O jogo: Entre o riso e o choro (Portuguese Edition) [1 ed.] 9788574963822

"Jogo, educação e educação física mantêm há muito uma estreita relação, porém são poucos os estudos que os relacion

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O jogo: Entre o riso e o choro (Portuguese Edition) [1 ed.]
 9788574963822

Table of contents :
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
Sumário
Apresentação
Introdução
Capítulo 1 O jogo inevitável
O senhor do jogo
Quando me adiantei ao tempo
Capítulo 2 A energia do jogo
Os jogadores de avelórios
Fazer sem se cansar
As mães do homem
Quando há falta, trabalho; quando há excesso, jogo
Fazer cultura ou acumular gordura
Capítulo 3 A formação do símbolo
Entre o riso e o choro
Capítulo 4 A caracterização do jogo
O inventário do jogo
Capítulo 5 A ambientação do jogo
O ser e o jogo
Além do sujeito do jogo
Capítulo 6 Jogo e educação
Um aspecto esquecido da aprendizagem
A fábrica de símbolos
Inteligência criativa
A descoberta de cada um
A face utilitária do jogo
Considerações finais
Referências bibliográficas
Sobre o autor

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O JOGO ENTRE O RISO E O CHORO

O JOGO ENTRE O RISO E O CHORO

JOÃO BATISTA FREIRE

COLEÇÃO EDUCAÇÃO FÍSICA E ESPORTES

Copyright © 2017 by Editora Autores Associados Ltda. Todos os direitos desta edição reservados à Editora Autores Associados Ltda. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Freire, João Ba sta O jogo [livro eletrônico]: entre o riso e o choro / João Ba sta Freire. –Campinas, SP : Autores Associados, 2017. – (Coleção educação sica e esportes) 2 Mb ; ePUB. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7496-382-2 [e-book] 1. Educação sica 2. Esportes 3. Jogos – Pesquisa I. Título. II. Série.

17-05639 Índices para catálogo sistemá co: 1. Jogos : Pesquisa : Educação sica 613.71072 E-book – junho de 2017 Conversão EPub – Bookwire EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA. Uma editora educa va a serviço da cultura brasileira Av. Albino J. B. de Oliveira, 901 | Barão Geraldo CEP 13084-008 | Campinas-SP Telefone: +55 (19) 3789-9000 E-mail: [email protected] Catálogo on-line: www.autoresassociados.com.br Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho” Bernardete A. Ga Carlos Roberto Jamil Cury Dermeval Saviani Gilberta S. de M. Jannuzzi Maria Aparecida Mo a

CDD–613.71072

Walter E. Garcia Diretor Execu vo Flávio Baldy dos Reis Coordenadora Editorial Érica Bombardi Revisão Marília Marcello Braida Aline Marques Capa – Arte-Final Capa baseada em Escadas cruzando o céu azul numa roda de fogo, de Miró Milton José de Almeida

Quero agradecer a dedicação e o companheirismo de minha esposa, Mara, enquanto eu realizava este trabalho. Foi ela quem, com extremo carinho, fez a revisão crítica e ortográfica do texto. Não conheço quem saiba, tão bem quanto a Mara, misturar as coisas que nunca queremos misturar, como sentimento e razão, subjetividade e objetividade, jogo e trabalho. Isso requer coragem e bondade. Isso nos faz humanos. Este trabalho é dedicado a ela.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 O JOGO INEVITÁVEL O Senhor do Jogo Quando me adiantei ao tempo CAPÍTULO 2 A ENERGIA DO JOGO Os jogadores de avelórios Fazer sem se cansar As mães do homem Quando há falta, trabalho; quando há excesso, jogo Fazer cultura ou acumular gordura CAPÍTULO 3 A FORMAÇÃO DO SÍMBOLO Entre o riso e o choro

CAPÍTULO 4 A CARACTERIZAÇÃO DO JOGO O inventário do jogo CAPÍTULO 5 A AMBIENTAÇÃO DO JOGO O ser e o jogo Além do sujeito do jogo CAPÍTULO 6 JOGO E EDUCAÇÃO Um aspecto esquecido da aprendizagem A fábrica de símbolos Inteligência criativa A descoberta de cada um A face utilitária do jogo CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SOBRE O AUTOR

APRESENTAÇÃO

O professor João Batista brinda-nos com mais um livro. Trata-se de um texto duplamente importante: primeiro, porque se refere a sua tese de livre-docência; segundo, porque implica uma reflexão sobre um tema que atravessa toda a vida profissional e pessoal deste autor: sua relação com os jogos e tudo o que pôde aprender e ensinar por intermédio deles. Além disso, como sempre, o livro está bem escrito e expressa um estilo ensaísta, bem argumentado, amoroso e ao mesmo tempo crítico e dialógico. As relações entre jogo e educação, jogo e cultura, jogo e sociedade, jogo e processos de desenvolvimento da criança, jogo e vida são tecidas juntas, de forma complexa e aberta, como quer Edgar Morin, um dos autores preferidos de João Batista. A propósito, é agradável e bom apreciar como ele dialoga com os textos e os autores que escolheu para acompanhá-lo, como adversários ou parceiros, neste belo torneio que constitui seu livro: Piaget, Brougère, Buytendijk, Domenico de Masi, Freinet, Hess, Huizinga, Sartre, entre outros.

Valoriza-se hoje, não sem razão, para a formação continuada de professores, que eles possam, preferencialmente por escrito ou por algum registro, durável além das palavras ou da linguagem oral, refletir sobre sua prática e sobre ideias que lhes sirvam de fundamento. A reflexão, portanto, é um corpo de conhecimentos que caminha sobre duas pernas: de um lado, um saber sobre os procedimentos, sentimentos e valores presentes e fiadores de nossa prática; de outro, um saber sobre as razões, conceitos, ideias que eventualmente possam iluminá-la ou dar-lhe sentido. Mas esses saberes não hão de ser apenas uma repetição ou imitação, às vezes mal assimilada, dos saberes correspondentes a práticas reconhecidas ou instituídas, nem de autores ou ideias consagradas ou da moda. É necessário que esses saberes expressem, também e principalmente, os modos de compreender e realizar de seus autores, que assumem suas hipóteses, seus modos de pensar, suas práticas, que aprendem com seus erros, com sua história de vida, que dialogam criticamente com suas referências teóricas e com seus colegas de ofício. Lembro-lhes essas coisas para dizer o quanto apreciei o estilo reflexivo, no duplo sentido assinalado, e crítico do professor João Batista. Reflexivo porque, como mencionado, está atento e aberto aos seus colegas e adversários que fazem do jogo, como ele, um motivo de vida e realização. Reflexivo, porque reconhece e respeita as diferenças entre ele e esses autores, porque não se subordina, nem se exclui, mas se afirma na singularidade de seu modo de pensar e se coloca na diversidade dos modos de se

considerar esse tema – o jogo – em suas infinitas e eternas relações com outros temas de nossa vida, individual ou coletiva. Reflexivo, porque testemunha a importância vital do jogo para ele. Reflexivo, porque narra sua relação pessoal com os jogos em momentos significativos de sua vida: por exemplo, de criança e funcionário de um banco, na cidade de Santos. Reflexivo, porque rememora sua prática, reconhecida por todos, de professor de educação física, treinador, pensador e ensaísta no campo da educação. Além disso, o autor entregase – com sucesso – a uma tarefa muito difícil: caracterizar o que é jogo e como diferenciá-lo e integrá-lo com outras formas de vida ou de realizações humanas, não o confundindo com a própria vida. Explico: a vida (respirar, dormir, ler, pensar etc.) não é um jogo, as formas de viver é que são jogos, jogos em que – como o autor assinala muito bem – só podemos ser, muitas vezes, peças de um tabuleiro tão injusto e desigual. Mas, se somos peças, não podemos também ser jogadores e, quem sabe, reivindicar regras e desafios para os quais temos também, pelas nossas qualidades e pela equidade das relações em jogo, ter chances de jogar e talvez ganhar? Porque esse é o lado terrível de nossa sociedade, tão consumista, individualista e insensata: somos peças e não podemos jogar, apenas ser jogados; e se conquistamos o direito de ser jogadores, as regras, as metas e as condições não são claras e são reformuladas segundo interesses que desequilibram o jogo em favor de uma outra parte. Não quero concluir esta apresentação com o tom melancólico, crítico e, talvez, cético, expresso no parágrafo

acima. O livro do João, como já lhes disse, fala de tudo o que já foi mencionado e muito mais ainda, com alegria, leveza e profundidade. Corresponde ao texto de um intelectual, que não esqueceu a vida e o prazer de vivê-la, que recupera, por intermédio dos jogos, a mesma função que ele tem nas crianças: ensiná-las, quanto aos mistérios e desafios da vida, de forma lúdica e simbólica. Lúdica, porque valoriza o prazer da função: repetir, errar, tentar mais uma e infinitas vezes, algo que lhe faz sentido de forma direta e simples. Realizar porque se quer realizar. Realizar, não por suas consequências, por outras necessidades além da própria função, de seu aperfeiçoamento, de seu lugar como elo que une um desejo, uma querença, a um resultado ou meta. Realizar, como parte de um processo que faz sentido, que desafia para um fazer melhor, fazer de outros jeitos, que faz da perda ou insuficiência um motivo para ser melhor, ser melhor apenas e unicamente em relação a si mesmo. O outro – objeto ou pessoa – que resiste, ganha, dificulta, surpreende, solicita-nos mais análise e melhoria, é como se fosse um espelho de nós mesmos, a anunciar aquele futuro com que tanto sonhamos e que tanta importância terá para nossa sociedade ou cultura. Simbólica, porque o jogo nos lembra ou simula os segredos de nossa vida: inteiros e únicos, só somos uma metade, que há de se completar, sem reduzir-se aos outros (pessoas e coisas), com os quais estamos indissociavelmente ligados, formando uma imensa rede, cujo nome, por mais que na prática o neguemos, é UNI-VERSO.

