acordo com Fabio Pesavento, que classifica as redes de comércio interimperiais em três

dimensões básicas de interação de redes: as transimperiais, para transações que envolveram diferentes impérios, podendo ser divididas em extra-imperial, que se dava entre dois impérios, e intraimperial, que operava dentro dos limites de um império. PESAVENTO, Fabio. Para além fronteiras: as redes trans, extra e intraimperiais na segunda metade do século XVIII, Brasil, Portugal e Inglaterra. (parte da tese de doutorado apresentada no PPGE-UFF, Niterói, fevereiro de 2009). 2 Numa perspectiva de economia-mundo, a presa de marfim esteve na cadeia mercantil do sistema colonial, sempre presente nos ciclos de evolução econômica e gerava receita desde a sua aquisição, como matéria-prima, às etapas seguintes, como o escambo ou a manufatura de objetos e produtos, chegando, ao final, aos circuitos comerciais. O mercado de marfim foi sempre amplo, intenso e altamente rentável. Para explicar as presas em “circulação global de mercadorias”, nas palavras de Russel-Wood. Ver o capítulo IV “Fluxo e refluxo de mercadorias” onde o marfim, em seus diferentes estágios de valor econômico, efetivou-se na cadeia-mercantil como dos mais valiosos itens. RUSSEL-WOOD, A.J.R. Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América. (1415-1808). Tradução de Vanda Anastácio. Viseu: Difel, 1998. 3 ANTONY, Philomena Sequeira. The Goa Bahia intra-colonial relations – 1675 / 1825. Tellicherry: Irish, 2004.

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ram-se produtos com alto valor agregado, de natureza artística, religiosa ou pelos exotismos atribuídos na metrópole. Outrossim, a prática de contrabando4 acompanhou as redes comerciais do império português, revelando outros aspectos dessas conjunturas. Nestas duas variáveis, mercadoria bruta e produto manufaturado, enquadrou-se o marfim. Enquanto mercadoria5, a presa de elefante era utilizada como escambo entre caçadores e comerciantes africanos com comerciantes árabes e indianos e, posteriormente, portugueses. Os preços do marfim bruto eram controlados pelos compradores europeus, que os regulavam de acordo com o mercado de escravos6, já que ambos eram extraídos e negociados nos territórios africanos. Na outra condição, como produto manufaturado e fartamente esculpido em joias, artes decorativas, iconografias religiosas, esculturas, utensílios, objetos de luxo e artigos litúrgicos, o marfim transformou-se em arte ebúrnea e em produto de alto valor comercial pelos elevados custos de mercado, pelo refinamento artístico, pelo caráter exótico, pela sofisticação e resistência do material, que possibilitava expressividade e precisões simétricas no entalhe, que muito interessava aos artistas e colecionadores de arte europeus, pelo prestígio e pelo simbolismo de poder. O marfim era assim uma exclusividade das elites civis e religiosas, fator que determinou a valorização das esculturas em marfim ou de objetos artísticos com aplicação, revestimento ou encaixe do cobiçado material no mercado de luxo. Proporcionando elevados lucros aos negociantes portugueses, o marfim no espaço Índico era oriundo dos negócios na costa oriental africana. Desta costa eram transportados pelas rotas que se vinculavam a Cambaia7 e Surat, de acordo com os contratos e demandas no século 4 FERREIRA, Roquinaldo. “’A arte de furtar’”: redes de comércio ilegal no mercado imperial

ultramarino português (c.1690-c. 1750)”. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs). Na trama das redes. Política e Negócios no Império Português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 5 De acordo com estudos de AHMED, Afzal. Indo-portuguese trade in seventeenth century (1600-1663). New Delhi: Gian Publishing House, 1991, p. 150; e PINTO, Celsa. Trade and Finance in Portuguese: a study of the portuguese country trade. 1770-1840. XCHR Studies Series - GOA n. 5 – New Delhi: Concept Publishing Company, 1994. 6 ALPERS, Edward A. Ivory and slaves: changing pattern of international trade in East Central Africa to the later nineteenth century. Berkeley: University of California Press, 1975. 7 Cidade no golfo homônimo, localizada no noroeste indiano, mar Arábico, correspondente à Khambat, próxima à Diu e Damão, no atual estado de Gujarat (Guzerate). Junto à Surat, Bombaim, Chaul, Salcete e Baçaim compunham as chamadas Províncias do Norte.

108 Capítulo 4 - O marfim na economia colonial portuguesa do Índico

XVII.8 Em todo o Guzerate, na Índia, o marfim era bastante procurado em função do grande número de oficinas de artesãos especialistas no entalhe deste material. Estes artesãos locais, indianos que detinham conhecimentos de árabes e hindus, eram considerados os mais hábeis em toda a Índia na produção de arte ebúrnea, artífices da estética Mogol. As presas eram negociadas mediante pagamentos de impostos e muitas vezes levadas para o comércio interno em Goa, sede administrativa do Estado da Índia, no Malabar e no Ceilão, ao sul, outro importante mercado no comércio das presas. Apesar desses portos também terem recebido cargas constantes, revelando que o material era intensamente solicitado em toda a Índia (onde se localizavam dezenas de centros de produção de manufaturados), o marfim foi explorado por todo o território do subcontinente, desde a antiguidade indiana no Vale do Indo, onde foram localizados sinetes de marfim, até o período pré-colonial inaugurado pelos portugueses, o que levou a erboraria ao seu auge na Índia, entre os séculos XVII e XVIII. Como mercadoria, ou objeto artístico entre os bens e riquezas, espólios e exotismos das conquistas europeias, as grandes presas de marfim africano integraram um imaginário orientalista que pode ser visto em obras como as dos pintores holandeses Johannes Blaeu9 (1596-1673) e Jan Luyken10 (1649-1712). Para ilustrar os primeiros avanços do mercantilismo europeu em África, no século XVII, o pintor Blaeu representou uma mulher negra, inspirada nos intercâmbios com a Guiné, um dos mercados fornecedores de marfim mais próximos da Península Ibérica.

8 AHMAD, Afzal. Indo-portuguese trade in seventeenth century (1600-1663). New Delhi: Gian

Publishing House, 1991, p. 150 .

9 KROGT, Peter Van der. Atlas Maior – 1665. Amsterdam: Taschen Store, s/d. p. 467. 10 ADONIAS, Isa. “Um continente chamado América”. In: Mapa: Imagens da Formação

Territorial Brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Emílio Odebrecht, 1993, s/p.

O Marfim no Mundo Moderno

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Figura 1 – “África” por Joahannes Blaeu. In: KROGT, Peter Van der. Atlas Maior – 1665. Amsterdam: Taschen Store, s/d., p. 467

A mulher negra representada carrega uma cornucópia, símbolo de abundância, fartura, fertilidade e riquezas, entre animais silvestres. Associadas ao centro da representação, três crianças seguram uma presa de elefante, ilustrando o grande porte e as dimensões das chamadas “pontas” de marfim. Mais tarde, Luyken, numa narrativa visual sobre as riquezas do Novo Mundo, apresentou a América, sentada com um baú de tesouros e joias sobre o seu colo e uma presa de elefante ao chão entre as suas pernas a indicar que, ainda que não houvesse elefantes em sua fauna sobre o continente, o marfim esteve entre as riquezas que circularam no Novo Mundo. 110 Capítulo 4 - O marfim na economia colonial portuguesa do Índico

Figura 2 – “Um continente chamado América” por Jan Luyken. In: Um continente chamado América. In: ADONIAS, Isa. Mapa: Imagens da Formação Territorial Brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Emílio Odebrecht, 1993, s/p

A ideia está representada nos personagens que interagem com o protagonista, Posseidon, divindade do panteão helênico dos mares e oceanos, elemento simbólico das navegações, e Mercúrio, deus greco-romano, mensageiro dos deuses e patrono do comércio, que diante da América aponta para as suas riquezas. A cena se completa com dois coadjuvantes, um a impor uma tocha sobre o ambiente, com indícios associados à Europa, e o outro, num plano inferior ao fundo do cenário, um homem negro, uma alusão à presença dos africanos escravizados no continente americano. O Marfim no Mundo Moderno

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De acordo com a documentação Ivory works in India through the ages11, um dossiê localizado na Biblioteca do Indian National Museum, em Nova Deli, um estudo amplo decorrente de um projeto de investigação científica que contou com dezenas de pesquisas, registros arqueológicos e fotográficos, publicado em 1967 como suporte metodológico para os acervos das produções artesanais do referido museu, a circulação e a produção artesanal de marfim no subcontinente indiano é milenar e desenvolveu-se ao longo da história da Índia. O estudo é composto de quatro capítulos que tratam das áreas em que vestígios de objetos de marfim foram identificados em seus diferentes períodos e um número aproximado dos centros de produção onde a manufatura tenha ocorrido, além das hipóteses relativas aos prováveis fatores que possam ter contribuído para o volume e a circulação, além das técnicas e das tipologias. Fontes, mapas e uma extensa bibliografia embasam o relatório, que foi reconhecido e publicado pelo governo indiano. Revelou-se uma considerável incidência de polos produtores na costa oeste do subcontinente, correspondentes aos espaços e períodos desde o Vale do Indo e o Império Mogol, à presença lusitana a partir do século XVI, territórios que constituíram, nomeadamente, a Índia portuguesa. Segundo Afzal Ahmad12, a circulação de marfim na Índia no século XVII incluiu muitos negociadores portugueses que transportavam as presas sob o próprio risco, mas sempre a pagar impostos. Dom Estevão de Ataíde, capitão-chefe de Moçambique, teria participado deste comércio, enviando 80 bahars (cerca de 13.304 kg) de marfim para Goa, através de seu representante, em agosto de 1613. Outro contratante citado foi Francisco Dias Barão, que trouxe mais de 6.818 kg de marfim ao alcaide mor de Goa, o funcionário encarregado de importação no porto de acordo com as regras. Antonio Coutinho foi outro importador de marfim durante esse período. Pedro Alves Pereira, um dos homens mais proeminentes em Goa, também esteve entre os negociantes. Ahmad informou ter sido este mercador um dos homens privilegiados de Goa, isento do imposto a ser cobrado sobre as mercadorias importadas por ele. Funcionários da Coroa em Moçambique 11 Ivory works in India through the ages (Up to the end of 19th century). Census of India 1961. Volume I, part VII-A. Craft survey monograph series. Office of the Registrar General – Ministry of Home Affairs. 12 AHMAD. Indo-portuguese trade in seventeenth century (1600-1663), p. 151-152.

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participavam com remessas que ultrapassavam 20.000 kg de presas. Os comerciantes envolvidos no comércio de marfim obtinham a sua carga através de alguns dos seus agentes, que compravam o marfim dos caçadores locais na África oriental. Entre esses intermediários, Sebastian Fernandes foi nomeado como fornecedor para Antonio Coutinho, durante a segunda década do século XVII. Nuno Fernandes e Rui de Melo foram outros intermediários interessados na carga de Alves Pereira, durante a segunda e terceira décadas do mesmo século. Normalmente os comerciantes pagavam parcialmente em ashrafis ou cruzados e outra parte em barras de ouro. O valor pago por 1kg de marfim nesse período correspondia a quatro e meio ashrafis. Dom Ataíde teria pago em ouro um valor de 40 mil ashrafis para uma soma de 56.500 ashrafis aos seus homens e agentes entre 1613 e 1614. Além do pagamento em espécie e em ouro, outra modalidade de pagamento foi por meio da troca de tecidos de cambaia por marfim. Frequentemente, todo o marfim moçambicano, em estado bruto, de Goa era reenviado para Cambaia ou Surat para a compra de têxteis enviados para Melinde através de comerciantes hindus do Gujarat, alimentando a triangulação comercial. A demanda de têxteis de Moçambique e outros países africanos levou a um aumento no volume de importações de marfim para as cidades indianas, o que o tornou, sem dúvidas, um importante meio de troca. O último ano localizado na pesquisa de Ahmad no XVII foi o ano de 1613, embora defenda o autor que a troca têxtil tenha continuado de forma intermitente até a terceira década daquele século. Mais tarde, depois de 1626, o comércio foi realizado apenas em 1644, após uma pausa de cerca de 18 anos. Depois disso, continuou até 1661, com algumas lacunas. O pesquisador concluiu que se tornou evidente que mais de 50% de marfim foi importado exclusivamente de Moçambique, não chegando a um número consensual para as presas de marfim de Mombassa. Frequently, all the ivory coming from Mozambique was re-shipped from Goa to Cambay or Surat for the purchase of textiles which were then sent to Melindi through the Hindu merchants of Cambay, Balaghat or those of Calungo or Comliego. This triangular arrangement saved the merchants O Marfim no Mundo Moderno

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some outgoing duty levied by the Estado da India. (...) It becomes evident that more than 50% of ivory was imported from Mozambique alone. It is not apparent how much was from Mombassa.13

A maior parte do marfim importado das praças africanas era enviada para Cambaia ou Surat em função do monopólio artesanal ali encontrado, o que levou os comerciantes portugueses a tentativas de perseguição e boicote ao monopólio dos artífices, embora sem sucesso, já que os artesãos do Guzerate possuíam uma autonomia dentro da cadeia econômica. Em contrapartida, os baneanes14, especialmente de Diu, fornecedores de produtos estrangeiros naquele mercado, apresentavam suas queixas ao rei de Portugal, bem como ao vice-rei de Goa, sobre as pressões dos mercadores portugueses. Em geral, as presas comercializadas variavam entre 0,80cm e 1,5m com 40kg em média, mas podiam atingir até mais de 2m de comprimento com um peso máximo em torno de 90kg. Os estudos apontam que o peso do marfim na balança comercial da Coroa é significativo e oscilatório, o que determinou uma regulamentação variável, até por ser umas das principais mercadorias no comércio ultramarino. Segundo Osswald: No que respeita ao preço do marfim cujo bar15 de melhor qualidade atinge nas praças africanas e asiáticas o dobro do preço do marfim de pior qualidade, a referência mais antiga encontrada data de 1506 e informa que o marfim de Sofala vale em Cambaia de 80 a 100 miticais o quintal, valor que, com base num câmbio de 445 reis para cada mitical de ouro, perfaz entre 35.600 e 44.500 reis o quintal. Em 1545 o bar de marfim africano é avaliado em 100 cruzados, portanto 40.000 reis, enquanto Diogo do Couto, em meados do mesmo século, atribui à veniaga da mesma origem um preço quatro vezes superior, ou seja, 400 cruzados ou 160.000 reis. Em 1610 a presa do elefante comercializada a partir das ilhas de Angoxa, 13 AHMAD. Indo-portuguese trade in seventeenth century (1600-1663),p. 151-152. 14 Há controvérsias quanto à origem do termo, se jaina ou hindu, mas aplica-se a uma casta de

comerciantes indianos, bastante atuante no comércio do Índico. 15 1 bar equivale a 1,0197 kg/cm².

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na costa leste africana é estimada em 400 cruzados, ou seja, 160.000 reis, valor que sobe para 8.000 pardaus (9240.000 reis) em finais da mesma centúria. Assim, com base nos valores de Diogo do Couto, verifica-se que o preço do marfim já extraído quase duplica entre a segunda metade do séc. XVI e 1610, evolução à qual não será certamente alheia à contracção da importação da veniaga africana, antes referida.16

A circulação de marfim africano no subcontinente indiano também foi descrita nos relatos do Frei Gaspar da Cruz17 e de Linschoten18, “que se referem às esculturas em marfim, feitas na Índia e no Ceilão, que o príncipe Salim da corte Mogol, futuro Jahangir, encomendou aos seus artistas”, conforme Lopes.19 Dados socioeconômicos foram apresentados pelo pesquisador ao explicar que: A semelhança do que verificamos em relação à produção da iconografia cristã na Índia, a partir de outras técnicas e materiais como a pintura, a talha retabular e o mobiliário, a escultura ebúrnea em marfim desencadeou a mobilidade e fixação de centros de produção de forma a dar resposta a uma grande procura pelos missionários e mercadores europeus. Pensamos que inúmeras oficinas estabeleceram‐se em redor das principais igrejas, mosteiros, conventos e portos comerciais servindo‐se, muito provavelmente numa fase inicial, de modelos em escultura e das gravuras, sendo que, gradualmente, criaram o seu próprio reportório iconográfico que permitia até uma configuração relativamente personalizada.20

16 OSSWALD, Maria Cristina T. G. O Bom Pastor na imaginária Indo-portuguesa em marfim. Dissertação de Mestrado em História da Arte pela Universidade do Porto, defendida em agosto de 1996, sob a orientação do Prof. Dr. Agostinho Araújo. p. 50. 17 Tratado das coisas da China por Frei Gaspar da Cruz. Introdução e notas de Rui Manuel Loureiro. Lisboa: Cotovia / CNCDP, 1997. 18 Itinerário. Viagem ou navegação para as Índias Orientais ou Portuguesas por Jan Huygen Van Linschoten. Edição de Pos Arie e Rui Manuel Loureiro. Lisboa: CNCDP, 1998. 19 LOPES, Rui Oliveira. Arte e Alteridade. Confluências da Arte Crista na Índia, na China e no Japão, sec. XVI a XVIII. Doutoramento em Belas‐Artes (Especialidade em Ciencias da Arte). Tese orientada pelo Professor Doutor Fernando Antonio Baptista Pereira. Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas‐Artes, 2011, p 195. 20 LOPES. Arte e Alteridade. Confluências da Arte Crista na Índia, na China e no Japão, sec. XVI a XVIII, p. 195.

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Em sua investigação, Lopes informou que na documentação localizada no Arquivo Histórico de Goa foram encontrados dados do Livro de contas dos Jesuitas de 1684 a 1692, com registros de pagamento para compra de pequenas esculturas de marfim. Os documentos descrevem despesas dos fundos conventuais e das ordens religiosas, com descriminação de valores referidos ao trabalho e aos artífices. Também esclareceu que os custos referentes à produção de esculturas de marfim apontam para despesas de valor semelhante a outros bens de consumo, sejam alimentares ou de uso quotidiano. “Em Junho de 1702 gastaram‐se 39 xerafins em seis meninos de marfim, hua iimagem de Nossa Senhora da Conceicao de marfim q levou o Pe Visitador”.21 Nesse caso os objetos não se enquadram na superfaturação que obteriam se comercializados nos mercados europeus. Outro dado econômico pertinente revela que, em dezembro de 1706, gastaram-se 2 xerafins “De hua imagem de Nossa Senhora de Marfim no seu trono dourado”.22 Para o autor, análises comparativas conferem um valor relativamente baixo das pequenas imagens votivas, e indicam a existência de um amplo mercado indiano com profusão dessas obras, o que incluía a oferta de iconografias cristãs, esculpidas por artistas indianos não cristianizados, apesar das proibições por D. Joao III, de acordo com a sua carta ao padre Miguel Vaz, ao condenar o trabalho de arte cristã por artífices gentios. Ainda sob o contato dos missionários jesuítas com as esculturas de marfim em Goa, Lopes nos diz que: Na documentação dos Jesuitas é recorrente a referência de avultadas quantias dispendida para compra de “figuras em marfim para os premios de Santo Inacio de Loyola”, nunca antes mencionada pela historiografia portuguesa ou estrangeira. Em primeiro lugar, esta documentação coloca a Companhia de Jesus num dos principais utilizadores da imaginaria em marfim, certamente como consequência da estratégia missionária e das inovadoras metodologias de ensino. (...) Mesmo no final do sec. XVIII, os padres da Companhia continuavam a recorrer aos serviços dos artistas indianos, não apenas no 21 LOPES. Arte e Alteridade. Confluências da Arte Crista na Índia, na China e no Japão, sec. XVI a XVIII, p. 196-197. 22 LOPES. Arte e Alteridade. Confluências da Arte Crista na Índia, na China e no Japão, sec. XVI a XVIII, p. 197. Livro de contas dos Jesuítas de 1684 a 1692, Arquivo Histórico de Goa, fl. 11.

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que respeita ao entalhe de figuras em marfim ou pedraria, mas também na policromia de imagens em escultura. Em novembro de 1758 padres jesuítas pagaram 25 xerafins de se pintar as imagens para o presépio e 2 xerafins “do feitio de hua imagem de S. Antonio em marfim”, demonstrando que alguns artistas indianos continuavam a colaborar activamente sob empreitada e orientação iconográfica.23

A utilização, por parte das ordens religiosas a serviço da Coroa portuguesa, da erboraria praticada pelos artesãos do subcontinente, e o subsequente uso dessas imagens como objetos da fé cristã, são expressões do projeto de conquista. O trabalho realizado pelos artesãos com a iconografia cristã circulou tanto nos territórios indianos ocupados por Portugal e seus demais espaços coloniais, quanto pela Europa, e foi útil como mecanismo de propagação da fé. Os artesãos indianos, ao reproduzirem a iconografia religiosa europeia, acabaram por deixar as marcas de sua cultura local nas suas expressões artísticas, marcas que são vestígios da presença da cultura indiana, seus conceitos e paradigmas, quase sempre pautados no sentido do sagrado e da religião, claramente visíveis nos objetos de marfim da Índia. Dessa forma, os princípios da sacralidade, da universalidade e do rito, próprios da cosmovisão e das tradições indianas, encontraram sentido na produção iconográfica. Expressão dessa realidade, a arte se configurou como manifestação da transcendência, uma estética sacra pela sua evolução nos cenários de culto religioso, ambientes de adoração, templos, locais de peregrinação ou edificações religiosas. Legislações, diretrizes e normas das sociedades indianas foram constituídas sobre o pensamento religioso, desenvolvidas nos fundamentos védicos. Os tratados e textos canônicos – sastras e sutras – regularam as produções artísticas e artesanais lentamente consolidadas pelos diversos movimentos religiosos, de tal modo que os elementos culturais não indianos inseridos pelas dinâmicas comerciais e pelas sucessivas invasões exteriores foram absorvidos, digeridos e integrados aos padrões estéticos locais. Essa absorção se deu através das correspondências desenvolvidas por artistas e artesãos em 23 LOPES. Arte e Alteridade. Confluências da Arte Crista na Índia, na China e no Japão, sec. XVI

a XVIII, p. 199, 203. Livro de contas dos Jesuitas de 1684 a 1692, Arquivo Histórico de Goa, fl. 6, fl. 11, fl 118.

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seu profundo conhecimento transmitido de gerações e codificados nas normas e nos ofícios artísticos. Na dimensão universalista, não somente as ideias, sobretudo, os diversos campos do saber artístico, invariavelmente interligados, instauraram toda uma coerência entre sistema musical, dança e teatro, escultura, arquitetura, relevos, artes plásticas, ourivesaria, entre outros, fortalecendo a correlação estética. Os modelos iconográficos cristãos introduzidos pelos europeus não foram reproduzidos tais quais vistos pelos artesãos, mas recriados por terem sido pré-concebidos em suas correspondências com as culturas locais. E por isso mesmo espelharam as dimensões sociais e religiosas do cotidiano hindu que interagia com uma arte em diálogo com o poder, o que nos faz compreender a correlação entre as esculturas indianas e as demais variantes artísticas. Nas iconografias encontram-se congruências que tiveram na dança, na escultura e na arquitetura uma coesão filosófica e visual. Segundo Burckhardt: A escultura hindu assimila, sem esforço e sem perda em sua unidade espiritual, recursos que, em outro contexto, conduziriam ao naturalismo; transmuta a própria natureza da sensualidade, saturando-a de consciência espiritual, que se expressa na tensão plástica das superfícies que, como as de um sino, parecem feitas para produzir um som puro. Esta qualidade do “modelado” é fruto de um método ritual, em que o escultor toca a superfície de seu próprio corpo, da cabeça aos pés, a fim de estender a clareza de sua consciência aos limites extremos da vida psicofísica, que assim serão integrados ao espírito. Por outro lado, a consciência corporal, que se reflete diretamente na escultura de figuras, é transmutada pela dança sagrada. O escultor hindu deve conhecer as regras da dança ritual, pois ela é a primeira das artes figurativas, já que sua matéria é o próprio homem. A escultura está, assim, ligada a duas artes radicalmente diferentes: pelas técnicas artesanais que emprega, relaciona-se com a arquitetura, que é essencialmente estática e transforma o espaço em tempo, absorvendo-o na continuidade do ritmo. Não é, pois, surpreendente que esses dois pólos da arte hindu, a escultura e a dança, tenham dado origem ao que é, talvez, o mais perfeito fruto da arte hindu, a imagem de Shiva Dançante.24 24 BURCKHARDT, Titus. A arte sagrada no Oriente e no Ocidente. Princípios e métodos. São

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Com a chegada dos portugueses no sul da Índia e o contínuo processo da Conquista e das missões religiosas, inicialmente implantadas por franciscanos, seguidos pelos jesuítas, dominicanos e agostinianos ao longo do século XVI, a cultura religiosa europeia, moldada no Maneirismo e no Barroco aos poucos, instalou-se num ambiente cujas formas remetiam à uma complexidade de símbolos e estilos artísticos provenientes das muitas escolas e dinastias do subcontinente indiano. Para Aldrovandi, na presença portuguesa havia: (...) um discurso monumental promovido no campo das artes e da arquitetura – tendo a Goa antiga como seu principal centro de produção, durante os séculos XVI e XVII, e vai inseri-lo em uma perspectiva interpretativa diacrônica do colonialismo e dos processos de mudança cultural ali encontrados. (...) As evidências arqueológicas mais antigas sobre a presença de dinastias regionais nesse território foram confirmadas pela presença de discos de cobre datados do período Maurya, remontando ao século III a.C. Mais tarde a região aparece descrita como um estado semiautônomo chamado Kadamba, durante o império Chalukya, que se estendeu entre 1000 e 1300 d.C. e foi incorporada pelo império Vijayanagar, na metade do século XVI.25

Sobre os artesãos indianos que produziram a imaginária cristã na Índia portuguesa, o pesquisador português Francisco Paulino26 informa que a família Zo, por várias gerações, teve em seus membros artífices de esculturas religiosas católicas, inclusive em marfim. Valmam Samarth K. Zo, em depoimento ao pesquisador, citou a interação dos artesãos locais com artesãos portugueses, relatando o seu contato em Portugal com o estúdio de Anjos Teixeira27 numa experiência de recíPaulo: Attar, 2004, p 69-70. 25 ALDROVANDI, Cibele. Monumentalidade e hibridismo indo-português: discursos visuais talhados em pedra, madeira e marfim. Via Atlântica. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências humanas. Universidade de São Paulo – n. 19 (2011) – São Paulo: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2011. p. 150, 152. 26 PAULINO, Francisco Faria. Portuguese expansion overseas and the art of ivory. National Comission for the commemoration of the Portuguese discoveries. Lisbon: Calouste Gulbenkian Foundation, 1991, p. 30 27 Artur Gaspar dos Anjos Teixeira (1880 - 1935) foi um célebre escultor português. Reconhecido e premiado na França com um monumento em honra a Camões, teve seu trabalho

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proca aprendizagem técnica tal qual fizeram os seus antepassados. Da mesma linhagem familiar, Noronha28 apresentou Bichon Zo, um santeiro29da localidade de Chimbel, no norte de Goa, autor de uma escultura de São Francisco Xavier em tamanho natural, que graciosamente ornamenta a entrada da Basílica de Bom Jesus, na Velha Goa. De sua autoria também seriam talhas e esculturas de igrejas goesas do século XVII. Do mesmo clã, o trabalho de Bikhu Xanum Zo – do século XIX, nas imagens religiosas da Capela de Nossa Senhora da Conceição, em Chimbel, indicou a contínua atuação da família Zo na arte das esculturas devocionais, assim como em vultos históricos, como é o caso da estátua de Afonso de Albuquerque, datada de 1515 e localizada no Museu Arqueológico na Velha Goa, cuja restauração em 1840 foi realizada por Raghunath Zo. Claro está que a tradição oral foi o veículo de transmissão das faturas escultóricas, por sua vez fundamentadas nos conhecimentos milenares dos cânones hindus, além de contributos da Arte Mogol. Entre os ourives consta Roulu Xette30, de Caraim, na ilha de Chorão, em Goa. Bastante requisitado por Dom Manuel I, Roulu Xette esteve em Lisboa de 1518 a 1520, onde teria criado artigos em filigranas de ouro e artefatos religiosos. Uma outra tradição na arte da escultura foi mantida pelos gudigars, segundo Hilda Moreira Frias: (...) gudigars, derivado da palavra Gudi [templo], onde eram empregues devido ao grande talento para a arte de esculpir; quando os portugueses iniciaram as construções de igrejas e mosteiros recorreram à arte destes homens e também dos ajârimar [carpinteiros]. As obras eram executadas por gerações de artífices numa hereditariedade multissecular, num só ofício, daí resultando grupos profissionais que passaram a castas como Kumars [oleiros], shetties [ourives], ou mahars [cesteiros]. Os zo’s, santeiros ou os que fazem imagens em caracterizado por um realismo peculiar sob as influências de François Rude e Auguste Rodin. 28 NORONHA, Percival. Goan Artisans. In. SALGAOCAR, Dattaraj V., SA, Mario Cabral e., RODRICKS, Wendell. Vasco da Gama - Goa: Design Temple Pvt Ltd. e Pragati Offset Pvt Ltd, 2008. 29 A expressão usada em português pelo autor é traduzida por este como “makers of saints”, e traz o mesmo sentido empregado para os escultores de arte colonial na América portuguesa. 30 Citado na documentação que trata da JUNTA DA REAL FAZENDA DO ESTADO DA ÍNDIA LIVRO 501 (1770-1779).

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madeira ou marfim, e os carpinteiros, possuíam um elevado grau de perfeição, como se comprova por carta de Afonso de Albuquerque a D. Manuel: “... os calafates e carpinteiros (...) em Goa pode Vossa Alteza excusar os desses Reynos, porque os há mais e melhores que os que ai andam...”. A antiga cidade de Goa não era, portanto, apenas um centro comercial importantíssimo, mas também um núcleo de criação artística.31

As pujantes redes de comércio do Índico, de intenso tráfego desde a antiguidade, levaram os portugueses à Índia. Em sentido inverso escoaram para a Europa e à América uma incalculável soma de mercadorias e manufaturados, conduzidos pelo mercantilismo europeu e pelas ordens religiosas do projeto da conquista. Claro está que o acúmulo de imagens e representações em esculturas, gravuras, ilustração de objetos e cartografias não somente inundou o Ocidente com figurações e símbolos do sul da Ásia, como proliferou na mentalidade colonial europeia estereótipos que foram de encontro à alteridade. A dimensão econômica da circulação cultural de marfim, antes da concentração nas trocas dos portos e centros de comércio, teve nas oficinas de artesãos, conhecedores das normas e cânones da produção artística local, o cerne que integrou conhecimento artístico, produção artesanal e consumo, em meio a uma tradição milenar de representações e visualidade. Importante ressaltar, sob o viés anticolonial, que o termo “indo-português”, criado por John Charles Robinson (1824-1913) em sua introdução ao “Catalogue of the special loan exhibition of spanish and portuguese ornamental art”32, no século XIX, frequentemente também aplicado à erboraria, já não mais se sustenta, quando posicionado diante de uma abordagem metodológica e multidisciplinar que o marfim, como 31 FRIAS, Hilda Moreira de. Goa: a arte dos púlpitos. Lisboa: Livros Horizonte, 2006, p. 53. 32 Concebido numa perspectiva nacionalista, o conceito de “indo-português” traz em si limitações

largamente discutidas, como já expôs Madalena de Cagigal e Silva, autora de “ A Arte Indoportuguesa”. A autora viu no termo “...mais ou menos hesitações e restricções, tanto objetos de arte portuguesa com influência indiana, como obras de arte indiana com influência portuguesa” (Silva, 1966). Em seu artigo sobre o discurso colonial no contexto das artes, Carla Alferes Pinto esclareceu sobre a recorrência de se atribuir o uso do termo ao jornalista português, de notável erudição, Francisco Marques de Sousa Viterbo que, apesar da crítica, também o utilizou em “Notas ao Catálogo da Exposição Retrospetiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola” em 1882 (Viterbo, 1883). Ver: PINTO, Carla Alferes. “A arte ao serviço do império e das colónias: o contributo de alguns programas expositivos e museológicos para o discurso de legitimação territorial”. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017.

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categoria de pesquisa, exige. As fontes históricas e arqueológicas que mapeiam, desde a antiguidade védica e ao longo do período bramânico, a circulação de presas e a localização de centros de produção de manufaturados em todo o subcontinente indiano, amplamente consolidado antes da chegada dos europeus, têm apontado para novas problematizações. A arte ebúrnea em suas múltiplas expressões, como iconografia sacra cristã, como produção artesanal das religiosidades hindus, como arte decorativa, joalheria ou objetos de luxo, foi uma apropriação da economia colonial. É possível compreendê-la, em sua classificação, como Marfins da Índia, na premissa da descolonização da História Social da Arte e no aprofundamento dos debates promovidos pela História Moderna em seus imprescindíveis diálogos com a História da Ásia e, no viés proposto, com o passado da própria Índia. Enfim, pode-se concluir, de acordo com os vários estudos desenvolvidos por Manoel Lobato33, que, ao citar, já na segunda metade do século XVI, sobre o capitão de Moçambique que enviava anualmente um navio com cargas de marfim para Chaul e de lá comercializado com outras praças, como Sinde e Cochim, a mercadoria, junto aos têxteis, se tornou a principal fonte de receita do Estado da Índia, chegando a valer seis vezes mais do que o seu valor na costa oriental africana. Lobato também apresentou uma estimativa de 40 a 50 mil presas que eram exportadas anualmente de África para a Índia no final do século XVI, que, por sua vez, escoava para o sudeste asiático e para a China, que pagava aos comerciantes indianos e portugueses elevados preços, embora as cotações das presas fossem bastante vulneráveis na economia colonial. As reexportações internas que haviam na Índia, como entre Goa, Diu e o Guzerate num cenário que do século XVII avançou para o século XVIII, marcado pela presença permanente das presas nos entrepostos de portugueses e holandeses, demonstra a força e a complexidade desse comércio, a suscitar nos historiadores novas demandas e problematizações sobre o marfim nos estudos afro-asiáticos e nas articulações com os demais campos de pesquisa.

33 Ver: LOBATO, Manoel. “Relações comerciais entre a Índia e a costa africana nos séculos

XVI e XVII. O papel do Guzerate no comércio de Moçambique”, in Actas do VII Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa, Mare Liberum, n. 9, jul. 1995, p. 157-173.

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Capítulo 5 O comércio de marfim no Presídio de Cambambe, Angola: primeiras décadas do século XIX Carolina Perpétuo Corrêa O artigo trata do comércio de marfim no Presídio de Cambambe durante as duas primeiras décadas do século XIX. Cambambe integrava uma importante rota comercial, que se iniciava em Luanda e estendia-se em direção aos sertões, passando pelos presídios de Muxima e Massangano, erigidos ao longo do rio Cuanza. Eltis e Jennings nos lembram de que, embora a historiografia sobre a participação da África pré-colonial no comércio atlântico tenha sido dominada por estudos sobre o comércio de escravos, a prevalência desse comércio teve vida curta: antes de 1690 e depois de 1840, o valor das exportações de escravos não excedia o valor das exportações de outros produtos.1 O principal entrave às exportações de produtos agrícolas, extrativistas ou manufaturados africanos era o elevado custo de seu transporte até o litoral, onde seriam embarcados para a Europa ou para as Américas, já que, com o passar do tempo, as suas fontes foram sendo empurradas cada vez mais em direção ao interior longínquo.2 De acordo com Miller, na África Centro-Ocidental, os únicos produtos locais que podiam ser exportados com vantagem, compensando o custo do transporte, eram a cera e o marfim.3 Do interior, pelo curso do Cuanza, chegava a Luanda um volume significativo de marfim até o final do século XVII, quando as regiões que o forneciam não distavam tanto do litoral. Essas exportações de marfim foram rareando a partir de então, o afastamento progressivo de seus fornecedores e o encarecimento de seu transporte, mantiveram baixas as exportações durante todo o século XVIII e o início do século XIX.4 1 ELTIS, David; JENNINGS, Lawrence C. Trade between Western Africa and the Atlantic

World in the Pre-Colonial Era. The American Historical Review, oct. 1988, vol. 93, n. 4, p. 947. 2 ELTIS, David; JENNINGS, Lawrence C. Trade between Western Africa and the Atlantic World, p. 947; MILLER, Joseph. Way of death: merchant capitalism and the Angola slave trade, 1730-1830. Madison: University of Wisconsin Press, 1988, p. 770, p. 109. 3 MILLER. Way of death, p. 110, 645. 4 MILLER. Way of death, p. 109-112.

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Segundo Dias e Miller, foi somente na década de 1830, na esteira na abolição oficial do comércio de escravos e do monopólio real do marfim, que as exportações desse produto pelos canais oficiais em Luanda e em Benguela deslancharam. Entre as décadas de 1840 e 1860, o preço do marfim conheceu rápida elevação no porto de Luanda, conjugada com grande aumento no volume exportado. Em meados do século, após o fechamento definitivo do comércio de escravos com o Brasil, o marfim se tornaria o produto de exportação mais importante de Angola, tanto em termos de valor quanto de volume, embora o comércio angolano de marfim tenha permanecido muito aquém do praticado na África Oriental.5 As flutuações do comércio de marfim na segunda metade do século XIX são bem conhecidas.6 Não se pode dizer o mesmo, no entanto, a respeito das primeiras décadas do Oitocentos. Este artigo tem o objetivo modesto de ajudar a preencher parte desta lacuna, especialmente no que diz respeito à rota comercial do rio Cuanza, que ligava os sertões mais ao sul, via Bié, e mais ao leste, via Pungo Andongo, a Luanda.7 Apesar da abundância de fontes quantificáveis existentes para os presídios e distritos do Reino de Angola8, há poucas análises baseadas em séries relativamente longas de dados, que tragam informação detalhada sobre o volume dos intercâmbios ocorridos nos sertões envolvendo commodities. Estudos de caráter mais amplo9, muitos deles já clássicos, desenham um panorama das exportações de produtos lícitos em geral, e do marfim em particular, mas não permitem conhecer as nuances geográficas e temporais das transações envolvendo tais mercadorias.

5 DIAS, Jill. Angola. In: ALEXANDRE, Valentim e DIAS, Jill (Coord O império africano -

1825-1890. Lisboa: Editorial Estampa, 1998 (Nova história da expansão portuguesa, volume X), p. 382; MILLER, Joseph. Way of death, p. 645. 6 Ver o gráfico que traz os valores em réis das exportações de café, cera, marfim e borracha de Luanda, entre 1858 e 1896 In: DIAS. Angola, p. 380. 7 Sobre a rota comercial do Cuanza, ver DIAS. Angola, p. 364. 8 Ver CURTO, José C. A collecção de manuscritos angolanos no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa: para um guia de trabalho. Revista Internacional de Estudos Africanos. Nºs 6 e 7, Janeiro-Dezembro, 1987, p. 275-306. 9 Ver, por exemplo: DIAS. Angola; FERREIRA, Roquinaldo. Dos sertões ao Atlântico: Tráfico Ilegal de Escravos e Comércio Lícito em Angola, 1830 – 1860. UFRJ, Dissertação de mestrado, 1997; FERREIRA, Roquinaldo. Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola e Brazil during the Era of the Slave Trade. Cambridge University Press, 2012; HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos: Caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental (entre 1850 e 1890). Lisboa: Caminho, 2004 (Coleção de Estudos Africanos); MILLER, Joseph. Way of deathp...

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Tais análises podem ser enriquecidas com pesquisas como esta, que lidam com uma região particular, que integrava uma rota comercial importante, com base em mapas estatísticos e registros alfandegários, fontes de caráter seriado, que cobrem um intervalo de duas décadas. Como afirmaram Teodoro de Matos e Vos10, Angola é um dos poucos países da África subsaariana para o qual o passado pré-colonial está bem documentado. Encontramos 12 mapas estatísticos11 produzidos para os presídios e distritos do Reino de Angola, bem como de registros alfan10 TEODORO DE MATOS, Paulo; VOS, Jelmer. Demografia e relações de trabalho em

Angola c.1800: um ensaio metodológico. Diálogos - Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, vol. 17, n. 3, set.-dez., 2013, p. 1. 11 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Coleção: IHGB. Documento DA 2.4.8. 1º de janeiro de 1800. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle no anno proximo passado de 1799, e ao em que fica no 1º de janeiro do corrente anno feito segundo as ordens, e o modello dado pello Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Dom Miguel Antonio de Mello, Governador e Capitam General do Mar, Terra e Reino de Angola, e suas conquistas. Arquivo Histórico Ultramarino. Fundo: Conselho Ultramarino. Série: Angola. Caixa: 112, Documento 47. 1º de janeiro de 1805. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle no anno proximo passado de 1804 e ao que fica no 1º de janeiro do corrente anno; Caixa: 118, Documento 21. [Abril] de 1807. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle do primeiro de janeiro athe 25 de abril do corrente anno; Caixa: 122, Documento 32. 1º de janeiro de 1811. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle no anno próximo passado de 1810, e ao em que fica no 1º de janeiro do corrente, feito segundo as ordens e o modello aqui estabelecido; Caixa: 124, Documento 9. 1º de janeiro de 1812. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle no anno próximo passado de 1811 e ao que fica no 1º de janeiro do corrente anno; Caixa: 127, Documento 1. 1º de janeiro de 1813. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle no anno próximo passado de 1812 e ao em que fica no 1º de janeiro do corrente, feito segundo as ordens e modello aqui estabelecido; Caixa: 128, Documento 26. 1º de janeiro 1814. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle no anno próximo passado de 1813, e ao em que fica no 1º de janeiro do corrente, feito segundo as ordens, e modello aqui estabelecidos; Caixa: 130, Documento 30. 1º de janeiro de 1815. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle no anno próximo passado de 1814, e ao em que fica no 1º de janeiro do corrente, feito segundo as ordens, e modello aqui estabelecido; Caixa: 131, Documento 14. 1º de janeiro de 1816. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle no anno próximo passado de 1815, e ao em que fica no 1º de janeiro do corrente, feita segundo as ordens, e modello aqui estabelecido; Caixa: 132, Documento 32. 1º de janeiro de 1817. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle no anno próximo passado de 1816, e ao em que fica no 1º de janeiro do corrente, feito segundo as ordens, e modello aqui estabelecido; Caixa: 134, Documento 37. 1º de janeiro de 1818. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle no anno próximo passado de 1817, e ao em que fica no 1º de janeiro do corrente, feito segundo as ordens, e modello aqui estabelecido; Caixa: 136, Documento 19. 1º de janeiro de 1819. Mappa do Prezidio de Cambambe relativo ao estado delle no anno próximo passado de 1818, e ao em que fica no 1º de janeiro do corrente, feito na forma do modello aqui estabelecido. Os mapas geralmente eram datados do início do mês de janeiro de cada ano e traziam informações referentes ao ano anterior. Optamos por aludir a cada mapa fazendo referência ao ano a que dizem respeito as informações e não ao ano de elaboração. Assim, os “Mapas de 1804” estão datados de janeiro de 1805, embora tragam dados pertinentes a 1804.

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degários relativos aos anos de 1804, 1812 e 181312, documentação sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, e do Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. Inicialmente, procuramos tecer um panorama da geografia e da organização político-administrativa do Reino de Angola, de forma a contextualizar a região objeto do artigo. Na sequência, abordamos o funcionamento do comércio em Angola no início do Oitocentos. Em seguida, refletimos sobre o contexto em que foram produzidos os mapas estatísticos e alfandegários, que formam o principal conjunto de fontes de que nos utilizamos. Finalmente, após uma breve descrição do Presídio de Cambambe, tratamos do volume do marfim ali comercializado, comparando as suas flutuações com as do comércio de escravos conduzido naquele presídio, mas também com as variações das próprias exportações de marfim de Angola a partir do porto de Luanda.

12 AHU, CU, Angola, Cx. 112, doc. 47. 31 de janeiro de 1805. Mappa demonstrativo da quantidade dos escravos exportados de Angola em todo anno de 1804, e portos para onde seguirão com a declaração de seus custos, pretos a bordo dos navios para seguirem viagem, segundo as facturas apresentadas na Meza Grande da Alfandega, pelos negociantes da Praça e Mappa em que se mostra a qualidade, quantidade, e importância do marfim exportado desta Cidade de São Paulo da Assumpção Reino de Angola, em todo anno de 1804, com declaração do preço, por que foi o dito marfim comprado, por conta da Fazenda Real deste dito Reyno; Cx. 127, doc. 1. 31 de janeiro de 1813. Mappa demonstrativo da quantidade de escravos exportados de Angola, em todo anno de 1812, e portos para onde seguirão com declaração de seus custos, [pretos] á bordo dos navios, segundo as facturas aprezentadas na Meza Grande da Alfandega, pelos negociantes da praça e Mappa, em que se mostra a qualidade e quantidade, e importância do marfim exportado desta Cidade de São Paulo d’Assumpção Reino de Angola em todo anno de 1812, com declaração do preço por que foi o dito marfim comprado por conta da Fazenda Real deste Reino; Cx. 128, doc. 26. 31 de janeiro de 1814. Mappa demonstractivo da quantidade de escravos exportados de Angola, em todo o anno de 1813, e portos para onde seguião com declaração de seus custos, [pretos] a bordo dos navios, segundo as facturas aprezentadas na Meza Grande da Alfandega, pelos Negociantes da Praça e Mappa em que se mostra, a qualidade, quantidade, e importância do marfim exportado desta Cidade de São Paulo da Assumpção Reino de Angola em todo o anno de 1813, com declaração dos preços por que foi o dito marfim comprado por conta da Fazenda Real deste Reino.

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O Reino de Angola e os presídios e distritos de seus sertões No início do século XVII, os ambundos viviam em um reino vigoroso e em expansão, o Ndongo, cujo monarca ostentava o título de Ngola a Kiluanje. Tal situação foi alterada abruptamente pela chegada simultânea ao Cuanza de dois grupos de estrangeiros, os imbangalas, vindos do sul, e os portugueses, vindos do mar. A aliança entre esses recém-chegados enfraqueceu o Ngola a kiluanje e os diversos chefes a ele subordinados, criando em seu lugar um novo conjunto de Estados, “um europeu ‘o Reino de Angola’ e outros africanos, assentes na exportação de escravos da África para as Américas”.13 O termo “Reino de Angola” designava, portanto, os territórios sobre os quais os portugueses clamavam soberania, que, reunidos, formavam um entre os vários Estados existentes na região. Preferimos, todavia, pensá-lo como um arquipélago14, um conjunto de várias ilhas semiautônomas, mas interligadas pelo comércio atlântico e pela presença de instituições militares e administrativas de origem lusa. Lisboa apenas exercia uma influência bastante frouxa em regiões específicas. Na parcela do território sobre a qual os portugueses tinham algum controle, uma elite militar independente de origem afro-europeia tinha ascendência sobre algumas centenas de chefes locais, os sobas avassalados, que deviam aos portugueses o dízimo, além de terem a obrigação de fornecer carregadores para caravanas de comércio e soldados para campanhas militares. Fora das fronteiras da área parcialmente controlada pelos portugueses, viviam outros povos falantes do quimbundo, liderados por chefes locais autônomos, que os funcionários régios denominavam “o gentio”. A muitos desses domínios os portugueses não tinham acesso e, frequentemente, nem mesmo direito de passagem.15 13 MILLER, Joseph C. Poder político e parentesco: os antigos estados mbundu em Angola. Luanda: Arquivo Histórico Nacional/Ministério da Cultura, 1995, p. 175. 14 Vários são os autores que atribuem aos sertões de Angola uma qualidade insular, seja no sentido político, demográfico ou cultural. Ver: DIAS, Jill. Angola, p. 324; FERREIRA, Roquinaldo. Ilhas crioulas: o significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica. Revista de História. 155, 2006/2, 17-41. 15 MILLER. Way of death, p. 34.

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O Reino de Angola era subdividido em distritos, a maioria dos quais tinha como capital uma vila fortificada, o presídio, que contava com guarnição militar. Em alguns distritos não havia presídio, como era o caso, em 1804, de Icolo, Dande e Golungo. No verso do Mapa do Distrito de Golungo, havia uma observação esclarecedora: “Despezas Civil Militar as não há da Obrigação Real, porque nem Tropa há por ser Destricto, e por conseq.a não há Feitoria”.16 O que caracterizava o presídio era, portanto, a existência de uma tropa e de uma feitoria. Explica Joaquim Romero Magalhães17 que, nas conquistas, onde o que importava era o governo militar, eram fundados presídios e não municípios. O transplante dos municípios e as conquistas consistiam em uma adaptação das instituições de governo típicas da península ibérica aos novos territórios. Era uma das soluções encontradas para dominar territórios muitos vastos com poucos homens, transferindo poderes e competências do centro para as periferias. Municípios, com seus concelhos, eram fundados quando surgia a “necessidade de melhor enquadrar as gentes em termos jurídicos” e contrabalançar o poder dos militares no topo da hierarquia, pondo limites à atuação dos capitães. Em suma, uma povoação suficientemente populosa, onde a pluralidade de interesses em jogo criava a necessidade da instituição de um governo civil e de um conselho, tornava-se uma municipalidade. As localidades essencialmente militares, onde não se julgava necessário criar um governo civil, eram presídios e sua mais alta autoridade era um militar. De acordo com Carlos Couto18, a conquista e a ocupação dos sertões de Angola eram norteadas pela procura de minas de prata, pela difusão do Cristianismo e pelo comércio, inclusive de escravos. A primeira povoação fundada foi a Vila de S. Paulo d’Assunção, que futuramente se tornaria a cidade de Luanda em 1576. A crença de que as minas de prata se localizavam na região de Cambambe fez com que o rio Cuanza se tornasse a linha de penetração para o interior. Foram, assim, a partir dos finais do século XVI, sendo erigidos presídios nas margens desse curso d’água. Em 1583, foi fundado o Presídio de Massangano. Em 1599, na 16 AHU, CCU, Angola, Cx. 112, doc. 47. 17 MAGALHÃES, Joaquim Romero. Concelhos e organização municipal na época moderna:

Miunças 1. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p. 75. 18 COUTO, Carlos. Os Capitães Mores em Angola no Século XVIII. Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola, 1972, p. 65-66.

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margem esquerda, foi erigido o Presídio de Muxima. Em 1604, ocorreu a fundação do Presídio de Cambambe, na margem direita, por Manuel Cerveira Pereira. Fora da linha do Cuanza, e mais a leste, foi construído, em 1614, o Presídio de Ambaca, na margem esquerda do Rio Lucala, pelo governador Bento Banha Cardoso, e em 1671, o Presídio de Pedras de Pungo Andongo, por Luís Lopes de Sequeira, no governo de Francisco de Távora. Ao sul, surgiu o Presídio de Benguela em 1617, fundado por Manoel Cerveira Pereira, e, em 1682, o Presídio de Caconda, por ordem do governador João da Silva e Sousa. Em 1759, ocorreu a fundação de São José do Encoge, pelo governador António de Vasconcelos, para proteger o comércio e defender a fronteira norte da província e, em 1769, o Presídio de Novo Redondo, no governo de Sousa Coutinho, na foz do Rio Gunza, para obstar os contrabandos e a pirataria estrangeira no litoral e facilitar a comunicação entre Angola e Benguela.19 Por volta de 1820, havia em Angola três municipalidades, as cidades de Luanda e de Benguela e a vila de Massangano. De acordo com Jill Dias, em meados do século XIX existiam nove presídios, Ambaca (até 1839) ou Duque de Bragrança (a partir de 1839), Cambambe, Massangano, Muxima, Novo Redondo, Pungo Andongo, São José do Encoje, Benguela e Caconda, e 13 distritos, Barra do Bengo, Barra do Dande, Barra do Calumbo, Dande, Icolo e Bengo, Zenza e Quilengues, Dembos, Golungo, Dombe Grande, Bailundo, Bié, Huambo e Quilengues de Benguela.20 No período enfocado por este artigo, o Cuanza, que era navegável por cerca de 60 léguas e distava outras 14 de Luanda21, preservava sua importância para o comércio nos sertões. As fazendas22 importadas 19 COUTO. Os Capitães Mores em Angola no Século XVIII, p. 103-105. 20 DIAS. Angola, p. 357. 21 CURTO, D. R. Do Reino à África - formas dos projetos coloniais para Angola em inícios

do século XVII. In: FURTADO, Júnia Ferreira. Sons, formas, cores e movimentos na modernidade Atlântica: Europa, Américas e África. Belo Horizonte: Annablume, 2008, p. 191-195. 22 De acordo com o dicionário de Antonio Moraes e Silva, entre os vários significados do vocábulo “fazenda”, está o de “bens que andão em Commercio”. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813, vol. 2, p. 16. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017. De fato,“fazendas” é o termo usado correntemente na documentação da época para designar os produtos importados que eram trocados por escravos e por produtos agrícolas, extrativistas e manufaturados. Normalmente, compunham-se de tecidos, armas de fogo, pólvora, facas e bebidas alcoólicas, como aguardente e

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entradas na capital eram redistribuídas para as populações do planalto central, passando por Pungo Andongo e Bié, entreposto localizado bem mais ao sul, nas proximidades das nascentes do Cuanza. Os escravos obtidos a partir de Bié chegavam a Luanda através do Pungo Andongo, Cambambe e Massangano. Nas décadas de 1810 e de 1820, o comércio trans-Cuanza era, de acordo com Jill Dias, a principal fonte dos escravos exportados de Luanda.23 Veremos mais adiante se tal rota comercial também era importante para o comércio de marfim. O comando dos presídios ficava a cargo de um capitão-mor, ou, na sua ausência, de um regente, um militar de patente inferior. O comandante, que somava às suas funções militares atribuições administrativas e jurisdicionais, era assistido por um escrivão e um almoxarife. Devia haver também um presbítero, embora ele estivesse ausente em muitos dos presídios que estudamos. Vansina salienta que “quase todos ‘os capitães-mores e os regentes’, bem como os soldados sob seu comando, eram luso-africanos nascidos no local”.24 Também Carvalho25 mostra que as tropas eram constituídas, em sua quase totalidade, por africanos que ostentavam patentes portuguesas. Ajunto que, nos mapas, quase todos eram classificados como pretos ou mulatos. Em Ambaca, por exemplo, de acordo com os mapas para os anos de 1799, 1804 e de 1810 a 181826, a guarnição militar era composta por cerca de uma centena de homens. Destes, em torno de 90% eram sempre descritos como “pretos”, sendo os 10% restantes descritos de forma equilibrada como brancos ou mulatos. Sendo a qualidade de cor das pessoas, conforme mostraram Carvalho e vinho, entre outros itens. De acordo com Miller, têxteis, bebida alcóolicas e armas representavam ¾ do valor total das fazendas. Ver MILLER. Way of death, p. 71. 23 DIAS. Angola, p. 364. 24 VANSINA, Jan. Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760–1845. Journal of African History 46(1), 2005, p. 2. Tradução nossa: “nearly all of these, as well as their soldiers, were locally born Luso-Africans or Africans”. 25 CARVALHO, Ariane; GUEDES, Roberto. Piedade, sobas e homens de cores honestas nas Notícias do Presídio de Massangano, 1797. In: SCOTT, Ana Silvia Volpi; MACHADO, Cacilda; FLECK, Eliane Cristina Deckmann; BERUTE, Gabriel Santos. (Orgs.). Mobilidade social e formação de hierarquias: subsídios para a história da população. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2014, vol. 3, p. 129-171. 26 AHU, CU, Angola, Cx. 112, doc. 47; Cx. 122, doc. 32; Cx. 124, doc. 9; Cx. 127, doc. 1; Cx. 128, doc. 26; Cx. 130, doc. 30; Cx. 131, doc. 14; Cx. 132, doc. 32; Cx. 134, doc. 37; e Cx. 136, doc. 19.

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Guedes27, uma descrição do lugar social que ocupavam, é bem plausível que muitos dos militares descritos como brancos ou mulatos fossem negros africanos que haviam ascendido socialmente e incorporado traços da cultura lusófona. Segundo Vansina, separada territorialmente do presídio havia uma feira, onde ocorriam as transações comerciais. As feiras faziam parte das tradições comerciais centro-africanas desde muito antes do contato com os europeus. A inovação introduzida pelos portugueses foi a tentativa de institucionalizá-las, de modo a exercer maior controle sobre elas. Feirante legitimado era o nome que se dava ao comerciante que obtinha uma licença régia para negociar em determinada feira.28 Geralmente, o feirante era um morador, ou seja, um indivíduo que não estava sujeito à tutela coletiva dos sobas e habitava as terras sob a proteção das fortalezas.29 As firmas estabelecidas nas cidades costeiras de Luanda e Benguela praticamente não tinham contato com os africanos do interior. Essa etapa do comércio atlântico era inteiramente conduzida por comerciantes africanos ou luso-africanos aos quais os negociantes litorâneos confiavam as fazendas a crédito.30 Eram esses comerciantes que organizavam as caravanas de carregadores que levavam, a pé, os produtos importados aos presídios e feiras dos sertões, “sucursais no hinterland”31, onde, entrando em contato com sobas e outros chefes locais, os distribuíam, sempre a crédito, obtendo em retorno escravos e produtos como cera e marfim, posteriormente conduzidos até a costa, fechando o círculo.32 Esses comerciantes itinerantes que atuavam nos sertões supervisionando o transporte e a venda de produtos importados eram conhecidos como sertanejos. Eram em grande parte degredados, ex-marinheiros e aventureiros, brasileiros e portugueses, mas também mulatos e negros nativos. Alguns tinham relações comerciais diretas com financiadores no Brasil e em Portugal. A maior parte dos sertanejos brasileiros e portugueses acabava aculturada, muitas vezes casando-se com mulheres negras 27 28 29 30 31 32

CARVALHO; GUEDES. Piedade, sobas e homens de cores honestas, p. 150. VANSINA. Ambaca society and the slave trade, p. 2. DIAS. Angola, p. 359. DIAS. Angola, p. 383. HEINTZE. Pioneiros africanos, p. 62. MILLER. Way of death, p. 31.

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nos sertões. Assim, estabeleciam ligações com comunidades africanas que eram úteis para o comércio. A capacidade dos sertanejos de comercializar nos sertões dependia da sua capacidade de estabelecer relações próximas com os capitães-mores e com os sobas.33 De acordo com Ferreira, leis datando do começo do século XVII proibiam a presença de comerciantes brancos e mulatos vindos de fora nos sertões. Desvinculados da complexa política local, que envolvia acordos com capitães-mores, sobas e moradores dos presídios, metiam-se muitas vezes em aventuras que produziam muitos escravos de imediato, mas que acabavam por gerar conflitos, desestabilizando os fluxos comerciais. A Coroa pôs fim à proibição da entrada nos sertões de comerciantes brancos e mulatos em 1758, momento a partir do qual a administração lusa estabelecida em Luanda passou a financiar a criação de feiras, com o intuito de controlar o comércio nos sertões.34 Em 1792, o governador de Angola, Manoel de Almeida Vasconcelos, escrevia a José de Seabra da Silva, ministro e secretário de estado dos Negócios do Reino, queixando-se da independência e insolência dos feirantes, que não obedeciam às leis emanadas de Lisboa, associando-os às desordens nos sertões. Não defendo os Capitães Mores dos Sertões deste Reino; acho que não cumprem com a maior parte de seus deveres, (...), [mas] tenho também vindo no conhecimento, de que uma grande parte das acusações, e queixas, que deles se formam, são umas vezes (...) por executarem as Ordens, tirando os negros da sua indolência, e ociosidade, não consentindo as insolências dos feirantes, e pumbeiros, que é a peios gente, e que mais tem destruído, e arruinado os Sertões, inundados por toda parte destes maus sujeitos, que muitos são ciganos, pois que desde o último tempo do meu Predecessor Dom Francisco Innocencio até o Governo Interino se deu uma ampla liberdade, a todos que a ele quiseram passar fazendo-se um grande número de moradores, e chamados brancos calçados, (...) não deixando executar as diligências de Justiça e resistindo às pequenas forças dos Presídios, persuadem os negros, e com os seus perniciosos exemplos tem dado a maior causa à 33 FERREIRA. Cross-cultural exchange in the Atlantic world, p. 31-36. 34 FERREIRA. Cross-cultural exchange in the Atlantic world, p. 29-33.

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falta de subordinação, desobediências e ao orgulho, e conhecimentos para o mal, diferindo tanto do respeito, e sujeição com que antigamente se portavam.35

A se julgar pelo excerto, a flexibilização das leis na segunda metade do setecentos tinha acarretado a multiplicação do número de feirantes atuando no interior. Nas palavras de Vasconcelos, “o excessivo número de feirantes, e a péssima qualidade de quase todos faz uma parte das maiores desordens do Sertão”.36 A sua presença continuava a ser mal vista pelas autoridades estabelecidas em Luanda e nos presídios, uma vez que a sua autonomia e as suas relações próximas com os povos locais os tornavam uma ameaça às aspirações de adquirir um maior controle do comércio nas periferias, desobedecendo às ordens das autoridades judiciárias e contrapondo-se aos capitães-mores que governavam os presídios, os quais também eram alvo de críticas. A incorporação pelos feirantes de elementos da cultura portuguesa e a sua vinculação ao comércio atlântico os tornava brancos aos olhos dos povos autóctones, tanto é que Vasconcelos tenha se referido a eles como “brancos calçados”. No entanto, são mais comuns na historiografia as menções aos negros calçados37, que socialmente eram considerados brancos. No início do século XIX, as firmas europeias estabelecidas na costa continuavam dependentes dos moradores residentes nos sertões, que faziam a mediação das transações envolvendo escravos e marfim com as autoridades africanas.38 De acordo com Dias, “a questão do controlo sobre tais agentes [sertanejos e feirantes], problema perene na governação da colónia desde o século XVII, tornou-se mais urgente em meados do século XIX, no contexto da instabilidade e da crise econômica sentida pelo corpo comercial de Luanda, face à abolição legal do tráfico transatlântico”.39 35 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, correspondência recebida de Angola, Ministério do Reino, maço 606, documento número 9, folhas 6-7. 3 de junho de 1792. Carta de Manoel de Almeida Vasconcelos, governador de Angola, para José de Seabra da Silva, ministro e secretário de estado dos Negócios do Reino, Luanda. 36 ANTT, Correspondência Recebida de Angola, Ministério do Reino, mç. 606, doc. 9, fls. 6-7. 37 CURTO, José C.; GERVAIS, Raymond R. The population history of Luanda during the late Atlantic slave trade, 1781-1844. African Economic History, vol. 29, 2001, p. 23; FERREIRA, Roquinaldo. Cross-cultural exchange in the Atlantic world, p. 63. 38 DIAS. Angola, p. 390. 39 DIAS. Angola, p. 392.

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Conforme veremos na próxima seção, a continuidade, até pelo menos 1860, desse modus operandi do comércio no interior de Angola, baseado nas caravanas de carregadores, nas cadeias de crédito a partir da entrega de fazendas em consignação, na atuação de sertanejos luso-africanos independentes e na tentativa de regulação por parte do governo de Luanda, determinou em larga medida quais os produtos exportáveis e em que quantidade seriam exportados.

