O lugar da teoria literária

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O LUGAR DA TEORIA LITERÁRIA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Reitora Roselane Neckel Vice-Reitora Lúcia Helena Martins Pacheco

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André Cechinel (Organização)

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2016

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© 2016

Dos autores

Coordenação editorial: Paulo Roberto da Silva Capa: Leonardo Gomes da Silva Editoração: Carla da Silva Flor Revisão: Heloisa Hübbe de Miranda

Ficha Catalográfica (Catalogação na publicação pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina) L951 O lugar da teoria literária / Organização, André Cechinel. – Florianó polis : EdUFSC ; Criciúma : Ediunesc, 2016.

441 p. : il.



Inclui bibliografia.

1. Literatura – História e crítica – Teoria, etc. 2. Literatura – Estudo e ensino. I. Cechinel, André. CDU: 82.0 ISBN 978-85-328-0752-6

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem prévia permissão por escrito da Editora da UFSC. Impresso no Brasil

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Sumário

Apresentação........................................................................................................ 7 André Cechinel

I Fim da Teoria..................................................................... 11 1 ­– O que aconteceu com a Teoria?............................................................... 13 Fabio Akcelrud Durão

2 ­– Sobre a estranha morte da Teoria (com tê maiúsculo)......................... 29 Sérgio Luiz Prado Bellei

3 ­– Os fins da teoria......................................................................................... 57 Peter Barry

II Estado da teoria................................................................ 81 4 ­– Teoria literária hoje................................................................................... 83 Jonathan Culler

5 ­– Teoria e software: reflexões sobre a divisão de trabalho nas Letras ontem e hoje................................................................................. 101 Márcio Seligmann-Silva

6 ­– Sem a imagem, a vida seria impossível: um trajeto sobre a recente produção de Luiz Costa Lima.................................................. 113 Aline Magalhães Pinto

7 ­– Crise ou drástica mudança? Análise de um caso................................ 145 Luiz Costa Lima

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III Lugares da teoria.......................................................... 159 8 ­– Lugares da (teoria da) literatura: desafios............................................ 161 Ivete Walty

9 ­– Da teoria como resposta: a modernidade crítica e o (ter) lugar da teoria literária................................................................... 179 Nabil Araújo

10 ­– Teorizar é metaforizar............................................................................. 217 Eneida Maria de Souza

IV Literatura pós-Teoria.................................................... 225 11 ­– Rastros Autorais da Teoria: o caso Bartleby......................................... 227 André Cechinel

12 ­– Kakfa, Rulfo, Beckett: retorno ao mito................................................. 241 Eduardo Subirats

13 ­– Literatura digital, uma experiência possível........................................ 261 Cristiano de Sales

V Poesia, corpo, psicanálise.............................................. 273 14 ­– A identidade da poesia e as teorias do poético.................................... 275 Maria da Glória Bordini

15 ­– Algumas questões sobre corpo e literatura.......................................... 293 Alckmar Luiz dos Santos

16 ­– Algumas questões sobre a voz e(m) performance na Literatura....... 319 Dalva de Souza Lobo

17 ­– Literatura e psicanálise: escrita e teoria como práticas da destituição................................................................................................. 353 Flavia Trocoli

VI Literatura e ensino........................................................ 371 18 ­– Há lugar para a teoria da literatura na sala de aula?.......................... 373 Alamir Aquino Corrêa

19 ­– A Teoria da Literatura nos bancos escolares....................................... 395 Regina Zilberman

20 ­– O que fica do que passa: considerações sobre o estudo e o ensino da literatura.................................................................................. 419 Paulo Franchetti

Sobre os autores .............................................................................................. 435

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Apresentação

“Teoria literária”, “teoria (literária)” ou simplesmente “Teoria”, com “T” maiúsculo, conforme sinaliza, entre outros, a Norton Anthology of Theory and Criticism? Ou estaríamos vivenciando, então, uma condição “pós-Teórica”, a célebre “teoria depois da Teoria”, debatida à exaustão por livros como Reading After Theory (2002), de Valentine Cunningham, The Future of Theory (2002), de Jean-Michel Rabaté, e After Theory (2003), de Terry Eagleton? Ora, se, por um lado, os desdobramentos recentes da teoria literária (permanece a incerteza em torno da nomenclatura) indicam certa vitalidade do campo – cabe citar, por exemplo, os “estudos animais”, a “ecocrítica”, os “estudos pós-humanos”, os novos rumos tomados pela “narratologia” etc., desenvolvimentos discutidos por Jonathan Culler em capítulo presente neste volume –, é bem verdade que, por outro lado, as antologias ou reader’s guides não raro agora incluem seções sobre os duros golpes desferidos contra a Teoria nas últimas décadas do século XX. O livro Beginning Theory: An Introduction to Literary and Cultural Theory (2009), de Peter Barry, por exemplo, ao recontar a história da teoria literária em dez eventos, estabelece um movimento progressivo que culmina com episódios que, segundo o autor, antecipam os sintomas do que seria o inevitável declínio do império teórico: entre outros, a revelação dos escritos antissemitas que Paul de Man redigiu durante os anos de 19391943; o famoso “escândalo Sokal”, em que um artigo repleto de clichês pósmodernos conquista as páginas de um importante periódico acadêmico da Duke University, o Social Text; por fim, a publicação dos ensaios em

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que Jean Baudrillard defende a improvável tese de que “A Guerra do Golfo nunca aconteceu”. Já o livro Theory’s empire, editado por Daphne Patai e Will H. Corral e publicado em 2005, parte para um embate ainda mais direto contra os supostos detratores da literatura: a antologia do dissenso surge, segundo os organizadores, “num momento em que as discussões teóricas sobre literatura não apenas tornaram-se estagnantes, como livros e artigos são publicados em defesa dos próprios impasses teóricos que conduziram a essa imobilidade” (PATAI; CORRAL, 2005, p. 1). Haveria nas operações da Teoria, portanto, um gesto circular e autorregulador, capaz tão somente de reafirmar de um ponto de vista teórico as condições produtoras de determinados impasses. No Brasil, paralelamente a essas questões, o debate aproxima-se também das condições de pesquisa em teoria literária – e em Letras, de modo geral – num país que reserva às chamadas “humanidades” um lugar marginal. Por aqui – talvez ainda, por sorte, sem os mesmos resultados alcançados em outros países –, buscamos nos aproximar do universo da literatura administrada, do management acadêmico que automatiza as pesquisas em nome de um produtivismo inofensivo. Em texto intitulado “A pesquisa como desejo de vazio”, Raúl Antelo chama a atenção para o processo de expansão inflacionária que toca alguns departamentos de teoria literária: “[...] sempre me questiono acerca da destinação efetiva desses jovens pesquisadores maciçamente recrutados. Haverá instituições para absorvê-los ou seu cotidiano será só frustração, entregues que estão à mais cruel disputa por um posto ao sol?” (ANTELO, 2012, p. 21). Prevalecem, nesse contexto, as produções esquemáticas, os repetitivos artigos “x em y”, “[...] sendo x um gênero ou uma corrente de pensamento dada e sendo y um autor ou uma obra específica” (ANTELO, 2012, p. 22). Luiz Costa Lima, por sua vez, no livro Frestras: a teorização em um país periférico, acrescenta a este uma série de outros problemas, constatados em tom de incredulidade: alunos pouco qualificados, condições salariais precárias, a pobreza de nossas bibliotecas etc. – “tudo isso nos leva a pensar que é a própria sociedade brasileira que desqualifica a relevância da questão intelectual” (LIMA, 2013, p. 475). Como deixar de associar essas questões aos problemas que se referem especificamente à teoria literária e ao seu lugar na universidade? Logo no início do capítulo intitulado “O que aconteceu com a teoria?”, que integra este volume, o professor da Unicamp Fabio Akcelrud Durão

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(p. 13) observa que “a controvérsia em torno da morte ou fim da Teoria ainda é nova; de fato, é um dos primeiros filhos legítimos do século XXI”. Ora, o objetivo do livro O lugar da teoria literária é justamente debater os impasses que pairam sobre a teoria literária e o lugar ocupado pela disciplina hoje na universidade, mas também seu impacto sobre o ensino de literatura na escola. Eis o que foi proposto na ementa enviada aos autores que aceitaram o desafio de participar deste livro:

Todos os vinte capítulos que compõem O lugar da teoria literária são, em suma, possibilidades de respostas às questões apresentadas pela ementa acima ou que dela decorrem. Gostaria de agradecer a todos os autores o gentil retorno que deram à proposta desde o primeiro contato. Agradeço, ainda, à Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc) e ao Grupo de Pesquisa Littera (Unesc), pela concessão de parte dos recursos que possibilitaram a publicação do volume, bem como à Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (EdUFSC), na figura de seu diretor executivo, Fábio Luiz Lopes da Silva, que acolheu a ideia inicial com entusiasmo e conduziu a execução do livro com dedicação. Por fim, sou grato à Editora da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Ediunesc),

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APRESENTAÇÃO

Em 2003, a partir de uma conferência organizada em torno de nomes como Jacques Derrida, Frank Kermode, Toril Moi e Christopher Norris, Michael Payne e John Schad publicam o livro life. after. theory, cujo intuito é, em linhas gerais, “discutir se a coruja de Minerva, o pássaro da teoria, foi finalmente abatida, se ela está desgastada como um albatroz morto, ou se então se lança a um último voo, tardio e glorioso”. Ora, mais que um tratado sobre a chamada crise da teoria, o livro pode ser visto como sintoma de um problema que, ao longo da última década, foi repetidas vezes diagnosticado [...]. No Brasil, também voltada ao problema particular da “teorização em um país periférico”, como indica o subtítulo de um dos livros recentes de Luiz Costa Lima, a questão da crise da teoria não deixou de preocupar teóricos como Eneida Maria de Souza, Leyla Perrone-Moisés e o próprio Luiz Costa Lima, apenas para citar alguns exemplos. Inserido nessa discussão, o presente livro, intitulado O lugar da teoria literária, propõe-se a reunir trabalhos que problematizem justamente o espaço ocupado pela teoria literária como disciplina acadêmica num momento dominado pelo discurso da suposta crise da teoria.

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que também recebeu o projeto com interesse e aceitou a parceria com a EdUFSC. Sobre a disposição dos capítulos, a partir de uma sugestão inicial feita por Fabio Durão – a quem sou particularmente grato pela atenção concedida ao projeto desde o primeiro momento –, optei por dividir o livro em seis seções fundamentais, de acordo com os debates travados pelos autores: “I Fim da Teoria”; “II Estado da teoria”; “III Lugares da teoria”; “IV Literatura pós-Teoria”; “V Poesia, corpo, psicanálise”; e “VI Literatura e ensino”. Ao estabelecer como ponto de partida um balanço do suposto “fim da Teoria”, o volume busca tanto assinalar a permanência do discurso teórico depois do chamado “império da Teoria” quanto sinalizar a possibilidade de travessia da “Teoria” para a “teoria”, conforme indicam os títulos das demais seções. Seja como for, independentemente do agrupamento aqui proposto, vale a pena ressaltar uma vez mais que cada capítulo constitui uma tentativa de resposta aos problemas lançados pela ementa, o que permite ao leitor reconfigurar os vínculos entre os vários autores e textos. Por fim, é evidente que o lugar da teoria literária é sempre um lugar plural. Preservei o título do livro no singular, no entanto, apenas para acentuar que a pluralidade da disciplina não pode apagar a singularidade de seus objetos. “Ser singular plural”, eis uma das tarefas que ora ainda nos cabe. André Cechinel

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Organizador

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Referências ANTELO, Raúl. A pesquisa como desejo de vazio. In: SCRAMIM, Susana (Org.). O contemporâneo na crítica literária. São Paulo: Iluminuras, 2012. p. 15-33. BARRY, Peter. Beginning Theory. 3. ed. Machester: Manchester University Press, 2009. LIMA, Luiz Costa. Frestas: a teorização em um país periférico. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2013. PATAI, Daphne; CORRAL, Will H. (Ed.). Theory’s empire: an anthology of dissent. New York: Columbia University Press, 2005.

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I Fim da Teoria

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O que aconteceu com a Teoria? Fabio Akcelrud Durão A queda não estava prestes a acontecer, mas já tinha acontecido. José Paulo Paes

I A controvérsia em torno da morte ou fim da Teoria ainda é nova; de fato, é um dos primeiros filhos legítimos do século XXI. Ela compreende diferentes pontos de vista: reivindicações de falta de novidade, pois, “na verdade, não há nada na Teoria que tenha se mostrado realmente revolucionário” (CUNNINGHAM, 2002, p. 29); proclamações cheias de regozijo dos puristas, geralmente conservadores, para quem a Teoria é um entrave; queixas daqueles que creem que falta o contrário, que a Teoria é insuficientemente teorizada, que foi domesticada pelos readers e cursos introdutórios de graduação. Para uns a Teoria sucumbe por ser politizada demais, para outros, só poderá sobreviver com uma politização crescente (BUTLER, GUILLORY; THOMAS, 2000); existem críticos que reclamam do esquecimento do estético, ao passo que outros se queixam da incapacidade da Teoria de exorcizar a estética por completo – com efeito, para cada um de seus aspectos há posições contrastantes, muitas delas polêmicas, e algumas com certa repercussão para além do espaço estritamente universitário.

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Algo dessa discussão será retomado abaixo; no entanto, é preciso começar chamando a atenção para o que há de desconcertante em trazer para o Brasil a questão do término ou falecimento da Teoria, pois por aqui ela mal surgiu como um objeto de investigação. Seu estatuto ontológico, por assim dizer, é o da ferramenta: entre nós, a Teoria é algo que primordialmente se usa, aplica-se. As reflexões metateóricas (e não o comentário de autores: mais uma introdução a Agamben...) geralmente aparecem em português em textos traduzidos, como os de Culler (1999, p. 11-25), Jameson (1992) ou Cusset (2008). Para dizer muito sucintamente, e à guisa de definição: a Teoria (com “T” maiúsculo)1 representa o resultado de um processo de autonomização, de separação vis-à-vis a teoria literária, que, como o próprio nome atesta, ainda guardava alguma espécie de vínculo necessário, por mais tênue que fosse, com a literatura. Embora a Teoria hoje ainda ocasionalmente lide com obras ficcionais, isso já não é mais imprescindível: seu escopo de atuação confunde-se com o das práticas significantes e suas metodologias são variadas, o que faz com que não mais respeite as divisões disciplinares usuais das ciências humanas. Essa promessa de liberdade, no entanto, sempre encontrou empecilhos consideráveis, e a Teoria desde seu nascimento esteve sob o signo da crise, tanto seu resultado como resposta a ela.2 A descrição do estado atual da Teoria sofre a interferência do lugar no qual se origina. Os antiteóricos identificam uma situação de desgaste resultante de seus próprios excessos: da linguagem arcana, do afastamento do estético, do apagamento do humano. A Teoria seria assim tão somente um interlúdio, um intervalo motivado pelas exorbitâncias de 1968, já em vias de esgotamento. O momento atual seria o do retorno à apreciação das grandes obras, até então ofuscadas por palavras de ordem. Uma outra narrativa, talvez mais interna, associa-a à absorção do pós-estruturalismo, nos EUA, durante os anos 1960. Seu ápice teria sido alcançado com a desconstrução da Yale School3 nas décadas de 1970 e 1980, que promoveu 1

Ainda que a distinção seja frouxa, “Teoria” refere-se ao campo reflexivo autonomizado, e “teoria”, ao termo não marcado em seu uso geral.

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Para uma introdução crítica a essa nova formação discursiva, que salienta tanto seus ganhos quanto seus impasses, cf. Duráo (2011b). O presente texto é um desdobramento desse livro.

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Compondo a primeira geração estavam Paul de Man, Geoffrey Hartman, Harold Bloom e J. Hillis Miller (cf. BLOOM et al., 1979). Dentre a segunda, destacam-se G. Spivak, Barbara Johnson e Samuel Weber, entre outros.

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“Se a tarefa política é mostrar que a teoria nunca é meramente theoria, no sentido de uma contemplação desinteressada, e insistir que é plenamente política (phronesis ou mesmo praxis), por que não chamar simplesmente essa operação de política, ou alguma permutação necessária de si?” (BUTLER apud RABATÉ, 2002, p. 2, grifo do autor).

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A Duke University Press possui uma série chamada de Post-Contemporary Interventions, editada por Fredric Jameson e Stanley Fish.

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1 – O que aconteceu com a Teoria?

uma total rearticulação dos estudos literários, para em seguida começar um declínio que estenderia até hoje. A consolidação dos Estudos Culturais, com sua tendência para lidar com objetos materiais determinados, e o advento da crítica pós-colonial, imbuída de um ímpeto político explícito, teriam desempenhado um papel significativo nesse processo. Embora fossem influenciados pela própria Teoria, tanto os Estudos Culturais quanto a crítica pós-colonial nela encontraram deficiências: para os primeiros, a Teoria seria por demais abstrata, no fundo, elitista, por não se voltar para os conteúdos concretos das vidas das pessoas; para esta última, sofreria de uma neutralidade que por fim a marcaria ideologicamente. O problema com a postura revisionista é que o ar que respiramos é ele mesmo teórico; prova disso é que com muita facilidade aceitamos que a recusa da teoria encobertaria uma teoria da recusa da teoria – ou, para dizer com outras palavras, temos muita relutância em acreditar que uma relação imediata com as obras, livre de julgamentos prévios, seja possível, ou ao menos que tal imediatidade possa ser construída. Quanto à superação da Teoria sugerida pelos Estudos Culturais ou pela crítica pós-colonial, uma Pós-Teoria vernácula (do latim, “verna”, um escravo doméstico) ou ativista,4 fica a impressão de que a recusa às grandes teorizações poderia ser antes de qualquer coisa um sintoma de uma fraca imaginação teórica, uma incapacidade de criar conceitos capazes de abrir horizontes novos. Além disso, se considerarmos que a Teoria muitas vezes é confundida com o pósestruturalismo ou, em outra chave, com o pós-modernismo, o que viria depois do pós? Como escapar à fragilidade (ou ridículo) do pós-pós?5 Existe, porém, um argumento interessante que coloca a Teoria em perspectiva, e que retoma uma posição já expressada anteriormente. Em Professing Literature, Gerald Graff (2007) mostra que a história da crítica literária da universidade norte-americana apresenta um padrão subjacente a toda mudança conceitual proporcionada pelos diferentes movimentos teóricos: dos classicistas, que foram substituídos pelos filólogos, que foram sucedidos pelos Novos Críticos, que perderam lugar para os

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estruturalistas – em todos esses casos uma lógica intelectual estava em jogo, que fazia com que novos espaços fossem abertos na academia para receber os recém-chegados, sem no entanto haver uma confrontação de fato entre as novas teorias e as outras, até há pouco em voga. Ao invés de se questionar a compartimentalização departamental abre-se um espaço para os novos teóricos – os queer, por exemplo – que doravante conviverão com os velhos professores Novos Críticos, até que estes se aposentem e os primeiros tornem-se dominantes... Por debaixo do aparente progresso científico manifesta-se assim uma dinâmica institucional pouco afeita ao verdadeiro debate, que no fim tem por objetivo a reprodução das estruturas de saber existentes. Longe de ser o arauto de um admirável mundo novo, a Teoria estaria simplesmente seguindo o percurso tradicional das inovações acadêmicas das ciências humanas. Por outro lado, no entanto, é impossível negar que a Teoria trouxe em seu bojo um grau inédito de autoconsciência de si, que ela de certa maneira abriu um horizonte do qual dificilmente se sai sem a rendição que é fechar os olhos. Não seria demais propor que o próprio livro de Graff tem a Teoria como condição de possibilidade de existência, como aquilo que permite o campo de visão dentro do qual se move, que é o da equalização das teorias, sua indistinção a priori. De novo, tentar fazer uma simples superação da Teoria, seja em que sentido for, traz em si um problema performativo, porque será necessário uma teoria para levar a cabo tal superação. É como lembrar-se de esquecer. Some-se a isso que o tema do fim ou da morte exige ele mesmo bastante cautela, pois se trata de um gesto argumentativo já bem conhecido, desde Hegel pelos menos, se não de antes. Sua repetida ocorrência requer uma teorização de segundo grau, que não tome esse tipo de pronunciamento at face value, mas encare-o como figura capaz de ser analisada. A atribuição da morte pode ser vista como pertencendo a um gênero específico, no qual Nietzsche ocuparia um lugar importante; mas ela também pode ser pensada como uma categoria narrativa, uma forma de organização textual que visa a gerar uma dissociação entre o passado e o presente, seja para fazer o luto do primeiro, ou o elogio do último. No caso particular da teoria, restará sempre a suspeita de que a enunciação da morte é na realidade uma estratégia de sobrevivência, porque um de seus procedimentos de perpetuação tem sido o de uma disjunção interna, da geração de um outro a partir de si, uma exterioridade que no fim se mostra

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II Para tentar explicar, ainda que um tanto grosseiramente, como esse estado de coisas veio a ser, gostaria de propor um conjunto de quatro 6

Cf. Durão (2011a) para o caso da noção de “texto”.

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1 – O que aconteceu com a Teoria?

interior, por assim dizer. A maneira avassaladora como foi aceita pelos críticos a matriz argumentativa básica de um Derrida, a projeção reduzida e abstrata de uma continuidade da metafísica da presença, é exemplo disso. A construção dessa homogeneidade (e, é claro, existem várias outras) aponta irresistivelmente para algo que se oponha a ela, a prática de leitura micrológica da desconstrução, que todavia nunca conseguirá subtrair-se à metafísica. Ou seja, defender que a teoria morreu ou findou, e com isso propor alguma alternativa, significa permanecer no âmbito da própria Teoria. Um exemplo disso são as considerações a respeito da preposição “after”, que em inglês (como no alemão “nach”) pode significar tanto após, aquilo que deixa algo para trás, que rompe, quanto “de acordo, segundo”, algo que leva a uma continuidade (PAYNE; SHAD, 2003, p. 10). No limite, em sua manifestação mais superficial, a suposta morte da Teoria pode não ser mais do que uma campanha publicitária; no mundo do espírito. Não obstante, é necessário reconhecer que algo de fato aconteceu com a Teoria. Seus anos heroicos já se foram. Vários de seus conceitos, que tantas promessas traziam, a partir dos quais novas dimensões de sentido pareciam descortinar-se, foram incorporados à rotina acadêmica de produção;6 os novos termos cunhados pelos teóricos de hoje têm um gosto requentado. A Teoria parece não mais conseguir gerar surpresas e abrir caminhos realmente novos (compare-se Agamben com Foucault ou Benjamin, Žižek com Lacan, Flusser com McLuhan): nesse sentido, não mais vive; ainda assim, não está exatamente morta, se isso significar que ela deva (ou possa) ser abandonada por alguma espécie de imediatidade da vida ou frescor da existência. O nome daquilo que não está vivo nem realmente morreu é zumbi. A tarefa de pensar a Teoria hoje é refletir sobre aquilo que fez dela um morto-vivo, um ente que não consegue verdadeiramente morrer – ainda mais uma vez: porque o decretar da morte já implicaria uma teoria – mas cuja vitalidade não se aproxima daquilo que um dia já foi.

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ideias inter-relacionadas, que se reforçam mutuamente. Certamente, cada uma delas poderia ser expandida para o tamanho de um capítulo, porém o aqui exposto deverá ser o suficiente para que o leitor tire suas próprias conclusões. A primeira delas tem um escopo mais amplo e refere-se à natureza geral da cultura hoje. O preço pago pela total absorção desta em um aparato mercantil – essa grande indústria produtora de signos, responsável por fluxos ininterruptos de semiose cada vez mais abrangentes social e psiquicamente (cf. CRARY, 2014; DURÃO, 2008) – é o de uma crescente domesticação. A subsunção, cada vez mais intensa, das mais diversas esferas da vida em uma lógica de mercado traz em si um conjunto de determinantes nocivos, dentre os quais vale salientar: a) o antagonismo como primado ostensivo e geral de socialização: os indivíduos concebemse como mônadas em competição; b) a distinção rígida entre meios e fins: o princípio de uma calculabilidade extrema para um objetivo nunca questionado; e c) o conformismo: a necessidade de se adequar a um aparato de produção cada vez mais centralizado.7 Tudo isso leva a um fechamento do horizonte do pensável, da capacidade de vislumbrar, não exatamente o diferente, mas aquilo que, na realidade, a ultrapassa. Ou para dizer mais claramente: desde o século XIX pelo menos, a cultura floresceu pela erupção de ideias contestatórias em momentos históricos de ebulição cultural. É quase como uma regra geral: a existência do inconformismo – mesmo quando surgindo de mentes a princípio conservadoras – é um pré-requisito para a vitalidade da cultura. Seja nos anos 1920 na Alemanha, que gestaram Adorno, Benjamin, Marcuse e Bloch entre tantos outros;8 na década de 1950 na França, que formou Derrida, Foucault e Deleuze; ou na de 1960 no Brasil, tão bem analisada por Roberto Schwarz (1978) – em todos esses casos efervescência cultural e oposição andam de mãos 7

Sem dúvida, haverá sempre aqueles que defenderão a capilaridade e multiplicidade irredutíveis dos meios de comunicação digitais, da internet e dos celulares. Os argumentos de reivindicação de liberdade no universo dos computadores já existem desde a década de 1990 e têm sido desmentidos um por um. Que haja uma concentração dos aparatos comunicacionais, não significa que o sistema seja fechado. Ele funciona porosamente: o Porta dos Fundos (produtora de vídeos de comédia veiculados na internet) é um exemplo contundente de sucesso meteórico de quem estava de fora, e de adaptação sem fricção ao que já estava montado.

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Vale aqui chamar a atenção para o livro de Alex Demirovič, Der Nonkonformistische Intellektuelle (1999), que mostra pormenorizadamente como T. W. Adorno e Max Horkheimer, longe de ser mandarins da torre de marfim, estavam empenhados em uma práxis intelectual incessante.

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dadas.9 Ora, a revolta cultural não existe sem uma cultura da revolta, que não tenha medo da negatividade e seja capaz de criticar a cultura de dentro. Consequentemente, neste nível mais amplo e abstrato, a revitalização da Teoria dependeria de transformações que levassem ao fortalecimento do inconformismo, tanto político-econômico quanto cultural, do qual a Teoria então faria parte, e não apenas analisaria. Paralela à pressão que tende a converter a cultura em espetáculo, há as mutações por que tem passado a universidade. A agenda neoliberal levou simultaneamente a uma burocratização e precarização estrutural do trabalho acadêmico, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Donoghue (2008) e Ginsberg (2011) apresentam um quadro sombrio para o contexto norte-americano, que contém as universidades que servem de modelo para o resto do mundo. Este último observa que, quando a universidade passa a ser concebida como uma empresa, e a administração é retirada das mãos dos professores, sua natureza muda.

Os efeitos da burocratização vão desde os mais inócuos, como desperdício de recursos com um conjunto de funcionários que não têm o que fazer, até os mais nocivos, como a imposição de códigos de conduta ao corpo docente, a restrição da liberdade de expressão, e a mudança de concepção do que seria a pesquisa acadêmica e a própria ideia de universidade. Como categoria, os professores tendem [...] a ver o estudo e o ensino como fins em si mesmos e a universidade como um meio ou instrumento institucional por meio do qual esses 9

Uma outra maneira de observar o fechamento da cultura é por meio do desaparecimento de qualquer forma de alteridade. Na ausência do outro da cultura, ela converte-se em uma mediação universal, tal qual o dinheiro. Este, por sua vez, passa a confundir-se com a transcendência religiosa, como muito bem articula Teschke (2014).

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1 – O que aconteceu com a Teoria?

A universidade pode ser uma instituição no melhor sentido da palavra, mostrando, com o ensino, que novas formas de pensamento e ação são possíveis. Controlada por administradores, por outro lado, ela não pode ser mais do que aquilo que Stanley Aronowitz com acerto chamou de uma fábrica de pensamento, que oferece um treinamento vocacional mais ou menos sofisticado, voltado para satisfazer às necessidade de outras instituições já estabelecidas nos setores público e privado. (GINSBERG, 2011, p. 3).

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fins podem ser alcançados. Para os administradores, por outro lado, é a pesquisa e a docência que são os meios e não os fins. [...] A maior parte deles manifesta uma perspectiva similar àquela exibida por gerentes ou proprietários. Veem a universidade como o equivalente de uma firma que manufatura bens e que oferece serviços, cujos produtos principais calham ser várias formas de conhecimento ao invés de automóveis, computadores ou alguma engenhoca qualquer. (GINSBERG, 2011, p. 167-168).

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Donoghue oferece um quadro abrangente de enfraquecimento das humanidades em várias esferas, tanto do ponto de vista da estrutura curricular, da erosão da estabilidade no emprego, da imagem social daquilo que chama de liberal education, quanto do mercado de trabalho. O ponto mais saliente de sua análise refere-se ao crescimento e fortalecimento da imagem profissionalizante do ensino superior, para a qual as universidades privadas (for-profit) estão mais bem adequadas.10 Não é de espantar que o trabalho acadêmico tenha sofrido um processo de precarização, pois “entre 1975 e 2007, os professores substitutos [adjuncts] cresceram de 43,2% do corpo docente para 68,7%. Isso coincidiu com a queda do número de professores com estabilidade [tenure] de 56,8% para 31,2%” (ORBESEN, 2013). É necessário reconhecer, como demostra Newfield (2004), que desde o começo a universidade americana esteve intimamente ligada à economia (além da religião) dos Estados Unidos. Isso não quer dizer, entretanto, que aquilo que está sendo imposto à universidade não possa, no final, desfigurar seu próprio conceito a ponto de se transfigurar em outra coisa.11 As consequências disso para a formulação da teoria são óbvias, pois em uma situação de difícil empregabilidade a ousadia da experimentação e a coragem para a crítica ficam inibidas diante da vontade de participar do sistema.12 Fica encorajado, assim, um tipo de docilidade teórica em relação aos pressupostos do fazer da teoria. É possível criticar a estrutura 10

A University of Phoenix é geralmente citada como o exemplo mais consumado de identificação entre universidade e empresa.

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Para uma boa discussão das transformações por que tem passado a universidade desde o século XVIII, cf. Readings (1997).

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É claro, sempre haverá a possibilidade de não participar do sistema; com efeito, a presença de muitos Ph.D’s em filosofia, sociologia, história ou literatura interagindo com pessoas do povo teria o potencial de catalisar a contestação. Cf. aqui o que diz Robert Hullot-Kentor (in DURÃO, 2012, p. 36-39).

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Com efeito, para um acadêmico brasileiro, há um estranhamento quase etnográfico no encontro com a bibliografia sobre a universidade norte-americana. É impossível não se encher de espanto (ou mesmo incredulidade), quando se lê, por exemplo, que nos últimos anos dois terços dos reitores das grandes universidades foram escolhidos por meio de firmas de head hunters. É importante levar em conta, porém, que esse cenário não seria tão distante se houvesse no Brasil uma preponderância das universidades privadas, como parece desejar a política educacional dos partidos de centro-direita do país.

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1 – O que aconteceu com a Teoria?

dos argumentos de uma análise pós-colonial, ou a acuidade de uma interpretação queer, mas questionar a crítica pós-colonial como tal, ou as bases da sexualização queer, é algo que recém-doutor algum ousará, sob o risco de não encontrar emprego. Os professores seniors, quem poderiam fazê-lo, provavelmente não terão mais energia para tanto, se já não tiverem interiorizado os mecanismos que os levaram à tenure. Esse modus operandi da universidade empresarial incentiva o mecanismo da moda, pois a novidade que traz é forte bastante para promover alterações, mas inócua o suficiente para não alterar os fundamentos sobre os quais se move a discussão. Sem dúvida, a crítica à moda pode ser ela mesma criticada por supostamente desconsiderar o aspecto utópico da mudança, a vitalidade do novo; o que é irrefutável, entretanto, é que, com a Teoria, não apenas aumentou o ritmo das publicações, como foi radicalmente reduzida a vida útil destas. São poucos os livros ou artigos que serão lidos depois de vinte anos. O caso mais espantoso disso talvez seja o Empire de Antonio Negri e Michael Hardt. Publicado em 2000 e saudado como “profético”, “a primeira grande e nova síntese teórica do novo milênio” por Jameson, e como “the next big idea” em um longo artigo do New York Times (EAKIN, 2001), teve sua primeira tiragem esgotada em duas semanas. Hoje é muito pouco citado. No Brasil, certamente, o panorama (por enquanto) é outro.13 O sistema nacional de universidades públicas está em expansão, tentando dar conta de uma demanda reprimida. Nosso ensino superior estatal ainda é gratuito, o que facilita que se torne um veículo de mobilidade social; nossos reitores, na maior parte dos casos, são indivíduos que ainda se lembram do que é ser professor; a estabilidade é garantida após o período probatório; a representação da universidade como fixada no tripé ensino-pesquisaextensão é forte o suficiente para não precisar de justificação. Tal grau relativo de autonomia e independência, no entanto, ainda não foi traduzido em imaginação conceitual, mesmo levando em consideração que gozamos

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de notável liberdade ideológica, algo que na Europa já não ocorre com tanta facilidade. É possível postular que o modo de produção intelectual, ao qual as universidades brasileiras tão rapidamente se ajustaram, favorece a quantificação. A implantação da pós-graduação na área de Letras ocorreu na década de 1970, no auge do estruturalismo, que, como é sabido, tinha como norte um ideal de ciência unificador das humanidades. Os Estudos Literários nunca conseguiram impor uma visão própria de si. A única alternativa à cientifização foi por meio da ideia de nação, da literatura como instrumento fundamental para a construção de uma cultura brasileira. Seja como for, o ethos teórico pode ser sentido em vários fenômenos como, por exemplo, uma certa concepção da forma-comentário que prima pelo name dropping, a listagem de autores e a falta de penetração nos objetos. O paroxismo disso acontece quando lemos um artigo e temos a impressão de que tudo está ordenado de maneira a permitir a enunciação de determinadas palavras, toda a economia textual existindo como uma motivação do procedimento – para usar a ideia dos Formalistas Russos – para a invocação de certos conceitos. Em suma, a falta de inventividade no Brasil não emerge da carência de postos de trabalho, mas da velocidade sem razão de ser. Pensando bem, nesse sentido, muito da teoria no Brasil coaduna-se com o pior do que é feito nos Estados Unidos e Europa – o que não deixa de ser um tipo de internacionalização. A teoria não pode ser culpabilizada pelo marasmo da cultura, nem pela transformação da universidade em empresa ou corporação; com efeito, é até mesmo possível postular, como já aludido acima, que ela surge tanto como resistência quanto como resultado desses fatores. Também não é justo condená-la por um terceiro dado fundamental: a fragilidade dos objetos, diretamente proporcional à sua multiplicação. A repetição de padrões narrativos, da maneira de conectar eventos e lidar com relações de causalidade; a persistência do antropomorfismo e do ideal de indivíduo, que leva à naturalização do processo de identificação com o personagem principal; a consolidação de fórmulas oriundas das convenções do gênero dos artefatos (incluindo, é claro, o rótulo de “alta cultura”), ao qual docilmente se submetem; a incorporação do novo ou diferente como elemento rigorosamente superficial, que inexoravelmente será contido pela dinâmica interna do objeto – tudo isso dificulta muito o trabalho de teorização, pois não resta muito a teorizar. Não é à toa que com frequência a análise pareça querer tirar leite de pedra, valorizando o detalhe que não tem implicação

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Baseio-me aqui no trabalho de doutorado em andamento de Maria Clara Biajoli, que oriento, Lições de como matar a literatura: continuações de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen.

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1 – O que aconteceu com a Teoria?

para o todo, ou sucumbindo à autorrepresentação que o objeto faz de si – o estudo, nesse caso, sendo no fundo indistinguível da campanha publicitária da mercadoria cultural. Lendo os Estudos Culturais muitas vezes tem-se a impressão de que a realidade está sendo heroicizada, que Madonna não é um baluarte de resistência, que a autoironia não é uma transcendência, que há uma discrepância ontológica intransponível entre Orgulho e preconceito e as dezenas de continuações do romance, como Orgulho, preconceito e zumbis (GRAHAME-SMITH, 2010), que por sua vez incidem sobre o original, alterando-o e finalmente minando suas forças.14 Talvez o campo que mais sofra com a fraqueza dos objetos seja o dos estudos de cinema, nos Estados Unidos por tradição intimamente ligados aos departamentos de inglês. Diferentemente da televisão, que já nasceu imersa sob a lógica comercial, o cinema ainda aspira à pretensão de arte. Aplicar-lhe uma versão forte do conceito, porém, significa descartar mais de 99% da produção mundial. Os críticos de cinema veem-se, portanto, obrigados a ignorar a grande massa de artefatos que compõe o seu campo de estudo, direcionando seu foco às poucas obras significativas, ou a louvar traços particulares de filmes ruins, como as cores em Avatar (2009), por exemplo. Isso explica, ao menos parcialmente, por que a teoria tenha a tendência a se converter em um gênero próprio – de fato, muito próximo ao épico, devido à sua pretensão de universalidade – e tenha assumido um caráter tão autorreferencial, pelo qual é veementemente criticada por seus detratores. A razão para isso é que, muitas vezes, a teoria é mais interessante do que o mundo que ela se propõe explicar. Por outro lado, isso não significa que a Teoria possa simplesmente ser encarada como um tipo de literatura, como faz Richter (2007), por exemplo, que chama Benjamin e Adorno de escritores. Seja como for, muitas das falhas da Teoria, como, por exemplo, apontadas por Cunningham (2002), podem ser explicadas, ainda que não justificadas, pelo fato de que apresenta demandas aos objetos (incluindo a própria Teoria), que não são capazes de satisfazer. Daí a vontade de ver cesura, silêncio, diferença, infinitude, indeterminação, ambiguidade, indecidibilidade, dialogismo, resistência etc. etc. Mas o que dizer dos problemas mais propriamente internos à Teoria, aqueles que não podem ser reduzidos ao desenvolvimento catastrófico

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do capitalismo, nem ao desmanche da universidade, nem à precarização dos objetos? Vários argumentos já foram invocados para criticá-la; um livro como Theory’s Empire (PATAI; CORRAL, 2005) apresenta uma lista considerável deles, que resumi em 26 pontos (DURÃO, 2011b, p. 42-47), e que seria ocioso retomar aqui. Gostaria ao invés de abordar um tópico já bastante discutido, a saber, o do valor das obras literárias e dos artefatos culturais. Qual a contribuição ainda possível diante da multidão de escritos dedicados ao tema? A ideia é a de que a opulência do debate é ela mesma significativa e já faz parte da questão. Para dizer diretamente: a obsessão com o valor estético e sua denúncia – que, abarca também todas as abordagens relativistas e antifundacionistas, como os canônicos livros de Stanley Fish (1982) ou Barbara Herrnstein Smith (1991), por exemplo – testemunha uma dificuldade geral de julgar, de ordenar objetos e implicar o sujeito no ato valorativo. É instrutivo, neste contexto, invocar a escrita de Adorno, na qual nunca se encontrará uma estrutura predicativa do tipo “x é bom [gut]” ou “y é ruim [schlecht]”, mas que está imbuída até as raízes de um impulso valorativo oriundo da própria imersão no objeto.15 O valor, em outras palavras, é imanente à escrita e não algo que necessite ser tematizado. O foco colocado sobre ele é sintomático de uma incapacidade de experienciá-lo, em um momento no qual a valoração extraestética é uma força motriz avassaladora socialmente. O questionamento do valor literário sem dúvida teve um momento positivo ao colocar em cheque o capital simbólico da arte, sua contribuição para a reprodução das relações de classe; no entanto, essa crítica não apenas levou ao ofuscamento daquilo que na arte alça-se para além de um mero serpara-o-outro, que constitui o em-si do objeto; ela também funcionou como um veículo para expressar um ódio à arte que obliquamente comprova sua existência. Ausente em todas as acusações de privilégio e opressão está uma incapacidade de conceber a cultura como sendo, ao mesmo tempo, culpada, partícipe na dominação social, e agente de crítica desse estado de coisas. Um recente editorial da n+1 traduzido e publicado na revista Alea (2014) discute como a denúncia ao elitismo da literatura converte-se em um novo aristocratismo. Ironicamente, o ataque à chamada alta literatura leva a um novo tipo de competência cultural, que para além de Dante, Shakespeare ou Goethe passa a englobar os quadrinhos, as séries televisivas, o cinema etc., fazendo com que seja muito mais difícil e oneroso acompanhar aquilo 15

Para as implicações disso no debate sobre o cânone literário, cf. Durão (2013).

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que todos estão falando. A abertura do horizonte do citável implica um acesso muito mais irrestrito aos meios de difusão do que algumas dezenas de livros em domínio público, de fácil acesso em bibliotecas. Por fim, o ethos incriminatório combina-se bem tanto com o populismo anti-intelectual brasileiro quanto com o cinismo pós-moderno,16 que permite, por exemplo, que se critique a universidade como aparato repressor e se construa toda uma carreira acadêmica baseada na ocupação de cargos administrativos. Com isso é possível perceber como a mercadorização da cultura, o “tornarempresa” da universidade, a fragilização dos objetos e a precarização da condição de possibilidade do valor implicam-se mutuamente. Tirar a teoria de seu estado de zumbi (possivelmente abrindo mão do “T” maiúsculo) só poderá ocorrer quando esse campo de forças for positivamente rompido, o que, sem uma teorização adequada, não acontecerá.

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Para a elaboração deste conceito, cf. Bewes (1997).

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Referências

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1 – O que aconteceu com a Teoria?

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Sobre a estranha morte da Teoria (com tê maiúsculo) Sérgio Luiz Prado Bellei

2.1 Teoria Falar da Teoria que vem sendo declarada morta há algum tempo exige um trabalho preliminar de definição de termos que leve em conta a distinção, usada com frequência em certos setores da academia angloamericana, entre “Teoria” e “teorias”. Não é tarefa fácil porque a Teoria constitui um campo discursivo que resiste sistematicamente a qualquer modalidade de mapeamento de um objeto específico de estudos a partir da prática de seus representantes maiores. Preparar uma listagem exemplar destes últimos, ainda que incompleta, não constitui grande problema: Jacques Lacan, Roland Barthes, Michel Foucault, Jacques Derrida, Jurgen Habermas, Fredric Jameson, Edward Said, Hélène Cixoux, Julia Kristeva... Estabelecer um objeto de estudos a partir de tais nomes é praticamente impossível. A Teoria, a rigor, não existe enquanto um campo coerente de pressupostos, metodologias, crenças ou preferências ideológicas aplicáveis a um objeto de estudos. Não se pode, portanto, falar com propriedade de uma nova Teoria da literatura no sentido em que era possível falar anteriormente de uma teoria marxista, ou psicanalítica, ou estilística, ou formalista da literatura. O New Criticism ou o Formalismo Russo constituíam campos

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discursivos que podiam ser descritos, com relativa facilidade, em termos de uma metodologia de trabalho e objetivos programados. Para o New Criticism, por exemplo, a tarefa da interpretação bem-sucedida do texto literário dependia de um close reading dedicado ao levantamento de estruturações semânticas sofisticadas, paralelismos, tensões entre sentidos e paradoxos, com o objetivo de tornar visível o texto enquanto objeto estético isolado, na medida do possível, de contextos sociológicos, psicológicos, intencionais ou biográficos. No caso da Teoria, um mapeamento análogo seria impossível. Daí a dificuldade de se produzir uma história da Teoria nos mesmos moldes em que se escreviam histórias das teorias anteriores, que teorizavam sobre um objeto. Como observa Ian Hunter,

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[...] não faz sentido iniciar uma história da teoria com a tentativa de identificar o seu objeto comum ou uma linguagem compartilhada. Ao contrário das teorias científicas, a teoria que surgiu nas humanidades e nas ciências sociais na década de 60 do século passado não era definida por seu objeto porque se constituía a partir de disciplinas voltadas para objetos diversos: a linguística e estudos jurídicos, a literatura e a antropologia, o estudo de narrativas populares e a análise de modalidades econômicas de produção. (HUNTER, 2006, p. 80).

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A Teoria, em resumo, volta-se para objetos dispersos (entre eles, ocasionalmente, a própria literatura) e sem um protocolo comum de expressão. E tanto os objetos como o protocolo podem ser definidos de formas diferentes dependendo da escolha feita pelo teórico em questão. Embora fale com certa regularidade sobre a literatura, Jacques Derrida não a entende como um objeto de estudos e, a rigor, tampouco oferece uma metodologia de leitura do literário. Se há algum “objeto” (o termo é evidentemente inapropriado no caso da desconstrução derridiana) nos estudos de Derrida, este seria a différance que faz da linguagem um horizonte estruturante e não estruturável. Michel Foucault, por outro lado, volta a sua atenção para discursos de poder institucional a serem trabalhados por uma forma de expressão e uma metodologia peculiares e apropriadas ao problema escolhido para exame (a proposta de uma arqueologia do saber em As Palavras e As Coisas, a distinção histórica entre vigiar e punir em questões de poder, o tratamento descontínuo da história, as formas de repressão e controle no excesso discursivo sobre a sexualidade...). O objeto

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da Teoria apresenta-se, portanto, em termos de uma dispersão de propostas alternativas definidas pela escolha idiossincrática do teórico, o que implica a perda do consenso sobre o objeto. Resistindo a definições fáceis, a Teoria pode contudo ser pensada em termos de uma via negativa, ou seja, com a utilização de um procedimento analítico voltado para o que ela não é ou para o que ela rejeita. A lista de rejeições é longa, mas vale a pena citar algumas: a filosofia da presença e das origens, o logocentrismo, o essencialismo, a ontoteologia, as teorias da correspondência entre representação e verdade (inclusive as teorias da mimese, que necessariamente postulam a anterioridade do real em relação à linguagem). O que a Teoria rejeita, em outras palavras, é toda e qualquer possibilidade de fundacionalismo, ou seja, da crença dominante da cultura ocidental que atrela, particularmente a partir de Platão e Aristóteles, a possibilidade de todo conhecimento válido a uma fundação segura que torna possível uma representação verdadeira ou próxima da verdade. E trata-se de uma rejeição que se torna visível na medida em que se desloca o foco de atenção da linguagem enquanto expressão e comunicação para a sua materialidade enquanto sistema de signos sem origem e sem centro. No caso do fundacionalismo, estabelecida uma fundação segura (o sujeito pensante no caso de Descartes, por exemplo), torna-se possível a produção do que Richard Rorty chama de a “representação privilegiada”, ou seja, aquela marcada pela legitimidade da origem fundadora (RORTY, 1979, p. 165). A ruptura com a tradição dominante do fundacionalismo, efetivada a partir do reconhecimento da materialidade da linguagem, não se faz sem os problemas típicos dos conflitos entre ideologias: rejeições fundamentadas e outras nem tanto (a desconstrução de Derrida foi, em seus momentos iniciais, apressadamente entendida como destruição e nihilismo), ressentimentos, discursos passionais. Para ilustrar brevemente esse conflito ideológico escolho, entre várias possibilidades, dois textos exemplares: “A estrutura, o signo e o jogo”, de Jacques Derrida, trabalho originalmente apresentado na Universidade de Johns Hopkins em 21 de outubro de 1966 e publicado posteriormente em A escritura e diferença (DERRIDA, 2005), e o texto do historiador Hayden White, publicado em 1972, em uma coletânea de ensaios sob o título de Liberations e dedicada ao exame de um tema central: “As humanidades em revolução”. Muito embora não haja nenhuma conexão explícita entre os dois textos, a referência de

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White à uma vanguarda contemporânea (representada por nomes como Joyce, Becket, Robbe-Grillet e Cage, entre outros) que ameaça as tradições do humanismo e da mimese porque questiona as hierarquias tradicionais e a possibilidade de precisar “quais seriam os ‘verdadeiros’ objetivos da arte e da vida” (WHITE, 1979, p. 69, grifo do autor) está claramente próxima das propostas de Derrida (na época associadas à vanguarda) a respeito da instabilidade de uma linguagem sem centro. Não custa lembrar, de passagem, a bem conhecida importância que teve a obra de Joyce para a desconstrução derridiana. O texto de Derrida enfatiza, no tratamento da linguagem, um olhar alternativo mais para a sua força do que para o seu poder de produzir significados. Esse olhar tornara-se inevitável após o evento da revolução dos estudos linguísticos promovida por Saussure, que abriu caminho para o “acontecimento de ruptura” em que o conceito dominante de “estrutura centrada” já não conseguia neutralizar, como tinha feito no passado, a força do “jogo da estrutura” (DERRIDA, 2005, p. 230). A estrutura centrada tinha tornado possível à metafísica ocidental garantir, durante séculos, uma “imobilidade fundadora” e uma “certeza tranquilizadora”, ambas operando para aliviar a “angústia” de um sujeito que, incapaz de dominar o jogo, se vê por ele implicado e tem o seu próprio ser por ele constituído. No evento de que fala Derrida, torna-se possível pensar o centro não mais como “lugar fixo”, mas como uma função e um “não lugar” no qual se fazem “indefinidamente substituições de signos” (DERRIDA, 2005, p. 232). O centro existe mas, paradoxalmente, já não pode mais ser simplesmente o centro: estabelecendo-se a si mesmo como presença fundadora, já não pode mais, simultaneamente, deixar de ser afetado por um jogo de sentidos questionadores de sua centralidade. Após tal evento, torna-se inevitável reconhecer a possibilidade de uma outra forma de interpretação que poderia ser chamada de “hermenêutica negativa”: aquela que, justamente, substitui a certeza e o conforto propiciados por centros e origens pela incerteza do jogo fora de controle. Se a hermenêutica positiva “procura decifrar, sonha decifrar uma verdade ou uma origem que escapam ao jogo e à ordem do signo”, a hermenêutica negativa, em contrapartida, “afirma o jogo” e, portanto, recusa-se a aceitar a “presença plena” e o “fundamento tranquilizador” (DERRIDA, 2005, p. 249). Ao questionar o fundacionalismo da hermenêutica positiva, o texto de Derrida coloca em xeque a tradição do humanismo e da mimese na

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2 – Sobre a estranha morte da Teoria (com tê maiúsculo)

cultura ocidental. Hayden White percebe a magnitude dessa crise em virtude do seu potencial para abalar as propostas maiores dos grandes defensores das duas tradições centrais da cultura ocidental: a da mimese e a da hermenêutica positiva. Constituem ambas nada mais nada menos do que as bases de sustentação do projeto de realismo humanista de compreensão do mundo que, originado pelos gregos, chega ao século XX como força dominante, apesar dos esforços iconoclastas das vanguardas. Consiste o projeto, basicamente, na defesa intransigente do princípio da mimese realista não apenas nas artes e na literatura, mas também na ciência. No século XX, são representantes maiores dessa tradição cultural Erich Auerbach, E. H Gombrich e Karl R. Popper. É no potencial da mimese que testa e aperfeiçoa, em um movimento de progressão temporal, modelos ficcionais diversos de representação do mundo que está a grande conquista da cultura ocidental. Trata-se de movimento que vai, aos poucos, deixando para trás as ficções precárias do mito e desenvolve formas de representação mais próximas do real, ainda que a representação perfeita seja inatingível. Para Auerbach, como explica White, a história do realismo avança “do cancelamento dos poderes míticos enquanto conceitos explicativos em questões sociais e psicológicas” e em direção do “cultivo de forças sociais, naturais e psicológicas” enquanto “forças racionais de compreensão intrahistórica” de validade imanente (WHITE, 1972, p. 63). Na teoria da arte de Gombrich, o desenvolvimento da técnica narrativa (na pintura, na escultura, na literatura) de estruturar e fixar o significado de “um momento no tempo” (sem a interferência de princípios explicativos universais) e a conquista “do espaço autônomo estruturado em perspectiva” tornaram possível a “libertação da imaginação humana de sua procura mítica por verdades eternas e absolutas”. E essa libertação abre caminho para o desenvolvimento “da tarefa mais mundana, mas também mais humanamente vantajosa, de controlar a coleta de informações” (WHITE, 1972, p. 61). Karl Popper, por sua vez, envidou esforço heroico para demonstrar que, muito embora a ciência não produza “verdades absolutas nem na investigação da natureza e nem no entendimento da sociedade”, a estratégia por ela desenvolvida para gerar “hipóteses descartáveis” acaba por produzir “descrições cada vez mais elegantes e abrangentes [...] da ‘verdadeira’ natureza do real” (WHITE, 1972, p. 63, grifo do autor). Para os três pensadores, portanto, a ciência, a arte e a literatura ocidentais renunciam ao conhecimento absoluto com o objetivo de

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levar adiante “o mapeamento cuidadoso e controlado da realidade de forma fragmentária, provisória e evolucionária” (WHITE, 1972). O procedimento é de extrema relevância porque permitiu “a expansão do controle que tem o homem sobre o mundo, seja ele natural ou social” (WHITE, 1972, p. 63). Optar por modelos alternativos de conhecimento que venham a negar a mimese e o poder da imaginação significaria escolher o atraso e o “regresso a formas anteriores, arcaicas, infantis e selvagens de imaginação opressora” (WHITE, 1972, p. 61). O questionamento das tradições milenares de que fala White, em resumo, instala uma crise nas formas dominantes de representação ao propor que a hermenêutica positiva, no dizer de Jacques Derrida, é sempre um equívoco, ou seja, o equívoco que consiste em “fixar o texto em uma certa posição, estabelecendo uma tese, um significado, ou uma verdade” (DERRIDA, 1995, p. 96). Trata-se, em outras palavras, do equívoco do fundacionalismo em geral e de sua prática específica no campo dos estudos literários. O questionamento da hermenêutica positiva enquanto discurso hegemônico do Ocidente não poderia deixar de abrir caminho para uma outra crise, de ordem institucional. O ensaio de White ajuda a entender também a natureza desta última ao lembrar que, tradicionalmente, os modelos alternativos de conhecimento questionadores da mimese e do poder da imaginação criativa podiam ser facilmente reprimidos porque não representavam mais do que um “regresso a formas anteriores, arcaicas, infantis e selvagens de imaginação opressora” e, portanto, um perigo a ser evitado (WHITE, 1972, p. 61). Na área de estudos literários, James Joyce seria, por exemplo, um autor que, ao afastar-se da mimese e correr o risco do jogo excessivo do significado, deveria ser olhado com cautela. Na perspectiva dos defensores do que venho chamando aqui de hermenêutica positiva, como diz White (1972, p. 63), “se abandonarmos o contexto histórico – como faz Joyce – estaremos caminhando em direção ao desastre”. O jogo intertextual desprovido da procura pela origem e pelo centro seria mais um momento de decadência cultural em que o jogo da linguagem substitui a verdadeira procura pelo conhecimento. A crise institucional ocorre quando aquilo que podia anteriormente ser entendido como formas arcaicas e infantis de representação torna-se, em relação à hermenêutica positiva, um valor cultural em pé de igualdade e com legitimidade suficiente para ser praticado institucionalmente e, em particular, na instituição universitária.

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Se desaparece a distinção entre a literatura produzida pela imaginação e outros tipos de discurso, se tudo não passa de um jogo de linguagem, os conceitos abrangentes de écriture e “texto” abrem caminho para a afirmação de que o crítico opera em nível de igualdade em relação ao escritor criativo. (WELLEK, 2005, p. 43, grifo do autor).

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Como consequência prática dessa legitimação de uma nova forma de conhecimento, o que conhecemos hoje como “literatura”, por exemplo, vai aos poucos perdendo o prestígio que teve na primeira metade do século XX e o seu estudo passa a ser relegado, em muitos casos, a um segundo plano. É que a literatura pode ser vista agora não mais como uma forma culturalmente privilegiada de expressão e de mapeamento do real, mas apenas como mais uma modalidade da écriture, muito embora marcada por especificidades. René Wellek atenta para o problema já em 1983, em ensaio originalmente publicado em The New Criterion, significativamente denominado “Destroying Literary Studies”. Defensor ferrenho dos esforços realizados para um entendimento da literatura “pelo menos a partir de Aristarco de Alexandria” (circa 220 a 143 BC), passando pelos autores renascentistas e românticos que culminaram nas profundas mudanças metodológicas que surgiram na primeira metade do século XX (o manual de Wellek e Warren (2003), Teoria da Literatura e metodologia dos estudos literários, é evidentemente um marco fundamental na promoção dessas mudanças), Wellek (2005) entende o aparecimento das novas propostas teóricas como um atentado fatal contra os estudos literários que, entendase, promoveram sempre a valorização da literatura em termos de estética. A teoria resultante de tais esforços “dedica-se ao estudo dos princípios, categorias, funções e critérios aplicáveis à literatura em geral” (WELLEK, 2005, p. 41). Essa Teoria é colocada em xeque pelo que Wellek chama de “nova teoria”, aquela que afirma que “o homem vive aprisionado em uma linguagem que não mais se relaciona com a realidade” (WELLEK, 2005). Na sua formulação mais radical, a nova teoria “que promove o fim do homem, nega o indivíduo, e entende a linguagem enquanto um sistema de signos flutuantes [...] conduz a um ceticismo completo e, no limite, ao nihilismo” (WELLEK, 2005, p. 43). E questionando radicalmente as teorias tradicionais, a nova teoria promove a desvalorização do literário.

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Lida retrospectivamente, após mais de três décadas de estudos sistemáticos de pensadores como Derrida e Foucault, as afirmações de Wellek soam infundadas na melhor das hipóteses, absurdas na pior. Mas são historicamente importantes para o entendimento da crise institucional gerada pelo conflito entre a teoria tradicional e a “nova”. No ambiente acadêmico norte-americano (mas também em outros, embora talvez de forma menos intensa) essa crise, pelo menos em um de seus aspectos, colocou em lados opostos os professores antigos que continuavam a cultivar o amor pela literatura e os novos que, equipados com o arsenal teórico, acabavam por promover a marginalização do literário, talvez até mesmo a sua morte. E para os que consideravam o triunfo da teoria responsável pela morte do literário, a morte da Teoria e da sua vocação assassina só poderia ser considerada desejável ou, até mesmo necessária. Quando essa morte ocorre, aparentemente para valer, no final do século XX, uma das perguntas razoáveis a respeito dela diz respeito à possibilidade de ser tal morte, pelo menos em parte, promovida por aqueles acadêmicos que viram, de repente, sua esfera de poder e ação reduzida pelo aparecimento daquilo que caracterizariam como um novo “modismo” teórico predominantemente parisiense. Seja como for, é hora de lançar um olhar mais demorado à morte da teoria.

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2.2 A estranha morte da Teoria

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For, those, whom thou think’st, thou dost overthrow, Die not, poore death, nor yet canst thou kill me. […] One short sleepe past, wee wake eternally, And death shall be no more; death, thou shalt die. John Donne HAMLET What? GHOST I am thy father’s spirit, Doom’d for a certain term to walk the night, And for the day confined to fast in fires,

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Esse estranho hábito que têm os mortos em geral de não morrer, ou seja, de deixar para os vivos espectros perturbadores, rastros intrigantes, tarefas infinitas e legados perenes parece repetir-se novamente na vasta série de óbitos que vêm sendo constatados nas últimas seis ou sete décadas, todos com frequência atribuídos ao avanço da Teoria que, a partir da década de sessenta do século passado, abalou as certezas fundacionalistas. Uma lista incompleta de falecidos não poderia deixar de incluir, por exemplo, o autor, o sujeito, os grandes relatos, a mimese, a literatura, a obra de arte. E entre os principais praticantes da Teoria responsáveis pelos assassinatos encontraríamos os nomes de, por exemplo, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Roland Barthes, Michel Foucault, Jacques Lacan, todos associados a um tempo e lugar específicos: a intelectualidade parisiense das décadas de 1960 a 1980. Em todos os casos, um olhar mais atento perceberia uma certa pressa na produção de atestados de óbito. A morte do autor é provavelmente o exemplo mais visível dessa pressa, particularmente nas propostas de Roland Barthes e Michel Foucault. Morrendo de repente em Barthes, o autor reaparece logo depois em Foucault. No ensaio “A morte do autor”, publicado por Barthes (2004a) em inglês, no periódico norte-americano Aspen, em 1967, a dimensão que adquire maior visibilidade é aquela de uma teoria que pretendia ser, na época, nova e revolucionária. A proposta era questionar radicalmente toda e qualquer origem, marcada sempre pelo estigma do desejo de controle e da tirania, na tentativa de entender o texto enquanto espaço não unificado de dispersão e disseminação de significados fora de controle. Um texto passa, portanto, a ser visto como um intertexto que nenhum autor pode controlar porque cada significado alude não a um ou mais sentidos específicos (ou seja, a uma pluralidade controlável de significados), mas a uma multiplicidade sem limites porque desprovida de centro ou origem. 1

“Pois aqueles que pensas destruir / Não morrem, pobre morte, e a mim não podes matar. [...] / Terminado um sono breve, acordamos para a eternidade / E a morte deixará de existir. Morte, tu morrerás! John Donne. HAMLET: O que? / ESPECTRO: De teu pai sou o espírito, / Destinado por algum tempo a vagar pela noite, / E no dia confinado a jejuar no fogo, / Até que dos crimes que quando vivo cometi / Pelas chamas seja purificado.”

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Till the foul crimes done in my days of nature Are burnt and purged away. (Act 1. Scene V)1

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O texto, dirá Barthes em ensaio posterior (“Da obra ao texto”) “pratica o recuo infinito do significado” (BARTHES, 2004b, p. 69). Ora, um texto que resiste à domesticação em termos da escolha de um ou mais significados totalizantes não apenas reduz o poder de quem o escreve, mas acaba por assumir o controle sobre ele. Já não se pode dizer que o autor é o sujeito que fala. É a linguagem que fala através dele. A proposta é revolucionária principalmente porque se insurge contra o cogito cartesiano que Jacques Lacan já havia questionado em texto de 1966. Aceito o pensamento da textualidade sem centro, tornava-se necessário substituir o cogito ergo sum por ubi cogito ergo sum (LACAN, 1966, p. 275). No segundo cogito, evidentemente, o “eu” desaparece ou morre ao se tornar um efeito do pensamento ou da linguagem. No ensaio de Barthes, é um texto de Balzac que serve para ilustrar a questão. Citando uma frase que apresenta o protagonista de Sarrasine (um castrado disfarçado de mulher), Barthes indaga a respeito de quem poderia ser o autor da descrição e conclui pela impossibilidade de sua determinação, já que a voz que fala não pode ser identificada nem com o “herói da novela”, nem com o “indivíduo Balzac”, nem com a “sabedoria universal” e nem com a “psicologia romântica”. Barthes conclui:

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Não será jamais possível saber, pela simples razão que a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o brancoe-preto em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve. (BARTHES, 2004a, p. 57).

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É bem possível que o uso da expressão “morte do autor”, em Barthes, seja motivado mais por um desejo de radicalização de uma teoria que se quer nova do que pelo rigor teórico que seria de se esperar de um expoente maior do pensamento francês da época. É nesse contexto que a conclusão do ensaio acaba por qualificar e enfraquecer a proposta de “morte”, apresentada no início em termos da dissolução de origens e unidades totalizantes causada pelo intertexto desprovido de centros, inícios ou finais. “O nascimento do leitor” diz Barthes, “deve pagar-se com a morte do Autor” (BARTHES, 2004a, p. 64). Apesar do uso da maiúscula para diferenciar o autor do leitor, não deixam ambos de ter semelhanças profundas, uma vez que é ele, o leitor,

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Muito embora haja aqui um esforço para esvaziar esse leitor das marcas clássicas do humanismo tradicional (a sua biografia, história e psicologia), não deixa ele de constituir-se precisamente como um autor: um sujeito definido como origem e centro produtor de sentidos a serem unificados em um processo de leitura que deve cobrir todos os traços do texto a ser lido. Assassinado na porta de entrada do ensaio, o autor, por assim dizer, retorna pela porta dos fundos. Sua condição é menos a de um morto do que a de um morto-vivo ou de um espectro que retorna. O ensaio de Michel Foucault, “O que é um autor?” ([1969] 2009) complementa e problematiza o texto de Barthes principalmente porque, ao enfatizar as dimensões históricas, econômicas e sociais do conceito de “autor”, consegue entender com mais rigor o que poderia significar a morte da figura autoral em uma dinâmica de aparecimento e desaparecimento. “Não basta”, diz Foucault (2009), “repetir perpetuamente como afirmação vazia que o autor desapareceu”. Para além do desaparecimento, é preciso “localizar o espaço assim deixado vago pela desaparição do autor, seguir atentamente a repartição das lacunas e das falhas e espreitar os locais, as funções livres que essa desaparição faz aparecer” (FOUCAULT, 2009, p. 271). É preciso, em outras palavras, estudar a função autoral em suas quatro características fundamentais: como “forma de propriedade” historicamente codificada no “final do século XVIII e no início do século XIX” (FOUCAULT, 2009, p. 274-275); como forma também historicamente codificada de diferenciação de origens discursivas, de forma a estabelecer a distinção, por exemplo, entre o autor moderno e o autor medieval; como forma de diferenciação entre práticas discursivas em um momento histórico, estabelecendo distinções, por exemplo, entre um “autor filosófico” e um “poeta” (FOUCAULT, 2009, p. 277); e, finalmente, como força discursiva capaz de constituir uma pluralidade de posições autorais que permite diferenciar em um romance, por exemplo, “o relato de um

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[...] o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura: a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é apenas esse alguém que mantêm reunidos em um mesmo campo todos os traços de que é constituído o escrito. (BARTHES, 2004a, p. 64, grifo do autor).

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narrador” enquanto um “alter ego” cuja distância em relação ao escritor pode ser maior ou menor e variar ao longo da mesma obra” (FOUCAULT, 2009, p. 279). Em Foucault, contudo, a proposta de uma leitura teórica alternativa da morte do autor não significa uma discordância radical em relação ao texto de Barthes. Também em Foucault, a figura autoral não deixa de estar associada a uma certa tirania, já que “o autor é a figura ideológica pela qual se afasta a proliferação de sentido” (FOUCAULT, 2009, p. 288). A ideologia é aqui entendida no sentido proposto por Marx em A ideologia alemã, ou seja, é uma produção discursiva mistificadora que projeta uma imagem invertida do real (MARX; ENGELS, 2001, p. 19). “A ideologia existe”, explica didaticamente Terry Eagleton, “porque há certas coisas que não devem ser ditas” (EAGLETON, 1976, p. 91, tradução minha). O sentido de “autor” que pode ser dito sem causar desconforto é aquele que o define como uma “instância criadora que emerge de uma obra em que ele deposita, com uma infinita riqueza e generosidade, um mundo inesgotável de significações” (FOUCAULT, 2009, p. 288). Para Foucault, a verdade é “completamente diferente”:

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Se temos o hábito de apresentar o autor como gênio, como emergência perpétua de novidade, é porque na realidade nós o fazemos funcionar de um modo exatamente inverso. Diremos que o autor é uma produção ideológica na medida em que temos uma representação invertida de sua função histórica real. (FOUCAULT, 2009, p. 288).

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A necessidade do autor está, portanto, associada à fobia cultural da proliferação e disseminação desordenada e descontrolada de sentidos. Constituindo-se como proprietário de uma obra em que limites são precisamente definidos por comunidades de poder institucional (como, por exemplo, aquelas formadas por editores, críticos e acadêmicos), “o autor torna possível uma limitação da proliferação cancerígena perigosa das significações em um mundo onde se é parcimonioso não apenas em relação aos seus recursos e riquezas, mas também aos seus próprios discursos e suas significações” (FOUCAULT, 2009, p. 287). Embora entendendo o autor enquanto força repressiva do discurso, Foucault evita repetir o gesto utópico de Barthes que sonha com o

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desaparecimento da tirania autoral. “Seria puro romantismo”, afirma, “imaginar uma cultura em que a ficção circularia em estado absolutamente livre, à disposição de cada um, desenvolver-se-ia sem atribuição a uma figura necessária ou obrigatória” (FOUCAULT, 2009, p. 288). Pertencendo ao devir histórico, a função autoral pode mudar de forma, mas dificilmente desaparecerá. Poderá “funcionar de novo de acordo com um outro modo, mas sempre segundo um sistema obrigatório que não será mais o do autor, mas que fica ainda por determinar e talvez por experimentar” (FOUCAULT, 2009, p. 288). Subjacente a essa afirmação está o Foucault que formulou uma teoria do poder onipresente que preenche todo e qualquer espaço. Se uma forma de poder desaparece em certo momento histórico, ressurgirá de outra forma mais adiante. Resta saber se outras eventuais formas de poder “por determinar” seriam menos opressivas, e portanto mais desejáveis, do que o poder autoral. Essa estranha lógica da morte e ressurreição do autor repete-se, com diferenças, no caso da morte da Teoria. Por razões que serão examinadas em mais detalhe a seguir, essa dinâmica de morte e ressurreição ocorre de forma mais intensa no contexto acadêmico norte-americano. É nesse ambiente que, no início da década de oitenta do século passado, críticos de estatura maior começam a se insurgir contra a teoria e a desejar o seu enfraquecimento ou desaparecimento como algo culturalmente saudável. Aparece em 1982 um importante manifesto intitulado “Against Theory”, publicado por Steven Knapp e Walter Benn Michaels. A proposta era defender práticas disciplinares contra as investidas nefastas do que viria posteriormente a ser chamado de Teoria. “A Teoria”, afirmavam os autores do manifesto, “não é apenas um outro nome para a prática”, mas também e principalmente “a designação utilizada por todos aqueles que tentam posicionar-se do outro lado da prática para controlá-la do lado de fora” (KNAPP; MICHAELS, 1982, p. 742). Não custa lembrar que, aqui, a tirania que Barthes e Foucault atribuíam à função autoral é transferida para a Teoria, agora entendida como força opressora que, como deixa claro o ensaio de Knapp e Michaels, tenta destruir as intenções de significado que precedem o texto e sem as quais toda prática hermenêutica tornar-se-ia impossível. Seja como for, o manifesto de Knapp e Michaels abre caminho para a afirmação categórica de Stanley Fish, em 1985: “os dias da teoria estão contados; já passou da hora; e a única opção que resta ao teórico é

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admitir a chegada do fim” (FISH apud JAY, 1998, p. 17). Declarada morta em 1985, contudo, a teoria ressurge no ano seguinte, quando J. Hillis Miller, então presidente da Modern Language Association, proclama o “triunfo da Teoria” (MILLER, 1987, p. 281). Repete-se aqui com a teoria a mesma dinâmica percebida por Foucault com relação ao autor: a teoria desaparece ou morre em certos tempos e lugares apenas para reaparecer ou ressuscitar em outros. É importante enfatizar, contudo, que as idas e vindas da Teoria não ocorrem apenas no ambiente acadêmico norte-americano, muito embora seja este o local de sua maior visibilidade. Tendo sua morte anunciada a partir de meados da década de 1980, a Teoria retorna forte e firme lá onde, à primeira vista, não seria de se esperar. Em junho de 2004, realiza-se na Universidade de Remnim, na China, um congresso dedicado à Teoria Literária e à recepção chinesa de Fredric Jameson e, ainda, na Universidade de Tsinghua, um congresso sobre “Critical Inquiry”, uma referêntia tanto ao título do periódico norte-americano como à temática dominante nele trabalhada. “The Ends of Theory”, o subtítulo dado a este último congresso, aponta para o duplo sentido de morte (end: final) e ressurgimento (ends: objetivos) da Teoria. Comentando o evento, W. J. T. Mitchell e Wang Ning lembram que o congresso representava um prolongamento de um outro, realizado em Chicago no ano anterior e dedicado à temática do “futuro da teoria e da crítica”. Acontecendo no momento da invasão do Iraque em 2003, o Congresso não poderia deixar de ser assombrado pelo espectro da ação militar norte-americana. E o desdobramento mais evidente da presença desse espectro apontava para a falência da teoria. A indagação óbvia, nas palavras de Mitchell e Wang, dizia respeito “à aparente impotência da teoria e da crítica diante da insensatez e da ignorância resultantes do fanatismo, da cobiça e da hubris (MITCHELL; NING, 2005, p. 265). Em um piscar de olhos, toda a energia dedicada ao desenvolvimento de um arsenal crítico-teórico, do qual se esperava que não fosse restrito apenas ao interior dos muros universitários, torna-se quase absolutamente irrelevante diante do que Mitchell e Ning denominam uma “forma superior de teoria ideológica atrelada ao poder militar norte-americano e à crença na missão salvadora da equivocada “Guerra ao Terror” (MITCHELL; NING, 2005, p. 265). Apoiavam a ideologia da guerra ao terror, tornando-a invencível, os meios de comunicação de massa e teóricos neoconservadores como

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Na qualidade de representante maior de um marxismo ocidental amplamente considerado obsoleto, o pensamento de Jameson permanece não apenas vivo na China, mas também ganha importância primordial em uma situação em que o mapeamento global, a análise dialética das transformações culturais e materiais e a determinação para pensar a totalidade do capitalismo parecem agora mais urgentes e oportunas do que nunca. (MITCHELL; NING, 2005, p. 268, tradução minha).

Situada em um contexto internacional, a lógica da morte e ressurreição da Teoria ajuda a compreender aspectos importantes da sua dinâmica em termos de uma geopolítica globalizante, da divisão intelectual do trabalho ligado ao capital cultural e, principalmente, da oferta e procura de ideias no mercado internacional de práticas culturais. A Teoria, como indicado anteriormente, tem o seu local geopolítico de origem na intelectualidade parisiense da segunda metade do século XX. Essa geopolítica local,

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Paul Wolfowitz e Richard Perle, que proclamavam o início de uma nova era do triunfo da democracia no Oriente Médio. O momento em que “o New York Times declarava a invasão do Iraque um grande sucesso” afirmam Mitchell e Ning (2005, p. 265), é também o momento “da morte da teoria” no Congresso realizado em Chicago. Morta em Chicago, portanto, a Teoria ressuscita na China com vigor surpreendente. Com a presença de mais de oitenta pesquisadores chineses, asiáticos, europeus e americanos, o Congresso abrigava workshops e mesasredondas voltados para as seguintes discussões temáticas, entre outras: hermenêutica e estética da recepção; estudos literários no contexto da globalização; a modernidade e a pós-modernidade revisitadas; relendo as literaturas pós-coloniais e diaspóricas; mutações na função da teoria. E os dois principais conferencistas convidados tinham como seu país de origem os Estados Unidos: Fredric Jameson e J. Hillis Miller, muito provavelmente os dois teóricos que mais contribuíram para introduzir na China a Teoria ocidental. O caso de Jameson é particularmente relevante para o entendimento da dinâmica da vida e da morte da teoria, e da teoria pós-marxista em particular, porque a sua proposta de releitura de Marx no momento da pós-modernidade, como lembram Mitchell e Ning, teve impacto significativo na modernidade maoista chinesa:

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particularmente no caso de Jacques Derrida, expande-se rapidamente em uma dimensão planetária. Trata-se de movimento centrífugo impulsionado em grande parte (mas não exclusivamente) pelo ambiente universitário norte-americano, que se transforma, por assim dizer, em uma poderosa caixa de ressonância com potencial de distorção a ser ouvida em uma dimensão globalizante. É nesse contexto que é preciso entender a afirmação de Derrida a respeito da “origem” norte-americana do pós-estruturalismo e da desconstrução. Afirma Derrida do pós-estruturalismo que é ele “um conceito puramente norte-americano”, e do desconstrucionista como “mais uma invenção norte-americana” (DERRIDA, 2001, p. 16, tradução minha). Dizer que o pós-estruturalismo ou a desconstrução são invenções norte-americanas significa dizer que, nesse contexto de reprodução para consumo da teoria parisiense, podem ocorrer distorções tão profundas que tornam irreconhecíveis as teorias originais, apesar da presença importante de leitores atentos e rigorosos que, no limite, questionam e enriquecem as contribuições francesas, como é o caso de um J. Hillis Miller ou de um Paul De Man. O caso do Congresso de Beijim é, mais uma vez, exemplar. O ano em que se realiza o Congresso (2004) é também o ano da morte de Jacques Derrida, certamente o praticante de maior visibilidade do que venho aqui chamando de Teoria. A presença de Hillis Miller na academia chinesa pode bem ser vista, por assim dizer, como um retorno de Derrida na forma de um discípulo que opera como espectro do mestre. E a função do espectro é reproduzir, com diferenças e possíveis distorções, as lições herdadas. O texto de Miller apresentado no Congresso é mais uma de suas releituras de textos canônicos anglo-americanos visivelmente influenciados pela obra de Jacques Derrida e pelas contribuições da teoria pós-colonial recente. Como relatam concisamente Mitchell e Ning, [...] a leitura sutil que faz Miller do romance Nostromo, de Joseph Conrad, sob a perspectiva de teorias recentes sobre império e póscolonialismo, constituiu uma demonstração eloquente das formas pelas quais a teoria recente retorna ao cânone literário do passado e redefine respostas, desenvolvendo novas provocações para questionamentos e respostas e, até mesmo, para novos arquivos. (MITCHELL; NING, 2005, p. 268, tradução minha).

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Para um exame detalhado da formação do estrelismo na área de Teoria, ver o importante estudo de Shumway (1977).

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Nessa dimensão de uma geopolítica globalizante da Teoria, é importante reconhecer também uma profunda divisão de trabalho intelectual que compreende produtores, reprodutores e consumidores. A escolha de Jameson e Miller como conferencistas maiores não é gratuita ou inocente. Obedece à lógica do mercado cultural, em que a produção teórica ocorre em certos espaços e não em outros, cabendo a estes últimos a função primária (mas não exclusiva) de consumidores, não de produtores ou reprodutores. Dados os limites deste ensaio, não é possível examinar mais detalhadamente a complexidade desse contexto mercadológico. Assinalo apenas, de passagem, dois de seus componentes principais: a formação de um estrelato que, mutatis mutantis, opera de forma análoga ao estrelato hollywoodiano na medida em que produz imagens com valor cultural de alcance planetário (Derrida, Jameson e, em menor escala, Miller, por exemplo);2 e a constituição de um campo discursivo (a ser trabalhado adiante em mais detalhes) que tenta dar uma resposta a anseios e ansiedades de um período histórico específico (é nesse contexto de demandas históricas por sentidos que Jameson, por exemplo, define o pós-modernismo como a lógica do capitalismo tardio). Dito isso, é importante acrescentar depressa que a circulação de bens culturais, em tempos de globalização, não é uma via de mão única, dos produtores e reprodutores para os consumidores. A história vem mostrando que as periferias culturais têm, com alguma frequência, contribuições a oferecer aos centros de cultura. Mas este é, mais uma vez, um problema complexo que não pode ser trabalhado em detalhes no presente ensaio. Se a Teoria resiste à morte porque consegue ganhar sobrevidas advindas de forças ideológicas e mercadológicas que atuam de forma simultaneamente localizada e globalizada e se, como no caso da morte do autor, ela desaparece ou tem a demanda por sua relevância ideológica reduzida em certos tempos e lugares apenas para ver essa demanda ressurgir com vigor em outras, então a atenção a ser dada à sua morte é menos relevante do que aquela a ser dirigida para a sua permanência em outras formas e para o seu legado. Torna-se necessário, por assim dizer, tomar conhecimento do seu enfraquecimento ou desaparecimento apenas para, depressa, reconhecer também a sua sobrevivência e, talvez, até mesmo a

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sua relevância ou força de fecundidade. É esse exercício de olhar ao mesmo tempo para a sua morte e para as forças residuais após a morte que é magistralmente exemplificado por Terry Eagleton nas primeiras páginas de After Theory. Após afirmar que a “idade de ouro” do que chama de “Alta Teoria” chegou ao seu fim, Eagleton oferece ao leitor uma longa lista de nomes representativos (Bourdieu, Cixous, Derrida, Edward Said, Jameson, Kristeva, Raymond Williams...) e não resiste à tentação de mostrar sua veia humorística ao registrar a morte de vários deles, dos franceses em particular: Alguns deles [representantes da Alta Teoria] já sentiram o golpe da morte. O destino empurrou Roland Barthes para debaixo de um carro de lavanderia e infectou Michel Foucault com Aids. Despachou Lacan, Williams e Bourdieu, e aprisionou Louis Althusser em um hospital psiquiátrico pelo assassinato de sua mulher. Ao que parece, Deus não era um estruturalista. (EAGLETON, 2003, p. 1, tradução minha).

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Essas referências à morte da teoria e de alguns de seus expoentes, contudo, vem logo acompanhada de uma referência à sua sobrevida:

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Muitas das ideias desses pensadores continuam a ter valor incomparável. Alguns ainda produzem obras de importância maior. Para todos aqueles que o título desse livro sugere que a “teoria” morreu, e que pensam que podem agora voltar a uma época de inocência pré-teórica, um aviso: preparem-se para o desapontamento. Não é mais possível retornar a uma época em que era suficiente declarar que Keats é deleitável ou que Milton é um espírito intrépido. (EAGLETON, 2003, p. 1, grifo do autor, tradução minha).

2.3 O legado O que se poderia então dizer, para além da morte da Teoria, a respeito do seu legado? Um bom começo seria refletir brevemente sobre a sugestão de Eagleton a respeito da impossibilidade de retorno a um passado de inocência em relação à tradição literária. Nesse passado, o nome “John Milton” apontaria para aquele escritor maior da literatura inglesa que produziu

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[...] posso concordar com a existência de uma diversidade de interpretações válidas (muito embora não sejam todas igualmente adequadas) da peça teatral King Lear, e mesmo assim posso dizer que sei exatamente qual é o significado das palavras de Lear quando diz: ‘Por favor, solte este botão’. (ABRAMS, 2005, p. 205, grifo do autor, tradução minha).

E qual seria a interpretação mais convincente? “Aquela”, Abrams (2005, p. 200) conclui, que mais se aproxima “do que o autor quis dizer”. Não custa lembrar que esse procedimento interpretativo é análogo àquele descrito por White como típico da grande tradição hermenêutica e humanística no Ocidente: existe uma fundação de verdade (o autor que escreve) que, muito embora inatingível em alguns casos, deve ser perseguida

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uma obra clássica de valor universal a ser institucionalmente preservada ou eternizada na medida em que nela se manifestam os valores maiores do espírito humano em todos os tempos, mesmo que possa haver alguma dúvida interpretativa sobre quais, exatamente, seriam os valores expressos. Dada a possibilidade de mais de uma interpretação, entra em cena o intérprete competente que, equipado com um instrumental exegético culturalmente legitimado por uma comunidade interpretativa, produz uma leitura válida ou privilegiada: “Milton é um espírito intrépido”. O instrumental exegético permite um resgate, a partir do exame sistematicamente documentado, do que foi intencionalmente dito nos textos do escritor (Milton escreveu isso e não aquilo, o que mostra que foi intrépido). Esse resgate hermenêutico das intenções autorais deve ser fundamentado e coerente para ter a sua validade garantida e capaz de competir com outras possíveis validades resgatadas. O intérprete competente, portanto, produz uma interpretação institucionalmente legitimada de um ato intencional (que não se restringe ao significado explícito declarado por um autor, mas inclui evidências extraautorais das quais o autor pode ou não estar consciente) em um contexto de pluralismo interpretativo. É por esse motivo que M. H. Abrams, que se define um “crítico pluralista”, pode concordar com “uma diversidade de interpretações válidas (sound)” e, ao mesmo tempo, acreditar na possibilidade de uma hierarquia interpretativa fundamentada no resgate da intenção autoral e na estabilidade do sentido. “Como sou um crítico pluralista”, diz Abrams,

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por atos interpretativos que se mostram mais adequados na medida em que mais dela (da verdade) se aproximam. As afirmações de Abrams são importantes tanto pelo que dizem como pelo que deixam de dizer ou de questionar. Não está em questão, por exemplo, indagar a respeito do que é um autor; da intencionalidade que o caracteriza ao escrever, ou que marca um texto qualquer, mesmo que seja anônimo; da impossibilidade de reconstruir uma intenção, qualquer que seja; dos problemas existentes no conceito de “uma interpretação válida”; da crença no pressuposto de que a comunicação de um significado é o aspecto mais significativo de um texto literário. São indagações às quais o senso comum responde de uma vez por todas e que dispensam atenção: existe um autor (Milton) que armazena em um texto sentido ou sentidos a serem descodificados e interpretados corretamente por um leitor competente. Mas suponha-se, por um momento, que tais indagações não sejam válidas e que, por exemplo, um autor não seja um produtor de sentido porque sentidos, no final das contas, são produzidos por um sistema de signos que precede o autor, que existirá após sua morte e que, em certa medida, fala por ele; que toda intencionalidade, em consequência, pode ser uma ficção impossível de ser resgatada; que toda interpretação é uma prática violenta de controle da disseminação infinita de sentidos do texto, com o objetivo de garantir a segurança e o conforto do leitor diante do incontrolável; que a crença da importância da comunicação do sentido em literatura talvez seja infundada, uma vez que um bom número de autores importantes (como James Joyce, por exemplo), parecem dar a ela pouca importância. O que a Teoria fez, entre outras coisas, foi levar tais indagações às últimas consequências e mostrar, no limite, que elas não podem ser descartadas. E se não podem mais ser descartadas, torna-se impossível, como sugere Eagleton, retornar a um momento em que podiam ser consideradas como eram questões irrelevantes porque respondidas de uma vez por todas pelo senso comum. É este um dos mais significativos legados da Teoria: motivar uma prática de questionamentos anteriormente relegados ao silêncio. Não seria exagero dizer de tal prática que ela pode bem constituir, ao lado das hermenêuticas positiva e negativa anteriormente discutidas, o que se poderia chamar de uma “hermenêutica salutar da suspeita” e uma nova ética da leitura. A importância dessa ética torna-se visível na medida em

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que se atenta para a sua natureza enquanto motor da mudança histórica que, evidentemente, seria neutralizada sem a presença de novos paradigmas. E essa mudança para uma ética alternativa seria necessariamente derivada do abalo das certezas fundadoras anteriormente examinadas: do autor, do sujeito, da obra, da intencionalidade, etc. No caso do autor, se retornarmos por um momento aos textos de Barthes e Foucault, teremos já indícios claros do modus operandi dos valores éticos da hermenêutica da suspeita. Colocando o autor sob suspeita, por exemplo, Barthes valoriza a participação ativa do leitor e a ele atribui aquela liberdade de ação expandida porque liberta, agora, da anterior “tirania” autoral. “Dar ao texto um autor”, diz Barthes, “é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura” (BARTHES, 2004a, p. 63). Recuperar esse significado último em cada construção de um ato interpretativo (a interpretação sendo aqui entendida como forma de controle do texto) que fixa e unifica, ainda que apenas por um momento, um sentido textual é o princípio ético básico do crítico e do leitor tradicionais. A concepção de autor é, nesse contexto, conveniente e necessária para atividade do crítico que tem como objetivo “descobrir o Autor (ou as suas hipóstases: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a obra” (BARTHES, 2004a, p. 63). A existência da crítica depende da autoridade do autor: “encontrado o autor, o texto está explicado, o crítico venceu” (BARTHES, 2004a, p. 63). Morto o autor e suas hipóstases, essa ética interpretativa entraria em crise e deveria ser substituída por uma outra que, para Barthes, poderia ser definida em termos da lógica de leitura que evita controlar o sentido (e, portanto, produzir interpretações) e procura o “prazer do texto”. O texto, para o leitor disposto a praticar essa ética de leitura, “é um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura” (BARTHES, 2004a, p. 62). E a prática de leitura solicitada por tal texto desprovido da mensagem do “Autor-Deus” é aquela que seleciona para leitura alguns dos fios desse tecido, evitando todo e qualquer impulso dirigido para totalizações interpretativas. Um dos textos utilizados por Barthes para exemplificar essa prática de leitura é o conto “A verdade sobre o caso do Sr. Valdemar”, de Edgar Allan Poe. Transferida a autoridade autoral do Autor-Deus-Poe para o Barthes-leitor, pode este explorar o plural do texto em seus vários códigos culturais sem jamais chegar a um sentido

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final. O interdito imposto à produção do sentido final é uma consequência da definição de texto proposta: “o texto não é uma estrutura interna, fechada, contabilizável, mas o desembocar do texto noutros textos, noutros códigos, noutros signos; o que faz o texto é o intertextual (BARTHES, 2001, p. 307). O procedimento analítico consiste em recortar o texto em segmentos curtos e arbitrariamente definidos (“lexias”) para neles observar “os sentidos [...] suscitados” sem que haja, contudo, qualquer pretensão de esgotar possibilidades de significado (BARTHES, 2001, p. 306). “O que nos importa”, diz Barthes (2001, p. 307), “é mostrar pontos de partida dos sentidos, não pontos de chegada”. Tomando como ponto de partida, por exemplo, o nome próprio “Sr. Valdemar”, Barthes inicia a procura não teleológica de sentidos e códigos: o termo “senhor” aponta para um código social, já que “carrega um efeito de realidade social, de real histórico”; em “Valdemar” há um código “sócio-étnico”, e a indicação de um enigma para o leitor, uma vez que o nome não é anglo-saxão e o seu significado será revelado mais tarde (Valdemar é polonês); há em Valdemar também um código simbólico importante: significa “o vale do mar” e aponta para um tema recorrente em Poe: “o abismo oceânico, a profundeza marinha [...] a voragem [...] que está duas vezes fora da natureza, debaixo das águas e debaixo da terra” (BARTHES, 2001, p. 311). Nessa forma de leitura governada pelo prazer do texto caem por terra os valores anteriormente preconizados pela procura do sentido típica da hermenêutica positiva:

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Nosso objetivo não é encontrar o sentido, nem mesmo um sentido do texto, e nosso trabalho não se apresenta como uma crítica literária do tipo hermenêutico (que procura interpretar o texto segundo a verdade que ela acredita estar escondida nele) como é o caso, por exemplo, da crítica marxista ou da crítica psicanalítica. Nosso objetivo é chegar a conceber, a imaginar, a viver o plural do texto, a abertura da significância. (BARTHES, 2001, p. 304-305).

Como em Barthes, existe em Foucault um questionamento radical do autor que, contudo, recusa-se a morrer e reaparece em formas opressivas de poder que exigem do leitor não uma entrega ao prazer, mas uma postura de vigilância. Enquanto para Barthes a pergunta a respeito de quem fala no texto de Balzac deve ser respondida em termos da ausência de uma origem,

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para Foucault, essa ausência não pode ser apenas constatada, mas deve ser também examinada enquanto um espaço vazio problemático porque se trata de esvaziamento que tem consequências importantes em termos de um deslocamento de poder. A pergunta apropriada a ser feita não é “quem fala?”, mas antes “o que importa quem fala?”, extraída de um texto de Beckett (FOUCAULT, 2009, p. 265). E a pergunta é de fundamental importância porque “é preciso descobrir, como lugar vazio – ao mesmo tempo indiferente e obrigatório –, os locais onde sua função é exercida” (FOUCAULT, 2009, p. 265). Esvaziado de seu lugar tradicional, o autor continua a atuar em um campo de distribuição de poder em que a prática da violência ou da opressão só desaparece em certos espaços para reaparecer em outros. Ou então, de forma talvez mais insidiosa, aparece e desaparece no espaço por excelência de seu desaparecimento, ou seja, na escrita. “Na escrita”, diz Foucault, “não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer” (FOUCAULT, 2009, p. 268). Como ler um texto em que o autor é uma força ativa que, aparecendo e desaparecendo sem cessar, na realidade torna-se imortal? Como responder a esse poderoso desaparecimento que nunca deixa de se manifestar em exercícios de poder de inclusão e de exclusão a respeito, por exemplo, de quem pode escrever e de quem pode somente ler, ou sobre quem decide a respeito de cada um dos casos? O leitor atento a essas armadilhas de poder e controle poderia ser talvez caracterizado como um leitor curioso, desconfiado (inclusive de si mesmo) e dedicado a uma prática de leitura sempre marcada pela suspeita. É que a leitura passa a ser vista, nesse contexto, como o que Foucault chamou de “tecnologia de dominação”, ou seja, aquela que, dispersa em mecanismos de normalização que saturam qualquer grupo social, “determina a conduta de indivíduos com o objetivo de direcioná-los para certas finalidades” (FOUCAULT, 1988, p. 18, tradução minha). Boa parte da obra de Foucault é dedicada ao estudo desses mecanismos que operam de forma disciplinar em discursos e instituições: nas prisões, nos hospitais, nas escolas, nos discursos da medicina, da psiquiatria e da loucura. E operam também nas práticas de leitura definidas em campos normativos de poder que produzem sujeitos-leitores através do uso sistemático de tecnologias disciplinares de controle. A ética da leitura da suspeita que Foucault pratica em seus escritos, e que deveria motivar os que nela acreditam, supõe um leitor em constante

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questionamento da sua condição enquanto sujeito-leitor, das formas que o constituíram enquanto tal, do relacionamento que estabelece com um texto. De que forma, por exemplo, deve o leitor comportar-se diante dos textos canônicos, dos clássicos, do autor enquanto gênio e produtor da abundância inesgotável de sentido? Seria necessário, por exemplo, olhar para o seu valor cultural acumulado ou, ao contrário, para o seu poder de inclusão e exclusão de textos? Assim entendido, o leitor é, sobretudo, um curioso. “A curiosidade”, diz Foucault em “O filósofo mascarado”:

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[...] foi estigmatizada pelo cristianismo, pela filosofia, e até mesmo por uma certa concepção da ciência. A curiosidade é entendida como futilidade. Mas eu gosto da palavra. Para mim, sugere algo bem diferente. Lembra “cuidado”; faz pensar no cuidado que se tem com o que existe e com o que poderia existir; um senso apurado da realidade, mas que não é jamais imobilizado diante dela; uma prontidão para perceber que o que nos cerca é estranho e singular; um certa determinação para descartar os caminhos familiares do pensamento e para olhar as mesmas coisas de forma diferente; uma paixão para captar o que acontece agora e o que desaparece; uma falta de respeito pelas hierarquias tradicionais a respeito do que é importante e fundamental. (FOUCAULT, 1988, p. 325, grifo do autor, tradução minha).

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Há, pelo menos, duas razões por que legados como a ética de leitura representada por Foucault ou Barthes não deveria ser esquecida. Quando bem utilizados, procedimentos que tentam perceber o “estranho e o singular” no que era anteriormente aceito como “senso comum” e que, consequentemente, desrespeitam hierarquias tradicionais constituem uma postura de vigilância crítica que pode levar a formas alternativas de pensar e a um discurso mais rigoroso, aquele que, no dizer de Foucault, pode desembocar em “um senso apurado da realidade”. No caso do próprio Foucault, essa curiosidade motivou novas indagações que continuam pertinentes nos dias de hoje: – Por que um autor deve ser visto apenas como um gênio doador de sentidos? – Por que a narrativa da história deve ser feita em termos de continuidade e de causa e efeito e não em termos de uma descontinuidade arqueológica?

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– Por que o excesso de discursos sobre a sexualidade deve ser visto como uma forma de libertação e não como uma forma de controle? – Por que o poder deve ser visto em termos de senhor e escravo e não nos moldes de uma microfísica? Cito aqui alguns exemplos no caso de Foucault, mas a leitura que desrespeita hierarquias ocorre também em outros representantes da Teoria. Acontece também quando Derrida, por exemplo, questiona a “verdade” filosófica do logocentrismo na cultura ocidental e sugere que se trata antes de algo inventado a partir de um desejo e de uma nostalgia por centros e origens. O desrespeito às hierarquias não deve, portanto, ser entendido apenas em termos iconoclastas, mas em termos de uma crise que pode abrir caminhos para a renovação do conhecimento ou do saber. O legado dessa ética de leitura não deveria ser esquecido também porque dele depende o surgimento de um segundo legado: a formação de novos campos discursivos que dificilmente apareceriam se perguntas análogas às de Foucault e Derrida não fossem feitas por seus representantes. Nas páginas finais de The Future of Theory, Jean-Michel Rabaté (2002) anota dez desses campos discursivos, por ele denominados de “escolas”, que “dão testemunho da sobrevivência da Teoria na primeira década do século presente”: a crítica tecnológica (as interações infinitamente produtivas entre o homem e a máquina); a crítica diaspórica; a crítica ética (focalizada em revisões da diferença sexual); a crítica genética e os novos estudos textuais (como praticados, por exemplo, por Jerome McGann); os estudos de ciência e textos (teoria do caos); e espectrologia (a partir da desconstrução); os estudos de hibridismo e de tradução, entre outros (RABATÉ, 2002, p. 147148, tradução minha). Escrevendo em 2002, Rabaté enfatiza a presença do legado da Teoria no momento presente. Mas não custa lembrar que o final do século passado testemunhou também o aparecimento de desdobramentos importantes da Teoria, entre eles o Pós-colonialismo e o New Historicism. Influenciado por Foucault, Stephen Greenblatt foi responsável por importantes revisões nos estudos shakespearianos. E não seria descabido afirmar que um livro como Orientalismo (SAID, 2007) dificilmente apareceria na forma como apareceu se Said não tivesse absorvido em profundidade, principalmente nos seus anos iniciais de formação e em livros como Beginnings, a obra até então conhecida de Michel Foucault.

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Os fins da teoria

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Peter Barry

1 Por volta do fim do milênio, houve muitas discussões aflitas sobre o fim da teoria. Os teóricos gostam de falar sobre a morte disso e daquilo, e há um frisson extra quando a morte em questão é a da própria teoria. A teoria sempre se sentiu atraída por posições extremas – por formulações polarizantes, por uma prosa que habita constantemente as margens da incompreensibilidade, por narrativas melodramáticas sobre crise e perda e por declarações descompromissadas que varrem do mapa todas as certezas possíveis. Diante desse cenário apocalíptico, ela celebra a coragem de alguns poucos (isto é, dos próprios teóricos) que suportam olhar para o abismo e contemplar a dissolução final das estruturas e ilusões reconfortantes que guiam as vidas das pessoas. Dessa forma, imaginar a destruição da própria teoria é algo que teve um forte apelo intelectual e emocional. O meu argumento aqui é simples: toda a energia dedicada a refletir sobre o fim da teoria teria sido mais bem empregada na tentativa de reconsiderar para que serve a teoria. Em outras palavras, nossa atenção precisa voltar-se não para o fim da teoria, mas para os fins da teoria.

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Traduzido do inglês pelo organizador do volume.

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Quanto à morte da teoria, não há necessidade de se preocupar com isso. Ela já aconteceu e a vida continuou. Todos aqueles rumores milenares sobre a sua morte estavam longe de ser exagerados; antes, eles subestimavam a situação. Um dos anúncios que eu vejo com frequência na tela do meu computador me faz a seguinte pergunta: “Você está preocupado com a queda de cabelo?”. A minha resposta é não, nem um pouco – já aconteceu há vinte anos. Eu digo o mesmo quando perguntado se estou preocupado com a morte da teoria. Se a seguir me perguntam quando foi que a teoria começou a morrer, respondo que foi, é claro, no momento do seu maior triunfo, o que significa dizer que foi em meados da década de 1980, quando ela venceu a Guerra das Teorias e passou a acreditar que viveria para sempre. Esse momento pode ser indicado com exatidão – foi na (ou perto da) hora do chá do dia 30 de dezembro de 1986, quando J. Hillis Miller (1987) levantou-se para anunciar o triunfo da teoria em seu discurso presidencial da MLA. A fala intitulava-se “O triunfo da teoria, a resistência à leitura e a questão da base material”. Trata-se de um momento que podemos agora observar como uma pálida antecipação acadêmica de um outro pronunciamento presidencial, a saber, o discurso de George W. Bush “Missão Cumprida” no USS Abraham Lincoln, no dia 1o de maio de 2003. O espírito de ambos foi o mesmo – o inimigo havia sido derrotado, apesar de algumas poucas áreas de resistência local. No caso de Miller, a resistência local vinha do que ele chamava de “questão da base material”, ou seja, o aumento inexplicável do historicismo nos estudos literários. A questão permanece até hoje sem uma resposta, pois o historicismo rapidamente tornou-se a forma-padrão de fazer literatura, e no modo slowmo de nossa disciplina literária, cada “virada” desse tipo dura pelo menos trinta anos.2

3 Quando a ascensão da teoria teve início, nas décadas de 1960 e 1970, argumentava-se (e com razão) que a crítica literária era uma prática 2

Ver Barry (2007), capítulos 1 e 2, sobre a “historicização” dos estudos literários.

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intelectual construída sobre uma base teórica estreita – tão estreita, de fato, que era composta de apenas uma dúzia de ensaios. A conclusão era óbvia – começar a teorizar, fazer as perguntas fundamentais e construir um corpo teórico rigoroso e consistente sobre o papel, a natureza, a proveniência, o potencial e as limitações da literatura. Mas o próximo passo introduziu um mal-entendido que conduziria à eventual dissolução da teoria. O modo de realizar essa teorização, assim se dizia, havia sido indicado pelo trabalho então recente de uma gama de linguistas, antropólogos, filósofos, cientistas políticos e psicanalistas contemporâneos, a maioria deles da Europa continental. Deveríamos primeiro ler o trabalho deles, para então começar a construir uma teoria de rigor e perspicácia intelectual semelhantes para a literatura. A mensagem era boa, mas nós não a compreendemos. A mensagem que ouvimos foi a de que a teorização já havia sido feita para nós, bastava-nos agora apenas ler e digerir a obra de todas essas pessoas (antropólogos estruturalistas, cientistas políticos, filósofos da linguagem e todo o resto) para aplicar seus conhecimentos aos nossos encontros com a literatura, pois assim as leituras se tornariam teorizadas e sofisticadas, e não mais o que supostamente eram até então, empíricas e ingênuas. O resultado foi a infantilização intelectual dos estudos literários, pois passamos a nos considerar incapazes de teorizar nosso próprio objeto intelectual. Onde estaríamos, imaginávamos, sem as gentis contribuições dos verdadeiros pensadores das outras disciplinas – eles sim podem nos fornecer as teorias já sedimentadas de que precisamos, deixando-nos a tarefa mais simples (mais adequada às nossas capacidades e imaginações limitadas) de meramente “aplicá-las”.

Uma correspondente recente me relatou suas experiências ao encontrar esse tipo de teoria nos cursos de Mestrado. Após uma longa exposição às noções pós-estruturalistas em torno do caráter inerentemente “escorregadio” da linguagem e da consequente flutuação do significante (e outras noções “líquidas” sobre a natureza da linguagem), ela perguntou à professora “como seria possível falar sobre literatura se tudo era tão escorregadio?”3 3

A palavra de Derrida para “escorregadio” é “jogo” ou “jogo livre”, como no título “Estrutura, signo e jogo no discurso das ciências humanas”, o ensaio fundador do pensamento pósestruturalista. A resposta de Derrida à minha questão correspondente seria a de que caberia

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Não houve nenhuma resposta, é claro, pois se a proposição sobre o aspecto deslizante da linguagem é verdadeira, então tudo o que a literatura pode fazer é incorporar esse aspecto indefinidamente. Isso me fez lembrar do modo como eventualmente admiti (primeiro a mim mesmo e, em seguida, aos outros) que cada vez mais o pensamento pós-estruturalista parece-me monológico e previsível. O pós-estruturalismo continuou insistindo na noção de jogo linguístico e semântico e, dessa forma, acabou necessariamente comprometendo a si mesmo e a toda a literatura. Após sustentar a tese do jogo livre, você precisa ou permanecer em silêncio, ou seguir provando, livro após livro, que você não acredita muito nisso, reivindicando implicitamente para si mesmo uma isenção extraordinária de suas consequências. Exatamente o mesmo é verdadeiro para o argumento defendido pelos teóricos de que não existe isso que chamamos de objetividade imparcial. Sempre que essa afirmação é feita, ela implicitamente exige privilégios intelectuais de isenção para a pessoa que defende o argumento. Pode-se contra-argumentar que essas reservas quanto ao pósestruturalismo derivam de uma forma redutiva de fundamentalismo intelectual. Pode até ser, mas, por outro lado, a crença tanto na indeterminação linguística quanto na impossibilidade de objetividade parecem conduzir as pessoas a um impasse intelectual a que muitos permanecem presos por anos. Tais posições exercem um grande apelo para alguns estudantes (geralmente do sexo masculino), mas os aprisionam a um sentimento debilitante de superioridade intelectual. Quando menciono, em discussões em conferências ou simpósios, que hoje acho o estruturalismo mais interessante que o pós-estruturalismo, a reação não é tanto de indignação, mas de incompreensão.

5 O estruturalismo me parece mais interessante porque é sobre literatura e porque está relacionado à prática – ele nos conduz a algum “empregar o termo [isto é, qualquer termo ou conceito de que você queira falar] com precaução e como se estivesse entre aspas”. Esse é o mecanismo mágico acionado ao utilizar as palavras sous rature (“sob rasura”), um truque heideggeriano que permite ao falante reconhecer a instabilidade do significado, ao mesmo tempo que continua falando como se tanto esse fato quanto o seu reconhecimento não tivessem consequências práticas para o teórico, mas somente para os demais usuários da linguagem.