São Paulo, 18 de novembro de 2001 Lino de Macedo Professor Titular do Instituto de Psicologia da USP

INTRODUÇÃO

Suponho que seja o viés de todo pedagogo perseguir o ensinar melhor; essa é a sua arte, a sua obsessão. Não estranhem, portanto, não perceberem no meu trabalho o entalhe típico da pesquisa científica ou o da reflexão filosófica, pelo menos nos seus moldes clássicos, uma vez que estão a me orientar não apenas o plano de pesquisa traçado com rigor, mas também as minhas subjetividades conscientes e inconscientes. A tarefa de pesquisar o jogo é gigantesca e excedeu as possibilidades de investigação de vários autores considerados neste estudo, todos eles, sem dúvida, apreciados pela comunidade acadêmica no Brasil ou fora dele, e inconfundivelmente mais preparados que eu, no momento, quanto ao tema abordado. Apesar dos limites e vieses apontados logo ao início, percebo no fenômeno do jogo um vasto campo de investigações ainda não suficientemente explorado. E afirmo isso porque investiguei o que escreveram diversos estudiosos do assunto, além de considerar minhas próprias experiências de jogar e de observar pessoas jogando, e notei que é como se o jogo encerrasse em si um segredo guardado a sete chaves a

desafiar aqueles que, não contentes em desfrutar de suas práticas, pretendessem decifrá-lo. Pareceu-me, inclusive, que esse desafio faz parte do próprio jogo e seria mesmo uma maneira de jogar. Pelo que percebo, nesse aspecto todos os pesquisadores que conheci saíram perdedores do confronto. Quem sabe não estaria aí uma indicação sutil quanto aos procedimentos a serem levados em conta, tanto para investigar quanto para ensinar? Do mesmo modo como deveríamos, os pedagogos, ensinar uma criança considerando, na base do método, que ela é uma criança, assim também os pesquisadores teriam que tomar como base de seu método, para investigar o jogo, a ideia de que são jogadores. Por outras palavras, estou afirmando que uma criança só pode aprender bem se puder seguir sendo criança durante a aprendizagem, e que o investigador do jogo deveria deixar-se conduzir pela conduta lúdica para que o seu objeto de estudos não perdesse suas características básicas. A questão, portanto, que levanto logo ao início deste trabalho é: qual o segredo do jogo? O que tem o jogo, na sua mais profunda intimidade, que deixa os pesquisadores a meio do caminho, como se caminhassem ao longo de uma profundíssima caverna cuja luz fosse desaparecendo quanto mais fundo a penetrassem? A partir de um certo ponto, tão terrível e amedrontadora se tornaria a escuridão, que o pesquisador retornaria à entrada, descrevendo e comentando apenas aquilo que pôde perceber na periferia da gruta. É claro que há os que se aventuram um pouco mais, outros um pouco menos, alguns enxergam melhor, mas o segredo

continua indecifrado porque está guardado mais fundo, desafiando a coragem dos exploradores. Vejam que inicio o trabalho levantando, logo à partida, um tema instigante que eu mesmo não deverei esgotar. De forma que preciso deixar claro que este estudo não promete conclusões, o que é perfeitamente legítimo em qualquer investigação. Levantar dados, abrindo caminho para futuras investigações mais aprofundadas, é um dos papéis do trabalho científico e, por enquanto, basta-me. Volto ao que escrevi nas primeiras linhas. Posso ser identificado, ao final deste trabalho, apenas como o pedagogo que sou. E, como tal, eu teria partido em busca dos elementos que enriquecem o ato de ensinar. Teria ido procurar no jogo maneiras de incluí-lo no ato pedagógico. Deixarei para o final deste estudo a tarefa de abordar mais especificamente o tema do jogo na educação. Foi um tanto decepcionante para mim ler o que escreveram a respeito desse tema autores brilhantes, como Gilles Brougère (1998) e Domenico De Masi (2000); eu esperava mais. O primeiro praticamente desiste de enxergar no jogo aspectos educacionais, não indo muito além de advertências quanto aos seus maus usos, nitidamente esquivando-se à dificílima tarefa de ir mais fundo nos mistérios do fenômeno lúdico. O sociólogo italiano, de sua parte, reserva para seu ócio criativo exclusivamente o jogo mental. Não há físico, não há corpo no futuro lúdico de De Masi. Teria ele deixado escapar a evidência de que o século XX foi, entre outras coisas, o século da descoberta do corpo?

Antes empreenderei esforços para dar contornos mais nítidos àquilo que chamo de a inevitabilidade do jogo. Agora mesmo, no momento em que escrevo este texto, ouço o barulho de meus sobrinhos brincando. Colocaram um rock no aparelho de som e acompanham a música imitando músicos, batendo os pés no chão e gritando. Um deles tem apenas três anos e é um dos mais entusiasmados. De repente chegou, do trabalho, sua mãe. Era hora do banho e do almoço e ela o tirou da brincadeira para tratar dessas coisas reais. Parecia que o levavam para a morte. Ele chorava, esperneava, gritava, lamentava em todos os tons. Sem dúvida alguma, para ele, nada no mundo poderia ser pior que tirá-lo do jogo. Durante os dias que passamos juntos, não consegui flagrá-lo um instante sequer, daqueles em que estava livre de tarefas, em que não estivesse brincando. A procura pelo jogo não é menor que a procura pela comida, portanto, ele deve constituir, como esta, uma necessidade básica. Outro ponto, entre tantos aqui levantados, aborda a questão da energia consumida no ato de jogar. Parece que quem joga não se cansa, ou se cansa muito menos que quando trabalha. Já observei pais quedarem exaustos depois de tentarem acompanhar as brincadeiras de seu filho pequeno. De onde vem tanta energia? Tudo indica que de uma reserva necessária para construir aquilo que a natureza não supriu ao nascimento: a cultura humana. Atraído por tantos estudos realizados a respeito do jogo, selecionei alguns deles e me surpreendi com o esforço de

vários autores que buscavam caracterizar o fenômeno lúdico inventariando suas manifestações mais típicas. Por mais que levantassem ocorrências, não chegavam ao fim. Essa forma positiva de estudar o problema, mais o oculta que o revela. Passamos séculos, desde a inauguração da ciência moderna, fragmentando cada fenômeno para tentar compreendê-lo a partir do estudo de suas partes. Ao juntá-las, o conjunto frustra-nos. O fenômeno humano, como a natureza de modo geral, é complexo e não pode ter soluções simplistas. Porém, ter olhos para a complexidade exige bem mais que um certo esforço de mudança. Somente a ruptura com paradigmas clássicos e o surgimento de outros que os substituam podem permitir aos pesquisadores enxergar o mundo, talvez, como ele seja de fato.

CAPÍTULO • UM

O JOGO INEVITÁVEL

O tempo de brincar nunca passa, lembrando que o humano é sempre criança, e o futuro é o espaço de crescer, de ir adiante. As marcas da idade na pele do rosto não apagam o jovem que sempre teremos que ser. As tristezas contam suas histórias nas rugas da fronte, mas os risos continuam brincando nos vincos profundos ao redor dos olhos e da boca. Passado tanto tempo, as brincadeiras não nos abandonam. O jogo é o humano dos nossos corpos tão vividos e ainda toma conta do nosso destino. Se as pernas nos faltam, não nos falta a imaginação, e continuamos seguindo para aquele adiante que é o inatingível ponto de chegada de todo animal que se fez humano. Se antes eram os campos de futebol, agora são os tabuleiros, os livros, os vídeos e, principalmente, a imaginação que nos alegram. Mãos e imagens, sempre ágeis, deslocam as peças de mil novos jogos descobertos ou redescobertos pela paciência jovem da velhice. Divertimo-nos

relembrando os folguedos de infância, alguns, do tempo em que éramos pouco mais que bebês, extraordinariamente vivos mesmo agora quando a pele um tanto envelhecida do corpo se dobra caprichosamente em sulcos e curvas. Algo extraordinário acontece a muitos de nós nesta idade o mundo arrebatador do jogo, que nos irresistivelmente durante nossa meninice, volta a nos, mais irresistível que nunca. O Senhor do Jogo

madura: tragava chamarprocura,

aos poucos, ser novamente o senhor dos nossos atos.

O SENHOR DO JOGO No começo de nossa vida o jogo nos guiava como uma divindade: absoluto, mas pouco percebido. Nem sabíamos que jogávamos. Por pouco não nos esquecíamos de voltar ao mundo real e ficávamos à mercê do Senhor do Jogo para sempre. Nem sei como lhe escapamos. Depois, veio o amadurecimento e o jogo acalmou-se, ficou um tanto morno, meio esquecido, porém, sempre à espreita. E agora, nessa última fase da vida, volta a ser arrebatador, como se não houvesse mais motivos disponíveis para se esquivar de jogar ou de ser jogado. Há um tempo que passa muito depressa para todas as pessoas. Temos dois tempos na nossa vida, esse que passa muito depressa, que é o tempo das tarefas reais, das coisas novas para aprender, do trabalho para fazer, que é previsível, cronometrado, sempre ajustado, Khrónos, e o tempo do eterno, o tempo sem tempo, em que as coisas do real se

perdem, kairos (ALTARRIBA, 1998). Igual quando a gente sonha e parece que sonhou horas a fio, e acorda e vê que dormiu há pouco. E agora, se sonhamos, dormindo ou acordado, é do sonho que não queremos sair, que nem quando criancinha, e só porque alguma coisa muito forte nos puxa para o lado de cá é que ainda escapamos do Senhor do Jogo. E se um dia não voltássemos mais? Pois não foi isso que aconteceu naquele livro chamado A história sem fim? (ENDE, 1985). O personagem central do livro, Bastian, empenhava-se na tarefa de reconstruir Fantasia, o mundo da imaginação humana, que tinha sido quase completamente destruído pelo Nada, uma peste avassaladora que esvaziava de sonhos e esperanças as pessoas e as controlava depois de vazias. Para levar a cabo sua obra Bastian deveria realizar seus desejos. O que ele desejava, em Fantasia construía-se de imediato. Só que havia um limite para os desejos e era preciso guardar, por último, o de voltar ao mundo humano, de onde ele saíra. Nas suas viagens, passou por uma cidade em que as pessoas se comportavam como loucas, usavam abajures sobre a cabeça e barbeavam espelhos. Ao único ser vivo lúcido que encontrou, um macaquinho, Bastian perguntou o que faziam aquelas pessoas. O símio explicou-lhe que, no princípio, não queriam voltar para seus mundos, mais tarde, não podiam mais. Gastaram todos os desejos. Haviam se esquecido de seu mundo. A sedução de Fantasia tomara-os para sempre. Quando Bastian finalmente conseguiu voltar para a realidade, usando seu último desejo, teve com o Sr. Koreander, o livreiro que lhe emprestara para ler A história

sem fim, a seguinte conversa, depois de lhe contar suas aventuras em Fantasia: – Então, acredita em mim? – perguntou Bastian. – É claro! – respondeu o senhor Koreander – Qualquer pessoa sensata acreditaria em você. – O senhor é muito simpático – comentou Bastian – Nunca pensei. – Há pessoas que não podem ir a Fantasia – disse o senhor Koreander – e há pessoas que podem, mas ficam lá para sempre. Porém há outros que vão a Fantasia e regressam. Como você, Bastian. E são esses que devolvem a saúde aos dois mundos [ENDE, 1985, p. 390].