O comércio de marfim no Reino de Angola Achados arqueológicos comprovam que redes comerciais locais cruzavam todo o território angolano muito antes da chegada dos portugueses. O contato com a economia atlântica, no lugar de enfraquecer tais redes, serviu para reforçá-las e desenvolvê-las.40 Paradoxalmente, em muitas zonas de Angola, o tráfico atlântico tinha contribuído para reforçar e desenvolver essas atividades. Integrando uma vasta rede de comércio africano, esse tráfico abrangia, na primeira metade do século XIX, quase todas as sociedades da África Central (...). A grande afluência de mercadorias importadas, que acompanhou a procura por escravos – estimulada pela concorrência europeia, cada vez mais intensa, na costa angolana –, não só provocou uma expansão geográfica das redes de comércio no interior, como também uma expansão na produção africana de gêneros para vender, reforçando, assim, as tecnologias bem como as trocas locais já existentes.41

De acordo com Eltis e Jennings42, embora houvesse, em África, antes da chegada dos europeus, diversas economias sofisticadas, a maioria dos produtos agrícolas e extrativistas comercializados internamente não suportava os custos do transporte transatlântico, não sendo, portanto exportáveis. 40 DIAS. Angola, p. 327. 41 DIAS. Angola, p. 327. 42 ELTIS; JENNINGS. Trade between Western Africa and the Atlantic World, p. 936-959.

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Os europeus entraram em contato com numerosas economias africanas sofisticadas do século XV em diante. O comércio interno entre essas economias, especialmente na África Ocidental, envolvia uma grande diversidade de produtos agrícolas e manufaturados. Todavia, esses artefatos e cultivos autóctones só foram enviados à Europa ou às Américas como curiosidades, com a única exceção do fluxo estável, embora modesto, de têxteis iorubá para a Bahia, um comércio que perdurou até o século XX, desafiando a concorrência de tecidos de algodão britânicos.43

Conforme afirmamos na introdução, antes da última década do século XVII e após meados do século XIX, as exportações de commodities tinham um peso superior ao do comércio de escravos nas exportações africanas. Na década de 1680, o comércio de escravos representava mais ou menos metade do comércio exterior. Após esse período, a venda de escravos aumentou rapidamente, perfazendo 90% das exportações para o Atlântico na década de 1780. Apesar da abolição do tráfico de escravos para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos em 1807, a venda de cativos ainda representava cerca de 2/3 das exportações africanas para o mercado atlântico em 1820, graças à expansão das economias escravistas do Brasil e de Cuba. Com a supressão do comércio de escravos para vários mercados americanos, na década de 1840, a participação dos escravos nas exportações diminuíra bastante, mas os negócios envolvendo outros produtos continuaram a crescer. Em algum momento entre 1840 e 1850, os valores movimentados pelo chamado “comércio legítimo” devem ter ultrapassado os do comércio de escravos. A supressão definitiva do tráfico para o Brasil, em 1850, fez com que a participação dos escravos nas exportações entrasse em colapso, mesmo com a retomada do tráfico cubano no período 1857-1862. Na década de 1860, o tráfico de escravos representava apenas 2% do comércio de exportação.44 43 ELTIS; JENNINGS. Trade between Western Africa and the Atlantic World, p. 947.

Tradução nossa: “Europeans came into contact with numerous sophisticated African economies from the fifteenth century on. Intternal trade among these economies, especially West Africa, consisted of a rich diversity of cultivated and manufactured products. Yet these indigenous artifacts and foodstuffs only traveled to Europe or to the Americas as curiosity items, with the single exception of steady, though fairly modest, export of ‘country cloths’ or Yoruba textiles to Bahia, a trade that survived down to the twentieth century in defiance of competition from British cottons.” 44 ELTIS; JENNINGS. Trade between Western Africa and the Atlantic World, p. 944-947.

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Miller argumenta que, para os líderes políticos africanos que adquiriam fazendas importadas oriundas do comércio atlântico, era mais interessante oferecer em contrapartida commodities – marfim, cera e outros produtos agrícolas, extrativistas ou manufaturados – que escravos.45 Antes do início dos contatos com a economia atlântica, as sociedades da África Centro-Ocidental baseavam-se em uma economia política de valor de uso. Os bens materiais circulavam para uso imediato como presentes distribuídos por autoridades, fossem elas pequenas ou grandes, em troca de abstratas obrigações coletivas dos dependentes de entregarem bens materiais quando requisitados, no futuro. Era de tais obrigações abstratas que advinha a riqueza mais permanente, o prestígio dos governantes e o respeito que eles inspiravam. A generosidade era distribuída e redistribuída entre sujeitos de diferentes hierarquias para gerar subordinação. A noção ocidental de transações materiais entre parceiros iguais e independentes ocupava um lugar bastante secundário.46 O objetivo maior dos líderes locais era aumentar o seu número de dependentes, reunindo clientes, súditos, parentes e escravos. O acesso às fazendas importadas trazidas pelos comerciantes atlânticos era um dos meios de atingir esse objetivo, já que a sua distribuição gerava novas relações de dependência, aumentando o poder e o prestígio dos chefes que a elas tinham acesso. Inicialmente, os senhores africanos tentavam saldar as obrigações com os estrangeiros que lhes entregavam produtos importados a crédito da maneira que lhes parecia convencional, entregando dependentes de seu séquito pessoal. Quando tal recurso passou a se mostrar insuficiente, diante das dívidas crescentes decorrentes da aceitação de fazendas a crédito, tais senhores tentaram regularizar sua situação fornecendo commodities produzidas localmente, especialmente cobre, marfim, cera, peles de animais e produtos vegetais. Os produtos importados eram, no entanto, tão eficientes na produção de dependentes que os chefes africanos passaram a adquiri-los em quantidades cada vez maiores, a tal ponto que a produção local de commodities não era suficiente para quitar seus débitos. E foi então que, com evidente relutância, que começaram a saldar as suas dívidas entregando uma porção da “riqueza humana” que teriam preferido reter, cedendo, como escravos para exportação, parte dos dependentes que haviam angariado. Tal padrão foi 45 MILLER. Way of death, p. 105. 46 MILLER. Way of death, p. 40-41.

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estabelecido ainda no século XVI pelos reis do Congo e perdurou até o século XIX em toda a África Centro-Ocidental.47 Nos locais em que as redes comerciais eram mais desenvolvidas antes dos contatos com a economia atlântica, os líderes africanos conseguiram cobrir as importações com exportações de commodities por mais tempo. Isso ocorreu, por exemplo, na costa do Luango, onde havia um bem sucedido comércio local de produtos da floresta, sal e marfim. Nessa região, as exportações de escravos em quantidades significativas só ocorreram no século XVII, quando a vinculação com o comércio internacional adquiriu maior impulso, e as importações se tornaram vultosas demais para serem quitadas com os produtos tradicionais da rede comercial regional. Miller acredita que na região do rio Cuanza, com a qual lida este artigo, ocorreu processo semelhante. As autoridades congolesas e ambundas ofereciam sal da Quissama e cauris e sal da Baía de Luanda na troca de produtos importados. Por isso, comerciantes atlânticos interessados em adquirir escravos se viram compelidos a subir o Cuanza, obtendo cativos de senhores no curso médio desse rio e de seu tributário, o Lucala. Essas chefaturas estavam localizadas longe o suficiente da costa para que os custos do transporte das commodities produzidas localmente se tornassem impeditivos, desencorajando o seu comércio. Foi essa busca por escravos, fornecidos por parceiros comerciais localizados a longas distâncias da costa, somada à esperança de encontrar na região de Cambambe prata suficiente para cobrir os custos da conquista, que determinou a geografia da expansão portuguesa na região que mais tarde viria a conformar o Reino de Angola.48 Em algum momento, não claramente explicitado por Miller, a originalmente ampla variedade de produtos africanos trocados pelas fazendas atlânticas deu lugar a pequenas quantidades de cera e marfim, os únicos itens da produção da África Centro-Ocidental que valiam o suficiente para cobrir as despesas com o transporte. As exportações mais tardias desses dois produtos eram provenientes das periferias das áreas em contato com a economia atlântica onde as fazendas apenas tinham começado a entrar e ainda circulavam em quantidade limitada, não tendo ultrapassado a capacidade das economias africanas de pagá-las com outros bens que não escravos.49 47 MILLER. Way of death, p. 105-108. 48 MILLER. Way of death, p. 109-110. 49 MILLER. Way of death, p. 110.

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O marfim era um meio lucrativo de pagar pelas fazendas importadas porque na África Centro-Ocidental se fazia pouco uso dos dentes de elefante e de hipopótamo.50 Além disso, como o marfim era um “efeito colateral” das caçadas feitas com outros propósitos – livrar-se de animais que invadiam plantações ou obter carne –, a sua produção era pouco dispendiosa. Os custos do transporte até o litoral também eram minimizados: boa parte do marfim destinado á exportação era carregado até a costa por escravizados também destinados à exportação.51 Metade do marfim produzido em uma caçada pertencia aos caçadores, e a outra metade, aos chefes locais, que tinham direito à primeira presa que atingia o chão quando o animal caía. Nas regiões em que armas de fogo foram incorporadas às caçadas, o importador das armas podia requisitar uma porção adicional do marfim. Caçadas sistemáticas com a finalidade específica de obter marfim passaram a ser organizadas quando esse produto se tornou um meio eficaz de obter fazendas.52 O elevado volume de marfim exportado no final do século XVII, quando as rotas comerciais ainda não se estendiam muito para o interior, decaiu à mediada que as presas eram obtidas em locais cada vez mais distantes. No século XVIII, as principais áreas produtoras de marfim estavam nas savanas e florestas de galerias, a centenas de quilômetros do litoral. exceto na bacia central do rio Congo, onde, devido à combinação de transporte fluvial barato e rede comercial local bem desenvolvida, o marfim continuou a ser um importante item do comércio, mesmo quando a sua produção foi se afastando para o interior.53 No Reino de Angola, ao longo de todo o século XVIII, momento de expansão no comércio atlântico e de incremento no volume de escravos embarcados para as Américas, as exportações de marfim permaneceram baixas. Isso se devia, em grande medida, ao fato do co50 De acordo Antônio de Saldanha da Gama, que fora governador do Reino de Angola entre 1807 e 1810, embora a maior parte do marfim exportado fosse proveniente de prezas de elefante, havia abundância de hipopótamos e cavalos-marinhos nos rios Cuanza e Dande. Os dentes de hipopótamo eram de um material mais compacto e sólido que os dentes de elefante e conservavam por mais tempo a cor branca, embora fossem mais difíceis de se trabalhar. SALDANHA DA GAMA, Antonio. Memoria sobre as colonias de Portugal, na costa occidental d’Africa. Paris: Tipografia de Casimir, 1839, p. 89. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017. 51 MILLER. Way of death, p. 110. 52 MILLER. Way of death, p. 110. 53 MILLER. Way of death, p. 111-112.

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mércio de marfim ser um monopólio, ou “estanco real”, não sendo a sua exportação permitida a particulares.54 E, de acordo com Miller, a Fazenda Real adquiria as presas por preços muito inferiores aos de mercado. Além disso, o pequeno valor do marfim na Europa deprimiu o comércio ao longo de toda a costa. Os preços do marfim nos mercados internacionais aumentaram somente após 1780 e, com eles, o volume do marfim exportado de quase todos os lugares da África Centro-Ocidental, exceto de Luanda e Benguela, onde, segundo Miller, o monopólio régio continuava a praticar preços excessivamente baixos. Como o monopólio dizia respeito somente às exportações, o marfim circulava em Luanda e no interior de Angola como o equivalente a uma letra de crédito. Miller acredita que, enquanto o sistema de exclusivo comercial vigorou, boa parte do marfim exportado pela Fazenda Real era oriundo da utilização desse produto para pagar taxas devidas pela exportação de escravos.55 Acreditamos que o marfim servia também de moeda nas relações entre os vários agentes históricos envolvidos no comércio de caravana. Encontramos no Arquivo Histórico Ultramarino um requerimento que evidencia a relevância do marfim como produto de exportação e como meio de barganha nas nem sempre fáceis relações entre sertanejos e capitães-mores. Manoel de Faria Marinho era natural de Pernambuco, de onde havia partido voluntariamente para a África e, em 1798, requereu ao governador licença para retornar à Feira de Cassanje, onde se dizia feirante legitimado.56 Marinho havia ido a Luanda para quitar dívidas com seu Aviante57 Manoel da Cruz e dele adquirir novas fazendas, que já havia enviado ao Presídio de Ambaca por meio de carregadores. 54 SALDANHA DA GAMA. Memoria sobre as colonias de Portugal, na costa occidental d’Africa, p. 86. 55 MILLER. Way of death, p. 645. 56 Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos Angola, Caixa 97, documento número 49. 20 de dezembro de 1800. Certidão dos Autos do Termo que no anno de 1798 assignou o Cigano Manoel de Faria Marinho para sahir deste Reino, e não voltar mais aos Sertoens delle [lavrada por Estevão da Fonseca Negrão, Escrivão da Ouvidoria Geral e Correição da Comarca do Reino de Angola]. 57 “Aviado” referia-se ao pumbeiro, o comerciante itinerante que se deslocava pelo interior transportando as mercadorias conseguidas a crédito pelos comerciantes de maior vulto. Ver DIAS. Angola, p. 390. O termo “aviante”, por oposição, parece ser sinônimo de “armador”, ou seja, o comerciante de maior cabedal que fornecia as mercadorias importadas e tornava-se credor dos chefes de caravanas.

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Diante do indeferimento de seu pedido, fez novo requerimento, assegurando não ser um dos “Feirantes de má fé, que em lugar de proceder em seu trafico com lizura e probidade que exige o Comercio”58, comete excessos. O governador novamente negou a licença, e, com visível irritação, solicitou que o suplicante se apresentasse para assinar termo no qual se comprometia a não deixar a cidade em direção ao sertão. Marinho não se intimidou diante de nova negativa do governador e solicitou então licença para realizar uma única viagem ao Haco, para liquidar as fazendas já adquiridas e saldar sua dívida com Cruz, comprometendo-se a depois se retirar à sua casa em Ambaca, sua “pátria”. Argumentava que a proibição de seu retorno causaria a ruína de seus credores e a sua própria, visto que iria perder “não só as fazendas alheias, mas inda os proprios bens, e Escravos que tem em Ambaca, que sabendo que o Supplicante não volta ao Sertão, certamente se não recolhem ao seu dominio”. A resposta, novamente desfavorável, determinou que as fazendas e os bens de Marinho fossem arrematados publicamente em Ambaca, sendo o dinheiro remetido a ele por meio de um procurador. Essa recusa levou Marinho a redigir novo requerimento, no qual acusava o capitão mor do Presídio de Ambaca, que seria responsável pela arrematação de seus bens, de perseguir os feirantes, aos quais somente fornecia carregadores mediante o pagamento de subornos. Diz Manoel de Faria Marinho Feirante Legitimado em Junta do Comercio para negoçar na Feira de Cassange, que como hé, e sempre foi [ilegível] na Jurisdição de Ambaca os Capitaens mores que a governão, serem obrigados por ordem de Vossa Excellencia a darem os Carregadores, que fossem necessarios aos Feirantes para a condução das fazendas que qualquer Feira se leva para o beneficiar em resgarte de Escravos, Cera e Marfim. (…) O dito Capitam mor de Ambaca que prezentemente se acha governando por ordem de Vossa Excellencia, tem obrado o contrario em não dar Carregadores se não a quem lhe faz as maiores Conveniencias de dadivas [ilegível] dos generos de Escravos Pontas de Marfim Paes de Cera e dinheiro.59

58 AHU, AA, cx. 97, doc. 49. 59 AHU, AA, cx. 97, doc. 49, grifo nosso.

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Não temos como saber se as acusações proferidas contra o capitão-mor procedem ou não, principalmente porque ele próprio escreveu ao governador negando-as e acusando Marinho de outras faltas. Mas o próprio fato de que Marinho, ao tentar denegrir a imagem do capitão-mor, tenha escolhido a alegação de que ele não fornecia os carregadores necessários ao comércio de escravos, marfim e cera evidencia a importância dos carregadores e o poder que o seu fornecimento conferia a esses militares. Além disso, a menção da cera e do marfim, ao lado dos escravos, sinaliza que esses dois produtos já tinham importância no comércio atlântico no final do século XVIII. Finalmente, o fato de serem esses dois produtos utilizados como suborno reforça o seu papel como substituto do numerário no interior. Exportações baixas a partir de Luanda não significam, portanto, que o marfim não tivesse importância econômica. Na verdade, muito do marfim produzido em Angola acabava alimentando o contrabando, que as autoridades portuguesas se esforçavam, em vão, para combater. Segundo Miller, a maior parte do marfim que caía nas mãos de comerciantes luso-africanos era vendido a comerciantes de outras nações em Ambriz, no lugar de ser direcionado ao comércio oficial português em Luanda60. Saldanha da Gama, que fora governador e capitão general do Reino de Angola no período 1807-1810, afirmava que dentes de hipopótamo eram fornecidos em Novo Redondo, onde eram comprados, como contrabando, pelos franceses no passado61. Saldanha da Gama era um crítico do monopólio régio, corroborando as afirmações de Miller de que eram os preços excessivamente baixos praticados pela Fazenda Real que inibiam o comércio de marfim. Em suas memórias, redigidas em 1814, explica que o preço era determinado por lei, de acordo com o peso de cada dente. Dentes de menos de 16 libras eram considerados miúdos e seu preço era fixado a 80 réis a libra. Dentes com peso entre 16 e 52 libras eram chamados “meões” e valiam o dobro do marfim miúdo, sendo seu preço demarcado a 160 réis a libra. E os dentes com mais de 52 libras eram denominados “de lei”, sendo seu preço fixado em 320 réis a libra. O ex-governador considerava que tanto a existência do monopólio real quanto a fixação de um valor 60 MILLER. Way of death, p. 646. 61 SALDANHA DA GAMA. Memoria sobre as colonias de Portugal, na costa occidental

d’Africa, p. 89.

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bem mais elevado para as prezas maiores eram prejudiciais ao comércio, estimulando o contrabando: Estas proporções sam evidentemente viciosas, e mui prejudiciosas a este trafico, por quanto o preço diminuto do marfim miudo faz com que os Negros tratem de o levar á costa, para ali o vendrem aos navios estrangeiros; e o preço fixo do marfim de lei desanima os mesmos Pretos de conduzirem á cidade os dentes de grandeza mais que ordinaria, cujo transporte lhes causa maior trabalho e despeza, a que a fixação do preço não offerece a necessaria e justa compensação. Assim, estas regras extravagantes do estanco tendem a desviar do mercado o marfim miudo e os dentes de grandeza extraordinaria, que os Pretos ou vendem aos estrangeiros, ou deixam ficar nas matas e selvas do sertão.62

De acordo com Jill Dias, são muito recorrentes na documentação produzida pelos governadores de Angola na década de 1820 a preocupação com as exportações clandestinas de marfim.63 Foi nessa época, explica Miller, quando ganharam maior impulso os movimentos em direção à abolição do comércio de escravos que já vinham se desenhando desde o início do século XIX, que Lisboa passou a ter mais interesse na produção de cera e marfim, produtos que já chegavam a Luanda de regiões do interior não produtoras de escravos. Com a independência do Brasil, aumentou o interesse de Portugal em exportar outras mercadorias que não escravos a partir de Angola. Além disso, a opinião liberal em Portugal começou a se solidificar contra o monopólio sobre o marfim. De acordo com Miller, um negociante da época sugeriu que a Real Fazenda mantinha os preços baixos porque não dispunha de fundos para adquirir quantidades maiores a preços mais elevados.64 Curiosamente, se a perspectiva da supressão do comércio de escravos fazia com que tanto a administração quanto os negociantes da praça de Luanda vislumbrassem nas exportações de marfim uma saída para a temida ruína econômica de Angola, por outro lado a supressão do tráfico era vista como um entrave às exportações de marfim. Como 62 SALDANHA DA GAMA. Memoria sobre as colonias de Portugal, na costa occidental d’Africa, p. 86 e 87, grifo nosso. 63 DIAS. Angola, p. 382. 64 MILLER. Way of death, p. 643-646.

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boa parte do marfim recebido em Luanda era oriundo dos pagamentos de taxas devidas pela exportação de escravos, os oficiais da Real Fazenda temiam deixar de receber qualquer quantidade de marfim a partir do momento em as exportações de escravos cessassem e as taxas deixassem de existir. Além disso, com o fim do comércio de escravos, o custo do transporte do marfim iria subir, já que parte considerável das presas era carregada até o litoral pelos próprios escravos destinados ao mercado atlântico. Se, com a supressão do comércio transatlântico de escravos, os carregadores passassem a serem remunerados, os custos do transporte de marfim dos sertões longínquos até Luanda seriam grandes demais para que qualquer um pudesse com eles arcar. Foi talvez por essa última razão que, só em 1834, quando ficara claro que as exportações de escravos continuariam clandestinamente para o Brasil, garantindo o transporte praticamente gratuito de marfim até Luanda nas costas dos escravizados, que os negociantes de Luanda fizeram uma petição requisitando a supressão do monopólio real sobre o marfim. Em 1834, o monopólio do marfim, já combatido em 1814 por Saldanha da Gama, foi finalmente extinto.65 Pouco depois, em 1836, foi oficialmente proibido o tráfico de escravos nos “domínios portugueses”, dando origem a um período de comércio pretensamente “legítimo” ou “legal”. Na prática, o tráfico clandestino de escravos para o Brasil e para Cuba continuaria ainda por muito tempo, combinado com o crescente comércio de produtos “legítimos”, especialmente a cera e o marfim, mas também goma copal e urzela. Os valores de exportação desses gêneros de Angola subiram gradualmente a partir dos últimos anos da década de 1840 e aumentaram rapidamente nas duas décadas seguintes.66 No caso do marfim, a prática de preços mais elevados nos portos sob controle português já seria suficiente para canalizar para eles a produção que normamente era vendida a contrabandistas e a comerciantes de outras nações.67 De acordo com Ferreira, a maioria dos negociantes envolvidos no comércio clandestino de escravos diversificara suas atividades, também investindo em mercadorias lícitas. Estas serviam tanto para contrabalançar os riscos crescentes do tráfico quanto para encobri-las, justifi65 DIAS. Angola, p. 382; MILLER. Way of death, p. 646. 66 DIAS. Angola, p. 382-383. 67 MILLER. Way of death, p. 646.

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cando a posse de feitorias e navios, que pretensamente se destinavam às transações envolvendo produtos lícitos, mas na prática eram utilizados para abrigar e transportar cativos.68 Além disso, o comércio de marfim e cera, quando combinado com o tráfico ilegal de escravos, adequava-se às políticas concebidas em Lisboa para a reconstrução econômica de Angola, pois exigiam mínimo investimento de capital, já que essas mercadorias eram produzidas autonomamente pelos povos locais, que neles investiam seu próprio tempo e mão de obra.69 Com o passar do tempo, o comércio desses dois produtos foi se firmando e se desvinculando do comércio atlântico de escravos. De acordo com Jill Dias: A liberalização do comércio colonial de marfim provocou uma enorme e rápida subida de preços deste gênero, quer em Luanda quer em Benguela, incentivando a sua compra, em quantidades muito maiores, aos africanos produtores dos hinterlands correspondentes, de tal forma que, nos meados do século, o marfim já constituía de longe o artigo colonial mais importante – tanto em volume, quanto em valor (...).70

Essa exposição relativamente longa sobre o comércio de commodities em Angola teve por objetivo dotar o leitor de uma compreensão mais alargada sobre o seu funcionamento, para que melhor situe e compreenda os dados empíricos concernentes ao Presídio de Cambambe nas duas primeiras décadas do século XIX, que traremos em breve. Antes de analisá-los, todavia, cumpre tratar do contexto de produção as fontes.

O contexto de produção das fontes De acordo com Curto e Gervais71, embora houvesse, em Portugal, preocupação em levantar estatísticas sobre os seus enclaves na FERREIRA. Dos sertões ao Atlântico, p. 86. MILLER. Way of death, p. 646. DIAS. Angola, p. 382, grifo nosso. CURTO; GERVAIS. The population history of Luanda during the late Atlantic slave trade, p. 1. 68 69 70 71

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África Centro-Ocidental desde o século XVI, foi somente no período pombalino (1750-1757) que tal tarefa passou a ser desempenhada de forma mais sistemática, passando a incluir também informações sobre populações não europeias. Influenciado pelo Iluminismo, o Marquês de Pombal procurava obter informações para fins fiscais e militares, em um contexto em que a França e a Inglaterra ameaçavam a colonização portuguesa no Reino de Angola e as receitas decaíam em virtude da diminuição do volume dos escravos exportados. De acordo com Catarina Madeira Santos, as reformas pombalinas podem ser consideradas: um projeto de instauração de um novo governo caracterizado por: i) se integrar numa filosofia civilizadora universal (aplicável à África, mas também à própria Europa); ii) se basear num modelo racional universalista, de pretensa aplicabilidade geral; iii) incorporar, no plano prático, um ideal de administração activa, orientado por uma ciência administrativa, em parte racionalista, em parte empirista, atenta à descrição exacta; iv) e adoptar um modelo de administração que contrastava com o modelo clássico do Antigo Regime.72

Ao mesmo tempo em que se reconhecia o papel fundamental de Angola como fornecedor de mão de obra para o Brasil, havia uma preocupação em fomentar outros setores econômicos, especialmente a agricultura e o extrativismo de produtos exportáveis. Nesse sentido, afirmava o Conde de Oeiras, em parecer datado de 1760: “Angola não é feitoria, não só é reino como pode ser império”.73 O período compreendido entre 1770 e 1810, conhecido como Integracionismo, foi caracterizado pela tentativa de integrar as diversas partes do Império por meio da edição de legislação aplicável a todos os seus territórios, pela multiplicação das conexões entre tais territórios 72 SANTOS, Catarina Madeira. Um governo “polido” para Angola: Reconfigurar dispositivos

de domínio. (1750 - c.1800). Tese de Doutorado. Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas: Lisboa, 2005, p. 6. 73 Arquivo Histórico Ultramarino, Códice 555, § 87, folhas 59-59. 20 de Novembro de 1760. Parecer que o Conde de Oeiras apresentou a Sua Magestade sobre o que ainda falta para se restituir a Agricultura, Navegação, e o Commercio de Angola contra os monopólios vexações e dezordens que fizeram os objectos das leis de onze e vinte e cinco de Janeiro de mil setecentos e cincoenta e outo. In: SANTOS, Catarina Madeira. Um governo “polido” para Angola, p. 5.

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e pela prática de rotatividade de agentes públicos entre as várias partes do Império, após dotá-los de educação e treinamento unificados em Coimbra. Embora não deixasse de haver exploração predatória, a perspectiva das reformas era de longo prazo, que punha ênfase no desenvolvimento de recursos latentes ou subutilizados. Conceber os territórios formalmente submetidos à Coroa lusa como uma unidade não significava o fim da hierarquização entre eles. A estratégia adotada é definida por Paquette como “juntos, mas desiguais”, fundada na ideia de uma complementaridade entre as partes do Império, de modo que cada uma deveria realizar uma função particular, sempre em benefício da Coroa. Integração, todavia, não implicava igualdade ou equidade. “Juntos e desiguais” resumia a estratégia da Coroa. Tal estratégia não consistia nem na rejeição das hierarquias aceitas nem na afirmação da similaridade das partes que compunham o Império. A Península continuava a ser a principal beneficiária de todas as políticas.74

Essa postura desenvolvimentista estava relacionada ao esforço por incorporar as chamadas periferias rústicas do velho e do novo mundo, “conjunto heterogêneo de zonas não povoadas ou pouco povoadas, que ainda não contribuíam completamente para a economia colonial, mas dotadas de recursos ou estrategicamente localizadas, que as transformava em objetos da atenção governamental”.75 Procurava-se estabelecer controle político efetivo sobre tais territórios e integrá-los nas dinâmicas comerciais preexistentes. Mas para incorporar as periferias rústicas, era necessário angariar conhecimentos sobre elas. Tais conhecimentos advinham tanto de relatórios redigidos por agentes da administração quanto de estudos 74 PAQUETTE, Gabriel. Imperial Portugal in the age of atlantic revolutions: the luso-brazilian world, c. 1770-1850. United Kingdom, Cambridge University Press, 2013, p. 19. Tradução nossa: “Integration, however, implied neither equality nor equity. ‘Together and unequal’ summed up the Crown’s strategy. It was neither a rejection of hierarchical understandings nor an assertion of the underlying similitude of the component parts. The Peninsula remained the intended primary beneficiary of all policies”. 75 PAQUETTE. Imperial Portugal in the age of atlantic revolutions, p. 50. Tradução nossa: “[...] a heterogeneous collecton of under- or unpopulated zones, not yet contributing fully to the colonial or metropolitan economy, but endowed with resources or a strategic geographic position making them worthy targets of government attention and largesse”.

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conduzidos especificamente com a finalidade de subsidiar as políticas públicas.“Utilizando mapas geográficos, tabelas de população, textos históricos, e tratados políticos (…) o Estado Português começou a impor grades e gráficos a rios, florestas e povoações indígenas”.76 A Ordem Régia de 21 de maio de 1776, enviada a vários governadores das conquistas portuguesas no ultramar, deu início a um novo paradigma na produção de estatísticas, padronizando os grupos etários utilizados, solicitando que informações fossem coligidas para toda a extensão dos territórios e, mais importante, ordenando que dados sobre a população fossem enviados regularmente ao Conselho Ultramarino.77 Em 1796, Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro e secretário de estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, enviou ao governador de Angola Ordem Régia datada de 14 de setembro, contendo instruções para que os levantamentos passassem a ser anuais e incluíssem além da cidade de São Paulo D’Assumpção – Luanda – também as populações dos presídios no interior.78 Outra Ordem Régia, de 6 de dezembro de 1797, solicitava o envio de informações muito mais detalhadas sobre a população. Infelizmente, mapas só foram elaborados de acordo com essas últimas diretrizes para os Açores, Benguela e algumas capitanias brasileiras. Apesar disso, combinadas, as Ordens Régias de 1796 e 1797 tiveram o êxito de criar uma nova tendência na produção de estatísticas nos territórios considerados pela Coroa como partes do Império Ultramarino Português, levando a uma institucionalização dos mapeamentos de população, inclusive em Angola.79 Os mapas elaborados após 1798 eram padronizados (podendo, assim, serem comparados) e tinham estrutura diversa das contagens populacionais elaboradas anteriormente. Deveriam trazer informações detalhadas sobre vários aspectos da vida nos presídios. São previstos campos para o número de casas de palha e de telha existentes, ou de palha e 76 PAQUETTE. Imperial Portugal in the age of atlantic revolutions, p. 52. Tradução nossa: “Using

geographical maps, population charts, historical texts, and political treatises (...) the Portuguese state ‘began to impose grids and graphs onto rivers, forests, and Amerindian settlements”. 77 TEODORO DE MATOS, Paulo. Population Censuses in the Portuguese Empire, 17501800. Research notes, Romanian Journal of Population Studies, 2013, vol. VII, n. 1, p. 7. 78 CURTO; GERVAIS. The Population History of Luanda during the Late Atlantic Slave Trade, p. 6-10; TEODORO DE MATOS, Paulo e VOS, Jelmer. Demografia e relações de trabalho em Angola c.1800: um ensaio metodológico, p. 4. 79 TEODORO DE MATOS. Population Censuses in the Portuguese Empire, p. 7-8.

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de pedra e cal, bem como sobre o número de igrejas e de ermidas. Em seguida, vêm as informações sobre a população, descrita nos mapas como “pessoas de ambos os sexos”, sempre cruzada com dados sobre a “qualidade”: branco, preto e mulato, nesta ordem. O primeiro grupo analisado são os eclesiásticos, em muitos casos com distinção do cargo: presbítero, pároco, etc. O segundo grupo são os militares, com espaço normalmente apenas para o registro do número existente na localidade. Na sequência, é analisado o grupo que Curto e Gervais80 denominam “civis”, composto pelos “paizanos” – homens que não ocupavam cargos eclesiásticos ou militares – e pelas mulheres. Para os paizanos e as mulheres há campos para informação sobre grandes grupos etários (até sete anos; de sete a 14 anos; de 15 a 25 anos e maiores de 25 anos), estado (solteiro, casado, viúvo), nacionalidade (africanos, americanos, europeus), condição (livre, escravo), número de órfãos e total populacional. Havia ainda dados sobre a despesa (civil, militar e eclesiástica), os animais criados, a produção agrícola ou extrativista e o armamento e as munições existentes na feitoria. Em alguns mapas, como nos de Cambambe, há também informações sobre a quantidade de escravos exportados, destinados ao comércio atlântico, além de dados sobre as exportações de produtos como cera e marfim. São esses dados que tornaram possível a redação deste artigo. De acordo com Santos, “a hipótese de pensar, em conjunto, os diferentes espaços imperiais prolongou-se para as últimas décadas do XVIII”81 e adentrou pelo XIX. No início desse século, houve um esforço de reorganização do Império. Conhecer melhor as partes que o formavam se torna premente, em um contexto marcado pelas receitas decrescentes arrecadadas pela Coroa, pelo temor de que as conquistas fossem ocupadas por outras potências europeias em situação mais vantajosa e pelo acirramento do combate ao tráfico de escravos pelos ingleses, ameaçando tanto a produção de gêneros de exportação no Brasil quando a organização econômica de Angola, inteiramente orientada para esse comércio. Permaneceu o desejo de estimular atividades econômicas desvinculadas do trato de escravos, em especial a produção e comercialização de produtos agrícolas e extrativistas, como o marfim.82 80 CURTO; GERVAIS. The Population History of Luanda during the Late Atlantic Slave Trade, p. 29. 81 SANTOS. Um governo “polido” para Angola, p. 39. 82 PAQUETTE. Imperial Portugal in the age of atlantic revolutions, p. 17-84.

148 Capítulo 5 - O comércio de marfim no Presídio de Cambambe

Após a saída de Pombal, o esforço de coletar informações sobre Angola e suas periferias subsistiu. D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que ocupou, entre 1796 e 1801, a Secretaria da Marinha e Negócio Ultramarinos, adotou uma política geralmente considerada inovadora, baseada nas noções de unidade política do império e de “dependência das colônias em relação à metrópole”.83 Muito influenciado pelos escritos de seu pai, D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, que fora governador de Angola, sendo equiparado por uma historiografia mais tradicional ao próprio Pombal, procurou reeditar as suas políticas, estimulando a agricultura e as manufaturas. Empreendeu ainda particular esforço em coligir informações sobre o ultramar. D. Miguel Antônio de Melo, que foi governador e capitão general do Reino de Angola de 1797 a 1802, era um grande crítico das políticas concebidas em Lisboa, que considerava inadequadas à realidade africana. Apesar disso, seu governo foi um dos que mais informações recolheu sobre Angola.84 Nas primeiras décadas do século XIX, com as invasões francesas, a partida da corte para o Brasil e a revolução liberal, os formuladores de políticas públicas lisboetas voltam a ver Angola como mera feitoria exportadora de escravos, deixando de lado os ideais desenvolvimentistas. Todavia, os governadores Fernando António Soares de Noronha (1802-1806), D. António de Saldanha da Gama (1807-1810) e José de Oliveira Barbosa (1810-1816), continuaram, cada um a seu modo, a utilizar e a reforçar os mecanismos instalados na segunda metade da centúria anterior, dando continuidade à produção dos mapas estatísticos. Na década de 1820, por fim, houve uma ruptura nesse processo, com a independência do Brasil e a eclosão da guerra civil em Portugal. A política voltada para o ultramar passou a ser uma mera declaração de intenções e Angola foi deixada temporariamente de lado.85 Temos, ao todo, 12 mapas estatísticos para o Presídio de Cambambe. Em 1799 e em 1804, foram elaborados sob a supervisão do capitão de cavalos e regente, Manoel José Borolho Ferreira. Em 1806, o mapa foi responsabilidade de Joze d’Almeida Nascimento, regente. Em 1810, de Antonio Vellano Galianno, tenente e regente. Em 1811, do Alferes, Jozé G. De 1812 a 1818, os mapas foram todos assinados pelo 83 SANTOS. Um governo “polido” para Angola, p. 87. 84 SANTOS. Um governo “polido” para Angola, p. 87-90. 85 SANTOS. Um governo “polido” para Angola, p. 90-92.

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zeloso Jozé Chistino de Andrade, capitão-mor, que os preenche com notável cuidado, adicionando sempre, ao pé das tabelas, longas observações sobre o estado do presídio, pormenores sobre a localização das casas de palha, sobre a razão da ausência de informações sobre a criação de animais e a produção agrícola, além de dados sobre o número de feirantes no mercado, o valor das importações, as despesas civil, eclesiástica e militar. A elaboração de tantos mapas por um mesmo militar aplicado também torna o estudo da localidade mais atraente, pois há uma constância no fornecimento de informações normalmente ausentes nos documentos relativos aos outros presídios e distritos, além de uma uniformidade no preenchimento das tabelas.

O comércio de marfim no Presídio de Cambambe Os mapas nos permitem conhecer um pouco sobre a organização e a demografia do Presídio de Cambambe, além de trazerem valiosas informações sobre o comércio ali conduzido.86 A jurisdição de Cambambe incluía o presídio propriamente dito e os sobados que o cercavam. Em 1804, havia na jurisdição 5.162 casas de palha e 28 sobas avassalados; em 1810, 4.216 casas de palha e 20 sobas avassalados; e, em 1813, 7.717 casas de palha e 27 sobas avassalados. A partir desse ano, quando José Christino assumia o comando, passamos a ter também informação sobre o número de casas existentes dentro do presídio: as de pedra e cal variavam entre uma e seis e as de palha, entre 64 e 70. Ao longo dos 19 anos englobados pelo estudo, a população do distrito aumentou, passando de 6.200 pessoas em 1799, para 10.352, em 1818, tendo passado por algumas oscilações. O seu menor número, 4.960 pessoas, foi registrado em 1810, e o maior, 11.428, em 1815. O crescimento populacional é condizente com o já mencionado aumento do número de sobas avassalados e de casas de palha, já que sabemos que a população 86 Todas os dados sobre os presídios são oriundos dos mapas de população, cujas referências se encontram na nota de rodapé número 19. Como eles serão citados repetidas vezes ao longo desta seção, optamos por não cansar o leitor com um número excessivo referências. Limitamos, assim, as notas às situações em que transcrevemos trechos desses documentos.

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residente dentro do presídio era reduzida, e que a maior parte da população do distrito era composta por “gentes dos sobados”. Não era a jurisdição de Cambambe particularmente populosa. Vemos, por exemplo, que é pequena se a compararmos com a de Ambaca, um dos mais importantes presídios portugueses, que tinha em suas proximidades a Feira de Lucamba, um dos mais antigos empórios do trato de escravos no sertão de Angola. Em 1799, a jurisdição de Ambaca, incluindo o presídio e os sobados, tinha 35.344 habitantes e, em 1817, 37.551. As casas de palha localizadas “no rumo do presídio” de Ambaca variaram entre 400, em 1817, e 640, em 1810. Havia no Presídio de Cambambe uma Igreja Matriz, que a partir de 1810 começa a ser descrita como “muito arruinada”, com “o seu fronte Espicio [sic.] todo em terra”.87 Naquele ano e nos que se seguiram não havia pároco, o qual, no entanto, ainda lá estava em 1799. Também são reiteradas as queixas quanto ao mau estado da feitoria e do armamento e à falta de munição. Os militares que serviam na feitoria variaram entre 39, em 1813, ano que atingiram a cifra mais baixa, e o máximo de 59, número encontrado na maioria dos mapas. A maior parte desses militares era descrita sempre como preta. Os oficiais civis eram normalmente apenas dois, o Almoxarife e o Escrivão do Almoxarifado, geralmente pretos ou mulatos. A partir de 1815 passam a haver dois escrivães. As casas do mapa estatístico reservadas à criação de animais e à produção agrícola são preenchidas com inexatidão, que varia muito de acordo com o oficial responsável ao mapa. Embora a produção agrícola e a criação de animais tivesse importância econômica e política, quantificar essas atividades aparentemente carecia de sentido. O capitão Jozé Christino explica a ausência de informações claras sobre esse assunto com notável clareza na observação ao pé do mapa de 1815: “Da mesma forma nada se notta nos Mappas de animaes de differentes espécies, e de diversas produçoens, por quanto os que tem criançoens não anotão a sua multiplicação ou diminuição, bem como os lavradores não dão ao manifesto a quantidade de mantimento que colhem”.88 Conforme esperado, a grande maioria dos residentes na jurisdição era classificada como “pretos”, que correspondiam sempre a algo entre 97 e 99% da população. Os brancos nunca passaram de duas de87 AHU, CU, Angola, Cx. 122, doc. 32 (Mapas de 1810). 88 AHU, CU, Angola, Cx. 131, doc. 14 (Mapas de 1815).

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zenas de indivíduos, perfazendo sempre menos de 1% da população. A população classificada como mulata era um pouco mais numerosa, oscilando entre oito e 207 indivíduos, o que sugere que a variação corresponda mais a diferenças na classificação dos indivíduos pelo recenseador que a alterações na composição populacional. As casas destinadas aos dados sobre condição de liberdade ou escravidão praticamente só eram preenchidas para a população preta. Os brancos e os mulatos raramente são classificados quanto à condição de liberdade e escravidão, embora apareçam nas casas destinadas aos totais populacionais. Em algumas contagens entre 1812 e 1818, alguns mulatos – sempre menos de uma dezena - foram classificados como escravos. Fica claro que as qualidades “branca” e “mulata” estavam associadas ao estatuto de liberdade. Do ponto de vista dos regentes, a análise da condição só fazia sentido para a população preta. Mesmo para a população preta, o percentual de indivíduos para os quais é anotada a condição de liberdade varia muitíssimo. Em alguns anos, como 1810, a condição de liberdade sequer é aludida. Nos outros anos, varia enormemente, podendo os livres corresponder a 90, 80, 70, 60, 30, 20 ou 10% do populacional expresso. Se a informação sobre a liberdade varia, há, por outro lado, muita consistência nos números no que se refere à população escrava, que na maioria dos mapas estudados corresponde a algo entre 6 e 9% do total populacional expresso (apenas em 1806, 1810 e 1811 perfaz, respectivamente, 22, 15 e 19% da população total). De acordo com Manning89, por volta de 1700, ao menos 10% dos 22 a 25 milhões dos habitantes da África Ocidental e Centro Ocidental eram escravos e essa proporção foi aumentando com o passar do tempo. Em Luanda, o peso da população escrava variou entre 35 e 49% no intervalo 1804-1817.90 Em Ambaca, em 1804, os escravos representavam 25% da população, um percentual extremamente elevado quando se trata de uma população africana do interior. Em 1810, no entanto, tal proporção havia caído para 6%. A partir de 1811, a proporção de escravos na população de Ambaca volta a subir lentamente, atingindo o seu nível máximo em 1815, ano em que os escravos representavam 89 MANNING, Patrick. Slavery and African Life: Occidental, Oriental and African Slave Trades. Cambridge, 1990, p. 84. 90 CURTO; GERVAIS. The Population History of Luanda during the Late Atlantic Slave Trade, p. 52.

152 Capítulo 5 - O comércio de marfim no Presídio de Cambambe

10,7% da população, para diminuir ligeiramente de importância em 1816 e 1817. Em suma, Cambambe tinha uma população escrava importante, embora não particularmente elevada quando comparada à de outras jurisdições no interior de Angola. A feira vizinha ao Presídio de Cambambe era a Feira do Dondo. O número de feirantes legitimados passa a constar da observação ao fim dos mapas a partir de 1811 e varia entre 41 nesse ano, e 50, em 1814, conforme se nota na Tabela 1:

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154 Capítulo 5 - O comércio de marfim no Presídio de Cambambe

Tabela 1 – Atividade econômica no Presídio de Cambambe (1799-1818) Ano Feirantes Libras de Cera Pontas de Marfim Cativos exportados Importações, em réis

1799

1804

1806

1810 17.340,5 340

1811 41 8.853 338

1812 49 15.455 98

1813 45 18.374 282

1814 50 13.180 125

1815 48 14.341 639

1816 43 6.764 191

1817 44 5.156 87

1818 44 1.392 58

29.150 6

11.950 6

2.930 32

1.331

2.175

855

2.059

1.076

880

898

714

713

511

888

502

17.433.775

21.936.492

8.605.989

8.845.335

9463831

35.849.020

Fonte: Mapas Estatísticos do Reino de Angola. IHGB, DA 2.4.8 (Mapas de 1799); AHU, CCU, Angola, Cx. 112, doc. 47 (Mapas de 1804); Cx. 118, doc. 21 (Mapas de 1806); Cx. 122, doc. 32 (Mapas de 1810); Cx. 124, doc. 9 (Mapas de 1811); Cx. 127, doc. 1 (Mapas de 1812); Cx. 128, doc. 26 (Mapas de 1813); Cx. 130, doc. 30 (Mapas de 1814); Cx. 131, doc. 14 (Mapas de 1815); Cx. 132, doc. 32 (Mapas de 1816); Cx. 134, doc. 37 (Mapas de 1817); Cx. 136, doc. 19 (Mapas de 1818).

Os dados sobre comércio de marfim constantes dos mapas estatísticos dizem respeito às transações realizadas dentro da feira, pagando tributo à administração lusa. São relevantes porque dão uma ideia do volume do comércio oficial pela rota do Cuanza em direção a Luanda. Não cobrem, portanto o contrabando. O Presídio de Cambambe foi escolhido como foco deste artigo porque os seus mapas estatísticos trazem dados sobre “exportações do comércio”, que nesse caso eram de libras de cera, pontas de marfim e cativos e, em alguns anos, dispomos também de informações sobre o valor, em réis, das importações. A própria preocupação dos regentes em anotar essas exportações é indicativo do esforço régio para fomentar o comércio de produtos agrícolas e extrativistas no Reino de Angola, procurando auferir lucros ali desvinculados do comércio de escravos. A exportação de cera variava muitíssimo, não parecendo seguir nenhum padrão claro, sendo, no entanto, perceptivelmente mais importante no início da série que nos seus últimos anos. A flutuação das importações, expressas em réis, não parece obedecer a nenhum padrão. Se continham os produtos utilizados na aquisição dos escravos, os números não permitem afirmar. O comércio de escravos era, por sua vez, atividade econômica bastante relevante. Comparando as exportações de escravos a partir do porto de Luanda, levantadas por Curto e Gervais91 com as exportações de Cambambe, percebemos que ambas seguiam o mesmo padrão, aumentando com o crescimento da demanda brasileira. Na década de 1790, o Brasil importara em média 10.260 escravos anuais de Luanda. De Cambambe, em 1799, saíram 1.331 escravos em direção ao litoral. O crescimento da demanda brasileira fez com que a média de escravos exportados de Luanda subisse para uma média anual de 12.300 na década de 1810. De Cambambe, em 1810, saíram em direção ao porto 2.059 escravos, o segundo maior volume registrado na série. Note-se que o volume de pessoas que passavam pela Feira do Dondo para serem direcionadas para o comércio atlântico também era significativo se pesado em relação à população livre e escrava do presídio. Em 1804, por exemplo, quando foi exportado a partir de Cambambe o maior contingente de cativos da série, 2.175 pessoas, a população escra91 CURTO; GERVAIS. The Population History of Luanda during the Late Atlantic Slave Trade, p. 35-45.

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va residente era de apenas 559 almas, e a população total, 7.637. Sem dúvida que alojar, alimentar, vestir e vigiar um volume de pessoas de tal ordem de grandeza deveria ter profundo impacto na vida dos habitantes do presídio. O Gráfico 1 mostra as flutuações no comércio de marfim conduzido no Presídio de Cambambe entre 1799 e 1818. Gráfico 1 – Flutuação no comércio de marfim Presídio de Cambabe (1799-1818)

Fonte: Mapas Estatísticos do Reino de Angola. IHGB, DA 2.4.8 (Mapas de 1799); AHU, CCU, Angola, Cx. 112, doc. 47 (Mapas de 1804); Cx. 118, doc. 21 (Mapas de 1806); Cx. 122, doc. 32 (Mapas de 1810); Cx. 124, doc. 9 (Mapas de 1811); Cx. 127, doc. 1 (Mapas de 1812); Cx. 128, doc. 26 (Mapas de 1813); Cx. 130, doc. 30 (Mapas de 1814); Cx. 131, doc. 14 (Mapas de 1815); Cx. 132, doc. 32 (Mapas de 1816); Cx. 134, doc. 37 (Mapas de 1817); Cx. 136, doc. 19 (Mapas de 1818).

Na análise do Gráfico 1, fica evidente que, no início do século, o marfim era um produto quase irrelevante – em 1799 e em 1804 haviam sido comercializadas apenas seis pontas de marfim. O produto, entretanto, ganhou importância rapidamente e, em torno de 1810, foram exportadas via Feira do Dondo 340 pontas. Embora haja oscilações, a ten156 Capítulo 5 - O comércio de marfim no Presídio de Cambambe

dência é ascendente, com um pico em 1815, quando foram exportadas 639 pontas. Em 1818, José Christino observa que “O Nº dos Feirantes da Feira do Dondo hé 44, más a maior parte delles estão ausentes, e o actual giro do negócio dos existentes não hé de grande monta”.92 Não deve ser surpresa, portanto, que 1818 seja o ano com menor produção, apenas 58 pontas, mas parece se tratar de uma situação particular, com a já aludida ausência dos feirantes, e queda abrupta também nas exportações de cera e escravos. Conseguiremos compreender melhor a relevância do comércio de marfim na rota do rio Cuanza, passando por Cambambe, se o contextualizarmos com relação às exportações desse produto a partir do porto de Luanda. Para fazê-lo, transcrevemos para a Tabela 2 os “Mappas demonstrativos da quantidade e qualidade do Marfim exportado de Angola”, nos anos de 1804, 1812 e 1813. Apenas os percentuais foram calculados, sendo as demais informações transcritas da fonte. Tabela 2 – Marfim exportado a partir da alfândega da cidade de São Paulo da Assumpção ( Luanda), Reino de Angola (1804-1813)

Data

1804

1812

1813

Valor parQualidade Valor total % do Quantidade das cial (por Libras das pontas de (réis) total pontas libra) Marfim De Lei 458 20.997 63% 260 5.459.350 Meão 370 8.681 26% 160 1.389.040 Miúdo 413 3.584 11% 80 286.720 Soma 1.241 33.263 7.135.110 Domingos da Silva Torres, Escrivão da Meza d’Abertura d’Alfandega De Lei 810 39.236 71% 260 10.201.360 Meão

392

9.140

17%

160

1.462.480

Miúdo

812

6.676

12%

80

5.341.120

Soma 2.014 55.053 12.197.960 Vicente Jozé Simoens, Escrivão da Meza d’Abertura d’Alfandega desta Cidade De Lei 148 23.705 75% 260 6.163.430 Meão 215 4.895 15% 160 782.960 Miúdo 358 3.021 10% 80 241.680 Soma 721 31.619 7.188.070 Vicente Jozé Simoens, Escrivão da Meza d’Abertura d’Alfandega desta Cidade

Fonte: AHU, CCU, Angola, Cx. 112, doc. 47; Cx. 127, doc. 1; Cx. 128, doc. 26. 92 AHU, CU, Angola, Cx. 136, doc. 19 (Mapas de 1818).

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Conforme se nota na leitura dos demonstrativos de exportação a partir da Alfândega de Luanda, transcritos na Tabela 2, o preço do marfim miúdo e do meão na Alfândega de Luanda continuaram a ser respectivamente 80 e 160 réis a libra, em 1804, 1812 e 1813, mas o preço do marfim de lei era 260 réis a libra, abaixo, portanto, do preço mencionado por Saldanha da Gama para 1814. Ou seja, o conselho do ex-governador parece ter surtido efeito, e o preço das prezas maiores foi reajustado. De todo modo, mesmo na época em que o valor da libra do marfim de lei era mais baixo, essa qualidade do produto representou sempre mais de 60% do marfim exportado, chegando, em 1813, a perfazer 75%. Em seguida, vinha o “meão”, que representou entre 15 e 26% do marfim exportado. Menos de 10% era miúdo. Talvez Saldanha da Gama estivesse, portanto, enganado quando ao desinteresse dos africanos em transportar até a costa os dentes de maior vulto. De acordo com os dados expressos na Tabela 2, o Reino de Angola como um todo exportava 1.241 pontas ou 33.263 libras em 1804. Em 1812, tal volume havia crescido cerca de 60%, chegando a 2.014 pontas e 55.053 libras. Em 1813, no entanto, o volume se igualava ao de 1804, sugerindo que não havia uma estabilidade nas exportações. É interessante notar que esse volume é muito superior ao exportado em 1832, ano em que, de acordo com Dias, foram exportadas apenas 3 mil libras.93 Embora a autora lide com esse dado como um indicador da depressão do comércio de marfim sob o regime do monopólio, acreditamos que ele deve ser encarado com cautela. 1832 não era um ano qualquer, era o ano imediatamente subsequente à entrada em vigor da lei que proíbe comércio de escravos para o Brasil. Decorreu algum tempo até que os comerciantes de escravos se reorganizassem para operar na clandestinidade. Miller afirma que os negociantes de Luanda demoraram até 1834 para entender que o comércio de escravos continuaria e que teriam transporte gratuito para o marfim trazido dos sertões até este porto.94 No intervalo de tempo no qual os embarques de escravos foram muito reduzidos, os embarques de marfim devem ter caído proporcionalmente. Assim, 1832, longe de expressar o padrão das exportações das primeiras décadas do XIX, era um ano peculiar, de exportações especialmente baixas de marfim. É certo, no entanto, que o volume de marfim 93 DIAS. Angola, p. 382. 94 MILLER. Way of death, p. 646.

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exportado nos anos de 1804, 1812 e 1813 (que variava entre 30.000 e 50.000 libras) é muito inferior ao montante encontrado para a década de 1840, quando tal comércio já havia sido aberto para a livre concorrência. Em 1844, por exemplo, foram exportadas de Luanda 105.000 libras de marfim. Em 1859 foram exportadas de Luanda 115.269 libras de marfim.95 Quando calculamos qual a participação do marfim encaminhado a partir de Cambambe no total das exportações luandenses (dividimos o número de pontas exportadas via Cambambe pelo número de pontas exportadas via Luanda), percebemos que a rota do rio Cuanza deve ter crescido de importância ao longo do tempo, conforme as informações constantes da Tabela 3. Em 1804, o marfim comercializado a partir de Cambambe representava cerca de 0,5% do total das exportações de marfim de Luanda. Em 1812, essa participação tinha crescido dez vezes, representando em torno de 5%. Já em 1813, o marfim de Cambambe representava quase 40% do comércio desse produto na capital. Quando, no entanto, analisamos a participação das exportações de cativos de Cambambe no total de cativos embarcados no Porto de Luanda, observamos que se deu o contrário, tendendo tal participação a diminuir. Em 1804, os escravos exportados de Cambambe representavam 16% dos embarques luandenses. Em 1812, tal participação havia caído quase pela metade, representando cerca de 9%, proporção que se manteve em 1813. Ou seja, em termos relativos, o marfim que chegava a Luanda via Cambambe crescia em importância no comércio total, enquanto os escravos diminuíam em importância. Outro modo de aferir a importância do comércio de marfim é cotejar o valor das exportações desse produto com o valor dos escravos, que eram o sustentáculo da economia do Reino de Angola no começo do século XIX, conforme a Tabela 3. Para construir tal tabela, utilizamos como base o preço do escravo “cabeça” constante nos próprios demonstrativos da Alfândega de Luanda, sem incluir as “crias de pé” e as “crias de peito”, que tinham um valor muito mais baixo. Calculamos a média do preço do escravo no período, somando os preços de 1804, 1812 e 1813, e dividimos por três. Chegamos, assim, ao preço médio por cabeça de 72.166 réis e multiplicamos o número de cabeças exportadas 95 DIAS. Angola, p. 382.

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via Cambambe por esse valor, de modo a obter uma estimativa do valor total das exportações de escravos a partir deste presídio. Em seguida, fizemos o mesmo com o marfim. Como não sabemos se as pontas de marfim constantes nos mapas de Cambambe eram do tipo miúdo, meão ou de lei, estimamos o valor médio de uma ponta de marfim. Tomando por base as exportações através da Alfândega de Luanda, dividimos o valor total das exportações de marfim a cada ano pelo número de pontas exportadas naquele ano e, em seguida, tiramos a média aritmética (somando o preço médio de 1804, 1812 e 1813 e dividindo o resultado por três). Chegamos, assim, ao preço médio de 7.258 réis por ponta de marfim. Vale notar que dez pontas de marfim custavam mais ou menos o valor de um escravo. Em seguida, multiplicamos o número de pontas exportadas via Cambambe por esse preço médio, obtendo uma estimativa do valor total das exportações de marfim do presídio. Finalmente, dividimos o valor do marfim exportado pelo dos escravos exportados. Sabemos que tal preço médio é artificial, pois tanto os escravos quanto o marfim atingiam um preço bem mais elevado no porto do que nos Sertões. No entanto, essas estimativas assim calculadas cumprem a função de nos fornecer uma noção relativa da importância do comércio de marfim em comparação com o de escravos. Analisando a Tabela 3, percebemos que os escravos tinham um peso muito maior que o marfim. Nos primeiros anos da série, quando ainda era muito pequeno o volume de marfim comercializado por Cambambe, o valor dessa mercadoria perfazia 0,05% do montante movimentado pela venda de cativos. A partir de 1811, quando o marfim já havia crescido de importância, o valor resultante das vendas de marfim variava entre 1% e 4% das receitas com escravos, chegando, em 1815, a 9%. Em Luanda, embora a variação temporal do peso do marfim no comércio tivesse flutuações completamente diferentes das ocorridas em Cambambe, o quadro não era muito diferente: em 1804, o valor do marfim representava 0,7% do valor dos escravos; em 1812, 1,6%, e, em 1813, 0,9%. Em suma, percebemos que, em termos agregados, embora o comércio de marfim não fosse irrelevante nas duas primeiras décadas do século XIX, a sua participação era muito pequena se comparada à do comércio de escravos.

160 Capítulo 5 - O comércio de marfim no Presídio de Cambambe

Tabela 3 – Comparação entre o comércio de escravos e de marfim através do Presídio de Cambambe e da Alfândega da Cidade de Luanda (1799-1818)

O Marfim no Mundo Moderno

Escravos exportados de Cambambe Escravos exportados de Luanda Percentual representado pelos escravos exportados de Cambambe, com relação aos escravos exportados de Luanda Valor estimado dos escravos exportados de Cambambe (em réis) Valor dos escravos exportados de Luanda (em réis) Pontas de marfim exportadas de Cambambe Pontas de marfim exportadas de Luanda Percentual representado pelo marfim exportado de Cambambe, com relação ao marfim exportado de Luanda

1799

1804

1806

1810

1811

1812

1813

1814

1815

1816

1817

1818

1.331

2.175

855

2.059

1.076

880

898

714

713

511

888

502

13.018

10.481

9.894

16,71%

8,40%

9,08%

63.506.667

64.805.667

51.527.000

51.454.833

36.877.167

64.084.000

36.227.667

723.399.000

742.380.000

98

282

125

639

191

87

58

1.241

2.014

721

0,48%

4,87%

39,11%

96.053.833

156.962.500

61.702.500

148.591.167

77.651.333

944.117.000

6

6

32

340

338

161

162 Capítulo 5 - O comércio de marfim no Presídio de Cambambe

Valor estimado do marfim exportado de Cambambe (em réis) Valor do marfim exportado de Luanda (em réis) Valor do marfim com relação ao valor dos escravos – Cambambe Valor do marfim com relação ao valor dos escravos – Luanda

1799

1804

1806

1810

1811

1812

1813

1814

1815

1816

1817

1818

43.551

43.551

232.274

2.467.907

2.453.390

711.338

2.046.911

907.319

4.638.214

1.386.383

631.494

420.996

12.197.960

7.188.070

1,12%

3,16%

1,76%

9,01%

3,76%

0,99%

1,16%

1,69%

0,97%

7.135.110

0,05%

0,03%

0,76%

0,38%

1,66%

3,16%

Preços médios na Alfândega de Luanda (1804-1813) Preço médio do escrarvo (sem contar crias de pé e de peito) Preço médio da ponta de marfim

72.167 7.259

Fonte: Mapas Estatísticos do Reino de Angola. IHGB, DA 2.4.8 (Mapas de 1799); AHU, CCU, Angola, Cx. 112, doc. 47 (Mapas de 1804); Cx. 118, doc. 21 (Mapas de 1806); Cx. 122, doc. 32 (Mapas de 1810); Cx. 124, doc. 9 (Mapas de 1811); Cx. 127, doc. 1 (Mapas de 1812); Cx. 128, doc. 26 (Mapas de 1813); Cx. 130, doc. 30 (Mapas de 1814); Cx. 131, doc. 14 (Mapas de 1815); Cx. 132, doc. 32 (Mapas de 1816); Cx. 134, doc. 37 (Mapas de 1817); Cx. 136, doc. 19 (Mapas de 1818).

Considerações finais Na segunda metade do século XIX, o marfim se tornou a principal mercadoria de exportação de Angola, preenchendo, juntamente com outros produtos extrativistas e agrícolas, o vazio deixado pelo tráfico de escravos. Essa transição do comércio de escravos para o das chamadas mercadorias lícitas ocasionou profundas modificações sociais, aumentado a procura por carregadores de caravanas e ocasionando um reavivamento do comércio interno de escravos.96 Teve ainda importantes consequências ecológicas, sendo a dizimação dos elefantes um problema que persiste até os nossos dias. Apesar de sua relevância, o comércio de marfim em Angola no século XIX, momento da transição de uma economia orientada para o comércio de escravos para uma economia pautada nas exportações de commodities, ainda é pouco estudado. Os principais trabalhos sobre esse tema enfocam o comércio de marfim nas cidades portuárias, localizadas na costa. Acreditamos que esta pesquisa contribuiu para aumentar o conhecimento existente sobre as etapas desse comércio no interior. Estudando as flutuações do comércio de marfim no Presídio de Cambambe, um posto comercial avançado localizado em uma das principais rotas comerciais de Angola, percebemos que o marfim era uma mercadoria suficientemente relevante para ser explicitamente mencionada, ao lado da cera e dos escravos, nos mapas estatísticos confeccionados a pedido de Lisboa. Além disso, percebemos que o marfim circulava no interior, mediando as relações entre os luso-africanos envolvidos com o comércio de caravanas, sendo oferecido mesmo como suborno por um feirante a um capitão-mor que se recusava a fornecer-lhe carregadores para transportarem até Luanda escravos, cera e marfim. A rota do rio Cuanza cresceu de importância no fornecimento de marfim ao longo do período estudado. Enquanto os cativos enviados pelo Presídio de Cambambe representavam, com o passar do tempo, um percentual cada vez menor do total de cativos exportados do Reino de Angola, passando pela Alfândega de Luanda, com o marfim acontecia o contrário. O marfim oriundo de Cambambe tinha uma importância 96 HEINTZE. Pioneiros africanos, p. 65-71.