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lugar, mais precisamente, a algum lugar em que começamos a pensar sobre literatura e sobre como ela funciona (pois, na prática, ela inegavelmente funciona), em vez de constantemente pensar por que motivo, na teoria, ela não deveria funcionar. Após o estruturalismo, a literatura pareceu ter sido conduzida para as margens de seu próprio campo disciplinar, de modo que o foco real de interesse e atenção sempre foi uma outra coisa – a história, a linguagem, a ideologia, a filosofia, a política – qualquer coisa, exceto a literatura. Assim, os ensaios teóricos sobre literatura costumavam começar com a exposição de um aspecto da teoria literária, citando longamente algum teórico. As ideias e motivações dos teóricos pareciam fora de questão; como detentores de uma forma misteriosa de imunidade diplomática, eles estavam sempre autorizados a circular livremente pela alfândega intelectual. Os autores de textos literários, em contrapartida, eram invariavelmente parados e submetidos a rigorosos interrogatórios. Quando isso não acontecia, era porque eles eram vistos como meras ilusões geradas pela linguagem, ou então considerados desde sempre mortos. Após expor a teoria da mais alta importância no começo do ensaio, o autor enfim se voltaria para a obra literária mencionada no título do texto, apenas para mostrar que, realmente, ela de fato incorpora e ilustra as teorias recémexplicadas. Assim, a leitura teorizada tornou-se uma maneira de recusar a leitura dos textos literários. Alguém contrário à teoria, decidido a arquitetar a sua própria morte, poderia construir uma teoria simplista para explicar como essa resistência à leitura surgiu. Seria algo mais ou menos assim: os teóricos da literatura sofrem de uma fobia literária; eles têm um medo reprimido do poder do texto literário e constroem defesas elaboradas contra ele, provando obsessivamente a si mesmos, repetidas vezes, que não há nada por trás do texto, absolutamente nada a temer, e que o texto já se desconstruiu a si mesmo desde sempre. É como um pai que tranquiliza seu filho depois de um pesadelo, mostrando que não há absolutamente nada por detrás da cortina. Assim, os teóricos nos dizem, em seu vocabulário soporífero, que não há nada ali exceto a expressão do autointeresse ou interesse de classe, ou (na melhor das hipóteses) algo incompreendido até mesmo (ou especialmente) pelo autor, algo que para sempre se implode dentro de suas próprias contradições. Logicamente, essa é uma visão extrema e injusta dos teóricos e de suas motivações. No entanto, não é mais injusta que a “hermenêutica

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da suspeita” que governou a visão da literatura por mais de trinta anos pósestruturalistas.4 Então o estruturalismo, que trabalha com as complexidades dos textos literários em si e busca explicá-las (mesmo que constantemente resmungando sobre a irredutível natureza burguesa da literatura), começou a me parecer mais interessante que o pós-estruturalismo.

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Os historiadores da internet dividem a web em duas fases distintas, que eles designam por meio dos termos abreviados “Web 1.0” e “Web 2.0”. Na primeira fase, a web era apenas uma fonte de informação – você podia fazer downloads mas não uploads –, ou seja, um sistema de sentido único com “domínios” controlados que, em vez de participantes, tinham “consumidores”. Na fase posterior – Web 2.0 –, a rede tornou-se um processo de duplo sentido: os consumidores passivos tornaram-se participantes ativos e tiveram sua criatividade potencializada pela rede, pois contribuíam e partilhavam informação como colaboradores, de modo que (nas palavras de Tim O’Reilly (2005) “os usuários adicionaram valor” ao sistema, sem qualquer entendimento de que diluíam sua autoridade. Na teoria literária, é possível discernir entre duas fases potencialmente análogas, que poderíamos chamar de Teoria 1.0 e Teoria 2.0. Só que a teoria tem, em grande parte, resistido à transição do 1.0 ao 2.0, sem modificar suas rígidas estruturas de poder intelectual. O resultado é inevitável: a teoria literária é agora uma igreja sem quaisquer seguidores (que falem dela); ela ainda mantém o sacerdócio, mas seus membros, em sua grande maioria, falam e escrevem apenas uns aos outros, e já não há mais qualquer grupo significativo de verdadeiros crentes. De modo geral, a igreja da teoria sobrevive apenas porque é capaz de recrutar os seguidores, uma vez que os cursos permanecem sendo componentes obrigatórios nos currículos de graduação. Os recrutas repetem as orações obrigatórias, mas sem realmente acreditar nelas, e abandonam a fé que nunca tiveram logo que podem, ou seja, assim que entregam os artigos ou ensaios previstos para o curso. Também nesse sentido a teoria já está morta, e não haverá qualquer milagre de ressurreição.

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Sobre a hermenêutica da suspeita, ver Scott-Baumann (2011).

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8 A Web 2.0 começou com o “estouro da bolha da internet no outono de 2001” (O’Reilly), que abalou a fé ingênua do mundo nas infinitas 5

Esse ponto de vista (de que a teoria, depois da “teoria”, vai manter o seu domínio anterior, mais ou menos da mesma maneira) é amplamente incorporado nos seguintes livros: Attridge; Elliot (2011) e Leitch (2014).

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A Web 1.0, segundo a lista de características típicas que O’Reilly nos oferece dela, é liderada pelo Ofoto, um sistema de armazenamento de fotos fundado em 1999 e adquirido pela Kodak em 2001. As imagens armazenadas eram deletadas, a menos que alguém adquirisse os materiais fotográficos em questão, consolidando, portanto, o poder institucional da Kodak, porém, ao mesmo tempo, acelerando seu inevitável desaparecimento. A Web 2.0, em contrapartida, é caracterizada pelo Flikr, que é uma ferramenta aberta utilizada para armazenar e compartilhar fotos. No começo dos anos 2000, a resposta da teoria à mudança dos tempos foi como a da Kodak. Ela se recusou a reconhecer novas realidades e pensou que o desejo de seguir adiante poderia ser satisfeito por meio da incorporação de uma nova geração de superteóricos, dentro da mesma estrutura institucional existente, em que a teoria era repassada por nomes cujos pontos de vista, métodos e autoridade tinham de ser aceitos como inquestionáveis. Dessa forma, a literatura e aqueles que a estudam permaneceriam em sua posição subserviente, infantilizada e colonizada, aceitando passivamente as ideias dos teóricos mundialmente conhecidos, muito embora poucos entre eles fossem especialistas em literatura. Assim, teremos um novo Derrida e estudaremos Being and Event (2005), de Alain Badiou (n. 1937); um novo Althusser, e leremos The Politics of Aesthetics (2006), de Jacques Rancière (n. 1940); um novo Foucault, e ensinaremos Homo Sacer (1998), de Giorgio Agamben (n. 1942); um novo Lacan, e enfrentaremos Interrogating the Real (2005), de Slavoj Žižek (n. 1949).5 E assim por diante. Os papéis permanecem os mesmos, porém com outros atores. A natureza falha dessa empresa é revelada pelas datas de nascimento dos novos superteóricos: eles são todos velhos demais e estão muito próximos, em sua aliança intelectual, da geração que supostamente substituem.

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possibilidades da internet. Da mesma forma, por trás do impulso que deveria ter conduzido à Teoria 2.0, vimos uma série de golpes significativos desferidos contra o prestígio da teoria, incluindo o homicídio da esposa de Althusser, cometido por ele em 1981, a revelação dos escritos antissemitas de Paul de Man, em 1987,6 e o caso Sokal, de 1996, em que um artigo composto de clichês pós-modernos e um pastiche de ciência mal compreendida, realizado a partir das obras dos teóricos, foi aceito para publicação em uma importante revista de teoria.7 Em todos esses casos, o dano à teoria foi causado não tanto pelos acontecimentos em si quanto pelo modo como os teóricos mais conhecidos utilizaram a teoria para explicálos.8 Os aspectos mais reveladores da forma como a teoria reagiu a esses eventos estão no fato de que não ficou claro de imediato aos teóricos que o uso da teoria para defender assassinato, antissemitismo e a publicação de disparates inevitavelmente conduziria ao descrédito da própria teoria. Apenas teóricos aprisionados há muito tempo à adulação acrítica seriam incapazes de perceber isso.

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Seja como for, não há profissionais no mundo que desfrutem, nos dias de hoje, do mesmo tipo de fidelidade inquestionável de que os teóricos do primeiro escalão pareciam há muito tempo desfrutar e desejar para si. Em outra oportunidade, descrevi a inabalável confiança do deslumbrante grupo de grandes teóricos que palestraram na Universidade de Strathclyde, em 1986, como parte da conferência intitulada “A linguística da escrita”. Depois de vários dias ouvindo um discurso impositivo, o público se revoltou e a conferência acabou em confusão.9 Um outro momento semelhante e 6

Ver Hamacher; Hertz; Keenan (1988).

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Ver Sokal (2003).

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Sobre Althusser, ver Roudinesco (2010) (edição francesa original de 2005), Capítulo 4, “Louis Althusser: The Murder Scene”, p. 97-131; sobre de Man, ver Derrida, (1988, p. 590-652). Para “Respostas Críticas” ao texto de Derrida, ver Critical Inquiry 15, Summer 1989, p. 765-811, mais outras sessenta páginas de Derrida respondendo às respostas ao seu texto no número seguinte; sobre Sokal, ver Sokal; Bricmont (2003) (publicado primeiro em francês, em 1997, e depois em inglês, em 1998); e, para uma lista abrangente de respostas e reações ao embuste, basta visitar o site disponível em: .

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Ver Barry (2009, p. 276-279) para uma descrição desse episódio.

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não menos revelador ocorreu em 2003, na conferência intitulada “Depois da teoria”, quando perguntaram a Frank Kermode qual a relevância da obra de Jacques Derrida. Ele respondeu o seguinte: “Bem, eu só acho que vinte anos de bajulação são suficientes”. Esses momentos indicam uma maneira de distinguir entre os críticos literários e os teóricos da literatura. Os primeiros sabem que não é possível ou desejável obter uma resposta final para obras como Rei Lear, Coração das Trevas ou The Waste Land, pois a discussão da crítica literária é inerentemente colaborativa, aberta e contingente. Os teóricos da literatura, contudo, parecem ter acreditado que haviam alterado permanentemente o discurso sobre a literatura, de modo que suas conclusões jamais poderiam ser superadas. Eles deveriam ter sempre em mente o destino da empresa Kodak, que faliu em 2012 graças à incapacidade de reconhecer a chegada da era digital. O Ofoto chegou um pouco tarde demais e foi, de todo modo, um tipo de resposta equivocada, pois tentou adentrar a nova era sem deixar para trás as velhas formas.

Assim, os teóricos da literatura interpretaram mal as importantes mudanças nas estruturas de poder da nossa própria era. Nenhum teórico terá novamente o mesmo crédito intelectual ilimitado concedido a Derrida, Lacan ou Foucault. Nossos fundos de admiração intelectual e credulidade esgotaram-se, e serão necessárias várias décadas para preenchê-los novamente. No mundo financeiro, tivemos o que ficou conhecido como a “crise do crédito”; já no mundo da teoria, temos a “crise da credibilidade”. Para começar a iniciar nossos alunos no mundo da Teoria 2.0, então, precisamos fazer todas as perguntas básicas de novo. O campo dos estudos literários deveria reconhecer o papel subalterno e colonizado que aceitou desempenhar na Teoria 1.0 para, a seguir, recusar-se a tolerar mais vinte anos de reflexão teórica oriunda do trabalho feito por intelectuais de outras áreas. A nossa resposta deveria ser algo assim: “bem, muito obrigado pela oferta (vocês filósofos políticos e psicólogos pós-modernos), mas a partir de agora nós mesmos faremos o exercício de filosofar”. Da mesma forma, o texto literário deveria reafirmar sua própria voz e individualidade, acertando as contas com trinta anos de perseguição por parte da hermenêutica da suspeita. Nós podemos começar desferindo os velhos slogans contra os seus proponentes: assim, suspeitamos da hermenêutica da suspeita

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(e é dos teóricos que suspeitamos, não dos escritores); historicizamos o slogan “historicize sempre” (como é possível historicizar se você sempre historiciza, independentemente das circunstâncias históricas?); e achamos a Morte do Teórico tão interessante quanto a Morte do Autor (os teóricos podem ser imortais – nós nos perguntamos, com incredulidade –, cujos conhecimentos são eternamente válidos, enquanto os autores estão sujeitos à tediosa tarefa de morrer?).

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O Triunfo da Teoria (tal como J. Hillis Miller o chamou) teve raízes nas décadas de 1960 e 1970, quando os Estados Unidos ofereceram hospitalidade a ideias vindas sobretudo da França, Alemanha, Itália e União Soviética. Essas ideias foram “nativizadas” e domesticadas nos cursos superiores do sistema universitário americano, e então reexportadas para o mundo inteiro. No entanto, por volta do fim da década de 1990, o clima nos Estados Unidos mudou: forças poderosas estavam trabalhando no sentido de americanizar novamente o currículo das ciências humanas. Uma contrarrevolução geral tomou conta das universidades americanas, voltando-se contra vários alvos: o politicamente correto, o relativismo, o pós-modernismo, o multiculturalismo, a teoria literária, entre outros. Essa tendência para o isolamento cultural e intelectual atingiu em cheio a teoria literária, acentuando-se com o clima pós-11 de setembro [2001]. Consequentemente, a vida intelectual tornou-se mais insular, com um aspecto mais nacional que internacional, e a teoria literária não passou imune a essas tendências. Talvez possamos esperar, nas próximas décadas, uma variedade maior no que diz respeito às versões da teoria literária que prevalecem em diferentes partes do mundo, em vez de um domínio completo do campo exercido por um pequeno grupo de marcas globais. Essa é uma tendência que podemos chamar de balcanização da teoria, embora o termo possa não ser politicamente correto.

12 Um dos sintomas do declínio da teoria tem sido sua tendência a aumentar de volume, bastante evidente no tamanho cada vez maior das

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13 Nas décadas de 1980 e 1990, era quase um lugar-comum a afirmação de que discordar de teóricos como Derrida e de Man constituía uma “recusa à leitura” e, portanto, um abandono da tarefa mais básica de um intelectual. Assim, em seu discurso presidencial, Miller (1987, p. 284) escreve (sobre a “representação equivocada do que Derrida ou de Man dizem”) que “essa

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antologias, ou guias teóricos, que estruturam grande parte dos programas de ensino de teoria. A primeira dessas antologias foi Debating Texts, de Rick Rylance, publicado pela Open University em 1987 e que continha razoáveis 288 páginas. A palavra “debatendo” no título também era razoável, pois sugeria que nem tudo havia sido estabelecido de antemão pelos figurões da teoria. O livro Modern Criticism and Theory: A Reader, de David Lodge, publicado pela Longman em 1988, com 480 páginas, seguia o mesmo modo humanamente viável – tamanho razoável, boa organização e um material escolhido por ser acessível. Depois disso, o problema do aumento de volume pareceu fugir ao controle: a primeira edição de Literary Theory: An Anthology, de Rivkin e Ryan, em 1997, tinha 1100 páginas, já a segunda, em 2004, passou a ter 1300. Esse número total de páginas, já bastante absurdo, foi duplicado pela Norton Anthology of Criticism and Theory, de 2001, que tem cerca de 2700 páginas. Essas tendências elefantinas são sintomáticas do fato de que o ensino da teoria tem sido frequentemente organizado por pessoas que não possuem um sentido pedagógico, e a teoria é quem pagou o preço por isso. Na teoria literária, a regra parece ser a de que o Senhor dá, mas ele nunca tira, de modo que o número total continua crescendo e crescendo. Ninguém tentaria ensinar filosofia ou ciência política juntando em um livro capítulos e artigos de centenas de diferentes pensadores. Tratase de uma receita para o pânico e desespero intelectual, e é precisamente esse o efeito causado sobre os alunos em relação ao ensino de teoria literária. Os guias do tamanho de tijolos são o mausoléu da teoria, equivalentes ao porte grandioso da Kodak Tower, construída em 1914 pela Eastman-Kodak na cidade natal de Rochester, NY. Hoje, a mensagem da torre, tal como a dos guias triunfantes da teoria, é a mesma que a mensagem do poema de Shelley, “Ozymandias”, em que poucos traços permanecem da cidade imperial destinada a durar eternamente.

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recusa cega à leitura desrespeita as obrigações mínimas da nossa profissão”). Mas as “obrigações da nossa profissão” não podem permanecer todas de um lado só (do lado dos leitores de teoria literária). Quais são, pois, as obrigações profissionais dos próprios teóricos? Eis aqui algumas delas: escrever sempre com precisão, economia, concisão e lucidez, respondendo aos argumentos contrários com paciência e profundidade. Em muitos casos, a teoria não cumpriu com essas obrigações. Quando outros expressavam divergências, a resposta geralmente negava que era aquilo que os teóricos tinham defendido, ou dito, e afirmava que seus adversários deveriam voltar aos textos tortuosamente labirínticos dos teóricos e lê-los novamente. Ora, mas se os textos teóricos são sistematicamente incompreendidos, é razoável concluir que pelo menos parte da culpa deveria recair sobre os teóricos, e que as falhas não podem ser sempre dos leitores. Há apenas um resultado possível quando os proponentes de um movimento intelectual se recusam a se envolver seriamente com os argumentos contrários aos seus, e esse resultado é a própria destruição do movimento. Sob esse ponto de vista, a morte da teoria foi, na verdade, uma forma de suicídio.10

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O que acontece quando a força incontrolável da teoria literária encontra o objeto imóvel do texto literário? No passado, o encontro entre texto e teoria foi como um eclipse – a sombra da teoria recaiu sobre o texto e ali permaneceu. A teoria assumiu o controle do texto, de modo que o texto perdeu sua própria voz e começou a falar ventriloquamente com a voz da teoria. Com efeito, apenas para deixar claro, a teoria literária havia se tornado um modo de recusar a leitura dos textos literários. Dizê-lo significa apenas responder ao império da teoria utilizando seus próprios termos. Nos dias da Teoria Triunfante, quando o pobre texto literário encontrou a faca afiada da teoria,11 ele acabou entregue à lâmina, como um campo recém-arado. Num famoso poema chamado “To the Man After the 10

A declaração clássica da posição de que a resistência à teoria representa uma “recusa cega à leitura” pertence a Paul de Man (1986).

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Em inglês, “the cutting edge of theory”, expressão que pode ser traduzida como “a vanguarda da teoria”. A opção de tradução aqui feita busca preservar a imagem do corte, mantendo o vínculo entre a expressão e o poema de Patrick Kanavagh citado a seguir. [N.T.]

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Harrow”, o poeta irlandês Patrick Kavanagh solicita que o lavrador continue conduzindo sua atividade com indiferença, ignorando os pequenos animais que podem ser feridos pela lâmina do arado. O poema acaba assim:

O que eu enfatizo, quando falo com os meus alunos sobre a teoria, não é a força máscula da lâmina cortante da teoria, mas algo que parece ser o seu contrário, a saber, a névoa – o que Kavanagh chama de “névoa onde o Gênesis se inicia”. O Gênesis, a criatividade ou ideias de qualquer tipo começam em uma névoa, em um lugar que não nos permite saber ao certo onde estamos entrando. A névoa é a incerteza necessária, a parcela de confusão que nos é reservada quando perdemos os marcos (intelectuais) de costume – o que John Keats notoriamente chamou de “capacidade negativa” –, o bom e fértil estado de não saber ao certo, que é muito mais produtivo e benigno do que as convicções e certezas visionárias. A boa névoa é o começo do começo, o momento, em termos de concepção de uma ideia, em que não sabemos bem qual será o nosso problema. Na teoria literária, a névoa é o momento em que você tem uma primeira ideia sobre um texto e começa a teorizar. Assim, quando a teoria encontra o texto, o que buscamos não é uma reelaboração convicta do texto a partir da lâmina implacável da teoria; antes, o que procuramos é uma forma provisória de tatear pela névoa – o que significa aceitar o quão incerto pode ser o encontro entre teoria e texto. Submetido à lâmina cortante da teoria, o texto literário pode apenas encenar o conflito entre (digamos) a realidade e o “Real” lacaniano (com “R” maiúsculo), ou incorporar o corpus de arquétipos junguianos, ou demonstrar os efeitos das estruturas repressivas althusserianas, ou ficar preso aos impasses aporéticos previstos pela desconstrução. É isso o que acontece quando a teoria é meramente aplicada aos textos literários. Dessa forma, não peço que os alunos apliquem a teoria literária aos textos, pois fazê-lo significaria dizer que a teoria é um objeto pronto e acabado, que 12

“Esqueça também a opinião da minhoca / Sobre cascos e pinos pontiagudos, / Pois você está conduzindo os seus cavalos / Através da névoa onde o Gênesis se inicia.” [N.T.]

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Forget the worm’s opinion too Of hooves and pointed harrow-pins, For you are driving your horses through The mist where Genesis begins. (KAVANAGH, 2006, p. 907).12

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tem de ser apenas colocado para funcionar no texto. Em vez disso, peço que os alunos usem a teoria com os textos literários, o que implica uma justaposição equilibrada, em que a teoria tem as perguntas, mas não as respostas. Trata-se de unir texto e teoria de forma especulativa, sem saber ao certo qual será o resultado ou se de fato haverá algum; trata-se de ler com a teoria, em vez de ler através da teoria, utilizando um tipo de capacidade negativa de baixa tecnologia, que é o oposto da fantasia da “alta tecnologia”, do “estado da arte” e da “lâmina afiada” que a teoria nutriu em torno de si no seu auge. Os usos genuínos da teoria são sempre improvisados e provisórios. Não há nenhum manual do usuário ou Bíblia. A teoria deveria ser uma maneira de olhar, não uma maneira de ver. Usar a teoria nas imediações dos textos literários significa realizar um exercício provisório de investigação intelectual – significa conduzir nossos cavalos “através da névoa onde o Gênesis se inicia”.

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Como a teoria está morta, devemos parar de tentar ensinar teoria. Há vários anos, iniciei um texto com a seguinte declaração: “há muitas maneiras de ensinar teoria literária. O problema é que nenhuma delas funciona” (BARRY, 2003, p. 1). Se você é um daqueles que tentaram ensinar teoria, você sabe que a declaração é verdadeira. Você fica cansado da teoria, assim como os seus alunos, mas, à medida que a sua carreira avança, você se torna cada vez mais preso à perpetuação institucional dela. Eis o que você deve fazer: seja corajoso o bastante para parar de ensinar teoria, e, no lugar, comece a ensinar a teorização. Listarei algumas das diferenças. Em uma leitura pós-estruturalista (ou qualquer outro -ismo) de um texto qualquer, a teoria ativa é “aplicada” ao texto passivo, e os resultados são óbvios antes mesmo de você ler mais que o título. Na teorização, pelo contrário, tomamos uma frase (ou, então, apenas algumas linhas) de um teórico e a justapomos a uma frase (ou máxima) de um texto literário, e vemos o que acontece. (Eu ilustro esses pontos na prática nos itens 19 e 20, mais adiante). Com frequência, essas microjustaposições de teoria e texto são mais interessantes e produtivas do que as macroaplicações de toda uma teoria a um texto inteiro. Além disso, a teorização opera a partir do princípio de que a teoria não é um fim em si mesma; se colocamos a

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palavra “literária” depois de “teoria”, isso significa que ela deve nos ajudar a entender melhor como o texto literário funciona, não os textos literários em geral, mas um texto em particular, o texto com o qual luto agora para compreender. Esse princípio também significa que a teoria não pode ser o único fator determinante para essas questões; em vez disso, ela funciona em conjunto com uma série de outros modos de investigação (a história literária, a análise do discurso, os estudos de literatura comparada, o close reading, e assim por diante), cujas posições e procedimentos a teoria não tem autoridade para comprometer por meio de argumentos a priori sobre a sua superioridade intelectual ou filosófica. Por fim, na teorização, lemos a teoria com o mesmo ceticismo com que encaramos toda a escrita, aceitando a possibilidade de que a sabedoria dos teóricos seja tão parcial e falível quanto qualquer outro tipo. Ali onde os teóricos são úteis, tomamos o que podemos usar; e ali onde as motivações parecem confusas ou suspeitas, observamos esse fato sem adotar a premissa de que suas posições são inquestionáveis. Esses são alguns dos objetivos e práticas daqueles de nós que querem ser teorizadores em vez de teóricos.

Uma imagem intitulada em inglês “No Radio”, da artista contemporânea Barbara Krunger, é utilizada na capa de um desses guias teóricos amplamente prescritos. A imagem baseia-se em uma gravura retirada de um manual de medicina do século XIX e mostra uma autópsia em curso: em primeiro plano, o cadáver quase nu de uma jovem mulher jaz sobre a mesa de dissecação. Atrás dela há um homem (totalmente vestido) que observa o que parece ser um coração, que ele segura em sua mão e supostamente acabou de extrair do cadáver. A imagem talvez queira representar o olhar patriarcal e sua atitude predatória, pois se trata de um homem de meia-idade, robusto e de barba grisalha. Mas sempre li essa imagem, em sua posição familiar na capa da antologia, de modo diferente. O cadáver na mesa de dissecação é o texto literário, já o hábil cirurgião, capaz de extrair o seu coração, é o teórico da literatura (alguns dos quais provavelmente têm barba). Por mais ou menos trinta anos, foi assim que as coisas funcionaram, pois, nas discussões teóricas, o texto literário sempre esteve na extremidade passiva da recepção de toda uma série de

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verbos ativos, de modo a ser repetidas vezes “desconstruído”, “examinado”, “desmascarado”, desvelado”, “lido a contrapelo”, tendo “seus pressupostos desnudados” sempre que lhe “passam a faca” – essa metáfora cirúrgica frequentemente utilizada – da teoria literária. Assim, quando texto literário e teoria literária entram em contato, a teoria comporta-se como um objeto fálico duro, enquanto o texto atua como o tecido carnoso com o qual ela colide. Mas o encontro entre teoria e texto geralmente não funciona assim. Quando a força incontrolável da teoria literária encontra o objeto imóvel do texto literário, algo (obviamente) tem de acontecer, mas o resultado pode pender para ambos os lados. Alguns textos são duros como um diamante, capazes de resistir e neutralizar a conhecida “lâmina cortante” da teoria. Outros são como carros blindados, de modo que as “balas invisíveis” da teoria apenas ricocheteiam, e outros ainda desconstroem a teoria com que entram em contato, expondo suas indelicadezas e imprecisões, por vezes desmascarando-as, lendo-as a contrapelo e, sim, (ocasionalmente) até mesmo desnudando-as. Em outras palavras, foi um grande erro, nascido do excesso de confiança, subestimar a força, a complexidade e a longevidade do texto literário. Vários textos literários são como as tartarugas gigantes das Galápagos, que sobreviveram, em sua forma desajeitada, por centenas de anos. Eles são muito mais impenetráveis aos dardos e insultos da teoria do que a teoria parece capaz de imaginar. É isso que a “Teoria depois da Teoria” está tendo de aprender a todo custo.

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Um dos indícios do fim da teoria foi o modo como a sua conceituação tornou-se intransitiva. Em outras palavras, ela deixou de ser uma teoria de algo em particular e passou a ser “teoria” apenas, uma entidade que existe por si e para si mesma. Todos queriam se tornar teóricos, assim como inúmeras pessoas desejam ser escritoras, mas a escrita é transitiva – você tem de escrever sobre algo, e, portanto, é necessário ter alguma ideia do que deseja escrever. No caso da teoria, na medida em que ela de fato aspirava a ser teoria literária, o foco deveria ter sido a natureza da experiência da leitura literária, o poder que o texto literário exerce na mente do leitor, a permanência de um texto ao longo de sucessivas épocas de transformações sociais e históricas, o modo como os eventos textuais se desdobram enquanto

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lemos, mantendo uma força residual mesmo após a leitura, como um eco sonoro ou um brilho imagético. Vou me referir a todos esses aspectos da força e do efeito do texto literário utilizando a expressão geral “presença textual”. A presença textual é como uma carga eletromagnética que faz com que o texto se afaste tanto do seu próprio contexto histórico quanto do nosso, de modo que o nosso mundo perceptual parece transformar-se de forma reveladora: o efeito é fazer com que submetamos momentaneamente a nossa identidade àquela do personagem ou narrador do romance – ou do eu lírico do poema –, de modo que tempo e espaço são suplementados ou substituídos por uma vivacidade poderosa. Estranhamente, no entanto, a teoria não reconhece a presença textual em lugar algum. A teoria está interessada apenas em seu próprio poder, negando sempre a presença textual. Para o teórico, imaginar os personagens do romance como pessoas, em vez de cadeias de significantes, é o cúmulo da inocência e da ingenuidade. Permitir-se imaginar que há uma “voz” no poema, e que as palavras ali dispostas pressupõem alguém que fala ou pensa, ao invés de apenas uma teia linguística para além da qual não resta nada, significa tornar-se vítima de uma trama liberal-humanista burguesa. Os teóricos da literatura, em meio à fantasia que coletivamente subscrevem, têm de permanecer fora do texto, imunes ao fascínio que ele exerce e aparando as próprias unhas (ou, no mínimo, aperfeiçoando os seus aforismos), como na paródia flaubertiana da postura do artista em A Portrait of the Artist as a Young Man, de Joyce.

Assim, os verdadeiros teóricos da literatura são os próprios escritores. Eis onde devemos procurar um relato sobre a presença textual. O melhor relato que conheço, capaz de registrar o efeito da presença textual, é o modo como Henry James relembra sua primeira leitura do poema “The Church of Brou”, de Matthew Arnold. O poema imagina as efígies de mármore de um duque e de uma duquesa sendo despertadas pelo farfalhar das folhas no telhado metálico da igreja acima e por um feixe de luz da lua que atinge os seus rostos. Trata-se de um efeito hipnotizante, conquistado através de uma precisão mimética muito bem disposta e sustentado impecavelmente ao longo de quarenta e cinco versos. James ficou tão impressionado com a

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leitura do poema que imediatamente passou a nutrir o desejo de um dia visitar Brou e ver o túmulo com seus próprios olhos. Ele incluiu Brou em seu itinerário no livro de viagem A Little Tour in France. A visita em si foi uma decepção – a igreja (que o próprio Arnold nunca conhecera) sequer ficava nas montanhas –, mas o momento da primeira leitura é descrito com uma intensidade caracteristicamente jamesiana:

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Tudo o que sempre soube da igreja de Brou foi o que pude ler, anos atrás, no belo poema de Matthew Arnold, que leva o seu nome [...] e enquanto estive diante do objeto da minha peregrinação [...] lembrei-me do lugar onde li pela primeira vez [aqueles versos], e onde os reli tantas e tantas outras vezes, imaginando se algum dia teria a felicidade de visitar a igreja de Brou. O lugar em questão era uma poltrona em uma janela com vista para um jardim com algumas vacas; sempre que eu via as vacas, não sei por que, me ocorria o pensamento de que eu provavelmente nunca veria a estrutura erguida pela duquesa Margaret [...] “So sleep, forever sleep, O princely pair!”.13 Lembrei-me do verso de Matthew Arnold... Então me ocorreu algo em relação à luz da lua em noites de inverno através do frio clerestório. (JAMES, 1984, p. 171-172, tradução de André Cechinel).

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O que surpreende é o fato de que, quando James visita o local, ele é imediatamente transportado de volta para um outro local, que é o lugar onde ele leu o poema pela primeira vez. Assim, ele revive com uma intensidade nostálgica o momento do transporte do leitor, quando o véu das palavras parece dissolver-se para nos oferecer um aparente acesso direto e não mediado a um evento ou local, de modo que vivemos momentaneamente no teatro da mente. O lugar físico em que de fato estávamos no momento da leitura torna-se um “lugar apagado”, que parece ser meramente um local de leitura sem particularidades – “uma poltrona em uma janela com vista para um jardim com algumas vacas [itálicos meus] –, um lugar destituído de sua própria singularidade pela força hipnotizante do espaço representado na leitura. O sucesso de James em recapturar a intensidade do seu primeiro contato com o poema é (parcialmente) indicado por sua lembrança ligeiramente equivocada das exatas palavras dos versos em questão, um 13

“Então durma, durma eternamente, ó par principesco!”.

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detalhe que é emblemático do modo como o impacto da presença textual (paradoxalmente) dissolve a nossa consciência das próprias palavras. O verso do poema tal como James o lembra (sem sentir a necessidade de verificar se estava correto) é “Então durma, durma eternamente, ó par principesco!”. James combina a primeira metade de um verso (“Então durma, durma eternamente, ó par de mármore!”) com a segunda metade de outro (“Então descanse, descanse eternamente, ó par principesco!”). Além disso, no poema, a lua “brilha através da janela do clerestório” nas noite de outono, não de inverno, o que mais uma vez constitui um erro de citação. Com efeito, os nossos versos favoritos frequentemente são citações equivocadas, cujos erros assinalam o ato de apropriação por meio do qual tornarmos o poema, a partir de então, parte de nós mesmos. Os erros marcam a necessária mudança de gravidade perceptual, que nos distancia do campo lexical (as palavras em si, que lemos sequencialmente na página) em direção ao campo semântico (o efeito e significado geral do poema). Essa mudança está no centro da experiência de leitura em sua forma mais intensa, momento em que sentimos a força da presença textual.

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Um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e as regras do seu jogo. (DERRIDA, 2005, p. 7).

A frase apresenta uma ressonância metafórica estranha, por si só quase jamesiana, e parece erotizar o texto, que (idealmente, Derrida parece sugerir) deve flertar timidamente com o leitor, sem revelar tudo no começo e sem se envolver casualmente com um leitor qualquer, mas aguardando a chegada de alguém especial – o próprio Derrida, nesse caso. A palavra do texto de Henry James é osseous. No conto, um jovem escritor americano (o narrador) vai para a Inglaterra para conhecer o velho escritor

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3 – Os fins da teoria

O meu exemplo de teorização justapõe, não uma teoria (pósestruturalismo, digamos) e um texto literário (o conto de Henry James, “The Author of Beltraffio”, digamos), mas uma frase de Derrida e uma palavra do conto de James. A frase de Derrida está na seção “A farmácia de Platão”, publicado primeiramente no livro Disseminação, e começa assim:

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Mark Ambient, cuja obra ele admira imensamente. A Sra. Ambient, no entanto, tem uma aversão moral aos textos do marido e nunca os leu, estando determinada a proteger seu filho, Dolcino, da influência deles. Quando a criança está prestes a dar uma volta com o pai, ela pede que ele a acompanhe, e “estende suas longas mãos delgadas ligeiramente ossudas demais [osseous hands]”. A palavra osseous se destaca: ela literalmente significa boney,14 mas vem do campo discursivo da medicina e parece objetificar e distanciar a pessoa referida; o efeito é similar ao da palavra “obeso” – você pode se referir a um amigo como “um pouco gordinho”, ou algo semelhante, mas “obeso” é uma palavra que parece objetificar a pessoa com seu ar de precisão clínica e só pode ser utilizada em relação a estranhos ou a toda uma categoria de pessoas. Além disso, a imagem das mãos “ligeiramente ossudas” estendidas em direção à criança é bruxesca e misteriosa em suas implicações, e embora a palavra em si seja visivelmente adulta, ela acentua a sensação de desconforto sentida pela criança em relação à mãe. Dessa forma, a palavra representa a Sra. Ambiente, e não seu marido, como a força maléfica que procura envolver Dolcino. O narrador a convence a ler Beltraffio, e ela fica tão chocada com o que ali encontra, que quando Dolcino fica gravemente doente, ela permite que ele morra, pois assim consegue protegê-lo da influência maligna do pai. O que fica claramente evidente é que esse é o mesmo enredo de The Turn of the Screw: a mulher que busca proteger a criança do mal é ela própria a influência maligna que a ameaça e que eventualmente causa a sua morte. Mas os elementos-chave do enredo de The Turn of the Screw estão espalhados de forma diferente nessa história: o narrador não aceita em momento algum qualquer responsabilidade de sua parte no resultado final, assim como a governanta não o aceita em The Turn of the Screw. Mas o enredo de “The Author of Beltraffio” não é narrado pela Sra. Ambient – nem poderia sêlo, da mesma forma como os acontecimentos de The Turn of the Screw não poderiam ser narrados pela governanta. A ficção imoral do romance imaginário Beltraffio, que nutre a “arte pela arte”, governa as vidas “reais” da história que o narrador conta, pois ele frivolamente realiza testes com os Ambients, só para ver o que acontece. Da mesma forma, a governanta em 14

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O autor contrasta duas palavras de significado semelhante, osseous e boney, insistindo, contudo, no caráter médico/clínico do primeiro termo e no afastamento que o narrador promove em relação ao seu objeto em decorrência dessa escolha lexical. Optamos por preservar os termos em inglês justamente para manter o contraste. [N.T.].

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The Turn of the Screw é ela mesma “conduzida pela ficção”, pois a cadeia de eventos recontados na novela começa com um pensamento seu, ao fazer pela primeira vez o trajeto de Bly, de que “seria tão encantador quanto uma história encantadora encontrar alguém de repente”, e nesse momento tem a primeira visão do sinistro Peter Quinn olhando-a do topo da torre. Quanto mais esses ecos e complexidades proliferam, mais as palavras de Derrida ressoam, fazendo crescer o sentimento de que para essa história – e para as demais histórias jamesianas intimamente relacionadas a ela –, nas palavras de Derrida (2005, p. 7), “a lei de sua composição e as regras do seu jogo” sempre serão fugidias. Com efeito, os cadernos de notas de James caracterizam The Turn of the Screw justamente como um jogo, um “truque para capturar aqueles que não são facilmente capturados”. Assim, a teorização que aqui faço apresenta-se em camadas, e as camadas incluem observações do campo lexical sobre a força de uma única palavra, fazendo a interface entre um grupo de histórias de James, com assuntos recorrentes que podem ser estudados de modo estruturalista, e uma noção oriunda da teoria sobre o elemento “secreto” ou ocluso ou retido como força geradora do próprio impulso narrativo. Todas as narrativas que funcionam, Derrida sugere, funcionam não pelo que contam, mas por aquilo que deixam de contar, ou melhor, por aquilo que não contam ainda, e que, quando contam, o fazem de modo apenas parcial.

Teorizar também significa especular sobre a extensão de um texto. Se a expressão “as palavras na página” é rotineiramente considerada inadequada, isso implica que as palavras que estão em algum outro lugar também são relevantes e compõem o texto que estamos considerando. O necessário (para utilizar uma frase de Marina Warner) é “cavar na arqueologia da história”. Essa é a esfera da teoria da intertextualidade, que leva em consideração os ecos e afinidades entre textos. O termo que utilizo para a subcategoria da intertextualidade que observa outros textos de um mesmo autor é cotextualidade. James utilizou a palavra osseous em relação à aparência física de uma mulher em um outro lugar, a saber, em sua Autobiografia. A palavra aparece em sua descrição da atriz Rose Chéri, cuja performance ele havia visto no Théâtre du Gymnase, em Paris, em uma peça chamada A Woman

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Who Hates Her Husband. Nesse caso, a palavra osseous refere-se à pessoa como um todo, ao physique ingrat [o físico pouco atraente] da atriz, ou seja, “à sua aparência, à primeira vista, extremamente estranha e claramente ossuda; uma mulher magra com um testa elevada e saliente” (JAMES, 1983, p. 202). O evento e sua lembrança têm uma aura tátil de constrangimento sexual adolescente, e ao recordar o teor intenso e lúgubre do incidente, James o narra da seguinte maneira: “aperto-me novamente com minha mãe, minha tia e meu irmão na baignoire [banheira] abafada” (JAMES, 1983, p. 201), uma palavra que nitidamente evoca a escuridão apertada e encalorada do teatro. Num mundo em que as atrizes eram vistas como prostitutas em potencial, Rose Chéri e sua irmã eram famosas por sua virtude inabalável. Quando o noivado de Rose foi anunciado, seu pai se jogou de uma janela (o que causou a sua morte). Estranhamente, sua irmã tinha atuado recentemente em uma peça chamada The Woman Who Threw Herfself Out of a Window. Essa peça era de autoria do simbolicamente chamado Eugène Scribe, famoso proponente da “peça bem feita” [pièce bien faite], tipo de teatro em que Wilde se destacou e que o próprio James, mais tarde em sua vida, provou ser notoriamente incapaz de escrever. Suas tentativas prolongadas de se tornar um dramaturgo acabaram em um outro embaraço encalorado, dessa vez como um homem maduro, na escuridão traiçoeira do teatro. A própria Rose mais tarde cuidou heroicamente de sua criança adoecida em seu momento terminal, tornando-se, novamente, uma antecipação curiosa da Sra. Ambient, cujos severos princípios morais também parecem estar de alguma maneira relacionados àquele aspecto “ossudo”. Assim, a palavra osseous, brilhando através de uma escuridão que é tanto real quanto metafórica, parece conectada a um sentimento hipnotizante de atração-repulsão em relação às mulheres, sentimento visto repetidas vezes nos narradores homens de James e presumivelmente parte do próprio autor. Todas as mulheres em suas histórias apresentam uma magreza elegante ou então certa abundância corporal. Em algum lugar no meio deve ter havido um tipo idealmente agradável, que poderia eventualmente ter parecido adequado ao gosto narratorial, porém tal mulher nunca é encontrada no mundo de James. Entender (mais uma vez em termos derridianos) “a lei de sua composição e as regras do seu jogo” (DERRIDA, 2005, p. 7), no caso do texto em questão, significaria explicar esse complexo de ecos, semiecos, estruturas e referências cruzadas. É difícil imaginar uma teoria capaz de igualar a complexidade desse texto

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literário, com os seus emaranhados textuais, intertextuais e cotextuais, além da interação inventiva entre história pessoal e social e a personalidade autoral que se junta a esse quadro. Cavar na arqueologia da história é explorar essa pletora de presença textual. O que chamo de teorização é uma forma de exploração aberta, baseada na determinação de seguir justapondo fragmentos de teorias e fragmentos de textos, sem pressupor que o resultado é predeterminado. É isso que nos entusiasma no mundo da teorização (que praticamos – ativamente – por nós mesmos), e não no mundo da teoria (que outros praticavam – passivamente – para nós). Eis um dos fins da teoria, um mundo que permanece aberto à nossa exploração após o fim da teoria.

ATTRIDGE, Derek; ELLIOT, Jane (Ed.). Theory after Theory. London: Routledge, 2011. BARRY, Peter. Beginning Theory. 3. ed. Manchester: Manchester University Press, 2009. BARRY, Peter. Literature in Contexts. Manchester: Manchester University Press, 2007. BARRY, Peter. The “Good Science” Approach to Teaching Literary Theory. English Association Bulletin, n. 174, autumn/winter 2003. p. 1-3. DE MAN, Paul. The Resistance to Theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986. DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. DERRIDA, Jacques. Like the Sound of the Sea Deep within a Shell: Paul de Man’s War. Critical Inquiry 14, Spring 1988. p. 590-652. HAMACHER, Werner; HERTZ, Neil; KEENAN, Tom (Ed.). Paul de Man: Wartime Journalism, 1939-43. Lincoln: University of Nebraska Press, 1988. JAMES, Henry. A Little Tour in France. New York: Oxford University Press, 1984. JAMES, Henry. Autobiography. Princeton: Princeton University Press, 1983. KAVANAGH, Jay. To the Man After the Harrow. In: PARINI, Jay (Ed.). The Wadsworth Anthology of Poetry. Toronto: Thompson Wadsworth, 2006. LEITCH, Vincent B. Literary Criticism in the 21st Century: Theory Renaissance. London: Bloomsbury, 2014.

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Referências

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MILLER, J. Hillis. Presidential Address 1986: The Triumph of Theory, the Resistance to Reading, and the Question of the Material Base. PMLA, v. 102, n. 3, p. 281-291, May 1987. O’REILLY, T. What is Web 2.0? Design Patterns and Business Models for the Next Generation of Software. 30 set. 2005. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2014. ROUDINESCO, Elisabeth. Philosophy in Turbulent Times: Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser, Deleuze, Derrida. New York: Columbia University Press, 2010. SCOTT-BAUMANN, Alison. Ricoeur and the Hermeneutics of Suspicion. London: Continuum Studies in Continental Philosophy, 2011. SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean. Intellectual Impostures: Postmodern Philosophers’ Abuse of Science. 2. ed. London: Profile Books, 2003.

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II Estado da teoria

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Teoria literária hoje

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Jonathan Culler

Para abordar o tópico “Teoria literária hoje” no Ocidente, é necessário descrever brevemente o que aconteceu nos estudos literários e culturais na Europa e nos Estados Unidos nas últimas décadas, embora a descrição seja sem dúvida bem conhecida de muitos. A partir do final dos anos 1960, o campo dos estudos literários e culturais nos Estados Unidos e na Europa ocidental sofreu transformações significativas sob o impacto do que é geralmente chamado de “teoria” apenas – um uso bastante estranho, admito. Se você pergunta “teoria do quê?”, a resposta está longe de ser clara. O que conta como “teoria” raramente é teoria da literatura, no sentido de uma descrição da natureza singular das obras literárias e dos princípios metodológicos de investigação como parte de uma disciplina acadêmica. Várias obras teóricas importantes, escritas por autores como Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Ferdinand de Saussure, Claude Lévi-Strauss, Jacques Derrida, Jacques Lacan, Michel Foucault, Louis Althusser, Judith Butler e tantos outros, não lidam com a literatura em momento algum, ou o fazem apenas de modo marginal. A “teoria” começou, de fato, com o movimento estruturalista, que abordou a significação em geral e, portanto, foi importante para as pessoas 1

O presente capítulo, traduzido do inglês pelo organizador do volume, é, segundo o autor, resultado de uma série de palestras proferidas em outubro de 2011 nas seguintes universidades chinesas: Shanghai Jiao Tong University, Nanjing University, Beijing University e Tsinghua University. (N. T.)

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de todas as áreas das ciências humanas e sociais. O que chamamos pelo apelido de “teoria” constitui uma miscelânea em termos de gênero: estamos falando de obras que conseguiram desafiar e reorientar o pensamento em áreas diferentes daquelas a que aparentemente pertencem. Textos que não são do campo dos estudos literários foram utilizados pelos estudiosos da literatura porque as análises que fazem da linguagem – ou da mente, ou da história, ou da cultura – oferecem leituras novas e persuasivas acerca de questões textuais e culturais.2 Nesse sentido, a teoria não é um conjunto de métodos para o estudo literário, mas um conjunto ilimitado de escritos sobre tudo o que existe sob o sol, desde os problemas mais técnicos da filosofia acadêmica até as diferentes formas como as pessoas falaram e pensaram sobre o corpo. O gênero da “teoria” inclui obras de antropologia, estudos de cinema, estudos de gênero, linguística, filosofia, teoria política, psicanálise e história social e intelectual, que se tornaram “teoria” porque suas visões ou argumentos provaram ser sugestivos ou produtivos para pessoas que não estão estudando essas disciplinas. A teoria literária baseiase em argumentos de outras áreas do saber de forma especulativa, assim como o trabalho dos teóricos da literatura, por sua vez, é apropriado por outros campos – mas essa é uma outra história. Uma das razões que fizeram com que os críticos literários recorressem a outras áreas diz respeito ao caráter pouco teórico do que fora feito previamente nos estudos literários. Grande parte dos estudos literários não passava, na verdade, de uma versão precária da história: estudo dos autores em seu contexto histórico e sua contribuição para a história da literatura, sem qualquer reflexão sobre o modo como a literatura funciona enquanto prática cultural, sobre o que significaria ter uma história para a literatura ou sobre como uma abordagem histórico-literária poderia de fato enfrentar o que há de mais interessante e desafiador nas grandes obras literárias. Paralelamente, o estudo literário baseava-se em uma ideia de close reading que assumia que o contato direto com a linguagem seria suficiente – não se pensava na necessidade de um procedimento metodológico. As investigações de outras áreas ofereceram recursos poderosos para repensar a literatura e o estudo literário, levantando questões não apenas sobre o funcionamento da linguagem e da significação em geral, mas também 2

Para uma discussão da “teoria”, ver Culler (1997, capítulo 1). Há uma nova edição, publicada em 2011, com uma bibliografia revisada e um novo capítulo final, intitulado “Ética e estética”.

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sobre uma série de outros tópicos. Afinal de contas, a literatura aborda praticamente todos os temas que existem, então os intelectuais, tão logo livres de uma história literária que não fazia justiça às obras literárias, perceberam-se capazes de recorrer às mais empolgantes e interessantes teorizações dos diferentes tipos de materiais por eles encontrados na literatura. Eles também encontraram nos gêneros da “teoria” obras que poderiam ajudá-los a refletir sobre o funcionamento da literatura em si, em termos históricos, psíquicos, linguísticos, antropológicos e filosóficos. A teoria possibilitou o enriquecimento geral das ciências humanas e um pensamento mais correto sobre todos os tipos de assuntos nos textos. Ela também promoveu uma leitura do texto literário mais atenta aos pressupostos, opções metodológicas e concepções acerca do funcionamento da linguagem, e assim por diante. Tudo isso é bastante conhecido. Os estudos literários no Ocidente sofreram uma grande transformação a partir do final dos anos 1970 sob a influência da teoria e de modelos ou práticas teóricas como o marxismo, a psicanálise, o feminismo, a desconstrução, o novo historicismo e a teoria queer. A teoria mudou as coisas para sempre. Na virada do século XXI, a teoria já não era mais uma novidade, e frequentemente ouvimos reivindicações em torno de sua morte, mas, na verdade, ela tornou-se parte integrante da paisagem, longe de constituir algo novo ou revolucionário. Sua presença institucional e disciplinar prova estar bem estabelecida nas universidades americanas. Ao ter sua presença assegurada, a teoria perde, é claro, parte do encanto da novidade, embora isso a torne um alvo menor de ataques. Parece agora amplamente aceito que qualquer projeto intelectual tem por base algum tipo de teoria, que os alunos de pós-graduação devem tanto estar cientes dos debates teóricos travados em suas áreas quanto ser capazes de se situar, e de situar seus estudos, dentro das diferentes estruturas intelectuais que compõem o cenário profissional. Para muitos, está claro que a teoria, longe de ser “muito difícil” para os graduandos, é justamente o tipo de coisa que eles devem explorar como uma das dimensões mais interessantes e socialmente pertinentes das ciências humanas. É claro que ainda há aqueles que duvidam disso, mas a conversa sobre a morte da teoria é algo tolo e talvez tendencioso. Como a teoria não é apenas um corpus de obras em evolução, mas reflexão sobre a própria reflexão, ela nos convida a questionar como uma

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disciplina propõe suas questões, perguntando se não haveria outras formas melhores de proceder e o que queremos dizer com “melhor”. O que nos impulsiona em direção à teoria é um desejo de entender o que estamos fazendo, de questionar nossos compromissos e suas implicações. A teoria é motivada pelo desejo impossível de nos ausentarmos por um momento de nosso próprio pensamento, para localizá-lo e compreendê-lo, e também por outro desejo – um desejo possível – de mudança, tanto nos nossos modos de pensar, que sempre poderiam ser mais agudos, mais inteligentes e integrais, mais autorreflexivos, quanto no mundo com o qual o nosso pensamento se engaja. Dessa forma, sempre haverá novos desenvolvimentos, sempre haverá mudanças no campo da teoria. Gostaria neste capítulo de descrever brevemente algumas das mudanças ou desenvolvimentos recentes no campo da teoria literária.3 Uma vez que, como já expliquei, a teoria literária não é apenas a teoria da natureza da literatura, mas uma grande massa de textos teóricos sobre coisas que são importantes para a literatura, o que está acontecendo não é um tipo de modificação sistemática, mas sim mudanças em áreas específicas que, por vezes, geram novos campos de reflexão. O que ofereço é, antes, um conjunto diverso de desenvolvimentos que me parecem significativos. 1. Primeiramente – e não tomo esses desenvolvimentos em qualquer ordem particular –, a narratologia, o estudo formal da estrutura narrativa – aspecto central à teoria literária estruturalista e que vinha sendo já há algum tempo negligenciado, visto como uma empresa pouco dinâmica –, vem passando recentemente por uma renovação e encenando o seu retorno. Há dois desenvolvimentos importantes aqui. Diferentemente da narratologia estruturalista, que havia tomado a linguística como modelo, tentando produzir algo como uma gramática da narrativa, a narratologia recente tem buscado articular-se com a ciência cognitiva, com as pesquisas que discutem como o cérebro processa a informação. Não sabemos ao certo se isso não significará apenas a tradução dos conceitos narratológicos para um vocabulário diferente, mas a própria ciência cognitiva parece conferir à narrativa um papel mais importante em relação aos modos como as pessoas compreendem a experiência, e, de qualquer forma, trata-se de uma conexão importante a ser explorada. 3

Para algumas discussões sobre a situação atual da teoria, ver Attridge; Elliot (2010); Culler (2010), e também o novo capítulo final de Culler (2011).

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Ademais, em vez de concentrar-se prioritariamente nas narrativas literárias dos séculos XIX e XX, a narratologia recente, além de reservar um espaço importante para as histórias que as pessoas contam na vida cotidiana, tem ampliado o alcance histórico das narrativas. O livro mais importante nesse contexto, o trabalho inovador de Monika Fludernik (1996), Towards a “Natural” Narratology, já tem 15 anos, mas somente agora começou a ser assimilado, pois nos anos 1990, quando a narratologia não era vista como um campo interessante, a editora produziu uma edição pequena e bastante cara. O livro constitui a primeira abordagem narratológica a fazer uma leitura integral da história da narrativa em língua inglesa, da vida dos santos até a ficção pós-moderna. A autora também rompe com a narratologia centrada no enredo – para ela, o que define a narrativa é a experiência. Além disso, ela busca assimilar à narratologia o melhor das pesquisas cognitivas recentes, sem abandonar as conquistas fundamentais da tradição narratológica. Fludernik (2009) publicou recentemente um breve volume intitulado Introduction to Narratology, buscando novamente, em forma de manual, apresentar a sua abordagem específica. A esse trabalho acrescentam-se outras duas obras introdutórias, também novas e excelentes, que sinalizam o renascimento do campo: David Herman (2002; 2009), que também é autor de Story Logic: Problems and Possibilities of Narrative, publicou Basic Elements of Narrative, e Rick Altman (2008) apresentou um excelente livro chamado Theory of Narrative. Altman, um conhecido teórico do cinema, busca explicitamente construir uma nova teoria da narrativa baseada não no enredo, muito menos no pressuposto de que a norma para a narrativa consiste em uma trama ininterrupta, mas sim naquilo que ele chama de “seguimento” (que apresenta afinidades com o conceito de “experiência” de Fludernik). A narrativa segue um personagem ou grupo, ou alterna entre um e outro. Assim, as narrativas diferenciam-se segundo as suas formas de seguir (diferentes tipos de modulação de uma cena ou unidade para outra), o que produz uma tipologia fundamental: há narrativas de foco único, narrativas de foco duplo e narrativas multifocais. Ao elaborar uma narratologia que se baseia verdadeiramente na narrativa em geral, e não apenas na narrativa literária, Altman utiliza diversos exemplos cinematográficos reveladores. Ele é muito hábil em mostrar as vantagens do seu esquema terminologicamente simples em relação à análise narratológica tradicional, e oferece qual deve ser o ponto de partida

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para sofisticações posteriores. Em suma, parece que estamos diante de dias promissores para a teoria da narrativa. 2. Uma segunda mudança: recentemente, passamos a ouvir falar menos de Foucault e Lacan e mais de Derrida. Por algum tempo, Freud, Lacan e a psicanálise eram referências incontornáveis no campo da teoria literária, mas esse já não é mais o caso nos Estados Unidos (Lacan ainda é um nome muito forte na França, onde as controvérsias ajudaram a manter o seu trabalho em vista). Michel Foucault parecia por um tempo a figura dominante na teoria literária nos Estados Unidos, apesar de não ter trabalhado com a literatura. Seus estudos sobre a história da sexualidade, o poder e a disciplina serviram de inspiração para uma série de projetos historicistas envolvendo a literatura – entre outros, estudos sobre como as obras literárias contribuem para os discursos acerca de uma variedade de fenômenos culturais e, portanto, para a construção cultural desses fenômenos. Isso também parece ter diminuído e temos visto recentemente o ressurgimento da obra de Derrida, tanto por meio da publicação de seus próprios seminários, que continuará nos próximos anos, quanto pelo número de livros novos sobre o filósofo. Mencionarei apenas For Derrida, de J. Hillis Miller (2009), uma coletânea de ensaios claros e pedagógicos sobre diversos aspectos da obra de Derrida, escritos em sua maioria após a morte dele. Esses ensaios evidenciam a vasta gama de assuntos sobre os quais Derrida tinha algo de importante a dizer, oferecendo-nos relatos valiosos de tópicos que vão desde a teoria derridiana da performatividade até seus textos sobre o luto, a decisão e o toque. Mas eu destacaria um livro notável em particular, Radical Atheism: Derrida and the Time of Life, de Martin Hagglund (2008). O trabalho redimensiona toda a trajetória de Derrida, rebatendo os argumentos recentes de que sua obra ficou marcada por uma virada ética ou religiosa e mostrando, em vez disso, que desde o início a preocupação de Derrida com a temporalidade caminha junto com uma valorização da sobrevivência, do mortal, do temporal e uma rejeição do desejo de imortalidade e transcendência que estrutura tantas formas de pensamento. Investigando a questão da temporalidade e da sobrevivência, Hagglund analisa a relação de Derrida com o pensamento de Kant, Husserl e Levinas, bem como com os debates atuais sobre democracia, ética e o retorno da religião. Esse livro recebeu muita atenção e tem sido objeto de conferências e debates em revistas acadêmicas, um indicativo do

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envolvimento íntimo e contínuo da teoria com a obra de Jacques Derrida, a quem retornarei posteriormente. 3. Seguindo adiante, tem-se falado muito já há algum tempo, no campo da teoria, sobre uma virada ética ou um retorno à ética. Certamente é verdade que antes tínhamos visto um afastamento de certa forma de ética. Nos anos 1980 e 1990, a teoria havia vigorosamente desencorajado o foco na educação literária como forma de agir; desencorajado, por exemplo, o uso de romances para falar sobre o comportamento dos personagens, algo que os alunos apreciam mais do que analisar a técnica ficcional. A teoria literária encorajava mais o foco no funcionamento da linguagem, na construção de personagens e temas, que no julgamento ético, e isso era muito salutar, pois colocava em xeque as falas devotas sobre o homem e o mundo. Mas a literatura sempre esteve ligada a discussões sobre decisões éticas e como se relacionar com pessoas diferentes de nós. O que é por vezes chamado de “virada ética” pode ser visto como uma continuação do movimento geral que caracterizou a teoria desde o início (particularmente a desconstrução), e que diz respeito à contestação das oposições hierárquicas que marginalizaram certos grupos para criar normas: masculino versus feminino, branco versus negro, heterossexual versus homossexual – o primeiro termo sempre tomado como normativo e o segundo como inferior. A dissolução das exclusões baseadas em gênero ou raça conduziu a uma ampliação do cânone literário; o reconhecimento das exclusões baseadas na orientação sexual levaram aos estudos gays e lésbicos e à teoria queer. Essa crítica a uma lógica opositiva de exclusão conduziu a uma expansão do domínio teórico, que passou a centrar-se naquilo que havia sido rejeitado para que a norma fosse estabelecida; esse procedimento leva a um questionamento de outras oposições, como a distinção entre o humano e o animal. Aqui temos um desenvolvimento recente interessante no campo da teoria – o terceiro de minha lista –, e que certamente apresenta uma dimensão ética importante. A caracterização do animal como “outro” ajudou por muito tempo a definir o humano. Aristóteles e Descartes utilizaram essa lógica – os animais não possuem razão, não possuem alma. Mas qual é a natureza e o impacto da distinção entre o humano e o animal? Como essa distinção é feita, com que motivos e quais valores? A partir da “questão do animal”, os “estudos animais” ou “estudos humano-animal”, como são chamados, tornaram-se um

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campo interdisciplinar crescente, constituindo, é claro, mais do que uma área de estudos: para muitos, trata-se de um movimento político dirigido por um sentimento de justiça. Após a libertação feminina e a libertação gay, a libertação animal parece ser uma nova etapa – ou, se não a libertação animal, o reconhecimento de que o tratamento humano conferido aos animais, segundo a nossa própria conveniência, é difícil de defender. Algumas críticas à oposição humano/animal demonstram elementos comuns e continuidades. O trabalho pioneiro de Vicki Hearne (1986), treinadora de animais e filósofa – trabalho que passou a figurar recentemente no campo da teoria –, explora a comunicação entre os seres humanos e os animais; outros teóricos promovem um “estar com os animais”.4 Por outro lado, uma corrente significativa de trabalhos teóricos concentra-se nas descontinuidades, na alteridade radical e na inacessibilidade dos animais, seres que não podemos presumir conhecer (especialmente quando vamos além dos animais que os ocidentais adoram crer que conhecem, como cães e cavalos).5 Enfatizando o papel que as noções de animal desempenharam na definição do humano, essa abordagem exige respeito à alteridade dos animais e acusa os proponentes da abordagem anterior de antropomorfismo, ou seja, de tratar os animais segundo modelos humanos. Há aqui um debate bastante intenso. Em The Animal That Therefore I Am, Jacques Derrida (2008, p. 18) articula “o desejo de escapar às alternativas de uma projeção que apropria e uma interrupção que exclui”. No entanto, ele enfatiza tanto as dificuldades de compreender o ponto de vista dos animais quanto o que ele chama de uma violência antropocêntrica, que a tudo agrupa, de formigas a zebras, como exemplos do “animal”. O que acontece quando deixamos de pensar nos pequenos e adoráveis mamíferos e passamos a considerar insetos ou pássaros, por exemplo? Qualquer tentativa de resposta única para a relação conceitual entre o humano e o animal parece grotescamente centrada no ser humano. O efeito da teoria recente aqui é a sinalização da dificuldade de manter uma barreira firme entre os seres humanos e as outras espécies. A abordagem não pode senão conduzir ao reconhecimento de nossas relações irredutivelmente múltiplas, complexas e reconfiguráveis com os outros animais. Como no caso da alteridade humana, a literatura pode ser um espaço privilegiado para a análise da construção do animal e de sua relação com o 4

Sobre “estar com os animais,” ver Haraway (2007).

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Para duas fontes gerais sobre a questão, ver Carlaco (2008) e Wolfe (2003).

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ser humano, bem como para o reconhecimento de valores que podem servir para tratar os animais de forma diferente. Há representações de animais na literatura, argumenta Laura Brown em seu novo livro sobre o assunto, que escapam a alguns dos paradoxos que a teoria tem explorado, pois as criaturas literárias são, simultaneamente, antropomorfizadas e “estranhas”, elas “misturam impulsos associados ao humano e impulsos que alienam do humano, misturam antropomorfismo e alteridade de uma forma que leva a questão da relação homem-animal para uma outra direção” (BROWN, 2010, p. 23), distante da dicotomia teórica, uma direção mais variada e especulativamente fantástica e, portanto, mais capaz de explicar a verdadeira alteridade. Os animais podem ser utilizados para trazer as abstrações ao campo da experiência cotidiana, oferecendo perspectivas incomuns sobre questões de hierarquia, diversidade e diferença. Poemas que retratam os animais podem ser tentativas extraordinariamente criativas para pensar com solidariedade a questão da singularidade dos animais, destacando ao mesmo tempo a impossibilidade de encontrar palavras que não se apropriem deles para propósitos humanos. Há questões teóricas interessantes e complexas aqui. 4. Um quarto desenvolvimento recente diz respeito a um movimento muito amplo e amorfo chamado “ecocrítica”. Referi-me antes ao modo como a teoria questiona as oposições binárias por meio das quais nos definimos. Uma das oposições centrais é aquela entre homem e natureza. Como essa distinção ajudou a construir um humanismo ocidental em que a natureza ainda hoje é tratada como um objeto a ser explorado? A crítica às oposições humano/animal e homem/natureza por vezes pertence, explícita ou implicitamente, a um movimento ecológico mais abrangente que confronta o antropocentrismo dos seres humanos (fazemos de nós mesmos o centro de todas as coisas) e busca promover o respeito pelo meio ambiente e por todos os outros seres não humanos. Ambas as abordagens teóricas mais amplas que mencionei em torno da questão animal – a dissolução da oposição humano/animal para explorar instâncias em que somos como os outros animais e a ênfase na alteridade dos animais, um fato que exige respeito – estão em consonância com a “ecocrítica” emergente, uma abordagem literária centrada na questão da terra que convoca a literatura e as sensibilidades literárias a pensar sobre o meio ambiente e os impactos que os seres humanos nele exercem, desafiando-nos a ter isso sempre em

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mente. A ecocrítica não apresenta um método particular de leitura, mas sim uma questão dominante, uma mudança de escala, um foco sobre as diversas formas de violência do antropocentrismo humano.6 Ela pode explorar textos que falam da natureza, de como os diferentes grupos tratam a natureza de forma distinta, pode enfatizar as celebrações da natureza para promover a consciência ecológica, ou pode, ainda, abordar de modo mais direto os usos humanos da natureza. Em um ensaio recente sobre ecocrítica publicado na PMLA (“Modern Language Association of America”), intitulado “Sea Trash, Dark Pools, and the Tragedy of the Commons”, a editora da revista, Patrícia Yeager (2010), persegue a “virada oceânica” nos estudos literários, cuja premissa é a de que temos sido míopes em relação ao papel que os oceanos desempenharam na formação das culturas; agora já não se pode mais conceber os oceanos como fontes ilimitadas ou horizontes sublimes, pois estes se tornaram, antes, um ambiente partilhado e de fácil degradação. Yeager lê as representações literárias do mar comparadas às realidades oceânicas. Para a ecocrítica, o bem-estar de todas as formas de vida, humanas e não humanas, e do meio ambiente é a finalidade à qual os demais propósitos devem responder. A obra Sense of Place, Sense of Planet: The Environmental Imagination of the Global, de Ursula Heise (2008), é representativa do trabalho realizado pela ecocrítica. O livro é ambicioso e importante em sua promoção da imaginação estética do planeta, pois busca explorar as relações entre ambientalismo, cosmopolitismo, globalização, teoria do risco e o pensamento da diferença cultural, tudo isso a partir de um “ecocosmopolitismo” que conta com a contribuição da imaginação literária. Heise dirige-se a um amplo público comparatista e interdisciplinar, em um livro que talvez não seja imediatamente reconhecível como teoria literária, embora recorra a várias obras de literatura – entre outros, autores como Don Delillo e Christa Wolf – em sua tentativa de investigar as relações entre o local e o global. Mas a celebração da natureza ou do natural não é uma postura com a qual a teoria, especialmente a teoria pós-estruturalista, pode permanecer contente. Tal como as oposições entre homem e natureza e entre homem e animal, a oposição entre homem e máquina desempenhou uma função 6

O livro de Buell (2001) constitui um importante exemplo. Já o de Garrard (2004) é uma introdução breve e acessível.

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cultural e ideológica importante: em cada caso, o segundo termo tem sido utilizado em oposições para definir o humano, e a mesma lógica que funciona para desfazer as duas primeiras oposições aplica-se à terceira. Nós buscamos nos definir como diferentes das máquinas, mas, assim como somos animais, não seríamos também máquinas? A crítica à oposição homem e máquina é um desenvolvimento lógico do movimento da teoria contemporânea, que tem contestado o modelo tradicional de ser humano como sujeito autônomo, racional, autoconsciente e dotado de livre-arbítrio (o marxismo e a psicanálise oferecem duas abordagens potentes dos seres humanos vistos como produtos de uma série de forças, sociais e psíquicas, que eles não controlam). A atuação consciente, poderíamos dizer, é apenas uma história que a consciência conta a si mesma para explicar o que de fato ocorre como resultado da interação de uma série de fatores. A crítica do ser humano autônomo então conduz, como consequência lógica, não exatamente a uma “libertação das máquinas”, mas a um questionamento dessa oposição homem e máquina por meio de investigações daquilo que alguns teóricos chamaram de “pós-humano”. Esse é o quinto desenvolvimento que pretendo considerar brevemente. 5. A primeira função da noção de “pós-humano” é marcar uma passagem para além da concepção tradicional de sujeito humano. Embora os estudos do pós-humano com frequência recorram à ficção científica, à cibernética e à teoria de sistemas, o argumento não é o de que os computadores e outras máquinas mudaram o mundo, criando uma situação em que somos parte de sistemas complexos ou circuitos que não controlamos. A afirmação fundamental é a de que sempre fomos pós-humanos, sempre fomos diferentes daquela imagem do humano sugerida pelo humanismo. Os computadores e outros equipamentos apenas tornaram evidente o que sempre foi verdadeiro: a psique, com suas pulsões, por exemplo, nunca foi um dispositivo por nós controlado, e os nossos corpos são mecanismos extremamente complexos que sempre encontraram diversas formas de escapar ao entendimento da ciência. É bem verdade que hoje nos vemos cada vez mais controlados por nossas máquinas, tanto quanto nós as controlamos: enquanto eu escrevia isso, o meu computador repetidamente me intimava a ler mensagens, em grande parte anúncios ou propagandas, geradas por outros computadores. De fato, é a estrutura do controlador e do controlado que a noção de póshumano põe em xeque.

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“A Cyborg Manifesto”, de Donna Haraway (1991), publicado originalmente em 1985, foi o primeiro texto a articular o que seria posteriormente tomado pela teoria e convertido na noção de pós-humano: “somos todos quimeras, híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; em suma, somos ciborgues” (HARAWAY, 1991, p. 150). O ciborgue, criatura híbrida da ficção científica, parte pessoa e parte robô, “é uma criatura em um mundo pós-gênero” (trata-se de um manifesto feminista e socialista), e “pode indicar uma saída do labirinto de dualismos que utilizamos para explicar nossos corpos e ferramentas a nós mesmos” (HARAWAY, 1991, p. 181). Uma vez que questionamos a ideia de um “eu” ou mente que controla seus corpos e ferramentas, e compreendemos que as habilidades que nos permitem funcionar estão presentes – seja em nossos próprios corpos, seja nas extensões de nossos corpos no meio – em coisas que vão desde pequenas ferramentas até os sistemas computacionais mais complexos, podemos então perceber que, ao viver no mundo, integramonos a sistemas de “cognição distribuída”, parte dela incorporada em nossas mentes, parte nos ambientes inteligentes que nós e nossas máquinas criamos. O livro de Katherine Hayles (1999) intitulado How We Became Posthuman esboça uma mudança de compreensão que a autora também defende: de sujeitos autônomos a nodos de incorporação em sistemas cada vez mais complexos de retroalimentação. Os sistemas de que formamos parte são agora capazes de pilotar aviões, estabelecer os preços das ações, encontrar informações e de fazer uma série de outras coisas de modo mais rápido e eficiente do que a mente sozinha jamais pôde. Embora ainda tenhamos de recorrer às noções tradicionais de indivíduo, livre-arbítrio e agência para uma série de propósitos, essas noções são vistas como ficções heurísticas que utilizamos para tentar dar sentido a um mundo cujos padrões são construídos por meio de operações recursivas em um contexto de aleatoriedades. O que chamamos de humano, por exemplo, seria uma seleção de características oriundas de sistemas e processos maquínicos.7 A alegação de que somos pós-humanos é, naturalmente, um movimento teórico agressivo, e é fácil impacientar-se com argumentos de que somos pós isso ou aquilo: somos pós-modernos, pós-estruturalistas, pós-raciais e agora pós-humanos. Por que não dizer que as noções tradicionais de ser humano foram contestadas, de modo que o que temos 7

Ver também Wolfe (2010).

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Para uma crítica ideológica da estética, ver Eagleton (1990).

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é uma concepção nova e mais precisa do humano, capaz de considerar sua relação profunda com sistemas cada vez mais complexos? Há, sem dúvida, dois motivos: em primeiro lugar, a noção de humano, por mais que seja redefinida, ainda parece implicar uma oposição entre humanos e animais, por um lado, e humanos e máquinas, por outro. A alegação explícita do “pós-humano” é a de que essas são simplificações grosseiras. Em segundo lugar, um novo termo, um neologismo como “póshumano”, tem o poder de marcar uma mudança de pensamento que de outro modo poderia ser facilmente esquecida ou negada. Se a ideia do pós-humano terá poder de permanência – não é um termo que eu mesmo defenda –, ou se perderá espaço assim que nos habituarmos às novas concepções do humano é algo difícil de prever. Sem dúvida, isso dependerá do que as nossas ferramentas de busca decidirem! 6. Retorno à estética. Mas e quanto à arte e literatura nesse mundo pós-humano? Curiosamente, o interesse pelo pós-humano parece ter contribuído para o renascimento da estética, teoria da arte em geral que havia sido deixada de lado pela teoria literária e cultural do final do século XX. Os próprios teóricos sempre reivindicaram práticas estéticas específicas, mas não a própria ideia da estética, e os motivos para o eclipse do conceito não são difíceis de entender. As noções tradicionais da estética, tais como gênio artístico, autonomia e universalidade da arte, bem como seu valor espiritual intrínseco, estavam inextricavelmente ligadas às concepções de sujeito e de discurso independentemente de forças sociais que a teoria de diversas escolas buscava combater.8 O triunfo da teoria e a suposição generalizada de que os conceitos da estética pertenciam a uma concepção datada, elitista e universalizante de arte deixou um espaço aberto – uma espécie de vácuo – que permitiu, e até pareceu exigir, um retorno às questões estéticas sob um novo formato. O que às vezes é chamado de “novo formalismo” ou “novo esteticismo” denota uma atenção renovada à forma literária e artística no contexto dos desenvolvimentos teóricos que pareciam ter comprometido ou tornado reacionária a estética tradicional e as abordagens tradicionais da forma literária. Sem estética, argumenta o teórico francês Jacques Rancière, não há arte: sem valores ou perspectivas especificamente estéticas, a chamada arte irá misturar-se a todo o resto, em um mar de objetos de consumo, poderíamos dizer. Um entendimento

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discreto da arte é necessário para enquadrar as coisas como arte e para manter o seu caráter distintivo. Da mesma forma, as obras literárias não são apenas linguagem, mas produtos de práticas especificamente literárias e sistemas de convenções que precisam ser compreendidos: como funciona a métrica poética, por exemplo? Embora a literatura seja um produto e uma prática social, entrelaçada com a ideologia, ela coloca para os críticos e demais pensadores, em última instância, a questão da especificidade dos objetos literários: há características distintivas das obras literárias e da experiência com as obras literárias, ou isso é uma ilusão? Como deveríamos conceber a invenção literária ou artística? Há um interesse na singularidade da obra literária como um evento particular, na forma como as obras podem revelar um mundo. Que tipo de papel a forma literária desempenha nos efeitos que a literatura alcança? As pessoas falam, portanto, de um “novo formalismo” ou um “retorno à estética”.9 Jacques Rancière tem sido particularmente importante no sentido de inverter a crítica de que a estética é elitista. A estética ocidental, o que Rancière (2009) chama de “regime estético”, substituiu no início do século XIX o que ele chama de “regime representativo”, herdado de Aristóteles, um regime baseado nos gêneros literários e artísticos e estruturado sobre regras relativas aos temas apropriados e inapropriados para a arte e para determinados meios de representação. No final do século XVIII, na época da Revolução Francesa, essas regras foram modificadas – a partir de então, qualquer coisa poderia ser objeto da arte ou da literatura. Victor Hugo escreveu que ele havia colocado um gorro revolucionário – “un bonnet rouge” – no velho dicionário: já não havia mais palavras nobres ou palavras desprezíveis. Conforme Rancière tem insistido em nos lembrar, a revolução romântica na literatura e na arte foi um projeto democratizante, levando à ruptura com os vínculos entre arte e aristocracia, à fundação dos museus e aos vários projetos de educação estética. O campo da Teoria está definitivamente vivenciando um retorno à estética. Hoje, as questões de estética e democratização relacionam-se com o tema das novas mídias. O mundo das novas mídias digitais, do hipertexto e dos jogos de computador propõe novas questões estéticas: a passagem de uma cultura impressa para uma cultura eletrônica terá repercussão no conceito de literatura e, portanto, na teoria literária? A noção de texto literário como 9

Ver Attridge (2004); Levinson, (2007) e Loesberg (2005).

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Ver Schechner (2006).

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um artefato verbal completo pode mudar, uma vez que a forma eletrônica transforma os textos em instâncias potencialmente mutáveis. Katherine Hayles (2005) observa que, enquanto a literatura sempre funcionou como uma tecnologia voltada para mudar a cognição do leitor, nos novos sistemas eletrônicos a retroalimentação permite que diferentes níveis de interação entre textos e leitores continuamente informem e mutuamente determinem uns aos outros, modificando os textos à medida que os leitores realizam sua leitura. Nos textos eletrônicos, as palavras e imagens podem realmente mudar, por meio de algoritmos ou programas que criam um número infinito de recombinações possíveis. Estamos acostumados a dizer, da grande literatura, que o texto sempre nos reserva surpresas, de modo que os leitores costumam encontrar coisas novas nele. Os textos eletrônicos podem tornar literal (ou talvez banal) essa condição. De modo ainda mais significativo, eles podem conduzir a uma nova percepção da obra literária como um instrumento ou jogo a ser jogado. Se, como resultado de tais desenvolvimentos, a literatura passar a ser vista menos como um texto fixo e mais como um evento, uma instância específica de interação singular com um leitor ou público, isso pode exigir uma avaliação estética que explore o valor potencial de diversos programas ou sistemas interativos. Assim, os estudos da performance podem assumir uma nova centralidade nos estudos literários, ao passar a tratar os textos não como signos a serem interpretados, mas como performances cujas condições de possibilidade e de sucesso devem ser elucidadas.10 Mencionei seis desenvolvimentos diversos, sem uma hierarquia particular ou uma direção geral clara. Eu diria, no entanto, que há uma percepção crescente no campo da teoria de que estamos num mundo interdependente e precisamos pensar sobre a relação entre a teoria ocidental e as teorias literárias e culturais de outros lugares. A teoria literária é vista no Ocidente como uma coisa ocidental, embora outras culturas tenham elaborado abordagens literárias bem desenvolvidas antes que o Ocidente, e um dos grandes desafios para o futuro é o de trabalhar as relações entre a teoria ocidental e outras abordagens. Poderíamos imaginar que o tipo de movimento que constituiu a teoria no Ocidente nas décadas de 1970 e 1980 irá se repetir numa escala global. Alguns discursos de outras partes do mundo serão considerados esclarecedores, desafiarão o senso comum local,

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talvez, e serão incorporados e desenvolvidos, enquanto outros, não. Assim como a teoria no Ocidente aprendeu muito com as outras disciplinas, a teoria em cada país pode assimilar e desenvolver possibilidades teóricas de outros lugares. Aconteça o que acontecer, estou convicto de que continuaremos a ter uma atividade teórica muito ativa e extremamente envolvente – a atividade da teoria literária.

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Teoria e software: reflexões sobre a divisão de trabalho nas Letras ontem e hoje Márcio Seligmann-Silva

Toda teoria é filha de depuração feita a partir de fatos mais ou menos concretos. É, de certa forma, software derivado do hardware em que se funde natureza e cultura. A teoria da arte nasce de certas obras, e o leitor de teoria da literatura pode com certa facilidade identificar a que tradição determinada teoria diz respeito. Teoria é abstração feita a partir de obras que de algum modo são exemplares ou canônicas. Na teoria procura-se articular fenômenos singulares a certas constantes, sejam elas estruturais às obras, ou a certos contextos. Se retomo isso que parece evidente para qualquer pensador de humanidades é porque muitas vezes não consideramos que a mudança de cânone deve, ou deveria, implicar se não em mudanças de teoria(s), ao menos em sua revisão radical. A teoria estabelece um horizonte de leitura reproduzindo horizontes passados. Ela como que projeta para frente estruturas lidas (e projetadas) no passado. Ela tem uma tendência a repetir o cânone e a fazer com que o reafirmemos. Em resumo: a teoria tende a ser reprodutora e conservadora. O caso paradigmático da Poética de Aristóteles não só delimitou um espaço para se pensar a tragédia, a epopeia e outros gêneros de sua época, como delimitou um conjunto de obras e

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autores que já eram (e foram reforçados novamente por Aristóteles como sendo) de certa maneira canônicos, bem como deduziu regras e estabeleceu critérios e modos de julgamentos das obras. Se até hoje consideramos o Édipo Rei de Sófocles uma tragédia modelar, isso comprova não só a força da obra de Sófocles, mas também do trabalho de Aristóteles como grande pai não só da teoria literária, mas de toda a estética. Do Renascimento ao Classicismo de um Boileau o modelo aristotélico imperou. Se no início do século XVIII, em autores como Dubos, surge a estética do gênio, depois entronizada pelo movimento Sturm und Drang, com sua valorização da originalidade e da ruptura, esse novo movimento, que culminou com as poéticas do romantismo, apenas fez com que a teoria assumisse um novo ritmo, mais acelerado, mas não menos conservador. A lógica das artes passa a ser uma lógica do choque, da ruptura e da novidade, que vai ser respondida por teorias que pensam o ser efêmero das artes (como em Baudelaire e, antes dele, em Friedrich Schlegel). Mas nem por isso novos cânones deixam de se construir. Sobretudo tendo-se em vista que as artes, com grande destaque para a literatura, passam a ter no século XIX um papel fundamental nas guerras nacionalistas, ou seja, elas passam a ser elementos simbólicos importantes tanto na construção do indivíduo moderno (burguês, mas não só) como também do discurso de estabelecimento e de autoafirmação do nacional. É verdade, no entanto, que ainda para autores-chave na teoria estética, como Baumgarten e Kant, o modelo ainda era o antigo clássico. Mas, a literatura que em um autor como Goethe ainda se afirmava de um modo transnacional, passa, com o romantismo tardio, a ser cada vez mais nacionalista. Herder, um dos grandes mentores intelectuais de Goethe, oscilou entre um nacionalismo inicial e um cosmopolitismo no final da vida. De 1766 em diante ele se dedicou a traduzir e compilar obras da tradição europeia, ou seja, já em Herder e, depois, com mais afinco no primeiro romantismo alemão, a tradução serve de potente alavanca em direção ao plurilinguismo e ao diálogo entre as culturas. Tratava-se então de se traduzir não ao “modo francês” (no modelo das belle infièle), ou seja, eliminando as diferenças e submetendo o outro à batuta da cultura de chegada. A noção de Weltliteratur de Goethe pode ser vislumbrada nessa conversa com seu secretário Johann Peter Eckermann: Cada vez mais me convenço [...] de que a poesia é uma propriedade comum à humanidade, que por toda a parte e em todas as épocas

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surge em centenas e centenas de criaturas. [...] Apraz-me por isso observar outras nações e sugiro a cada um que faça o mesmo. A literatura nacional não significa grande coisa, a época é da literatura mundial e todos nós devemos contribuir para apressar o surgimento dessa época. (31 de janeiro de 1827).

Kestler (2010), que cita essa mesma passagem, comenta:

É interessante que aqui vemos um modelo ainda como que representacionista, que se baseia em identidades nacionais e na sua pretensa “representação”, mas que ao mesmo tempo fomenta o diálogo e a abertura. O autor, por assim dizer, representaria a nação; mas Goethe tem o mérito de ter afirmado que “A literatura nacional não significa grande coisa” (KESTLER, 2010): e isso era muita coisa para sua época de despertar nacionalista. As teorias da literatura (com raras exceções), para além de serem eurocêntricas, são também nacionalistas, partem de cânones nacionais. Esse movimento é tão forte que ainda hoje boa parte do que é feito em pesquisa nas áreas de Letras de cada país tem a ver com uma espécie de abordagem “cultual” dos “grandes autores” pátrios. Se na Europa a teoria da literatura e das artes vivera desde o renascimento uma querelle des anciens et des modernes, por outro lado, com os conflitos nacionalistas, deflagrados sobretudo a partir das guerras napoleônicas, passa-se a viver uma querela entre as nações. Já se aceitava que os modernos eram capazes de não só competir com os antigos, mas até de ultrapassá-los. Agora a querela passara a ser no presente, entre as literaturas/culturas nacionais. Se Gottsched, no âmbito da cultura alemã, em meados do século XVIII, ainda seguia um modelo francês, já Klopstock, uma geração depois, buscava os tons germânicos da literatura. Com o romantismo essa visão agônicanacionalista das artes e literatura se aprofundou. A teoria literária passou a

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5 – Teoria e software

Goethe denomina de Weltliteratur o que atualmente chamamos de intercâmbio e comunicação intercultural, nos quais se manifestaria o que há em comum entre as diferentes culturas, sem que se apague a individualidade que se baseia em diferenças nacionais. No sentido prático, Weltliteratur se refere à tarefa dos escritores e poetas, que devem fomentar o intercâmbio intelectual através de traduções, resenhas, discussões e encontros pessoais.

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ser também uma teoria da nação, do próprio, da ontotipologia. Dessa época do romantismo data também a fundação dos departamentos de filologia nacionais junto com muitas das universidades europeias. A instituição universitária, intimamente ligada ao poder político, econômico e cultural, vai ser uma verdadeira máquina de criação, afirmação e propaganda do cânone nacional. Mas antes da imposição desse modelo fechado e autoritário, o romantismo de Iena apresentou uma concepção de romantização do mundo que pensava a teoria como uma espécie de medium-de-reflexão, na expressão consagrada por Walter Benjamin. A intensa produtividade intelectual realizada pelos românticos alemães em diálogo crítico com os pensadores do Iluminismo justificou, já em meados da década de 1790 na França, descrições do “célebre Kant” como um “homem que produziu na Alemanha, nos espíritos, uma revolução semelhante àquela que os vícios do Antigo Regime fizeram ocorrer [...] na França” (Le Moniteur, 13 Nivôse IV [3/1/1796]; apud M. ZINGANO, 1989, p. 5). De resto, foi o abalo na tradição que a Revolução provocou que abriu a possibilidade para a revolução intelectual. A Revolução, além disso, já trazia em si mesma a figura da inversão da hierarquia entre as ideias e a efetividade, e esse aspecto foi retratado em seguida por Hegel nas suas famosas Preleções sobre a Filosofia da História com a seguinte imagem: “Desde que o sol encontra-se no firmamento e os planetas giram em torno dele, isso nunca fora visto: que as pessoas se perfilassem sobre a cabeça, ou seja, sobre as ideias [Gedanken], e construíssem a efetividade segundo elas” (apud MÄHL, 1985, p. 275). Mas, em termos das concepções teóricas que aqui interessam, essa revolução era na verdade vista de diferentes modos. Podemos pensar na “revolução” que reage às mudanças com a afirmação do próprio, típica do romantismo conservador e reacionário, assim como lembrar o conservadorismo mencionado da academia, mas também recordar justamente o grupo de Iena com sua teoria aberta da identidade, que já antecipa muitas intuições do pós-estruturalismo. Podemos ler nos fragmentos de Schlegel uma verdadeira revolução na teoria da identidade que foi muito além do elogio conservador da imitação dos Antigos. Essa teoria da identidade possui uma fantástica atualidade, que não foi de modo algum ainda recebida com a intensidade que mereceria e também deve servir de antídoto ao romantismo conservador. Essa teoria foi descrita

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por Walter Benjamin (1993 [1919]) sob o signo da Reflexão, ou seja, da concepção do “eu” como um jogo de constante autodivisão, diferenciação e síntese. Essa estrutura reflexiva é típica tanto da concepção de formação como constante saída de si (ou seja, como tradução de si mesmo), como também de conceitos como o de ironia, o de romance (enquanto mistura e forma estruturante de todos os gêneros na modernidade). O que é digno de nota é que com essa forte teoria autopoietica (autoengendradora) do ser e, portanto, da literatura e da cultura de um modo geral, o “ser sem caráter” passou a ser visto como um estado indistinto do “ter caráter”. A ontologia foi substituída por uma teoria do ser como jogo infinito de construção, de autodiferenciação de si. Se Herder ainda pôde escrever, lamentando-se, nas suas Cartas “Nós alemães chegamos tarde demais. O caráter da nossa poesia é imitação”, para o Schlegel dos anos 1798-1799 este “chegar tarde demais” seria, na verdade, o estado natural de toda cultura. Toda cultura e toda identidade individual nasce da imitação. Assumir isto implica se libertar dos grilhões da ideia de “próprio” e de “autêntico” com relação a uma cultura. Trata-se aqui de destacar essa mímesis não repressora, que nem submete o objeto mimetizado, nem reduz o sujeito a resultado de seu “original”, nem a uma mimese paranoica, derivada de um medo do outro. Antes, trata-se de uma visada panmimética criativa da cultura, que vê na mimese um ato também de desvio (re)criador. As consequências da visão primeiro-romântica do ser como infinita oscilação entre ser e não ser ou ainda, entre Eu e Não Eu só poderia culminar em uma concepção da cultura como espaço de circulação e multifecundação entre as diversas culturas. Assim como para Schlegel não se pode pensar uma obra independentemente de todas as obras do mesmo autor e da intertextualidade que lhe é essencial, do mesmo modo, para ele não se pode pensar uma língua/cultura separadamente da outra. Portanto, também para essa teoria primeiro-romântica, hierarquias decantadas há séculos deveriam ser não só invertidas, como superadas. Uma delas é a que prioriza o “original” diante da sua “tradução”. “Traduzir”, escreveu Novalis, numa carta a A. Wilhelm Schlegel de novembro de 1797 sobre a sua tradução da obra de Shakespeare, “é tanto poetar como produzir obras próprias – e mais difícil, mais raro. Afinal de contas, toda poesia é tradução” (NOVALIS, 1978-1987, p. 648). E ele ainda arrematou, retomando o tema da competição entre as nações: “Eu estou convencido que o Shakespeare

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alemão é presentemente melhor que o inglês” (Novalis, 1978-1987, p. 648). A paz perpétua, que Novalis (manifestando a faceta conservadora de seu pensamento) vislumbrara na Europa católica, não valeria mais na relação agônica entre as línguas. Mas com a diferença fundamental de que esta “guerra” é produtiva e gera cultura: não é propriamente uma guerra, mas um carrefour, uma visão lúdica da relação entre as línguas/culturas que as vê como participantes de um jogo no qual todas ganham em Spielraum, âmbito de criatividade. A visão romântica da cultura europeia – e também mundial, se pensarmos nos estudos de Schlegel do sânscrito – mesmo em meio às guerras e às utopias da Paz Perpétua, reservou um caminho eficaz para o diálogo transformador entre as culturas no dispositivo constantemente “insurgente” e “revolucionário” que é a tarefa do tradutor. Mas essas ideias românticas permaneceram como que recalcadas. Até Benjamin retomá-las e relê-las nesse diapasão desconstrutor, o que imperou foi o modelo nacionalista. Só após a Segunda Guerra Mundial que esse modelo começou a enfrentar críticas de peso sendo que, até então, esse elemento nacionalista era tido como natural. Se autores como Walter Benjamin e os formalistas russos destoavam desse tom nacionalista na primeira metade do século XX, nem por isso eles ampliaram o cânone abarcado pela crítica e teoria literárias. É verdade que os formalistas trabalham com obras de diversos idiomas europeus1 e que Benjamin, a partir de meados dos anos 1920, paulatinamente abandonou seu germanismo em direção à literatura e cultura francesas. De um modo geral, eles não conseguiram olhar mais além do horizonte europeu.2 O culto do “primitivismo”, presente em artistas como Braque, Picasso, Nolde e Gauguin (primitivismo esse que em si era também exotizante e eurocêntrico, mas que ao menos serviu para forçar a visão da estética para além da tradição predominante do “belo” do classicismo europeu), praticamente deixou intocada a teoria literária. O outro também aparece na maioria das vezes na literatura como o exótico, que serve para afirmar o próprio. Estudos como 1

Mas essa escola, assim como a escola estruturalista, não superou o eurocentrismo, apesar de não ser nacionalista, e só o Derrida tardio tenta se livrar desse eurocentrismo.

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Uma exceção na obra de Benjamin foi a bela resenha que ele fez de uma exposição de pinturas chinesas que ele observou na Bibliothèque Nationale de Paris em 1937. No compte rendu dessa exposição, ele destacou a concepção eminentemente escritural que o proprietário da coleção, J.-P. Dubosc, possuía dessa pintura; concepção essa que ele talhara à luz dos escritos de Paul Valéry (BENJAMIN, 1972, v. 4, p. 603). Benjamin desenvolve aí uma interessante teoria da caligrafia chinesa como fusão de imagem pintada e escrita.

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o de Ernst Fenollosa sobre a escrita chinesa, influenciaram tanto Pound como Haroldo de Campos e serviram para abrir o cânone e a teoria. Esse é um exemplo tardio de tendências que quero defender neste trabalho. Nas últimas décadas os estudos culturais (Raymond Willians, Stuart Hall etc.) e pós-coloniais (Gayatri Chakravorty Spivak, Homi Bhabha etc.) fazem parte de um movimento complexo de globalização onde ocorre tanto uma universalização do modelo europeu vindo do Iluminismo, numa última investida no sentido de “iluminar” todos os recantos do planeta com a razão europeia, como também a resistência a essa homogeneização, que normalmente acaba afirmando o “subalterno” novamente como uma identidade fechada. As tentativas de democratizar e de pluralizar a cultura, na maioria das vezes, vêm sob a chancela da indústria cultural (ou da indústria cultural acadêmica), e se trata mais de uma estereotipação e fabricação do “outro” em pílulas palatáveis do que de uma desconstrução verdadeira dos discursos representacionistas e dos defensores de identidades fechadas. A abertura do cânone até agora, dentro dos referidos movimentos acadêmicos contemporâneos, tem servido para mudar o cânone e a teoria, mas essa visão cristalizada da identidade ainda é a predominante. Da mesma forma, os discursos que tendem a ser mimetizados e traduzidos ainda são produzidos nas antigas metrópoles econômicas. Ou seja, a esperada multipolaridade ou, melhor, a explosão dos discursos em sua articulação político-econômica ainda não aconteceu. A geografia que divide o mundo entre produtores e receptores de teoria e os movimentos no sentido norte-sul não foram ainda suficientemente abalados. Esse é o próximo passo que precisa ser feito. Precisamos romper a velha divisão de trabalho: fornecedores de matéria-prima X produtores de teoria e software, que agora reproduz o mapa da economia mundial. Não se trata apenas de expandir o cânone para além do eurocentrismo, mas de criar novas teorias. Elas devem ter como um de seus desideratos uma crítica radical da razão eurocêntrica/ iluminista, responsável, graças a seu conceito fatal de identidade, por uma recaída constante no fundamentalismo. A razão iluminista é eminentemente ontotipológica. Criticá-la, no entanto, não implica substituí-la pelo irracionalismo ou pela desrazão, mas sim procurar sempre radicalizar o movimento da crítica. Devemos abrir espaços para a relação dialógica dos atores culturais e romper a circulação do sempre igual. A permanência

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desse modelo eurocêntrico na teoria (especificamente no campo das Letras) se deve não apenas por conta de uma tendência histórica à inércia e ao conservadorismo da teoria, que vimos acima, mas por outros motivos bem concretos como:

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a) Meios de financiamento e de divulgação ainda concentrados nas antigas regiões metropolitanas; b) Manutenção dos papeis na divisão de trabalho via: – Manutenção de um cânone eurocêntrico; – Autopreconceito das periferias, onde, como agravante, muitas vezes ainda impera um positivismo que vê a teoria com desconfiança; – Competição acirrada nas Universidades “centrais” que mantêm a luta pelo domínio teórico.

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O momento agora é o de batalhar para que tanto o hardware cultural como seu software sejam pensados de modo multipolar. O modelo de diálogo cultural como um encontro de agentes culturais no qual se dá a diferenciação constante de si e do outro deve orientar nossa visão da dinâmica cultural, e substituir a noção de encontro de Gestalten (configurações) pré-formadas e fechadas que contribuem cada uma com a sua pretensa “originalidade”. Essa visão móvel do ser tem que ser afirmada de modo mais radical tanto nas “metrópoles” como nas “periferias”. Em ambos os casos ainda predomina uma visão nacionalista e localista que, por via de regra, está reproduzindo estruturas fascistas de identidade: outrofóbicas e potencialmente outricidas. Essa visão móvel deve, portanto, ir além dos muros das universidades e se tornar patrimônio de uma humanidade pós-nacional. Para isso, hábitos tradicionais da teoria devem também ser abalados e superados, como seu tradicional logocentrismo e grafocentrismo. A virada icônica permite expandir a visão de literatura e do literário para além da tradição do livro. Toda uma série de dicotomias tendem a ser abaladas com esse avanço da visão plástica (móvel) da identidade como fluxo contínuo, como a dicotomia entre metrópole e periferia, o dentro e o fora, o belo e o feio, o superficial e o profundo, o nacional e o estrangeiro etc. Todos que quiserem poderão ser produtores de software, poderão, para lembrar um termo caro a Vilém Flusser, ser programadores dessa nova sociedade. As diferenças não só persistirão, como se propagarão em uma escala nunca vista: mas sem que isso resulte em construções de novas

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fronteiras impenetráveis. Fronteiras, sim, mas móveis, por onde hard- e softwares possam penetrar e se multiplicar, desconstruindo sempre as novas ideologias e poderes que reiteradamente – ao que tudo indica – insistimos teimosamente em reproduzir. A teoria deve ser a “super-visão”, a abertura de nosso olhar crítico contra essas cristalizações. Caso contrário, estaremos nos condenando a repetir os terríveis erros da razão iluminista. Para concluir estas reflexões um tanto nômades sobre a teoria nas Letras (mas que valem, pars pro toto, para as humanidades no mundo de hoje), proponho que retomemos o capítulo “Nossa comunicação” do livro Pós-história, de Vilém Flusser (2011). Flusser desenha nesse livro sua visão de um mundo que adentra a pós-história e tenta apontar maneiras de evitar que essa nova situação seja cooptada e orquestrada por pensamentos de cunho fascista. Como teórico da comunicação que era, nesse capítulo ele se dedica a descrever essa situação do ponto de vista da comunicação. Fundamentais no seu raciocínio são os conceitos de diálogo e de discurso (circulação), que ele diferencia da seguinte maneira:

Assim, toda a cultura seria “tecido comunicativo”, sendo que deve existir, segundo Flusser, um equilíbrio entre diálogos e discursos, caso contrário a sociedade pode estar em perigo. O Ocidente em sua história, que consiste na criação de estratégias para produzir e acumular novas informações, teria desenvolvido dois tipos de diálogo: circulares (exemplos: mesas-redondas, parlamento) e em redes (opinião pública, telefonia); e quatro tipos de discurso: teatrais (o mais antigo, vem da figura do patriarca que transmite mitos/narrativas, mas prevê contestação e revolução; exemplos: aulas, concertos); piramidais (surge ligado a sociedades mais

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[...] a comunicação tem dois aspectos diferentes. O aspecto produtivo de informação, e o aspecto cumulativo. A produção de informações não é criação “ex nihilo”: informações novas são produzidas por síntese de informações disponíveis. Tal método sintético é chamado de “diálogo”. A acumulação de informações se dá graças à transmissão de informações rumo a memórias (humanas ou outras), nas quais a informação é depositada. Tal método distributivo é chamado “discurso”. Todo discurso pressupõe diálogo, porque pressupõe informação elaborada dialogicamente. Todo diálogo [...] pressupõe discurso, porque pressupõe recepção de informações a serem sintetizadas. (FLUSSER, 2011, p. 72-73, grifo do autor).

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complexas; o emissor se torna inacessível ao receptor, bloqueia o diálogo e funda a tradição; exemplos: empresas, partidos, exércitos, igrejas); árvores (surgem no Renascimento e tentaram reintroduzir o diálogo, mas acabam gerando códigos só para especialistas; exemplos: ciência, artes); anfiteatrais (marcam a atualidade e vão traduzir os códigos para discursos simples e pobres; exemplos: rádio, imprensa). O autor diagnostica hoje um predomínio dos discursos sobre os diálogos. Sob um bombardeio de discursos, afogamos na redundância. Os discursos anfitetrais são baseados em aparelhos de comunicação de massa. Se o discurso em árvore era linear, o desses aparelhos é multidimensional, superam a estrutura da história e são pós-históricos. Eles engolem a história e ejetam pós-história; como caixaspretas, traduzem eventos em programas. Os discursos teatrais e piramidais estão em crise. Benjamin já detectara a crise da narrativa tradicional como típica da modernidade; Flusser detecta na pós-história a crise de todas instituições “teatrais” (escolas, faculdades, teatro etc.) e piramidais. Elas se tornaram incompatíveis com o novo tecido comunicacional. Já os discursos em árvore se proliferam e procuram se acoplar aos discursos anfiteatrais. Estes últimos programam agora diálogos em rede, diferentemente dos discursos em árvore, que tendem ao código que bloqueia o diálogo. “O anfiteatro exige que a informação irradiada seja transformada dialogicamente em mingau amorfo, em ‘opinião pública’, a fim de servir de feedback aos aparelhos emissores. A meta dos diálogos em rede não é a produção de informação nova, mas o feedback” (FLUSSER, 2011, p. 77-78, grifo do autor). Hoje a democracia estaria impossibilitada, pois ela depende de um diálogo produtor de informação, tal como se tem, por exemplo, no teatro. “A sensação da solidão na massa é consequência disto. A democracia não está no programa” (FLUSSER, 2011, p. 78). Flusser conclui que a ciência deve ser reformada em sentido dialógico. Para isso, o tecido comunicológico da sociedade precisa ser alterado radicalmente. Trata-se de uma tarefa antes de tudo política. Os diálogos circulares precisam ser reinstaurados para podermos falar de uma verdadeira república. A circulação anfiteatral e o diálogo em rede, para Flusser, bloqueiam os diálogos circulares. Para que se faça nova teoria de conhecimento intersubjetivo, é preciso que se disponha de espaço para a intersubjetividade. A crise atual da ciência deve ser, pois, vista no contexto da situação

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De minha parte, acho que hoje, cerca de trinta anos após Flusser ter escrito essas ideias, (a primeira edição desse livro é de 1983) podemos pensar em um processo de dialogização republicana que se dará tanto nas redes como em um processo de “despiramidização” da cultura atual. Essas pirâmides são calcadas não mais apenas nas instituições detectadas por Flusser, mas nos Estados ou blocos. Um modo radical de diálogo em rede (mas que não se reduza ao simples feedback, como diagnosticou Flusser com razão) e circular, ou seja, não hierarquizado e verdadeiramente integrador e plural, é um horizonte possível com os meios de que já dispomos. Eles precisam ser reapropriados e realocados no sentido da democratização e da res-pública. O estabelecimento de uma verdadeira circulação, tradução de si e do outro em redes dialógicas, essa é a tarefa que temos diante de nós. No âmbito teórico, essa revolução implica que os discursos serão constantemente retroalimentados por diálogos circulares e em rede. Essa multipartição permitirá também uma politização da teoria, que deverá ser plasmada a partir das questões prementes em cada local. O diálogo será alimentado pela diferença (entre locais) e os discursos não mais serão impostos em via de mão única e desprovidos de relação com as questões locais. Esse panorama dinâmico do diálogo acadêmico deve prever também uma maior porosidade com outros discursos. Muitas resistências, derivadas de hábitos de pensamento, mas sobretudo de aspectos institucionais e de poderes arraigados, terão que ser vencidas. Mas, de certa forma, a sobrevivência do pensamento não fascista depende também de encararmos essa tarefa. Esse novo design e prática do diálogo devem ser urgentemente implementados.

Referências BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. pref. e notas M. Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, EDUSP, 1993. BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. TIEDEMANN, R.; SCHWEPPENHÄUSER, H. (Ed.). Frankfurt: Suhrkamp, 1972. v. 4.

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comunicológica da atualidade. Enquanto não houver espaço para a política, para diálogos circulares não elitários [sic; elitistas], a crise da ciência se apresenta insolúvel. (FLUSSER, 2011, p. 79).

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FLUSSER, Vilém. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Annablume, 2011. KESTLER, Izabela Maria Furtado. O conceito de literatura universal em Goethe. Cult, edição 130, 2010. Disponível em: . Acesso em: 8 jul. 2012. MÄHL, Hans-Joachim. Der poetische Staat. In: MÄHL, Hans-Joachim. Utopieforschung: Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie, ed. Wilhelm Voßkamp, Frankfurt: Suhrkamp, 1985. v. 3. NOVALIS, Schriften. Werke, Tagebücher und Briefe Friedrich von Hardenbergs, Stuttgart: Kohlhammer Verlag, 1978-1987. SELIGMANN-SILVA, M. Para uma filosofia do exílio: A. Rosenfeld e V. Flusser sobre as vantagens de não se ter uma pátria. In: JARDELINO, Murilo (Org.). A festa da língua: Vilem Flusser. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2010. p. 63-84. ZINGANO, M. Introdução. In: Kant. À paz perpétua. Trad. M. Zingano. Porto Alegre: L&PM, 1989. p. 5-19.