Há o risco, mas é justamente aí que reside boa parte do prazer de jogar aquele jogo de ir e voltar de Fantasia. E, de qualquer maneira, podemos conhecer o segredo de não nos perdermos de vez por lá: basta saber quando se esgotam os desejos e conservar o último para regressar. Há mais prazer nesse ir e vir que em ficar de vez em um dos lados. E, além disso, podemos sempre acreditar no Sr. Koreander: os dois mundos, o real e Fantasia, dependem de gente que joga, como todos nós que nunca abdicamos disso, para continuar existindo. Assim como Bastian, podemos correr o risco de ir cada vez mais longe em Fantasia. A grande diferença entre o agora e nossa meninice é que, atualmente, quase sempre sabemos que estamos jogando e quando meninos, quase nunca sabíamos que jogávamos. Hoje, de posse da racionalidade que não possuíamos como crianças, podemos fazer também das lembranças de nossa infância um jogo.

Depois de descobrir que podemos resistir ao Senhor do Jogo se conservarmos alguma lembrança do mundo real e mantivermos intacto o desejo de retornar, podemos passar a dedicar nossas vidas ao que mais gostamos de fazer, desde que nascemos: jogar. Não sei dos jogos de vocês, nem dos de hoje nem daqueles de suas infâncias. Sei dos meus e dos que posso observar, principalmente nas crianças. Claro que, para exemplificar as coisas que digo, usarei da minha experiência, tanto a que tenho como jogador obsessivo, como a que me deu a vida de professor. Mas insisto: tomem o tempo de suas vidas mais maduras jogando, conhecendo o Senhor do Jogo e arriscandose a ser seduzidos por ele.

QUANDO ME ADIANTEI AO TEMPO Um dos jogos que mais me divertem é imaginar-me novamente criança brincando daquelas brincadeiras de fazer de conta ou de jogar bola, sozinho ou com meus colegas de infância. A mãe e o pai ficavam cismados quando eu contava as histórias do tempo em que tinha sido moleque. Entre os outros moleques da rua eu usava calça curta e boné listrado, andava de carrinho de rolimã ladeira abaixo e empinava pipa, dizia palavrões e brigava de tirar sangue do nariz dos outros. A mãe olhava-me como se olha para um doido, mas logo se recuperava e dizia que era coisa de criança, e mandava-me parar de falar bobagens, eu só tinha três anos e ela nunca

deixaria que ficasse moleque daquele jeito. Era difícil entender que os adultos não acreditassem numa coisa tão verdadeira. Pois se eram tão vivas as lembranças daquele tempo em que eu já havia sido moleque! Tão pequeno ainda, tão convencido de que dizia a verdade, era como se estivesse totalmente à mercê do Senhor do Jogo. Indefeso ante a sedução do jogo, era de espantar que voltasse ao mundo real em que moravam meus pais. Com menos de três anos de idade, não havia racionalidade consistente ainda para me manter ancorado à realidade. E, no entanto, não vemos crianças loucas, mas apenas crianças que fazem coisas como eu fazia quando afirmava ter sido moleque e que eram encaradas como bobagens pelos mais velhos. Fossem os adultos fazer em público as coisas que os pequenos fazem e seriam presos ou internados como insanos. Mas se eu não possuía dispositivos para estar ancorado por conta própria ao real, havia pessoas à minha volta que o faziam para mim e me chamavam de volta para a realidade. Ao longo do tempo, tive de criar tais dispositivos, para não ser aprisionado de vez pelo Senhor do Jogo. Se me perguntassem se aquilo que dizia era um jogo, ou melhor, se era de mentirinha, certamente diria que não, pois tratava-se de uma coisa séria. A percepção, mais que a racionalidade, que distingue o jogo de outras atividades humanas, ainda é incipiente nos mais pequenos. Eles demoram algum tempo até fazer alguma distinção a respeito disso. A alternância entre aparência e realidade, essa “… modalidade de vaivém só se manifestaria numa fase tardia da

infância (aos 4 anos), quando ocorre uma transição do “jogo interpretativo” para o “jogo representativo” (BUYTENDIJK, 1974, p. 67), e quando a criança sabe distinguir as ilusões e as fantasias da realidade. As crianças maiores e, principalmente, os adultos, distinguem com relativa facilidade quando uma pessoa está jogando, bastando observá-la. Não nos enganamos quanto a isso, apesar de ser tão complexo explicar o que é o jogo (e não só o jogo). É notável nossa capacidade de percepção das coisas a um simples olhar. Somos capazes de, numa multidão de pessoas tão diferentes umas das outras, afirmar que são todas seres humanos. Saber não é necessariamente saber explicar. Minha fantasia de ter sido moleque de rua era a lembrança mais distante que eu possuía de mim mesmo jogando. E nunca o jogo me pareceu tão verdadeiro quanto nessa época. E se não houvesse pessoas maiores ao meu redor, chamando-me para a realidade, se eu estivesse sem a companhia de outras pessoas, teria sido capaz de, sozinho, alternar fantasia e realidade? Essa experiência, tão cara na minha primeira infância, pude observá-la certa ocasião entre alunos de uma escola municipal. Eram crianças de uns seis anos de idade. O professor, com a voz estimulante dos bons professores, convidou-as para uma viagem à Lua. Empolgadas, aceitaram prontamente o convite e passaram a organizar junto com o professor a tal viagem. Lá pelas tantas o mestre perguntou aos pequenos como

poderiam chegar até a Lua. Com um foguete, responderam. E tem algum foguete aqui? perguntou-lhes o professor. E, sem vacilar, as crianças apontaram para um tronco de árvore caído. Esses pequenos alunos já sabiam como ir e voltar de Fantasia. Conheciam o segredo para escapar ao domínio absoluto do Senhor do Jogo. Entre tantos objetos disponíveis para brincar de viagem à Lua, escolheram o que mais se parecia com um foguete. O tronco não era o foguete, mas era a coisa mais parecida com ele no ambiente da escola. Eles viajaram na imaginação sim, iriam com o maior entusiasmo para Fantasia, mas mantinham um pé na realidade, de modo que pudessem sempre voltar.

CAPÍTULO • DOIS

A ENERGIA DO JOGO

OS JOGADORES DE AVELÓRIOS Como seria jogar assim hoje, depois de viver tantos anos, aproximando-me da velhice? Como seria correr o risco de perder quase completamente a noção da realidade? A ideia era sedutora, mas teria que ser por um jogo que realmente valesse a pena. E foi lendo Hess (1969) que conheci uma comunidade que se entregava de tal forma ao jogo que apagava quase por completo as linhas demarcatórias com o mundo real. Ao ler O jogo das contas de vidro, transportei-me para a história como Bastian o fez lendo A história sem fim. O jogo de avelórios ou das contas de vidro era jogado por conhecedores profundos de música, astronomia, matemática e outras disciplinas, numa linguagem secreta, exprimindo, a cada jogada, aquilo que seria a quintessência do conhecimento humano. Os jogadores eram escolhidos entre os mais talentosos homens para que traduzissem, na

linguagem do jogo de avelórios, o essencial em cada área de conhecimento, de modo que, nesse nível, todas as áreas pudessem dialogar entre elas, compondo, com isso, um jogo. Em Cela Silvestre, a província que abrigava os jogadores de avelórios, o objeto do jogo era o conhecimento dos conhecimentos e o Magister Ludi, o mais sábio dos homens, era o Senhor do Jogo. Como seria bom viver assim!, pensei, enquanto lia o livro de Hess. Era tão absorvente o jogo de Cela Silvestre, tal o prazer que proporcionava, que facilmente os jogadores renunciavam aos prazeres e aspirações profanos. E enquanto lia o livro mágico de Hess, transportei-me para aquele mundo e imaginei-me sendo o Magister Ludi da comunidade de jogadores de avelórios. Se estivesse naquela província, não precisaria mais de nenhuma outra língua que não o idioma universal do mais requintado dos conhecimentos, aquele que perpassava qualquer arte, qualquer filosofia, qualquer ciência. Porém, nesse ponto, parei e lembrei, com espanto, que alguma coisa muito semelhante ocorria num universo bem mais profano que o da aldeia dos jogadores de Cela Silvestre. Recordei que, durante o jogo final da Copa do Mundo de Futebol, em 1994, entre as seleções do Brasil e da Itália, bilhões de pessoas assistiram, pela TV, ao encontro entre aqueles que eram os melhores jogadores do mundo. Essas pessoas eram de comunidades que falavam russo, italiano, português, inglês, alemão, chinês, todas as línguas e, no entanto, ali, pela televisão, vinte e dois jogadores falavam a

todas elas numa linguagem muda, porém, universal. Não eram também aqueles jogadores representantes de uma arte que perpassava todos os conhecimentos, rompia todas as barreiras e chegava ao entendimento universal, mesmo sem a espiritualidade cultivada dos rigorosos jogadores de avelórios? Para Hess, o jogo supremo era um jogo espiritual, descorporalizado. Mas, se não era de estranhar que, escrevendo em 1943, ele pensasse assim, nos dias de hoje também se idealizam dessa forma as possibilidades de um jogo superior; pois o sociólogo da moda, Domenico De Masi, reserva para seu ócio criativo as atividades mentais exclusivamente! Para ele, “o esforço físico é portanto um dever, exercitado sob a vigilância do patrão. Enquanto o esforço mental, se for criativo, não só admite como ainda exige amor e dedicação” (2000, p. 212). Para De Masi, O cansaço psíquico obedece a outras leis, diferentes das que se aplicam ao cansaço físico. Quando é físico, traz prostração, impondo que se pare. Quando é psíquico, mental, se for unido a uma grande motivação, pode até nem ser percebido [2000, p. 213].

FAZER SEM SE CANSAR Exatamente quando eu pensava isso, interrompi meu passeio e apoiei minha perna direita sobre uma pedra arredondada à beira do caminho, para melhor refletir. O sol já ia alto, mas a vegetação rasteira ainda guardava vestígios de uma chuva noturna. Distraído, caminhei bem mais que os três quilômetros planejados, e não sentia qualquer cansaço.

Fiquei pensando nas palavras do italiano e não encontrei paralelo sequer no esforço físico que acabara de fazer. Ora, então um bailarino ou um jogador de futebol não são criativos quando rodopiam no palco ou chutam bolas ao gol? Lembro que, quando trabalhei em um banco, a tal ponto era massacrante a rotina burocrática que eu me sentia esgotado ao fim do dia, apesar de permanecer o tempo todo sentado. Sei que um matemático pode perder vários quilos ao tentar resolver uma equação que o atormente. Ao contrário do que pensava o sociólogo, não concebo a ideia de que a sociedade caminha para uma desmaterialização da atividade e que nosso jogo do futuro será um jogo eminentemente espiritual. Não evoluímos milhões de anos até configurar o corpo que somos, para deixá-lo de lado enquanto nos divertimos jogando. Não posso conceber um jogo plenamente realizador que não envolva o físico. A respeito disso lembro as palavras do professor Manuel Sérgio, que afirmou certa feita: De facto, ninguém tem um corpo. Há uma distância iniludível entre mim e um objecto que possuo: posso deitá-lo fora, sem deixar de ser quem sou. Com o meu corpo não sucede o mesmo: sem ele, eu deixo de ser quem sou [1999, p. 182].