O Marfim no Mundo Moderno

163

relativa cada vez maior no total das exportações luandenses desse produto. Em 1813, 2/5 do marfim exportado de Angola chegava a Luanda pela rota do Cuanza. Além disso, percebemos que em Cambambe o marfim perfazia uma porção maior das exportações totais que em Luanda. Nos registro alfandegários estudados, o valor do marfim comercializado na capital nunca ultrapassou 1,6% do valor obtido com as exportações de cativos. Esse percentual confirma as afirmativas de Miller, de que o marfim despachado pela Real Fazenda a partir de Luanda raramente representava mais de 1% do valor dos escravos, ou 10% do valor da cera.97 A situação era diferente em Cambambe, onde os valores do marfim comercializado equivaliam a 9% das receitas das vendas de escravos em 1815. Esperamos que este trabalho instigue outros pesquisadores a se aventurarem no estudo do comércio de marfim nos sertões de Angola. A documentação é muito rica e certamente possibilitará conhecer esses intercâmbios em outros presídios e distritos.

97 MILLER. Way of death, p. 645.

164 Capítulo 5 - O comércio de marfim no Presídio de Cambambe

PARTE 2 A circulação e os usos do marfim no Brasil Colonial: séculos XVII-XIX

Capítulo 6 Artisticamente torneados e talhados no Brasil: os móveis em marfim de Nassau e a história de um escultor que viveu em Recife e em Copenhague René Lommez Gomes Veja, ainda, os preciosos assentos e cadeiras, todos feitos em precioso, negro e verde ébano brasileiro, e em belo e branco marfim ou presa de elefante; incrustrados e enfeitados com ouro, prata e madrepérola. Que grande quantidade de todo tipo de cristais, ferros e outros preciosos espelhos; quantas belas sedas, damascos, papéis de parede, alcatifas e cortinas, indianos e brasileiros, há ali. Quão maravilhosos tapetes e leitos lá estão, embutidos de ouro, prata, precioso marfim e bela madeira brasileira. J. Henning

Ouro, prata, “precioso marfim e bela madeira brasileira”, havia um lugar, em Haia, aonde inauditas maravilhas podiam ser vistas. Visitá-lo, segundo o escrivão e pintor Jacob de Hennin, dava aos olhos a oportunidade de cumprirem seu papel; pois a visão – afirmou ele – foi ofertada aos homens para que sempre “contemplassem os grandes prodígios de Deus”.1 Este lugar era a residência do conde Johann Moritz von Nassau-Siegen. O palacete situava-se no local mais nobre da cidade. Construído ao lado do Binnenhof, que alojava a assembleia dos Estados Gerais e o passo do Stadholder, ele ficava no centro administrativo da república e no coração da vida cortesã de Haia. Conhecida por Mauritshuis, a residência foi desenhada e decorada por Jacob van Campen e Pieter Este trabalho é co-financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto PTDC/EPHPAT/1810/2014 1 HENNIN, J. De zinrijke gedachten toegepast op de vijf sinen von ‘s mensen verstand. Amsterdam: Jan Claasen te Hoorn, 1681, p. IV.

O Marfim no Mundo Moderno

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Post. Ela se destacava de seu entorno por introduzir na cidade um novo estilo arquitetônico, inspirado em modelos clássicos livremente interpretados.2 Contribuía para sua fama o fato da casa ter sido construída à distância, durante os oito anos em que seu dono viveu em Recife, na qualidade de governador geral do Brasil neerlandês pela Companhia das Índias Ocidentais (GeocOitroyeerde West-Indische Compagnie - WIC). Mais que isto, a residência devia grande parte de sua notoriedade à riqueza e suntuosidade de seus interiores. Seus pisos e paredes eram revestidos com pedras e madeiras nobres do Brasil. Seus salões, gabinetes e passagens foram decorados com obras de arte e objetos que o conde acumulou de um e do outro lado do Atlântico. Maravilhas e curiosidades do ocidente e do oriente eram exibidas em seus interiores, causando espanto e admiração entre aqueles que tiveram a chance de entrar no edifício após sua inauguração, no verão de 1644. Como relatou Hennin, a cada cômodo, os olhos eram surpreendidos por raridades provenientes dos territórios antes governados por Nassau. A abundância de ouro, prata e pedras preciosas extasiavam os sentidos e excitavam a mente. Pinturas e tapeçarias mostravam “as nações pagãs e barbarescas, mouros e mouras, negros, brasilianos, tapuias, hotentotes”, revelando as cores e as formas dos territórios americanos e africanos recém conquistados pelo comércio e pelas armas da república.3 Quando não representadas em obras de arte, as riquezas ultramarinas podiam ser conhecidas por meio dos objetos que compunham a coleção de curiosidades amealhada pelo conde. Arcos, flechas e lanças indígenas; cristais, corais, conchas, lápis-lazúli; um rinoceronte, um elefantinho, tartarugas, macacos e outros animais empalhados... curiosidades de todos os cantos mundo estavam expostas na residência, especialmente na “grande sala” em que o escrivão acreditou presenciar o “ Juízo Final de Deus”.4

2 Sobre a Mauritshuis, ver BUVELOT, Quentin. Mauritshuis. The building. The Hague;

Zwolle: Mauritshuis; Waanders Uitgevers, 2014. BOOGAART, Ernest van den. Johan Maurits van Nassau-Siegen – 1604-1679. A Humanist Prince in Europe and Brazil. The Hague: The Joahn Maurits van Nassau Stichting, 1979. LEÃO, Joaquim de Souza. A ‘Mauritshuis’ ao tempo de Nassau. Recife: Instituto de Ciências do Homem, 1966. 3 HENNIN. De zinrijke gedachten toegepast op de vijf sinen von ‘s mensen verstand. p. 111. 4 HENNIN. De zinrijke gedachten toegepast op de vijf sinen von ‘s mensen verstand. p. 111;118-120.

168 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Publicada por Hennin em 1681, a extasiada descrição da Mauritshuis integrava o livro De zinrijke gedachten toegepast op de vijf sinen von ‘s mensen verstand (Substanciosos conceitos apropriados aos cinco sentidos da razão humana). A obra, de fundo moral, refletia sobre o papel dos sentidos na percepção da criação divina. O primeiro capítulo, dedicado à visão, apresentava as belezas que podiam ser contempladas em Haia, sendo o ponto alto do relato a descrição de uma visita à casa de Nassau.5 É difícil dizer com que grau de precisão, liberdade ou fantasia Hennin redigiu o relato. Entretanto, boa parte das coisas extraordinárias que o encantaram na Mauritshuis foram descritas com igual surpresa por outros visitantes que lá estiveram. Este foi o caso de um conjunto de móveis inteiramente fabricados em marfim. Em 1654, o historiador Gaspar Barleus registrou que estas “obras de arte” ficavam expostas no “magnífico palácio”, sendo “apreciadas e admiradas” por serem de “marfim e dentes de elefante”.6 Semelhante testemunho foi deixado por Adolph Vorstius, botânico da Universidade de Leiden, que foi recebido por Nassau em 12 de dezembro de 1644. Apenas quatro meses separavam o retorno do conde à Europa e o momento em que o professor entrou na Mauritshuis.7 Ele esteve na residência em companhia de Constantijn Huygens, um dos mais importantes eruditos da república e vizinho do conde. Após ir ao palacete, Vorstius escreveu para o amigo, expondo suas lembranças sobre a visita. A carta rescendia a espanto, tamanha a impressão causada pelas 5 Jacob de Hennin trabalhou na prisão Voorpoort até o ano de 1672. A instituição ficava nas

imediações da Mauritshuis. Cotidianamente, portanto, ele passava muito próximo ao palacete de Nassau. Porém, não se sabe quando ele teve a oportunidade de conhecer seu interior. O que se pode aventar é que isto teria ocorrido antes de 1677, data em que Hennin se mudou para a cidade de Utrecht. Françozo levanta a hipótese de que sua visita à Mauritshuis tivesse ocorrido após 1667, data em que Nassau encomendou a Maximiliam van der Gucht a fabricação dos tapetes citados. Contudo, em 1654, Barleus afirmou que o conde “mandou representar aquelas cousas [do Brasil] em desenhos e pinturas e tecê-las em tapetes para a longa lembrança dos pósteros”. “Tais pinturas e tapizes”, já naquela altura, podiam ser vistos “na entrada do magnifico palácio que ele construiu em mármore em Haia”. Ver FRANÇOZO, Mariana. De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau. Campinas: Editora da UNICAMP, 2014. p. 180-188. BARLEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o governo do ilustríssimo João Maurício, conde de Nassau... Brasília: Senado Federal, 2005. p. 356. 6 BARLEUS. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, p. 356. 7 Nassau partiu do Brasil em julho de 1644. Em agosto, ele se encontrava em Haia, inaugurando sua residência com uma recepção oferecida para as pessoas mais ilustres da cidade.

O Marfim no Mundo Moderno

169

“riquezas do oeste” e por “todas as coisas magnificas e monstruosas que os céus, os mares e a terra de lá produzem”.8 “Não tenho como expressar” – escreveu ele – “quanto prazer você me ofereceu por se dignar a me levar” para visitar “o laureado Maurits e a sua deslumbrante, invejável casa”. “Quão revigorante foi ver tantos peixes, criaturas de quatro patas, aves, insetos e plantas da América” registrados em folhas de papel que o anfitrião apresentou com grande cortesia. Lá estavam cenas de várias “regiões do Brasil”, representadas “em cores vibrantes sobre painéis de grande valor artístico”. Mas, “não foi apenas com as cenas finamente pintadas e representadas que aquele grande herói nos surpreendeu” – afirmou Vorstius. “Os objetos verdadeiros, que nelas apareciam pintados, fizeram mesmo. Quanta riqueza em marfins não trabalhados e esculpidos, madeiras muito caras, couros extremamente raros, penas brilhantemente coloridas que ali, juntos, podiam ser vistos”.9 Dificilmente vistas no interior das casas neerlandesas, as presas de elefante in natura impressionavam os visitantes da Mauritshuis. Impacto ainda maior causava a visão dos raríssimos móveis inteiramente fabricados com peças de marfim lavrado, fazendo com as peças fossem destacadas em quase todas as descrições da residência de Nassau. Nenhum relato, entretanto, apresentou as peças em detalhes suficientes para que se adivinhasse seu número e aspecto. Este registro viria a ser feito pelo próprio conde. Depois de viver quatro anos em Haia, Nassau se instalou em Kleef, uma cidade germânica. O motivo da mudança foi sua nomeação como Stathouder do ducado de Kleef e dos condados de Mark e Ravensberg, pelo príncipe Friedrich Wilhelm, o Eleitor de Brandemburgo. Em agradecimento, o conde presenteou o Eleitor com “um conjunto de luxuosos manuscritos raros herdados da biblioteca de seu pai”.10 Um segundo presente foi oferecido a ele, em 1652, provaCARTA DE ADOLF VORSTIUS A CONSTANTIJN HUYGENS. Leiden, 20 de dezembro de 1644. In: BUVELOT, Quentin. Mauritshuis, p. 273. CARTA DE ADOLF VORSTIUS A CONSTANTIJN HUYGENS. Leiden, 20 de dezembro de 1644. In: WORP, J. A. (org.). De Briefwisseling van Constantijn Huygen. Vierde deel. ‘s-Gravenhage: Martinus Nijhof, 1915. nº 3853. 9 CARTA DE ADOLF VORSTIUS A CONSTANTIJN HUYGENS. Leiden, 20 de dezembro de 1644 10 FRANÇOZO. De Olinda a Holanda, p. 207.

8

170 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

velmente em reconhecimento por sua interseção junto ao Imperador Ferdinand III em favor da diplomação de Nassau como príncipe do Sacro Império Romano Germânico.11 A oferta era composta por mais de uma centena de itens da coleção do conde, que haviam permanecido em Haia. Certo Sr. Copes, um emissário do Eleitor, foi encarregado de ir à Mauritshuis “para tomar as medidas necessárias para a embalagem e o envio dos móveis e raridades” para Berlim. Na ocasião, Nassau preparou listas com os itens do presente. Encabeçava o inventário uma sequência de dez itens “em marfim maciço, todos belamente talhados e torneados, e feitos no Brasil”.12 As peças eram “uma mesa em tamanho ordinário com a armação correspondente”, duas poltronas grandes com braços;13 duas cadeiras menores e sem espaldares; um banco robusto, com oito pés de comprimento; “duas colunas ou gueridons” para castiçais; dois castiçais belamente talhados; duas molduras para espelhos; um gabinete com várias gavetas, adornado com pilastras, festões e “os 12 apóstolos belamente talhados, cada um com cinco polegares de comprimento”; uma “coroa de dez castiçais, com um grande e raro meão”; um almofariz feito em marfim, com seu pilão. Ao listar os móveis, o conde fez questão de salientar 11 Nassau e mais dois membros de sua família foram diplomados Príncipes Imperiais, por

Ferdinand III, em Praga, na data de 25 de novembro de 1652. Ver DRIESEN, Ludwig. Leben des Fürsten Johann Moritz von Nassau-Siegen. Berlim, 1849. p. 168-169. EVEN, Pierre. Dynastie Luxemburg-Nassau: von Grafen zu Nassau zu den Grossherzögen von Luxemburg; einen neunhundertjährige Herrschergeschichte in einhundert Biographeien. Luxemburg: Schortgen, 2000. p. 126. OPGENOORTH, E. Johan Maurits as Stadholder of Cleves under the Elector of Brandenburg. In: BOOGAART, Ernest van den. Johan Maurits van Nassau-Siegen – 1604-1679. A Humanist Prince in Europe and Brazil. The Hague: The Johann Maurits van Nassau Stichting, 1979. p. 44-47. Alguns autores confundiram datas e ocasiões, fazendo crer que o fato ocorreu na Dieta Imperial de Regensburg, em 1653. MELLO, Evaldo Cabral de. Nassau: governador do Brasil Holandês. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. p. 238. MENTZ, Søren. Arte, poder e política: a Dinamarca e os Países Baixos, 1600-1660. In: NATIONALMUSEET. Albert Eckhout volta ao Brasil / Albert Eckhout returns to Brazil. Copenhagen: Nationalmusset, 2002. p. 97. 12 Da lista, existem três cópias. Duas foram registradas nas Atas de Kleef, dos Arquivos Secretos da Prússia, em Berlim. Uma terceira lista, com pequenas variações, encontrava-se no Arquivo da Casa Real, em Haia. Aqui serão utilizadas as versões publicadas por Larsen e Driesen. VERZEICHNIS DERER IM VORGEDACHTEN AKKORD UNS VON SR. LBD. UEBERLASSENEN STUECKEN. [07 set. 1652] In: LARSEN, Erik. Frans Post. Interprète du Brésil. Amsterdam; Rio de Janeiro: Colibri, 1962. p. 252-253. VERZEICHNIS DERER IM VORGEDACHTEN AKKORD UNS VON SR. LBD. UEBERLASSENEN STUECKEN. [07 set. 1652] In: DRIESEN, Ludwig. Leben des Fürsten Johann Moritz von Nassau-Siegen. Berlim, 1849. p. 356-359. 13 Em uma das listas, estes itens são indicados como duas cadeiras (stoele). Em outra, como poltronas (sessel).

O Marfim no Mundo Moderno

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seu valor: muito bela e artisticamente torneados e talhados no Brasil, aqueles objetos de marfim maciço eram únicos em todo o mundo.14 Figura 1 – Foto do mobiliário em marfim que pertenceu a Johann Moritz von Nassau-Siegen, exibido no Hohenzollernmuseum, Berlim. Fotografia: autor desconhecido, c. 1912 Fonte: PAZAUREK, G.E. Guter und Schelechter Geschmack Im Kunstgewerbe. Stuttgart; Berlin: Deutsche Verlags-Anstalt, 1912

Figura 2 – Cadeira em marfim, atribuída a Jacob Jensen Nordmand, c. 1640. Marfim talhado e torneado. Schloss Sanssouci, Potsdam

14 VORGEDACHTEN AKKORD UNS VON SR. LBD. UEBERLASSENEN STUECKEN.

[07 set. 1652].

172 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Figura 3 - Poltrona em marfim, atribuída a Jacob Jensen Nordmand, c. 1640. Marfim talhado e torneado. Schloss Sanssouci, Potsdam

Figura 4 - Gabinete com os doze apóstolos, atribuído a Jacob Jensen Nordmand, c. 1640. Marfim talhado e torneado. Schloss Sanssouci, Potsdam

Nassau também deu ao Eleitor “oito grandes dentes de elefante”, entre os quais um tinha nove pés de comprimento e os outros pesavam “mais de 50 quilos”, cada um. Com eles, seguiram “peças de marfim talhado, tanto grandes quanto pequenas, [em quantidade] suficiente para cobrir o vestíbulo de uma câmara”.15 15 VORGEDACHTEN AKKORD UNS VON SR. LBD. UEBERLASSENEN STUEC-

O Marfim no Mundo Moderno

173

Tamanha quantidade de marfim alcançava um alto valor pecuniário. Talvez não fosse este, contudo, o motivo pela qual ele despertou tanta atenção. Usado na decoração da casa, o marfim foi revestido de valores simbólicos. Exposto diante dos olhos dos visitantes, sua alvura remetia a imagens de um Novo Mundo, descortinado pelo favor divino e pela força das armas e do comércio neerlandês. As presas de elefante in natura, os móveis em marfim lavrado e quiçá o elefantinho empalhado podiam ser facilmente interpretados como signos do papel desempenhado pelo ex-governador do Brasil na expansão dos negócios da república no continente africano.17 Integradas à decoração da casa, que recriava o orbe em miniatura, estas peças pareciam materializar o lema e a dimensão das ambições do conde: Qua Patet Orbis – mais vasto que o mundo.18 16

KEN. [07 set. 1652]. 16 Barleus, após citar a admiração causada pelos móveis em marfim, emendou a observação: quando Nassau retornou do Brasil, “havia nas naus, assim da Companhia como de particulares, quantidades de mercadorias, açúcar, madeira, marfim, ouro da África, tabaco, doces e couros no valor total de 2.600.000 florins”. O historiador Isaac Commelijn noticiou que ao final de julho de 1644, treze navios vindos de Pernambuco aportaram na Holanda e na Zelândia, trazendo Nassau e seus companheiros. Os navios vinham carregados com 8.000 cofres de açúcar, 1.600 marcos de ouro e uma grande quantidade de “dentes de elefante e outras mercadorias”. Uma fatura da WIC, discriminando os bens levados por Nassau para a República, indicava que enormes somas de peças de marfim foram embarcadas no navio Orangieboom. Arquivo Nacional (Haia), Arquivo da Velha Companhia das Índias Ocidentais, Cartas e Papéis vindos do Brasil e de Curação, NL-HaNA_OWIC 1.05.01.01, inv.nr.59. BARLEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, p. 356. COMMELIJN, I. Histoire de l avie & actes memorables de Frederic Henry de Nassau, Prince d’Orange. Amsterdam: la veuve & les heritiers de J. Janssonius, 1656, p. 158. 17 Ainda está por ser investigada a história do elefante empalhado da Mauritshuis. Ao longo da vida, o colecionador neerlandês Ernst Brinck fez diversas anotações sobre coisas curiosas que o interessavam. Ele registrou que, em 1633, navios da VOC aportaram em Amsterdam, trazendo um elefante de três anos de idade. O animal, vindo do Ceilão, foi dado ao príncipe Frederik Hendrik van Oranje, que o manteve por mais três anos. Em 1636, o príncipe teria presenteado o “conde Maurício de Nassau” com o elefantinho. Isto teria ocorrido no mesmo ano em que Nassau foi nomeado governador do Brasil. Em seguida, segundo Brinck, o animal foi vendido pelo valor 8.000 florins e recebeu um novo nome: Hansken. É sabido que Hansken fez longas viagens pela Europa, sendo desenhado por artistas como Rembrandt. Já grande, ele morreu em Florença, em 1655. Baseando-se no relato, os historiadores Abbing e Tuynman consideraram que Hansken era o animal que pertenceu a Nassau. Contudo, a existência do pequeno elefante empalhado da Mauritshuis levanta a hipótese de que Brinck tivesse errado na identificação. O conde era muito atento aos delicados rituais que regiam a troca de presentes entre aristocratas e dificilmente teria cometido a indelicadeza de se desfazer de um magnifico presente, ofertado pelo príncipe que o elegeu governador do Brasil. Atualmente, a única constatação que pode ser feita sobre o elefante empalhado é que ele, sendo pequeno, não era Hansken, que faleceu adulto. Ver ABBING, Michiel Roscam; TUYNMAN, Pierre. Rembrandt´s drawings of the elephant Hansken. In: ABBING, M.R. (org). Rembrandt 2006: Essays. Leiden: Foleor, 2006. p. 173-190. 18 Sobre a decoração da Mauritshuis como representação do mundo, ver SCHEURLEER,

174 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Sob ordens de Nassau, de fato, várias frotas da WIC deixaram os portos brasileiros com direção à costa ocidental africana, a partir de 1637. Elas levaram marinheiros e soldados europeus e ameríndios para a conquista dos entrepostos portugueses, situados no litoral. O principal motivo das investidas era suprir o nordeste brasileiro do contingente de escravos necessário para movimentar a indústria açucareira. Com seu sucesso, esperava-se ainda mudar a forma dos neerlandeses atuarem no tráfico escravista entre a África e todas as regiões que ocupavam na América. Apesar de seus navios frequentarem a costa africana desde 1591, os neerlandeses entraram muito tardiamente no comércio de escravos. Faltavam-lhes os recursos necessários para tornar estas trocas regulares e em volume suficiente para manter os engenhos do Brasil ou em outros espaços, uma vez que “escambar negros demandava a posse de navios adequados, de portos africanos e mercadorias adequadas, de contatos com tratistas nativos e até do conhecimento da língua portuguesa”. A despeito da WIC manter a feitoria de Moure, na costa da Guiné, seus agentes não logravam sucesso na montagem do complexo de recursos necessários para a sustentação do tráfico escravista. Assim, por muito tempo, a tarefa principal dos feitores instalados na África continuou sendo a manutenção do comércio de marfim, ouro e cobre que, independente do tráfico escravista, cumpria importante papel no conjunto das trocas realizadas pela companhia.19 Garantir a presença neerlandesa em Mina, São Tomé, Luanda, Cabo Verde e Cachéu havia se tornado a ordem do dia para a administração nassoviana do Brasil neerlandês. Cumprindo determinações dos diretores da WIC, em 1637, o conde aparelhou uma esquadra de nove Th.L. The Mauritshuis as “domus cosmograpfica” I. In: BOOGAART, E. Johan Maurits van Nassau-Siegen –1604-1679. A Humanist Prince in Europe and Brazil. The Hague: The Johan Maurits van Nassau Stichting, 1979. p. 142-189. PELT, R.J. The Mauritshuis as “domus cosmograpfica” II. In: BOOGAART, E. Johan Maurits van Nassau-Siegen –1604-1679. A Humanist Prince in Europe and Brazil. The Hague: The Johan Maurits van Nassau Stichting, 1979, p. 190-196. 19 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. p. 212-214. Ao analisar o comércio português de escravos africanos, Alencastro indicou que “o escambo de escravos encadeia a oferta de uma série de outros produtos africanos”. Os escravos seriam, então, uma mercadoria aglutinante, “o nervo da mercancia” luso-africana. Os demais produtos, mercadorias ancilares. A entrada tardia dos neerlandeses no tráfico de escravos e a importância do seu comércio de marfim e cobre africanos indicam que a lógica do comércio português na África não corresponde à realidade das atividades batavas no continente, ao menos até 1637.

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navios para a tomada do forte de São Jorge da Mina. Comandada pelo coronel Hans van Koin, a frota rendeu o castelo, principal baluarte dos portugueses na costa. Em Loango, Mpinda e Zarry, foram instaladas feitorias comandadas por Cornelis Jansen Root e Hendryck Eeckhout – entrepostos que continuaram a render à companhia lucros maiores no trato de peças de marfim que de escravos.20 Em seu mais importante passo para a conquista da África, Nassau organizou uma expedição para a tomada de Angola e São Tomé. Tentando “juntar as regiões africanas às conquistas brasileiras”21, em 1641, ele colocou a esquadra sob o comando de Cornelis Cornelisz. Jol, que partiu de Recife para investir contra São Paulo de Loango e, em seguida, São Tomé. Acreditava-se que tais empresas consolidariam o lugar de Recife como principal entreposto no comércio entre a África e a República Batava. Nos planos de governo da conquista brasileira, os navios saídos da Europa iriam descarregar seus produtos na Mina, aonde receberiam ouro, marfim, cera e malagueta. Na sequência, iriam a São Tomé, recolher sacos de açúcar destinados a Angola. Aportariam em Loango e Mpinda para comprar marfim e cobre. Deixariam produtos de troca em Loango, aonde encheriam os porões de escravos. Então, seguiriam para Pernambuco, antes de retornarem à república, carregando açúcar, madeira, peles e outros produtos.22 Apesar dos planos de conquista traçados por Nassau e pelo Conselho Político não terem se concretizado plenamente, o Recife realmente se tornou uma parada obrigatória para grande parte dos navios da WIC que transitavam entre a Europa, a África e a América. A região comportava o maior número de desembarques de navios neerlandeses que entravam e saiam da África. Na altura das décadas de 1630 e 1640, a capital da conquista recebeu 44% das embarcações neerlandesas que circularam na costa africana, navegando poucas no trajeto direto entre Europa e África.23 20 ALENCASTRO. O Trato dos Viventes. p. 210-215. RATELBAND, Klaas. Os Holandeses no

Brasil e na Costa Africana. Angola, Kong e S. Tomé (1600-1650). Lisboa: Veja, 2003, p. 109-113.

21 “Carta do conde e do Alto Conselho aos XIX”, 31 de maio de 1641. Apud. RATELBAND.

Os Holandeses no Brasil e na Costa Africana, p. 127.

22 “Extrato das resoluções secretas do Conselho Supremo do Brasil”, 06 de fevereiro de 1641;

“Extrato das resoluções secretas do Conselho Supremo do Brasil, 05 de abril de 1641. apud. RATELBAND. Os Holandeses no Brasil e na Costa Africana, p. 175. 23 SILVA, Filipa Ribeiro da. Dutch and Portuguese in Western Africa. Empires, Merchants and

176 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

O exorbitante volume de marfim que Nassau levou para a república testemunhava, portanto, a pujança do comércio de produtos africanos alcançada pela WIC e a nova centralidade dos portos do Recife na organização destas trocas. Ao serem exibidos na Mauritshuis, as presas de elefante e os móveis em marfim foram convertidos em signos do empenho do conde em enviar “trombetas belicosas contra o Níger” e “contra as costas africanas”. Para Barleus, o marfim que existia na casa evocava a imagem das terras das Índias Ocidentais a abrir o “teatro das tuas glórias”, no seio da república. Quiçá o cenário da casa, repleto de imagens e coisas do além-mar, teria feito o historiador imaginar “o rico morador de Angola e os nativos negros espalhados pelas orlas do oceano”, uns a oferecer “ao mercador o branco marfim”, outros a lhe apresentar “o fulvo ouro” e, “com o preço iníquo”, tomarem como escravos homens vencidos em batalhas.24 O fascínio despertado pelos móveis de marfim, contudo, não impediu o esquecimento do nome do escultor ou artesão responsável por sua criação. Registrar a autoria das peças não parece ter sido relevante para Nassau, no momento de presenteá-las a príncipe Friedrich Wilhelm. Na lista dos objetos embalados pelo Sr. Copes, o conde se limitou a descrever o aspecto dos móveis e suas principais qualidades.25 As descrições fornecidas permitiam a identificação de cada peça e sublinhavam seu valor como raridades dignas de figurar em uma coleção principesca. Salientando o material, a origem e o aspecto da bela fatura artística dos móveis, Nassau conquistou a graça do Eleitor, levando-o a aceitar a oferta e a dar continuidade ao ritual das trocas de presentes que, no período moderno, selava amizades e alianças entre a aristocracia europeia.26 the Atlantic System. 1580-1674. p. 256-257. 24 BARLEUS. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, p. 380. 25 VORGEDACHTEN AKKORD UNS VON SR. LBD. UEBERLASSENEN STUECKEN. [07 set. 1652]. 26 Em várias ofertas de presentes que fez, ao longo da vida, Nassau não se deu ao trabalho de nomear os artistas e artífices que trabalharam para ele, no Brasil. Em 1678, ao presentear o rei francês Luís XIV com peças de sua coleção, Nassau escreveu uma carta indicando que teve a seu “serviço, no tempo de minha estadia no Brasil, seis pintores, cada um pintando de maneira curiosa aquilo à que era mais capaz de fazer”. Novamente, ele não nomeou os artistas. CARTA DO PRÍNCIPE MAURÍCIO DE NASSAU AO MARQUES DE POMPONE. Kleef, 21 DE DEZEMBRO DE 1678. In: LARSEN, Erik. Frans Post. Interprète du Brésil. Amsterdam; Rio de Janeiro: Colibri, 1962. p. 254-255.

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Na República Batava, a associação de uma obra de arte a um artista renomado poderia resultar no aumento de seu valor e distinção. Assim, é possível que o criador dos móveis de marfim não fosse afamado o suficiente para garantir o registro de seu nome. Hábil no manejo das palavras e na construção de relações políticas, Nassau dificilmente deixaria de nomear o criador das peças, caso isto elevasse a distinção do presente.27 Como o nome de seu criador, parte do mobiliário em marfim estava fadado a desaparecer. Uma descrição das residências reais de Berlim e Potsdam, publicada em 1779, noticiou o paradeiro de apenas uma parte das peças que Nassau deu a Friedrich Wilhelm. Àquela altura, um canapé, uma mesa com gueridons, cadeiras do tipo “sella curulis”, tamboretes e um espelho com moldura de marfim encontravam-se na Kunstkammer e na Naturaliekammer reais. Transmutados em curiosidades, os móveis estavam expostos junto a outras peças de marfim lavrado, que compunham a coleção.28 Estes itens ainda podiam ser localizados, ao longo do século seguinte. Porém, a potência destruidora da Segunda Guerra Mundial fez com que vários móveis fossem perdidos. Sobreviveram duas poltronas, duas cadeiras e o gabinete, já bastante danificados.29 As peças remanescentes são ricamente decoradas. Duas poltronas são adornadas com festões de flores e frutos, e têm relevos representando naturezas mortas com frutos tropicais. As cadeiras, desenhadas como um trono Dagoberto, têm pés em forma de garras de leão. Uma poltrona e uma cadeira trazem relevos com as armas da casa de Nassau. As duas cadeiras, por sua vez, portam o monograma do conde talhado à frente. Atrás, guardam marcas com suas datas de fabricação: 1639 e 1640.30 Por fim, o gabinete imita a fachada de um edifício clássico, exi27 Poucos marceneiros da República que alcançaram fama suficiente para que suas obras fossem

reconhecidas, como ocorreu com móveis em madeira nobre criados por Herman Doomer e Wilhelm de Roots. BAARSEN, Reinier. Wonen in de Gouden Eeuw. 17de-eeuwse Nederlandse meubelen. Amsterdam: Rijksmuseum; Nieuw Amsterdam, 2007. 28 NICOLAI, Friedrich. Beschreibung der Königlichen Residenzstädte Berlin und Potsdam und aller daselbst befindlicher Merkwürdigkeit… Zwenter Band. Berlim: Friedrich Nicolai, 1779, p. 588. 29 Atualmente, estas peças se encontram no acervo do Castelo Sanssouci. BOOGAART, Ernest van den; DUPARC, F.J. (orgs.) Zo wijd de wereld strekt. Den Haag: Mauritshuis, 1979. p. 205. LARSEN, Erik. Frans Post. Interprète du Brésil. Amsterdam; Rio de Janeiro: Colibri, 1962. p. 53. As peças perdidas estão listadas na Lost Art Internet Database, que registra obras de arte perdidas durante a Segunda Guerra Mundial. 30 SOUSA-LEÃO, Joaquim de. Frans Post. 1613-1680. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

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bindo os doze apóstolos dispostos em nichos, separados por colunas jônicas e festões. Desconhecendo a autoria dos móveis, estudiosos do século XX consideraram que eles foram feitos por artesãos portugueses que viviam em Pernambuco.31 O fundamento para a suposição encontrava-se no estilo das peças, que aos olhos de alguns intérpretes portavam “as características colunetas em arcada dos móveis espanhóis e portugueses”.32 Ainda no início do século, foi propagada a notícia de que um hábil torneiro e talhador norueguês, experiente na escultura do marfim, havia vivido no Recife, sob o governo do conde. Seu nome era Jacob Jensen Nordmand.33 A notícia não era nova. Dados sobre a biografia do artista já haviam sido publicados no século XVIII.34 Contudo, o nome do artista foi integrado aos estudos do Brasil neerlandês somente na década de 1920.35 Com a divulgação da informação, alguns estudiosos consideraram a possibilidade de que o escultor tivesse trabalhado para Nassau, criando os móveis em marfim.36 Recentemente, sem exposições de motivos ou uma argumentação historiográfica, a hipótese passou de incerteza a afirmações categóricas. Para alguns estudiosos, Nordmand seria o verdadeiro “autor dos entalhes na mobília em marfim” que pertenceu ao conde.37 1948. p. 67. 31 HUTH, Hans. Exotische Elfenbeinmöbel, Pantheon, vol. 13, sup. 31, p. 120-122, 1934. SOUSA-LEÃO, Joaquim de. Frans Post, p. 69. BOOGAART, Ernest van den; DUPARC, F.J. (orgs.) Zo wijd de wereld strekt. Den Haag: Mauritshuis, 1979. p. 205. BUVELOT, Quentin. Albert Eckhout. A Dutch Artist in Brazil. The Hague; Zwolle: Royal Cabinet of Paintings Mauritshuis; Waanders Publishers, 2004. p. 140. 32 SOUSA-LEÃO. Frans Post, p. 69. 33 Os nomes do escultor foram grafados de vários modos, ao longo do tempo: Jacob, Jakob, Jensen, Jenssen, Jenszen, Jenssøn, Nordmand, Nordman e Normand. Adotamos a grafia atualizada, usada na historiografia recente. 34 NORDMAND, Jacob Jensen. Autobiografia (1670); En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie. In: SUHM, Peter Frederik. Samlinger til den Danske Historie. 2 binds; hœfte 3. Kiöbenhavn: Godiche, 1784. p. 134-158. 35 SCHINITLER, C.W. Jensen ( Jenszen), Jacob. In: VOLLMER, H. (org.). Allgemeine Lexikon der Buldenden Künstler. Leipzig: E.A. Seeman, 1925. p. 516-517. HUTH, H. Exotische Elfenbeinmöbel, Pantheon, 1934. JENSEN, C.A. Nordmand, Jacob Jensen. In: Dansk Biografisk Leksikon, vol. 17. Copenhague: J.H. Schultz, 1938 p. 284. 36 WHITEHEAD, P. J. P.; BOESEMAN, M. Um retrato do Brasil Holandês do século XVII: animais, plantas e gente pelos artistas de Johan Maurits de Nassau. Rio de Janeiro: Livraria Kosmos, 1989. p. 195. BENCARD, Mogens. Two 17th century Eskimos at Rosenborg Palace. In: HANSEN, J.P. Hart; GULLØV, H.C. (orgs.) The mummies from Qilakitsoq – Eskimos in the 15th century. København: Museum Tusculanums, 1989. p. 50-52. 37 FRANÇOZO, Mariana. De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau.

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Contudo, ainda pairam dúvidas e questionamentos sobre a atribuição da autoria dos móveis a Nordmand. Para além de veladas divergências de opinião sobre o estilo dos móveis, a identificação do norueguês como autor dos entalhes se assenta sobre registros documentais vagos e escassos. As fontes que situam artista no Brasil não citam os móveis e quase nada dizem sobre a relação de Nordmand com o conde. Além disto, eles não são coevos ao momento de criação dos objetos. Apesar de serem datados do século XVII, estes registros foram gerados 30 anos depois que o norueguês deixou o Brasil. O mais importante destes documentos, uma autobiografia do escultor, é exemplar das distâncias que separam o momento de criação dos registros e o tempo em que o norueguês esteve nos trópicos.38 O relato foi composto ao final da vida de Nordmand. Naquele ano de 1670, o artista encontrava-se em Copenhague, trabalhando sob condições muito diferentes daquelas que geraram as experiências que ele vivenciou no Brasil. É possível, portanto, que as intenções que guiaram a construção da narrativa e as falhas da memória tivessem interferido na seleção, narração e interpretação dos fatos da própria trajetória. Assim, para servir ao estudo da vida do artista, a leitura da autobiografia exige do historiador um esforço de reconhecimento das condições que levaram à sua redação. Ainda assim, embora sejam posteriores ao momento em que Nordmand viveu nos trópicos, os registros de sua trajetória têm grande importância. Os documentos guardam raras informações sobre a formação e atuação de um entalhador e torneiro seiscentista, que se especializou na criação de objetos de luxo a partir de matérias primas nobres, como o marfim. Apontam, ainda, para detalhes sobre a produção de peças destinadas a coleções de curiosidades. E, por fim, apresentam relevantes indícios sobre a vida do norueguês no Novo Mundo, comportando dados que permitem aventar hipóteses sobre sua relação com Nassau e acerca de como exerceu seu ofício aquele que pode ter sido o mais antigo – e ainda tão desconhecido – escultor de marfim a viver no Brasil.

Campinas: Editora da UNICAMP, 2014. p. 215. MELLO. Nassau, p. 140; 143. 38 NORDMAND, Jacob Jensen. Autobiografia (1670); En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie. In: SUHM, Peter Frederik. Samlinger til den Danske Historie. 2 binds; hœfte 3. Kiöbenhavn: Godiche, 1784. p. 134-158.

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O retrato do artista O retrato é sóbrio. O meio corpo de um homem, pintado sobre o painel de madeira, quase não se destaca do fundo castanho. Ruivos, os cabelos longos e a barba aparada emolduram seu rosto. A fisionomia circunspecta ainda guarda um pouco da juventude, ameaçada pelos olhos fundos e pelas rugas que já sulcam a testa. Figura 5 – Retrato de Jacob Jensen Nordmand por Wolfgang Heimbach, 1654. Óleo sobre madeira. Kongernes Samling Rosenborg, Copenhague

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O traje escuro reforça a austeridade do retrato. O gibão guarnecido com botões forrados e a túnica de seda brilhante sugerem um refinamento comedido. Contrastando com os tecidos pretos das vestes, os punhos e a gola de linho branco emprestam certo ar de impecabilidade ao retratado e iluminam a pintura. Do seu ombro direito, desce a bainha da espada, que se anuncia na base do painel. Sobre a alça, ele pousa uma das mãos. Os olhos e as mãos do modelo dominam a atenção de quem observa o retrato. A mão esquerda, sobre a cintura, segura um instrumento de metal dourado – um compasso. A direita estende-se para a frente, mostrando uma minúscula caveira. Melancólico e firme, o olhar fita o observador, vaticinando: memento mori... lembre-se, você morrerá. A miniatura do crânio foi entalhada em material claro, provavelmente madeira, osso ou marfim. Objetos como este eram encontrados nas coleções de curiosidades da Europa seiscentista. Eles eram valorizados pela virtuosidade de sua fabricação, seu “artifício”; pela qualidade e raridade do material com que eram feitos; e pelo significado que materializavam – a finitude da vida. Associada a outros elementos do retrato, a pequena escultura parece ter acumulado um sentido a mais. Caveira, compasso e espada, os três objetos simbolizavam os ofícios do retratado, cuja identidade era revelada pelas iniciais pintadas no painel: “I:I-S:N:”, Jacob Jensen Nordmand. Nordmand era um entalhador e torneiro norueguês, radicado em Copenhague, cidade em que foi retratado. Como indicavam as inscrições, o painel foi produzido em 1654. À época, o artista tinha 40 anos de idade e estava no auge da carreira, destacando-se pela habilidade na talha de materiais raros como o sicômoro, a madrepérola e o marfim. No tempo de Nordmand, o compasso era um instrumento usado em vários ofícios que recorriam à geometria e à mensuração, como as artes da cartografia, da astronomia e da gravura. Por isto, em pinturas e gravuras, a imagem do instrumento era usada para simbolizar muitas atividades diferentes, entre elas a arte da escultura.39 39 Inúmeros exemplos poderiam ser citados aqui. Ficaremos com dois. Pintado em 1610, um

retrato mostrava o astrônomo Johannes Kepler segurando um compasso. A obra original foi perdida, mas cópia sobreviveu no monastério de Kremsmünster (Áustria). Na mesma década, P. P. Rubens fez um retrato póstumo de Christophe Plantin, influente editor de Antuérpia. Nele, Plantin trazia um compasso dourado e um livro nas mãos. Ele próprio, em 1555, escolheu um Compasso de Ouro como emblema de sua casa editorial. Ver NAVE, Francine de. Amberes

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Nas várias modalidades de escultura, como a talha e a tornearia, compassos de diferentes formatos serviam para “tomar todas as medidas”, estabelecer proporções e definir ângulos.40 Assim, como Nordmand, vários escultores da segunda metade do século XVII foram retratados junto a obras esculpidas e a um compasso. Entre eles estavam Grinling Gibbons e Albert Jansz. Vinckenbrinck, batavos conhecidos pela virtuosidade na arte da talha. Gibbons atuou na Inglaterra e foi o autor de excepcionais entalhes em madeira, usados na decoração de espaços arquitetônicos.41 Vinckenbrinck se especializou na produção de baixos-relevos e pequenos objetos em madeira, madrepérola e marfim; como uma caveira em madeira de buxo, similar à do retrato de Nordmand.42

como centro tipográfico del mundo ibérico (siglos XVI-XVIII). In: THOMAS, Werner; STOLS, Eddy (orgs.). Um Mundo sobre Papel. Libros y grabados flamengos en el Império Hispanoportugués. (siglos XVI-XVIII). Lovaina; La haya: Acco, 2009. p. 39-62. 40 O francês André Félibien definiu a escultura como “a arte pela qual, em se retirando ou em se aumentando matéria, são formados todos os tipos de figuras; como quando se trabalha o barro ou a cera, a madeira, as pedras ou o metal”. O trabalho escultórico seria “realizado ou pela escavação, como se faz com a madeira, as ágatas e outras pedras; ou pela produção de relevos”. Assim, podiam “ser inseridas no ramo da escultura as obras torneadas que, nos edifícios, servem à comodidade ou ao embelezamento”, como “os balaústres, os vasos e várias outras peças que são feitas no torno, seja em pedra, seja em madeira, seja em marfim, em cobre ou outros metais”. FÉLIBIEN, André. Des principes de l’architecture, de la peinture, et des autres arts qui en dependente. Paris: Jean Baptiste Coignard, 1676. p. 298, 372. 41 Há uma notícia, datada do século XVIII, indicando que ao menos uma escultura em marfim foi feita por Gibbons. Sobre o artista, ver ESTERLY, David. Grinling Gibbons and the Art of Carving. London: H.N. Abrams, 2013. 42 Os trabalhos existentes sobre Vinckenbrinck indicam que ele se ocupou da talha em madeira, marfim e madrepérola. Em catálogos de leilões, segundo Halsema-Kubes, aparecem peças em marfim atribuídas a Vinckenbrinck. Contudo, não é conhecida nenhuma obra neste material que tenham sua assinatura ou monograma, como ocorre nas obras em madeira. A suposição de que ele teria trabalhado o marfim nasceu, provavelmente, do fato de serem arroladas peças inteiras ou com partes deste material no seu inventário post mortem. Publicado em 1887, o inventário cita um busto de Esculápio “em seu pedestal de marfim”; uma caixa de tartaruga com “tampa e marfim” apresentando um “bacanal” com putti; e quase três dezenas de relevos e estatuetas em marfim. A caveira criada pelo artista pertence à coleção do Rijksmuseum (Amsterdam). Ver FRANCKEN, D. Albert Jansz. Winckencbrinck. Oud Holland, vol. 5, p. 73-92, 1887. HALSEMA-KUBES, Willy. Kleinplastiek van Albert Jansz. Vinckenbrink. Bulletin van het Rijksmuseum, jaarg. 39, n. 4, p. 414-425, 1991. SCHOLTEN, Fritz. Acquisitions: Sculpture. The Rijksmuseum Bulletin, vol. 62, nº 3, p. 288-327, 2014. VEEN, Jaap van der. Dit klain Vertrek bevat een Weereld vol gewoel. Negenting Amsterdammers en hun kabinetten. In: BERGVELT, Ellinoor; KISTEMAKER, Renée. De wereld binnen handbereik. Nederlandse kunst- en rariteitenverzamelingen, 15851735. Zwolle: Waanders Uitgevers, Amsterdams Historisch Museum, 1992, p. 244.

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Figura 6 – Retrato de Grinling Gibbons, cópia a partir de um original de Godfrey Kneller. Óleo sobre tela. National Portrait Gallery, Londres

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Figura 7 - Retrato de Albert Jansz. Vinckenbrinck, por Pieter Holsteyn II e Cornelis Holsteyn, 1648. Gravura sobre papel. Rijksmuseum, Amsterdam.

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Figura 8 – Caveira com caixa; Memento mori, por Albert Jansz. Vinckenbrinck, c. 1650. Escultura em madeira de buxo, com caixa em couro de tubarão e cobre. Rijksmuseum, Amsterdam.

O retrato de Vinckenbrink apresentava, ainda, a imagem de outros objetos que clamavam seu renome como entalhador. Se dois cinzeis completavam o conjunto de seus instrumentos, um papel remetia à sua produção. Aberta sob o compasso, a folha trazia a imagem de uma peça escultórica semelhante ao púlpito da Nova Igreja (De Nieuwe Kerk) de Amsterdam, obra prima do artista que levou cerca de 15 anos para ser finalizada. Outros escultores seiscentistas também se deixaram retratar junto a peças que faziam referência às suas criações. Flamengo de nascimento, mas atuante na França, Gerard van Opstal se dedicou à elaboração de baixos-relevos com cenas mitológicas, grande parte deles talhados em marfim. No auge de sua carreira, ele foi retratado a segurar uma caneca esculpida em uma grande presa de elefante. No corpo da peça, podia-se ver um cortejo triunfal, no qual Sileno aparecia carregado por sátiros e bacantes. A refinada caneca, de fato, pertencia ao seu orgulhoso criador.43 43 Gerard van Opstal foi admitido como mestre escultor na Guilda de São Lucas de Antuérpia,

em 1635. No fim da década de 1640, ele se transferiu para Paris e se tornou um dos fundadores da Academia Real de Pintura e Escultura. Em 1651, foi nomeado sculpteur des bâtiments du roi. Logo

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Figura 9 – Retrato de Gerard van Opstal com escultura em marfim, atribuído a Lucas Franchoys, o jovem, c. 1660. Óleo sobre tela. Coleção particular. Fotografia: JÄNNICK Jérémy / Wikimedia Commons & Louvre-Lens / GFDL-1.2

após sua morte, em 1668, a peça do retrato foi adquirida para a coleção do rei Louis XIV, junto a outras talhas em marfim que estavam em seu ateliê. Atualmente, ela está no Museu do Louvre. Ver MALGOUYRES, Philippe. La collection d’ivoires de Louis XIV: l’acquisition du fonds d’ateliers de Gérard van Opstal (1604-1668). La revues des musées de France. Revue du Louvre, vol. 57, nº 5, p. 46-54, 2007. SCHMIDT, Eike D. (et ali). Bronze, Boxwood, and Ivory in the Robert H. Smith Collection of Renaissance Sculpture. Wales: The Burlington Magazine, 2015. p. 60 et seq.

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Comuns aos retratos destes escultores, os instrumentos de trabalho e os exemplares de obras não eram adereços secundários da composição. Eles participavam da ordenação principal da pintura, cumprindo funções que ultrapassavam o uso estético e decorativo. Do mesmo modo que detalhes dos trajes, eles serviam aos retratos como elementos retóricos que construíam significados.44 No período moderno, “poucas pessoas eram consideradas merecedoras da honra de serem retratadas”. Teóricos da arte, como Francisco de Holanda e Gian Paolo Lomazzo, escreveram prescrições sobre os atributos que tornavam um indivíduo apto a ser retratado. Sabedoria, fama, liberalidade, virtude eram qualidades “convencionalmente associados a papéis respeitados na sociedade” e justificavam a imortalização de uma pessoa pela pintura.45 A fisionomia, a pose, os trajes e os objetos representados, juntos, conotavam o status e a ocupação da pessoa retratada, sublinhando qualidades especiais que a tornavam digna de admiração.46 No caso de artistas e eruditos, seus mais altos predicados se aproximavam de certa nobreza advinda do exercício da arte ou das habilidades pessoais, em benefício da sociedade.47 Portanto, na composição dos retratos, exibir as evidências do trabalho manual era uma boa estratégia para destacar a importância destas pessoas. A despeito dos preconceitos quanto aos trabalhos manuais, seus signos – como instrumentos e obras – podiam ser usados para reafirmar distinções sociais adquiridas por meio do domínio virtuoso do ofício. Os retratos de Gibbons, Vinckenbrinck, Opstal e Nordmand são exemplares no uso simbólico destes objetos. Neles, a presença de compassos, cinzéis e talhas refinadas reclamava o reconhecimento da posição social galgada pelos escultores.48 44 PALLA, Maria José. Traje e pintura. Grão Vasco e o Retábulo da Sé de Viseu. Lisboa: Estampa, 1999. p. 65 et seq. 45 WOODALL, Joanna. Sovereign bodies: the reality of status in seventeenth-century Dutch portraiture. In: WOODALL, Joanna (org.). Portraiture: facing the subject. Manchester: Manchester University Press, 1997. p. 76-78. 46 É preciso considerar que as qualidades atribuídas aos indivíduos retratados poderiam ser objetivas ou meramente desejadas, integrando o quadro de anseios dos sujeitos e construindo suas ficções biográficas. 47 Estudando as qualidades dos indivíduos aptos a serem retratados, Woodall indicou que elas eram convencionalmente associadas a noções de nobreza. Segundo o humanista neerlandês Hadrianus Junius, existiam três formas de nobreza: a de nascimento, própria dos que governavam; a da virtude, comum em quem servia ao Estado; e a da ars ou da habilidade, própria a intelectuais e artistas que atuavam pelo interesse geral. WOODALL. Sovereign bodies, p. 78. 48 Nos retratos realistas, estes objetos eram eloquentes na transmissão de significados, sem que houvesse a necessidade de recorrer “a símbolos anti-naturalistas ou emblemas, que poderiam minar a afirmação de que as pinturas refletiam as coisas tal como realmente eram”. WOODALL. Sovereign bodies, p. 90.

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Eventualmente, a eleição de objetos para figurarem nos retratos abria brechas para a exibição de valores pessoais junto às qualidades socialmente reconhecidas. No retrato de Vinckenbrinck, elementos convencionais e de fácil reconhecimento – compasso, cinzéis e busto – foram articulados com o desenho da obra que o fez famoso em sua comunidade. Já a pose empertigada e a legenda frisavam seu orgulho pela ligação com o local em que atuava: “Alberthus Vinckenbrinck, escultor da cidade de Amsterdam”.49 A pintura com a efigie de Jacob Jensen Nordmand, ao remeter às suas habilidades artísticas, foi mais comedida que os retratos de seus colegas de ofício. A singela caveira cumpria um duplo papel. Como elemento de acentuado valor simbólico, ela portava os habituais significados escatológicos, impondo uma reflexão sobre a vaidade humana e a finitude da vida. Ao mesmo tempo, porém, a diminuta escultura representava a obra do artista, sem alardear a inventividade de suas mais delicadas criações. A simplicidade da caveira não refletia o virtuosismo de Nordmand, visível em sua obra prima: um modelo da fragata Leão Norueguês. Figura 10 – Modelo do Leão Norueguês, por Jacob Jensen Nordmand, 1643. Marfim e prata. Kongernes Samling Rosenborg, Copenhague. Foto: Orf3us.

49 O artista não era natural de Amsterdam, mas da pequena vila de Spaarndam.

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Finalizada no mesmo ano em que o retrato do escultor, a peça foi talhada em marfim e arrematada com canhões, âncoras e acessórios em prata.50 Ela reproduzia, em pequena escala, a mais poderosa embarcação de guerra dinamarquesa. Construída em 1643, a fragata levava o nome do emblema real e era símbolo das pretensões do Reino Duplo ao domínio do mar Báltico. De tão impressionante, a miniatura criada por Nordmand, foi incorporada à Kunstkammer de seu patrono, Frederik III.51 Instalada no castelo de Copenhague, a coleção foi criada pelo rei, por volta de 1650. Inicialmente, parte dela foi acondicionada na antiga drehezimmer (câmara de tornearia), que reunia uma grande variedade de itens, como peças torneadas, obras de arte, joias e armas cerimoniais.52 Dois anos depois, a Kunstkammer real estava fundada, sendo contratado o primeiro attendant para preservar e ampliar o acervo.53 Nela, foram reunidas centenas de maravilhas e monstruosidades da natureza (naturalia), além de testemunhos do engenho humano, produzidos com destacada habilidade ou maestria (artificialia). Sob o afã colecionista do rei, o acervo cresceu vertiginosamente. Ano após ano, curiosidades de todo tipo chegavam a Copenhague. Elas vinham de várias partes da Europa e das Índias, sob a forma de presentes diplomáticos e de aquisições feitas por emissários de Frederik III.54 À 50 ANDERSEN, C. The Chronological Collection of the Kings of Denmark. Copenhagen: Forlagsbureauet, 1878. p. 40. 51 Kunstkammer, em alemão, significava câmara de arte; tendo arte (Kunst) o sentido de artifício ou engenho humano, antes que de belas artes. A Kunstkammer correspondia ao que hoje se entende por gabinete de curiosidades. KAUFMANN, Thomas. D. From Treasury to Museum: The Collection of the Austrian Habsburgs. In: ELSNER, John; CARDINAL, Roger. The Cultures of Collecting. Cambridge: Harvard University Press, 1994. p. 141. HOOPER-GREENHILL, Eilean. Museums and the shaping of knowledge. London: Routledge; Taylor & Francis, 2003. PEARCE, Susna M. On Collecting: an investigation into collecting in the European tradition. London: Routledge, 2005. 52 GUNDESTRUP, Bente. The Royal Danish Kunstkammer. Museum, 1988, vol. XL, n. 4, p. 186-189. 53 MORDHORST, Camilla. Genstands Fortællinger. Fra Museum Worminianum til de moderne museer. København: Museum Tusculanums, 2009. p. 33. GUNDESTRUP, Bente. As pinturas de Eckhout e o Kunstkammer Real da Dinamarca História da coleção. In: NATIONALMUSEET. Albert Eckhout volta ao Brasil / Albert Eckhout returns to Brazil. Copenhagen: Nationalmusset, 2002. p. 103-115. 54 GOMES, René Lommez. Homens e frutos do Brasil. História e recepção da obra de Albert Eckhout nas coleções dinamarquesas. Belo Horizonte: FAFICH-UFMG, 2016. p. 248-284. (Tese de doutorado)

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altura de 1653, o volume da coleção era tão expressivo que já ocupava metade dos oito salões destinados a abrigá-la, no castelo de Copenhague.55 Diferente das câmaras de tesouro (Schatzkammern) mais anti56 gas , uma kunstkammer como a de Frederik III não se limitava a acumular coisas raras e preciosas. Ela correspondia a um tipo de colecionamento com fortes pretensões intelectuais. Seu sentido residia em exibir objetos sob formas de ordenação que traduziam conceitos e transmitiam o conhecimento. Tornando visíveis os critérios que organizavam seus itens, a Kunstkammer de Frederik III era dividida em compartimentos dedicados a temas definidos. Segundo seu mais antigo inventário57, entre 1673 e 1674, a coleção se distribuía em nove câmaras: 1) uma antecâmara, com pinturas sobre o Brasil; 2) a primeira sala, com toda sorte de naturalia; 3) a segunda, com artificialia; 4) a Sala de Armas; 5) a Câmara de Pintura; 6) a Câmara de Matemática, com invenções mecâ55 Em 1665, o castelo já não comportava novas aquisições, sendo necessário construir um novo edifício, anexo ao castelo Christiansborg, para abrigar a Kunstkammer e a Biblioteca Real, outra estimada coleção de Frederick III. GUNDESTRUP, Bente. The Royal Danish Kunstkammer, p. 186-187. 56 No período moderno, algumas coleções eram nomeadas pelos vocábulos Schatz ou Thesaurus, significando tesouro; sendo a Schatzkammer (câmara do tesouro) seu local de guarda. Na Idade Média, a noção de tesouro correspondia a um acúmulo de objetos de alto valor material e simbólico que, em uma eventualidade, podia ser convertido em dinheiro. Para Kaufmann, a Idade Moderna comportou o surgimento da cultura de apreciação do engenho humano (kunst). A mudança alterou a percepção dos objetos, fundando um novo tipo de coleção: a Kunstkammer. O termo Schatzkammer continuou em uso, referindo-se a coleções diferentes das medievais pela redução do sentido de entesouramento. Para Hein, a Schatz e a Kunstkammer correspondiam a tipos diferentes de coleções. A “‘câmara do tesouro’ referia-se a uma acumulação de objetos valiosos sob o poder real ou principesco”, na qual “os objetos são (...) considerados como propriedade inalienável” da Coroa. A Kunstkammer era uma coleção privada “de objetos coletados e exibidos de acordo com princípios distintos que refletem o conhecimento humano e teorias acerca do mundo”. A diferença entre as duas é que “a câmara do tesouro representa e pode prover (...) uma reserva de capital, enquanto o conceito fundamental da Kunstkammer é a estruturação e a transmissão do conhecimento”. KAUFMANN. From Treasury to Museum, p. 140-141. HEIN. Learning versus status? Kunstkammer or Schatzkammer?, p. 177-178. 57 A Kunstkammer real foi inventariada a cada mudança de inspetor ou curador. Sobreviveram os inventários realizados em 1674, 1689, 1690, 1737; que listam objeto a objeto da coleção. Outros inventários (1775, 1807 e 1827) são listas de aquisições e registros parciais da coleção. Um inventário, produzido em 1689 e publicado em 1696, diferenciou-se dos demais. Intitulado Museum Regium, ele foi escrito pelo físico Oliger Jacobaeus. O arrolamento trazia só os principais itens da coleção, explicados. INVENTARIUM OVER KUNSTKAMMERET paa Københauns Slot. 17 jan. 1673 – 01 agos. 1674. In: LIISBERG, H.C. Behring. Kunstkammeret. Dets stiftelse og ældste historie. København: Det Nordiske Forlag, 1897. p. 153-181. JACOBÆO, Oligero. Museum Regium seu Catalogus Rerum tam naturalium, quam artificialium, quæ in Basilica Bibliotheæ Augustissimi Daniæ Norvegicæq. Hafiniæ: Joachim Schmetgen, 1696.

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nicas e instrumentos científicos; 7) a Câmara das Índias Orientais, que conservava artefatos das Índias Ocidentais e Orientais, indistintamente misturados; 8) o Gabinete de Medalhas, exibindo moedas, medalhas e antiguidades; 9) e a Câmara de Modelos.58 A réplica do Leão Norueguês talhada por Nordmand, parece ter sido exibida na Câmara da artificialia, junto a um armário de marfins. O móvel continha um enorme conjunto de peças torneadas e esculpidas em presas de elefante, tais como um almofariz, vasos, imagens sacras, relevos de temas mitológicos, retratos pintados sobre placas de marfim, instrumentos musicais e uma escrivaninha “indiana”.59 A seleção de peças para esta câmara celebrava o gênio artístico e inventivo do século XVII e o poderio dos escandinavos. No contexto da coleção, os itens expostos ali compunham um discurso visual que celebrava as ambições de Frederik III e os feitos de seus súditos. Nas Kunstkammern da época, se a seleção dos objetos refletia os interesses do colecionador, sua organização traduzia conceitos e teorias que calçavam explicações para os processos em marcha no mundo. Mas, um acervo só alcançava pleno sentido ao ser exposto ao olhar. Por isto, as formas de exibição dos objetos eram deliberadamente planejadas para produzir ideias e imagens que conectavam coisas e eventos, situando o colecionador no centro de um mundo em miniatura. Quando Frederik III recebeu uma embaixada especial da Inglaterra, no final de 1663, sua Kunstkammer já era uma das maiores e mais bem reputadas coleções de curiosidades da Europa. Sua fama era tamanha, que não seria de se espantar que uma visita aos gabinetes integrasse o roteiro preparado para entreter o enviado de Charles II. Ao embaixador Charles Howard, Conde de Carlisle, havia sido dada uma delicada missão: forjar a aliança entre a Inglaterra, o Reino Duplo e a Suécia, para bloquear o acesso dos navios neerlandeses ao comércio do estreito Øresund, que conectava o mar Báltico ao mar do Norte. O assunto atingia os interesses do Reino Duplo, que auferia grandes rendimentos com pedágios cobrados no estreito. Desde o início 58 GUNDESTRUP, Bente. As pinturas de Eckhout e o Kunstkammer Real da Dinamarca História da coleção, p.109. GOMES. Homens e frutos do Brasil. p. 120-121. 59 O documento não explicita se o “armário de marfim” é assim chamado em função de seu conteúdo ou do material com que foi feito. INVENTARIUM OVER KUNSTKAMMERET paa Københauns Slot. p. 164 et seq.

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do reinado, Frederik III tentou garantir o domínio dinamarquês sobre o tráfico na região. Entretanto, o controle do Báltico era instável; ora impulsionado, ora ameaçado pelas sucessivas guerras e alianças que moldaram as relações entre dinamarqueses, suecos, neerlandeses e ingleses.60 Em meio às negociações da embaixada, o rei e sua corte cuidaram de bem tratar e divertir a comitiva inglesa. Jantares suntuosos, três dias de caça à lebre com o rei, partidas de danças e o batismo do filho de Carlisle – nascido na corte –, agitaram a estadia dos estrangeiros em Copenhague. Entre os eventos, uma visita às coleções de Frederik III e da coroa, foi mais tarde narrado em um livro pelo secretário da embaixada, Guy Miège.61 Um dia, segundo Miège, o embaixador foi levado para conhecer tudo “que havia de mais memorável na cidade”. Estrategicamente, as visitas incluíram passagens pelo Arsenal real e pela Kunstkammer de Frederik III. Para um rei absoluto, atento às mais sutis formas de projetar sua imagem, não havia melhor oportunidade para demonstrar magnificência e poder, declarando suas pretensões políticas. O Arsenal (ou Armaria) real encontrava-se instalado na torre do castelo Rosenborg, desde 1660. O local recolhia o tesouro da coroa, antes disperso em castelos e armazéns.62 No segundo andar, foram expostas a regalia e a preciosa. Em três pavimentos superiores, as coleções de armas. No edifício contíguo, ficaram equipamentos de montaria adornados com joias e mais armas.63 60 A articulação feita por Carlisle deve ser entendida como um passo da Inglaterra para vencer a concorrência neerlandesa no comércio marítimo, especialmente na África, Caribe e América. Seu intento não chegou ao termo esperado, dada a hostilidade existente entre a Suécia e o Reino Duplo. Meses depois, foi iniciada a Segunda Guerra Anglo-Neerlandesa (1664-1667). Ver DOWNING, Roger; ROMMELSE, Gijs. The slide to war. In: ___. A fearful gentleman: Sir George Downing in the Hague, 1658-1672. Hilversum: Verloren, 2011. p. 111. ISRAEL, Jonathan. The Dutch Republic. It’s Rise, Greatness, and Fall, 1477 - 1806. Oxford: Clarendon Press. 1995. p. 766 et seq. 61 MIÈGE, Guy. A Relation of Three Embassies from His Sacred Majestie Charles II to the Great Duke of Muscovie, The King of Sweden, and The King of Denmark. London: John Starkey, 1669. p. 407 et seq. MIÈGE, Guy. La relation de trois ambassades de Monseigneur le Comte de Carlisle... Rouen: L. Maurry, 1670. p. 381 et seq. 62 HEIN. Learning versus status? Kunstkammer or Schatzkammer?, p. 179-182. 63 A importância das coleções de Rosenborg para a construção da imagem de Frederick III pode ser verificada pela frequência como que ele ofereceu audiências a embaixadores ali, permitindo a visita a algumas câmaras. Após 1665, ocorreram 8 audiências no Gabinete das Índias, instalado no local. HEIN, Jørgen. Learning versus status? Kunstkammer or Schatzkammer?, p. 179-182.