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Sem a imagem, a vida seria impossível: um trajeto sobre a recente produção de Luiz Costa Lima Aline Magalhães Pinto Se na arte – como tendencialmente pensa o reflexo (wilderspiegler) realista –, tudo fosse real, ela seria realidade e não arte. E se na arte – conforme pensa a tendência do ilusionismo criativista –, nada fosse realidade, ela não seria nada e portanto, tampouco, arte. (Odo Marquard, “O Exílio da serenidade”) Para Laise Araújo

6.1 Uma nota de advertência A elaboração teórica do fenômeno literário, do discurso ficcional e da experiência estética empreendida por Luiz Costa Lima (LCL) esteve sempre

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atrelada a uma reflexão acerca do ambiente sociocultural e histórico em que se insere. Em decorrência, o olhar perscrutador configurado por sua teorização conduz à imagem em que se ressalta, no cenário nacional, uma fraca disposição teórica que permeia não apenas os estudos literários, mas antes se estende por todo o campo intelectual que se dedica às humanidades e às artes. Nesse primeiro sentido, para Costa Lima, – e o recente ensaio “Nosso país, será isso mesmo?” não deixa dúvidas –, o lugar da teoria dificilmente obedece às fronteiras disciplinares, e tem como núcleo a pouca relevância da questão intelectual para a sociedade brasileira (LIMA, 2013, p. 451-488). A esse primeiro sentido que o lugar ocupado pela teoria atinge em interlocução com os trabalhos de LCL, soma-se um segundo, que o amplifica ao remetê-lo a um cenário em que a própria cultura ocidental claudica. Essa amplificação faz ressoar o pano de fundo que envolve as questões que se impõem à Teoria Literária e, para tocá-lo, não será ocioso aludir ao sentido de cultura evocado por Lévinas para pensarmos a cultura como uma abertura ao humano. Para Lévinas, não devemos reduzir a cultura à apropriação da natureza pelo homem (ciência & técnica) ou à manifestação humana no mundo por meio da poesia e da arte. A cultura não é ultrapasse ou neutralização da exterioridade senão que uma relação, uma abertura ao que nos é mais estranho e desconhecido, mas paradoxalmente, mais próximo e “próprio”: inevitavelmente humano. Precurstar sobre o lugar da teoria, nesse sentido, será uma vez mais reivindicar essa abertura, na medida em que ela se faz urgente (LÉVINAS, 1995, p. 206-208). A obra de Luiz Costa Lima, construída ao redor da questão da literatura e da teorização da ficcionalidade, pode ser compreendida vinculada ao impulso de forçar a “abertura” ao inescapavelmente humano e por isso se projeta em direção a uma teoria da cultura. Com efeito, como aponta Sérgio Alcides, no posfácio à reedição de Mímesis: desafio ao pensamento – livro que serve como inflexão e vetor desse rumo no pensamento de LCL –, os estudos realizados pelo autor brasileiro durante a década de 1980 (O controle do imaginário: razão e imaginação no Ocidente; Sociedade e discurso ficcional; O fingidor e o censor, no Ancien Régime, no Iluminismo e Hoje), reunidos em 2007 na composição Trilogia do controle, mostraram as maneiras pelas quais “os modos dominantes da razão ao longo dos tempos modernos procuraram levantar barreiras aos potenciais disruptivos da

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Seguindo uma definição muito básica, uma imagem é uma “reprodução” mental de uma sensação produzida a partir de uma percepção física. Evidentemente, o cárater desta “reprodução” é problemático e problematizável. Seguimos a N. Frye, para quem a enorme variedade de definições de imagem pode ser agrupada em três grupos: 1. Mental 2. Figuras do discurso 3. Universo simbólico. Esta tipologia tem valor extremamente pontual, servindo apenas para introduzir a posição de LCL a partir de um espectro mais amplo. Vale a pena marcar que, para Frye, nenhuma das categorias propostas pode, de fato, ser tomada em separado das demais. Acreditamos que as reflexões do autor brasileiro se referem às imagens produzidas na mente pela linguagem e que provocam experiências e impressões em um “leitor”. Podemos, portanto, situá-las no terceiro terreno identificado por Frye, isto é, no universo simbólico aberto pelos artefatos verbais (FRYE, 1974, p. 363-366).

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imaginação, uma instância não movida nem pelo entendimento nem pela percepção sensória” (ALCIDES, 2014, p. 307-311). Ainda acompanhando o preciso comentário de S. Alcides, percebemos que, a partir da tematização do controle como algo mais que uma ferramenta operatória, o pensamento e a reflexão de Costa Lima se alargam, alcançando o questionamento do princípio de subjetividade moderno; as relações entre tempo, verdade e história; os impasses postos a problematização da experiência estética pela “sagração do indivíduo moderno”. Na base do tratamento dado a todas essas questões, encontra-se a reconsideração do desprestigiado conceito de mímesis. Por meio de uma reflexão teórica que negocia com a tradição aristotélica e kantiana, Costa Lima desloca a ideia clássica de mímesis, como articulação exemplar e a plenitude essencial da natureza, passando a entendê-la como uma sistematicidade dinâmica que mantém em tensão os vetores da “semelhança” e da “diferença” e que, na modernidade, lança o sujeito para fora de si (ALCIDES, 2014, p. 307-311). Nesse sentido, não menos filosófico do que histórico ou sociológico, para Costa Lima, o exercício da crítica literária – a que se dedica desde a década de 1970 – caminha ao lado da teoria e somente juntos se tornam capazes de alcançar o traço expansivo-reflexivo constitutivo do fenômeno literário. Para pensar as contribuições de Luiz Costa Lima para a problematização do lugar da teoria literária, o propósito desse artigo será – considerando a centralidade, em sua obra, da questão da mímesis – apresentar, discutir e encadear alguns pontos de sua trajetória recente que contribuem para um melhor entendimento dos processos de configuração das imagens.1 Nossa hipótese, a que seguimos como a um farol, nos informa que esses prolongamentos do pensamento de LCL vão em direção ao que aludimos, com Lévinas, como abertura mediada ao humano, i.e., por meio da construção ou engendramento de imagens.

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Entendemos que Costa Lima tem conduzido suas reflexões como expedições exploratórias às experiências e atividades discursivas que conformam o ambiente cultural ocidental. O desdobramento daquilo que Benedito Nunes (1999) havia chamado de “crítica da razão estética”, transformou-se numa investigação sobre os mecanismos através dos quais a sociedade ocidental se “comunica” e sobre os padrões de reflexividade pelos quais é intencionada a relação entre o discurso e o que lhe escapa. A discussão proposta retoma a questão da crise da representação e a crítica movida ao entendimento da capacidade de representar como possibilidade de constituir uma imagem mental absolutamente correta do que se põe diante do sujeito. Contra essa concepção e em desvio à propagada “morte do sujeito”, Costa Lima apresentara, em Mímesis: desafio ao pensamento, a formulação da representação-efeito: imagem que não desliga de si a resposta afetiva do sujeito observador. Com isso, está aberta a distorções, desfigurações, deformações, diferenças. Não obedecendo ao clássico confronto entre sujeito-objeto, as imagens produzidas pela representação-efeito são como mola propulsora das reflexões que conduzem a pensar a modernidade como um tempo que se abre aos homens de maneira intransitiva, i.e, que interrompe o trânsito simbólico entre “Deus”, o mundo e a criatura humana. A investigação a respeito dessa obstrução dos canais simbólicos de identificação e sobre a decorrente conformação dos mecanismos de controle dirigidos sobre as expressões discursivas encaminha o pensamento de Costa Lima, nos trabalhos publicados a partir do final da primeira década do séc. XXI, à expansão do campo de incidência da mímesis. Ela agora aparece, numa interlocução com autores como Herder, A. Gehlen, H. Blumenberg, não mais endereçada somente à análise dos artefatos verbais senão que como processo poiético que evidencia a plasticidade de que se vale a espécie humana para compensar sua carência constitutiva (“Mängelwesen”). Carência que se expressa na falta de um ambiente que se possa chamar de fato “natural” ao homem, ela também está na base da discursividade, na medida em que a comunicação é uma das esferas de compensação dessa carência. Costa Lima tematiza esse traço antropológico e sua importância para a construção dos sistemas de referências que regulam as noções de verdade e ficção, enfatizando a presença de mediações em todos os níveis da existência humana. Dando ênfase a essa fase da produção

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Parte dos argumentos desenvolvidos no presente artigo são encontrados em “Mímesis, imaginação e torsão temporal” (PINTO, 2012, p. 45-58). Nós os retomamos aqui para proceder sobre eles tanto revisão quanto um aprimoramento do que havia sido feito, representando o trabalho empenhado individual e coletivamente, no âmbito do Grupo de Pesquisa/CNPq “História Transdisciplinar dos Conceitos”.

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do autor, nos focaremos no conjunto formado por O controle do imaginário & a afirmação do romance (2009), A ficção e o poema (2012) e Frestas: a teorização em um país periférico (2013), procurando encadear elementos que permitam desenhar o contorno desse movimento. No livro que inicia essa série, O controle do imaginário & a afirmação do romance, Costa Lima parece disposto a retomar, por meio de análises cuidadosas, a configuração da paradoxal posição do Ocidente em relação à ficção, em que se misturam hostilidade e motivação, para daí compreender a mímesis como o conceito que permite acessar a emulação de diferentes modos discursivos. Mantendo o interesse em compreender a temporalidade de um problema teórico, a conjugação entre o estudo da ambiência teóricoconceitual e a análise crítica de Dom Quixote, As relações Perigosas, Moll Flandres e Tristam Shandy, permite simultaneamente vislumbrar o que seria uma teoria geral do controle e cobrir a lacuna – anunciada em Trilogia do controle – acerca da emergência do romance moderno (LIMA, 2007, p. 21). Esse é o cenário em que desponta uma nota ao leitor. Encontrada no terceiro item da primeira parte do livro – item destinado à conformação do imaginário –, essa marca ou sinal avisa sobre uma tarefa que não será cumprida. Em “Apenas uma advertência”, Costa Lima afirma que deveria vir à fonte do imaginário para em seguida relacioná-la à questão do controle. Deveria, mas não vai (LIMA, 2009, p. 110). No lugar do que deveria ser feito, Costa Lima anuncia uma leitura aprofundada do intrigante tratado aristotélico, De anima. A questão, ou a brecha, que seguiremos, diz menos respeito ao significado desse desvio, do que sobre o que decorre dessa sinuosidade. Nesse sentido, tentaremos mapear o território discursivo em que se dá a elaboração de dois conceitos: mímesis-zero e ficção externa, a partir da argumentação tecida ao redor de dois topoi: phantasia e anamnese.2 Para tanto, recorre-se ao que se pode chamar, junto a J-L. Chédin, de chave geral do possível, um “lugar teórico” em que o pensamento se constrói como um ponto em que é permitido discutir aquilo que, como algo que existe, está “aqui” realizado e “ali”

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apenas potencial (CHÉDIN, 1997, p. 78-80). Esse protocolo permite a compreensão dos procedimentos intelectuais pelos quais LCL, requisitando Aristóteles, pode finalmente se distanciar para oferecer uma elaboração a qual já não se pode mais tributar ao pensamento aristotélico, e tampouco se deixa prender pelas amarras do cosmos grego.

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6.2 Phantasia: desejo e movência

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Partiremos, portanto, desse algo que foi feito em lugar de outra via. Um caminho que nasce daquele que deveria ter sido seguido, mas não foi. Num primeiro momento, a leitura do De anima se presta a sublinhar uma vez mais os equívocos e desfigurações empreendidos pela tradição que insistiu em aproximar mímesis e imitativo, imaginatio e semelhança, problema já tratado anteriormente por Costa Lima no desenvolvimento do controle do imaginário (Cf. LIMA, 2007, p. 25-81). Todavia, argumenta Costa Lima, a leitura não pode se ater a esse limite, dada a natureza enigmática do texto. De anima tematiza, mesmo que sustentando certas incoerências, o correspondente ao aparato psíquico humano por meio de uma abordagem filosófica e física. Ao fazê-lo, trabalha matéria, forma e determinação, de maneira a negar o corte definitivo entre corpo e psique consolidado pelo gesto cartesiano nos tempos modernos. Explorando esse sentido, ante a reflexão aristotélica, o autor brasileiro se diz “forçado a ousar” (LIMA, 2009, p. 113). A ousadia vem, contudo, embasada pela exploração do potencial da discordância entre três consagrados intérpretes da filosofia aristotélica: Malcom Schofield, Victor Caston e Dorothea Frede. Como não se trata de refazer o cotejo realizado por LCL, nos deteremos na interpretação da última autora analisada, da qual desponta o movimento analítico e criativo que queremos acompanhar. Conforme argumenta Costa Lima, D. Frede, em sua interpretação sobre o De anima, estabelece um circuito entre pensamento e desejo, defendendo uma tese que faz incidir sobre a faculdade phantasia, dois elementos capitais: o impulso desejante e a capacidade de projeção, de movimento. Para a autora, na epistemologia de Aristóteles, as percepções sensoriais são e permanecem presas ao momento em que se está. São, portanto, limitadas ao instante presente. O intelecto, por sua vez, por si mesmo é capaz de pensar

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Ela [Dorothea Frede] consegue extrair do labirinto do De anima, uma função afirmativa da phantasia: sem que seja uma faculdade própria, ela desempenha o papel suplementar de, plasmando o desejo em imagem, mover o pensamento, ao mesmo tempo que funciona como fusão dos elementos da percepção sensível, abrangente do passado e da expectativa de futuro – enquanto a expectativa supõe a repetição do que já se deu. (LIMA, 2009, p. 129).

Os estudos de Dorothea Frede fornecem o embasamento para uma concepção de phantasia que reúne e faz pensar o encadeamento entre desejo, movência do intelecto e imagem. Isto é, envolve a dimensão em que o desejo é a mediação que através de imagens estimula o intelecto. Por sua

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apenas formas inteligíveis e abstratas. Para as atividades em que o sensível é requisitado (por exemplo, numa tomada de decisão), o intelecto não pode contar totalmente nem com as formas abstratas, posto tratar-se de uma questão “concreta”; nem com as percepções, uma vez que é preciso ir além do presente (rememorar ou projetar) para pensar. As imagens têm, portanto, a função de oferecer ao intelecto um objeto de conhecimento para a lacuna deixada pela percepção dos sentidos. As imagens sensíveis se baseiam e se comportam como se fossem uma sensação e será em direção a elas que se dá a movência intelectual. Elas assumem a forma daquilo que faz mover: o desejável (LIMA, 2009, p. 126-130). Ressaltando a ambiguidade da interpretação aristotélica, que oscila entre encarar a phantasia uma condição necessária ao pensamento e a postura de relegá-la à condição de prolongamento epifenomênico das sensações, a interpretação de Frede oferece ao pensamento de Costa Lima a chave que liga phantasia e movimento via “desejo”. Ou seja, entre potência e ato, a phantasia oscila permitindo ao intelecto não se encerrar em si mesmo, pois o impulso humano se move em função do desejável transfigurado em imagem. O papel dinâmico desempenhado pela imagem é uma resposta do corpo pensante ao desejável, ainda que não provoque impacto historicamente efetivo sobre a estrutura discursiva que se forma em torno das reflexões aristotélicas, dado o caráter fechado do cosmos grego. A phantasia aparece então munida de uma função suplementar, suprindo, pela a plasticidade da imagem, uma carência da percepção. Costa Lima acentua que

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vez, a imagem é o meio em que o movimento desejante se realiza: algo que se vê (uma imagem que aparece, phainetai) e conduz o olhar ao movimento. A phantasia será menos uma instância de produção do que um plasma, algo que move, prepara o desejo e que, conduzindo ao movimento, lança a imagem como um modo de ver, uma “interpretação”, que se situa entre a reprodução e a criação (LIMA, 2009, p. 128-134).

6.3 Anamnese: imagem e projeção Dando sequência a sua problematização, Costa Lima se detém sobre De memoria et reminiscentia, pequeno e importante tratado em que um argumento anti-platônico é posto em cena de forma a quebrar a passividade do corpo e a associação – independentemente do corpóreo – entre memória e alma.3 Apoiado nos comentários de R. Sorabji, LCL interpreta a argumentação nesse tratado como complementar, num sentido profundo,

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É importante ter em consideração, como aponta Lang, que “[...] the Platonic language of the De Memoria et Reminiscentia cannot be ignored. By means of this language, Aristotle invokes Plato’s causal relation between originals and copies. But Aristotle does so only after he systematically opposes his own doctrine of memory, sensation, and mental images to that of the Philebus and quotes Plato’s rejected image of the wax tablet as a model par excellence of mind and memory. Here, then, is the key to the mysteries of the De Memoria. The importance of Platonic language in Aristotle need not mean the importance of Plato in Aristotle. Rather, it indicates the richness of Plato’s metaphysics and language for Aristotle’s own purposes and reinterpretation. In the De Memoria we possess clear evidence of this reinterpretation of Platonic language. Aristotle first criticizes Plato and then on the basis of his criticisms asserts the model of memory which Plato explicitly rejects. Thus, at the conclusion of the argument, when Aristotle relies on Platonic language and concepts, the content of the argument can be understood only as Aristotle’s own. The Plato present in the De Memoria is a Plato corrected: Aristotle’s Plato” (LANG, 1980, p. 393). / [...] a linguagem platônica do De Memoria et Reminiscentia não pode ser ignorada. Por meio dela, Aristóteles invoca a relação causal platônica entre originais e cópias. Mas Aristóteles assim só o faz depois de sistematicamente opor sua própria doutrina da memória, da sensação e das imagens mentais com a do Philebus e cita a imagem rejeitada por Platão da tabuinha de cera como o modelo por excelência da mente e da memória. Aqui, então, está a chave para os mistérios de Da Memoria. A importância da linguagem platônica em Aristóteles não significa a importância de Platão em Aristóteles; antes indica a riqueza da metafísica e da linguagem de Platão para as finalidades próprias e para a reinterpretação de Aristóteles. Por De Memoria dispomos de clara evidência desta reinterpretação da linguagem platônica. Aristóteles primeiramente critica Platão e, a seguir, com base em sua crítica, reivindica o modelo de memória que Platão explicitamente rejeita. Assim, na conclusão do argumento, se Aristóteles conta com a linguagem e com conceitos platônicos, o conteúdo do argumento só pode ser compreendido como do próprio Aristóteles. O Platão que é apresentado em De Memoria é um Platão corrigido: o Platão de Aristóteles (LANG, 1980, p. 393, tradução minha).

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àquela desenvolvida em De anima. Isto é, os argumentos são apresentados de forma contínua justamente porque, em ambos, demonstra-se que, mesmo enquanto abstração, a alma não pode ser emancipada do corpo, conferindo importância ao movimento corporal, ainda que não rompa com a subordinação do corpóreo à cognição (nous). Por opção interpretativa, Costa Lima deixa de lado a tematização da doutrina dos temperamentos e da qualificação das constituições fisiológicas, para se focar nos problemas relacionados à temporalidade. Nesse sentido, ele aponta que, no tratado aristotélico, diferentemente da percepção sensível, o conjunto formado por mneme e anamnese tem por objeto aquilo que não se apresenta ao momento presente. Todavia, sendo distinta da percepção por esse motivo, a memória não deixa de estar a ela ligada. Ou, pelo menos, um tipo específico de percepção é imprescindível para ativar a capacidade de se lembrar: a percepção de que o tempo passa. Isto é, somente são capazes de memória aqueles seres que possuem a percepção sensível do desenrolar no tempo. Ou ainda, nas palavras de LCL, “tempo e percepção sensível (aísthesis) são os traços indispensáveis para a elucidação da lembrança em geral“ (LIMA, 2009, p. 130). Da primeira qualidade desse conjunto mais geral constituído por mneme e anamnese, a partir do texto aristotélico, Costa Lima deriva que, ao contrário da percepção sensível que pode em sua ligação com o mundo prescindir da mediação das imagens, a memória será necessariamente imagética. Distinguindo-se da percepção, a memória tampouco se integra à cognição, vinculando-se ao intelecto de maneira apenas acidental. Assim, conclui LCL (2009, p. 131): “A memória repete a ambígua localização da phantasia – entre a percepção e a cognição; funciona onde está a phantasia”. A analogia entre o modo ou maneira de “funcionar” da phantasia e da memória será explorada pela interpretação de Costa Lima no sentido de assinalar que ambas, tendo a mesma forma de atividade ou de movimento, estão igualmente ligadas à configuração de imagens. Na medida em que acentua o traço em comum entre memória e phantasia, LCL passa então a demostrar o que as distingue – seguindo o texto de Aristóteles e os comentários de Sorabji. Com efeito, a imagem dos sentidos que se forma como prolongamentos da percepção sensível é diferente das imagens da memória, uma vez que essas configuram o traço fundamental do processo de impressão causado pelo transcorrer temporal (LIMA, 2009, p. 130-134).

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Nesse ponto, a interpretação proposta por Costa Lima começa a se desprender da exegese do texto filosófico para se tornar ativa, i.e., proceder as inflexões que o levaram a elaboração de conceitos específicos para o tratamento do discurso ficcional. O movimento, que podemos considerar uma espécie de transgressão controlada, incide sobre a distinção entre mneme e anamnese (evocação), dentro do âmbito mais amplo que diz respeito à faculdade suplementar que permite o contato com o passado (memória). A cena da leitura clássica – aquela em que a mneme se define por uma relação que se mantém no tempo com a imagem-cópia (eikon), e em que a anamnese é a recuperação da memória, relação indireta e secundária, que por envolver uma associação de ideias, aparece como uma espécie de inferência associada ao passado –, será atravessada pela força do gesto interpretativo perpetrado por Costa Lima. Esse gesto desvia a prioridade da relação com o eikon e condiciona mneme e anamnese a uma operação que lança mão de algo externo (hipomnético) à imagem-cópia. A externalidade marca aqui, para mneme e anamnese, o esgarçar do limite da restrição ao passado e mais que isso, este desvio subverte a secundariedade da anamnese, transformando a memória (mneme) num caso particular de evocação (anamnese) (LIMA, 2009, p. 135-136). Ainda que não seja inédito na história recente da filosofia ocidental (podemos citar de relance os trabalhos de, por exemplo, Lacan e Derrida), esse gesto cumpre na trajetória do pensamento de Costa Lima a tarefa de sofisticar a base conceitual em que se entrelaçam, na modernidade, tempo e mímesis. Ele consolida a anamnese como modo temporal que, abarcando o território tradicionalmente coberto pela mneme, se refere a uma rede associativa de inferências que ligam uma série de pontos e lacunas, ou seja, de forma não dependente da presença de percepção sensível. A conformação das lembranças admite por completo a incerteza sobre o que foi antes e o que será depois. Devido à posição análoga a phantasia, a anamnese encontra-se ligada intrinsecamente a um desejo que a move, e seria incapaz de realizar-se sem imagens. Por que afirmamos acima que o gesto argumentativo que acompanhamos tratar-se-ia de uma transgressão controlada? Porque a relação desenvolvida entre imagem, desejo e movimento se baseia na linha interpretativa que abrange a pesquisa de Dorotheia Frede, e foi aberta pelo trabalho de M. Nussbaum sobre a filosofia aristotélica. Nussbaum

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afirma a ligação da phantasia com o desejo considerando o tratado De Motu animalium, e é essa ligação que Frede e, na sequência, Costa Lima desenvolvem para seus próprios propósitos. Para Nussbaum (1992), “a phantasia prepara o desejo que leva à ação”, o que implica em que a conformação da imagem para o intelecto seja menos uma reprodução que uma interpretação. Ela se configura como uma maneira de ver que se faz acompanhar por um movimento em direção ao que se quer. Por isso, Costa Lima (2009, p. 134) pode afirmar que “A ênfase na phantasia como o que move o desejo e conduz ao movimento o animal semovente, não só o homem, impede que se continue a tomar phantasma (o que aparece) como imagem no sentido de reprodução”. Nem criação, nem reprodução, a imagem traria consigo, desde sua tematização pelo Estagirita, uma tensão entre prestar-se ao estabelecimento de uma verdade e cumprir um papel dinâmico, como ricochete do corpo à demanda do desejo.

As tramas que levam à modernidade, como mostra H. Blumenberg em “Imitação da natureza: contribuição à pré-história da ideia do homem criador” – ensaio caro a Luiz Costa Lima, corroem a tradição metafísica que prima pela identidade entre ser e natureza como forma de constituição da estrutura cósmica fundamental. Como vemos com Blumenberg, a base filosófica dessa metafísica é composta fundamentalmente pelas filosofias platônica e aristotélica. Em Platão, a ênfase da construção filosófica encontra-se no por que, enquanto em Aristóteles ressalta-se como não há outra possibilidade ontológica senão o real como atualização do possível. Com efeito, em ambos os pensamentos: [...] o espírito não pode ser determinado de outro modo senão como uma capacidade em relação ao todo do já existente. O possível é sempre e apenas o que, conforme sua morphé, já é real: o cosmo é, ao mesmo tempo, o todo do real e do possível. [...] O que procria sempre reproduz sua forma de ser. Em suma: o existente provém apenas do existente. (BLUMENBERG, 2010, p. 106, grifo do autor).

Neste cenário, em que a natureza está determinada como encarnação do possível, a função lógica e ontológica da mímesis é, por subordinação,

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6.4 O peso da inflexão moderna: a torsão temporal

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religar incessantemente o ato de criação à estrutura cósmica fundamental. Ao cumprir a tarefa de, ao mesmo tempo, reproduzir a constância eidética e viabilizar o processo produtivo, a mímesis seria o mecanismo pelo qual a existência se subordina ao existente. A dinamicidade do conceito de natureza em Aristóteles, embora complexifique o entendimento da mímesis, na medida em que incorpora a diferenciação entre natura naturans e natura naturata para acolher a essência dos processos geradores, não é capaz de representar, para Blumenberg, um ganho ontológico decisivo com relação a Platão no que concerne à estabilidade da ligação entre possível, real e existente. Ao apresentar os processos geradores, condicionantes da existência, regulados por um estado eidético de permanente constância, Aristóteles estabeleceria uma natureza que eternamente se repete em sua autoprodução, na qual não se pode atribuir nenhuma função essencial ao fazer. Ou seja, como mostra a leitura de Blumenberg (2010, p. 105-114), o dinamismo em Aristóteles se configura como movimento que atualiza um paradoxo: a mímesis, no contexto do cosmos fechado, clássico, retrabalha o que esse cosmos já contém. A operação teórica procedida por Costa Lima, desde Mímesis e modernidade (1980), trata de enfrentar e desmembrar o paradoxo, oferecendo aos processos cinéticos e dinâmicos que envolvem a configuração de imagens uma tematização teórica. Abre-se, a partir de conceitos aristotélicos, um rosto de futuro. A abertura desse “rosto” fica a cargo de uma operação de pensamento e dispositivo textual que recebe, em 2009 – oportunidade em que o autor dedica ao procedimento uma elaboração discursiva –, o nome de ”torsão temporal”. Todavia, mesmo que a elaboração teórica da torsão tenha aparecido apenas em 2009, a forma de leitura e de pensamento que ela engendra está posto em todo o trajeto de reconsideração da mímesis, como sugere Barbara Cassin (1999) em “Transmissão e ficção”, ensaio incluso em Máscaras da Mímesis: Ler Luiz Costa Lima fez, entre outras coisas, aumentar meu interesse por duas vias problemáticas: a reversibilidade entre lógica sequencial e apropriação e ruptura para constituir a história da filosofia (em outras palavras, o controle do imaginário como relação da antiguidade e da modernidade); e o continuum de essência entre literatura e filosofia de acordo com época, a língua, a cultura, revezando-se e servindo uma à outra de instrumento interpretativo. (CASSIN, 1999, p. 25).

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Nesse sentido, a tarefa a que se propõe Costa Lima pode ser entendida como uma tentativa de, explorando essas vias problemáticas, capacitar o pensamento contemporâneo a “requestionar” – um revisionismo criativo, na expressão de Luiz Eduardo Soares (1999, p. 271) – o conceito de mímesis no contexto do mundo moderno, i.e., aquele em que a ordem do tempo privilegia a seta em direção ao futuro. A partir dos desdobramentos dessa “revisão criativa” – que levaram LCL a investir sobre formas discursivas não ficcionais, em que se destaca o discurso historiográfico, mas também os discursos autorreferênciais e os ensaios –, outros conceitos e noções foram solicitados para levar adiante a teorização da ficção. Torsão temporal diz respeito, portanto, a um tratamento oblíquo do texto visando trabalhar hesitações e paradoxos ontológicos para extrair deles possibilidades que, em seus contextos de aparição histórica, estavam obstruídas ou apareciam somente como índices potenciais. Como o autor afirma:

Pois bem, em O controle do imaginário e a afirmação do romance, a relação que o par memória-evocação mantém com a phantasía será explorada via o dispositivo torção temporal em função do extrato temporal futuro, do porvir. Se o traço da escrita costalimeana deixa adivinhar certo incômodo ao destituir a cena da cosmogonia grega como palco de entendimento dos conceitos do Estagirita, por outro lado registra também a razão, de caráter impreterível, dessa postura: “Introduz-se um artifício de cálculo na construção aristotélica para que se possa pensar com a ajuda (secundária) da memória, a escrita da história e, a partir da evocação, a mimésis” (LIMA, 2009, p. 138, grifo nosso). Definido, portanto, como um artifício de cálculo, a torsão temporal não engendra historicamente o que faz trabalhar conceitualmente. Não se deve esperar do produto da torsão uma energia historicamente configurada. A torsão temporal, como artifício de cálculo que é, nunca aconteceu. Ela não se inscreve no mundo como um evento, não conjura uma forma histórica

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A reticência aristotélica à ficção decorria da permanência da indagação dos primeiros princípios [do ser] – ainda que o pensador compreendesse que sua plena demonstração é impossível, não deixa por isso de considerá-los indispensáveis para um pensamento que não se satisfaça com o encaminhamento indutivo. (LIMA, 2013, p. 191).

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que dá origem, que gera a imagem e a partir dele o tempo e o mundo. A torsão é, ao contrário, um dispositivo que permite explorar paradoxos que marcam de maneira crucial a trajetória de autointerpretação humana, ou, caso se prefira, a ocupação antropológica do mundo. O encadeamento proposto pelo gesto interpretativo de LCL, entre phantasía, anamnese e mímesis, se tece como um circuito elétrico, percorrido pelo desejo como movimento. Esse “desenho” para a conformação das imagens apresenta-a como um processo que não reduz sua capacidade à reconstituição de uma percepção passada. A imagem, mais que retratar ou reconstituir, traz consigo a possibilidade de um modo de ver interpretativo que tem expectativa de vir a ser algo. [Editoração: não é citação direta mas, a pedido do autor, manter o itálico.] Rompendo a necessidade do vínculo entre experiência sensível e memória, esse movimento dinâmico tem como uma das faces a evocação, que tematiza imageticamente a si própria; e como outra, a lembrança, que se liga ao eikon, termo que tem seu significado preso à ideia de imagem-semelhança (LIMA, 2009, p. 133-139). O rendimento teórico que se observa ao longo da reflexão de Costa Lima constitui em simultaneamente extrair o conceito de mímesis dos limites em que Aristóteles – devido às características da cosmologia grega –, o deixou e retirar a escrita da história da posição que a Poética lhe confere. O duplo propósito visará ainda mostrar que, seguindo rotas discrepantes, a escrita da história e a obra da mímesis têm, não obstante, uma junção comum. Finalmente, a torsão temporal é um recurso que permite observar e teorizar um índice histórico que, como possibilidade de configuração, aciona a base conceitual delimitada a partir da plasticidade do pensamento aristotélico: deixa ver como se dispara a mímesis (LIMA, 2009, p. 141).

6.5 A nebulosa Mímesis-zero O mergulho que leva Costa Lima ao conceito de mímesis é impulsionado pela tentativa de compreender as formas pelas quais a escrita e as formações discursivas configuram o desejo que constitui a relação com o outro. Desejo não é senão o outro nome da pré-reflexividade demandante de uma identificação-parâmetro em que se pauta a mímesis. Não é fortuito, portanto, que os conceitos psicanalíticos de mímesis possuam um papel importante para o trabalho reflexivo de Costa Lima já que, nas teorias

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psicanalíticas da gênese do sujeito, a função central da mímesis não deriva da imitatio e, como mediação que é, se desvia sempre da produção de imagens-cópia (SCHWAB, 1999, p. 119). A indagação a respeito da mímesis-zero surge nesse cenário, e seu primeiro momento textual se deixa flagrar de relance, em meio à construção de dois conceitos fundamentais para a elaboração teórica de LCL: representação-efeito e sujeito-fraturado. Ela aparece em um texto dedicado à contribuição de Freud a uma concepção descentrada de subjetividade:

Ao hiato entre essa primeira aparição – lembrando que a primeira edição de Mímesis: desafio ao pensamento é de 2003 –, e o desenvolvimento que lhe foi dado em A ficção e o poema (LIMA, 2012), corresponde também uma interrupção no tratamento teórico. É verdade que a questão que recebe o nome de mímesis-zero é um estado ou situação que se posiciona no registro aberto pelo estudo do De anima, i.e., na preocupação em retirar dali uma concepção dos processos geradores envolvidos nas formações discursivas, em especial a ficcional, conectada a uma capacidade ou potência humana que plasma o desejo em imagem. Não obstante, na argumentação desenvolvida em 2012 sob o título de “Preâmbulo”, Costa Lima não extrai um caminho direto vindo da reflexão aristotélica. Como se, ante um questionamento de difícil manuseio, o autor tentasse se aproximar por um lado, avançando até certo ponto, para depois tentar uma abertura por outro ângulo. Algo como desembaraçar um emaranhado de fios, tarefa para a qual não é possível se ater a puxar apenas uma ponta. Portanto, o problema abordado na composição da mímesis-zero ainda diz respeito ao engendramento das imagens e vai ser investigado por uma via que propõe uma bricolagem entre a estética transcendental kantiana e a teoria freudiana das pulsões. Isto é, diferentemente da interpretação sobre a filosofia aristotélica, o recurso ao dispositivo “torsão temporal” aparece menos do que a “tentativa de ajuste” entre elementos de cada uma dessas teorias. Com efeito, afirma LCL: “O papel que me concedo será conformar

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Pelo que até agora escrevemos sobre o fenômeno da mímesis [...] a mímesis já traz consigo as formas sociais da realidade. Mas que dizer daquele instante originário em que o mímema apenas parte, sem estar imantada por um objeto? Chamemos esse estado de mímesiszero. (LIMA, 2014, p. 110).

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peças conceituais, que, por si mesmas, não se ajustam entre si” (LIMA, 2012, p. 15). O embate sistemático com a filosofia kantiana – como chama atenção S. Alcides no posfácio a que já nos referimos –, havia se dado em Limites da voz (LIMA, 1993, reeditado em 2005). Num capítulo denominado, com acerto, “O sujeito e a lei: uma descendência kantiana”, Costa Lima examina cuidadosamente as três críticas, com destaque para a terceira. Nesse “corpo a corpo”, elabora uma interpretação, em diálogo com O. Chédin, que marca a ambiguidade entre estetização e criticidade, e oferece, a partir dela, um esboço como alternativa, valendo-se para tanto do par “sintaxe-semântica”:

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Fora da experiência estética, seja na relação pragmática mais banal, seja na concepção do mais abstrato dos trabalhos, estamos sempre presos ao império do semântico. Pode-se modelar a sintaxe o quanto se queira, lançar-se mão de toda a gama de recursos expressivos da língua, sempre contudo a sintaxe e, com ela, o ritmo concretizado pela modulação da frase, se manterá a serviço do semântico. A arte escrita – para efeito de comunicação mais direta contentêmonos em chamá-la de literatura – implica a suspensão provisória do império do semântico. Assim se dá toda a vez que, diante de uma formulação ou mesmo de uma única palavra – ou de qualquer signo, verbal ou não verbal – suspendemos a pergunta sobre seu significado e admiramos a própria configuração conseguida. A experiência estética implicaria em tomar-se a sintaxe como espera e intervalo que antecede a (re)ocupação semântica. [...] No momento da (re)ocupação semântica, esta mesma ganha com aquela distância; isso significa dizer que, emocional – não só intelectualmente –, o receptor ganha espaço para sentir criticamente o que perde no mundo tão só semantizado. Em última análise, esta experiência constitui menos um objeto de prazer porquanto também envolve o sublime do que configura um objeto enquanto ficcional. O objeto se ficcionaliza quando interagimos com ele através deste jogo de dessemantização e ressemantização. Não que o prazer dele se afaste senão que não basta para caracterizá-lo. (LIMA, 2005, p. 145-146, grifo do autor).

Com efeito, a base e o ponto de partida da tematização da mímesiszero terá como enfoque uma compreensão não ortodoxa da experiência estética kantiana. Experiência que suspende e afasta, que rompe com a

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Freud, em 1915, no texto “Pulsão e destino das pulsões” (Trieb und Trieb Shiksal) decompõe a pulsão, como forma originária do querer, em quatro momentos: Drang (impulso), Quelle (fonte), Objekt (objeto) indeterminado e Ziel (fim). Mais importante do que repassar esquematicamente a articulação entre esses momentos é enfatizar a relação dinâmica entre eles. E remarcar que entendemos por pressão ou impulso (Drang) a soma de força ou a medida da exigência do trabalho que será usado psiquicamente para achar os meios de livrar-se dessa pressão e buscar obter algum alívio (FREUD, 1968).

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cadeia formada entre intuição, representação e sensação – cadeia essa que rege as respostas intelectivas do humano ao contato com os fenômenos e que compõe, portanto, a estética transcendental –, promovendo um encontro entre forma e sensação que, justamente por ser independente desse encadeamento, cria condições de visualizá-lo como um aparato condicionador da capacidade de conhecer do homem. Mas, frisa Costa Lima: “apenas condicionador e não deflagrador” (LIMA, 2012, p. 18). Costa Lima retorna, pois, às definições básicas da estética transcendental, orientado por sua interpretação não ortodoxa da experiência estética, para chamar atenção para dois pontos: 1. A intuição, porque tende a assumir relações mediadas pelo encadeamento com a representação e a sensação, tende igualmente a estar presa à ordem semântica, a qual o objeto estético não se submete totalmente. 2. “A intuição não diz respeito ao que não é conhecimento” (LIMA, 2012, p. 19). Logo, o aparato que se conforma tendo por base as formas puras da intuição, espaço e tempo, fundamentando a possibilidade de conhecimento, não pode se disparar sozinho porque “o aparato transcendental equivale a uma máquina imóvel, pronta para se ativar, sem algo que a acione”. Naquele território aberto pela discussão clássica do De anima, em que o dualismo entre corpo e alma é rompido pela constatação de um circuito entre movimento desejante e engendramento de imagens, o diálogo com a filosofia kantiana lança outra luminosidade à questão que Costa Lima tenta tocar: a mímesis-zero corresponde a esse estado ou situação pré-semântica de um momento de deflagração, de disparo, do aparato condicionador da apreensão humana. A busca por compreender a atuação desse elemento dinâmico leva o autor, como um bricoleur, à teoria das pulsões freudiana.4 Esse gesto demarca que, na modernidade, o movimento desejante já indiciado pela “antropologia” (ênfase para as aspas) de Aristóteles, será uma forma singular de descarga de energia pulsional. A singularidade do movimento desejante mimético tem

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como primeira característica o fato de que, ao contrário da libido que tende a vazar sua energia prestando um serviço ao corpo, esse movimento retém, prolonga, condensa sua energia no corpo (LIMA, 2012, p. 21). As demais características, ou melhor, delineações da nebulosa mímesis-zero vêm das leituras de René Girard e M. Borch-Jacobsen, que possuem em comum, como base, a teoria freudiana mas que seguem rumos críticos a ela. Ambas já haviam sido visitadas por Costa Lima em Mímesis: desafio ao pensamento, quando as críticas que apresentam a Freud foram incorporadas para a tematização do sujeito fraturado. Sem que seja necessário refazer a glosa do pensamento de ambos, sintetizamos o que – de comum, embora os usos correspondam a contextos teóricos distintos –, será tomado de empréstimo por LCL para o desenho de seu problema, i.e., a mímesis-zero. Tanto em relação à violência intestina às sociedades humanas e à crise sacrificial (GIRARD, 2004) quanto em relação ao caráter visual da representação do inconsciente sob a categoria do sujeito e da identidade (BORCH-JACOBSEN, 1982), o cerne da crítica à Freud elaborada pelos autores em questão deriva do fato de que o pai da psicanálise pensa o desejo de antemão relacionado a um objeto. Para Freud, o desejo seria um movimento que visa à posse ou gozo de algo objectual e interdito, porque conduzido pelas formas ou primado da realidade. Girard e Borch-Jacobsen apontam para uma dimensão anterior à conformação do objeto de desejo. Nessa dimensão, irrefletida, pré-reflexiva, o desejo é um movimento mimético em que o verbo principal não é ter, mas ser – esse é o segundo elemento capital para o desenho da mímesis-zero. Essa face do desejo alimenta a rivalidade primordial, estudada por Girard,5 na medida em que essa rivalidade não significa apenas competição, mas identificação por antonomásia. Deseja-se a posição do rival, seu modo de ver. Deseja-se ser como ele, logo, eliminá-lo (LIMA, 2012, p. 21-24). 5

René Girard pratica uma antropologia da violência e das formas religiosas. O desejo mimético é base pela qual ele explica que a violência é intestina ao humano e extremamente contagiosa. Sua questão intelectual visa, portanto, encontrar formas de geri-la de modo a não permitir a destruição do corpo social. Basicamente, Girard nos mostra que a gerência da força violenta dos homens se faz por meio dos mecanismos que geram “bodes expiatórios” que canalizam para si essa força, evitando portanto que o conflito humano se generalize. Ao mesmo tempo, pela força simbólica do “Cristo redentor”, o cristianismo seria a única força capaz de quebrar a maldição do mimético, pois permite-nos compreender a mesma estrutura do mal da violência e do pecado (cf. GIRARD, 2004).

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[...] em sua impulsão originária, a mímesis contém uma Enstellung (deformação ou truncamento) dentro da qual se inclui um sujeito de desejo [...] que não tem nenhuma identidade própria antes da identificação que o faz vir, cegamente, ao lugar de um outro (que, portanto, não é um outro) estranhamente originário (que, portanto, não é uma alienação) e engodo originário (que, portanto, não é um engano). (LIMA, 2014, p. 109, grifo do autor).

O território coberto pelo conceito de mímesis-zero corresponde, portanto, àquele delimitado pelas três características que apontamos. Trata6

Mikkel Borch-Jacobsen estudou filosofia com J-L. Nancy e P. Lacoue-Labarthe e, trabalhando nos Estados Unidos como professor de literatura, desenvolve uma das mais polêmicas pesquisas no campo da história e antropologia da psicanálise, da psiquiatria e das práticas farmacêuticas. Destaca-se no vasto leque de críticos de Freud, afirmando a não cientificidade da psicanálise, colocando em cheque seu valor terapêutico. Abre, todavia, a exploração do pensamento freudiano como uma teoria da cultura e da subjetividade, ao afirmar que a identificação é a forma mais originária de ligação afetiva a um objeto (cf. BORCH-JACOBSEN, 1982; 1991).

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Igualmente crítico do direcionamento objetal do desejo em Freud, Borch-Jacobsen liga o desejo à mímesis, compreendendo-a como um impulso identificatório não apenas anterior à conformação do objeto desejado mas também anterior ao sujeito que deseja. Este deslocamento dá um novo sentido à movimentação imagética pela qual os desejos se realizam: as figurações, dissimulações, deformações não são aquilo que em função de um interdito emergem para realizar o desejo. Elas são inscrições de identificação (mímesis) talhadas de desejo por dentro. É porque tematiza o inconsciente que Borch-Jacobsen aposta no desvio perturbador que dribla a necessidade de uma dissimulação de origem, “revelando” que o desejo não se regula pela obtenção de prazer e gozo, mas por modelos e esquemas de identificação (BORCH-JACOBSEN, 1982, p. 32-38). A perturbação que a polêmica pesquisa de Borch-Jacobsen6 representa é fundamental e constitui a terceira característica da nebulosa questão da mímesis-zero: não estar em relação à exterioridade (mundo, natureza, physis). Esse traço se dá em decorrência do segundo, i.e, o entendimento do desejo mimético como desejo de ser, e deve ser compreendido como no rastro da abertura ao humano, i.e., um olhar para o “dentro” vazio e pulsante da criatura humana. Da fecunda interlocução com a pesquisa de Borch-Jacobsen, Costa Lima passou a afirmar que

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se de um movimento desejante, ou uma pulsão, distinta da libido. Embora pensada a partir do modelo da teoria das pulsões freudiana, dela se desvia na medida em que não confirma como destino e orientação do movimento a conformação objectual. “Energia que vibra” independentemente da realidade e da própria subjetividade, ela não se constitui como uma instância de pureza, mas de pura pregnância. A composição da mímesiszero é intrínseca à focalização do que nela pulsa, um ver direcionado que pode ou não se atualizar como realidade. Como o momento em que, nos “bastidores”, no “camarim”, aguardase entrar em cena, a mímesis-zero, mímesis especificamente phantasmática, vêm à tona como léxico radicalmente deformador. Como preparo para entrar em cena, o movimento é errático e sem definições precisas, indicando apenas que ali há algo que se “mexe”, como antecipação e preparação para a cena em que o sujeito dramatiza. Isto é, a mímesis-zero não compartilha a estrutura de uma experiência. Na verdade, o conceito de experiência tornase embaraçoso quando se trata de abordar uma região antropológica em que o sujeito ainda não está constituído. Nesse sentido, ele não é descrito por Costa Lima senão que mapeado em suas características estruturais. A ênfase no papel dinâmico na conformação dos processos geradores de imagens, presente nos estudos sobre os topoi clássicos, anamnese e phantasia, i.e., o circuito entre pensamento e desejo, é retomada na sistematização do conceito de mímesis-zero. Esse gesto tem duas consequências teóricas importantes no sentido de compreender o pano de fundo discursivo no qual a própria elaboração da teoria de Costa Lima está sendo construída. A primeira consequência se deixa ver por contraste entre a mímesiszero e as demais. As modalidades de mímesis – de produção e representação, por se apresentarem em “momentos” em que a subjetividade e a objetividade já estão constituídas, são processos em que a representação está sempre presente. Essas modalidades miméticas são mediações entendidas como encenação, como dramatizações complexas. Por sua vez, a mímesis-zero assume toda sua precisão se entendida como o jogo em que, por potencialmente se transfigurar como “tudo”, não se apresenta (Darstellung) propriamente em nenhum lugar. Como aparição espectral, essa nebulosa de imagens não tem, justamente, uma forma. Apenas se deforma (Enstellung). Nas palavras de Costa Lima: “a nebulosa podese converter tanto em nuvem que se condensa quanto se dissolver. Caso

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prepondere a condensação, comparar-se-á a uma bala ainda não pronta para o disparo, faca cuja lâmina ainda não se afia” (LIMA, 2012, p. 26). Nesse ponto, estamos ante a primeira das consequências teóricas da tematização da mímesis-zero. Será nesse âmbito potencial que se cumpre a interminabilidade da força plástica humana. No plano das realidades sóciohistóricas, a forma e as imagens estão sempre submetidas às maneiras mais ou menos sutis de controle. Nesse sentido, a plasticidade humana é condicionada, limitada. Entretanto, a mímesis-zero, condensando-se ou dissipando-se, confirma o caráter interminável dessa energia configuradora e pulsante com a qual a criatura humana engendra imagens. O que nos leva ao segundo ponto: a pura pregnância desse estado que o conceito de mímesis-zero permite trabalhar se relaciona às formas pelas quais uma espécie, para compensar sua carência constitutiva (Mängelwesen), torna-se humana. Como já nos referimos, essa carência se expressa na falta de um ambiente que se possa chamar de fato “natural” ao homem. Ela se estabelece, na atual fase da produção teórica de Costa Lima, como condição que impulsiona o desenvolvimento dos meios de movimentação e de comunicação humanos. Como já nos referimos, essa carência se expressa na falta de um ambiente que se possa chamar de fato “natural” ao homem. A elaboração teórica dessa maneira peculiar de compreender o homem como uma criatura humana que desenvolveu sua plasticidade e capacidade de aprendizagem ante essa falta ou lacuna, encontra-se nos trabalhos de A. Gehlen (2009). Fugindo do viés metafísico que entende o homem como a criatura agraciada pela “Razão”, Gehlen associa carência e compensação para defender que a simples existência do homem depende de um comportamento que atue transformando e elaborando o mundo. O mundo humano, como inalcançável ponto de referência da experiência (Kant), é aberto, desconhecido e instável. O humano teria, portanto, como especificidade em relação aos demais animais, não exatamente a posse de faculdades intelectuais. Como animal exposto a uma quantidade infinita de estados e de situações às quais não está adaptado, o desenvolvimento dessas faculdades é secundário à sua desgraça e se dá sob a condição de ser um alívio, um desafogo e não uma dádiva. Para escapar de uma desesperadora inadaptação, cada movimento possível dessa criatura mobiliza todos os sentidos e, inevitavelmente, põe à prova tanto os objetos e resistências como

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a si mesmo. Para cada movimento, há um projeto imaginativo que antecipa e orienta a ação. De tal maneira que cada atitude se constrói como uma ligação entre fazer algo e se ver fazendo algo, que tem como base modelos identificatórios e um desejo de existir7 (GEHLEN, 2009, p. 34-35, grifo nosso). No registro aberto entre o psíquico e o corpóreo com a investigação sobre o De anima, a elaboração do conceito de mímesis-zero consolida não apenas a ampliação do campo de incidência da mímesis em geral como permite visualizar o produto da mímesis, o ser do mímema, como descarga de uma excitação (movimento desejante) concernente à criatura humana (não necessariamente, nem exclusivamente, o indivíduo moderno) que não se cumpre em separado do engendramento de imagens. Não obstante, o fato da questão da mímesis não estar restrita à emergência da subjetividade moderna torna ainda mais fundamental perguntar pelo significado de sua inflexão.

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6.6 O faz de conta de cada dia: ficção externa

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“A ficção externa supõe um modo de proceder corporal-verbal que legitima e justifica uma certa conduta por uma parte de uma sociedade, sem que sua objetividade seja posta em questão ou seja justificada” (LIMA, 2013, p. 236). A elaboração teórica do modo de proceder específico do “teatro do mundo” ganha espaço no terceiro capítulo de Frestas (LIMA, 2013), sob o nome de “A problemática da ficção e da ficção externa” e filiase, pelo entendimento de que a construção de sentido se faz por meio da visualização de movimentos corpóreo-verbais, ao tronco do rendimento 7

K. Lorenz alerta para o fato de que, no trabalho de Gehlen, o estado de inadaptação humana não pode ser considerado um conceito biológico porque no sentido da biologia não há seres não adaptados, ou então se os há, são seres isolados e condenados a desaparecer. Apesar disso, Lorenz reconhece que a teoria de Gehlen contém qualquer coisa de fundamentalmente verdadeiro, já que um ser que possuísse uma adaptação morfológica claramente especializada jamais poderia constituir-se como o homem. Se por um lado é certo que as realizações culturais não podem ser explicadas através de uma deficiência biológica, por outro é igualmente correto que um ser especializado não poderia ser uma criatura que deve assumir a tarefa de criar o seu próprio mundo. O  cérebro humano  prepara-nos biologicamente para levar a cabo essa tarefa. Todavia a especialização biológica não garante o sucesso da empreitada. Nesse sentido, o cérebro seria, ele mesmo, um órgão aberto ao mundo, i.e., um órgão em risco permanente de fracassar e de enlouquecer. Por “natureza” o homem é uma criatura em perigo. (cf. LORENZ, 2010).

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teórico aberto pela leitura do De anima empreendida por Costa Lima. E, portanto, pertence ao encadeamento proposto pelo gesto interpretativo de LCL, entre phantasía, anamnese e mímesis, como circuito gerador de imagens. Circuito que, percorrido pelo desejo como movimento, é mantido pela elaboração concernente à mímesis-zero. Ou seja, à elaboração da sistematicidade dinâmica e “desejante” tematizada para a compreensão do engendramento das imagens, Costa Lima juntará o enfrentamento da questão das relações entre imagem, realidade e verdade, como mais um fio a ser puxado no sentido de sofisticar o entendimento do lugar da ficção verbal e de sua teoria. O desenvolvimento do problema contemplado pela ficção externa receberá um tratamento que se pode designar como “negativo”, no sentido de que começa pela abordagem daquilo que não é uma ficção externa. Para o autor, “Não nos pareceu bom método partir de uma definição de ficção externa – sob a aparência de facilitar o entendimento, talvez assim apenas o tornássemos rígido” (LIMA, 2013, p. 231). O ponto de partida será apresentar a posição da ficção dentro da tradição substancialista. Por substancialismo, afirma Costa Lima, devemos entender o eixo de pensamento que conforma a tradição que, nascida da “vitória” platônica-aristotélica contra os sofistas, transmuta-se em substancialismo religioso medieval, para perpetuar-se no subsolo da ciência moderna. Na modernidade, o substancialismo sobrevive não por que as ciências adotem um ponto de vista essencialista mas, pelo contrário, por não serem capazes de responder cientificamente à necessidade de fundamento do conhecimento (LIMA, 2013, p. 220). A concepção de substancialista do real terá no nominalismo de H. Vaihinger, num pensamento que tende a desafiá-la, a maior expressão da obstrução ao ficcional que promove. Partindo da concepção de que a realidade se confunde e se encerra nas sensações – sendo, por isso, complexa e embaralhada –, Vaihinger, em sua Filosofia do como se ([1911] 2011), pensa a ficção como instrumento vital, um artifício que permite lidar com a natureza da realidade. Vaihinger percorre um vasto domínio para examinar como o pensamento e as ciências se valeram dessas ficções utéis, produzindo nesse itinerário uma interessante reflexão sobre o complexo composto pela expressão como se. Todavia, em sua aventura, não chega a tratar da literatura. Ele se concentra nas ficções abstratas, definindo-as da seguinte maneira:

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Como atividade fictícia no interior do pensamento lógico, há de se entender a produção e o emprego de métodos lógicos que procuram alcançar as finalidades do pensamento mediante conceitos auxiliares; nestes está inscrita, mais ou menos a olhos vistos, a impossibilidade de terem um objeto concreto que lhes corresponda de alguma maneira. Em vez de se dar por satisfeita com o material dado, a função lógica introduz formações híbridas e ambíguas do pensamento. Com o apoio destas, ela pode cumprir as próprias metas de maneira indireta quando a aspereza do material hostil não permite enfrentá-las na via principal. Com prudência instintiva, eu quase diria “astuta”, a função lógica dribla tais dificuldades com as suas construções auxiliares. [...] é oportuno ainda observar: com a sua prudência instintiva e conforme a uma finalidade, a função lógica é capaz de realizar a atividade fictícia desde os começos mais inocentes e insignificantes, passando por voltas e mais voltas cada vez mais finas e inteligentes até chegar aos métodos mais difíceis e complexos. (VAIHINGER, 2011, p. 123-124).

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Para Costa Lima, da construção de Vaihinger resulta que todos os planos de realidade veem-se convertidos em ficcionais, o que os impedem de serem contrapostos a quaisquer outros. Na crítica feita a esse nominalismo que se converte em um positivismo idealista, desenha-se a postura de LCL sobre as relações entre linguagem e realidade. Baseando-se na semiologia peirciana, Costa Lima afirma a alteridade como constitutiva do signo, i.e., o signo produz significação pela diferença, pelo abrigo que é ao outro-que-ele-mesmo. Estrangeiro hospedado. Logo, os planos da realidade precisam daquilo que se lhes opõem tanto quanto a ficção, estando o uso do signo a variar de acordo com a forma discursiva empregada (LIMA, 2013, p. 217-220). Face oposta e relacional aos planos da realidade, as ficções se distinguem, na teoria de Costa Lima, em externas e internas. As ficções internas (prosa e poesia) são produtos verbais regidos pela partícula do Como se. Entretanto, ao contrário do que se mostra em Vaihinger, Costa Lima não concebe o como se atrelado ao estabelecimento de identidades e equivalências analógicas. Para Vaihinger, como explica J. Kretschmer, O como se força pela comparação, por analogias representadas, a identidade de elementos não idênticos; ou seja, uma vez que as ficções são formadas, elas subsistuem um dado real por um irreal, criando assim a ilusão da compreensão. No como, expressa-se o

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momento comparativo, e no se, estabelece-se uma pressuposição impossível. (KRETSCHMER, 2011, p. 45).

Na teorização proposta por Costa Lima para o como se, todo o contrário se passa. A partícula não estabelece uma equivalência senão que estipula uma orientação para a criação de um horizonte de diferença.

Esse horizonte – que não foi, mas poderia ter sido –, cumpre-se de forma facilitada na prosa devido às propriedades do enredo narrativo. Na poesia, por sua vez, esse efeito se dificulta porque o horizonte a que ela se projeta não se restringe à dimensão sintática e semântica: “o mecanismo da rima aproxima pelo som o que se diferencia pelo sentido” – afirma o autor, evocando Iuri Lotman e seguindo o que desenvolve em A ficção e o poema (LIMA, 2013, p. 223-224). Uma vez definida a posição da ficção e mais especificamente da ficção interna, Costa Lima, dando continuidade ao trabalho de delimitação do que não seria uma ficção externa, examina duas formas discursivas que representam planos pervertidos ou deformados da realidade: o domínio econômico e seu signo maior, a moeda (unidade monetária), e o domínio das crenças desacreditadas, i.e., formações discursivas que, verdadeiramente válidas em algum momento, perdem seu valor. A base da argumentação são as considerações de Simmel em sua filosofia do dinheiro e mais especificamente o conceito de cultura do sociólogo alemão. Para Simmel, não são os objetos exteriores que são cultivados pelo sujeito, mas, ao contrário, o sujeito que é cultivado ao interagir com a cultura objetiva. Nesse sentido, cultura torna-se uma relação de mútua determinação entre sujeito e objeto, em que a distinção entre objetividade e subjetividade é dialética e flutua entre o dualismo de vida (fluxo contínuo) e forma (sua cristalização), e a superação desse dualismo. Simmel considera ainda que os objetos sejam espíritos objetivados dos quais ele procura apreender os significados decorrentes desse processo de objetivação (SIMMEL, 1971, p. 215-235).

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A ficção interna aproveita a instabilidade sociopolítica e epistemológica que cresce especialmente desde o começo da modernidade e, jogando com a realidade, se apresenta sob a suposição de que, conquanto não haja sido, provoca a impressão de haver sido. (LIMA, 2013, p. 248).

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Apoiado nessas reflexões, Costa Lima pode afirmar que o mundo, nosso mundo, não se confunde com o mundo das coisas ao nosso redor, assim como nossos valores não se confundem com a subjetividade que os reconhece. Por isso, o signo econômico, a moeda, não seria uma ficção, mas parte inescapável da vida social como fundamento de um tipo vital de troca. Nem mesmo após 1933 – quando cai o padrão-ouro e a moeda perde o lastro, para Costa Lima –, o signo econômico passa a ser ficcional. Em sua análise, o elemento de troca se converte numa “ficção pervertida”, entendida como fetiche (Marx): uma perversão entre real e ficcional. Isso quer dizer que “se o como se supõe que o ficcional é o circuito por excelência do metafórico, a moeda, no capitalismo creditício, é da ordem do metonímico (é uma parte que indica o todo da posse)” (LIMA, 2013, p. 230). Portanto, seguindo o argumento de Costa Lima, a moeda transformase, na fase econômica atual, num signo cuja função encontra-se pervertida. Já as crenças desfeitas, por perderem seu poder de explicação e sua validade, são deslocadas e deformadas, passam a possuir apenas um valor histórico. O exame desse segundo caso é mais detalhado, e se faz a partir de análise do texto póstumo de Antônio Vieira (1982), História do Futuro. A obra é escrita num mergulho em várias crenças, desde a proximidade do fim do mundo – dado que 1666 era um ano temido por carregar o número da Besta –, até a certeza de que o império universal seria português. Vieira entendia que os portugueses ocupavam, nos tempos modernos, o lugar outrora reservado aos judeus como povo eleito de Deus. Embora a análise do caráter figural do texto, feita a partir do conceito de figura de Auerbach, seja bastante interessante, para o propósito de apresentar a delimitação do conceito de ficção externa basta dizer que, para Costa Lima, uma crença que perde sua base de sustentação social e sua capacidade de se fazer crível não se torna por isso ficcional. Torna-se uma crença morta, por isso, deformada pela ação do tempo (LIMA, 2013, p. 231-236). Ao contrário da moeda (plano pervertido) e da crença descreditada pelo tempo (plano deformado), para LCL, o modo correto de cumprimento dos rituais cotidianos são índice de que, na complexa amálgama que conforma as relações entre linguagem e realidade, há algo que se realiza, nesse “teatro do mundo”, pondo entre parênteses a pretensão de declarar a verdade. Devido a esse tipo de realização, a ritualística cotidiana merece ser tratada como ficcional. Desse modo, duas características pautam as ficções

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externas: a não pretensão de validade ou legitimidade em relação ao critério de verdade e a necessidade de reconhecimento comunitário. Amarrada a essas duas características, essa forma de ficção lida com a objetividade de modo oblíquo, como afirma Costa Lima:

Dessa definição mais geral, Costa Lima passa a destilar modos nuançados de procedimento dessa ficcionalidade. A partir de um trabalho de distinção e caracterização – que mostra potencial para ser mais bem explorado –, Costa Lima propõe três níveis de ficção externa. Para a elaboração de cada uma deles, o autor conta com a interlocução privilegiada de um trabalho ou reflexão solicitado para o diálogo. Assim, para o nível mais geral de ficção externa, a de tipo cotidiano, o interlocutor é Nobert Elias (1983) e seu A sociedade da Corte. Os modos de cortesia cotidianos são banais, mas conformam nossas relações sociais no dia a dia. Essas ficções, denominadas por LCL como diplomáticas, sendo o como se dessas ritualidades, são atualizadas constantemente na vida cotidiana. Um tipo mais aprimorado de ficção externa se configura a partir do diálogo com J-L. Nancy (1983) e sua reflexão sobre o imperativo categórico kantiano. Conforme o autor extrai do pensador francês, para Costa Lima, estamos sob o imperativo categórico justamente porque o verdadeiro imperativo não deve ser sentido como constrangimento. A liberdade, não conceituável, declara-se em nome do incomensurável e inacessível de uma obrigação que não pode se apresentar senão sob a forma de seu contrário. A ficção externa, que se revela no “exercício” do imperativo categórico no mundo social, refere-se à injunção ficcional presente no éthos imperativo da obrigação, i.e., aquela lei da lei: “obrigação mais arcaica que a contida nas normas positivas. Entranhada no imaginário da sociedade, é uma ficção que se autoignora e, por isso, supomos entendê-la contra a liberdade, quando é a condição de seu exercício” (LIMA, 2013, p. 244). O terceiro modo de ficção externa é desenvolvido por Costa Lima em conversação com a pesquisa de Elena Esposito, que afirma, partindo

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Não estar sujeita ao requisito de verdade não a torna, contudo, menos dotada de objetividade; de, portanto, fazer parte do aparato de minha realidade; objetividade que, em si, tem um peso escasso, mas cuja infração poderá assumir uma gravidade incalculável. (LIMA, 2013, p. 240).

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da teoria sociológica desenvolvida por N. Luhmann, a emergência quase simultânea do romance moderno e o cálculo de probabilidade. O aparecimento dos cálculos de Fermat e Pascal (por volta de 1665) e de La Princesse de Clèves, de Madame de La Fayette (1678) apontam para um fenômeno que a socióloga italiana entende como reduplicação da realidade, a partir do qual a relação não necessária entre aparência e realidade passa a ser tematizada por formas em que a contingência e a incerteza parecem adquirir critérios e regularidades, embora permaneçam fundamentalmente instáveis. Esse é o ponto de partida para que o autor brasileiro elabore o modo mais sofisticado de ficção externa: aquele que declara – ao modo de um cálculo das probabilidades –, o que pode ocorrer, embora não antecipe o que vai, de fato, acontecer. Nesse sentido, LCL afirma: “Ainda que esse [o cálculo das probabilidades] falhe, o cálculo não deixa de ser uma hipótese justa ante facto, pois avança sobre a opacidade do futuro” (LIMA, 2013, p. 250). Por se configurar como essa modalidade externa, a ficção “funciona”. Oferece orientações que o estado bruto de coisas não tem condições de conceder. A pergunta então seria: qual artefato verbal e qual formação discursiva trabalham com esse tipo de ficcionalidade, uma vez que está claro que o fenômeno literário está inscrito naquilo que foi delimitado como ficção interna? A resposta nos permite ver que o desdobramento da teorização da ficção externa como cálculo de probabilidades é mais uma peça no trajeto conduzido pela busca de compreensão dos mecanismos de engendramento das imagens nas diferentes formações discursivas. Trata-se de um arco que vai se fechando. No primeiro livro da série que analisamos, O controle do imaginário e a afirmação do romance, Costa Lima afirmava ser o fruto de seu propósito teórico: [...] retirar a escrita da história da posição insignificante que a Poética lhe concede e afastar a mímesis dos limites em que Aristóteles ainda a deixou. O duplo propósito visará ainda a mostrar que, assumindo caminhos bastante divergentes, a escrita da história e a obra da mímesis tem um caminho comum. (LIMA, 2009, p. 141).

Esse caminho comum era aquele pelo qual a obra da mímesis se desvencilhava da percepção sensível e de seu prolongamento como cópia

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pela memória para se mostrar como produto da evocação imaginativa, i.e., o caminho pelo qual a imagem abre, incita um movimento de desejo e não o reitera. Será esse caminho comum que reaparece em Frestas, quando Costa Lima aponta como traço comum entre ficção interna e externa o fato de que ambas “tem a propriedade de aclarar uma dimensão temporal que, enquanto dependente do porvir, permanece encoberta” (LIMA, 2013, p. 249). E novamente, para efeito de contraste, é a escrita da história e o trabalho dos historiadores que aparece tematizado para melhor delimitar a rede discursiva que se forma ao redor do fenômeno literário. A ficção externa ao modo do cálculo de probabilidades impede que o real seja entendido como um encadeamento de causas e efeitos, na medida em que prevê uma planificação que estimula o desvio. O que, segundo propõe Costa Lima, corresponde, exatamente, ao que a escrita da história faz. A historiografia, ao executar aquilo que Michel de Certeau denomina como prática do desvio, trata como “desviantes” as diferenças pertinentes que emergem em relação aos modelos e séries documentais. A operação historiográfica pode ser compreendida como essa modalidade ficcional que atua como um cálculo do provável ou como um processo em que ao invés “de uma verdade de cunho substancialista, por conseguinte, uma, temos verdades dependentes do processo que as prepara. Assim como o ver interpretativo é um ver como, a verdade é resultante de um processo, isto é, do ver como um sujeito vê um caso e o move em um processo” (LIMA, 2009, p. 140). Todavia, a maneira de compreensão da escrita da história como uma ficção externa permite a radicalização da “prática do desvio”, tematizada por Michel de Certeau, no clássico Écriture de l’histoire (1975). Isso porque a possibilidade de o planejamento ou de o processo provocar desvios passa a assumir o que Costa Lima chama de efeito boomerang: um movimento que se volta contra si mesmo para modificar o próprio efeito deflagrador. Isto é, para LCL, enquanto a ficção interna, aquela concernente aos fenômenos literários, é capaz de apresentar aspectos da realidade, mas incapaz de interferir na configuração da realidade; com a ficção externa ao modo do cálculo de probabilidades e concernente a escrita da história, o efeito é diferente. Segundo ele, “partindo de uma hipótese ante facto, [a ficção externa] é capaz de retroceder sobre seu ponto de partida, promovendo a marcha do imprevisível” (LIMA, 2013, p. 253).

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6.7 Sem uma imagem, a vida humana é impossível Ao fim do trajeto proposto por esse artigo, percebe-se então que desdobrando a via aberta pela leitura do De anima, Costa Lima vem criando uma estrutura conceitual ampla e rizomática que visa cobrir o complexo universo das relações que se tecem entre linguagem e realidade. Não obstante, a conjunção dos conceitos de Mímesis-zero e ficção externa não configuram um sistema. Mas o estudo dos mecanismos comunicativos e dos padrões de reflexividade da sociedade ocidental, empreendidos por Luiz Costa Lima, enriquece e sofistica o entendimento das formações discursivas. A contribuição do autor, ao fim, visa menos dar a última palavra do que instigar o debate teórico, e é nesse sentido que o lugar da teoria literária se alarga ao contar com suas reflexões. Ao projetar a teoria literária num horizonte mais vasto, que traz para dentro de si o pensamento histórico, sociológico, filosófico e psicanalítico, Costa Lima acaba por obter menos um resultado que um projeto: explorar até as últimas consequências a potência da plasticidade da imagem, compreendendo-a na base daquilo que permite a nós, humanos, superarmos a nós mesmos.

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Crise ou drástica mudança? Análise de um caso Luiz Costa Lima

7.1 Exposição do caso Na década de 1930, a literatura brasileira conheceu a irrupção do romance nordestino, por uns interpretado como reação à manifestação do modernista, para outros a sua concreção. Como o modernismo paulista oscilava ambiguamente entre o experimentalismo de um Oswald de Andrade e a busca de raízes da nacionalidade, estimulada por seu prócer mais influente, Mário de Andrade, o romance nordestino tanto pode ser dito como reação quanto como efetivação. Vinculado aos modos perversos da exploração da terra, pela imensa desigualdade social que o latifúndio, o engenho de açúcar, depois a usina, implicavam, de cunho decididamente ideológico, passou a ser conhecido, nas histórias da literatura nacional, como o regionalismo neorrealista. Dele faziam parte autores que, em alguns casos, permaneceram conhecidos apenas por suas obras de estreia. É o que sucede com José Américo de Almeida, com A bagaceira (1928), Rachel de Queiroz, com O quinze (1930) e Amando Fontes, com Os Corumbas (1933). A estes se acrescentavam nomes que publicaram por toda a vida – José Lins do Rego e Jorge Amado, estreantes em 1932, respectivamente com Menino

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de engenho e País do carnaval. O ciclo era completado por Graciliano Ramos, de produção numericamente modesta – à sua obra estritamente novelesca (Caetés, 1933; São Bernardo (1934); Angústia (1935); Vidas secas (1938); acrescentar-se-iam o livro de contos, Insônia (1947), suas primeiras memórias, Infância (1945) e as terríveis recordações de sua prisão como comunista – o que então não era –, durante o Estado novo varguista, nas Memórias do cárcere (quatro volumes, 1953). Mesmo que se acrescentem a reunião de crônicas, com destaque para o póstumo Vivente das Alagoas (1962) e os relatos infantis (Alexandre e outros herois, 1962), a obra de Graciliano não deixa de se distinguir da produção dos romancistas mais prolíficos de sua geração, José Lins do Rego e Jorge Amado, seja por não se diluir progressivamente, seja por não se entregar ao gosto do mercado. De qualquer modo, tais critérios ainda são demasiado rasteiros para que assinalem sua singularidade. Não se trata de negar a vinculação nordestina quer de sua prosa ficcional, quer de suas primeiras memórias. Sua base nordestina só se estenderá por outras regiões a partir da macabra experiência no porão do navio que o transporta, junto com outros presos políticos, para o Rio de Janeiro, e os anos de cárcere que sofre, sem direito a um processo judicial. O cárcere na Ilha Grande (RJ) só cessa pela interferência de amigos influentes, como José Lins do Rego e a ajuda desinteressada de uma figura humana da grandeza do advogado Sobral Pinto. Se não se pretende negar o indiscutível, importa pensar se sua obra concentra-se no raio realista de seus companheiros de região. Para fazêlo, convém antes estabelecer o que se entende por raio realista. Vale então recordar a distinção que Lukács estabelecia, a partir do romance francês do século XIX e estendia à prosa a ele contemporânea, entre realismo e naturalismo. O realismo correspondia ao romance exemplar, tendo seu clássico em Balzac, porque apresentaria a estrutura socioeconômica da conjuntura histórica representada no enredo, ao passo que o naturalismo, primeiramente tipificado por Zola, contentava-se com seus traços de superfície. Nos seus próprios termos: [...] [realismo e naturalismo supõem] a presença ou ausência de uma hierarquia entre os traços próprios aos personagens representados e as situações em que se acham postos esses personagens. [...] É secundário que o princípio comum de todo naturalismo, ou seja,

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Apesar da enorme extensão temporal dada ao par antagônico, nenhum dos dois termos cabe univocamente a Graciliano. Qual a razão de negaça? Não é pela designação de realista que tem sido conhecido entre seus companheiros de geração? E a denominação “realismo” não é ainda hoje considerada por muitos críticos como elogiosa? Em favor da agilidade argumentativa, recorde-se a cena capital de seu romance de estreia. Como seu título insinua, o protagonista, João Valério, propõe-se a compor um romance histórico, que teria por base os índios Caetés, os habitantes originais do atual estado de Alagoas. Mas a distância entre os modos de vida de um modesto funcionário de uma cidadezinha interiorana e do que teria sido próprio dos indígenas, já então dizimados, leva a proposta de romance histórico ao fracasso. Há muitos anos, eu interpretava o fracasso do personagem como a encenação irônicozombeteira por Graciliano do que se fizera, entre nós, com Gonçalves Dias e José de Alencar: a criação literária de uma fantasia indigenista. Hipótese bastante diversa só me veio à cabeça ao reler, há poucos anos, o Memórias do cárcere. Descrevendo as atrocidades que via serem cometidas ou que lhe contavam, Graciliano observava que, para infelicidade sua, era escritor em um país em que “essas coisas – as cenas expostas nos romances – eram vistas com atenção por uma pequena minoria de sujeitos mais ou menos instruídos que buscavam nas obras de arte apenas o documento” (RAMOS, 1954, v. 3, p. 132-133, grifo nosso).1 A interpretação que então dera ao Caetés se invertia por completo: que miséria a deste país em que os poucos mais ou menos instruídos só veem 1

A reflexão das Memórias não deixa de ser problemática. A julgar por ela, a afirmação do melhor biógrafo de Graciliano seria despropositada: “Graciliano extrai da memória a sua matéria ficcional, resgatando tanto suas raízes existenciais quanto um conjunto de tradições e heranças místicas do Nordeste” (MORAES, 2012, p. 214). Mas, ao contrário, ela se ajusta às declarações mais frequentes do romancista. Embora não possa comprová-lo, creio que a discrepância do afirmado nas Memórias era consequente às discordâncias que sofria o autor ante as normas rígidas do realismo socialista praticado pelo Partido.

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a ausência de seleção, a recusa da hierarquização, apresente-se como submissão ao meio (primeiro naturalismo), como atmosfera (naturalismo tardio, impressionismo, também o simbolismo), como montagem de fragmentos da realidade efetiva, em estado bruto (neorrealismo), como corrente associativa (surrealismo), etc. (LUKÁCS, 1960 p. 61).

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na obra de arte o documento. E o que teriam sido Os Timbiras, O Guarani e Iracema senão tentativas de documentar, por certo imaginativamente, a vida das populações primitivas do país e/ou sua aproximação com o branco conquistador? Já, portanto, em seu primeiro romance, por certo ainda distante da qualidade de sua ficção realizada, Graciliano intuía haver algo errado na apreciação literária vigente em seu país. Mas, contra essa segunda leitura, não era precisamente o documento que aparecia, para um crítico contemporâneo afamado como Lukács, como característica da obra realista? E em que a valorização do documento varia quanto ao critério mais recente que louva a obra como testemunho de uma desastrosa situação social?2 Seria irrelevante a diferença que se pretendesse fundada em o louvor do documento supor o respaldo marxista, o que não mais sucede no realce do testemunho. Ora, como Graciliano foi reconhecido como um escritor realista, a correta seria a minha primeira leitura do Caetés. E era como documento que eu mesmo lia o São Bernardo em meu livro de estreia, Por que literatura (1966). Por sorte dos leitores de Graciliano, sua interpretação grosseira foi ultrapassada pela leitura que Abel Barros Baptista fez de São Bernardo. De seu estudo exemplar, destaco duas passagens capitais. Na primeira, é ressaltada a excelência do capítulo 19. Paulo Honório e Madalena haviam se casado há pouco. Mas, como assinala o crítico português, o pequeno intervalo entre a cena do casamento e o capítulo destacado, e ser o livro escrito a posteriori são indicativos de que a felicidade durara bem pouco. Sentia-se Paulo Honório não só agredido pelas disposições progressistas tomadas por Madalena, como enciumado de todos. A matéria do capítulo não faz, contudo, que o romance assuma a forma de recordação, como, de acordo com os moldes realistas deveria estar. Já a leitura atenta da abertura expõe sua discordância: Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. – E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato 2

Embora a fonte não declare claramente a data da afirmação, a frase de Rachel de Queiroz confirma a sinonímia: “O que fazíamos era romance-documento, romance-testemunho” (apud MORAES, 2012, p. 75).

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moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever. (RAMOS, 2012, p. 117).

As brigas contínuas, o suicídio de Madalena, a separação então dolorosa, tudo isso já se dera. No entanto, o segundo parágrafo aparece com verbos no presente, a terminarem com a cláusula “sou forçado a escrever”. “Forçado por quê? Qual a força que o impele ou obriga a escrever? [...] Forçado a escrever mesmo sabendo de antemão que nunca atingirá o retrato moral de Madalena, ou forçado a escrever para o procurar, sem critério viável para aferir o êxito da busca?”, pergunta-se o crítico (BAPTISTA, 2005, p. 111-112). E o capítulo prossegue com a observação da alternância dos tempos verbais: “La fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras. – Casimiro!” (RAMOS, 2012, p. 118). Com a entrada de Casimiro Lopes, os verbos passam para o presente. Mas a ação narrada decorre no presente ou no passado?. [...] Tudo se esclarece, então: os verbos no presente dão conta da presença do passado no presente. (BAPTISTA, 2005, p. 113).

O ciúme não é variante da desconfiança ou do sentimento de propriedade imputáveis à profissão, mas uma paixão que não depende delas, que até as contraria, e que radicalmente se liga ao sentimento amoroso, que já levara Paulo Honório a fazer algo diverso do que projetara […] (BAPTISTA, 2005, p. 125).

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A frase, simples e incisiva, é suficiente para decretar a insuficiência do realismo. Que testemunha a substituição do tempo verbal, o presente ocupando o lugar do passado, senão que a recordação não se confunde com o tempo da memória, pois o tempo que efetivamente vigora é o tempo da narrativa? A segunda passagem que destaco completa o desmonte do realismo. Até aqui ainda podíamos entender o ciúme como decorrência da diferença dos níveis de cultura do casal. Mais precisamente, do “sentimento de propriedade” do macho sertanejo. Sem que se refira a um momento específico da relato senão que a seu todo, escreve o crítico:

O que vale dizer, o ciúme não se encaixa em uma cadeia de causas e efeitos que efetuaria o transporte para o plano da linguagem do que

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já se dera na sociedade, matéria-prima do romance. O ciúme nos lança noutro plano que não o da mera transmissão da realidade. Por isso o São Bernardo, como toda ficção de qualidade, não se restringe a ser documento ou testemunho de algo que já antes dela existia. Até este momento, demos a entender que o ensaio de Abel Barros Baptista estabeleceu um dique contra a interpretação habitual de Graciliano Ramos. Procuro a seguir mostrar que, sendo correta, essa ainda é uma compreensão parcial. Para mostrá-lo, recorro a umas mínimas passagens que Antônio Candido dedicou a Vidas secas. A primeira ressalta a singularidade do escritor alagoano entre seus companheiros “regionalistas”. Para fazê-lo, recorda a formulação de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (apud CANDIDO, 1992, p. 102): “Cada uma das obras de Graciliano Ramos (é) um tipo diferente de romance”. E daí parte para refletir sobre Vidas secas. Aproveitando agora uma observação de Lúcia Miguel Pereira, Candido acentuava “a força de Graciliano ao construir um discurso poderoso a partir de personagens quase incapazes de falar, dada à rusticidade extrema, para os quais o narrador elabora uma linguagem virtual a partir do silêncio” (CANDIDO, 1992, p. 104-105, grifo nosso). Na verdade, na rusticidade de toda a curtíssima narrativa, a falta de palavras é quase a regra absoluta. O tratamento da falta, contudo, apresenta uma diferença básica: se o proprietário da fazenda abandonada, a que chegam os retirantes, Fabiano, sua família e a cachorrinha Baleia, não tem do que se queixar, nem por isso deixa de gritar e dar ordens. O que ele tem a dizer é nada, pois Fabiano é um vaqueiro exemplar. Mas os desaforos são a linguagem do dono da terra. Do mesmo modo, se o Soldadinho amarelo e a guarnição a que pertence têm poucas palavras em reação ao “desacato à autoridade” de que acusam Fabiano, em troca as pancadas com que malham suas costas e a prisão a que o recolhem são a linguagem da autoridade. Portanto, ainda que sejam escassas suas palavras, o senhor das terras e as autoridades policiais não precisam de muitas. A semiologia brutal do mando as substitui. Em troca, que palavras tem Fabiano para contestar ao pedido de uma cama razoavelmente decente por sinhá Vitória? Que palavras tem a mulher quanto às perguntas dos dois pequenos filhos? Como o mais velho podia expressar a admiração pelo pai em sua plena roupagem de vaqueiro senão tentando cavalgar o bode velho? A família de Fabiano, em suma, está reduzida a umas mínimas palavras, que não têm o apoio dos sinais de mando.

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7.2 O paradigma em questão Queiramos ou não, as apreciações mudam e muitas vezes provocam valorações antagônicas. Diga-o o barroco. Menosprezado por séculos, sua reapreciação só passou a se dar a partir das primeiras décadas do século

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O silêncio que habita o humano sem posses prolonga-se até à cachorrinha Baleia e nela alcança seu auge. A ausência de palavras na cena de sua morte é um dos maiores capítulos da literatura brasileira. Por temer que os sinais da doença que nela se manifestavam indicassem que ela estivesse hidrofóbica, Fabiano, para proteger os filhos de serem contagiados, persegue-a, para matá-la. Mas o tiro que dispara não é mortal; entre surpresa e espantada, a cachorrinha se arrasta. O capítulo “Baleia” é quase tão só formado pela lenta agonia do animal. Baleia procura fugir ou se esconder ou escapar dos sinais da morte que dela se avizinham. Podemos mesmo estabelecer, do ponto de vista de disponibilidade de linguagem, uma hierarquia entre os personagens. Para o fazendeiro e os policiais, muito poucas palavras são suficientes pois, sob a forma de gritos e pancadas, os sinais de mando são bastantes. Para Fabiano e sua família, a espoliação, a falta, a fuga (da seca e, sempre que possível, dos outros homens) dão lugar ao resmungo aflito ou raivoso, com que falam o silêncio. Para Baleia, enquanto esteve saudável, o silêncio tem o cheiro dos preás, que, caçados por ela, diminuía a fome dos retirantes ou se exprime nas brincadeiras em que se envolve com as crianças. À medida que a morte dela se aproxima, o silêncio se confunde com o negror que se espalha a seu redor, com a fantasia que nela cresce, antes que os urubus venham bicar seus olhos mortos: “Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás” (RAMOS, 1953, p. 109). Em suma, se houve um tempo em que a crítica considerava inconteste a presença do realismo em Graciliano Ramos, a partir da abordagem de Abel Barros Baptista podemos voltar atrás e verificar que, em vez de um bloco maciço, a crítica anterior já mostrava vias contrárias ao que a tradição postulava. Apenas considerando São Bernardo e Vidas secas, a compreensão do significado do ciúme de Paulo Honório e o silêncio que acompanha a vida e a morte de Baleia são os polos dentro dos quais a suposta unicidade do realismo de Graciliano é carcomida.

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XX. Não se cogita que algo semelhante esteja acontecendo a Graciliano Ramos ou a qualquer outro autor brasileiro. Nosso sistema intelectual é extremamente refratário a quaisquer mudanças, como se elas afetassem a dignidade de seus representantes. Apesar da alegada resistência, contudo, como mostra o exame acima empreendido, a obra de Graciliano “corre o risco” de ser estimada por um modo contrário ao que, fixado ainda durante sua vida, permanece por certo dominante. Mudança fundada em quê? Na apreciação do que entende por realismo. Perguntemo-nos pois sobre a história e os fundamentos do critério. A apreciação será intencionalmente bastante terra a terra. O primeiro registro nominal do termo é de 1826, e surge no jornal parisiense Le Mercure français. Para o jornalista que o emprega, por realismo entende-se uma “doutrina literária que conduziria à imitação não de obras-primas da arte mas dos originais que a natureza nos oferece” (apud HEMMINGS; CARSANIGA, 1974, p. 5). Ressalte-se na definição o termo imitação, que representa a pedra de toque do conceito. Mas não se pense que o autor tivesse encontrado por si a chave do tesouro. É verdade que o termo mesmo não é empregado pelo famoso Dr. Johnson. Se ele, de fato, falta em sua caracterização de 1750, os ingredientes de sua fórmula já estão bem explícitos: “As obras ficcionais com as quais a presente geração parece mais particularmente deliciar-se são aquelas que exibem a vida em seu verdadeiro estado, apenas diversificado pelos acidentes que diariamente sucedem no mundo e influenciado pelas paixões e qualidades realmente encontradas no contato com a natureza” (HEMMINGS; CARSANIGA, 1974, p. 11-12). Não é necessário algum esforço para compreender-se que ao coloborador do jornal francês coube o privilégio de encontrar le mot juste da relação entre o que vida mostra in its true state e o que a obra pictórica ou literária expõe. Por conseguinte, a fortuna do realismo na arte parte da primeira metade do século XVIII e viria encontrar sua máxima expressão ao longo do século XIX. Centrando-se inicialmente na França e na Inglaterra e concentrada no gênero que, desde então, é o ápice da forma literária, o romance, o prestígio do realismo é contemporâneo à expansão primeira do capitalismo industrial e dos meios de comunicação (a estrada de ferro e o telegrama sem fio). Nenhuma estranheza que tenha se difundido das duas nações europeias então mais desenvolvidas e tampouco que daí seu prestígio

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tenha se estendido à Rússia, à Alemanha, à Itália, aos países ibéricos e, a partir destes, às suas ex-colônias sul-americanas. Não será preciso nos demorarmos na catalogação de nomes e detalhes há muito divulgados em manuais como o de Hemmings e Carsaniga. Para verificá-lo, será suficiente a consulta de um sistematizador amante de banalidades como René Wellek. Ainda em momento de glória, formulava como a meta do romance realista do Oitocentos “a representação objetiva da realidade contemporânea” (WELLEK, 1963, p. 240-241). Wellek sente a obrigação de ir além do que já deveria ter lido em inúmeras ocasiões e acrescentar que a “representação objetiva da realidade” implicava, por parte do romancista, a rejeição do “fantástico, do fantasioso, do alegórico, do simbólico, do extremamente estilizado, do pesamento abstrato e do decorativo” (WELLEK, 1963, p. 241). Em síntese, todas essas recusas significam “que não queremos mitos, relatos fantásticos (Märchen), o mundo dos sonhos” (WELLEK, 1963, p. 241). Noutras palavras, o padrão a ser seguido deveria ser estritamente a imitação da natureza e da engrenagem da sociedade. Assim, só assim, a literatura seria um divertimento sério e recomendável. A descrição do que haveria de se entender por realismo fora tão unânime que sua caracterização histórica não poderia diferir em enciclopédias recentes, cujo refinamento se revela ou na observação de detalhes que passavam não notados ou no destaque de discrepâncias que temporalmente se manifestaram. Assim, no verbete “realism” da Princeton encyclopedia of poetry and poetics, lê-se que termo “designa um mundo artisticamente criado (‘fictício’ ou ‘ficcional’) [...] baseado na concordância implícita entre leitor e escritor [...] de que a realidade é constituída pela factualidade objetiva das leis naturais (WINKLER, 2012, p. 1148). Acentuando a concordância entre leitores e autores e a afirmação de que a realidade decorre da factualidade das leis naturais, explicitamse as condicionantes do que se entendia como “imitação” e “representação objetiva” e por que ambas eram tomadas como incontestáveis e naturalmente dadas. Editado um pouco antes, o não menos importante Dictionary of cultural and critical theory tem a vantagem de acrescentar umas pequenas nuanças. No verbete “classical realism”, observa-se que a designação é usada sobretudo por críticos marxistas e pós-estruturalistas. As divergências importam porque têm repercussão contemporânea. Na orientação

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marxista, o autor, Christopher Norris, distingue entre a direção lukacsiana, para a qual a obra realista é ditada de “um potencial crítico emancipatório”, que a tornaria politicamente recomendável, ou seja, ideologicamente manipulável, da vertente temporalmente posterior representada por Pierre Macherey e Terry Eagleton, que antes acentuam o realismo expor um modo de consciência falsa, uma atenuação dos conflitos, só passíveis de serem notados por uma leitura “sintomal”. Já para o pós-estruturalismo de um Roland Barthes, a designação é “um mero artifício, uma astúcia pela qual o romance procura esconder ou repudiar os signos de sua produção cultural e assim mascarar a realidade que expõe” (NORRIS apud PAYNE; BARBERA, 2010, p. 136). As diferenças são decisivas para nosso propósito. Em primeiro lugar, na linha marxista mais recente, é afastada a euforia potencialmente propagandística da época stalinista e o crítico se desvencilha da solidariedade, vigente ao longo dos séculos XVIII e XIX com o ideário dos autores realistas, em favor de uma visão potencialmente crítica, fundada na afirmação de que a imitação da vida “como ela é” não passa de uma ingenuidade ou de um engodo, no melhor dos casos, de um autoengodo. Esta potencialidade crítica se torna ainda mais evidente na linha barthesiana. Quando, portanto, assinalávamos que a caracterização do realismo continua genericamente ainda dominante não se declara que seus adeptos mantenham a crença que a obra literária tivesse como qualidade básica oferecer um “retrato” da sociedade. Ou seja, o termo “imitação” deixa de estar entre as ferramentas definitórias do realismo. Mas o fato de já não se falar em “imitação” não significa que ele deixa de estar presente, entre os proponentes do realismo, embora de modo velado. E isso mesmo porque se mantém a suposição de a obra ficcional, conquanto de maneira mais refinada, revelar como é a realidade social. Sucede apenas que tal pretensão passa a ser vista de modo indireto – “sintomal”, como Norris usa o termo de Althusser para definir o marxista de autores posteriores à queda do império soviético. Tal seria a distinção radical com a posição de Barthes. Se de sua obra não se retira alguma outra propriedade do literário além da ênfase na construção da própria forma; se, portanto, afasta-se o literário do padrão realista, sua pertença ao mesmo paradigma resulta de que à negação do perfil realista – “imitação”, apreensão do que a realidade é – não se segue algo mais propriamente definitivo. (A ênfase na forma

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se caracteriza negativamente: a forma literária se distingue da formulação comunicativa, do enunciado científico ou pragmático, e o potencial da negação se restringe a dizer o que ela não é.) Embora extremamente sumária, a exposição acima assinala o que caracterizou o paradigma realista em relação à obra literária e como, ora de maneira ainda velada, ora de maneira explícita, ele sofre uma reviravolta, a partir da década de 1960. Tal reviravolta, contudo, não afeta o enfoque básico a que a obra literária era sujeita. Ou melhor, seja no sentido tradicional como o termo realismo era empregado, vindo do Dr. Johnson, passando por Wellek até Lukács e seus seguidores, até seus veementes negadores, como Roland Barthes, a base da reflexão da literatura se concentrava em variantes, explícitas ou sofisticadas, da verossimilhança aristotélica. No sentido tradicional e, talvez o leitor se espante, entre nós, ainda majoritariamente entre críticos e professores de literatura, a obra realista é considerada verossímil porque retrata a realidade como ela é, seja por duplicá-la, seja por lhe dar uma organização que, enquanto tal, a sociedade mesma não é capaz de revelar. A proposta “sintomal” opta por uma orientação não explícita, mas se a obra é sintoma de algo é que este algo está na realidade social. Por isso ela continua verossímil. A linha barthesiana melhor se definiria como o “le degré zero” do verossímil. Se dizemos pois que este se mantém é porque o zero não abre senão para ele mesmo. E à semelhança desta linha definem-se as várias e distintas tentativas de caracterizar o ficcional literário. Dizendo de maneira extremamente grosseira, acrescentaria que Barthes é sintomático de um período em que um paradigma, tendo entrado no ocaso, não encontra algum outro. O que nos parece que mais se aproxima de uma posição axial é a estética do efeito de Wolfgang Iser, com seu princípio de a obra ficcional literária caracterizarse por ser uma estrutura com vazios, a serem suplementados pelo leitor. Sem que possa me estender, diria que, embora esse achado seja relevante, ele ainda não ultrapassa um certo ponto zero, isto é, ainda não caminha bastante para constituir um novo paradigma. Poderia então concluir que temos, por um lado, os retardatários de um paradigma ultrapassado e, por outro, um enxame de propostas que cobrem pequenos círculos. Mas, em vez desta solução, acrescento outra. Havíamos caracterizado o paradigma realista e suas sequelas como fundadas na verossimilhança. Vale então lembrar a formulação da Poética:

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“Os acontecimentos são possíveis conforme o verossímil ou o necessário” (Poét., 1451b). Ao domínio de eikos (o verossímil), por que não pensar seriamente no oposto, Anankè? As razões em contrário foram dadas pelo primeiro romantismo alemão: verossímil e necessário eram as disposições pelas quais a mímesis aristotélica se atualizava. Ora, desde que Roma converteu a Grécia em colônia e absorveu seu legado intelectual, mímesis foi traduzida por imitatio. E assim se manteve por séculos. Os românticos então ensinaram aos eruditos europeus que isso era uma blasfêmia para a expressividade do sujeito. Assim ao sujeito autococentrado correpondeu o desprezo pelo suposto correspondente da mímesis, a imitatio. Paradoxalmente, o molde realista reatualizou a imitatio, justificando-a não enquanto disposição da arte senão como decorrência da afirmação das leis naturais da realidade. Noutras palavras, a imitation moderna tem por fonte o domínio do científico e não a dicção, em que se fundava a fonte grega. Anankè, o necessário continuou interditado, mesmo quando a suposta inquestionalidade da realidade perdeu seu crédito. Ora, quando Abel Baptista escreve que, em São Bernardo, a recordação de Madalena por Paulo Honório se dá com os “verbos no presente (que) dão conta do passado no presente”, que faz ele senão recorrer ao que se impunha ao proprietário saudoso e culpado pela morte da companheira? A saudade e a culpa seriam verossímeis mas o emprego dos verbos no presente para dizer de uma cena passada são parte de um necessário impossível de ser negado pelo personagem Paulo Honório. Com isso quero dizer: para irmos além da estaca zero ou de soluções incompletas impõe-se repensar a categoria da mímesis. Por certo, não na tentativa de restabelecer o pensamento aristotélico, quando nada porque a cosmologia grega não poderia ser refeita em tempo de dimensões tão diferenciadas, senão de desenvolvê-lo em ambiência tão distinta. Anankè então se torna um verdadeiro ponto de partida para um work in progress. As dificuldades de levá-lo adiante são evidentes. Desde logo, porque as bases do pensamento ocidental têmse desenvolvido na Europa e, ao menos até agora, o scholar europeu não está convencido que deveria por em discussão o que seu mais brilhante romantismo havia alijado. Em segundo lugar, porque à nefasta sinonímia entre mímesis e imitatio se acrescenta a imitation motivada pelo capitalismo industrial e, pior ainda, sua adoção pelo tristemente lembrado realismo socialista. Em segundo lugar, porque o desenvolvimento que o princípio

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da mímesis deverá receber depende de uma reflexão que se opere dentro da linguagem e esta se tornou objeto de uma ciência, a linguística, que, por seu próprio recorte científico, parece pouco apropriado para uma indagação que antes exigiria uma formação tanto filosófica como transdisciplinar. Se estas são as dificuldades que de imediato visalizamos, já têlas considerado, levando em conta, em contraste, o que já fizemos neste sentido poderá talvez indicar um ponto de partida.

ARISTÓTELES, Poét. Trad. DU-ROC, R.; LALOU, J. Paris: ed. Du Seuil, 1980. BAPTISTA, A. B. O livro agreste: ensaio de curso de literatura brasileira. Campinas: Unicamp, 2005. CANDIDO, A. [1956]. Ficção e confissão: ensaio sobre a obra de Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34, 1992. HEMMINGS, F. W. J.; CARSANIGA, G. The Age of realism. New Jersey: The Harvester Press, 1974. LIMA, L. C. Por que literatura? Rio de Janeiro: Vozes, 1966. LUKÁCS, G. [1958]. La Signification présente du réalisme critique. Trad. Maurice Gandillac. Paris: Gallimard, 1960. MORAES, D. de. [2012]. O Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. PAYNE, M.; BARBERA, J. R. (Ed.). A Dictionary of cultural and critical theory. New Jersey: Blackwell Publishing, 2010. RAMOS, G. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1954. v. 3. RAMOS, G. [1934]. São Bernardo. 92. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. RAMOS, G. [1938]. Vidas secas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1953. WELLEK, R. Concepts of criticism. New Haven: Yale University Press, 1963. WINKLER, M. Realism. In: GREENE, R. (Org.). The Princeton encyclopedia of poetry & poetics. 4. ed. Princeton: Princeton University Press, 2012.

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Referências

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Lugares da (teoria da) literatura: desafios 1

Ivete Walty

Várias são as publicações atuais que se propõem refletir sobre os lugares e o papel da literatura no mundo contemporâneo. Para ficar em alguns, citem-se Tzvetan Todorov, com A literatura em perigo (2009); Antoine Compagnon, Literatura para quê? (2009) e Nancy Huston, com A espécie fabuladora (2010). Para entrar na discussão teórica que empreendem esses livros e que muito nos interessa, vale ressaltar que o fato de tal assunto estar em pauta já nasce da percepção de que o cenário da literatura e da teoria a ela correlata na sociedade atual mudou em relação aos séculos ou mesmo às décadas anteriores e fomenta a pesquisa sobre as razões históricas e funcionais de tal fato. Os três textos citados têm como objetivo comum ressaltar a relação da literatura com a experiência humana, o estar do homem no mundo, o que os liga ao antológico texto de Antonio Candido, “O direito à literatura” (2004). Senão vejamos. Todorov faz ecoar as palavras de Candido, ao afirmar: [...] os estudos literários encontrariam o seu lugar no coração das humanidades, ao lado da história dos eventos e das ideias, todas 1

Este artigo retoma ideias de textos já publicados por mim porque integram uma reflexão que venho desenvolvendo há algum tempo.

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essas disciplinas fazendo progredir o pensamento e se alimentando tanto de obras quanto de doutrinas, tanto de ações políticas quanto de mutações sociais, tanto da vida dos povos quanto da de seus indivíduos. (TODOROV, 2009, p. 93).

E continua para concluir dogmaticamente:

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Se aceitarmos essa finalidade para o ensino literário, o qual não serviria mais unicamente à reprodução dos professores de Letras, podemos facilmente chegar a um acordo sobre o espírito que o deve conduzir: é necessário incluir as obras no grande diálogo entre os homens, iniciado desde a noite dos tempos e do qual cada um de nós, por mais íntimo que seja, ainda participa. “É nessa comunicação inesgotável, vitoriosa do espaço e do tempo, que se afirma o alcance universal da literatura”, escrevia Paul Bénichou. A nós, adultos, nos cabe transmitir às novas gerações essa herança frágil, essas palavras que ajudam a viver melhor. (TODOROV, 2009, p. 94).

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Nancy Huston (2010, p. 19), discorrendo sobre o aspecto ficcional da vida humana, propõe que “a narratividade se desenvolveu em nossa espécie como uma técnica de sobrevivência” e que “ela está inscrita nas próprias circunvoluções de nosso cérebro”.2 Discorre, então, sobre o que chama as boas e más ficções, boas e más histórias que criamos ou criam-se para cada um de nós. E defende que a literatura, em especial o romance, nos impede de cair no “Arque-texto, ou seja, na veemência, na violência, na criminalidade, na opressão do próximo, das mulheres, dos fracos ou até de um povo inteiro” (HUSTON, 2010, p. 128). Também ela leva a literatura para a escola e, ressaltando a função ética do romance, preconiza: [...] a escola não deve mais se contentar em inculcar nas crianças o “cânone” do seu país, enaltecendo a literatura nacional por uma questão de patriotismo e massacrando-a com análises. Mais do que isso: ensinar as crianças a simplesmente se apaixonar pela leitura. Suscitar nelas o desejo – e a capacidade – de devorar a literatura do mundo inteiro. (HUSTON, 2010, p. 129, grifo da autora).

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Esse aspecto será retomado mais à frente.

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Compagnon, por sua vez, secunda autores que atribuem à literatura o papel de pensar diferentemente a vida, introduzindo “em nossas certezas a dúvida, a ambiguidade e a interrogação” (COMPAGNON, 2009, p. 52). De forma mais interrogativa, no entanto, alarga tal função para a leitura:

O que levaria três teóricos3 a apontar um aspecto salvacionista na literatura, à moda de intelectuais modernos que se atribuem a função de guias iluminadores da sociedade, vendo na literatura “o sonho acordado das civilizações” e “fator indispensável de humanização” (CANDIDO, 2004, p. 175)? E mais: por que a proposta de salvar a literatura? Algumas ideias devem ser aventadas. A primeira delas é a constatação de que a o lugar da literatura na sociedade mudou. Mudou porque não se vive mais a mesma configuração do espaço público preconizado por Habermas (1984) como a esfera dos letrados, na passagem do século XVIII para o XIX na Alemanha, França e Inglaterra, mesmo porque o próprio Habermas (1993) já reconhecera a pluralidade dessa esfera de que se alijara antes os iletrados. Mudou porque a literatura não está mais a serviço da construção da nação, cuja própria concepção encontra-se em causa. Mudou porque, com o advento de outras mídias, novas formas de letramento surgiram movimentando o cenário social. Mudou porque o fortalecimento da internet cria outros lugares de publicação e de interação como os blogs e as redes sociais, em que o status de escritor teria perdido sua aura “na lama”, como no período a que se refere Baudelaire (1988). Mudou porque se planejam feiras e festas literárias pelo país e pelo mundo afora em que escritores e editores transitam, dão entrevistas e fazem vender livros, sem contar a intensidade dos prêmios literários. Mudou ainda porque, em 3

Huston é também ficcionista.

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Respondi às perguntas que coloquei há pouco? Literatura para quê? A literatura é substituível? Ela sofre concorrência em todos os seus usos e não detém o monopólio sobre nada, mas a humildade lhe convém e seus poderes continuam imensos: ela pode, portanto, ser abraçada sem hesitações e seu lugar na Cidade está assegurado. O exercício jamais fechado da leitura continua o lugar por excelência do aprendizado de si e do outro, descoberta não de uma personalidade fixa, mas de uma identidade obstinadamente em devenir. (COMPAGNON. 2009, p. 56-57).

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países como o Brasil, a periferia entrou em cena organizando saraus e semanas literárias noticiadas em jornais, sejam os de grande tiragem, sejam os alternativos. Os textos literários e seus correlatos como os da teoria e da crítica em suplementos literários jornalísticos encolheram cedendo espaço a matérias sobre grafite e quadrinhos, como antes dialogavam com os de cinema, pintura e música. Em seu livro sobre o jornalismo cultural, Marcelo Lima (2013), traçando a trajetória dos suplementos literários e culturais da Folha de S. Paulo, delineia as configurações que estes vão assumindo no tratamento dos discursos teórico-críticos através dos tempos. Qualquer leitor mais antigo da Folha pôde perceber o que ele aponta sobre a passagem do “Folhetim”, para o caderno “Mais!” até a atual “Ilustríssima”. Em sua caracterização do caderno “Mais!”, por exemplo, o autor paranaense mostra que, a despeito da presença de uma noção mais aberta de cultura, haveria nas três fases do suplemento uma supremacia dos discursos ligados à literatura, que teriam como traço mais marcante o privilégio da tradição crítica brasileira, “como se sua releitura para o público pudesse incentivar e ‘corrigir’ a produção contemporânea, considerada de pouca importância” (LIMA, 2013, p. 91, grifo do autor). Tal postura lhe conferiria um viés conservador de defesa contra os estudos culturais. Diz o autor em sua conclusão:

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Como todo empreendimento preservacionista, sua abordagem fixou-se na notoriedade dos autores que abordou, evitando o risco de apostar em novos nomes. A pesquisa mostrou, portanto, uma tendência conservadora da imprensa brasileira nos anos 1990 que, em nome da ampliação do número de leitores, investiu num conjunto estável de valores da literatura. (LIMA, 2013, p. 233).

Mais do que discutir tal tendência, de resto já apontada também no “Folhetim”, em sua relação com a academia, importa notar a forte presença do discurso literário e seus correlatos nos suplementos da época, hoje diminuídos significativamente, pelo menos no que se refere a um tipo de literatura. A definição do caderno “Ilustríssima”, que substituiu o “Mais!”, pela própria Folha, deixa claro seu caráter de suplemento cultural: A Ilustríssima é o suplemento aberto à discussão dos grandes temas da cultura no Brasil e no mundo. O caderno acompanha a produção

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Um simples olhar sobre o índice do caderno deixa claros sua pluralidade de temática e o caráter mais episódico da presença do discurso literário e seus correlatos. O mesmo ocorre com as revistas semanais em que a forte recorrência de crônicas e matérias sobre autores e livros, como ocorria na revista Manchete ou em O Cruzeiro, por exemplo, se escasseia nas atuais Veja, Istoé ou Época. A esse respeito, Costa Lima, relacionando mídia e academia, interroga-se sobre o papel de cada uma dessas instituições e, depois de ironizar a função educativa da mídia contemporânea em contraposição ao efeito pedagógico da tragédia grega, afirma: “Cadernos especiais de jornais não poderiam ser comparados com o que resta dos nossos suplementos de cultura” (LIMA, 2013, p. 158). Ao lado disso há que se observar a oscilação das revistas e jornais especializados em literatura que vêm do Modernismo até hoje, ora com ressonância nacional, ora regional; ora com apenas três números, ora com duração de anos. De A revista até o jornal de resenhas Rascunho, caminhos são rastreados, tendências delineadas. Não é nosso propósito, porém, traçar tais trajetórias. Antes o que se quer é mostrar que a literatura circula e com ela seus conceitos e aparatos teóricos. No fim dos anos 1990, Compagnon (1999) já lamentava, em “O que restou de nossos amores?”, prefácio da obra O demônio da teoria: literatura e senso comum, a queda da teoria da literatura na França, observando que, depois do seu florescimento com Barthes e outros, ela teria voltado a um estágio anterior de atraso em relação à Inglaterra e à Alemanha, similar ao percebido por Spitzer: Em 1960, pouco antes de morrer, Spitzer atribuía esse atraso e esse isolamento franceses a três fatores: um velho sentimento de superioridade ligado a uma tradição literária e intelectual contínua e eminente; o espírito geral dos estudos literários, sempre marcado pelo positivismo científico do século XIX, à procura das causas; a predominância da prática escolar de explicação de texto, isto é, de uma

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artística e intelectual em ensaios e reportagens sobre arte, ciência e humanidades, em linguagem clara e sem jargões. Cada edição traz trabalhos inéditos de artistas brasileiros e internacionais, além de cartuns e quadrinhos. (Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2014).