As reflexões levaram-me longe no passeio daquela manhã. Pensando no tema de De Masi, caminhei uns tantos quilômetros mais sem dar por isso, recordando meus tempos de menino, quando era capaz de brincar de pegador ou de futebol por horas a fio, sem aparentar qualquer cansaço. Em compensação, se, em seguida, a mãe tirasse-me da brincadeira e mandasse-me à venda comprar um pão, eu

arrastava-me esgotado. E então, como se explica esse mistério? Uma criança brinca horas e horas e não se cansa; é levada contra a vontade às compras com o pai e arrasta-se pelo caminho. Um homem termina esgotado seu dia de trabalho e isso já faz parte da rotina. Chega o carnaval e ele sobe e desce as ladeiras de Olinda ao ritmo frenético do frevo, quatro, cinco dias seguidos e suporta o esforço com relativa facilidade, muitas vezes embriagado. Está aí um mistério difícil de elucidar. Seria preciso encontrar alguém que houvesse um dia escrito a respeito disso. Foi o que me fez voltar para casa com certa rapidez. Na verdade, não foi difícil encontrar um autor interessado nesse problema. Gilles Brougère (1998), comentando o conceito de jogo entre os românticos, especialmente Schiller, atribui-lhes a ideia de que o jogo, como a poesia, se produziria quando o essencial fosse garantido, o que constituiria “…o consumo do excedente, que advém da teoria do excesso de energia” (p. 64). Mais adiante, Brougère, recorrendo à etologia, descreve resultados de estudos que mostram que os animais consomem pouco de seu tempo e um mínimo de energia para jogar, de forma que a importância do jogo para a educação de uma pessoa não se poderia justificar pelo excesso de energia. Brougère prefere não perder tempo com a ideia dos românticos. Não a levou a sério e coloca fortemente em dúvida o caráter educativo do jogo. Porém, a respeito disso, quando eu vier, mais adiante, a ocupar-me dessa questão educativa do jogo, voltarei a preocupar-me com os escritos de Brougère.

Entre os humanos, brincar é uma evidência tão gritante que chega mesmo a ser difícil flagrar uma criança deixada livre que não esteja brincando. Não basta, porém, não concordar com o escritor francês. Mais que isso, é preciso recorrer a outros autores, de preferência algum que tenha sido mais corajoso ao investigar o tema do excedente de energia como uma possível explicação, não só para o jogo, mas também para a arte e para toda a cultura humana. Gilles Brougère menosprezou essa ideia, apenas registrando-a entre as que tiveram os românticos, especialmente Schiller. De fato, seria banal se o excedente de energia fosse simplesmente compensado no jogo, isto é, a criança ou o adulto brincariam para consumir alguma sobra de energia. Que desperdício! E como isso não faria sentido a qualquer interpretação minimamente lógica! Era hora da minha aula de dança. Nesse dia o professor colocou diversas músicas encadeadas, num período bem longo e sem pausas. Fazia um calor enorme na sala. Tínhamos que dançar livremente pelo espaço e, como a música era agitada, corríamos, saltávamos, fazíamos piruetas, nós que não éramos mais tão jovens. Depois de uns vinte minutos de dança, o professor parou a música e fez uma roda para conversarmos. Um dos alunos chamou a atenção para o seguinte: não tínhamos um preparo físico muito bom, mas não estávamos cansados. Como ele explicava isso? O professor respondeu: o que nos cansa não é o esforço físico, é a angústia. Angústia de que estão cheias nossas tarefas cotidianas, mas de que não está cheio nosso jogo.

AS MÃES DO HOMEM Durante alguns dias segui a pista de pesquisadores que se interessavam por esse assunto. É claro que, para mim, bastava dançar, o que me dava muito prazer, mas também é prazeroso pensar nas coisas, tentar compreendê-las. Se não me obrigam a compreender alguma coisa, e posso fazê-lo por vontade própria, faço-o como se fosse um jogo. Acabei conhecendo um pesquisador alemão, um antropólogo chamado Arnold Gehlen, um dos que melhor fundamentaram a ideia do excedente de energia como uma explicação para a construção da cultura humana. Nas suas palavras, Apesar de ser impossível estabelecer uma medida, pode supor-se, em uma primeira aproximação deste difícil problema, que a energia pulsional em potência, puramente quantitativa, considerada desde o ponto de vista energético, é maior no homem que em qualquer outro animal de seu tamanho [1987, p. 65].

Seria demasiadamente longo seguir todo o percurso que Gehlen percorreu até chegar a essas conclusões. Ele parte de autores como Alfred Seydel e Scheler1, que escreveram a respeito desse tema na década de 1920. Porém, sua obra tem a ambição de traçar um quadro sólido do desenvolvimento humano desde o nascimento. Sem abordar diretamente a questão do jogo, o autor sugere pistas que tocam o lúdico, o tempo ocioso, o excesso de energia e chegam, inevitavelmente, ao jogo. Observemos suas considerações que seguem:

O homem está caracterizado por um período enormemente alargado de desenvolvimento; isto é, por uma extraordinária duração (se se compara com o animal) do tempo que passa até que chega a sua liberdade de ação independente. A motricidade, e muito mais a sexualidade, duram muito tempo incompletas. A capacidade de participar no domínio ou superação comum da existência, se alcança muito tardiamente. Já durante todo esse tempo se encontra o homem sob um superávit pulsional, que não se pode ocupar em tarefas sérias. Nem sequer nas sociedades primitivas antes dos catorze anos. É uma maravilhosa teleologia como esse superávit pulsional é gasto durante tanto tempo em ocupações “não gravadas”, inestáveis e brincalhonas [GEHLEN, 1987, p. 67].

O ponto de partida dos estudos de Arnold Gehlen é a constatação do estado natural de carência do ser humano. Diversas características, observáveis desde sua gestação, conduzem a um nascimento tipicamente prematuro. Esse nascimento prematuro, dado que acomete todos os humanos e considerando que a natureza apresenta uma lógica inexorável que se aplica a todos os seres vivos, cumpre, como todas as coisas naturais, uma função. Em contrapartida, é uma evidência em todos os vivos o fato de serem contemplados por determinadas habilidades muito particulares e excepcionalmente desenvolvidas, que lhes servem como mecanismo especial de adaptação. Tal mecanismo aplica-se a um meio ambiente também muito particular, de forma que entre ambos forma-se uma simbiose, uma interação perfeita, que se desfaz e impossibilita o prosseguimento da adaptação caso uma das partes descumpra sua participação. Por exemplo, quando ocorre de,

por uma catástrofe ou por uma degradação provocada pelos homens, um reduto ecológico qualquer ter seu equilíbrio rompido, a vida que o habita pode, inclusive, desaparecer. No caso dos humanos, pode ocorrer o contrário: o homem romper com a harmonia da relação e provocar a extinção do meio, o que provocaria, obviamente, seu próprio desaparecimento. As relações harmônicas entre os seres vivos e seus meios ambientes prosseguem, portanto, desde que as habilidades particulares de cada ser se apliquem permanentemente. A natureza não lhes perdoaria as falhas. Ora, se não há animal ou planta que não nasça sem o dote original de uma habilidade particular, no ser humano, qual a sua? Por mais que aceitemos a condição cultural do homem, na sua concepção ele é natureza, e a lógica que orienta os demais vivos também o orienta. Portanto, qual seria a habilidade particular do homem? Não quero precipitar uma resposta. A paciência deve ser a virtude a conduzir a pesquisa. Tratando-se de pesquisar o jogo, por exemplo, o caminho a ser percorrido exige paciência, pois qualquer conclusão apressada, que busque atalhos na investigação, comprometeria a clareza do fenômeno. Refiro-me, quando menciono uma possível habilidade particular dos seres humanos, tal qual ocorre com os demais vivos, a um recurso particular de adaptação, aquele recurso que garante as interações com o meio ambiente. Ora, todos sabemos que não há, para o ser humano, um ambiente particular a relacionar-se com a habilidade particular. Os humanos habitam um meio ambiente cultural e não natural.

Portanto, nosso ambiente não possui as características um tanto inflexíveis que caracterizam os meios naturais; sendo cultural, esse meio caracteriza-se pela plasticidade típica das coisas sujeitas à criação permanente das realizações do homem. Nossa habilidade particular de adaptação deveria ser, portanto, uma que fosse igualmente plástica, flexível, para que as interações com o meio cultural possam ocorrer com harmonia. Voltemos um pouco no tempo do desenvolvimento, mais especificamente até a gestação. Podemos notar que, ao contrário de outros animais, a mãe humana gesta seu bebê em pé, o feto sofrendo os efeitos da gravidade, portanto, sendo empurrado para baixo permanentemente. Além disso, ao final de nove meses, o feto humano possui um tamanho descomunal, cerca do dobro do tamanho de um feto de orangotango, animal que corresponde aproximadamente ao tamanho do homem. Juntando a pressão da gravidade com o tamanho desproporcional do feto aos nove meses, torna-se insuportável para a mãe manter a criança no útero. Ela está sendo, podemos dizer assim, impelida a nascer precocemente, de modo que a gestação seja interrompida antes de completada. O resultado final é que o bebê humano nasce antes da hora, e nasce com características de feto. Não podemos atribuir tal fato nem a um acidente nem a algum equívoco da natureza. É assim que tem que ser no caso do humano. É preciso que a gestação seja interrompida precocemente, de modo que a mãe biológica se responsabilize por apenas parte do desenvolvimento. A barriga da mãe não é

uma escola suficiente, assim como a mãe biológica não é suficiente, por si, para dar conta de toda a gestação humana. Sendo assim, a criança humana nasce feto e com o desenvolvimento incompleto. O restante ela terá que completar fora da barriga. Ao contrário disso, os outros animais nascem, alguns um pouco mais, outros um pouco menos, praticamente completos; seu tempo de preparação para a vida, fora do útero, é extremamente curto, considerando o tempo total de vida. O bebê humano, diferentemente, nasce na penúria, nasce carente e tudo indica que essa penúria prossegue por toda a vida. É do que está convencido Gehlen: Depois do que temos dito sobre este importante e obscuro tema, o superávit pulsional nos aparece em primeiro lugar como o correlato da penúria crônica deste ser exposto, cujas energias têm que pulsá-lo “cronicamente” [1987, p. 68].