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O rei guardava as chaves do local, que só podia ser visto sob sua autorização. Lá, a atenção dos ingleses foi atraída pelos instrumentos bélicos, mantidos em excelente estado “e em boa ordem”. Ao entrarem no local, os ingleses foram surpreendidos por um coche que parecia mover-se “por si próprio”. Após o espanto, o artifício foi revelado: a façanha “dependia de dois homens escondidos sob a cobertura do coche”. Um deles movia o mecanismo que girava as rodas. O outro guiava o carro, usando um timão.64 Uma vez no Palácio de Copenhague, a comitiva pode ver “as raridades” do rei. Seis anos após a visita, Miège ainda se lembrava de ter visto “inúmeras peças muito curiosas de mecânica, além de muitas curiosidades trazidas de terras remotas”. Nas suas lembranças, “as raridades” estavam “dispostas em cinco ou seis câmaras” de um andar do castelo. Entre elas, um item se destacou a ponto de ser o único descrito no relato. Era “uma excelente peça de arte”: “um pequeno navio, cujo mastro, escadas, velas e canhões eram inteiramente [feitos] em marfim”.65 Tratava-se da réplica do Leão Norueguês. O episódio tem sua importância como testemunho do quão memoráveis eram as criações de Nordmand. Ele registra, também, como uma peça criada pelo escultor assumia um papel simbólico, ajustando-se aos discursos, interesses e negócios do rei; neste caso, a agressiva política de Frederik III pelo controle do Øresund. Obra prima do artista, o modelo da fragata foi finalizado no mesmo ano em que foi feito seu retrato. É possível, então, que a encomenda da pintura estivesse associada ao êxito na criação da escultura. De fato, a retrato foi feito a pedido do rei, desejoso de ter a efígie de seu protegido na coleção de retratos. Seu autor foi o pintor germânico Wolfgang Heimbach que, de 1653 a 1663, atuou na corte de Copenhague e pintou o rei várias vezes. Esperava-se que a obra celebrasse o virtuosismo ou lembrasse os serviços prestados pelo escultor que, há duas décadas, vivia no castelo de Rosenborg, colocando seus talentos a serviço da corte.66 Mas, no lugar de 64 MIÈGE. A Relation of Three Embassies, p. 409-410. 65 A visita terminou com uma viagem ao castelo Fredericksborg, em Hilerød; segundo Miège,

um lugar “magnifico, aonde a arte triunfa por toda parte”. MIÈGE. A Relation of Three Embassies, p. 409-410. 66 No castelo, Nordmand produziu de refinadas obras a trabalhos menores, suprindo a corte com peças utilitárias, como caixinhas em madeira e marfim. NORDMAND. En ubenævnt

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exibir a réplica do Leão Norueguês, o escultor e o pintor elegeram outra obra para figurar na pintura. A execução da prosaica miniatura de caveira teria exigido pouco das habilidades do artista. Precisamente por isto, a peça se tornava o melhor veículo para expressar outros valores intencionalmente associados à imagem de Nordmand. Apesar de conter elementos convencionais aos retratos de escultores, a pintura com o resoluto escultor teria conotações inversas às representações de seus imponentes colegas. Do painel emergia a efigie de um artífice modesto e austero, um protestante em luta contra a vaidade que desvirtua os homens. Já o terceiro objeto representado no retrato, a espada de Nordmand, marcava a maior diferença que o separavam de seus colegas de oficio. O adereço era conveniente à imagem de um cavaleiro experimentado nas artes militares. Sua presença nos retratos do período moderno estava associada à posição social e ao ethos de cavaleiros e militares.67 A verdade era que Nordmand não dominava apenas a talha e a tornearia artísticas. Sua vida havia sido construída tanto no exercício da arte quanto de ofícios militares. Na juventude, Nordmand foi um soldado. No período em que viveu em Rosenborg, esta experiência levou-o ao cargo de responsável pela reorganização do Arsenal real, que tanto impressionou o embaixador inglês.68 O retratista e o retratado, ao elegerem a espada como atributo do escultor, teriam preferido testemunhar estes fatos do passado a dissimula-los.

Comerás do trabalho de tuas mãos Modéstia e austeridade parecem ter sido virtudes importantes para Jacob Jensen Nordmand; ao menos quando se tratava de construir a narrativa de sua vida. Dezesseis anos depois de ser retratado por Wolfgang Heimbach, o escultor redigiu a mais importante fonte de informações sobre sua trajetória: uma autobiografia dedicada ao seu patrono.69 Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 147. ANDERSEN, Carl. The Chronological Collection of the Kings of Denmark. Copenhagen: Thiele, 1878. p. 40. 67 TITLER, Robert. Portraits, Painters, and Publics in Provincial England 1540-1640. Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 130. 68 MORDHORST, Camilla. Genstands Fortællinger, 2009. p. 50. 69 O documento foi publicado pela primeira vez em 1784, por Peter F. Suhm. Depois, o artista

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O manuscrito, datado de 28 de janeiro de 1670, foi finalizado doze dias antes da morte de Frederik III. A situação parece ter dado forma ao relato que, antes de exaltar os sucessos da vida do escultor pelo mérito próprio, atribuía sua razão ao poder divino e à benevolência do rei. A autobiografia de Nordmand, como o retrato pintado por Heimbach, era dominada pelo tom de austeridade e modéstia. O texto não construía uma historieta laudatória dos feitos pessoais. Ao contrário, ele foi escrito como uma memória da relação entre o escultor e seu moribundo patrono, a quem se devia agradecer e celebrar70: “Comerás do trabalho de tuas mãos” – citadas no início do texto, as palavras de Davi, no Salmo 128, parecem ressoar por todo o relato, guiando a seleção e a interpretação dos fatos.71 Entrecortada por citações de textos sagrados, a escrita de Nordmand narrou as várias etapas de sua atuação como militar, torneiro e entalhador sem permitir a intrusão de outros fatos importantes de sua vida, como o casamento e o nascimento de sua filha. Nordmand havia nascido na cidade norueguesa de Kristiania (atual Oslo), em 1614.72 Oriundo de uma família de parcos recursos, ele não tinha expectativas de um futuro próspero; sobretudo ao crescer em um reino abalado por sucessivas guerras e crises econômicas. Quando jovem, ele se deixou atrair pelas oportunidades acenadas pela vida militar e seguiu os passos de muitos de seus conterrâneos, alistando-se na marinha.73 voltou a ser debatido em um artigo do historiador Henrik Carl Bering-Liisberg. NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 134-158. BERING LIISBERG, H.C.: “Jacob Jensen Nordmand”. Museum, n. I, p. 245–284, 1893. 70 O gênero literário da autobiografia “não é um preciso indicador da memória e a memória não é uma exata réplica do que aconteceu”. Ao ser usada como documento, a autobiografia “pode ser usada como uma forma de entender o que e por que as pessoas lembram”. A leitura da narrativa deve ser contextualizada, de forma a permitir a compreensão das intenções do narrador na seleção e significação dos fatos da vida. Ver BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão, biografias e a memória dos excluídos. Revista Espaço Acadêmico, nº 126, p. 136-144, 2011. 71 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 139. 72 BRICKA, C. F. Dansk Biografisk Lexikon, tillige omfatende Norge for Tidsrummet 15371814. København: Gyldendalske Boghandels Forlag, 1905. p. 322. 73 Nos séculos XVII e XVIII, boa parte da imigração norueguesa para outras regiões da Europa foi composta por marinheiros. Parte doeste contingente atuou em navios neerlandeses que iam para a América, África e Ásia. SOGNER, Sølvi. Norwegian-Dutch Migrant Relations in the Seventeenth Century. In: SICKING, L. et ali. Dutch Light in the “Norwegian Night”. Maritime Relations and Migration across the North Sea in Early Modern Times. Hilversum: Verloren, 2004. p. 43-56. Jovens dinamarqueses também se alistaram nas forças neerlandesas, para garantir

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O serviço levou-o para longe de sua terra natal. Em missão, o norueguês foi embarcado para lutar em uma batalha na região de Hamburgo. Findos os enfrentamentos, ele seguiu para a Holanda, a mais próspera das províncias da república neerlandesa.74 Nordmand permaneceu em solo batavo por cerca de três 75 anos. É desconhecido o nome da cidade que ele teria escolhido para viver. O relato indica apenas que, naquela província, ele aprendeu o ofício de ferreiro, com o qual esperava garantir seu sustento. Como aprendiz, Nordmand parecer ter adquirido o conhecimento necessário para fabricar, modificar e reparar armas de fogo; pois, segundo seu relato, ainda jovem ele conquistou uma clientela de militares neerlandeses que iam à oficina reparar suas armas.76 Sobre como começou a lavrar materiais raros, como as madeiras nobres e o marfim, Nordmand nada registrou. Tampouco ele narrou sobre como aprendeu as artes da talha e da tornearia. Contudo, é possível imaginar que as habilidades que viriam a distingui-lo tivessem sido adquiridas exatamente no treinamento como ferreiro e armeiro. As armas de fogo eram compostas por elementos fabricados em ferro – como canos e as peças de disparo – e em madeira ou material similar – como coronhas e guarda mãos. Por isto, sua fabricação e reparo exigiam de um armeiro o conhecimento de técnicas distintas, como a ferraria, a marcenaria e a tornearia. Para a preparação dos canos, um armeiro precisava dominar o manuseio da forja e do tabuleiro de limar, com todos os instrumentos neles utilizados – dos compassos ao chanfrador. Para fabricar canos, era preciso manusear dois tipos de torno: o torno de verrumar, para abrir e polir o interior das peças; e outra máquina para tornear por fora das peças.77 A produção das coronhas – que podiam ser de nogueira, cerejeira, madeira do Brasil, marfim e outros materiais – exigia precisão na talha, para melhor equilibrar o peso da arma e ajustar sua forma às necessidades do dono.78 o futuro. Este foi o caso de Peter Hajstrup, que atuou como soldado da WIC no Brasil e deixou uma autobiografia. TEENSMA, B.; Miranda, B.; Xavier, L. Peter Hansen Hajstrup. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Cepe, 2016. 74 A República era composta pelas províncias da Holanda, Frísia, Utrecht, Groningen, Géldria, Overijsel e Zelândia. Por Holanda é designada, aqui, a província com este nome e não toda a República. 75 BENCARD, Mogens. Two 17th century Eskimos at Rosenborg Palace, p. 50-52. 76 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 139. 77 FIOSCONI, Cesar; GUSERIO, Jordam. Espingarda perfeyta, y regras para sua operaçam com circunstancias necessárias para seu artificio. Lisboa: Antonio Pedrozo Galram, 1718, p. 5-22. 78 Segundo o manual Espingarda Perfeyta, pessoas altas de pescoço e baixas de ombros

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As distinções entre os vários ofícios mecânicos eram frágeis, variando a cada momento e local, ao longo dos séculos XVII e XVIII. Em Madri, por exemplo, eram reconhecidos dez grêmios de artesãos que “se dedicam a lavrar a madeira”. Em suas origens, os mestres destes ofícios encontravam-se reunidos sob o grêmio dos ebanistas e entalhadores.79 Com o tempo, houve solicitações de “distinção” entre ofícios, movidas pelo “empenho de alguns indivíduos em apropriar-se exclusivamente daquela classe de peças ou manobras a que estavam particularmente dedicados”. Quando faltavam motivos para “diferenciarem-se pela variedade das manobras”, alguns reclamaram exclusividade no uso de certa “qualidade de material”, como as madeiras das Índias e o marfim.80 Já em Amsterdam, a mais próspera cidade neerlandesa, o emprego de ferramentas e matéria prima parece ter seguido práticas distintas. O acesso ao torno não foi exclusividade dos torneiros, embora o oficio fosse socialmente reconhecido. Em 1694, os irmãos Jan e Caspar Luyken publicaram um livro de emblemas que tecia considerações morais usando como mote as ocupações existentes na cidade. Em um dos emblemas, o Espelho dos Ofícios Humanos (Spiegel van het Menselyk Bedryf) mostrava o interior de uma oficina em que dois homens usavam o torno para fazer um balaústre de madeira. Em outro emblema, um artesão manuseava a máquina, fabricando cadeiras.81

precisam de coronhas caídas ou com volta acentuada, para melhor ajustarem a pontaria. Pessoas com ombros altos e pescoços curto “necessitão de coronhas mais direytas, ou com menos queda, porque tendo muyta volta”, a força do coice pode-lhes ferir o rosto. FIOSCONI, Cesar; GUSERIO, Jordam. Espingarda perfeyta, p. 141. 79 A saber, os grêmios dos ebanistas, entalhadores e ensambladores; dos carpinteiros; dos “puertaventaneros”; torneiros; fabricantes de coches; carreteiros; fabricantes de cadeiras; cesteiros; e fabricantes de pentes. SOCIEDADE ECONOMICA de Madri. Memorias de artes y ofícios. In: ___. Memorias de la Sociedad Economica. Tomo Segundo. Madrid: Don Antonio de Sancha. p. 45-47; 118. 80 “No ano de 1663”, “os mestres do ofício de torneiro apresentaram uma petição”, suplicando a criação de ordenanças para regulamentar seu oficio, diferenciando-o do trabalho dos emsambladores e carpinteiros. Os torneiros reclamaram exclusividade no uso de certos instrumentos e materiais, como madeiras branca e negra, pau santo, ébano, marfim e metal. Também definiram os produtos do ofício: caixas de pólvora, jogos de xadrez, vasos e camas. Ratificada em 1664, a ordenança proibiu os ensambladores de fazerem camas com marfim, pau santo e ébano; de se valerem de oficiais torneiros não examinados; e de permitirem que seus torneiros remendassem ou adornassem camas de madeiras nobres, sem autorização do grêmio. SOCIEDADE ECONOMICA. Memorias de artes y ofícios. p. 55-65. 81 LUYKEN; LUYKEN. Spiegel van het Menselijk bedryf, p. 25, 109.

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Figura 11 – O torneiro, por Jan e Caspar Luyken, 1694. Gravura sobre papel, originalmente publicada no livro Spiegel van het Menselyk Bedryf. Rijksmuseum, Amsterdam

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Figura 12 – O fabricante de cadeiras, por Jan e Caspar Luyken, 1694. Gravura sobre papel, originalmente publicada no livro Spiegel van het Menselyk Bedryf. Rijksmuseum, Amsterdam

200 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Quanto ao marfim, o material parece ter sido usado na criação de uma grande gama de objetos como jogos, escovas, agulhas para bordar, instrumentos musicais, botões, pentes e dentaduras. Muitos produtos eram de uso corriqueiro, mas sua fabricação dependia das qualidades próprias ao material. Certos fabricantes de pentes preferiam trabalhar com presas de elefante a outros materiais, pois o marfim fraturava menos que a madeira e o osso no corte dos dentes mais finos.82 Para a criação de peças de luxo, havia quem preferisse o marfim por suas atraentes textura, cor e procedência.83 Este era o caso dos cabos de facas e talheres, cujo refinamento podia ser medido pelo tipo de material e pela qualidade do artifício empregados em sua fabricação.84 O livro dos irmãos Luyken também continha imagens da manufaturas de pentes e facas. Nelas, presas de elefante estão amontoadas no chão, referenciando as matérias primas usadas ali.85

82 A atuação de fabricantes de pentes em Amsterdam, nos séculos XVII e XVIII, está bem

documentada. Um contrato entre três deles, datado do início do século XVII, menciona o marfim como matéria prima. Outro registro mostra que um aprendiz de 15 anos – idade aproximada de Nordmand ao chegar na República – foi treinado para fazer pentes com marfim, casco de tartaruga e chifres. Aparentemente, alguns artesãos só faziam pentes de marfim. Nas escavações arqueológicas realizadas na cidade, do total de 438 pentes encontrados, 348 eram de marfim. RIJKELIJKHUIZEN, Marloes. Whales, Walruses, and Elephants: Artisans in Ivory, Baleen, and Other Skeletal Materials in Seventeenth- and Eighteenth-Century Amsterdam. International Journal of Historical Archeology, vol. 13, n 4, p. 409-429, 2009. 83 Grandes quantidades de marfim chegaram a Amsterdam nos séculos XVII e XVIII, importadas da África Ocidental. Entre 1675 e 1731, a WIC importou 2.955.533 libras de marfim da Costa do Ouro. Parte do material era consumido na cidade, como matéria prima. Outra era transformada em objetos, vendidos sobretudo na Ásia. RIJKELIJKHUIZEN. Whales, Walruses, and Elephants, p. 439. 84 Os inventários de dois fabricantes de facas mostram que eles vendiam peças com cabos de marfim de elefante ou morsa, cascos de tartaruga, madeira e ossos. Um deles possuía um grande volume de presas de elefante em sua loja. Nas escavações arqueológicas feitas em Amsterdam, foram encontradas facas em vários materiais: 160 em marfim de elefante, 121 em ossos, 30 em chifres (como de alces) e 11 em cornos (como de rinoceronte). RIJKELIJKHUIZEN. Whales, Walruses, and Elephants, p. 441. 85 LUYKEN; LUYKEN. Spiegel van het Menselijk bedryf, p. 41; 63.

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Figura 13 – O fabricante de pentes, por Jan e Caspar Luyken, 1694. Gravura sobre papel, originalmente publicada no livro Spiegel van het Menselyk Bedryf. Rijksmuseum, Amsterdam

202 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Figura 14 – O fabricante de facas, por Jan e Caspar Luyken, 1694. Gravura sobre papel, originalmente publicada no livro Spiegel van het Menselyk Bedryf. Rijksmuseum, Amsterdam

O livro não apresentou o marfim como uma matéria prima para a fabricação de armas de fogo. O Marfim no Mundo Moderno

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Figura 15 – Armeiro, por Jan e Caspar Luyken, 1694. Gravura sobre papel, originalmente publicada no livro Spiegel van het Menselyk Bedryf. Rijksmuseum, Amsterdam

Mas, excepcionalmente, o marfim era talhado para servir de coronha em armas de luxo. Pistolas e pederneiras de grande requinte 204 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

tinham coronhas de marfim e levavam a assinatura do fabricante; como as armas feitas por Jacob Koster, Jean Louroux, Michel de la Pierre e Charles Fabri, artesãos atuantes em Maastricht.86 Figura 16 – Par de pistolas de pederneira, por Jean Louroux, c. 1665. Marfim e metais. Rijksmuseum, Amsterdam

É factível, portanto, que Jacob Jensen Nordmand tivesse aprendido a manusear o torno e a lavrar o marfim em seu treinamento como armeiro. Junto à suas inclinações morais, ter iniciado a vida como marinheiro, ferreiro e armeiro ajuda a explicar o porquê de seu retrato transmitir ideias distintas das representações de outros escultores de marfim. Nordmand prezava seu passado como militar e oficial mecânico. Não havia motivo, portanto, para que seu retrato reforçasse o discurso de alguns escultores da época – como Gerard van Opstal –, que buscavam separar a escultura e das artes mecânicas, equiparando-a à pintura no rol das artes liberais.87 86 Como Nordmand, Michel de la Pierre chegou à República como soldado, instalando-se, depois, como armeiro. Já Kosters pertencia à guilda dos comerciantes e fabricava armas reunindo peças de diferentes artesãos.VISSER, Henk L. Dutch Ivory-Stocked Pistols. The American Society of Arms Collectors Bulletin, nº 53, October 1985. p. 3-43. 87 Um eco desta discussão encontra-se no tratado de André Félibien. Segundo ele, “na prática ordinária da tornearia”, o “desenho toma uma parte menor que a indústria e as ferramentas de que se serve”. Isto, em tese, aproximaria a tornearia das artes mecânicas, afastando-a das artes liberais. Contudo, o autor considerava as peças torneadas que são criadas para o embelezamento de edifícios como dignas de serem consideradas uma modalidade de arte escultórica. FÉLIBIEN.

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Após atuar cerca de três anos como aprendiz, Nordmand retornou ao serviço militar, possivelmente ingressando em uma companhia da república. Como soldado e lanceiro, ele foi mandado para a frente de batalha na região de Sluis, em Flandres. Seu destino mudou no momento em que ele ouviu um anúncio dos Senhores XIX (Heren XIX), o conselho que administrava a WIC. Soube o norueguês que a companhia prometia pagar soldos em prata e dinheiro para aqueles se inscrevessem em suas frotas. Assim, em 1634, Nordmand se engajou na frota comandada pelo major Mandsfeld, armada para a defesa das conquistas neerlandesas no Brasil.

Escaramuças em terra e mar Sofrendo “escaramuças em terra e mar”, a companhia em que estava Jacob Jensen Nordmand atravessou o oceano e se aproximou do Brasil. Refregas com inimigos, mal tempo, escorbuto, foram muitos os perigos sofridos pela tripulação da esquadra; cuja salvação, seguindo a tradição dos relatos de viajantes, o artista atribuiu à graça divina.88 Chegando à terra e recuperada a fraqueza dos navegantes, a armada levantou velas e seguiu para a embocadura do rio Paraíba, aonde havia três fortalezas: Santa Catarina do Cabedelo, Santo Antônio e São Bento. Mal conhecendo o território brasileiro, o norueguês e seus companheiros se juntaram a uma expedição de conquista, sob comando dos coronéis Sigmund von Schkoppe e Krzysztof Arciszewiski. A ofensiva havia sido “cuidadosamente aparelhada e despachada, no fim de novembro de 1634”, para “dominar e vencer os fortes e bastiões” portugueses que “protegiam a entrada do rio Paraíba”.89 Não era aquela a primeira vez em que forças neerlandesas tentavam conquistar a região. À época, a WIC enfrentava dificuldades para a manutenção das terras ocupadas no nordeste brasileiro, desde 1630. A Des principes de l’architecture, de la peinture, et des autres arts qui en dependente. p. 372. 88 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 140. 89 WÄTJEN, Hermann. O Domínio colonial holandês no Brasil: um capítulo da história colonial do século XVII. Recife: CEPE, 2004. p. 128.

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guerrilha formada pelos moradores de origem portuguesa havia criado sérios impedimentos para a defesa e exploração da terra, bloqueando o acesso às fontes de alimento e dificultando a produção de açúcar nos engenhos. Em resposta à situação, em 1633, os Senhores XIX colocaram a conquista sob o governo de uma junta política, formada pelos diretores delegados Mathijs van Ceulen e Johan Gijsselingh. À frente das forças de terra e mar, Sigismund Schkoppe e Arciszewiski convenceram o novo governo que, para vencer a guerrilha, era necessário atacar os pontos de apoio à resistência, sobretudo os mais próximos a Salvador, capital do Brasil filipino.90 Várias ofensivas foram realizadas entre 1633 e 1634. Algumas foram vitoriosas, como a tomada do Rio Grande, comandada por Ceulen. Outras foram dramaticamente desbaratadas pelos moradores. Em fevereiro de 1634, “apareceu diante do forte Cabedelo, sobre o Rio Paraíba, uma poderosa esquadra neerlandesa”, comandada por Gijsselingh, Lichthardt e Schkoppe. “Ainda mais uma vez foi frustrada a empresa”.91 No decorrer do ano, a conquista recebeu reforços enviados da república. Entre eles, estava a armada de Mansfeldt. Com o incremento das forças sob seu comando, Schkoppe e Arciszewiski não tardaram em fazer nova tentativa de conquista da Paraíba. Nordmand foi, então, mandado para lutar nas batalhas que, seis dias antes do Natal, levaram à queda dos fortes que guarneciam a entrada do rio. Após um cerco de curta duração, capitulou o forte Cabedelo. Dali a alguns dias, foi rendida a capital da província, Filipeia ou cidade da Paraíba, situada rio acima. Os sucessos e revezes das capitulações foram vivamente narrados pelo norueguês, a quem os perigos quase tiraram a vida.92 Nos meses seguintes, continuaram as batalhas no nordeste brasileiro. Após a conquista da Paraíba, Nordmand participou do sítio ao Arraial velho do Bom Jesus ou Forte Real do Bom Jesus, como também era chamado. Foram necessários vários assaltos e três meses de cerco para que os portugueses se rendessem, em 08 de junho de 1635. Após a 90 Ceulen e Gijsselingh representavam, respectivamente, as câmaras diretoras de Amsterdam e da Zelândia. HEIJER, Henk den. Geschiedenis van de WIC. ZUTPHEN: Walburg Press, 2013. p. 38. 91 WÄTJEN, Hermann. O Domínio colonial holandês no Brasil, p. 125. BOXER, Charles Ralph. Os holandeses no Brasil: 1624-1654. Recife: CEPE, 2004. p. 74. 92 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 140.

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rendição, em pouco tempo caíram o Forte Nazareth e o Cabo de Santo Agostinho, para aonde fugiu parte substancial das forças dos moradores, conduzida por Matias de Albuquerque. Estas vitórias foram essenciais para a consolidação do território neerlandês no Brasil. Elas livraram Recife, a capital da conquista, dos ataques vindos do interior e tornaram a WIC detentora do principal centro de produção açucareira do nordeste.93 Em janeiro de 1637, o governo da conquista foi assumido por Johann Moritz von Nassau-Siegen. O conde havia sido escolhido pelos Senhores XIX, pelos Estados Gerais da República e pela WIC como novo governador da conquista e almirante-geral das forças da terra e do mar. Logo ao desembarcar no Brasil, Nassau resolveu continuar as investidas contra a guerrilha. Em fevereiro, uma esquadra comandada por ele partiu para Alagoas, com o fito de expulsar o conde de Bagnuolo, um oficial napolitano que se distinguira no exército espanhol, e sua “tropa hispano-luso-brasileira, aquartelada em Porto Calvo”.94 Após muitas contendas, os neerlandeses saíram vitoriosos da batalha. Tomando parte nos eventos, Nordmand não deixou de testemunhá-los na autobiografia. A memória, contudo, parece ter traído a escrita do norueguês. Redigido trinta e seis anos após sua ida ao Brasil, o relato misturou detalhes de diferentes batalhas, ocorridas em Povoação, Mata Redonda, Barra Grande, Rio São Francisco, Sergipe del Rei e Baia de Todos os Santos.95 Ao terminar a narrativa de suas aventuras nas guerras brasílicas, repentinamente, Nordmand interrompeu a história de sua passagem pela América. “Pouco depois de deixar a nossa armada”, havendo “a paz se estabelecido na terra”, ele deixou o Brasil. Com “o auxílio do conde Maurício”, partiu com destino à sua terra natal, em julho de 1640.96

93 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 141. WÄTJEN. O Domínio colonial holandês no Brasil, p. 129. 94 MELLO. Nassau, p. 57. Para excertos de um relatório sobre a Batalha de Porto Calvo, feito por Nassau, ver GOUVÊA, Fernando da Cruz. Maurício de Nassau e o Brasil Holandês. Correspondências com os Estados Gerais. Recife: Editora Universiária da UFPE, 1998. p. 4245. Ver também COMMELIN, Isaac. Histoire de la Vie & Actes memorables de Frederic Henry de Nassau, Prince d’Orange. Amsterdam: Iudocus Ianssonius, 1656. p. 357-358. 95 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 142-145. Os registros toponímicos aparecem sob a forma de corruptelas: “Bay de grande”, “Poversoun”, “Materodum”, “Bay de Grande”, “Rio Francisco”, “Cersippe de Roy” e “Totos los santos”. 96 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 146.

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Escaramuças, batalhas, sítios, cobras e crocodilos... A narrativa dos anos em que Nordmand viveu no Brasil constituiu-se em uma infinda sequência de fatalidades, seguidas de eventos que garantiram sua salvação. Embora o relato do norueguês fosse seco, revelando sua pouca habilidade com a escrita, os episódios que o compõem parecem ter sido deliberadamente escolhidos para criar uma espécie de “história da salvação” de orientação protestante.97 Nordmand, o ator principal, não se prefigura como herói e tampouco como vítima dos acontecimentos. Antes disso, ele se mostra como um soldado conformado com seu destino e grato pela proteção de Deus. A estrita seleção dos fatos que compõem o texto memorialista comporta surpreendentes lacunas. Nordmand, por um lado, registra um abundante volume de informações sobre as batalhas que presenciou. Por outro, silencia-se quanto a elementos comuns aos relatos de europeus que estiveram na América. Não há referência alguma ao aspecto da terra e de sua vegetação. Raras são as menções aos animais, que em nada se pareciam com os europeus. Se existem duas rápidas menções a “mouros” encontrados nas proximidades dos engenhos de açúcar e dos fortes, o norueguês quase nada diz os escravos africanos, indígenas dos sertões e tropas de nativos, aliadas dos neerlandeses. Intrigante silêncio paira, também, sobre o exercício do ofício aprendido na República Batava. Após contar sua partida da província da Holanda, Nordmand não mais mencionou sua atuação como ferreiro ou armeiro, atividades tão úteis em uma conquista ultramarina assolada por guerras e com dificuldades de receber suprimentos da Europa. Mais uma vez, ele nada explicou sobre como veio a desenvolver o virtuosismo na talha. Não parece factível que Nordmand tivesse passado seis anos sem reparar armas ou atuar como ferreiro. Após um período de intensas batalhas, estabelecida a paz, o norueguês montou guarda nos postos em que servia. O assentamento em posições fixas poderia ter-lhe oferecido oportunidades para exercer estes ofícios. Se isto ocorreu, o silêncio quanto ao fato se justificaria pelas intenções contidas na construção do relato, que privilegiou as aventuras do militar ao cotidiano do ferreiro, armeiro e entalhador. 97 Resgato a noção de “história da salvação” usada por Ziebell para caracterizar o relato de

Hans Staden, um protestante que foi cativo de um grupo indígena no Brasil quinhentista. ZIEBELL, Zinka. Terra de Canibais. Porto Alegre: Ed. Universidade; UFRGS, 2002. p. 237.

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Outros sim, Nordmand insinua um hiato entre o momento em que saiu da armada e a data de seu retorno para a Europa. Após deixar o serviço da WIC, ao invés de retornar imediatamente à república, em uma embarcação da companhia, ele permaneceu algum tempo no Brasil. Embora Nordmand não mencione o fato, é possível que Nassau tivesse tomado ciência das habilidades de entalhador e decidido contratá-lo para atuar na decoração dos palácios que ia construindo no Recife.98 Não seria a primeira vez que ele aproveitou as habilidades de um homem da companhia. Algo parecido aconteceu como outro ex-funcionário da WIC, Zacharias Wagener. Após encerrar seu contrato, ele foi admitido como despenseiro da corte recifense, tornando-se um doméstico do conde. A hipótese, ainda não comprovada, permanece no campo das conjecturas. Mas, não fosse a dependência de Nordmand com relação à graça de seu novo senhor, porque o conde teria interferido no retorno de um simples soldado para sua terra natal?

Com diligência e fidelidade Circunstâncias bem aproveitadas, muito talento e alguma sorte selaram uma reviravolta no destino de Nordmand. Saindo do Brasil a bordo de uma frota neerlandesa, o aventureiro navegou para a Inglaterra e, de lá, seguiu para a Noruega. Aos 26 anos de idade, ele voltou a se instalar em sua cidade natal, Kristiana. Durante algum tempo, ele viveu do “dinheiro que juntou nas Índias Ocidentais”. Findas suas reservas, para sobreviver, Nordmand se valeu das técnicas e habilidades que havia adquirido. “Desde aquele tempo”, segundo confessou, ele havia aprendido a tornear “e a fazer várias outras artes”.99 Mais uma vez, o escultor se esquivou de dizer quais objetos criou e para quem os fez. O que se pode imaginar, pelos fatos revelados adiante, é que ele se dedicou à talha de materiais raros e à fabricação de armas de luxo.

98 BENCARD, Mogens. Two 17th century Eskimos at Rosenborg Palace, p. 52. 99 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 146.

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Quando foi deflagrada a guerra entre o Reino Duplo e a Suécia, o aventureiro tornou a se alistar como soldado. Desta vez, ele permaneceu em uma armada de artilharia dinamarquesa. No tempo em que esteve em serviço, Nordmand foi nomeado rustmeester do arsenal, sendo o responsável pela inspeção e manutenção das armas de fogo; funções às quais se jactou de ter cumprido “com a maior diligência e fidelidade”.100 Nordmand contou pouco sobre sua vida na Noruega. São rápidas as passagens da autobiografia que tratam do período. Os episódios narrados até aqui parecem ter uma função na construção do relato: preambular ou justificar o que seria contado a seguir. Em 1648, um ano após a morte do seu primogênito, faleceu o rei Christian IV. Coube ao seu segundo filho, Frederik III, assumir o trono do Reino Duplo. Cumprindo os rituais da sucessão, o novo rei e sua rainha, Sophie Amalie, visitaram a Noruega para receber os juramentos de fidelidade de seus súditos. Aproveitando a oportunidade, Nordmand logrou ofertar à rainha uma de suas obras. O presente, uma peça talhada em chifre de rinoceronte, parece ter encantado o casal real. Como resultado, o escultor foi convidado a viajar com seu soberano para Copenhague. Aceito o convite, ainda naquele ano, o norueguês foi instalado no castelo de Rosenborg. Por dois decênios, ele permaneceria ali, trabalhando no Gabinete de Tornearia. Entre seus deveres, coube-lhe suprir o casal real e a corte com peças esculpidas em madeira de sicômoro, madrepérola, marfim e chifres de unicórnio – como eram conhecidas as presas do narval, capturado nas proximidades da Groelândia e do ártico. Algumas peças eram simples caixinhas e pequenos objetos de uso cotidiano. Outras, entalhes refinados, destinados a aumentar a glória da Schatz e da Kunstkammer reais. A amizade e o favor dos reis foram rapidamente conquistados pelo norueguês. No tempo em que o uso do torno e a criação de esculturas em marfim eram passatempos refinados, Nordmand foi professor de três gerações da família real. Ele teria ensinado sua arte ao casal Frederik III e Sophie Amalie; depois, ao seu herdeiro Christian V e à sua esposa Charlotte Amalie, bem como ao filho dos dois, o pequeno príncipe Frederik IV.101 100 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 146. 101 A despeito das prevenções da nobreza quanto ao trabalho manual, nos séculos XVI e XVII,

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A história da nova vida ocasionou uma transformação no relato do norueguês. O presente dado à rainha foi a primeira obra de Nordmand citada na autobiografia. A partir deste ponto, a narrativa se converteu em um rol de objetos de luxo. À maneira de um inventário de coleção, o texto listou cronologicamente as peças criadas para a satisfação dos reis; excluindo-se toda a criação menor do escultor, como a caveira do seu retrato. O segundo objeto arrolado na biografia foi uma caixa feita com chifre de rinoceronte e incrustrada com madrepérola. A peça foi dada à rainha, em 3 de abril de 1649. No dia 17 de julho, o rei ganhou um modelo de engenho de açúcar feito em madeira de bétula. Já em novembro, ele recebeu um mosquete talhado com várias figuras, entre elas um Leão Norueguês segurando uma alabarda. Depois, foram feitos um palito de dente, uma faca e miudezas em chifres de unicórnio. Em 1650, Nordmand executou uma taça com peças esculpidas em chifre de unicórnio e montadas, em Hamburgo, com partes em ouro. No ano seguinte, ele criou outra peça em chifre de unicórnio, com a figura de um “mouro” adornado com pérolas, além de um crucifixo em ébano e chifre de unicórnio. Em 1653, ele fez um modelo de iate neerlandês em marfim. Depois, o Leão Norueguês. O rei reconheceu os serviços de seu criado. Finda a confecção da miniatura da fragata e posto que Nordmand sabia malhar o ferro, o norueguês foi elevado à posição de rustmeester do Arsenal real. Esperava o rei que, com sua experiência, o norueguês desfizesse a “desordem e confusão” que reinavam na armaria.102 A expectativa parece não ter sido frustrada. Em 1661, Nordmand foi nomeado inspetor da Kunstkammer real.103 a criação de peças artísticas no torno foi moda entre príncipes, como o Imperador Maximiliam I, o Eleitor Augusto de Saxe e Rodolfo II. Em seu tratado, André Félibien ofereceu uma descrição do fenômeno: “Nos últimos tempos, descobrimos vários segredos para fazer, no torno, obras de figuras diferentes e de uma delicadeza inconcebível. Vemos uma quantidade [de peças] que são [feitas] de marfim, nas quais foi necessário [o uso] de muita habilidade e paciência para se chegar a termo. No entanto, como podemos ter sucesso neste tipo de trabalho sem muito estudo e com facilidade, porque ele depende principalmente de máquinas, muitas pessoas livres e de qualidade, frequentemente, se comprazem em tornear [...]”. FÉLIBIEN. Des principes de l’architecture, de la peinture, et des autres arts qui en dependente. p. 373. Ver SCHLOSSER, J. Les Cabinets d’art et de merveilles de la Renaissance tardive. Paris: Macula, 2012. p. 206-2011. 102 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 147-148. 103 A organização e manutenção da Kunstkammer exigiu a criação de dois cargos: os postos de inspetor sênior e de supervisor ou administrador. O primeiro inspetor da coleção foi o professor de retórica Berthel Bartholin, seguido, em 1668, por Willumsen Worm. No mesmo ano, o artista

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A conexão do escultor com as coleções reais não foi fortuita. Sua inventividade e o domínio de diversas técnicas não permitem imaginar um artista improvisado, mas um criador talentoso e com habilidades depuradas pela prática. Desde as primeiras peças criadas para seus senhores, ele se mostrou sensível aos desejos dos colecionadores da época. As matérias primas escolhidas eram cobiçadas por suas qualidades e raridade. Marfins de rinoceronte, narval e elefante tinham um valor especial, por virem de locais distantes que excitavam as mentes europeias. A forma como Nordmand lavrou estes materiais, criando figuras requintadas e exóticas, parecia aumentar o desejo pelos objetos. Não há indicações sobre a origem das matérias primas. Parte das madeiras, chifres de rinoceronte, presas de elefante e narval usados por Nordmand podem ter chegado a Copenhague como presentes enviados por potentados de toda a Europa. Parte teria vindo das Índias, especialmente da Groelândia e da África, aonde circulavam navios com comerciantes e oficiais do reino. Outros materiais eram encontrados no comércio local. À época, produtos das Índias Ocidentais e Orientais podiam ser adquiridos de diversas maneiras. Pequenas quantidades eram obtidas diretamente de marinheiros e pequenos comerciantes que atravessaram os oceanos. Grandes artesãos, como fabricantes de móveis, intermediavam a venda de madeiras e marfim para oficinas menores. A importação de certos produtos, como presas de elefante, constituía “um negócio substancial por si próprio”, favorecendo o comércio especializado.104 Existiam, ainda, negociantes de curiosidades, como aqueles pintados por Cornelis de Man. Aparentemente, quando as peças eram destinadas à coleção de Frederik III, a aquisição da matéria prima necessária podia ser feita com recursos privados do rei. Nas contas da Kunstkammer dos anos de 1650, 1651 e 1652, foram registradas compras de “dentes de elefante” das mãos do farmacêutico real, Samuel Meyers.105 É certo que, à época, eram atribuídas qualidades curativas ao marfim. Contudo, os farmacêuticos da corte, Karel van Mander III, assumiu o cargo. Já os inspetores foram: o construtor de navios Christopher Proph, de 1650 a 1654; Nicolai Gyntelberg, de 1654 a 1661; e Nordmand, a partir de 1661, seguido por Bendix Grodtschilling. MORDHORST. Genstands Fortællinger, p. 49-50. 104 MEADOW, Mark A. Merchants and Marvels. Hans Jacob Fruger and the Origins of Wunderkammer. In: SMITH, Pamela H.; FINDLEN, Paula. Merchants & Marvels. Commerce, Science and Art in Early Modern Europe. New York; Lodon: Routledge, 2002. p. 182-200. 105 LIISBERG. Behring. Kunstkammeret. Dets stiftelse og ældste historie. p. 61-62.

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e boticários também vendiam uma grande variedade de produtos que não tinham fins medicinais, como pigmentos para a produção de tinta a óleo, produtos para a taxidermização de animais e raridades. Duas pinturas, uma de Frans van Mieris II e outra de Willem van Mieris, testemunham como farmacêuticos podiam ser associados a produtos curiosos, como a aloe-vera, peixes agulha e taças de noz de coco.106 Figura 17 – O Farmacêutico, por Frans van Mieris II, 171. Óleo sobre painel Amsterdam Museum, Amsterdam

106 Sobre a cultura da curiosidade e os comerciantes de curiosidade dos séculos XVII e XVII,

ver POMIAN, Krzystof. Collectionneurs, amateurs et curieux: Paris, Venise: XVIe-XVIIIe siècles. Paris: Gallimard, 2008. p. 61-80; 163 et seq.

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Figura 18 – O Farmacêutico, por Willem van Mieris. Óleo sobre tela, Pharmazie-Historische Museum, Basiléia

A sensibilidade de Nordmand para o gosto de Frederik III não ficou gravada apenas na escolha dos materiais. Engenhos de açúcar, armas de luxo, a figura de um negro, modelos de navios... os temas e objetos concebidos pelo escultor revelam uma rara habilidade para colocar seus conhecimentos técnicos e elementos exóticos de sua trajetória a serviço dos interesses colecionistas e políticos de seu patrono. Duas peças demonstram o bom casamento entre as aspirações do rei e as invenções do escultor. O Marfim no Mundo Moderno

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No início da década de 1660, Frederik III encomendou a fabricação de um trono ao marceneiro Bendix Grodtschilling, que o construiria com o auxílio de Nordmand. Rescendendo luxo e valores simbólicos, o móvel foi revestido com marfim de narval.107 O trono foi usado na nova coroação do rei, ao ser elevado a monarca absoluto. O outro objeto foi uma taça. Como seu pai, Frederik III tinha para si que a Dinamarca cumpriria um importante papel na Europa, como potência marítima. Mas, a garantia do prestígio do reino e sua salvação da crise econômica não podia depender exclusivamente da exploração do mar Báltico. Ao conhecerem os produtos das duas Índias, que chegavam à Escandinávia, os armadores do reino e a Coroa acalentaram o desejo de conquistar estes territórios e rivalizar com os suecos e neerlandeses no comércio ultramarino.108 Frederik III voltou-se primeiro para o norte da América. A conquista da Groenlândia e o domínio da pesca baleeira eram parte de seu plano de expansão marítima. Afinado com os interesses e o gosto do rei, Nordmand produziu muitas peças com marfim de narval groenlandês. Uma delas foi um símbolo inequívoco do domínio real sobre o mar do Norte. Com 25 peças esculpidas em presas de narval, ele fez uma taça encimada por uma miniatura de esquimó, segurando um enorme chifre de unicórnio.109

107 BENCARD. Two 17th century Eskimos at Rosenborg Palace, p. 50. 108 CHRISTENSEN, Steen. Denmark and Africa; past and present relations. In:

WOHLGEMUTH. Lennart. The Nordic Countries and Africa; Old and New Relations. Götenborg: Nordic Africa Institute, 2002. p. 5. 109 Sobre a taça, ver NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 154.

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Figura 19 – Taça com esquimó, por Jacob Nordmand, 1662. Presas de narval e metais, Kongernes Samling Rosenborg, Copenhague

Nordmand não era apenas o humilde e austero escultor que a efígie pintada por Heimbach mostrava. Isto é certo. Ao ser retratado, em 1654, o escultor estava no auge de uma brilhante carreira na corte dinamarquesa, ganhando provas do reconhecido por sua diligência e fidelidade. Ele alcançou posições destacadas na corte, privou com a família real nas aulas de tornearia e atendeu a encomendas especiais de seu patrono. Com peças criadas para a Kunstkammer, ele construía e projetava a imagem pública de seu soberano. Posteriormente, também zelou pelos bens mais amados por Frederik III: as coleções reais. Se ideais religiosos moldaram o retrato do escultor, a relação com o patrono explica a construção da sua autobiografia. Os fatos narrados por Nordmand parecem ser aqueles que mais intimamente concerniam ao rei moribundo: as aventuras americanas do seu fiel servidor e as magníficas obras que seu artifício criou. Como critério de seleção e pilar da narrativa, a simpatia e o desinteresse do soberano ajudam a justificar o silêncio sobre eventos importantes da vida de Nordmand – seu casamento; o batismo de sua filha com o nome Sophie Amalie, em homenagem à rainha; além dos trabalhos que poderiam ter sido feitos para plausíveis comitentes, como Johann Moritz von Nassau-Siegen. O Marfim no Mundo Moderno

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Artisticamente criados no Brasil No ano em quem Heimbach pintou Nordmand, no momento em que escultor terminou o modelo do Leão Norueguês, a Kunstkammer real vivia dias de grande agitação. Após fundar a coleção, o rei empenhou-se em ampliar seus acervos de arte, curiosidades, livros raros e documentos manuscritos. Frederik III costumava enviar mensagens a seus embaixadores e agentes para fazer saber de seu interesse por itens curiosos de toda espécie. Uma legião de nobres e servidores, que representavam o reino em países estrangeiros, foi mobilizada para aquisição de peças para Kunstkammer, a biblioteca e o arsenal reais. Durante todo o reinado, eles percorreram o continente, entremeando assuntos de Estado com a conquista de itens cobiçados pelo rei.110 Frederik III tinha um gosto singular pelas curiosidades das Índias Ocidentais e Orientais. Sua afeição pelas realidades extra europeias o levaram a obter itens de alto valor e grande raridade. Uma miríade de lacas chinesas foi usada para decorar o Gabinete Indiano, criado em uma torre do castelo Rosenborg. Para a Biblioteca real, foi adquirido o codex andino Nueva crónica y buen gobierno; uma história crítica dos Andes sob o domínio espanhol, escrita e ilustrada pelo peruano Felipe Guamán Poma de Ayala, entre 1600 e 1615.111 Igualmente raro e excepcional era o herbário brasileiro produzido por Georg Marcgrave, um naturalista germânico que serviu a Nassau. Único no gênero, o volume com plantas tropicais desidratadas foi montado por ele em algum momento entre 1636 e 1643, datas que marcam sua chegada ao Recife e sua morte em Loango.112 110 São exemplos de agentes Gabriel Marselies (Amsterdam), Gabriel Gomez (Hamburgo) e Heinrich von Nassau-Siegen, irmão de Johann Moritz. BENCARD, Mogens. Fürstliche Geschenke. In: BRUNN, Gerhard; NEUTSCH, Cornelius (orgs.) Sein Feld war die Welt. Johann Moritz von Nassau-Siegen (1604-1679). Von Siegen über die Niederlande und Brazilien nach Brandenburg. Münster: Waxmann, 2008. p. 163. BENCARD, Mogens. Por que a Dinamarca? A doação de Nassau a Frederik III. In: VRIES, Elly de (org.). Albert Eckhout volta ao Brasil. 1644-2002. Simpósio Internacional de Especialistas. São Paulo: Banco Real, 2002. p. 87-88. 111 É desconhecido o caminho percorrido pela obra entre o Vice-Reino do Peru e a Biblioteca real, que possivelmente chegou à Dinamarca após 1653. Ver ADORNO, Rolena. A Witness unto Itself: The Integrity of the Autograph Manuscript of Felipe Guaman Poma de Ayala’s El primer nueva corónica y buen gobierno (1615-1616). 7-100. In: ADORNO, Rolena; BOSERUP, Ivan. New Studies of the Autograph Manuscript of Felipe Guaman Poma de Ayala’s Nueva Corónica Y Buen Gobierno. Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 2003. p. 20-21. 112 A obra também foi incorporada à biblioteca depois de 1653. BRIENEN, Rebecca Parker.

218 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

A Kunstkammer, entre todas as coleções reais, foi a que mais se beneficiou com o gosto de Frederik III pelas coisas de lugares longínquos. Suas câmaras exibiam uma profusão de objetos das duas Índias, como despojos de animais, plantas secas e artefatos produzidos pelos povos nativos do ocidente e do oriente. Itens do Novo Mundo recém-adquiridos se misturavam indistintamente com peças de outros lugares e objetos mais antigos, herdados dos antepassados de Frederik III. Assim se apresentava o armário de marfim da Câmara da artificialia, em cujas prateleiras o modelo do Leão Norueguês dividia espaço com um saleiro luso-africano do século XVI, uma escrivaninha indiana, um almofariz, um relevo com cenas de bacanal e uma imagem de Cristo – itens que tinham em comum o fato de serem lavrados em marfim.113 No crescimento exponencial das coleções, as peças chegavam tão rapidamente que é de se imaginar a dificuldade enfrentada para tratá-las e colocá-las em exibição nas câmaras do gabinete. Índios tupis e tapuias, negros e mestiços, uma cobra, uma aranha, porquinhos da índia, toda sorte de plantas e frutos da América e da África – pintadas sobre telas e painéis de madeira, as formas e as cores mais exuberantes do Novo Mundo ganharam lugar em Copenhague, naquele movimentado ano de 1654. Acolhidas na Kunstkammer como o mais imponente conjunto de objetos das Índias, vinte e seis pinturas com temas brasileiros e africanos haviam sido ofertadas a Frederik III por Johann Moritz von Nassau-Siegen.114 Elas chegaram à cidade por intermédio de Georg Marcgraf (1610-c. 1644). A German Cartographer, and Naturalist-Illustrator in Colonial Dutch Brazi. Itinerario: Bulletin of the Leyden Centre for the History of European Expansion, vol. 25, nº 1, 2001, p. 85-122. WAGNER, Peter. Das Markgraf-Herbarium. In: BRUNN, Gehard; NEUTSCH, Cornelius. Sein Feld War Die Welt: Johann Moritz Von Nassau-Siegen (1604-1679). XXX: Waxmann Verlag, 2008. p. 233-246. 113 O rei nutria apreço especial por peças em marfim. Além de aprender a tornear com Nordmand, sua coleção possuía mais de 140 presas de elefantes in natura e peças de marfim lavrado, segundo o inventário de 1674. O Museum Regium indica que as presas e algumas caudas de elefantes da coleção vinham da Etiópia e de Angola. INVENTARIUM OVER KUNSTKAMMERET paa Københauns Slot. p. 164-165. DAM-MIKKELSEN, Bente; LUNDBÆK, Torben (orgs). Etnografiske genstande i Det kongelige danske Kunstkammer – 16501800 / Ethnographic Objects in The Royal Danish Kunstkammer 1650-1800. København: Nationalmuseet, 1980. p. 46-49. JACOBÆO, Oligero. Museum Regium, p. 3. 114 Há autores que apresentam a oferta como um contra-presente de Nassau a Frederik III pela concessão da mais alta comenda dinamarquesa, a Ordem do Elefante. Alguns estudiosos discordam do motivo em razão da distância de 4 anos que separa os eventos. Concordo com quem afirma que a oferta expressava a gratidão de Nassau por ter recebido o apoio do primo na Dieta Imperial de Regensburg, em 1653 e 1654. Naquela assembleia do Império, com o apoio de Frederik III e do Eleitor de Brandemburgo, foram confirmados os privilégios e honrarias

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um emissário do rei, o almirante Christoffer Lindenov til Lindersvold, que em julho visitou o ex-governador do Brasil, em Kleef.115. O presente era composto por doze naturezas mortas com frutos, folhas e raízes comestíveis da América, da África e da Europa; o retrato de um senhor negro, provavelmente Dom Miguel de Castro, embaixador do Reino do Congo que estivera na corte brasileira em 1640; duas representações de pajens negros, supostamente Pedro Sunda e Diego Bemba, que teriam acompanhado o enviado africano;116 um retrato de Nassau; outro retrato do conde, neste circundado por ameríndios; uma pintura com índios tapuias dançando; e oito telas de grandes dimensões, representando homens e mulheres que habitavam as Índias Ocidentais.117

obtidos por Nassau ao ser diplomado príncipe imperial. Ver GOMES, René Lommez. Homens e frutos do Brasil. p. 247. FRANÇOZO, Mariana. Global Connections: Johan Maurits of NassauSiegen’s Collection of Curiosities. In: GROESEN, Michiel van. The Legacy of Dutch Brazil. New York: Cambridge University Press, 2014. p. 121. OPGENOORTH, E. Johan Maurtis as Stadholder of Cleves under the Elector of Brandenburg. In: BOOGAART, Ernest van den. Johan Maurits van Nassau-Siegen – 1604-1679. A Humanist Prince in Europe and Brazil. The Hague: The Johann Maurits van Nassau Stichting, 1979. p. 46. MENTZ, Søren. Arte, poder e política: a Dinamarca e os Países Baixos, p. 98-99. 115 O mesmo que Christoff Lindenauw, como é citado em alguns documentos; ou Christoffer Lindenow til Lindeouldt. 116 Segundo Cécile Fromont, inscrições no verso dos painéis identificam os personagens. Não há registros, entretanto, da época exata em que foram feitas. FROMONT, Cécile. The Art of Conversion: Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo. Williamsburg: The University of North Carolina Press, 2014. p. 164. 117 O presente de Nassau a Frederik III foi levado para Copenhague por Lindenov, junto a uma carta em que o conde se colocava a serviço do príncipe e explicava os itens que o compunham a remessa. Nela, Nassau não forneceu dados que permitem a identificação das 26 pinturas. A lista aqui apresentada, aceita em toda a literatura sobre o assunto, foi realizada a posteriori, a partir da localização de quadros brasileiros nos inventários da Kunstkammer. A carta original está no Arquivo Real da Dinamarca e foi publicada pelo historiador Louis Bobé, em 1909. O documento foi transcrito e publicado no alemão original por Thomas Thomsen e Erik Larsen. CARTA DE NASSAU A FREDERIK III, Kleef, 13 jul. 1654. In: LARSEN, Erik. Frans Post. Interprète du Brésil. Amsterdam; Rio de Janeiro: Colibri, 1962. p. 251.

220 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Figura 20 – Homem negro, por Albert Eckhout, 1641. Óleo sobre tela. Nationalmuseet Danmark, Copenhague

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Figura 21 – Mulher Tapuia, por Albert Eckhout, 1641. Óleo sobre tela. Nationalmuseet Danmark, Copenhague

222 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Figura 22 – Mulher Tupi com criança, por Albert Eckhout, 1641. Óleo sobre tela. Nationalmuseet Danmark, Copenhague

Aos olhos de Nassau, as pinturas acumulavam características que encantariam um amante das curiosidades, como o rei dinamarquês. Suas tintas representavam, em tamanho real, homens, plantas e animais nunca vistos pelos olhos de grande parte dos europeus. Autênticas e não O Marfim no Mundo Moderno

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possuindo cópias em qualquer parte do mundo, para além do ineditismo das imagens, as pinturas eram únicas por terem sido criadas no Brasil. Elas eram fruto do trabalho de Albert Eckhout, um artista neerlandês que viu o Novo Mundo em primeira mão, nos quase oito anos em que viveu no Recife a serviço do conde.118 Nassau tinha razão em seu julgamento. Frederik III criou um grande apreço por aquelas pinturas, que seriam expostas em um lugar especial da Kunstkammer. Destacada do restante do acervo, a maior parte das obras foi pendurada nas paredes e no teto da antecâmara que dava acesso à coleção. Exceção foi feita aos dois retratos de Nassau, exibidos na Câmara de Pintura, ao lado de retratos do casal real e de figuras importantes do círculo político de Frederik III.119 Para um rei que se dedicava à cultura da curiosidade, a presença das figuras na coleção descortinava um mundo inusitado, colocando o conhecimento de novas realidades ao alcance do olhar. Como outros itens da coleção, as pinturas também serviam como signo das ambições de Frederik III. Desde o tempo de Christian IV, dominar comércio nos mares do norte havia se prefigurado como saída para a crise econômica do Reino Duplo. Mais vantajosa ainda parecia ser a conquista de territórios nas duas Índias, garantindo acesso direto aos seus produtos. Em 1616, o pai de Frederik III fundou uma Companhia Dinamarquesa das Índias Orientais, que antecedeu o estabelecimento de uma feitoria na Índia.120 Dois anos depois, assinou um tratado de aliança e comércio com o “imperador” do Ceilão.121 Entre 118 CARTA DE NASSAU A FREDERIK III, Kleef, 13 jul. 1654. In: LARSEN, Erik. Frans Post, p. 251. 119 Por permanecerem separados do restante das pinturas de Eckhout, estes dois retratos foram perdidos em um incêndio que atingiu a Kunstkammer, em 1794. O inventário da coleção realizado entre 1766-1767 mencionava “uma grande pintura com o Príncipe Mouritz von Nassau em postura inteira [de corpo inteiro], em tamanho de uma pessoa, feito no ano de 1644, no Brasil, por d’Acov.” – uma corruptela da assinatura de Eckhout (Æckhout). THOMSEN, T.. Albert Eckhout ein niederländischer Maler und sein Gönner Moritz der Brasilianer ein Kulturbild aus dem 17. Jahrhundert. Copenhagen: North-Holland Publishing, 1938. p. 15. HAUBER, Ernst Christian. Beschreibung der Stadt Kopenhagen und der Königlichen Landschlössern. Kopenhagen: Friderich Christian Pelt, 1777. p. 100. GUNDESTRUP, B. As pinturas de Eckhout e o Kunstkammer Real da Dinamarca História da coleção. p. 112. 120 WEISS, H. Ports of Globalization, Places of Criolization. Elsinore: Maritime Museum of Denmark, 2016. p. 7. 121 HANSEN, C. Rise (org.). Sources of the History of North Africa, Asia and Oceania in Denmark. München: Danish National Archives, 1980. p. 231.

224 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

1642 e 1649, zarparam as primeiras frotas de capital dinamarquês para explorar a Costa do Ouro, na África ocidental.122 Em 1644, o rei tentou fundar a Companhia Dinamarquesa das Índias Ocidentais. Para tanto, Christoffer Lindenov, que estava na República Batava, foi incumbido de obter recursos para a empresa. Cumprindo as ordens, ele tomou emprestado “a substancial soma de 3.000 florins” ao pintor Albert Eckhout, recém retornado do Brasil.123 A empresa, entretanto, não vingou. Frederik III deu continuidade à política expansionista de seu pai, apoiando expedições às Índias Ocidentais. O monarca atuou em sociedade com Jan de Willum, um comerciante neerlandês que realizou uma bem-sucedida incursão à ilha caribenha de São Tomás, em 1652.124 Willum concebeu a fixação de uma colônia na ilha, para produzir açúcar empregando o trabalho de escravos africanos.125 Animados pelo resultado da viagem, em 1654, mercadores dinamarqueses enviaram mais quatro expedições a São Tomás. No retorno, as embarcações levaram para o reino meio milhão de libras de tabaco, gengibre, açúcar e índigo.126 Igualmente proveitosas foram as três expedições de conquista da Groenlândia, realizadas com apoio real nos verões de 1652 a 1654.127 O mesmo desvelo com a expansão para a América seria direcionado à conquista da África. Em 1653, a coroa associou-se ao polonês Hendrik Caerloff, antigo oficial da WIC que atuou no Brasil e no Castelo da Mina. Caerloff também foi o comandante da primeira frota sueca a explorar a costa africana. Insatisfeito com sua situação da Companhia Sueca da África, ele traiu os suecos e ofereceu-se para ajudar o Reino Duplo a dominar a Costa do Ouro.128 O plano do polonês incluía a expulsão 122 CHRISTENSEN, Steen. Denmark and Africa; past and present relations, p. 6. GOBEL,

Erik. Danish trade to the West Indies and Guinea, 1671–1754. Scandinavian Economic History Review, vol. 31, n. 1, p. 210-49, 1983. p. 22. 123 EGMOND, Florike; MASON, Peter. Albert E(e)ckhout, court painter. In: BUVELOT, Q. Albert Eckhout. A Dutch Artist in Brazil. The Hague; Zwolle: Royal Cabinet of Paintings Mauritshuis; Waanders Publishers, 2004. p. 121. 124 CHRISTENSEN. Denmark and Africa; past and present relations, p. 5. 125 WEISS. Ports of Globalization, Places of Criolization, 2016. p. 10. 126 MEADER, Richard. Organizing Afro-Caribbean communities: processes of cultural change under Danish West Indian slavery. Toledo: The University of Toledo, 2009. (dissertação de mestrado) p. 12. 127 WHITEHEAD, Peter J.P. Earliest Extant Painting of Greenlanders. In: FEEST, Christian. Indians & Europe. An Interdisciplinary Collection of Essays. Lincoln; London: University of Nebraska Press, 1989. p. 143-145. 128 CHRISTENSEN. Denmark and Africa; past and present relations, p. 6.

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de seus antigos parceiros da região. Àquela altura, os inimigos do Reino Duplo haviam entrado para comércio de escravos na América, após se estabelecerem no castelo Accra – um forte em Osu, abandonado pelos portugueses – e criarem feitorias que iam de lá até Takoradi. Frederik III agarrou a oportunidade. No ano de 1657, foi fundada a Companhia da Guiné, tendo Caerloff como um dos seus principais acionistas. Sob comando do polonês, no ano seguinte, os dinamarqueses capturaram todos os estabelecimentos suecos na Costa do Ouro, incluindo os fortes Christiansborg, Accra e Carolusborg. Finalmente, o Reino Duplo estreou no lucrativo comércio de escravos. Sua posição na África foi consolidada, em 1659, com a assinatura de um tratado com o Reino de Fetu para a ocupação do forte Frederiksborg. Dois anos depois, foi construído outro forte na região, o Christiansborg.129 Qual impressão não causaria começar uma visita à Kunstkammer real observando os densos canaviais, as imensas peças de marfim e outras riquezas da América e da África pintadas por Eckhout? Preocupado com construção de sua imagem, Frederik III, dificilmente deixaria de usar as pinturas para projetar suas ambições e celebrar os feitos de seus súditos em plagas tão distantes. É provável, aliás, que o presente de Nassau não tivesse sido de todo espontâneo. A visita de Lindenov ao conde poderia ter escondido sutis manipulações dos códigos que regiam a troca de favores e presentes entre príncipes. O objetivo do almirante, em sua passagem por Kleef, poderia não ter sido outro que induzir Nassau a presentear seu soberano com as magníficas obras.130 Frederik III não teria ficado imune à vontade de possuir as coisas que seu primo trouxera da América. A fama da coleção de Nassau era imensa e percorreu a Europa, excitando a imaginação em uns e a cupidez em outros. O próprio conde agiu para ampliar sua notoriedade, presenteando eruditos, diretores da WIC e aristocratas com alguns itens. Nos bailes promovidos pela nobreza norte-europeia, ele expôs itens da coleção, usando-os como adereços ou fantasias em mascaradas e balés. Não fosse pelas notícias que corriam nas cortes imperiais, Frederik III teria ouvido falar das pinturas por meio de seus súditos. Talvez, pelas 129 SENSBACH, Jon F. Rebecca’s Revival: Creating Black Christianity in the Atlantic World. Cambridge; London: Harvard University Press, 2005. p. 13. 130 Sobre significado da troca de presentes, na construção das relações entre os dois príncipes, ver GOMES. Homens e frutos do Brasil. p. 249 et seq.