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descrição ancilar das formas literárias impedindo o desenvolvimento de métodos formais mais sofisticados. (COMPAGNON, 1999, p. 12).

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A isso Compagnon acrescenta “a ausência de uma linguística e de uma filosofia da linguagem comparáveis às que invadiram as universidades de língua alemã ou inglesa” (COMPAGNON, 1999, p. 12). Observação semelhante é feita por Luiz Costa Lima que até recentemente vem apontando o que considera a escassez do pensamento teórico no Brasil, atribuindo-a ao que chama “miopia do pensamento reflexivo” (LIMA, 2013, p. 468). Não sem razão costuma incentivar o estudo da filosofia nos cursos de Letras associando-o à reflexão sobre a atividade intelectual no país: “tudo nos leva a pensar que é a própria sociedade brasileira que desqualifica a relevância da questão intelectual” (LIMA, 2013, p. 475, grifo do autor). A palavra Frestas, no título do livro em que circulam essas e outras ideias de Costa Lima (2013), que faz uma revisão crítica de seu próprio percurso – Frestas: a teorização em um país periférico – sugere o aspecto de entremeio que marca tal atividade. Esse caminhar pelas margens pode trazer algum proveito reflexivo, como bem apontara Silviano Santiago (1978) em vários de seus ensaios marcados pela ideia de entre-lugar e de suplemento, ou Piglia (1991) e sua noção de mirada estrábica. Se tomarmos a ideia de mímesis revisitada por Costa Lima quando associa tal questão àquela de controle do imaginário, podemos analogicamente construir uma interrogação sobre o lugar da teoria no país. Apontando a força da mímesis tomada por duplicação imitativa como marca de uma tendência recorrente da sociedade, o teórico brasileiro reforça a formulação esquemática de que parte, considerando que é mister saber que “a mímesis opera pela produção de diferença, cumprida a partir de um horizonte de semelhança” (LIMA, 2013, p. 116, grifos do autor). Discorrendo sobre “a experiência estética e o embaraço ético”, Costa Lima propõe que a estrutura tensa e contraditória gerada pelo encontro dos impulsos abundantes que geram a experiência estética e a norma ética é “por excelência a estrutura humana” (LIMA, 2013, p. 319). Ao retomar a ideia de Arnold Gehlen de que o homem é um animal carente, uma criatura inacabada, Costa Lima (2013, p. 151) nos leva a evocar a concepção da linguagem como um instinto, de Steve Pinker, que, no texto “Um instinto para adquirir uma arte”, afirma que “a linguagem não é um artefato

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cultural que aprendemos [...]”, mas “uma peça da constituição biológica de nosso cérebro” (PINKER, 2004, p. 9). Benveniste, como Pinker, recusase a conceber a linguagem como um mero instrumento de comunicação, quando afirma: “a linguagem está na natureza do homem, que não a fabricou” (BENVENISTE, 1989, p. 285) ou “[...] bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver” (BENVENISTE, 1995, p. 222). Franchi também afirma que:

Tais posturas jogam por terra a concepção tão comum de literatura como isenta do objetivo comunicacional que marcaria as demais formas de linguagem, já que a definição de linguagem com que se trabalha é a de uma propriedade (criatividade, capacidade artística) da mente, e não da manifestação/externalização dessa capacidade na produção de literatura(s) e outros artefatos artísticos (Cf. TURNER, 2014). No livro The Literary Mind, Mark Turner (1996), por exemplo, já no fim dos anos 1990, propõe que a capacidade de contar histórias, projetando-as no tempo e no espaço, é uma característica não da mente do escritor, mas de toda e qualquer mente. Usa, então, a figura da parábola como uma das operações da construção do conhecimento.4 Sem entrar em detalhes sobre sua teoria, que propõe que as Gramáticas Naturais, as 4

Posteriormente, no quadro da Teoria da integração conceitual (FAUCONNIER; TURNER, 2002), trabalha-se com a noção Blending: “Conceptual integration, also called “blending,” is a basic mental operation that works on conceptual arrays to produce conceptual integration networks. Certain conceptual arrays provide inputs to the network. Selective projection from the input conceptual arrays and from the relations between them carries elements and relations to a blended conceptual array that often has emergent structure of its own. This blended conceptual array is often referred to as “the blend” / “Integração conceitual, também denominada “blending”, é uma operação mental básica que atua sobre matrizes conceituais para produzir redes de integração conceitual. Algumas matrizes conceituais fornecem material de entrada para a formação de tais redes. Projeções seletivas a partir de redes conceituais e a partir de relações estabelecidas entre elas transportam elementos e relações para uma rede conceitual integrada (blended) que frequentemente possuem estruturas emergentes que lhe são próprias. Esta estrutura conceitual integrada é frequentemente denominada “integração” (“the blend”). (TURNER, 2008, p. 57, grifo do autor, tradução nossa).

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[...] antes de ser para a comunicação, a linguagem é para a elaboração; antes de ser mensagem, a linguagem é construção do pensamento; antes de ser veículo de sentimentos, ideias, emoções, aspirações, a linguagem é um processo criador em que organizamos e informamos as nossas experiências. (FRANCHI, 1992, p. 25).

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Línguas Internas desenvolvidas a partir da capacidade da Linguagem, advêm da capacidade literária da mente, vale ressaltar o aspecto relacional que a sustenta e se manifesta nas construções literárias: diferentes histórias básicas são organizadas em uma rede, partilhando uma estrutura. Em literatura, parábola pode significar uma narrativa alegórica que transmite uma mensagem, indireta, por meio de comparação ou analogia. A ideia é, pois, de relação entre duas histórias que se projetam de forma interseccional. Walter Benjamin, em seus estudos sobre alegoria, ressalta o aspecto etimológico do termo – dizer o outro – e, distinguindo-a do símbolo, mostra como no ato de contar uma história na outra, instaura-se a dualidade no seio da ideia de verdade. Diz Benjamin (1984, p. 198): “Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. [...]. O falso brilho da totalidade se extingue”. E ressalta: “a ambiguidade, a multiplicidade de sentidos é o traço fundamental da alegoria”. A proposta, de Benjamin, de história constelar, como uma rede de fragmentos em que o sentido se constrói por meio do curto-circuito, reitera a ideia de movimento e de fulguração. Como salienta Olgária Matos (apud CHAUÍ, 1993), ao contrário de Descartes, Benjamin ocupa-se com a pluralidade de entradas do labirinto e não com o fio de Teseu ou de Ariadne. Não é sem razão que, ao discorrer sobre o que chama o salto dialético, Benjamin utiliza a imagem do salto do tigre como metáfora da construção do conhecimento por meio da experiência. Não o lugar de onde sai ou chega o animal, mas o arco de sua movimentação, ou seja, uma parábola, agora no sentido matemático. Vale então trazer à cena esse outro conceito de parábola: o lugar geométrico dos pontos equidistantes a uma reta e um ponto fixo. É interessante observar que, quando a parábola é rotacionada em torno do eixo de simetria, forma um sólido chamado paraboloide, que nos fornece várias figuras planas dependendo do ângulo de observação. Tratase, pois, de movimento recursivo, visto como aquele “cujos estados ou efeitos finais produzem os estados iniciais ou as causas iniciais” (MORIN, 2003, p. 227). O circuito decorrente de tais movimentos na produção do Tais estudos são ainda um desafio para mim, a ser vencido sempre em diálogo com o colega linguista Milton do Nascimento, a quem agradeço a grande contribuição. Agradeço ainda a Graça Paulino a interlocução crítica de hoje e de ontem.

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conhecimento é sempre marcado pela subjetividade de alguém que “fala” e alguém que “ouve” de algum lugar, em direções plurais. Reconhecendo que a subjetividade integra a construção do conhecimento mesmo no domínio das chamadas ciências duras, Edgar Morin (1996) valoriza na literatura justamente sua capacidade de reconhecer o papel do indivíduo na construção do texto, lidando com a natureza multidimensional do homem. Por isso mesmo, em livro mais recente, Morin (2013), discutindo as várias crises por que passa o mundo – do desenvolvimento, da ocidentalização, da mundialização – assinala que tal multicrise seria também cognitiva. Postula, então, que, na busca de uma nova via nessa sociedade-mundo, a ideia de metamorfose pode substituir a de evolução. Aí se instala o jogo identidade/alteridade e a capacidade criadora do ser humano. Ao lado disso, ao discutir o papel da internet no mundo contemporâneo, Morin compara o sistema planetário em que a internet se transformou a “um gigantesco sistema neurocerebral semiartificial que combina máquinas e seres humanos” (MORIN, 2013, p. 208), e afirma:

Na introdução ao livro Novos paradigmas, cultura e subjetividade, organizado por ela, Dora Fried Schnitman (1996, p. 11, grifo nosso) destaca que, enquanto sistema aberto, “a ciência, os processos culturais e a subjetividade humana estão socialmente construídos, recursivamente interconectados”. Mostrando então como as práticas discursivas e os processos comunicacionais são fatores constituintes das indagações científicas, afirma: Durante muito tempo, o discurso científico adotou como seu ideal a aparente univocidade: uma palavra, um significado. Próxima a este objetivo está a crença de que a linguagem existe ou pode ser considerada como puramente instrumental, clara e não ambígua; que pode comunicar ao mundo o que quem fala ou escreve tenta dizer. [...]

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O todo constitui uma rede em permanente expansão que cada elemento transforma e enriquece; constituído de inumeráveis circuitos recursivos, ao se enriquecer e se transformar, esse sistema se autorreproduz. (MORIN, 2013, p. 208).

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Essa crença foi questionada. Existe hoje um corpo de trabalhos que exploram como a comunicação, as metáforas, os padrões narrativos, as estruturas retóricas, a sintaxe, os campos semânticos afetam o discurso científico e o pensamento. (SCHNITMAN, 1995, p. 11-12).

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Na verdade, a linguagem nunca foi puramente instrumental porque ela, conforme já se afirmou, “está na natureza do homem, que não a fabricou” (BENVENISTE, 1995, p. 285). É a linguagem que “ensina a definição do homem”. Por isso mesmo, “é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito” (BENVENISTE, 1995, p. 286). A realidade “não é natural, nem autoevidente, mas construída”, logo “pode ser desconstruída, interrogada, questionada”, como quer Schnitman (1995, p. 14). Por isso, hoje, a ciência interroga-se a si mesma, como o próprio homem se interroga sobre sua constituição como sujeito de linguagem. Depois de se conscientizar desse processo, não se pode mais pensar o conhecimento da mesma forma. Por isso mesmo Morin aponta para a importância da desordem, do caos, na construção do conhecimento e afirma:

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Nosso universo é, pois, o fruto do que chamarei uma dialógica de ordem e desordem. Dialógica no sentido de que se tratam de duas noções totalmente heterogêneas – que se rechaçam mutuamente – e que dá um lugar irredutível ao que parecia obscuro para os deterministas: “Como desordem? A desordem não existe, é uma ilusão!” Pois bem, a desordem não só existe como de fato desempenha um papel produtor no universo. E esse é o fenômeno mais surpreendente. É essa dialógica de ordem e desordem que produz todas as organizações existentes no Universo. (MORIN, 1996, p. 277, grifo do autor).

Reconhecemos, pois, com Dora Schnitman (1996, p. 16), que, na trama plural e descontínua da cultura contemporânea, em que “se sobrepõem linguagens, tempos e projetos”, aviva-se “a necessidade de diálogo” como uma das “dimensões operativas da construção das realidades em que vivemos”. A autora propõe uma redefinição de arte e do papel do artista na sociedade que se daria no que ela chama de “metadesenho de contextos que integra ciência e arte, por meio de redes interdisciplinares, o uso de tecnologias de simulação (vídeo, computação), e a conversação

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Para o gênero romanesco, não é a imagem do homem em si que é característica, mas justamente a imagem de sua linguagem. Mas para que esta linguagem se torne precisamente uma imagem de

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(redes de telecomunicações), incorporando assim a estética à participação social” (SCHNITMAN, 1996, p. 15). Não é sem razão que os processos pelos quais a mente constrói metáforas em seu movimento parabólico podem ser vistos como um denominador comum, não só da leitura como do próprio processo cultural e, mais ainda, do processo de construção de conhecimento. A partir de tal concepção, a linguagem figurada é uma capacidade da mente humana e não como propõe Charles Bally (1951) uma manifestação advinda de “uma enfermidade do espírito humano”, um fruto de sua limitação, o que se pode ver é justamente o contrário; a metaforização é a base da mente humana e, por isso, por meio dela, vence-se mais que a carência básica que constituiria o homem, seu excentramento, sua infinitude, como quer Iser (1996). Nos elementos apontados até aqui, articulam-se os termos subjetividade, processo recursivo e metamorfose, acrescentados do conceito de metáfora, quando, em seu movimento recursivo, aproxima elementos distantes. Tudo isso marca a ideia de rede que supera aquela da força da internet, na medida em que se vê a rede como fruto da capacidade do cérebro humano, da linguagem. Rancière (1995) afirma que o espaço político se arma pela capacidade metaforizante da memória, “o litígio das imagens e das palavras”. Tal litígio possibilitaria a burla do controle que esses circuitos sofrem com a intenção de submetê-los à racionalidade, burlando aquilo que Costa Lima chama o controle do imaginário. No movimento de apropriação da palavra instala-se a questão do outro. Nesse sentido, vale lembrar com Bakhtin que “A palavra autônoma, responsável e eficaz é um índice essencial do homem ético, jurídico e político” (BAKHTIN, 1993, p. 149), daí a ideia de responsividade inerente ao dialogismo que marca a linguagem. Em função disso, poderíamos estender, ousadamente, a concepção de estilística do romance de Bakhtin para uma concepção de estética, pois o autor considera que

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arte literária, deve se tornar discurso das bocas que falam, unir-se à imagem do sujeito que fala. (BAKHTIN,1993, p. 137).

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Ora, se a polifonia do romance resulta da capacidade humana pela qual o falante encena-se no exercício da linguagem, ele encenaria sempre o lugar da alteridade no jogo social. Nesse sentido, o conceito de arte romanesca do autor russo aproximar-se-ia daquele postulado por Rancière sobre o que chama a partilha do sensível, já que o homem seria “um animal político porque é um animal literário, que se deixa desviar de sua destinação ‘natural’ pelo poder das palavras” (RANCIÈRE, 2009a, p. 59-60, grifo do autor). Se Costa Lima (2013, p. 399) postula que “o que exige ser pensado nunca se libera da subjetividade humana”, que o narrar é uma forma de existir e resistir,5 e, com Iser (2002) sustenta que o “como se” da literatura alarga o campo do cognoscível, ele reconheceria que a mente humana é formuladora do como se, base de construção de todo conhecimento e da própria mente (Cf. TURNER, 2014).6 Isso não significaria o risco do panficcionalismo, mas o reconhecimento do papel da aventura ficcional e, consequentemente, da teoria que lhe diz respeito, no compartilhamento de reflexões com outros campos de conhecimento. Ou mais do que isso, pois na lógica da teoria da complexidade, e da mente humana concebida como um “órgão”, que engloba o “órgão da linguagem”, faz parte da dinâmica da auto-organização da atividade humana construir padrões de ordens a partir da desordem, do caos, da entropia, do igual; da dinâmica entre forças centrípetas e forças centrífugas (Cf. NASCIMENTO, 2011). À luz de tais concepções podemos repensar o lugar da teoria em nosso país, já que o movimento de sua construção não seria só centrípeto a marcar centros e hierarquias, mas centrífugo em sua dispersão contaminadora. Assim, se alteraria também o lugar do intelectual periférico,7 aliás não 5

Ver epígrafe de Guimarães Rosa: “Narrar é resistir” (apud LIMA, 2013, p. 5).

6

“The claim of this book is that the human spark comes from our advanced ability to blend ideas to make new ideas. Blending is the origin of ideas. [...] Blending, I claim, is the big lever of the cognitively modern human mind” / “A ideia defendida nesse livro é que a centelha humana advém da nossa capacidade avançada de integrar ideias para produzir novas ideias. A integração conceitual (blending) está na origem das ideias. […] Defendemos que a Integração Conceitual é a grande alavanca da mente humana cognitivamente moderna”. (TURNER, 2014, p. 2, tradução nossa).

7

Modifica-se também o lugar ocupado pelos estudiosos das ciências humanas em sua relação com as chamadas ciências duras, tomadas, muitas vezes, como hierarquicamente superiores.

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só dele, mas de seus congêneres dados como detentores da produção do conhecimento. Basta ver como teóricos franceses, tais quais os brasileiros, estão preocupados em educar para a teoria ou para a fruição do texto. A teoria vem sempre associada à escola, aos métodos de leitura, à educação para a capacidade reflexiva. Não haveria também nessa atitude a ideia de missão e com ela a ideia do controle do imaginário? Daí, talvez, outros autores, na busca dessas respostas, se interrogarem sobre a arte e a estética como Spivak (2012) e Didi-Hubermann (2011). A primeira, autora de Pode o subalterno falar (2010), retomando a ideia de educação estética do homem preconizada por Schiller, no livro An Aesthetic Education in the Era of Globalization (SPIVAK, 2012), busca afastar-se, de certa forma, do postulado de que a estética, como conjunção do impulso sensível, do impulso formal e do impulso lúdico, estaria a serviço da ética, por meio da educação. Antes de passar a palavra a Spivak, vale lembrar que, para Schiller, “não existe maneira de fazer racional o homem sensível sem torná-lo antes estético” (SCHILLER, 2002, p. 113). Spivak toma então o conceito de estética como uma herança do iluminismo europeu (enlightenment), cuidando de afastá-lo da política e da ética, marcadas pelas generalizações redutoras, que levariam ao hábito. É então que cria o termo ab-uso com a finalidade de explorar o conceito de iluminismo de baixo para cima, transformando-o em um termo de duplo escopo. O termo ab-uso, grafado com um hífen, traz o movimento da ruptura, não com a ideia de negação ou de oposição, mas daquilo que, considerando o ponto de origem, o desloca e o impulsiona para frente, para fora. Postula, pois, que a estética, em um movimento de curtos-circuitos, seja o espaço do rompimento do uso automatizado, do hábito criado pela educação em seu sentido tradicional. Propõe então uma política do erro em lugar da economia do acerto que rege a escrita europeia ocidental. Nesse sentido, a leitura se faria espaço de “mis-take”, uma “destomada”, um deslocamento. Ora, nesse contexto, volta a questão do outro, em especial daquele excluído da ordem político-social estabelecida, por meio da consideração da cooperação “dos subalternos do mundo, nos lugares de onde eles falam sem serem ouvidos” (SPIVAK, 2012, p. 27). É dessa ideia de curtos-circuitos, já criada por Benjamin, que fala Didi-Huberman (2011, p. 150), com sua metáfora dos vaga-lumes, relativa à “sobrevivência dos signos ou das imagens, quando a sobrevivência dos próprios protagonistas se encontra comprometida”.

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É então que ele se interroga, não apenas sobre a construção do conhecimento em suas relações com os movimentos de poder, mas principalmente sobre o nosso lugar nessa rede:

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Devemos, portanto – em recuo do reino e da glória, na brecha aberta entre o passado e o futuro –, nos tornar vaga-lumes e, dessa forma, formar novamente uma comunidade do desejo, uma comunidade de lampejos emitidos, de danças, apesar de tudo, de pensamentos a transmitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o não da luz que nos ofusca. (DIDIHUBERMAN, 2011, p. 154-155, grifo do autor).

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Nesses movimentos reflexivos, busca-se justamente a tensão entre a semelhança e a diferença, mas o que se observa é a dificuldade de se lidar com tal tensão. Continua a preconização, a ideia de transmissão, e, de certa forma, de hierarquização. A rima em -ão, tão típica da língua portuguesa, significará aqui justamente o sentido de eco, de repetição do som a ecoar no vento. Pode-se pensar na repetição infinita de modelos ou na dispersão que os desloca, o que de resto implica uma escolha política. A teoria não se desvincula da experiência, nem daquela da produção e recepção do texto dado como literário, nem daquela que nos afeta no dia a dia na relação com o outro. Por isso mesmo é preciso pensar, na trilha do que propõe Eagleton (2003) em sua análise de teoria cultural e seu objetivo político e ético, no lugar do outro, do excluído, do periférico. E é nesse lugar que se instala o próprio pensador latino-americano e brasileiro, que é, ao mesmo tempo, o eu que fala e o outro de quem se fala. Sujeito e objeto da teoria experienciada, partilhada, não apenas com os escritores e críticos consagrados, mas com todos os que tomam a palavra em um exercício criativo e/ou crítico. Pensemos, então, na teoria não de forma evolutiva e linear, mas como linha quebrada, cujos fragmentos provocam curtos-circuitos de sentidos (cf. BENJAMIN, 1987, p. 230), que desalojem verdades e histórias.

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Da teoria como resposta: a modernidade crítica e o (ter) lugar da teoria literária Nabil Araújo

9.1 O ter lugar da teoria literária (como resposta) Perguntar-se pelo lugar ocupado pela teoria literária implica, é certo, concebê-la como algo que tem um lugar, mesmo (ou sobretudo) quando é justamente essa posse que parece ameaçada, fazendo-se necessário, então, (re)definir, (re)afirmar o referido lugar, no sentido de defendê-lo. Antes, contudo, de ter um lugar a ser definido/defendido, a teoria literária é aquilo que tem lugar, de modo que qualquer pretensa defesa do “lugar da teoria literária” deveria se ater, prioritariamente, ao ter lugar da teoria literária. Essas considerações me ocorrem com vistas à mais célebre definição já feita da teoria literária e de seu lugar, ao destino dessa definição na instauração da disciplina entre nós, em nossos cursos de Letras. Eis como os autores da paradigmática Theory of literature (1949) definem a disciplina que buscavam, então, sistematizar: A crítica literária e a história literária tentam, ambas, caracterizar a individualidade de uma obra, de um autor, de um período ou de uma literatura nacional. Mas essa caracterização pode ser realizada

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somente em termos universais, com base numa teoria literária. A teoria literária, um órganon de métodos, é a grande necessidade do estudo literário hoje. (WELLEK; WARREN, 1984, p. 19).1

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Dir-se-ia que essa necessidade a que se referem Wellek e Warren (e que eles presumiam suprir com seu manual) era de fato sentida como tal por uma parcela significativa da comunidade acadêmica ao redor do globo, dados a difusão e o prestígio ímpares alcançados no campo literário internacional pela Theory – que, em fins dos anos 1960, já contava com edições em espanhol, japonês, italiano, alemão, coreano, português europeu, dinamarquês, servo-croata, grego, sueco, hebreu, romeno, finlandês e gujaráti, às quais se acrescentariam, na década seguinte, edições em francês, norueguês, polonês, húngaro, holandês, árabe, hindi, russo e chinês. No Brasil, onde o livro só ganhará uma edição própria em 2003, sua difusão, ainda nos anos 1950, se daria por obra de um ex-aluno de Wellek, Afrânio Coutinho, a quem coube, nas palavras de Rocha (2011, p. 207), “a renovação do conceito de teoria da literatura, com base na sistematização pioneira, no nível internacional, propiciada pelo manual de René Wellek e Austin Warren, Theory of literature, publicado em 1949”. Coutinho, que se referia à obra de Wellek e Warren como “a bíblia ou o Novum Organum da nova crítica” (COUTINHO, 1957, p. 95), “destinada a produzir verdadeira revolução nos estudos crítico-literários entre nós” (COUTINHO, 1957, p. 19), relata ter elaborado, nos anos 1950, o projeto de criação da disciplina Teoria da Literatura que foi “imediatamente posto em execução, com a disciplina incluída em todos os cursos de Letras” (COUTINHO, 1976, p. 1); não estranha que a concepção metodológica de teoria literária vigente no referido projeto – “metodologia da pesquisa literária”, “métodos da crítica e da história literária”, “metodologia do trabalho intelectual aplicado aos estudos literários” (COUTINHO, 1976, p. 2-3) – pareça diretamente decalcada da Theory de Wellek e Warren. Não estranha, igualmente, que Luiz Costa Lima, insurgindo-se, nos anos 1970, contra essa mesma concepção de teoria literária, viesse a atacar justamente o manual de Wellek e Warren. “Tal como os autores a concebem, a teoria da literatura tem o caráter de suma dos estudos literários. Qual a especificidade, 1

Esta e as demais traduções de trechos em língua estrangeira citados neste texto são de minha autoria.

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pois, da teoria? É a sistematizadora dos métodos, o ‘órganon dos métodos’, como os próprios autores escrevem”, observa, com efeito, Costa Lima (1975, p. 22), no prefácio à primeira edição de Teoria da literatura em suas fontes, e retruca: A teoria não se pode confundir com a metodologia porque aquela não pode ser o instrumento aparentemente neutro, apenas descritivo, oriundo da exclusão das prenoções que atrapalhariam a apreensão do objeto, como uma metodologia, em seu estado puro, pretende ser. (LIMA, 1975).

Ao que tudo indica, entretanto, o inquestionável êxito editorial e acadêmico da Theory se deveu ao fato de ela ter conseguido se impor como uma resposta satisfatória a determinada demanda ou questão no coração dos estudos literários. O ter lugar da teoria literária como resposta – algo simplesmente ignorado pelo mero endosso (Coutinho) ou pela mera refutação (Costa Lima) da definição de teoria literária veiculada pela Theory –, eis o que se poderia traduzir aqui nos termos da célebre lógica gadameriana da pergunta e da resposta.

“Die Logik von Frage und Antwort” [A lógica da pergunta e da resposta] é o nome da última seção da segunda parte de Wahrheit und Methode [Verdade e método] (1960), na qual Hans-Georg Gadamer, comentando criticamente e extrapolando a ideia de uma “logic of question and answer” desenvolvida por R. G. Collingwood, procura mostrar, em suma, que “a lógica das ciências do espírito [Geisteswissenschaften] é uma lógica da pergunta [eine Logik der Frage]” (GADAMER, 1999, p. 375). Gadamer observa que um procedimento habitual no sistema universitário inglês da época de Collingwood, a discussão de “statements”, isto é, de declarações descontextualizadas tomadas em seu conteúdo lógico intrínseco, “obviamente ignora a historicidade contida em toda compreensão” (GADAMER, 1999, p. 376), e lembra a argumentação de Collingwood nesse sentido: “na verdade, só se pode compreender um texto quando se compreendeu a pergunta para a qual ele é a resposta” (COLLINGWOOD apud GADAMER, 1999, p. 376). Mas a desejada

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“reconstrução da pergunta para a qual um determinado texto é uma resposta”, alerta Gadamer, não pode ser tomada “como mera realização da metodologia histórica” (GADAMER, 1999, p. 379). A pergunta “só pode ser obtida a partir do texto” (GADAMER, 1999, p. 376), o que implica um trabalho de interpretação ativa por parte do leitor, que não poderia, nunca, limitar-se a simples reconstituidor de perguntas: ultrapassar a “mera reconstrução” [die bloße Rekonstruktion] impõese, dessa forma, como uma “necessidade hermenêutica” (GADAMER, 1999, p. 380). Os conceitos de um passado histórico assim resgatados conteriam, na verdade, nossa própria compreensão dos mesmos (GADAMER, 1999, p. 380), o compreendido e o compreender permanecendo, dessa forma, indissociáveis. Assim, se se pode dizer, com Collingwood, que só compreendemos quando compreendemos a pergunta para a qual algo é resposta, faz-se preciso acrescentar que “a reconstrução da pergunta para a qual o sentido de um texto é compreendido como uma resposta passa para [geht über] o nosso próprio perguntar”, e isso porque “o texto deve ser compreendido como resposta para uma pergunta real [ein wirkliches Fragen]” (GADAMER, 1999, p. 380). Em suma, não basta o leitor querer reconstituir objetivamente a pergunta para a qual o texto de que se ocupa é resposta, mas ele deve fazer dela sua própria pergunta: “Compreender uma pergunta significa perguntá-la” (GADAMER, 1999, p. 381). Mas esse perguntar, é preciso admitir, não se dá naturalmente, sobretudo no caso de um livro como Theory, há tempos convertido em “obra clássica” dos estudos literários – “a classic of criticism”, lê-se, com efeito, na quarta capa da última edição americana, “um estudo clássico”, lêse na orelha da edição brasileira de 2003 –, tendo sua imagem cristalizada pela memória acadêmica em torno de uma problemática crítica para cuja fixação definitiva teria concorrido: nas palavras de Culler (1988, p. 12, grifo do autor), Theory [...] lançou mão de amplo conhecimento da história da crítica e de obras estrangeiras sobre teoria literária na construção de uma distinção central entre ‘a abordagem extrínseca do estudo da literatura’ (biográfica, histórica, sociológica, psicológica) e o ‘estudo intrínseco da literatura’, interessado pela estrutura do artefato verbal.

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A classicidade, por assim dizer, da Theory, estaria associada, pois, em síntese, à fixação do problema epistemológico em torno da oposição “intrínseco vs. extrínseco” em crítica literária. “O conceito de problema evidentemente formula uma abstração”, alerta, a propósito, Gadamer (1999, p. 381-382), “a saber, a separação [Ablösung] entre o conteúdo da pergunta e a pergunta que em primeiro lugar o manifesta [der ihn allererst aufschließenden Frage]”; e ainda: “Um tal ‘problema’ caiu para fora [ist herausgefallen] do contexto motivado da pergunta, do qual ele recebe a clareza [Eindeutigkeit] de seu sentido” (GADAMER, 1999, p. 382, grifo do autor). Seria preciso, pois, recontextualizar o problema associado à imagem corrente da Theory, reinserindo-lhe, por meio, dir-se-ia, de uma contraleitura, no horizonte-depergunta no qual ele se instaura como verdadeira questão. Para falar, ainda, com Gadamer: “A reflexão sobre a experiência hermenêutica reconverte [verwandelt zurück] os problemas em perguntas que se erigem e obtêm seu sentido de sua motivação” (GADAMER, 1999, p. 382-383).

Eis o grande problema a ser solucionado pela Theory tal como formulado logo no início do livro por Wellek e Warren (1984, p. 16): “O problema é o de como, intelectualmente, lidar com a arte, e com a arte literária especificamente. Isso pode ser feito? E como isso pode ser feito”? Ele avulta, bem entendido, em vista de certo imperativo enunciado de antemão pelos autores: o da cientificidade ou racionalidade do estudo da literatura. Sim, pois se atividade literária em si mesma “é criadora, uma arte”, ponderam os autores, o estudo literário, por sua vez, “se não precisamente uma ciência, é uma espécie de conhecimento ou de saber” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 15); o estudante “deve traduzir sua experiência de literatura em termos intelectuais, assimilá-la a um esquema coerente que deve ser racional para ser conhecimento” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 15). Parece certo que esse imperativo de racionalidade e o problema de como, afinal, satisfazê-lo eram mesmo sentidos como tais, mais ou menos por toda parte, à época do surgimento da Theory, impondo-se, na verdade, ainda hoje, ao discurso sobre a literatura, cuja legitimação acadêmica e social depende de sua capacidade de efetivamente apresentar-se, segundo

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9.2 Teorizando com “argumentos kantianos”...

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os padrões vigentes, como um discurso de conhecimento. Mas desde quando e por que, afinal, a demanda por racionalidade no estudo literário impõe-se como um imperativo, acarretando o problema de “como lidar intelectualmente com a arte literária”? A julgar pelo modo como Wellek e Warren enunciam as coisas no nível propedêutico da Theory, responder-seia que isso se dá desde sempre e naturalmente. É, antes, no nível da própria resposta que buscam oferecer ao “problema” formulado de início que se deixa entrever o contexto motivado à luz do qual o mesmo reconverte-se em pergunta viva, restituída de sua historicidade. A esse respeito, as coisas avançam, na Theory, no seguinte sentido:

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a) “Como contemplamos uma base racional para o estudo da literatura, devemos concluir a possibilidade de um estudo sistemático e integrado da literatura” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 38); b) “O ponto de partida natural e sensato para o trabalho em investigação literária [literary scholarship] é a interpretação e a análise das obras de literatura elas mesmas [the works of literature themselves]” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 139).

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Mas o que é, afinal, uma obra de literatura “ela mesma”? O décimo segundo capítulo da Theory, intitulado “The mode of existence of a literary work of art” [O modo de existência de uma obra de arte literária], dedica-se, justamente, a responder esta “extremamente difícil questão epistemológica”: a “do ‘modo de existência’ ou ‘situação ontológica’ de uma obra de arte literária”, sendo que uma resposta correta nesse sentido, ponderam os autores, “deve solucionar muitos problemas críticos e abrir um caminho para a análise apropriada de uma obra de literatura” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 142). Passando em revista certas “respostas tradicionais” à “pergunta do que é e onde está o poema, ou, antes, a obra de arte literária em geral” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 142), os autores concluem não ser possível encontrar uma resposta satisfatória à questão em termos de psicologia individual e coletiva, sentenciando não ser o “poema”, isto é, a obra de arte literária, “uma experiência individual ou uma soma de experiências, mas apenas uma causa potencial de experiências” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 150); e ainda: “o verdadeiro poema deve ser concebido como uma estrutura de normas [a structure of norms], realizada apenas parcialmente

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na experiência efetiva de seus muitos leitores” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 150,). Por “normas” não se deve, entender, aí, alertam os autores, “[normas] clássicas ou românticas, éticas ou políticas”, e sim “normas implícitas que têm que ser extraídas de cada experiência individual de uma obra de arte e que, juntas, constituem a obra de arte genuína como um todo” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 150-151). Afirmar que as normas em questão têm que ser extraídas [extracted] de uma experiência individual não implicaria, bem entendido, tomá-las como um produto dessa experiência individual. Os autores admitem ser impossível conhecermos um objeto em todas as suas qualidades, o que não nos permitiria, contudo, simplesmente negar a identidade dos objetos; pelo contrário, dizem, “sempre apreendemos alguma ‘estrutura de determinação’ no objeto que faz do ato de cognição não um ato de invenção arbitrária ou distinção subjetiva, mas o reconhecimento de algumas normas impostas a nós pela realidade” – e também “a estrutura de uma obra de arte tem o caráter de um ‘dever que tenho que realizar’” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 152, grifo do autor). Mais à frente:

Com base nesses “argumentos kantianos” [Kantian arguments], os autores concluirão que a obra de arte “é acessível apenas através da experiência individual, mas não é idêntica a nenhuma experiência” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 154), surgindo, assim, “como um objeto de conhecimento sui generis, que tem um status ontológico especial” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 156). Mas o ato cognitivo pelo qual esse objeto sui generis torna-se conhecido – isto é, na perspectiva aí professada, pelo qual a estrutura de normas implícitas que constituem a obra de arte literária como um todo é acessada no âmbito de uma experiência estética individual –, também ele é especial, posto que caracterizado por uma necessária e incontornável dimensão axiológica ou valorativa, o

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Reconhecemos uma estrutura de normas dentro da realidade e não simplesmente inventamos constructos verbais. A objeção de que temos acesso a essas normas apenas através de atos individuais de cognição, e de que não podemos ir para fora ou além desses atos, é apenas aparentemente impressionante. Essa é a objeção que foi feita à crítica de Kant à nossa cognição, e pode ser refutada com os argumentos kantianos. (WELLEK; WARREN, 1984, p. 154).

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que traz à tona a questão dos valores artísticos: “não há estrutura fora de normas e valores”, explicam, com efeito, Wellek e Warren (1984, p. 156), e sentenciam: “Não podemos compreender e analisar nenhuma obra de arte sem referência a valores. O próprio fato de que reconheço certa estrutura como ‘obra de arte’ implica um juízo de valor” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 156, grifo dos autores). Isso nos remete diretamente ao penúltimo capítulo da Theory, “Evaluation” [Avaliação], focado no “ato de julgamento” [the act of judgement]: “Por referência a uma norma, pela aplicação de critérios, pela comparação dele com outros objetos e interesses, estimamos a categoria [the rank] de um objeto ou interesse” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 238). A grande pergunta a ser aí respondida é a de “como devem os homens valorizar e avaliar a literatura?” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 238). Tudo dependeria do posicionamento adotado diante da dicotomia entre as seguintes visões em estética: (a) aquela “que afirma a existência de uma ‘experiência estética’ separada, irredutível (um domínio autônomo da arte)” e (b) “aquela que faz das artes instrumental para a ciência e a sociedade, que nega um tertium quid como o ‘valor estético’, intermediário entre ‘conhecimento’ e ‘ação’, entre ciência e filosofia de um lado e ética e política do outro” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 239, grifo dos autores). Wellek e Warren não têm dúvida acerca de qual visão endossar, e a grande referência, aí, uma vez mais, é Kant, então tomado como verdadeiro marco histórico para certo estado de coisas vigente em estética:

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A maioria dos filósofos desde Kant e a maioria dos homens seriamente interessados pelas artes concordam que as belas-artes, incluindo a literatura, têm um caráter e um valor únicos. [...] Sobre o caráter da experiência estética única, há grande concordância entre filósofos. Em sua Crítica do juízo [Critique of Judgement], Kant enfatiza a “finalidade sem fim” [purposiveness without purpose] (o fim não direcionado para a ação) da arte, a superioridade estética da beleza “pura” sobre a beleza “aderente” ou aplicada, o desinteresse do experienciador [the desinterestedness of the experiencer] (que não deve querer possuir, consumir, ou, de outra forma, transformar em sensação ou conação o que é destinado à percepção). [...] O objeto estético é aquele que me interessa por suas próprias qualidades, que eu não tento reformar ou transformar numa parte de mim mesmo, apropriar-me dele ou consumi-lo. A experiência estética

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é uma forma de contemplação, uma atenção amorosa a qualidades e estruturas qualitativas. (WELLEK; WARREN, 1984, p. 240-241, grifo dos autores).

Em plena consonância com esse ideário estético está a resposta dada pelos autores à pergunta por eles lançada logo no início do capítulo: “Os homens devem valorizar a literatura por ser o que é; devem avaliá-la nos termos e nos graus de seu valor literário. A natureza, a função e a avaliação da literatura devem necessariamente existir em íntima correlação” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 238, grifo dos autores). Tomando por “forma” [form] a “estrutura estética de uma obra literária – aquilo que faz dela literatura” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 241), Wellek e Warren (1984, p. 242) se indagam se é possível avaliar adequadamente a literatura através de “critérios puramente formalistas” [purely formalistic criteria]. Em vista da confirmação que vêm, então, a oferecer ao longo do capítulo, impõe-se, em síntese, o seguinte esclarecimento:

Tudo se passa, para todos os efeitos, como se os autores se limitassem a parafrasear e a sintetizar, à sua maneira, endossando-os, os “argumentos kantianos” referentes à autonomia do domínio estético, à especificidade do objeto e da experiência estéticos. A Theory se revelaria, então, nesse caso, uma bem-sucedida vulgarização tardia de princípios básicos da Kritik der Urteilskraft [Crítica da faculdade do juízo] (1790) com fins de constituição de uma teoria da literatura como aparato metacrítico. Mas o leitor minimamente familiarizado com a delimitação do juízo estético levada a cabo por Kant na terceira Crítica logo afasta a hipótese de um epigonismo kantiano puro e simples em Wellek e Warren: se a resposta por eles elaborada à questão da fundamentação da crítica literária se apresenta, de fato, e deliberadamente, como uma resposta kantiana, ela

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O que o formalista quer sustentar é que o poema é não apenas uma causa, ou uma causa potencial, da “experiência poética” do leitor, mas um controle específico, altamente organizado da experiência do leitor, de modo que a experiência é mais apropriadamente descrita como uma experiência do poema. A valorização do poema é a experimentação, a percepção de qualidades e relações esteticamente valiosas estruturalmente presentes no poema para qualquer leitor competente. (WELLEK; WARREN, 1984, p. 249, grifo dos autores).

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visivelmente entra em tensão com as considerações do próprio Kant acerca da impossibilidade de fundamentação objetiva da crítica estética. Dir-se-ia, assim, em suma, que a resposta kantiana de Wellek e Warren constitui-se, e antes de tudo, como uma resposta ao próprio Kant, implicando, ao que tudo indica, um jogar Kant contra Kant produtivamente. Se isso permanece em larga medida implícito em Theory, como se ela se limitasse a sistematizar o resultado de um raciocínio cujo andamento desobriga-se de explicitar para o leitor – algo de praxe, aliás, no gênero handbook –, seria preciso buscar, então, junto a outro texto, a explicitação do gesto fundacional aí em jogo.

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9.3 Com Kant, contra Kant

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Numa conferência proferida na Yale University por ocasião dos 150 anos da morte de Kant (1804-1954), e mais tarde, com o título de “Immanuel Kant’s Aesthetics and Criticism” [A estética e a crítica de Immanuel Kant], coligida em livro, Wellek expõe e comenta os “argumentos kantianos” em estética e teoria da crítica cuja onipresença se faz sentir na tessitura da Theory. “Sobre esses dois problemas, estética e teoria da crítica, Kant teve coisas a dizer que parecem relevantes e substancialmente verdadeiras até hoje”, sentencia, com efeito, Wellek (1970, p. 124), logo de partida. A primeira e mais importante delas, posto que se institui, na verdade, como condição de possibilidade para todo o resto, para a própria teoria da literatura nos termos concebidos por Wellek e Warren, diz respeito à independência, ao direito próprio do estético diante das outras esferas às quais ele com frequência é subordinado – e quanto a isso, Wellek não hesita, Kant figura como o marco histórico fundamental: “Kant deve ser considerado o primeiro filósofo que clara e definitivamente estabeleceu a peculiaridade e a autonomia do domínio estético” (WELLEK, 1970, p. 124). Contra os que querem atribuir essa primazia a outros nomes (p. ex. ao de Vico ou ao de Baumgarten), Wellek retruca que: Apenas em Kant encontramos um argumento elaborado de que o domínio estético difere do domínio da moralidade, da utilidade e da ciência porque o estado de espírito estético difere profundamente de nossa percepção do prazeroso, do comovente, do útil, do verdadeiro, do bom. (WELLEK, 1970, p. 124-125).

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E por mais que a ideia da autonomia da arte já tivesse sido de alguma forma preparada por autores como Hutcheson ou Mendelssohn, pondera Wellek (1970, p. 125), “em Kant o argumento foi estabelecido pela primeira vez sistematicamente numa defesa do domínio estético contra todos os lados [sensualismo, emocionalismo, intelectualismo]”. Note-se que o próprio Kant, no prólogo à Kritik der Urteilskraft, procurou contextualizar o empreendimento então levado a cabo em sua terceira Crítica em relação àquilo que fora empreendido nas outras duas – a Kritik der reinen Vernunft [Crítica da razão pura] (1781) e a Kritik der praktischen Vernunft [Crítica da razão prática] (1788) –, oferecendo, com isso, o desenho geral do edifício da filosofia crítica em seus três pilares fundamentais: tendo se ocupado, na primeira Crítica, da “faculdade de conhecimento” [Erkenntnisvermögen], cujos princípios são fornecidos pelo “entendimento” [Verstand] e, na segunda Crítica, da “faculdade de apetição” [Begehrungsvermögen], cujos princípios são fornecidos pela “razão” [Vernunft], ele se volta, na terceira Crítica, ao “sentimento de prazer e desprazer” [Gefühl der Lust und Unlust] ligado à “faculdade do juízo” [Urteilskraft] (KANT, 1974b, p. 73-77). Para Kant, em suma, “todas as faculdades da alma ou capacidades podem ser remetidas a estas três, as quais não se deixam, para além disso, deduzir de um princípio comum: a faculdade de conhecimento, o sentimento de prazer e desprazer e a faculdade de apetição” (KANT, 1974b, p. 85). Que a faculdade do juízo, como o entendimento e a razão, também implica algum tipo de princípio a priori, e que ela fornece, assim, a priori, a regra ao sentimento de prazer e desprazer – como o entendimento e a razão o fazem em relação a, respectivamente, a faculdade de conhecimento e a faculdade de apetição –, é o que Kant procura determinar na Kritik der Urteilskraft, sendo a primeira parte da obra dedicada justamente à “faculdade de juízo estética” [ästhetischen Urteilskraft], na qual se concentra o grosso dos argumentos de que se ocupa Wellek em seu artigo dedicado a Kant. O significado, a amplitude e as consequências do que foi colocado em jogo por Kant com o último volume de sua trilogia filosófica permanecem mal aquilatados, contudo, se nos restringimos, quanto a isso, ao artigo de Wellek. Em vista da tripartição cognitiva que se desenha com o surgimento da terceira Crítica, Jürgen Habermas observa que Kant “substitui o conceito substancial de razão da tradição metafísica pelo conceito de

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uma razão cindida em seus momentos, cuja unidade tem apenas caráter formal”: ele separa, em suma, do (a) “conhecimento teórico” [theoretischer Erkenntnis] a (b) “faculdade da razão prática” [Vermögen der praktischen Vernunft] e a (c) faculdade do juízo [Urteilskraft], assentando-as sobre seus próprios fundamentos (HABERMAS, 1985, p. 29). Vê-se fundada, com isso, respectivamente, a possibilidade (a) do conhecimento objetivo, (b) do discernimento moral e (c) da avaliação estética, delimitando-se, filosoficamente, dessa forma, as esferas culturais de valor [kulturellen Wertsphären] como (a) ciência e técnica, (b) direito e moral, (c) arte e crítica de arte – legitimadas, cada uma das esferas, no interior desses limites (HABERMAS, 1985, p. 30). Lembrando que Hegel vê na filosofia kantiana “a essência do mundo moderno concentrada como num foco [das Wesen der modernen Welt wie in einem Brennpunkt versammelt]”, Habermas afirma que “Kant exprime o mundo moderno num edifício de pensamentos [Gedankengebäude]” (HABERMAS, 1985, p. 30). Habermas já havia se expressado mais objetiva e detalhadamente a esse respeito quando, noutro contexto, observou:

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No conceito kantiano de uma razão formal e diferenciada em si mesma está implicada [ist angelegt] uma teoria da modernidade. Esta é caracterizada, por um lado, pela renúncia à racionalidade substancial das tradicionais interpretações de mundo religiosas e metafísicas e, por outro lado, pela confiança numa racionalidade procedural, à qual nossas concepções justificadas [gerechtfertigten Auffassungen], quer no domínio do conhecimento objetivador [objektivierenden Erkenntinis], do discernimento moral-prático [moralisch-praktischen Einsicht], ou do juízo estético [ästhetischen Beurteilung], requisitam seu direito à validade [ihren Anspruch auf Gültigkeit]. (HABERMAS, 1983, p. 11-12).

Poder-se-ia encarar como consequência dessa modernização cultural/epistemológica epitomada na tripartição das chamadas “esferas de valor” a crescente compartimentalização e especialização dos saberes e procedimentos que Max Weber associará ao “racionalismo ocidental”; como observa Habermas:

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Max Weber viu o racionalismo ocidental caracterizado, entre outras coisas, pelo fato de formarem-se na Europa culturas de especialistas

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[Expertenkulturen] que lidam com a tradição cultural numa atitude reflexiva e, nisso, isolam uns dos outros os elementos rigorosamente cognitivos, os estético-expressivos e os moral-práticos. Especializamse, respectivamente, em questões de verdade [Wahrheitsfragen], questões de gosto [Geschmacksfragen] e questões de justiça [Fragen der Gerechtigkeit]. (HABERMAS, 1983, p. 117).

Ora, não é outro senão esse horizonte da modernidade tripartida kantiana, no qual se delimita um domínio especificamente estético, especializado em questões de gosto, aquele no qual tem lugar uma obra como Theory, em seu esforço declarado de instituir os parâmetros para “um estudo que poderia ser chamado centralmente literário ou ‘ergocêntrico’” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 74, grifo dos autores). “Quaisquer que sejam as dificuldades da solução de Kant, ele pôs o dedo na questão central da estética”, sentencia, com efeito, Wellek, na conferência de Yale, prosseguindo:

Mas o que dizer, afinal, dos princípios, das diretrizes, dos procedimentos ou métodos específicos dessa pretensa “ciência” estéticoliterária com que sonha Wellek a partir de Kant, daquilo, em suma, que conferiria a ela uma legalidade própria como forma de conhecimento racional entre outras? Quanto a isso as coisas parecem se complicar consideravelmente, tudo se passando como se Kant se comprazesse em tirar com uma mão o que oferecera com a outra, algo que se deixa apreender claramente no modo como Gadamer reporta, por sua vez, a disruptura kantiana e a reconfiguração (modernização) cognitiva por ela implicada: Se nos voltamos, agora, para o papel que a Kritik der Urteilskraft de Kant desempenha no âmbito da história das ciências do espírito, teremos de dizer que sua fundação transcendental-filosófica [transzendental-philosophische Grundlegung] da estética foi plena de consequências para ambos os lados e instituiu um ponto de

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Nenhuma ciência é possível que não tenha seu objeto distinto. Se a arte é simplesmente prazer, ou comunicação de emoção ou experiência, ou ensinamento moral, ou raciocínio inferior, ela cessa de ser arte e torna-se um substituto para outra coisa. (WELLEK, 1970, p. 125).

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mutação [Einschnitt]. Ela representa a derrocada [Abbruch] de uma tradição, mas também a inauguração [Einleitung] de um novo desenvolvimento. Ela restringiu [hat eingeschränkt] o conceito de gosto ao campo no qual ele, como um princípio próprio da faculdade do juízo, poderia reivindicar validade autônoma e independente – e restringiu [einengte], por outro lado, com isso, o conceito de conhecimento ao uso teórico e prático da razão. (GADAMER, 1999, p. 46).

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Confirma-se, pois, em Gadamer, a visão, também professada por Wellek, da terceira Crítica como verdadeiro divisor de águas epocal, mas sem a aparentemente incondicional empolgação wellekiana com as implicações daí advindas – o que parece justificar-se pelo fato de, como enfatiza Gadamer, a disruptura kantiana implicar em si uma dupla restrição [Eingeschränktheit, Einengung]: (a) restrição do conceito de gosto [Geschmack] ao domínio da faculdade do juízo [Urteilskraft], a fim de conferir-lhe independência e autonomia; e, a um só tempo, (b) restrição do conceito de conhecimento [Erkenntnis] ao domínio da razão teórica e da razão prática, isto é, aos domínios contemplados, respectivamente, pela primeira e pela segunda Críticas (depreendendo-se daí a exclusão da possibilidade de conhecimento no domínio contemplado pela terceira Crítica). Na introdução à Kritik der Urteilskraft, Kant (1974b, p. 78) explica haver somente duas espécies de conceitos que permitem “princípios da possibilidade de seus objetos” [Prinzipien der Möglichkeit ihrer Gegenstände], a saber: os conceitos de natureza [die Naturbegriffe] e o de liberdade [der Freiheitsbegriff]. Os primeiros, que contêm a priori “o fundamento para todo conhecimento teórico” [den Grund zu allen theoretischen Erkenntnis], assentam-se na “legislação do entendimento” [der Gesetzgebung des Verstandes]; o segundo, que contém a priori “o fundamento para todas as prescrições práticas sensorialmente incondicionadas” [den Grund zu allen sinnlich-unbedingten praktischen Vorschriften], assenta-se na “legislação da razão” [der Gesetzgebung der Vernunft] (KANT, 1974b, p. 85). Assim, poder-se-ia dizer que tanto o entendimento (e, por extensão, a faculdade de conhecimento por ele regulada a priori) quanto a razão (e, por extensão, a faculdade de apetição por ela regulada a priori) possuem, cada uma, “sua própria legislação segundo o conteúdo [seine eigene Gesetzgebung dem

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[...] a faculdade de juízo reflexiva deve subsumir sob uma lei que ainda não está dada e, por isso, é, de fato, apenas um princípio de reflexão sobre objetos, para os quais objetivamente nos falta por completo uma lei ou um conceito de objeto que fosse suficiente

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Inhalte nach], sobre a qual nenhuma outra (a priori) existe” – justificandose, assim, a divisão da filosofia em “teórica” (escopo da primeira Crítica) e em “prática” (escopo da segunda Crítica). Mas e a faculdade do juízo, de que trata a terceira Crítica? Ela é tomada por Kant (1974b, p. 85) como um “termo médio” [Mittelglied] entre o entendimento e a razão: “entre a faculdade de conhecimento e a de apetição está o sentimento de prazer, assim como entre o entendimento e a razão está contida a faculdade do juízo”, afirma, com efeito, Kant, sendo de se supor, com isso, que a faculdade do juízo contenha, também ela, por si mesma, algum princípio a priori (KANT, 1974b, p. 86-87) – e especifica: “ainda que não uma legislação própria, no entanto um princípio próprio para procurar leis” (KANT, 1974b, p. 85). “A faculdade do juízo em geral [Urteilskraft überhaupt] é a faculdade de pensar o particular como contido no universal [das Besondere als enthalten unter dem Allgemeinen]”, explica Kant (1974b, p. 87), estabelecendo, quanto a isso, uma distinção de suma importância para a problemática da crítica estética: se o universal em questão (a regra, o princípio, a lei) for dado, então a faculdade do juízo que subsume nele o particular é determinante [bestimmend]; mas se, ao contrário, só o particular for dado, devendo o universal, nesse caso, ser encontrado, então a faculdade do juízo é reflexiva [reflektierend] (KANT, 1974b, p. 87). A faculdade de juízo determinante opera “sob leis transcendentais universais que o entendimento dá”, o que faz dela uma faculdade estritamente “subsuntiva” [subsumierend]: “a lei lhe é estabelecida [vorgezeichnet] a priori, e, por isso, não tem necessidade de pensar uma lei para si mesma de modo a poder subsumir [unterordnen] o particular na natureza ao universal” (KANT, 1974b, p. 88). A faculdade de juízo reflexiva, em compensação, “tem a obrigação de elevar-se [aufzusteigen] do particular na natureza ao universal”, necessitando, assim, de um princípio que, não podendo tomar da experiência, cabe tão somente a ela própria fornecê-lo a si mesma como lei, e não buscá-lo em outro lugar, “caso contrário, seria ela faculdade de juízo determinante”, observa Kant (KANT, 1974b, p. 88). Em resumo:

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como princípio para casos que ocorrem. Como, pois, não pode ser permitido nenhum uso das faculdades de conhecimento sem princípios, então a faculdade de juízo reflexiva deverá, em tais casos, servir de princípio a si mesma: princípio o qual, já que não é objetivo e não pode guarnecer [unterlegen] a intenção [Absicht] de nenhum fundamento de conhecimento suficiente do objeto [hinreichenden Erkenntnisgrund des Objekts], deve servir como mero princípio subjetivo [bloß subjektives Prinzip] para o uso apropriado [zweckmäßigen Gebrauche] das faculdades de conhecimento, nomeadamente para refletir sobre uma espécie de objetos. (KANT, 1974b, p. 334-335).

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Esse caráter não objetivo, “meramente subjetivo”, da faculdade de juízo reflexiva é enfatizado por Kant justamente quando ele trata do “juízo de gosto” [Geschmacksurteil], entendendo-se por “gosto” [Geschmack] a “faculdade de julgamento do belo” [das Vermögen der Beurteilung des Schönen] (KANT, 1974b, p. 115). “Para distinguir se algo é ou não belo, referimos a representação [Vorstellung] não, pelo entendimento, ao objeto com fins de conhecimento, mas, pela faculdade de imaginação [Einbildungskraft] [...], ao sujeito e ao sentimento de prazer ou desprazer do mesmo”, explica, com efeito, Kant (1974b, p. 115), concluindo: “O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento [Erkenntnisurteil], não sendo lógico portanto, mas estético, pelo que se entende aquilo cujo fundamento de determinação [Bestimmungsgrund] não pode ser nada senão subjetivo [nicht anders als subjketiv]” (KANT, 1974b, p. 115). E ainda:

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Aqui a representação é referida totalmente ao sujeito e, na verdade, ao sentimento de vida [Lebensgefühl] do mesmo, sob o nome de sentimento de prazer ou desprazer, o qual funda uma inteiramente peculiar faculdade de diferenciação e julgamento [ein ganz besonderes Unterscheindungs- und Beurteilungsvermögen], que em nada contribui para o conhecimento [...] (KANT, 1974b, p. 115-116).

Isso não quer dizer que o juízo de gosto não aspire à universalidade; ao contrário, todo juízo de gosto implica uma “reivindicação de validade universal [Anspruch auf Allgemeingültigkeit]”, a qual pertence, na verdade “tão essencialmente a um juízo pelo qual declaramos algo belo”, explica Kant,

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[...] que sem pensá-la ninguém teria a ideia de usar essa expressão [‘belo’], mas tudo que apraz sem conceito seria contado como agradável [Angenehmen], em relação ao qual deixa-se cada um seguir sua própria cabeça [seinem Kopf für sich haben] e ninguém espera do outro concordância [Einstimmung] com seu juízo de gosto, o que, no entanto, acontece toda vez no juízo de gosto sobre a beleza. (KANT, 1974b, p. 127, grifo do autor).

[...] que no juízo de gosto nada é postulado exceto tal voz universal [allgemeine Stimme] com vistas ao prazer [Wohlgefallen] sem mediação dos conceitos; logo, a possibilidade de um juízo estético que, ao mesmo tempo, possa ser considerado válido para todos. O juízo de gosto ele próprio não postula o acordo de todos (pois isso só o pode um juízo lógico universal, porque pode apresentar razões); ele apenas imputa a todos esse acordo como um caso da regra, em relação ao qual espera a confirmação não de conceitos, mas da adesão de outros. A voz universal é, pois, apenas uma ideia. (KANT, 1974b, p. 130, grifo do autor).

Gadamer reconhece que a fundamentação, por Kant, da estética no juízo de gosto faz justiça a ambos os aspectos do fenômeno: (a) “sua não universalidade empírica” e (b) “sua reivindicação apriorística de

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9 – Da teoria como resposta

A universalidade aí em questão, “que não se baseia em conceitos de objetos”, Kant (1974b, p. 128) enfatiza, “não é, de modo nenhum, lógica, mas estética, isto é, não contém nenhuma quantidade objetiva do juízo [objektive Quantität des Urteils], mas somente uma subjetiva”. E ainda: “de uma validade universal subjetiva [subjektiven Allgemeingültigkeit], isto é, estética, que não se baseia em nenhum conceito, não se pode deduzir a [validade universal] lógica, porque aquela espécie de juízo não remete absolutamente ao objeto” (KANT, 1974b, p. 129). Ressalte-se que a subjetividade da universalidade reivindicada pelo juízo de gosto afigura-se não como um estado a ser superado, mas como um traço, mais do que inerente, necessário: “Quando se julgam objetos simplesmente segundo conceitos, então toda representação da beleza é perdida” – explica, com efeito, Kant –, não podendo haver, pois, “nenhuma regra segundo a qual alguém devesse ser obrigado a reconhecer algo como belo” (KANT, 1974b, p. 130). Trata-se de ver, em suma,

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universalidade”, e retruca: “Mas o preço que ele paga por essa justificação da crítica no campo do gosto consiste em que nega ao gosto qualquer significado cognitivo [Erkenntnisbedeutung]” (GADAMER, 1999, p. 48-49, grifo do autor). O gosto, nessa perspectiva, não passa de um “princípio subjetivo”, lamenta Gadamer, no qual não se reconhece “nada dos objetos que são julgados como belos”, sustentando-se, apenas, que “a eles corresponde a priori um sentimento de prazer no sujeito” (GADAMER, 1999, p. 49). Depreende-se daí nada menos do que a inviabilização de uma filosofia/teoria da arte a partir da Kritik der Urteilskraft. O “modo de existência” [Daseinsart] do objeto apreciado não importa para a essência do julgamento estético, observa, com efeito, Gadamer (1999, p. 50). O que Kant chama “heautonomia” [Heautonomie] do juízo estético, isto é, sua capacidade de legislar para si próprio, “não funda, absolutamente”, prossegue Gadamer (1999, p. 61), “nenhum campo de validade autônoma [autonomen Geltungsbereich] para os belos objetos”. Em suma: “A reflexão transcendental kantiana sobre um a priori da faculdade de juízo justifica a pretensão do julgamento estético, mas, fundamentalmente [im Grunde], não admite uma estética filosófica no sentido de uma filosofia da arte” (GADAMER, 1999, p. 61). O que não dizer, então, de uma “ciência” estéticoliterária, como a almejada por Wellek e Warren? Quando, a propósito da apreensão da obra de arte literária, os autores nos falam, em Theory, de “normas implícitas que têm que ser extraídas de cada experiência individual de uma obra de arte” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 150-151), isso soa, a princípio, como uma concessão à postulação kantiana de uma incontornável subjetividade no coração da experiência estética. Mas apenas a princípio, pois Wellek e Warren enfatizarão o caráter não arbitrário e não subjetivo desse ato de apreensão estética, ao qual não hesitam em chamar, aliás, na contramão de Kant, de “ato de cognição” [act of cognition] (é de conhecimento, portanto, que aí se trata), o qual, por incompleto ou imperfeito que seja, deixaria sempre entrever certa “estrutura de determinação” do objeto estético – “exatamente como em qualquer outro objeto de conhecimento”, acrescentam, a propósito, os autores (WELLEK; WARREN, 1984, p. 152). O curioso é que esse posicionamento se quer amparado pela própria filosofia kantiana: “A objeção de que temos acesso a essas normas apenas através de atos individuais de cognição, e de que não podemos ir para fora ou além desses atos, [...] pode ser refutada com os argumentos kantianos” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 154).

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Ora, se nos atemos à caracterização kantiana do juízo de gosto como um juízo necessariamente reflexivo, nunca determinante, então não há nada a ser refutado quanto ao caráter irremediavelmente subjetivo da apreensão estética. Identificar, pois, em termos estritamente kantianos, como “juízo reflexivo de gosto” o ato de apreensão estética de que nos fala Theory – no qual estariam em jogo certas “normas implícitas” [implicit norms], as quais, não sendo dadas a priori, devem ser “extraídas” [extracted] “de cada experiência individual [from every individual experience] de uma obra de arte” – equivale a despojá-lo, de antemão, de qualquer significado ou valor propriamente cognitivo que ele pudesse vir a ter, inviabilizando, com isso, e definitivamente, a possibilidade mesma de uma teoria da literatura nos termos concebidos por Wellek e Warren, isto é, como fundamento epistemológico/metodológico para a crítica literária. Vale lembrar, quanto a isso, que com o último volume de sua trilogia filosófica Kant deu por terminada sua “inteira tarefa crítica” [mein ganzes kritisches Geschäft], estando apto a passar, então, à sua tarefa propriamente “doutrinal” [doktrinalen], o que seria válido, contudo, apenas para os domínios tratados nas duas primeiras Críticas: entendimento/ conhecimento, razão/apetição, e não para o domínio tratado na terceira Crítica, refratário a qualquer tipo de sistematização doutrinária: “É evidente que não há aí nenhuma parte especial [kein besonderer Teil] para a faculdade do juízo, pois com respeito à mesma a crítica funciona no lugar da teoria [die Kritik statt der Theorie dient]” (KANT, 1974b, p. 77); e ainda: “a faculdade de juízo estética em nada contribui para o conhecimento de seus objetos e, assim, tem que ser considerada apenas pela crítica do sujeito julgador [urteilenden Subjekts] e das faculdades de conhecimento do mesmo [...], crítica a qual é a propedêutica de toda filosofia” (KANT, 1974b, p. 106, grifo do autor). Em outras palavras, o tratamento do juízo estético nunca ultrapassaria o nível meramente crítico-propedêutico de reflexão em direção ao estágio dito “doutrinário”, excluindo-se, com isso, a possibilidade de uma teoria ou filosofia estética propriamente dita. Na conferência de Yale, Wellek retoma explicitamente, e o expõe, à sua maneira, esse posicionamento de Kant, bem como, demarcando sua própria posição em relação ao mesmo, o faz de modo tanto a afastar a hipótese de um epigonismo kantiano puro e simples quanto a atestar e a reafirmar o deliberado kantismo na base da Theory.

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Para além da delimitação que empreendeu do domínio estético – que “se provou o motivo principal da estética moderna, a questão central que, muitas e muitas vezes, dividirá e unirá mentes dos mais diversos gostos e convicções” (WELLEK, 1970, p. 136) –, Kant, observa entusiasticamente Wellek, “declarou com igual clareza e respondeu a questão central concernente a uma teoria da crítica” (WELLEK, 1970, p. 126). Reconhecendo que “julgamentos de gosto, nosso prazer ou tédio, não podem ser nem refutados nem forçados”, rejeitando “qualquer ideia de crítica por princípios a priori”, Kant, explica Wellek, “argumenta elaboradamente ser totalmente verdadeiro que o gosto é subjetivo” (WELLEK, 1970, p. 127). O juízo de gosto kantiano é, pois, subjetivo, “mas há uma objetividade no subjetivo”, acrescenta Wellek: [...] apelamos para um juízo geral, para um senso comum de humanidade, mas isso é alcançado pela experiência interior, não pela aceitação da opinião de outros, ou consultando-os, ou considerando suas opiniões. Não é um apelo aos homens, mas à humanidade, a uma totalidade ideal de juízes. Não posso saber se verdadeiramente atingi, em meu juízo, o sentimento dessa totalidade ideal oculta, mas meu juízo estético é algo que aponta para [is a pointing to] essa unidade mais alta, um chamado a mim mesmo e aos outros para descobri-la. Ele é, assim, hipotético, problemático. (WELLEK, 1970, p. 127).

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A “voz universal” postulada pelo juízo estético não passa de uma “ideia” – dissera, com efeito, Kant. “Mas como, precisamente, pode a crítica proceder?”, indaga-se, então, Wellek, respondendo:

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Para Kant não pode haver nada como uma doutrina ou princípios que possam ser ensinados. A crítica é sempre julgar por exemplos, a partir do concreto. A crítica é, assim, histórica, no sentido de ser individual, enquanto a ciência (e Kant pensa na física) é geral, abstrata, visando a uma doutrina sistemática. O método da crítica é, assim, o método comparativo. A capacidade de escolher com validade universal, outra definição do gosto, não é senão a capacidade de comparar-se com outros; e esse processo é, claro, não apenas uma justaposição com outros, mas uma autocrítica, uma introspecção, um exame dos próprios sentimentos. (WELLEK, 1970, p. 129).

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Eis aí inequivocamente expressa, pois, a consciência wellekiana da incontornável não objetividade/não cientificidade da crítica segundo Kant. E justamente nesse ponto, como era de se esperar, explicita-se a reserva de Wellek em relação ao mestre: “Pessoalmente penso que Kant nos leva longe demais no reino do subjetivo: reconheço, é claro, que isso está de acordo com sua posição geral em teoria do conhecimento” (WELLEK, 1970, p. 129); mais à frente:

Se tanto em Gadamer quanto em Wellek verifica-se, pois, seja uma crítica incisiva ao que em Wahrheit und Methode é chamado de “subjetivação da estética pela crítica kantiana” [Subjektivierung der Ästhetik durch die Kantische Kritik], seja um ímpeto de superação dessa subjetivação, enquanto em Gadamer esse movimento se instaura, contra Kant e seu legado em estética, em nome de uma “recuperação da questão da verdade da arte” [Wiedergewinnung der Frage nach der Wahrheit der Kunst], em Wellek ele revela, antes, um esforço de fundamentação epistemológica/ metodológica da crítica literária com base em certa “sugestão” kantiana que teria permanecido inexplorada na Kritik der Urteilskraft. Se na terceira Crítica, Kant, por um lado, “raramente trata de enfrentar [comes to grips with] o domínio concreto da arte”, observa Wellek (1970, p. 129), por outro lado ele “sugeriu ou antes reavivou um critério muito importante para o julgamento da arte: a analogia do organismo” (WELLEK, 1970, p. 130). A similaridade de uma obra de arte com um organismo foi primeiramente sugerida numa passagem da Poética aristotélica, explica Wellek, mas simplesmente como “um princípio de inteireza, o reconhecimento da implicação das partes no todo, uma totalidade ou unidade”, a analogia figurando aí como “uma variedade do velho insight de que uma obra de arte é uma unidade na diversidade” (WELLEK, 1970, p. 130); já com Kant, confrontamos-nos com uma ideia diferente, a analogia

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9 – Da teoria como resposta

Não estou tão certo de que a solução de Kant ao problema da crítica não padeça de sua ênfase geral no subjetivo e no fenomenológico. Pessoalmente, eu me lançaria mais corajosamente [more boldly] num domínio de estruturas objetivas, no mundo dos objetos de arte existentes. Kant permanece cautelosamente com o fato indubitável do juízo subjetivo e apenas hesitante e provisoriamente apela para algum senso comum final do homem. (WELLEK, 1970, p. 141).

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entre arte e natureza sendo muito mais estreita: “A obra de arte é paralela a um organismo vivo porque a arte e a natureza orgânica devem ambas ser concebidas sob o título do que Kant chama paradoxalmente de ‘finalidade sem fim’ [purposeless purposiveness]” (WELLEK, 1970, p. 130, grifo do autor). Wellek detém-se, aí, no fato de a Kritik der Urteilskraft ser composta de duas partes: à “Crítica da faculdade de juízo estética” [Kritik der ästhetischen Urteilskraft] sucede-se uma “Crítica da faculdade de juízo teleológica” [Kritik der teleologischen Urteilskraft]; a primeira concernente “ao que chamamos estética e arte”, a segunda, “ao que chamamos biologia, ou antes teoria da biologia”, explica Wellek (1970, p. 130), e acrescenta:

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Isso não é, como algumas pessoas pensaram, um estranho esquema escolástico que traz elementos incompatíveis sob um título artificial: é um insight crucial da filosofia de Kant. Arte e natureza orgânica apontam para uma superação final do profundo dualismo que é básico ao sistema de pensamento kantiano. O mundo, de acordo com Kant, é dividido em dois domínios: o da aparência (daí o da necessidade, da causalidade física), acessível aos nossos sentidos e às categorias de nosso entendimento, e o da liberdade moral, acessível apenas em ação. Kant vislumbra na arte uma possibilidade de estabelecer uma ponte [a possibility of bridging] sobre o abismo entre necessidade e liberdade, entre o mundo da natureza determinística e o mundo da ação moral. A arte realiza uma união do geral e do particular, de intuição e pensamento, de imaginação e razão. A natureza orgânica, a vida, faz exatamente o mesmo. Elas, juntas, garantem a existência do que Kant chama o “suprassensível”, pois apenas na arte e na vida, através da “intuição intelectual”, nós temos acesso ao que Kant chama de “arquétipo intelectual”. Para colocar isso em termos mais modernos: arte e vida apontam para algum domínio de valores, ou fins, ou propósitos, discernível na atividade do gênio, em nossa reação à beleza e nas estruturas motivadas [purposeful structures] dos seres vivos. (WELLEK, 1970, p. 130-131, grifo do autor).

Ora, o que aí se enuncia, à primeira vista, como mera paráfrase da suposta tese central da terceira Crítica logo se revela, na verdade, qualquer coisa como a exposição à revelia de algo que Kant teria sugerido sem o dizer explicitamente, precisando, assim, ser derivado, não sem certa violência,

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dos argumentos kantianos. Isso porque, admite Wellek, o próprio Kant “hesita em chegar a essa conclusão: o ‘substrato suprassensível da natureza’, a união do domínio da necessidade e o da liberdade, escapa, insistiria ele, a qualquer conhecimento teórico” (WELLEK, 1970, p. 131, grifo do autor). Nesse ponto Wellek ampara-se na afirmação de Hegel de que seria mesmo característico da filosofia kantiana “ter a consciência da ideia mais alta, mas sempre para erradicá-la novamente” (WELLEK, 1970, p. 131). Wellek já havia insinuado algo como uma hesitação excessiva ou, mesmo, uma covardia da filosofia kantiana em relação ao que ela reserva ao juízo estético; seria preciso, assim, com base no próprio Kant, proceder mais corajosa ou audaciosamente (“more boldly”) do que ele fora capaz. É o que, para todos os efeitos, faz Wellek quando se permite afirmar, em resumo, que Kant “descobre e corretamente enfatiza um critério mais importante de juízo estético: a analogia entre arte e organismo” (WELLEK, 1970, p. 131). A aplicação do termo “finalidade sem fim” [purposeless purposiveness, segundo Wellek, Zweckmäßigkeit ohne Zweck, no original alemão] ao organismo torna-se clara, explica Wellek, se se entende que Kant tem aí em mente não “intenção consciente e meta [aim], mas harmonia das partes, unidade, totalidade, com cada membro tendo sua própria função no sistema”, sendo que: “Essa finalidade [purposiveness, Zweckmäßigkeit], essa unidade, é ao mesmo tempo sem fim [purposeless, ohne Zweck] na percepção de Kant, à medida que é desinteressada, não dirigida a qualquer objetivo [aim] imediato externo” (WELLEK, 1970, p. 131). Wellek faz derivar daí uma consequência teórico-metodológica para a crítica estética que não encontraria respaldo direto no que explicitamente se postula na Kritik der Urteilskraft: “Tal coerência em si mesma, tal bela unidade [beautiful unity], é também um padrão [standard] para o juízo estético: quanto mais complexa a obra de arte, quanto mais [bem] composta, maior a totalidade, maior a beleza” (WELLEK, 1970, p. 131). O importante capítulo da Theory dedicado à questão da “avaliação” [evaluation] consiste justamente na exposição e na fixação desse suposto “padrão” judicativo ao modo de um princípio a priori para a valorização [valuing] entendida como “a percepção de qualidades e relações esteticamente valiosas estruturalmente presentes no poema para qualquer leitor competente” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 249). Mas em que termos compreender, enfim, essa presença “estrutural” de qualidades e relações

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de que aí se fala? “A ‘estrutura’ é um conceito que inclui tanto o conteúdo quanto a forma à medida que organizados com fins estéticos. A obra de arte é, então, considerada como todo um sistema de signos, ou estrutura de signos, servindo a um fim estético específico”, explicam, a propósito, Wellek e Warren (1984, p. 141, grifo dos autores). Esse modo de existência “estrutural” da obra de arte literária é apresentado e detalhado de modo sistemático nos capítulos da Theory dedicados a, na definição dos próprios autores, “examinar os métodos usados na descrição e análise dos vários estratos da obra de arte”:

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(1) o estrato sonoro, eufonia, ritmo e metro; (2) as unidades de sentido que determinam a estrutura linguística formal de uma obra de literatura, seu estilo e a disciplina da estilística que o investiga sistematicamente; (3) imagem e metáfora, os mais centralmente poéticos de todos os dispositivos estilísticos, que precisam de discussão especial também porque quase imperceptivelmente confundem-se com (4) o “mundo” específico da poesia no símbolo e sistemas de símbolo que chamamos “mito” poético. O mundo projetado pela ficção narrativa apresenta (5) problemas especiais de modos e técnicas aos quais devotaremos outro capítulo. (WELLEK; WARREN, 1984, p. 156-157, grifo dos autores).

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Dir-se-ia abstraída e exposta, nesses capítulos, em seu caráter supostamente o mais geral e universalmente válido, aquela “estrutura de determinação” [structure of determination] inerente ao objeto literário de que nos falam Wellek e Warren; já que a mesma funcionaria, a rigor, como “um controle específico, altamente organizado da experiência do leitor, de modo que a experiência é mais apropriadamente descrita como uma experiência do poema” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 249), ver-se-ia aí pretensamente desvelada, na verdade, a estrutura da própria experiência literária, em geral, e da apreensão crítica das obras literárias, em particular. “A crítica é pessoal, mas visa descobrir uma estrutura de determinação no objeto ele mesmo”, sintetiza, com efeito, Wellek (1970, p. 128) na conferência de Yale; e prossegue: “ela presume algum padrão de correção [standard of correctness] no julgamento, embora não possamos ser capazes de desenhar a linha exata entre o subjetivo e o objetivo em cada caso”. A despeito dessa ressalva final, é justamente um padrão objetivo de correção no julgamento o que postulam os autores da Theory, a ponto de

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vislumbrarem uma hierarquia nesse sentido: “Todos os diferentes pontos de vista não são, de forma alguma, igualmente verdadeiros”, sentenciam, e prosseguem: “Será sempre possível determinar que ponto de vista apreende mais meticulosa e profundamente a matéria [subject]. Uma hierarquia de pontos de vista, uma crítica da apreensão de normas está implícita no conceito de adequação de interpretação” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 156). Ora, essa hierarquia e essa crítica os autores as materializam na própria divisão central da Theory em duas grandes partes contrapostas, dedicadas, a primeira delas, à “abordagem extrínseca” [extrinsic approach] ao estudo da literatura, e a segunda, ao “estudo intrínseco” [intrinsic study] da literatura, sendo que ao fim da introdução à primeira parte descobre-se que o que então se segue é não uma apresentação mais ou menos sistemática dos métodos críticos ditos extrínsecos, mas um esforço deliberado de “criticar a coleção de métodos do ponto de vista de sua relevância para um estudo que poderia ser chamado centralmente literário ou ‘ergocêntrico’” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 74, grifo dos autores). É, portanto, a partir da primazia desse ponto de vista “centralmente literário” ou “ergocêntrico” que se estabelece uma “hierarquia de pontos de vista” na qual não apenas a abordagem intrínseca sistematizada na segunda parte do livro sobrepõese às abordagens extrínsecas exploradas na primeira parte (biográficas [cap. 7], psicológicas [cap. 8], sociológicas [cap. 9], filosófico-ideológicas [cap. 10], interartísticas [cap. 11]), mas também estas últimas devem ser avaliadas e devidamente hierarquizadas entre si em função de sua maior ou menor possibilidade de conformação ao ideário organicista-formalista dos autores da Theory. Isso posto, é preciso admitir que se limitar a constatar, com Culler (1988, p. 12), que Theory empreendeu a “construção de uma distinção central” entre a abordagem extrínseca e o estudo intrínseco da literatura equivale a solapar a historicidade fundamental dessa “distinção” (e da hierarquia nela embutida). Não se trata, em suma, de algo simplesmente “construído” por Wellek e Warren com base em seu “amplo conhecimento da história da crítica e de obras estrangeiras sobre teoria literária”, e que pudesse, então, a partir daí, ser tomado, atemporalmente, como uma “distinção central” [a central distinction] em crítica literária, como sugere Culler, e sim de algo que emerge como uma resposta dos autores da Theory ao “problema” com

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que então se defrontavam: o de “como lidar intelectualmente com a arte literária”, ora devidamente reinserido no contexto motivado da pergunta que lhe confere clareza e sentido e (re)converte-lhe em verdadeira questão, isto é, aquele da subjetivação radical da estética no âmbito da modernidade tripartida kantiana. Uma resposta a Kant, pois, mas que encontra, não obstante, no próprio Kant, na própria terceira Crítica, ou em certa leitura dela, suas condições de possibilidade como resposta: a analogia entre arte e organismo. Se o agrupamento feito por Kant de biologia e arte sob o mesmo rótulo tendeu a ser tomado como uma exigência artificial de seu pensamento sistemático, observa Wellek na conferência de Yale, a ideia “mais especial” da arte como organismo, por outro lado, “tem tido um grande sucesso no mundo moderno”:

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Os românticos alemães estão plenos dela. August Wilhelm Schlegel formulou a diferença entre o orgânico e o mecânico com especial habilidade, e suas fórmulas foram assumidas por Coleridge. Hoje, no mundo de fala inglesa, o termo “organism” aplicado à arte é associado a Coleridge e tem sido amplamente revivido nas décadas recentes. Não apenas os “New Critics” americanos mas também Croce e muitos alemães podem ser descritos como propositores desse paralelismo [...]. (WELLEK, 1970, p. 138-139, grifo do autor).

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Situando-se, bem entendido, no ponto de chegada dessa corrente espiritual do organicismo estético no “mundo moderno” – não sem se prevenir em relação àquilo que, no paralelismo entre arte e organismo, “certamente leva apenas a analogias enganosas se tomado muito literalmente” (WELLEK, 1970, p. 139) –, a Theory se ofereceria, pois, não como mera vulgarização tardia de princípios básicos da Kritik der Urteilskraft, mas como uma sistemática resposta organicista – kantiana, pois, num sentido importante – à problemática kantiana da impossibilidade de fundamentação objetiva da crítica estética. Jogando Kant contra Kant produtivamente, Wellek e Warren teriam logrado suprir, com sua Theory, “a grande necessidade do estudo literário hoje” (e não seria essa, afinal, a razão de seu incomparável sucesso editorial e acadêmico?), isto é, a de uma teoria da literatura como fundamento epistemológico/metodológico para a crítica literária, ou, na expressão dos autores, como um “órganon de métodos”. A analogia aí sugerida da Theory

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com o Órganon aristotélico – o conjunto das obras lógicas de Aristóteles convertido no grande “instrumental” científico da Antiguidade [όργανον (órganon): “órgão, instrumento, ferramenta”], ao qual se contrapôs, nos tempos modernos, o Novum Organum (1620) de Francis Bacon (autor a quem Kant dedica sua Kritik der reinen Vernunft) – não soa exagerada quando se pensa que, ao fornecer algo capaz de funcionar, de fato, como um princípio a priori para o juízo estético literário (capaz de convertê-lo, portanto, de juízo reflexivo em juízo determinante), o alegado órganon de Wellek e Warren teria finalmente imbuído a crítica literária de sua almejada cientificidade, outrora inviabilizada por Kant. Conclusão demasiadamente apressada, contudo, por não levar em conta um dado decisivo: se Theory logrou oferecer, com efeito, uma bemsucedida resposta à questão de fundo kantiano com a qual se defronta, seus autores não deixaram de reconhecer, em suas páginas, já haver, àquela altura, ao menos duas outras respostas distintas a essa mesma questão, “duas soluções extremas para o nosso problema” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 18) – algo que, é claro, complica definitivamente as coisas.

Eis, segundo Wellek e Warren, a primeira das duas respostas já existentes a “como lidar intelectualmente com a arte literária”: a de que “isso pode ser feito com os métodos desenvolvidos pelas ciências naturais, que só precisam ser transferidos para o estudo da literatura” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 16); eles distinguem quatro modos possíveis dessa transferência: 1) “a tentativa de emular os ideais científicos gerais de objetividade, impessoalidade e certeza, uma tentativa que, no todo, sustenta a coleta de fatos neutros”; 2) “o esforço para imitar os métodos da ciência natural através do estudo de antecedentes causais e origens; na prática, esse ‘método genético’ justifica o rastreamento de qualquer tipo de relação, contanto que possível sobre fundamentos cronológicos”; 3) “mais rigidamente, a causalidade científica é usada para explicar fenômenos literários pela atribuição de causas determinantes a condições econômicas, sociais e políticas”;

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9 – Da teoria como resposta

9.4 A teoria literária como contrarresposta

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O LUGAR DA TEORIA LITERÁRIA

4) “a tentativa de usar conceitos biológicos no rastreamento da evolução da literatura”. (WELLEK; WARREN, 1984, p. 16, grifo dos autores).

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A segunda resposta recomenda, ao invés, que “o estudo literário tem seus próprios métodos válidos, que não são sempre os das ciências naturais, não obstante são métodos intelectuais” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 17); ela “afirma o caráter pessoal da ‘compreensão’ literária e a ‘individualidade’, mesmo a ‘singularidade’ [uniqueness] de toda obra de literatura” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 18, grifo dos autores). Wellek e Warren não se indagam seriamente pela historicidade dessas respostas, isto é, por aquilo que as institui, afinal, como respostas. Quanto à primeira, limitam-se a observar que, “tornada moda pelo prestígio das ciências naturais” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 18), a transferência de métodos por ela intentada “não cumpriu as expectativas com as quais foi feita originalmente” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 16). Quanto à segunda, que a tentativa de estabelecer a diferença entre os métodos e objetivos das ciências naturais e das humanidades remonta, em última instância, à distinção feita em 1883 por Wilhelm Dilthey entre explicação e compreensão – que nisso foi seguido, na Alemanha, por um Windelband e um Rickert, na França, por um Xenopol, na Itália, por um Croce (WELLEK; WARREN, 1984, p. 17). Para além dessas parcas indicações, contudo, Wellek e Warren lidam com ambos os posicionamentos não como verdadeiras respostas, e sim, a exemplo dos acadêmicos ingleses criticados por Collingwood (citado por Gadamer), como “statements” a serem considerados, estritamente, em seu conteúdo proposicional. Isolando o que haveria de lógica e/ou empiricamente aceitável em cada uma das formulações em questão, para todos os efeitos os autores limitam-se a condenar o excesso, o extremismo que as converte, enfim, em “soluções extremas” [extreme solutions], inaceitáveis como tais. Se, de fato, concedem Wellek e Warren (1984, p. 19), a crítica literária orientase para a individualidade de uma obra, de um autor, de um período ou de uma literatura nacional, como quer a segunda formulação, por outro lado, ponderam, essa caracterização da individualidade aí intentada pode ser realizada somente em termos universais, como quer a primeira formulação. Tudo se passaria, pois, nessa cena de abertura da Theory, como se a teoriada-literatura-como-órganon-de-métodos a ser exposta na sequência

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devesse, então, ser tomada como trilhando um razoável caminho do meio entre as duas formulações – o que, ainda que alegadamente conservando aspectos isolados de cada uma delas, equivaleria, no fim das contas, à definitiva superação das mesmas como respostas a certa questão: aquela mesma em vista da qual também a Theory emerge como resposta. Um recuo de câmera reenquadra, contudo, essa cena, desvelando na mesma um jogo de forças consideravelmente mais complexo: sob o ângulo das reflexões gadamerianas em Wahrheit und Methode, as formulações em questão pareceriam se impor não apenas como distintas e discrepantes respostas possíveis à subjetivação da estética por Kant – respostas situadas, como tais, no mesmo contexto da modernidade tripartida kantiana no qual se situa a Theory –, e sim, mais especificamente, como respostas em larga medida kantianas a essa problemática kantiana, isto é, a exemplo da própria Theory, como desenvolvimentos de “sugestões” delineadas mais ou menos explicitamente na Kritik der Urteilskraft. Gadamer inicia sua opus magnum justamente observando que a “autorreflexão lógica” [die logische Selbstbesinnung] das ciências do espírito no século XIX “está totalmente dominada [beherrscht] pelo modelo das ciências da natureza”; as ciências do espírito compreendendo, então, a si mesmas “tão visivelmente por analogia com as ciências da natureza, que, com isso, o eco idealístico situado no conceito de espírito [Geist] e de ciência do espírito [Wissenschaft des Geistes] fica em segundo plano [zurücktritt]” (GADAMER, 1999, p. 9). Gadamer explica que a expressão Geisteswissenschaften [ciências do espírito] deve muito de sua popularização ao tradutor alemão do System of Logic [Sistema de lógica] (1843) de John Stuart Mill, obra em cujo capítulo final o filósofo inglês esboça as possibilidades de aplicação da lógica indutiva às chamadas “moral sciences” [ciências morais], termo para o qual se propõe, então, em alemão, Geisteswissenschaften. Já no contexto da Lógica de Mill, portanto, observa Gadamer (1999, p. 9), “não se trata de reconhecer uma lógica própria das ciências do espírito, mas, pelo contrário, de demonstrar que o método indutivo na base de toda ciência experimental também nesse domínio é exclusivamente válido [allein gelte]”. Gadamer observa, ainda, que um autor como Dilthey – que “mantém firme [hält fest] a herança românticoidealista no conceito de espírito” e cujo árduo trabalho de décadas dedicado à fundamentação das ciências do espírito é “um confronto permanente

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com a exigência lógica que o célebre capítulo final de Mill estabeleceu para as ciências do espírito” –, também ele “deixou-se influenciar profundamente pelo modelo das ciências da natureza, ainda que quisesse justificar justamente a autonomia metodológica das ciências do espírito” (GADAMER, 1999, p. 12). A responsabilidade por esse estado de coisas, Gadamer a faz remontar, em última instância, a ninguém menos do que Kant, à “subjetivação radical” [radikale Subjektivierung] implicada na “nova fundação da estética por Kant [die Kants Neubegründung der Ästhetik]”, que, “ao desacreditar qualquer outro conhecimento teórico que não o da ciência da natureza, forçou [hat gedrängt] a autorreflexão das ciências do espírito a se apoiar na metodologia das ciências da natureza” (GADAMER, 1999, p. 47). Mais do que isso, a filosofia kantiana teria mesmo facilitado esse apoio “ao proporcionar, ao modo de um serviço subsidiário [als subsidiäre Leistung], o ‘momento artístico’ [das ‘künstlerische Moment’], o ‘sentimento’ [das ‘Gefühl’] e a ‘empatia’ [die ‘Einfühlung’]” (GADAMER, 1999, p. 47, grifo do autor). Por tudo o que Gadamer expõe na sequência, isso teria se dado, basicamente, em dois sentidos diferentes, implicando dois percursos distintos, mas com pontos de partida igualmente kantianos, isto é, igualmente derivados de certas “sugestões” kantianas na terceira Crítica, e cujos respectivos pontos de chegada poderiam ser identificados, na verdade, nas duas respostas à problemática da fundamentação da crítica literária (e das humanidades em geral) consideradas por Wellek e Warren na Theory. O primeiro sentido ou percurso seria aquele que, partindo de certo deslocamento de ênfase do “gosto” [Geschmack] para o “gênio” [Genie] sugerido na Kritik der Urteilskraft, desembocará na “estética do gênio”, a qual dominará todo o século XIX sob a égide da ideologia romântica, tornando-se “científica” sob a égide da ideologia positivista; o segundo seria aquele que, partindo do desenvolvimento, promovido pela Kritik der Urteilskraft, do conceito de “gênio” em direção a um abrangente conceito de “vida”, desembocará na formulação do conceito de “vivência” [Erlebnis] por Dilthey, e, a partir daí, na fixação de uma visada hermenêutica nas humanidades. Se se reconhece, pois, como aqui se faz, a Theory de Wellek e Warren como resposta kantiana ao próprio Kant, o problema que logo, então, avulta é o de essa resposta não poder ser tomada, simplesmente, como “a”

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resposta a Kant, isto é, à questão da fundamentação da crítica estéticoliterária implicada por aquela “subjetivação radical”, segundo Gadamer, do juízo estético operada na terceira Crítica, já que ela emerge, na verdade, diante de duas outras respostas já existentes, aventadas na própria Theory – e que, para piorar, também se instituem como respostas kantianas a Kant, isto é, a exemplo da própria Theory, como desenvolvimentos de diferentes “sugestões” na Kritik der Urteilskraft. Poder-se-ia alegar, retornando a Wahrheit und Methode, que o delineamento desse estado de coisas em nada contradiz a “lógica da pergunta e da resposta”, e, mesmo, que ele ilustra a contento o postulado gadameriano de que: “Só se compreende o texto em seu sentido alcançandose o horizonte da pergunta, que, como tal, necessariamente abarca também outras respostas possíveis” (GADAMER, 1999, p. 375, grifo nosso). As três respostas aqui em questão deixam-se apreender, de fato, como três respostas possíveis ao mesmo “horizonte da pergunta”, tendo mesmo, na verdade, cada uma delas e todas as três, sua possibilidade condicionada pelo advento do que se poderia chamar, no âmbito geral da modernidade tripartida kantiana, de modernidade crítica: aquela conjuntura na qual o crítico estético-literário tem reservados a si, e como nunca antes, um domínio e uma jurisdição que lhe seriam próprios e exclusivos, ao mesmo tempo que se vê privado do fundamento necessário à tomada de posse do referido domínio e ao exercício legítimo da referida jurisdição – fundamento esse que, portanto, deve ser doravante buscado, conquistado pelo crítico, e por ele estabelecido, finalmente, de maneira consensual. Ora, o grande problema reside justamente aí, pois as respostas ora em questão revelam-se, de fato, três respostas possíveis mas não compossíveis a essa busca caracteristicamente moderna pelo fundamento crítico, isto é, elas não são, como respostas, concomitantemente possíveis, mas mutuamente excludentes, e isso em sua origem mesma: a própria emergência de uma delas como resposta implica justamente a negação das demais como respostas. Qualquer uma delas, pois, que emerja dessa disputa como “a” resposta há de permanecer assombrada por aquela incompossível possibilidade outra que tivera de negar e recalcar para se instituir e se legitimar como resposta. Não estranha, assim, que ela, a resposta vitoriosa, acabe sendo deposta dessa sua posição por um gesto idêntico àquele pelo qual ascendera

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à mesma: negação do outro e afirmação de si revelam-se as contrafaces necessárias e indissociáveis de um único e mesmo gesto autoinstituidor e autolegitimador no âmbito do que se poderia chamar a querela do fundamento crítico.

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9.5 Pós-modernidade crítica? (Historiografia da crítica e o não lugar da teoria literária)

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O referido gesto autoinstituidor e autolegitimador costuma ser imediatamente identificado, na verdade, com o próprio advento da modernidade, sobretudo desde a célebre desqualificação, por Hans Blumenberg, no hoje clássico Die Legitimität der Neuzeit [A legitimidade da Idade Moderna] (1966), da então influente tese da Idade Moderna como fruto de uma “secularização” dos ideais religiosos judaico-cristãos – do que dá testemunho, por exemplo, Habermas (1985, p. 16), ao observar que Blumenberg “viu-se impelido”, à época, “a defender, com grande ostentação historiográfica, a legitimidade ou o direito próprio da Idade Moderna contra construções que alegam uma dívida cultural para com os testantes [den Erblassern] do cristianismo e da Antiguidade”. Um pouco antes Habermas observa, nesse mesmo sentido, que “a modernidade já não pode e não quer tomar emprestados seus critérios orientadores dos modelos de uma outra época, ela tem de extrair sua normatividade de si mesma. [...] vê-se referida a si mesma, sem a possibilidade de subterfúgio” (HABERMAS, 1985, p. 16), sugerindo, além do mais, que: “Isso explica a suscetibilidade de sua autocompreensão, a dinâmica das tentativas de ‘determinar’ a si mesma incessantemente continuadas até os nossos dias” (HABERMAS, 1985, p. 16, grifo do autor). E ainda: “O problema de uma fundamentação da modernidade a partir de si mesma vem à consciência primeiramente no domínio da crítica estética” (HABERMAS, 1985, p. 16). E também nesse domínio, poder-seia acrescentar, mais do que em qualquer outro, que a referida ocorrência continuada de tentativas diversas de afirmação/determinação de si a partir da negação do outro torna-se especialmente evidente. Dir-se-ia que a caracterização estendida da “modernidade crítica” como época na qual a busca pelo fundamento autoinstituidor e autolegitimador da crítica de arte e de literatura traduz-se numa progressiva

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emergência de contrarrespostas à subjetivação radical da estética no âmbito da modernidade tripartida kantiana pressupõe uma exterioridade, ou melhor, já que se trata de tempo, uma posterioridade em relação ao estado de coisas aí caracterizado: daí a pergunta pelo que caracterizaria, afinal, essa posterioridade diante da problemática da fundamentação da crítica estético-literária. Estaríamos, por acaso, nesse sentido, imersos em algo como uma pós-modernidade crítica, e o que distinguiria, afinal, essa nova conjuntura da anterior? Há três décadas Gianni Vattimo anunciava o “fim da modernidade” como época “dominada pela ideia da história do pensamento como progressiva ‘iluminação’, que se desenvolve na base de uma sempre mais plena apropriação e reapropriação dos ‘fundamentos’” (VATTIMO, 1985, p. 10, grifo do autor), ao mesmo tempo que destacava a contradição inerente a “todo discurso sobre a pós-modernidade”, na medida em que:

Assim: “A pura e simples consciência – ou pretensão – de representar uma novidade na história [...] colocaria de fato o pós-moderno na linha da modernidade, na qual domina a categoria de novidade e de superação” (VATTIMO, 1985, p. 12). Isso mudaria, contudo, segundo o autor, se se reconhecesse, como ele próprio sugere, o pós-moderno [...] não apenas como novidade em relação ao moderno, mas também como dissolução da categoria do novo, como experiência de ‘fim da história’, mais do que como o apresentar-se de um estágio diverso, mais avançado ou mais retrógrado, não importa, da própria história. (VATTIMO, 1985, p. 11, grifo do autor).

Ao evocar e esboçar, ele próprio, “uma imagem da existência nessas novas condições de não historicidade, ou, melhor ainda, de póshistoricidade” (VATTIMO, 1985, p. 14), Vattimo chamava a atenção para “uma verdadeira dissolução da história na prática atual, e na consciência

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9 – Da teoria como resposta

Dizer, com efeito, que estamos num momento posterior em relação à modernidade e conferir a esse fato um significado de algum modo decisivo pressupõe a aceitação daquilo que mais especificamente caracteriza o ponto de vista da modernidade, a ideia de história, com seus corolários, a ideia de progresso e a de superação. (VATTIMO, 1985, p. 10).

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metodológica, da historiografia” (VATTIMO, 1985, p. 16), tomando-a, a tal “dissolução da história”, como “a característica que mais claramente distingue a história contemporânea da história ‘moderna’” (VATTIMO, 1985, p. 17, grifo do autor), a contemporaneidade fixando-se, então, como a “época na qual, enquanto o aperfeiçoamento dos instrumentos de reunião e transmissão da informação tornaram possível realizar uma ‘história universal’, precisamente esta tornou-se impossível” (VATTIMO, 1985, p. 17-18, grifo do autor). Um olhar atento, contudo, para o domínio historiográfico que aqui nos interessa de perto, o da historiografia da crítica, desautorizaria de imediato essa polarização simplista entre uma historiografia “moderna”, de cunho propriamente “histórico”, e uma historiografia “contemporânea”, de cunho “não histórico”/“pós-histórico”. Pensemos, quanto a isso, na compreensão da “modernidade crítica” a que aqui se chegou, a saber, de acordo com o acima delineado, como época na qual a busca pelo fundamento autoinstituidor e autolegitimador da crítica de arte e de literatura traduz-se numa progressiva emergência de contrarrespostas à subjetivação radical da estética no âmbito da modernidade tripartida kantiana; pensemos, então, no quanto essa compreensão se aproxima da caracterização que Vattimo faz da modernidade como época que, assombrada pela questão do fundamento, “se desenvolve na base de uma sempre mais plena apropriação e reapropriação dos ‘fundamentos’”, para, então, constatarmos: essa compreensão, reveladora da historicidade constitutiva da moderna teoria (da crítica) literária, não é possibilitada – mas antes recalcada – pela moderna historiografia da crítica. E o exemplo privilegiado quanto a isso – dir-se-ia: o paradigma – é, uma vez mais, a obra de René Wellek, mais especificamente sua monumental obra historiográfica: A History of Modern Criticism, em oito volumes (1955-1992). Na History wellekiana, a chamada “crítica moderna” desenrola-se cronologicamente ao longo dos cinco grandes períodos divisados pelo autor – (1) “O fim do século XVIII”, (2) “A era romântica”, (3) “A era da transição”, (4) “O fim do século XIX”, (5) “O século XX” –, sob a forma de biografias intelectuais de seus principais protagonistas – de Voltaire aos grandes críticos europeus e americanos do século XX –, ao modo de um vasto painel ou galeria. A História da Crítica assim concebida só se tornará compreensível, explica-nos Wellek, à luz da “moderna teoria da literatura”, na verdade, à luz da própria teoria wellekiana da literatura, já que

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não é outro livro senão sua célebre Theory of Literature que se encontra na base da composição da History. No prefácio, de 1962, à terceira edição de Theory, Wellek admite, com efeito, que “minha History of Modern Criticism esforça-se por dar suporte à posição teórica aqui delineada, assim como, por sua vez, ela recebe [draws] critérios e valores da Theory of Literature” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 11). Bem entendido, se Wellek faz derivar de sua Theory os “critérios e valores” que presidem sua History, ele converte arbitrariamente sua própria doutrina crítica em baliza meta-histórica a partir da qual se julgar as demais doutrinas que compõem a história da crítica, bem como em telos do próprio percurso então narrado. Isso equivale a subsumir a história na teoria, reduzindo a History a mero desdobramento da Theory. Uma tal prática historiográfica “moderna”, no mesmo gesto, pois, em que elabora um “grande relato”, tipicamente “moderno”, da “História da Crítica Moderna”, recalca, ao invés de revelar, a historicidade constitutiva da teoria (da crítica) literária no âmbito da modernidade tripartida kantiana – historicidade essa que só se vê revelada, em contrapartida, por força de um gesto historiográfico absolutamente contemporâneo como aquele acima performado a partir da pergunta pelo ter lugar da teoria literária. Digo absolutamente contemporâneo porque tal gesto não saberia nunca, não poderia nunca se converter no tipo de “História Pós-Moderna” (“Não Histórica”, “Pós-Histórica”) hipostasiado por Vattimo, à guisa de uma nova modalidade historiográfica, apontando, antes, para uma historio-grafia jamais concluída, sempre por vir, em função de uma vigília permanente em relação ao constante movimento de institucionalização e naturalização dos procedimentos de leitura crítica sob a forma de uma determinada teoria literária; em função, pois, de um interminável perguntar pelo ter lugar da teoria literária. Ora, não se deixaria captar aí, justamente aí, nesse “interminável perguntar pelo ter lugar da teoria literária”, o verdadeiro lugar da teoria literária na contemporaneidade? Lugar este apenas concebível, é certo, por tudo o que foi dito, nos termos de um não lugar? Poder-se-ia conceber, a partir disso, desafio maior e mais urgente do que o de saber conciliar esse não lugar contemporâneo da teoria literária com o tradicional lugar institucional da teoria literária em nossos cursos de Letras?

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Referências

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9 – Da teoria como resposta

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Teorizar é metaforizar Eneida Maria de Souza

Como professora de Teoria da Literatura há muitos anos, devo começar este ensaio afirmando que o lugar (não lugar) da disciplina no meio acadêmico continua como sempre esteve: paradoxal, combativo, ousado, vanguardista e aberto às transformações e mudanças históricas. Defendi sempre essa opinião quando o tema da discussão versava sobre os perigos de estarem as disciplinas perdendo sua identidade, da urgência em se valorizar o objeto literatura perante os desvios disciplinares, uma vez que o conceito de autonomia estava sendo negligenciado pelos demais. Como se percebe, o que entraria como componente paradoxal seria o instável lugar atribuído à literatura e ao valor mutante de seus princípios. O discurso teórico, diante da diluição de fronteiras disciplinares e da consideração da literatura como este estranho objeto, deveria optar pela flexibilidade e o deslocamento interpretativos. Perde-se tanto o lugar, antes conferido à literatura, quanto a teoria, por ambas não ocuparem mais o espaço hegemônico dos saberes. Mas restam, como produto das transformações sofridas, a ousadia e o combate ao pensamento conservador e à prisão a determinados princípios de crítica literária centrados na pureza e autonomia dos objetos de análise. O estatuto paradoxal da teoria – e da literatura – investe-se contra o raciocínio binário e exclusivo das definições, dilui a separação entre polos considerados distintos, como ficção e teoria, arte e ciência, obra e vida, com vistas a redimensioná-los e repensá-los. A proposta teórica defendida por grande parte de estudiosos não se restringe a escolher um objeto único,

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mas se dispersa em outros de igual importância para o estabelecimento de redes comparativas e interdisciplinares. Na seleção de práticas discursivas, vale o entrecruzamento de textos que acrescentam a compreensão mútua, seja pela diversidade, seja pela semelhança. O gesto de teorizar alimenta-se de outros, como o de ficcionalizar, vivenciar e metaforizar. Nessa operação intervalar, respeita-se a distinção entre os discursos, sem separá-los ou confundi-los completamente. Como então admitir que o pensamento teórico componha, com os demais, um amálgama compósito e libertador? Como desvencilhar a literatura – ou outra disciplina – da teoria, se ambas se completam por meio do diálogo ancestral com o ato de pensar? Se pensar, como queria Deleuze, é dobrar, é experimentar, é problematizar, instalamos-nos nesse barco à deriva, à procura de saídas e de possíveis respostas para indagações que dificilmente serão satisfatórias. A Teoria da Literatura sempre se vestiu com as roupas da vanguarda, principalmente em alguns departamentos de Letras no Brasil pertencentes a instituições avançadas em termos de abertura interpretativa. O pensamento de vanguarda se iniciou com a retomada do discurso filosófico francês no final da década de 1960, o que lhe conferiu o convívio da crítica literária com reflexões que ampliaram o campo restrito dos procedimentos enunciativos. Na proliferação de cursos de pós-graduação no país, a teoria recebeu dimensão plural, transformando-se em múltiplas teorias, graças ao intercâmbio com a filosofia, a antropologia, a psicanálise, a semiologia e a sociologia. A abertura interdisciplinar culmina com a teoria comparatista e a crítica cultural, implementadas no decorrer dos anos 1970. Diante da complexa relação entre teorias e os distintos discursos, sejam eles literários ou artísticos, três perguntas poderão ser feitas, com o objetivo de esclarecer o casamento ou o divórcio praticado entre eles. a) Valorizar as teorias, no sentido de acreditar no seu aspecto performático e inclusivo com os discursos a serem analisados? b) Combatê-las, utilizando-se a premissa mil vezes repetida, de que a teoria mata a literatura? c) Desmerecer as teorias, ao se afirmar que é a literatura quem as concebe no seu interior? a) Na encruzilhada dessas questões, é preciso abrir o debate em torno da prática teórica de vários grupos de acadêmicos – pertencentes ou não a gerações diferentes – os quais se empenham em levar adiante a experiência pós-estruturalista e não se deixam seduzir pelo mito criado em torno da crise das teorias. Se esses grupos se colocam como divulgadores de um

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10 – Teorizar é metaforizar

pensamento filosófico/antropológico europeu ainda em plena atualização – como Giorgio Agamben, Georges Didi-Huberman, Roberto Esposito, JeanLuc Nancy, Jacques Rancière, Bruno Latour, Lacoue-Labarthe, Antonio Negri e Michael Hardt – seguidores de Walter Benjamin –, Gilles Deleuze e Félix Guattari, Jacques Derrida e Michel Foucault, conclui-se ter a Teoria da Literatura se enriquecido com o diálogo entre outros discursos. Além de continuar revigorada e atuante. A figura icônica de Roland Barthes encontra-se também disseminada nas teorias literárias recentes sobre análise textual, centralizadas nos procedimentos de escrita autoficcional, autobiográfica e biográfica, o que confirma a revisão de abordagens sobre o assunto, expandindo-se para outras áreas das humanidades. Na esteira das teorias feministas e pós-colonialistas, o mundo acadêmico brasileiro se apropriou e ainda se apropria da reflexão de pensadores que rompem com a hegemonia teórica europeia, por se inserirem numa proposta política mais agressiva e desconstrutora. Homi Bhabha, Stuart Hall, Walter Mignolo, Gayatri Spivak, entre outros, integram as estantes da crítica dos últimos trinta anos, razão pela qual os rumos da teoria se transformaram e tendem a embaralhar cada vez mais a suposta pureza de um pensamento único. Guardadas as devidas ressalvas, não resta dúvida que a crítica comparada e a cultural resultam da ampliação e abertura dos estudos de Teoria da Literatura, considerando ter sido ela que rompeu, na prática, os limites territoriais das disciplinas e contribuiu para o questionamento das regras impostas pelos distintos espaços do saber. A proliferação de tendências, de correntes críticas e de posições teóricas diversificadas tem sido combatida com argumentos sobre o fim ou a crise das teorias, acusadas pela sua indefinição e precariedade. Seria ingênuo apregoar, nos dias atuais, a diversidade teórica como fator negativo de sua prática, pois é graças a essa heterogeneidade de ideias e pontos de vista que os diferentes perfis acadêmicos são capazes de dialogar em regime de igualdade com seus pares. A abordagem da literatura tem se apoderado da variedade de enfoques e metodologias com vistas à abertura interpretativa e à impossibilidade de defesa desta ou daquela linha de pensamento. Esta posição se afasta de preconceitos relativos à falta de controle do exercício das críticas comparada e cultural, denunciadas pela confusão e o vale-tudo analítico. Não se postula o retorno de métodos e preceitos judicativos nesta avaliação, mas se entende que o rigor e a seriedade das distintas propostas deverão ser reconhecidos pela comunidade acadêmica.