Temos

que

nos

debruçar,

para

compreender

o

desenvolvimento humano, e com ele o jogo, sobre esses dados tão paradoxais. De que maneira nascer precocemente, ser gestado de maneira incompleta, estar no mundo com características fetais pode constituir uma compensação para essa carência crônica no homem? Será inevitável passarmos uma vista no desenvolvimento de outros animais. Ursos ou tigres, por exemplo. Trata-se de animais que, uma vez nascidos, cumprido o período de amamentação e de cuidados básicos da mãe, tornam-se independentes. Apresentam, desde o nascimento, uma motricidade bastante desenvolvida e sua maturação sexual

consome um período muito curto proporcionalmente ao tempo total de vida. No cachorro, por exemplo, esse período de maturação sexual não lhe consome mais que uma décima parte da vida, ou até menos. Com isso estou querendo dizer que a juventude dos animais é curta. Se é assim, é porque não precisam ser jovens por muito tempo. Amadurecem cedo e logo envelhecem. O bebê humano, de sua parte, ao nascer é quase completamente desprovido de recursos motores adaptados. Excetuando-se seus reflexos arcaicos (moro, sucção, preensão e marcha), cujas características não comentarei, o que se verifica no recém-nascido é uma motricidade absolutamente desordenada, dirigida para coisa nenhuma. Se compararmos esse fenômeno com o que ocorre em outros animais, veremos que, nestes últimos, toda a motricidade se organiza muito cedo e dirige-se sempre para suas funções típicas de adaptação ao meio ambiente natural. Sem dúvida alguma, essa motricidade desordenada é o mais evidente sintoma do nascimento precoce, da gestação interrompida, isto é, antes que se complete a formação uterina; a criança nasce exatamente para que tal motricidade não se complete e o bebê possa vir ao mundo sem as coordenações articuladas. O leopardo nasce com as coordenações prontas para correr em alta velocidade, para com isso caçar e cumprir seu destino. Mas essa é a exigência de seu ambiente. No caso do homem, caso ele nascesse com coordenações prontas e dirigidas para algumas tarefas, que destino teria deparando-se com um meio que é cultural, portanto plástico, suscetível a mudanças a

todos os momentos? A que se destinariam coordenações para algumas tarefas rígidas num meio ambiente que não tem qualquer rigidez? Somente coordenações para nada, plenamente disponíveis, que pudessem se organizar a cada encontro, poderiam dar conta de uma vida em ambiente tão aberto. Com esses argumentos, portanto, além de outros que poderiam ser levantados, como o das feições humanas, que foram se tornando jovens durante uma evolução de milhões de anos, creio que posso me dar por satisfeito quanto a deixar evidente a utilidade, para o ser humano, de nascer antes do tempo. Apesar de serem consistentes os argumentos levantados, isso ainda não diz muito em relação ao desenvolvimento humano e, mais particularmente, ao jogo. Voltando à ideia de que a mãe biológica do homem cumpre apenas uma parte da gestação, de modo que o bebê humano nasce feto, como se cumpre a outra parte da gestação? Quem é a outra mãe do homem? A sociedade é a outra mãe do homem e a cultura humana é o ventre materno dessa outra gestação. O tempo que ela consome? Muito provavelmente a vida toda. Quando nascemos, está quase tudo para se fazer. No entanto, se, como afirmei anteriormente, nascemos antes que se pudesse coordenar nossa habilidade particular de adaptação, evidentemente essa habilidade terá que se formar durante a segunda gestação. Cumpre agora discutir que habilidade é essa.

Para tanto, terei que novamente recorrer a Gehlen. Num dado momento de seu trabalho, o antropólogo alemão afirma: Tem uma importância extraordinária, como veremos mais adiante, o fato de que todos os movimentos sejam retrocaptados mediante sensações visuais e táteis, de tal maneira que não somente podem ocupar-se das novas ontoimpressões desenvolvidas no trato com as coisas, senão que, inclusive, podem reacionar a si mesmos, uns com os outros etc. Esta é, como veremos mais adiante, uma condição para o desenvolvimento da kinefantasia. Há que notar também que todas as operações humanas sensório-motoras são autocaptadas, isto é, reacionam a si mesmas e entre si e são capazes de intercâmbio. Isto é o que se está pressupondo para que se forme um “mundo interior”, isto é: de fantasmas de intercâmbio e de movimento; representações de resultados favoráveis; expectativas de impressões, etc… [idem, p. 49].

Gehlen não apresenta uma resposta, mas indica pistas para aquilo que eu havia levantado anteriormente, isto é, a formação de uma habilidade humana especial. As ações humanas são ações de um tipo muito especial que não se dirigem apenas objetivamente para o exterior, onde está o objeto da ação. Além disso, voltam-se para o próprio sujeito, desde os períodos mais primitivos de vida, resultando, muito provavelmente, naquilo que mais tarde chamaremos de reflexão e, finalmente, consciência. Porém, o que importa dizer neste momento é que já encontramos uma raiz para investigar a formação do mundo interior humano, isto é, de suas representações mentais, que não começam como mentais, mas resultam nelas. Ainda recorro a Gehlen:

A liberação para realizar uma atividade previsora e providente; a descarga com respeito à pressão do presente imediato (na qual permanece encerrado o animal), são pois as tarefas elementares e são dominadas pelo homem mediante difíceis operações, em luta penosa e que dura anos com o mundo e consigo mesmo. Se considerarmos a carência constitucional do homem, é fácil sacar a conclusão: tem que conhecer para poder atuar; tem que atuar para poder viver amanhã [idem, p. 57].

Na ação humana há um nítido hiato entre a necessidade e a realização. Desenvolvemos ao longo da vida um domínio sobre as pulsões de forma a garantir esse hiato. Adquirimos, durante a experiência humana, essa capacidade de reter as pulsões, de frear o impulso para satisfazer de imediato uma necessidade. Esse hiato, segundo Gehlen, “é a base vital do fenômeno chamado alma” (idem, p. 62). De uma maneira mais global, do ponto de vista social, é o mesmo fenômeno a que se refere De Masi quando fala de seu ócio criativo. Ele fala de um tempo que não será o de satisfazer de imediato uma necessidade, um hiato entre a pulsão de adaptação e sua exata satisfação, um tempo para nós e não objetivamente para o mundo, um tempo de voltarse para si, de autorrepresentação. E de que outra maneira teriam os gregos do período clássico construído uma cultura que foi, toda ela, a mais pura manifestação das produções de um mundo interior, o mais refinado produto da alma humana? Seria a cultura humana, portanto, o produto desse hiato entre a necessidade e o freio que aprendemos a aplicar às pulsões? Sem dúvida. A nossa cultura é o produto desse

mundo interior construído duramente durante a experiência de viver. E é essa habilidade de lidar com o mundo interior, de representar internamente o que ocorre fora de nós e a nós mesmos, que constitui a particular habilidade humana, aquela que nos vai prover dos recursos necessários para estar no mundo, que preencherá, finalmente, a carência natural de que somos todos possuídos ao nascimento. Essa habilidade será o mais requintado resultado daquilo que falei anteriormente, referindo-me à segunda gestação humana. Essa é a verdadeira educação que recebemos quando o útero cultural nos acolhe.

QUANDO HÁ FALTA, TRABALHO; QUANDO HÁ EXCESSO, JOGO A teoria do excesso de energia, tão banalizada por Brougère, toma em Gehlen uma importância fundamental. Além disso, inevitavelmente, conduz-me a um mar de lembranças de situações de jogos de que participei ou apenas observei. Quando moleque, como se dizia na minha infância dos meninos que brincavam na rua, minha brincadeira favorita era o futebol. Junto com os companheiros, jogávamos todos os dias no campinho perto da minha casa. Nos finais de semana tínhamos os jogos contra outros meninos em bairros vizinhos. E era uma coisa organizada, com camisas de times, distintivos, diretoria, tal qual um time profissional em miniatura. Daria para encher muitas páginas de descrições das situações curiosas que vivíamos. Uma delas, mais ligada

ao assunto que levanto aqui, ocorria quando nos dirigíamos para os jogos de fins de semana. Vamos supor que o jogo estivesse marcado para começar às oito horas da manhã. Com enorme disposição levantávamos às sete, tomávamos um café e nos reuníamos num lugar previamente marcado para irmos todos juntos ao jogo. O detalhe é que, se a disputa fosse ocorrer num bairro que ficava a uns cinco, seis quilômetros de distância, não tomávamos nenhum transporte para nos deslocarmos. Íamos a pé mesmo, e correndo. Incrível! Corríamos cinco quilômetros, às vezes disputando para ver quem chegava primeiro, em seguida colocávamos nossos uniformes de jogadores e entrávamos em campo. E o jogo poderia demorar uma, duas horas que não faria a menor diferença. De onde vinha tanta energia? E éramos os mesmos que reclamávamos cada vez que uma tarefa obrigatória tinha que ser cumprida. Como se fosse para fundamentar a cena de futebol que descrevi, Schiller escrevia: O velho germano escolhe agora peles mais lustrosas, adornos mais pomposos, copos de chifres mais finos e o caledônio procura as conchas mais bonitas para suas festas. Mesmo as armas deixam de ser meros objetos do temor, passam a sê-lo também da satisfação, e a bainha trabalhada não chama atenção menor que a lâmina fatal da espada. Não satisfeito em acrescentar abundância estética à necessidade, o impulso lúdico mais livre desprende-se enfim por completo das amarras da privação, e o belo torna-se, por si mesmo, objeto de seu empenho. Enfeita-se. O prazer livre entra no rol de suas necessidades, e o desnecessário logo se torna a melhor parte de sua alegria [1995, p. 142].