226 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

descrições de Christoffer Lindenov, que na juventude viveu na corte recifense, na condição de mestre da coudelaria de Nassau.131 Quiçá, pela boca de Nordmand, que poderia ter visto as pinturas no Brasil. O almirante, responsável por negociar o presente com Nassau, tinha suas próprias conexões com o crescimento da Kunstkammer. A coleção reunia dezenas de objetos brasileiros, sobretudo exemplares da fauna e da flora, como um cavalo, um tamanduá, cacau e caju, sem contar os artefatos indígenas. Ao menos um destes itens, uma ave guará foi trazida do Brasil por Lindenov, talvez com a deliberada intenção de agradar ao seu soberano.132 Afinal, oferecer presentes ao rei, após uma viagem a terras distantes, não era um gesto inédito nos círculos do jovem. Seu pai, o Almirante Godske Lindenov, integrou a primeira expedição dinamarquesa à Groenlândia. Ao retornar a Copenhague, em 1606, ele ofereceu a Christian IV cinco esquimós e vários objetos de sua cultura. Incorporados às coleções reais, os objetos terminariam na Kunstkammer de Frederik III.133 Acionado por Nassau ou Frederik III, não havia homem mais adequado que Lindenov para mediar a troca dos presentes. Filho de nobres dinamarqueses, ele era próximo a Frederik III e estava muito bem informado sobre seus gostos e interesses. Por outro lado, o convívio cotidiano com Nassau, no Recife, teria criado laços entre os dois, facilitando a negociação. De 1636 a 1640, Lindenov acompanhou de perto as atividades do conde, participando da intimidade de suas residências. Como mestre de coudelaria, ele era um dos principais “domésticos da corte do governador-geral”, sendo o oitavo homem entre as 167 pessoas que integravam a hierarquia da casa.134 Nas refeições, 131 WÄTJEN, H. O Domínio colonial holandês no Brasil: um capítulo da história colonial do

século XVII, p. 114. 132 O caso foi registrado no Museum Regium. JACOBÆO, Oligero. Museum Regium, p. 3; 7-12; 28-29. 133 HARBSMEIER, M. Bodies and Voices from Ultima Thule. Inuit explorations of the Kablunat from Christian IV to Knud Rasmussen. In: BRAVO, M.; SÖRLIN, S. (orgs). Narrating the Artic. A Cultural History of Nordic Scientific Practices. Canton: Watson, 2012. p. 33-72. WHITEHEAD, Peter J.P. Earliest Extant Painting of Greenlanders. In: FEEST, C. Indians & Europe. An Interdisciplinary Collection of Essays. Lincoln; London: University of Nebraska Press, 1989. p. 141-160. O caso foi registrado no Museum Regium. JACOBÆO, Oligero. Museum Regium, p. 12. 134 A estrutura da corte nassoviana, no Brasil, foi aferida a partir da “Lista de domésticos da corte do Governador-geral Johan Maurits, que possuem mesa livre”, produzida entre março e abril de 1643. A lista arrola, hierarquicamente, 49 indivíduos que, às refeições, eram repartidos em quatro mesas. O conteúdo do documento é semelhante a uma cópia da “Lista de pessoas”

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ele gozava o privilégio de tomar assento à mesa principal, dividindo-a com o conde e sua entourage.135 Tão ou mais que Lindenov, Nordmand também poderia ter se envolvido nos atos cerimoniais que geraram a oferta do presente. A vida do norueguês em Copenhague era compassada pelas práticas colecionistas do rei. Por isto e por sua experiência brasileira, como não pensar em Nordmand agindo para incentivar a obtenção das pinturas? Um item especial reforçava as conexões de Nordmand com a Kunstkammer, com o ex-governador do Brasil neerlandês e com os artistas que trabalharam nos trópicos. Na Câmara de artificialia da Kunstkammer real, existiam duas nozes de coco entalhadas.136 Uma delas tinha a superfície gravada com uma cena americana, na qual um casal de índios antropófagos se reunia em torno a uma árvore. O homem portava uma ibirapema usada para matar os inimigos. A mulher, com uma machadinha em uma mão e uma mão decepada na outra, carregava um cesto com os despojos de uma perna humana. As figuras remetem a duas pinturas de Eckhout, transferidas para Copenhague: as telas com o homem e a mulher tapuia. Imensas semelhanças conectam as pinturas e os relevos da noz de coco; indicando que talvez tivessem sido esculpidos por Nordmand, a partir de desenhos de Eckhout tomados como modelo. Os traços dos relevos, entretanto, são incompatíveis com a delicadeza das obras do norueguês. Rústica, a fatura da peça sugere que ela teria sido um “rascunho” ou primeira tentativa de trabalhar o material. Outrossim, uma execução de mãos menos habilidosas, como as de um aprendiz. que tinham acesso à mesa, produzida por Pieter Bonjour, em 1641. Arquivo Nacional (Haia), Lijst (kopie) van personen de gewoon zijn bij het hof van Gouverneur-Generaal Johan Maurits te eten. Kopie van een lijst door hofmeester Pierre Bonjour opgegeven. [1641] NL-HaNA_OWIC 1.05.01.01, inv. nr. 56, 298c.; Lijst van de ‘Domestiquen’ aan het hof van de governeur-generaal Johan Maurits van Nassau, die de vrije tafel genieten, gedateert 1 maart n 1 april 1643. Mauritsstadt. NL-HaNA_OWIC 1.05.01.01, inv. nr. 58, 206. A lista de 1643 foi publicada, na íntegra em HOFHOUDING Van Johan Maurits Graaf vol. Nassau in Brazilië. De Navorscher, nº 48, p. 557-562, 1898. p. 557-562. ver THISSEN, Bert. Der Hof des Fürsten Johann Mortiz von Nassau-Siegen in den Jahren 1669-1679. In: BRUNN, Gerhard; NEUTSCH, Cornelius (orgs.). Sein Feld war die Welt. Johann Mortz von Nassau-Siegen (1604-1679). Von Siegen über die Niederlande und Brazilien nach Brandenburg. Münster: Waxmann, 2008. p. 247-346. 135 Lijst van de ‘Domestiquen’, 1643. Hofhouding van Johan Maurits, p. 557. 136 De acordo com o inventário de 1674, a coleção possuía cerca de nozes de coco, nem todas trabalhadas. INVENTARIUM OVER KUNSTKAMMERET [1674], 1897. p. 166. DAM-MIKKELSEN, Bente; LUNDBÆK, Torben (orgs). Etnografiske genstande i Det kongelige danske Kunstkammer, p. 22.

228 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Fora da coleção de Frederik III, existiram várias taças talhadas em noz de coco que apresentavam uma iconografia eckhoutiana. São taças mais complexas e mais bem executadas que a de Copenhague. Duas delas foram gravadas com os mesmos motivos, em cada uma de suas três faces: um casal de índios tapuias junto a uma bananeira; um casal de índios tupis ao redor de um coqueiro; um negro, uma mulher vestida à europeia e uma criança nua, recolhendo peixes em uma praia.137 A composição com os tapuias se repetia na peça de Frederik III. Das mãos de um entalhador de igual qualidade teriam saído outras delicadas peças, com relevos associados ao governo nassoviano. Outra taça de noz trazia, de um lado, as armas que Nassau inventou para os territórios brasileiros que governava: uma coroa aberta, representando a casa de Oranje, pairava sobre um escudo em formato francês; dentro do escudo ficava “o resumo, em esquartelado, dos brasões das quatro principais capitanias do Brasil” ocupado.138 Na segunda face, sob uma coroa aberta, foi desenhado o brasão de Pernambuco. Nele, a capitania era personificada por “uma donzela que admira a própria beleza em um espelho, simbolizando a formosura da terra e a situação e o nome de sua [antiga] capital – Olinda – e tendo na mão uma cana de açúcar”.139 Na terceira face, foram feitas “a vista de Recife e da Cidade Maurícia com o Palácio de Vrijburg, e ao fundo um navio entrando no porto”.140 Outro exemplar apresentava imagens das duas residências brasileiras construídas por Nassau – Vrijburg, com suas alamedas de 137 Uma delas é chamada taça Humboldt, por ter pertencido a Alexander von Humboldt. Hoje,

ela se encontra no acervo da Kunstkammer Georg Laue (Munique). A outra pertence à Coleção Brasiliana Itaú. SPENLÉ, vol. “Savagery” and “Civilization”: Dutch Brazil in the Kunst- and Wunderkammer, Journal of Historians of Netherlandish Art, vol. 3, nº 2, 2011. LAGO, Pedro Corrêa do. Brasiliana Itaú. Uma grande coleção dedicada ao Brasil. São Paulo: Capivara, 2009. 138 O primeiro era o emblema de Pernambuco, mostrando uma donzela com um pedaço de cana-de açúcar numa mão e um espelho na outra. O segundo era o de Itamaracá, com três cachos de uvas; seis pães de açúcar representam a Paraíba; e a Ema, o Rio Grande do Norte, por haver ali maior a abundância dessa ave. Os brasões das capitanias da conquista foram projetados por Nassau em 1638. O resumo dos seus elementos heráldicos e significados foram registrados na Generale Missive, Recife, 07 de outubro 1678 e no livro de Barleus. BARLEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, p. 127 et seq. GUTLICH, Georg Rembrandt. Arcádia Nassoviana. Natureza e Imaginário no Brasil Holandês. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005. p. 131. 139 Generale Missive, Recife, 07 de outubro 1678 apud. GONSALVES DE MELLO, José Antônio. Tempo dos Flamengos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. p. 68. 140 Atualmente, esta peça pertence ao Museu Nacional da Baviera (Munique, Alemanha).

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coqueiros, e o palácio da Boa Vista. Completavam a taça o brasão de Nassau e um medalhão com seu retrato e seu moto.141 A mais bela das nozes talhadas apresentava elementos dos quadros de Eckhout – o índio tapuia e a mameluca –, inseridos em paisagens ricamente detalhadas com densa vegetação, palmeiras e bananeiras em destaque, um rio, um casario e uma igreja. Em um lado, a refinada peça apresentava elementos que não estavam presentes nas obras de Eckhout presenteadas a Frederik III: um negro com um facão e um índio prestes a lançar uma flecha. A figura do negro era inédita, mas o indígena viria aparecer em um cartão para fabricação de tapeçarias, criado por Eckhout na Europa.142 Figura 23 – Noz de coco esculpida, [autor desconhecido], sem data. Noz de coco e prata parcialmente banhada a ouro. Staatliche Kunstsammlungen, Dresden

a)

b)

141 Esta peça foi exibida no Instituto Arqueológico de Londres, em 1858, e sua descrição

foi publicada no periódico da instituição. Não há indicações do seu paradeiro após o evento. MORGAN, Octavius. Antiquities and Works of Art exhibited. Archaeologic Journal, vol. XVI, p. 173-174, 1858. 142 A taça atualmente pertence à coleção à do Staatliche Kunstsammlungen Dresden (Dresden, Alemanha).

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c)

d)

O entalhador que produziu os finos relevos certamente trabalhou para Nassau, no Brasil. Dos emblemas ao retrato do conde, passando pelas representações dos habitantes das Índias, o habilidoso escultor dominava o vocabulário visual inventado pelos pintores que viviam em Recife, para representar os domínios governados por seu patrono. Mais que isto, a proximidade existente entre os entalhes e as criações de Albert Eckhout indica claramente que os dois artistas trabalharam em parceria, compondo móveis, objetos utilitários e pinturas condizentes com a decoração do Palácio de Vrijburg, da casa da Boa Vista e da Mauritshuis, residências de Nassau em Recife e em Haia. É preciso lembrar que, pouco depois de deixar a armada e havendo “a paz se estabelecido na terra”, Nordmand deixou o Brasil, em julho de 1640. Assim, se ele foi o autor dos entalhes nestas taças de noz de coco, seu trabalho teria sido executado a partir de desenhos ou esboços de Eckhout e não das telas, uma vez que as pinturas só seriam concluídas de um a três anos depois do retorno do escultor a Kristiania.143 Uma parceria semelhante teria levado à criação dos móveis em marfim. As frutas tropicais esculpidas nos espaldares das poltronas reproduziam motivos inventados por Eckhout, em suas naturezas mortas.

143 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 146.

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Figura 24 – Natureza morta com melancia, abacaxi e outras frutas, por Albert Eckhout, sem data. Óleo sobre tela, Nationalmuseet Danmark, Copenhague

Sem falar nos brasões e insígnias de Nassau, que estavam igualmente presentes em algumas cadeiras. A alta qualidade da talha dos móveis era compatível com a lavra das nozes. Portanto, não seria demais aventar que uma mesma pessoa criou as taças, os bancos, as cadeiras e o todo o mobiliário de marfim da Mauritshuis. Também não seria improvável que este escultor fosse o próprio Nordmand, uma vez em que não há notícias de outro virtuose da lavra em marfim atuando no Brasil de então. O retorno prematuro do norueguês à Europa, com “a ajuda do conde Maurício”, também fornece uma explicação plausível sobre os motivos que levaram a uma poltrona e a uma cadeira (datadas de 1640) permanecerem inacabadas, faltando-lhes a finalização de parte dos entalhes. 232 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Não era nada comum o talento de Nordmand para a talha. Seria muito provável, embora não se possa comprovar, que o norueguês realmente tivesse sido o torneiro e entalhador responsável pela produção destes objetos de luxo. Não sozinho, pode-se imaginar. Além das nozes de coco e dos móveis em marfim, ao inaugurar a Mauritshuis, Nassau exibiu aos convidados vários móveis em madeira brasileira, como “assentos e cadeiras, totalmente fabricados em precioso, negro e verde, ébano brasileiro”.144 Os móveis em marfim e em madeiras tropicais somados às taças em noz de coco alcançavam um volume de peças que custosamente seria criado por um único artificie. Levanta-se, aqui, a hipótese de que Nordmand trabalhado com parceiros, auxiliares, aprendizes e escravos africanos em uma oficina de talha e tornearia, que atendia aos planos de Eckhout e Nassau para a decoração de Vrijburg e da casa da Boa Vista. O trabalho conjunto, em oficinas e ateliês, foi prática comum tanto nos ofícios mecânicos quanto nas artes da escultura e da pintura, no período moderno europeu. Talvez a situação tivesse se reproduzido no Brasil neerlandês, que contou com um afluxo de vários marceneiros, como o francês João Belarmine e Lambel Lamberque. Isto sem contar com gravadores de vidro, como Pieter Coninxloo, Anthony de Later, Jacob Pauwelsen e Paulus Auwaarts, que também estiveram Recife e teriam as habilidades necessárias para a produção de relevos.145 O próprio Nordmand, na autobriografia, insinuou que ainda jovem aprendeu a tornear “e a fazer várias outras artes”146; não sendo cabível descartar a possibilidade de que parte do seu aprendizado tivesse ocorrido em uma oficina brasileira. Oficinas desta natureza provavelmente existiram; a se julgar pelo relato de um capuchinho que esteve em Pernambuco, no ano de 1667. Segundo Michelangelo Guattini, Recife era uma cidade “de tamanho ordinário, mas extremamente povoada, sobretudo por negros”. Provenientes “de Angola, do Ndongo, do Congo e de Matamba”, os africanos eram empregados em várias atividades, como “trabalhar o tabaco, o açúcar e na colheita do algodão”. Mas, também “para a talha da 144 HENNIN. De zinrijke gedachten toegepast op de vijf sinen von ‘s mensen verstand, p. 117. 145 WHITEHEAD, P. J. P.; BOESEMAN, M. Um retrato do Brasil Holandês do século XVII, p.

195. MUNIZ, Suely Cisneiros. Cronologia histórica e patologia dos azulejos em Pernambuco, entre os séculos XVII e XVIII. RECIFE: UFPE, 2009. (dissertação de mestrado) p. 113. 146 NORDMAND. En ubenævnt Dansk Kunstners; levnets-historie, p. 146.

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madeira que tinge a seda e outros tecidos preciosos, e para trabalhar o Coco e o marfim”.147 Ele próprio adquiriu um rosário de coco que enviou à Itália, como presente para a mãe de seu protetor, o conde Rolli.148 Quanto aos móveis em marfim, suas formas podem ter guardado vestígios do trabalho coletivo. Como já dito, alguns historiadores perceberam nas cadeiras “as características colunetas em arcada dos móveis espanhóis e portugueses”. Na moldura do espelho, os tremidos que eram a “marca da marcenaria portuguesa do século XVII”.149 Já, o gabinete, em estilo clássico de suposta “influencia renascentista”, não se enquadra na linguagem do mobiliário luso-brasileiro. Em que pesassem os elementos ibéricos ou luso-brasileiros presentes em algumas peças, o mobiliário em marfim comportava soluções estilísticas de várias origens. A escolha de certos ornamentos, pressupunha um fino conhecimento das novidades introduzidas no gosto batavo por artistas e arquitetos adeptos do classicismo neerlandês. O mobiliário concebido neste estilo era harmônico com a arquitetura criada por mestres classicistas da cidade de Harlem, como Salomon de Braj, Jacob van Campen e Pieter Post.150 O gabinete de marfim, com suas colunas jônicas entremeadas por nichos e festões de flores, lembrava vivamente os desenhos de Campen e Post para decoração interna e externa da Mauritshuis. Nas poltronas, os festões que adornavam os espaldares eram condizentes com desenhos deste tipo de decoração que viriam a ser publicados, em 1655, por van Campen e Michiel Mosijn.

147 GUATTINI, Michel Angelo de. Viaggio nel regno del congo. Venetia: Iseppo Prodocimo, 1679. p. 55-56. O capuchinho deixou a Itália para ingressar em uma missão evangelizadora no Congo. Ele chegou ao Recife a bordo de um navio que, partindo de Lisboa em direção à África, fez uma escala no Brasil. 148 CARTA DE GUATTINI A FRANCESCO ROLLI, Pernambuco, 17 de setembro de 1667. In: GUATTINI, Michel Angelo de. Viaggio nel regno del congo. p. 77. 149 SOUSA-LEÃO. Frans Post, p. 69. 150 Sobre o mobiliário clássico, ver BAARSEN. Wonen in de Gouden Eeuw, p. 38.

234 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Figura 25 – Festoen van Fruit en Bloemen, por Jacob van Campen, Michiel Mosijn, 1655. Impresso sobre papel, originalmente publicado no livro CAMPEN, J; MOSIJN, M. Festoen van fruit en schelpen, Verscheide Nieuwe Festonnen geinventeert door I. van Campen. Amsterdam: 1655. Rijksmuseum, Amsterdam.

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Figura 26 – Praefectura ee Ciriji Vel SeregipeDel Rey cum Itapuama, por Georg Marcgrave e Joan Baleu, 1647. Impresso sobre papel. Biblioteca Universitária – UFMG, Belo Horizonte. Foto: Barbara Kaucher.

Motivos semelhantes também apareceram na decoração do mapa Praefectura de Ciriji vel Seregipe del Rey cum Itapuama, criado por Joan Baleu a partir de desenhos de Georg Marcgrave, em 1647. As cadeiras com garras de leões se aproximavam das variações de cadeiras sul-europeias, usadas na república, durante o século XVII.

236 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Figura 27 – Cadeira com braços, autoria desconhecida, c. 1620-1650. Madeira de nogueira e partes em couro refeitas. Rijksmuseum, Amsterdam.

Móveis deste tipo remetiam a assentos conhecidos desde a Antiguidade Clássica, que foram usados como lugares de honra para os imperadores romanos. Nos Países Baixos seiscentistas, eles foram revisitados ganhando adornos diversos, como tritões, sereias e, agora, pés de leões.151 Conclui-se que influxos das marcenarias portuguesa e neerlandesa foram fundidos nas formas dos móveis; provavelmente pelas mãos de Nordmand e mais alguns artífices, como oficiais portugueses ou escravos africanos. Estilos sobrepostos moldaram o marfim africano e gravaram em sua superfície imagens de um Brasil imaginado por artistas batavos. A preciosidade das peças morava, antes, na procedência do marfim e na visão de um novo mundo que elas ofereciam. Hoje, no reconhecimento de que são produtos de mundo construído por deslocamentos de homens e coisas. Elas são exemplares de uma arte do contato, forjada no encontro de diferentes povos, culturas, técnicas e estilos. Jacob Jensen Nordmand foi um escultor de talento excepcional. Ele lavrou os marfins e as madeiras com a mesma destreza com que moldou a vida. Seu senso de oportunidade arrancou-o de Kristiania e o 151 BAARSEN. Wonen in de Gouden Eeuw, p. 72-73.

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fez guerrear em Flandres, aprender um ofício na Holanda, se aventurar no Brasil e prosperar na Dinamarca. Embora se mostrasse piedoso e austero, na meia idade, ele já havia alcançado uma posição social inimaginável para o jovem de poucas perspectivas, que deixou sua terra natal em busca de trabalho. Nordmand se valeu de sua capacidade para aprender e da força de suas mãos, para construir seu futuro. Talvez não lhe interessasse distinguir os homens pelo domínio de um oficio mecânico ou de uma arte liberal. Aos seus olhos, sua vida foi construída na graça de Deus, pelo manejo das armas e pelo uso habilidoso dos instrumentos de seu ofício. Seu maior talento, no entanto, foi conhecer o coração dos curiosos e dos amantes da arte, traduzindo desejos e ambições em objetos bela e artisticamente fabricados. Provar que Nordmand criou os móveis que fascinaram a Europa, não será fácil. Tampouco confirmar se ele trabalhou sozinho ou em uma oficina, quando esteve no Brasil. Mas, a certeza não é mais importante que a dúvida, motor que leva a pesquisa e a imaginação a perscrutarem possibilidades históricas esquecidas. Talvez não haja saber maior que a capacidade de perceber que poltronas e cadeiras, descarnadas de suas possíveis histórias, são habitadas pelas sombras e pelo vazio. Diante delas, a imaginação não evoca cenas e não constrói a imagem da gente que as fez, usou e admirou.

238 Capítulo 6 - Artisticamente torneados e talhados no Brasil

Capítulo 7 Marfins, ambientes e contextos: as Minas Gerais e as fontes históricas Eduardo França Paiva Os estudos sobre cultura material, circulação de objetos, usos que deles se fizeram, sobre a constituição de gostos e de gestos que lhes atribuíram valores e justificaram sua procura, seu comércio e sua ostentação têm nos testamentos e inventários post-mortem importantíssimas fontes de informação. Esta documentação, profusa, seriada e bem organizada nos arquivos de Minas Gerais, não apenas traz a descrição dos objetos, mas descreve associações que se faziam, arrola circuitos pelos quais eles passaram e, ainda, apresenta seus usuários de primeira hora, assim como os que os herdaram. Enfim, essas são fontes privilegiadas para se mergulhar no universo material de outrora – por vezes ainda muito próximo de nós, outras vezes tão estranho aos nossos padrões atuais – e para se “invadir” historiograficamente a vida de indivíduos e de grupos que os cultivaram. Assim como os documentos – como pensava E. P. Thompson –1, os objetos, que também são documentos, falam, isto é, respondem às perguntas formuladas a eles e é necessário saber escutá-los. É preciso estabelecer o diálogo entre o conceito e a evidência, como ele preconizava, e às indagações elaboradas respostas emergirão e há de se aprender a decifrá-las. Nas Minas Gerais setecentistas circulou boa parte dos objetos produzidos e cultivados naquele mundo. A área interiorana se conectou rapidamente aos circuitos comerciais e culturais então existentes, demandou o trivial e o mais sofisticado, consumiu o que se ofertava, deu brilho e poder aos afortunados e fomentou a produção de inúmeros itens de desejo. Nas muitas lojas existentes nas vilas e arraiais e por Este trabalho é co-financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto PTDC/EPHPAT/1810/2014 1 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

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meio dos caixeiros, dos viandantes e de outros negociantes os moradores das Minas, entre os quais muitos libertos e não-brancos nascidos livres, adquiriam desde louça fina da Índia, bastões de cana da Índia, sedas e damascos orientais, tecidos oriundos de diversos países europeus e de materiais os mais diversos, colchas, lençóis, toalhas, guardanapos, roupas prontas, roupas brancas e ceroulas, rendas, lenços, chapéus, meias, sapatos, botões, pentes, espelhos, instrumentos para barbear, joias, armas, variados utensílios domésticos, instrumentos de trabalho de todo tipo, adornos de natureza diversa, âmbar, pérolas do Oriente e do Caribe, pedraria, ourivesaria, prata bruta e lavrada (dos Andes, possivelmente), cobre, estanho, latão e folha de Flandres, vidros, imaginária religiosa, gravuras, estatuetas e quadros decorativos, livros, instrumentos musicais e médicos, muito coral vermelho, além de encomendarem móveis, de adquirirem panos e corais azuis da costa africana e de comprarem nos mercados e na mão de comerciantes milhares e milhares de escravos africanos e de outras origens. Tudo isto e outros itens mais foram registrados na documentação, o que nos permite estudar estas dimensões do cotidiano no período: culturas, objetos, comércio, gostos e usos. Trata-se de parte significativa da vida das pessoas, o que aumenta ainda mais a importância do interesse historiográfico pela temática. As riquezas minerais produzidas nas Gerais desde os últimos anos do século XVII atraíram cada vez mais aventureiros. Alguns passaram e se foram depois de enriquecidos, outros se instalaram definitivamente e constituíram famílias e raízes bem entranhadas. O ouro fomentou o comércio de variado gênero e mercadores de muitas origens trataram de levar para as Minas tudo o que se podia vender. Em 1732, no auge da exploração do metal e já descobertos os diamantes, Francisco Tavares de Brito, um português, possivelmente, descreveu Vila Rica, a sede da capitania, sublinhando sua riqueza: Entre Montanhas de imensa altura, e delas rodeada, em fórma que a vista se-naõ(sic) pòde extender, se levantou esta Villa, e suposto que a batida pela profundidade em que esta a mayor parte dela situada, mais soberba, e opulenta que todas, assim pela frequencia de Comerciantes, como pela abundancia de suas Minas, momente da innacessivel Montanha de Tapanhuacanga, em cujas faldas se enconsta, e descansa. Esta serra he hum Potosí de Ouro...2 2

BRITO, Francisco Tavares de. Itinerario geografico com a verdadeira descripcao dos

240 Capítulo 7 - Marfins, ambientes e contextos

Poucas décadas após os primeiros jazimentos dourados, o território tornara-se uma capitania separada das do Rio de Janeiro e de São Paulo; extensa rede de vilas e arraiais se instalara, isto é, desenvolvera-se vida urbanizada; a população total já alcançava número próximo a 200.000 pessoas em 1730, das quais, os escravos representavam entre 1/3 e 2/33; formara-se, sobretudo nos núcleos urbanos, uma camada média constituída de homens e mulheres portugueses, ex-escravos e seus descendentes nascidos livres (crioulos, pardos e mulatos principalmente) que era consumidora voraz, assim como os mais ricos, do variadíssimo rol de itens oferecidos por centenas de comerciantes; a economia se diversificara; havia ouro em pó (medido em oitavas) e fundido que valiam como moeda; gente das quatro partes do mundo circulava e/ou vivia na região, o que significava efervescência, mesclas e experimentações culturais. Neste contexto, até mesmo comércio setorizado e fornecedores de itens específicos, consumidos por grupos específicos já haviam se formado. Ou seja, é neste mundo que se consumiam também o que se pode chamar de produtos de distinção, por vezes transformados em itens de luxo (mesmo correndo-se o risco de cometer certo anacronismo). Entre os itens mais sofisticados do comércio que se praticava incluíam-se marfins, corais, pérolas (aljófares, que eram as menores) e ambares, ouro lavrado, objetos incrustrados em ouro e em prata, pedras mais ou menos preciosas – desde diamantes, esmeraldas e topázios, até cristais, crisálidas, “olhos de mosquito”, que eram lascas e minúsculos diamantes e “pedras falsas”. Neste texto nos interessa saber mais sobre a posse e os usos de objetos feitos a partir destes materiais, sobretudo a partir do marfim, entre os moradores das Minas Gerais setecentistas.

Caminhos, Estradas, Rossas, Citios, Povoacoens, Lugares, Villas, Rios, Montes, e Serras, que ha da cidade de S. Sebastiao do Rio de Janeiro ate as Minas do Ouro. Sevilha: Officina de Antonio da Sylva, 1732, p. 18. Disponível em: http://purl.pt/150/1/P1.html>. Acesso em: 23 jun. 2017 3 Ver a discussão demográfica proposta por BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. População e escravidão nas Minas Gerais, c. 1720. Trabalho apresentado no 12º Encontro da Associação Brasileira de Estudos de População – ABEP, GT População e História, realizado em Caxambu (MG), outubro de 2000. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017. Para meados e segunda metade do século XVIII ver PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia; Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001, p. 68-70 e RUSSEL-WOOD, A. J. R. The black man in slavery and freedom in colonial Brazil. Oxford: The MacMillan Press Ltd, 1982.

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Além de buscar informações em documento por documento, verificando, sobretudo, os arrolamentos de bens que se costumavam fazer nos testamentos e nos inventários post-mortem, outros desafios se impõem. Um deles é tentar perceber as associações feitas entre os objetos de marfim e outros objetos e/ou a usos. Outros dois, talvez os mais difíceis, são tentar aferir indícios de procedência dos itens encontrados, isto é, se são orientais ou africanos (quiçá saídos do Oriente e, como os corais, introduzidos em regiões africanas; note-se que a lógica do comércio internacional podia não ser cerceada pela produção local de marfins) e buscar averiguar se eles foram lavrados nos locais de origem e/ou fora deles. Neste caso, como hipótese e sem contar com indícios minimamente esclarecedores, pode-se, pelo menos, indagar-se sobre terem existido nas Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX artistas e artesãos que lavravam o marfim e/ou o associavam a outros materiais. Continuando no campo das suposições, ainda que por vezes respaldadas em pistas documentais, não seria de todo impossível que ourives (cuja presença foi proibida durante muito tempo, embora a interdição legal não tenha sido tão efetiva nas Minas) também se dedicassem ao trabalho com esses materiais alternativos. De maneira semelhante, embora imbuídos de objetivos diferentes, os boticários instalados na capitania também podem ter manuseado os marfins, acrescentando-os em raspas e pós aos récipes por eles preparados, como nos indica a pesquisa de Carla B. Starling de Almeida.4 Seria importantíssimo encontrar na documentação subsídios para se conhecer melhor estas atividades que eram desenvolvidas in loco e que assim conectavam mundos muito distantes e culturas materiais distintas, que, inclusive, se recriavam de acordo com demandas e gostos locais.5 Observe-se que isto ocorreu intensamente no que se refere ao coral vermelho in natura e em forma de contas e de canudos, de uso quase monopolizado pelas pretas e crioulas forras em várias partes da Ibero-América, com destaque para as Minas Gerais no Setecentos. Vejamos um destes casos raramente registrados na documentação, que se tornam, por isto, ainda mais elucidativos. Em 1740, Gabriel 4 ALMEIDA, Carla Berenice Starling de. Medicina Mestiça: saberes e práticas curativas nas

Minas Setecentistas. São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/PPGH-UFMG, 2010. 5 Sobre esta temática ver o capítulo XII (La piste des objets) de GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde. Histoire d’une mondialisation. Paris: La Martinière , 2004, p. 281-308.

242 Capítulo 7 - Marfins, ambientes e contextos

da Encarnação de Almeida, ditou seu testamento em São João del Rei, onde morava e queria ser sepultado, embora declarasse ter “morada de cazas” na vizinha vila de São José del Rei, situadas na rua de Nossa Senhora do Ó ou na “rua do Jogo da Bolla”. Almeida era casado e tinha uma filha. Ele declarou ter nascido e ser batizado em São Sebastião do Rio de Janeiro e ser filho natural de Manoel de Almeyda (que morava na freguesia de Sabará, embora tenha falecido na comarca de Ouro Preto – talvez indicativo de atividades itinerantes) e de Maria de Souza, sobre a qual nada mais disse. As “qualidades” dos pais não foram indicadas por ele; geralmente, quando se tratava de portugueses, esta origem era explicitada e no caso das mulheres, o título Dona precedia o nome, a não ser que fossem pobres. Possivelmente, como em tantos outros casos similares, Almeida era um pardo ou um mulato nascido de união consensual entre homens e mulheres não brancos, cuja “qualidade” acabou sendo convenientemente ocultada em seu testamento. Talvez, esta dissimulação lhe trouxesse algum benefício profissional e social, uma vez que desde o século XVII, pelo menos, houve proibição legal a mulatos, negros e índios, ainda que libertos, de exercerem o ofício de ourives. Além disto, durante boa parte do século XVIII, como já mencionei, houve legislação proibindo a presença de ourives em Minas Gerais6, ainda que ela tenha sido pouco eficaz. O testador declarou ter uma “tenda de ourives” e seus “ferros”, que estavam “em puder de Manoel Rodrigues Santiago”, seu sócio no “contrato da aferisam que o dito arematou este prezente anno”. Na tal “tenda de ourives” pode ter trabalhado algum de seus seis escravos (três homens e duas mulheres, todos africanos, e um crioulo, supostamente filho de um casal formado neste grupo).7 Entretanto, o mestre oficial parece ter sido Almeida, pois declarou em certa altura que: em poder do Doutor Manoel Lobo se acha outro credito meu da quantia de huma coarta de ouro cujo lhe passei para patrocinar huma cauza haverá sinco annos de Manoel Correa Neves com que mandara eu em pleito pediu me o dito Doutor logo em principio da demanda que lhe fizesse huma corrente 6 Ver OZANAN, Luiz Henrique. A joia mais preciosa do brasil: joalheria em Minas Gerais –

1735-1815. Tese de Doutorado apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais, 2013, p. 36, 53, 58-59, 95-100. 7 Ver o caso de Domingos Angola, oficial de ourives, escravo do ourives português Manoel Macedo Guimarães, indicado por OZANAN. A joia mais preciosa do brasil, p. 111. Os dois atuavam no distrito de Papagaio, capitania de Minas Gerais, em 1739.

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digo que lhe fizesse e vendesse huns coraes engrazados em ouro com trancelim (...)8

Fica claro neste excerto que ourives trabalhavam com outros materiais frequentemente associados a ouro e a prata, como os corais engranzados, isto é, perpassados por um fio. Engranzar, encastoar e engastar materiais preciosos em ouro e prata era algo que aparentemente se realizava nessas “tendas” e não seria imprudência pensar que objetos em marfim e em âmbar também fossem aí transformados. E é preciso sublinhar: ourives nascidos na América portuguesa, frutos de misturas (termo de uso coetâneo) biológicas e culturais, como talvez seja o caso de Gabriel da Encarnação de Almeida, podem facilmente ter traduzido em objetos os gostos resultados das intensas “dinâmicas de mestiçagens”9 historicamente processadas nas sociedades ibero-americanas, particularmente nas Minas Gerais. Ao mesmo tempo, esta gente também reproduziu objetos de gostos antigos e menos alterados, tudo submetido à encomenda realizada.10 Em paralelo, é ainda necessário atentar-se para o fato de cristãos-novos ourives e comerciantes de metais e pedras preciosas, marfins e pau-brasil estarem presentes nestas sociedades, fomentando a entrada de matéria prima e de objetos manufaturados, a produção deles e a saída de outras matérias primas.11

8 Instituto Brasileiro de Museus-IBRAM Museu Regional de São João del Rei-MR (atual

Arquivo Histórico de São João del Rei). Inventários post-mortem-INV. Caixa 314. f. 13-13v. 23.05.1740. Inventário de Gabriel da Encarnação de Almeida. São João del Rei. 9 Sobre “dinâmicas de mestiçagens” e suas definições – tanto dos processos históricos quanto do conceito – ver PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da IberoAmérica, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 41-44. 10 Neste caso, é importante a reflexão realizada por GRUZINSKI, Serge. Os índios construtores de catedrais; mestiçagens, trabalho e produção na Cidade do México, 1550-1600. In: PAIVA, Eduardo França e ANASTASIA, Carla Maria Junho. (orgs.) O trabalho mestiço: maneiras de pensa e formas de viver - séculos XVI a XIX. São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/PPGHUFMG, 2002, p. 323-340. 11 Sobre este aspecto ver SALVADOR, Jose Gonçalves. Cristãos-novos, jesuítas e inquisição: aspectos de sua atuação nas capitanias do sul, 1530-1680. São Paulo: Pioneira, 1969, p. 55, apud OZANAN. A joia mais preciosa do brasil, p. 17.

244 Capítulo 7 - Marfins, ambientes e contextos

Os marfins na documentação Voltemos nossa atenção especificamente para os objetos feitos de marfim que aparecem na documentação. O que se lerá à frente, deixemos isto bem claro desde já, é apenas uma amostra realizada a partir de banco de dados de testamentos e inventários post-mortem relativos às comarcas do Rio das Velhas e do Rio das Mortes, nas Minas Gerais, entre 1716 e 1789, que vem sendo alimentando há anos, com propósitos múltiplos. Uma pesquisa sistemática e específica sobre a presença de marfins junto a estes documentos está por ser realizada e, certamente, revelará aspectos qualitativos e quantitativos muito mais relevantes do que os aqui expostos. É importante ressaltar, também, que em outras regiões da capitania existiram posses e comércio de marfins, talvez até mais intensamente do que nas duas comarcas aqui enfocadas. Era o caso de Vila Rica, sede administrativa, onde moravam o governador e os funcionários reais de maior patente, e Mariana, sede de um dos dois únicos bispados do interior da América portuguesa. Era o caso, também, do arraial do Tijuco, futura Diamantina, e da Vila do Príncipe (Serro do Frio), áreas de extração de diamantes, que sediaram grandes fortunas. Nessas regiões, o consumo de produtos de distinção e/ou de luxo foi bastante acentuado durante os séculos XVIII e XIX. Isto posto, ressalte-se o caráter incursionista e limitado desta análise, que se atém apenas a duas das comarcas mineiras. Ainda assim, os dados encontrados têm relevância. Eles denotam a entrada e o uso relativamente comuns nas Minas Gerais de objetos variados, feitos em marfim, associados ou não a outros materiais. Como já sugeri, não se deve negligenciar a possibilidade de parte do processo de associação a outros materiais – prata, ouro e madeira, principalmente – ter ocorrido na própria capitania.12 Um aspecto geral sobre a posse de marfins chama logo a atenção: diferente dos corais vermelhos, muitíssimo comuns entre mulhe12 Sobre circulação dos objetos e sobre suas transformações, em momentos e lugares diversos,

ver GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde; GRUZINSKI, Serge. (dir.) Planète métisse. Paris: Musée de quai Branly/Actes Sud, 2008. Ver, ainda, MOREIRA, Rafael. Pedro e Jorge Reinel (at. 1504-60), dois cartógrafos negros na côrte de D. Manuel de Portugal (1495-1521). Lisboa: 2010. Disponível em: . Acesso em 19 jun. 2017.

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res, principalmente, entre as pretas e crioulas forras e nascidas livres13, os marfins aparecem quase sempre pertencendo a homens e nunca a homens forros. Na amostragem, há apenas dois casos de objetos em marfim pertencentes a um homem e a uma mulher possivelmente não brancos nascidos livres. Ele, um padre, procedente da vila de Caeté, nas Minas, que declarava ser “filho natural”, e ela, que apenas indicou ser originária da vila de Cachoeira, na Bahia, como se verá à frente. Assim, parece que os objetos em marfim tinham um caráter mais exclusivo e não chegaram a ser largamente possuídos por ex-escravos e por seus descendentes livres, que ascenderam econômica e socialmente, grupo bastante numerosos nas Minas Gerais e, de resto, nas áreas mais urbanizadas da América portuguesa, como indicado anteriormente. E o motivo desta certa exclusividade, pelo que se pode verificar nas fontes, não foi o valor das peças, que não diferia muito do alcançado pelos objetos de ou com corais. Vejamos alguns testadores e/ou inventariados moradores da capitania de Minas Gerais e os marfins que possuíam. Este grupo é constituído por oito homens e duas mulheres apenas. A maioria morava na comarca do Rio das Mortes, no sul da capitania, nas vilas de São João del Rei e de São José del Rei ou próximo a elas, na segunda metade do século XVIII, região e período que abrigaram população de portugueses mais numerosa que nas outras comarcas das Minas Gerais. Dos dez testadores e inventariados aqui incluídos, apenas um morava na comarca do Rio das Velhas, no centro-norte da capitania, na Vila de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, área marcada muito mais fortemente pela presença de grande população forra e livre não branca e pelas mestiçagens biológicas (e, talvez, culturais) que a comarca do sul. Outra testadora morava na comarca do Serro do Frio, no arraial de Itapanhuacanga, área de mineração aurífera, mas seu testamento parece ter sido aberto em Sabará. Um outro, morava no Rio de Janeiro, quando fez seu testamento, em 1752, mas, ao falecer, 32 anos depois, já se encontrava em Minas Gerais, na paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Aiuruoca, no rio das Mortes. O mais antigo documento encontrado foi o testamento do português e capitão-mor João Soares de Miranda, feito em 1738, em 13 Ver sobre o tema PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural e PAIVA, Eduardo

França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII; estratégias de resistência através dos testamentos. 3 ed. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2009.

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Sabará, onde morava com sua mulher. Além do posto militar, Miranda tinha outras atividades: possuía sítio e roça, contava com dez escravos e tinha livros de medicina e cirurgia “e outros mais...”. Em seu testamento não foram registrados muitos objetos de casa, joias e roupas, mas, destacadamente, incluiu-se um crucifixo de marfim “encarnado com seo Resplendor de prata...”.14 Já Maria de Freytas, natural da Vila de Cachoeira, na Bahia, que morava em Itapanhuacanga, mandou fazer seu testamento em 1740, nomeando seu marido, um português, um de seus testamenteiros e herdeiro de metade de seus bens, depois de pagas suas dívidas. Sobre sua ascendência e sua “qualidade”, entretanto, ela nada declarou, o que suscita desconfianças e sugere que talvez fosse forra ou não branca nascida livre. Ademais, parece que Maria estava envolvida com uma rede de comércio e que mantinha viandantes pelas Minas ou se associara a eles. Isto pode explicar a enorme quantidade de tecidos, roupas e móveis e utensílios variados que ela declarava possuir, além do número considerável de peças em ouro lavrado (cordões, voltas, argolas “das orelhas”, brincos, botões), objetos em prata, cobre, estanho e ferro e de 71 oitavas de ouro em pó, o que equivalia a 106$500 (cento e seis mil e quinhentos réis), valor avultado na época, suficiente para comprar um excelente escravo, jovem, saudável e forte. Aliás, Maria de Freytas declarou também que tinha dado 40 oitavas a um viandante do Serro do Frio, para ele “me Trazer hua negrinha da cidade da Bahia para honde Estava de viagem”. Ela possuía outros bens, entre os quais uma raríssima “bolla de ambar emcaztoada em ouro e emfiada em hum cordam de ouro” de meia vara de comprimento. Católica fervorosa, pelo menos aparentemente, ainda declarou possuir uma imagem de ouro de Nossa Senhora da Conceição, pesando três oitavas, e um coração de ouro “com sua volta de cordam”, pesando quatro oitavas, além de uma “lamina onde estão pintados Jesus e Maria Jozeph”, uma imagem de marfim de Nossa Senhora da Conceição e outra do “senhor morto ambas de palmo”.15 Tratava-se de raro conjunto de bens valiosos, que não se encontrava nem mesmo entre a maioria dos homens livres testadores. 14 IBRAM-Casa Borba Gato-CBG. Cartório do Primeiro Ofício-CPO-Testamentos-

TEST. Códice 02. f. 48-52v. 10.08.1738. Testamento do capitão-mor João Soares de Miranda. Sabará. 15 IBRAM-BG. CPO-TEST. Códice 08. f. 94v-101v. 06.08.1740. Testamento de Maria de Freytas. “Tapanhumacanga”.

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Ainda na primeira metade do século XVIII, outra mulher, Anna Dias de Castilho, casada e mãe, moradora na vila de São João del Rei, parece ter possuído algum objeto em marfim, entre as joias, roupas, colheres e faca de prata, utensílios variados, móveis, gado e uma casa, além de um “oratório de talha com tres imagens”, avaliado em 30$000 e dois “paineis pequenos”, avaliados em 8$000, tudo incluído em seu inventário post-mortem.16 Infelizmente, a parte que menciona o item em marfim está ilegível. Na segunda metade do século XVIII, a sociedade mineira já se encontrava mais estruturada, a rede urbana, composta por uma cidade, várias vilas e muitos arraiais importantes e populosos, estava consolidada e a população total, incluindo escravos, despontava como uma das maiores entre as capitanias brasileiras. O comércio geral se intensificou, assim como a circulação dos objetos vindos das quatro partes do mundo, entre eles os feitos em marfim; pelo menos é o que indica nossa amostra. Em 1752, o padre Domingos Nunes Ferreyra encontrava-se no Rio de Janeiro e temendo a morte, fez seu testamento. Ele nascera e fora batizado na “Freguezia de Nossa Senhora de Bom Sucesso da Vila Nova da Raynha de Caete comarca Sabará Bispado de Mariana” e declarava ser filho natural do sargento-mor “Antoneo Nunes Leytão morador na cidade da Bahia e de Luzia Nunes da Fonceca Moradora no Morro Vermelho”, Caeté. Dados este quadro familiar, como já explicado antes, e a escassez na população geral de mulheres portuguesas ou de nascidas no Brasil, filhas de portugueses, é possível que se tratasse novamente de um mulato ou um pardo, que conseguiu ser ordenado, quiçá lastreado no prestígio paterno, não obstante os impedimentos legais.17 O temor funesto do padre Ferreyra não se confirmou antes de 1784, quando já se encontrava em Aiuruoca. Entre uma data e outra é que ele adquiriu três bastões, incluídos no inventário póstumo de seus bens: um de cana da Índia, avaliado em 3$600; um “de casta Liz”, avaIBRAM-MR. INV. Caixa 52. 08.04.1743. Inventário post-mortem de Anna Dias de Castilho. São João del Rei. 17 CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pello illustrissimo, e reverendíssimo senhor D. SEBASTIÃO MONTEIRO DA VIDE, 5º Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Magestade: propostas, e aceitas em o synodo diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. Impressas em Lisboa no anno de 1719, e em Coimbra em 1720 com todas as Licenças necessarias, e ora reimpressas nesta Capital. São Paulo: Na Typographia 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853, títulos 50-53. [edição fac-símile Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2007] 16

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liado em 1$800, e outro “com cabo de marfim”, avaliado em $600.18 Note-se que entre os bastões, o que trazia o cabo de marfim era bem mais barato que os demais. Isto é indício importante de que o valor das peças em marfim tinha abaixado ao longo dos séculos e que tinha havido, como para outros produtos, tais como açúcar, corais e tabaco, certa banalização dos usos. A camada média que habitava as áreas urbanizadas da ibero-América setecentista, composta por brancos, negros, índios, crioulos e mesclados de várias “qualidades”, livres, forros e até mesmo escravos, tinha então acesso a esses e a outros itens que nos séculos anteriores eram apanágio da aristocracia. O mais rico entre os personagens desta amostra foi o português Bento Pinto de Magalhains, morador em São João del Rei, onde fez seu testamento, em 1754. Nesse momento ele era solteiro, mas casou-se depois disto e em 1766, quando morreu, já era pai de oito filhos. O inventário de seus bens é longo e muito diversificado, mas, alguns dos itens arrolados indicavam claramente sua fé católica: um crucifixo de ouro “com seu trancelim” – 13$300; duas imagens em ouro “da Senhora da Conceição” – 9$800; uma imagem “do Senhor crucificado” – 7$200; uma “dita de marfim” – 7$200; uma “dita de São Jose” – 1$800; uma “da Senhora do Rozario” – 1$500; uma “da Senhora da Conceição” – 1$200 e uma “da Senhora da Penha de marfim” – 1$500.19 Outro português enriquecido nas Minas Gerais, João da Fonte Barros, fez seu testamento em 1762, na freguesia de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo, onde tinha botica e loja. Entre os utensílios da botica, constavam vários almofarizes, sendo um deles de marfim. Já entre os itens da loja, pentes de vários tipos foram inventariados e entre eles nove de marfim, avaliados em $900. As informações registradas neste inventário nos indicam, claramente, o uso diversificado do marfim. Para além da missão devocional, aparecem suas outras funções e onde se podiam comprar os objetos.20 Outro português que possuía um objeto em marfim ligado à sua ocupação foi Felipe Franco Madureyra de Barbuda, “clerigo in mi18 IBRAM-MR. INV. Caixa 85.TEST. f. 7-10v. 01.11.1784. Inventário post-mortem do padre Domingos Nunes Ferreyra. São João del Rei. 19 IBRAM-MR. INV. Caixa 333. TEST. f. 21-29. 19.04.1766. Inventário post-mortem de Bento Pinto de Magalhains. São João del Rei. 20 IBRAM-MR. INV. Caixa 30. f. 1-11v. 30.05.1763. Inventário post-mortem de João da Fonte Barros. Arraial da Borda do Campo. Ver sobre boticas, boticários, cirurgiões e récipes os resultados de pesquisas e as conclusões de ALMEIDA, Carla Berenice Starling de. Medicina mestiça.

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noribus”, que fez seu testamento na vila de São José del Rei, em 1764. Homem letrado, Barbuda possuía uma livraria com setenta e cinco livros em português, espanhol e latim, além de mesa com gavetas, um “tinteiro e poeira de chumbo” que valia $300, quatorze escravos, móveis e utensílios de casa. Possuía, também, um “sinete de marfim com bocal de prata”, avaliado em 1$500.21 Perto da vila de São José, na freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Prados, Baptista Pereira da Costa, também português, solteiro e sem filhos, fez seu testamento no mesmo ano em que o fez seu conterrâneo anteriormente mencionado. Costa havia acumulado certa fortuna, lastreada na diversificação das ocupações e dos investimentos, como era costume, e cultivava hábitos sofisticados, pois ostentava um “bastan de cana da India com cartan de prata” – 7$200; duas tigelas, três xícaras e três pires tudo de louça da Índia – 1$250. Homem devoto, possuía uma “medalha do Santo officio esmaltada com cordão tudo em ouro” – 2$400; uma opa da Irmandade do Santíssimo, de chamalote – 3$000 e um “oratorio pequeno de madeira com imagem do Senhor crucificado de marfim com seu resplendor de prata” – 2$400. Talvez aqui haja indícios, dadas as informações sobre alguns dos pertences do testador, da procedência de parcela das peças em marfim que chegavam às Minas Gerais: a Índia.22 Corroboram esta possibilidade alguns dos bens de Joze Pereira da Costa Castelo Branco, igualmente português, inventariados postumamente, em 1765, na vila de São João del Rei. Homem de grande cabedal, casado e sem filhos, Castelo Branco possuía dois objetos não identificados com cabo de marfim – 5$200; uma “sopeira de macau com suas tampas pratos irmãos” – 3$600; um “prato fino de macao” - $600 e um “bule de barro branco da India” - $600.23 Finalmente, em 1772, em São João del Rei, foram inventariados os bens do defunto Bento de Faria Lopes, português, solteiro e sem herdeiros. No testamento feito no ano anterior, Lopes declarara ter juntado sua fortuna “por minha industria e trabalho nesta America e nam herdados”. Para além de seus esforços, ele viveu dos jornais de seus três escravos, entre eles Paulo, crioulo, sapateiro, que parece ter conquistado boa freguesia. O testador possuía vários bens materiais, como um “bas21 IBRAM-MR. INV. Caixa 29. f. 1-5. 13.02.1764. Inventário post-mortem de Felipe Franco

Madureyra de Barbuda. Vila de São José del Rei. 22 IBRAM-MR. INV. Caixa 67. f. 1-7v. 10.09.1764. Inventário post-mortem de Baptista Pereira da Costa. Freguesia de Nossa Senhora da Conceição dos Prados. 23 IBRAM-MR. INV. Caixa 52. f. 1-7. 11.12.1765. Inventário post-mortem de Joze Pereira da Costa Castelo Branco. São João del Rei.

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tão de cana da India com seu bastão de prata” – 3$600; um “sinete de marfim de prata” – 1$500; uma “jarrinha da India” - $600; meia “livra de pimenta da índia” - $225, uma “faca de marfim” - $300 e três “facas de mesa com cabo de osso” - $225.24 Os pertences incluídos no inventário de Bento de Faria Lopes indicam, novamente, que o circuito de parte dos marfins encontrados nas Minas Gerais setecentistas se iniciasse, talvez, na Índia, quiçá mais especificamente em Goa.25 Os bens de Joze Pereira da Costa Castelo Branco indicam, por sua vez, que o(s) circuito(s) tinha ramificações em Macau, o que, inclusive, suscita novas indagações, que merecem ser verificadas. Uma delas é investigar se parcela dos objetos em marfim que chegava às Minas (via contrabando?) vinha pela rota do Pacífico, passando por Manila, Acapulco e, talvez, Callao e Buenos Aires.26 Os documentos dos arquivos mineiros, uma vez explorados mais especificamente, poderão, talvez, ajudar a esclarecer melhor esta questão.

Conclusões O estudo dos marfins na América portuguesa e, particularmente, nas Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX, para ser realizado com profundidade, não deve se restringir à história do objeto em si. É preciso ir muito além disto. Esta história envolve várias outras dimensões, tais como representações, empregos, atribuições, imaginário, associações, sensibilidades, ressignificações, codificações, (des)valorizações, composições químicas, além, claro, de sua materialidade e das rotas de comércio que os abarcaram. Só assim, se iniciará a recontar esta intricada trama de dimensões planetárias que conectaram tempos e regiões aparentemente apartados, assim como gente de variada “qualidade” e “condição”, depositária e produtora de culturas muito complexas. 24 IBRAM-MR. INV. Caixa136. f. 1-7. 10.05.1772. Inventário post-mortem de Bento de Faria Lopes. São João del Rei. 25 Ver sobre o tema SILVA, Jorge Lúzio Matos. Sagrado marfim – o Império português na Índia e as relações intracoloniais. Goa e Bahia, século XVII: iconografias, interfaces e circulações. Dissertação de Mestrado apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011. 26 Ver, entre outros, LUENGO GUTIÉRREZ, Pedro. Noticias sobre el Colegio de San Idelfonso de Manila y el desarrollo de las artes en Filipinas durante el siglo XVIII. Artigrama, n. 25, p. 631-644, 2010.

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Mas não é só isto. É necessário ousar historiograficamente, para que esta história seja relida e apresentada sob novas perspectivas. Para tanto, é vital desconfiar do corpus conceitual (talvez fosse melhor recusá-lo) a partir do qual, há séculos, ela vem sendo praticada, compreendida e escrita. “Oriental” ou “africano”, assim como derivações do tipo “luso-afro-alguma coisa” ou “afro-alguma coisa”, entre várias outras categorizações, perdem sentido (por vezes completamente) diante da polissemia que envolve os objetos em/com marfim, da conectividade cultural e social que esses objetos provocaram, da complementariedade de seus formatos e significados, da multiplicidade dos usos e das identidades agregadas a eles. E aqui, a cultura material impõem novos contornos à História. Pensemos melhor sobre isto! Talvez fosse adequado dizer que é necessário considerar o universo conceitual que vem definindo esses objetos e sua inserção histórica antes de toma-los como objetos – literalmente neste caso – de nossos estudos. Temos que nos esforçar em cumprir plenamente e de forma renovada este exercício historiográfico obrigatório, sob pena de continuarmos contando esta história sob perspectiva ocidental e ocidentalizante ou eurocêntrica ou, ainda, católica, como vimos fazendo. Consideremolo, sob pena, inclusive, de continuarmos não entendendo, minimamente, a história da produção da matéria prima e das lógicas micro, local e interna que agiram fortemente no sentido de configurarem rotas e intensidades comerciais macro, bem como as historicidades que, ao longo dos séculos, deram sentidos ao marfim e ao seu complexo entorno histórico. Os marfins precisam ser tomados, também, nas perspectivas “africana”, “goesa”, “cingalesa”, “macaense”, “filipina” e “ibero-americana”. É fundamental entender, por exemplo, os rituais e cerimônias locais de adorno e “uso” dos marfins no animal vivo, como nos elefantes na Índia; do abate e de extração das presas; os usos de outras partes do animal abatido (ossos, caudas, pelos, testículos, vísceras, patas, olhos, carnes, etc…); os universos mágico, mítico, religioso e encantado que envolveram animais e seus marfins; os agentes envolvidos nestas histórias e suas formas de intervenção; as alterações culturais ocorridas ao longo do tempo; as fascinantes misturas e conexões de sentidos, atributos, formatos, historicidades/historiografia. A melhor compreensão desta história depende do adequado tratamento de cada uma destas partes, preferivelmente percebendo-as em sua ocorrência concomitante. 252 Capítulo 7 - Marfins, ambientes e contextos

É também fundamental o cuidado com relação aos anacronismos que rondam tão proximamente os objetos, a partir de nossa visão a posteriori. Isto é mais frequente que o desejável e sua ocorrência pode ser desoladora. Projetar os valores, no sentido mais amplo deste termo, atribuídos aos marfins durante os séculos XV, XVI e XVII sobre os objetos e seus usos durantes os séculos seguintes, como se fossem as mesmas sociedades e gostos, como se tivessem o mesmo grau de raridade e como se fossem a mesma insígnia distintiva, pode ser catastrófico. Torna-se história inventada ao sabor das conveniências e das incompreensões do presente e sepulta-se vivências passadas que deixaram registros para a posteridade, que, afinal, não foram percebidos. Resultam daí histórias contadas a partir de entendimentos, definições e empregos que não existiram entre os homens e mulheres que vivenciaram aquelas realidades, tornando-se muito mais próximas do que muitas vezes desejamos, hoje, que elas tenham sido outrora.

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Capítulo 8 A arte em marfim nas Minas Setecentistas: o perfil dos proprietários de tornos de rede angolanos, botões, sinetes, imagens religiosas e outros objetos de marfim Vanicléia Silva Santos e Rogéria Cristina Alves

O marfim luso-africano em Portugal As primeiras notícias sobre a chegada direta de marfins africanos em Portugal datam da segunda metade do século XV e acompanham o processo de exploração da Costa Ocidental Africana.1 Os viajantes identificaram e registraram em seus relatos o contato com objetos de marfim e presas de elefantes ao longo da Costa Atlântica, nomeadamente Serra Leoa, Reino do Benin e Reino do Congo. Recentemente Luís Urbano Afonso e Carlos Almeida mostraram que a Costa do Ouro (atual Gana) também foi uma importante zona de produção de marfim.2 Foram levados para Lisboa uma variedade de objetos esculpidos em marfim tais como saleiros, píxides, olifantes, colheres e cabos de facas e de espadas. Esses objetos, são chamados pela historiografia portuEste trabalho é co-financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto Marfins Africanos no Mundo Atlântico: uma reavaliação dos marfins luso-africanos, PTDC/EPHPAT/1810/2014. Também faz parte do projeto internacional entre UFMG e FLUL “A produção, circulação e utilização de marfins africanos no espaço atlântico entre os séculos XV e XIX”, coordenado por Vanicléia Silva Santos (UFMG) e José da Silva Horta (FLUL). 1 AFONSO, Luís U. & HORTA, José da S. Olifantes afro-portugueses com cenas de caça/C. 1490-C.1540. In: ARTIS – Revista de História da Arte e Ciências do Patrimônio. Número 1, 2013. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017. 2 AFONSO, Luís U. & ALMEIDA, Carlos. Os marfins do Gana e os problemas da geografia dos marfins africanos e euro-africanos esculpidos entre os séculos XV e XVII. In: Caderno de resumos do Colóquio Marfim Africano: comércio e objectos, sécs. XVI-XVIII, Lisboa, 2017, p. 20.

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guesa de marfim Afro-portugueses, por quatro fatores: foram feitos por artistas africanos; os motivos das decorações são em parte, inspirados em fontes europeias; os tipos de objetos são europeus e foram feitos sob demanda para colecionadores europeus. O termo “Afro-Portuguese Ivory” foi cunhado por William Fagg, em 1959. Fagg era o curador da coleção de arte africana do Museu Britânico e foi o primeiro pesquisador a dividir os centros de produção das peças em quatro localidades distintas: Serra Leoa, Reino de Benin e Lagos (Porto Novo) e região de Congo e Loango – sendo que, posteriormente, por análises estilísticas, a última região foi descartada.3 A origem das peças “afro-portuguesas” tem sido motivo de debate entre vários pesquisadores. Para Kathy Curnow, os povos sapes4, da Serra Leoa, foram os responsáveis pela confecção das peças de marfim até 1550 – quando essa sociedade teria sido destruída pelos manes. Assim, o reino do Benin, na Nigéria, seria o lugar de procedência das peças fabricadas posteriormente a esta data.5 Ezio Bassani, fundamentado nos aspectos estilísticos das peças, afirmou que os povos sapes da Serra Leoa teriam fabricado os objetos até 1530, e que as peças posteriores a esta data teriam sido fabricadas na região do Benin.6 Para o historiador da arte. Peter Mark, a datação e a origem geográfica dos marfins dos séculos XVI a XVII precisam ser vistas a partir do “hibridismo cultural” característico das relações entre africanos e europeus. Mark denomina tais marfins como “luso-africanos” e refuta a hipótese da destruição dos povos sapes, baseado nos relatos dos jesuítas e comerciantes 3 FAGG, Willian Buller. Afro-Portuguese Ivories. London: Batchworth Press, 1959. 4 Os povos Sapes habitaram a região de Serra Leoa. E segundo Yves Person, apesar dos

portugueses falarem do “Império dos Sapes”, nunca houve um Estado estruturado, mas sim um conjunto de chefarias ou grupos de linhagem unidos por uma cultura comum. In: PERSON, Yves. In: História geral da África, IV: África do século XII ao XVI. Editado por Djibril Tamsir Niane. 2ª Ed. Rev. Brasília: UNESCO, 2010. P. 345. A produção de peças em marfim por estes sujeitos foi variada, indo de talheres (destacando-se as famosas “cucharas” - colheres - em marfim) até os elaborados saleiros. IN: MOREIRA, Rafael. Pedro e Jorge Reinel (at.1504-60), Dois cartógrafos negros na côrte de D. Manuel de Portugal (1495-1521). In: 3º Simpósio Iberoamericano de História da Cartografia. Agendas para História da Cartografia Iberoamericana. Universidade de São Paulo. São Paulo, abril de 2010. P. 1 a 10. Disponível em: https://3siahc.files.wordpress. com/2010/08/rafael-moreira-3siahc.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2017. 5 CURNOW, Kathy. The Afro-Portuguese ivories: classification and stylistic analysis of a hybrid art form. [s.l.]: [s.n.], PhD Dissertation, University of Indiana.1983. 2 volumes. 6 BASSANI, Ezio. African Art and Artefacts in European Collections, 1400-1800. London: British Museum, 2000; BASSANI, Ezio. Ivoires d’Afrique dans les anciennes collections françaises. Paris: Actes du Sud et Musée du Quai Branly, 2008.