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b) A teoria estaria matando a literatura? Seria este momento caracterizado pela babel de teorias, pela superposição do aparato interpretativo diante do texto propriamente dito? A suposta morte da literatura seria causada pelo excesso de exposição argumentativa e pela predominância da sistematização dos dados em detrimento da paráfrase e da resenha textuais? Não se mata a literatura com a espada das inserções reflexivas, salvo se a profusão de citações e de referências encubra a interpretação e se revele inócua pelo uso de falsa erudição. Com base nessas premissas, seria recomendável evitar a exploração apenas ilustrativa dos conceitos, sem a devida justificativa de seu emprego, uma vez desprovido de contextualização. A utilização aleatória dos conceitos e o desrespeito quanto às razões históricas de sua produção atuam como forte motivo para o ataque à crítica e à descrença no trabalho exercido pelo pensamento teórico. Como antídoto a essa situação, o excesso de citações deveria ser retirado, operando-se com cautela o registro teórico, de modo a filtrá-lo e submetê-lo à interpretação mais singularizada. A revitalização da literatura seria, nesses termos, provocada pela justa apropriação do exercício teórico, no qual a prática da noção de sobrevivência incentiva o diálogo entre ficção e teoria, desde que a superposição de ambas as categorias resulte na revitalização de uma por meio de outra. O sopro teórico irrompe no discurso literário e vice-versa, concedendo-lhes inteiro vigor, por meio da operação intertextual, em que se subverte a primazia de um registro em relação a outro. c) Não se trata exatamente de desmerecer o lugar da teoria, quando se postula que o discurso literário teria a função de igualmente ser produtor de sua intencionalidade teórica. A incidência na literatura contemporânea de escritores-críticos e o consequente estatuto híbrido de sua narrativa – entre ficção e ensaio – tornam evidente o cruzamento dessas instâncias de saber, como desmitifica a separação preconizada pelo senso comum entre pensamento e estética, reflexão e prazer. Embora a proposta literária do escritor-crítico tenha se voltado para a indagação sobre o ato de escrever e dos encontros ficcionais entre escritores – e por este motivo seja criticado pelos adeptos da literatura como fruição –, é ainda por esta via que grande parte dos argumentos teóricos contemporâneos encontre aí rentável fonte conceitual. Discutir, por exemplo, no espaço da crítica acadêmica, gêneros narrativos tão explorados pela literatura atual, tais como os de biografia,

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autobiografia, autoficção ou memória, torna-se mais producente recorrer a obras em que são embaralhados e questionados tais procedimentos. A leitura de obras literárias recentes como as de Silviano Santiago (Mil rosas roubadas, 2014), J. M. Coetzee (Verão, 2009), Vila-Matas (Doutor Pasavento, 2002) entre outras narrativas, permite a revisão de categorias próprias a esses gêneros, por se insurgirem, ironicamente, contra o esquematismo e as classificações praticadas pela crítica. Resulta daí a necessidade de flexibilização dos conceitos, em virtude de seu estatuto precário e das transformações sofridas ao longo do tempo. Desconstruir os lugares-comuns da crítica não significa negá-los, mas apontar os riscos de exaustão interpretativa e da sujeição a regras e métodos. O teor irônico da obra metacrítica e metapoética incita o leitor a desconfiar da palavra erigida como verdade biográfica ou autobiográfica, considerando a opacidade e complexidade do pacto ficcional. A prática literária desempenha o papel de experimentação e performance do aparato teórico, por realizar, pelo jogo textual e narrativo, a mise-en-scène das categorias e a dramatização do gesto criativo. O deslocamento mútuo dos lugares enunciativos coloca a literatura como parceira da reflexão teórica, não havendo razão em considerar os discursos com base no raciocínio opositivo, mas em estabelecer pontes e semelhanças entre eles, embora sejam constituídos de forma distinta. Por outro lado, não é de estranhar que o descrédito quanto à teorização – sem que se perceba que teorizar é uma forma de conhecer, de revitalizar o saber – ignora ser o exercício interpretativo independente da natureza de cada obra. Qualquer gesto de leitura indicia o grau de percepção e prazer de quem o exerce, aliado à racionalidade e à satisfação teórica nascidas desta operação. Nesses termos, a distinção entre emoção e razão, prazer estético e prazer racional merece ser reformulada, com o intuito de prosseguir no debate sobre os instigantes e deslocados lugares e não lugares ocupados pela teoria na sua relação com a literatura e outras artes. Jean-François Lyotard e Lévi-Strauss, em épocas e campos distintos, teorizaram (e praticaram) a arte de adquirir novos conjuntos a partir do arranjo de materiais preexistentes, resultando na conceituação dos saberes contemporâneo como bricolagem. A união do experimental, do empírico e do artístico, utilizando-se da técnica moderna da colagem, da justaposição e da descontinuidade narrativa foi um dos traços tanto da construção de saberes na perspectiva filosófica de Lyotard quanto na metodologia

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estruturalista lévi-straussiana. O biógrafo inglês de Lévi-Strauss, Patrick Wilcken, concedeu-lhe o título de antropólogo-artista, por ter-se enriquecido de experiências estéticas, como o surrealismo e a música, e por ter mantido o diálogo sempre desejado entre arte e ciência. No seu entender, a importância de Lévi-Strauss para o avanço das ciências humanas no século XX deveu-se ao exercício de uma prática moderna de bricolagem, capaz de desconstruir territórios fechados da ciência e de reforçar, no lugar de enfraquecer, o papel reservado ao cultivo da sensibilidade. O artista em seu íntimo encontraria expressão não só na forma de escrever, mas nas ideias, na maneira de montar, como uma colagem, a profusão de materiais etnográficos que tinha acumulado. Sendo Lévi-Strauss um analista da forma, sua obra era um hino às proporções; se fosse um quadro, seria uma das telas de Poussin que tanto amava, uma composição de equilíbrio clássico sem revelar tensão ou esforço. A obra que deixava era uma espécie de pensée sauvage da academia; percorrendo as bibliotecas, ele colhia e misturava elementos que então processava, resultando em ideias admiráveis, embora especulativas: sociedades quentes e frias, bricolage, a ciência do concreto, além das belas e estranhas imagens nas oposições criadas na tetralogia Mitológicas. (WILCKEN, 2011, p. 329, grifo do autor).

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10.1 A sobrevivência das teorias Se o raciocínio desenvolvido até o momento se pautou pela revisão dos não lugares teóricos e da interligação entre teoria e ficção, arte e vida, seria pertinente questionar o conceito de sobrevida como estratégia conceitual para a compreensão dos deslocamentos sofridos pelas teorias. Em texto anterior (SOUZA, 2014), ressalto a leitura que Georges Didi-Huberman realiza a partir da noção de Nachleben, inaugurada por Warburg, quando admite estar o passado constantemente emergindo no presente, por não ser mais entendido como letra morta.1 Com base nesse princípio, a revisão dos 1

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“Rompida a cadeia linear na recepção desses conceitos, elimina-se a certeza de o que vem depois seria influenciado pelo que veio antes, ou que o progresso cultural dependeria de novas descobertas do presente. A crítica literária há muito tem se desvencilhado dos preconceitos de ordem evolutiva, por não considerar a morte das teorias e seu desaparecimento como condição

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de seu abandono, desuso ou finitude. Essa posição investe na releitura do presente como meio de apontar o que ainda merece ser reintroduzido como reflexão na contemporaneidade” (SOUZA, 2014, p. 114-115).

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lugares teóricos deveria obedecer aos critérios de simultaneidade temporal, sem levar em conta o início e o fim dos acontecimentos, embaralhando e anacronizando passado e futuro. Caem por terra reflexões atribuídas ao discurso do senso comum da crítica, tais como “a crise das teorias”, “o futuro das teorias”, “o fim das teorias”, “depois das teorias”, uma vez que os saberes se desvinculam das ideias de início e de fim, pela convivência constante com o sentido de intervalo e de entre-lugar. A leitura proposta impede deduções apressadas sobre a substituição desta ou daquela corrente analítica por outra supostamente mais eficaz e avançada, ou pelo preconceito perante a acusação de inoperância das demais posições. O conceito de sobrevida atua como saída espectral para toda a ideologia criada em torno dos fins dos discursos, da lógica causalista dos acontecimentos e da morte das ideias. A prisão à historiografia e ao cânone teórico impede o reconhecimento de valores considerados marginais e inoperantes da crítica. A crítica biográfica praticada por mim durante os últimos anos possibilitou a revisão das associações entre arte/vida, teoria/ficção e teoria/vida. A congruência/separação entre os dois polos se explica pelo gesto de estar a relação comandada pelo sentimento ético promovido pela experiência vivenciada tanto na prática teórica quanto vital. Sem desvincular razão e emoção, o que se propõe é a defesa de uma coerência – mesmo que sujeita a erros e deslizes – entre o engajamento à causa teórica e seu reflexo nas atitudes e comportamentos. Os exageros cometidos pelas ações do politicamente correto aplicadas às teorias ou à literatura são tributários da exigência de lugares enunciativos fixos e de posições naturalizadas quanto à semelhança entre discurso e ação. Não se trata de conceber este engajamento como sinônimo de transparência comportamental, mas de acreditar nas adesões teóricas como escolha dos sujeitos e, por este motivo, vinculadas a condutas éticas e morais. Nesta breve incursão sobre os lugares/não lugares da Teoria da Literatura, gostaria de concluir reafirmando a necessidade de ser incentivado o desejo de criar quando se trata do gesto crítico, aceitando os desafios impostos pela atualização e experimentação de determinados caminhos teóricos. As surpresas, os erros e os inesperados empecilhos

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entram como componente ativo da prática analítica e do exercício vigoroso do pensamento. Nômade e irrequieto, esse devir teórico abre mão do espírito niilista e apocalíptico do fim e da crise das teorias, ao se entregar de forma amadurecida ao debate de ideias, comportamento bastante raro no meio acadêmico. Que sejam cada vez mais frequente a troca e as discussões de ordem literária e cultural entre os novos e antigos pesquisadores da disciplina, cujos lugares enunciativos e de legitimação continuam a se impor de modo paradoxal, combativo e segundo propostas vanguardistas. A sobrevivência das formas artísticas e das construções teóricas justifica-se pela convivência entre experiências nas quais se ignoram o culto de valores ultrapassados e o desprezo pelo passado como indigno de ser evocado. Na vanguarda das mudanças realizadas neste intervalo, a vivência do devir/ presente permite a revisita aos conceitos, às vezes abandonados pela fúria teórica da novidade e do apressado esquecimento dos resquícios e traços de cultura.

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Referências COETZEE, J. M. Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SANTIAGO, Silviano. Mil rosas roubadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. SOUZA, Eneida Maria de. Ficções impuras. In: SOUZA, E. M.; LYSARDO-DIAS, D.; BRAGANÇA, G. M. (Org.). Sobrevivência e devir da leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p. 111-118. VILA-MATAS, Enrique. Doutor Pasavento. São Paulo: Cosac Naify, 2002. WILCKEN, Patrick. Claude Lévi-Strauss: o poeta no laboratório. Trad. Denise Botmann. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

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IV Literatura pós-Teoria

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Rastros Autorais da Teoria: o caso Bartleby André Cechinel

Como um exemplo dos sucessivos ataques à passagem da teoria ou da crítica literária para aquilo que se convencionou chamar simplesmente de Teoria, com T maiúsculo, o livro Theory’s empire: an anthology of dissent, organizado por Daphne Patai e Will H. Corral (2005), inclui, em meio aos seus 47 capítulos, o texto de Clara Claiborne Park intitulado “Author! Author! Reconstructing Roland Barthes”, publicado pela primeira vez em 1990. Em linhas gerais, a autora sustenta a curiosa tese de que, para ser capaz de associar a figura do autor àquela de um Deus que controla os sentidos do texto, tal como Barthes o faz, você precisa ser francês. Segundo ela, no contexto do uso da língua inglesa, nenhuma criança é ensinada a pensar no Autor como Deus, ou mesmo como uma Autoridade: “para nós, como para Shakespeare, a linguagem tem sido um produto não de Autores, mas de pessoas que a utilizam” (PARK, 2005, p. 321). Na França, por outro lado, o laço entre Autores e Autoridade, entre linguagem e poder, ela nos informa, já estava posto bem antes das formulações teóricas de Barthes, Derrida, Foucault e seus pares; esse seria, portanto, um problema específico da formação intelectual francesa, longe de apresentar qualquer correspondente imediato em um outro contexto. Resulta desse cenário o assombro principal da autora:

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Por isso, é curioso observar que não foi na França que a obra de Barthes adquiriu o seu maior poder. Lá, libertar o texto das estruturas do decoro, da consistência e da lógica poderia ser visto como um dever estimulante. [...] O que precisa ser investigado é por que essas preocupações linguísticas essencialmente francesas encontraram uma acolhida tão calorosa em uma cultura educacional tão diferente, ou mesmo antitética, se comparada àquela da França. (PARK, 2005, p. 324).

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A resposta para a questão lançada por Park envolveria, entre outras coisas, o conhecido argumento segundo o qual, exatamente naquele espaço aberto devido à suposta morte ou dissolução da função autoral, oculta-se agora a figura da Teoria, exercendo um controle textual semelhante àquele criticado por Barthes em seus ensaios. A rigor, o próprio Barthes (1977; 1987; 2003) não deixaria de se colocar como um Autor, um “eu” totalizante, em livros posteriores como O prazer do texto, Roland Barthes por Roland Barthes e Fragmentos de um discurso amoroso: “nada de impessoal nesses últimos livros, exceto o uso da terceira pessoa; eles estão repletos das sensibilidades altamente individuais do autor, seus gostos e desgostos” (PARK, 2005, p. 328). E assim, como quem resolve o impasse, a autora anuncia: “ele desejava o autor. E nós também” (PARK, 2005, p. 328). De resto, embora o problema do Autor seja, de saída, especificamente francês, mesmo um crítico como Barthes por fim cede aos encantos do lugar autoral. Por que haveríamos nós, então, de lhe oferecer resistência? O texto “Author! Author! Reconstructing Roland Barthes” constitui, em muitas de suas hipóteses e conclusões, um bom ponto de partida para compreendermos não só o tom de incredulidade que rege o livro Theory’s empire, mas também aquilo que por vezes ocorre em críticas que se voltam para a chamada Teoria: ao responsabilizar alguns poucos nomes pelo aparente fracasso do novo “império teórico” – os culpados são, via de regra, Barthes, Foucault, Derrida, Paul de Man e J. Hillis Miller –, as análises acabam por projetar leituras reducionistas dos fenômenos que buscam apreender. Conforme Fabio Akcelrud Durão demonstra no texto “Giros em falso no debate da Teoria”, algumas das críticas expostas no livro de Patai e Corral são difíceis de refutar; “por outro lado, várias outras projetam uma imagem estereotipada e errônea da Teoria, avessa àquilo que ela possui de melhor” (DURÃO, 2008, p. 65). No que tange ao texto de

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Clara Claiborne Park, em particular, as posições de Barthes são reduzidas a uma gramática mínima para acomodar a conclusão de que o Autor precisa ser reconstruído, sinalizando, pois, o retorno a um passado idílico em que teoria e crítica ainda eram potentes. Entre os elementos dessa gramática imprecisa que o texto em pauta formula, cabe destacar tanto a leitura insuficiente do significado da função autoral em Barthes quanto a sugestão apressada de que a discussão em torno do controle interpretativo exercido pelo Autor nunca foi uma preocupação maior entre os críticos de língua inglesa. Sobre o primeiro ponto, se Park estabelece uma equivalência absoluta entre Autor e indivíduo biográfico, Barthes, por sua vez, esclarece que dar ao texto um Autor, para além de qualquer leitura meramente biográfica, é lhe impor “um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura” (BARTHES, 2004, p. 63). Dessa forma, o papel de Autor como ponto de convergência interpretativo pode ser desempenhado não só pela imposição de sentidos advindos da “pessoa” autoral, mas também daquilo que o ensaísta francês classifica como suas hipóstases, sua “substância”: “a sociedade, a história, a psiquê, a liberdade” (BARTHES, 2004, p. 63). Com efeito, a própria crítica literária pode ocupar uma posição Autoral, segundo esse cálculo. Embora pareça evidente, cabe repeti-lo: para Barthes, destronar o Autor não significa deixar de lado apenas a interpretação de ordem biográfica, mas sim restituir o texto a uma linguagem verdadeiramente sua, livre de estruturas de controle preconcebidas – “indivíduo autor”, “gêneros literários”, “escolas literárias” etc. – que detêm o seu movimento constitutivo. Quanto ao comentário de que o Autor nunca se pôs como obstáculo interpretativo para os críticos de língua inglesa, bastaria citar passagens de ensaios célebres sobre o tema para indicar sua vagueza: “a crítica honesta e a avaliação sensível dirigem-se, não ao poeta, mas à poesia” (ELIOT, 1989, p. 42); ou então, “não é em suas emoções pessoais, as emoções induzidas por episódios particulares de sua vida, que o poeta se torna, de algum modo, notável ou interessante” (ELIOT, 1989, p. 46) – “Tradição e talento individual” (1919); “argumentamos que o desígnio ou a intenção do autor não é nem acessível nem desejável como padrão para julgar-se o êxito de uma obra de arte literária” (WIMSATT; BEARDSLEY, 2002, p. 641); ou ainda, “há [...] o risco de se confundirem os estudos biográficos e os poéticos, havendo o perigo de tomar-se o biográfico pelo poético”

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(WIMSATT; BEARDSLEY, 2002, p. 647) – “A falácia intencional” (1946). O interessante é que o capítulo de Park de fato alude aos ensaios de Eliot e de Wimsatt e Beardsley, porém, ao fazê-lo, abandona o seu ponto de partida para lançar uma disputa em termos de precedência temporal, ou melhor, de “origem”: “Barthes questiona a intencionalidade do Autor; ‘a falácia intencional’ atingiu a crítica americana em 1946. Os new critics nos afastaram do poeta em direção ao Poema Em Si? Em 1963, Barthes também o fez” (PARK, 2005, p. 325). Se antes o Autor não estava presente na pauta de preocupações dos críticos de língua inglesa, agora não só parece estar como parece ter estado já há muito tempo, sem que Barthes os tenha reconhecido como seus verdadeiros antecessores. Ora, tudo isso significa, então, que o texto de Clara Claiborne Park em nada acrescenta à questão proposta por Theory’s empire acerca das supostas contradições da Teoria? Muito embora a autora repetidas vezes erre o alvo em suas críticas, há algo no texto “Author! Author! Reconstructing Roland Barthes” que, mais uma vez, pode ser visto como sintoma das demais leituras presentes no livro de Patai e Corral, a saber, a sensação de que, nas operações da Teoria, não raro vemos circular um conteúdo que se apresenta, por assim dizer, “fora de lugar”. Logicamente, não se trata aqui de um “fora de lugar” capaz de atuar no campo das diferenças, tal como deseja a Teoria, mas sim um desvio contextual que, reencenado como tal, engendra um novo formalismo, ou melhor, uma gramática teórica mais perniciosa que as anteriores, pois oculta por detrás de si uma faceta pretensamente política. Partindo dessa intuição primeira, que resulta da leitura do texto de Park e ronda os demais ensaios de Theory’s empire, o presente capítulo propõe-se a explorar um caso particular em que as contribuições da Teoria mostram-se a serviço de um emprego crítico gramaticalizante e avesso às próprias construções que a princípio lhe servem de base. Chamemos o exemplo de “caso Bartleby”, e seus efeitos de “rastros Autorais da Teoria”, indícios tanto da atualidade do problema formulado por Barthes quanto da permanente reconfiguração ou “reconstrução” dos esquemas Autorais de controle do texto.

11.1 A fórmula como potência Se quando de sua publicação, “Bartleby, o escrivão” (1853), de Herman Melville, não chamou a atenção da crítica, é bem verdade que, nas

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Esse efeito desconcertante apresenta-se inclusive como um problema de tradução. A frasefórmula “I would prefer not to”, quando traduzida para o português como “acho melhor não” ou “preferiria não”, perde parte da gramaticalidade excessiva que traz inscrita em si, pois a ocorrência mais usual e provável da formulação seria, em inglês, “I had rather not” (cf. DELEUZE, 1997, p. 80).

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últimas décadas, as marcas do conto passaram a se confundir com aquelas da sua recepção por parte de muitos dos epígonos da Teoria. O enredo, portanto, já não nos é estranho; pelo contrário, o desafio consiste em reportar-se a ele sem correr o risco de tomar como seu o campo conceitual a partir do qual tem sido tratado. Em poucas palavras, a história de Melville concentra-se nos acontecimentos decorrentes da chegada de Bartleby ao escritório de um advogado de Wall Street – narrador do conto cujo nome não nos é revelado – que decide contratá-lo para desempenhar, entre outros pequenos ofícios, a atividade de copista. De um empregado exemplar, Bartleby passa gradativamente a “achar melhor não” mais realizar as suas tarefas, resguardado justamente pelo efeito desregulador de sua frase [“I would prefer not to”].1 A posição do copista desestabiliza as regras do escritório, e o poder de contágio de suas palavras é observado inclusive pelo advogado: “Não sei por que, eu também tinha adquirido o hábito de usar a expressão ‘acho melhor’, mesmo nas ocasiões menos adequadas” (MELVILLE, 2005, p. 20). Enfim, a eficácia do “preferir não”, ou “achar melhor não”, estaria na capacidade (linguística) de deslocar os papéis que cabem a cada um na relação patrão-empregado, ou ainda, de provocar uma reapropriação desconfortável da própria expressão, um uso fora de lugar. E não se pode negar: apesar de sua recepção inicial, o conto é de fato impregnante. Para além das paredes que organizam a divisão do trabalho no escritório do advogado, a frase de Bartleby parece ter contaminado também a atividade intelectual de autores como Maurice Blanchot, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jacques Rancière e Giorgio Agamben, apenas para citar os nomes mais célebres. Dessa forma, como prova posterior do caráter penetrante das palavras do copista, e como uma sorte de reescrita não literária daquilo que se passa no conto, ao abordar os episódios recontados pelo advogado, a Teoria reencena paralelamente o dilema de encontrar-se sob um efeito como que hipnótico do “achar melhor não”, deslocando para si a constatação consternada do narrador: “Então você também adotou a expressão”. Mas por onde caminham as análises desses autores? Afora seu evidente poder de contágio, o que há em Bartleby, o escrivão, afinal

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de contas, que faz do conto um objeto como que incontornável para as manobras da Teoria? No texto “Bartleby, ou a fórmula”, que integra o livro Crítica e clínica, Deleuze sugere que, embora seja gramaticalmente correta, há na frase de Bartleby uma extravagância e um término abrupto (not to) que, aliados à sua constante “reiteração e insistência”, conferem a ela “a mesma força, o mesmo papel que uma fórmula agramatical” (DELEUZE, 1997, p. 80). Essa “agramaticalidade”, produzida em excesso pela própria literatura – o autor cita, entre outros, Cummings, Carroll e Kafka –, “é arrasadora, devastadora, e nada deixa subsistir atrás de si” (DELEUZE, 1997, p. 82). Na verdade, o que a fórmula arrasa são as convenções da linguagem, a lógica de pressupostos e referências que a estrutura: “a fórmula ‘desconecta’ as palavras e as coisas, as palavras e as ações, mas também os atos e as palavras: ela corta a linguagem de qualquer referência, em conformidade com a vocação absoluta de Bartleby, ser um homem sem referências” (DELEUZE, 1997, p. 86, grifo do autor). Liberta de seu procedimento referencial, a linguagem já não mais captura seus objetos; opera, antes, no sentido de produzir singularidades, dessemelhanças e desidentificações. A fórmula de Bartleby, ao fazer desmoronar diante de si o funcionamento lógico da linguagem, institui um jogo que não pode ser absorvido por regras estáveis, que não se manifesta, em última instância, como experiência apreensível ou replicável. Talvez seja por isso que Deleuze inicia seu texto observando que “Bartleby não é uma metáfora do escritor, nem símbolo de coisa alguma” (DELEUZE, 1997, p. 80). Para funcionar, a fórmula precisa retirar-se do campo dos símbolos, metáforas ou referências, entregando-se, quando encerrada sua atividade corruptora, ao próprio silêncio, ao desaparecimento, seu destino inevitável: O efeito é o mesmo: cavar na língua uma espécie de língua estrangeira e confrontar toda a linguagem com o silêncio, fazê-la cair no silêncio. [...] O próprio Bartleby só tinha como saída calarse e retirar-se para trás de seu biombo cada vez que pronunciava a fórmula, até seu silêncio final na prisão. Depois da fórmula não há mais nada a dizer: ela equivale a um procedimento, supera a sua aparência de particularidade. (DELEUZE, 1997, p. 85).

Agamben, por sua vez, lê Bartleby como alguém que cessa de desempenhar sua atividade para se colocar como “uma figura extrema do nada

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À experiência de uma tautologia, isto é, de uma proposição que é impenetrável às condições de verdade, porque é sempre verdadeira (“o céu é azul ou não azul”), corresponde, em Bartleby, a experiência do poder ser verdade e, ao mesmo tempo, não verdade de alguma coisa. Se ninguém sequer se sonha a verificar a fórmula do escrivão, é porque o experimento sem verdade não diz respeito ao ser em acto o que quer que seja, mas exclusivamente ao seu ser em potência. E a potência, enquanto pode ser ou não ser, é por definição subtraída às condições de verdade. (AGAMBEN, 2008, p. 34-35, grifo do autor).

É também como uma “fórmula que se opõe à história, à intriga aristotélica, [...] ao símbolo e à ideia de um sentido oculto por detrás do texto” (RANCIÈRE, 1998, p. 179) que Rancière entende o conto de Melville. No texto “Deleuze, Bartleby et la formule littéraire” [“Deleuze, Bartleby e a fórmula literária”], presente em La chair des mots: politiques de l’éscriture [A carne das palavras: políticas da escrita] (1998), o autor se vale da leitura deleuziana de “Bartleby”2 para afirmar a sua conhecida tese sobre a relação 2

Com efeito, a leitura de Rancière busca tensionar o texto de Deleuze principalmente no sentido de alertar que “não se passa da encantação multitudinária do ser em direção a uma justiça

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de onde procede toda a criação”, alguém que reivindica o “nada como pura, absoluta potência” (AGAMBEN, 2008, p. 25). No texto intitulado “Bartleby, ou da contingência” (2008), o filósofo italiano comenta que a fórmula de Bartleby, para ser potência enquanto tal, deve revelar-se também como uma potência de não pensar ou fazer algo. Em outras palavras, a reivindicação da potência tem de significar, ao mesmo tempo, a possibilidade de fazer e não fazer algo, de pensar e não pensar alguma coisa, ou seja, não é como força ativa que a potência absoluta se apresenta, mas sim como “aquilo que se mostra no limiar entre ser e não ser, entre sensível e inteligível, entre palavra e coisa, não é o abismo incolor do nada, mas o raio luminoso do possível” (AGAMBEN, 2008, p. 30). A frase de Bartleby não se deixa apreender pelas operações da ciência ou da razão por atuar em uma zona limítrofe, por não ser nem uma coisa nem outra, mas a potência de concretização ou não de ambas; desse modo, o valor de verdade da fórmula não pode ser verificado, pois é justamente o regime de verdade que é por ela posto em questão. Tal como no texto de Deleuze, Bartleby aparece, para Agamben, como uma espécie de homem sem referências, situado no campo das potencialidades:

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entre literatura e representação: “a fórmula conduz à catástrofe a ordem causal do mundo que chamaremos de ‘mundo da representação’. A fórmula de Bartleby realiza, assim, em cinco palavras, um programa que poderia resumir a própria novidade da literatura” (RANCIÈRE, 1998, p. 180). Ao contrário da arquitetura classificatória do modelo aristotélico, a literatura – e, do mesmo modo, a fórmula de Bartleby – desestrutura a distribuição estável dos papéis que caberiam a cada personagem no chamado “mundo da representação”. Segundo Rancière, com o surgimento da literatura, o célebre princípio de Flaubert por fim se efetiva: já “não há temas bons nem temas ruins”, pois a escrita literária opõe às leis da mimesis personagens sem traços individualizantes. Segue disso a necessidade que Rancière demonstra de reafirmar que Bartleby não é símbolo da condição humana ou de coisa alguma; se entendido como tal, a potência de sua fórmula se desfaz para inaugurar novas regras literárias, um novo “mundo da representação”, digamos. Em suma, Bartleby é apenas “uma fórmula, uma performance” (RANCIÈRE, 1998, p. 179), e, nesse sentido, a potência de suas palavras depende diretamente de seu apagamento posterior. Ora, não é essa mesma indeterminação que compromete a arquitetura classificatória dos gêneros literários, a ideia de um homem sem referências que rejeita o estatuto de símbolo e se posiciona como potência também de não, o aspecto que Derrida e Blanchot ressaltam no conto de Melville? Ou, pelo menos, algo semelhante a isso? O “acho melhor não” de Bartleby

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[...] evoca o futuro sem prometer algo ou predizê-lo; não profere nada fixo, determinável, positivo ou negativo. [...] Mas ao não dizer nada geral ou determinável, Bartleby não está simplesmente dizendo nada. [...] Sua indeterminação cria uma tensão, abre-se para uma espécie de reserva de incompletude. (DERRIDA, 1995, p. 75).

Para Derrida, portanto, Bartleby constitui uma visão do futuro cuja natureza específica não pode ser determinada, devendo-se a essa incompletude fundamental – eis o seu paradoxo constitutivo – a potência de sua linguagem. Para Blanchot, por sua vez, a frase de Bartleby é eficaz por conta de um conteúdo que não pode ser medido e de um movimento de recusa que não é simplesmente deliberado: “a recusa, digamos, é o primeiro grau da passividade; política. A literatura não abre passagem alguma em direção a uma política dionisíaca ou deleuziana” (RANCIÈRE, 1998, p. 202).

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11.2 A fórmula como fórmula Ora, se já é um desafio acreditar que as leituras de “Bartleby” por parte da Teoria habitam exclusivamente o campo das singularidades, dada a sua obsessão também referencial – “Bartleby”, de novo –, o sonho de compor uma comunidade literária de Bartlebies, uma galeria de copistas que corrompem as normas por meio de fórmulas linguísticas agramaticais, nada mais é que uma contradição conceitual pouco produtiva. Longe de operar a partir do singular, produz-se apenas uma fórmula normativa, um outro formalismo em que o “qualquer” é de pronto apropriado por um olhar habituado àquilo que procura. O texto de Agamben que integra o livro A comunidade que vem (2013) é claro nesse aspecto:

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mas se ela é deliberada ou voluntária, se ela exprime uma decisão, mesmo que seja negativa, ainda não permite cortar o poder da consciência, restando no máximo um eu que recusa” (BLANCHOT, 1980, p. 33). Em outras palavras, a fórmula de Bartleby perde de imediato sua capacidade de resistência se o personagem for convertido em um sujeito que age de modo deliberado, ou melhor, se suas ações forem tomadas como parte de um programa coerente proposto por um “eu” sensível. Cabe ressaltar aqui, novamente, que é com o abandono de traços individuais que a fórmula de Bartleby assume seu caráter singular; o escrivão situa-se para além de qualquer possibilidade de tornar-se símbolo ou referência para um projeto político autoconsciente. Embora a partir de um gesto a princípio paradoxal, pois a constante reapropriação do conto de Melville realizada pela Teoria não deixa de convertê-lo em uma espécie de pressuposto partilhado ou, no mínimo, em um tipo de obsessão referencial a que ela se volta, os ensaios citados provam estar de acordo em um ponto fundamental: a potência da fórmula – sua capacidade de apagar referências, de estabelecer deslocamentos, de desierarquizar, de redistribuir papéis, enfim, de resistir – depende de um abandono posterior. Como performance, Bartleby não se torna jamais um exemplo possível; pelo contrário, revertido em exemplo, sua fórmula perde a potência para a seguir se reapresentar apenas como um projeto formulaico. Se há uma “lição” em “Bartleby, o escrivão”, essa é uma lição às avessas: só é possível realizar uma experiência “bartlebiana” traindo a sua terminologia inicial.

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[...] o ser que vem é o ser qualquer”, ou seja, o ser tomado em sua singularidade enquanto tal, “pois o amor não se dirige jamais a esta ou aquela propriedade do amado, mas tampouco prescinde dela em nome da insípida generalidade [...]: ele quer a coisa com todos os seus predicados, o seu ser tal qual é. (AGAMBEN, 2013, p. 11).

O que vincula o ser a uma comunidade qualquer, o que o une ao universal, digamos, não é uma “fórmula” partilhada ou um traço seu pertencente também a outros, mas sim o seu ser tal qual que, assim tomado, não se desliga nem do particular nem do geral. Compor uma comunidade de “Bartlebies” significaria, em última instância, particularizar os traços identitários do personagem que fariam dele um ser para a comunidade, ou melhor, dirigir-se justamente para esta ou aquela propriedade sua. Uma verdadeira comunidade “bartlebiana”, por outro lado, só seria possível se preservada a potência de não do personagem, a potência de não ser aquele por quem a Teoria agora o toma. Sob o ponto de vista da literatura, adentrar o texto com pressupostos claros, sejam estes os de localizar homens sem pressupostos ou não, significa necessariamente subtrair o literário da esfera de suas singularidades, isto é, da constituição específica que resulta de todos os seus predicados, e não apenas daqueles que o aproximariam de uma experiência de leitura anterior. As marcas de um tal procedimento são visíveis: em nome de deslocamentos, hecceidades, diferenças, singularidades, linhas de fuga, agramaticalidades, enfim, de uma “comunidade por vir” composta de “Bartlebies” ou do “qualquer”, as análises do literário giram em torno de pressupostos anteriores à vivência do texto, partindo de conceitos que, intocados por seu objeto, constituem também seu próprio ponto de chegada. Ao contrário de Bartleby, cuja resistência atinge o ápice no momento em que o silêncio final, a sua morte, inaugura o desejo narrativo do advogado do conto, a crítica encontra-se protegida pela gramaticalização de seus conceitos, pela empresa supostamente política que o diálogo com determinados termos parece sempre assegurar. Não há como se perder no meio do caminho. Aliás, já estamos aqui longe dos riscos que cercam a atividade, entre outros, dos poetas, a quem Bartleby certamente se associa:

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Na floresta encantada da Linguagem, os poetas entram expressamente para se perder, se embriagar de extravio, buscando as encruzilhadas

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A comunidade de Bartlebies vislumbrada em ensaios, artigos, livros, dissertações e teses – e também em romances – não passa, em suma, de um encontro seguro e constante promovido com as sombras da Teoria. Esse encontro pode até alimentar o produtivismo acadêmico – “eis aqui mais um Bartleby para a nossa galeria” –, mas situa-se muito longe do campo de singularidades que Agamben, Deleuze e seus pares descortinaram no conto de Melville e na fórmula do escrivão. Curiosamente, a saída desse impasse é sinalizada a todo o momento pelos próprios textos antes citados: a verdadeira potência da Teoria – a “lição” que ela não deixa de repetir – está no fato de que só é possível atuar sob seus auspícios de maneira singular traindo parcialmente seus próprios conceitos. O que a Teoria nos ensina, em última instância, é que suas próprias operações “profanatórias” precisam de uma “profanação” posterior que impeça uma rápida reabsorção sua por parte dos dispositivos sacralizadores. Profanar, dessacralizar a Teoria: talvez essa seja uma resposta viável para alguns dos dilemas expostos no livro Theory’s empire. Isso não representaria um simples retorno ao texto literário em si ou uma posição avessa às contribuições da Teoria, tampouco uma condição pré-Teórica; significaria, antes, um contato aberto e novo com a literatura, capaz de liberar “fórmulas” ou sentidos imprevistos até então. Logicamente, o “caso Bartleby” constitui apenas uma amostra da eficiência com que os esquemas de controle Autorais do texto se atualizam. De modo paradoxal, uma vez convertida a Teoria em um modus operandi – ou seja, convertida naquilo que ela a todo o instante confronta –, o texto literário, por exemplo, passa a ser lido a partir de uma perspectiva homogeneizante, ainda que sob o emblema das singularidades e da diferença. Nesse caso, para atingir o “qualquer” vislumbrado pela Teoria, seria necessário trair seus procedimentos, propor um campo conceitual advindo também dos objetos investigados e que não estabeleça com clareza e de antemão os limites da atividade crítica. Como se sabe, a chamada crise da Teoria decorre do lugar

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de significação, os ecos imprevistos, os encontros estranhos; não temem os desvios, nem as surpresas, nem as trevas – mas o visitante que se afana em perseguir a “verdade”, em seguir uma via única e contínua, onde cada elemento é o único que deve tomar para não perder a pista nem anular a distância percorrida, está exposto a não capturar, afinal, senão sua própria sombra. Gigantesca, às vezes; mas sempre sombra. (VALÉRY, 2002, p. 22).

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consensual que ela agora ocupa; conferir nova mobilidade à Teoria significa, nesse momento, valer-se dela mais uma vez para profanar seus termos.3

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Referências

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AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. AGAMBEN, Giorgio. “Bartleby, ou da contingência”, seguido de “Bartleby, o escrivão”, de Herman Melville. In: AGAMBEN, G.; PAIXÃO, P. A. H. (Ed.). Bartleby, escrita da potência. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. BARTHES, Roland. Da obra ao texto. In: O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla PerroneMoisés. São Paulo: Cultrix, 1977. BLANCHOT, Maurice. L’écriture du desastre. Paris: Éditions Gallimard, 1980. CACHOPO, João Pedro. Exasperar Bartleby: fórmula – alegoria – reticência. Aletria, v. 24, n. 3, p. 11-23, 2014. DELEUZE, Gilles. Bartleby ou a fórmula. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997. DERRIDA, Jacques. The gift of death. Trad. David Wills. Chicago: University of Chicago Press, 1995. DURÃO, Fabio Akcelrud. Giros em falso no debate da teoria. Alea, v. 10, n. 1, p. 54-69, 2008. 3

No momento em que o presente livro encaminhava-se para a gráfica, deparei-me com o artigo de João Pedro Cachopo, da Universidade de Lisboa, intitulado “Exasperar Bartleby: fórmula – alegoria – reticência”. O texto serve como complemento e contraponto para alguns dos elementos apresentados ao longo deste capítulo; sua conclusão, contudo, não deixa de remeter ao argumento central aqui defendido: “A literatura tem uma política que lhe é própria. E, nesse sentido, se Bartleby se parece com a literatura, ou vice-versa, é num esquivar-se à interpretação que fragmenta, multiplica, dispersa leituras possíveis mais do que as rechaça em bloco como impossíveis. Mas reconhecer a especificidade da ‘política da literatura’ não implica apenas preferir não tomar a personagem por emblema de uma eventual comunidade ou humanidade vindoura; implica também preferir não tomar o procedimento como bitola de uma qualquer política por vir [...]”. (CACHOPO, 2014, p. 21-22, grifo do autor).

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ELIOT, Thomas Stearns. Ensaios. Trad. Ivan Junqueira. São Paulo: Art, 1989. MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão. Trad. Irene Hirsch. São Paulo: Cosac Naify, 2005. PARK, Clara Claiborne Park. Author! Author! Reconstructing Roland Barthes. In: PATAI, Daphne; CORRAL, Will H. (Ed.). Theory’s empire: an anthology of dissent. New York: Columbia University Press, 2005. RANCIÈRE, Jacques. Deleuze, Bartleby et la formule littéraire. In: La chair des mots: politiques de l’écriture. Paris: Éditions Galilée, 1998. VALÉRY, Paul. Discurso sobre a estética. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 1. WIMSATT, W. K.; BEARDSLEY, M. C. A falácia intencional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 2.

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Kakfa, Rulfo, Beckett: retorno ao mito 1

Eduardo Subirats

12.1 A teologia da morte da arte Uma anedota talvez possa ser mais esclarecedora do vazio intelectual que hoje envolve a máquina acadêmica do que mil argumentos intrincados. Contaram-me que, em certa ocasião, um comitê de professores de um departamento de literatura havia se reunido para avaliar uma proposta de tese de doutorado, procedimento absolutamente rotineiro em forma e fundo. No entanto, a pesquisa submetida ao escrutínio do comitê pretendia analisar a presença da Magna Mater sob as figuras de Pachamama, Ci e Coatlicue em uma série de obras literárias e artísticas latino-americanas do século XX, e esse não era um ato precisamente rotineiro para o departamento em questão. A candidata ao grau de doutor parecia fascinada por esses mitos das Deusas-Mãe ou, mais especificamente, por seu misterioso poder sedutor e fecundo. Seria possível dizer que, por meio dessas visões literárias modernas do mito milenar da Grande Deusa, Mahadeva, Ci ou Ge, a partir dos romances de Arguedas, Rulfo ou Mário de Andrade, bem como da pintura de Tarsila do Amaral, ela havia descoberto uma luz que iluminava toda a sua existência. 1

Traduzido do espanhol pelo organizador do volume.

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Mas a diretora do comitê se interpôs em seu caminho com um julgamento sumário: “você não pode desenvolver essa tese. Você insiste no mito. Literatura não é mito, é texto”. Em seguida, acrescentou com um gesto de dissimulada convicção corporativa: “Tudo é texto!” A esse veredito somaram-se outros por parte dos demais membros do júri. O objetivo não era senão o de impedir qualquer discussão possível sobre o vínculo substancial entre a narrativa literária e artística e os destinos humanos cristalizados nos mitos que atravessam a história da Weltliteratur, de Gilgamesh a Macunaíma. Essa história é incrível. De imediato, a pompa e a arrogância de seu juízo final deixaram-me sem alento. Não que a trivialização literária e teórica que acompanha as rotinas acadêmicas de nossas melhores universidades nos dias de hoje tenha me surpreendido. Tampouco poderia me surpreender o fato de que a compreensão hermenêutica e a reflexão estética e filosófica sobre a criação artística e literária estivessem juridicamente subordinadas ao poder de decisão de um novo exército de especialistas medíocres. Tudo isso eu já sabia por experiência própria em sucessivas universidades e nações.2 Também estava muito consciente de que as memórias mitológicas e as experiências humanas ligadas a elas, sem falar nos vínculos entre mito e desenvolvimento da psique humana, ou entre mito e esclarecimento, eram questões proibidas pela escolástica estruturalista e pós-estruturalista que rege rigorosamente as salas de aula norte-americanas. Tudo isso eu já sabia. Mas nunca antes havia me chocado com uma proibição tão violenta e brutal, nem havia tido até então que me confrontar com a redução da literatura a uma textualidade plana e a uma retórica formalista até o limite de seu completo esvaziamento. Nunca antes havia presenciado uma condenação mais ignorante de toda experiência estética capaz de combinar a psicologia e a mitologia ao longo da história cultural dos povos. Nunca antes havia me confrontado com a proibição disciplinar de toda experiência estética que compreenda as memórias mitológicas dos povos, sua visão do passado e do futuro e o diálogo exemplar dessas memórias populares com a literatura clássica da modernidade latinoamericana. 2

Ver Subirats (2009, p. 13 e ss).

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Os teólogos da Inquisição já haviam definido os mitos como as vozes e os ícones do demônio, mas isso significava reconhecer a experiência mitológica como uma mediação entre o espírito e a carne, entre a existência humana e o universo, por mais condenatório que esse reconhecimento tenha sido. Aparentemente, o gramatólogo pós-moderno dá um passo além, declarando pura e simplesmente a inexistência da memória mitológica e proibindo toda experiência estética e ritual que envolva os deuses das mitologias antigas e modernas, seus vínculos ontológicos com a natureza e a consciência humana. Essa foi a palavra de ordem. A arte é texto e nada mais que texto. A experiência estética tinha de esvaziar-se de seus momentos rituais e catárticos e, ao mesmo tempo, evaporar o significado cognitivo vinculado a seus componentes miméticos e expressivos. A interpretação se reduz a sua decodificação a partir de determinados formatos gramaticais e retóricos preestabelecidos. Seu penúltimo postulado positivista: um grau zero da escritura, ponto de partida da redução da experiência literária e artística a um dualismo básico do prazer ou desprazer do texto, além das correspondentes ladainhas antiestéticas. Esse grau zero da literatura coincide com a anulação dos vínculos mitológicos da memória humana com o cosmos e a natureza e com sua própria evolução histórica e pessoal. Coincide com a exclusão dos momentos profundos da experiência individual e com a volatilização de seus sentimentos e emoções. Coincide, ainda, com um humano abstrato, uma experiência abstrata do real, uma sociedade abstrata e formas de vida inteiramente abstratas e racionalizadas. Suas últimas consequências: a neutralização da experiência estética, a transubstanciação da arte em fetiche e a redução da literatura à ficção. Reivindicar uma experiência literária como reflexão sobre os princípios primeiros em que se assenta nossa concepção de vida e morte, de paz ou guerra e de harmonia ou desarmonia do humano no cosmos, no sentido com que nos brindam romances modernos como Grande sertão: veredas ou Doktor Faustus, é algo completamente fora de lugar na máquina acadêmica. A descoberta da raiz última da experiência estética na fundamentação mítica e metafísica da mímesis, que tanto a pintura de Klee quanto a poética de Arguedas representam, é rotulada como um completo desatino. A conclusão desse processo negativo que atravessa a produção

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industrial da literatura como ficção e entretenimento é a morte da arte. Seu produto final: uma ficção subordinada às gramáticas da academia e às leis do mercado.3 A insistência no caráter linguístico da obra literária, a subsequente clausura dos vínculos existenciais e sociais das expressões artísticas, bem como a subordinação final da experiência estética aos códigos morais e políticos institucionalmente sancionados como retóricas politicamente corretas, conduziram a criação, a experiência e a teoria literária a um deserto e páramo previsíveis. Romances de butique, jornalismo literário e uma antiestética sem conceito próprio, acompanhados da redução da crítica literária à repetição indefinida de um estruturalismo degradado e escolástico, são os sintomas visíveis de uma cultura corporativamente administrada. Em nosso panorama histórico mundial, de uma crise humanitária, ecológica e militar muito mais dramática, as bandeiras do fim da arte e a irrelevância de uma literatura reduzida à ficção e entretenimento aparecem como troféus vitoriosos em meio a prêmios e festivais e à disseminação global de best-sellers. Não, não era possível defender a tese de doutorado sobre a memória mitológica na literatura latino-americana moderna, muito menos tratandose de Coatlicue, Ci ou a Pachamama, The Goddesses of America. Neste capítulo eu insisto justamente em uma direção contrária: recuperar as dimensões semânticas, simbólicas e mitológicas dos signos, transformar a decodificação rotineira da literatura em um meio de abertura da nossa consciência à percepção mágica das coisas, ao esclarecimento de nossa existência e ao prazer do jogo e do riso.

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12.2 A orfandade do sujeito moderno Kafka, Rulfo e Beckett: suas obras podem ser consideradas exemplares porque esclarecem experiências profundamente traumáticas propagadas pelas sucessivas crises, guerras e genocídios do nosso tempo histórico. São 3

Em minha interpretação de cinco romances clássicos da literatura latino-americana do século XX, (SUBIRATS, 2014), contemplo esse processo de degradação industrial da cultura comercialmente etiquetada como pós-moderna a partir de seu lado afirmativo: restaurando os caminhos mitológicos, psicológicos e metafísicos que atravessam as obras de Mário de Andrade, Juan Rulfo, Guimarães Rosa, José María Arguedas e Roa Bastos como transcendência espiritual de uma era conturbada.

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exemplares porque manifestam situações humanas extremas nas fronteiras da razão e da esquizofrenia, e também porque iluminam o dilema de uma existência humana degradada a partir de suas origens mitológicas e metafísicas. Quero ressaltar, ademais, que utilizo enfaticamente as categorias de esclarecimento mitológico, de cosmos metafísico e de reflexão psicológica com a clara consciência de que sua exclusão como dimensões fundamentais de toda expressão artística é, hoje, o objetivo programático das antiestéticas disseminadas pelas corporações do conhecimento, em benefício de análises linguísticas e categorias sociológicas alheias a qualquer conceito ontológico de obra de arte. Para começar, desejo insistir nas figuras literárias da crise da consciência moderna que esses autores descrevem. Além disso, quero assinalar uma particularidade comum que, ao mesmo tempo, é a porta de entrada real e fundamental para o seu universo simbólico e mitológico. Juan Preciado, de Rulfo, Molloy ou o Inominável, de Beckett, e Josef K. ou K., de Kafka, apresentam-se, sobretudo, como existências condenadas e desamparadas. Suas biografias são sequelas de múltiplos traumas emocionais, de conflitos psicológicos e políticos irresolúveis, de uma dissolução da existência sob o signo da angústia. Seus perfis psicológicos são desenhados com traços fracos e atributos muitas vezes patológicos. Todos eles são indivíduos sem nome ou nomeados apenas com siglas e possuem uma aura espectral. São sujeitos emocional e intelectualmente mutilados. Constituem entidades linguísticas abstratas tanto de um ponto de vista psicológico quanto existencial. Esses personagens podem ser definidos como vidas órfãs. Todos eles carecem de pai e expressam um conflito profundo e irreparável com suas mães ou figuras maternas. Em Die Verwandlung, Kafka (1999) elabora a subversão da ordem familiar e a consciência de uma determinada orfandade como o objetivo último da experiência literária. Todos os personagens de Beckett são desoladamente órfãos. Também é órfão o narrador de Pedro Páramo, em todos os sentidos possíveis da palavra. Como Molloy e Josef K., Juan Preciado não tem um lar, carece de vínculos emocionais com a comunidade humana e com a natureza. O seu vazio espiritual é completo. Nenhum desses protagonistas mantém relações emocional e psicologicamente substanciais com suas raízes naturais, com as normas sociais ou as memórias culturais. Os vínculos que unem os personagens

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de Kafka à memória judia, e os de Rulfo à memória pré-colonial mesoamericana, são fragmentários e frágeis. Os personagens de Beckett estão enfaticamente desconectados do mundo social e natural. A realidade urbana e política é uma mera abstração, exterior ao destino de seus protagonistas. Os três modelos de consciência que representam as obras de Rulfo, Kafka ou Beckett compartilham uma mesma orfandade existencial, apesar das diferenças geopolíticas, culturais e religiosas que distinguem esses três escritores: um asteca, sob a opressão colonial católica; um judeu centro-europeu, em conflito com a teologia política cristã; e, por fim, um celta, com uma consciência incurável da civilização ocidental. Mas Juan Preciado, K. e Josef K. ou Molloy também são órfãos em um sentido mais profundo. São órfãos em um mundo alienado e fragmentado até o limite de sua total incompreensibilidade. São seres arrancados de suas origens biológicas e linguísticas em um sentido ontológico radical. Sua existência cortou todos os vínculos que a uniam à natureza e à comunidade humana. Psicologicamente, distinguem-se como sujeitos sem memória, sem experiências, sem sonhos. Sujeitos vazios. Podemos falar de uma orfandade social e cósmica e de um ser-no-mundo órfão em todos esses romances. Orfandade no sentido definido por Arguedas a partir da palavra quéchua huaq’cho: “aquele que não tem nada..., está sentimentalmente cheio de grande solidão... é um sub-homem...” (ARGUEDAS, 1993, p. 206). Podemos falar de um estar privado de um tempo e espaço próprios, de haver sido privado de seres e arrancado do ser. Mas podemos também estender essa orfandade aos vínculos mitológicos que unem a consciência e o ser. Podemos nos referir a uma orfandade existencial no interior de um sistema dominado por burocracias policiais, pela corrupção jurídica e econômica ou por um violento sexismo patriarcal. Podemos falar de uma orfandade mitológica, política e jurídica sob um poder arbitrário, opressivo ou criminoso nas obras de Kafka, Rulfo e Beckett. Não menos importante, a orfandade e o minimalismo linguístico de seus narradores são relevantes do ponto de vista de sua dupla função estrutural no romance como forma. O narrador é o sujeito que organiza a narrativa linguística e composicionalmente; é a espinha dorsal que sustenta a unidade espacial e temporal da narrativa. Enfim, é o núcleo que dá sustentação aos sentidos ou sem sentidos humanos do mundo literário

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que representa. Ao mesmo tempo, todo romance constrói um modelo ideal de consciência com o qual a experiência estética subjetiva do leitor tem necessariamente de se identificar ao longo da leitura. A decadência e a desarticulação do narrador implicam, por conseguinte, o questionamento e a própria destruição de sua função organizadora do romance como projeto estético e civilizatório, além de manifestar a fragmentação da consciência moderna ao longo desse processo.

O verbo “identificar” e o substantivo “identidade” são, em primeiro lugar, categorias lógicas e ontológicas. Suas formas clássicas – “A=A”; “o que é, é; e o que não é, não é” – encerram o princípio excludente de uma realidade não dual em que a vida e a morte, o ser e o não ser, fundem-se em uma unidade superior, dinâmica e criadora. Semelhante exclusão da realidade em seus aspectos miméticos e misteriosos torna esse conceito lógico/ontológico de identidade inapropriado para definir a identificação psicológica e estética à qual serve toda narrativa e todo narrador. Encontrase, antes, em seus antípodas. Nós nos identificamos com uma personalidade, suas paixões e conflitos, que entendemos como alheios e, ao mesmo tempo, sentimos, mesmo que por um só instante, como mais verdadeiros que nós mesmos. E experimentamos uma identificação simbólica, isto é, ao mesmo tempo intelectual e emocional, com tudo que nos assombra como algo desconhecido e revelador. Trata-se de uma identificação no sentido de uma consciência romântica: a constituição de um estado intelectual e emocionalmente receptivo da unidade não dualista do ser. Mas é uma identificação ao mesmo tempo antirromântica, pois consciente da dissolução histórica ou civilizatória dessa harmonia originária (cf. SCHELLING, 1976, p. 29). A palavra grega sympatheia e o verbo alemão einfühlen são relevantes para a definição dessa identificação cognitiva, pois compreendem uma penetração intelectual e um envolvimento emocional com a pessoa ou coisa com que nos identificamos. Einfühlen ou sympatheia como a imersão no ser do outro até nos fundirmos completamente nele. Também é pertinente, 4

Ver Andrade (1978, v. 6, p. 13).

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12.3 “Só me interessa o que não é meu”4

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nessa definição da identidade do não idêntico, o conceito psicanalítico de identificação, próximo aos fenômenos de projeção e transferência, ou mesmo de introspecção e introjeção. É pertinente a definição dessa identificação estética como um contágio mental de determinados conteúdos psíquicos. No entanto, o ponto de vista clínico, que Freud nunca abandonou, limitava essa identificação psíquica à formação do “Ideal de Eu” e aos fenômenos vinculados ao complexo de Édipo. A identificação estética e literária e as projeções, reflexões e introjeções que ela entranha abrem-se, ao contrário, a um processo esclarecedor de confrontação e apropriação de uma realidade estranha e desconhecida, assim como à subsequente ampliação da consciência através de sua reflexão. Nesse sentido, a identificação, a projeção e a introjeção constituem meios de reconhecimento subjetivo. São meios privilegiados da experiência literária do romance como narrativa dotada de um valor cognitivo e emocional próprio. O processo psicológico de identificação com os destinos de Josef K., perante os sistemas e aparatos da burocracia moderna, de Molloy, impossibilitado interna e reduzido externamente a uma existência minimalista, e de Juan Preciado, diante da brutalidade da corrupção moral e política do colonialismo tropical que Pedro Páramo representa, é relevante, portanto, porque abre as nossas consciências a um abismo existencial, esclarece literariamente os movimentos e as logísticas que conduziram a essa experiência terminal e manifesta uma última luz de esperança. É importante porque, sem recorrer a dualismos, abre a consciência individual ao não idêntico, a um mundo de decadência e alienação, de violência e opressão, e, ao mesmo tempo, a um universo mitológico e profundo.

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12.4 O sujeito linguistico e sua sombra O personagem Molloy, de Beckett, é um sujeito racional fundado em uma rigorosa lógica cartesiana e que institui um idealismo metafísico inspirado na filosofia de Berkeley. É, por conseguinte, uma consciência ontológica e psicologicamente vazia, linguisticamente constituída de entidades abstratas e objetivadas, em consonância com a tradição filosófica racionalista e cientificista ocidental, de Descartes a Kant. Só que esse sujeito racional e transcendental, essa autoconsciência científica – o sujeito moderno por excelência representado pelos narradores de Beckett –, é um

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“Tenho que falar, não tendo nada a dizer, nada a não ser as palavras dos outros. Não sabendo falar, não querendo falar, tenho que falar. Ninguém me obriga a isso, não há ninguém, é um acidente, é um fato” (BECKETT, 2009, p. 58).

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ser incapaz de orientar-se no espaço e no tempo. Na verdade, ele só é capaz de reconhecer os objetos e os signos mais elementares de seu entorno; sua inteligência só é capaz de realizar operações lógicas elementares, e sua expressão humana se limita a gestos torpes e grosseiros. Já não é possível enunciar o postulado geral do racionalismo moderno, Je pense, donc Je suis, sem provocar uma grande gargalhada. Molloy, Vladimir e Estragon, o Inominável... são, ao mesmo tempo, sujeitos racionais e criaturas existencialmente extraviadas em um mundo que não podem compreender em um sentido rigorosamente intelectual, nem podem reconhecer em um sentido rigorosamente existencial. O conflito formal que atravessa o romance de Beckett pode ser resumido como a constituição minimalista de um narrador e uma narrativa que se autodestroem em um mundo objetivo sujeito a um processo real de desintegração. Contudo, de um ponto de vista linguístico, esse conflito se traduz na impossibilidade de utilizar uma linguagem radicalmente afastada que não tenha perdido inteiramente sua função comunicativa e seus próprios referentes, até o limite de uma construção esquizofrênica da realidade e de uma autoconsciência autista. “I have to speak, whatever that means. Having nothing to say, no words but the words of others, I have to speak. No one compels me to, there is no one, it’s an accident, a fact”5 (BECKETT, 2006, p. 308) – pronuncia esse sujeito moderno por excelência, o Inominável. Trata-se de um caso privilegiado do ponto de vista da redução gramatológica da existência humana. Um sujeito linguístico em processo regressivo até atingir uma etapa pré-linguística da existência. No entanto, simbólica e mitologicamente, o Inominável ou Molloy, como a maioria dos personagens de Beckett, reúnem os traços elementares de um palhaço, do clown ou de um trickster. Ressalto que o palhaço ou o trickster não representam apenas figuras que provocam o riso; são entidades não em um sentido gramatical, mas substancial da palavra. Seres mitológicos. Deuses ou divindades vinculadas ao conceito grego de eidos e ao conceito latino de idea. São princípios ontológicos de identificação com os quais se articula intimamente o processo de individuação do humano como existência

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física, linguística, cognitiva e espiritual. Representam o aspecto substancial de um narrador cuja estrutura psicológica se situa nos limites de um reino arcaico, pré-lógico e pré-linguístico do ser. Assim, podemos nos identificar emocionalmente com os sujeitos literários, com os sujeitos lógicos e com os sujeitos linguísticos dos romances e do teatro de Beckett. Mas não nos identificamos com eles por serem lógicos ou gramáticos, mas sim porque são tricksters, são palhaços sagrados. Nós nos identificamos com eles porque, por meio da realidade pré-linguística e arcaica – e através da estrutura psicológica indiferenciada que representam –, questionam o ascetismo epistemológico do sujeito racional cartesiano e a antimetafísica técnico-científica construída em seu nome como sistema de uma civilização global. Por esse mesmo motivo, o narrador-palhaço de Beckett transforma uma narrativa repetidamente qualificada como “tediosa” em algo emocionalmente muito mais intenso do que a ladainha de um sujeito linguístico repetindo agonicamente que só existe por meio de uma linguagem, mais intenso que a cadeia de significantes que se desagregam na boca de quem os pronuncia como fungos podres – para recordar a metáfora de Hoffmanstahl. É esse fundamento mitológico e psicológico do trickster que eleva romances como Molloy, Malone dies ou The Unnamable à categoria de um drama humano e monumento artístico do nosso tempo.

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12.5 Mito e esclarecimento

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Os narradores K. e Josef K. já foram amplamente analisados pela crítica literária, e devo aqui apenas ressaltar um aspecto fundamental formulado por seu intérprete Günther Anders: a prosa de Kafka faz a realidade retroceder no que diz respeito às coordenadas morais e espaçotemporais da consciência humana comum. Seus relatos de situações humanas, princípios abstratos e objetos mais cotidianos os tornam estranhos, distantes e absurdos em relação à nossa própria consciência. Seus personagens tornam “fora de lugar” (entstellen) tanto a realidade empírica da experiência como a si mesmos. Através da identificação literária com esses seres afastados, arrancados da vida cotidiana, de suas memórias e da comunidade humana que lhes outorga um sentido, realizamos uma experiência estética, cognitiva e esclarecedora da realidade que ocultam,

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Ver Anders (1951, p. 10 e ss).

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Ver Leavitt (2012, p. 122 e ss).

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uma realidade sem nome nem conceito, uma realidade corrupta, opressora e sinistra tanto em seus aspectos psicológicos como políticos e legais. Verrücken é o verbo que Anders utilizou para definir esse processo de alienação, separação e divisão de uma realidade cotidiana objetivada: as formas de ser e pensar de uma família de classe média centro-europeia em Die Verwandlung; o sistema de poder espiritual, jurídico e político representado em Der Process; ou, por fim, a guerra social de todos contra todos no capitalismo moderno retratado em Der Verscholene. O verbo verrücken significa aparta-se, ficar para trás ou retirar-se de uma situação ou objeto. Ao mesmo tempo, esse olhar afastado da realidade e assombrado por ela desvela o seu caráter contraditório, irracional e autodestrutivo. Revela a sua loucura, sua paranoia ou sua esquizofrenia – os significados associados aos substantivos Verrücktheit e Verrückt. Essas dissociações formais nos permitem experimentar o mais cotidiano e familiar, bem como as normas e ações adaptadas segundo um princípio de repetição na vida cotidiana sob dimensões inexplicáveis e misteriosas, que foram repetidas vezes confundidas com um conceito aleatório de “surrealismo” ou “super-realidade”, ou, inclusive, neutralizadas sob a categoria formalista de uma literatura “fantástica”, mas que, na realidade, definem rigorosamente um choque psicológico violento entre uma consciência esclarecida e espiritualizada até o limite da visão mística e o nosso mundo objetivo, violento e incompreensível. Essas foram as intuições centrais que Anders explorou em seu ensaio de interpretação da obra de Kafka.6 Ao mesmo tempo, os romances O processo e O castelo encenam uma transformação espiritual e uma intensidade misteriosa que rememoram a cabala e a rosa-cruz.7 K. e Josef K. são órfãos e sujeitos mínimos e minimalistas, mas reúnem uma espiritualidade que os vincula às tradições místicas judias da Europa medieval. Sem dúvida, a encenação dessa dimensão espiritual não é ostensiva, mas nem por isso é menos fundamental. Desejo apenas assinalar um exemplo: a parábola da Lei, da ordem espiritual e jurídica do mundo. A saga é conhecida. Um camponês ante as portas da Lei – uma Lei, ao mesmo tempo, resplandecente e inacessível – e um guardião que não

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permite a entrada. Passam-se meses, anos. Finalmente, o camponês morre. Sua última pergunta: por que durante todo esse tempo ninguém tratou de penetrar no recinto sagrado da Lei? Resposta: estava reservado apenas para ti... Essa parábola, que coroa o significado mitológico de Der Process em uma cena final atravessada por uma confrontação teológica e política com um sacerdote cristão, encerra uma metáfora iniciática e mística. Seu protagonista, o sujeito moderno por excelência, só pode abraçar a plenitude do seu ser através do cumprimento da Lei, no sentido da halakha judaica ou do dharma hindu. Só pode realizar-se através de sua participação na ordem resplandecente da inteligência que rege o cosmos e o mundo humano. Mas esse mundo humano é corrupto, violento e incompreensível. A consciência moderna – representada pela vítima sacrificial Josef K., enquanto dois funcionários públicos enfiam a faca em seu coração, girando-a duas vezes – é definida pelas três palavras finais de Der Process: “Wie ein Hund!” – “Como um cão!” (KAFKA, 1999, p. 312). Wie ein Hund distingue a condição terminal do sujeito histórico e de uma existência sem esperança. Também é mitológica a metáfora do castelo em Das Schloss. Esse símbolo representa a mais elevada espiritualidade, o momento lógico e ontológico superior em que o espírito subjetivo e Brahma, Yaweh, Allah ou o Ser supremo coincidem em uma unidade resplandecente. Mas esse símbolo místico do Zohar, as sete salas do interior de um castelo, ilumina agora uma realidade psicológica e política radicalmente degradada: a dos labirintos e da corrupção burocrática, esse mundo opressivo e radicalmente incompreensível que familiarmente chamamos de kafkiano.

12.6 O logos da história O romance Pedro Páramo de Juan Rulfo merece um comentário à parte por conta de sua dupla marginalidade geopolítica, por ser hispânico e por sua condição pós-colonial. Ao mesmo tempo, sua classificação semiológica na categoria anti-hermenêutica de “realismo mágico” ou maravilhoso permitiu a seus intérpretes mais reacionários ignorar a crítica teológica, psicológica, política e mitológica da sociedade mexicana pósrevolucionária, além de permitir também ocultá-la sob o tapete mágico

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A origem etimológica do verbo chingar e do substantivo chingada é complexa e obscura. Alguns remontam o termo ao cingarár da língua caló, outros ao kuxinga ou ao muchinga bantu, ou, ainda, ao quéchua cinkána. Seu vínculo com o náuatle é incerto. Seja como for, todas essas acepções estão relacionadas a ações violentas e, mais especificamente, à violência sexual e às violações do corpo feminino. Os significados de chingar e hijos de la chingada fazem referência à violência sexual através da qual os primeiros conquistadores e seu legado colonial geraram a nova realidade biológica da mestiçagem americana. Octavio Paz (2014, p. 79) definiu a chingada como a “Mãe aberta, violada ou engabelada à força” e explicou a ambiguidade, a plasticidade e a violência que conferem a essa palavra um poder “mágico”. Essa relação mágica ligada à Gran Madre é uma variação colonial e cristã do culto à Coatlicue, a Gran Madre asteca que reúne a continuidade não dual dos símbolos da vida e da morte (as serpentes e as caveiras). Através

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de uma fantasia e literatura fantásticas, previamente esvaziadas de seus conteúdos mitológicos, psicológicos e políticos. Assim como Beckett revelou poeticamente a estrutura irracional do sujeito racional moderno a partir do riso metafísico e sagrado do trickster, da mesma forma Rulfo expôs a lógica absurda decorrente dos dois principais atores do processo colonial latino-americano: o capelão e o cacique. Pedro Páramo desvela simbolicamente seu destino histórico negativo, marcado pela opressão, pelo sexismo, pela corrupção e pelo crime. O romance faz isso a partir da situação existencial de um narrador que oferece uma transparente resistência psicológica e mitológica a esse processo: Juan Preciado. Tal como Molloy ou o Inominável de Beckett, e assim como Josef K. e K. de Kafka, o protagonista de Pedro Páramo é um indivíduo arrancado de seu meio natural, um ser isolado e carente de vínculos com a sociedade, um órfão no sentido mais pleno da palavra. E como os narradores de Beckett e Kafka, o destino final de Juan Preciado é o desaparecimento. É a morte. Após a união sexual com a mulher adúltera e anônima que representa a terra, feita de “crostas de terra” e identificada como uma “poça de lama” quente, o narrador se vê presa de um calor que abrasa o ar de sua respiração e morre sufocado: “Não havia ar. Tive de sorver o mesmo ar que saía da minha boca...” (RULFO, 1987, p. 193) – são suas últimas palavras. O narrador de Rulfo suga o seu próprio ar da mesma forma como o Inominável de Beckett expulsa de sua boca palavras vazias de uma língua que não compreende. Assim como K. de Kafka, reconhece o vazio como o princípio que aprisiona todo o seu ser. “Não havia ar”: um mesmo vazio, um afastamento idêntico, uma impotência análoga. O objetivo virtual que distingue a tensão dramática de Pedro Páramo, a conciliação do filho da chingada8 com a ordem patriarcal

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cristã, representada tanto pelo cacique quanto pelo sacerdote, revela-se tão impossível quanto o cumprimento da Lei no contexto dos tribunais corruptos em Der Process, ou quanto o símbolo mítico e místico do castelo como luz e verdade no labirinto escuro e impenetrável de Das Schloss. E é, no mínimo, tão delirante quanto a vontade de constituir-se em um Eu racional, de configurar intelectualmente uma ordem espacial e temporal objetiva, ou de reconstruir eticamente um cosmos divino em Molloy ou Malone Dies. Pedro Páramo descreve o destino negativo de um sujeito colonizado paralelamente ao destino autodestrutivo do sujeito racional soberano representado nos romances de Beckett e Kafka. Como no caso destes, a memória mitológica degradada constitui o grande referente metafísico que permite revelar literariamente o absurdo do ser em nosso tempo histórico.

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12.7 Errantes por um nada infinito

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Em A gaia ciência, Nietzsche conta a seguinte anedota. Um louco chegou um belo dia a uma cidade distante: “Estou à procura de Deus! Estou à procura de Deus!”, exclamou no mercado público. Seus gestos ansiosos provocaram o riso entre a multidão reunida. Mas o louco seguia insistindo: “Nós o matamos! Rompemos os vínculos sagrados que nos uniam ao sol, à lua, e à natureza! Liquidamos nossas memórias mitológicas! Destruímos os vasos comunicantes que nos uniam tanto à vida quanto à morte!” (NIETZSCHE, 1999, p. 127). Já sossegado, o forasteiro formulou uma última pergunta: Irren wir nicht durch ein unendliches Nichts? – “Não erramos por um nada infinito?”. Esses caminhos errantes ao longo de um vazio infinito são, sem exceção, os caminhos dos narradores de Rulfo, Kafka e Beckett. São os nossos caminhos. Nietzsche definiu a morte de Deus como mera sequela do princípio racionalista de abstração e poder e da destruição dos vínculos éticos e estéticos dos seres humanos, consequência dos múltiplos processos de das novas condições teológicas e políticas do poder colonial, a morte se eleva à expressão da violência sexual genocida, um significado que a continuidade mitológica asteca da vida e da morte reincorpora nos ciclos eternos do renascimento da vida. Isso explica por que algumas derivações desse verbo, como a palavra Chingón, possuem uma conotação claramente positiva.

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colonização, modernização e racionalização a partir de um princípio unilateralmente instrumental e capitalista. Deus também foi assassinado pelos seguidores de um culto materialista dedicado ao dinheiro como representante geral e abstrato de um poder universal e absoluto. Essa morte, que Nietzsche interpretou como uma última consequência da teologia política do cristianismo, implica inevitavelmente a destruição dos vínculos éticos da sociedade, a fragmentação da realidade, a redução e o empobrecimento da experiência, a fragmentação da autoconsciência e uma agonia histórica terminal. Mas Nietzsche e, com ele, Schopenhauer de um ponto de vista tanto filosófico quanto estético, Bachofen e Jung de uma perspectiva antropológica e psicológica – para citar uma ampla tradição em que não poderíamos deixar de incluir os nomes de Carl Kerényi e Thomas Mann –, não se limitavam a constatar a morte de Deus como um fait accompli. Eles assinalavam, ao mesmo tempo, uma transformação necessária em nossa maneira de sentir, compreender e atuar no mundo, capaz de restabelecer a unidade e a harmonia perdidas do universo. Trata-se de uma tarefa hermenêutica e terapêutica no sentido antigo dessas palavras, definindo um novo humanismo crítico. O louco de Nietzsche também formulou essa possibilidade de regeneração e afirmação da vida. Fez isso por meio de um delírio: “Não teríamos de nos tornar nós mesmos deuses, para podermos parecer dignos dessa ação...?”9 – a vontade e o ato de afirmação do ser.

O mito da criação do universo a partir do poder fecundante da Magna Mater, os mitos do fogo e da luz, representados por Quetzalcóatl, Agni e Prometeu, como forças de energia e esclarecimento que presidem o nascimento das civilizações humanas, as diversas e conflitantes versões do mito do Messias ao longo da história do Ocidente, o mito de Shiva, o asceta itifálico e o destruidor e transformador do universo por meio de sua infinita dança de fogo... Todos esses mitos e muitíssimos outros constituem uma parte essencial das memórias da humanidade. São constelações simbólicas, 9

NIETZSCHE, 1999, p. 127 –“Müssen wir nicht selber zu Göttern werden, um nur ihrer würdig zu erscheinen?”

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12.8 Retorno ao mito

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ao mesmo tempo emocionais e intelectuais, que conferem um sentido à vida humana e a suas forças e conflitos primordiais. Várias décadas de escolástica lacaniana fizeram cair no esquecimento o fato de que a psicanálise nasceu na clínica psiquiátrica com o estudo das chamadas histerias, a partir das investigações pioneiras de Josef Breuer e Sigmund Freud, a seguir manifestou o conflito edípico de uma horda primitiva como o mito fundador do progresso da história da humanidade, incluindo seu princípio de culpa e a subsequente “pulsão de morte”, para enfim chegar até os fenômenos de desintegração psíquica da personalidade moderna ou pós-moderna: a paranoia, o autismo e a esquizofrenia. Foi esse último momento – que coincide com o nascimento dos totalitarismos do século XX – que inaugurou um retorno ao mito como método ao mesmo tempo hermenêutico e terapêutico, com intelectuais como Karl Abraham, Sándor Ferenczi, Carl Gustav Jung, Otto Rank ou Erich Neumann entre os principais nomes. O ponto de partida era fundamental: uma compreensão dos mitos como cristalizadores de uma memória que remonta aos estados arcaicos e mais indiferenciados das culturas humanas e do universo natural e cósmico, além de uma consciência dos vínculos com as origens do ser e da história através da mediação psicológica e metafísica desses mitos. Os mitos e seus símbolos constituem uma memória inconsciente ou subconsciente, precisamente por ser arcaica. Mas isso não significa que mythos e logos representem os universos contrapostos de um reino obscuro e irracional, resistente às luzes da razão e da autoconsciência. Os mitos não se opõem ao logos, da mesma forma que a consciência não se opõe ao inconsciente. Tanto mythos como logos compreendem os significados originários de voz, símbolo e “palavra”. Ambos os termos definem duas formas discursivas diferentes que correm paralelas e interagem dinamicamente entre si nas culturas que chamamos de clássicas, como a hindu ou a budista, a grega ou a islâmica. As filosofias de Pitágoras ou Platão constituem tanto pontos de encontro privilegiados de uma filosofia fundada no rigor lógico das matemáticas e da geometria quanto uma iniciação mitológica aos mistérios da beleza e da eternidade do ser. Também não existe uma fronteira que separe, de um lado, os mitos como relatos da história humana e, de outro, o desenvolvimento da psyché individual, como se fossem dois departamentos fechados e selados. Em vez

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Ver Neumann (2004, p. 269).

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Ver Lachower (1989, v. 2, p. 597 e ss.).

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disso, tudo o que acontece nos mitos também ocorre no desenvolvimento individual da pessoa. Entre os mitos e o logos, e entre a memória mitológica das origens e o processo individual de esclarecimento, existe uma relação íntima, que é dinâmica e criadora.10 O desenvolvimento e a liberdade da personalidade autônoma são resultados desse processo contínuo de esclarecimento e criatividade através do diálogo permanente entre mito e logos. O lema freudiano Wo Es war, soll Ich werden – “onde estava o Isso, deve advir o Eu” – só se cumpre ali onde esse advir consciente do inconsciente transcende os conflitos neuróticos da família edípica, representados pelo “complexo de Édipo”, e onde ultrapassa os muros da constituição da identidade patriarcal, como princípio fundador do logos da história e da estrutura psicológica do Eu, para se abrir de forma criativa a virtualmente todas as memórias mitológicas da humanidade e a todas suas expressões humanas nas artes e nas religiões, nos sonhos e nos sintomas neuróticos e psicóticos de nosso tempo. Mas o retorno ao mito, o tornar-se consciente de uma experiência religiosa e arcaica inconsciente, é precisamente um aspecto fundamental das obras literárias de Kafka, Rulfo e Beckett que aqui considerei. Esse é o caso, de maneira ostensiva, em Pedro Páramo: a união sexual de Juan Preciado com a mulher anônima e adúltera, que representa Tonantzin como uma Deusa-Mãe depauperada, constitui um verdadeiro hieros gamos, um matrimônio sagrado. Trata-se de uma união ao mesmo tempo sexual e espiritual, cujo fogo abrasador antecipa a epifania da segunda narradora e verdadeira protagonista desse romance: Susana San Juán – uma síntese de Coatlicue, a deusa da vida e da morte, e de Sophia, pois somente ela encarna a consciência do passado, do presente e do futuro do mundo que Comala representa. É uma síntese que integra, ainda, a intangibilidade celestial de uma Guadalupe. Esse retorno ao mito não é menos essencial em um romance como Das Schloss de Kafka (1982). O castelo é a metáfora política de um poder despótico e corrupto, mas também rememora os aposentos da ascese espiritual descrita no Zohar.11 É por isso que ilumina o romance inteiro com o esplendor de uma última esperança. A obra de Beckett também é uma

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apologia do palhaço sagrado e do trickster em seus papéis de mediadores do espiritual, de burladores dos limites e fronteiras, de jogadores e magos.

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12.9 Hermenêutica literária e teoria crítica

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A dissociação linguística do narrador, sua separação esquizofrênica e seu isolamento autista, a desarticulação da unidade espaçotemporal da narrativa e a tensão dramática gerada pelo esforço de compreender um mundo desintegrado e incompreensível são traços antropológicos e sociais que claramente vinculam entre si as obras literárias de Kafka, Beckett e Rulfo. Uma última característica que une suas narrativas reside na vontade artística de transformação espiritual e em seu humanismo. Reside, parafraseando Nietzsche mais uma vez, na sua divinização do humano e da natureza, bem como no reconhecimento de um cosmos mitológico e sagrado. E para recordar também um enunciado programático formulado por Thomas Mann, a condição dessa última dimensão humanista e transformadora da literatura consiste em retirar o mito das agências corporativas de propaganda política e comercial “para lhe dar uma nova função humana” (MANN; KERÉNYI, 1960, p. 100). A transcendência espiritual comum a essas obras literárias reside no mito e parte de uma reflexão mitológica sobre a vida e a morte; consiste em um retorno à experiência regeneradora da existência humana e do ser a partir de uma realidade arcaica, enraizada na memória mitológica como veículo para a função transformadora da obra de arte. A insistência no caráter textual da obra literária e a subsequente separação entre o plaisir du texte, de um lado, e uma experiência estética ao mesmo tempo cognitiva e transformadora da realidade natural, histórica ou simplesmente humana, de outro, legitimam hoje o aprisionamento do romance nos formatos comerciais do jornalismo literário ou dos romances de butique. Além disso, esse procedimento reduziu a crítica às tarefas de classificação linguística e a um conceito de teoria sem referente, incapaz de integrar uma reflexão sobre o nosso tempo e o nosso universo. Esbocei nessas páginas uma dupla tarefa para a hermenêutica literária, para a crítica artística e para a teoria estética. Seu primeiro passo é compreender a desarticulação funcional ou estrutural do narrador e da narrativa como uma resposta reflexiva contra as divisões e conflitos

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Referências ADORNO, Theodor W. Noten zur Literatur.Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1973. v. 2. ANDERS, Günther. Kafka. Pro und contra. Die Prozess Unterlagen. München: C.H. Beck, 1951. ANDRADE, Oswald de. Do pau-brasil à antropofagia e às utopias. In: Obras completas. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. v. 6.

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irresolúveis do nosso tempo histórico. Ora, isso significa rejeitar a formalização academicista dessa destruição da forma por meio de abordagens meramente linguísticas. Ressaltei o valor cognitivo da experiência literária e estética, que contrapus às interpretações que substantivam o texto como uma realidade objetivada e autônoma, semiológica e mercantilmente segregada de nossas experiências individuais, de nossa autoconsciência e de nossa criatividade transformadora. Em segundo lugar, assinalei um aspecto essencial nos romances de Rulfo, Beckett e Kafka. A rigor, um momento central em toda obra literária autêntica: a revelação de um cosmos, de uma ordem ao mesmo tempo espiritual e física, inclusive ou precisamente ali onde esse cosmos se apresenta sob o aspecto negativo de sua distorção e desarticulação até o limite de sua incompreensibilidade. Compreender uma obra literária – escrevia Adorno (1973, p. 190) precisamente em sua interpretação de Endgame de Beckett – “não significa outra coisa que compreender a sua incompreensibilidade”. Experiência literária reflexiva, negativa, crítica: uma inversão da experiência misteriosa e de sua visão mística de uma unidade, harmonia e infinitude primordiais do ser – a epopteia. É a revelação de um universo radicalmente inacessível e incompreensível para a existência humana. Êxtase do não ser e da morte. A teoria crítica trata de formular conceitualmente a mesma irracionalidade da razão histórica e a mesma autodestrutividade inerente à luta humana pela sobrevivência no interior do sistema capitalista que a hermenêutica literária revela nos narradores de Beckett, Kafka e Rulfo como impossibilidade de compreender o mundo em que vivemos e de construir um sentido humano a partir de nossa realidade cotidiana.

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ARGUEDAS, José Maria. Un mundo de monstruos y de fuego. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. BECKETT, Samuel. O inominável. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009. BECKETT, Samuel. The Grove Centenary Edition. New York: Grove Press, 2006. KAFKA, Franz. Das Schloss. Frankfurt: S. Fischer, 1982. KAFKA, Franz. Der Process. Frankfurt: Fischer Verlag, 1999. KAFKA, Franz. Die Verwandlung. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1999. LACHOWER, Fischel (Ed.). The Wisdom of the Zohar. Oxford: The Littman Library of Jewish Civilization, 1989. v. 2. LEAVITT, June O. The Mystical Life of Franz Kafka. Oxford: Oxford University Press, 2012. MANN, Thomas. Gespräch in Briefen. Zürich: Rhein Verlag, 1960. MANN, Thomas; KERÉNYI, Karl. Gespräch in Briefen. Zürich: Rhein Verlag, 1960. NEUMANN, Erich. Ursprungsgeschichte des Bewusstseins. Düsseldorf, Zürich: Walter Verlag, 2004. NIETZSCHE, Friedrich. Werke in drei Bänden. München: Carl Hanser Verlag, 1999. PAZ, Octavio. O labirinto da solidão. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2014. RULFO, Juan. Pedro Páramo. In: RULFO, Juan. Obras. México: Fondo de Cultura Económica, 1987. SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph von. Philosophie der Kunst. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1976. SUBIRATS, Eduardo. Las poéticas colonizadas de América Latina. Guanajuato: Universidad de Guanajuato, 2009. SUBIRATS, Eduardo. Mito y literatura. México: Siglo XXI, 2014.

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Literatura digital, uma experiência possível Cristiano de Sales

13.1 Das crises Em 2010 assisti, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a algumas palestras que faziam parte de um evento dedicado a pensar a poesia contemporânea de Brasil e Portugal. Lembro-me que a organização do evento propôs mesas formadas ora por críticos da literatura, entendase professores universitários, ora por poetas de língua portuguesa. Bom, a separação dos palestrantes já é sintomática e valeria um capítulo de livro, pois essa concepção segregacionista é questionável. Mas o que mais me estranhou naquela ocasião não foi essa escolha, já um tanto quanto previsível, mas sim a enorme discrepância dos discursos entre as mesas de críticos e as mesas de literatos. Enquanto os críticos (não todos, mas em cada mesa sempre havia um pronto a defender a ideia) insistiam em evocar a tal crise da literatura, os poetas despertavam risos e silêncios numa plateia ainda atenta à literatura. E como faziam isso? Lendo seus poemas. Concordo que a ideia de crise esteja quase sempre, de alguma forma, impulsionando o trabalho do poeta. Bem como o trabalho do crítico, afinal, não é à toa que as palavras crítica e crise têm a mesma origem etimológica

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(que remete a krisis = separar, escolher). A crise é, sabemos, uma das forças propulsoras da criação. Mas daí a fazer ecoar, quase como uma espécie de “espírito do tempo”, essa repetição de crise da literatura, que abre precedente para se falar, entre outras coisas, até mesmo de um “pós-tudo”, soa pouco profícuo e parece fazer aumentar os abismos entre a crítica e a literatura, flagrado, por exemplo, no evento mencionado acima. Mas como poderia haver um abismo entre o que fala o poeta e o que fala o crítico se essas duas intervenções, a de criar e a de ler, não formam necessariamente uma dicotomia? Não raro, alguns críticos-professores universitários também dão forma a projetos literários, a obras poéticas. E sabemos que isso é uma via de mão dupla, escritores e poetas também elaboram escritos críticos. Então, por que tamanho desencontro entre os discursos que se confirmam numa instituição, a crítica acadêmica, e os que se insinuam noutra, a literatura? A teoria literária, se a entendermos como propôs Leyla PerroneMoisés (1998), ou alguns pós-estruturalistas franceses, por meio da noção de escritura e dos questionamentos acerca da institucionalização das obras e dos discursos, seria o campo a partir do qual poderíamos tentar repensar essas verdades que vão se instalando por meio de dicções repetidas que acabam sedimentando as diferentes margens do abismo e derrubando suas pontes. Não, a teoria não é uma ponte. Não se trata de um instrumento a serviço da crítica para que esta fixe seus juízos de valores. Ela, a teoria, não descansa em definições, pelo contrário, ela procura não deixar repousar aquilo que começa como um movimento inquietante, seduz com uma dicção demolidora, mas que acaba sucumbindo ao desejo de firmar-se como verdade, mesmo que dissimulada em não verdades. Mais que isso, a teoria não é um lugar que se ocupa, ela é o movimento, o esforço intelectual que fazemos quando percebemos que um pensamento, que teve início num momento inquietante de teorização, acomoda-se no trono das falas sedimentadas.1 Assim como a teoria ajudou a crítica a resistir, ou reagir, ao historicismo do século XIX,2 tentando cunhar um tom científico no início 1

Merleau-Ponty (2008) chamou isso de fala falada.

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A teoria também ajudou e ainda ajuda, em contrapartida, a fazer com que os ideais românticos do século XIX permaneçam no XXI.

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Acusação feita por Adorno (2006) quando lê pela primeira vez os manuscritos que Benjamin escrevera sobre Flores do Mal.

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13 – Literatura digital, uma experiência possível

do século XX, bem como tirou em determinado momento o foco do autor no que dizia respeito à produção do sentido e propôs estéticas de recepção, ela também ajudou a trazer à tona a ideia de crise. Walter Benjamin, lendo Baudelaire, e teorizando a partir do poeta, ofereceu-nos importantes ensaios para compreendermos a Modernidade. Daí uma das principais fontes de desejo e motivação dos perpetuadores da ideia de crise (Beatriz Sarlo os chamou de leitores partidários). O que talvez ainda esteja ofuscado depois de tanto se falar e trazer ao século XXI as teorizações da primeira metade do XX é que a inquestionável contribuição de Benjamin só se deu da maneira que deu porque o mesmo estava teorizando à medida que olhava e tentava compreender o seu tempo. Mesmo com toda a reflexão e o recurso à história e com toda a perspicácia de apontar algo messiânico, o pensador alemão só fez teoria porque se ocupou do seu tempo e soube reconhecer os movimentos em volta. A crise, para Benjamin, está relacionada à experiência. Nela bebem os críticos que doutrinam acerca da crise da literatura. Bom, voltemos à etimologia. A palavra criar também traz a raiz grega que nos remete à escolha. Sendo assim, fazer poesia, bem como lê-la criticamente são esforços de compreensão de crises. Mas, pergunto-me, o empenho em fazer desse dado, que a própria língua já apresenta com evidências, uma espécie de verdade da teoria literária, contrariando até mesmo algumas opções metodológicas de Benjamin, que se esquivava da “coincidência demasiado plena”, não consistiria em um desfavor à própria teoria literária? Essa aceitação e propagação da crise de tudo (da crítica, da arte, da literatura) não resultaria em um movimento estanque, que, em dada medida, faria paralisar as próprias teses de Walter Benjamin? Fazer teoria no século XXI talvez não seja apenas apontar para as crises de maneira a não fazer destas uma força de criação; talvez consista mais em procurar elaborar sentidos e significações nos fenômenos implicados nela, nos fenômenos que fazem a crise aparecer, para então buscar caminhos possíveis que nos permitam continuar reinventando e aprendendo com a literatura. Quando o pensador alemão, lendo o poeta francês, opta por comunicar suas impressões sem o aparente fio condutor da dialética,3

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podemos entender que se revela aí uma forma discursiva, ensaística, que coaduna com a crise da experiência teorizada por ele mesmo quando escreve sobre O narrador, uma forma que não deixa de ser dialética, mas que se estrutura numa outra armadura. Esse próprio gesto de buscar uma forma de expressão que já é fruto da crise da narrativa não nos revelaria que o que Benjamin faz é o oposto do que muita crítica acadêmica tem feito? Explico: diante da crise da narrativa, o pensador da Modernidade ressignifica, reorganiza, reconfigura a própria maneira de comunicar, sem necessariamente abdicar da dialética, mas reinventando-a. Essa pode ser a forma mais legítima encontrada por ele para reagir à crise que ele mesmo ajudou a enxergar. Em contrapartida, notamos hoje, em departamentos e programas de estudos literários, uma tentativa de reprodução da expressão fragmentada quando se tenta teorizar sobre a literatura. Bom, fazer ecoar no tempo os ensinamentos de Walter Benjamin não consiste apenas em tentar imitar seu modo de expressar, mas, também, e principalmente, em se ocupar, ressignificar e se reconfigurar diante da crise. Isso é incontornável, habitamos a crise. Porém, não nos relacionarmos com ela num gesto de resistência, reinventando-nos, ressignificando-nos, pode se revelar um desfavor ao próprio filósofo. É o que algumas críticas acadêmicas parecem sustentar, e acreditam, com isso, que fazem de Walter Benjamin um contemporâneo. O flâneur não vem nos ensinar que não é possível mais contar história. Ele vem nos alertar sobre a necessidade de reinventar os jeitos de se contar história; e esses rearranjos, ou reinvenções, estão ligados à compreensão do próprio tempo. Não foi assim que ele nos ensinou sobre a Modernidade?

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13.2 Do digital Uma forma de reinvenção crítica (não é essa uma das funções da teoria?) é voltarmos nossa atenção para a escrita digital do nosso tempo. Não é de hoje que poetas e artistas incorporam aos seus trabalhos a linguagem de programação digital e a possibilidade de fazer os significantes fruírem em outro espaço-tempo, o digital. Há um tipo de literatura que se pratica desde meados dos anos de 1990 no Brasil que visa a incorporar aos objetos poéticos os signos, processos e procedimentos dos ambientes e da lógica digital, ou hipermídia, como

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preferem alguns. A isso chamamos de literatura digital. Uma literatura que não pode ser fruída em outro meio que não o digital. Esta não tem sido devidamente analisada pela crítica literária que se faz hoje no Brasil e que se concentra sobretudo nos departamentos de Letras das universidades. Acredito que ao não se levar em conta uma literatura proposta nos meios digitais, que são os principais meios de comunicação e escrita da contemporaneidade, muito se perde na compreensão do que seja o estatuto efetivamente contemporâneo das experiências literárias preocupadas em compreender o presente. Se a literatura é, entre outras coisas – para uma tradição herdeira do século XIX romântico (e a academia é em grande medida assim) –, uma forma de compreender o mundo e as relações que os homens estabelecem com ele nos diferentes momentos da história, não se ocupar da escrita literária digital acaba por afastar o crítico de um melhor entendimento do seu tempo. As manifestações literárias historicamente ajudaram os homens, por meio também da intervenção dos críticos, a perceberem e inventarem o seu entorno e suas relações mundanas. Com a literatura digital as possibilidades de percepção do presente reforçam o favor que sempre nos fez a literatura, ou o exercício que o crítico sempre quis fazer com ela: compreendermos e inventarmos a nós mesmos. Estas, compreensão e invenção, ou ainda, reinvenção, revelam uma forma de resistir à ideia de crise como fim (leitura equivocada de Benjamin). Perceber e reinventar é também uma forma de lidar com a crise de maneira a ressignificar, dar um sentido, recriar os fenômenos nos quais estamos implicados. Definimos esse objeto literário digital como as experiências literárias que lançam mão, por meio de plataformas digitais e de suas linguagens de programação, do verbo, do som e da imagem na produção de sentidos poéticos. Pouca teoria e quase nenhuma crítica em língua portuguesa se tem feito acerca desses objetos; e os poucos que se destacam em teoria da literatura digital se espalham em poucos programas de estudos literários no Brasil e em Portugal. Neste país, nomes como Rui Torres e Pedro Barbosa se diferenciam na criação digital e na tentativa de teorizar sobre a mesma. Ambos fazem parte da continuidade de uma corrente a que se chamou por lá de poesia experimental. Uma das contribuições que se consolidam entre

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esses criadores e teóricos, e que flerta bem de perto com uma pesquisa também difundida na França, com Jean-Pierre Balpe, é a articulação de softwares que geram textos automaticamente por meio de algoritmos, conforme alimentação de dados oferecida pelo leitor.4 O diferente comportamento fisiológico, cognitivo, interativo, enfim, corpóreo do leitor levou, algumas vezes, os poucos teóricos sobre o assunto a reduzirem toda a reflexão à capacidade interativa dos objetos, o que incorre no risco de apontar, com tais teorias, apenas aos possíveis méritos de uma tecnologia e não às tensões que ela pode gerar quando refletida junto à arte. Acredito que para não incorrer nesse tipo de argumento que pouco contribui com o pensamento acerca da literatura, torna-se imprescindível uma análise que se preocupe em descrever até que ponto os limites não apenas da tecnologia digital, mas sobretudo os da literatura, estão sendo colocados em questão nessa aproximação dos dois campos. Para se ter uma melhor noção do tipo de objetos a que me refiro fica a sugestão de duas obras: Amor de Clarice, do citado Rui Torres, ler poema virtual disponível em: e Volta ao Fim, de Alckmar Santos e Wilton Azevedo, disponível na íntegra em: . Os dois poemas demandam fruição distinta, mas ambos estabelecem o entrelaçamento (convívio) da imagem, do som e do movimento programados e arquitetados em linguagem digital. O primeiro propõe um explícito diálogo com um texto ficcional de Clarice Lispector, na verdade uma releitura digital do romance, com todas as elaborações que esse espaço-tempo digital permite provocar. O segundo se assemelha mais com linguagem de fruição cinematográfica, porém, evidentemente, só evoca o efeito pretendido quando da convivência das três manifestações da linguagem (verbo, som e imagem), o que apenas se torna possível por ter sido implementado em ambiente digital; o espaço-tempo em que o texto, a imagem e a música convivem, no caso de Volta ao Fim, são inerentes ao que o computador possibilita, é na lógica espaçotemporal deste que a experiência acontece. 4

Justiça seja feita a Rui Torres que, muito além da articulação de softwares, preserva uma preocupação estética a ponto de conseguirmos ver em seus poemas digitais o registro de um estilo visual e procedural.

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Até aqui nada de muito diferente sobre a literatura, pois, desde os mais tradicionais alexandrinos que essa forma de expressão evoca experiências verbivocovisuais. Porém, ao materializar essa convivência física mesmo do verbo com o som e com a imagem, alguns artistas estão oferecendo materiais para uma experiência estética diferente; uma experiência em que a própria noção de leitura carece ser ressignificada, pois não se pode mais afirmar o que é da ordem apenas do som, ou da imagem, ou da palavra; não se pode mais hierarquizar, estabelecer níveis de importância, dado que no espaço-tempo digital cada manifestação de linguagem – seja pela palavra, pela música ou pela cena vista – revela-se condição de existência do todo da obra. Minimizar um dos elementos de obras como as acima destacadas, a trilha sonora, por exemplo, consiste em oferecer outro significante que já não aquele proposto pela obra. O significante da obra se oferece tal qual uma carne, um quiasma, em que os elementos que o compõem são os que tradicionalmente conhecemos como verbo, som e imagem, mas que no digital... são uma coisa só. Estes são apenas dois exemplos entre algumas obras literárias que se tem proposto a partir da lógica e dos procedimentos da escrita digital. A aparição de objetos literários dessa natureza, ou com essa lógica e procedimento, remete-nos, se nos propusermos a fazer teoria da literatura, a teóricos que já consagraram suas obras e críticas sem tomar o digital como objeto de análise. Penso em alguns teóricos da recepção, já que a experiência de leitura passa por transformações significativas, mas sobretudo em alguns pós-estruturalistas franceses, que nos ensinam que teorizar é colocar os conceitos sempre em movimento, e no filósofo Merleau-Ponty, pensador ao qual recorro para esboçar leituras desses objetos literários digitais. Do fenomenólogo francês recorto alguns conceitos que nos ajudam a compreender a experiência estética, tais como as falas falantes e faladas, a expressão e o quiasma, presentes nas obras A prosa do mundo (MERLEAUPONTY, 1952) e O olho e o espírito (MERLEAU-PONTY, 2004). Esses conceitos nos permitem entender que a relação entre um leitor, corpo que percebe, e uma obra de arte, corpo percebido, são menos essencialistas do que costumeiramente se tem defendido quando se tenta teorizar acerca da transformação material da escrita. Podemos elucidar, a partir da obra Phénoménologie de la perception (MERLEAU-PONTY, 2008), que o corpo do leitor deve ser compreendido

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como um corpo fenomenal, sendo ele também síntese da própria experiência estética e não apenas constituidor de sentidos, como quis Sartre. “Ce n’est pas à l’objet physique que le corps peut être comparé, mais plutôt à l’oeuvre d’art”, sugeriu Merleau-Ponty (2008).5 Compreendendo o corpo percebido e o corpo que percebe como resultantes de um mesmo fenômeno, ou ainda, como elementos entrelaçados em uma mesma “carne”, podemos colocar novamente a teoria literária em movimento para ensaiarmos sobre esse outro leitor e essa outra literatura. Colocar a teoria literária em movimento significa não deixá-la que sucumba às próprias acusações que fez. A perspectiva defendida em alguns ensaios dos pós-estruturalistas franceses reivindicava uma direção contrária à sedução romântica de erguê-la, a teoria, à condição de regras, dogmas, sacralizando-a e estagnando o movimento que ela faz tão bem: o de tentar fazer ruir os monumentos erguidos à maneira do século XIX. Inspirados no filósofo alemão Friedrich Nietzsche, pensadores franceses do século XX – Jacques Derrida, Michel Foucault e Gilles Deleuze, os principais – defenderam um modo de contribuir teoricamente com a crítica literária (cultural em geral) que passa pelo ato reflexivo da desconstrução, da arqueologia e da imanência. Esses três procedimentos filosóficos, quando incorporados aos estudos literários, fazem pesar o fenômeno todo da literatura sobre o texto, e não mais sobre as instituições canonizadas, sacralizadas. Nesse cenário, destacouse também Roland Barthes (2004a; 2004b), que ofereceu importantes ensaios para o pensamento da literatura: “A morte do autor” e “Da obra ao texto”. Michel Foucault, pouco tempo depois, deu contornos mais rigorosos para as discussões acerca da autoria e a tratou como uma “função” que se cumpre. Com isso, o autor de “O que é um autor?” (FOUCAULT, 2009) equilibrou melhor a provocação primeira, que sugeria a morte. Uma noção bastante aproveitada nesse desejo de colocar o pensamento em movimento constante, primazia da teoria, é a de “escritura”, que teve como principal articulador Jacques Derrida. Porém, venho propondo em recentes pesquisas, ainda nem publicadas, uma noção de escritura que não faça apenas eco ao filósofo da desconstrução. Proponho que se parta dos ensinamentos que Roland Barthes (2004c) nos deixa com a obra O grau zero da escrita para lapidarmos uma diferente proposição para o conceito de escritura, 5

“Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas sim à obra de arte.” (MERLEAUPONTY, 2008, tradução nossa).

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O novo flâneur navega num informático oceano feito de simulacros de imaginadas redes de sentido

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proposição esta a que só podemos chegar se entendermos o corpo do leitor (ou do fruidor de arte) como obra de arte. E fazemos isso via Merleau-Ponty. Com essa noção de escritura, elaborada junto à fenomenologia de Merleau-Ponty, é que tenho me voltado às criações literárias digitais e para um esforço teórico que nos permita balizar a importância dessas escritas na cena da crítica literária atual. Não obstante, para não incorrermos no círculo vicioso denunciado por Antoine Compagnon (2010) – de fazer teoria da teoria – podemos aproveitar outra intuição merleau-pontyana para não usarmos a literatura apenas como pretexto para se fazer teoria (algo muito comum na academia). O filósofo francês sugere que se vá à arte para se ter intuições e não apenas para confirmar hipóteses filosóficas. Orientados não apenas nessa sugestão, mas também na própria filosofia de Merleau-Ponty, que é bastante inspirada em experiências artísticas, ressaltamos a necessidade de uma teoria que procure aprender com os próprios objetos literários. E, sendo o objeto literário digital ainda pouco, ou quase nada, lido e praticado, podemos, caso se volte maior atenção a ele, reconhecer no meio digital uma possibilidade de reaprendermos muita coisa sobre a própria literatura. Afirmar a importância das literaturas digitais para a teoria contemporânea não consiste apenas em inserir esses objetos num compêndio de formalização do que seja ou não literatura (inseri-los na crítica); esse esforço visa a fazer entender, por meio das escritas digitais, que a literatura não cessa de se movimentar e se reinventar em outras formas espaçotemporais que nos ajudam a compreender uma diferente forma de lidar com as crises. Voltemos então, para finalizar, à crise das experiências. Se o flâneur de Baudelaire e Benjamin visitasse o século XXI para nos ajudar a intuir maneiras de lidar com a crise desencadeada pela transformação do entorno, creio que ele se sentiria mais à vontade nos versos de Ana Hatherly do que na crítica acadêmica partidária. Disse a poeta portuguesa:

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Olha o écran o novo espelho que figura e desfigura o seu medo maior Onde é que há um espelho que tranquilize? A imagem é só ela: uma constelação de impasses um palimpsesto feito de interfaces (Ana Hatherly, 2005, O novo flâneur, II)

Lidar com a crise da experiência talvez seja mais do que legitimar um discurso fragmentado, que aponte para um possível pós-tudo, já que não há mais um fio condutor da história. Talvez seja fazer dela, da crise, a condição para o não cessar do movimento, e não a finalidade do movimento.

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Referências

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Obras digitais AZEVEDO, Wilton; SANTOS Alckmar dos. Volta ao fim (2011). Disponível em: . TORRES, Rui. Amor de Clarice. Porto: Universidade Fernando Pessoa, 2005. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2014.