Se eu mudar de época, de pessoas, de situações, desde que o fenômeno considerado pertença ao universo lúdico, o parentesco com as cenas descritas anteriormente continua fortíssimo. Nossa perene admiração pela obra dos gregos clássicos, de modo geral, desconsidera que tudo aquilo que fizeram, o fizeram quando estavam livres para livrarem-se das amarras da necessidade. Assim também procuram viver as crianças, conflitando-se ininterruptamente com a realidade que as chama incessantemente para a atividade séria, enquanto o que elas querem mesmo é ceder aos apelos de Fantasia. O que os adultos raramente percebem é que, se os gregos produziram o que produziram apelando para essa viagem ao interior deles mesmos, por qual motivo as crianças também não sairiam de suas viagens com belas produções? E não foi assim também que todas as criações da cultura humana foram realizadas? Vimos anteriormente que, sem dúvida, os humanos possuem energia em abundância, porque não a produzem apenas para consumo das necessidades. Ao contrário, produzem um tanto a mais para compensar suas carências. Tais carências, que são faltas naturais, são compensadas quando a energia que sobra em cada um de nós é investida no fomento das representações interiores, na imaginação, no espírito. Daí ser perfeitamente compreensível uma criança pouco se cansar quando brinca, ou um inventor consumir horas de trabalho em seu laboratório sem chegar à exaustão. Ora, fica claro que essa resistência demonstrada nessas horas ocorre porque, no caso da criança, ela recorre não à energia

para provimento de alguma necessidade, mas à energia que sobra, que só pode ser utilizada no mundo lúdico, no mundo do jogo ou da arte. Nesse sentido, o jogo só pode ser reconhecido como tal quando o jogador está livre de toda privação, quando a energia transborda nele. Nota-se isso com enorme nitidez na criança e no artista que se envolve com sua obra. No jogo gasta-se energia sem finalidade aparente, pois não há um compromisso a cumprir com a realidade. O jogador, entregando-se ao jogo, escapa à realidade e aos seus compromissos imediatos, rompe com o tempo cronometrado e participa do eterno. A privação move o trabalho; o jogo é movido pela satisfação. No trabalho há privação; no jogo, há sobra. Durante a Idade Média, um dos passatempos favoritos entre aqueles que possuíam terras, os senhores duques, condes e príncipes, era o torneio, o jogo praticado por eles mesmos e por seus cavaleiros. Os lendários cavaleiros andantes eram, na verdade, exímios competidores de um esporte que ocupava quase toda a sua mocidade. As guerras, que constituíam, de fato, seu trabalho, duravam pouquíssimo. Eram raras as refregas, pois os senhores das guerras as suspendiam em pouco tempo para se dedicarem ao que mais gostavam de fazer: jogar. Essas competições, que envolviam equipes muito preparadas, acabavam sendo mais ferozes que a própria guerra. Não raro tais jogos levavam à morte. Os grandes jogadores eram louvados em todos os países que promoviam esses torneios e

recebiam privilégios e enormes somas em dinheiro. O envolvimento das cortes na Inglaterra e na França no século XII foi descrito por Georges Duby na seguinte passagem: Em Lagny, que é sem sombra de dúvida o mais bem-sucedido dentre os torneios mencionados no texto que estou explorando, três mil foram os cavaleiros presentes, cada qual tendo seus servidores; também participaram pelotões de combatentes de baixa nascença, desprezados, porém úteis, por serem muito hábeis no manejo das armas vis, lanças, ganchos, e que eventualmente, reunidos em grupos mercenários, podiam constituir uma força auxiliar decisiva, numa batalha de verdade ou simulada; calculemos então que estivessem presentes mais de dez mil guerreiros e talvez igual número de cavalos… [1987, p. 129].

Esse livro conta a biografia de Guilherme Marechal, o maior dos cavaleiros andantes, vencedor de todos os torneios de que participou durante muitos anos. O torneio descrito, o de Lagny, considerando a pequena população de Inglaterra e França na época, ganha a magnitude de uma Olimpíada moderna. E Guilherme Marechal, o maior dos cavaleiros, equipara-se aos grandes heróis olímpicos de hoje. Na Grécia antiga, na Idade Média ou hoje entre as crianças que brincam, todos os que conquistam o direito ao tempo livre livram-se rapidamente de suas tarefas e entregam-se ao jogo. Há uma imensa sobra de energia que precisa ser gasta, mas não apenas porque está sobrando, mas porque precisa ser transformada na matéria mais importante de nossa existência: a cultura humana. Ora, se quando

escapamos à realidade produzimos cultura, sem dúvida alguma essa cultura é sempre produzida na atividade lúdica.

FAZER CULTURA OU ACUMULAR GORDURA Eventualmente, e até por distração, paro na frente do espelho e observo as rugas do rosto, olheiras, a aparência geral do corpo e, inevitavelmente, as dobras da pele na região do abdômen. Ali eu verifico se há alguma sobra de gordura que precisa ser queimada. É possível dizer que animais também engordam em excesso. No caso de alguns deles, a gordura aparente tem uma função: protegê-los, geralmente, do frio. Isso ocorre com os leões marinhos e as focas, por exemplo. Também vemos animais gordos quando são domesticados e tratados com alimentação inadequada. Fora esses casos, os animais têm um belo equilíbrio entre a energia que assimilam e seu gasto. E não poderia ser de outro jeito pois, vivendo num ambiente natural, passam a vida a suprir necessidades. O que ingerem quando se alimentam é imediatamente consumido na luta diária pela alimentação, abrigo e sexo. Não há motivos para haver sobras de energia, pois não haveria o que fazer com elas. Não há uma cultura para produzir, mas repetição das atividades que sempre realizaram seus ancestrais, atividades que são orientadas pelo instinto que, reconhecendo as condições do meio, desencadeiam ações automaticamente. Não é o caso dos humanos. Em alguns países, o excesso de gordura chega mesmo a ser um dos principais problemas

de saúde, especialmente depois que as populações foram deixando o campo e instalando-se nas cidades e as pessoas passaram a trabalhar em ocupações que exigem mínimos movimentos corporais. Costumamos achar que o consumo de calorias depende, acima de tudo, do esforço físico. Porém, se pararmos para observar o que ocorre durante certas tarefas intelectuais, verificaremos que também nessas, dependendo de sua intensidade, a queima de calorias é enorme. Pessoas perdem peso significativamente em situações que pouco envolvimento físico solicitam. É o caso de artistas, de intelectuais, de executivos. De modo que não é preciso, necessariamente, recorrer aos exercícios físicos para emagrecer. Claro que temos que considerar aí os hábitos alimentares inadequados, que obrigam as pessoas a ingerir muito mais que qualquer organismo pode suportar. O apelo da indústria alimentar para o consumo de supérfluos é enorme e sedutor. Não é o caso de analisarmos aqui o descompasso alimentar das populações urbanas, mas considerar apenas um aspecto desse equilíbrio ou desequilíbrio entre o que se ingere e o que se consome. Com Schiller e Gehlen, especialmente este último, vimos que uma das características dos humanos é ter energia além daquela que supre as necessidades básicas. Vimos também que essa energia é a que utilizam os artistas, os jogadores, enfim, aqueles que se dedicam ao lúdico. Ora, esse superávit é uma reserva que tem o objetivo de compensar uma carência eterna do humano: a falta de uma natureza somente sua, um nicho ecológico com o qual interagir, articulando habilidades

naturais com meio natural. Nossa habilidade não é natural, é construída a duras penas nas experiências de voltarmo-nos para nós mesmos, de retroação, de retrocaptação, gerando em nós os mecanismos de imaginação, capazes, por uma intensa atividade, de criar os produtos culturais que constituem nosso nicho ecológico. Esse “a mais” de energia, portanto, não existe para ficar guardado debaixo da pele, constituindo uma energia inútil de que nunca nos servimos. Existe para suprir-nos de cultura, e não de gordura. É a energia para jogar, para produzir arte, para inventar tecnologia, para fazer a poesia. Esse foi um aspecto da teoria de Winnicott que chamou a atenção de Henri Atlan. A respeito desse fenômeno da construção da cultura humana, mencionando a questão do espaço e jogo transicionais na criança, ele afirma que Este espaço potencial é, efectivamente, descrito como “lugar do jogo e da experiência cultural” sob todos os aspectos. A cultura, como “extensão da ideia de fenómenos transicionais”, e que designa “aquilo em que ocupamos a maior parte do nosso tempo quando temos prazer naquilo que fazemos”, teria, assim, uma existência que não está nem no indivíduo nem à sua volta, no mundo da realidade partilhada… [1994, p. 236].

1. Arnold Gehlen refere-se ao autor de Die Stellung der Menschen in Kosmos, de 1928.

CAPÍTULO • TRÊS

A FORMAÇÃO DO SÍMBOLO

Não seria somente com a ajuda do escritor alemão Arnold Gehlen que eu conseguiria compreender o que faz uma criança se cansar tão menos quando brinca do que quando realiza tarefas obrigatórias, como as escolares ou outros deveres. Além dos livros, preciso de minhas lembranças, de minhas andanças, preciso lembrar-me de minha infância. O melhor mesmo é jogar esse jogo gostoso de colocar meu tempo de menino na imaginação. Não tenho como precisar o momento em que comecei a representar internamente as coisas que vivi. Tenho por mim que o símbolo interno é alguma coisa como a revelação de um negativo. A princípio como uma fotografia, pois as coisas reveladas formam-se na nossa mente quadro a quadro, foto a foto. Mais tarde essas imagens ganham dinâmica e mostramse como um filme. Que prodígio representantes de uma espécie animal capazes de representar para si mesmos as experiências

vividas de alguma forma nas suas realidades! Basta olhar à minha volta para constatar o poder dessa representação. Quase tudo que meu olhar registra é produto da imaginação humana. Creio que eu ficaria aqui perdido no meio de frases que repetiriam sem parar minha admiração por esse prodígio. Talvez, se eu contar uma história, possa seguir adiante.

ENTRE O RISO E O CHORO Gosto de remexer papéis velhos, principalmente quando guardados em antigos baús, daqueles que nossos avós usavam quando migravam da Europa para o Brasil. Dão a impressão de guardar tesouros e geralmente não decepcionam. Com um pouco de paciência, mesmo em se tratando de papéis, a gente descobre preciosidades. Foi o que aconteceu enquanto examinava o conteúdo de um velho baú um tanto consumido pelo tempo e pelos cupins. Quem sabe eu não descobriria ali algum segredo de amor, uma carta secretamente enviada pela mulher amada, como num romance folhetinesco? Mas qual, não havia o menor vestígio de romance naquela papelada. Em compensação, encontrei uma história muito intrigante, sem autor identificado, perdida no tempo, guardada ali por motivos que nunca descobrirei. Talvez um antepassado meu tenha sabido dessa história por alguém, que a ouvira de alguém, que a ouvira de alguém, como ocorre com tantos casos contados de boca em boca que até acabam virando lenda. Mas, pelo teor

do conto, pode ter sido escrita por um alguém primordial, tão remoto o ambiente em que se passa. Das primeiras páginas quase nada pude entender. O tempo e as traças desgastaram boa parte do papel. Por sorte as folhas do meio ficaram mais protegidas e preservaram a parte principal da história. Pelo pouco que pude recuperar do início, entendi que havia uma rápida descrição de como foram feitas as coisas do universo. Parece que deu um grande trabalho, mas o resultado agradou ao autor. Ficou tão bonito que entusiasmou seu criador, que achou por bem comemorálo. E foi por esse motivo que logo em seguida a festa foi inventada. Ela, que não estava nos planos iniciais do criador, passou a existir quando se viu que o produto final da criação era a beleza. E depois de criar a festa o criador teve que criar quem a festejasse, e assim teve que criar os vivos, que não tinham qualquer função, no início, que não fosse a de celebrar a beleza do mundo. Providencialmente, a festa nasceu com música e dança; logo em seguida vieram a comida e a bebida. Os auxiliares do criador só souberam de suas últimas invenções depois de concluídas, quando foram chamados para saber que deveriam organizar os preparativos para a comemoração. Acostumados à rotina de deveres, os funcionários não entenderam o sentido do capricho do mestre mas, por hábito, obedeceram. De qualquer maneira seriam recompensados pela curiosidade de conhecer os tais dos vivos.