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que passaram por Serra Leoa, entre 1616 e 1669, e que testemunharam a existência de habilidosos escultores de marfim.7 Decerto que entre meados do século XV até meados do século XVI, havia uma demanda portuguesa, em África, por colheres, saleiros e olifantes feitos de marfim.8 O cronista português Rui de Pina relatou que entre os presentes levados pelos embaixadores congoleses ao rei português D. João II, em 1489, destacavam-se dentes de marfim e diversos objetos esculpidos no mesmo. Em descrição da Costa Ocidental Africana, Valentim Fernandes ressaltava o talento e habilidade dos artesãos de Serra Leoa.9 Outro apontamento sobre a circulação de marfins de origem africana por Portugal diz respeito ao possível local de fabricação das peças. Raphael Moreira afirma que havia oficina para esculpir marfim em Lisboa em fins do Século XV, cujos artesãos eram africanos. Devido ao monopólio real do marfim após 1481, os artesãos mais hábeis foram trazidos para Lisboa como escravos régios um alto status social -, vivendo e trabalhando numa oficina no Palácio e se casando com criadas da côrte, em convívio e familiaridade com o próprio Rei. Só assim foi possível fazerem-se em dois meses as muitas dezenas de peças (hoje espalhadas pelos melhores museus do mundo: de Camberra à Fundação Walt Disney!) levadas por D. Manuel I em 1498 para Espanha ao ser jurado sucessor dos Reis Católicos, a fim de as oferecer aos sogros e a nobres como símbolos exóticos do seu papel de “Dominus Mundi”. São peças híbridas, de ornato, material e mão-de-obra africanos, mas com formas, função e iconografia típicas do estilo manuelino. Pela análise comparativa, o especialista italiano da arte afro-portuguesa Ezio Bassani conseguiu, quando da primeira exposição em Nova York, no Center for African Art, em 1988 (Africa and the Renaissance. Art in Ivory, Prestel-Verlag) individualizar 9 mãos de artistas bem diferenciados trabalhando numa mesma oficina, que ele imaMARK, Peter. Portugal in West Africa and the creation of the Luso-African Ivories, 1490-1658. In Encompassing the Globe: Portugal and the World in the 16th and 17th Centuries. Washington: Smithsonian Institution, 2008. 8 AFONSO, Luís U. & HORTA, José da S. Op. Cit. 9 FERNANDES, Valetim. Códice Valentim Fernandes. (Leitura Paleográfica, notas e índices de José Pereira da Costa). Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1997. P. 111. Apud: AFONSO, Luís U. & HORTA, José da S. Op. Cit.

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ginou na África, mas hoje não temos qualquer dúvida em situar no próprio Paço Real da Alcáçova, em Lisboa (no alto frente ao Castelo de S. Jorge, ruído com o Terremoto de 1755), ou no Paço da Ribeira a partir de 1504, quando ele se tornou habitável.10

Embora a ideia seja muito original, o autor não mostra evidências dessa oficina que teria funcionado em frente ao Castelo de São Jorge em Lisboa, com especialistas africanos. Portanto, até o momento prevalece a tese de que as peças foram produzidas em solo africano. Além disso, os registros históricos sobre essas primeiras peças de marfim a circularem em Portugal, de procedência africana, fazem referência a objetos presenteáveis e colecionáveis que não possuíam diretamente funções práticas ou cotidianas. Existe uma lacuna sobre a existência de objetos de uso cotidiano que pudessem ser fabricados em marfim, o que reforça os argumentos de que o marfim atingiu um alto valor comercial na Europa e foi apreciado enquanto um bem de luxo e material exótico.11 Ainda nesse sentido, Kessler afirma que o uso do marfim tinha conotações políticas e sociais para várias sociedades ocidentais e que por ligar-se à suntuosidade e à realeza, teria sido o material eleito para retratar Cristo e outros santos.12 As já referidas colheres de marfim possuíam fins decorativos. O historiador Alan Ryder concluiu que os saleiros e as colheres de marfim não integravam as cargas oficiais dos bens importados pelo governo português, mas eram comprados em Serra Leoa, como propriedade particular dos viajantes.13 A historiadora da arte Suzanne Preston Blier, ressaltou que a decoração dos saleiros e colheres evidencia o papel vital que os clientes europeus tiveram em demandar certos tipos de ornamentos, mas defende que essas peças podem fornecer uma visão única 10 MOREIRA, Rafael. Pedro e Jorge Reinel (at.1504-60), Dois cartógrafos negros na côrte

de D. Manuel de Portugal (1495-1521). In: 3º Simpósio Iberoamericano de História da Cartografia. Agendas para História da Cartografia Iberoamericana. Universidade de São Paulo. São Paulo, abril de 2010. P. 1 a 10. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017.(Grifos nossos) 11 ROSS, Emma George. Afro-Portuguese Ivories. In:  Heilbrunn Timeline of Art History. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2000. Department de Arts of África, Oceania e Américas do Metropolitan Museum of Art. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017. 12 KESSLER, Herbert L. Seeing Medieval Art. Ontario: Broadview Press, 2004, p. 27-29. 13 RYDER, Alan F. C. A Note on the Afro-Portuguese Ivories. In: The Journal of African History. 1964, p. 363-365.

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sobre o lugar ocupado pelos europeus dentro do pensamento dos africanos, além de retratarem a expressão artística no período dos primeiros encontros entre africanos e europeus.14 Os sofisticados saleiros da Serra Leoa tinham uso muito especial entre a nobreza: Eram delicadas obras de aparato e alto luxo para serem usadas em desfiles e cerimónias – banquetes e batizados nobres, como os “saleiros”, (...) para o padrinho de alta nobreza transportar nos seus dois recipientes côncavos a água-benta e os grãos de sal a fim de serem colocados pelo oficiante na língua do infante, como se vê nalguns quadros (...)

Em artigo já citado neste paper, Horta e Afonso discutem sobre os olifantes de marfim, datados dos séculos XV e XVI, e o papel assumido por tais peças para a identidade da aristocracia europeia. Utilizados no contexto bélico europeu, os olifantes serviam de instrumento de comunicação. Na Europa eram usados nas caças para assustar as presas e sinalizar a captura das mesmas Para Bassani e Fagg as figuras e cenas retratadas nos olifantes eram visualmente semelhantes às cenas de caça retratadas nos chamados “Livros de Horas” – livros destinados à devoção privada de fiéis cristãos – que circulavam na Europa.15 Eugenia Soledad Martinez ressalta que o fato da maioria dos motivos presentes nas peças de marfim africano ligar-se à iconografia bíblica, significaria para os receptores europeus das peças, uma disseminação do cristianismo por terras distantes.16 Em suma, os especialistas no tema dos marfins que circularam em Portugal estão interessados mais na “interação entre arte africana e arte europeia (...) particularmente na utilização e adaptação de modelos visuais europeus a produções artísticas africanas”,17 isto é, nas peças feitas sob demanda europeia.

14 BLIER, Suzanne Preston. Imaging Otherness in Ivory: African Portrayals of the Portuguese

ca.1492.In: The Art Bulletin 75, 1993, p. 375. 15 BASSANI, Ezio; FAGG, William B. Africa and the Renaissance: Art in Ivory. New York: The Center for African Art and Prestel-Verlag, 1988. 16 MARTINEZ, Eugenia S. Crossing-cultures: Afro Portuguese ivories of the fifteenth and sixteenth century Sierra Leone [S.L]: [S.N], 2007. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade da Flórida, p. 38. 17 AFONSO, Luís Urbano; HORTA, José da Silva. “Olifantes afro-portugueses com cenas de caça, c.1490-c.1540”. Artis. Revista de História da Arte e Ciências do patrimônio. n. 1, 2013, p. 22

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Contudo, pesquisas recentes tem se dedicado aos marfins fabricados pelos africanos para usos locais. Exemplo disso é o livro de Kate Ezra18 e alguns catálogos das exposições sobre o antigo Reino do Benin, que, em geral dão ênfase aos objetos de marfim utilizados pela realeza e aqueles de uso cerimonial.19 Deve-se destacar também os catálogos sobre arte do Congo que apresentam excelentes análises sobre os “marfins africanos”.20 O conceito de “marfim africano” desenvolvido por Vanicléia Silva Santos propõe que os marfins produzidos em África sejam categorizados como africanos. Para a autora, tanto o marfim lavrado pelos africanos para atender a demanda local, assim como os objetos esculpidos para uma demanda externa devem ser conceituados como “marfins africanos”, justamente porque eram feito por artistas africanos com material local, referências iconográficas locais e mesmo quando europeus e imagens da cultura europeia estavam representados tratava-se de um estilo independente/autônomo dos africanos.21

Os marfins no interior do Brasil: alguns apontamentos Importante ressaltar que, no contexto brasileiro, nenhum objeto, classificado pela referida historiografia como “Afro portuguese” ou “Aldous-African” foi identificado em Minas Gerais. Por outro lado, objetos que estamos chamando de “marfim africano” ou “marfim afro-brasileiro” foram identificados nos inventários post-mortem e testamentos de Minas Gerais ou em acervos de instituições públicas ou privadas. Nossa hipótese é que mais objetos de marfim trazidos pelos africanos ou confeccionado aqui para uso da comunidade, serão 18 EZRA, Kate. Africanos Ivories. Metropolitan Museum of Art: New York, 1984. 19 PLAKENSTEINER, B. Benin, cinq siècle d’art royal. Musee du Quai Brainly: Paris, 2008. 20 FALGAYRETTES-LEVEAU, Christiane. Initiés: Bassin du Congo. Paris, Musée

Dapper, 2014; FELIX, Marc Leo. White gold, black hands. Ivory sculpture in Congo. Qiquhar, Heilungkiang, China : Gemini Sun, 2012 (5 volumes). 21 SANTOS, Vanicléia. S.; ZUBERI, T. O ìróké Ifá de marfim no candomblé da Bahia e nas coleções de arte africanas. In: A transversalidade dos direitos das Minorias e a diálogo intercultural Brasil-África. 1ed.Curitiba: Instituto Memória, 2017 (no prelo).

260 Capítulo 8 - A arte em marfim nas Minas Setecentistas

encontrados em dois contextos: primeiro, em contexto arqueológico, como as contas de marfim encontradas nos sepultamentos de africanos na área urbana de Salvador22 e o amuleto encontrado na casa onde viveu Chica da Silva, uma mulher negra forra que se casou com um rico contratador de diamantes no século XVIII, ao norte de Minas Gerais.23 O outro contexto é relativo aos colecionadores que tem guardado objetos de culto popular pelo interesse em modelos que se distanciavam dos clássicos europeus. Nesse sentido, foi identificado um Santo Antônio de marfim de 4cm de altura que pertenceu à coleção pessoal de Márcia de Moura Castro.24 Trata-se de uma imagem de uso pessoal, visto que, tem dois pequenos furos na parte anterior para ser pendurado ao pescoço. A análise morfológica dessa peça mostra profunda semelhança entre as imagens de Santo Antônio de nó-de-pinho do Brasil colonial com as imagens de Santo Antônio do Congo.25 No caso específico do Santo Antônio do Museu de Congonhas, pode-se afirmar, por meio de análise estilística comparativa, que se trata de um objeto de “marfim africano”. Futuras análises químicas podem elucidar outros aspectos sobre a origem da peça. As pesquisas nos inventários post-mortem mostram que o marfim esteve presente em Minas Gerais sob variadas formas, especialmente compondo a relação dos vivos com o mundo espiritual. Eram recorrentes as figas de marfim26 colocadas nas pencas de balangandãs usadas por muitas mulheres africanas e crioulas no Brasil colonial.27 Presente na 22 TAVARES, Aurea Conceição Pereira. Vestígios materiais nos enterramentos na antiga Sé de

Salvador: postura das instituições religiosas africanas frente à igreja católica em Salvador no período escravista. Dissertação de Mestrado, UFPE, 2006. 23 Agradecemos ao professor José Newton Coelho por ter nos informados acerca do amuleto em marfim encontrado pelo professor Marcelo Fagundes, vice-Coordenador do Laboratório de Arqueologia e Estudo da Paisagem (LAEP) da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. 24 Este é o único objeto de marfim do Museu de Congonhas. 25 SANTOS, V. S.; Paiva, Eduardo F.; FRONER, Y.; GOMES, R. L.. O Santo Antônio em marfim do Museu de Congonhas: uma hipótese sobre a tradução da imaginária africana para outros materiais, no contexto brasileiro. In: Caderno de resumos do Colóquio Marfim Africano: comércio e objectos, sécs. XVI-XVIII, Lisboa, 2017, p. 10. 26 O Museu Carlos Costa Pinto, situado em Salvador, na Bahia, possui 27 pencas de balangandãs em prata, que datam dos séculos XVIII e XIX, e que é, segundo pesquisa de Simone Trindade V. da Silva, o maior conjunto existente em museus. 27 FARIA Sheila de C.. Damas mercadoras: as  pretas minas  no Rio de Janeiro, século XVIII-1850. In: SOARES, Mariza de Carvalho (Org.). Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro. Niterói: Ed. UFF, 2007. P.101-134. SILVA, Simone Trindade

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constituição de joias, o marfim também adornou mulheres alforriadas - como foi o caso de Caetana Maria dos Santos – moradora do arraial de Antônio Dias, em Vila Rica – que possuía: “um par de brincos com seus olhos feitos de marfim Angola que pesam três quartos e quatro vinténs com seus olhos de mosquito, que foram vistos e avaliados pelos ditos louvados na quantia de um mil e quinhentos réis.”28 O inventário de Caetana é o único que faz referência à origem do marfim, procedente de Angola. Embora haja muitos objetos de marfim destinados especialmente para a arte devocional, predominam utensílios para casa e o trabalho nos testamentos e inventários post-mortem setecentistas da Comarca do Rio das Velhas de Minas Gerais. Neste artigo, o marfim é visto a partir da circulação, usos e posse de tal material na localidade conhecida atualmente como Sabará, em Minas Gerais, durante o século XVIII. O arraial de Nossa Senhora da Conceição do Sabará foi elevado à condição de Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará em 1711 e tornou-se sede administrativa da capitania de Minas Gerais – devido à descoberta do ouro no entorno do Rio das Velhas – o que levou àquela localidade pessoas das mais diferentes partes do mundo, tais como europeus e africanos, em busca, especialmente, da riqueza proporcionada pelo metal dourado. A mineração do ouro garantiu o povoamento das Minas Gerais no século XVIII. O tipo de jazida e os métodos empregados para a extração do ouro em depósito aluvisionais (jazida primária) encontrados nas margens dos rios ou em rochas matrizes (jazida secundária) definiram os tipos de povoamentos. As faisqueiras localizadas às margens e córregos dos rios assistiram os primeiros povoamentos que duraram pouco tempo, uma vez que a exploração não era sistemática. Contudo, foram os métodos empregados para a extração no subsolo e nas rochas que permitiram a formação de povamentos duradouros. As primeiras vilas da região, reconhecidas pela administração da Coroa Portuguesa, a partir de 1711, surgiram em função das atividades mineradoras mais duradouras. As primeiras vilas foram: Nossa Senhora do Carmo (Mariana), Vila Rica (Ouro Preto) e a Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. V. da. Penca de Balangandãs.In: Cadernos do MAV-EBA-UFBA. Ano 3, n. 3, 2006, p. 65. 28 Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (Casa do Pilar). Inventário post-mortem de Caetana Maria dos Santos. 1787. 2º Ofício. Códice 47, auto 518.

262 Capítulo 8 - A arte em marfim nas Minas Setecentistas

Figura 1 – Mapa de Minas Gerais no século XVIII. In: Kalle Kananoja. Central African Identities and Religiosity in Colonial Minas Gerais. Finlândia: Abo Akademi University, 2012, p. 8

Os apontamentos contidos nesse trabalho são fruto de uma investigação, em andamento, nos testamentos e inventários post-mortem de moradores da Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, ao longo do século XVIII. Considerando que os inventários post-mortem29 são fontes históricas riquíssimas para o estudo sobre a vida material de determinadas populações, estes documentos podem evidenciar a circulação, origem, datação e posse de marfim em Minas Gerais. O uso da expressão inventário post-mortem refere-se especificamente ao alistamento dos bens de um indivíduo feito após sua morte para transmissão ou partilha entre os herdeiros. A metodologia aplicada para essa pesquisa com os inventários post-mortem compreende a elaboração de uma planilha com campos definidos acerca do documento (códice, data de abertura, paginação), do proprietário (nome do proprietário, localidade, cor, condição social, 29 A definição de inventário segundo o referido dicionário de Raphael Bluteau é “o registro, ou papel em que estão registrados os móveis, os papéis e várias coisas que há em uma casa”. (...) o inventário é o registro oficial do patrimônio deixado por pessoa falecida, do qual consta o tipo e o valor monetário dos bens acumulados ao longo da vida, bem como a lista de créditos (dívidas ativas) e débitos (dívidas passivas) pendentes. Esse registro é feito por autoridade pública e o documento tem valor para definir, em caráter final, o que caberá por partilha, aos herdeiros, após honrados os débitos com o Estado e com credores particulares (FURTADO, 2009, p. 103).

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profissão/patente, estado civil, cônjuge, moradia, naturalidade/nação), do objeto de marfim (referência ao marfim, quantidade, tipologia, descrição literal, valor, origem) e um campo para registro de alguma observação importante para a compreensão da inventariação da peça e acompanhamento da biografia do objeto. Importante ressaltar que, até o momento, apenas um objeto teve sua origem registrada, o brinco de “marfim Angola” de Caetana Maria dos Santos, citado anteriormente. Portanto, tem sido necessário fazer análise indireta da origem - quando constatada a averiguação da existência de marfim no rol de bens, faz-se a correlação com os outros objetos. Dessa maneira, é possível mapear as origens dos bens de consumo e de objetos de arte que chegavam ao interior da colônia e acessar o marfim. Os campos sobre os proprietários e proprietárias permitem compreender o estrato social destas pessoas, suas origens e a função social dos objetos de marfim para elas; bem como aspectos acerca da circulação das peças. Por fim, o campo acerca do objeto possibilita saber a tipologia, a função, o valor monetário e o valor agregado social e simbolicamente. Cerca de 200 inventários post-mortem30 e testamentos foram consultados até o momento. Nestes, foram identificados objetos de marfins apenas em 22 testamentos e inventários post-mortem.31 Dentre os diversos bens arrolados de cada inventariado, aparecem 145 objetos32 30 Ciente da relatividade desta amostra diante da população que habitou a Comarca do Rio

das Velhas ou que possuía inventário, entendemos que com o avanço da pesquisa teremos maior objetividade dos dados. A população da Comarca do Rio das Velhas no ano de 1776 somava um total de 99.576 habitantes sendo que, destes, 60.366 eram do sexo masculino (deste total 8.648 eram brancos; 17.011 eram pardos e 34.407 eram pretos) e 39.210 do feminino (deste total 5.746 eram brancas; 17.225 pardas e 16.239 pretas). Neste mesmo ano foram contabilizadas as populações das demais comarcas que compunham a Capitania de Minas Gerais: Vila Rica (população total de 78.618 habitantes); Rio das Mortes (população total de 82.781 habitantes); Serro (população total de 58.794 habitantes). Nota-se assim que a Comarca do Rio das Velhas era a mais povoada da capitania. Ver: VEIGA, José Pedro Xavier da. Ephemérides Mineiras, 1778, p. 194. 31 Foi utilizado, para essa pesquisa, o banco de dados criado pela professora Beatriz Ricardina Magalhães – sobre os testamentos e inventários post-mortem de Sabará - que se encontra no formato de fichas manuscritas de pesquisa, conservado na biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. O banco elenca em fichas de pesquisa, o conteúdo dos testamentos e inventários post-mortem do Arquivo Histórico da Casa Borba Gato. Agradecemos ao colega Isaac Cassemiro pela indicação sobre essas fontes e às pesquisadoras Aline Radicchi, Mariana Rabelo e Renata Cristina pela leitura e sistematização das fichas manuscritas. Também foi consultada a documentação sobre testamentos da Câmara Municipal de Sabará que se encontra no Arquivo Público Mineiro (APM), CMS-073. 32 CORRÊA, M.; SILVA, C. Os objetos e os seus usos. In: Cultura Visual, n. 19, julho/2013,

264 Capítulo 8 - A arte em marfim nas Minas Setecentistas

esculpidos em marfim. Destes, 133 estão classificados aqui como objetos utilitários e 12 como peças sacras. A análise a seguir está organizada em duas partes, a primeira, analisa a função simbólica dos objetos utilitários e religiosos e o perfil dos seus proprietários/as, levando em consideração o uso e o valor monetário; e a segunda apresenta uma interpretação das pistas sobre a origem das peças.

Os tornos de rede angolanos e outros objetos utilitários lavrados em marfim Os objetos classificados como utilitários são marcas, leques, tabuleiros de jogo, copo, faca e taquaras com tornos de marfim. A maior quantidade de objetos são, em ordem decrescente, as marcas, depois os leques, seguidos de jogos de tabuleiro, tornos de marfim, sinetes, um copo e uma faca/espátula. Tabela 1 – Tipologia das peças utilitárias esculpidas em marfim presente nos inventários post-mortem de Sabará (1738-1796) Objeto

Quantidade

Marcas de marfim

120

Tabuleiro

4

Rede c/ tornos de marfim

2

Taquaras c/ tornos de marfim

2

Sinetes

2

Leques

1

Copo

1

Faca

1

TOTAL

132

Fonte: Inventários post-mortem da Vila de Nossa Senhora da Conceição de Sabará. IPHAN. Casa Borba Gato. Salvador: EDUFBA, p. 11-26.

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Os inventários post-mortem de proprietários de lojas são importantes fontes para investigar as novidades que atendiam as demandas de determinada sociedade. A loja de Domingos Fernandes de Carvalho, em Sabará, inventariado em 1783, revelava as necessidades e novos gostos em Minas Gerais. A lista de produtos da loja incluía centenas de mercadorias, principalmente para alfaiataria, inclusive “10 dúzias de marcas de marfim”. O dicionário de Raphael Bluteau tem várias definições para a palavra. Duas destas ajudam a compreender o item inventariado: “Marca, o pao, ou alma do botão”.33 “Alma, ou marca de botam. He a madeira, ou outra matéria, que está dentro da capa do botaõ”.34 Em outras palavras, o botão de madeira ou marfim era revestido de tecido e depois costurado à roupa. Então, marcas/botões de marfim foram utilizados pelas costureiras e alfaiates em Sabará nas roupas dos moradores.35 Outros objetos de finalidade utilitária eram os tabuleiros de marfim que obviamente serviam para jogos. Entendemos que os tais tabuleiros eram de gamão porque foram registrados junto com o dado. Isso indica a prática de jogos como um tipo de lazer, trazida para a colônia pelos portugueses. Anselmo da Silva Diniz era um dos proprietários de um “taboleiro com jogos de taboa de marfim com dados”. Seus bens evidenciam que era um comerciante de fumo. Além disso, possuía ferramentas para “rodas de pau de fiar algodão”, 14 livros de vários autores, diversos santos em madeira, oratórios em jacarandá, tinteiro, material para montar a cavalo e outros. Ele era um homem com algumas posses, que sabia ler, escrever e tinha seu destaque naquela sociedade. Anselmo Diniz também tinha um copo de marfim. O copo de marfim é o único utensílio doméstico feito de marfim que aparece nos documentos. Como se trata de uma única peça pode-se imaginar que tenha sido usado como objeto decorativo para expor na sala de jantar. Contudo, ao observar o conjunto dos outros bens de seu proprietário, Anselmo da Silva Diniz, inferimos que o copo de 33 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino. Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712, p. 333. 34 BLUTEAU. Vocabulario portuguez e latino, p. 266. 35 Esse dado é importante, uma vez que até o momento as pesquisas em contexto arqueológico ainda não identificaram o uso de botões pelos africanos. Para saber mais sobre o assunto, veja: SUGUIMATSU, Isabela Cristina. Atrás dos Panos: ornamentos e identidades escravas. Colégio dos Jesuítas, Campos dos Goytacazes, século XIX. Dissertação de Mestrado em Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Universidade Federal de Minas Gerais, 2016.

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marfim deve ter sido comprado juntamente com o tabuleiro e os dados; e o copo serviria para lançar os dados à mesa durante o jogo. Outro morador, Antônio Freitas Cardoso, um dos homens mais ricos de Sabará, possuía uma “faca de marfim de escrivaninha”. O testamento mostra a definição do uso da “faca”: era uma espátula de marfim para abrir envelopes. Tratava-se de comerciante que vendia produtos de aferição precisa, certamente ouro, em virtude das duas balanças que possuía e tinha 8 escravizados. Cardoso tem umas das maiores variedades de bens, a lista chega a quase 80 diferentes itens, com um destaque para as diversas armas de fogo, munição e equipamentos para montaria.36 Outros objetos para uso no trabalho também foram identificados entre os bens dos inventariados – dois sinetes. O sinete é um pequeno objeto que pode ser feito de marfim, metais como ouro ou prata, usado como assinatura para selar e autenticar documentos e cartas de pessoa física ou organização civil, particular ou religiosa. Um dos proprietários de um dos sinetes era o padre português Thomas de Moura, que certamente o usava para selar documentos da Igreja. O outro sinete pertenceu ao Capitão-mor Manuel Lopes Machado que o tinha para desempenho de suas atividades administrativas. Ambos os sinetes podem ter sido feitos do mesmo modo do sinete de marfim torneado, que se encontra atualmente no Acervo do Museu da Inconfidência.

36 Ver dados da trajetória de Cardoso em SANTOS, Raphael Freitas. Minas com Bahia: mercados e negócios em um circuito mercantil setecentista. 2013. 497 f. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense Niterói, 2013, p. 192198. Disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/td/1445.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2017.

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Figura 2 – Sinete de marfim. O Museu da Inconfidência. São Paulo: Banco Safra, 1995, p. 349

O leque de papel com suporte de marfim em Sabará reflete os novos gostos importados da Corte lisboeta que chegavam ao Brasil e simbolicamente representava os novos gostos cortesãos. O objeto de abano para uso pessoal, certamente pertencia à esposa de José Vaz da Cunha, cujo inventário data de 1783. Ele era um homem com variados bens, dentre os quais destacam-se as armas brancas e de fogo, livros religiosos, um exemplar do Erário Mineral e uma quantidade considerável de ferros. 37 37 Jogo de pistolas curtas aparelhadas de ferro, 1 jogo de pistolas compridas mais inferiores, 1 pistola com coronha quebrada, 1 florete, guarnição, 1 clavina, 2 buldriés de marroquim, 1 xaforete de folha de catana, 9 libras de ferro de marretas quebradas, 1 leque de papel pintado com armação de marfim, 1 rolo de cadarço de lã, 1 caixa de grardar cabeleiras, 1 barra de ferro de 1 arroba, 3 libras de estanho velho, 1 sipello ferro e sepo, 1 fado de caso de flores, umas contas de irmão do carmo, 2 rosários de Jerusalém, 1 livro em branco, 1 bolceta de papelão para tabaco, 1 livro erário Mineral, umas horas portuguesas, 1 livro de pensamentos de cristãos, 1 livro pecador convertido, 1 livro alma chorosa, 1 livro da Ordem de São Domingos, 1 livro tesouro de pedintes,

268 Capítulo 8 - A arte em marfim nas Minas Setecentistas

Por fim, trataremos da última tipologia de objetos que constam no rol dos bens utilitários inventariados até o momento. Tratam-se de duas “taquaras com torno de marfim”, que pertenciam ao capitão de Sabará José Tavares Pereira, português das “Ilhas”, que tinha também loja de secos38. A taquara39 com torno em marfim era o suporte para as redes, carregadas por escravizados, que transportavam os brancos. Simbolicamente, era um meio de transporte importante para as elites no período colonial, justamente porque, ao serem carregados em suas redes bem ornamentadas ostentavam publicamente o elevado status social. Este mesmo meio de transporte da elite foi descrito em outro inventário como “rede com dois torno em marfim”, que pertencia à Francisca Xavier40, também moradora em Sabará. Os tornos de rede foram usados em nos mais importantes centros urbanos do Brasil colonial. “O regresso de um proprietário” (Fig. 3), gravura do francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) que integrou a Missão Artística Francesa no Brasil (1817) mostra o registro deste importante equipamento de deslocamento urbano no Rio de Janeiro: a taquara estruturando a rede de pano com o suporte de dois pinos grandes de madeira enfiados na taquara para fixar as extremidades do tecido de algodão trançado.41 Na pintura, os pinos têm os tornos su1 livro Folheto, 2 livrinhos de Santíssimo, 2 espelhos velhos, 1 imagem de Nossa Senhora da conceição de pau dourado, 1 campainha, 5 bruacas de couro. 38 Lista de bens: 2 taquaras de rede (uma com tornos de marfim e outra com tornos de pau preto), 1 sella em bom uso ( capa de moscóvia, cochim de veludo acamurçado com seus arreios), 1 sela com abas de solla (com seus arreios e estribeiras de pau e seu freio), 2 selas com abas de moscóvia, 1 espada da marca com guarnição inteiriça com punho de prata de lei, 1 espada com guarnição quebrada, 14 tomos de sermões do padre Vieira, 6 tomos da “mocidade enganada” encadernados em pastas do Padre Manoel Consicência, 2 tomos de (?) encadernados em pasta, uma encadernação filipina, um tomo “Flos San torum” (?), um tomo de Eva (?), um tomo da vida de Santa Tereza de Jesus encadernado, 1 xairel e bolsas de colares de pano escarlate com duas orden de galam de ouro, 1 xairel e bolsas de pele de onça, 1 par de pistolas velhas inglesas. 39 A taquara e o bambu pertencem à família da Gramimeae (Bambusoideae). A primeira é natural da América do Sul, enquanto o bambu existe em várias partes do mundo. A taquara é semelhante ao bambu, este, também conhecido como cana da índia, foi muito utilizado para o fabrico de bengalas, que tinha nome homônimo. 40 Senhora da Conceiçaõ, 1 espirito Santo de ouro, 1 senhora da conceição pequena, 1 espinguarda, 2 frasqueira com fechadura e chave e 10 frascos cada, 7 frascos cheios de vinho, 1 corrente de ferro com 2 colares, 1 gancho de ferro, 1 espadim de prata, 1 frasqueira de arme, (?) de bronze, 2 frascos de frasqueiras vazios, 2 selas de moscóvia, 1 rede grande com 2 tomos de marfim, 4 travesseiros de linho, 8 taboas novas largas e compridas, 1 canoa grande do Rio das Velhas com uma corrente e cadeado. 41 Agradeço aos colegas do grupo de estudos “Marfim no Mundo Atlântico”, especialmente ao

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periores torneados e de cor amarelada, com uma ponta pontiaguda. A gravura é o registro de um tipo de transporte de pessoas utilizado no Rio de Janeiro do início desde o século XIX42, que foi adotado em Sabará no início do Século XVIII e em outras cidades do período colonial, como Pernambuco.

Figura 3 – “O regresso de um proprietário”, Jean-Baptiste Debret. In: CARDOSO, Rafael. Castro Maya Colecionador de Debret. São Paulo: Capivara; Rio de Janeiro: Museu Castro Maya, 2003, p. 42. (Houve alteração na ilustração com acréscimo de setas, para fins didáticos)

René Lommez Gomes, pela indicação da gravura “O regresso de um proprietário” de Jean-Baptiste Debret. 42 A transferência da Casa da Câmara do Rio de Janeiro, em 1639, para o Morro do Castelo gerou a necessidade de novos meios de locomoção para os funcionários do governo. Assim, as tradicionais redes foram adaptadas para as cadeirinhas com cobertura acima do varal e um piso, conformando-se como um meio de transporte individual utilizado por homens abastados. No século XVIII as mulheres nobres ou casadas com nobres podiam andar de cadeirinha, conforme as ordenações portuguesas Filipinas. Somente após a chegada da corte portuguesa, o uso foi estendido às pessoas de ambos os sexos que possuíam escravos para carregar ou pagavam a carregadores. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017.

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Este tipo de liteira foi registrado no Brasil desde o século XVII. Umas da primeiras representações, foi em feita em Pernambuco pelo alemão Zacharias Wagner, escritor, pintor e mercador, que esteve na corte de Nassau em Recife na primeira metade do século XVII e deixou importantes registros da fauna, frutas, tubérculos, animais marinhos e dos costumes. Na figura 4 pode-se ver a semelhança entre as liteiras de Wagner e a de Debret (figura 3). Contudo, o principal diferencial não é apenas o pano de damasco ou veludo azul que protege a mulher branca do sol, mas os tipos de pinos de madeira enfiados na taquara para fixar as extremidades da rede. Na obra de Debret, os pinos são mais elaborados artisticamente. Isso indica que o uso de marfim para torno de rede pode ter sido usado onde havia mais acesso aos circuitos comerciais atlântico e maior circularidade de dinheiro, como era o caso de Sabará no século XVIII, Rio de Janeiro e Recife. Figura 4 – Escravos carregando uma maca coberta, Brasil, 1630s. In: C. Ferrao and J. P. Soares, eds., Dutch Brazil, The “Thierbuch” and “Autobiography” of Zacharias Wagener; D.H. Treece and R. Trewinnard, English translators (Rio de Janeiro, Editora Index, 1997), vol. 2, p. 191, plate 104. Disponível em: http://www. slaveryimages.org/images/collection/large/NW0320.JPG)>. Acesso em: 19 jun. 2017. (Houve alteração na ilustração com acréscimo de setas, para fins didáticos).

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Um último aspecto a considerar sobre esse tipo de transporte, diz respeito à semelhança das liteiras usadas no Brasil com as do reino, do Congo, no mesmo período. As três imagens de diferentes liteiras da figura 5 foram originalmente executadas por dois gravadores flamengos, os irmãos Johan Theodore e Johan Israel De Bry. Eles nunca visitaram a África e construíram as gravuras pelos relatos de testemunhas oculares do século XVI, como a “Relação do Reino de Congo e das terras circunvizinhas” (1578), do português Duarte López. A liteira em destaque também está coberta e amarrada nas laterais. Figura 5 - Liteiras para viagem, Reino do Congo, final do século XVI

Pieter van der Aa. La Galerie Agréable du Monde (Leide, 1729). Disponível em: . Acesso em: 19 jun. 2017. (Houve alteração na ilustração com acréscimo de setas, para fins didáticos).

Esse tipo de liteira sustentada por rede para carregar pessoas de status diferenciado na sociedade congolesa parece ter agradado a elite portuguesa que chegou ao Brasil. Comprendo, assim, que as liteiras adotadas no Brasil no século XVIII, como aquela que aparece nos inven272 Capítulo 8 - A arte em marfim nas Minas Setecentistas

tários de Sabará, nas quais foram inseridos marfins, são adaptações do modelo congolês ou angolano, trazido pelos portugueses. Os palanquins à moda asiática (liteira fechada de leito ou assento coberto, preso a um varal, levado no ombro por dois, quatro ou seis homens ou, por vezes, no dorso de animais), só chegaram ao Brasil na segunda metade do Século XVIII e se tornaram mais usados com a transferência da Corte para o Brasil, em 1807. Na China apenas reis e militares podiam usar palanquins, um tipo de liteira ornada de madeira e ouro. Os oficiais chineses deveriam utilizar apenas marfim em seus palanquins.43 Na Índia, a nobreza também fazia uso destes, mas toda a estrutura era feita de madeira e estofado. Outras duas evidências fortalecem o argumento de que os tornos de rede tinham origem da África Centro-Ocidental. Uma, foi o anúncio de venda de “uma tipoia de Angola nova como seos tornos de marfim”, na Praça da Boa Vista, em Recife, Pernambuco, em 27 de julho de 183244. Embora o período seja diferente, trata-se de permanência de costumes herdados de Angola desde o período colonial, onde circulavam muitos comerciantes de Pernambuco, Rio de Janeiro e Bahia. A outra é um torno de marfim, com figura humana no topo, representação de um tipo europeu com barba e bigode longos e uma espécie de túnica aberta. O restante da peça é liso, justamente para ser inserido no orifício do bambu ou outra madeira, que vai sustentar a rede. Este objeto pertence ao Museu Etnológico de Berlim, e está identificado como “suporte para rede com figura masculina”, originário do Reino de Loango, esculpido entre os séculos XIX e XX, adquirido em 1906 por Mayer-Puhiera. 45 Concluindo essa análise acerca dos objetos utilitários de marfim em Sabará, no século XVIII, nota-se que essa região estava inserida na rede de circulação de mercadorias do império comercial português. Os 43 ANDREA, Alfred J. & OVERFIELD, James H. The Human Record: Sources of Global

History, Volume I: To 1500. EUA: Seventh Edition, p.340. 44 CHAVES, André; GOMES, René. De presas de elefante a leques, bengalas, placas para retratos e crucifixos. Notícias sobre comércio e a manufatura de objetos em marfim africano no Brasil imperial. Caderno de resumos do Seminário internacional marfins africanos no espaço Atlântico: circulação, manufatura e colecionismo – séculos XVI a XIX. Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade de Lisboa. - Belo Horizonte: Centro deEstudos Africanos/ UFMG, 2017, p. 47-49. 45 JUNGE, Peter. Arte da África: Obras-primas do Museu Etnológico de Berlim. CCBB, 2004, p.80. Esta peça pode ser vista online no catálogo online: KOLOSS, Hans-Joachim. Art of Central Africa: masterpieces from the Berlin Museum für Völkerkunde. Museum für Völkerkunde (Berlin, Germany), Metropolitan Museum of Art (New York, N.Y.), 1990. Disponível em: https://goo. gl/oQkY9I>. Acesso em: 23 jun. 2017.

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usos dos objetos estavam ligados ao ambiente doméstico ou externo - no caso do leque; às atividade de negócios e administrativa, como a espátula e o sinete; ao lazer – os jogos de tabuleiros, os dados e o copo; e, por fim, aplicado como adorno de meio de transporte e ostentação social.

Objetos religiosos As outras peças dos inventários e testamentos são doze objetos devocionais: sete crucifixos, três imagens de Nossa Senhora da Conceição, uma imagem de Nossa Senhora da Glória e uma imagem de São João. Como resultado da expansão da narrativa do martírio e do sacrifício, a imagem do crucifixo ganhou a preferência dos fiéis na colônia, especialmente na região aurífera. O padre Antônio Vieira da Costa possuía três crucificados em cruzes de madeira, uma delas, encrustada no jacarandá e resplendor de prata e media um palmo. O padre tinha a maior quantidade de crucifixos de marfim dentre a população arrolada, e mais dois crucifixos de madeira e latão. Além disso, tinha uma grande variedade de imagens de santos.46 Os outros moradores que possuíam crucifixos eram: Antônio Freitas Cardoso (o rico português que possuía a faca de marfim para abrir cartas), Manoel da Costa Vale e Anna Francisca da Costa. No Apêndice, deste capítulo estão descritos todos os marfins e seus proprietários conforme aparecem nos inventários. É importante informar que, segundo as Normas de Inventário, o crucifixo é um objeto inventariado na categoria Escultura; e na subcategoria Escultura de vulto, apenas quando comporta a imagem de Cristo esculpida. O crucifixo é a junção de Cristo crucificado a uma cruz. Quando 46 Dentre os bens do padre, destacamos aqueles de natureza devocional uma Imagem de Santo

Antônio com sua Cruz, uma imagem da Senhora das Neves de vulto de 3 palmos, com uma correia de prata dourada, Senhora do Rosário, com 2 palmos de comprimento com correia de prata e peso de 9 oitavas; uma imagem de Santo Cristo com resplendor de prata pequeno dourado, uma imagem de Sto. Antonio de 2 palmos com comprido com resplendor, cruz de prata, uma imagem de Santo Cristo de latão com sua cruz e (machucada); uma imagem da Senhora do Rosário de um palmo e meio de altura com o menino Jesus com coroa e resplendor de prata; uma imagem de Sto. Antonio com Menino, resplendor e cruz de prata; uma imagem de Santo Cristo de palmo com sua (?) e cruz de jacarandá com resplendor e os engastes de prata.

274 Capítulo 8 - A arte em marfim nas Minas Setecentistas

há apenas a cruz, esta é inventariada como: Mobiliário religioso.47 E há dois tipos de cristos crucificado: Senhor do Bonfim (Cristo na cruz com os olhos cerrados) e o Senhor da Agonia (Cristo crucificado de olhos abertos). Obviamente que os documentos escritos não trazem esse tipo de descrição da “escultura”, e por essa razão classificamos-os apenas como crucifixos. Desde o período gótico (meados do século XIV) as imagens de Cristo crucificado foram difundidas, para despertar mais sentimentos48 e para que os cristãos aprendessem e valorizassem a perspectiva do sacríficio em nome da fé. Isso valia para os religiosos bem como para os leigos. No calendário litúrgico, a Paixão de Cristo tomou lugar principal em algumas cidades da Europa, e isso não foi diferente no Brasil colonial. Portanto, isso explica a profusão de crucificados de marfim e de outros materiais nas casas das famílias mais abastadas. As imagens sacras femininas lavradas em marfim, a Nossa Senhora da Glória e a Nossa Senhora da Conceição, eram parte do culto mariano no Brasil. No século XVIII, a imagem de Nossa Senhora da Glória era representada com os braços abertos num ato de louvor a Deus, usando coroa, e segurando o Menino Jesus em um dos braços e no outro, um cetro de ouro. Sob seus pés, havia três cabeças de anjos. O proprietário desta imaginária era o rico Freitas Cardoso, já mencionado anteriormente, que também possuía outras quatro imaginárias católicas: Santa Rita, Santo Antônio, São Francisco e um crucifixo. Supõe-se que estes objetos sacros eram feitos em madeira, pois quando manufaturados em material diferenciado, como marfim, especificava-se como peça ebúrnea. A outra imagem sacra trata-se de uma imagem de “Hum ffeitio de huma imagem da Senhora da Comceicam de marfim estimada por elles avaliadores na quantia de mil e duzentos réis”. A proprietária era uma preta forra, Leonor Gonsalves Bahia, nascida na Costa da Mina, moradora em Sabará. Leonor tem uma modesta relação de bens: uma colher de prata que pesava 81/2 oitavas, avaliada em 850 réis; uma mesa pequena com sua gaveta e sem chave de 3 palmos de comprido e 2 de largo avaliada em 1.200 réis; um banco velho de 2 tabuas de 3 palmos e 47 INSTITUTO PORTUGUÊS DE MUSEUS. Normas de inventário. Lisboa: Cromotipo, Artes Gráficas, Ltda, 2004, p. 47. 48 SILVA, Liliana Maria Pereira da. A fé, a imagem e as formas : a iconografia da talha dourada da igreja do Bom Jesus da Matosinhos. Dissertação de Mestrado na Universidade do Porto: Porto, 2011, p. 32.

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meio de largo e 61/2 de comprido avaliado em 900 réis; um estrado muito velho avaliado em 450 réis; um banco muito velho de encosto avaliado em 300 réis; um banco também de encosto em bom uso avaliado em 1.500 réis; 2 tamboretes velhos avaliados em 300 réis; um catre de pau branco velho avaliado em 900 réis; 2 catres muito velhos por 900 réis; um prato de estanho velho remendado avaliado em 300 réis; uma bacia de arame de pé de cama velha avaliada em 75 réis; um baú velho avaliado em 1.200 réis. Embora, seus bens fossem modestos, a maior parte da riqueza de Leonor eram as dívidas que ela iria receber de quatro pessoas, inclusive da sua escrava, a mulher parda Quiteria Gonsalves Bahia, que devia ainda o quartamento, nomeadamente, 82.560 réis e meio. Marcos Ferreira de Azevedo devia a quantia de 59.200 réis à Leonor. Manoel da Costa Valle devia 60.037 réis; e o capitão Pedro Ramos Pereira declarou que devia à falecida hum crioulo, comprado pela quantia em dinheiro de 14.400 réis. O inventário da africana Leonor é excepcional porque além dos bens, com valores de cada um, e do monte-mor de uma mulher que foi escravizada em uma reunião aurífera, mostra aspectos da vida material e devocional dela. Os outros proprietários que possuíam a referida imaginária religiosa eram, Maria de Freitas e Pedro Alexandre Botelho.

Achegas acerca da origem, preços e simbolismos dos marfim em Sabará Ainda não é possível precisar a origem das peças desta amostragem, tão pouco o estilo e a questão da autoria dos objetos. Em razão da natureza dos documentos que registram a peça, especialmente, os inventários, a preocupação do escrivão era descrever o bem, o seu valor e algumas vezes, fazia-se referência ao tamanho do objeto ou ao outro tipo de material que foi utilizado naquela peça. Os escrivães também não fizeram qualquer anotação acerca da origem ou da autoria destas peças.49 Nesse sentido, tanto as peças decorativas quanto as utilitárias 49 Nas descrições de alguns objetos aparecem os materiais que eram combinados com o marfim, tais como prata, madeiras e papel: “sinete de marfim com seu bocal de prata”, “imagem

276 Capítulo 8 - A arte em marfim nas Minas Setecentistas

em marfim podem ter sido importadas diretamente de Portugal ou de qualquer localidade da África Atlântica ou mesmo lavradas no Brasil inspiradas em modelos clássicos europeus ou indianos ou africanos. Os leques e os jogos de gamão podem ter sido manufaturados na Europa na China ou na Índia, em razão da função das peças. Contudo, outros objetos, como a faca e o copo de marfim, podem ter sido encomendados no Oeste da África, onde comerciante europeus já compravam produtos dessa mesma tipologia. Os crucifixos, as imagens marianas e o São João podem ter sido esculpidos no Brasil ou em qualquer outra parte do império comercial português. O fato é que a região de Sabará, assim como outras cidades setecentistas mineiras, estava conectada a diversas partes do comércio atlântico que integrava o império comercial português. Prova disso são alguns produtos importados tanto da Europa quanto de cidades da Ásia, como por exemplo: tapetes da Turquia, colcha de seda de Macau, faca flamenga, dezenas de livros escritos em português, livros de arte francesa escritos em francês, espingardas com coronha e feixes portugueses, espingardas francesas e etc. Por outro lado há, também objetos que fortalecem a hipótese de que podem ter sido lavrados em Angola, como as taquaras com tornos de marfim para segurar rede, uma clara transplantação de meio de transporte de Angola ou do Congo utilizado pela população branca e livre no Brasil Colonial. Quem eram os agentes que introduziam as peças em marfim em Minas Gerais? Esta é uma importante questão para compreender a circulação dos marfins. Renata Romualdo Diório desvendou em sua pesquisa que os religiosos católicos trouxeram de Portugal um crucifixo e um cortador de hóstia lavrados em marfim.50 Por outro lado, havia também os judeus, que comercializavam mercadorias diversas no Brasil, os quais podem ter negociado também o marfim.51 Em 1710, por exemda Senhora da Glória de marfim com coroa e setro, resplendor de prata”, taquaras de rede com tornos de marfim, “leque de papel pintado com armação de marfim”, “imagem de marfim de Santo Cristo em uma cruz (...) de pau na sacristia” e “taboleiro com jogo de taboa de marfim com dados”. 50 FRONER, Yacy-Ara; PAIVA, Eduardo França; SANTOS, Vanicléia Silva. Acervos em marfim em Minas Gerais: documentos, trânsitos e materialidade. E-hum: Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n. 2, ago/dez 2015. 51 SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro (1695-1755): relações com a Inglaterra. São Paulo: Pioneira; São Bernardo do Campo: Instituto

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277

plo, no Rio de Janeiro, o cristão novo Francisco de Campos da Silva, preso pela Inquisição, declarava ter em seu poder uma viola grande marchetada de marfim, que não era de posse sua, mas pertencia a Lourenço pardo, filho de uma assistente chamada Maria, que trabalhava em sua casa.52 Importante lembrar que, havia cerca de 50 famílias judias vivendo em Sabará no Século XVIII, o que pode ter alimentado o comércio e o gosto por objetos de marfim.53 A obra Bens de hereges mostra que dentre os bens dos judeus, arrolados pela Inquisição portuguesa havia vários tipos de objetos lavrados em marfim bem como móveis marchetados em marfim e pentes deste material. Contudo, estamos no campo das especulações, pois até o momento não há registro de judeus comercializando marfim em Minas Gerais. Em análise sobre a vida material da população da Vila de Sabará, no século XVIII, Ana Luiza de Castro Pereira identificou uma variedade grande de procedência de alguns objetos dos moradores dessa localidade. A pesquisadora afirma que os produtos vindos de Portugal eram predominantes: tecidos, joias em ouro e louças de cozinha. O segundo lugar de maior procedência dos bens era a região de Flandres, de onde provinham tecidos. Havia também móveis em moscóvia, originários da Rússia e produtos de origem indiana, como louças e porcelanas. A autora ressalta que as distâncias geográficas entre as diferentes partes do mundo português não foram impedimento para a circulação de bens europeus do litoral para os sertões; e que a posse de objetos mais refinados esteve diretamente relacionada com o status sócio-econômico dos indivíduos. Ou seja: os objetos de luxo foram encontrados especialmente em inventários de militares, homens de negócio, eclesiásticos e outros sujeitos abastados.54A análise dos preços dos objetos lavrados em marfim em Sabará, no século XVIII, leva-nos a conclusão de que os mesmos não eram tão caros. Metodista de Ensino Superior 1992, p. 55 e 123. Ver também: LIMA JR, Augusto de. História dos diamantes nas Minas Gerais. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1945, p. 67. 52 NOVINSKY. Anita. Inquisição. Inventários de Bens Confiscados a cristãos-novos. Fontes para a história de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1976. p. 111. 53 FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. 3ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2014. BRAGA, Isabel M. R.M.D. Bens de hereges: Inquisição e cultura material. Portugal e Brasil (séculos XVII-XVIII). Lisboa: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. 54 PEREIRA, Ana Luiza de C. Viver nos trópicos com bens do Império: a circulação de pessoas e objectos no Império Português. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017, p. 12-13.

278 Capítulo 8 - A arte em marfim nas Minas Setecentistas

A análise comparativa dos preços dos bens da mulher forra Leonor, nascida na Costa da Mina e moradora em Sabará mostra que era mais relevante o simbolismo do objeto do que a funcionalidade. A imagem de Nossa Senhora da Conceição em marfim de Leonor foi avaliada no inventário por 1.200 réis, o mesmo valor que foram avaliados uma mesa e também um baú velhos. O bem mais caro de Leonor era a cativa Quiteria Gonsalves Bahia, que comprou a própria alforria por coartação, no valor de 82.560 réis e meio. Portanto, a imaginária não poderia representar um tipo de investimento. Tratava-se do simbolismo da devoção. Desde a construção da Igreja da Matriz de Sabará em 1710, que o culto à Nossa Senhora da Conceição era altamente difundido naquela região. Segundo Ozanan, essa devoção na região de Sabará tinha uma explicação especial, pois era a padroeira daquela Vila.55 Também se faz necessário lembrar que a devoção a Nossa Senhora da Conceição fora um importante constituinte da identidade portuguesa.56 Interessante ressaltar que as irmandades que geralmente congregavam os negros em Minas Gerais colonial eram Nossa Senhora do Amparo e Nossa Senhora das Mercês, para os Pardos; Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de escravos e negros livres. As Ordens Terceiras e Irmandades de Nossa Senhora da Conceição e de São Miguel e Almas eram de brancos ricos. A entrada de irmãos/irmãs ficavam definidas no Livro de Compromisso. Contudo, devota de Nossa Senhora da Conceição, Leonor não pertencia a nenhuma irmandade. Quem possuía marfim em Sabará? Nesta amostragem para Sabará, do total de 21 pessoas, 17 são homens e quatro são mulheres, no período 1738-1796. Duas delas, Maria de Freitas57 e Leonor Gonsalves, possuíam imagens de Nossa Senhora da Conceição. Ambas eram mulheres negras, que moraram na Bahia antes de irem para Minas Gerais. 55 OZANAN, Luiz Henrique. A joia mais preciosa do Brasil: joalheria em Minas Gerais -1815.

Tese (doutorado em História). Belo Horizonte: UFMG, 2013, p. 191. 56 BUARQUE, Virgínia et al. Devoção à Virgem em Mariana colonial: religiosidade, cultura e poder. In: ENCONTRO DO GT NACIONAL DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES, Anpuh, 1., 2007, Maringá (PR). Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017, p. 191. 57 Nesta coletânea, foi estudado o processo de Maria Freytas por PAIVA, Eduardo França. Marfins, ambientes e contextos - as Minas Gerais e as fontes históricas. Documento disponível em: IBRAM-BG. CPO-TEST. Códice 08. f. 94v-101v. 06.08.1740. Testamento de Maria de Freytas

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As outras duas, Francisca Xavier e Anna Francisca da Costa possuíam respectivamente, dois tornos de marfim e um crucificado de marfim. Os homens brancos, naturais de Portugal, são a maioria dos proprietários dos objetos de marfim em Sabará. Dentre estes, os padres Thomas de Moura, Francisco Ferreira Mendes e Antônio Vieira da Costa58; Pedro Alexandre Betelho, licenciado em Medicina; Antônio Freitas de Cardos, homem de negócios; e alguns capitães-mores: João Soares de Miranda, Manoel Lopes Machado, José Tavares Pereira. Importante ressaltar que, no ano de 1776, a população local somava um total de 99.576 habitantes sendo que, 60.366 eram do sexo masculino (deste, 8.648 eram brancos; 17.011 eram pardos e 34.407 eram pretos) e 39.210 do feminino (5.746 brancas; 17.225 pardas e 16.239 pretas).59 A população africana que não alcançava liberdade não fazia inventários. Portanto, a possibilidade de conhecer a cultura material da população negra escravizada ocorrerá, por meio das pesquisas em contextos arqueológicos ou indiretamente em outras documentações. De todo modo, no âmbito do projeto sobre a circulação de marfim africano no espaço atlântico, temos os registros do uso do marfim pelas mulheres africanas libertas, Leonor Gonsalves e Caetana Maria dos Santos. Contudo, a produção das peças das africanas fica ainda no âmbito das especulações: o par de brincos “com seus olhos feitos de marfim Angola” de Caetana e a imagem da santa de Leonor foram produzidas em Minas Gerais por artistas locais? Os tornos de redes em marfim foram feitos em Angola ou Congo ou confeccionados no contexto colonial do Brasil? Em forma de conclusão, os objetos de marfim adquiridos em Minas Gerais vão além da mera questão da utilidade/funcionalidade. Estavam em pauta o material e seus usos simbólicos, utilizados nos objetos como forma de demonstração de poder e de devoção. O marfim deu forma aos referidos objetos porque distinguia homens e mulheres na sociedade setecentista mineira e principalmente os protegia das agruras do mundo colonial minerador.

58 Os inventários dos padres e dos fiéis mostram o perfil dos materiais utilizados para fabrico

de santos, em Sabará, havia um predomínio da madeira. 59 VEIGA, José Pedro Xavier da. Ephemérides Mineiras, 1778, p. 194.

280 Capítulo 8 - A arte em marfim nas Minas Setecentistas

Apêndice Listagem de objetos de marfim arrolados nos inventários post-mortem da comarca do Rio das Velhas (Século XVIII). ANO

Inventariado

Identificação

Valor/Réis

João Soares de Miranda Manuel Lopes Machado Domingos Martins da Torre

1 crucifixo de marfim

Não consta

1 sinete de marfim com seu bocal de prata

470200

1 crucifixo de marfim

3750

1749

José Tavares Pereira

2 taquaras de rede (uma com tornos de marfim e outra com tornos de pau preto)

166750

1756

Francisca Xavier

1 rede grande com 2 tomos de marfim,

148350

1766

Antônio Freitas Cardoso

1 imagem da Senhora da Glória de marfim com coroa e setro, resplendor de prata 1 faca de marfim de escrivaninha

183262

1771

Domingos Fernandes de Carvalho

10 dúzias de marcas de marfim (leia-se botões)

83105

1772

Manoel da Costa Vale

1 imagem de N.S. de marfim

35500

1778

Anna Francisca da Costa

1 imagem de Sto. Cristo de marfim

34000

1779

Carlos José de Lima

1 jogo de táboas de marfim quebrado

8220

1783

José Vaz da Cunha

1 leque de papel pintado com armação de marfim

43625

1785

Thomas de Moura

1 sinete de marfim

59822

1787

Antonio Felix Correa de Menezes

1 jogo de Marfim

52100

1788

Anselmo da Silva Diniz

1 taboleiro com jogo de taboa de marfim com dados 1 copo de marfim

25200

1738 1743 1748

1796 1738 1738

Antônio Vieira da Costa Pedro Alexandre Betelho João Soares de Miranda

87525

1 imagem de marfim de Santo Cristo em uma cruz com sua (?)de pau na sacristia 150125 1 feitio (?) de uma imagem de marfim e cruz de pau, Uma imagem de Nossa Senhora da Conceição de Não consta marfim com coroa de prata. 1 crucifixo de marfim com resplendor de prata.

Não consta

1740

Maria de Freytas

1 imagem de marfim de Nossa Senhora da Conceição.

Não consta

1744

Francisco Ferreira Mendes

1 imagem do senhor crucificado em marfim de um palmo.

Não consta

O Marfim no Mundo Moderno

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ANO

Inventariado

Identificação

Valor/Réis

1767

Henrique José Penha

1 imagem de São João de marfim.

Não consta

1787

Custódio dos Anjos

1 tabuleiro de tabola com jogo de marfim grande.

Não consta

1786

Leonor Gonsalves Bahia

1 imagem de marfim de Nossa Senhora da Conceição.

850.000

Fonte: Inventários post-mortem da Vila de Nossa Senhora da Conceição de Sabará. IPHAN. Casa Borba Gato & Arquivo Público Mineiro (APM), Fundo Câmara Municipal de Sabará (073).

282 Capítulo 8 - A arte em marfim nas Minas Setecentistas

Capítulo 9 Marfim e medicina na Modernidade portuguesa: aportes pontuais Márcio Mota Pereira “(...) he de se presumir que há mais elefantes em a Etiópia do que ha vacas em Europa”. Garcia de Orta

Um composto de vários usos Com estas palavras, o médico português Garcia de Orta (ca. 1501-1568) tentava persuadir ao doutor Ruano, seu interlocutor imaginário recém chegado às Índias e ávido em tomar ciência dos saberes da medicina, da farmacopeia e da botânica locais que ainda que fosse um recursos finito, o marfim ali utilizado era abundante e não apenas por serem muitos os elefantes na região, mas também por se trazerem grandes quantidades de presas da “Etiópia”. Natural da freguesia de Castelo de Vide, era filho de espanhóis cristãos novos que se refugiaram em Portugal após o Decreto de Alhambra, também conhecido como Édito de Expulsão, publicado em 1492 pelo rei Fernando II (1452-1516), de Aragão, e pela rainha Isabel I, de Castela, e que obrigava a conversão à fé católica ou a fuga dos judeus sefarditas. Aparentemente convertido, frequentou as universidades de Alcalá de Henares e Salamanca, tomando graus em Filosofia e licenciado em Medicina, após prestar os devidos exames públicos. Em Lisboa, Garcia d’Orta tornou-se lente das cadeiras e Filosofia Moral e Filosofia Natural, vindo a acumular suas atividades em docência com o cargo de Físico-Mor do rei Dom João III. “Volvidos quatro anos, na companhia de Martim Afonso de Sousa”, recentemente O Marfim no Mundo Moderno

283

nomeado Capitão-Mor das Índias, Garcia deixou Lisboa e seguiu para o Oriente, para ali também desempenhar a função de Físico-Mor. O impulso que o levou a deixar a Corte e partir para a mais distante conquista lusa é comumente interpretado pela Historiografia como uma fuga face à observância com que a Igreja Católica pautava os cristãos novos,1 ainda que uma imersão na região que era considerada o centro das especiarias e as histórias sobre as práticas médicas orientais também possam ter suscitado no médico português o interesse em constatar o que se encerrava naquela cultura. No seu célebre Colóquios dos simples e drogas he cousas medicinais da Índia (...)2, Orta estabelece um diálogo para a transmissão de conhecimentos sobre assuntos que transitam entre as tênues fronteiras da medicina, da farmacopeia e da botânica indianas. É, basicamente, um compilado de saberes que abrangem as propriedades de plantas, raízes e frutas tão diversas quanto o cálamo, o cravo, o gengibre e a jaca. Também se fazem presentes análises de minerais e substância provenientes de animais e que igualmente eram utilizados no tratamento à saúde. O resultado é um tratado científico que dispensou a erudição sem que fossem cerceados os conhecimentos mais importantes. Ao ser questionado sobre o uso dos ossos do elefante na medicina, Orta esclarece a seu visitante que apenas o “cenafil” – ou seja, as presas – eram utilizadas e que o produto, ainda que dispendioso naquela praça comercial, era de fácil acesso no mercado local já que por volta de seis mil unidades chegavam à Goa de lugares tão distintos quanto a costa do Malabar, Sofala, Ceilão e da África. Segundo o médico português, o marfim tinha vários préstimos, muitos dos quais relacionados ao feitio de “cousas muito polidas”, como pentes, braceletes e outros adornos não deixando, contudo, de ser utilizado na “física” (medicina) local, o que, de fato, era uma prática comum e antiga.3 Também em textos escritos por outros médicos portugueses contemporâneos a Orta, como Amato Lusitano (1511-1568), vamos encontrar louvores sobre os préstimos do marfim como a suposta propriedade que possuía como medicamento responsável por devolver a disposição aos enfermos, corroborando suas entranhas, firmando o ventrículo debilitado e vencendo obstruções no 1 FIALHO, Licínio. Garcia d’Orta. Medicina Interna, vol. 5, n. 4, 1998. 2 d’ORTA, Garcia. Colóquios dos simples e drogas da Índia. 3 d’ORTA. Colóquios dos simples e drogas da Índia, p. 303.