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V Poesia, corpo, psicanálise

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A identidade da poesia e as teorias do poético Maria da Glória Bordini

A questão que envolve a identidade da poesia lírica remonta à Antiguidade clássica. Platão (1965), no livro III de A República, menciona uma espécie de poiesis em que o poeta narra, com a própria voz, a haplèdiégesis, em oposição à mimèsis, em que ele assume a voz de outrem, e louva a primeira, por verdadeira. Aristóteles, na Poética, fala num gênero inominado, caracterizado pelo “simples verbo, quer metrificado quer não e, quando metrificado, misturando metros entre si diversos ou servindose de uma só espécie métrica” (ARISTÓTELES, 1966, p. 69), mas adverte que o metro não define o poeta, enfatizando a associação entre os meios, os modos e os objetos para obter a mimèsis, a representação das ações humanas. Os estudiosos da lírica antiga em geral a associam a toda espécie de textos acompanhados pela lira, mas conhecem-se casos em que outros instrumentos musicais eram utilizados, como o aulo (um tipo de oboé) e a harpa, como aponta West (1994, p. 7-8), em Greek lyric poetry. O próprio Aristóteles (1966, p. 69) menciona a siringe e a cítara, como meios usualmente empregados. Além disso, as grandes divisões da poesia não mimética oscilavam entre o metro e o tema. Identificavam-se como lírica a poesia mélica, a elegia e o iambo. A primeira abrangia uma variedade de canções, inclusive cantatas e corais. A segunda era caracterizada pelo verso

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elegíaco e não significava um canto lutuoso, como hoje se pensa. E a terceira estava relacionada aos monólogos e canções dos festivais de Demeter e Dionísio, de cunho ridículo ou obsceno, cujo metro era o iambo. Não havia, pois, um denominador comum entre os múltiplos versos cantados, os impropérios iâmbicos ou a elegia, o que levou Aristóteles a estudar somente a épica, a tragédia e a comédia, que podiam ser compreendidas sob o conceito de mimese. Da herança grega, o que a posteridade conservou para a definição da lírica foi a temática do eu em relação às circunstâncias, com suas emoções e ideias ante as situações da vida, prática referida ao presente do sujeito, com eventuais incursões pelo mito, além de sua dimensão social, de autoexpressão para a comunidade. Gradualmente, assim como a poesia mimética derivou da épica para o romance e da tragédia/comédia para o drama, a poesia lírica hoje está assimilada à denominação “poesia”, embora se empregue também o termo “lírica”. Em virtude dessa indistinção de origem, englobando muitas manifestações temático-formais, uma das questões que a Teoria da Literatura tem se posto, desde seu eclodir como disciplina no século XX, é a dos caracteres distintivos da poesia em relação a outros gêneros literários. Produz-se muita poesia, tanto em suportes de papel quanto digitais, de todas as formas consagradas ou marginais, verbais ou verbi-vocovisuais, e as teorizações existentes formam um corpo sólido de conceitos sobre o gênero. Entretanto, a leitura de poesia, após o Romantismo, foi decisivamente rareando junto ao público, suplantada pela narrativa em prosa. O impasse está em tornar o poema moderno e o pós-moderno – de forma difícil – acessível aos leitores e por eles aceito. Na história da poesia, os tempos e os públicos testemunharam inúmeras mutações de forma e de conteúdo, o que desorienta a valoração dos textos, dependente das mentalidades de época. Na modernidade, o valioso era o dissonante, o “antiestablishment”, a ruptura de normas, tanto formais quanto culturais, chegando-se ao antiverso e ao silêncio. Na pós-modernidade, valem o antigo e o novo, as formas expressivas das maiorias tanto quanto as das minorias, sendo a configuração espacial na página (de papel ou na tela) ou a performance oral mais rítmica os únicos meios de identificar um poema. Os estudiosos da poesia, divididos grosso modo entre idealistas e materialistas, emprestam ao objeto poético características que, segundo

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A palavra da língua é uma palavra semialheia. Ela só se torna “própria” quando o falante a povoa com sua intenção [...] Até o momento em que foi apropriado, o discurso não se encontra em uma língua neutra e impessoal [...], ele está nos lábios de outrem, nos contextos de outrem e a serviço das intenções de  outrem... (BAKHTIN, 2002, p. 100, grifo do autor).

Entretanto, o próprio Bakhtin vê no discurso poético a ausência desse plurilinguismo constitutivo e entende a poesia como monológica, refugiada na imanência da linguagem: “O poeta é definido pelas ideias de uma linguagem única e de uma única expressão, monologicamente fechada” (BAKHTIN, 2002, p. 103). Entre os extremos do idealismo e do materialismo, compromissos se instituem, associando-se estruturas a pulsões inconscientes, revolucionárias, como no conceito de significância em Kristeva, em seu A revolução da linguagem poética: [...] cet engendrement illimité et jamais clos, ce fonctionnement san arrêt des pulsions vers, dans et à travers le language [...] est

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cada orientação, o tornariam passível de ser reconhecido como valioso. Os idealistas perseguem a essência do poético, o seu Ser, tal como fez Hegel (1997, p. 372) em seu Curso de estética: poesia, ao afirmar que “o objeto verdadeiro da poesia é o reino infinito do espírito”. Também o ontologista Heidegger, não idealista, mas contraditoriamente preso ao ideal pela sua invariabilidade e universalidade, em Hölderlin: a essência da poesia, busca o poético no abrigo do Ser na linguagem do poeta, mediador entre os Deuses e os homens: “La poesia es la instauración del ser com la palabra” (HEIDEGGER, 1989, p. 137). Como explica Benedito Nunes, em Passagem para o poético, para Heidegger, “a poesia participa, pela palavra que constitui sua matéria, do trabalho preliminar e mais primitivo do pensamento [...] é o limiar da experiência artística em geral por ser [...] o limiar da experiência pensante: um poieín, [...] ponto de irrupção do ser na linguagem, que acede à palavra” (NUNES, 1986, p. 261). Os materialistas recusam quaisquer essencialidades, fixando-se na linguagem, por sua palpabilidade e concretude, na escrita e na fala, radicando-a em sua dimensão social de origem, como advoga Bakhtin, em Questões de literatura e estética, ao discutir o discurso do romance e da poesia:

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uma pratique de structuration et de déstructuration, passage à la limite subjective et sociale e, – à cette condition seulement – il est jouissance et révolution. (KRISTEVA, 1974, p. 15).1

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ou aos conflitos dialéticos da história e da cultura operando no interior da arte como em Lotman (1978, p. 175), em A estrutura do texto artístico: “O texto artístico não pertence nunca a um único sistema ou a qualquer tendência única: a regularidade e a sua transgressão [...] lutam constantemente uma com a outra”. Um recuo para o início do século XX situa nos formalistas russos o intento de conferir rigor ao estudo da poesia, o que já se encontra na exposição de Ossip Brik em 1920, em que este demonstrava a ligação indissolúvel entre ritmo e sintaxe na frase poética, contestando a noção vigente de que o ritmo era um ornamento exterior a que a frase era submetida para ser vista como poética. A ele unia-se, em 1922, o trabalho de Eikhenbaum, sobre a melodia do verso, que dava um passo adiante, estabelecendo a relação entre ritmo, sintaxe e semântica e lançando a noção de dominante para explicar diferentes estilos, e o de Tomachevski, ampliando a questão do ritmo ao acento das palavras, à entonação da proposição e às harmonias fônicas. No ano seguinte, Jakobson desautorizava a ideia de que o verso era uma deformação organizada da linguagem, sustentando sua conformidade com a língua, sua especificidade e sua diferença em relação à linguagem emocional. Em 1924, Tinianov acentuava a união entre a significação das palavras e a construção do verso, sendo o formalista que mais a fundo contribuiu para a teoria da poesia, promovendo a forma a um processo dinâmico, e não imobilista, que correlaciona materiais heterogêneos e os destaca ao situá-los no verso, distinguindo-os de sua origem na linguagem cotidiana ou utilitária.2 Tinianov (1975), em O problema da linguagem poética, formula a noção de que o ritmo é o princípio construtivo da poesia, determinando sua unidade, sua compacidade e dinamizando seu material “[...] esse engendramento ilimitado e jamais fechado, esse funcionamento contínuo das pulsões em direção à linguagem, para dentro e através dela [...] é uma prática de estruturação e de desestruturação, passagem para o limite subjetivo e social e – só nessa condição – é prazer e revolução.” (KRISTEVA, 1974, p. 15, tradução nossa).

1

2

Este histórico se baseia no artigo de Boris Eikhenbaum, “A teoria do método formal”, de 1925, incluído na antologia Teoria da Literatura: formalistas russos (EIKHENBAUM et al., 1978, p. 24-31).

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O artigo baseou uma das conferências de Jakobson em setembro de 1968 em sua visita ao Brasil. Os organizadores do volume, Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos, não especificam o local das conferências.

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verbal. A preponderância do ritmo situa o léxico em plano secundário, ao determinar sua escolha conforme se integre na linha rítmica e assim evidencia índices flutuantes de seu significado e atenua ou mesmo o priva de seus índices fundamentais, com repercussões sobre a construção das imagens. O teórico russo combatia, através de seu “princípio construtivo”, as assimilações correntes da poesia à expressão emocional do poeta e buscava estabelecer distinções entre seu papel no poema e na prosa. Sklovski não encontra, ao revisar suas reflexões sobre a linguagem literária, em A corda do arco, nada de muito significativo para a teoria do poema, salvo o fato de ter apontado que “[...] nem todo sentido figurado de uma palavra é um tropo”, e que isso não era devido ao desgaste da imagem, como se pensava. Para ele, usos não poéticos podiam converterse em poéticos, assinalando que “a percepção da linguagem como poética depende da perspectiva de quem fala” e que esta “deve expressar-se de uma forma compreensível para o leitor” (SKLOVSKI, 1975, p. 80, tradução nossa). Minimizando sua perquirição da imagem na poesia, deixa despercebida sua intuição sobre o papel da recepção, lapso que sustentaria, mais tarde, as posições textualistas sobre o poético, como é o caso da tradição que se desenvolveu a partir das teses de Jakobson. Roman Jakobson, em “Poesia da gramática e gramática da poesia”, defendia a gramaticalidade da poesia e a investia de potência para obterse o efeito poético. Dizia ele que, no objeto poético, “a similaridade se superpõe à contiguidade e, assim, ‘a equivalência é promovida a princípio constitutivo da sequência’” e acrescentava que “toda reiteração perceptível do mesmo conceito gramatical torna-se um procedimento poético efetivo” (JAKOBSON, 1970, p. 72, grifo do autor).3 A conhecida fórmula da equivalência veio posteriormente a orientar a grande maioria de reflexões sobre o poético, no que tange à explicitação da estrutura do poema e à função do paralelismo em sua constituição. Até em Adorno repercute essa postulação de uma forma interior à linguagem poética, de caráter linguístico, que, reiterada, indicia a relação entre poesia e sociedade.

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Jakobson exerceu um papel importante para a compreensão da linguagem da poesia, com a noção de função poética – que focaliza “a mensagem por ela própria” (JAKOBSON, s.d., p. 128) – como prevalente na literatura. Todavia, para explicar a lírica, reformula a ideia de dominante, com a fórmula: função poética mais função emotiva em posição secundária (JAKOBSON, s.d., p. 129). Incide, de certa maneira, no conceito consagrado de que a poesia seria a expressão de estados de ânimo. Caberia a um destacado integrante do Círculo Linguístico de Praga, Jan Mukarovsky, vincular a tese de seu então colega à atitude do emissor e do receptor. Mukarovsky percebe que a linguagem que chama a atenção sobre si mesma depende por oposição das demais funções linguísticas jakobsonianas (emotiva, fática, referencial, conativa, metalinguística) e de uma interação da estrutura obtida pela hierarquização e correlação, inclusive contrastiva, de seus elementos, com outras estruturas sociais, ideológicas, políticas, como aponta Kristeva (1978, p. 14): “o difícil problema da inserção de uma estrutura significante num campo sócio-histórico é pensado como uma interação de estruturas”. Para Mukarovsky, em “A denominação poética e a função estética da língua”, a linguagem poética é diferente da linguagem comunicativa porque a função desta, de designação da realidade, é atenuada para que se insira na estruturalidade do texto poético. Não é que o poema não tenha relação com o real. Ele mantém essa relação porque o leitor reage ao texto por meio de experiências pessoais, que se refletem sobre a sociedade.

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Posto que o indivíduo é membro de uma coletividade e que sua concepção da realidade se ajusta, em linhas gerais, ao sistema de valores vigentes para essa comunidade, a poesia influi, por seu intermédio, sobre a maneira pela qual a sociedade concebe o universo. (MUKAROVSKY, 1978, p. 164).

É evidente que, nos inícios do século passado, a crença no poder da arte, que ia substituindo o poder da religião sobre o comportamento humano (com a proclamação nietzschiana da morte de Deus), ainda se alimentava das inovações introduzidas pelas vanguardas modernas e resultava da confiança na onipotência do sujeito ante as constrições sociais. Não é o que adviria já em meados do século, quando os embates entre as filosofias da consciência e as filosofias da história dividiriam o cenário

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do pensamento teórico. De um lado, postavam-se os que defendiam a estrutura imanente dos objetos culturais e, de outro, os que a contestavam por isolar-se da história e das lutas sociais. Enquanto isso, a noção de um sujeito unitário e autônomo se esfacelava. É no refluir da onda formalista e estruturalista, defrontada com o marxismo que a acusava de alienada, que surge outra opção nas teorias literárias, advinda da fenomenologia pensada por Edmund Husserl no início do século XX. Um de seus discípulos – a contragosto, tal como Heidegger também o foi – propõe uma fenomenologia literária: o polonês Roman Ingarden. Partindo do pressuposto de que só na consciência que se volta para os fenômenos que nela aparecem é possível o conhecimento rigoroso, devendo “pôr entre parênteses” o mundo, propunha uma possibilidade de analisar o que acontece tanto na obra de arte literária quanto em seu processo de recepção. Note-se que a análise fenomenológica não nega o real, não é solipsista, mas permite uma atenção à atuação da consciência na sua imanência. Desvestindo-se de preconceitos, o fenomenólogo deveria estudar todo o processo de constituição de suas vivências fenomênicas, considerando a temporalidade interna da consciência e o que se doa a ela e que ela constitui para si. Ingarden, em A obra de arte literária, encontra, na sua análise do literário, uma estrutura fenomênica em estratos, pela ordem em que se dão à intenção: os sons da língua, em clusters, as palavras e suas articulações em unidades maiores, o mundo assim apresentado, com suas aparências perspectivísticas. Tal estrutura não possui apenas uma dimensão espacial, em que todos os elementos de cada camada convivem juntos, à vista uns dos outros, sendo atravessada transversalmente pela consciência. Ao mesmo tempo, organiza-se como uma dimensão temporal, em que os fenômenos vão se sucedendo em fases, umas supondo as outras, tanto para frente como para trás, apreendidas longitudinalmente. A interação das duas dimensões dos fenômenos literários resultaria nos gêneros, nos estilos literários e na singularidade de cada obra, numa polifonia de qualidades estéticas em harmonia. Atentando aos fenômenos de recepção, Ingarden percebe que o leitor primeiro é atingido pelo mundo apresentado, por suas aparências, para depois chegar aos estratos semânticos e fônicos e postula a emersão de qualidades metafísicas da estrutura multiestratificada da obra.

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Para a poesia, criava-se uma possibilidade de análise e compreensão de alcance mais secular do que os métodos formalistas e estruturalistas, que dependiam fundamentalmente de uma apreensão acurada dos componentes linguísticos do texto e de suas equivalências. Abria-se o caminho para unificar estudos de conteúdo e de forma, agora vistos como inseparáveis. Desvinculados de terminologias linguísticas estritas, os analistas podiam observar os acontecimentos fenomenológicos e expressá-los em linguagens mais acessíveis, sem necessariamente sair dos poemas para explicá-los pela subjetividade do autor ou pelos percalços da história. Um passo adiante foi a perquirição do poético, encetada por Mikel Dufrenne, também um fenomenólogo, parceiro de Paul Ricouer. Para ele, em seu O Poético, a obra poética deriva de uma subjetividade sensível ao apelo da Natureza, entendida como Spinoza a compreendia, como Natureza naturante, criadora: “Pela interpretação do artista, é a Natureza que se entrega e fala, mesmo antes que pelas ciências e as técnicas nós falássemos e agíssemos sobre ela. Nesta relação original do homem com a Natureza, é talvez a Natureza que tem a iniciativa” (DUFRENNE, 1973, p. 64, tradução nossa). Sua tese, que vinculava o poético a uma potência não metafísica, tangível, criadora, mas de certo modo vinculada à ideia de physis em Aristóteles, não recebeu uma acolhida muito entusiástica, na década de 1960, embora suas contribuições sobre a experiência estética fossem bastante respeitadas. No contexto dos anos 1960, com a revivescência do estruturalismo à moda jakobsoniana – e saussuriana – na França, a questão poética assume proporções de problema. Tzvetan Todorov, em Os gêneros do discurso (1978), revisando as teorias da época, em obra dos anos 1970, fala no descarte das antigas teorias ornamentais – poesia é linguagem “ornada” – e afetivas – poesia tem efeitos “emotivos” –, verificando que a tendência de então se volta para o simbolismo de vertente romântica, especialmente no New Criticism anglo-saxônico, em que o símbolo linguístico é produção de sentido, intransitivo, motivado, funde os contrários e expressa o indizível. Ele mesmo submete a constatação à crítica: “E se o texto poético não fosse coerente, harmonioso, unificado e repetitivo? E se a relação entre as partes fosse completamente diferente?” (TODOROV, 1981, p. 111). Analisando poetas como Baudelaire e Rimbaud, confirma sua suspeita de que a fórmula neorromântica não dá conta de certos ramos da poesia de vanguarda, dos

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dadaístas aos surrealistas, e de fenômenos como o poema em prosa ou a prosa poética. Socorre-se de Étienne Souriau e de sua tese da arte representativa “em que o universo da obra mostra seres ontologicamente distintos da própria obra” (TODOROV, 1981, p. 135) e da arte apresentativa, em que o significado não aponta para o referente, mas para si mesmo, salientando o significante, o que também não explica a poesia, de vez que na filosofia o processo de significação não é representativo. Sua conclusão é que a poesia não pode ser pensada substancialmente. Sua concepção varia conforme os tempos e lugares, inclusive até entre os textos em si. Não considera, porém, as aberturas proporcionadas pela fenomenologia, deixando passar ao largo sua estruturalidade. A questão se reinicia com a Nouvelle Critique. Ao discutir o drama, o poema e o romance, na antologia-manifesto do Grupo Tel Quel, Roland Barthes associa os dois primeiros ao ato de fazer, mas um fazer interior à história, de um lado, e um fazer exterior à história, de outro. O sujeito dramático é aquele a quem ocorrem aventuras, enquanto o sujeito do poema é “um técnico que reúne elementos tendo em vista constituir um objeto” (BARTHES, 1968, p. 25). Barthes está interessado na crítica do romance Drama, de Philippe Sollers, e abandona rapidamente a distinção inicial para mesclar as duas explicações a fim de atender às características do nouveau roman. Em O grau zero da escrita (BARTHES, 2000), propôs uma equação em que a poesia seria a prosa mais a, mais b, mais c, como se o poético se superpusesse à frase como um suplemento, mas sem maiores explicações. Foi com Lotman, o semioticista de Tartu (Estônia), que a estruturalidade do poema recebeu novo impulso. Para ele, no poema ocorre uma semantização dos elementos formais e uma formalização dos elementos semânticos. Tudo no texto poético é linguagem e tudo é mensagem, o que aumenta a sua capacidade de produzir sentidos (aquilo que Tinianov chamava de “compacidade”). O poema, caso extremo de semantização, é a melhor tentativa de ultrapassagem da arbitrariedade que une o plano da expressão e o plano do conteúdo. É como se quisesse figurar o objeto significado. É por essa via, segundo ele, que o texto poético cria um mundo simulado particular, de aproximações semânticas, a partir de analogias e contrastes que não coincidem com o esquema semântico da linguagem natural e entra em conflito com ele. Por isso, cabe ao leitor ver

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como ele funciona, como viola as interdições extratextuais anteriores a ele, sempre levando em conta que as transgressões não podem ser absolutas, pois o desintegrariam enquanto arte (LOTMAN, 1978, p. 323, 325). Os estudos estruturalistas sobre o poema não prosperaram da mesma forma que os dedicados à narrativa. Jean Cohen, em A plenitude da linguagem, tentou encontrar uma teoria da poeticidade definindo-a pela figurabilidade, através da ideia de desvio das normas da linguagem:

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[...] definida como sistema de desvios, a poesia aparece como pura negatividade, desconstrução da própria estrutura da linguagem. Mas se é a não poesia que se constitui como negação de si mesma, então a aparência inverte-se. A estratégia dos desvios, como negação da negação, devolve à linguagem a sua positividade plena. [...] É, como tal, um processo de totalização do sentido. (COHEN, 1987, p. 67).

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A tese foi contestada, alegando-se que linguagem violada se torna não linguagem, e que a presença plena e a totalização como imagem do poético o colocaria na esfera do sagrado. Igualmente outros experimentos estruturais não se mostraram frutíferos, como os praticados pelo Grupo MÜ (1980) de Liège, em Retórica da poesia, admitindo que certas estruturas linguísticas eram necessárias para a poesia, mas que deveriam ser completadas por elementos antropológicos e sociais; ou, anteriormente, por Samuel Levin, em Estruturas linguísticas em poesia (1975), que cria a noção de acoplamento para explicar a unidade do poema, sendo esse uma simetria entre partes que as torna equivalentes e supera a sucessão dos versos e estrofes, gerando a impressão de unidade do texto. O pouco rendimento de seu trabalho viria do fato de que Levin reproduzia as teses de Jakobson, e o Grupo MÜ fazia do estudo das figuras de linguagem um tecido tão complexo de equações que afastava o crítico da tarefa. A redução a fórmulas lógicas e a construções invariantes não conseguiam fazer jus ao poético, requerendo outras pesquisas que ultrapassassem a linguística e a retórica. Marcelin Pleynet, também membro do grupo TelQuel, já nos primórdios do movimento se insurgia contra as reduções do texto poético aos tecnicismos estruturalistas, para defender, a partir de Engels, sua vinculação à práxis humana, à língua e aos gêneros historicamente constituídos, como um modo de leitura das exclusões do que é diferido

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(valendo-se da acepção de différance de Derrida) na narrativa da história. Recorrendo a Lautréamont, insistia em que a poesia deveria ter por finalidade a verdade prática, deveria ser feita por todos e não por um só, ou seja, deveria resultar da produtividade das forças atuantes na história (LAUTRÉAMONT apud PLEYNET, 1968, p. 115). Nessa mesma direção, mas com outra inflexão, situam-se os membros da Escola de Frankfurt, Walter Benjamin e Theodor Adorno. Para Benjamin (1983), a poesia está radicalmente aderida à concretude da história, numa posição melancólica, no sentido de que o poeta estabelece um mosaico de fragmentos por vezes incongruentes a ela referidos, em que vê semelhanças, mas cônscio da distância que deles o separa, da sua perda, de ruínas se avolumando no progresso do tempo, que apenas a rememoração analógica pode evocar, iluminando aqui e ali suas potencialidades esquecidas. Para ele, a poesia, na modernidade, se ressente do perecimento da plena experiência que unia as comunidades tradicionais. Os tempos modernos oferecem forte estimulação à percepção, mas, reproduzindo em larga escala, pelas tecnologias mecânicas, o que antes era contemplado de longe, destitui os objetos estéticos daquela sensação de sacralidade que os cercava, determinando a queda de sua aura e uma relação de recepção cada vez mais distraída, que o poeta tenta superar produzindo choques tanto no plano das imagens quanto no dos temas. Em Adorno, a relação com a história se dá não pela nostalgia da totalidade original, mesmo obtida por semelhanças analógicas, mas por suas contradições e pela ideia de um sujeito sempre incompleto e em processo, que se identifica com uma modernidade reificadora e opressiva. Em oposição a este, a poesia seria uma resposta negativa “contra a prepotência das coisas”, “uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação de mercadorias sobre o homem” (ADORNO, 1983, p. 195). Ela incorpora em sua forma difícil os sofridos conflitos sociais, não apenas no plano do conteúdo. O poema, ao propor rupturas de toda ordem e ao refugiar-se no âmago de uma individualidade que recusa o trânsito com o real e o esperado, que alimenta tensões entre texto e leitor até o ponto da incompreensibilidade, revela-se como contraimagem da ideologia, denunciando-a. Os dois extremos da teoria da poesia, o estruturalista e o sociológico, encontram uma solução conciliatória nas teses de Hans-Georg Gadamer,

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um dos expoentes da hermenêutica literária. Exímio filólogo e pensador da estirpe de Husserl e Heidegger, de quem foi discípulo, Gadamer buscou devassar como se compreende o mundo e os textos. Afirmava que a consciência é afetada historicamente, interpretando os dados conforme os preconceitos de sua época e cultura. Ao contrário das correntes iluministas, que rejeitavam o preconceito, e da fenomenologia, que pretendia mantê-lo em cheque, para ele o repertório de preconceitos é o que permite a interpretação. O intérprete funde seu horizonte de vivências com o do texto, instaurando um diálogo entre os dois. Ao pensar a poesia hermeneuticamente, ele associa o tempo do texto, com seus elementos e cânones, aos modos como são recebidos no tempo da leitura, num processo de atualização do sentido que não ocorreria se não houvesse a fusão de ambos os horizontes. Em Hermenêutica da obra de arte, no ensaio “Poema e diálogo” (GADAMER, 2010), sua tese é de que a poesia hoje é semântica e que não há referências comuns no horizonte da recepção a que se possam recorrer como em outros tempos (mitos ou tradições amadurecidas) para compreendê-la: “não restam senão unidades semânticas que não se unificam por si mesmas, mas que divergem, plurissignificativas e dispersas como são. [...] Isso entrega ao verso uma tensão”, como se “o alheamento da linguagem precisasse corresponder à alienação crescente do homem ante o seu mundo natural” (GADAMER, 2010, p. 383-384). Acentuando a função do diálogo entre receptor e texto poético, diz ele:

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Um poema é e permanece sendo uma reunião de sentido, mesmo que ele seja apenas uma reunião de fragmentos de sentido. A pergunta sobre a unidade do sentido permanece sendo colocada como uma derradeira pergunta em relação ao sentido e experimenta no poema sua resposta. (GADAMER, 2010, p. 384).

Essa resposta está na tensão que a fragmentação do texto exerce sobre a intencionalidade do leitor, para que ele “se dirija para”, e produza, com suas vivências, a unidade, sempre vicária, que gera a compreensão. Nessa mesma linha, Hans-Robert Jauss (1994) também defende o papel da historicidade no processo de recepção das obras, valendo-se da noção de horizontes de expectativas que o leitor traz ao ato de ler. Em A história da literatura como provocação à teoria literária, postula que esse

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horizonte, o qual reúne experiências pessoais e sociais, bem como códigos ou convenções de época, interage com o universo do texto, que também encerra um horizonte histórico de expectativas. A interação de ambos pode acomodar ou emancipar o leitor, mantendo ou alterando seu modo de percepção do mundo (Cf. JAUSS, 1994). No último caso, poderia até afetar a sua práxis, já que a literatura não apenas representa as condições históricas ou sociais em que foi gerada, mas produz modelos, padrões de atuação a que o leitor responderia (lembre-se da tese de Mukarovski), identificando-se, por seu envolvimento com o texto, com as normas nele circulantes e reconsiderando as suas. Em “O texto poético na mudança de horizontes da leitura”, Jauss (1982) explica que o efeito emancipatório da poesia dá-se por uma hermenêutica que abrange três momentos: o da compreensão, o da interpretação e o da aplicação. Seguindo esse movimento triádico, ele analisa o “Spleen II” de Baudelaire. Efetua, num primeiro momento, uma leitura compreensiva, descobrindo as perguntas a que o texto se constitui como resposta e acompanhando sua estruturação à medida que ele se desenvolve. O segundo momento, o da leitura interpretativa, é retrospectivo: ele toma o que foi compreendido e retorna ao início; ou vai das partes para o todo, para esclarecer o que ficou obscuro ou em aberto. No terceiro, o da leitura reconstrutiva, recupera a recepção que a obra teve e que foi conformando e transformando seu sentido ao longo do tempo. Esse é o momento em que o horizonte do leitor se encontra e dialoga com o horizonte da obra, podendo aceitar as normas que ela antecipa ou contesta. Daí chamar essa atividade de aplicação, a atitude decorrente de transladar os modelos com que o leitor se identifica para a ação prática (Cf. JAUSS, 1982). Dessa forma, por meio da recepção hermenêutica do leitor, Jauss concilia o historicismo marxista com o estruturalismo, atendendo tanto às exigências de um, sobre a relação com a sociedade, quanto às de outro, relativas à autonomia do texto, nesse caso, poético. No Brasil, ressaltam as contribuições de João Alexandre Barbosa à discussão do poético, em As ilusões da modernidade. Para ele, a moderna crise da representação, que se reproduz em crise da linguagem, exige da poesia um esforço de autorreflexão, o qual a torna plena de indeterminações e de menções metalinguísticas. O texto poético nutre-se não só das condições históricas em que surge, mas de outros textos, numa cadeia

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de intertextualidades que supõem uma noção de historicidade como “o modo pelo qual as articulações internas do texto definem e são definidas pela leitura da história circunstancial e da história literária. Mais ainda: a maneira pela qual se estabelece uma dependência entre as duas leituras” (BARBOSA, 1986, p. 10). O leitor precisa situar-se na história e na tradição literária e, como o poeta, refazer o tecido entrelaçado de fragmentos e alusões que a consciência crítica dos modernos tornou hermético para indicar a impossibilidade das representações totalizantes. Novos insights sobre a teoria do poético aparecem em A ficção e o poeta, de Luiz Costa Lima, que leva avante seu projeto de verificar a constituição mimética da poesia, iniciado em Mímesis e modernidade (1996). Vale-se de uma releitura de Hölderlin a contrapelo daquela efetuada por Heidegger. O poeta sustentava ser a poesia uma combinação de várias faculdades humanas de forma coerente, através do ritmo ou do que ele chama de lei do cálculo. Hölderlin não proporia tal articulação pelos componentes sonoros (metro, rima, assonâncias ou consonâncias) e sim por uma interação entre intelecto, vontade e sentimento, produzindo equivalências impulsionadas pela exploração sonora. O poema, no entendimento de Costa Lima,

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[...] conta com a possibilidade seja de armar seu ritmo sem recorrer a consonâncias fônicas rigidamente regulares, seja de utilizá-las de maneira a ampliar o campo semântico das palavras que, diferenciadas do ponto de vista do sentido, são aproximadas por sua materialidade sonora. (LIMA, 2012, p. 208).

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O problema é que quanto mais o poema se afasta da linguagem comunicativa, aquela que se aproxima da história, mais corre o risco de não encontrar leitores. Por isso, Costa Lima (2012, p. 209) não o associa à mimese da experiência, mas à meditação: “O poema meditativo é uma espécie de ficcionalidade que opta pela solidão da palavra”, explorando “sua dupla potencialidade de associação e verticalidade”. Entre as diversas teorias da poesia hoje correntes, o que se constata é um ineludível consórcio entre sonoridade e sentido, que vai tecendo o poema pelo recurso da equivalência, como sugeriram Jakobson e Lotman. Também a análise fenomenológica e a hermenêutica respondem bem aos desafios sonoro-imagéticos do texto poético contemporâneo. Por outro lado, se visto pela ótica das teorias de Benjamin e Adorno, o poema atual

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“Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio se resolvem todos os conflitos objetivos e o homem adquire por fim a consciência de ser algo mais do que trânsito”(PAZ, 2003, p. 13, tradução nossa).

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frequentemente se recusa à figuração direta da sociedade, mas ao mesmo tempo indicia, na sua forma interna, os processos dolorosos da vida social contemporânea, transformados em ritmo e imagens em geral dissonantes. A questão do poético e do poema se ilumina por todos os pensadores e estudiosos que a interrogaram ao longo do século XX e neste século XXI que se inicia. De certo modo, sobre sua estruturalidade várias contribuições coincidem, embora de origens epistemológicas diversas e por vezes conflitantes. Que sua estrutura multidimensional determina sua plurissignificação não se pode mais discutir. A multimensionalidade dá conta da forma interna e da relação com o extratexto. O que continua evasivo é sua poeticidade. O poético, se nesses dias de incerteza e relativismo pós-modernos continua enigmático, resiste nas criações dos poetas e na apreensão dos leitores de poesia. Talvez não nominado ou conceituável, mas certamente desafiando o pensamento e as sensibilidades que tentem sujeitar suas formas proteicas a alguma determinação. Nas palavras do poeta Octavio Paz (2003, p. 13), a poesia, mesmo sendo histórica, transcende a história: “Expresión histórica de razas, naciones, clases. Niega a la historia: em su seno se resuelven todos los conflictos objetivos y el hombre adquiere al fin conciencia de ser algo más que tránsito”.4

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Algumas questões sobre corpo e literatura Alckmar Luiz dos Santos

Ce n’est pas à l’objet physique que le corps peut être comparé, mais plutôt à l’oeuvre d’art.1 (Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception) C’est en prêtant son corps au monde que le peintre change le monde en peinture.2 (Merleau-Ponty, L’oeil et l’esprit) E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. (Alberto Caeiro/Fernando Pessoa, poema IX d’O guardador de rebanhos)

Em muito raras ocasiões, a literatura foi estudada a partir de perspectivas ancoradas na experiência do corpo do leitor e do escritor. Atualmente, com a consolidação das literaturas digitais, das poéticas 1

“Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas, sobretudo, à obra de arte.” (MERLEAU-PONTY, 1964). Tradução do autor deste capítulo, como todas as seguintes.

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“É emprestando seu corpo ao mundo que o pinto transforma o mundo em pintura.” (MERLEAUPONTY, 1989).

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performáticas, dos poemas sonoros, abriu-se caminho, de um lado, para o reencontro com velhas tradições, velhas da idade da própria literatura, como os rituais mágico-poéticos, as composições cantadas do mundo clássico e da Idade Média. Todavia, de outro lado, se podem repensar conceitos e categorias da teoria e da crítica literárias a partir da experiência do corpo de quem lê, vê e ouve, e de quem escreve. É justamente isso que tentamos fazer no que vai aqui abaixo, utilizando, para tanto, a fenomenologia como via de reflexão privilegiada.

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O corpo, isto é, a experiência do ser-incarnado (segundo a concepção de Merleau-Ponty (1989, p. 350)) é o fundamento da “ciência do Mundo que me é dada com meu corpo”, uma invariância na multiplicidade das percepções, dos gestos expressivos, das manifestações cognitivas. Ora, sem o suporte da carne, o ser-no-Mundo seria apenas pensamento puro, puro espírito, o que significaria forma de conhecimento solipsista e, portanto, irremediavelmente vazia. Para cumular esse saber de sentidos, para que ele esteja ancorado em um espaço empírico, não se pode fazer abstração da contribuição do corpo. Todo pensamento tem, por assim dizer, uma primeira camada que reside justamente em sua espessura corporal: maneira de o ser-no-Mundo fazerse presente e coparticipante numa realidade completa. Nossos primeiros pensamentos estão já presentes nos gestos da criança que estica sua mão em direção à doce pele da mãe, que dirige sua boca para o seio que o nutre. Daí podermos dizer acertadamente que ele pensa com as mãos, seu cogito, mais do que nunca, está ancorado em sua contingência, no espaço físico que seu corpo se dedica a conhecer. Assim, pensar também está no ato de colocar nosso corpo em situação; este é a matéria e a própria fonte de um monismo epistemológico, o meio de chegar a uma generalidade do conhecimento, a partir da particularidade, da especificidade de um ato cognitivo individual. Provavelmente, é devido a isso que se deve crer sobretudo nos pensamentos que são expressos por meio do corpo, como afirma Alberto Caeiro nos versos que servem de epígrafe a este trabalho. De outro lado, é necessário considerar que nosso corpo tem, por assim dizer, duas instâncias. A primeira é o corpo fenomenal, que MerleauPonty diz ser, antes de tudo, a realização pré-reflexiva do ser. O segundo é

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o corpo como matéria, como peso da carne demasiadamente carregada de pensamento reflexivo, já engajada em um trabalho cognitivo sem que tenha tomado pé de seus atos originários pré-reflexivos. Contudo, o conhecimento do Mundo só é possível através de nosso corpo. O Mundo que vemos, ao qual nossa experiência adere para, apenas futuramente, tornar-se reflexão intelectual, ele tem já sua referência prioritária em nosso aparelho corporal posto em cena (na cena do Mundo!). Não temos nada além de nosso corpo particular para nos lançarmos à busca do universal. É ele, nosso corpo, que nos dá acesso às coisas e a nós mesmos, ao conhecimento do Mundo e a nossas próprias percepções. O corpo exprime, assim, a proposição intermediária de um silogismo vivido e experimentado diretamente, pois nos leva do particular de nossa contingência (a premissa menor) ao universal do Mundo vivido (que, de outro modo, seria perdido, como se fosse uma premissa maior falha). Trata-se aí de um silogismo completamente instalado neste nosso Mundo vivido, mas que ainda não foi simplificado ou explicado por uma análise cognitiva. Em consequência disso, nosso corpo pode tornar-se a expressão de uma continuidade necessária entre imanência e transcendência. Ele nos abre uma via privilegiada de acesso a tudo que se localiza na esfera do universal. Todas as nossas observações estão carregadas desse desejo que faz com que nossos menores gestos já sejam uma tentativa de atingir a virtualidade do infinito: um braço que se move em direção da pessoa amada quer não apenas acariciar um rosto idealizado, mas deixar no espaço em que se desloca as marcas de seu sentimento amoroso. Podemos dizer que essa experiência corpórea, sob certos aspectos, também se dá no âmbito do literário. Também nela, imprimimos sentidos a elementos parciais e precários que vamos atravessando, mas esses sentidos apontam todos para uma generalidade que é, ao mesmo tempo, nunca alcançada e já presente de forma indireta. É nessa tensão paradoxal que se instala o que poderíamos entender como uma corporeidade da literatura. Trata-se, de fato, de uma experiência de corporeidade, e que podemos assim descrever: a expressão literária se constrói apontando para linhas de sentido, para imagens e para ideias que configuram um horizonte longínquo e assimptótico, nunca atingido diretamente, mas sempre influenciando cada elemento imediato que vamos percorrendo com a leitura ou com a escrita. É uma presença indireta que poderíamos explicar por argumentos idealistas

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ou psicologizantes, mas ocorre que ambos acabam sendo extremamente redutores. Assim, se buscamos uma explicação, ou melhor, uma descrição pelo viés da corporeidade, certamente vamos obter uma compreensão mais profunda e mais justa dos fenômenos literários. Por exemplo, pensemos nas imagens de umidade, de desconforto, narradas em Cem anos de solidão (de Gabriel García Márquez), no episódio das chuvas torrenciais e quase intermináveis que caíram sobre Macondo em certo período. Uma interpretação metaforizante desse trecho não seria descartável, nem desprovida de interesse. Contudo, ela não daria conta de descrever as sensações que se produzem em meu corpo: sem me sentir totalmente um personagem vivendo naquela pequena cidade (afinal, ela é uma ficção!), eu não deixo de experimentar a sensação do mofo, a atmosfera carregada de umidade e quase irrespirável, ainda que ela não se realize diretamente em minha pele; quando abandono momentaneamente a leitura e saio da poltrona ou da cama, meus pés andam como se evitassem pisar em poças de água. E, mais importante!, tampouco essas interpretações metafóricas ou psicologizantes dariam conta de descrever como meu corpo, afetado pelas imagens verbais, dá o troco à escrita literária e passa a lê-la de modo diverso do que estava fazendo até então, quando se deixava impregnar de outra sorte de imagens. Isso tudo nos ajuda a entender melhor por que Merleau-Ponty (1989, p. 274) afirma que as partes do corpo constituem a simbólica geral do Mundo. Esse mesmo entendimento está por trás das imagens de Caeiro:

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Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo... Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer Porque eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho da minha altura... (PESSOA, 1986, p. 118).

Desde nossa “aldeia”, isto é, da sede de nossas percepções corporais, conseguimos perceber e sentir como o Mundo se organiza e como nossa individualidade responde a ele, como nossas percepções são, de algum modo, o eco de outras contingências reunidas e associadas no concerto da realidade, em uma espécie de implicação essencial entre a imanência e a transcendência. E entre ambas – uma que é envolvida, outra que envolve –, há uma produção mútua de significação. A imagem final do filme Ran (1985), de Akira Kurosawa (um cego que percorre, hesitante, tateando,

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Com respeito à unidade do Eu no horizonte da experiência, ver Merleau-Ponty (1989, p. 254).

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a beira de um abismo) é suficientemente forte para exprimir o mesmo espanto que experimentamos diante desse convívio entre o universal e o particular: a significação de um deriva diretamente da do Outro; suas fragilidades e suas possibilidades se misturam em um jogo em que não há vencidos nem vencedores, mas apenas a constatação de uma ordem que se dá somente na precariedade. É possível concluir daí que, com respeito à dupla corpo-espírito, nenhum deles têm precedência sobre o outro, ao contrário do pensamento de um Leibniz, para quem o corpo se definiria como um espírito momentâneo. Nesse caso, a harmonia preestabelecida não seria nada além do que uma concessão do espírito, e o corpo traduziria apenas a predisposição daquele em manifestar-se na imanência. A ordem natural se tornaria, então, um fato do espírito dizendo respeito à metafísica ou à teologia, e a imanência não seria mais do que a iminência do espiritual. Ora, a unidade do corpo e a unidade do espírito são uma só unidade, uma eventual harmonia entre eles não tem existência exterior, quer dizer, ela não é imposta exteriormente, mas se constrói no cotidiano dos gestos corporais, dos atos irrefletidos, das ações mais imediatas. Podemos até afirmar que a unidade do Eu penso se funda sobre nosso horizonte de experiências, e que esse horizonte é contemporâneo do funcionamento do Eu penso. De fato, ocorre com frequência que, durante esse processo, a reflexão se imponha ao sujeito da percepção. Por conseguinte, essa unidade originária, que engaja corpo e espírito, sujeito da percepção e sujeito da reflexão, corre o risco de ser esquecida. Merleau-Ponty (1989, p. 262) afirma mesmo que ela pode ser destruída.3 Trata-se de um equilíbrio tão precário que pode ser rompido se nos inclinamos em demasia para um ou para outro (mais frequentemente, opta-se pela reflexão tardia e distanciada do contato do corpo submetido a alguma experiência direta). O que estamos descrevendo aqui é a unidade aberta do sujeito que se realiza apenas diante da unidade igualmente aberta daquilo que se oferece à percepção, seja o Mundo da vida, seja uma obra literária. A relação do Eu com o Outro também se dá primordialmente através do corpo. A fenomenologia de Merleau-Ponty (1989, p. 160) considera o Outro como origem de uma espécie de “transgressão intencional”, da mesma ordem do “eu posso” do corpo. Uma consciência constituinte não se daria conta de pertencer a um “Mundo pré-constituído” (MERLEAU-PONTY,

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1960, p. 86). Por isso a constituição do Eu não é jamais algo totalmente controlado, ao menos no sentido intelectualista do termo. A existência do Outro me engaja forçosamente na aceitação das outras consciências, de sua presença diante da minha própria consciência; do contrário, essa palavra, Outro, perderia totalmente seu sentido. Em todo ato de comunicação ou de cognição, a marca do Outro permanece flagrante: quando eu me explico, ou quanto compreendo alguma coisa, existe aí, atrás do processo posto em funcionamento por minha consciência e por meu corpo, a presença do Outro que torna minha palavra cheia de sentido, faz com que meus raciocínios se tornem um pouco mais coerentes. O mesmo ocorre com os pensamentos e com as realizações dos outros. Segundo Merleau-Ponty (1989, p. 215), é “como se a intenção do Outro habitasse meu corpo, ou como se minhas intenções habitassem o seu”, o que pode ser descrito como uma copresença ou construção mútua de significação. De todo modo, é essa capacidade de apreender a presença do Outro, manifestada sob as dobras do cotidiano, que vai tornar nossos pensamentos mais ricos, mais gerais, mais próximos da diversidade do Mundo. A consequência disso é que o ato de apreender o Outro implica aceitar sua existência na estrutura de minha própria existência, em uma espécie de diálogo que é anterior mesmo à compreensão intelectual do meu sentido e do sentido do Mundo. Eu me engajo em sua presença incontestável, antes mesmo de falar dele ou de refletir acerca de sua presença diante de mim; essa presença já faz parte da maneira como eu me disponho entre as coisas do Mundo, como eu estabeleço as relações pessoais. Minha abertura ao Outro é o começo de minha abertura ao próprio universo. É exatamente essa mesma percepção que podemos surpreender, ainda em estado de graça, na linguagem poética. Dito de outra maneira, trata-se da capacidade que tem a poesia de dissimular (e não apenas de conter) o movimento total do Mundo e dos seres sob a finitude de um texto literário. Quando Álvaro de Campos lhe explica o que é o materialismo clássico e sua concepção de infinito, Caeiro diz: “Mas isso a que V. chama poesia é que é tudo. Nem é poesia: é ver. Essa gente materialista é cega. V. diz que eles dizem que o espaço é infinito. Onde é que eles viram isso no espaço?” E eu, desnorteado. “Mas V. não concebe o espaço como infinito? Você não pode conceber o espaço como infinito?”

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Para Caeiro, a ideia de infinito não passa de um contrassenso: como enfiar o que não tem fim dentro do que já é limitado desde o início (isto é, a ideia)? É por isso que a poesia não é infinita, ela é “tudo” (e essa oposição marca bem a diferença do que diz Caeiro, com relação aos raciocínios intelectualistas). É impossível compreender o infinito em um texto ou em um pensamento. Nós apenas podemos chamar o todo à presença nas palavras que constituem a obra poética. O mesmo se dá com respeito ao Outro: não é diretamente ele, mas as marcas de sua existência que são apreendidas nos traços que ele deixa, indiretamente, nos atos de constituição, de expressão e de tomada de posse do Mundo, por sua presença constante que está por detrás de nosso olhar dirigido às coisas. O Outro não nos dá a posse do infinito, mas nos faz sentir a iminência de totalidade que subjaz às outras existências (que não podem se reduzir à nossa). O corpo, através do qual o Eu se faz existente, constitui assim o ponto de intersecção das diversas perspectivas implicadas por sua situação particular. O Mundo não é mais, para ele, uma acumulação de objetos, mas o horizonte plausível e sempre mutável de suas possibilidades, a Perspectiva de diversas perspectivas que veem o corpo como ponto de partida material 4

PESSOA, Fernando. “Notas para a recordação do meu mestre Caeiro”. Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2014.

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“Não concebo nada como infinito. Como é que eu hei-de conceber qualquer coisa como infinito?” “Homem”, disse eu, “suponha um espaço. Para além desse espaço há mais espaço, para além desse mais, e depois mais, e mais, e mais... Não acaba...” “Porquê?” disse o meu mestre Caeiro. Fiquei num terramoto mental. “Suponha que acaba”, gritei. “O que há depois?” “Se acaba, depois não há nada”, respondeu. Este género de argumentação, cumulativamente infantil e feminina, e portanto irresponsável, atou-me o cérebro durante uns momentos. “Mas V. concebe isso?” deixei cair por fim. “Se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?”4

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de uma realidade que se oferece ao conhecimento do Eu. Antes de todo pensamento reflexivo, o Mundo exige de nós a entrada em um campo de sentidos em que se darão todos os nossos esforços de percepção e de cognição. E esse Mundo aparece como Perspectiva, não como Referência, pois ele não aparece inteiro jamais, ele não se dá jamais completamente. Ser a Referência implicaria sempre um reducionismo. Por isso a síntese do Mundo, como a simbolização do infinito, não pode nunca ser alcançada. O Mundo não é sintetizado pelo corpo, mas retomado continuamente por ele, através de seus gestos, pondo em marcha lógicas que não precisam de ser pensadas previamente. A indeterminação do Mundo e a determinação do corpo, mesmo relativizadas, aproximam-se continuamente, para que possamos, assim, realizar nossos atos de expressão. É por isso que podemos dizer que o sistema Eu-Outro-Mundo – segundo a expressão de Merleau-Ponty (1989, p. 73) – estabelece o campo em que se joga a sorte dos objetos, no qual eles podem apontar para uma significação particular. Se pensamos no ato da leitura do literário, a relação que se estabelece aí se dá entre meu corpo que lê, o corpus que se lê e a generalidade aberta do Mundo (que não é infinita, mas é tudo). Dito de outra maneira, não é apenas o Outro do escritor, do autor, ou da voz narrativa que temos de enfrentar: nossa lógica corporal, nossa organicidade leitora, por mais que recuse, deve enfrentar a organicidade da obra literária, sem o apelo cômodo à intermediação direta e imediata do Mundo. Ou seja, não lemos e compreendemos uma obra, graças à presença pretensamente apaziguadora do Mundo; buscamos ler e compreender uma obra exclusivamente para nos situarmos e a ela, num Mundo, um Mundo que já não é mais aquele que existia antes de que eu lesse essa obra! Dessa maneira, a fala, o discurso equivalem à tentativa dos gestos de tocar a indeterminação do Mundo, através do corpo posto em situação. O encaminhamento ao sentido é, por isso, uma operação expressiva que sempre vai contar com os horizontes que o Mundo nos põe à disposição: o horizonte do gesto verbal é dado pela cultura; o horizonte do gesto físico é dado pela natureza (cf. MERLEAU-PONTY, 1989, p. 217). E esse horizonte de perspectivas (ou da Perspectiva do Mundo, se quiserem!) seria percebido como uma realidade opaca, indiferenciada, como Referência absoluta, se houvesse apenas o Ego cogito trabalhando no campo das significações. É graças, então, à presença do Outro que despertamos para o espetáculo da

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O Cogito cartesiano que é o tema de minhas reflexões, está sempre além do que me represento atualmente, ele possui um horizonte de sentidos, é feito de uma quantidade de pensamentos que vieram até mim enquanto eu lia Descartes e que não estão atualmente presentes, e outros pensamentos que pressinto, que eu poderia ter e que nunca desenvolvi.

Em suma, ler é um trajeto assimptótico: o final não é jamais atingido, mas permanece como alvo sempre a retomar. Assim, ler é construir um percurso interminável “do ‘Mundo fechado’ ao ‘Universo infinito’” 5

Barthes (1981, p. 257, grifo do autor) diz que a “linguagem necessária é escolhida por cada crítico em função de uma certa organização existencial, como o exercício de uma função intelectual que lhe pertence propriamente, exercício no qual ele coloca toda a sua ‘profundidade’, quer dizer, suas escolhas, seus prazeres, suas resistências, suas obsessões”.

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Alberto Caeiro/Fernando Pessoa, poema VIII, disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2014.]

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expressão, que nossa fala, que nosso discurso se tornam significação. Enfim, é apenas a presença do Outro que nos permite apreender a pluralidade do Mundo em meio à aparente univocidade de nossa própria perspectiva, como a multiplicidade latente dos gestos derivando da unidade do corpo próprio. Quando nos dedicamos à leitura de uma obra literária, sua presença não pode se reduzir apenas a uma configuração de palavras sobre um papel. Ler significa apreender, a partir de um encadeamento de palavras, novas perspectivas nas quais entramos com toda nossa carga de pensamentos, de pré-conceitos, de expectativas, de lapsos, ou mesmo de conhecimentos até então latentes.5 E essas novas perspectivas não existiriam se não fossem criadas pela presença do Outro no Mundo. A leitura pressupõe um diálogo com aquilo que é intrinsecamente diverso de mim, o que só pode ser dado através do Outro. Do contrário, ler seria um monólogo, uma espécie de eco pretensamente autossuficiente. Mas é preciso que não seja assim! É preciso que ler seja ao menos como olhar um espelho: ele nos dá um ponto de vista que já não é mais o nosso, mas nossa situação como estranhos a nós próprios, com nosso olhar sendo dirigido por uma parte do Mundo que nos é exterior, como o “acordo íntimo” de Caeiro entre “a mão direita e a mão esquerda”.6 Merleau-Ponty (1989, p. 425) já disse o mesmo, acerca de suas leituras de Descartes:

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(FEYERABEND, 1979, p. 209),7 levando em conta as muitas perspectivas que, quando da leitura, o texto abre ao nosso campo de percepção, à nossa imaginação. Mesmo os pontos de vista anteriores e até as condições históricas de produção da obra de arte não deixam de influenciar o que eu leio como texto atual. Kendall Walton (1991, p. 222), ao contrário, afirma que tal determinação, ainda que parcial, não seria levada em consideração quando se avalia esteticamente uma obra de arte: “[...] circunstâncias de sua origem [...] as propriedades estéticas de uma obra devem, em princípio, poder ser determinadas sem a ajuda dessas circunstâncias”. É certo que se pode muito bem discutir as propriedades de uma dada obra de arte sem focalizar sua origem. Todavia, é também certo que isso poderá ajudar a discuti-la melhor, a estabelecer mais claramente seu alcance, suas características mais próprias. É forçoso reconhecer que o conhecimento das circunstâncias históricas em que surgiu essa obra, é também parte integrante da experiência estética que podemos ter dela, e não apenas de forma indireta! Não se deve impedir de pensar na burguesia protestante holandesa, ao ver um quadro de Rembrandt. Há sempre um contexto cultural (dito de outro modo, um horizonte de cultura) determinando alguns elementos que participam da experiência estética, não por uma decisão ou por uma dádiva do leitor, mas por uma presença indireta e independente (do leitor, vale reafirmar!), na obra de arte, desse horizonte, dessas condições históricas. De outro lado, a história não é, seguramente, um valor absoluto que condicione o ato de criação. Ela aparece como um dos componentes da experiência estética. Assim, ler uma obra a partir de suas condições históricas, deve também ser uma leitura da história: há aí um texto histórico paralelo ao literário, ambos estão imbricados e se determinam, parcialmente, um ao outro. Da intersecção de ambos produz-se o ato de ler como encontro de dois horizontes, de duas expectativas, de dois campos possíveis que preconizam a facticidade da própria leitura. Além disso, as maneiras como outras pessoas leram um certo texto são também perspectivas que, daí em diante, devem ser levadas em consideração. Há aí uma espécie de sedimentação que associa as significações de uma obra às leituras por que ela já passou. Ou não haveria nenhuma diferença na leitura das obras de Flaubert, antes e depois de Sartre ter publicado L’idiot de la famille? Ou da obra de Machado de Assis, 7

No nosso caso, deveríamos trocar infinito por todo.

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com relação às análises de Roberto Schwarz? Claro que sim, mesmo nos leitores que nem chegaram a passar os olhos pelo estudo de Sartre ou pelo de Schwarz: se essa perspectiva não lhes vem diretamente, pela leitura do estudo crítico, acaba chegando indiretamente, pela infiltração e posterior sedimentação de suas discussões no campo de sentidos em que a obra de Flaubert ou a de Machado estão mergulhadas. De uma maneira limitada, é certo!, mas passível de ser detectada, os leitores também participam à constituição do campo de leitura de um texto: certas possibilidades podem muito bem ser esquecidas em proveito de outras que estavam, até então, desconsideradas. É essa sedimentação que assegura, ao mesmo tempo, nossa permanência e a de outros leitores no texto, assim como a permanência do texto em nossas memórias, em nossos pensamentos. Creio que Ingarden (1973b, p. 351) explica isso muito bem:

O que Ingarden não esclarece de modo mais claro é que essas mudanças nas concretizações individuais (em nossas leituras, para ser mais preciso) podem permanecer também nas concretizações posteriores levadas a cabo por outros leitores (desde que tenham contato, direto ou indireto, com nossa maneira de ler essa obra). O ato de leitura pressupõe que sempre restará um espaço a ser preenchido por outros olhares, outras considerações. Haverá sempre a sensação do inacabado, da necessidade de abertura a outras perspectivas, além das nossas. Trata-se aí de um tipo de sedimentação, através do qual tomamos posse de perspectivas estranhas às nossas, acomodamos nosso olhar aos de outros e alargamos e deslocamos os horizontes de significação do texto. A sedimentação não é nada mais do que o trabalho de empurrar cada vez mais longe os horizontes que envolvem e fixam temporariamente as significações textuais. Os horizontes do texto conservam sempre uma margem de indefinição, de vazio a preencher, sem a qual nosso diálogo com ele não seria nada além do que um monólogo submetido a nossos estreitos limites. Aceitar a noção de horizonte significa também enfrentar nossa imperfeição diante do Mundo, aceitar que

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[...] há mudanças nas concretizações de uma obra literária que estão intimamente conectadas com as vidas de indivíduos e são influenciadas pela atmosfera cultural. [...] mudanças nas concretizações individuais têm a tendência de tornar-se consolidadas em concretizações subsequentes [...].

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temos necessidade das contribuições do Outro para estabelecer, alargar e sedimentar nossos conhecimentos. Sem essa participação dos outros, nossos conhecimentos seriam sempre um tentativa muda de cognição, o que não seria, de modo algum, propriamente conhecimento. Como afirma Eduardo Prado Coelho (1987, p. 74), todos os nossos paradigmas são medidos por outros. Dessa maneira, a incomensurabilidade entre meu paradigma (meu sistema, minha organização particular de horizontes de sentidos) e os de outros existe apenas como disponibilidade dialógica. Dito de outra maneira, o que é incomensurável é a particularidade das significações, a ordem particular que temos delas segundo uma certa perspectiva. Tudo isso perde importância quando pensamos no horizonte total que é o Mundo. Quando nos damos conta de estarmos totalmente imersos nele, a incomensurabilidade se torna comunicação e eu posso, então, consagrarme à busca da presença inevitável do Outro nas diversas significações que construo de um mesmo objeto. O fato de que eu não poderia jamais me reduzir ao Outro, em um diálogo, implica que o confronto dos paradigmas (ou das perspectivas, se quiserem) não os reduz à igualdade, mas faz com que compartilhem um mesmo espaço, um mesmo mundo onde podem, enfim, desenrolar sua existência, exercer seu direito à expressão. De fato, a leitura não é nada além do que a intersecção das diferentes perspectivas que o leitor vai arrancar a seu horizonte de possibilidades, ordenadas pelo espaço textual, quer dizer, pela configuração particular em que – como leitores – instalamos nossa busca de sentidos. A bem da verdade, temos aí, nessa busca, o engajamento de dois horizontes: o do leitor e o do texto. Com respeito a este último, podemos, por ora, compreender seu horizonte como suas referências, suas intertextualidades, as citações que utiliza, suas marcas ideológicas, sua ligação direta ou indireta com alguns gêneros literários etc. Trata-se assim de uma perspectiva que se estabelece a partir do texto e que deve ser habitada e, então, retomada e reorientada pelo leitor. Talvez seja isso que Iser (1985, p. 181-182) apresenta como a comunhão entre o que ele chama de tema e o horizonte. Nossa presença no texto (e, em consequência, do texto em nós) tem o efeito de alterar sua organização discursiva, de maneira que ela se retorce e se modifica sob o impulso de uma presença outra. Temos aí o mesmo tipo de atração que faz fletir nosso olhar quando ele tenta se fixar sobre o movimento de algum objeto: a cabeça imóvel faz com que a visão se deforme para acompanhar

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Damo-nos tão bem um com o outro Na companhia de tudo Que nunca pensamos um no outro, Mas vivemos juntos e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda.8

Por isso, discutir a influência mútua entre leitor e texto implica abrir a discussão literária aos problemas da recepção da obra, como já havia indicado Jauss. Trata-se, no caso, de se perguntar como o texto pode produzir modificações na perspectiva primeira com que o leitor abordou sua leitura. De toda maneira, avançar por esse caminho de discussão nos tiraria do trajeto que pretendemos mapear com este trabalho. Fica isso para outra ocasião. O que parece mais fértil, nesta altura das reflexões, é voltar nossa observação para as relações entre diferentes leitores e a maneira como o texto se amolda a isso. Em outras palavras, parece ser fundamental agora abordar o problema da intersubjetividade, no que diz respeito à realização do texto. 8

Alberto Caeiro/Fernando Pessoa, poema VIII, disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2014.

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o corpo que vai se afastando. De fato, o ponto de vista mutável do leitor, justaposto à organização do espaço textual, vai engendrar modificações na maneira de o texto se colocar diante de nós como possibilidade de percepção. Seus horizontes se alteram, de acordo com a luz que nossa perspectiva impõe a ele, o que faz com que se revele aí aquilo que Iser (1985, p. 211) chama de “horizontes intercambiáveis”, quer dizer, as fronteiras imprecisas que marcam nossa maneira de olhar o Mundo (de que faz parte, de ora em diante, uma organização particular do texto que se está lendo). Temos aí uma espécie de diálogo em que, desde o início, não nos é dado mais diferenciar com precisão o que influencia do que é influenciado. Trata-se do mesmo fenômeno que podemos ver na embocadura de um rio: o doce de suas águas e o sal do mar se misturam na onda que marca o encontro de ambos, sem que possamos distingui-los com clareza. Desde o início, não há nada de certo, nada de preciso, nada de claro, e a análise intelectualista se torna impotente, pois a perspectiva de visão é influenciada pelo objeto visado. Inicialmente, não podemos fazer mais do que tomar consciência desse acordo de perspectivas, sem analisá-lo demasiadamente:

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Se o texto se dá, então, como entrecruzamento de distintos horizontes de sentidos, provenientes de diferentes origens (leitores, escritores, autores intertextualizados etc.), podemos ver aí facilmente algo como uma copresença de espontaneidades. No texto, assim, temos um espaço intersubjetivo em que distintas espontaneidades se colocam em diálogo. Ora, às vezes, isso nos faz vê-lo, ao texto, como um dos polos de subjetividade do processo de leitura, ou seja, ocorre que os leitores podem percebê-lo também como espontaneidade, espessura autônoma, estrutura parcialmente auto-organizada. Dessa maneira, a coerência textual se tornaria como que mais um participante da leitura (entendida aqui, agora, como diálogo), em pé de igualdade com as demais subjetividades que dela participam. Daí o fato de numerosos leitores tomaram o texto como Texto, quer dizer, excedente autônomo de subjetividade com que o escritor teria impregnado as palavras sobre o papel. Essa questão diz respeito a certa inquietação que sempre experimentamos quando estamos diante do Outro: como tomar em consideração sua presença em nossas ações, sem pôr em xeque a nossa própria? Como, então, levar em conta sua presença no texto, sem fazer dela uma outra individualidade espontânea que se manifesta nele? Nesse caso, seria mais fácil considerar o texto não como mais um polo de subjetividade, mas como outro polo do diálogo, na medida em que podemos mais ou menos prefigurá-lo de acordo com nossos propósitos. De modo geral, podemos dizer que a intersubjetividade é a maneira como conseguimos compartilhar um mesmo Mundo. É graças às relações intersubjetivas que nossa própria espontaneidade adquire significação. E, a partir do momento em que nossa subjetividade escapa às limitações da consciência solitária e busca a alteridade, isto é, a multiplicidade do vivido, ela vai se desdobrar como intersubjetividade.9 De outro lado, a maneira como apreendemos os objetos está indissoluvelmente associada a essa interferência construtiva,10 estabelecida entre espontaneidades distintas. A dificuldade, então, é de não permitir que nosso olhar, dirigido ao objeto, dê-lhe um estatuto que ele não possui de modo algum, a espontaneidade. É certo: a percepção das coisas não é uma “constituição do objeto verdadeiro”, como afirma Merleau-Ponty (1989, p. 403), mas “nossa inerência às coisas”. É assim que a perspectiva que temos de um objeto particular se faz em 9

É o que se propõe ao menos desde Husserl. A respeito disso, ver Zeljko Loparic (1988, cap. 14).

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No sentido próximo ao da física das ondas.

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A esse respeito, ver o precioso estudo de Adorno (1984).

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“Em vista da concretização [...], o texto organiza uma espécie de estratégia. [...] associar os elementos do repertório [...] estabelecer igualmente a ligação entre o contexto referencial do repertório e o leitor, [...] a inscrição do sujeito no texto, assim como das condições de

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conjunção com as perspectivas de outras pessoas. Contudo, o próprio objeto não teria como apresentar essa autonomia, ainda que ele seja um dos polos através dos quais se realiza a intersecção das espontaneidades (outro polo é o corpo). A espontaneidade deriva unicamente do subjetivo: ela resulta de uma transformação através da qual o Eu de quem observa se dirige à pluralização, ao Nós que constitui um de seus horizontes de observação. O objeto é, então, o ponto em que esse intercâmbio toma forma, uma das vias através das quais temos acesso aos outros e em que nos fazemos acessíveis a eles. Por isso a voz poética se caracteriza como a colocação em cena de um Eu plural, um Eu que busca seu concerto dentro da pluralidade dos outros.11 Assim, pode-se considerar que não há um termo médio entre as coisas e os seres. Ou, dizendo de outra maneira, não é possível conceder subjetividade às coisas, como se ela fosse uma matéria transportável. Podemos considerar que as coisas não são mais do que a organização da matéria que nos permite ter acesso ao Mundo, sem que, por isso, participem da espontaneidade. Dessa forma, se equivocam todas as perspectivas que consideram o texto como uma estrutura autossuficiente, pois elas lhe atribuem justamente aquilo que ele não pode apresentar. Se o texto é o movimento que enseja a leitura, ele não é capaz de desdobrar as significações que tiramos dele próprio. Estamos aí bem próximos da questão kantiana: o conhecimento não é determinado pelos atos empíricos, embora comece obrigatoriamente por eles. É por isso que sempre teremos que contar com a existência de outros leitores e de outras leituras, para exercermos o papel de leitores e produzirmos nossas leituras. É por isso que, por trás de termos como organização, estratégia, níveis de expressão, funcionamento textual e tanto outros, topamos, por vezes, com perspectivas que associam à obra literária alguma espécie de autonomia. Mesmo Iser, aqui e ali, parece considerar que o objeto de leitura apresenta algum tipo de autonomia funcional, como se a subjetividade do autor se transferisse à obra e impregnasse a criação, ao mesmo tempo que se afastasse de seu criador,12 como se o texto herdasse uma porção de

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espontaneidade. Certamente há sempre uma coerência (maior ou menor) na obra, que apreendemos e transformamos quando da leitura, não se pode negar, em outras palavras, que ela existe independentemente de nossa vontade; rejeitar isso implicaria cair em um relativismo egótico. Todavia, é preciso não confundi-la com uma intencionalidade qualquer. Transformar imediatamente essa coerência em autonomia e em espontaneidade significaria buscar o abrigo de alguma forma de idealismo, talvez até mesmo uma religiosidade platônica: a obra exprimiria uma consciência ideal que não proviria do mundo humano. Quando descreve o romance clássico, Barthes (1981, p. 163) diz que haveria nele uma certa “intervenção de [...] consciências parasitas”. Teria sido importante precisar que o leitor vai encontrar essas “consciências parasitas” fora do texto e da obra, isto é, na armação de significações que ele, leitor, torna possível. Além disso, a espontaneidade dos outros, a intersubjetividade a que se tem acesso durante a leitura, é tocada apenas através da disposição de nossos horizontes de mundo, e nunca nas próprias malhas de sentido que compõem nosso objeto de leitura. Não há subjetividade no próprio objeto, mas na deformação através da qual o Mundo se dá a nosso conhecimento, deformação que, certamente, é também resultado da coerência particular da obra. Se houvesse uma atividade espontânea própria da obra, ela não seria mais do que uma forma imobilizada de subjetivismo, uma perspectiva individual petrificada na armação das palavras, o que não seria mesmo, de forma alguma, uma subjetividade. O mesmo ocorre com a noção de autor. De acordo com Barthes (1984, p. 63), “o recurso à interioridade do escritor” não seria mais do que “pura superstição”, o que o levou a falar da “morte do autor” (BARTHES, 1984, p. 61). É certo que, frequentemente, o papel do autor, confundido com o do escritor, tem sido mal compreendido. Na obra, não haveria a presença de um sujeito escritor, uma espontaneidade a distância, como se ela, a obra, possuísse a possibilidade paradoxal de ter um sentido independentemente da leitura que se faz dela. Não é assim que funciona a intersubjetividade no texto. Ela deriva sobretudo da adaptação de nosso campo particular de expressão aos traços deixados pelo Outro, quando da leitura. Ainda que sejam concretos, esses traços não são discerníveis apenas no espaço textual. comunicação. É por isso que elas não podem ser vistas apenas como simples efeito do texto; elas precedem todas essas divisões” (ISER, 1985, p. 161-162).

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Ver Ernest Nagel e James R. Newman (1973) ou Jean-Yves Girard (1989).

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Podemos dizer que eles são positivos, mas não temos como identificá-los, separando-os de outros traços de significação, por estarmos limitados à superfície da obra. Temos aqui uma situação muito semelhante àquela apresentada por Gödel, a propósito da Aritmética, em que há proposições verdadeiras que não têm como ser provadas.13 Em consequência, podemos dizer que a noção tradicional de autor implicaria uma subjetividade inerente à obra. Ela deriva de uma má compreensão do que poderia ser o autor em uma leitura aberta à alteridade. Ao contrário, é preciso insistir que essa noção pode e deve ser utilizada de maneira mais próxima ao texto, sempre tomando cuidado para não enfiar aí de contrabando uma subjetividade, uma autonomia que a obra não possui de forma alguma. Trata-se de compreender o autor como textualização do escritor, abandonando o recurso a uma subjetividade que, embora existente, não tem como ser recuperada em plena autonomia, a não ser através do Eu leitor. O que propomos aqui, em suma, é um autor não mais morto, mas nascido no exercício da leitura, o autor como uma construção textual, paralela a outras que vamos pondo de pé ao longo da leitura, o que não impede, de forma alguma, que tenhamos contato com as diversas subjetividades que constituem nosso horizonte de experiência. Assim, no ato de produzir significações, é possível associar o autor uma objetividade que adere à coerência – mais ou menos marcada – que podemos discernir na constituição do próprio objeto de leitura. Trata-se de um estrato a mais, um outro texto que se associa aos índices pluritextuais que marcam e ajudam a conduzir a leitura. São, por exemplo, as observações autobiográficas, as entrevistas, os comentários críticos dos diversos leitores, as alterações ao longo de sucessivas edições da obra, em suma, os vários textos que podem ser recolhidos e adicionados ao texto em leitura, desde que se tome o cuidado de não confundi-los com qualquer manifestação de autonomia subjetiva. Após todas essas discussões acima, parece possível postular alguns procedimentos que derivam dessa perspectiva intersubjetiva com que consideramos o texto literário. Podemos, primeiramente, falar dos estágios não reflexivos. A noção de horizonte nos permite levar em consideração esses estágios do conhecimento literário. De forma simplificada, podemos imaginar o irracional como o horizonte que enseja o racional, em relação ao qual nos colocamos como seres reflexivos. Em outras palavras, nos esforços

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cognitivos, há sempre uma parcela de pensamentos que não se submetem a um controle intelectual. Temos sempre, em nossa consciência, relações com o Mundo que não se apresentam à racionalidade estrita, sem que, por isso, elas deixem de participar à nossa apreensão do próprio Mundo. Este está sempre lá, no exterior do corpo, e aqui, em nossa consciência; de fato, ele já se colocou ao redor de nosso corpo e de nossa situação desde o nascimento, ele nos exige, de imediato, a adesão a um esquema de existência que imerge toda a nossa contingência em sua própria totalidade. É o que parece dizer Merleau-Ponty (1989, p. 1): “[...] o mundo é sempre “já lido” antes da reflexão, como uma presença inalienável, cujo esforço é o de reencontrar esse contato ingênuo com o mundo para lhe dar, enfim, um estatuto filosófico”. Angelus Silesius diz que “o olho por onde eu vejo Deus é o mesmo olho por onde Ele me vê” (apud BARTHES, 1973, p. 29). Ora, é exatamente essa convivialidade entre o todo e o contingente que o texto se torna possível, na medida em que ele pode ser considerado como um acesso privilegiado aos horizontes que nos cercam. Dessa maneira, o texto pode ser o “olho indiferenciado” (apud BARTHES, 1973, p. 29)14 que nos faz experimentar novamente nosso nascimento em (para) um Mundo que nasce também para nós. Contudo, examinado no nível da vida subjetiva, esse contato primordial com o Mundo exprime justamente o vivido. Segundo Walter Benjamin (1983), há uma diferença entre este último e a experiência: o vivido é justamente esse instante de indiferenciação entre a contingência do indivíduo e a totalidade do Mundo. Por mais que a reflexão tenha o gosto pela análise, pela descoberta árdua, pelo prazer na busca de uma significação construída intelectualmente, ela conserva, ainda que disfarçadas, as marcas da experiência primeira, do contato primordial, da percepção original do Mundo (e, no que nos concerne, também a da obra literária). É por isso que Jauss (1978) dizia que “a atitude de fruição [...] é o próprio fundamento da experiência estética [...]”. Ou ainda: “Essa exigência clássica de uma distinção absoluta entre a simples fruição receptiva e a reflexão científica a respeito da arte não é, no que me concerne, mais do que um argumento ditado por uma consciência culpada [...]” (JAUSS, 1978, p. 125).15 Isso pode explicar o fato de termos uma diversidade de pontos de 14

“Aliás, é semelhante à ideia de ‘visão de Deus’ proposta por Malebranche.”

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Starobinski tinha razão em dizer, no prefácio a essa obra, que Jauss (1978) havia proposto isso antes de Barthes.

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Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória, Mas os seres não cantam nada. Se cantassem seriam cantores. Os seres existem e mais nada, E por isso se chamam seres. (PESSOA, 1976, p. 210).

É a partir disso que Jauss (1978, p. 259) havia proposto considerar o que ele chama de “pré-compreensão do mundo”, o que inclui tanto a individualidade do leitor quanto as condições gerais que o envolvem. Segundo o pensador alemão, essa é a única maneira de fazer com que nossa leitura de uma obra se torne expressão possível, superação de nossas particularidades em proveito da generalidade acolhedora do Mundo, talvez mesmo uma espécie de Aufhebung de uma percepção estética originária. Trata-se, em outras palavras, de nosso acesso à significação como atividade própria à existência, como a constituição originária do sentido do mundo vivido. A leitura torna-se assim tributária do que podemos chamar de primordialidade: a atitude de tomar em consideração o sentido quando de sua criação. De fato, é isso que torna possível constituir um fundo intersubjetivo acima da diversidade das leituras individuais, o que nos assegura entrar em posse de um caráter ao mesmo tempo particular e geral, uma via de acesso a nós e aos outros.

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vista e de conceitos diferentes, que a racionalidade não será nunca um corpus de total coerência de métodos e de procedimentos, mas uma experiência que arrancamos ao vivido. O racional deve sua existência a um esquema prévio, que não pode ser traduzido nem compreendido, mas apenas vivido como presença inalienável do Mundo em nós. A racionalidade está espalhada em múltiplas perspectivas, nas contingências incomensuráveis dos seres (o que parece ser confirmado até mesmo pela expressão de Hegel: o real é racional e o racional é real). Quanto ao texto literário, ele se ergue à condição de tecido dos horizontes do Mundo, ele é o lugar em que a imaginação pode desdobrar sua capacidade de conhecimento préreflexivo, em que a diversidade dos seres, irredutíveis uns aos outros, não impede a constituição deles em voz, em gesto, em expressão, em literatura, num percurso em que vamos do corpo ao corpus. É por isso que Caeiro/ Pessoa afirma que os seres não querem mostrar uma unidade falaciosa, sob a imagem de Deus, mas apresentar-se como possibilidade sempre diferenciada de existir:

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Uma segunda classe de procedimentos diz respeito aos horizontes da cultura. A leitura se estabelece orientando-se por condições de contorno impostas, entre outros, pelo meio cultural. Isso reflete justamente a impossibilidade de escapar ao trabalho coletivo, quando temos uma obra literária em nós e diante de nós, na medida em que estamos imersos em um espaço de sentidos que se realiza apenas através da expressão: seja a expressão individual que, por ser assim, resvala pelo espaço do coletivo, seja a expressão de todo um espaço contemporâneo de que se faz voz particular. Nossas atividades de leitura crítica decorrem, portanto, de um encadeamento cultural chamado espécie humana. Aliás, é nesse mesmo sentido que Merleau-Ponty (1989, p. 199) afirma que “o homem é uma ideia histórica e não uma espécie natural”. Quando transmitimos aos outros o que significou para nós a leitura de uma obra, nos exprimimos através de um discurso que carrega certamente as marcas de nosso espaço de vida comum, um discurso que leva os traços dos outros e os vestígios de um tempo que se conta desde a pré-história. Não é nada diferente do que diz Starobinski (In: JAUSS, 1978, p. 13) a propósito da estética da recepção: “[...] a figura do destinatário e da recepção da obra está, na sua maior parte, inscrita na própria obra, em sua relação com as obras precedentes que foram tomadas como exemplos e normas”. Estar inscrita na própria obra nos indica todo o engajamento que a expressão literária apresenta com respeito a seu contexto cultural. Aliás, trata-se aí de outra maneira de levar em consideração a intertextualidade. Como indica André Jacob (1990, p. 1365), as relações entre os diversos elementos do ato expressivo podem ser olhados como se participassem de um mesmo espaço textual “polifônico” e, portanto, como se elas representassem os muitos textos que se acomodam a esse que lemos. É evidente que não é a intertextualidade que garante a existência da intersubjetividade, mas, ao contrário, é justamente esta que torna possível a existência daquela. Para dizê-lo com outras palavras, não é uma pretensa autonomia intertextual que nos concede a intersubjetividade, mas é justamente por vivermos em um Mundo constituído intersubjetivamente que a intertextualidade se torna possível. Tanto a história quanto o homem histórico, tanto o sujeito leitor quanto a obra lida se dão a ver como textos. Eles prefiguram assim esse diálogo entre nossas contingências e a necessidade do Mundo e, de maneira homóloga, entre contingências

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específicas das obras literárias. A intertextualidade é exatamente a maneira pela qual a composição intersubjetiva do Mundo se manifesta sob as dobras de uma atividade chamada escrita. É como se pudéssemos reencenar o mito da Cabala: o Mundo é a expressão de uma linguagem que só pode ser atingida por meio dos inúmeros pequenos textos que a compõem. A busca da intertextualidade é, então, esse trabalho interminável de repertoriar os traços de outros seres no percurso de um único, uma busca interminável que, mesmo iniciada, apenas se concluiria com a descoberta impossível de uma origem das línguas e dos textos, de um deus cujo reino seria do tamanho de uma interminável biblioteca de Alexandria. Finalmente, um terceiro tipo de procedimento relaciona-se ao que podemos chamar de encontro do subjetivo e do objetivo. Iser (1985, p. 56-57) afirma que sempre fazemos juízos de valor, durante qualquer leitura, seja ela crítica ou não. Ora, a leitura não é nada além do que instalação do objeto em nosso espaço de atividade. Esse encontro entre nossa subjetividade e a objetividade constituída pelo ato de leitura se dá através da relação de um sujeito com um objeto intencional (no sentido com que Ingarden utiliza essa noção husserliana). É aí que são propostos os juízos de valor, o que nos torna capazes de objetivar parcialmente nossa constituição subjetiva, ao mesmo tempo que torna mais evidentes os traços que nossa subjetividade estabelece no objeto. Com isso, temos a possibilidade de nos acercarmos da obra literária de maneira menos subjetiva ou, melhor dizendo, menos singular e, em consequência, mais intersubjetiva. É isso justamente que pode evitar que nossos juízos de valor sejam apenas manifestações de gosto. Quando nos expomos aos outros, quando buscamos esclarecer as operações de constituição do objeto, colocamos em evidência marcas de intersubjetividade que atestam que compartilhamos o mesmo Mundo (ainda que através de diferentes perspectivas). Como explica o próprio Iser (1985, p. 56-57), o fato de enunciar essas perspectivas não as torna automaticamente “juízos objetivos de valor, mas permite [...] à intersubjetividade ter acesso a juízos fatalmente subjetivos”. No entanto, todas essas operações não deixam de ser problemáticas, ainda que exponhamos com clareza nossos postulados, nossos hábitos, nossos instrumentos. Haverá sempre algo de inexprimível na própria raiz de nossos atos de leitura. Ora, para esclarecer tudo que devemos à intersubjetividade, partimos do Eu leitor. Depois disso, como identificar,

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em nossa própria subjetividade, o que vem da intersubjetividade e que nos permite propor princípios gerais a partir de nossa contingência? De um lado, temos aquilo que vem de nós, que nasce conosco; de outro, há o que nos é dado pelo Mundo, que nasce para nós, mas antes de nós. Como então tirar proveito dessa relação entre um Eu concentrado em si mesmo e um Mundo que se apossa dele a todo momento? Como distinguir nossa tomada de posse do Mundo, do próprio Mundo (a que estamos permanentemente presos)? É certo que o campo em que desenvolvemos nossa busca por uma leitura é evidentemente coletivo, todos os seus elementos estão, de alguma maneira, compartilhados com os outros: as sugestões que seguimos (mesmo se não nos damos conta delas), as articulações significativas que são construídas ao longo de anos, a relação hereditário-conflituosa com a tradição etc. Todavia, sempre fazemos algumas escolhas que são determinadas por toda a nossa organização individual. Assim, se nos limitamos a nossa própria atividade crítica, se não explicitamos as operações que nasceram em nós a partir do campo coletivo que habitamos, se esquecemos nosso engajamento com a constituição do Mundo que nos é dado pelos outros, a palavra “intersubjetividade” não será nada além do que uma vaga ideia, uma idealidade sem função real em nossos procedimentos de leitura. É preciso que abramos sempre mais e mais nossas operações críticas de leitura, nossas operações expressivas. É preciso que levemos em consideração o diálogo com nossos próprios leitores, tanto quanto com as próprias obras literárias. Queremos dizer com isso que, se nos escondemos ao olhar do Mundo, nossa crítica vai se originar sobretudo em nossa manias, em nossos hábitos, em nossas extravagâncias, e nossa expressão vai se tornar apenas a descrição de um Ego que tenta se fechar ao Mundo a todo custo. A verdade possível a que o leitor tem acesso não é nada além do que a maneira como ele se lança ao texto, buscando nesse ato as marcas do Mundo, através das precariedades de suas operações que ele oferece à visão e ao juízo de outros. É muito semelhante ao corpo quando se percebe inteiramente inscrito no Mundo: Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz. (PESSOA, 1976, p. 213).

É assim que não nos podemos estabelecer uma grande, definitiva diferença entre a leitura silenciosa de um texto e, posteriormente, o que

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Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha.

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vamos exprimir dela para nossos leitores. A meditação calma e tranquila nos chega já através do Outro, e o conhecimento que tiramos daí será tanto mais aberto quanto ela, nossa leitura, dá conta de seus laços intersubjetivos. Entre a construção e a exposição de nossa leitura, há certamente uma distância a vencer, mas que isso não nos imobilize. Entre eu que leio e o que exponho aos outros, existe a mesma diferença que encontramos entre uma das mãos e a união das duas na prece religiosa. É a mesma imagem da pintura de Michelangelo, em que a mão do homem busca tocar a mão de Deus. Uma das mãos, tomada isoladamente, e a união de ambas se concedem mutualmente um sentido. O elemento único e sua conjunção a outros tem sentido graças a essa copresença. É por isso que Eduardo Prado Coelho (1987, p. 98) diz que o principal objetivo da crítica literária é o estabelecimento de uma comunidade intersubjetiva. Eu acrescentaria que essa comunidade existe sempre e que incumbe simplesmente fazêla se exprimir através de nossos atos, mesmo aqueles mais solitários em aparência. Se fazemos isso, podemos desvelar nosso prazer crítico (como diz Barthes), torná-lo, além disso, caminho para o prazer do Outro, fazer dele uma via de acesso à vida dos outros, ainda que, para isso, corramos o risco de perder uma parte da nossa. Não é outra coisa que afirma Fernando Pessoa (1976, p. 15), em suas “Palavras de Pórtico”:

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Algumas questões sobre a voz e(m) performance na Literatura Dalva de Souza Lobo

A oralidade como forma de registro é da ordem do coletivo, das tradições em torno das quais os grupos sociais sedimentaram e preservaram costumes que, por meio de narrativas, atravessaram séculos, permitindo às gerações posteriores conhecer a história de seus antepassados. Num processo dinâmico de atualização constante, essas narrativas e os saberes adquiridos se fizeram em forma de ritual, de mantra, de poesia, entre outras formas de expressão centradas na transmissão vocal das experiências vivenciadas. Mediante as narrativas orais, o homem exercitou a angústia de saberse finito, ao mesmo tempo que construiu um arcabouço tão crível quanto o de registro de escrita fixa1 para fazer conhecer sua história e, mesmo que em alguns momentos essa credibilidade tenha sido abalada por não trazer a hegemonia do registro escrito, não podemos deixar de mencionar 1

O termo escrita fixa a ser utilizado no decorrer dessa pesquisa se fundamenta no conceito de Zumthor, que estabeleceu a diferenciação entre essa e a voz. Para ele, “a escrita permanece, estagna, a voz multiplica. Uma se pertence e se conserva; a outra se expande e destrói. A primeira convence; a segunda apela. A escrita capitaliza aquilo que a voz dissipa; ela ergue muralhas contra a movência da outra” (ZUMTHOR, 2010, p. 320).

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o fato de que vivemos o momento da oralidade, haja vista as histórias, os grandes romances que hoje são também ouvidos, não apenas lidos, como nos mostram os e-books, por exemplo. Isso nos remete, em parte, aos rapsodos, aos repentistas, aos cordelistas e a outros poetas que nos encantam com sua arte tecida por diversos fios do passado e do presente, dando-nos a conhecer sua história, seus costumes e tradições, desde a Antiguidade até nossa contemporaneidade. Especialmente em relação à poética da oralidade, o fenômeno da voz implica o envolvimento corpóreo intrinsicamente ligado a ela e que desperta vários sentidos simultânea e independentemente de uma matriz de registro para interpretá-los, já que os limites e as camadas entre a palavra e a voz são imprecisos podendo ser rompidos a qualquer momento.

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A capacidade de o homem aprender com os antepassados levou-o a compreender os fenômenos da natureza e da própria existência através dos mitos e ritos, cujos ensinamentos, desde as épocas mais remotas, aplacaram a angústia da efemeridade humana, ao mesmo tempo que nortearam, mediante a transmissão dos valores, tradições, costumes, experiências e saberes acumulados, as culturas e os sistemas sociais nos quais o homem se insere. Dentre as formas de comunicação utilizadas para disseminar seus conhecimentos, uma das mais significativas foi a oralidade, cuja prerrogativa é a presença da voz e do corpo tanto no sentido de sua fisicalidade, isto é, impostação, ritmo, postura, etc., quanto no sentido social e cultural que norteia as relações humanas. Compreender os fatos da cultura oral implica redimensionar a voz como forma de registro humano configurado na presentidade do nosso cotidiano. Tão crível e tão repleta de significados quanto o registro de escrita fixa, a voz expande-se para outros territórios que ultrapassam a taxonomia linguística. São os suores, os tremores do corpo e os silêncios nos quais se entrelaçam as reminiscências da memória. Decorre dessa capacidade de movência sua plenitude como signo que se atualiza constantemente como uma performance do efêmero, haja vista os sons, os gestos e as palavras que da voz se esvaem e que nem sempre podem ser aferidos pela sintaxe linear. “Imersa no espaço ilimitado, a voz

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Ele distingue oralidade de vocalidade: “oralidade é um termo histórico que designa um fato que diz respeito às modalidades de transmissão: significa simplesmente que uma mensagem é transmitida por intermédio da voz e do ouvido, aí não há problema. Vocalidade, por sua vez, parece-me uma noção antropológica, não histórica, relativa aos valores que estão ligados à voz como voz, e, portanto, encontram-se integrados ao texto que ela transmite” (ZUMTHOR, 2010, p. 9, grifo do autor).

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Conhecido pela criticidade ao pensamento cientificista e cartesiano e pelo desenvolvimento dos conceitos de intuição, duração, matéria, impulso ou elã vital e memória, essenciais ao “eu” enquanto consciência dinâmica, para Bergson (2006, p. 58), a memória é algo sempre presente, porém “pode ser indefinidamente dilatada e, devido à sua elasticidade, reflete sobre o objeto um número crescente de coisas sugeridas”, ou seja, atualizada pelas lembranças, conforme apresentaremos no decorrer deste capítulo.

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não é senão presente, sem estampilha, sem marca de reconhecimento cronológico: violência pura. Pela voz, permanecemos da raça antiga e poderosa dos nômades” (ZUMTHOR, 2010, p. 320). A retomada das memórias dos antepassados também foi crucial na recuperação dessa história, pois, mesmo não sendo tecida de forma linear, ainda hoje nos permite reconhecê-la, mesmo que de maneira fragmentada, em suas diversas manifestações. Notamos, assim, o quanto a voz e a memória estão entrelaçadas na produção e disseminação de saberes aos quais atribuem sentido poético para além da taxonomia linguística. É importante ressaltar a distinção feita por Paul Zumthor (2010, p. 9) entre oralidade e vocalidade.2 Enquanto a primeira está mais ligada à mediação de mensagens que utilizam a voz como canal, a vocalidade aponta para o quanto e em que medida a voz, como signo, se faz refletir individual e coletivamente para além da sonorização textual, tornando-se um índice de consolidação de laços sociais e de disseminação dos fatos de cultura oral. No que se refere à memória, além de Zumthor, é preciso levar em conta as discussões de Henri Bergson3 (2006). Ambos os autores trazem importantes reflexões sobre a memória humana como forma de registro de uma cultura na qual as vozes sociais se entrelaçaram atualizando os signos. Sua relevância para o objeto desse estudo decorre do fato de a tessitura literária, em obras como o Catatau de Paulo Leminski (1989), por exemplo, ser da ordem da poética da voz. Nesse livro, a memória oral e a cultura são dados recorrentes, apontados na verborragia conflituosa do personagem Renatus Cartesius diante da nova realidade que escapa à razão cartesiana. Essa nova realidade, por sua vez, abarca um universo de novas palavras que se movem levando o personagem a interromper

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constantemente o pensamento, o que permite explorar as categorias de registro e de movência, pertinentes para considerar a voz que enreda Catatau como texto oral. Para estudar a importância da memória no redimensionamento dos signos que se movem, em obras como Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum (2005), São Bernardo, de Graciciliano Ramos (1986), Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso (1979), entre outras, é importante explorar a categoria de presentidade,4 de Peirce (2010), tendo em vista a relação dinâmica com os caminhos percorridos pelo pensar cada vez mais movente dos protagonistas desses romances. Segundo Peirce, a presentidade remete ao Índice, oriundo da segunda tricotomia dos signos, ou seja, à divisão sígnica. De outro lado, as categorias de nomadismo, territorialização e desterritorialização e rizoma, discutidas à luz dos conceitos de Deleuze e Guatarri5 (1995), são significativas por permitirem examinar em que condições a performance da voz ultrapassa o registro de escrita fixa. Por sua vez, o conceito de bricolage,6 a partir da figura do bricoleur, isto é, do artista que trabalha artesanalmente utilizando diversos materiais, segundo Lévi-Strauss7 (2005), nos faz entender que a narrativa é artesanalmente construída por um enredo polifônico.

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Segundo Charles Sanders Peirce, a categoria de presentidade remete ao Índice, oriundo da segunda tricotomia dos signos, ou seja, à divisão sígnica. O Índice é “um signo ou representação que se refere a seu objeto não tanto em virtude de uma similaridade ou analogia qualquer com ele, nem pelo fato de estar associado a caracteres gerais que esse objeto acontece ter, mas sim por estar numa conexão dinâmica (espacial, inclusive) tanto com o objeto individual, por um lado, quanto, por outro lado, com os sentidos ou a memória da pessoa a quem serve de signo” (PEIRCE, 2010, p.74). Em nossos estudos, o conceito é apresentado em função de sua relação com a integração entre voz e memória discutida neste capítulo e que aponta para o aspecto indicial peirciano, na medida em que tal integração envolve a reação emotivo-volitiva decorrente da dinâmica entre ambas, voz e memória, em virtude de seu aspecto de atualização.

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Os conceitos dos filósofos Deleuze e Guattari (1995, p. 8) são desenvolvidos com base na “teoria das multiplicidades por elas mesmas [...] cujos princípios são singularidades e devires a partir de um rizoma”.

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Bricolage: conceito ligado ao pensamento mítico que, para Lévi-Strauss (2005 p. 37), “assim como a bricolage, no plano prático, é a elaboração de conjuntos estruturados não diretamente com outros conjuntos estruturados, mas utilizando resíduos e fragmentos de fatos – testemunhos fósseis da história de um indivíduo ou de uma sociedade”.

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De acordo com Lévi-Strauss (2005, p. 32), “assim como a bricolage, no plano técnico, a reflexão mítica pode alcançar, no plano intelectual, resultados brilhantes e imprevistos”. Nesse sentido, sua aplicação remete à estética presente na poiesis de Catatau.

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Voz implica ouvido. Mas há dois ouvidos, simultâneos, uma vez que dois pares de ouvidos estão em presença um do outro, o daquele que fala e o do ouvinte. Ora, a audição (mais que a visão) é um sentido privilegiado, o primeiro a despertar no feto [...]. O ouvido, com efeito, capta diretamente o espaço ao redor, o que vem de trás quanto o que está na frente. (ZUMTHOR, 2007, p. 86-87).

A língua falada remete tanto à sonoridade vocal quanto ao corpo social no qual se inscreve e com o qual trava embates na busca de apreensão de sentidos. Por isso, a oralidade somada às memórias, aos rituais, ao corpo, entre outros elementos, escapa às nomenclaturas preconizadas pelo código de tradição linguística. Signo matricial criado pelo homem como artifício para dar corpo à sua escritura, o código linguístico não é suficiente para contemplar sua práxis, visto que esta não se faz individualmente, assim como não há sistemas matriciais isolados. A voz emanada pelo corpo é uma das formas mais plenas na aquisição de conhecimento, um signo através do qual apreendemos as experiências que nos ligam à realidade e mediante o qual atualizamos os dados memoriais que nos constituem. Tanto a voz quanto a memória integram os sentidos através de uma arquitetura semiótica que se nos apresenta independentemente de relações preestabelecidas, despertando diferentes sensações, únicas a cada aparição, audição e visualização. Trata-se da presentidade, como aponta Peirce (1980, p. 18). Tratando-se da integração dos sentidos, ela tem a ver com a diluição da distância cronológica entre o sujeito e a experiência, já que cada sensação é uma experiência única que se atualiza no aqui e no agora.

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Assim, o estudo desses conceitos aplica-se à leitura de obras literárias que podem ser entendidas como textos sonoros ensejados por um movimento de transgressão que transborda e ultrapassa os limites do registro de escrita fixa. O prodígio de falar envolve o diálogo com o ouvir, levando em conta que entre ambos, o falar e o ouvir, há várias camadas percorridas pela voz, e esta não se apoia em um sistema único ou preestabelecido, mas num sistema aberto ao pensamento e à cultura do outro, com o qual o homem interage empregando signos cujas combinações são tão heterogêneas quanto o pensamento. Por isso, o falar não trata somente de uma enunciação sonora veiculada por uma boca, mas de uma voz constantemente atualizada:

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Se considerada a linearidade do registro de escrita fixa, a sensação diante de cada leitura será diferente, porque a cognição passa pelo intelecto e acaba escamoteando as sensações do corpo. É claro que não se trata de invalidar essa forma de registro, mesmo porque ela nos coloca em contato com o mundo através da representação dos objetos que nomeia. Contudo, o simples ato de falar implica atribuir sons ao pensamento exteriorizado mediante um código que, embora o represente, paradoxalmente não o contém, a não ser em função de um sistema de relações socialmente estabelecidas por uma sintaxe produzida a partir de diversas combinações de códigos, nem sempre em número suficiente para contemplar a dinâmica da atividade humana. Isso ocorre porque, ao mesmo tempo que nomeia linguisticamente, esse código de representação separa as coisas de sua realidade, já que escrever não significa dar existência àquilo que está escrito, mas apenas de representá-lo segundo normas convencionais de taxonomia linguística. Daí a afirmação de Zumthor (2005, p. 61), de que “a voz é verdadeiramente um objeto central, um poder, representa um conjunto de valores que não são comparáveis a nenhum outro, valores fundadores de culturas, criadores de inumeráveis formas de arte”. Tal é seu poder centralizador, que, em algumas tribos, através da palavra, a voz operava de forma mágica, influenciando o povo, que atribuía à sua força o próprio destino. Potencializadora da palavra por excelência, a voz carrega em si presença e consciência emergindo do corpo, sendo o resultado mais pragmático daquilo que o ser humano é capaz de registrar, pois “a voz se encontra simbolicamente ‘colocada’ no indivíduo desde o nascimento” (ZUMTHOR, 2010, p. 16, grifo do autor). Através dela, o homem expande seus signos, ligando-se, inclusive, ao cosmos por meio dos mitos criados na busca de minimizar a angústia de lidar com a própria efemeridade. Do ponto de vista da corporeidade sonora, a voz aponta para a relação dinâmica entre a altura, o tom e a intensidade, entre outras variantes, das quais resulta o timbre, como aponta Menezes8 (2003, p. 199-200). O timbre da voz seria, então, uma espécie de identidade que permite reconhecê-la em meio a diversas outras, devido à sua dinâmica, à combinação de seus atributos sonoros. Seja em forma de sussurro, apupo, grito, seja em outras 8

Florivaldo (Flo) Menezes Filho é compositor, autor e pesquisador da linguagem musical e da música eletroacústica.

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As emoções mais intensas suscitam o som da voz, raramente a linguagem: além ou aquém desta, murmúrio e grito, imediatamente implantados nos dinamismos elementares. Grito natal, grito de crianças [...] voz plena, negação de toda redundância, explosão do ser em direção à origem perdida – ao tempo da voz sem palavra. (ZUMTHOR, 2010 p. 11).

Escapando ao aqui e agora, a força suscitada pelo som vocal engendrase à memória, atualizando as experiências vividas através do corpo numa globalidade que o transforma em suporte do qual elas emergem como lembranças:

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formas, por meio da voz atribuímos novos significados às experiências do cotidiano, e é nesse sentido que se torna poesia e, como tal, aspira dizer-se e ser ouvida em todas as formas de manifestação possíveis, realizando-se, para tanto, muitas vezes, nas intermitências da palavra escrita ou mesmo à margem desta. Signo poético, o que ela comunica é a si mesma como índice de uma consciência repleta do dizer social das tradições orais com seus rituais e da voz do outro, a quem “escutamos” mesmo quando ausente, porque reconhecemos seu timbre de voz. E, ainda que haja alterações biológicas ou psicológicas, a partir do momento em que registramos tal som, somos capazes de operar uma filtragem que permite distinguir suas nuanças. E se nós reconhecemos a voz, é porque nossos sentidos são provocados por sua sonoridade, até mais do que pelas palavras que ela enuncia. Em cada som pronunciado, identificamos uma sincronia que escapa à cadeia de sinais diacríticos, por vezes insuficientes para significar a profusão de tonalidades que tinge as paisagens sonoras da memória. Para Bergson (2006, p. 60), a lembrança tem a ver com o fato de que, ao escutarmos as palavras de alguém, dispomo-nos a compreendê-las e, por isso, buscamos na memória o registro do tom de sua voz. Notamos, assim, que, ao acessarmos os dados memoriais em conjunto com os sons, reelaboramos as lembranças, fazendo despertar nossas sensações e sentimentos. Por isso, é pertinente dizer que somos suportes de uma escritura voco-memorial, termo que aqui designa o índice da voz e da memória enquanto evocadores e resultados dos signos constituintes de nossa história.

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Na voz, a palavra enuncia-se como lembrança, memória-em-ato de um contato inicial, na aurora de toda vida e cuja marca permanece em nós um tanto apagada, como a figura de uma promessa. Cada sílaba é sopro, ritmado pelo batimento do sangue; e a energia deste sopro, com o otimismo da matéria, converte a questão em anúncio, a memória em profecia, dissimula as marcas do que se perdeu e que afeta irremediavelmente a linguagem e o tempo. Por isso a voz é palavra sem palavras, depurada, fio vocal que fragilmente nos liga ao Único. (ZUMTHOR, 2010, p. 12).

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A presentidade enunciada pela voz através da lembrança ocorre porque, entre esta e a memória, há um continuum, ou seja, um processo decorrente da capacidade de, sempre presente, a memória dilatar-se em pequenos fragmentos aos quais chamamos lembrança, que (assim como a memória) não é uma faculdade passiva, já que ambas se conectam dinamicamente entre si e com a voz, para retomar, atualizar e expandir as experiências ligadas a determinado evento. E esse percurso entre memória e lembrança é justamente o que constitui os diversos narradores de Relato de um certo Oriente, por exemplo, é aí que se instala o ato de contar múltiplo, materializando uma pluralidade que subjaz a cada uma das vozes narrativas. Notamos, nesse sentido, que o pensamento não é arborescente, isto é, não se traduz hierarquicamente. Segue, ao contrário, por entre uma e outra memória e nas entrelinhas do esquecimento. O mesmo ocorre com a lembrança: ela não se conduz linearmente, não funciona por hierarquia, mas como extensão, continuum da memória. Como vimos no índice peirciano, a conexão dinâmica entre a voz, a memória e os sentidos está ligada à seleção das lembranças e sua inserção no espaço e no tempo do aqui e agora dos eventos que nos provocam diversas reações. É nesse sentido que não há oposição entre lembrança e memória e, menos ainda, qualquer relação desta última com o esquecimento. Talvez isso pareça um paradoxo, mas atentemos às palavras de Santo Agostinho, no livro X das Confissões: Quando me lembro do esquecimento, estão ao mesmo tempo presentes o esquecimento e a memória: a memória que faz com que me recorde, e o esquecimento que lembro. A presença do esquecimento faz com que o não esqueçamos; mas quando está presente, esquecemo-nos. Não se deverá concluir que o esquecimento, quando o recordamos, está presente na memória? (SANTO AGOSTINHO, 1999, p. 275).

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O conceito de performance, extremamente significativo para este estudo, remete à interdisciplinaridade como linguagem de soma entre música, dança, teatro, vanguarda, rituais que vão desde espetáculos de grande espontaneidade até espetáculos altamente formalizados e deliberados. É basicamente uma arte de intervenção modificadora, que visa a causar uma transformação no receptor.

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Jetzeit: do alemão: conceito de “tempo de agora”, cf. Jeanne Marie Gagnebin no prefácio de Obras escolhidas, de Walter Banjamin (1994). O conceito se aplica nesta pesquisa por tratar da importância da ação do artista no efêmero exercitado pela performance e pelo quão dinâmico é o diálogo entre o público e o artista.

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Esquecimento e memória dialogam, travam embates e asseguram, através das lembranças, a preservação das experiências vividas. Tratando-se do fazer poético, a lembrança aponta para a presença corpórea do artista, cuja performance9 não se faz apartada das próprias experiências, as quais ele atualiza a cada evento, levando o público à fruição à medida que este também se relaciona dinamicamente com o momento da performance, tendo em vista os sentimentos que esta desperta nele. Podemos dizer, nessa perspectiva, que a fruição ocorre no exercício efêmero da performance e leva em conta a troca de experiências entre artista e público, já que ambos se relacionam ativamente no exercício de fruição. Podemos ver também que tal fruição remete ao conceito de Jetzt,10 proposto por Walter Benjamim. No mesmo esteio da presentidade de Peirce, esse conceito pode ser entendido como o tempo do agora; ele é da ordem da atualização do passado reconhecido pelo presente, no qual prevalece a ação dos sujeitos envolvidos no instante da performance (cujo resultado advém das experiências em diálogo). É o que ocorre na performance do poeta francês Serge Pey, no vídeo publicado na internet em 20 de outubro de 2009.

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A leitura do poema dialoga com o ritmo do corpo, da vibração da voz e do som produzido pelo instrumento que o poeta traz junto aos pés e todos esses elementos se somam ao cenário criando uma espécie de ritual contrastante com o olhar do público, que, embora silente, parece atento ao que se passa no centro do palco, como que em transe. Mais do que a compreensão do que é lido, é a corporeidade da voz que convida às sensações e faz ressignificar a linguagem, por isso o poema deixa de ser simples texto oralizado para alcançar a dimensão de um devir constante, cujo sentido remete às experiências a partir das quais nos reconhecemos no outro. Além disso, é fácil perceber que não se faz necessário compreender os versos em francês, para ter uma rica experiência do poema. As presenças avassaladoras da voz e do corpo já nos põem dentro da poesia, independentemente da apreensão semântica. De outro lado, é pertinente assinalar o fato de que a tradição das poéticas da oralidade se manteve pela associação entre a memória e o esquecimento, tendo em vista a seleção feita pelo poeta que, durante a performance da voz,11 ora fazia relembrar, ora deslizar pela voz as reminiscências dos sons e das palavras a serem transmitidas. Nesse caso, notamos que o poeta ou o artista em performance exercita, no efêmero da performance, inúmeras idas e vindas pelos labirintos da memória, dos quais a voz retorna entrelaçando ao corpo os desejos e todas as percepções despertadas pela memória, para levar à fruição. Considerando a narrativa oral à luz do conceito de Jetzt, notamos que ela se caracteriza pelo dado artesanal, rítmico e intenso que o artista empenha a cada momento em que seu corpo é o próprio ato poético na brevidade do momento. A fruição não se dá como resposta ao final deste ato, mas como o tempo do agora benjaminiano, e isso se deve ao fato de que a performance se realiza plenamente diante da presença do poeta e do público. Retomando a voz enquanto signo poético no qual se atam as memórias mais profundas, é oportuno apontar para o nomadismo.12 Signo 11

A performance da voz para Zumthor é compreendia como diálogo entre voz, texto e corpo, e sua estreita relação com a memória e a recepção, sendo, pois, um fenômeno interdisciplinar. Conforme explica Zumthor (2007, p. 34; 67): “único modo vivo de comunicação poética [...] e um ato de presença no mundo e em si mesma”.