284 Capítulo 9 - Marfim e medicina na Modernidade portuguesa

sangue.4 Outra propriedade então atribuída ao marfim, a principal, era a de ser um composto alexifármaco (antídoto para envenenamentos).5 Ainda na Ibéria, outros médicos como Cristóbal de Acosta (1515-1594), português radicado em Castela, e Juan de Matos Fragoso (c. 1608-1689), também português radicado em Madri, reafirmavam os poderes do marfim como composto medicinal utilizado para “confortar a virtude vital e refrescar o fígado”, dentre outros préstimos.6 Outros letrados europeus do Renascimento como Nicolau Copérnico (14731543) também já haviam se atentado para o uso do marfim em receitas médicas, as quais frequentemente eram associadas a fórmulas mágicas e alquímicas que utilizavam, sobretudo, compostos orientais como o açafrão e o sândalo e não raramente de elementos metálicos e minerais, como o ouro e a safira.7 Através da expansão marítima que ajudou a promover, Portugal transformou Lisboa em um dos principais centros da economia mundial. Para a Corte lusa afluíam em grande quantidade pérolas de Ormuz, ouro da Guiné e depois do “Brasil”, porcelanas da China e especiarias e drogas das Índias. Os marfins, primeiramente comercializados com esta conquista e posteriormente com os reinos de África, encontrariam na Europa um mercado bastante específico; os profissionais da saúde, basicamente médicos, físicos, cirurgiões-mores e boticários que deste elemento se apropriaram de diferentes maneiras. Alguns séculos antes, no entanto, a utilização de drogas e outros compostos como o marfim na Europa já era uma realidade, como demonstra o Thesaurus pauperum, um compilado de textos médicos reunidos por Pedro Hispano e que caracterizou como um dos conjuntos de prescrições médicas mais difundidos na Europa durante o medievo 4 GARCIA, Maria Antonieta. O drama de Brás Luís de Abreu: o médico, as malhas da

Inquisição e a obra. Medicina na Beira Interior: da pré-história ao século XXI. Cadernos de Cultura, nº 20, novembro de 2006, p. 12. 5 JAMES, Robert. Pharmacopoeia Universalis: or, a new universal English dispensatory, containing... Londres: Printed for J. Hodges and J. Wood, 1747, p. 520; NICHOLS, Andrew. The complete fragments of Ctesias of Cnidus: translation and commentary with an Introduction. Miami: Florida University, 2008, p. 215 (Tese de Doutorado em Filosofia, Universidade da Flórida). 6 ACOSTA, Cristóbal de. Tractado de las drogas y medicinas de las Indias orientales. Burgos: Martín de Victoria, 1578; FRAGOSO, Juan de Matos. Discurso de las cosas aromaticas, arboles y frutales y de otras muchas. Madri: En casa de Francisco Sánchez, 1572. 7 CARNEIRO, Henrique. As drogas: objeto da Nova História. Revista USP, n. 23, novembro de 1994, p. 86, apud KOESTLER, Arthur. Os sonâmbulos. São Paulo: Ibrasa, 1961, p. 90.

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e mesmo ao longo do Renascimento. Pedro Julião Rebelo, ou Hispano, em referência à Península Ibérica, nasceu durante o século XII em Portugal e tinha por pai um físico, do qual provavelmente herdou consideráveis conhecimentos. Face à inexistência de escolas de maiores graus em sua Pátria nesse contexto, viajou para França onde aprendeu as artes médicas na Universidade de Paris. Tornou-se, posteriormente, médico pessoal do Papa Gregório X, provável momento em que formula a Thesaurus pauperum, obra por ele dedicada ao sumo pontífice. No ano de 1276, quando do falecimento do Papa Gregório X e passados dois outros papados que duraram poucos meses, Pedro Hispano foi nomeado como o novo pontífice, sob o nome de João XXI. Foi, ressalte-se, o único papa médico e português, tendo exercido grande proteção aos letrados de sua época. Muitas das prescrições dispostas no Thesaurus pauperum possuem origem na medicina árabe,8 ainda que outras estejam claramente inclinadas aos conhecimentos médicos da Grécia clássica. De modo geral, ambas previam tratamentos que mesclavam saberes propedêuticos com conhecimentos pragmáticos. Para o tratamento da icterícia, por exemplo, o Thesaurus pauperum prescrevia a ingestão de “raspas de marfim, suco de hepática-das-fontes, açafrão oriental e sabão gaulês, na quantidade de uma castanha”. Quanto ao preparo, os ingredientes deveriam ser colocados “num bocado de pano, e agitar em água da fonte o tempo suficiente para a virtude dessas coisas passar para a água e então, administrando-as sem o doente saber”. Segundo o autor, esta era uma mezinha que atuava “com muita eficácia”.9 Para Odell Sheppard, a utilização do marfim na medicina antiga tem origem na crença da existência de poderes restauradores existentes no chifre do unicórnio, um animal mitológico representado por um corpo semelhante ao do cavalo e possuidor de um único chifre. Para além dos poderes e das propriedades sobrenaturais que os saberes populares julgavam ser possuidor este composto, a medicina clássica creditava ao marfim “a cura para todos os venenos, para febres, para picadas de cães e 8 FURTADO, Ivo Álvares. O médico Pedro Hispano. Acta Médica Portuguesa, vol. 25, nº 2-3,

jan.-fev. 2012; GUSMÃO, Sebastião. A obra filosófica e médica de Pedro Hispano (Papa João XXI). Revista Médica de Minas Gerais, n. 14, jul.-set. 2004, p. 212. 9 GUSMÃO, Sebastião. A obra filosófica e médica de Pedro Hispano (Papa João XXI). Revista Médica de Minas Gerais, n. 14, jul.-set. 2004, p. 208-214, apud PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Obras médicas de Pedro Hispano. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1973.

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escorpiões, contra vermes, perda de memória, pestes e para prolongar a juventude”.10 Ao perpassarem o medievo e adentrarem o Renascimento, estes saberes médicos e populares encontrariam nas grandes navegações um grande alento e difusor; a facilidade com que este elemento era comercializado em África e nas Índias, sendo este o principal motivo pelo qual o marfim se tornaria mais acessível no mercado europeu a partir do século XVI. O mito do unicórnio, segundo Andrew Nichols, foi apresentado pela primeira vez no Ocidente pelo historiador e médico grego Ctésias de Cnido durante o quarto século antes de Cristo, tendo sido, na mesma época, reproduzido por Herotodo (484 a.C.–425 a.C.), o qual mencionou a existência de animais que se assemelhavam a burros com chifres, e que viviam na Líbia Ocidental, atual região Norte do continente africano.11 Maria Cerdeño, Juan Morrone e Vicente Roig Cordomina, a partir do contexto geográfico então estabelecido, creditam a gênese do mito na equiparação deste ser fantástico com o rinoceronte africano, também designado negro, Diceros bicornis, uma aproximação que também foi realizada por Andrew Nichols a partir do rinoceronte indiano, Rhinoceros unicornis.12 De modo geral, a figura de um animal com apenas um chifre e considerado mitológico destoava de todos os outros animais possuidores de córneos então conhecidos na Europa, como as vacas, cabras e cervos, motivo pelo qual a busca pelo composto se estendeu a todos os serem vivos que possuíam tais características, como a baleia narval, Monodon monoceros, que, na verdade, possui um dente afilado e projetado para fora da cabeça, então conhecida como unicórnio do mar e, mais tarde, a anhuma, Anhima cornuta, na América portuguesa, ave de porte médio possuidora de um pequeno corno ósseo que ralado, era tal qual o marfim, prescrito pelos médicos e boticários do Brasil contra fins diversos como a mordida da cobra cascavel e de outras serpentes venenosas13 10 SHEPARD, Odell. The Lore of the Unicorn, New York: Courier Corporation, 1930, p. 93. 11 NICHOLS. The complete fragments of Ctesias of Cnidus… p. 215. 12 CERDEÑO SERRANO, María Esperanza; MORRONE, Juan José. Mitos y realidades: El

unicornio y el rinoceronte. Museo, nº 6. Mar del Plata: Fundación Museo La Plata, Universidad Nacional de Mar del Plata, 1995, p. 23-29; ROIG CONDOMINA, Vicente Maria. Rhinoceros versus unicornem. Ars longa: cuadernos de arte, nº. 1, 1990, p.: 81-87; e NICHOLS, Andrew. The complete fragments of Ctesias of Cnidus... p. 215. 13 GOMES, Leonardo Gonçalves. Animais que curam: circulação de saberes e medicamentos

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ou mesmo para devolver a fala14, configurando o que Márcia Ribeiro considerou como sendo uma transferência entre crenças a partir da associação desta ave com o unicórnio, e de seu pequeno corno com se marfim fosse.15 Também a relação das ciências médicas para com a religião durante os séculos XVI e XVII encontraria, no continente europeu, terreno bastante volátil para a utilização do marfim no âmbito dos estudos de Hipócrates. Para que imbróglios entre a fé católica e os estudos médicos não aflorassem em meio às aulas de anatomia datam, dessa época, diversos modelos confeccionados em cera, madeira ou marfim, produzidos na tentativa de colocar fim na utilização de cadáveres nos estudos anatômicos, a destarte da importância do contato do aprendiz de medicina com o corpo humano, conforme apregoava o médico belga Andreas Vesalius (1514-1564).16 Interessante verificar que na ausência do domínio das complexas técnicas artísticas de reprodução de objetos em suportes variados como o marfim, tais peças foram majoritariamente produzidas por artistas que não possuíam qualquer tipo de instrução acerca dos estudos do corpo humano. Não deixa de ser interessante o fato de que tais modelos eram igualmente utilizados por mulheres, em substituição a seus corpos, quando das consultas aos médicos, conforme mencionou Sandra Tacão.17 de origem animal no reino português. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional da ANPUH – Associação Nacional de História. São Paulo: ANPUH-SP, 2011, vol. 1, p. 1-15. 14 “Um cornito de comprimento de um palmo; dizem os naturais que este corno é de grande medicina para os que se lhe tolhem a fala, como já aconteceu que pondo ao pescoço de um menino que não falava, falou logo”. In: CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980, p. 35. 15 RIBEIRO, Márcia Moisés. A Ciência dos Trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 56. Se por um lado a crença no marfim do unicórnio era um hábito cultural estabelecido na Europa desde o medievo, a crença no “marfim” da anhuma se deve, segundo XXX, aos conhecimentos transmitidos aos portugueses a partir dos índios guaianases. Cristina Gurgel afirma, ainda, que para além do pó do chifre da anhuma, este era também utilizado como amuleto. In: GURGEL, Cristina. Doenças e curas: o Brasil nos primeiros séculos. São Paulo: Contexto, 2010, p. 150. 16 O desenvolvimento do estudo anatômico a partir dos estudos de Vesalius pode ser verificado em CHIARELLO, Maurício. Sobre o nascimento da ciência moderna: estudo iconográfico das lições de anatomia de Mondino a Vesalius. Scientiae Studia, São Paulo, vol. 9, n. 2, p. 291-317, 2011; e em SAUNDERS, J. B. de C. M.; O’MALLEY, Charles D. Andreas Vesalius de Bruxelas: De Humani corporis fabrica, Epitome, Tabulae sex. Campinas: Ateliê Editorial/Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, p. 268. 17 TACÃO, Sandra. Arte e Medicina - Representação do Corpo Humano na Colecção Ceroplástica do Museu Sá Penella, Hospital dos Capuchos. Anais do Seminário “O Patrimônio

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O marfim e os cuidados com o corpo no Século das Luzes Durante o século XVIII, grande parte dos profissionais que atuavam nas práticas de cura do corpo e principalmente aqueles que atendiam nas pequenas vilas, freguesias dos sertões da América portuguesa não possuía qualquer qualificação teórica nos estudos médicos. Nas grandes urbes, outro quinhão de profissionais, no entanto, se submetia ao crivo das autoridades camarárias, responsáveis por realizar o controle da habilitação de tais profissionais, autorizando-os ou não para o exercício das funções que pleiteavam, como aconteceu com Domingos Alves Diniz que aprovado para exercer a função de cirurgião em Vila Rica, solicitou àquela Câmara uma licença provisória enquanto aguardava a autorização definitiva vinda de Lisboa.18 E se a racionalização das ciências através do pensamento iluminista se tornou característica marcante durante aquele século, vez ou outra a literatura ainda insistia no emprego do marfim como substância capaz de solucionar problemas diversos do corpo como a melancolia, a febre, a icterícia e a epilepsia, além de ser consideradoantídoto para envenenamentos, como se pode verificar nos clássicos Pharmacopeia Tubalense ou Farmacopéia Lisbonense.19 Em sua Tese, Patrícia Maia se debruça sobre dois documentos de grande importância para a história da medicina setecentista; a Árvore da vida (...), de 1720, de autoria do padre Afonso da Costa da Companhia de Jesus em Goa, e a Coleção de varias receitas (...), de 1766, impresso em Roma, mas de autor desconhecido.20 Tratam-se, basicahospitalar de Lisboa: que futuro?” Lisboa: FA-UTL/CIAUD, dezembro de 2010. 18 Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto, Caixa 07, Documento 37. Requerimento de Domingos Alves Diniz solicitando licença para exercer o ofício de cirurgião, enquanto espera a autorização de Lisboa. Vila Rica, 12 de dezembro de 1734. 19 COELHO, Manoel Rodrigues. Pharmacopeia Tubalense Chimico-Galenica. Roma: Officina de Balio Geredini, 1760. Também PAIVA, Manoel Henriques de. Farmacopéia Lisbonense ou Coleção dos Simples, Preparações e Composições Mais Eficazes e de Maior Uso. Lisboa: Officina Patriarcal de João Procópio Correia da Silva, 1802. 20 COSTA, Afonso da. Arvore da Vida dilatada em vistosos e salutiferos ramos ornados de muitas aprasiveis, e saudiveis folhas, em que se deixaõ nver muitos e singulares remedios assim simplices, como compostos, que a Arte, e experiencia, a industria, e a curiosidade descubrio, para curarcom facilidade quasi todas as doenças, e queixas, a que o corpo esta sogieto, principalmente em terras desitiduas de

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mente, de coleções de receitas médicas compiladas no âmbito das boticas da Companhia de Jesus e que, segundo a autora, “corriam o risco de desaparecer” pela pouca utilização de que eram feitas.21 Ainda que tais opúsculos tenham sido elaborados para a difusão e a salvaguarda dos conhecimentos farmacológicos, é possível averiguar em suas entrelinhas aspectos do cotidiano das boticas inacianas como a utilização de substâncias provenientes de várias partes do império português como o almíscar, a cevada, a salsaparrilha, o “azougue” (mercúrio) e o cravo do Maranhão e da Índia.22 A Collecção de varias receitas, em especial, aponta inclusive as origens das receitas ali descritas. Do “Colégio de Macau, temos 27 remédios; de Évora, seis; de Lisboa, nove; de Goa, duas” e da América portuguesa sessenta e duas, com origem nos colégios da Bahia; de Recife e do Rio de Janeiro.23 Para a grande maioria das receitas, no entanto, não foi apontada a fonte ou o local em que fora adquirida. A publicação apresenta, em claro tom enciclopedista, o medicamento, seu autor, o nome do colégio de origem – se jesuíta ou religioso fosse –, se é uma receita simples ou composta, a origem de seus ingredientes (se animal, mineral ou vegetal), os utensílios utilizados e suas virtudes. A título de exemplo, para se fazer a “água cordial bozoartica”, o autor da receita, o médico português João Curvo Semedo (1635-1719), prescrevia dentre outros ingredientes algumas flores de papoulas vermelhas, arrobe (ou xarope) de sabugo e água. Segundo a receita, era recomendável que, por apresentarem baixa resistência mecânica, tais ingredientes fossem macerados em gral de marfim para depois serem cozidos em uma panela de barro vidrado. O resultado era uma poção recomendada para bexigas e sarampo. A “água perlarum”, utilizada para fortificar os “ácidos” e o sangue, por sua vez, exigia um material mais resistente para que as pérolas, seu principal ingrediente, fossem maceradas, sendo indicado para Medicos e Boticos. Copiados de diversos Authores assim impressos, como manuscriptos, de varias noticias e experiencias vistas e approvadas... Offerecida... pello Padre Affonso da Costa da Companha de Jesus da Provincia de Goa. Província de Goa, c. 1720; ANÔNIMO. Colleccão de varias receitas e segredos particulares das principaes boticas da nossa companhia de Portugal, da India, de Macáo, e do Brazil, 1766. 21 MAIA, Patrícia Albano. Práticas terapêuticas jesuíticas no império colonial português: medicamentos e boticas no século XVIII. São Paulo, 2012, p. 45 (Tese de Doutorado em História, Universidade de São Paulo). 22 MAIA. Práticas terapêuticas jesuíticas, p. 142-222. 23 MAIA. Práticas terapêuticas jesuíticas, p. 61.

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preparo apenas o gral de pedra.24 N’A Árvore da Vida, além da presença do marfim como fármaco, podemos encontra-lo como instrumento, a exemplo da recomendação para o preparo de uma determinada receita que deveria ser formulada com o auxílio de uma faca de marfim, provavelmente para que os compostos não fossem influenciados por metais ou outras substâncias.25 E de fato, os aportes teóricos das memórias e dos escritos médicos portugueses se confirmavam na prática. Em Minas Gerais colonial assim como em toda a América portuguesa, considerável parte “dos medicamentos tinha origem no reino Animal”, conforme demonstrou Júnia Furtado. Enquanto o “sal de víbora era produzido da destilação das cobras previamente secas e indicado para o tratamento de bexigas, paralisia e apoplexia”, todas “consideradas doenças malignas”, o marfim era utilizado como “refrigerante e adstringente em qualquer fluxo de sangue, bem como para expulsar as lombrigas e para impedir a coagulação do leite no estômago”, entre outros exotismos.26 Apesar da ocasionalidade com que o marfim ainda era empregado a título de elemento farmacológico durante o século XVIII, podemos facilmente distinguir certa mudança na utilização desse elemento no âmbito da medicina. Com o avançar dos anos e das “ciências”, o marfim e outros simples27 e substâncias até então consideradas eficazes pela medicina e pela sabedoria popular foram sendo paulatinamente substituídas por compostos e terapias mais modernas e eficazes, de modo que a prescrição do marfim como elemento presente nas fórmulas dos fármacos foi se tornando mais escassa sem que, contudo, o composto fosse em definitivo afastado das boticas, dos hospitais e dos ambientes de cirurgia. Pelo contrário; devido às propriedades físico-químicas que carrega como a rigidez, sua coloração e fineza de acabamento, o marfim continuou a ser utilizado 24 MAIA. Práticas terapêuticas jesuíticas, p. 149. 25 MAIA. Práticas terapêuticas jesuíticas, p. 50, apud COSTA, Afonso da. Advertência 3. Árvore

da Vida, s/p. 26 FURTADO, Júnia Ferreira. Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial. Revista do Arquivo Público Mineiro, vol. 41, jul.-dez. 2005, p. 103-104. 27 Compreendiam os simples as substâncias utilizadas na medicina que não eram processadas quimicamente, a exemplo dos compostos presentes no tratado De Simplicibus (Dos Simples), parte da obra Opera medicinalia, uma compilação de estudos de diversos autores que foi largamente utilizada na Europa até o Renascimento. A terminologia “drogas”, por sua vez, fazia referência aos compostos quimicamente alterados, o que não impedia da terminologia “droga” ser utilizada para designar composto simples.

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nas artes médicas e boticárias com bastante frequência ainda que, sobretudo, em equipamentos e apetrechos diversos. Conforme demonstrou Betânia Figueiredo, os cirurgiões práticos do século XVIII possuíam grande destreza na extração de dentes. A aparência bucal não raro era preocupação de homens e mulheres e sendo o paciente distinto, poderia substituí-los por outros, postiços, que poderiam ser naturais, de outros pacientes, ou ainda talhados em marfim, preteridos por serem bastante alvos28, e que eram fixados aos naturais que ainda se encontravam sãos através de grampos ou fios metálicos, geralmente de ouro.29 Quando não mais nenhum dente natural resistisse às ações do tempo e da falta de higiene, dentaduras inteiras confeccionadas em marfim se revelavam como sendo uma solução para que a arcada fosse restaurada. Para isso, cirurgiões práticos tomavam as medidas da cavidade bucal do paciente de modo a esculpir dentaduras que fossem capazes de guardar a maior similaridade aos dentes naturais perdidos. O resultado era um conjunto que poderia ser possuidor de uma ou duas partes, superior e inferior, unidas por molas e por grampos metálicos e que seriam utilizadas de acordo com a necessidade do paciente – apenas uma das partes, quando a outra ainda estivesse presente ou ambas as partes para uma ausência total de dentes. A importância da atenção que passou a ser dada à saúde bucal também se revela em outros aspectos. Se até então era hábito extrair os dentes em estado precário, o Século das Luzes marca uma série de cuidados que passaram a ser dispensados à saúde bucal e a conservação dos dentes, e não apenas devido a preocupações estéticas. Novos instrumentos de trato mais ameno em detrimento dos robustos boticões passaram a ser elaborados em função de atividades específicas como a limpeza e raspagem do esmalte dental. Sendo estes instrumentos de origem europeia, diferenciados no que toca à propriedade, os muitos fabricantes optaram por perpetuar a fineza e a distinção que só o marfim proporcionava no seu acabamento. Quanto aos males dos olhos, Guilherme Piso (1611-1678), médico e naturalista holandês que integrou os quadros da administração de 28 FILHO, Lycurgo Santos. História geral da medicina brasileira. São Paulo: Hucitec, 1991. 29 FIGUEIREDO, Betânia. A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no

século XIX em Minas Gerais. Rio de janeiro: Vício de Leitura, 2002.

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Maurício de Nassau quando da ocupação holandesa na região Nordeste do atual território brasileiro, baseado nos estudos de Hipócrates, entendia que os males dos olhos eram decorrentes das “pragas meridionais” que acometiam aqueles que se deslocavam para os trópicos.30 No âmbito da farmacopeia setecentista, várias eram as mezinhas que poderiam ser elaboradas para tais achaques. Enquanto os boticários da Amazônia costumavam indicar leite de paracatepu para reestabelecer a visão31, em Goa, um elixir preparado a partir da água destilada das flores da “árvore-triste” (Nyctanthes Arbor-Tristis L.), endêmica das Índias, era considerado excepcional para se lavar os olhos e para o tratamento das vistas.32 Mas se o tratamento farmacológico dos homens se revelasse infrutífero e se mesmo as orações a Santa Luzia, considerada protetora da visão, não se mostrassem satisfatórios, aqueles que dispunham de fazendas poderiam buscar na inovação da técnica e da tecnologia uma solução para reestabelecer o sentido prejudicado valendo-se, pois, do uso de óculos, em lentes simples ou paralelas, por vezes emolduradas em trabalhados marfins ou, para um preço mais acessível, com hastes confeccionadas em metal ou em cascos de tartaruga.33 Se a assistência dos médicos práticos, dos cirurgiões e dos boticários não fosse julgada suficiente para satisfazer as demandas do corpo, nada de mal havia, ainda que de forma discreta, em se partir para crenças populares e sincréticas. Uma figa de ouro, de prata ou de marfim, se rico fosse seu proprietário, era utilizada, segundo Leite de Vasconcelos, “para repelir das gentes, dos animais, e de tudo, a ação nefasta que se julgava 30 PISO, Guilherme. História Natural e Médica da Índia Ocidental. Rio de Janeiro: INL, 1957, p. 89. 31 BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio corográfico sobre a província do Pará. Pará [Belém]: Tipographia de Santos e Menor, 1889, p. 72. 32 CARVALHO, Teresa Nobre de. No rasto da Árvore-Triste (Nyctanthes Arbor-Tristis L.) nos textos botânicos dos séculos XVI e XVII. Workshop Plantas Medicinais e Fitoterapêuticas nos Trópicos. Lisboa: IICT /CCCM, Outubro de 2008. 33 José Moraes dos Santos Neto afirma que os principais centros de produção de óculos durante os séculos XVII e XVIII estavam na Europa, em países como Alemanha, Holanda, França, Espanha e Portugal. Destaca, para além do marfim, o uso de outros elementos na composição deste acessório como o ouro e outras ligas metálicas, mas também a madeira, o couro e ossos e chifres de animais. In: SANTOS NETO, José Moraes dos. História da óptica no Brasil. São Paulo: Códex, 2005, p. 38. De modo geral, apesar de serem identificados, sobretudo em inventários, inúmeros aportes ao uso de óculos na América portuguesa, não há evidências que estes tenham sido confeccionados aqui, sobretudo os de marfim, mas que teriam sido importados das Cortes europeias.

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produzida por certas pessoas e por imaginários espíritos da Natureza, bem como as doenças”.34 Em Salvador, na Bahia, onde do uso de tais instrumentos se fazia mais presente, as pencas de balangandãs, cujos significados foram analisados por Eduardo França Paiva, não dispensavam uma ou várias figas, como aquelas que fazem parte do acervo do Museu Carlos Costa Pinto, muitas das quais confeccionadas com o objeto que aqui temos como mote.35

Nas boticas de lá e nas boticas de cá; o marfim Ainda que o marfim não se configure como uma matéria-prima original de Portugal continental ou de sua conquista na América, são frequentes nos acervos museológicos e particulares lusófonos imagens religiosas, adornos, armas, objetos decorativos e instrumentais confeccionados neste material, conforme afirmou Yacy-Ara Froner,36 mas não só. De volta às boticas, o marfim era neste ambiente composto onipresente e dos instrumentos necessários ao seu funcionamento elencados por Francisco Tavares em seu livro Pharmacopêa Geral para o Reino e domínios de Portugal, de 1794, onde constam garrafas, tachos, alambiques e vasos de boca larga e de boca estreita, dentre inúmeros outros apetrechos. Alguns destes, como as espátulas, pincéis, colheres e facas, também poderiam ser confeccionados como um todo ou em partes em marfim. Não raro almofarizes e suas mãos, também chamados gral e pistilo, eram fabricados neste material. Este conjunto instrumental, em especial, figura como apetrecho essencial nas boticas e eram – e ainda são – recomendados para que se pudesse triturar plantas, resinas e breus com perfeição. Grals e pistilos poderiam ser confeccionados a partir de ALMEIDA JÚNIOR. A. Nos domínios da superstição: mau olhado e figa. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, [s. l.], vol. 31, n. 1, 1935, p. 76, apud VASCONCELLOS, J. Leite de. A figa: magnífica monografia, de que colhemos abundantes informes, 1925. 35 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia: Minas Gerais, 17161789. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 221-222. 36 FRONER, Yacy-Ara. Acervos em marfim: trânsitos, cultura, estética e materialidade. In: MELLO, Magno Moraes. Formas Imagens Sons: O Universo Cultural da obra de arte. Belo Horizonte: Clio Editorial, 2014, p. 130. 34

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matérias primas diversas, desde os mais simples, em pedra ou de faiança, material de trabalho relativamente fácil e considerado pouco dispendioso, ou ainda modelos mais elaborados e diferenciados, confeccionados em marfim, preteridos por possuírem baixa porosidade pelo qual não se perdia parte do medicamento trabalhado, e por distinguirem seus proprietários pela nobreza do material, dispendioso para ser adquirido em alguns domínios do império português. De fato, o cenário descrito por Tavares pode ser verificado em várias boticas, fossem elas reinóis ou coloniais. Ao tratar da atenção à saúde nos conventos portugueses, Ricardo Oliveira elencou apetrechos e instrumentos de marfim presentes em vários monastérios. Na botica pertencente ao Convento de São Francisco de São João da Pesqueira, por exemplo, foram encontrados dois almofarizes de marfim com uma mão de madeira. No Convento dos Religiosos Carmelitas Descalços de Tavira, um gral, uma faca e duas espátulas no mesmo material. No Convento de São Domingos, em Lisboa, dois grals e uma espátula. O Convento dos Carmelitas Descalços de Nossa Senhora da Piedade, em Cascais, por sua vez, era possuidor de dois almofarizes em marfim.37 Sendo estes exemplos de materiais de feitio primário, outros tantos mais elaborados também vinham à luz como determinada peça em marfim que compunha um microscópio de fabricação inglesa oferecido à Universidade de Coimbra no ano de 1731 por Jacob de Castro Sarmento, médico judeu de origem lusa radicado em Londres e que foi, inclusive, nesta mesma época, responsável pelo primeiro projeto de um jardim botânico para a Universidade de Coimbra, o qual não se concretizou.38 Se por um lado tais apontamentos se constituem apenas como exemplos pontuais, por outro nos revelam a presença constante de tal material assumindo diversas formas e préstimos nas múltiplas instalações boticárias metropolitanas. Também Russel-Wood verificou a presença do marfim na América portuguesa, quase sempre associado a tantos outros elementos exóticos das boticas como o cravo, o âmbar, o incenso e o gengibre, pro37 OLIVEIRA, Ricardo Pessa de. Para o estudo da saúde conventual no início do século XIX: as boticas. Asclepio. Revista de Historia de la Medicina y de la Ciencia, 2011, vol. LXIII, n. 1, enero-junio 2011, p. 141, 143, 149 e 153, respectivamente. 38 O microscópio encontra-se no acervo do Museu de Ciência da Universidade de Coimbra sob número de inventário V.IV.358, de 1788.

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venientes das Índias, ou ainda o almíscar e a malagueta, com origem nos portos africanos,39 e de fato é elemento presente quando da leitura do Regimento dos preços por onde os boticários das Minas do Ouro Preto hão de vender seus medicamentos, de 1729, instrumento que propunha regular a venda de produtos por parte das boticas e dos boticários na capitania de Minas Gerais e que regulava a venda do marfim a doze vinténs a onça.40 Além de ser utilizado como composto na farmacopeia colonial, o marfim também era encontrado em inúmeros apetrechos nas diversas boticas da América portuguesa. Leite verificou que no Estado do GrãoPará, a botica do colégio jesuítico do Maranhão, considerada bem equipada à época ainda que provavelmente menos provida que as boticas dos colégios do Rio de Janeiro e da Bahia, era possuidora de duas mãos de marfim, as quais deveriam servir a dois almofarizes que ali existiam, um em mármore e outro em ferro. Cerca de 30 tomos de medicina e de farmacologia instruíam aos profissionais que naquele colégio trabalhavam.41 Para o Colégio do Pará, em Belém, Leite verificou a existência de um grau de marfim que, paralelo a outros cinco de pedra, mais rústicos, também serviam para macerar matérias-primas para medicamentos.42 A importância geopolítica do Estado do Brasil e principalmente das regiões da Bahia, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais fizeram com que elementos de marfim se mostrassem muito mais difusos nas práticas médicas e boticárias destas regiões, reflexo de um acesso mais facilitado dos moradores de tais praças comerciais a produtos importados de outras conquistas lusas. O envio de marfins desde o Rio de Janeiro para Lisboa, por exemplo, nos revela que eventualmente a América portuguesa servia como porto intermediário para este e talvez para outros produtos oriundos da África. Conseguimos localizar apenas no ano de 1772 quatro remessas distintas que comportavam o envio de centenas de presas em estado bruto; 67 para determinado carregamen-

39 RUSSEL-WOOD, Anthony John. Um mundo em movimento: os portugueses na Ásia, África e América (1415-1808). Lisboa: Difel, 1992, p. 196-198. 40 Arquivo Histórico Ultramarino, Seção Rio de Janeiro, Cx. 45, Doc. 10612. COSTA, Manuel da. Regimento dos preços por onde os boticários das Minas do Ouro Preto hão de vender seus medicamentos. 41 LEITE, Serafim. Artes e Ofícios dos Jesuítas no Brasil (1549-1760). Rio de Janeiro: Brotéria; Lisboa: Livros de Portugal, 1953, p. 92, apud Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasil, 28, 27. 42 LEITE, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil, p. 93.

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to43, 150 para outro44, expressivos 473 para um terceiro45 e o equivalente a 150 réis em marfins brutos para um quarto e último carregamento daquele ano.46 Outras fontes nos revelam que já no avançado ano de 1810, quando começava a declinar a oferta deste produto, “segundo as contas oficiais”, haviam passado pelas cidades de “São Paulo de Assunção e de São Felipe de Benguela”, entre os anos de 1774 a 1808, a quantia de 114:748$970 reis em marfim, que desembarcavam no porto de Lisboa com o preço médio de “800 reis por libra”.47 Evidencia-se também, por meio destas informações, que o trânsito de marfins através do Atlântico desde a África para o reino passando, eventualmente, pela América perdurou durante boa parte do século XVIII e é nesse contexto que vamos verificar, ao longo deste recorte histórico, a existência de uma pluralidade de utensílios confeccionados em marfim em várias boticas mineiras. As boticas mais estruturadas eram, pois, aquelas pertencentes às instituições de assistência à saúde, como as Santas Casas de Misericórdia. De certo modo é natural pensar que tais estabelecimentos possuíam melhores estruturas em função dos aportes financeiros oriundos das Câmaras, mas também de recursos advindos de irmandades re43 AHU, Rio de Janeiro, Cx. 102, Doc. 108. Ofício do [auditor-geral da Marinha], desembargador José Roberto Vidal da Gama, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro], remetendo a lista de carga de açúcar, couro, arroz, madeira e marfim, transportados pelo navio Nossa Senhora do Rosário e São Domingos, de que é capitão Francisco de Carvalho dos Santos, vindo do Rio de Janeiro. Lisboa, 10 de março de 1772. 44 AHU, Rio de Janeiro, Cx. 103, Doc. 22. Ofício do [auditor-geral da Marinha], desembargador José Roberto Vidal da Gama, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro], comunicando a inspeção ao navio Santo Antônio da Estrela e Nossa Senhora da Ajuda, de que é capitão Manoel José Viana, remetendo carga de açúcar, couro, marfim e aguardente de cana, transportada pelo dito navio do Rio de Janeiro para Lisboa. Lisboa, 25 de agosto de 1772. 45 AHU, Rio de Janeiro, Cx. 103, Doc. 61. Ofício do [auditor-geral da Marinha], desembargador José Roberto Vidal da Gama, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro], remetendo relação da carga de açúcar, melado, aguardente de cana, couro, marfim, enxofre e outros produtos que transportou, do Rio de Janeiro para Lisboa, o navio Santa Ana Carmo e São José, de que é capitão José Gomes, mencionando os passageiros transportados. Lisboa, 23 de dezembro 1772. 46 AHU, Rio de Janeiro, Cx. 102, Doc. 10. Ofício do [auditor-geral da Marinha], desembargador José Roberto Vidal da Gama, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro], comunicando a inspeção à carga de açúcar, goma, couros e marfim, transportada pelo navio Nossa Senhora da Oliveira, São José e Santa Ana, de que é capitão Francisco Lopes Xavier, vindo do Rio de Janeiro para Lisboa. Lisboa, 20 de março de 1772. 47 Noticia sobre a compra e remessa do marfim de Angola, extrahida de Documentos Oficiaes, O Patriota – Jornal Literário, Político, Mercantil & Comercial do Rio de Janeiro, nº 3. Rio de Janeiro: Impressão Régia, março de 1813, p. 105-106.

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ligiosas, de particulares e da administração de bens móveis e imóveis (escravos e residências de aluguéis, por exemplo), fazendo com que suas boticas se mostrassem, quase sempre, à frente das particulares. Na botica da Santa Casa de Misericórdia de São João del-Rei, por exemplo, o marfim se fazia presente na forma de “2 espátulas de marfim”, como demonstrou Maria Leônia chaves de Resende.48 Mas também nas pequenas casas boticárias das urbes mineiras ou nas maletas de instrumentos dos práticos cirurgiões que atendiam seus pacientes nas ruas podemos constatar a existência de materiais confeccionados em marfim. No inventário do boticário Francisco Marcos de Almeida, morador de Vila Rica, podemos verificar como se constituía uma pequena ainda que bem dotada botica colonial mineira. Nele foram arrolados, dentre outros objetos, “folhas de flandres”, “jarros e frascos da Índia”, “espátulas de ferro e de latão” e um “almofariz” acompanhado de seu “grau de marfim”, além de alguns livros sobre assuntos médicos.49 O naturalista e botânico Joaquim Veloso de Miranda, natural do Inficionado e morador em sua fazenda do Mau Cabelo, em Ouro Branco, também possuía um agulhão de marfim arrolado entre outros tantos itens de sua botica.50 Convém chamar a atenção, contudo, para a presença de objetos confeccionados em marfim de uso médico e botânico nas mãos de proprietários que não desenvolviam tais atividades, como uma tal Inês Dias, de São Paulo, que em 1655, quando de sua morte, teve inventário lavrado constando no mesmo um curioso “gral de marfim”.51 Além deste, outros tantos instrumentos como pentes, almofarizes e talheres com cabos em marfim podem ser encontrados em testamentos e inventários – muitos dos quais relacionados a comerciantes – em outras tantas urbes coloniais, sobretudo em Minas, como bem referenciaram Eduardo França Paiva, Vanicléia Silva Santos e Yacy-Ara Froner.52 48 RESENDE, Maria Leônia Chaves de; SILVEIRA, Natália Cristina. Misericórdias da Santa Casa: um estudo de caso da prática médica nas Minas Gerais oitocentista. História Unisinos, vol. 10, nº 1, jan./abr. 2006, p. 12. 49 FURTADO. Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial... p. 101-102. 50 AHCPOP, 2º Ofício, Cód. 34, Auto 380. Inventário de Joaquim Veloso de Miranda. Vila Rica, 1816, fl. 20v. 51 BRUNO, Ernani Silva. Equipamentos, usos e costumes da casa brasileira: Objetos. São Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2001, p. 178. 52 FRONER, Yacy-Ara; PAIVA, Eduardo França; e SANTOS, Vanicléia Silva. Acervos em marfim em Minas Gerais: documentos, trânsitos e materialidade. E-hum. Belo Horizonte, vol. 8, n. 2, Agosto/Dezembro de 2015, p. 131.

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Para além dos aspectos circunscritos à saúde, a curiosidade que os letrados europeus apresentavam pelos produtos das conquistas que eram remetidos à Europa resultou em um intercâmbio de espécies vegetais e animais sem precedentes, assunto corrente na história das ciências53 e que também vem sendo mote de estudos por parte da historiografia luso-brasileira.54 Nesse ínterim, o interesse sobre o marfim no âmbito da História Natural também pode ser verificado entre os nobres europeus, sendo o envio de elefantes vivos desde a África para Portugal um reflexo do misto de admiração e curiosidade que rondavam o produto e o animal que o fornecia. Muitas dessas remessas encontravam no Rio de Janeiro, em Salvador e no Recife local de passagem, pois eram considerados importantes portos de embarque e “desembarque das naus rumo ao Oriente e ao reino”, e “importante centro de difusão” e de trânsito de amostras da História Natural das conquistas ultramarinas lusas.55 Em 1761, o governador da capitania do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, Gomes Freire de Andrade (1685-1763) escreveu um ofício ao então Primeiro Ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), in53 CROSBY, Alfred. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa (900-1900). São

Paulo: Companhia das Letras, 2011; THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 54 FILHO, Oswaldo Munteal; MELO, Mariana Ferreira de. Minas Gerais e a História Natural das Colônias: política colonial e cultura científica no século XVIII. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2004; VARELA, Alex Gonçalves. Atividades científicas na “Bela e Bárbara” capitania de São Paulo (1796-1823). São Paulo: Annablume, 2009; DOMINGUES, Ângela Maria Vieira. Viagens científicas de exploração à Amazônia em finais do século XVIII. Ler História, ISCTE, (19), 1990; _____. As remessas das expedições científicas no Norte brasileiro na segunda metade do século XVIII. Nas vésperas do mundo moderno. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992. 55 PATACA, Ermelinda Moutinho.  Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808). Campinas: Universidade de Campinas, 2006, p. 347 (Tese de Doutorado em Geociências, Universidade Estadual de Campinas). Ao contrário do que fez a Inglaterra, prevendo a necessidade de que todo o comércio entre suas conquistas fosse obrigatoriamente intermediado por Londres, Portugal ofereceu, durante o século XVIII, maior liberdade para que suas conquistas mantivessem relações comerciais entre si, gerando certo desagrado nas elites reinóis que controlavam tal mercado: “... Porque depois que dos portos de Portugal passou para o Brasil todo o comércio da costa da África... [os americanos] já se não contentam com esta vantagem, mas querem, Independentemente da mesma metrópole, ter no seu próprio continente e imediatamente dos portos [da Ásia]…” In: CHAVES JÚNIOR, José Inaldo. “Por ser Pernambuco tão chegado”: anexação, governos e mercados ultramarinos na Capitania da Paraíba (1791-1799). Almanack. Guarulhos, nº 08, p. 120-141, 2º semestre de 2014, p. 122, apud AHU – Brasil, doc. 1976 (c.1777). Devo a Dra. Érika de Almeida Dias (UNL/CHAM) o acesso a esta importante fonte.

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formando a chegada ao porto do Rio de Janeiro de um casal de elefantes remetidos pelo general do Reino de Angola, como um presente para a Família Real no reino. Dizia ainda o governador que os animais dariam prosseguimento à viagem em uma nau aos cuidados de seu irmão, José Antônio Freire de Andrade (1708-1784), com todos os mantimentos necessários à sua sobrevivência. Em outra remessa, realizada em 1763 e que teve o porto do Recife como porto de passagem, o governador da capitania de Pernambuco, Luis Diogo Lobo da Silva (1717-?), dava contas ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1769), da remessa de um elefante, de pássaros e de galinhas de Angola que seguiam para Lisboa embarcados na charrua São José.56 Tal processo, para além de ato de louvor ou adulação, vinha ao encontro das demandas da nobreza portuguesa, ávida por manter em seus museus, herbários, jardins botânicos e viveiros espécies da flora e da fauna de suas conquistas, também refletidas nas centenas de remessas realizadas por delegados coloniais e naturalistas, sobretudo ao longo da segunda metade do século XVIII.

Considerações finais A partir destes poucos exemplos pontuais é possível inferir que o marfim veio a assumir, no âmbito da física, funções múltiplas de acordo com recortes históricos igualmente distintos. Se quando do início das Arquivo Histórico Ultramarino, Seção Pernambuco, Cx. 99, Doc. 7758. Ofício do governador da capitania de Pernambuco, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, dando conta da remessa de um elefante, pássaros e de galinhas de Angola, que seguiam para Lisboa embarcados na charrua são José. Recife, 16 de abril de 1763. Presentes e agrados dessa natureza aparentemente foram uma constante entre os governadores das conquistas. Em outro momento, Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (1726-1780), governador de Angola, não se furtou a enviar a Lisboa “um leão branco capturado quando passeava à noite pelas ruas de Luanda”. Em 1776, uma correspondência enviada à Lisboa informava que o leão estava ainda vivo e a caminho, “na passagem pela Bahia, e que ia remeter zebras pela mesma rota”. In: CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. As viagens são os viajantes: dimensões identitárias dos viajantes naturalistas brasileiros do século XVIII. História: Questões & Debates. Curitiba, nº. 36, 2002, p. 80, apud Boletim do Arquivo Histórico e da Biblioteca do Museu de Angola, nº. 11, 1954, p. 7. 56

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grandes navegações o marfim, a partir das influências médicas clássicas e hindus, foi apropriado pela medicina europeia como um importante e promissor composto, viria a receber, a posteriori, outras colocações, não deixando de estar presente nas fórmulas dos fármacos, mas assumindo, nas boticas, papel instrumental na preparação das mezinhas e prescrições. Evidentemente tal transformação não foi unânime em todos os domínios lusos de modo que vez ou outra é possível encontrar, ainda que de forma isolada, a utilização do marfim como composto, inclusive no século XVIII, seja nas boticas do reino ou nas mezinhas preparadas por boticários e cirurgiões práticos nos sertões das Minas Gerais. Ao constatarmos que o trânsito de marfins entre as conquistas em África e a Europa passando pela América portuguesa teria vigorado durante toda a modernidade e adentrando os primeiros anos do século XIX, outras questões são suscitadas: o marfim utilizado na farmacologia como composto assim como os objetos usados nas atividades correlatas como espátulas, facas, almofarizes e suas mãos teriam sido importados prontos desde a Europa ou confeccionados na América portuguesa? haviam trabalhadores especializados para lavrar o marfim de acordo com as necessidades dos boticários, físicos e de demais profissionais que cuidavam da saúde alheia? Convém lembrar que houve desembarque de marfim em estado bruto nos portos do Atlântico brasileiro, mas ainda não foram identificados artífices no Brasil que se dedicavam a trabalhar o marfim para atender tais demandas. Portanto, a hipótese mais provável é que estes objetos possam ter sido importados desde a Europa já prontos, o que talvez justifique sua ocasionalidade, pois eram encontrados quase sempre em número restrito. Apesar desta dúvida, figura a certeza de que os profissionais envolvidos com a cura dos males do corpo tanto em Portugal quanto em sua conquista na América souberam muito bem se apropriar deste material.57 Finalmente, apesar de cientes de que instrumentos confeccionados como um todo ou com partes em marfim foram, no âmbito 57 Ver, por exemplo, Arquivo Histórico Ultramarino, Seção Rio de Janeiro, Cx. 25, Doc. 2108. Ofício do [juiz da visita do ouro], Pedro Duarte da Silva, ao [secretário de estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra, D. Miguel Pereira Forjaz Coutinho], sobre a visita feita ao bergantim Boa união (...) transportando fazenda, anil, algodão, seda, pimenta (...) café e marfim. Lisboa, 9 de janeiro de 1818.

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da física e das artes boticárias, utilizados tanto em Portugal quanto em seus domínios na América, há hoje grande dificuldade em localizá-los seja pelo fato de que não mais existem ou mesmo pela falta de informações minuciosas sobre a composição dos mesmos, por parte das instituições museológicas.58

58 Para a comunicação que gerou este estudo, procuramos localizar instrumentos utilizados nas

artes da física e da boticária ou ainda demais produtos relacionados a tais profissões conquanto fossem confeccionados parcialmente ou integralmente em marfim. Apesar dos contatos realizados com múltiplas instituições como o Museu de Artes e Ofícios e o Centro de Memória da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte; o Museu da Inconfidência, em Ouro Preto; o Museu Salles Cunha da Associação Brasileira de Odontologia e o Museu Histórico Nacional, do Rio de Janeiro, e o Instituto Museu e Biblioteca de Odontologia Dr. Elias Rosenthal, de São Paulo, não obtivemos resultados concretos, principalmente no que se refere à composição dos instrumentos sob a guarda das mesmas.

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Capítulo 10 “Facas, garfos, sinete e leque de marfim”: cultura material e diferenciação social em Guarapiranga (Minas Gerais, século XIX) Guilherme Augusto do Nascimento e Silva

Apresentação O presente artigo tem por objetivo proceder à análise da cultura material e dos costumes e práticas de consumo da elite agrária da Freguesia de Guarapiranga, Termo de Mariana, província de Minas Gerais, na primeira metade do século XIX, com foco nos bens e objetos que proporcionavam sofisticação e diferenciação social aos seus donos, em especial os manufaturados e esculpidos em marfim. A fonte primordial para estudarmos estes aspectos são os inventários post-mortem. Ana Luiza de Castro Pereira salienta que estes documentos “foram um importante instrumento na percepção do significado que a circulação humana e material assumiu ao longo da História”1, sendo assim essenciais para se estudar a posse e formas de utilização de bens materiais. Sobre o emprego deste tipo de fonte para o estudo da cultura material, Yacy-Ara Froner, Eduarda França Paiva e Vanicléia Silva Santos afirmam: Os estudos sobre cultura material, circulação de objetos, usos que deles se fizeram, sobre a constituição de gostos e de gestos que lhes atribuíram valores e justificaram sua procura, seu comércio e sua ostentação têm nos testamentos e inventários post-mortem importantes fontes de informação. Esta docu1 PEREIRA, Ana Luiza de Castro. ‘“Lençóis de linho, pratos da Índia e brincos de filigrana”:

vida cotidiana numa vila mineira setecentista’. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, volume 24, n. 48, julho-dezembro de 2011, p. 332.

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mentação, profusa, seriada e bem organizada nos arquivos de Minas Gerais-Brasil, não apenas traz a descrição dos objetos, mas descreve associações que se faziam, arrola circuitos pelos quais eles passaram e, ainda, apresenta seus usuários de primeira ordem, assim como os que os herdaram. Enfim, as fontes documentais são privilegiadas para se mergulhar no universo material desse passado e acessar a vida privada de indivíduos e de grupos que os cultivaram.2

Existe um rico acervo desta documentação para a região enfocada, que está arquivado na Casa Setecentista de Mariana e no Fórum da cidade de Piranga. Acervo do qual utilizaremos alguns inventários de membros da elite piranguense possuidores de objetos confeccionados em marfim. Importante centro minerador e de expansão agrária durante o século XVIII, Guarapiranga foi relativamente negligenciada pela historiografia. Até recentemente, eram escassos os estudos acadêmicos que trabalhavam especificamente a Freguesia de Guarapiranga (posterior vila de Piranga), localizada ao sul da cidade de Mariana e geograficamente conformada pelo vale do rio Piranga.

2 FRONER, Yacy-Ara; PAIVA, Eduardo França; SANTOS, Vanicléia Silva. Acervos em

marfim em Minas Gerais: documentos, trânsitos, estética, materialidade. Artigo apresentado no ECAS – 6th EUROPEAN CENFERENCE ON AFRICAN STUDIES, Paris, julho de 2015, p. 4.

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Figura 1 – Mapa de Minas Gerais no século XIX. In: KANANOJA, Kalle. Central African Identities and Religiosity in Colonial Minas Gerais. Finland: Åbo Akademi University, 2012, p. ii. (Adaptado).

Entretanto, nos últimos anos bons trabalhos vêm surgindo, mudando este quadro com pesquisas de qualidade sobre variados temas da história social mineira, tendo como fonte principal os inventários post-mortem.3 3 Cf.: LEMOS, Gusthavo. Aguardenteiros do Piranga: família, produção da riqueza e dinâmica

do espaço em zona de fronteira agrícola, Minas Gerais, 1800-1856. Dissertação (mestrado), Universidade Federal de Minas Gerais, 2012. LOPES, Luiz Fernando Rodrigues. Vigilância, distinção & honra: os familiares do Santo Ofício na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga – Minas Gerais (1753-1801). Dissertação (mestrado), Universidade Federal de Juiz de Fora, 2012. ANDRADE, Mateus Rezende de. Compadrio e Família em zona de fronteira agrícola: as redes sociais da elite escravista, freguesia de Guarapiranga (c1760-c1850). Dissertação (mestrado), Universidade Federal de Minas Gerais, 2014. SILVA, Guilherme

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A importância da freguesia para a província mineira pode ser demonstrada por meio de uma economia escravista amplamente diversificada e dinâmica, com produção de açúcar, cachaça e de diversos gêneros alimentícios voltados para a subsistência e para o atendimento do mercado interno, além de uma nascente indústria têxtil. Entre os tipos de atividade econômica, a produção agrícola foi primordial na freguesia, em relação à pecuária e extração mineral. Dentre estas atividades agrícolas, predominou o cultivo da cana de açúcar e a produção de seus derivados: açúcar, aguardente e rapadura.4 As pesquisas indicam que a região de Piranga estava em pleno desenvolvimento no decorrer do Oitocentos, reforçando a historiografia que aponta uma economia dinâmica nas Minas, desvinculada em certo grau dos setores agroexportadores, com ampla e variada produção de gêneros alimentícios, enquadrando-se em uma agricultura mercantil de alimentos.5 A historiografia relativa a Minas oitocentista superou há anos a teoria da decadência econômica após o fim do ciclo minerador. Nesta direção, a discussão acerca da economia escravista mineira no século XIX sofre uma grande reformulação a partir dos estudos de Roberto Martins, seguido dos trabalhos de Robert Slenes e de Douglas Cole Libby, que demonstraram a importância do mercado interno para o dinamismo econômico da província, baseada em atividades agrícolas, mineradoras e proto-industriais.6 A revisão historiográfica iniciada por estes trabalhos pioneiros descortinou aspectos da história mineira que não eram antes imaginados, contribuindo para que novos estudos, de diferentes temáticas históricas, surgissem, sobretudo a partir do viés metodológico da história quantitativa, utilizando fontes como as listas nominativas, os registros paroquiais e os inventários post-mortem. Deste modo, acreditamos que o estudo da cultura material dos mineiros no século XIX pode trazer grandes contribuições para o entendimento desta nova realidade econômica, ao trabalhar com os padrões de consumo de bens dos habitantes Augusto do Nascimento e. Os laços da escravidão: população, reprodução natural e família escrava em uma vila mineira. Piranga, 1850-1888. Dissertação (mestrado), Universidade Federal de São João Del-Rei, 2014. 4 LEMOS. Aguardenteiros do Piranga. 5 SILVA. Os laços da escravidão, p. 37. 6 SILVA. Os laços da escravidão, p. 35-37.

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da província, principalmente das elites escravistas; tanto quanto o inverso, ao tentarmos perceber como a dinâmica da economia influenciou e definiu novos hábitos na população.

Cultura material na historiografia Habitação, alimentação, vestuário, técnicas. São estes os temas básicos dos estudos sobre cultura material. Temas estes intimamente ligados à vida cotidiana, hábitos e costumes dos homens. Mas a noção de cultura material ainda necessita de uma definição clara. Isto porque, segundo Jean-Marie Pesez, os estudiosos que mais a utilizam – historiadores e arqueólogos – empregam-na como se os termos que a compõe bastassem para defini-la. Mas o autor defende que não é seguro tratar a expressão como se fosse óbvia a sua definição.7 Bucaille e Pesez afirmam que, por ser “demasiado imprecisa para ser um conceito, a ideia de cultura material continua a ser uma noção”.8 Os autores salientam que a expressão específica restringe os diversos aspectos que compõe a noção, não conseguindo dar conta de sua totalidade. Desta forma, reduzem estes aspectos a quatro características principais, duas ligadas ao termo “cultura” e duas ligadas ao termo “material”. As duas primeiras dizem respeito à cultura do coletivo, contrapondo-se à individualidade. Quando se fala em cultura material, pensa-se no estudo de grupos humanos, é a dimensão do majoritário e do coletivo que ressaltam. Está ligada ao que é constante e estável na sociedade. O estudo da cultura material dedica-se, pois, aos fatos que, por serem repetitivos, podem ser interpretados como hábitos e tradições reveladores de uma cultura.9

7 PESEZ, Jean-Marie. “História da cultura material”. In: LE GOFF, Jacques. A História nova.

5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 241.

8 BUCAILLE, Richard e PESEZ, Jean-Marie. “Cultura Material”. In: BUCAILLE, Richard

e PESEZ, Jean-Marie. Homo-domesticação: cultura material. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989, p. 45. 9 BUCAILLE; PESEZ. Cultura Material, p. 21-22.

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As duas últimas características são as que determinam este campo de pesquisa. Os autores buscam na infraestrutura os aspectos materiais que explicam a cultura. Neste sentido, fazem referência aos objetos concretos, únicos documentos seguros onde podemos estudar estes fenômenos, na medida em que transmitem da melhor maneira a cultura material.10 Heterogênea e rica em matizes, a noção acabou sendo utilizada por diversos ramos das ciências sociais, principalmente a Arqueologia, a Antropologia e a História.11 Quanto à última, Marcelo Rede argumenta que os contatos dos historiadores com a cultura material foram esporádicos e fragmentários, ao contrário do que acontecia com Arqueologia e Antropologia.12 A escola dos Annales introduziu a cultura material no horizonte do historiador13, embora Marcelo Rede argumente que a noção não foi levada a sério como elemento da operação historiográfica. Para este pesquisador, os trabalhos dos membros desta escola historiográfica incorporaram a temática e comemoraram o crescimento das fontes trazidas a reboque; por outro lado, não forneceram as reflexões teóricas e os procedimentos metodológicos necessários.14 Esta história da cultura material, da vida material das populações, se entrelaça e se funde com a história do cotidiano.15 Neste sentido, Peter Burke afirma que não “seria possível uma história da vida cotidiana sem as evidências da cultura material, assim como a história da cultura material seria ininteligível se esta não fosse colocada no contexto da vida social cotidiana”.16 10 BUCAILLE; PESEZ. Cultura Material, p. 24. 11 REDE, Marcelo. História e Cultura Material. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS,

Ronaldo (orgs.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 133-150. Aqui, Rede traça o percurso da noção nas pesquisas arqueológicas e antropológicas, identificando os principais autores que debateram o tema desde o século XIX 12 REDE, Marcelo. História e Cultura Material, p. 142. Bucaille e Pesez fizeram afirmações neste sentido, ao notarem que a cultura material foi relegada a um segundo plano pela historiografia, que lhe concedeu um interesse limitado. BUCAILLE; PESEZ. Cultura Material, p. 26. 13 O maior exemplo é a obra de BRAUDEL, Fernand. Civilização Material e Capitalismo: séculos XV-XVIII. Lisboa, Edições Cosmo, 1970, Tomo I. 14 REDE, Marcelo. História e Cultura Material, p. 142. 15 LE GOFF, Jacques. A história do quotidiano. In: DUBY, George; et alli. História e Nova História. Lisboa: Teorema, 1986, p. 74. 16 BURKE, Peter. A cultura material na obra de Gilberto Freyre. In: FALCÃO, Joaquim e ARAÚJO, Rosa Maria B. de. O Imperador das idéias: Gilberto Freyre em questão. Rio de Janeiro:

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Muito antes do interesse historiográfico pela cultura material despertado e difundido pela escola dos Annales, no Brasil já se realizavam pesquisas que davam atenção especial aos temas relacionados a esta noção, mesmo que não utilizassem a expressão específica.17 Nos anos 1980, as concepções da historiografia francesa ganharam grande espaço no meio universitário brasileiro, com a difusão de novas teorias e metodologias. Também se introduziu uma nova visão em relação às fontes de pesquisa, alargando o espectro documental a ser utilizado pelo historiador. Pesquisas com viés fortemente quantitativo ganharam projeção no espaço acadêmico brasileiro, e os estudos sobre família, riqueza e cotidiano, por exemplo, se solidificaram. Neste momento, ainda não havia a preocupação de estudar a cultura material de forma específica. Mas estas pesquisas, notadamente as de cunho demográfico e da História da Família, criaram as bases teóricas e metodológicas para os estudos posteriores sobre riqueza e cultura material do passado colonial e imperial brasileiro.18 Apesar de ter alargado o seu espaço de atuação, na historiografia brasileira poucas pesquisas enfocaram exclusivamente a problemática histórica da cultura material. Os estudos se voltaram mais para questões como a riqueza/pobreza, transmissão de heranças, organização familiar e a cultura material aparecia de forma complementar nestas análises.19 Cláudia Martinez destaca a existência de diversos trabalhos que tratam destes temas em diferentes regiões e localidades do país, mas salienta que os mesmos se pautam em problemas históricos distintos, com proToopbooks, 2001, p. 68. 17 Remontando ao início do século passado, algumas obras se tornaram referência para os estudiosos que se dedicam a este tema: ABREU, Capistrano. Capítulos de história colonial. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Publifolha, 2000. MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006. HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 3ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 18 MARTINEZ, Cláudia Eliane Parreiras Marques. Cinzas do passado: riqueza e cultura material no vale do Paraopeba/MG (1840-1914). Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2006, p. 36. 19 Conferir, entre outros: FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor – Esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro – Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.

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postas teóricas e metodológicas específicas, tendo contribuições limitadas aos estudos sobre cultura material.20 Por outro lado, enfatizamos as importantes contribuições trazidas para este campo pela revista Anais do Museu Paulista, publicação amplamente pautada por estudos da cultura material e que desenvolve novas problemáticas de estudo.21 Dentre as seções que a compõem, podemos encontrar a intitulada “Estudos de Cultura Material”, que publica artigos relacionados diretamente com esta temática, abrangendo recortes temporais e espaciais os mais diversos.22 A seção “Bibliografia” apresenta resenhas e balanços historiográficos, trazendo análises e discussões teóricas e metodológicas relacionadas com os temas mais abordados pela revista. Dentre estes, podemos destacar as contribuições de Marcelo Rede, Ulpiano T. Bezerra de Meneses e Vânia Carneiro de Carvalho, que tiveram importante impacto nas reflexões e pesquisas sobre cultura material no Brasil.23 Entretanto, ainda há uma carência de pesquisas de cultura material que tratem especificamente de objetos em marfim. Neste sentido, tentaremos fazer um estudo, ainda que parcial, das características da vida material da elite piranguense, com enfoque nos objetos de luxo24 20 MARTINEZ. Cinzas do passado, p. 39. 21 A partir de 1993, a revista, sob direção de Ulpiano T. Bezerra de Meneses, passou a publicar

uma nova série com o subtítulo “História e Cultura Material”. No site do Museu Paulista encontram-se todas as edições dos Anais. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2017. 22 Entre as dezenas de artigos sobre cultura material publicados, referenciamos a seguir alguns que trabalham com recortes temporais próximos ao abordado por nossa pesquisa. Cf.: LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. Transformações do espaço habitacional ocorridas na arquitetura brasileira do século XIX. In: Anais do Museu Paulista. N. Sér. n.1. 1993. BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. Laços familiares e aspectos materiais da dinâmica mercantil na cidade de São Paulo (séculos XVIII e XIX). In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.18. n.1. p. 11-41. jan.- jun. 2010. MENESES, José Newton Coelho. Pátio cercado por árvores de espinho e outras frutas, sem ordem e sem simetria: O quintal em vilas e arraiais de Minas Gerais (séculos XVIII e XIX). In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.23. n.2. p. 69-92. jul.- dez. 2015. 23 Cf.: REDE, Marcelo. História a partir das coisas: tendências recentes nos estudos de cultura material. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.4 p.265-82 jan./dez. 1996. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A Psicologia Social no campo da cultura material. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.4 p.283-90 jan./dez. 1996. CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e cultura material: uma introdução bibliográfica. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. vol. 8/9. p. 293-324 (2000-2001). Editado em 2003. 24 Segundo Luciana da Silva, compreende-se por “peças de luxo aquelas que, não apenas raras, eram valiosas e carregavam signos de distinção, fosse pela dificuldade de acesso a essas peças, ou pela sua origem diferenciada, ou mesmo pelas matérias-primas empregadas em seu feitio. Ou seja,

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e sofisticação, com especial atenção aos objetos em marfim. Para isto, utilizaremos os inventários post-mortem de alguns membros da elite econômica local da primeira metade do Oitocentos.

Cultura material em Guarapiranga Após estas considerações, empreenderemos a análise da cultura material de dois dos maiores senhores de escravos da Freguesia de Guarapiranga, o cirurgião-mor Antonio Pedro Vidigal de Barros e o coronel Jose Justiniano Carneiro, inventariados nos anos de 1839 e 1841, respectivamente. Os dois possuíam as maiores fortunas que encontramos nos inventários de Guarapiranga da primeira metade do século XIX.25 Através de seus bens materiais, é possível afirmar que os membros da elite desta localidade estavam inseridos em uma rede de comércio global, em busca de status social mais elevado através da obtenção e ostentação de sofisticados utensílios domésticos e pessoais, como tecidos, louças, talheres e móveis, alguns dois quais esculpidos em marfim. Itens estes que serão analisados em separado mais à frente. Em maio de 1839 falecia o cirurgião-mor Antonio Pedro Vidigal de Barros, português, natural da freguesia de São Miguel de Panella, comarca de Coimbra. Proeminente senhor da região em sua época, fora casado com duas das filhas de Antonio Gomes Sande – proveniente da região norte de Portugal, grande proprietário de terras no distrito de Guarapiranga no início do século XIX –, D. Francisca Cândida de Oliveira Sande e D. Teresa Altina Sande de Barros. O cirurgião-mor teve doze filhos legítimos com suas duas esposas e a criaeram itens aos quais poucos tinham acesso e que garantiam a seus donos ostentar uma posição social diferenciada pelo seu uso”. SILVA, Luciana da. A circulação de artefatos por meio das disposições testamentárias: apontamentos sobre as vestimentas na vila de São Paulo (1580-1640). In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.23. n.1. jan.- jun. 2015., p. 208-209. 25 As fortunas de Guarapiranga não são grandes se comparadas às encontradas nas pesquisas sobre São João del Rei e o sul de Minas. GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro – Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.

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ção de sua fortuna se deve, em grande parte, pela herança recebida em decorrência da morte de seu sogro, que, como parte de estratégias de manutenção da riqueza familiar, lhe legou grande parte de seu patrimônio.26 Morador na Fazenda Pirapetinga, Distrito de Guarapiranga, seu monte-mor soma 45:424$315 (quarenta e cinco contos, quatrocentos e vinte e quatro mil, trezentos e quinze réis).27 O coronel Jose Justiniano Carneiro, natural da Freguesia de Guarapiranga, era filho de um proprietário de terras de origem portuguesa. Morador na Fazenda Bananeiras, Distrito de Tapera, freguesia de Guarapiranga, também consumou dois matrimônios, com D. Antonia Thereza Maria do Carmo e D. Josefa Luiza Figueiredo, gerando oito filhos legítimos.28 Falecendo em junho de 1841, o coronel deixou uma fortuna avaliada em 52:830$807 (cinquenta e dois contos, oitocentos e trinta mil, oitocentos e sete reis). Mas como, segundo seu inventário, ele possuía sociedade com o tenente Jose Alves Ferreira, relativa a escravos, terras e ferramentas de trabalho, seu monte-mor perfaz a soma de 45:412$147 (quarenta e cinco contos, quatrocentos e doze mil, cento e quarenta e sete reis).29 Para efeito comparativo, indicaremos a média de monte-mor encontrada nos inventários de Guarapiranga, do período que vai de 1832 a 1849. Os 25 inventários que consultamos somam 228:868$289 (duzentos e vinte e oito contos, oitocentos e sessenta e oito mil, duzentos e oitenta e nove reis), com uma média de 9:154$731 (nove contos, cento e cinquenta e quatro mil, setecentos e trinta e um reis) para cada inventariado. Observando a Tabela 1, conseguimos diferenciar de que modo a riqueza se distribuiu entre os inventariados da localidade entre os anos de 1832 e 1849.30 Fizemos a divisão dos inventários tendo como base 26 LEMOS. Aguardenteiros do Piranga, p. 78-79. 27 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM), 1º. Oficio, 18, 512, 1839. Inventário

post-mortem de Antonio Pedro Vidigal de Barros. 28 Para um maior aprofundamento das trajetórias familiares de Antonio Pedro Vidigal de Barros e Jose Justiniano Carneiro, conferir: LEMOS, Gusthavo. Aguardenteiros do Piranga; e ANDRADE, Mateus Rezende de. Compadrio e Família em zona de fronteira agrícola 29 ACSM, 2º. Ofício, 22, 558, 1841. Inventário post-mortem de Jose Justiniano Carneiro. 30 Para a confecção da Tabela 1, utilizamos os dois inventários post-mortem citados acima, acrescidos de 23 inventários conservados no Arquivo do Fórum de Piranga (AFP), município de Piranga, Minas Gerais. Os inventários utilizados, em ordem cronológica, são: Antonio Pereira de Magalhães, 1832, Caixa 009, Auto 136; Antonio Martins Gesteira, 1836, Caixa 009,

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o monte-mor bruto, levando em consideração as faixas de riqueza em que cada um estava inserido. Desta forma, notamos, por exemplo, como os inventários de pequenos proprietários, apesar de terem uma grande presença no total da amostra (20%), abarcam apenas 1,4% de toda a riqueza contabilizada. Tabela 1 – Divisão da riqueza por monte-mor nos inventários de Guarapiranga (1832-1849) Faixas de Riqueza 100$000 a 1:000$000 1:000$001 a 5:000$000 5:000$001 a 10:000$000 10:000$001 a 40:000$000 Mais de 40:000$000 Total

N. de Inventários 5 9 7 2 2 25

% 20 36 28 8 8 100

Soma dos montes-mor 3:128.961 24:008.545 54:813.396 48:662.265 98:225.122 228:868.289

% 1,4 10,5 23,9 21,3 42,9 100,0

Fonte: Inventários post-mortem (ACSM/AFP).

É perceptível que a grande maioria dos inventariados está inscrita na faixa de riqueza entre um e dez contos de reis. Nada menos que 16 inventários (64%) se encaixam nestas duas categorias intermediárias. Se pensarmos que esta amostra, apesar de pequena, pode ter alguma representatividade, podemos aventar que a maior parte dos produtores e proprietários de Guarapiranga se inscrevia nesta faixa de riqueza, que abarcava principalmente pequenos produtores rurais que possuíam alguns escravos para ajudá-los na lavoura. Auto 144; Antonio Francisco Barbosa, 1837, Caixa 009, Auto 139; Ana Maria Joaquina da Purificação, 1841, Caixa 006, Auto 075; Ana Dorothea da Conceição, 1842, Caixa 006, Auto 073; Ana Maria Barbosa, 1842, Caixa 006, Auto 087; Antonio Teixeira Guimarães, 1842, Caixa 009, Auto 149; Ana Francisca de Jesus, 1843, Caixa 006, Auto 074; Anacleto Gonçalves da Cunha, 1843, Caixa 006, Auto 007; Antonio Francisco Goularte, 1843, Caixa 009, Auto 135; Antonio Martins de Miranda, 1843, Caixa 009, Auto 133; Antonio Santiago Machado, 1843, Caixa 009, Auto 134; Angelica Maria de Jesus, 1845, Caixa 006, Auto 018; Antonia Prudencia Flavia Pena, 1845, Caixa 019, Auto 269; Ana Mauricia de Oliveira Carneiro, 1846, Caixa 006, Auto 77; Antonia Rosa da Fonseca, 1846, Caixa 019, Auto 272; Antonio Alves Ferreira, 1846, Caixa 021, Auto 146; Antonio de Souza Pinto, 1846, Caixa 009, Caixa 137; Antonio Jose Pereira, 1846, Caixa 009, Auto 138; Ana Rosa de São José, 1847, Caixa 006, Auto 088; Antonio José Carneiro de Miranda, 1847, Caixa 009, Auto 140; Antonio Gonçalves Vale, 1848, Caixa 009, Auto 143; Antonia Angela, 1849, Caixa 019, Auto 273.

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Acima dos dez contos de reis encontramos apenas quatro senhores, que representam juntos 16% dos inventariados. Percebemos como a acumulação de riqueza abarca poucos proprietários na localidade. Estes possuem mais de 64% de toda a riqueza inventariada. Antonio Pedro e Jose Justiniano são os principais responsáveis por estes números, com quase de 43% de toda a riqueza da amostra. Neste sentido, conseguimos visualizar a importância econômica e provavelmente política que o cirurgião-mor e o coronel possuíam, na medida em que detinham as maiores fortunas da região em sua época. Assim, analisaremos a distribuição da riqueza de Antonio Pedro e Jose Justiniano. A partir da descrição de bens dos inventários destes dois senhores, elaboramos a Tabela 2 para que pudéssemos visualizar a importância de cada tipo de investimento na composição total de suas fortunas. Esta mesma tabela também servirá de guia primário para a análise da cultura material dos mesmos. Tabela 2 – Divisão da fortuna por tipos de investimento, inventários de Guarapiranga Inventariado Ativos Joias Tecidos Utensílios Móveis Livros Dinheiro Ferramentas Produção, plantações e mantimentos Animais Escravos Imóveis Rurais Dívidas ativas Total (monte-mor bruto)

Antonio Pedro (1839) Valor 22.880 56.560 283.700 294.840 12.000 2:200.000 347.920 1:513.000 1:259.600 11:690.000 8:758.677 19:248.125 45:687.302

Jose Justiniano (1841) % 0,05 0,12 0,60 0,70 0,03 4,80 0,80 3,30 2,70 25,6 19,2 42,1 100

Valor 471.400 425.250 1:030.690 169.600 34.560 567.600 222.840 1:788.000 963.000 16:850.900 2:254.640 26:780.125 51:558.605

% 1,0 0,8 2,0 0,3 0,1 1,1 0,4 3,4 1,9 32,7 4,4 51,9 100

Fonte: ACSM, Inventários post-mortem de Antonio Pedro Vidigal de Barros e Jose Justiniano Carneiro.

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Primeiramente, gostaríamos de chamar a atenção para o total do monte-mor do coronel Jose Justiniano Carneiro. Como dissemos, ele era sócio do tenente Jose Alves Ferreira, em bens relativos à produção agrária, como ferramentas, plantações, mantimentos e escravos. Como não há, no inventário, uma divisão clara entre os bens que ficaram com o tenente, optamos por colocar na Tabela 2 todos os bens arrolados na descrição primária. Mas sabemos que, deste total, 7:410$170 (sete contos, quatrocentos e dez mil, cento e setenta reis) pertenciam ao tenente e foram retirados da partilha. Destaque para o item “dívidas ativas”. É impressionante como ele preenche cerca de metade da riqueza dos dois inventariados. Os créditos que Antonio Pedro possui no momento de sua morte equivalem a 42,1% de sua riqueza. Enquanto que, para Jose Justiniano chega a quase 52% de tudo o que possui. Se excluirmos o valor pertencente a Jose Alves Ferreira, o percentual de dívidas ativas de Carneiro chega a 60,65% de toda sua riqueza, nos levando a supor que a atividade de credor era a principal exercida pelo coronel.31 É possível fazermos algumas diferenciações em relação aos dois inventariados. Podemos deduzir que Antonio Pedro, apesar de possuir mais de 40% de sua fortuna em créditos, tinha sua riqueza gerada a partir de sua produção. É perceptível a importância dos imóveis rurais (19,2%) e escravos (25,6%) em sua riqueza, demonstrando que investia muito em sua fazenda. “animais” e “produção, plantações e mantimentos” também ocupam uma parcela significativa de seus bens. Por outro lado, apesar de Jose Justiniano possuir uma alta porcentagem de sua riqueza em escravos e o valor absoluto em “plantações...” maior que o de Antonio Pedro, a partir da análise do inventário podemos inferir que o coronel não investia muito na produção agrária, pois os bens em sociedade são todos relativos a esta área. Dos 57 escravos descritos no inventário, 39 eram divididos na sociedade. O mesmo ocorre com “ferramentas” e “produção...”, o que pode indicar que o coronel estava apenas começando a investir nesta aérea. 31 Rodrigo Paulinelli de Almeida Costa demonstra a posição de destaque que os dois inventariados possuíam no sistema creditício da Freguesia de Guarapiranga, na primeira metade do século XIX. Estes senhores compunham um seleto grupo de grandes credores da freguesia, que utilizavam este sistema como forma controle social e para obter maior proeminência social na localidade. Cf.: COSTA, Rodrigo Paulinelli de Almeida. “Devo e não nego; pago quando puder”: demografia, economia e o sistema creditício na freguesia de Guarapiranga (1831-1865). Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, 2015.

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Intrigante notar que nenhum dos dois possuía casas de vivenda nas vilas circunvizinhas, apenas propriedades rurais. Estes homens possuíam riquezas relativamente altas, emprestavam dinheiro a juros e possuíam, a princípio, vidas luxuosas; mas não possuíam propriedade na vila, o que poderia proporcionar maior status aos mesmos na sociedade. Suas casas de morada são descritas de forma bastante sucinta para se proceder a uma análise aprofundada sobre as mesmas. Em relação à generalizante descrição no inventário de Jose Justiniano Carneiro32, fica difícil fazermos qualquer avaliação relativa às suas condições de moradia na fazenda Bananeiras. Por outro lado, como veremos mais adiante, há uma riqueza enorme nas descrições de móveis, utensílios domésticos, vestuários e joias, que demonstram que o coronel não economizava para ter luxo e conforto. No caso do cirurgião-mor, a Fazenda Pirapetinga, na qual ele possui apenas uma parte, é descrita de forma mais completa. Entretanto, as benfeitorias da fazenda são apresentadas todas de uma vez, ocultando e empobrecendo suas características. Mas é bom notar a variedade de bens que a compõe. As casas de vivenda são de sobrado, denotando a riqueza da família, que procurou aumentar seu conforto e seu luxo a partir da construção de uma edificação maior e mais sólida. As demais benfeitorias demonstram que a fazenda era produtiva e se utilizava dos diversos tipos de construção no beneficiamento das plantações, de cana de açúcar e mandioca principalmente. Interessante notar que a senzala aparece na descrição, benfeitoria pouco frequente nos inventários da região. Como o cirurgião-mor tinha 42 escravos, é de se esperar que a fazenda tivesse senzalas para abrigá-los.33 Temos nos inventários informações sobre o que era produzido em cada fazenda. Os dois proprietários possuem valores parecidos em relação ao que era produzido e estocado. Antonio Pedro possuía 6 mil pés de café bem velhos, 60 alqueires de feijão, 70 de arroz, 80 de milho, 150 barris de aguardente e um canavial. Por outro lado, Jose Justiniano teve arrolado um quartel de cana chegada, um quartel de cana nova, 440 arrobas de café e 100 arrobas de algodão em caroço.

32 ACSM, 2º. Ofício, 22, 558, 1841. Inventário post-mortem de Jose Justiniano Carneiro, f. 27. 33 ACSM, 1º. Oficio, 18, 512, 1839. Inventário post-mortem de Antonio Pedro Vidigal de

Barros, f. 71.

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Fica claro pelo que foi descrito a diversificação da produção nas duas fazendas, Pirapetinga e Bananeiras. Antonio Pedro plantava arroz, feijão, café, milho e cana. Os barris de aguardente demonstram qual era a atividade principal de sua fazenda. A presença de um engenho, um alambique, de seis formas de açúcar, duas caixas usadas no engenho, uma forma de rapadura, sete tachos de cobre e 16 bois de carro, demonstram que a produção de açúcar e cachaça, entre outros derivados da cana, era a principal fonte de rendimentos da fazenda. Além de plantar cana de açúcar, Jose Justiniano foge à regra encontrada para a região ao ter estocado em sua fazenda uma grande quantidade de café e algodão. Estes bens, além de 40 enxadas em bom uso e 30 foices em bom uso, juntamente com 39 escravos, estão divididos na sociedade que possuía. Podemos inferir que o coronel produzia tecidos em sua fazenda, pois possuía seis rodas de fiar, o que explicaria a grande quantidade de algodão em caroço encontrada. Além disso, aparecem descritos em seu inventário três ferros de engomar, seis línguas de ferro de engomar e três ferros de alfaiate. Não encontramos entre seus bens, ferramentas ou benfeitorias que indicassem o beneficiamento da cana de açúcar encontrada. É provável que isto acontecesse na fazenda de seu sócio.

Joias e utensílios domésticos: em busca de requinte e distinção social Passemos agora para a análise dos materiais relativos à vida cotidiana destes membros da elite piranguense que denotam riqueza, status, e uma transformação dos modos de vida da elite. Estas pessoas tendiam a se afastar dos modos de vida simples e rústicos da maior parcela da sociedade, de forma a criar prestígio social em torno de si mesmas. Como afirma Luciana da Silva, os objetos e bens entendidos enquanto instrumentos simbólicos de comunicação, quando em posse de um indivíduo, definiriam visivelmente o lugar ocupado por esse na sociedade, contribuindo para seu reconhecimento e distinção no interior da comunidade.34 34 SILVA. A circulação de artefatos por meio das disposições testamentárias, p. 197.

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Pela Tabela 2, podemos perceber o quanto a riqueza de Jose Justiniano se sobressai em relação à de Antonio Pedro nos quesitos: joias, utensílios e tecidos. Pelo menos no que diz respeito ao valor absoluto da soma destes bens.35 A partir da descrição dos bens móveis, tentamos fazer uma separação dos objetos que eram usados no trabalho e na produção da fazenda – que chamamos de “ferramentas” – dos objetos que se restringiam ao interior das casas de morada e que podem denotar um refinamento dos hábitos desta elite e uma conexão com mercados da corte imperial, e consequentemente, dos trânsitos globais de mercadorias. Deste modo, o ativo “utensílios” abrange praticamente todos os bens descritos que são usados dentro das casas, geralmente se referindo a objetos que demonstram uma maior preocupação em relação aos hábitos à mesa e ao refinamento do ambiente doméstico. Podemos perceber uma discrepância muito grande em relação à quantidade de bens e aos valores dos “utensílios” de Antonio Pedro e Jose Justiniano. No inventário deste arrolamos 92 itens nesta categoria, enquanto que no do primeiro, apenas 30. Entre os itens de Antonio Pedro, encontramos, por exemplo: 18 colheres de prata, uma de sopa, outra de arroz; 12 facas e garfos de cabo branco de osso; 12 facas e garfos de cabo preto; 24 colheres e garfos de casquim; e “um aparelho de chá de louça da índia com meia dúzia de xícaras”.36 No arrolamento de Jose Justiniano, os itens mais significativos são: “um sinete de cabo de marfim; 12 facas e garfos de cabo de marfim”; 12 colheres de prata; dois castiçais de casquinha de prata; “duas dúzias de xícaras e pires de louça da Índia”; e 12 xícaras de vidro com asas.37 No período analisado, o cotidiano da população ainda se parecia muito com o do século anterior. Analisando o período do Setecentos mi35 Uma hipótese que poderia explicar a discrepância na quantidade e valor total de joias,

utensílios e tecidos existente é a de que José Justiniano, como foi constatado ser um grande credor na região e provavelmente ter nesta atividade sua principal ocupação, poderia penhorar estes bens ou até mesmo recebê-los como pagamento de seus empréstimos, o que ultrapassaria a questão da posse destes bens apenas pela procura de refinamento dos hábitos e distinção social. Entretanto, uma análise mais aprofundada desta questão deverá esperar uma outra oportunidade. 36 ACSM, 1º Oficio, 18, 512, 1839. Inventário post-mortem de Antonio Pedro Vidigal de Barros, f. 10-11. 37 ACSM, 2º Ofício, 22, 558, 1841. Inventário post-mortem de Jose Justiniano Carneiro, f. 77.

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neiro, Ana Luiza Castro Pereira destaca que “a diversidade de utensílios domésticos aponta para uma tendência de recriar e interiorizar hábitos e costumes europeus no seio das famílias mineiras, numa tentativa de recriar, mais uma vez o modus vivendi do além-mar”.38 Neste sentido, Tânia Andrade Lima afirma que o “século XIX fez da sala de jantar um espaço de exibição, de representação, eminentemente masculino, onde eram expostas as alfaias da família, símbolos de prestígio e superioridade social”.39 Podemos perceber nestes membros da elite a busca por sinais de diferenciação do restante da sociedade, seguindo um ideal de civilização que começava a ser difundido no Brasil. E a posse de objetos como os descritos complementava a questão de se ter boas maneiras à mesa, um dos sinais de civilidade.40 Marcos Andrade resume bem o que acontecia naquele momento: Ainda que o cenário das fazendas mineiras tenha sido marcado pela rusticidade, seja no interior das moradas, no vestuário e mesmo na simplicidade dos costumes, parte da elite tinha acesso aos bens importados e procurava exacerbar este sentimento aristocrático que a diferenciava dos outros segmentos livres da população.41

Outro elemento importante de diferenciação social era a posse de joias. Estes itens são significativos principalmente entre os bens do coronel. Dentre as várias joias, Jose Justiniano possuía um broche de ouro, um colar de ouro, três medalhas da Ordem de Cristo, um relógio de algibeira, um par de braceletes de pérolas com flores de brilhantes e um par de brincos de diamantes. Segundo Andrade, as “joias poderiam, ao mesmo tempo, representar um investimento e também denotar prestígio social, sendo geralmente utilizadas em cerimônias religiosas,

38 PEREIRA, Ana Luiza Castro. “Lençóis de linho, pratos da Índia e brinco de filigrana”, p.

337-338. 39 LIMA, Tânia Andrade. Pratos e mais pratos: louças domésticas, divisões culturais e limites sociais no Rio de Janeiro, século XIX. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. vol.3. jan./ dez. 1995, p. 136. 40 Análise mais aprofundada desta questão pode ser encontrada em: LIMA, Tânia Andrade. Pratos e mais pratos: louças domésticas, divisões culturais e limites sociais no Rio de Janeiro, século XIX. 41 ANDRADE, M. F. de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro, p. 133.

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profanas e civis”.42 Pereira reforça esta ideia ao afirmar que objetos de ouro, principalmente as joias, conferiam prestígio de visibilidade social aos seus detentores.43 As roupas também serviam para demarcar hierarquias sociais. Assim, englobamos na categoria “tecidos” as vestimentas e as roupas de cama e mesa. Sobressaem os bens de Jose Justiniano em detrimento dos de Antonio Pedro, cujo inventário não possui a descrição de nenhuma peça de vestuário, apenas toalhas e guardanapos. Por outro lado, o coronel possui 46 itens classificados como “tecidos”. Entre as vestimentas, temos: trinta e seis camisas; cinco ceroulas; cinco pares de calças de pano; quatro coletes brancos; quatro jaquetas, sendo duas de fustão e duas de baetilha; quatro gravatas; duas casacas de pano preto; um vestido de sarja preta; dois ditos de paninhos brancos; entre outros itens. As roupas de cama que possuía também demonstram a procura desta elite pelo requinte e maior conforto em suas casas. Entre os bens que detinha, estão: “uma colcha de damasco encarnado da índia com franja de retrós”; duas cobertas de baetão escarlate; duas colchas de chita; 16 lençóis de pano de linho; oito fronhas de pano de linho; oito fronhas de algodão fino.44 No que diz respeito aos móveis, percebemos uma inversão no padrão de posse dos dois senhores analisados. Este é o único item no qual Antonio Pedro possui maior quantidade e diversidade de bens em relação a Jose Justiniano. Segundo Maria Lucília Viveiros Araújo, ao estudar a cidade de São Paulo, nas casas de morada do século XIX “houve uma tendência geral de incremento do mobiliário”.45 É possível percebermos esta tendência nos dois inventariados estudados. O cirurgião-mor tem um maior número e uma maior diversificação dos móveis que compõe sua casa. Antonio Pedro possuía um armário grande; dois catres marchetados; oito lisos; um espreguiceiro; quatro mesas pequenas; duas marquesas; 12 cadeiras; 12 camas; uma cô-

42 ANDRADE, M. F. de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro, p. 130. 43 PEREIRA, Ana Luiza Castro. “Lençóis de linho, pratos da Índia e brinco de filigrana”, p.

338. 44 ACSM, 2º. Ofício, 22, 558, 1841. Inventário post-mortem de Jose Justiniano Carneiro, f. 83-84. 45 ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. Os interiores domésticos após a expansão da economia exportadora paulista. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.12. jan./dez. 2004, p. 137.

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moda de jacarandá marchetada; uma estante de madeira; entre outros.46 O mais interessante foi encontrarmos entre os bens do inventariado um “oratório de jacarandá com Nossa Senhora do Rosário de marfim” e um “crucifixo de marfim”, objetos devocionais tão caros aos moradores das Minas no período, mas com a peculiaridade de serem talhados neste material incomum na região. O coronel Jose Justiniano teve arrolado dois guarda fatos de jacarandá com gavetas e forragem; um armário grande com feixadeiras; uma escrivaninha de madeira; um berço; um tocador grande com gavetas; uma mesa de sala com gaveta, espelho e provadores dourados; e outros mais.47 Deste modo, com a descrição deste sem número de itens arrolados, podemos perceber que estes dois senhores de escravos e terras, que compunham a elite econômica da região de Piranga, buscavam – através do consumo de bens inacessíveis à grande maioria da população, como joias, móveis, tecidos, utensílios domésticos e objetos em marfim – distinção e diferenciação social, a fim de construírem e manterem uma imagem de si próprios que seria repassada à sociedade piranguense. A posse de objetos refinados estava intimamente ligada ao status socioeconômico destes senhores, como observado por Pereira, quando afirma que os objetos de luxo tenderam a ser encontrados em inventários principalmente de militares, homens de negócios e eclesiásticos.48 Portanto, os itens encontrados nos inventários demonstram uma tendência das elites provinciais de inserir novos hábitos e costumes em suas vidas agrárias, influenciados em grande parte pela conjuntura da primeira metade do século XIX, na qual a chegada da corte ao Brasil trouxe importantes mudanças sociais, como a difusão dos hábitos e costumes da aristocracia europeia.49 Nestes inventários, encontramos e destacamos itens que traziam requinte ao ambiente doméstico, demarcavam hierarquias sociais e revelam as conexões comerciais de Minas Gerais com outras partes do mundo, inserindo a região na rota de importação de objetos do oriente, 46 ACSM, 1º Oficio, 18, 512, 1839. Inventário post-mortem de Antonio Pedro Vidigal de

Barros, f. 11-12. 47 ACSM, 2º Ofício, 22, 558, 1841. Inventário post-mortem de Jose Justiniano Carneiro, f. 11-12. 48 PEREIRA. “Lençóis de linho, pratos da Índia e brinco de filigrana”, p. 340. 49 ANDRADE. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro, p. 129.

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como as diversas louças e colchas provenientes da Índia demonstram, nos indicando uma possível procedência dos objetos esculpidos em marfim, como os talheres, o sinete e a imaginária religiosa.

O requinte do marfim Após traçarmos um panorama dos bens acumulados em vida por estes senhores piranguenses, analisemos mais especificamente os objetos feitos em marfim que estavam em posse dos mesmos no momento de seu falecimento. Além dos processos enfocados acima, encontramos em nossa documentação mais dois inventários post-mortem com presença de utensílios e imaginária religiosa esculpidos em marfim. Desde os tempos do Império Ultramarino Português existiam fortes ligações comerciais entre o Brasil e outros pontos do mundo, particularmente a costa africana.50 Esta conjuntura abriu espaço para a entrada de variadas mercadorias provenientes dos quatro cantos do mundo, como foi o caso do marfim africano e asiático.51 Deste modo, o marfim se torna “fonte importante para conhecer o movimento de objetos, a demanda, os aspectos estéticos e a recepção, e os marcadores de riqueza”52 nas sociedades atlânticas.53 50 RUSSELL-WOOD, A.J.R. Um mundo em movimento. Os portugueses na África, Ásia e

América (1415-1808). Portugal: Difel 82, 1992. 51 Para uma visão da produção e circulação de objetos de marfim no Império Português, conferir: LÚZIO, Jorge M. S. Sagrado marfim - O Império português na Índia e as relações intracoloniais Goa e Bahia, século XVII: iconografias, interfaces e circulações. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011. DIÓRIO, Renata Romualdo; ALVES, Rogéria Cristina. “Na rota do marfim”: a circulação do marfim africano em terras brasileiras (Século XVIII). In: REIS, Raissa Brescia dos; RESENDE, Taciana Almeida Garrido de; MOTA, Thiago Henrique. (Org.). Estudos sobre África ocidental: dinâmicas culturais, diálogos atlânticos. Curitiba: Prismas, 2016, vol. 1, p. 145-172. 52 FRONER, Yacy-Ara; PAIVA, Eduardo França; SANTOS, Vanicléia Silva. Acervos em marfim em Minas Gerais: documentos, trânsitos e materialidade. E-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 2, Agosto/Dezembro de 2015, p. 123. 53 Neste sentido, surgiu o projeto “A circulação de marfim entre Portugal, Guiné, Angola e Minas (1700-1800)”, que desenvolve pesquisas com diferentes abordagens sobre o tema, congregando pesquisadores ligados à Universidade Federal de Minas Gerais, e vinculado ao projeto do convênio entre UFMG e Universidade de Lisboa, “A produção, circulação e utilização

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Na visão de Froner, Paiva e Santos, os objetos de marfim manufaturados começam a circular nas Minas Gerais em meados do século XVIII, adquiridos inicialmente pelos clérigos da Catedral de Mariana. Como salientado pelos autores, circulou nas Minas setecentistas uma grande quantidade de objetos produzidos nos mais distantes territórios do império português. Por conta da riqueza aqui produzida pela extração aurífera, os colonos do interior do território mineiro conseguiram ter acesso a inúmeros itens de consumo, simples e refinados, importados através das diversas conexões com circuitos comerciais e culturais que ligavam as diversas partes do império.54 Os marfins faziam parte deste grupo como objetos de desejo. Segundo estes autores: o marfim foi empregado no fabrico de arte sacra (santos, santas, crucifixos e cortadores de hóstias); utensílios para repartições administrativas, como sinete (matriz sigilográfica para selo-tinta); utensílios domésticos de luxo como colheres, cabos de faca e de revólver, bastões e penas; utensílios para boticários como almofarizes e agulhas; e também joias e pentes.55

Entretanto, não há, nos inventários, evidências suficientes para confirmar a procedência desta peças de marfim; se foram talhadas no Brasil ou se vieram prontas através das redes de comércio mundial. Através da análise de correspondências oficiais, descobriu-se que houve entrada de peças in natura na colônia, abrindo caminho para a possibilidade de que objetos em marfim teria sido esculpidos no Brasil e não apenas importados prontos.56 Neste grupo diversificado de objetos, com variadas formas e utilidades, incluímos nossas descobertas. Desta forma, trabalhamos os marfins encontrados em quatro inventários de Guarapiranga da primeira metade do Oitocentos. Além dos dois já analisados, encontramos mais dois inventários com objetos em marfim. Não por coincide marfins africanos no espaço atlântico entre os séculos XV e XIX”, coordenado por Vanicléia S. Santos (UFMG) e José Horta (FLUL). 54 FRONER, Y.; PAIVA, E. F.; SANTOS, vol. S. Acervos em marfim em Minas Gerais: documentos, trânsitos, estética, materialidade, p. 2. 55 FRONER, Y.; PAIVA, E. F.; SANTOS, vol. S. Acervos em marfim em Minas Gerais: documentos, trânsitos e materialidade, p. 124. 56 FRONER, Y.; PAIVA, E. F.; SANTOS, vol. S. Acervos em marfim em Minas Gerais: documentos, trânsitos, estética, materialidade, p. 7.

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dência, estes documentos, ambos da década de 1820, são de parentes do cirurgião-mor Antonio Pedro Vidigal de Barros e do coronel Jose Justiniano Carneiro. Os marfins de Antonio Pedro faziam parte dos bens da família há pelo menos vinte anos, já que foram arrolados no inventário da primeira esposa do cirurgião-mor, Francisca Cândida de Oliveira Sande.57 Da mesma maneira, encontramos um item do espólio de Jose Justiniano descrito nos bens partilhados em razão da morte de seu irmão, o padre João Nepomuceno Carneiro, no ano de 1823.58 Apesar de circularem intensamente através do império português no Setecentos, itens em marfim não foram objetos largamente encontrados em posse de moradores das Minas.59 Desta forma, não é de se espantar que as mesmas tenham sido preservadas e guardadas no seio das famílias mineiras como joias raras, legadas de marido a mulher, de um irmão a outro. Como salientam Froner, Paiva e Santos, o valor dos itens não era o diferencial no padrão de posse de marfins em determinados grupos sociais. O que levava então grupos específicos a obterem estes objetos? Segundo os autores, quem predominantemente detinha os marfins encontrados em sua análise eram homens brancos portugueses. Deste modo, afirmam que “à primeira vista, parece que os objetos em marfim tinham um caráter mais exclusivo e não chegaram a ser largamente possuídos por forros e por seus descendentes livres. E o motivo desta certa exclusividade, pelo visto nas fontes, não foi o valor das peças, que não diferiam muito dos atribuídos aos corais.”60 Assim, o que trazia a diferenciação seria “os usos simbólicos das peças decorativas e utensílios” demonstrando que “a posse do marfim era grande signo de distinção social”.61 Entretanto, salientam que 57 ACSM, 1º Ofício, 97, 2032, 1820. Inventário post-mortem de Francisca Cândida de Oliveira Sande. 58 ACSM, 1º Ofício, 49, 1126, 1823. Inventário post-mortem de João Nepomuceno Carneiro. 59 Em nossa amostra de 27 inventários, os quatro citados foram os únicos nos quais descobrimos peças de marfim. Isto representa 14,8% do total de inventários consultados nesta pesquisa. Além disso, em outras pesquisas, com objetivos e amostras documentais diferentes, não encontramos marfins nas descrições dos inventários de Guarapiranga, embora a busca por marfins não fosse uma preocupação à época. 60 FRONER, Y.; PAIVA, E. F.; SANTOS, vol. S. Acervos em marfim em Minas Gerais: documentos, trânsitos, estética, materialidade, p. 5. 61 FRONER, Y.; PAIVA, E. F.; SANTOS, vol. S. Acervos em marfim em Minas Gerais:

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o marfim não era exclusivo a um grupo social, “embora a predominância da circulação e posse se concentrasse nas camadas mais abastadas, formada por capitães-mores, clérigos, homens de negócios, boticários e lojistas, em sua maioria proprietários de escravos”62, justamente o perfil de proprietários encontrado em nossa pesquisa. Nos quatro inventários encontramos cinco objetos de marfim compartilhados por estas famílias brancas de origem portuguesa, reforçando o argumento dos autores sobre os grupos com maior incidência na posse de marfins. A princípio, podemos demarcar uma grande diferença entre os itens encontrados nas duas abastadas famílias piranguenses. Enquanto o cirurgião-mor e sua primeira esposa possuíram principalmente objetos de imaginária religiosa, entre os membros da família Carneiro foram encontrados apenas utensílios de uso doméstico, mesmo com um padre entre os inventariados. Em 1823, o padre João Nepomuceno Carneiro falece, deixando como herdeiros os seus três irmãos. Nosso rico senhor piranguense, o capitão Jose Justiniano Carneiro, se torna o inventariante do processo. Entre os diversos bens em posse do padre, que também renderiam uma boa análise da cultura material e dos hábitos de consumo do período, encontramos “12 facas e garfos de cabo de marfim”, avaliados em 2$880 (dois mil, oitocentos e oitenta réis).63 Não foi executado o exórdio de partilha de seu inventário, mas restam poucas dúvidas de que o jogo facas e garfos foi legado a Jose Justiniano, já que em razão de sua morte no ano de 1841, encontramos a descrição exata do jogo inventariado anos antes: “12 facas e garfos de cabo de marfim”, no valor de 4$000 (quatro mil réis), sendo avaliado em um preço um pouco maior do que no inventário de seu irmão. Além deste item, encontramos mais outro, desta vez um “sinete de marfim com sirena em prata”, avaliado em 3$200 (três mil e duzentos réis).64 Na partilha, estes dois bens foram legados à viúva do inventariado, dona Luiza de Figueiredo Carneiro.65 documentos, trânsitos, estética, materialidade, p. 8. 62 FRONER, Y.; PAIVA, E. F.; SANTOS, vol. S. Acervos em marfim em Minas Gerais: documentos, trânsitos e materialidade, p. 127. 63 ACSM, 1º. Ofício, 49, 1126, 1823. Inventário post-mortem de João Nepomuceno Carneiro, f. 6. 64 ACSM, 2º. Ofício, 22, 558, 1841. Inventário post-mortem de Jose Justiniano Carneiro, f. 9. 65 Não conseguimos localizar o inventário da viúva para que pudéssemos rastrear se estes itens em marfim continuaram em posse da família.

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Como se pode notar, são dois itens utilitários e não apenas decorativos. Os bens feitos em marfim tinham uso prático do dia-a-dia do seu proprietário. Quanto ao preço, percebe-se que se trata de produtos de baixo valor monetário, que tem pouco impacto na variada gama de bens inventariados. E que sofrem pouca valorização com o tempo, como no caso do jogo de talheres. Desta forma, a matéria-prima é que imprime um valor simbólico diferenciado aos mesmos, maior que o mero interesse no uso cotidiano. Ressaltamos que o uso de talheres coincide com transformações econômicas vivenciadas na capitania de Minas Gerais desde o século XVIII, como aponta Ana Luiza Castro Pereira. Desta forma, a aparição de talheres indicaria o refinamento dos hábitos coloniais. Segundo a autora, “nota-se, portanto, a criação de um espaço em que a porcelana chinesa, as sedas indianas, os tecidos ingleses e o marfim africano dividiam lugar com os produtos comercializados, por exemplo, pelas negras de tabuleiro”.66 Já no caso de Antonio Pedro Vidigal de Barros e sua primeira esposa, temos uma inversão da funcionalidade dos principais itens em marfim da família. Como salientado na análise dos bens do cirurgião-mor, colocamos os itens na subdivisão “móveis”, já que o valor monetário referente aos itens de imaginária religiosa seria ínfimo se desagregado. Os itens estavam assim descritos: “um oratório de jacarandá com Nossa Senhora do Rosário de marfim”, avaliado em 8$000 (oito mil réis), e um “crucifixo de marfim” no valor de 6$400 (seis mil e quatro centos réis).67 Estas imagens da estavam na família desde o primeiro casamento de Antonio Pedro, com Francisca Cândida de Oliveira Sande. Ao falecer, no ano de 1820, todos os bens esculpidos em marfim ficaram de legado ao seu marido. Os dois descritos acima estavam no seu inventário, da seguinte maneira: “um oratório de jacarandá preto com uma imagem da Senhora do Rosário de marfim”, no valor de 8$000 (oito mil 66 PEREIRA. “Lençóis de linho, pratos da Índia e brinco de filigrana”, p. 334. 67 ACSM, 1º. Oficio, 18, 512, 1839. Inventário post-mortem de Antonio Pedro Vidigal de

Barros, f. 13-14. Primeiro item legado à viúva inventariante Dona Theresa Altina Sande Barros. Segundo item legado ao seu filho Manoel Pedro Vidigal. Como no caso de José Justiniano Carneiro, não conseguimos localizar os inventários destes dois herdeiros do cirurgião-mor, que nos poderiam fornecer indícios sobre a valorização ou desvalorização dos marfins ao longo do tempo e refinar as suposições sobre o padrão de posse e transmissão destes bens.

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réis), e “uma imagem de Santo Cristo de marfim pequena”, avaliada em 8$000 (oito mil réis).68 Nota-se que a imagem de Nossa Senhora do Rosário com seu oratório manteve o mesmo valor depois de vinte anos, enquanto o crucifixo se desvalorizou, talvez em razão do desgaste que a peça sofreu com o passar dos anos. Por fim, encontramos no inventário de dona Francisca um objeto manufaturado em marfim que mesmo sendo legado ao viúvo, não foi descrito em seu inventário. Trata-se de um “leque de marfim todo pintado de várias cores”, avaliado em 3$200 (três mil de duzentos réis).69 Este item nos remete novamente ao requinte e sofisticação procurados pelas elites coloniais e imperiais no Brasil entre os séculos XVIII e XIX. Isabel Halfen da Costa Torino afirma que a moda dos leques no Brasil se iniciou com a chegada da corte portuguesa no início do século XIX, cultura trazida pela família real que consolidou-se rapidamente.70 No inventário de dona Francisca, chama a nossa atenção a descrição, mesmo que simples, do leque de marfim, “todo pintado de várias cores”. Não há um detalhamento da cena ou motivo decorativo que poderia estar ali representada. Isabel Torino nos ajuda neste quesito, dando pistas do que poderia estar pintado. Deste modo, a autora afirma que: No século XIX os temas históricos começam a dar lugar a motivos florais, geométricos e aves na ornamentação dos leques. “Continua-se a usar o leque chinês, agora destacando-se o leque de varetas de marfim e folha de papel pintado, com cenas de palácio ou de teatro e aplicações diversas de tecido, especialmente de marfim pintado a constituir a fisionomia das personagens”.71

68 ACSM, 1º Ofício, 97, 2032, 1820. Inventário post-mortem de Francisca C. de Oliveira Sande, f. 19. 69 ACSM, 1º Ofício, 97, 2032, 1820. Inventário post-mortem de Francisca C. de Oliveira Sande, f. 16. 70 TORINO, Isabel Halfen da Costa. Restauro de um Leque Mandarim pertencente ao Museu Municipal Parque da Baronesa, Pelotas-RS. Trabalho de Conclusão de Curso (bacharelado em conservação e restauro de bens móveis), Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2011, p. 24. 71 TORINO. Restauro de um Leque Mandarim pertencente ao Museu Municipal Parque da Baronesa, p. 23. A obra citada por Isabel Torino é: SILVA, Maria Madalena de Cagigal e. Leques. Museu Nacional dos Coches. Lisboa-Portugal: Editora Ministério da Comunicação Social, 1976.

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Como a autora salienta, no século XIX houve um grande aumento da demanda e da produção de leques pelo mundo. Desta forma, podemos ter uma ideia de como poderia sido este “leque de marfim pintado de várias cores”.72 Possivelmente, este não era um produto comum no interior do território mineiro, de modo que podemos aventar que o mesmo deveria ter sido um objeto de distinção social, demarcação de hierarquias e símbolo de riqueza e requinte. Apesar de ter herdado o leque, o viúvo Antonio Pedro não o possuía no momento de sua morte. Não acreditamos que ele estivesse em posse de sua segunda esposa dona Teresa Altina Sande de Barros, irmã de dona Francisca, já que naquele momento, os bens eram considerados do casal e não do indivíduo.73 Assim, podemos aventar duas possibilidades: a de que tenha se quebrado ou sido destruído, ou a de que o cirurgião-mor tenha dado o mesmo a uma de suas filhas como dote de casamento. Por outro lado, dois dos três itens em marfim inventariados continuavam em posse da família. São as duas imagens sacras descritas anteriormente, uma de Nossa Senhora do Rosário e outra de Cristo Crucificado. Durante o século XIX, o desejo de se portar de forma distinta perante a sociedade acabou introduzindo o refinamento dos objetos em marfim, que iam desde utensílios para o jantar até a imaginária religiosa. Nesse âmbito, a imaginária da Virgem disputa espaço com as representações do Cristo, sobretudo o crucificado. Com suporte em madeira, policromados ou simplesmente acompanhados de seus oratórios, as imagens em marfim estiveram presentes no interior das casas dos mais abastados, como podemos notar nos inventários da família Vidigal de Barros. 72 Para encontrar imagens de leques deste período, consultar: TORINO. Restauro de um Leque Mandarim pertencente ao Museu Municipal Parque da Baronesa. Em relação a este item e a todos os outros aqui citados, poderíamos ter incluído imagens para o leitor ter uma ideia de como poderiam ter sido estes objetos de marfim. Entretanto, não consideramos uma abordagem válida, pois estaríamos atribuindo materialidade e estética a itens que não temos noção de sua aparência, já que as descrições nos inventários são muito vagas. Por outro lado, indicamos alguns catálogos nos quais se pode observar a forma e a estética de objetos em marfim que circularam no Brasil em períodos próximos ao que estamos analisando. Cf.: SANTOS, Lucila M. A sagração do Marfim. Coleção do Museu Histórico Nacional-IPHAN/RJ. Catálogo da Exposição na Pinacoteca do Estado de São Paulo. São Paulo, 2002; SANTOS, Lucila M. Arte do marfim: do sagrado e da história na Coleção Souza Lima do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: CCBB, 1993. 73 LEMOS. Aguardenteiros do Piranga, p. 61.

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Segundo Vera Lúcia Bottrel Tostes, peças como estas eram esculpidas em ateliês no oriente, que produziam “esculturas religiosas em marfim que tinham por finalidade propagar a fé cristã, através da catequese e da devoção”. Desta forma, a autora afirma que a religiosidade do povo brasileiro, marcada pela influência portuguesa e pela grande produção de imagens em marfim, tornou possível seu adorno em “altares e oratórios de ordens religiosas, conventos, igrejas e residências”.74 Em relação à imagem de Nossa Senhora do Rosário presente nos inventários, seu culto é um dos mais populares no Brasil, e sua origem se encontra no medievo, com os Dominicanos. Contudo, sua popularização se deu a partir da vitória dos cristãos contra os mouros na batalha de Lepanto, em 1571.75 Muito difundida entre as irmandades negras no Brasil, a origem do culto é branca e remonta à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Brancos, em Lisboa.76 O culto datado do século XIII ganhou popularidade com a expansão ultramarina portuguesa, a partir do século XV. Sua invocação ganhou notoriedade no enfrentamento contra os protestantes, além de ter sido a escolhida para proteger os homens que se lançavam ao mar. Com a presença portuguesa em África, o culto mariano também se fazia presente. Sendo assim, as representações da Virgem do Rosário, através dos Dominicanos, passou a ser usada para inserir os negros no cristianismo. Segundo José Ramos Tinhorão, a assimilação dos negros africanos com a Virgem se deu através do símbolo do Rosário, que remetia à ideia do “Rosário de Ifa”, associado aos minkisi, objetos mágico-religiosos desses homens.77 Desta forma, o culto à Virgem do Rosário pode ser considerado popular e não apenas prerrogativa das irmandades negras. Os estatutos das irmandades do Rosário corroboram essas assertivas, uma vez que aceitavam homens de todas as qualidades. A popular representação da Virgem do Rosário ganhou forma em diversos suportes, desde a pintura de teto até as estátuas em marfim, como a encontrada na casa do cirurgião-mor, protegida por um oratório de jacarandá. Imaginária 74 TOSTES. Introdução. In: SANTOS, Lucila M. A sagração do Marfim, p. 4. 75 FERREIRA. O marfim e a imaginária. In: SANTOS, Lucila M. Arte do marfim, p. 30. 76 PIMENTEL, Alberto. História do culto de Nossa Senhora em Portugal. Lisboa: Libanio &

Cie, 1900, p. 46. 77 TINHORÃO, José Ramos. Os negros em Portugal: uma presença silenciosa. Lisboa: Editorial Caminho, 1997, p. 126-127.

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pertencente a uma família branca da elite de Guarapiranga, fortalecendo o argumento de que a devoção a esta Virgem não partia apenas da população negra no Setecentos e Oitocentos. Os crucifixos também faziam parte do dia-a-dia da população neste período, com variados suportes e diversos tamanhos. No inventário encontramos uma “imagem de Santo Cristo de marfim pequena”. Sobre a representação da crucificação, Lucila Santos escreve: Sinal, signo, símbolo da história cristã e ponto central da doutrina, só viria a merecer o interesse permanente dos artistas a partir do final da Idade Média, no momento em que, como veículo de doutrinação, acompanhou as ordens religiosas que se dispersaram pelo mundo. Naquele instante tornou-se necessário normatizar-se a sua figuração.78

Depois de normatizada, a representação de Jesus crucificado se difunde e ganha as quatro partes do mundo, acompanhando os esforços catequizadores dos membros das ordens religiosas. E assim começam a se espalhar, ganhando cada vez mais espaço dentro das residências, como item de devoção e também decoração. Desta forma, podemos entender a presença de crucifixos de marfim, que mais do que ser o destinatário das preces e orações de fiéis no interior de suas moradias, também eram utilizados como símbolos requinte e distinção social.

Conclusão O refinamento da sociedade mineira seguia as tendências dos centros urbanos, onde a vida social era medida tanto pela indumentária quanto pela casa em que residiam. A partir do século XIX, houve uma grande preocupação em transformar a casa em extensão da indumentária, ou seja, a casa acabou por se tornar um símbolo de status e poder, bem diferente daquela realidade conhecida nas Minas do século XVIII.

78 SANTOS. A sagração do Marfim, p. 27.

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Talheres, mobiliário, cortinas, armários, tudo passou a ser pensando para sofisticar o ambiente. As novidades se solidificaram com a chegada da corte no Rio de Janeiro. Nos inventários de meados do século XIX, podemos notar a presença de objetos de uso refinado, como talheres e louças importadas da Índia. Não podemos nos esquecer que os objetos sacros também faziam parte desse cotidiano, visto que estamos a dissertar sobre uma sociedade extremamente religiosa, onde o culto particular era celebrado. Assim, oratórios e imagens religiosas também contribuíam para a ornamentação das casas e consequentemente, como forma de distinção perante a sociedade. Com isto em mente, procuramos empreender um estudo sobre a cultura material da elite agrária piranguense em fins da primeira metade do século XIX, focando em nossa análise objetos utilitários e de uso doméstico. Como demonstrado, a historiografia brasileira caminha em direção à consolidação desta área de estudo rica e de amplas possibilidades de pesquisa que é a da cultura material. Exemplo disto são tentativas recentes de aprofundamento teórico neste campo de pesquisa, como a apresentada por José Newton Coelho Meneses, que propôs a mudança da nomenclatura da noção cultura material para elementos materiais da cultura, com o sentido de se evitar a contraposição entre material e imaterial, como dois campos que não convergem. Nas palavras do autor: Podemos distinguir a materialidade da cultura das representações mentais e do pensamento religioso, político, filosófico, artístico, da construção linguística etc, mas não podemos separá-los, tratá-los na individualidade redutiva. Advém dessa premissa, evitarmos a expressão cultura material e adotarmos elementos materiais da cultura, do mesmo modo que estranhamos acima a ideia de uma cultura material e de uma cultura imaterial, separadas em didatismo simplificador. No processo de vivência, ou de outra forma, na dinâmica das experiências humanas ao viver, tudo é cultura, intrinsecamente compondo repertórios de construções de realidades.79 79 MENESES, José Newton Coelho. Apresentação do Dossiê: Elementos materiais da cultura e patrimônio. In: Vária História, vol. 27, n. 46, Belo Horizonte, jul/dez 2011, p. 400.

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Deste modo, Meneses busca salientar que o estudo do material, na história das sociedades, não está apartado da cultura em suas variadas dimensões imateriais, como valores, símbolos, modos de fazer e técnicas. Vistos desta forma, os elementos materiais da cultura podem ser utilizados pelo historiador como meios para se interpretar aspectos culturais de sociedades em diversas temporalidades. Por outro lado, em especial quando se trata de analisar obras em marfim, há uma carência documental, situação que dificulta o aprofundamento sobre os diversos aspectos de seu estudo. Assim, o historiador tem que desenvolver estudos a partir de fontes que possuem muitas falhas, como os inventários post-mortem, muito inconstantes no que diz respeito às informações que podem ser colhidas. Pesquisas sobre os objetos em marfim, tema muito recente na historiografia brasileira, ainda estão muito restritas à análise estilística das peças sacras esculpidas neste suporte. Neste sentido, é preciso avançar mais no entendimento de seus usos e significados para a sociedade colonial/imperial. A análise dos quatro inventários contendo bens de marfim deu enfoque à suas descrições e buscou relacionar a posse dos objetos com os hábitos e costumes, no sentido de contribuir para uma melhor interpretação da sociedade piranguense. Por fim, esperamos que esta análise contribua, mesmo que de forma limitada, para uma melhor compreensão da posse de itens materiais de distinção e hierarquização na sociedade mineira do Oitocentos de forma geral e da elite piranguense mais especificamente, que através de seus inventários, nos deixaram pistas de como levavam suas vidas no dia-a-dia e de como se utilizavam de objetos do cotidiano para construírem uma representação social de si mesmos.

332 Capítulo 10 - “Facas, garfos, sinete e leque de marfim”

Autores CAROLINA PERPÉTUO CORRÊA é doutoranda em História Social na UFRJ. Especialista em comércio (escravizados, marfins e outras mercadorias) entre o Brasil e a África Centro-Ocidental, demografia histórica, escravidão no Brasil e na África. Principais artigos publicados: A trajetória econômica da Comarca do Rio das Velhas: um estudo das estruturas de posse de escravos e as relações com o mercado internacional de escravos: século XIX (Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo: Annablume, 2008); Comércio de Escravos em Minas Gerais no século XIX: o que podem nos ensinar os registros de batismo de escravos adultos (Anais do XII Encontro Sobre Economia Mineira, 2006). EDUARDO FRANÇA PAIVA é professor de História da UFMG. Especialista em História da América Portuguesa e conexões com África, América Espanhola e Europa, aborda, principalmente, os seguintes temas: escravidão, história social da cultura, dinâmicas de mestiçagens, trânsito material e cultural, história & iconografia. É investigador dos projetos A produção, circulação e utilização de marfins africanos no espaço atlântico entre os séculos XV e XIX (UFMG e FLUL) e African Ivories Atlantic World: a reassessment of Luso-African ivories, desenvolvido pela Universidade de Lisboa, Universidade de Évora e Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de diversos livros e dezenas de artigos tais como Escravidão e Universo Cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-1789 (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006); “Usos e costumes da terra”: o viver e o sentir nos relatos testamentais e nos inventários post-mortem das Minas Gerais Setecentistas (Rio de Janeiro: Mauad X, 2015). FELIPE SILVEIRA DE OLIVEIRA MALACCO é doutorando em História Social na UFMG. Autor da dissertação “O Gâmbia no Mundo Atlântico - Fulas, Jalofos e Mandingas no comércio global Moderno (1580-1630)” (UFMG, 2016). Artigos publicados: Estudos sobre a África Ocidental: dinâmicas culturais, diálogos atlântico (Coritiba: Prismas, 2016); Desafios no trabalho com a (re)construção do imaginário sobre o continente africano (Belo Horizonte: Centro Pedagógico da UFMG, 2015). O Marfim no Mundo Moderno

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GUILHERME AUGUSTO DO NASCIMENTO E SILVA é doutorando em História Social na UFMG, autor de diversos artigos sobre escravidão e arte em Minas Gerais no século XVIII. Principais publicações: Senhores e Escravos na Sociedade Piranguense Oitocentista (Anais do XVI Seminário sobre a economia mineira. Belo Horizonte: UFMG/ Cedeplar, 2014); Um rastro de poeira e tinta. Substratos para a pesquisa sobre a pintura de forro do santuário de Bom Jesus de Matosinhos de Santo Antônio do Pirapetinga, séculos XVIII e XIX (Anais Eletrônicos do II Encontro de Pesquisa em História da UFMG. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - UFMG, 2013). JORGE LÚZIO MATOS SILVA é professor de História na UNIFAI e pesquisador no Museu de Arte Sacra de São Paulo (MASP). Autor de vários artigos sobre arte em marfim na Índia e a influência da cultura indiana no catolicismo, dentre eles destacamos The Orient in the New World: The Carreira da Índia and the Flows between Asia and Portuguese America (Asian Diasporic Visual Cultures and the Americas); O legado das esculturas e templos védicos em composições estéticas da dança clássica indiana (Anais Oriente-se: Ampliando Fronteiras, 2014). MÁRCIO MOTA PEREIRA é doutorando em História Social na UFMG, onde desenvolve pesquisas com ênfase na modernidade portuguesa em temas que versam sobre a educação, o saber, as artes e as ciências. Principais publicações: As Luzes se ascendem em África: Viagens filosóficas de um naturalista luso-brasileiro em Angola (e-Hum, 2016); A circulação de impressos pragmáticos publicados pela Tipografia Literária do Arco do Cego na Capitania de Minas Gerais (Estudios Históricos “Rivera”, 2015). MARIZA DE CARVALHO SOARES é professora da pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense – Rio de Janeiro. Coordena o projeto de pesquisa sobre a coleção de objetos africanos do Museu Nacional do Rio de Janeiro onde atua como pesquisadora-colaboradora e curadora da coleção etnográfica africana. É pesquisadora convidada do projeto “African Ivories Atlantic World: a reassessment of Luso-African ivories”, desenvolvido pela Universidade de Lisboa, Universidade de Évora e Universidade Federal de Minas Gerais. Publicou vários artigos, capítulos de livros e editou duas coletâneas sempre com temas relativos a escravidão e diáspora africana 334 Vanicléia Silva Santos - Organizadora

no Brasil. Heathens among the Flock: Converting African-Born Slaves in Eighteenth-Century Rio de Janeiro (Slavery & Abolition, 2015); People of Faith. Slavery and African Catholics in Eighteenth-Century Rio de Janeiro (Durham: Duke University Press, 2011). RENÉ LOMMEZ GOMES é professor do curso de Museologia da Escola de Ciência da Informação da UFMG, especialista em história da arte, história das coleções, curadoria e patrimônio. É investigador integrante dos projetos “African Ivories Atlantic World: a reassessment of Luso-African ivories”, desenvolvido pela Universidade de Lisboa, Universidade de Évora e Universidade Federal de Minas Gerais, bem como do projeto A produção, circulação e utilização de marfins africanos no espaço atlântico entre os séculos XV e XIX (UFMG e FLUL). É subcoordenador da Rede de Museus e Espaços de Ciências e Cultura da UFMG e consultor do setor de cultura da Unesco. É autor de diversos artigos e capítulos de livro sobre museologia, arte colonial brasileira e história de Belo Horizonte, tais como: Jeanne Louise Milde, escultora e educadora (São Paulo: Narrativas Um, 2014); Respirar e Construir: um refrão para o Brasil moderno (Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012). ROGÉRIA CRISTINA ALVES é doutoranda em História Social na UFMG. Investigadora integrante dos projetos de pesquisa internacional “African Ivories Atlantic World: a reassessment of Luso-African ivories”, desenvolvido pela Universidade de Lisboa, Universidade de Évora e Universidade Federal de Minas Gerais e A produção, circulação e utilização de marfins africanos no espaço atlântico entre os séculos XV e XIX (UFMG e FLUL). Principais publicações: A riqueza na medida do possível (Revista de História da UEG, 2013); Cativos do reino: trânsito de culturas e pessoas no império português (Revista Ultramares, 2013). SÍLVIO MARCUS DE SOUZA CORREA é professor de História da África da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Foi pesquisador visitante no Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) de Lisboa (verão 2013) e no Instituto de Estudos Avançados de Paris (2013-2014). Nos últimos anos, esteve em missão de trabalho na Namíbia (2012), Senegal (2014), Angola (2015) e Togo (2017). Suas pesquisas mais recentes tratam da história visual do colonialismo em África. É bolsista PQ do CNPq. O Marfim no Mundo Moderno

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VANICLÉIA SILVA SANTOS é professora de História da África da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. Coordena o projeto A produção, circulação e utilização de marfins africanos no espaço atlântico entre os séculos XV e XIX. É pesquisadora do projeto “African Ivories Atlantic World: a reassessment of Luso-African ivories”, desenvolvido pela Universidade de Lisboa, Universidade de Évora e Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do Centro de Estudos Africanos (CEA/UFMG). Membro do Comitê Científico Internacional da UNESCO para Elaboração do IX Volume de História Geral da África (2013-2016). Co-autora do livro África e Brasil no Mundo Moderno (São Paulo: Annablume, 2012) e de vários artigos, dos quais destacamos Acervos em marfim em Minas Gerais: documentos, estética, materialidade e trânsitos (Temporalidades, 2016); Afro-Brazilian and Afro-Portuguese in the Iberian Inquisition in the 17th and 18th Centuries (Londres: Routledge, Taylor & Francis Group, 2013).

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O projeto O projeto internacional de investigação “Marfins Africanos no Mundo Atlântico / African Ivories in the Atlantic World” (PTDC/ EPH-PAT/1810/2014), co-financiado pela Fundação para a ciência e a Tecnologia de Portugal e pelo Centro de Estudos Africanos da UFMG, integra 28 investigadores da Universidade de Lisboa, da Universidade de Évora e da Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil, num estudo de três anos sobre o comércio de marfim e os objetos africanos e luso-africanos. O projeto tem em curso o primeiro estudo abrangente dos marfins africanos, do século XV ao XVIII, que se encontram em coleções de Portugal e do Brasil (Minas Gerais). Os principais objetivos deste projeto são: reconsiderar a percepção de marfins luso-africanos; reavaliar a sua hibridez artística; e identificar obras que tem sido negligenciadas.

Unidade de investigação principal / Projeto FCT Centro de História da Universidade de Lisboa

Instituição proponente / Projeto FCT Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Unidades de investigação adicional ARTIS – Instituto de História da Arte/ULisboa ILAB/EBA/UFMG – Laboratório de Documentação Científica por Imagem Laboratório HERCULES LACICOR – Laboratório de Ciência da Conservação

Instituições participantes Universidade de Évora Universidade Federal de Minas Gerais

Equipe Investigador Responsável Peter Mark – CH-ULisboa/Wesleyan University O Marfim no Mundo Moderno

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Coordenadores das equipes José da Silva Horta – CH-ULisboa Vanicléia Silva Santos – Universidade Federal de Minas Gerais Consultores do projeto Cécile Fromont – University of Chicago Dominique Malaquias – Université Paris 1/Panthéon-Sorbonne Frederick John Lamp – Yale University/retired Curator of African Art Mariza de Carvalho Soares – Universidade Federal Fluminense

Equipe de investigação Ana Panisset – UFMG Ana Teresa Caldeira – Laboratório HERCULES/UÉ Antônio Candeias – Laboratório HERCULES/UÉ Bernardo de Sá Nogueira – CH-ULisboa Carlos Almeida – CH-ULisboa Cristina Barrocas Dias – Laboratório HERCULES/ UÉ Eduardo França Paiva – UFMG Hugo Miguel Crespo – CH-ULisboa Inês Meira Araujo – CH-ULisboa Isis de Melo Molinari Antunes – UFMG João Ferreira Dias – CH-ULisboa João Gime Luís – CH-ULisboa José da Silva Horta – CH-ULisboa Luís Frederico Dias Antunes – CH-ULisboa Luís U. Afonso – ARTIS/IHA Luiz Antônio Cruz Souza – LACICOR/UFMG Manuela Cantino – CH-ULisboa/Sociedade de Geografia de Lisboa Maria Manuel Torrão – CH-ULisboa Mariana Rabêlo de Farias – UFMG Peter Mark – CH-ULisboa – CH-ULisboa/Wesleyan Univesity Renata Romualdo Diório – UFMG René Lommez Gomes – UFMG Rogéria Cristina Alves – UFMG Thais Gontijo Venuto – UFMG Vanicléia Silva Santos – UFMG Vitor Serrão – ARTIS/IHA Yacy-Ara Froner – UFMG

Bolseiros do projeto FCT Mafalda Cordeiro – ULisboa Tiago Rodrigues – ULisboa

Investigadores colaboradores do projeto Professores Alexandre Leão – iLAB-EBA/UFMG João Cura D’Ars Figueiredo – LACICOR-EBA/UFMG Jorge Lúzio – UNIFAI/Museu de Artes Sacras de São Paulo Doutorando Felipe Malacco – PPGH/ Dep. História/UFMG Mestres/Mestrandos André Onofre Limírio Chaves – PPGH/ Dep. História/UFMG Amanda Luzia da Silva – LAPA/MHNJB/UFMG Mafalda Cordeiro – Ulisboa Tiago Rodrigues – ULisboa Graduandos Alexandre Costa – EBA/ FAPEMIG-BAT Aline Raddichi – Dep. História/UFMG Carolina Vaz de Carvalho – ECI/UFMG Daniela Coelho Brandão – Dep. História/UFMG Danielle Cardoso – EBA/ FAPEMIG BAT Eliana Aparecida Rodrigues – ECI/UFMG Elizabeth Castro Moreno - ECI/UFMG Hudson Dias – ECI/UFMG Maria Celina Machado – ECI/UFMG Marina Laís de Lima – EBA/UFMG Naiara Cristina Oliveira Andrade – Dep. História/UFMG Thais Adriane Souza – ECI/UFMG

Comissão organizadora do Seminário O marfim na História Moderna: comércio, fé, status social e colecionismo Renata Romualdo Diório – FAFICH/UFMG Rogéria Cristina Alves – FAFICH/UFMG Thais Gontijo Venuto – EBA/UFMG Alexandre Oliveira Costa – EBA/UFMG Mariana Rabêlo de Farias – FAFICH/UFMG

Realização

Centro de Estudos Africanos – CEA/UFMG

Financiamento

COMPETE – Programa Operacional Factores de Competitividade, Portugal QREN – Quadro de Referência Estratégico Nacional, Portugal FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Portugal FEDER – Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional União Europeia Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais – FAPEMIG, Brasil Centro de Estudos Africanos – CEA/UFMG

Apoio

Centro de Estudos sobre a Presença Africana no Mundo Moderno – CEPAMM/UFMG Departamento de História e Programa de Pós-Graduação – FAFICH/UFMG Diretoria de Relações Internacionais – DRI/UFMG Escola de Belas Artes – EBA/UFMG Escola de Ciência da Informação – ECI/UFMG Espaços UFMG do Conhecimento Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH/UFMG Laboratório de Ciência da Conservação – LACICOR-EBA/UFMG Laboratório de Documentação Científica por Imagem – iLABEBA/UFMG

340 Vanicléia Silva Santos - Organizadora