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O termo nomadismo remete ao povo nômade. Segundo Deleuze e Guattari (1997, p. 51, grifo do autor), consiste numa forma de existência, pois “a vida do nômade é o intermezzo. O nômade

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não é de modo algum o migrante, pois o migrante vai principalmente de um ponto a outro, ainda que este outro ponto seja incerto, imprevisto ou mal localizado. Mas o nômade só vai de um ponto a outro por consequência e necessidade de um fato; em princípio os pontos são para ele alternâncias de um trajeto. O nomos é a consistência de um conjunto fluido: é nesse sentido que ele se opõe à lei ou à polis”. 13

Publicado na internet em 24 ago. 2010. Disponível em: .

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movente, a voz se recusa a ter o controle sobre a língua ou ser por ela controlada, na medida em que não se relaciona por hipotaxe, ou seja, não se subordina a um sistema de códigos arbitrário e, menos ainda, impõe-se a ele. Zumthor (2005, p. 63) aponta para o aspecto de a voz estar para além da língua: “a língua é mediatizada, levada pela voz. Mas a voz ultrapassa a língua, é mais ampla do que ela, mais rica”, sendo um exercício de liberdade, estrangeira a si mesma e, por isso, constantemente atualizável por transitar em diferentes espaços e tempos. Mesmo reproduzindo sonoramente as palavras, ao abrir-se ao aspecto polissêmico destas, a voz as reordena numa sintaxe não linear, atribuindo novos significados às experiências cotidianas. É nessa dimensão que devemos incluir a palavra, sobretudo a poética, pois é nela que a voz se imiscui e é dela que se esvai – entre ambas há muitas camadas em movimento. A movência da voz configura seu nomadismo porque transcende o tempo e o espaço e a cada movimento se atualiza, uma vez que sua trajetória é aberta às energias dos desejos, das necessidades e das emoções do corpo. Para compreender as poéticas da voz, não ajuda nada ver a língua como registro de escrita fixa. Essa compreensão passa por perceber a possibilidade que ela tem de rizomatizar-se, isto é, de expandir-se em espaços nos quais se movimenta gerando os próprios signos, na medida em que não há começo, meio e fim hipotaticamente determinados, mas ramificações que constituem uma rede, como o rizoma que “não se deixa reconduzir nem ao Um nem ao múltiplo. Ele não é o Uno que se tona dois, nem o múltiplo que deriva do Uno. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual cresce” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 32). Nas performances Six readers and a dog13 e Sound Mess14 do grupo performático Be Blank Consort, a rizomatização da voz é evidenciada pela autonomia que a faz fluir sem a perspectiva de começo, meio ou fim predeterminados e nem se pode dizer que haja o desdobramento de um

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Uno, mas, sim, a expansão geradora de outras percepções sobre o evento que o texto impresso não seria suficiente para aquilatar (timbre e tom de voz, movimentos de corpos, a materialização não linear do objeto dado à leitura etc.). Certamente, os predicados da voz não implicam a desvalorização da língua enquanto combinação de signos verbais para efetivar a comunicação entre os sujeitos das diversas comunidades. Afinal, somos seres de linguagem, capazes de criar e de utilizar códigos sofisticados, que também se modificam em função da própria dinâmica da sociedade que os cria. Voz e escrita carregam, ambas, conteúdos latentes, haja vista a oralização de um texto que, ao ser interpretado, suscita, sugere diversas sensações, pois implica uma performance vocal na qual outros sentidos, além do visual, passam a integrar o código linguístico constante da matriz impressa, como os gestos, o som da voz, os suores do corpo e a emoção, entre outros. O importante é que o espaço preenchido pela voz ultrapassa os códigos cristalizados, tornando-se um signo poético cujo deslocamento ou afrouxamento em relação à escrita fixa fornece uma realidade imediata e uma fruição singular por parte daquele que fala e daquele que ouve, ambos envolvidos pela performance da voz que os toca e os transforma. Se, num primeiro momento, a oralidade liga o homem diretamente às experiências vividas e ao universo, ao conviver com a escrita, ela sofrerá modificações significativas. De acordo com a tipologia zumthoriana, a oralidade primária e imediata, também chamada pura, sem contato com a escrita, “só desabrochou nas comunidades arcaicas há muito desaparecidas” (ZUMTHOR, 2010, p. 36). Essa oralidade tem a ver com a voz enquanto signo que gira em torno de si mesmo, como criação e como movimento dinâmico, o que o liga à linguagem poética. Por isso, muitas vezes, esse signo nos escapa à atenção, devido à enunciação nem sempre prevista pela taxonomia linguística, a exemplo dos grunhidos, dos gritos de diversas ordens, de sons gerados pelo corpo e emitidos pela voz. A oralidade pura define uma civilização da voz viva, em que esta constitui um dinamismo fundador simultaneamente preservador dos valores de palavra e criador das formas de discursos próprios para manter a coesão social e moral do grupo. (ZUMTHOR, 2010, p. 37).

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*** No mesmo esteio da memória, segue a voz. Signo do dizer social, histórico e cultural dos povos, ela é responsável pelo registro, pela atualização das antigas tradições no tempo e no espaço e pela preservação dos costumes ancestrais. De acordo com Bergson, essas tradições são suscitadas pela lembrança de um passado profundamente enraizado em relação ao qual devemos nos colocar como atualizadores, pois, “essencialmente virtual, o passado não pode ser apreendido por nós como passado, a menos que sigamos e adotemos o movimento pelo qual ele se manifesta em imagem presente” (BERGSON, 2006, p. 49). O passado só pode ser atingido quando manifestado pela memória, porque nesta se assenta o dizer social e cultural dos povos. Coextensiva à vida, a memória se acumula em nossa consciência, e, juntamente com os sentidos e as sensações do corpo, a presentidade atualiza a virtualidade do passado por meio das lembranças. Do latim

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Emerge dessa voz a palavra em torno da qual o laço social é confirmado e preservado. E sua relação com a memória tem a ver com o corpo físico e o social. Através do fluxo corpóreo e vocal, memória e voz se atam, levando os diferentes saberes que veiculam a novas linguagens e a novas percepções. Além da oralidade pura, Zumthor (2010, p. 36) propõe outros dois tipos: a mista e a segunda. A mista tem como principal traço a convivência com a escrita, e sua atuação sofre a influência direta desta última. Nesse tipo de oralidade, embora sofra influência da escrita, a voz do enunciador ainda se sobrepõe a ela, como o mostram os trovadores da Idade Média. Em relação à oralidade segunda, já se nota a consolidação e uma certa hegemonização da escrita. Após esse processo, Zumthor (2010) aponta finalmente para uma oralidade mecanicamente mediatizada por instrumentos que prescindem da presença do corpo e fixam a voz no tempo e no espaço diferenciados. Apesar de eliminar a espontaneidade em função do registro em suporte mecânico, esse tipo de oralidade não deixa de ser intersemiótico, na medida em que se articula com as oralidades pura e mista a partir dos elementos a elas ligados, como os sentimentos e as sensações, entre outros nem sempre previstos pela sintaxe linear.

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medieval virtualis, a palavra virtual deriva de virtus, força, potência, ou seja, virtualidade memorial enquanto estado de devir do qual emerge a lembrança como sensação deslocada no tempo e no espaço. Uma vez suscitada, transforma-se em sons, gestos, imagens, odores, entre outros sentidos despertados pela percepção. Para Bergson, essa potência virtual tem a ver com o que ele denominou elã vital, isto é, o impulso que constitui a consciência e penetra a matéria reorganizando-a ao trazer e atualizar, para o fluxo do consciente, os eventos fragmentados do passado que estão adormecidos no inconsciente. Isso implica um autodescentramento da consciência ampliada pela percepção imediata dos acontecimentos e pela cognição, e leva à expansão dos sentidos, que, a partir daí, propagam devires como novos dados epistemológicos.

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De fato, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Em geral, essas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não conservamos então mais que algumas indicações, simples sinais destinados a nos lembrar antigas imagens. (BERGSON, 2006, p. 86).

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Ao recriar o instante virtual como lembrança, o corpo promove a interface entre a realidade presente e o tempo passado em função do continuum entre ambos, ou seja, da extensão decorrente de seu vínculo com a memória. É interessante notar que se trata aí também da necessidade humana de controlar o tempo e, dessa forma, amenizar a angústia da própria efemeridade. No entanto, presente e passado não são divisões reais, pois o movimento que anima qualquer evento já se coloca como passado. O flagrante da memória é deslocado para o hic et nunc mediante a experiência que amplia a dinâmica entre o sujeito e o tempo, afrouxando os laços temporais através da performance da voz, como o fazem os rituais de celebração à vida, à natureza, aos mitos, entre outros. Linguagem fronteiriça, a performance mediatiza a relação entre os sujeitos, atualizando os eventos através das inúmeras possibilidades de interação e, nesse aspecto, modifica a percepção desses sujeitos enquanto coautores e receptores que respondem individualmente a cada evento. Em relação à performance da voz, os eventos são atualizados pelos poetas, trazendo à tona a credibilidade da voz humana como inesgotável fonte de saberes, assim como ocorre com as narrativas orais nas quais os

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O conceito de cronotopos foi criado por Mikhail Bakhtin, que estudou a linguagem no contexto social e dialógico. Tomando emprestado o termo da matemática e da teoria da relatividade para aplicá-lo na crítica literária, Bakhtin (2002, p. 211) entendeu que “no cronotopo artísticoliterário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo”. A aplicação do termo na pesquisa referese não somente ao texto grafado, mas ao quanto a performance torna indissociável a relação espaço-tempo, na medida em que cada evento é marcado por um tempo que transparece no espaço ao mesmo tempo que este é percebido e atualizado como um sentido produzido no tempo. Nesse sentido, ocorre a relativização cronotópica.

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mitos e os rituais levam à interpenetração de novas linhas de sentido e formas de aquisição de conhecimento. Com efeito, tanto a oralidade quanto a memória são fundamentais como evidências de registros humanos que se juntam ao corpo, mediatizando o tempo e o espaço, fazendo emergir e reiterando as tradições e a história humana. Em termos de memória, não há como dizer com precisão onde termina a ideia e onde começa a sensação, por isso o instante da performance, bem como sua efemeridade, ressignificam e atualizam o evento, tornando-o único em cada contexto e confirmando que “a significação de um composto não pode ser deduzida a priori da lista de seus elementos: trata-se de uma atualização criadora em contexto” (GUATTARI, 2008, p. 88). Na performance da voz, ocorrem processos de territorialização e desterritorialização (cf. DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16), isto é, de organização e ruptura, processos concomitantes dos quais decorre a atualização dos signos em devir nos diferentes contextos. Enquanto a territorialização implica a organização dos fragmentos das experiências constantes do acervo da memória humana, a desterritorialização desestabiliza essa suposta organização ao reordenar tais fragmentos trazidos para a consciência e para o corpo. Por meio da performance da voz, os laços temporais são dilatados e ocorre a atualização cronotópica15 dos signos, pois “o espaço e o tempo nunca são receptáculos neutros: eles devem ser efetuados, engendrados por produções de subjetividade que envolvem cantos, danças, narrativas acerca dos ancestrais” (GUATTARI, 2008, p. 132). Em virtude da atualização cronotópica, as palavras ultrapassam o significado convencional, e seu dado poético eleva-se para além do espaço bidimensional do papel, pois a sintaxe que rege o espaço-tempo no qual ocorre a perfomance da voz poética pertence ao exercício do efêmero.

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Para Wilton Azevedo (2009, p. 115), essa sintaxe aponta para os vários significados carregados pela palavra. Dada sua ligação com os signos em constante expansão, ela leva à interatividade entre o verbal, o visual e o sonoro, tornando o discurso entre emissor e receptor, espaço e tempo, um devir para novas percepções. Essas potencialidades enredam a linguagem poética, que, não mais vinculada a um dado matricial específico, culmina num diálogo com o próprio fazer humano. A variabilidade no espaço-tempo em que os signos se articulam gerando novos signos decorre do aspecto nômade, heterogêneo e interdisciplinar das vozes engendradas às memórias, das quais as lembranças emergem fazendo ecoar sentimentos e sensações. Essa movência tem a ver com as transformações da voz e com sua capacidade de incorporar novas significações e de provocar lembranças devido à ligação com a memória e com sua corporeidade sonora. O que podemos dizer é que o som vocal permite identificar e trazer à tona a lembrança de alguém ou de algum evento, o que torna esta uma espécie de impressão digital memorial, imagética e sonora. Movência e criação contínua, a voz situa-se entre a palavra escrita e o corpo, submetendo-se a este, ao mesmo tempo que o leva a acompanhá-la pelos gestos, independentemente de quem a enuncie. No caso, basta ver a força emanada pela voz dos que praticam os rituais religiosos, os mantras hinduístas, os rituais xamânicos e mesmo os do catolicismo. É pela voz que são retomados, mas a voz independe deles. Signo que armazena e transporta o sistema cultural com seus costumes e tradições, como linguagem, a voz relaciona duas realidades heterogêneas: o homem e as coisas por ele nomeadas. Se, por um lado, o homem utiliza os signos em sua comunicação, por outro lado, tais combinações orbitam um exíguo sistema de signos sujeito a gramáticas que não alcançam plenamente o potencial das coisas as quais nomeiam, porque se modificam de forma relativamente lenta. Como expressão de novas extensões, a voz encontra linhas de fuga, desterritorializando os espaços em busca de estratégias para comunicar-se e as brechas que encontra conduzem à poeticidade, o que a confirma como signo sonoro e social. O registro de escrita fixa por vezes não contempla os sons não previstos pelas figuras de linguagem, por isso tais expressões

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A expressão se baseia no teorema da temperatura informacional formulada pelo matemático Benoit B. Mandelbrot, segundo o qual: a expressão entropia tem relação com o montante da liberdade de escolha que temos ao construir mensagens, assim como, nas ciências físicas, a entropia associada com uma situação é uma medida do grau de acaso ou de barahamento, por assim dizer, na situação (MANDELBROT apud CAMPOS; PIGNATARI; 2006).

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Ressaltamos que, para efeitos de análise e compreensão do objeto deste trabalho, o sentido atribuído a ruído segue em duas direções: num primeiro momento, é apontado como interferência ou entropia negativa no que concerne à necessidade de redundância para assegurar a inteligibilidade na comunicação compreendida pela combinação de signos linguísticos. Num segundo momento, aponta para a entropia positiva na qual se inserem as linguagens poéticas, visto serem elas da ordem da potencialização de signos para além da mera combinação linguística. A respeito desse sentido de entropia, será discutido no decorrer deste capítulo, sobretudo em relação à voz enquanto signo no qual se atam som, silêncio e ruído, sendo este um importante viés na análise da narrativa de Catatau.

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O conceito de ambiência foi criado por Wilton Azevedo para designar um ambiente no qual a escritura poética se expande em função das inúmeras articulações advindas das experimentações e mutações dos códigos em constante migração, sem necessidade de uma matriz para seu registro, já que transitam num espaço em que a relação tempo e espaço se faz parataticamente. Segundo Azevedo, a ambiência é a soma dos ambientes, ou seja, uma somatória que, no sentido semiótico, especialmente em relação á poesia digital, “o fazer sígnico da poesia digital se torna visível de maneira indicial em relação ao modelo matemático adotado [...] Fazer poesia digital é construir ambientes – ambiência – em mutação constante, uma experiência que não se preocupa em criar fórmulas” (AZEVEDO, 2009, p. 103-105).

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da voz são consideradas entropias16 negativas, geradoras de ruídos17 que perturbam a redundância necessária para efetivar a comunicação. Apesar de combater o ruído, a redundância limita a linguagem ao sistema fechado de signos que não abarcam todos os níveis da cognição humana porque os códigos utilizados por tal sistema não contemplam toda a capacidade de manifestação que a voz, dada sua relação com o corpo, realiza. Os territórios pelos quais a voz transita e sua dinâmica temporal e espacial remetem às palavras de Marshall McLuhan (1977, p. 108), “o meio é a mensagem”, e, como tal, interferem nas ações humanas, pois o uso de qualquer meio ou extensão do homem altera as estruturas de interdependência entre os homens. De acordo com McLuhan, os meios de extensão modificam a relação entre transmissor, receptor e mensagem, porque consistem em ambiências18 não regidas pela relação diacrônica e mensurável entre tempo e espaço. Nessas ambiências, a noção de início, meio e fim também é diluída no tempo e no espaço da presentidade, possibilitando aos signos operar parataticamente uma multiplicidade de articulações que independem de um código matricial. Dessa pluralidade de vozes em movência advém o que

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compreendemos como interdisciplinaridade, a qual, podemos inferir, faz parte da própria escritura humana enquanto signo de vozes em potencial. Tanto emissor quanto receptor são vozes coautoras no processo de uma escritura passível de articulação em vários e diferentes sistemas sígnicos simultaneamente, a partir de um processo intersemiótico e heterogêneo. Levando em conta a forma de registro e de percepção de cada uma dessas vozes em relação aos dados memoriais, culturais e sociais absorvidos, notamos que é a heterogeneidade que as transforma em signos em constante expansão, capazes de gerar multiplicidades em devir. A possibilidade de interferência por parte do emissor e do receptor confirma o fato de que a cognição envolve todos os sentidos, as memórias e as experiências, tendo em vista que ambos, autor e receptor, são vozes heterogêneas. O mesmo não ocorre quando se trata do registro de escrita fixa, porque o acúmulo de experiências das quais um texto se origina é representado por códigos ligados às matriciais isoladas de linguagem. No entanto, quando o leitor potencializa a leitura por meio da performance, na qual hipercodifica voz, corpo, memória e experiências, ele interfere na linguagem procedendo a camadas de leitura e, dessa forma, atualiza os signos e rompe com a passividade que marca o registro de escrita fixa em função das experimentações advindas desse diálogo no qual não há emissor nem receptor predeterminados. O que há são camadas de leitura. A produção de novos signos, a partir dessas leituras, rompe com o paradigma de uma matriz isolada e estanque, tanto no sentido espacial quanto no temporal, principalmente quando se trata das poéticas da voz, cuja prerrogativa é a movência. Ao considerar o ambiente criado pelo homem como a própria mensagem, reafirmamos nossa condição de ambiências potencializadoras de signos regidos pela presentidade do cotidiano e que se expandem para diversas linguagens devido à parataxe na qual se assentam e a partir da qual se imiscuem aos sentidos como complementaridade e globalização de percepções sensoriais, compreendidas pelos sentimentos e pelas sensações que provocamos e que nos afetam. Daí termos já afirmado que, certamente, o processo cognitivo envolve memória, pensamento e linguagem, e o homem, no exercício do pensamento e da criação, movimenta-se com base nas experiências anteriores que a voz atualiza por meio dos ritos e das tradições.

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As tramas que a voz encena se tecem nas relações humanas e no espaço das emoções preenchidas corporeamente pelos sons e pelos gestos. E, como articulação sonora pertinente à linguagem, ela é tão heteróclita quanto a sociedade a que pertence. Daí a necessidade de compreender sua constelação sígnica para além da escrita hipostasiada, pois os territórios da voz não são ocupados apenas pelo sentido linguístico da comunicação, mas também pelo sentido de alteridade, o que implica dois ouvidos: “o daquele que fala e o do ouvinte” (ZUMTHOR, 2007, p. 86). É fato que sociedades orais e sociedades de escrita coexistem desde há muito. No entanto, nas sociedades orais, a voz é o signo que estabelece ligames com o corpo e com os dados mnemônicos, reiterando os valores fundadores das culturas mediante a atualização das tradições no tempo e no espaço. Dessa atualização cronotópica resultam as polifonias sonoras e culturais, confirmando o inacabamento do homem e sua capacidade de expandir os lastros de temporalidade e de espacialidade. Assim, é a voz, enquanto manifestação sonora repleta de significados e deslocada de qualquer sistema fixo, que se coloca como signo fundador dos laços sociais. Mesmo em sociedades regidas pela hegemonia da escrita fixa, notamos a permanência dos sentidos produzidos pela voz. E, ainda que a palavra escrita seja oralizada, não podemos compará-la à força que emana da materialidade sonora da voz, à vitalidade das pulsões das cordas vocais, dos ruídos despertando sensações emocionais e corporais. Para essas texturas, as regras de compreensão exigem o reconhecimento de que [...] o que importa mais profundamente à voz é que a palavra da qual ela é veículo se enuncie como uma lembrança; que esta palavra enquanto traz um certo sentido, na materialidade das palavras e das frases, evoque (talvez muito confusamente) no inconsciente daquele que a escuta um contato inicial, que se produziu na aurora de sua vida, cuja marca se apagou em nós, mas que, assim reanimada, constitui a figura de uma promessa. (ZUMTHOR, 2005, p. 64).

Signo latente, a voz orbita o próprio silêncio do qual emerge como força de desejo, de pensamento e para o qual retorna para atar os laços mais profundos que escapam à nossa percepção. Nesse sentido, notamos que

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16.1 A voz como signo

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dois movimentos a animam: o som e o silêncio. O primeiro, o som vocal (no sentido com que Zumthor emprega essa expressão), anima a palavra liberando-a, em certa medida, das limitações dos suportes, sejam eles impressos, sejam orais. Além disso, em que pese a questão do som, devemos levar em conta também as alternâncias entre som e silêncio que escapam à consciência e às tentativas de os sentidos humanos a educarem. Na verdade, estes últimos podem permitir que o som alcance sua autenticidade, não impondo teorias para justificá-los; é justamente nisso que reside a dimensão da sonoridade poética da voz. Quanto ao segundo movimento, o silêncio, ele representa o hiato no qual também repousam as memórias orais, sociais, culturais e corporais ligadas às sensações e aos sentimentos. É nele que presenciamos e ouvimos mais profundamente os ecos ruidosos que emergem das cordas vocais como resultados das ânsias, das angústias e dos desejos. Ambos os movimentos, o som e o silêncio, repousam nos ritmos da voz viva, entrelaçando-se à memória e transformando-a num fenômeno sinestésico. Materialidade corpórea, a voz foi objeto central na tradição de muitas culturas cuja longevidade foi assegurada pela transmissão oral das memórias individuais e coletivas, permitindo a criação de uma espécie de cluster19 através de seus rituais. Esse cluster, compreendido como a integração das diferentes linguagens, sonoridades e gestos, semelhantes ou não, desenvolve-se a partir das diferentes culturas e é atualizado pelos rituais da voz e do corpo, e tem a ver com a performance da qual fala Zumthor (2007, p. 31, grifo do autor):

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Performance é reconhecimento. A performance realiza, concretiza, faz passar algo que eu reconheço, da virtualidade à atualidade. A performance se situa num contexto ao mesmo tempo cultural e situacional: nesse contexto ela aparece como uma “emergência”, um fenômeno que sai desse contexto ao mesmo tempo que nele encontra lugar. Algo se criou, atingiu a plenitude e, assim, ultrapassa o curso comum dos acontecimentos.

Ao situar a performance como concretização cultural e situacional, relembramos a distinção feita pelo pesquisador canadense entre a tradição 19

Cluster: número de terminais, estações, dispositivos ou de posições de memória agrupadas em um local.

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(como a duração periódica das culturas predominantemente orais) e a transmissão dessas tradições, na qual se situa a performance propriamente dita, em que os eventos dessas culturas são retomados e atualizados. As poéticas orais são ótimos exemplos de concretização e atualização de performance, pois cumprem função social e, do ponto de vista da ritualização, são verdadeiros mantras que unem o natural ao sobrenatural, isto é, o homem ao cosmos, motivo pelo qual os poetas tinham lugar de destaque nas comunidades. De outro ponto de vista, podemos pensar nos saraus, cuja leitura de textos se processa de forma dramática, isto é, performática, e permite o intercâmbio de experiências entre aqueles que leem. Ligadas ao ritual, as poéticas orais implicam informação e representação de conhecimentos transmitidos pelas performances vocais, verdadeiras aventuras cronotópicas, repletas de possibilidades de significação às quais o poeta não se furta, pois desfruta de liberdade para alterar o texto enquanto um dizer móvel e permeável. Desde a Antiguidade, tais performances definiam-se como formas discursivas de competição, educação, estética e de relação de poder designadas a um poeta que, em transe, assumia figuras de sacerdote, de profeta, de adivinho (HUIZINGA, 2004, p. 134-135). No momento do transe, o poeta-vidente ou vate trazia à memória de seu povo objetos, sensações, sentimentos recuperados por meio de ritual para o presente imediato da performance. Esses dados recuperados conferem tatilidade à palavra, que passa por todo o corpo até chegar à boca propriamente dita e na qual se esgota como energia vocal de tal forma que coloca em sincronia o emissor (performer) e o receptor. Levando em conta a materialidade da voz nas narrativas orais, nos ritos e na figura quase divina do poeta em transe (e, em certa medida, do poeta performer), observamos que as palavras são tão efêmeras quanto a performance à qual se ligam. No entanto, é na efemeridade que elas, as palavras, confirmam sua força potencial como criação e preservação de tradições e culturas. É importante observar ainda que, entre as palavras e os sons vocais, há dezenas de camadas e, a cada performance, o poeta as transforma, seja por elementos ligados à própria voz, como a tonalidade ou a tonicidade; seja pela disposição corporal; seja pelo tempo e pelo espaço, também efêmeros. Nesse sentido, tempo e espaço, em concomitância, fazem emergir contextos culturais em que a voz e sua corporeidade evidenciam a característica nômade e heteróclita da linguagem humana.

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Ora, tendo em vista todas essas características nômades apontadas acima, é possível também associá-las ao poeta, na medida em que ele é tão móvel e sua linguagem tão fluida quanto a poesia enunciada por sua voz e, não menos importante, pelo fato de que cada performance é singular, não se limitando a um único gênero.

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16.2 Voz poética

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Espaço das emoções, a poeticidade da voz faz emergir elementos ideológicos e culturais configurando novas possibilidades de expressão hipercodificadas20 pela performance, engendrando palavras, ruídos, gestos, sons, silêncios e vibrações corporais, estando, pois, além das figuras de linguagem do registro de escrita fixa. É importante ressaltar que o termo hipercodificação designa a intervenção que desloca o eixo do paradigma sobre o do sintagma no momento circunstancial e efêmero da performance através da qual os signos se atualizam. Tratando-se da poesia textual oralizada, a hipercodificação se traduz pelas tensões entre o texto e a palavra proferida pelo poeta, mediante a liberação das energias do corpo, das intermitências da voz, dos suores, das diferentes leituras, muitas vezes à margem da ortoépia, isto é, da pronúncia correta das palavras de acordo com as regras gramaticais. Interdisciplinar, a poesia estabelece liames com diferentes formas de manifestação, inclusive com os códigos do sistema linguístico, do qual extrai elementos que encena como experimentação poética. Esta, mais acessível às intervenções do poeta, resulta na dialética entre a voz, a letra e o corpo com seus suores, frêmitos. Verdadeiros ritos, essas formas de manifestação buscam na transitoriedade a inserção de perspectivas distintas das tradicionais para o fazer poético, sobretudo nas negociações com a voz, para a qual a mobilidade é fundamental por ser da ordem do diálogo entre os diversos saberes, da relação com o imaginário e, certamente, com as memórias das culturas de tradição oral. Dessa forma, acessamos uma pluralidade de 20

Hipercodificação: dadas certas unidades codificadas, elas são analisadas em unidades menores às quais se atribuem novas funções sígnicas, tal como sucede quando, de uma palavra, a paralinguística hipercodifica os diversos modos de pronunciá-la atribuindo-lhe diversos matizes de significado. Com mais frequência, as entidades hipercodificadas flutuam, por assim dizer, entre os códigos, no limiar entre convenção e inovação (ECO, 2007, p. 121-122).

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O poeta é aquele entre nós que tem o dom de adensar a rede da língua, de torná-la de tal modo densa, que a realidade salta aos olhos a partir da superfície da língua, como os peixes saltam a bordo do barco na superfície de uma rede de pesca recolhida. Os antigos, que tinham uma compreensão muito mais íntima da língua do que nós, sabiam que os poetas eram bocas dos deuses. Os profetas hebraicos eram bocas de Deus. (FLUSSER, 1962, p. 82).

É interessante notar a dicotomia entre a linguagem cotidiana e a poética. Enquanto a primeira depende dos fenômenos linguísticos para efetivar a comunicação, a segunda prima pela autonomia, pois se distancia da arbitrariedade do sistema linguístico. Por isso, o poeta é aquele que se torna um mágico ao libertar a palavra da superficialidade imposta pela sintaxe linear, realizando-a como algo em si mesma por meio da performance; a ele cabe a desestabilização que inscreve os signos num contexto que atravessa qualquer código matricial isolado, já que a perfomance é um processo intersemiótico. Na configuração da voz poética, o que presenciamos é a autonomia através da hipercodificação que a engendra no corpo e na memória,

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vozes no sentido social, cultural e mesmo sonoro, o que leva a produção poética à interdisciplinaridade e ao rompimento da hegemonia de um matricial de linguagem que considera somente o registro de escrita fixa. As heterogeneidades sonoras do cotidiano que se interpenetram também levam ao polissemantismo os signos desse fazer poético, cuja movência cria um discurso rizomático, isto é, aberto a essas outras possibilidades. Assim, a voz poética retoma e confirma que a linguagem não é asséptica, está sempre transitando entre os códigos com os quais pode interagir ou não, e nessa não neutralidade exercita operações cada vez mais complexas e autônomas. Isso mostra que todo sistema de comunicação é passível de intervenção e essa possibilidade torna a linguagem humana plena, pois, se a voz é um fenômeno global no sentido histórico, cultural e social, enquanto signo poético se produz no corpo como presentidade e performance. Por isso, ela pode prescindir do sistema linguístico e, quando o utiliza, é para reiterar sua qualidade de gesto escritural, isto é, um signo composto de som, voz, silêncio e corpo em constante movimento. Nessa perspectiva, leva diretamente ao poeta, aquele que se faz suporte dessa voz. Para o filósofo Vilém Flusser:

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seguindo em direção ao inusitado. Essa capacidade de articular e de experimentar outros signos, inovando-os, é, de sempre, o ofício da criação poética. No início do século XX, quando os formalistas russos criticaram a forma tradicional como a literatura era abordada, isso ficou muito evidente. Nesse período, os poetas futuristas (antes deles, Mallarmé; posteriormente, Valéry) propuseram a autonomia da linguagem, e a poesia foi um dos expoentes para a experimentação. Ora, esse experimentalismo poético implicou, em termos de oralidade e de sonoridade, uma linguagem sem sentido, ou Zaum,21 termo de origem russa, significando palavra transracional,22 cujo conceito apregoava a destituição do significado das palavas conferindo-lhes ritmos variáveis para cada enunciação (vale lembrar que, antes dos russos, no Simbolismo francês ou em Valéry, essa ideia de poética sonora sem semântica verbal já havia sido proposta). Para isso, os sons produzidos por diversos materiais, como metal, madeira, cochichos, entre outros, passaram a integrar a linguagem poética, sendo considerados, nesse contexto, entropias positivas. A integração e o desdobramento de diversos sons deveriam levar ao surgimento de um novo paradigma estético no qual a palavra tomasse para si mesma, na condição de significante, outras formas de expressão. Para Alexei Krutchenik, a distinção entre ambas as linguagens era muito clara:

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Krutchenik falava de dois tipos de linguagem: a linguagem comum racional submetida à necessidade extralinguística, mero veículo do significado; e a uma linguagem transmental autossuficiente, governada por leis próprias, “cujas palavras não têm significado determinado”. Essa divisão será recorrente em todas as linhas formalistas: uma linguagem “comum” (também chamada prática, cotidiana, vulgar) e outra “especial”, “poética”, e, no caso que vemos, “transmental”;23 o que a distingue da comum será a dimensão 21

O Zaum, denominação do setor mais radical do futurismo russo, trabalha contemporaneamente ao Dadá a mesma proposta de linguagem sem sentido, de palavras destituídas de significado (KRUTCHENIK apud MENEZES, 1992, p. 12).

22

De acordo com a tradução de Tezza (2003, p. 114).

23

A língua transmental ou Zaum, segundo a Declaração da Língua Transmental, do poeta futurista Alexei Krutchenik, é “uma forma poética primigênia (no sentido histórico e no indivíduo). Na origem há um movimento rítmico-musical, um protossom (que o poeta deveria registrar, pois que pode ser esquecido no desenvolvimento do trabalho. O pensamento e a

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É a partir dessa nova divisão entre a linguagem poética e a comum que surge um novo paradigma de arte regido por leis próprias que se coadunam com o corpo poético atuando diretamente na e com a linguagem. Nesse sentido, o fato de a linguagem transmental possibilitar novos acessos, operando esteticamente o vulgar e o erudito, o visual, o gráfico e o sonoro de maneira simultânea, paradoxalmente elimina a fronteira entre ambas as linguagens. Tomando como referência o limiar entre ambas as linguagens na perspectiva da voz poética, vemos que a diluição dessa fronteira é revelada pelos ritmos do corpo, pelas memórias que são retomadas, modificadas e atualizadas a cada evento. Surgem, então, outras possibilidades de intervenção em que o poeta e o público acabam por gerar novos signos, exatamente como propuseram os poetas futuristas.

16.3 Poéticas da voz – percursos Através da linguagem transmental, a palavra se desliga do objeto que nomeia, e a oralidade se dissocia do sistema de código linguístico, tornando-se cada vez mais uma linguagem prosódica. Caracterizada pela instabilidade sonora, pelas intervenções ruidosas exteriores (não mais compreendidas como entropias negativas) e pela conjunção do erudito e do vulgar, a palavra oralizada se expande como signo não cristalizado, pois fica marcada pela transitoriedade e pela constante experimentação. A emoção deve ser a tônica que a norteia, visando à sensibilização e à fruição estética, daí a necessidade de subversão da ordem para que o objeto artístico, sobretudo a palavra, seja potencializado. A Declaração da Língua Transmental, do poeta futurista Alexei Krutchenik (apud MENEZES, 1992 p. 30), corrobora a autonomia poética pretendida pela vanguarda. No mesmo esteio de Krutchenik, o poeta Velimir Khlébnikov operou linguagem não podem estar atrás da emoção do artista inspirado, que é, por isso, livre para exprimir-se recorrendo não somente à língua comum (ou dos conceitos), mas também a uma língua pessoal (o criador é o indivíduo) e a uma língua privada de significado (ainda não cristalizado), transmental” (KRUTCHENIK apud MENEZES, 1992, p. 30, grifo do autor).

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“autossuficiente”, um conceito que tomará formas diferentes ou intensidades distintas para um ou outro teórico, mas que mantém em comum a ideia de que não é mero veículo. (KRUTCHENIK apud TEZZA, 2003, p. 114-115, grifo do autor).

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a linguagem Zaum ou, como ele a denominou, Transracional,24 para designar as experiências sonoras em favor de uma nova estética dissociada de um significado determinista. Enquanto Krutchenik radicaliza a linguagem, recorrendo às formas mais radicais de algutinação e destituição de significados, diluindo a palavra em som e imagem, Khlébnikov parte de palavras reconhecíveis distribuídas em poemas sem sintaxe, já que “o som da palavra está profundamente relacionado ao seu significado” (KHLÉBNIKOV apud MENEZES, 1992, p. 78). É fato que ambos os poetas recuperaram a dimensão fônica do poema e, dessa forma, propuseram um movimento Zaum para a linguagem, cujo material se misturava ao que vinha das massas, ou seja, à linguagem das ruas. A pluralidade de sentidos que esses futuristas trouxeram para a arte poética foi partillhada por Marinetti, que, no Manifesto do Futurismo, propõe uma poesia como dinâmica de linguagem e elege a presentidade como palco do fazer poético (MARINETTI apud TELES, 2005, p. 91-92). Já no Manifesto Técnico da Literatura Futurista, Marinetti destaca a importância da ruptura com o tradicionalismo e com a sintaxe, propondo a intervenção de outros signos e do índice ruidoso como parte da composição poética, reafirmando, dessa forma, a não assepsia da linguagem (MARINETTI apud TELES, 2005, p. 95-96). É na reivindicação dos índices mais esdrúxulos que a linguagem poética estabelece ligames com todas as manifestações artísticas, libertando definitivamente o poeta para dispor das palavras, das coisas e dos objetos até esgotá-los. O poema intitulado ZANG TUMB TUMB, publicado em 1914 por Marinetti, ilustra esse apontamento ao tratar da impressão do poeta sobre a batalha de Adrianópolis, Turquia, no ano de 1912. As grafias Zang Tumb Tumb, denominadas por ele “Wordsin-freedom”, ou palavra em liberdade, remetiam ao som onomatopaico da explosão de granadas e aos tiros das armas, além dos vários barulhos produzidos pela batalha. Do ponto de vista da linguagem poética, a construção do Zang Tumb Tumb denotava ruptura com a tradição clássica de escrita através da ausência de linearidade sintática e, nesse sentido, conferia liberdade e força às palavras mediante os diferentes ritmos encenados pela voz e pelo corpo do poeta. 24

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Transracional: combinação mecânica de palavras: o alógico, o casual, a instabilidade, a combinação mecânica das palavras: erros, pastel, lapsos; retornam dessa forma, ainda que parcialmente, os deslizes sonoros e semânticos, sotaques nacionais, balbucio, etc. (KRUTCHENIK apud MENEZES, 1992; MENEZES, 2003, p. 31).

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As vanguardas russa e italiana operaram uma estética voltada à expansão dos signos poéticos, considerando mais o emocional do que o racional em sua composição, sobretudo na urdidura da palavra poética, cuja dinâmica sonora deveria ultrapassar a representação proposta pelas figuras de linguagem. Para a poeta Ilse Garnier:

Seja pelo dado de criação e dissociação da ortodoxia do código linguístico, seja pela redução da palavra a uma letra enquanto enunciado completo, o que vemos é o quanto a sonoridade reintegra o homem ao cosmos e como essa preocupação se fez presente nas poéticas de Vanguarda. O ponto comum dessas poéticas é a revalorização constante das energias da voz e das potencialidades dos dizeres estético e social, que só podem expandir-se quando escapam ao solipsismo, para tornar-se interação de consciências, ou seja, concerto de vozes polifônicas. Para Bakhtin, a polifonia consiste na multiplicidade de vozes heterogêneas e autônomas, cujo diálogo resulta do conflito de vontades e de pensamentos não sujeitos a um único ponto de vista. Trazidas para o hic et nunc, imiscíveis, porém, plenas de consciência da presença do “outro” em seu próprio discurso, tais vozes apontam para o inacabamento dos sujeitos inscritos no diálogo. Tratando-se de poética, esse inacabamento tem a ver com a movência da voz manifestada de forma aberta e efêmera, dado que possibilita inúmeras experimentações, corroborando-a como escritura, já que inscreve o sujeito na presentidade da performance. Como escritura nômade, a voz dialoga com tempo e com o espaço, estabelecendo relações de parataxe com as diversas manifestações estéticas, sociais e culturais, a partir das quais se torna um signo potencial e, como alteridade, resulta numa poliliteratura advinda de uma realidade histórica. “Não apenas eu é um outro, mas é uma multidão de modalidades de alteridade” (GUATTARI, 2008. p. 121). Por isso, as energias liberadas pela voz são vetores enunciativos, dialogando com o outro e com as diferentes

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O som só pode ser arte se ele renuncia a ser uma expressão para tornar-se uma energia. Nós devemos obter com ele uma arquitetura colocada sobre as forças cujo dinamismo será a beleza. Não se precisa de nada além de ouvidos para buscar discernir velhos conhecimentos, sonoridades carregadas de sentidos, antigos gritos instintivos. (GARNIER apud MENEZES, 2009, p. 259).

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manifestações, como a dança e a música, entre outras, ritualizadas pela performance mediante a qual o poeta revela outras intenções à margem do registro de escrita fixa. Podemos dizer, assim, que a movência da voz em performance a torna uma escritura no sentido que o poeta francês Roland Barthes atribui a esta palavra: “nossa fala (principalmente em público) é imediatamente teatral, busca os seus torneios (no sentido estilístico e lúdico do termo) em todo um conjunto de códigos culturais e oratórios: a fala é sempre tática” (BARTHES, 2004a, p. 2). Em outras palavras, a fala ou a voz no sentido de escritura é sempre da ordem da polifonia, porque implica a ambiguidade e a pluralidade de vozes potenciais que escapam à dicotomia oral/escrito, mesmo porque essa escritura independe de uma escrita como forma de registro. Para o poeta, a escritura é um signo regido por uma combinatória livre e representa sua alteridade na poética, seu duplo, seu desdobramento dialogizante, deslocando-se para outras significações. “A escritura é, com efeito, em todos os níveis, a fala de um outro” (BARTHES, 2003, p. 20). A escritura está entre o que se fala e o que é apresentado pelo código da escrita, motivo que a torna ampliação da poética da oralidade, levando à fruição estética por meio de uma voz e de um corpo em sincronia. Diferentemente do código verbal escrito, que elimina a espontaneidade da palavra através da hipotaxe, a voz potencializa e atualiza a palavra no tempo e no espaço, possibilitando a geração de novos significados para além dos previstos pelo registro de escrita fixa. Decorre dessa dinâmica, inclusive, a mudança da relação entre autor e receptor: na oralidade, o mais importante não é o reconhecimento do código, mas a autonomia de ambos, autor e receptor, como coautores, considerando a leitura de um texto no sentido performático que essa palavra implica, qual seja, a de escritura oral situada no horizonte do efêmero, na voz e no corpo desses coautores. É o índice oral que, coexistindo com o escrito, à medida que o contextualiza no aqui e agora, torna-se um discurso in praesentia, compreendido por Barthes como movimento sempre em suspenso em relação ao registro de escrita fixa, pois [...] a escrita não é absolutamente um instrumento de comunicação, não é uma via aberta por onde passaria somente uma intenção de linguagem. Através da fala, é toda uma desordem que escoa, e lhe dá esse movimento absorvido que a mantém em eterno estado de

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O processo de expansão que escoa através da fala é da ordem da performance da voz, em cujos sons e silêncios notamos a autonomização com respeito à linguagem do cotidiano, constituindo-se mediante os diferentes ritmos sonoros e corporais que configuram o acervo humano, considerando tudo o que o homem é capaz de produzir como força de expressão e forma de aquisição de conhecimento. Quando a oralidade está a serviço do texto escrito, surgem conflitos de interpretação, porque oralizar é potencializar os signos através do engajamento entre corpo e voz, algo que o registro de escrita fixa não contempla e é o motivo pelo qual o texto, nesse caso, acaba por cristalizar-se, porque conta apenas com as figuras de linguagem, insuficientes para abarcar os signos não previstos pela taxonomia linguística, como ocorre com a performance da voz. Azevedo (2009) observou um esvaziamento poético decorrente das figuras de linguagem, que, mesmo possuindo riqueza técnica, não contemplam a complexidade de signos que a voz em performance é capaz de criar. Isso ocorre porque, sendo da ordem do efêmero e do circunstancial, a voz não visa simplesmente a ilustrar outro código com sons representativos, mas, sim, a libertar a palavra da assepsia que pode marcar por vezes o registro de escrita fixa, pois, ainda que tal registro represente a linguagem mediante as figuras de retórica, é insuficiente para contemplar a profundidade que a voz confere às palavras. A autonomia dada à palavra pela performance da voz é que torna o exercício poético rico, permitindo articulações não assépticas entre os signos, o que leva à experimentação, ao encontro de prerrogativas tão caras à literatura, a exemplo do polissemantismo que, nas poéticas da voz, se rizomatizam rompendo com a diacronia espaço-tempo, significante-significado. A plurissignificação decorrente da voz, para a qual o código linguístico se torna exíguo, tem a ver com a presença efetiva do performer, cujas energias, sensibilidades e memórias dialogam com as do público, e isso faz com que se quebre a dicotomia sincronia-diacronia entre o texto oral e o escrito, já que a intersecção entre ambos advém de um momento contraditório do ponto de vista da linearidade. O passado no qual se inscreve o texto escrito é atualizado durante a performance da voz, e é dessa forma que a linearidade e a diacronia entre tempo e espaço

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suspensão. Inversamente, a escrita é uma linguagem endurecida que vive sobre si mesma. (BARTHES, 2004b, p. 17).

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diluem-se criando um ambiente em que a experimentação poética se expande em forma de nova ambiências. A teatralidade da poiesis da voz hipercodifcada opera modificações no nível cognitivo, ao colocar em cena as semelhantes experiências do performer e do interlocutor, conectandoos dinamicamente à performance como coautores. Nesse sentido, essa teatralidade altera também a percepção sobre o tempo e o espaço no qual se inscreve, ao fazer passarem do virtual ao concreto os sons emergentes que ritualizam a linguagem enquanto poética dotada de regras próprias. Os dados recuperados pelas memórias, pelas energias da voz e do corpo desses coautores é que conferem tatilidade à palavra, pois o tempo da performance da voz é o tempo criador, o tempo do movimento cuja dinâmica independe de uma matriz que a conforme. O inacabamento da arte poética como experiência reside na liberdade de ela deslocar-se, transcendendo tempo e espaço, assim como a própria palavra e o performer, que se movimentam dentro das contingências para produzir efeitos de sentido tão efêmeros quanto intensos. Tendo como base a perspectiva espacial, a voz constrói um locus com o qual dialoga emocionalmente. Não se trata simplesmente de um dado físico, material e geográfico. O locus na performance é a revitalização das sensações e a liberação dos sentimentos por meio de um corpo sem órgãos, isto é, um corpo onde tudo se preenche e se esgota simultaneamente, o que traduz sua potência, sua energia vital. O espaço da performance une voz e corpo, dramaticidade e vitalidade, e constantes mudanças traçam rotas diversas exigindo novas percepções por parte dos interlocutores a cada evento. Além do diálogo com o locus emocional, o espaço preenchido pela voz se desdobra em tantas multiplicidades quantas necessárias para expandir-se como signo. Com isso, o homem deixa de ser escravo do tempo, ele carrega dentro de si um outro tempo: o tempo da poesia. Em Baudelaire, podemos ler nos Pequenos poemas em prosa: “Para não serdes os martirizados escravos do Tempo...”. Não se trata de desdenhar o registro de escrita fixa tão reclamado pela literatura, mas de superar a ideia cristalizada que aparta da expressão poética os demais sentidos manifestados pelo corpo do qual emana a voz e que têm a ver com a potencialidade dessa escritura voco-corporal. Ao criar sua própria ambiência marcada pela não dicotomia entre espaço e tempo, emissor e receptor, diacronia e sincronia, o corpo e a voz expandem-se

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como signos poéticos cuja forma de registro não se prende a um sistema matricial único, privilegiando a experimentação e a hipercodificação, motivo pelo qual, durante a performance, é o exercício do efêmero em que se situa a performance da voz que se traduz como a própria arte poética levada à fruição.

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Referências

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Literatura e psicanálise: escrita e teoria como práticas da destituição Flavia Trocoli

[...] a literatura, deve tudo sofrer ou suportar, padecer de tudo precisamente porque ela não é ela mesma, não tem essência, mas somente funções. Eis a hipótese que gostaria de pôr a prova e submeter à discussão com vocês. Não há essência nem substância da literatura: a literatura não é, não existe, não se mantém em definitivo na identidade de uma natureza ou mesmo de um ser histórico idêntico a ele mesmo. Jacques Derrida

I) Na psicanálise: de Sigmund Freud a Jacques Lacan Se o inconsciente é um leitor e se Sigmund Freud fez um ato sem precedentes de transformar narrativas literárias em teoria, como quer Shoshana Felman, é ainda em Freud que podemos delinear, pelo menos, dois modos de relacionar a literatura e a psicanálise, a saber: a literatura como modo de formalização da teoria psicanalítica (da tragédia ao

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complexo ou do efeito de estranho no conto ao conceito de estranho no ensaio), a psicanálise aplicada à vida e à obra do autor (Dostoiévski). No primeiro modo, a formalização, no segundo, a explicação pela via da posse do significado. Freud, leitor de romances do século XIX, escreveu casos; Jacques Lacan, leitor de Stéphane Mallarmé, James Joyce e Marguerite Duras, forjou um estilo em que literatura e psicanálise estão em relação de disjunção, isto é, um terceiro modo de se colocar nos litorais entre literatura e psicanálise. Disjunção pensada como um outro modo de dizer “literatura e psicanálise: de uma relação que não fosse de aplicação”.1 Se Freud ocupou-se em delinear o inquietante familiar a partir do conto de Hoffman, Lacan ocupou-se com o funcionamento do conto “A carta roubada” de Edgar Allan Poe, que traz em sua estrutura a variação do ponto de vista. A crítica que o detetive Dupin faz ao delegado de polícia refere-se justamente ao fato de o delegado não considerar na sua investigação o ponto de vista do ministro. Ao colocar o método do delegado sob suspeita, Dupin golpeia de uma só vez a filosofia das profundidades – a carta está exposta e não oculta –, e o ponto de vista único e fixo. Poe coloca sob suspeita o significado/conteúdo da carta bem como o método para recuperá-la e cria uma unidade de efeito através da precisão com que se compõe um problema matemático. Já se faz evidente a lição que Jacques Lacan apreendeu d’ “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, a saber: não se procura um sentido oculto, que não há, mas acha-se o funcionamento do não saber exposto na linguagem literária (Cf. LACAN, 1998, p. 13-66). A filosofia da composição de Poe precede Mallarmé que vai ainda mais longe: compõe para revelar o vazio das palavras e da linguagem. Mallarmé distingue entre a linguagem bruta e a essencial. Na linguagem bruta, a palavra comum é uma moeda de troca: comunica, representa, conta, faz referência e, para isso, ritmo e sonoridade ficam esquecidos. Já na linguagem essencial, a função expressiva se apaga e o que dá a ver e a escutar é a materialidade da palavra. Mallarmé deixa claro para Degas que se faz poesia com palavras e não com ideias. Já não se está mais no âmbito de uma literatura que expressa e produz significados, ainda na lógica do significante, mas sim de uma lituraterra, no domínio da letra, em que a 1

Essa foi a proposta do número da Revista Terceira Margem, n. 26, 2012, organizado por mim e por Suely Aires. Disponível em: .

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palavra destitui o significado e barra a interpretação pela via da posse do sentido. Não se pergunta mais “o que?” e sim “como?” E, certamente, não é qualquer texto cujo funcionamento dá a ver a erosão do significado, o que se pode adiantar é que ela, a erosão, coincide com o fato de que “quem fala”, em tais textos, ocupa o lugar do objeto. Lacan perguntará: “Mas, o que vem a ser essa vacuidade?” (LACAN, 2003, p. 201). Pode-se pensar o escrito de Lacan de 1965, em que tal pergunta é feita, “Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein”, como um lugar privilegiado de onde se pode ler a formalização dessa vacuidade. É o próprio narrador de Marguerite Duras quem dá a pista: “[...] escrever a história de Lol não é erguer montanhas ou edificar obstáculos, mas sim aplanar o terreno, escavá-lo, abrir sepulturas” (DURAS, 1986, p. 27). Lacan soube ler no texto literário o entrelaçamento entre linguagem e perda em que “a prática da letra converge com o uso do inconsciente” (LACAN, 2003, p. 200). Neste momento, proponho pensar que essa convergência não se faz sem destituição do sujeito e do significado, possibilidade de um fora da lógica da propriedade quer seja do eu, quer seja obra como produto acabado.

II) Na crítica: de Harold Bloom a Shoshana Felman

Obviamente, estou aqui discutindo Freud como escritor, e psicanálise como literatura. Este é um livro sobre o Cânone Ocidental do que, em tempos melhores, chamávamos literatura de imaginação, e a grandeza de Freud como escritor é sua verdadeira realização. Como terapia, a psicanálise está morrendo, talvez já esteja morta: sua sobrevivência canônica deve estar no que Freud escreveu. (BLOOM, 2001, p. 361).

O que pretendo mostrar e discutir aqui, ainda que de forma breve, diz respeito a certas leituras da psicanálise na construção de arcabouço teórico da crítica literária. A minha própria crítica incide no movimento feito por Bloom que, dizendo-se contra o desprezo pela Literatura dos Estudos Culturais e da crítica marxista e lacaniana, acaba por sobrepor

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Não é objetivo deste ensaio refutar as afirmações, no mínimo, improcedentes do crítico literário Harold Bloom em relação à psicanálise:

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seus pressupostos teórico-críticos sobre o funcionamento da obra. Problematizarei o capítulo de O cânone ocidental (BLOOM, 2001) sobre Marcel Proust, e indicarei, na sequência, o que está em jogo na construção teórica de Shoshana Felman que lhe permite um corpo a corpo com o objeto literário.2 Em outras palavras, ao final desta seção, quando o leitor tiver passado pelo conceito, forjado através do corpo a corpo da crítica com o seu objeto, de “mestre barrado” de Shoshana Felman, como aquele que não pode mais deter o significado último da obra, espera-se ficar demonstrado o giro em falso3 de Harold Bloom em O Cânone Ocidental ao tentar assegurar o domínio do estético sem uma leitura cerrada da obra literária. O leitor de Poesia e repressão: o revisionismo de Blake a Stevens, 1976, de O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo, 1994, e de Gênio, 2002, todos de autoria de Harold Bloom, constata que o conceito de “angústia da influência” retorna de maneira operante. Em A angústia da influência, de 1973, Bloom monta sua teoria da poesia, em que um poema é lido retroativamente como interpretação, desvio e distorção de um poema antecessor, a partir da leitura peculiar dos textos freudianos, e considera a crítica literária uma arte de fazer e refazer os caminhos ocultos que vão de um texto ao outro. Para dramatizar as relações entre um poema e o poema-pai-precursor, Bloom retoma dispositivos de leitura analítica – interpretação, deslocamento, condensação, retroação, repressão, angústia, perda, sublimação e as relações edípicas. Angustiar-se, a partir de Bloom, é saber presentificada a possibilidade de ser assimilado, devorado ou confundido na e pela voz do poema precursor. Sair da angústia é saber passar com ela e por ela através dos desvios, distorções. Se a teoria é, à primeira vista, sedutora, a análise do texto literário deixa a desejar e Bloom parece padecer do mal que ataca. Em O cânone ocidental, o tom é diferente daquele das teorizações de A angústia da influência, mais combativo e, ressaltando a disputa pela grandeza e pela imortalidade entre autores, Bloom elege os seus alvos, linhas da crítica tão diversas, mas que ele agrupa sob o título de “Escola do Ressentimento”, a saber: “feministas, marxistas, lacanianos, neo 2

No artigo para a Revista Literal (v. 13, 2010), intitulado Literatura, Teoria Literária e Psicanálise: dissonâncias entre Harold Bloom e Shoshana Felman, apresentei também uma crítica à leitura de Virginia Woolf feita por Harold Bloom.

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Cf. Durão (2008).

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historicistas, desconstrucionistas, semióticos” (BLOOM, 2001, p. 28; 494; 500). O ataque teria como finalidade assegurar a autonomia do estético. Se Bloom toma a relação entre textos como uma relação de leitura e de interpretação, cabe perguntar: o modo como Harold Bloom lê assegura a autonomia do estético? Se é que existe autonomia estética do modo como quer Bloom. No que diz respeito ao esteticismo de Proust, Bloom vai longe demais, proclamando-o “o inconteste sumo sacerdote da religião da arte” (BLOOM, 2001, p. 388). No plano da monumentalização de Proust, Bloom afirma que a missão do romance proustiano é a salvação estética. Não será nesse plano devocional que dialogarei com Bloom. Gostaria de fazer minhas interrogações recaírem sobre outras duas afirmações: a primeira estabelece a dualidade do narrador – a passagem de Marcel narrador ao Proust romancista; a segunda lê o ciúme sexual como “máscara para o medo da mortalidade” (BLOOM, 2001, p. 382). Penso que reduzir a pluralidade de ângulos de Em busca do tempo perdido a um funcionamento dual é demasiadamente empobrecedor e que, se o ciúme é um encobrimento, é preciso ir ao texto e mostrar de que forma a questão da mortalidade se articula ao ciúme, suas figurações. O ciúme, em Proust, não é uma entidade na qual se crê, mas sim uma escrita com uma função específica. Em A prisioneira (PROUST, 2002), a construção da cena do ciúme possibilita ao amante reter o objeto, impedir que ele escape, nela vigora a ilusão, via sofrimento, de posse e controle. As identidades estão asseguradas: para o amante traído, a amada mentirosa. A cena produz saber sobre cenas que vagam soltas na memória, sobre o objeto de amor e sobre seu modo de amar. E, ao mesmo tempo, o ciumento está lá, na cena como o terceiro excluído, o ausente, atualizando a cena primordial da Recherche, em que, em Combray, o pequeno Marcel é privado do beijo da mãe, devido à visita de Swann. O que é o belíssimo episódio da cena da xícara de chá, se não o sujeito esquecido de si, tomado pelo objeto e pela memória involuntária? Tomar Albertine como mentirosa e ler às avessas os seus enunciados é não só atribuir a ela uma identidade estável – a daquela que mente – como também é assegurar-se do sentido e da intencionalidade do outro. É tornálo conhecido. É fazer do eu ciumento que interpreta produtor e detentor de conhecimento. Mas, se Gérard Genette (1972) está certo, “a estrutura [da escrita, do tempo e da memória] devora a substância” e, de uma cena de ciúme

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a outra, Albertine escaparia sempre. Qual é essa verdade que não é a do proprietário e do tirano ciumento? É aquela recalcada na cena do ciúme. A cena do ciúme, em que o narrador é leitor e Albertine a prisioneira é cindida, corroída, pela cena da escrita, em que o narrador destitui-se desse saber e passa, ele também, para aquilo que não saberemos nunca. Entre os vários eus do narrador e entre as várias Albertines, pequenos vácuos, erosões de sentido, despersonalizações, pois Albertine é subtraída de seus atributos particulares para se tornar “uma grande deusa do Tempo”, aquela que o força a explorar o passado. Nesse retorno, o narrador multiplica-se e não apenas se desdobra em dois como quer Bloom. Fora da delimitação da cena do ciúme, afastado desse movimento de localização e de predicação de si mesmo e da amada, o narrador pode enfim despertar para o “objeto indescritível” (Cf. LACAN, 2003a, p. 205). De leitor de traços individuais a escritor do esquecimento desses traços. Se o leitor se detêm na visibilidade dos signos mentirosos do ciúme (Cf. DELEUZE, 2006), o escritor multiplica as lentes, os ângulos, assim, é a “representação pluripessoal” (Cf. AUERBACH, 1987) que impede a identidade e a totalização. Preocupado em assegurar a monumentalidade de seus autores, ou seja, detendo-se no estabelecimento do sentido dos grandes temas, Harold Bloom acaba por relegar a um segundo plano a especificidade do seu objeto, em outras palavras, da forma através da qual se dá, ou não, a produção de sentidos. Elencando conteúdos, Bloom reduz a pluralidade de ângulos à dualidade do narrador e não lê que a mortalidade em suas diversas figurações corrói a máscara do ciúme e expõe os flancos da perda e do não saber. A representação pluripessoal e a corrosão/rasura como princípio construtivo da Recherche tornam-na irredutível a uma religião ou a uma missão, definidas a priori pelo crítico devoto. Ao fim do ensaio, retornarei a Proust, para colocar em cena na própria escrita literária os passos e impasses da interpretação. Em contrapartida, longe do monumento e perto do objeto literário encontra-se Writing and madness: literature/philosophy/psychoanalysis, que Shoshana Felman publicou originalmente em 1978, em francês, com o título La Folie et la chose littéraire. Sobre Writing and madness, é a própria Felman quem afirma que é seu livro de maior densidade teórica, prefigurando todos os outros. A meu ver, reafirmar tal densidade é poder extrair consequências da formulação segundo a qual a literatura é o inconsciente da psicanálise,

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A leitura do ensaio de Shoshana Felman produziu consequências na minha leitura de Dom Casmurro, de Machado de Assis, de São Bernado, de Graciliano Ramos e de Minha fantasma, de Nuno Ramos. Cf. Trocoli (2010a).

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e se, de acordo com Lacan, o inconsciente é um saber que não se sabe, “a coisa literária” é, de acordo com Felman, a dramatização da irredutibilidade da relação entre o legível e o ilegível. Em seu primeiro capítulo, intitulado “Writing and madness, or why this book?”, Felman afirma que o livro é um efeito do significante madness/ loucura e a linguagem da loucura difere de uma linguagem sobre a loucura, toma como exemplo desta diferença entre mostrar e tematizar o texto de Flaubert que quanto menos tematiza a loucura, mais mostra a loucura. E quanto mais louco o texto, mais ele resiste à interpretação, isto é, mais perto nos deixa da “coisa literária”. Isso que se mantém indefinido e alude ao que é ordem do som, do literal e, portanto, está mais longe das possibilidades de totalizar significações a partir dos deslocamentos e condensações. Vimos que Bloom monta sua teoria da poesia, estendida à prosa literária, a partir de suas interpretações do complexo de Édipo, da repressão, da perda e da repetição e, portanto, do retorno do recalcado via distorção, deslocamento e condensação. Marcando a passagem de Freud a Lacan, Felman desloca a ênfase do campo do simbólico, da significação, para o campo de la langue, dessa escrita que é feita para não ser lida pela via da posse do significado, desse pas de sens de Lacan, ou como na tradução de Haroldo de Campos (1990): desse impasse de sentido. Esse procedimento de deslocamento operado por Shoshana Felman coincide com uma leitura cerrada das obras analisadas. No belo e último ensaio de Writing and madness intitulado “Henry James: Madness and the Risks of Practice (Turning the Screw of Interpretation)”, Shoshana Felman mostra que Turn of the screw [A volta do parafuso], 1898, de Henry James, é um texto que condensa e encena os limites do encontro entre literatura e psicanálise.4 A história de fantasmas de Henry James pode ser considerada uma tragédia da interpretação, nos termos da própria Shoshana Felman ao falar de Édipo Rei (de Sófocles) e de Hamlet (de Shakespeare), e uma tragédia da destinação, nos termos de Jacques Derrida (2007) em O cartão-postal: de Sócrates a Freud e além. Os fantasmas de Henry James não são um saber ou uma referência. Cabe aqui aquilo que Derrida diz lá em Espectros de Marx, a saber:

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“o estar aí de um ausente ou de um desaparecido não pertence mais ao saber” (DERRIDA, 1994, p. 21). Por isso, os fantasmas são um convite à interpretação que permanecerá no indecidível: o fantasma é um mortovivo, aquilo que deveria ter permanecido enterrado mas voltou à luz. Na ausência de uma sepultura simbólica, o morto-vivo é um furo real. E a questão não reside no que a história significa (a resolução do enigma), mas sim na construção do enigma. Acompanhemos Shoshana Felman nesta reconstrução. O problema em torno do foco narrativo é um eixo decisivo para a leitura. Sabe-se que Henry James foi um dos mestres das inovações do foco narrativo, em suas obras consuma-se a passagem da ilusão da perspectiva única, centro organizador, para o jogo entre pontos de vistas limitados. Sobre o foco narrativo em Turn of the screw (JAMES, 2004), Shoshana Felman marca que é uma história transmitida em cadeia. Há três narradores: aquele que conta e ouviu a leitura de Douglas, Douglas que leu a narrativa em torno do fogo, e o manuscrito da governanta enviado a Douglas. Esse modo de transmissão permite a Felman afirmar que: a origem está obliterada e a propriedade narrativa está perdida. É a morte da autora do manuscrito, a governanta, que engendra esses deslocamentos e substituições. O manuscrito-carta foi enviado a Douglas antes da morte da governanta. A história, numa tinta velha e apagada, está escrita na mais bela letra de uma mulher e guardada em uma gaveta bem fechada. O terceiro narrador o instiga a rapidamente escrever ao criado para que envie o manuscrito. Shoshana Felman diz que o manuscrito-carta é uma história sobre cartas: carta enviada da governanta para Douglas, carta de Douglas para ele mesmo, carta de Douglas para o narrador, carta da escola expulsando Miles, carta das crianças para o tio que a governanta não envia ao patrão (the master!), carta da governanta para o patrão, que é interceptada e destruída por Miles. O fogo que destrói as cartas elimina o centro. As cartas são ilegíveis, como o inconsciente, mas determinam um destino sem se deixarem ser compreendidas ou penetradas. Como as cartas, os fantasmas são figuras do silêncio. Fantasmas e cartas são significados barrados. E a barra não incidirá apenas através dos fantasmas e das cartas obliteradas, queimadas. A barra incide nos lugares do autor e do narrador, impedindo a onisciência. Em outras palavras, é a barra que impede a coincidência entre significante e significado, entre enunciação e enunciado. É ela também que impede a

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vigência da lógica da identidade e da totalidade. The turn of the screw é uma história em torno de fantasmas, cartas e mestres destituídos. A perda da ilusão de perspectiva, mencionada acima, é perda da onisciência autoral. Henry James delega à governanta a mestria. Destaco duas passagens em que a governanta faz planos para impedir que as crianças vejam os fantasmas: As crianças, em particular, eu daria um jeito de defendê-las e faria de tudo para poupá-las. (JAMES, 2004, p. 51).

Fazer-se biombo, anteparo para proteção e defesa, é uma tentativa de manter-se no âmbito da consciência, a governanta diz ainda: “Eu agia como um carcereiro de olho nas possíveis surpresas e fugas” (JAMES, 2004, p. 100). Tentativa que logo fracassa quando a governanta percebe que as crianças veem os fantasmas. Daí a queda do biombo e o aparecimento de algo a mais, diante da queda dessa barreira de proteção, a governanta afirma que seus olhos estavam selados e os das crianças tinham visto demais. A governanta se perde como sujeito vigilante da consciência, do saber, da ordem e do encobrimento. Matar Miles num abraço é a tentativa desesperada de controle. Tê-lo morto nos braços é não ter nada. É perder o sentido e a unidade garantida por ele. No final, perda de sentido, de direção. Fracasso da destinação. Deriva. Ao delegar sua mestria para a própria governanta, que não tardará a perder a sua, Shoshana Felman conclui que Henry James denega e desconstrói a sua própria mestria. O mestre sai de cena e torna-se um fantasma. Nas palavras de Shoshana Felman: Agora, afirmar que o Mestre tornou-se ele próprio um fantasma é uma vez mais repetir a verdadeira afirmação de The turn of the screw: as cartas [letters] passam a existir a partir do momento em que não há um Mestre para recebê-las ou lê-las. As cartas existem porque o Mestre cessou de existir. Podemos estender essa afirmação à própria

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Essa oportunidade se apresentava a mim numa imagem ricamente literal [material]. Eu era um biombo [screen] – devia ficar diante deles. Quanto mais eu visse, menos eles veriam. Passei a vigiálos numa ansiedade abafada, numa expectativa dissimulada que poderia, se continuasse por muito tempo, ter-se tornado algo como uma loucura. (JAMES, 2004, p. 54).

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definição de literatura, uma definição implicada e promovida pela prática de Henry James: a literatura (na própria literariedade da letra) não é outra coisa senão a morte do Mestre, a transformação do Mestre em fantasma, na medida em que essa morte e essa transformação definem e constituem a literalidade como tal; a literalidade como impermeável à análise e à interpretação, isso que não pode ser narrado, nem interpretado, e que constitui nada menos que todo o resto: “Todo o resto é a literatura”, escreve Verlaine. “O resto, diz o artista que está morrendo no romance de James The Middle Years, o resto é a loucura da arte [...]”. (FELMAN, 2003, p. 246, grifo do autor, tradução nossa).

A partir do longo trecho citado de Shoshana Felman, pensemos que não é toda a literatura que barra a posse dos sentidos e inscreve os restos. As cartas-fantasmas e a literatura-fantasma estão nas margens da literatura do significado. E não é a indeterminação do significado que faz a teoria ser, ao mesmo tempo, efeito de uma leitura, de fato, literária? Com essa estreita margem de liberdade, Bloom, como mestre do significado, sequer pode sonhar.

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III) Na literatura, Marcel a Proust, a destituição do mestre da interpretação

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Depois dos diferentes ângulos de interpretação e de empréstimo de sentido à Albertine, movimentos que rasuram (Lacan) o “não-tem-resposta” sobre o que Albertine deseja, no volume intitulado A fugitiva (Albertine disparue), o narrador, ao fim de um luto que parecia interminável, faz cessar o “tudo totalmente diferente” (Adorno) que abala a sintaxe e torna qualquer proposição transitória, para enfim dizer “assim é”. Não é Albertine quem está morta, é o eu que a amou: assim é. Neste ponto, um ato falho de leitura não é interpretado, e o erro passa a ser da ordem do incontornável e da queda. A não interpretação tem efeito de verdade. Pergunto: o parafuso não gira mais? Para proteger-se do execrável prazer que a partida de Albertine provoca em Françoise, a empregada, a mesma que entrega ao pequeno Marcel o bilhete da mãe com o “não-tem-resposta”, a mesma que anuncia que “Albertine partiu”, o narrador esforça-se por falar desta partida com naturalidade como se fosse uma viagem. Compara essa estratégia àquela

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Adeus para sempre, minha querida Albertine, e obrigado também pelo lindo passeio que fizemos juntos, na véspera de nossa separação. Conservo dele uma lembrança bem agradável. P.S. Não respondo ao que você diz sobre uma suposta interferência de Saint-Loup (de resto não creio absolutamente que ele esteja em Touraine) junto a sua tia. Isto é puro Sherlock Holmes. Que ideia você faz de mim? (PROUST, [1925] 2003, p. 42).

Toda a carta de Marcel é uma mentira estratégica, o dito “não quero a sua volta” equivale, num primeiro momento, a “volte”, e é também uma dissimulação para não assumir a mediação de Saint-Loup. No pósescrito, a verdade é dita às avessas. Saint-Loup foi enviado a Touraine e, portanto, a ideia que você faz de mim é verdadeira. Inicialmente, a carta mentirosa tem a função de trazer Albertine de volta, isso não acontece,

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de um general que, depois de um recuo forçado, o chama de retirada estratégica. No entanto, esse modo de aludir, mais do que uma proteção do olhar da empregada, é uma maneira de diminuir as proporções da dor e fazê-la entrar na linguagem falada, diz o próprio Marcel. A dor não se diz nem toda, nem diretamente, e a interpretação torna o irrevogável transitório, fazendo a verdade passar por mentira. Sobre o bilhete de despedida de Albertine, o narrador diz a si mesmo: “Isso não significa nada [...] é até melhor do que eu pensava: Albertine não pensa nada disso, apenas deu um grande golpe, para que eu fique com medo” (PROUST, 2003, p. 11). Assim, se da carta roubada de Poe e das cartas de A volta do parafuso de Henry James, desconhecemos a mensagem, em A fugitiva (Albertine disparue), a mensagem é uma interpretação. O que Proust dramatiza não é o efeito do que não se sabe, mas o ato de ler cartas como operação da mentira e, possível, produção da verdade através das rasuras feitas pelo tempo sobre a mentira. A mentira é parte tão constituinte e imprescindível desse palimpsesto quanto a verdade. No relato, depois de assegurar-se de que Albertine apenas fez uma saída estratégica, transfere para Saint-Loup a tarefa de buscá-la de volta. Nesse meio tempo, Albertine escreve um outro bilhete perguntando porquê o pedido de volta não foi feito pelo próprio Marcel e que se assim tivesse sido ela teria retornado imediatamente. Transcrevo os dois últimos fragmentos da carta-resposta:

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e o narrador não tarda a rasurar essa verdade provisória sobre a mentira e considera:

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A maneira desastrosa como é construído o universo psicopatológico exige, porém, que o ato desajeitado, o ato que cumpre evitar acima de tudo, seja precisamente aquele que, abrindo, até que lhe saibamos o resultado, novas perspectivas de esperança, nos desembaraça momentaneamente do sofrimento intolerável que a recusa fizera nascer em nós. [...] Mas, ao mesmo tempo, escrevendo-a [a carta] não parara de chorar [...] embora [as palavras] tendessem a um fim contrário (pronunciadas mentirosamente, por orgulho, para não confessar que a amava, traziam em si sua tristeza, mas também porque eu sentia que essa ideia continha algo de verdadeiro). (PROUST, [1925] 2003, p. 43).

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Em A prisioneira, na construção da cena do ciúme aquele que ama pode jogar com a sua ausência, que, ao mesmo tempo, é encoberta pela ilusão de controle e de posse do amado. A cena ciumenta produz saber sobre cenas que vagam soltas na memória, sobre o objeto de amor e sobre seu modo de amar, enfim tenta produzir saber sobre a sexualidade enigmática de Albertine – o que ela deseja homens ou mulheres? Em grande parte de A fugitiva, morta e ainda viva na memória, o fantasma de Albertine, ou as múltiplas e inconciliáveis Albertines dispersas pelo tempo, fazem a escrita atualizar o tempo da “não tem resposta da mãe”, tempo que produz e é produzido pelo próprio ato de rasurar como não realização da perda, do luto, do esquecimento e da própria obra. Tempo do ciúme e do amor, da interpretação e da memória, e tempo de passar ao largo da verdade e da escrita da obra. Uma resposta parcial chega ao seu destino em A fugitiva, quando Andrée, amiga de Albertine, conta ao narrador não só passagens de seu caso com Albertine, confirmando o gosto dela pelo prazer com mulheres, mas também que Albertine esperava que ele a salvasse pelo casamento, aquilo que, para o narrador, seria da ordem do inimaginável. Tarde demais, o efeito dessas revelações é o seguinte: Como certas felicidades, há certas desgraças que chegam tarde demais e não alcançam em nós toda a magnitude que teriam tido algum tempo antes. [...] havia já algum tempo, as palavras

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concernentes a Albertine, como um veneno evaporado, não tinham mais poder tóxico. Ela já estava demasiado longe de mim. Como o passante que exclama, vendo à tarde, um crescente nebuloso no céu, diz a si mesmo, então é isso, como? Então essa é a verdade que procurei tanto [...]. (PROUST, [1925] 2003, p. 171). Essa verdade do amor destituída pelo tempo, quando resta apenas a verdade da irrefutabilidade erosiva do próprio tempo, um erro é a prova do esquecimento, da indiferença absoluta. Em Veneza, quando Albertine já habita os cárceres quase inacessíveis do esquecimento, o narrador recebe uma carta em que lê que ela desmente sua morte, diz estar vivíssima e quer lhe falar sobre o casamento. Se a desgraça da confirmação dos ciúmes não o afeta, tampouco a alegria da ressurreição de Albertine: “Eu seria incapaz de ressuscitar Albertine, porque o era de ressuscitar a mim mesmo, de ressuscitar o meu eu de então”. (PROUST, [1925] 2003, p. 209).

[...] lendo, cria-se; tudo parte de um erro inicial; os erros que se seguem (e não é somente na leitura de cartas e telegramas, ou em qualquer leitura), por mais extraordinários que pareçam a quem não haja partido do mesmo ponto, são inteiramente naturais. Boa parte daquilo em que acreditamos (e assim acontece nas conclusões extremas) com igual teimosia e boa-fé resulta de um primeiro engano sobre as premissas. (PROUST, [1925] 2003, p. 217).

Tal lei sobre o engano das premissas bastaria para que, rasurando o dito até então, fôssemos forçados a reler sob outro ângulo a Recherche. Como diz o próprio narrador, Albertine era apenas o centro gerador de uma construção imensa, como a morte nada põe no lugar, é a partir desse nada, em que não há mais ninguém para dizer eu, objeto entre objetos, que isso escreve em busca do tempo perdido. Sobre essa pura perda, diria ainda Proust: “um livro é um vasto cemitério onde na maioria dos túmulos já não se leem as inscrições apagadas. Por vezes, ao contrário...” (PROUST, 2004,

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A sombra do objeto perdido retirou-se do eu e Albertine não assombra mais. A carta não era de Albertine, mas de Gilberte anunciando seu casamento. O que surpreende é que tal equívoco não é interpretado. Fora da perspectiva do amor, do ciúme, do eu, a interpretação cai. Há constatação, erro e advertência:

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p. 689, grifo nosso). Não apenas a indicação das inscrições apagadas, ponto de homologia entre o livro e o cemitério, mas sobretudo o “ao contrário” nos enviam à excelente síntese de Gaëthan Picon (1995, p. 128) para o movimento da frase proustiana: “Não é isso! Não é nada! Então é isso!”. O que não deixa de nos remeter ao “Tudo totalmente diferente” justamente quando Adorno afirma que, se a lógica proustiana se limitasse ao “Tudo totalmente diferente”, teríamos apenas a impotência, mas há o “assim é” como marca de uma universalidade oblíqua. Até esse ponto preciso, não através de uma reflexão sobre as semelhanças teóricas, mas através de uma leitura do movimento entre os fragmentos do texto proustiano, seria possível aproximar o tudo totalmente diferente de Adorno à rasura de Lacan. Ouço aqui o rumor das distâncias atravessadas para talvez perguntar pelo intransponível entre Adorno e Lacan justamente no que diz respeito à universalidade. Para a psicanálise lacaniana haverá um elemento que impedirá a totalização de uma lógica, quer seja o umbigo do sonho, a mulher, a morte ou o sexual (que não são jamais resposta, como quer a psicanálise tornada senso comum e clichê, mas modalidades do não-tem-resposta), esses restos do pensamento impedem justamente uma lógica que se queira universalizante, o que torna o mal-estar na civilização irredutível, uma vez que o mal-estar só pode ser formalizado por cada um, por cada homem ou por cada obra. O mal-estar não é da ordem do Ser atemporal, mas da contingência e da finitude. Se Lacan e Adorno se encontram numa operação de leitura do não próprio como crítica da identidade e da unidade, quanto à categoria de universal cessaria aqui uma interseção possível entre uma leitura adorniana e lacaniana de Proust? Residiria aqui, quanto à universalidade, uma disjunção radical entre Adorno e Lacan? Talvez não seja possível afirmar com toda a certeza, pois é preciso destacar que Adorno, ao formular a questão da universalidade, torna-a problemática tanto quando diz que ela é oblíqua e, principalmente, quando seu procedimento de leitura se faz através da imersão em fragmentos. Leitura crítica que se faz ao modo de Proust que, ao mesmo tempo que faz Combray sair de sua xícara de chá, reduz/rasura o gosto da madeleine na boca à/com a imagem surrealista da gota sobre a qual se ergue o edifício imenso da recordação: formalização e perda. A construção transitória desse edifício no tempo resiste à fixação, inscreve-se no impossível, entre

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Pelo menos, se me fosse concedido tempo suficiente para terminar a minha obra, não deixaria eu, primeiro, de nela descrever os homens, o que os faria se assemelharem a criaturas monstruosas, como se ocupassem um lugar tão considerável, ao lado daquele tão restrito que lhes é reservado no espaço, um lugar, ao contrário, prolongado

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dois tempos: o da escrita rasurada e o da leitura desamparada, uma vez que ambas se fazem ao modo do tudo totalmente diferente. A transitoriedade, do escrever a obra e de sua interpretação, como resistência à propriedade. Se foi Kafka quem afirmou que alguns livros funcionam como chaves para o nosso próprio castelo, é preciso lembrar que, para Proust, o castelo, se o tempo e a morte permitirem, está por construir. Contudo, nas ruínas do tempo sobre o qual ele se edificará já habitam criaturas monstruosas vistas por mil olhos espalhados pelo tempo que, ao se confrontarem com tais imagens, as iluminam e as apagam no mesmo gesto, para que nós, os proprietários, não sejamos nunca mais senhores em nossa própria casa. Em “A imagem de Proust”, Walter Benjamin (1994) dirá de um modo muito bonito das inscrições deixadas pelo tempo – das rugas e dobras do rosto – sem que nós, os proprietários, estivéssemos em casa. “Tudo totalmente diferente” eis a máxima que, em “Pequenos comentários de Proust”, Adorno propõe para Em busca do tempo perdido, e que funciona também como síntese para aquilo que resiste à opinião. Proponho que essas duas formulações sobre Proust sejam reunidas sob a lógica da desapropriação, da destituição, portanto, como resistência sintetizada por Adorno em sua “Palestra sobre lírica e sociedade”: “para que o sujeito seja capaz de, em sua solidão, resistir verdadeiramente à reificação, ele não pode nunca mais se refugiar no que lhe é próprio, como se fosse sua propriedade” (ADORNO, 2003, p. 87). Na leitura dos fragmentos de Em busca do tempo perdido, destaca-se o movimento quase imperceptível das orações que, ao se inscreverem e se apagarem, impedem a cristalização e a totalização. É na leitura cerrada da colisão entre fragmentos que se vê operar a noção lacaniana de rasura, movimento em que o dito está submetido à erosão do dizer (Cf. LACAN, 2003b). A transitoriedade da leitura, a imersão provisória em fragmentos, é prova tanto da resistência e da singularidade do objeto quanto do desamparo do escritor e da crítica. Depois de rugas e rasuras sulcadas em 2.400 páginas, o narrador diz ainda

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sem medida – visto que atingem simultaneamente, como gigantes mergulhados nos anos, épocas tão distantes vividas por eles, entre as quais dias vieram se colocar – no Tempo. (PROUST, 2004, p. 796).

O livro reduzido a não livro seria o objeto redescoberto através do tempo e da arte, arte da destituição, da erosão, da transitoriedade. Forçados pela dor, pelo acaso e pelo enigma a ser decifrado através da obra de arte, aquele-que-deseja-escrever e não-pode-escrever-ainda, no plano do enunciado, e aquele que escreve, lugar de produção da enunciação, formam essa fratura desestruturante (Benjamin dirá de uma “construção impossível”) em que a instância narrativa está privada de todos os recursos, destituída, não lhe serve o que foi dito antes, o sentido, a teoria, a própria inteligência como vontade voluntária. E para ser fiel a essa iminência do que ainda não existe – a obra e o luto – a escrita proustiana nada fixa, nada estabelece, nada deixa em repouso, tudo desloca, tudo rasura, todo dito está submetido à erosão do dizer.

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Referências

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PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Trad. Lúcia Miguel Pereira. São Paulo: Globo, 2004. TROCOLI, Flavia. A tragédia da destinação: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Nuno Ramos. In: LEITE, Nina; MILÁN-RAMOS, José-Guillermo. TerraMar: litorais da psicanálise. Campinas: Mercado de Letras, 2010a. TROCOLI, Flavia. Literatura, teoria literária e psicanálise: dissonâncias entre Harold Bloom e Shoshana Felman. Revista Literal. Campinas, v. 13, 2010b. TROCOLI, Flavia; AIRES, Suely. De uma relação que não fosse de aplicação. Revista Terceira Margem. Rio de Janeiro, n. 26, 2012.

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VI Literatura e ensino

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Há lugar para a teoria da literatura na sala de aula? Alamir Aquino Corrêa

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,  Muda-se o ser, muda-se a confiança:  Todo o mundo é composto de mudança,  Tomando sempre novas qualidades.  (Luís de Camões, Sonetos)

A epígrafe camoniana traz, para o bojo da provocação feita sobre o lugar da teoria da literatura, a noção da mudança como processo necessário e assunção de diferentes perspectivas e valores, pois nós (docentes, pesquisadores e estudantes) nos vemos na caminhada universitária de trinta a quarenta anos a lidar com diversas qualidades, propostas e ansiedades. Em vários instantes, a academia se debruçou sobre o problema, quer para pensar afinal que teorias há ou quer sobre o que foi feito até aqui e para onde se vai, se é que algum rumo é possível. Talvez a relembrar o concurso público a que me submeti em 1987, quando sorteei o ponto “Conceito de Literatura”, para concorrer à vaga de professor de teoria da literatura em universidade periférica em relação ao eixo Rio-São Paulo, trago o foco para a discussão do objeto literário, observando que sem dúvida esse problema e suas consequências é o que tem norteado a vontade teorizante da universidade nos últimos setenta

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anos. Há inúmeras tentativas de qualificação simbólica do caráter literário de parte da produção artística; por outro lado, em ânsia de busca de verdade científica, pouco resta de qualidade essencial a tal proposta, tanto em termos icônicos (nomes de autores ou figuras de livros encadernados) quanto de um enfrentamento concreto da qualidade literária; em outros termos, a essencialidade da literatura ainda não restou demonstrada além de um contexto cultural ou de práticas culturais. Em síntese, nas proposições científicas de enfrentamento do caráter literário, sobram a convenção mediática de caracterização do literário como produto identificável pelos nomes canônicos ou propostos como plenos de valor pela indústria cultural, e a dificuldade de diferenciação formal ou conteudística do literário em oposição ao não literário. Claro que é possível reportar ao momento romântico, especialmente as contribuições alemãs e inglesas, para a definição do literário enquanto proposição artística, logo subjetiva, a evidenciar desde então seu caráter sublime e talvez intangível como qualidade detectável. Fato é, entretanto, que a qualificação literária é também autorizante, vez que a produção noviciada, o passado e sua condição de fausto permitem novas propostas observada a tradição, como alertou T. S. Eliot (1921) em “Tradition and the individual talent”. Por outro viés, é autorizada por aqueles que já fazem parte do cânone, a acomodar outros com o beneplácito da maturidade; nesse caso, há também de se pensar que se está a lidar com um constructo e não um conceito, vez que é a linguagem o instrumento verdadeiramente caracterizador, talvez sem o inteiro sucesso pretendido, do objeto artístico/ literário. Dialogar com o passado, escrutinar o presente e propor qualidades encontráveis em futuro próximo são atividades próprias do exercício de teorização. O problema se perfaz, em síntese, no contexto profissional da docência, vez que é a escola o mecanismo geralmente promulgador de valores e condições e articulador de verdades, mesmo que se observe um contexto mediático (editoras, festivais literários, resenhas e prêmios) a propor materiais como importantes, como se vê desde antes com a publicação de anúncios e avisos de disponibilidade de novas obras nas capas e contracapas ou nos saraus literários. É na escola, principalmente aquela universitária, que a teoria da literatura se mostra como essencial enquanto instrumentalizadora da manutenção do cânone local, regional e/ou nacional (quase sempre fruto de julgamento estético) ou ocidental

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como quer Harold Bloom (1995), e da potencialização de novas escritas e decisões de leitura. Hoje, o questionamento da teoria da literatura parece se encontrar com o próprio receio das humanidades sobre a perda de seu valor institucional, em última redução – sobre a possibilidade da perda de postos de trabalho. A “crise” do conhecimento se avoluma diante da própria interrogação acerca do valor da formação agregada pela pós-graduação. Mas antes de discutir essa condição bastante recente, particularmente importante nas universidades ocidentais que têm enfrentado problemas nas humanidades para manutenção de departamentos e para contratação de novos docentes, volto à provocação que, longe de ser nova, assume papel mais relevante ou mais angustiado com After Theory, de Terry Eagleton (2004). No primeiro capítulo dessa obra, “The Politics of Amnesia”, o renomado crítico e professor aponta que mudaram os tempos e as vontades, ou seja, o que antes era importante deixou de ser, perdeu seu gosto de novidade ou de apelo; o corpo e sua acomodação se tornam mais importantes que o trabalho que exerce ou a sua fome, transpondo para o centro da curva a vida diária, antes desprezada ou desconsiderada – a cultura popular, o gênero e o sexo se tornam os principais eixos de contemplação, tornando razão e verdade para o mesmo nível, pelo menos, da imaginação e do desejo. Mas se é importante essa atitude judicativa sobre o valor atual das correntes críticas, desde o estruturalismo, o marxismo e o pósestruturalismo, ela se dá diante da compreensão do papel das convenções e permissões ou do estabelecimento de verdades acordadas, mesmo que a tal pós-modernidade questione normas, unidades e consensos, divididas em tantas caixas quanto pode estar dividido o pensamento, como alerta Heidrun Kruger Olinto (2002). De certa maneira, tem havido um compromisso de reflexão sobre o papel da teoria tanto para o exercício da crítica quanto para a formação de quadros universitários. Nesse espaço escolar é que proponho, a partir de comentários sobre a presença da disciplina nos cursos de graduação, tanto em termos de conteúdo e de abordagem quanto em termos das fontes utilizadas, uma visitação ao profissional comum, aquele formado no contexto geral das faculdades de Letras no Brasil, sem as especiais condições dos centros de excelência, e a uma contextualização da pós-graduação brasileira que tem se pautado pela discussão do papel da teoria da literatura em sua formulação disciplinar.

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18.1 Dos formalismos

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Embora ainda haja muito do estudo formal do texto, as angústias recentes na teoria têm se mostrado mais afeitas à discussão ideológica. E essa preocupação deixa sobrestar mais uma tentativa de compromisso social que propriamente uma discussão do vigor estético ou capacidade de detecção de itens formais do texto literário. É como se importasse mais a defesa de ideias sobre a inserção ou a participação social que o enfrentamento do texto como artefato, concentrada a leitura no uso de seu texto como demonstração de exclusões, silêncios e omissões, em que o particular ou a minoria se fazem prevalentes a recuperar ou redimir um longo e tortuoso passado. Obviamente, essa é uma circunstância dos últimos trinta anos, como caudal da herança da década de 1960 e da primeira metade da década de 1970, momento de intensa produção intelectual das humanidades, a par de inúmeras atitudes e episódios de conquista de visibilidade e de empoderamento de etnias, gêneros, colônias, estabelecendo forças talvez mais evidentes e eficazes por sua capilaridade que aquelas da Revolução Vermelha de 1917. Enquanto momento de rebeldia acadêmica, há de se colocá-lo em contraste com o pós-guerra de 1945, momento em que surge uma postura de tratamento geral do mundo pelo filme, pela moda, pelo marketing, pela propaganda, a sinalizar uma espécie de ubiquidade do bem-estar, em essência uma tentativa de aniquilação de fronteiras nacionais ou de particularidades locais pela totalização ou globalização do consumo. Em provável contrapartida, é possível apontar o surgimento de um medo da sociedade controladora em obras como Nighteen Eighty Four de George Orwell (1949) e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury (1953). As revoltas e protestos libertários da década de 1960 deram vozes a individualidades ou pequenas coletividades, antes apagadas; essa voga de uma esquerda política se viu diante de parte da sociedade de consumo que, por razões de mercado, precisava evidenciar diferenças e nichos comerciais, como produtos de beleza para afro-americanos, a grade comercial da televisão a observar faixas etárias e/ou horários de trabalho e ócio, ou a imensa indústria da sexualidade, com várias de suas nuanças expostas nos Relatórios Kinsey e Hite, cuja maior ferramenta talvez tenha sido o videocassete e os videoclubes, tirando a liberdade individual (alguns diriam, a perversidade)

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do espaço público do cinema pornográfico, localizado em áreas de maior criminalidade e/ou maior degradação urbana, e levando-a para o recôndito das casas. Para observar esse contexto conflituoso, deve-se considerar de um lado o particular, o local, o individual ou a pequena coletividade, que pode ser representativa de várias outras pequenas coletividades, como se viu nos estudos realizados pela Escola dos Anais, e de outro a presunção de totalidade ou de universalidade, como se viu na transposição de modelos econômicos de ponto de venda (em especial, no contraste entre Ocidente e Oriente, ou entre Terceiro e Primeiro Mundos). Em síntese, estamos diante do conflito entre global e local, ressalvada a posição de onde se diz que algo é global. Assim, parece ser apropriado perceber que os estudos literários também percorreram um caminho que vai de uma agenda totalizante ou de uma ocidentalidade, cujos valores precisam ou devem ser aceitos por todos como herança palatável, como anota Harold Bloom (1985), para outra cada vez mais singular ou “respeitadora” das diferenças, como propõem os Estudos Culturais. Em percurso histórico, talvez uma das últimas torres a serem derrubadas, o ensino de literatura manteve-se totalizante por largo tempo, na qualidade de estudo e prática da teoria da literatura no ensino superior, como treinamento de identificação de estruturas narrativas ou de qualificação de poemas por métrica, rima e estrofação, a par da estilística. Em verdade, essa condição se deu perante a estrutura curricular proposta e aprovada pelo Conselho Federal de Educação em 1962, a partir do Parecer nº 283 de Valnir Chagas. O currículo mínimo era formado por oito matérias, sendo três optativas, escolhidas em uma lista de oito matérias, e cinco obrigatórias (Língua Portuguesa, Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Língua Latina e Linguística). A disciplina de Teoria da Literatura estava listada junto com Cultura Brasileira, Língua Estrangeira e Literatura Correspondente, Literatura Latina, Filologia Românica, Língua Grega e Literatura Grega. A partir de 1969, sobreveio a exigência de disciplinas de formação pedagógica. Essa circunstância foi motivo de algumas notórias discussões, por razões aparentemente patrióticas, acerca da “desnecessidade” de estudo obrigatório da Literatura Portuguesa; é interessante anotar que essa pendenga continua em alguns debates sobre as qualidades do português brasileiro e daquele denominado erroneamente como continental. Nesse pormenor, há de se observar um conservadorismo nas obrigatoriedades

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que ainda hoje persistem na grade curricular dos cursos de Letras, muito mais como forma de garantia de lustro a determinadas áreas ou subáreas, raramente permitida aos alunos a escolha de disciplinas optativas pelas próprias condições da universidade que se pretende formadora de turmas coesas (até a Plataforma Sucupira implementou o termo “turma” para ciclos de entrada na pós-graduação stricto sensu). No contraste, em Portugal, não tenho notícia da Literatura Brasileira como matéria obrigatória; na grade curricular de Letras no Brasil, é obrigatório cursar a matéria de Literatura Portuguesa em licenciaturas de língua portuguesa, ainda que em algumas escolas haja a disciplina “Literatura Luso-brasileira” como maneira de dar ao componente literário alguma presença em cursos de licenciatura dupla, voltados em maior parte para o ensino de Língua Portuguesa e de Língua Estrangeira. Um bom retrato histórico da disciplina de Teoria da Literatura no Brasil até os anos 1990, inclusive com uma eventual confusão com a Literatura Comparada, foi realizado por Sandra Nitrini (1994) em artigo intitulado “Teoria Literária e Literatura Comparada”, publicado na revista Estudos avançados em volume comemorativo dos sessenta anos da Universidade de São Paulo. A experiência uspiana é sem dúvida importante, principalmente por observar os caminhos didáticos realizados e o surgimento de núcleos de interesse de pesquisa na área; o material recolhido por Nitrini enfatiza sobremaneira o viés comparatista e a formação pós-graduada. Nesse sentido e em contraponto, retomo aqui a minha experiência enquanto aluno de graduação de curso noturno em faculdade privada, formado em licenciatura dupla de março de 1976 a dezembro de 1978, bem antes da extinção da obrigatoriedade de currículos mínimos decorrente da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996 e no auge da convivência com estudos estruturalistas e formalistas. Aliás, em ponderada compilação sobre os estudos literários, Roberto Acízelo de Souza aponta que é na década de 1970 que a Teoria da Literatura encontra o prenúncio de maior grau de importância: [...] se nos anos de 1960 ainda não estava muito claro o papel que poderia ser concedido nos cursos de letras à recém-introduzida teoria da literatura, considerando que a história literária nacional parecia sozinha dar conta do recado, nas décadas de 1970 e 1980 já não se podia mais conceber a formação literária sem aquela disciplina. (SOUZA, 2011, p. 35).

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Na época, estavam disponíveis1 poucas obras focadas essencialmente na teoria da literatura, ainda que importantes hoje, especialmente para as disciplinas iniciais dos cursos de Letras. Teoria da Literatura, de Antonio Soares Amora, foi uma das primeiras obras a que tive acesso como graduando, publicada inicialmente em 1944, com algumas reedições e reescritas desde então, depois transformada em Introdução à Teoria da Literatura. Era obra usada em muitos cursos de Letras, como atesta o programa de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) até o primeiro semestre de 1983;2 este texto continua a ser usado como basilar em algumas faculdades em oferta recente da disciplina de Introdução à Teoria da Literatura como se pode verificar em mecanismos de busca como o Google ou Yahoo. Amora propunha uma ênfase no estudo dos fatos literários (autor, obra e público, com especial interesse sobre a vida literária), em consonância com a proposição feita por Antonio Candido sobre o sistema literário, a preparar o estudo analítico-críticohistoriográfico da literatura. Os textos clássicos, entretanto, eram Teoria da Literatura de René Wellek e Austin Warren (publicado em Portugal em 1962) e o temível Teoria da literatura: formalistas russos, de Eikhenbaum e outros, publicado pela editora Globo de Porto Alegre em 1973. Aliás, para essa distribuição do pensamento literário nas faculdades de Letras, anoto em ordem talvez bastante subjetiva as seguintes editoras: Globo, Perspectiva, Tempo Brasileiro, Vozes, Duas Cidades, Liceu e Cultrix. A casa José Olympio reunia mais a produção de romances brasileiros, depois surgindo nessa área editorial com maior vigor a Ática e sua vocação escolar. Outros títulos importantes eram o “calhamaço” Teoria da Literatura (1968), de Vitor Manuel de Aguiar e Silva (que a reescreve em 1981, quando de sua estada na Indiana University em Bloomington), e os tratados mais específicos sobre narrativa e lírica: Aspectos do romance de E. M. Forster, Teoria da forma literária de Kenneth Burke, As Estruturas Narrativas de Tzevetan Todorov (todos de 1969), Conceitos fundamentais da poética de Emil Staiger (1972) e Estrutura da lírica moderna da metade do século XIX a meados do século XX de Hugo Friedrich (1978). Menciono também a obra de Wolfgang Kayser (1948), Fundamentos da Interpretação e da Análise

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Nota bene: as obras são listadas em conformidade com suas edições em língua portuguesa.

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literária, que foi recentemente revisitada por Antonio García Berrio (19981999). Nesse momento, quando ainda se lida muito com o New Criticism enquanto novidade aplicada à sala de aula e que a crítica impressionista dos jornais é cada dia menos importante, vez que é substituída paulatinamente por uma crítica literária universitária, começam a surgir os textos que apresentam o estruturalismo francês ou já como apropriação do método. Na década de 1960, surgem os Elementos de Semiologia de Roland Barthes (1964); em 1971 se publica a Análise Estrutural da Narrativa que apresenta ao país o conjunto de pensadores ainda imensamente importantes (Barthes, Greimas, Bremond, Eco, Gritti, Morin, Metz, Genette e Todorov); logo a seguir, em 1973, Affonso Romano de Sant’Anna publica sua Análise Estrutural de Romances Brasileiros, seguindo muito do que foi sua tese apresentada à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRIO) no mesmo ano. Mas, para os estudantes ainda pouco familiarizados com essa nova corrente crítica, leitores contumazes das duas histórias literárias brasileiras mais recentes, Alfredo Bosi e Afrânio Coutinho, e daquela portuguesa escrita por António José Saraiva e Óscar Lopes, havia alguns livros que buscavam elucidar o tratamento das obras literárias em maior detalhe e com certo viés teórico: o conjunto de antologias da literatura brasileira e da literatura portuguesa (Presença da literatura portuguesa e Presença da literatura brasileira), editado pela DIFEL, que chamávamos só de “Presença”, os dois manuais didáticos escritos por Massaud Moisés (o Guia Prático de Análise Literária, depois mudado para Análise Literária, e A Criação Literária), e Estilos de Época na Literatura de Domício Proença Filho, que era em boa parte aplicado ao seu manual do ensino secundário (Português e Literatura), ambos publicados pela Liceu. Uma anotação de ordem estruturante em termos pedagógicos se faz necessária. Os cursos de Letras continuam a usar as antologias da DIFEL como textos basilares da maior parte das disciplinas de literatura portuguesa e de literatura brasileira, ou seja, cujos programas são geralmente organizados por estilos de época. Da mesma maneira, os manuais didáticos secundários mantêm tais divisões; na outra ponta, aquela dos estudos acadêmicos de alto nível, na coleção Stylus da Perspectiva, vários são os títulos fundados exatamente nos estilos de época: O Modernismo, Maneirismo, O Romantismo, Do Rococó ao Cubismo, O Simbolismo,

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New Criticism [...] has left a lasting imprint on the way we read and write about literature. Some of its most important concepts concerning the nature and importance of textual evidence – the use of concrete, specific examples from the text itself to validate our interpretations – have been incorporated into the way most literary critics today, regardless of their theoretical persuasion, support their readings of literature. In fact, [...] this practice, which the New Critics introduced to America and called “close reading,” has been a standard method of high school and college instruction in literary studies for the past several decades. (TYSON, 2006, p. 135, grifo do autor). 3

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Ver Proença Filho (1988).

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O Grotesco, Renascença e Barroco, Estudos sobre o Barroco, O Classicismo, Barroco – Teoria e Análise, O Expressionismo, O Pós-modernismo, O Surrealismo.3 Em essência, a grade curricular dos estudos literários na graduação (e por extensão na escola secundária) tem sido fundada no estudo das qualidades formais do texto (imagética e simbologia, narrador, fábula, trama, personagens, figuras de linguagem, funções, ritmos, rimas, estrofes etc) e das suas qualidades estilísticas de época e de autor. Não é outro caminho senão aquele que se vê em coleções destinadas aos alunos dos cursos de Letras, como a série Princípios da Ática para os “problemas” teóricos, ou a Nossos Clássicos da Agir para a leitura inicial de escritores brasileiros e portugueses, ou as obras Na sala de aula ou O estudo analítico do poema de Antonio Candido, sempre muito recomendados, mesmo que tenham sua origem em aulas ministradas na década de 1960. Mesmo a história de estilos de época, quando chega ao termo pós-modernismo, escapa pela tangência cronológica.4 Interessantemente, parece que no ensino universitário dificilmente será deixada de lado a técnica de análise formal do texto literário, quer se use do “exame minucioso” do texto (close reading), conforme proposto por Ivan Teixeira em 1998 (outras possibilidades usadas pela crítica seriam leitura cerrada ou leitura minuciosa), quer na confluência do que foi trazido na década de 1950 da França ao Brasil como explication de texte. Essa mesma circunstância de uso da contribuição do New Criticism ocorre nas universidades e no ensino secundário dos Estados Unidos, como anota Lois Tyson na reedição recente de sua compilação sobre as correntes críticas:

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A nova crítica [...] marcou profundamente a maneira como lemos e escrevemos sobre a literatura. Alguns de seus conceitos mais importantes relativos à natureza e à importância da evidência textual – o uso de exemplos concretos e específicos do próprio texto a validar nossas interpretações – foram incorporados à maneira que os críticos atuais em sua maioria, a despeito de suas posições teóricas, constroem suas leituras literárias. De fato, [...] essa prática, que os novos críticos introduziram nos Estados Unidos e chamaram de microanálise, tem sido um método-padrão da escola secundária e universitária nos estudos literários nas últimas décadas. (TYSON, 2006, p. 135, grifo do autor, tradução nossa).

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Não é de outra sorte o agradável texto de Letícia Malard, ao se lembrar do crítico Lêdo Ivo, quando esse poeta leu o poema “Água-forte” de Manuel Bandeira: “Lêdo Ivo, com certeza influenciado pela ‘explicação de textos’ vigente nas universidades francesas, desmonta e remonta o pequeno e misterioso poema de Manuel Bandeira” (MALARD, 2007, p. 122, grifo do autor). A título de coda, retomo a ideia do formalismo enquanto ferramental de enfrentamento do texto que parece ser difícil de recusar, por mais imbuído que esteja o crítico de uma interpretação libertária do texto. Quero dizer com isso que a escola continua a tratar da matéria literária, pelo menos até a graduação, como um gabarito de normas técnicas a evidenciar uma cristalização do passado enquanto ente canônico. As diversas abordagens imanentes permanecem interessantes pela facilitação do exercício de tratamento do texto, ainda que hoje poucos alunos de Letras consigam estar conscientes de diferenças entre momentos diferentes de um mesmo gênero ou percebam alusões míticas ou literárias, vez que lhes falta por um lado uma leitura mais variada e por outro a noção de que existe tradição mesmo na produção nova. Em outro viés, a exegese textual sem contextualização ideológica permite ao aluno compreender a potencialidade de construção de significados no texto literário.

18.2 Das correntes e das margens Se o aspecto formal abre ao leitor comum, ou como prefiro o leitor letrado, a possibilidade de compreender a lógica textual (naquilo que

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Derrida apontava talvez com seu il n’y a pas de hors-texte, ou seja, é o texto que contém tudo ou não é possível o não texto, e na existência do texto na leitura e consequente morte do autor, enquanto baliza de interpretação, como propunha Barthes), não se pode esquecer que é no conjunto das circunstâncias de produção que o texto se faz texto. Quero dizer com isso que a construção do texto, que seja único, firme e inteiro, se dá pelo ponto de partida de sua criação, quando inúmeras condições e percepções se amoldam no objeto. Da mesma forma, na sua construção enquanto leitura, o texto se perfaz pelos vários instantes de outras leituras, textos e relações culturais. Nesse aspecto, creio que talvez seja um caminho, particularmente no momento em que se diz ou se defende haver uma crise profissional e cultural, pensar que há contribuições diversas para que se construa, se desconstrua, se leia e se faça o texto, que não existe sem algo que o contenha; em uma lembrança de Guimarães Rosa, em “A terceira margem do rio”: rio abaixo, rio afora, rio a dentro – o rio. Ou naquilo que se depreende da leitura de Eagleton, que não há texto sem contexto histórico-social. Há, creio, em muitos docentes de literatura uma crise interna, profissional e pessoal, diante do texto, pois imbuídos dos acréscimos ideológicos, por vezes tratados como de maior importância em relação à obra literária, suas interpretações fazem valer menos a obra como experiência e muito mais como prova da validade de suas interrogações e afirmações ideológicas. Desde o estruturalismo, várias correntes se fizeram presentes enquanto perspectivas teóricas a balizar a crítica literária universitária, ainda que originárias de outros campos de estudo; por seu lado, raras vezes a história literária não tem seguido o seu rumo nacionalista, aqui e ali há tentativas (nem sempre bem-sucedidas) de uma história de gêneros literários, particularmente o conto e o romance, ou de temas como o riso ou o grotesco. Enquanto percurso pessoal, ainda na graduação tomei ciência de alguns importantes textos como a Teoria do romance, de György Lukács, a Introdução à literatura fantástica, de Tzevetan Todorov, e a coleção Os Pensadores com material de Adorno, Benjamin, Habermas e Horkeheimer, a par de leituras de ouvido de Freud e Jung, em circunstância doméstica. No mestrado na Universidade de Brasília (UnB), vi-me diante da Sociologia da Literatura e de escolas do comparatismo alemão, francês e norte-americano, ainda muito marcadas pelo estudo da influência. Ao começar o doutorado

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na Indiana University em Bloomington, encontrei um ambiente carregado de preocupações feministas de um lado e dos estudos chicano-riqueños de outro, e tive a oportunidade de conhecer a produção de Leopold Senghor, Franz Fanon, Aimé Cesaire, Chinua Achebe, Cyprian Ekwensi e Ngũgĩ wa Thiong’o. A história literária nacional ainda era prevalente ou necessária para as novas nações africanas, mas o viés das discussões pós-colonialistas se fez maior. O forte, como avanço ou novidade, era a Semiótica, principalmente com Umberto Eco e Thomas Sebeok. Essa visão plúrima, creio, foi pouco eficaz em meus estudos, enquanto teoria e técnica defendidas com unhas e dentes, vez que havia tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo no que se convencionou chamar de pós-estruturalismo. Mais à frente, vim a conhecer a ecocrítica (ainda em inglês), a estética da recepção e os estudos empíricos de literatura, estes últimos em encontros da Internationale Gesellschaft für Empirische Literaturwissenschaft (IGEL) e na convivência com David Miall e Don Kuiken na University of Alberta (Canadá). No Brasil, nos anos 1980 começaram os esforços para aumentar a pós-graduação na sua capilaridade bem como para discutir seu papel de formação e de fomento, algo que ocorre com a fundação das associações mais importantes de nossa área: Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística – ANPOLL5 (1984, durante uma assembleia de representantes dos cursos de pós-graduação em Letras e Linguística) e Associação Brasileira de Literatura Comparada – ABRALIC6 (1986, durante o I Seminário Latino-americano de Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, ainda que a a ideia tenha ocorrido em encontro anterior a partir da presença de alguns comparatistas brasileiros no XI Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada em Paris). É nas atividades desses fóruns que se vai encontrar o conjunto maior de preocupações com o lugar da teoria, especialmente no contexto das reflexões sobre o próprio ato da interpretação a permitir o enfrentamento de descontinuidades, incongruências e indeterminações de forma e conteúdo. De certa maneira, pode-se dizer que essa abertura de significados corresponde à abertura das possibilidades de abordagem e, por consequência, da crise de identidade do profissional que 5

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trata do texto literário, perdido entre método protocolar e significado de seu próprio trabalho exegético. No caso da ANPOLL, há muito a ser pensado enquanto entidade que institucionalmente provoque caminhos de pesquisa, atendendo ao disposto em seu Estatuto, Art. 3o, incisos I e III,7 não só pela discussão continuada diante da avaliação da CAPES, mas também pela circunstância de que suas reuniões anuais servem muito mais para o contato dos programas de pósgraduação, enquanto coletivo, com as agências de fomento. É, entretanto, necessário reconhecer que a ANPOLL acolhe os Grupos de Trabalho (GT) que, no mínimo, se tornam o lócus das discussões sobre a teoria, a crítica e a história. Por outro lado, as atividades dos GT se apresentam muito mais como espaços de troca e afirmação de objetos de interesse. Explico – a reunião de pesquisadores alinhados pelo mesmo foco impulsiona, com certeza, a produção acadêmica transversalmente aos programas de pósgraduação, cujo resultado numérico alicerça o crescimento da área de Letras e Linguística, mesmo que continue a ser criticado como mero produtivismo científico; na maior parte, o que fazemos fica no nível da mútua aceitação e incentivo, sem o crivo mais severo da crítica ou da polêmica como se pode encontrar em periódicos estrangeiros. Não quero dizer que haja menor qualidade nessa produção feita nos GT; aliás, muito ao contrário, quero afirmar que essa convivência tem permitido a existência de mais espaços de visibilidade da produção individual alinhada a produções individuais de outras Intituições de Ensino Superior (IES) que se tornam, enquanto resultado, dossiês de periódicos ou livros, sem que lhes falte o necessário e salutar gabarito da qualidade acadêmica. Talvez fosse interessante que houvesse de alguma forma um diálogo mais crítico entre grupos ou entre diferentes pesquisadores, não como esgrima gratuita, mas aquele que faz caminhar o conhecimento da literatura. Em outro espaço, essa atividade crítica acontece, quando da avaliação de artigos submetidos a periódicos e na avaliação de obras nas editoras universitárias. Sempre há um porém – essa crítica fica limitada enquanto espaço de discussão por ser de circulação restrita, entre autores, pareceristas e comissões editoriais. Nessa mesma toada, as discussões teóricas parecem ter se tornado mais escassas ou falta melhor compreensão do comparatismo, ou pode-se

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dizer que tem havido um afastamento do texto literário em prol de uma discussão que se afirma como espaço de poder e de garantia de posto de trabalho. Em minha visão restrita, talvez equivocada, o barco dos estudos comparados está à deriva, com vários lemes a dizer que não sabemos para onde conduzir nossa viagem; explico – vinculações a outras áreas e a necessidade excessiva de suportes ideológicos, geralmente engajados em militância política, trouxeram pouco avanço à compreensão do texto literário e de sua função estética, tanto por conta da inobservância da capacidade expressiva da palavra quanto pela ausência da reflexão do homem diante de si mesmo, do outro e do mundo em que vive. Em longo e metódico texto de recolha, o professor Jan M. Ziolkowski (2007), do Departament of Comparative Literature da Harvard University, descreve a história dos estudos comparados de literatura desde 1816, marcando-a com uma qualidade essencial, aquela da busca de compreensão do outro. Depois de alguns vales e picos, a anotar as dificuldades da literatura comparada diante da globalização e dos variados suportes teóricos, inclusive os recentes orientalismo, pós-colonialismo e ecletismo, sua conclusão tem o tom positivo de que há muito espaço ainda para a literatura comparada, apesar da globalização, vez que ainda somos quem somos, caminhantes em busca de um abrigo, a ter como pano de fundo de onde viemos. Ziolkowski anota que o comparatismo tem se tornado mais indisciplinado do que interdisciplinar, faltando-lhe a defesa de algo que lhe seja próprio e particular; em outras palavras, o fato de emprestar métodos e visões de outras disciplinas deixou o comparatismo em um perfil, que desde sempre foi a sua qualidade: o estudo dos textos que consideramos importantes perante a expressividade da língua. Ou em sua expressão, a literatura comparada tem como foco o desenvolvimento de habilidades críticas e o conhecimento da cultura própria e daquela do outro, de maneira a permitir hoje um pouco mais do que comparações de nacionalismos e localismos, ou de um supranacionalismo, verdadeiramente um transnacionalismo. Os eventos da ABRALIC, por mais que se tenham firmes como espaço de interlocução e confiança, demonstram que a crise da literatura comparada em ambiente internacional também tem seus ecos no Brasil. Em artigo em que discute o comparatismo à brasileira e a contribuição de Antonio Candido, Marcos Rogério Cordeiro (UFMG) (2010) recupera,

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18.3 O sal da terra A lembrar a frase canônica de Stanley Fish (1980) sobre a presença ou não de um texto na sala de aula, dei como título maior a esse material uma pergunta bastante parecida (sob um ângulo genérico da relação entre estudantes e professores) – se há teoria da literatura na sala de aula. O questionamento reflete a crise da teoria da literatura ou, em verdade, das abordagens críticas com viés ideológico ou formalista, como resultante de exercícios de interpretação sem prática efetiva, ou seja, meros instantes de valorização da profissão, apesar de enorme peso sobre a sua continuidade ou, em outros termos, nas relações pedagógicas entre corpos docente e discente. É nítida e patente a insatisfação generalizada das humanidades, por enfrentarmos o produtivismo comparado decorrente do que se faz em outras áreas com índices de impacto e de experiências conflitantes acerca da publicação de livros, periódicos e anais. Muito do que se produz termina do mesmo jeito que começou – ou seja, com um a quatro leitores (o autor, por vezes um orientador, e dois pareceristas – quando muito, um

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em breve comentário, textos de Eduardo Coutinho, Eneida de Souza, Tânia Carvalhal e Wander Melo Miranda, o posicionamento de periferia dos estudos comparados no Brasil, ou de uma margem talvez pouco evidente. A substância maior, nesse passo do artigo, é a relação unívoca entre estrangeiros a matizar a compreensão brasileira, mas apontando a globalização como o instante alterador dessa subserviência, estabelecendo uma rua de mão dupla, substituindo o eixo irradiador por uma convivência de vozes que se fazem dialogais. Mas não é na produção acadêmica de pesquisadores que há a maior angústia – ela acontece em outro espaço, aquele do ensino, ou aquele da prática do treinamento de técnicas e habilidades na análise e interpretação do texto literário, que se dá na pósgraduação tanto em disciplinas quanto na relação orientador-orientando. O professor Eduardo Coutinho, em seu capítulo “’Teorías transculturadas’ o la migración de teorías en América Latina”, anota que é comum ver os trabalhos de dissertação e tese com duas divisões: uma com exposição da teoria e a segunda com aplicação a um corpus, geralmente teoria construída em outro solo e cultura (COUTINHO, 2003, p. 128).

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outro para desempate). A ansiedade acerca da teoria tornou-se um bordão que acompanha as avaliações de artigos em periódicos, quando alguns pareceristas se preocupam muito mais com a ausência de uma teoria explicitada, de um brado pós-colonialista ou de um grito pela diferença, do que observar o tema de um dossiê ou a parte da revista em que talvez será publicado o artigo. Outra faceta desse excesso teórico tem sido a defesa de uma qualidade local, mesmo que se reconheçam as dificuldades da importação de teorias, como se percebe nos textos “Traveling Theory” (1983) e em “Traveling Theory Reconsidered” (1994) de Edward Said. Se o termo grego theorein significava ir para algum lugar e observar, aquele que fala precisa da audiência do seu lugar de origem; a aparente neutralidade teórica se dilui pela granulação trazida pelo teórico ou por aquele viajante. Por exemplo, o texto de Pero Vaz de Caminha diz muito mais sobre si e sobre a visão do homem europeu do que da terra que viu pela primeira vez. Por outro lado, no arsenal teórico bastante usado entre nós, percebese uma predileção pelo ensaísmo latino-americano como se bastasse a localidade como autorizante. É demais comum, em dissertações e teses, como carimbo da autenticidade local, para dar qualidade ao próprio texto a citação ou o pinçamento de frases genéricas o suficiente para caberem em qualquer contexto retiradas de Antonio Candido, Silviano Santiago, Ángel Rama, Octavio Paz, Fernando Ortiz ou mesmo Italo Calvino (cubano de nascimento mas italiano em termos de produção e pertença cultural, por via de consequência, “latino”). Em outros termos, a produção acadêmica (especialmente aquela do noviciado de dissertações e teses) parece necessitar da teoria ou daquilo que pensa que é teoria; mas ao fazer uso do que se convencionou chamar de suporte teórico, tenta também caracterizar um viés local (ou latino-americano), como se esse reconhecimento nos desse valor por si só. Talvez seja por influência da tradição das arguições e do contexto profissional dos arguidores, talvez por um certo esquerdismo acadêmico, que busca se manter libertário como se evidencia muito na leitura de Terry Eagleton ao fazer a recolha das políticas da amnésia; no caso, uma reação forte ao produto euro-norte-americano marcaria o passo de uma independência cultural. Esse afastamento se torna pouco eficaz, vez que não é possível falar sem ser de algum lugar ou diante de outra tradição, a pretensa neutralidade

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Ver D’Avila Neto; Pires (1998).

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Ver Albersmeier (1992). Ver também Rajewsky (2005).

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Disponível em: .

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pelo afastamento já é em si, e precisa sê-lo, o reconhecimento de outras vozes pelo menos cronologicamente anteriores ou díspares. Entretanto, seria importante um avanço na crise da teoria, que se vê sem horizontes, pela enorme carga intelectual representada pelos anos 1970 e 1980. A questão do lugar da teoria é muito mais a problematização do outro olhar, pela caminhada ou navegação que precisa ser feita. É o que Eduardo Coutinho aponta ao dizer que já talvez seja hora de maior profundidade de uma teoria local, quer dizer, por exemplo, “de um multiculturalismo o de um feminismo que tuvieran em cuenta las diferencias del contexto latino-americano respecto al contexto europeo-norte-americano em que tales teorias surgieron y se desarollaron?” (COUTINHO, 2003, p. 132) / “de um multiculturalismo uo de um feminismo que tiveram em conta as diferenças do contexto latino-americano em respeito ao contexto europeunorte-americano em que tais teorias surgiram e se desenvolveram?” (COUTINHO, 2003, p. 132, tradução nossa)”. Por um lado, não há dúvida que a importação simples de material estrangeiro não servirá de nada, ou cairá em certos vazios ou impropriedades, mantendo uma subserviência que já não deveria existir. Lembro aqui, por exemplo, da palavra empoderamento, que usei aqui antes, vinda do inglês empowerment, que tem ocorrido demais nas áreas sociais a tratar da condição feminina (por extensão, poder-se-ia dizer até mesmo de etnias consideradas subalternas no mercado de trabalho), enquanto processo de “engajamento” – apropriação, autonomização e habilitação. A palavra empoderamento, já muito comum ao se consultar o Google Acadêmico (a referência mais antiga parece-me ser de 1998),8 não está registrada ainda no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. O termo autonomização por outro lado já está dicionarizado, mas tem encontrado menor guarida, enquanto apropriação conceitual teórica. Da mesma maneira, tem-se visto um embate terminológico sobre intermedialidade, cuja raiz conceitual é o intermedialität9 alemão (1992) encontrando par no intermedialité10 francês (1996), e intermidialidade, essa última direta da pronúncia inglesa de intermediality com o nosso sufixo -dade, sem observação da tradição do latino medium-media. Os exemplos em tela demonstram, apesar de mesma

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fonte euro-norte-americana, uma leitura de prestígio maior da língua inglesa que da língua francesa (no caso de autonomização) ou da língua alemã (no caso de intermedialidade). Parece que a teoria se tornou algo que precisa ser importado ou usado sem qualquer discussão terminológica ou sem uma problematização de sentido. Por outro, deve-se pensar se essa circunstância de subserviência, em especial ao mundo anglófono, a par de uma acomodação ideológica do local, sem que se faça verdadeiramente uma reflexão sobre contextos de produção e recepção, tanto de onde se falou quanto de onde se fala, tornam o ensino um emaranhado de nós sem que se avance na construção do conhecimento e na mais elaborada percepção da obra literária. Nesse ângulo, parece-me salutar lembrar do Sermão da Montanha em Mateus 5:13 (Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens), e da releitura do sermão na canção dos Rolling Stones, ‘Salt of the Earth’, em particular o seguinte quarteto: Say a prayer for the common foot soldier Spare a thought for his back breaking work Say a prayer for his wife and his children Who burn the fires and who still till the earth

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[Ora pelo soldado raso Condói-te de seu doloroso ofício Ora por sua mulher e seus filhos Que acendem as fogueiras e ficam lá até apagar]

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Há um crescimento vertiginoso do número de mestres e doutores e um contentamento descontente nos gabaritos de análise de currículos Lattes em editais de fomento e de concessão de bolsas de iniciação científica. Alunos e egressos se perguntam até onde vai sua produção tão difícil em termos de cumprimento de prazos e sua utilidade, vez que há tanta gente para pouco sal – ou poucas vagas de concurso público. Essa lista de feridas e de andares solitários entre as gentes talvez seja a origem dessa crise, vez que é o ponto fulcral da profissão – o seu valor e a sua identidade. É como se precisássemos produzir um sal insípido e, por ele, nos fizéssemos importantes, a justificar nossa própria existência. Vou recorrer a outras referências bíblicas. A palavra de Deus chega por Moisés aos homens escrita em pedra (Êxodo 31:18), perene e

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irretocável; em Jeremias (31:33), Deus diz: “Porei a minha lei no seu interior, e a escreverei no seu coração”; e São Paulo (2 Coríntios 3:3) afirma: “Vocês demonstram que são uma carta de Cristo, resultado do nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de corações humanos”. Esses três momentos caracterizam a dureza da palavra de Deus, mas que precisa ser percebida no coração dos homens. Howard Needler (1982) usa de algo bastante similar ao explicar a noção de verdade escrita se oposta à verdade oral, a partir de um exemplo da cultura ídiche. Se é dito a alguém que deve fazer algo, a pergunta é onde está a escrita acerca daquela obrigação, ainda que haja também a noção de que há obrigação se e somente se for de origem sagrada. Por contraponto, na cultura hassídica, na comunicação com Deus, não importa a atenção ao detalhe organizado pela memória escrita, quer pelo ritual, quer pela exatidão das palavras; o que vale é a vontade de falar com Deus. A interpretação de Needler sobre os fatos aparentemente conflitantes é esclarecedora: a escrita parece ser a forma a garantir a continuidade da fala de Deus para os homens, conquanto a comunicação oral garante a fala dos homens para com Deus. Talvez aqui resida o grande problema da teoria – ser a voz que se faz autoridade a ser seguida, tal como Moisés a receber a voz de Deus, ainda que a voz divina não seja a voz dos homens, nesse contexto. A experiência do leitor com a obra literária é, em símile, a possibilidade de falar com Deus, ou experimentar a presença do seu significado, aquilo que Needler chama de excelência literária. Na interpretação que faço desse conjunto de fatos e circunstâncias, posso dizer que a experiência que temos imposto aos futuros exegetas do texto, nossos alunos, é a tentativa de estabelecer verdades que desejamos sejam as mais verdadeiras e capazes. A experiência demonstra que nossa voz teórica é tudo, menos perene e irretocável, mesmo porque a teoria fala de circunstâncias talvez diversas daquelas em que se está ou se percebe. Da mesma maneira, a interação (do leitor, nós mesmos e nossos alunos) se dá em outro nível, aquele que tem sido tentado conceituar como experiência estética. Essa relação com o texto é a revelação de quem somos e do que lemos, na qual talvez não caibam ideologias ou formalismos. Assim, nas dores que não sentimos e nos ferimentos que nos comovem sem doer, residem as maiores angústias, vez que lamentamos continuadamente acerca da necessidade da leitura e do engrandecimento pela educação, como se por

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mais que subamos a montanha, a pedra volte sempre ao sopé sem ter feito qualquer marca. Mais sério ainda é que, sem dúvida, há leituras e leitores, muitos deles letrados, que se sentem afastados do que temos considerado importante, quer da qualidade formal de uma engenharia de palavras de Cabral de Melo Neto, quer da intensidade filosófica de Mia Couto ou da densidade psicológico-histórica de Saramago. E, no entanto, eles leem, leem com a mão cheia, comentam, dizem e falam sobre literatura, mas talvez inibidos diante do instrumental teórico que lhes é dito ser tão importante, como se lhes faltassem credenciais a fazer valer sua opinião/interpretação. O leitor comum aparece longe de nós, a usar de outro método, a encontrar mais o seu mundo, mais o soldado raso, mais a família simples, aquela que não pensa nas ideologias do mundo, cujas vestes não são o resultado do formalismo ditado pela moda do momento. Esse leitor nos lembra um pouco do que gostaríamos de ser, daquilo que gostamos de ler enquanto pessoas comuns, repletos de medos e de sonhos. Nós nos preocupamos em demasia com a teoria, sua crise e seu impacto no ensino, com nossas verdades fragmentadas e fragmentárias, a buscar uma visão totalizante, pelo ritual do método e da reflexão enfatuada em alguns momentos. Eles, tão estranhos ao que vemos, abandonam o treinamento que lhes demos, pois ele e ela, leitores, veem tão simplesmente com afeição aquilo que nos incomoda a mente: ao ler, leem tão completamente que chegam a fingir que é dor a dor que deveras sentem.

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Referências

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A Teoria da Literatura nos bancos escolares 1

Regina Zilberman

19.1 A Teoria da Literatura no ensino médio Em 2013, o trecho a seguir, extraído de A hora da estrela, de Clarice Lispector (1920-1977), foi objeto de uma das questões da prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP):2 Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a préhistória da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. [...] Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes 1

Versão preliminar deste capítulo foi apresentada, na qualidade de conferência de abertura, no XIV Encontro da ABRALIC, realizado entre 24 e 26 de setembro de 2014, na Universidade Federal do Pará.

2

As questões foram extraídas da “Prova de redação e de linguagens, códigos e suas tecnologias”. Disponível em: . Acesso em: 6 set. 2014.

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de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. [...] Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes. Como eu irei dizer agora, esta história será o resultado de uma visão gradual – há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês. É visão da iminência de. De quê? Quem sabe se mais tarde saberei. Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. Só não inicio pelo fim que justificaria o começo – como a morte parece dizer sobre a vida – porque preciso registrar os fatos antecedentes. LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 (fragmento).

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Ao trecho sucedem-se a formulação da questão e as alternativas de resposta, dentre as quais a correta está aqui assinalada em negrito:

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A elaboração de uma voz narrativa peculiar acompanha a trajetória literária de Clarice Lispector, culminada com a obra A hora da estrela, de 1977, ano da morte da escritora. Nesse fragmento, nota-se essa peculiaridade porque o narrador A – observa os acontecimentos que narra sob uma ótica distante, sendo indiferente aos fatos e às personagens. B – relata a história sem ter tido a preocupação de investigar os motivos que levaram aos eventos que a compõem. C – revela-se um sujeito que reflete sobre questões existenciais e sobre a construção do discurso. D – admite a dificuldade de escrever uma história em razão da complexidade para escolher as palavras exatas. E – propõe-se a discutir questões de natureza filosófica e metafísica, incomuns na narrativa de ficção.

Termos empregados na formulação da questão e nas respostas alternativas – “voz narrativa”, “narrador”, “ótica distante”, “construção do discurso” – pertencem ao jargão corrente da Teoria da Literatura em voga desde meados da segunda metade do século XX. É o que também se constata na questão 133, suscitada por um poema de Nuno Júdice (n. 1949):

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A premissa da pergunta é a afirmação de que “o texto traz em relevo as funções metalinguística e poética”. Cabe ao candidato escolher uma das seguintes alternativas para comprovar o suposto “caráter metalinguístico” do poema (em negrito a resposta correta): A – discussão da dificuldade de se fazer arte inovadora no mundo contemporâneo. B – defesa do movimento artístico da pós-modernidade, típico do século XX. C – abordagem de temas do cotidiano, em que a arte se volta para assuntos rotineiros. D – tematização do fazer artístico, pela discussão do ato de construção da própria obra. E – valorização do efeito de estranhamento causado no público, o que faz a obra ser reconhecida.

A proposição e as alternativas recorrem igualmente à terminologia em uso na Teoria da Literatura, a saber: “funções metalinguística e poética”, “caráter metalinguístico”, “pós-modernidade”, “efeito de estranhamento”.

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Lusofonia rapariga: s.f., fem. de rapaz: mulher nova; moça; menina; (Brasil), meretriz. Escrevo um poema sobre a rapariga que está sentada no café, em frente da chávena de café, enquanto alisa os cabelos com a mão. Mas não posso escrever este poema sobre essa rapariga porque, no brasil [sic], a palavra rapariga não quer dizer o que ela diz em portugal. Então, terei de escrever a mulher nova do café, a jovem do café, a menina do café, para que a reputação da pobre rapariga que alisa os cabelos com a mão, num café de lisboa, não fique estragada para sempre quando este poema atravessar o atlântico para desembarcar no rio de janeiro. E isto tudo sem pensar em áfrica, porque aí lá terei de escrever sobre a moça do café, para evitar o tom demasiado continental da rapariga, que é uma palavra que já me está a pôr com dores de cabeça até porque, no fundo, a única coisa que eu queria era escrever um poema sobre a rapariga do café. A solução, então, é mudar de café, e limitarme a escrever um poema sobre aquele café onde nenhuma rapariga se pode sentar à mesa porque só servem café ao balcão. JÚDICE, N. Matéria do Poema. Lisboa: D. Quixote, 2008.

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Tal incursão de concepções emanadas da Teoria da Literatura nas provas dirigidas a estudantes que concluem o ensino médio e almejam alcançar a universidade não é inédita, mas também não se mostrava frequente. Uma questão de 2011 sinaliza um possível intercâmbio com o conhecimento teórico, a ser mobilizado para responder acertamente a proposta de interpretação de um poema de Gilka Machado (1893-1980) (em negrito a resposta correta):

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Lépida e leve Língua do meu Amor velosa e doce, que me convence de que sou frase. que me contornas, que me vestes quase, como se o corpo meu de ti vindo me fosse. Língua que me cativas, que me enleias os surtos de ave estranha. em linhas longas de invisíveis teias, de que és, há tanto, habilidosa aranha... [...] Amo-te as sugestões gloriosas e funestas, amo-te como todas as mulheres te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor, pela carne de som que à ideia emprestas e pelas frases mudas que proferes nos silêncios de Amor!... MACHADO, G. In: MORICONI, I. (Org.). Os cem melhores poemas do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000 (fragmento)

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A poesia de Gilka Machado identifica-se com as concepções artísticas simbolistas. Entretanto, o texto selecionado incorpora referências temáticas e formais modernistas, já que, nele, a poeta A – procura desconstruir a visão metafórica do amor e abandona o cuidado formal. B – concebe a mulher como um ser sem linguagem e questiona o poder da palavra. C – questiona o trabalho intelectual da mulher e antecipa a construção do verso livre. D – propõe um modelo novo de erotização na lírica amorosa e propõe a simplificação verbal.

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E – explora a construção da essência feminina, a partir da polissemia de “língua”, e inova o léxico.3

Há diferentes tipos de intertextualidade. A intertextualidade pode ter uma base temática, quando os textos apresentam em comum um tema, uma determinada ideologia ou visão de mundo: por exemplo, a que ocorre entre a tragédia grega Medeia, de Eurípedes, e a peça teatral Gota d’água, de Chico Buarque, uma versão moderna desse texto. Também pode ter uma base estilística, quando um texto apresenta certos procedimentos muito conhecidos em outro texto, como, por exemplo, o emprego de palavras, expressões ou estruturas sintáticas similares. (CEREJA; COCHAR, 2013, p. 44).

Para comprovar a intertextualidade estilística, os autores recorrem à comparação entre a estrofe inicial de Os Lusíadas, de Luís de Camões (1524?1580?), e um poema de José Roberto Torero (n. 1963), em que o cronista saúda os jogadores do Santos Futebol Clube, após um match em Porto Alegre. Mais adiante, ressaltam que a intertextualidade pode se manifestar em níveis 3

Questão extraída do Caderno Azul 2o dia, p. 13, 2011. Disponível em: . Acesso em: 19 nov. 2014.

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Nessa questão, o tópico principal diz respeito a um problema de historiografia literária: é Gilka Machado simbolista ou modernista? Para eleger a alternativa válida, porém, cabe lidar com um saber teórico: as definições de “visão metafórica” e “polissemia”, por exemplo. Não apenas no Enem identifica-se a interlocução dos programas do ensino médio com temas e teses que fecundam a Teoria da Literatura das últimas décadas. Se examinamos livros didáticos destinados àquele nível, localizaremos também a apropriação do vocabulário e das preocupações que norteiam os estudos literários nas últimas décadas. É o que exemplifica Gramática reflexiva, de William Cereja e Thereza Cochar (2013), em que se encontra um capítulo dedicado à “Intertextualidade, interdiscursividade e paródia”. A intertextualidade, pedra de toque dos estudos pós-estruturalistas, é definida brevemente como “relação entre dois textos caracterizada por um citar o outro” (CEREJA; COCHAR, 2013, p. 44). Em seguida, os autores discriminam os tipos de intertextualidade:

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“mais sofisticados, em que a relação entre o texto e o intertexto não é apenas a da mera citação” (CEREJA; COCHAR, 2013, p. 44). Neste caso, o cotejo dá-se entre dois poemas intitulados “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu (18391860) e Oswald de Andrade (1890-1954), respectivamente. Após destacar o trabalho de crítica ao idealismo casimiriano por Oswald – “pois considera irreal a visão que Casimiro tem da infância” –, William Cereja e Thereza Cochar concluem, à guisa de síntese sobre o processo intertextual utilizado nos versos do escritor paulista:

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Nesse tipo de relação estabelecida entre os textos, não há apenas intertextualidade. Há uma relação mais abrangente, que envolve dois discursos poéticos distintos, duas formas diferentes de ver a infância [...]. A esse tipo de relação entre discursos, quando se evidenciam os elementos de situação de produção – quem fez, para que, em que momento histórico, com que finalidade, etc. –, chamamos interdiscursividade. (CEREJA; COCHAR, 2013, p. 45, grifo dos autores)

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Segue-se então a conceituação de “interdiscursividade”, definida como “relação entre dois discursos caracterizada por um citar o outro.” (CEREJA; COCHAR, 2013, p. 45). Depreende-se que a diferença entre intertextualidade e interdiscursividade decorre do fato de que, na primeira, a relação de citação dá-se entre textos, na segunda, entre discursos. Observese que não fica estabelecida, nesse ponto da argumentação, a distinção entre “texto” e “discurso”, sendo que, nos dois exemplos contrastivos oferecidos (cotejo entre Camões e Torero, em um primeiro momento, e entre Casimiro e Oswald, em um segundo), os autores lidam com poemas, três deles canônicos. Por sua vez, a mesma relação intertextual estabelecida entre as duas versões de “Meus oito anos” é utilizada para explicar o que é a paródia: O tipo de relação existente entre os textos de Casimiro de Abreu e Oswald de Andrade é também chamado de paródia. (CEREJA; COCHAR, 2013, p. 45, negrito dos autores; sublinhado nosso).

Logo, Paródia é o tipo de relação intertextual em que um texto cita outro geralmente com o objetivo de fazer-lhe uma crítica ou inverter ou

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distorcer suas ideias. (CEREJA; COCHAR, 2013, p. 45, grifo dos autores).

19.2 “Literatura em perigo” Em 2007, Tzvetan Todorov (n. 1939) publicou o ensaio La littérature en péril (A literatura em perigo), que obteve rápida repercussão e várias traduções. Um ano antes, em 30 de novembro de 2006, Antoine Compagnon (n. 1950), na conferência ministrada no Collège de France, perguntou-se e ao público: La littérature, pourquoi faire?, exposição publicada em 2007 e traduzida no Brasil em 2009, com o título de Literatura para quê?. Em 2008, o escritor François Begaudeau (n. 1971) protagonizou o filme baseado em seu livro, Entre les murs, de 2006, dirigido por Laurent Cantet (n. 1961), situado em uma escola de periferia, destinada a jovens originários das camadas populares. Em 2009, a romancista Danièle Sallenave (n. 1940) lançou Nous, on n’aime pas lire, relatando a atividade desenvolvida durante um semestre letivo entre estudantes de Marselha, a maioria descendente de imigrantes originários

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A Teoria da Literatura não chegou às salas de aula do ensino médio por acaso ou por conta própria. É quando os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) passam a pautar a educação escolar brasileira, apoiando-se no que diz respeito ao ensino de língua e literatura nas concepções de discurso que remontam às teses de Mikhail Bakhtin (18951975) conforme a interpretação dada ao pensamento desse filósofo pelos adeptos da Análise do Discurso, que conceitos como intertextualidade e paródia começam a fazer parte do cotidiano do professor, ao lado dos quais se apresenta o glossário familiar do pós-estruturalismo, a exemplo dos antes mencionados “caráter metalinguístico” ou “efeito de estranhamento”. A confirmação dessa terminologia em prova recente do Enem sugere sua ampla penetração no campo da pedagogia da língua e da literatura. Fato similar, aparentemente, acontece do outro lado do Atlântico, e são renomados intelectuais franceses os primeiros a dar o alerta, procurando denunciar problemas de formação literária entre os estudantes dos liceus em sua pátria.

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da África, em especial das antigas colônias francesas, alcunhados beurs. Por último, em 2010, Vincent Jouve reintroduziu o problema sob a forma de pergunta, indagando: Por que estudar literatura?, livro traduzido para o português em 2012. A preocupação desses intelectuais e artistas coincide em alguns pontos: os jovens não gostam de ler; a escola é um espaço de conflito – cultural, étnico, etário, e não de harmonia e aprendizagem; a literatura está ameaçada de desaparecimento ou então requer justificativa, em sala de aula e na sociedade. Diante de tais constatações, Compagnon (2009, p. 20) lança a pergunta crucial: “Por que defender sua [da literatura] presença na escola?”. Após diagnosticar que “o espaço da literatura tornou-se mais escasso em nossa sociedade há uma geração”, sinaliza que uma dessas perdas dá-se no âmbito da escola, “onde os textos didáticos a corroem, ou já a devoraram” (COMPAGNON, 2009, p. 21), determinando a necessidade de explicar a necessidade da leitura tanto por parte dos letrados profissionais (professores, críticos e escritores) quanto por parte dos indivíduos não necessariamente vinculados ao campo intelectual: “Doravante a leitura deve ser justificada. Não somente a leitura corrente, do leitor, do homem de bem, mas também a leitura erudita, do letrado, do/da profissional” (COMPAGNON, 2009, p. 23). Jouve, por sua vez, denuncia “uma crise dos estudos literários”, que o leva a questionar a própria existência dos cursos de Letras: “de que serve o ensino das Letras? É preciso mantê-lo? Se sim, o que fazer nele?” (JOUVE, 2012, p. 9). As causas atribuídas aos problemas identificados podem diferir. Para Todorov (2009), os métodos de análise literária afugentam os estudantes. Para Begaudeau e Cantet, o autoritarismo institucional e os preconceitos em circulação tornam a escola detestável, provocando a rejeição do que ela transmite, bem como dos sujeitos que a dirigem e representam-na. Sallenave também acusa: ao sistema de ensino, incapaz de formar leitores proficientes, aos professores, desinteressados de seu trabalho e da leitura da literatura, e aos princípios liberais que deixam a decisão por estudar e interessar-se por livros quase que exclusivamente por conta do aluno. Várias são as razões que levam à identificação dos suspeitos. Mas não é difícil reconhecer um dado em comum: as manifestações não provêm dos docentes, nem dos discentes, mas de representantes do – digamos assim –

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19.3 A literatura e a escola Aos sumérios atribuem-se a invenção e a utilização da escrita, empregada sobretudo com fins patrimoniais, já que a ela competia o registro das propriedades e do comércio de bens. Mas coube também aos sumérios, conforme indica Itamar Even-Zohar (1999, p. 29, tradução nossa), “a instituição dos textos canônicos”, o que dependeu da seleção de “pessoas capazes de reproduzi-los” e da eleição de um espaço para o exercício daquela tarefa – a escola (ê-dubba). Talvez seja excessivo considerar que se deram simultaneamente a institucionalização da literatura – ou de textos considerados canônicos, porque serviam a propósitos religiosos – e o nascimento da escola. Mas

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sistema literário: dois escritores (François Begaudeau; Danièle Sallenave), três teóricos da literatura (Antoine Compagnon, Tzvetan Todorov, Vincent Jouve), além de um cineasta premiado (Laurent Cantet), naquilo que o aparato cultural evidencia de mais acadêmico e canônico. Outro fator está presente na maioria dos acusadores: a indigitação do local do crime – a escola. E, para culminar, a autópsia da vítima – a literatura, por motivos diversos, mas não incongruentes, “assassinada” em sala de aula ou em vias de desaparecimento, enquanto um produto que transcende a individualidade de cada texto e de cada obra. A situação não deixa de ser curiosa: prestigiados representantes da alta literatura e da cultura francesa, ao nível da produção e da recepção, resolvem voltar os olhos para o universo do ensino em geral e da literatura em particular. Ao fazê-lo, parecem cair das nuvens, pois presenciam, primeiramente estupefatos, depois de modo questionador, a paulatina exclusão da literatura na escola. Não apenas isso: parecem convir que, sem a escola, não há lugar para a literatura no mundo, aquele que supostamente se localiza além das paredes denunciadas no livro e no filme de Begaudeau e Cantet. Por fim, uma última constatação: a de que a literatura não apenas não é um ser autônomo, como fizera crer o estruturalismo condenado por Todorov, mas, pelo contrário, pode independer de autores, impressores, livreiros ou críticos. Até sem os criadores ela talvez pudesse sobreviver – não, porém, sem a escola, conforme uma relação consolidada pelo tempo e pela história.

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não é mera casualidade o fato de que emergem em épocas aproximadas, ao mesmo tempo que se difunde o uso da escrita, a qual, a partir de aproximadamente 2000 a.C., é empregada para o registros de peças que, conforme Lionel Casson (2002, p. 3, tradução nossa), “estendem-se de simples material didático a literatura criativa”, preferentemente hinos. O vínculo entre poesia – literatura, mais adiante – e escola mostra-se mais evidente entre os gregos da Antiguidade. Com eles, a escrita deixou de ser monopólio de sacerdotes, como ocorria entre os sumérios, ou de funcionários do Estado, como eram os escribas egípcios. Como os helenos procederam a adaptação do alfabeto fenício por meio do acréscimo de signos que representavam as vogais, sua utilização tornou-se mais fácil, o que também colaborou para a difusão da escrita.4 Igualmente a escola se separou da religião, assumindo papel laico e difundindo-se entre a infância, ao destinar-se a meninos (raramente a meninas) por volta de dez anos. Quatro disciplinas constituíram a base da aprendizagem: a gramática (linguagem), a música, a aritmética e o atletismo.5 A poesia não detinha a exclusividade do conhecimento transmitido pela escola, mas constituía um de seus pilares. Ao ensino competia a formação de cidadãos, o que dependia da preparação para o exercício da oratória, cujas regras são consignadas nos primeiros livros didáticos do Ocidente. A Retórica, de Aristóteles (384322 a.C.), poderia ser considerada a fundadora do gênero, mas “provavelmente um livro didático mais típico [que o de Aristóteles] dessa época” é a Retórica para Alexandre (KENNEDY, 1994, p. 49), atribuído a Anaxímenes de Lampsaco (c. 380-320 a.C.). Na Retórica de Aristóteles, assim como em manuais subsequentes, como Sobre o estilo, provavelmente do século I a.C., de Demétrio (século I a.C.?), ou no Tratado da imitação, de Dionisio de Halicarnasso (c. 60-8 a.C.), que viveu em Roma entre os anos 30 e 10 a.C., os textos oriundos da poesia, como as epopeias de Homero (século VIII a.C.), ou as tragédias do século V ateniense, servem de exemplo da boa e conveniente expressão linguística. O procedimento, que migra do grego para o latim, encontra nas Instituições oratórias (redigido entre 93 e 95 d.C.), de Marcus Fabius Quintilianus (c. 35-95), sua expressão mais completa. 4

Cf. Jean (2002); Maciá (2000); Martin (1996).

5

Cf. Matsen; Rollinson; Sousa (1990. p. 30).

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Otto Maria Carpeaux destaca a importância da obra de Quintiliano, responsabilizando-a pela valorização e conservação do patrimônio literário já então clássico, mas não cristão, que pôde, assim, atravessar, sem grandes riscos, a Idade Média: “No décimo livro dessa obra [Quintiliano] inseriu uma apreciação sumária dos principais autores gregos e latinos, menos como resumo bibliográfico do que como esboço de uma espécie de “biblioteca mínima” do aluno de Retórica” (CARPEAUX, 1959, p. 16, grifo do autor). O que garantia a posição e a sobrevivência dessa “biblioteca mínima” – em outras palavras, o cânone, agora desprovido da religiosidade com que esse vocábulo fora concebido originalmente – era o papel que a literatura desempenhava na escola: cabia não apenas formar o cidadão, mas darlhe as ferramentas necessárias a seu exercício. A literatura evidenciava o melhor uso da linguagem verbal e ensinava a falar bem em público. Ainda que o princípio básico que embasava a prática da literatura era o da emulação, ou da imitação, conforme o título da obra de Dionisio de Halicarnasso, o conhecimento que transferia era útil e indispensável. Portanto, a literatura não era descartável, nem estava ameaçada de desaparecer. Por outro lado, a escola não dispunha de uma estrutura formal ou hierárquica. Nem correspondia à educação que, enquanto formação de um sujeito, ultrapassava em muito o que a escola poderia fornecer. Da sua parte, professores não eram funcionários das escolas, nem se subordinavam a elas. Talvez a sociedade fosse indiferente a eles, razão porque, entre os romanos, a profissão era exercida por escravos ou ex-escravos. Comprometiam-se com o saber que lhes competia comunicar, saber extraído de algum lugar – leituras, livros didáticos, outros professores, experiência – e que perenizava os conteúdos a transmitir. Com a emergência da modernidade, esse quadro começa a se alterar, e de cima para baixo. As primeiras universidades aparecem no período final da Idade Média, privilegiando inicialmente o saber laico e humanístico, o que faculta o reerguimento da Filosofia, ramo do conhecimento que vivera melhores dias entre atenienses e romanos, mas que, com a ascensão política da Igreja, amalgamara-se à Teologia. Na nova situação, as modalidades discursivas da linguagem verbal encontrararam um espaço sólido para a sua divulgação (de que são sintomas as traduções dos clássicos greco-

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latinos a partir do século XV);6 não demorou, porém, a expansão das áreas aplicadas do conhecimento, como as Ciências Jurídicas e a Medicina, o que determinou uma disputa por primazia no campo acadêmico. A poesia, agora denominada literatura, buscou refúgio na organização renovada do ensino: os colégios a acolheram, para formar religiosos (os jesuítas, por exemplo) ou para preparar a elite juvenil para suas funções públicas e privadas. Nesse caso, porém, o conhecimento literário não era mais um saber aplicável a situações particulares ou modelo a ser imitado. Converteu-se em adorno, perdendo, de certa maneira, a virilidade de que parecia constituído, por consequência, convertendo-se em tema ou atividade feminina, como evidencia, por exemplo, Molière (1622-1673) nas comédias As preciosas ridículas e As sabichonas. Oferece-se, porém, um novo caminho, que se mostra bastante promissor, por estar em consonância com os rumos da modernidade. O termo “modernidade” abriga vários significados. Do ponto de vista da história, corresponde à passagem da Idade Média à Moderna, o que acontece entre os séculos XV e XVI. Da perspectiva social, sinaliza a perda de hegemonia de grande parte da aristocracia detentora de terras e à ascensão da burguesia. Do lado econômico, nomeia a substituição do sistema feudal pelo capitalismo. E, geopoliticamente, dá conta da nova distribuição dos territórios, da emergência de estados nacionais (primeiramente, Portugal e Espanha, entre os séculos XII e XV; depois, França e Grã-Bretanha, ao final do século XV e primeiras décadas do século XVI), e da consolidação do poder monárquico, que se diz absoluto, especialmente a partir do século XVII. O sistema de ensino não poderia ficar indiferente a esses processos, alguns bastante revolucionários. Primeiramente, porque as mudanças tecnológicas colaboraram para que algumas alterações se concretizassem, e era preciso sistematizá-las e transmiti-las por intermédio de uma entidade capacitada não apenas a reproduzi-las, mas a expandi-las e disseminá-las entre os membros da sociedade, ao menos entre os que pertencessem a seus segmentos mais elevados. Depois, porque as descobertas – como a de novos continentes e culturas distintas – abalaram algumas certezas, fossem essas filosóficas ou religiosas. Agremiações tradicionais, como a Igreja, já não ofereciam respostas adequadas às inquietações que emergiram a partir 6

Cf. Greenblatt (2012).

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do século XV. E, desde o século XVI, novas ciências começavam a pedir ingresso na ordem do pensamento. Tais modificações obrigam a escola a se adequar ao novo tempo, levando à sua institucionalização, que se dá lenta, mas irreversivelmente. A escola adota organização ascensional, acompanhando a concepção que o conhecimento se faz por etapas, mas progressivamente, e impõe-se como necessidade a partir do século XIX, quando frequentá-la deixa de ser uma opção, mas um dever apoiado na legislação, que impõe sua obrigatoriedade. Educação, ensino e escola desde então formam uma unidade quase sinônima, a que se acrescentam a pedagogia e a didática. Supõem uma formação específica e especializada, dispõem de aparelhos azeitados e orgânicos, e ocupam a melhor parte da vida das pessoas, estendendo-se da primeira infância até, pelo menos, o final da juventude. Para a literatura, o momento era propício. Desde o século XVII, e mais especificamente o século XVIII, aumentara o público leitor, já que o letramento expandira-se, e a burguesia elegera a leitura enquanto um entretenimento possível e adequado, alargando as alternativas de produção e circulação. De outra parte, o processo de consolidação dos estados nacionais alcançara o limite, sendo o Estado-nação, monárquico na Europa, republicano nas Américas, a expressão legítima das aspirações dos detentores do poder. Afirma-se o que Benedict Anderson (1989) designa como “comunidade imaginada”, uma identidade coletiva que, por sua vez, requer representação e difusão. O romance histórico talvez tenha sido o gênero ficcional que melhor localizou, nomeou e difundiu o espírito identitário emanado do Estadonação. Sob esse aspecto, porém, foi suplantado pela História da Literatura, gênero narrativo cujas primeiras manifestações ocorrem no século XVIII, mas que se expande no começo do século XIX, tornando-se doravante hegemônico. Apresentou, pois, mais durabilidade que o romance histórico; e, não pertencendo ao campo da ficção, isto é, ao da fantasia, pareceu mais confiável e seguro. Não por outra razão foi adotado pelo sistema de ensino, em substituição aos estudos de Retórica e Poética, tornados obsoletos e desdenhados, já que haviam sido o fundamento da formação da aristocracia, agora desalojada do poder. O ensino da literatura confunde-se com a veiculação da História da Literatura. Que, por sua vez, é produto da própria escola, já que – pelo

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menos, no Brasil – são professores [Francisco Sotero dos Reis (1800-1871), Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (1825-1876), Silvio Romero (18511914)] os primeiros sistematizadores de histórias literárias.7 A História da Literatura, por sua vez, é bastante conveniente. Tal como a Pedagogia, que acredita que o conhecimento acompanha o crescimento do ser humano, operando, assim, do simples ao complexo, do menor para o maior e do próximo ao distante, a História da Literatura incorpora uma concepção ascensional e progressiva da trajetória de seu objeto, que marcha inexoravelmente desde o começo rudimentar até o auge e culminância do processo, época que coincide com a contemporaneidade do historiador. Reforça a noção de identidade nacional, já que a expressa de modo cabal, a partir da resposta de uma pergunta presente na maioria dos livros que narram o percurso de uma literatura: qual a sua origem? Ou, em outra formulação, quando principia a literatura nacional? Esse início, no caso brasileiro, coincide com a primeira manifestação identitária, que pode avançar até o Romantismo, recuar ao Barroco, confundir-se com o Modernismo ou apresentar-se como permanente negação, mas que, enquanto interrogação, está sempre presente. Por fim, colabora, ao lado de disciplinas como História e Geografia, à formação do cidadão, já que a História da Literatura passa, mesmo em nossos dias, pela noção e afirmação da nacionalidade. Mesmo o ensino da língua subordina-se aos ditames da história literária, porque o vernáculo considerado padrão é o da literatura, seja no âmbito da sintaxe, seja no âmbito semântico, haja vista como os dicionários, mesmo os mais atuais, buscam as validações, na maioria dos casos, em textos artísticos consagrados pelo cânone.

19.4 A escola e a Teoria da Literatura A falência do Estado-nação não deixa indiferentes os estudos literários. Não se trata apenas da emergência de outros segmentos críticos – estudos culturais, de gênero, pós-coloniais, por exemplo –, mas também 7

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O Curso de literatura brasileira e portuguesa, de Francisco Sotero dos Reis, foi publicado entre 1866 e 1873; o Curso elementar de literatura nacional, de Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, data de 1862, e seu Resumo de história literária, de 1873; Silvio Romero lançou a primeira edição de História da literatura brasileira em 1888.

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Pensar o ensino de Língua Portuguesa no ensino médio significa dirigir a atenção não só para a literatura ou para a gramática, mas também para a produção de textos e a oralidade. A exploração da literatura, da gramática, da produção de textos e da oralidade pressupõe o desenvolvimento de competências e habilidades distintas, ligadas à leitura, aos conhecimentos linguísticos, à escrita e à fala. Assim, na articulação entre conceitos, conteúdos e competências, na elaboração ou escolha dos materiais didáticos, parece interessante contemplar esses quatro grandes eixos. (PCN+, 2007, p. 70).

Se, de uma parte, no documento-base, rejeita-se a exclusividade da literatura, de outra, são frequentes e insistentes as alusões à intertextualidade, ao estranhamento (PCN+, p. 69), ao narrador e foco narrativo, à paródia (PCN+, p. 71), termos importado da Teoria da Literatura, razão por que

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da desconfiança posta sobre a História da Literatura e sobre a concepção de língua nacional. Ambas não mais respondem pela situação vigente na sociedade, que, assumindo seus componentes multiculturais, não necessariamente se reconhece nos padrões identitários do passado. Nem, da sua parte, os distintos públicos em ascensão, entre os quais os oriundos das camadas populares e procedentes da periferia das grandes cidades, se reconhecem na literatura produzida, ainda mais que essa literatura – por mais tematicamente diversificada que almeje apresentar-se – não deriva daqueles grupos. Não surpreende, pois, que se verifique, nos currículos escolares, o paulatino desaparecimento da História da Literatura. A configuração da educação nacional, a partir de 1970, excluiu-a do ensino fundamental, quando era matéria assídua do até então nível ginasial. Desde a criação e expansão dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em meados da década de 1990, perdeu força no ensino médio, abrigando-se desde então apenas em disciplinas do cursos de Letras, em todo o país, como sugere o documento PCN+ (2007) do Ministério da Educação. O documento do PCN+ é bastante claro, ao adotar a posição de que a literatura e a gramática não devem “dirigir a atenção” do docente de língua portuguesa, competindo-lhe articular “competências e habilidades distintas”, entre as quais se inclui a leitura (mas não necessariamente a de obras literárias):

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migram tanto para livros didáticos destinados ao nível médio, tal como se verifica na obra mencionada de William Cereja e Thereza Cochar, quanto para questões da prova do Enem, reproduzidas antes. Ao lado do encolhimento da literatura enquanto produção, registrase a marginalização de sua história. Também sob esse ângulo, as perguntas propostas nas provas do Enem são representativas, pois são escassas as menções aos escritores canônicos da literatura nacional, cuja presença é pouco expressiva, sobretudo se comparada à quantidade de interrogações suscitadas por quadrinhos, cartoons ou tiras, anúncios publicitários e outdoors.8 Poder-se-ia supor, assim, que a Teoria da Literatura suplantou a História da Literatura, comprovando, ao que parece, a tese de Tzvetan Todorov (2009). Como se observou antes, para ele, o ensino da literatura foi engolido por vertentes da Teoria da Literatura e suas metodologias, estudadas em faculdades de Letras, e transferidas aos estudantes do secundário. Parece dar razão àquele pensador a assiduidade com que se invoca, em questões extraídas das provas brasileiras, na documentação oficial do PCN+ e nos livros didáticos brasileiros, um saber literário prévio, de tipo abstrato e sujeito a fórmulas de classificação. Por sua vez, esse saber teórico, no modo como se apresenta nas provas e nos PCNs, apresenta algumas particularidades em relação à tese de Tzvetan Todorov: mescla noções heterogêneas, que têm origem em teorias diversas, nem sempre compatíveis, articuláveis ou coerentes, às vezes até concorrentes ou adversárias. Compõem, assim, uma bricolagem, ou uma colcha de retalhos, de termos em voga a serem aplicados a textos de distinta procedência, que, como um baralho de cartas, podem formar sequências ou trincas, sem que prejudique o jogo. O texto literário, por sua vez, faz o papel do coringa, capaz de ocupar qualquer posição, sem assumir uma identidade específica. Além disso, as noções teóricas são objeto de um reducionismo, que transforma, como se verifica no livro didático citado, a intertextualidade em “relação entre dois textos caracterizada por um citar o outro”, e a paródia, em uma ferramenta de crítica ou distorção das ideias de um texto primeiro por parte de um texto segundo. Deste reducionismo os PCNs não estão livres, pois não se encontra, na documentação proposta, a explicitação dos 8

A esse respeito, cf. Fischer et. al. (2012) e Zilberman (2013, p. 233-256).

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conceitos adotados, nem a discussão de sua validade e as possibilidades de extensão de seu emprego. Os conceitos são tomados como ideias absolutas e incontestáveis, bastando aplicá-las para atestar sua validade. Trata-se, pois, de uma Teoria da Literatura pasteurizada e passada no liquidificador, quando não caricata, distante, pois, dos propósitos que, supostamente, teriam fundado uma ciência destinada a refletir sobre as obras de arte literária. Não é sob esse ângulo que Todorov identifica sua intervenção na escola, ameaçando a sobrevivência da literatura e, em especial, da leitura literária. Porém, não é por essa razão que Todorov está equivocado, e sim por desconsiderar que, desde seus começos, o ensino da literatura calcou-se em uma concepção teórica do objeto – fosse ele entendido como modelo de emprego da língua ou como matéria da historiografia, capaz de atestar a identidade ou nacionalidade de um corpus literário. Em outras palavras, um conceito vigente de literatura sempre serviu à escola ou à educação, que se encarregou de divulgá-lo e fortalecê-lo. Alguma Teoria da Literatura – sob a máscara da Retórica ou da História da Literatura – esteve presente desde o nascimento das atividades didáticas no Ocidente. O problema não se localiza nesse aspecto, mas no sintomático desaparecimento da literatura. A consolidação da História da Literatura herdou um conceito orgânico de literatura e colaborou com sua afirmação, tornando-o estável e aceito por uma comunidade de letrados e consumidores. Correspondia ao que se consagrara no tempo, corporificando o cânone e a tradição, esses se mostrando confiáveis e duradouros. Há pelo menos três décadas o cânone ocidental, fundamento da noção até então vigente de literatura e matéria da historiografia literária, vem sendo objeto de acusações, que denunciam exclusões, com o consequente acréscimo de outros autores e tendências, e posicionamentos ideologicamente questionáveis. A defesa do cânone, por parte de Harold Bloom, sugere que já em 1994, ano de publicação de seu livro, se consolidara a desconfiança perante a história da literatura tradicional, apoiada em identidades nacionais e autorais até então indiscutíveis. O resultado é que, ao ser jogada fora a água do banho, talvez o bebê tenha ido junto, já que o descarte da História da Literatura foi acompanhado do desmanche de um conceito unitário de literatura. Por sua vez, os produtos que respondiam pela literatura aparentemente carregavam características semelhantes – emprego da linguagem

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verbal, unidade interna, difusão por intermédio do livro impresso –, o que facultava reuni-los sob uma noção uniforme. Recentemente, porém, a literatura rompeu aquelas fronteiras, investindo no universo digital ou aliando-se a outras expressões que ultrapassam o linguístico e flertam com o visual, como histórias em quadrinhos, e com o sonoro, como canções. Assim, a unidade, que talvez nunca tivesse existido, foi implodida pelas distintas alianças a que os produtores literários se entregaram, a saber, as parcerias entre o verbal e o não verbal (desde os happenings e performances em evidência a partir dos anos 1960), entre suportes distintos (gráfico, visual, digital etc.), ou entre gêneros de discursos aparentados (cinema, quadrinhos etc.). Além disso, o número de consumidores de matéria cultural aumentou quantitativamente, e os públicos repartiram-se. A literatura (ou poesia) prezada no passado pelos retóricos e mais recentemente pelos historiadores da literatura constituía um objeto que se destinava a uma elite letrada, que, da sua parte, encontrava nos textos literários sua forma mais adequada de expressão. A consolidação da burguesia, especialmente no século XIX, corresponde ao apogeu dessa afinidade entre classe social dominante, público leitor e produção literária, mesmo quando esta, em obras de realistas e naturalistas, não manifestava a melhor opinião sobre seus consumidores. A ampliação e a universalização da escola, ela mesma uma decorrência do capitalismo de que a burguesia é fruto, determinaram não apenas o crescimento do público leitor, mas, e sobretudo, sua segmentação e multiplicação. Este, da sua parte, é formado não apenas pelo que aprende em sala de aula, mas por sua trajetória, pertença social e lugar na cultura. A literatura brasileira, por exemplo, pode ter diversificado seus temas, buscado atingir camadas populares (com pouco sucesso, diga-se de passagem), investido em alternativas de globalização. Mas não suscita identificação para além das categorias sociais e intelectuais de que previamente dispunha. Não responde a ansiedades de consumidores prováveis que preferem o rap, o funk, o pagode ou a música sertaneja, assim como não dialoga com a audiência de telenovelas, os adeptos da cultura de massa e os seguidores das redes sociais. Pode-se argumentar que esse não é o intuito dos produtores de obras literárias, que preferem inovar a render-se ao mercado, preservando a

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identidade e a qualidade de sua arte. Mas o público que frequenta a escola faz parte da massa e constitui o mercado a que aquelas obras não chegam. As provas do Enem sugerem que elas não chegam mesmo, a não ser de modo fragmentado, reiterando, por outro caminho, a vulnerabilidade que a literatura passou a exibir. Por sua vez, a estabilidade que já deteve, quando predominava a concepção de literatura veiculada pela historiografia, mudou de lugar: migrou para as noções teóricas – ou melhor, genéricas – cujo domínio enquanto conhecimento é exigido pelo exame, após ter sido impulsionado pelos PCNs. A quem inculpar? Seria fácil, mas também leviano, acusar os programas dos cursos de Letras, pois lhes compete produzir e empregar um instrumental teórico e metodológico para refletir sobre seus objetos, a literatura e a língua, os discursos e suas utilizações. Presentemente, estudos comparados, perspectivas interdisciplinares, discussões sobre patrimônio e memória vigoram na rotina acadêmica de professores e alunos, de modo equivalente à idade de ouro da História da Literatura em décadas passadas. Como se observou, essa, por um tempo, respondeu a anseios políticos e ideológicos dos grupos autorizados a planejar e implementar o ensino brasileiro. A pergunta procede: a quem ou a que categorias interessam as novas vertentes em evidência? Vale recordar que, no Brasil, foi nos anos 1970, na esteira da reforma do ensino promulgada pelo governo, que a história da literatura nacional começou a perder espaço em sala de aula. Naquele momento, tratava-se de rapidamente expandir a escolarização a todos os segmentos sociais e regiões geográficas do país. O ensino fundamental alargou-se de cinco para oito anos, englobando os até então vigentes primário e ginásio, mas o aumento do tempo de permanência na escola não incidiu em maior densidade nos conhecimentos transmitidos. Pelo contrário, conteúdos foram diluídos, facilitados e pouco avaliados, garantindo o sucesso do programa de formação acelerada, dirigida ao mercado de trabalho. No começo da década de 1970, o processo de endurecimento do regime ditatorial alcançava seu ponto mais elevado, atingindo todos os setores da vida social, política e cultural. Não surpreende que o novo modelo de educação pudesse ser imposto tão rápida e eficientemente, caracterizando-se por seus objetivos profissionalizantes e perfil pragmático. Não havia, pois, lugar para a história da literatura, que, no Brasil, servira

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aos propósitos identitários da classe dominante. Ainda que o nacionalismo exacerbado estivesse em voga no período, ele não mais precisava do suporte da literatura, já que os meios de comunicação de massa eram bem mais competentes na difusão do ideal do “milagre brasileiro”. Não foi, pois, a desconfiança perante o cânone, essa cronologicamente posterior, que desalojou a História da Literatura. Mas, quando ocorreu a democratização, ela já estava em baixa, e o espaço requeria outro ocupante. Habilitaram-se vários candidatos, dada à disseminação de correntes, nem sempre coincidentes, associadas ao pensamento pós-moderno, aos Estudos Culturais e à Análise do Discurso, essa impulsionada, sobretudo, pela então recente descoberta e valorização das ideias de Mikhail Bakhtin. Os PCNs são fruto da mescla dessas vertentes, bem como seus produtos, a exemplo das provas do Enem. A literatura parece ter ficado para trás, categorizada como um gênero de discurso ou substituída por outras manifestações da linguagem, verbais e não verbais. Mas a impressão não é inteiramente correta: ela está presente no exame de 2013, corporificada nos excertos de Clarice Lispector e Nuno Júdice reproduzidos aqui, e não apenas neles, assim como comparece no livro didático dirigido ao ensino médio, tal como indicado antes. A diferença é que ela se apresenta submetida a outros questionamentos, não mais os de ordem histórico-literária, mas de natureza teórico-conceitual. A novidade não se localiza, pois, no objeto, mas nas ferramentas utilizadas para sua descrição. A estranheza talvez provenha da situação resultante: a Teoria da Literatura move-se do âmbito universitário e acadêmico para a sala de aula do ensino médio, mas não muda de figura, pois não encontra meios de se estender ao exame de objetos verbais e não verbais que não tenham sido previamente definidos como literários – ou canônicos. Por isso, acaba por resgatar o que vinha sendo reconfigurado e questionado. Torna-se, com isso, ela mesma convencional, mesmo que recorrendo ao jargão mais contemporâneo, já que só pode dialogar com o que fora ou está sendo consagrado pela tradição. Entre os franceses, a solução não é outra, pois, em seus livros e conferências, propõem a recuperação do papel tradicional da literatura, encarando-a enquanto entidade una e autônoma. Todorov (2009, p. 89), por exemplo, convoca os docentes a buscar dar “acesso ao sentido

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[das] obras – pois postulamos que esse sentido, por sua vez, nos conduz a um conhecimento do humano, o qual importa a todos”. Da sua parte, Compagnon (2009, p. 47) propõe que a literatura

Similar crédito manifesta-se no livro de Vincent Jouve (2012, p. 163), que, ao final, espera “ter conseguido demonstrar que a literatura tem um valor específico”, uma vez que “o confronto com as obras – isso é o mais evidente – enriquece nossa existência”. Ao se deslocar do âmbito universitário para o do ensino médio, a Teoria da Literatura acaba por se desfigurar, por simplificada e reducionista. Mas, ao mesmo tempo, revela suas limitações: não colabora para o conhecimento de seu objeto, nem acompanha suas transformações mais recentes. Para mostrar-se operacional, precisa resgatar um conceito conservador de literatura; essa, por sua vez, desprovida agora das justificativas de que dispunha nos bons tempos da Retórica e, depois, da História da Literatura, precisa buscar, desacompanhada da Teoria, um pretexto verossímil para se sustentar em sala de aula, que chega sob a forma da leitura. É a leitura da literatura que fornece a essa última o motivo para sua presença na escola. Não por coincidência as teorias da leitura têm experimentado notável avanço nas últimas décadas, ocupando, mais do que a Teoria da Literatura, o espaço deixado vago pela historiografia literária. Leitura, porém, não é conteúdo que se avalie, porque não é objeto de perguntas objetivas e quantificáveis. Ainda que seja a ação individual aplicável a todo e qualquer objeto de linguagem, não se transforma em substância invariável e mensurável. A alternativa, se é válida, por uma parte, porque propugnada por educadores e pensadores, não é viável materialmente. A literatura, fragilizada pela perda da parceria com a Retórica do passado e da História da Literatura até poucas décadas atrás, permanece à deriva. A Teoria da Literatura, migrando para a escola, também não oferece o conforto

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[...] dev[a], portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio – alguns dirão até mesmo o único – de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos.

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necessário, porque mecanizada e estereotipada. Buscar novas alianças com as manifestações da linguagem talvez seja a escolha necessária, e é essa a lição que a escola ministra a ela.

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O que fica do que passa: considerações sobre o estudo e o ensino da literatura Paulo Franchetti

Quando olhamos a história do pensamento sobre a literatura ao longo do século passado no Brasil, um aspecto que logo chama a atenção é o espaço dado, nos jornais de ampla circulação, a debates acalorados sobre metodologia e pressupostos teóricos de crítica literária. De fato, no Brasil de hoje seria inimaginável que órgãos de imprensa abrissem suas páginas para uma longa polêmica como a conduzida, no fim dos anos 1940 e início dos 1950, na seção Correntes Cruzadas, no Diário de Notícias, por Afrânio Coutinho. Como se sabe, movia aí o crítico, informado nos princípios do New Criticism, um ataque sistemático à crítica histórica e à crítica jornalística. A esta última, principalmente, que acusava de impressionista e não científica. O que estava em causa, portanto, além da propriedade deste ou daquele método acadêmico, era também a oposição entre, por um lado, a formação autodidata e a crítica entendida como atividade jornalística ou diletante, e, por outro, a formação acadêmica e a crítica entendida como extensão dos resultados da pesquisa a um público mais amplo. O que não parecia estar em questão era o interesse do público amplo, leitor de jornais, pela literatura e pela crítica.

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E de fato, na década seguinte, o sonho de Coutinho (no que diz respeito à profissionalização e formação acadêmica do crítico) tornou-se realidade com a criação do Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo, em 1956. Em suas páginas, ao longo dos seus dez anos de existência, a literatura ocupou um lugar central, em textos que buscavam uma síntese entre a seriedade acadêmica (isto é, informação rigorosa e reflexão fundamentada) e o interesse informativo e de orientação do público amplo, vazados numa linguagem desprovida de jargão acadêmico e sem hermetismos. No mesmo ano de 1956, o Jornal do Brasil dava início à publicação do Suplemento Dominical – outro espaço notável dedicado à literatura. Teve vida mais breve do que o Suplemento Literário, pois terminou em 1961. Mas teve semelhante importância no quadro literário brasileiro, com o diferencial de que foi ali que as vanguardas dos anos 1950 encontraram ressonância e puderam não apenas apresentar as suas propostas a um público amplo, mas também difundir, por meio de traduções e textos críticos, o repertório de suas referências internacionais. Finalmente, há que lembrar ainda que, no mesmo ano de 1956, criouse a Revista do Livro (que circulou até 1970). Dirigida a um público mais especializado, trazia, entretanto, material semelhante ao dos suplementos (de onde, aliás, recolhia artigos). Diante desse quadro, a pergunta que surge naturalmente é: a que público se dirigia essa produção? Ou melhor: o que mudou, no país, para que houvesse um interesse crescente, nessa década, pela reflexão mais marcadamente acadêmica sobre a literatura. Ou, voltando ao início destas reflexões, o que permitiu que o preconizado por Coutinho ganhasse corpo – mesmo que não na direção por ele advogada? Do meu ponto de vista, uma resposta possível é que esse público era constituído basicamente por professores e estudantes de literatura. De fato, é nesse momento que vivemos, no Brasil, uma enorme expansão do ensino universitário. Como se sabe, a instituição universitária é muito tardia no Brasil. Diferentemente de outros países americanos, que têm universidades desde os anos de 1500, a primeira universidade brasileira, a Universidade de São Paulo (USP), foi criada em 1936 – tendo como núcleo a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Mas já em 1953 havia no Brasil 15 universidades.1 1

Ver Azevedo (1963) e Havighurst; Moreira (1965).

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No que diz respeito às Letras e Humanidades, houve também uma grande proliferação de faculdades. E, no conjunto, essas instituições formaram, ainda em 1956, nada menos do que 15.000 pessoas. Se considerarmos o número dos egressos em anos anteriores e a ele somarmos os de estudantes matriculados em cursos de humanidades, podemos constatar que se constituiu no Brasil, pela primeira vez na sua história, um público especializado, profissionalizado ou em vias de profissionalização na carreira do ensino, para o qual a literatura era de importância central. Some-se a isso o fato de que, num país sem muitos livros e quase sem pontos de venda fora das capitais, a década anterior, a de 1940, foi de grande atividade editorial, inclusive com a capilarização de livros por meio de duas coleções notáveis de distribuição direta, que formaram as primeiras bibliotecas de classe média no Brasil: a do Clube do Livro, que iniciou em 1943, e a Saraiva, que começou a ser publicada em 1948. No que toca ainda às instituições de preservação e difusão da cultura, registro que foi igualmente notável esse período que vai da metade da década de 1940 à metade da seguinte, bastando referir que o Museu de Arte de São Paulo é criado em 1947 e o de Arte Moderna do Rio em 1949 – e que em 1951 se realiza a primeira Bienal de Arte, no mesmo ano de criação do Conselho Nacional de Pesquisa. Voltando ao ponto de interesse desta comunicação, penso que podemos concordar com Wilson Martins, quando ele situa por volta de 1945, com o concurso de Alceu Amoroso Lima e de Antonio Candido, “o momento em que se iniciam entre nós, em plano verdadeiramente universitário, os estudos sistemáticos de Literatura Brasileira” (MARTINS, s.d., v. 7, p. 253). E creio que podemos acrescentar que dois dos frutos mais notáveis desses estudos virão a público no final da década de 1950: a coleção A literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho – cujo último volume saiu em 1959 – e Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, que saiu nesse mesmo ano. Sobre o que foram os estudos universitários no Brasil nessa década, no que diz respeito à literatura, temos um depoimento precioso dado por Alfredo Bosi (1996), na introdução ao volume por ele organizado, Leitura de poesia. Bosi graduou-se na USP em 1960. No momento seminal, portanto, que venho descrevendo.

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Lendo sua apresentação, acompanhamos a evolução e as modas que dominaram a universidade brasileira: nos anos de 1940 e 1950, o prestígio da Estilística e de Leo Spitzer e a permanência da explicação de texto francesa – e, a partir da década de 1960, a predominância do Estruturalismo. Também se vê ali, em concorrência com a maré montante do Estruturalismo, outra vertente crítica que teve e tem até hoje grande peso no campo dos estudos literários, a perspectiva materialista lukacsiana – que na vulgata acadêmica se denominava “leitura sociológica”. O panorama de Bosi praticamente termina no momento que conheço melhor, pois é o da minha própria graduação em Letras: os anos entre 1972 e 1976, quando ele escrevia O ser e o tempo da poesia, e nos quais, nas suas palavras, “o estruturalismo e a dialética hegeliano-marxista já estavam cedendo lugar a um enfoque pluralista, descentrado, ‘pósmoderno’, do texto” (BOSI, 1996, p. 38, grifo do autor) – enfoque esse que ele identifica com a visão propiciada pela leitura dos desconstrutivistas e com a hipertrofia da mediação textual como pressuposto de método. Desse momento em diante, posso dar o meu próprio testemunho, que embasará as reflexões que tentarei apresentar posteriormente. Num aspecto, a minha experiência não foi diferente da de Bosi. Talvez porque houvesse alguma inércia na propagação das tendências, em Araraquara também me marcou o método da “explicação de texto” francesa – por meio dos Classiques Larousse e dos volumes de Lagarde e Michard e também da bibliografia auxiliar das disciplinas. E tão forte foi a marca que até hoje, nas minhas aulas, tenho a impressão de que reproduzo de alguma forma aquele tipo de propostas de aproximação e questões que me pareciam essenciais: “Mostrar como Nerval nos comunica um sentimento obsessivo de tristeza, de solidão e de abandono”; “Como se explica: a) o encanto da evocação? – b) que nossa impressão dessa lembrança feliz se transfigure e ganhe um valor simbólico?”. Ou ainda: “Mostrar como os versos curtos traduzem a tristeza e o desencorajamento. Apreciar os efeitos dos cortes sintáticos e rejets dos versos 52, 56 e 64” (LAGARDE; MICHARD, 1957, p. 275 et passim). Ao mesmo tempo numa disciplina denominada Teoria da Literatura, líamos o livro de René Wellek e Austin Warren, que marcou época no Brasil, promovendo a crítica dos métodos que atenderiam à “demanda extrínseca do estudo da literatura” e valorizando aqueles que promoviam o seu “estudo intrínseco” (WELLEK; WARREN, 1971).

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Para a minha geração, esse livro foi importante. Mesmo que ele tenha sido em muitas ocasiões, como observa Alfredo Bosi, objeto de uma leitura “rasa e didática”. Olhando agora o meu velho exemplar dos tempos da faculdade, vejo nas profusas anotações a lápis nas margens do capítulo sobre mito e metáfora (e em outros) o quanto a clareza do vocabulário e o rigor analítico da exposição foram um deslumbramento para mim. Como foi também muito importante outro manual, igualmente marcado pela perspectiva formalista, Análise e interpretação da obra literária, de Wolfgang Kayser (1967), que desempenhava um papel complementar ao de Wellek. Naquele início dos anos de 1970, Wellek era “teórico”, Kayser era “prático”. Afirmando desde o prefácio a sua visada, escrevia o autor alemão: “uma obra de arte não vive nem deriva como reflexo de qualquer outra coisa, mas sim como estrutura linguística fechada e completa em si mesma” (KAYSER, 1967). Os dois volumes eram, portanto, articulados à volta desse princípio: no primeiro, apresentavam-se métodos analíticos, conceitos fundamentais de análise formal; no segundo, discutiam-se temas mais amplos como o estilo e o gênero. Naquele momento, eu não sentia antagonismo entre a lição do “new criticism” e a explicação de texto. Pelo contrário, a ênfase na consideração da técnica e da composição me aparecia como um passo à frente, e não em outra direção. E creio que essa percepção não foi apenas minha, mas dos companheiros de geração – ao menos os mais próximos. De fato, havia algo em comum, ao menos do ponto de vista prático, isto é, do ponto de vista do trabalho com o texto em sala de aula, entre os dois métodos de resto tão antagônicos: tanto na “explication”, quanto na nossa atualização do “new criticismo” a ênfase estava no trabalho com o texto. Era a “close reading” que sobressaía, a busca da compreensão da forma de apresentação do texto, da técnica literária, das características genéricas e do efeito produzido no leitor. Alguns dos melhores professores que tive, e que procurei de alguma forma imitar nos anos posteriores, promoviam a síntese improvável, tendo como ponto de convergência a leitura produtiva do texto, buscando mostrar a partir da análise as articulações linguísticas, genéricas e sua inserção no que então se denominava “movimento literário” ou “estilos de época”. E até mesmo a psicologia e a biografia (e ainda a filosofia ou o que mais servisse) podiam ser convocadas para atingir o fim que se buscava,

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que era a “compreensão do texto”. Ou, dizendo de outra maneira, uma vez posta a leitura analítica como principal função do estudo da literatura, era o objeto que determinava o tipo de informação e de estratégia interpretativa a utilizar. É certo que essa perspectiva se apoia num pressuposto, numa crença: a de que a literatura seja algo relevante socialmente, algo que mereça ser estudado não só pelo que pode valer hoje como objeto de prazer ou conhecimento, mas também pelo que valeu – e como valeu – em seu próprio tempo. Isto é, a proposição subjacente a essa perspectiva é que a literatura é um conjunto de textos, produzidos em épocas (e línguas) diversas, que merece o esforço de aproximação, entendimento e mobilização de todo o arsenal disponível para compreender as obras do ponto de vista mais complexo, mais abrangente possível. E está claro que tal perspectiva supõe a seleção, a operação de escolha de quais textos, por este ou aquele motivo, mereçam o maior investimento de leitura, análise e interpretação. O primeiro abalo dessa perspectiva, que orientava não só a pesquisa universitária, mas principalmente a atividade de ensino da literatura em vários níveis, veio em meados de 1970, com o Estruturalismo e a Linguística, definida como “chave das ciências humanas”, ciência do futuro, modernidade finalmente conquistada nos estudos da linguagem. Nessa época, entre nós, artigos como o de Jakobson sobre Os Gatos, de Baudelaire, ou o do mesmo autor sobre um poema da Mensagem, de Pessoa, passaram a ser modelares. Os estudos de narrativas com base nas funções de Propp ou dos esquemas actanciais de Greimas deram o tom de muitos encontros acadêmicos. E eu mesmo ainda vi, nas aulas do meu curso, a súbita redução da perspectiva analítica eclética à busca de paralelismos e oposições que iam até o nível do fonema, bem como o predomínio dos gráficos e estatísticas com os quais se queria demonstrar a literariedade ou talvez mesmo quantificá-la. A princípio, o Estruturalismo não me agradou. Ver o meu velho professor de Latim converter-se completamente entre o primeiro e o quarto ano foi um choque. Como também fiquei chocado com as análises matemáticas que Jorge de Sena fez de Os Lusíadas, e acabei por causar escândalo em classe ao contestá-las apaixonadamente. Mas a verdade é que depois também me seduziram não só o Jakobson, mas principalmente os formalistas russos, no livro organizado por Todorov e que foi fundamental para a minha geração.

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Independentemente do mérito da perspectiva formalista, minha impressão é que o seu triunfo na universidade brasileira promoveu uma mudança muito grande nas formas do ensino da literatura dentro e fora da universidade. Reproduzir o maravilhamento com a identificação da estruturação linguística de um poema parece ter-se tornado um objetivo em si mesmo. Assim como descrever a função de cada um dos agentes de uma dada narrativa ficcional, demonstrando a sua pertinência dentro de um quadro de referência. E da mesma forma que o ensino da língua passou a confundir-se por um momento com o ensino da linguística, o ensino da literatura parece ter-se confundido com o ensino da teoria da literatura e dos métodos de análise estrutural. A formação do repertório qualificado como um dos principais objetivos do estudo ficou em segundo plano. O mergulho na cultura da época como condição para compreender um dado texto distante no tempo pareceu desnecessário. A história literária perdeu interesse perante a história das formas, a ponto de, no horizonte do formalismo extremado, advogar-se a possibilidade de escrever a história da literatura apenas a partir da descrição das linhas de evolução formal, sendo desnecessária até mesmo a identificação do autor. Nesse quadro, evidentemente, o ensino da literatura nos níveis fundamental e médio perde grandemente o interesse e a necessidade, pois a questão linguística e a compreensão da literariedade e das linhas de evolução formal de um dado tempo não necessita, a rigor, da experiência demorada e contínua da leitura das obras. Nem se sustenta, como objetivo a ser atingido pela educação formal, a construção de um repertório de textos relevantes, do ponto de vista da história nacional ou da repercussão que obtiveram num dado tempo. Em fins dos anos de 1970 e começo dos 1980, o Estruturalismo parecia ter-se tornado hegemônico em muitas faculdades de Letras. Mas, ao mesmo tempo, nos últimos anos da ditadura militar, a perspectiva sociológica e/ou marxista ganhava novo e amplo fôlego no país. A ponto de disputar, com maior ou menor sucesso, conforme o caso, a hegemonia com o Estruturalismo, nos quatro cantos do país. Se tivesse de escolher um acontecimento emblemático dessa virada, escolheria como balizas os anos de 1974 e 1993. O primeiro porque é a data da crítica que Antonio Candido fez ao livro Análise estrutural de romances brasileiros, de Affonso Romano de Sant´Anna. Num artigo cujo objetivo é

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explicitado no título, “A passagem do dois ao três”, o autor de a Formação busca mostrar a limitação da perspectiva binária do Estruturalismo e a vantagem de uma visada dialética. No ano seguinte, ele retoma a questão, numa palestra no II Encontro Nacional de Professores de Literatura, intitulada “Literatura – Sociologia: análise de ‘O cortiço’ de Aluísio Azevedo”.2 Já a segunda data, 1993, é a do ano em que ocorre a publicação definitiva do artigo, já sem menção ao texto que, na primeira versão, se constituía como antagonista. De modo que, do meu ponto de vista, a publicação de “De Cortiço a Cortiço”, em O discurso e a cidade assinala simbolicamente a perda da centralidade do Estruturalismo e o avanço da perspectiva sociológica ou mesmo neolukacsiana, que terá em Roberto Schwarz e na sua leitura de Machado de Assis o ponto alto. A partir de meados da década de 1980, depois de uma experiência de trabalho com ensino médio, tornei-me professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Minha percepção traz, portanto, a marca do lugar onde passei a maior parte do meu tempo. E o que observei dali foi uma mudança de paradigma, dentro do que, de modo generalizante, se denominava “crítica sociológica”. Essa mudança foi a diminuição real do espaço eclético e a solidificação de uma doutrina, um método. Ora, numa entrevista de julho de 2011, Antonio Candido assim se definia: “talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado de obras”. E, na mesma entrevista, revelava o ponto de virada da sua carreira crítica, que foi o conhecimento do New Criticism:

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No começo eu era um pouco sectário, politizava um pouco demais minha atividade. Depois entrei em contato com um movimento literário norte-americano, a nova crítica, conhecido como New Criticism. E aí foi um ovo de Colombo: a obra de arte pode depender do que for, da personalidade do autor, da classe social dele, da situação econômica, do momento histórico, mas quando ela é realizada, ela é ela. Ela tem sua própria individualidade. Então a primeira coisa que é preciso fazer é estudar a própria obra. (CANDIDO, 2011).

A mudança a que me refiro foi a apropriação desse paradigma eclético por uma visada marxista, para a qual o objetivo último da análise literária é 2

Transcrição da palestra publicada em Cadernos da PUC, n. 28, 1976. (Série Letras e Artes).

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a compreensão do movimento social. Refiro-me, é claro, a um dos lados da herança candidiana, que, para mim, teve como um momento simbólico de afirmação a leitura que Roberto Schwarz, recém-contratado como professor da Unicamp, fez da obra de Candido no texto “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’”, publicado em 1979. Nesse artigo, ao comentar justamente os “pressupostos” do ensaio de Candido, Roberto Schwarz, que dois anos antes publicara Ao vencedor as batatas, poderia ter feito a crítica justamente do ecletismo teórico de seu mestre – pois seu Machado não era evidentemente o mesmo. Não o fez, porém. Em vez disso, produziu uma homologia entre o seu próprio pensamento e o de Candido, afirmando como sucessão e desenvolvimento o que poderia ter sido mais propriamente formulado como diferença ou mesmo como negação. Não vou fazer o comentário desse texto importante para o futuro dos estudos marxistas de literatura no Brasil, principalmente porque uma análise compreensiva dele já está feita por Alfredo César Barbosa de Melo (2014), num artigo publicado há pouco. Apenas queria assinalar que a nova escola sociológica, que tem em Roberto Schwarz expoente e modelo, é de natureza muito diversa da de Candido, no que diz respeito ao interesse pelo propriamente literário. Para deixar claro esse ponto, gostaria de lembrar um livro de Candido, surgido em 1985, Na sala de aula, no qual o autor expõe os seus “pressupostos teóricos” no trato com as obras literárias. Nas suas palavras: “Um desses pressupostos é que os significados são complexos e oscilantes. Outro, que o texto é uma espécie de fórmula, onde o autor combina consciente e inconscientemente elementos de vário tipo” (CANDIDO, 1985, p. 5). Do que ele conclui: “Consequentemente, o analista deve utilizar sem preconceitos os dados de que dispõe se forem úteis, a fim de verificar como (para usar palavras antigas) a matéria se torna forma e o significado nasce dos rumos que esta lhe imprimir” (CANDIDO, 1985, p. 5). E como explicitação do ecletismo, queria lembrar esta frase, que é um princípio de trabalho: “Ler infatigavelmente o texto analisado é a regra de ouro do analista, como sempre preconizou a velha explication de texte dos franceses. A multiplicação das leituras suscita intuições, que são o combustível neste ofício” (CANDIDO, 1985, p. 5-6). É a esse saudável ecletismo, sem pejo de reclamar a herança simultânea do new criticism e da explication de texte, que devemos o fato

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de que as páginas de interpretação literária da Formação subsistirem, com rendimento crítico que vai muito além e é independente do arcabouço argumentativo do volume – as famosas páginas de introdução, geradoras de tanta polêmica ontem e ainda hoje. Já na leitura dos textos de Schwarz e dos que o elegeram como modelo – e não foram poucos –, o texto é algo a ser decifrado ou equacionado em função de um quadro geral de descrição da sociedade. Todos os elementos identificados pela análise carregam-se de sentido em torno de uma tese representacional, que subsume os demais sentidos. O que importa ao crítico, mais do que a singularidade da obra e a sua articulação com outras obras ou com a tradição que reivindica, é a sua capacidade de equacionar o jogo de forças numa dada sociedade. Por isso, o seu Machado de Assis não é o mesmo de Candido. Levando aos últimos desenvolvimentos a ideia lukacsiana de que o ponto de vista narrativo é um ponto de vista de classe, destrincha os romances de Machado com vistas a expor a dinâmica brasileira e a teratologia da formação nacional, que conjugaria de modo muito particular o escravismo e o liberalismo. No fundo, é uma leitura predominantemente alegórica, capaz de ver em Capitu uma metáfora do Iluminismo. Do ponto de vista do ensino da literatura, a perspectiva candidiana foi a que mais de perto me tocou. Meus melhores professores partilhavam desses pressupostos e eu mesmo tentei, ao longo da minha vida, guiar-me pelas proposições que acabo de referir. Já a perspectiva decorrente do modo de trabalho de Schwarz, a julgar pelo que vi na USP e na Unicamp, possui uma semelhança de base com o Estruturalismo, no sentido de que a obra é convocada pela análise como lugar de atualização de uma questão que a transcende e determina. E esse efeito é que o texto parece dizer para o analista não algo como “veja como eu sou e o que significo”, e sim algo como “eis o enigma – você trouxe a chave?” No que toca a Candido e Schwarz (e os que se guiam por um ou por outro), o que há em comum é o fato de que a literatura é tomada como algo de grande importância para a compreensão do processo de formação nacional. Daí que ambas as obras – principalmente a primeira – vão sofrer a crítica desconstrucionista, que se encarregará de mostrar a teleologia da construção histórica e da própria escolha dos temas, obras e autores.

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No entanto, creio eu, o desbaste das postulações teleológicas e das partes analíticas que lhe são diretamente tributárias não afeta o valor, a pertinência e o caráter iluminador dos textos de Candido sobre os autores que comenta. Seu ecletismo lhe confere uma flexibilidade e um poder de sedução que sobrevivem à mais dura crítica ao seu arcabouço sociológico. E aqui nos aproximamos do tempo presente, no qual o que me parece mais notável é a perda do lugar central ocupado pela literatura nos estudos das Humanidades, em todos os níveis. Não precisaria dizer, mas digo: basta verificar o interesse que hoje despertam as discussões de método de crítica e ensino da literatura, bem como o número de páginas a ela dedicadas em jornais e revistas de grande circulação, e confrontar o resultado dessa análise com o que descrevi no começo desta comunicação para perceber a enorme mudança que se operou em meio século. É verdade que a perda da relevância pública da literatura pode, por um lado, ser explicada pela implacável crítica ao caráter ideológico dos cânones que se processou ao longo da segunda metade do século passado. A denúncia do caráter ideológico, de classe, etnocêntrico, falocêntrico etc. do cânone promoveu, sem dúvida, alteração importante no campo dos estudos literários. Mas creio que igual ou maior peso têm, para o tom deste momento, as alterações nas formas de produção da cultura e de sociabilidades, derivadas do enorme desenvolvimento da indústria cultural e das redes sociais informáticas. E ainda a facilidade de acesso à informação, que traz, na ponta dos dedos, o que antes apenas o longo trato erudito e a familiaridade com os textos permitiam compilar. Nesse quadro, ensinar a literatura como parte ou como lugar privilegiado da formação nacional deixou de fazer sentido. Quase tanto quanto a ideia de formação nacional. Um ensino voltado à construção do repertório e capaz de instrumentar a leitura com os dados da tradição literária começa a parecer algo pouco interessante, quando não mesmo improdutivo ou até mesmo inútil. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento dos cursos de graduação e pósgraduação foi bastante grande nas últimas décadas. Um sistema de bolsas de estudo e um investimento notável na pós-graduação formou centenas de mestres e doutores. Esse grande contingente de intelectuais preparados para a desconstrução dos cânones ou para o trabalho especializado com

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arquivos, autores ou temas, por sua vez, não tem campo de atuação na escola básica e média, na qual a literatura tem espaço cada vez menor e importância quase só garantida pela permanência das obras canônicas nos vestibulares das universidades que ainda não adotaram o Sistema de Seleção Unificada (SISU). E sua atuação como professores de universidade, para os que o conseguiram, tem como público estudantes que também não terão lugar como docentes de literatura no ensino médio. Por fim, por conta de alterações na forma de pensar e gerenciar a universidade e os recursos financeiros a ela dedicados, esses professores universitários não são primacialmente professores, e sim pesquisadores. Deles se exige principalmente produção de conhecimento novo, na forma de publicações em revistas especializadas e livros. Uma consequência direta desse desenho que acabo de traçar – e que talvez não caracterize somente a situação brasileira – é a profusão dos estudos chamados interdisciplinares, em que a avaliação da pertinência e da competência é menos rigorosa. Já não se trata de literatura vista a partir de múltiplos pontos de vista, conforme a demanda do texto, mas de um recorte, uma linha de trabalho mais ou menos especializado que tem como objeto “literatura e” alguma coisa – usualmente “alguma coisa” que exigiria uma formação específica que falta. Ou, para dizer como António José Saraiva o fez numa conferência na Unicamp, trata-se de tentar conhecer algo recorrendo a outra coisa que conhecemos ainda menos. Outra consequência notável desse estado de coisas, do meu ponto de vista, é a proliferação dos jovens doutores que se definem apenas como teóricos ou professores de Teoria – assim mesmo, sem determinante e com maiúscula. A chamada Teoria é uma resposta eficiente à demanda produtivista e à perda de importância da literatura no conjunto dos conhecimentos universitários. Com a vantagem de não ser Filosofia, o que demandaria um conhecimento específico que normalmente falta ao “teórico” que atua nas faculdades de Letras. Mas a real vantagem da Teoria é que ela permite gerar uma profusão de textos que se comentam entre si e que se destinam à comunidade de autores da própria Teoria. A moda, portanto, não tem pequena importância na definição seja dos temas, seja da linguagem. E a postura típica do “teórico” é falar sobre um objeto a partir de um ensaio de um autor em alta, de última moda, ou a partir de uma ou outra metáfora

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que se descubra no objeto ou se recolha de autor reconhecido no campo da Teoria. A erudição, a contextualização, a recomposição da tradição interpretativa sobre o objeto perdem interesse. Como dirá um dos teóricos recentes, Richard Rorty (1999, p. 220), o crítico forte é aquele que “não pergunta nem ao autor nem ao texto quais são as suas intenções, mas malha simplesmente o texto até tomar uma forma que serve os seus próprios propósitos”. A conjunção desses fatores torna a discussão sobre o ensino de literatura um tanto ociosa. Como também torna algo ocioso o debate universitário sobre a perda do relevo social da literatura, pois tudo o que se tem a dizer, depois de aceito o quadro, é repetir, ampliando os pormenores, o já sabido e o já conhecido. Porém, uma vez afirmado esse fato no interior da universidade, e postulado que o trabalho literário consiste no desmonte das construções ideológicas sobre a literatura e a sua história, a pergunta fatal será: por que o Estado deveria manter as faculdades de Letras? E se a resposta à pergunta ingênua e brutal “para que serve a literatura?” for a de que “a literatura não serve para nada”, qual a justificativa para se demandar conhecimento literário dos postulantes a uma matrícula na universidade? E qual o sentido, finalmente, de formar professores de literatura? Este, eu creio, é o momento atual. É certo que a questão que enuncio é mais ou menos sensível conforme o lugar. Mas não penso que esteja errado ao dizer que tenha ressonância entre todos os que trabalham hoje na área das Letras. A solução para o que entendo como impasse não me parece que resida na maior especialização do crítico e do professor, consubstanciada num discurso autorreferenciado e hermético para os não especialistas. Tampouco creio que passe pelo que me parece ser hoje um movimento curioso e forte: o de a crítica ocupar o lugar da literatura, seja como prática, seja como interesse crítico. Passaria, isso sim, pela busca de um lugar novo para a literatura, no âmbito de uma formação humanística ampla, em que a preocupação central não fosse a formação de professores de português ou de literatura. Para a conquista desse lugar, a erudição do professor e do crítico, a multiplicidade dos seus interesses e o ecletismo das suas perspectivas

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de aproximação ao texto seriam de primeira importância, pois ele seria antes de tudo um professor de leitura, um profissional capaz de obter o maior rendimento da leitura de um texto literário com vistas à formação de um público culto, capaz de extrair do passado o diferente, o que ainda permanece vivo e o que já morreu, e também capaz de perceber no presente o que já está em vias de deixar de ser ou de se renovar, ou ainda, com sentido diverso, ressuscitado do passado. E aqui termino este talvez muito longo depoimento, que possivelmente diga respeito apenas ao que tenho observado e feito no lugar que me coube no sistema universitário brasileiro. Minha esperança é que, por meio dele, outros possam, em situação diferente e aproveitando a experiência relatada, levar adiante a reflexão sobre o que me parece ser evidente para todos, que é a crise dos estudos universitários de literatura, especialmente no que diz respeito ao ensino de graduação e de pós-graduação.

Referências AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. 4. ed. Brasília: Ed. da UnB, 1963. BOSI, Alfredo (Org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996. BOSI, Alfredo. Sobre alguns modos de ler poesia: memórias e reflexões. In: BOSI (Org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996. CANDIDO, Antonio. A passagem do dois ao três. Revista de História da Universidade de São Paulo, n. 100, v. L, ano XXV, São Paulo, 1974.

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CANDIDO, Antonio. Entrevista concedida ao Brasil de Fato. Disponível em: . Acesso em: jul. 2011.

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CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 12. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2009. CANDIDO, Antonio. Literatura – Sociologia: análise de “O cortiço” de Aluísio Azevedo. Cadernos da PUC, n. 28, 1976. (Série Letras e Artes) CANDIDO, Antonio. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 1985. COUTINHO, Afrânio (Org.). A literatura no Brasil. 7. ed. São Paulo: Global, 2004. 6 v. HAVIGHURST, Robert J.; MOREIRA, J. Roberto. Society and education in Brazil. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1965.

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KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária: introdução à ciência da literatura. 4 ed. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1967. LAGARDE, André; MICHARD, Laurent. XIXe siècle: les grands auteurs français du programme. Paris: Bordas, 1957. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. 3 ed. Ponta Grossa: Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa, s.d. v. 7. MELO, Alfredo César Barbosa de. Pressupostos, salvo engano, de uma divergência silenciosa: Antonio Candido, Roberto Schwarz e a modernidade brasileira. Revista Álea, julho/dezembro de 2014. Disponível em: . RORTY, Richard. Consequências do pragmatismo. Trad. João Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da malandragem”. Cadernos de Opinião, 13, São Paulo, 1979. WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da litetura. Lisboa: Publicações Europa-América, 1971.

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Sobre os autores Alamir Aquino Corrêa Graduado em Letras pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília (UnB, 1978), e em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL, 1995), mestre em Literatura pela UnB (1982), doutor em Literaturas Hispânicas – Indiana University Bloomington (1990). Professor Associado da UEL, atua nas seguintes linhas de pesquisa: literatura brasileira, morte na literatura, história literária, morte e teoria literária. É bolsista de produtividade do CNPQ e parecerista de revistas acadêmicas; foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação da UEL (2006-2010).

Alckmar Luiz dos Santos Graduado em Engenharia Eletrônica (1983), mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, 1989) e doutor em Estudos Literários pela Université Paris VII (1993). Desde 1994 é professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e, a partir de 1995, coordenador do Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística (NUPILL). Atua nas seguintes linhas de pesquisa: Literatura Brasileira e Teoria Literária, principalmente com teoria do texto, literatura e filosofia, hipertexto e texto digital, poesia. É também poeta, romancista e ensaísta. Autor de diversos livros, entre eles Ao que minha vida veio... (romance; vencedor do Concurso Salim Miguel da Editora da UFSC, 2011). Foi homenageado como pesquisador-destaque da UFSC em 2011.

Aline Magalhães Pinto Graduada em História com formação complementar em Filosofia (2005), mestre em História (2008), ambos pela Universidade Federal de Minas Gerais, e doutora em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2013), com estágio doutoral realizado na L’École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, como bolsista CapesPDEE (2011-2012). Em 2014, o trabalho foi contemplado com o prêmio de melhor tese em Teoria concedido pela Sociedade Brasileira de Teoria da História e da Historiografia. Atualmente, é bolsista de Pós-doutorado Júnior (PDJ/CNPQ), na área de Teoria Literária. Atua nas seguintes linhas de pesquisa: História da Historiografia, Teoria Literária, Teoria e Filosofia da História, História Intelectual e História dos Discursos, principalmente nos seguintes temas: historicidade, modernidade, metáfora e imagens, cultura francesa, história e teoria literária.

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André Cechinel Graduado em Letras-Inglês, mestre e doutor em Teoria Literária, todos os cursos pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor de Teoria Literária e Literatura da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Atua nas seguintes linhas de pesquisa: Letras-Inglês, principalmente nos seguintes temas: Literaturas estrangeiras modernas, Literatura e ensino, Literatura comparada e Textualidades contemporâneas.

Cristiano de Sales Licenciado em Letras-Português, mestre e doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Estágio doutoral na Université Paris III – Sorbonne Nouvelle. Professor de literatura na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Atua nas seguintes linhas de pesquisa: Literatura vernácula, teoria literária e literaturas digitais.

Dalva de Souza Lobo Graduada em Letras pela Faculdades Integradas Tibiriça (2002), mestre (2006) e doutora (2012) em Letras, ambos pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integra o Núcleo de Pesquisa em Informática Literatura e Linguística (NUPILL) desde 2008. Atualmente é professora na Universidade Federal de Lavras (UFLA), na qual é membro tanto do grupo de pesquisa Teoria crítica e educação como do Núcleo de Estudos em Linguagens, Leitura e Escrita (Nelle), assim como participa do projeto de extensão Cinema com vida.

Eduardo Subirats Nasceu em Barcelona em 1947, estudou em Paris e Berlim nos anos 1970, foi professor de filosofia, arquitetura, literatura e teoria da cultura em São Paulo e Caracas, além de Madrid, México e Princeton. É autor de mais de quarenta títulos, entre obras individuais e edições coletivas. Seus livros de maior destaque são La existencia sitiada (2006); Filosofía y tiempo final (2010) e Mito y literatura (2014). Atualmente é professor da New York University (NYU). O LUGAR DA TEORIA LITERÁRIA

Eneida Maria de Souza

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Doutora em Literatura Comparada – Semiologia – Université de Paris VII (1982). Professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora 1A do CNPq. Últimos títulos publicados: Correspondência: Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa (organização, introdução e notas, 2010; prêmio Jabuti 2011); Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica (2011); Modernidade toda prosa, em coautoria com Marília Rothier (2014).

Fabio Akcelrud Durão Graduado em Português/Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor em Literatura pela Duke University. É professor livre-docente do Departamento de Teoria Literária da Unicamp. É autor de diversos livros, entre eles: Teoria (literária) americana

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(2011) e Fragmentos reunidos (2015). Editor associado da revista Alea, publicou diversos artigos no Brasil e no exterior. Atua nas seguintes linhas de pesquisa: Escola de Frankfurt, o modernismo de língua inglesa e a teoria crítica brasileira.

Flavia Trocoli Graduada em Letras s (1997), mestre (2000) e doutora em Teoria e História Literária (2004) e pós-doutora em Linguística (2004-2007) todos os cursos pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É membro fundadora do Centro de Pesquisas Outrarte – psicanálise entre ciência e arte, do IEL/Unicamp. É autora de A inútil paixão do ser: figurações do narrador moderno (2015). Organizou com Nina Leite duas coletâneas intituladas: Um retorno a Freud (2008) e Giros da interpretação: o enigma na literatura e na psicanálise (2015).

Ivete Walty Graduada em Letras, mestre em Estudos Literários, ambos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora em Literatura Comparada e Teoria Literária pela Universidade de São Paulo, com pós-doutoura pela Universidade de Ottawa, Canadá. É professora do Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e professora emérita da UFMG. Pesquisadora nível 1 D do CNPq, desenvolve, no momento, o projeto “A prisão escrita na literatura brasileira”. É autora de diversos livros, entre eles: Corpus rasurado: exclusão e resistência na narrativa urbana (2005) e A rua da literatura e a literatura da rua (2014).

Jonathan Culler Professor de Inglês da Cornell University. Suas publicações incluem estudos sobre o estruturalismo, a crítica literária e a teoria literária. Suas principais obras são: Structuralist Poetics: Structuralism, Linguistics and the Study of Literature (1975); Literary Theory: A Very Short Introduction (1997) e The Literary in Theory (2007). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1959) e doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (1972). Atualmente é professor emérito do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atua principalmente nas seguintes áreas: Teoria da literatura, história e crítica literária, literatura brasileira, teoria e filosofia da história, história dos discursos. Autor de diversos livros, entre eles: História. Ficção. Literatura (2006); Trilogia do controle (2007) e Mimesis: desafio ao pensamento (2. ed., 2014), alguns deles traduzidos para o inglês e o alemão.

Márcio Seligmann-Silva Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986), mestre em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade de São Paulo (1991), doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Freie Universität Berlin (1996), pós-doutor pelo Zentrum Für Literaturforschung Berlim (2002) e por Yale (2006). É professor titular de

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Sobre os autores

Luiz Costa Lima

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Teoria Literária na Unicamp e pesquisador do CNPq. É autor de diversos livros, entre eles: Ler o livro do mundo: Walter Benjamin – romantismo e crítica poética (1999, vencedor do Prêmio Mario de Andrade de Ensaio Literário da Biblioteca Nacional em 2000), O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (2005, vencedor do prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária 2006), Possuí vários ensaios publicados em livros e revistas no Brasil e no exterior. Atua principalmente nos seguintes temas: Romantismo alemão, Teoria e história da tradução, Teoria do testemunho, Memória da violência das ditaduras na América Latina, Literatura e outras artes, Teoria das mídias, Teoria estética do século XVIII ao XX e a Obra de Walter Benjamin.

Maria da Glória Bordini Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1969), mestre (1983) e doutora (1991) em Letras/Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É professora emérita na UFRGS e na PUC-RS. É pesquisadora 1B do CNPq. Atualmente é professora colaboradora convidada da UFRGS no Programa de Pós-Graduação em Letras. É uma das editoras da revista binacional Brasil/Brazil. Sua especialidade é Teoria da Literatura. Atua nas seguintes linhas de pesquisa: Érico Veríssimo, acervos literários, Literatura brasileira e portuguesa e Poesia lírica.

Nabil Araújo

O LUGAR DA TEORIA LITERÁRIA

Graduado em Letras, mestre e doutor em Estudos Literários, todos os cursos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na qual lecionou disciplinas nas áreas de Teoria da Literatura e de Literatura Comparada. Atualmente é professor adjunto de Teoria da Literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Suas publicações no campo dos Estudos Literários incluem capítulos de livros e diversos artigos em periódicos acadêmicos de destaque. Organizou o volume A crítica literária e a função da teoria: uma reflexão em quatro tempos (2015). Seu projeto “Ensino de literatura e desenvolvimento da competência crítica: uma ‘terceira via’ didático-pedagógica” foi premiado pela Fundação Carlos Chagas como a melhor experiência educativa inovadora realizada por docente de Licenciatura em 2014. Atua nas seguintes linhas de pesquisa: Teoria da Literatura, História da Crítica, Ensino de Literatura.

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Paulo Franchetti Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (1992) e livre-docente pela Unicamp (1999). Professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atua na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, Literatura Brasileira dos séculos XIX e XX e Literatura Portuguesa do século XIX. Seus trabalhos principais versam sobre Poesia Concreta, Camilo Pessanha (de cuja poesia fez a edição crítica) e Machado de Assis. De 2002 a 2013, dirigiu a Editora da Unicamp, presidindo seu Conselho Editorial.

Peter Barry Professor de Inglês da Aberystwyth University, UK. Publicou artigos sobre a literatura dos séculos XX e XXI (especialmente poesia moderna e contemporânea) e teoria literária. Suas áreas de interesse são também o Romantismo e o conto, bem como a teoria e prática do ensino

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de literatura inglesa e da teoria literária. Autor de diversos livros, entre eles: English in Pratice (2003) e Poetry Wars: Bristish Poetry of the 1970s and the Battle of Earls Court (2006).

Regina Zilberman Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1970), doutora em Romanística – Universidade de Heidelberg (Ruprecht-Karls) (1976), e pós-doutora no University College (Inglaterra) (1980-1981) e Brown University (EUA) (1986-1987). Atualmente é professora adjunta do Instituto de Letras da UFRGS, com atuação no Programa de Pós-Graduação em Letras. Atua na linha de pesquisa: História da Literatura, principalmente nos seguintes temas: leitura, história da literatura, literatura do Rio Grande do Sul, formação do leitor e literatura infantil.

Sérgio Luiz Prado Bellei

Sobre os autores

Graduado em Letras (Português/Inglês) pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Marília (1970), mestre em Letras (Literatura Inglesa) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1973) e doutor em Letras pela University of Arizona (1978). Realizou dois pósdoutorados em Teoria Literária: Princeton University (Teoria do Romance), em 1996, e University of Massachussetts (Pós-colonialismo), em 1990. Atuou como professor titular na Universidade Federal de Santa Catarina até 2008. Atualmente é professor titular de Teoria Literária na Universidade Federal de Minas Gerais. Suas linhas de ensino e pesquisa englobam: Teoria Literária e Cultural (com ênfase em Cibercultura, Pós-colonialismo e Pósestruturalismo) e Literaturas de Língua Inglesa.

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Este livro foi editorado com as fontes Minion Pro e DIN-Medium. Miolo em papel pólen soft 80 g; capa em cartão supremo 250 g. Impresso na Gráfica e Editora Copiart em sistema de impressão offset.

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