Os momentos que antecederam o festivo evento foram de intensa agitação. Mesmo os auxiliares, acostumados aos grandes empreendimentos da criação do universo, mostravam-se tensos, tal a exigência do criador. Tinham de traçar todos os detalhes da comemoração e ainda planejar as sutilezas da vida de cada criatura na Terra, para onde seriam enviadas, uma vez que não podiam ficar sem destino, e era ideia do mestre da criação que, de algum jeito, continuassem celebrando sua obra. Chegou finalmente o grande dia. Dias e noites já estavam devidamente inventados. Trombetas e tambores anunciaram o início da primeira das festas. Auxiliares paramentados entraram no salão desfilando estandartes de todas as cores. De onde estavam podiam assistir ao grande espetáculo do universo. Estrelas juntavam-se em constelações, cometas riscavam o firmamento com suas caudas luminosas, astros recém-nascidos apagavam-se subitamente após cruzar o céu a grandes velocidades. Sóis especialmente criados para a ocasião giravam em todos os sentidos, lançando seus fogos de artifício. Na Terra, planeta azul de muito bom gosto, vulcões expeliam enormes rolos de fumaça, ventos rugiam furiosas tempestades, relâmpagos fendiam o céu de alto a baixo, e um sol amarelo fazia, ao lado de uma lua pálida, malabarismos caprichosos, sobre um fundo decorado com pequenas estrelas brilhantes. Um longo e pronunciado toque de trombeta anunciou para uma plateia atônita, toda de auxiliares do criador, a apresentação das criaturas. Finalmente iriam conhecer a

última invenção do mestre. A cada toque solene de trombeta, uma criatura era trazida por um dos auxiliares e deixada no meio do salão. Misteriosamente, como convém a todas as coisas da criação, assim que se deparavam com o imenso espaço da festa, tão logo ouviam a música que jorrava de todos os cantos, punham-se a dançar, rodopiando sem parar pelo amplo salão. Pareciam não ter fim a criatividade e a criação de um mestre satisfeito com seu trabalho que, do seu trono, ditava o ritmo da festa naquele salão iluminado que não tinha paredes nem teto. Finalmente calaram as trombetas e cessaram de entrar as criaturas. Os vivos do criador enchiam o enorme salão, rodopiando em danças movimentadas. Só paravam aqui e ali para comer e beber. Eram tantas as criaturas que não se podia calcular quantas havia, até porque ainda não existiam os números. Dançavam alucinadamente e a festa primordial parecia nunca chegar ao fim. Até que, subitamente, quando algumas delas já mostravam cansaço, um som mais forte de trombeta interrompeu o baile e levantou de seu trono o mestre, cercado de seus principais auxiliares, em grande pompa. Trajava roupas que não poderiam ser descritas aqui, pois eram tecidas de um jeito que não era deste mundo, e não serviam para cobrir o corpo, mas para adorná-lo. O mestre da criação não tinha tamanho, peso ou forma como os conhecemos. Sua aparência não poderia ser descrita e não há como caber na nossa compreensão. Nem precisou pedir silêncio. Sua presença dominou o salão e apenas uma suave música de fundo se ouvia ao longe. Os vivos recém-criados

formavam uma multidão de silêncio. Ouviam, mas nada sabiam de expressões sonoras. Não haviam aprendido ainda a guinchar, urrar ou latir, muito menos falar. Com um gesto sutil, quase imperceptível, o criador fez com que todas as criaturas ficassem imóveis, atentas. Foi então que ele falou. Mas não o fez desse jeito que a gente entende as falas. Falou apenas com sua presença, numa língua que ninguém conhecia, mas que todos entendiam. Essa língua existe até hoje e é falada por todos nós apenas com nossa presença, mas é falada também por todas as coisas da natureza. Solenemente o mestre anunciou que daria nomes e tarefas a todas as criaturas vivas. No seu discurso onipresente afirmou que inventou os vivos porque, mesmo reconhecendo a beleza da própria criação, notou que faltavam almas, faltava quem contemplasse e festejasse sua obra. Por isso criara os vivos. Notava-se na fala do criador, quando enumerou as qualidades de suas criaturas e seus desempenhos na celebração, um sutil acento de insatisfação. Poucos perceberam esse detalhe. O mestre prosseguiu falando. Cada uma das criaturas receberia um pedaço de terra, de ar ou de mar para viver. Iriam para a Terra, mas era bom que soubessem das condições para estar no mundo: jamais poderiam sair do lugar designado por ele; e nunca, em hipótese alguma, poderiam mudar de nomes. Todas que desobedecessem às regras desapareceriam, aos poucos ou de uma só vez, e isso nunca poderia ser mudado.

Findo o discurso do criador, alguns auxiliares, devidamente instruídos, passaram às apresentações. Primeiro foi anunciado o pinguim, que seria chamado de pinguim a partir daquele momento, criatura do gelo e das águas, grande mergulhador, melhor ainda pescador. Dos lugares frios da Terra ele nunca poderia sair. Depois foi a vez do guepardo, o mais veloz dos animais, excepcional caçador. Habitaria as savanas quentes e planas da Terra, para poder correr com desenvoltura. À simples descrição dessa criatura, tremeram as gazelas de todos os tipos. Uma criatura esguia e maravilhosa foi batizada de golfinho, para viver nos mares. Vieram em seguida o falcão e o condor, animais para reinar no ar. As cobras se arrastariam pelo chão e as plantas nasceriam e morreriam no mesmo lugar. Um a um os vivos recebiam seus nomes e suas tarefas, conheciam suas habilidades e seus limites. Teriam vida curta e tudo que sabiam passariam para seus descendentes. Celebrariam a vida em ocasiões especiais, principalmente enquanto jovens e quando fossem se reproduzir. Estavam, enfim, todos batizados, todos instruídos. O salão agora enchia-se de uivos e trinados, urros, miados e balidos, de alguma maneira acompanhando a música que voltava a animar a festa. Repleta de almas, a comemoração prosseguiu animada por algum tempo mais, entrando pela noite. Quando o próximo dia chegasse, iriam todas as criaturas para a Terra,

cumprir suas tarefas que, no fundo, resumiam-se a apenas uma: viver, que era o mesmo que celebrar a obra da criação, o mesmo que festejar. A vida nascera de uma festa, de um desejo de brincar do mestre da criação. Mesmo assim, os vivos mais atentos notaram que haveria dificuldades. Os peixes ouviram da habilidade que teriam os pinguins para pescá-los. Os coelhos ficaram assustados com a fúria de seus vizinhos lobos e águias. Pequenos e coloridos pássaros temeram pelo destino de seus filhotes à mercê das serpentes. A próxima luz clareou o mundo num lindo dia e, uma a uma, ainda cambaleantes de sono e cansaço, as criaturas saíram, deixando vazio o salão. Ficaram por ali somente os auxiliares do mestre, limpando os cantos, que muita sujeira sobrou de tanta comida e bebida. Já estavam no fim do trabalho quando, de um pedacinho de chão, em meio a restos de adornos e comidas, ouviram um débil som, como um lamento. Uma criaturazinha muito frágil, um tanto estranha, aparentemente esquecida por todos, chorava encolhida. Quem era? Por que ainda estava ali? Na dúvida, chamaram o criador. – Quem és? O que fazes aqui? E como podes chorar se eu tirei da receita da criação o choro e o riso? A criatura o olhou e apenas riu, depois chorou, depois riu de novo. Perscrutando a memória, o mestre da criação lembrou-se vagamente ter planejado fazer uma criatura que risse e chorasse, mas lembrou também que havia desistido desse plano por não saber que utilidade isso teria no mundo, e por

desconfiar dos problemas que poderia acarretar. Pensou que havia jogado de volta no caldeirão aquela criatura, como fizera com muitas outras que tinham apresentado defeitos de concepção. O criador ainda insistiu: – O que fazes aqui? Quem te deixou viver? Além de rir e chorar, a estranha criatura só sabia gesticular, e foi assim, com muito esforço, que ela deu a entender que não sabia quem era, nem para o que servia, nem para onde ia. – Deixa-me ver – disse o mestre –, pelo teu jeito, não tenho como mandar-te para a água. Mas também não pareces servir para a terra ou para o ar. O senhor da criação deixou por instantes a tal criatura com seus risos e choros e reuniu-se com seus auxiliares mais diretos. Vasculharam rolos e mais rolos de apontamentos e nada, nenhum registro que identificasse a chorona criatura. Até que um auxiliar, casualmente, descobriu num recipiente de lixo um apontamento amassado com o número 5839324768, que indicava os traços manifestados por ela. À frente do número estava escrito que havia falhas no plano e ela deveria voltar ao caldeirão, para reciclagem, junto com outros projetos defeituosos. Tudo indicava que uma desatenção a salvou da fervura e que sua presença na festa era absolutamente indevida. Um tanto constrangido com a situação, o mestre e seus auxiliares voltaram ao salão. Com sua voz universal ele falou em tom de sentença, apesar da bondade da fala:

– Sinto muito pelo que te vou dizer, mas tu não fazias parte do roteiro desta festa. Terei que mandar-te de volta ao caldeirão da criação. Não te preocupes, não dói. Por algum motivo que desconhecemos, viestes para cá incompleta, sabendo tão somente rir e chorar, porém, isso não é suficiente para viver. Seria preciso algo mais, algo especial como o possuem todos os outros vivos, que servisse para estar, ou na terra, ou na água, ou no mar. Por mais que o criador, em sua infinita paciência, desfilasse seus argumentos, a estranha criatura insistia, rindo e chorando e fazendo gestos desconexos, em não ser eliminada, recusando seu destino implacável. E tanto fez, tanto fez, que comoveu o coração do mestre, que resolveu tentar uma solução. – Está bem, está bem, acalma-te. Verei o que posso fazer. Apesar do cansaço, depois de tanto trabalho exaustivo, com sua infinita paciência de criador, entregou-se novamente ao trabalho, buscando uma saída para a tal criatura, de modo a não ter de sacrificá-la. Afinal, a receita havia de ser a mesma para todos: uma habilidade especial para viver sempre em um mesmo lugar da Terra. Todos os que fugiram a essa regra estavam fora dos planos de ocupação do planeta. Era o caso daquela criatura. Por fim, a melhor solução veio de um dos auxiliares mais diretos do mestre, o mais discreto, o mais calado. E novamente foram à criatura. – Resolvemos dar-te mais uma chance – disse-lhe o criador. – Olha para mim. Isso. Agora fecha os olhos. O que

vês? A criatura estendeu a mão e apontou para ele. Ela o via mesmo de olhos fechados. – Ótimo. Agora ri e chora e presta atenção. O que ouves? E a criaturazinha apontou para ela mesma. – Muito bem. E isso é tudo o que posso fazer. Tu poderás ver dentro de ti todas as coisas que acontecerem fora de ti. Esse poder que te dou chama-se imaginação. E tu poderás também ouvir dentro de ti os teus próprios sons. Isso se transformará numa linguagem para falares com os outros da tua espécie. São habilidades poderosas, mais poderosas que todas as outras que dei aos demais vivos. Mas são também as mais perigosas. Poderão fazer-te viver ou morrer. Rir e chorar já sabias. Entre um e outro instalei os poderes de imaginar e de falar. Enquanto ele falava, percebia-se na expressão do mestre alguma nova trama nas suas intenções. Mais tarde ele a confessou ao seu auxiliar mais próximo, aquele sempre calado e discreto. Reconheceu que durante a festa ficou muito feliz com o modo como os vivos que inventara celebraram a criação. Mas sabia que faltava-lhes alguma coisa. Com o passar do tempo ficariam adultos e o gosto pela festa diminuiria. Então, quando ele viu aquela criaturazinha mal acabada, percebeu a oportunidade de mantê-la assim para sempre, de modo que houvesse a cada dia uma nova coisa para incluir. Se ela nunca ficasse pronta, isso significaria que seria sempre jovem. Consequentemente, nunca perderia o gosto pela festa. Para conseguir isso, o criador utilizou-se de

uma estratégia sutil, sem precisar fugir da receita de todos os outros vivos. Simplesmente, ao invés de entregar a criatura pronta para viver em algum lugar da Terra, entregou-a inacabada, mas com imaginação para ir-se completando a cada dia em qualquer lugar do planeta. Não teria a força do urso, mas teria criatividade para tornar-se forte um dia. O criador deu à frágil criatura um pouco de sua própria habilidade de criar. E a incumbência de festejar. E aí, com sua fala de criador, explicou-lhe que, se soubesse usar bem a tal habilidade de imaginar, que é essa mágica de ver para dentro, ela poderia viver no mundo. Juntando a imaginação com o rir e o chorar, ela teria as mesmas chances das demais criaturas. Se falhasse, no entanto, desapareceria. Dito isso, como num passe de mágica, o sol já alto no céu, a estranha figura, que o mestre chamou de criatura humana, viu-se na Terra, cercada de árvores, de sol, de terra, de água e de ar, e de um contingente enorme de seres de todos os tamanhos e formas. De lá para cá aconteceu o que todos já sabem. A maioria dos autores prefere o discurso racional, que eu mesmo prefiro às vezes. Porém, se eu puder escolher, escolho as lendas, os mitos, os contos, os relatos mais próximos da vida. Se paro de escrever por instantes, logo me distraio com o barulho que vem da rua, das crianças brincando. Sinto que o jogo se impõe à minha percepção de muitas formas. Impõe sua presença como barulho, às vezes como movimento ou

como silêncio. E isso basta à minha compreensão, o que não significa que eu possa transmitir aos outros essa compreensão. Entre os discursos racionais sobre o jogo, gosto das coisas escritas por Piaget (1978a). Ele observava seus próprios filhos. Certa ocasião notou que um dos pequenos aparentava dormir, mas era só fingimento. Estava na sua caminha, com seu travesseiro, seu cobertor, mas não dormia, apesar da postura e dos olhos fechados de quem dormia. Ele apenas fazia de conta. Piaget suspeitou que esse poderia ser o momento em que o símbolo interno estava nascendo na vida da criança. No entanto, não dava para saber com certeza, porque o contato do corpo do pequeno com a cama, a coberta, o travesseiro, poderia provocar não mais que uma evocação sensorial e o fenômeno não ocorrer na forma de representação mental. Tratava-se, sem dúvida, de um jogo, mas não necessariamente de um jogo simbólico, de imaginação. Dias depois Piaget flagrou novamente seu filho na mesma atitude mas, desta vez, sem os objetos típicos de dormir. E onde estariam esses objetos? Estando ausentes e, mesmo assim, a criança fingindo que dormia, só podiam estar na imaginação. A criança jogava, desta vez, simbolicamente. Ela fazia de conta, imaginava que estava dormindo. O símbolo é essa dimensão de alguma coisa que se fixa dentro de nós e que nos serve para substituí-la na sua ausência. Não é a matéria-prima exclusiva do jogo, pois o filho de Piaget jogava antes mesmo de poder imaginar, mas é a matéria principal do jogo humano.

Piaget nunca soube exatamente em que momento apareceu a atividade simbólica em seu filho pela primeira vez. Nunca ninguém saberá. Não somos capazes de lembrar esses primeiros momentos, quanto mais de observar isso ocorrendo em outra pessoa. Só o que constatamos são as manifestações. E quando a atividade simbólica se manifesta pela primeira vez, pode existir já há algum tempo na criança sem que o saibamos. É interessante observar nossa curiosidade por saber o começo das coisas. Como teria começado o universo? Teria sido por uma grande explosão após uma formidável condensação de matéria? Em que momento deixamos de estar despertos e começamos a dormir? Em que momento começamos a falar ou a andar? E nesse rumo seguem-se nossas questões, nunca resolvidas. Com relação à questão de quando começamos a imaginar, é bem provável que jamais o saibamos. Na verdade, saber isso não tem a menor importância a não ser para satisfazer nossa curiosidade, bem típica de quando estamos realizando um jogo. Na atividade científica, se ela for realmente científica, nunca podemos esquecer que estamos sempre a dar conotações de jogo aos nossos atos. O fato é que precisamos imaginar e, para que a imaginação progrida, precisamos jogar. Isso é uma evidência demonstrada fartamente pela dedicação que a criança tem ao jogo e a persistência disso nas fases seguintes de vida. Precisamos de um tempo maior entre ter as necessidades e satisfazê-las, ao contrário de outros seres vivos. É como se,

diante de uma necessidade, disséssemos: um momento, preciso de um tempo para imaginar, ou para pensar. E aí trazemos para o mundo imaginário as coisas que estavam fora de nós para que recebam um tratamento que caiba no mundo humano. E esse fenômeno, tudo indica, consiste em destacar do mundo real uma parte sua que é igualmente real, mas que chamamos de imaginação, de fantasia, e que pode ficar em nós, em nosso mundo espiritual. Roubamos ao real aquilo que ele tem de destacável, talvez sua alma, e a guardamos em nós para sempre, para que sirva à construção de nossa humanidade. E é com esse produto que avançamos com nossas soluções criativas para dar conta de nossa tarefa de viver. E a partir do quê? Não sabemos ao certo. Talvez a partir de órgãos muito especializados do corpo humano, capazes de transformar em imagens as experiências empíricas, talvez a partir das chamadas protofantasias, como as chamou Gehlen: Finalmente temos que tratar deste último e quem sabe, mais profundo nível da fantasia, para o que eu proporia o nome de “protofantasia”. Esta investigação é difícil, já que se trata de coisas que, por dizê-lo assim, se encontram nos limites do pensável e somente a direção comum de diversas séries de pensamento para uma mesma meta pode dar a essa investigação uma certa verossimilhança [1987, p. 378].

CAPÍTULO •QUATRO

A CARACTERIZAÇÃO DO JOGO

Reconhecemos a existência do fenômeno jogo porque a constatamos em determinados acontecimentos que envolvem pessoas, animais ou mesmo a natureza de um modo geral; ou seja, de fato acreditamos que ele existe porque nossa percepção o registra. Sabemos que ele existe por suas manifestações, porque podemos vê-lo, podemos tocá-lo, ouvilo ou até intuí-lo. O ato do jogo revela o jogo, mesmo que não seja o Ser do Jogo. Neste estudo, isso não importa tanto, porque não se trata de uma fenomenologia do jogo, embora eu reconheça a necessidade de que se faça tal fenomenologia. Aqui nesta investigação estamos tratando apenas do fenômeno e não do ser do fenômeno, no sentido que Sartre dava a esse termo. O jogo aqui vem sendo tratado como fenômeno, no sentido de ser percebido por nossos sentidos ou nossa consciência e como existente, isto é, “…designa-se a si como conjunto

organizado de qualidades. Designa-se a si mesmo, e não a seu ser” (1999, p. 19). Isto posto, não partilhamos da dúvida de autores como Gilles Brougère (1998) e Roger Caillois (1990). O primeiro acrescenta, logo ao início de sua obra: Basta considerar a diversidade dos fenômenos denominados “jogo”, mesmo sem evocar os empregos derivados ou metafóricos (tal como o jogo de uma engrenagem). O que há de comum entre duas pessoas jogando xadrez e um gato empurrando uma bola, entre dois peões pretos e brancos em um tabuleiro e uma criança embalando uma boneca? No entanto o vocábulo é o mesmo [BROUGÈRE, 1998, p. 14].

A isso eu oporia o seguinte: em uma exposição de cachorros, deparamo-nos com uma tal diversidade de tipos que somente com uma enorme boa vontade colocaríamos na mesma categoria um exemplar de miniatura pincher e um mastim napolitano. Como chamar igualmente de cachorros um buldogue e um dog alemão? Não vejo que haja menos diferenças entre os exemplares desses pares que entre um cachorro e um lobo, ou entre um cachorro e um leopardo. No entanto, aqueles que se dirigem a uma exposição de caninos sabem perfeitamente que se trata de animais da mesma espécie. Da mesma maneira os jogos são diferentes. Realmente, é bastante difícil considerar como sendo da mesma categoria uma brincadeira de casinha, jogada por crianças pequenas, e um jogo de futebol praticado por atletas profissionais. Porém, e se reduzíssemos todas as formas de jogo àquilo que possuem de mais comum? O que restaria? Muito possivelmente aquilo que nos faz chamar todas de jogo.

E talvez seja assim que façamos com os cachorros para identificá-los todos como cães, ou para não nos confundirmos em uma multidão de seres humanos: por mais diferentes que sejam um africano e um norueguês entre si, sabemos de que espécie estamos falando. Roger Caillois chega mesmo a afirmar: A heterogeneidade dos elementos estudados sob o nome de jogos é tão grande, que se é levado a supor que a palavra jogo não passa de um mero ardil que, pela sua enganadora generalidade alimenta ilusões acerca da suposta familiaridade de condutas diversificadas [1990, p. 187].

Não sei se é possível levar a cabo, atualmente, uma investigação que elimine essa dúvida, especialmente da forma como a levanta Caillois. A menos que fosse possível reduzir as manifestações de jogo àquilo que têm de mais comum. Ou, pelo contrário, traçando o caminho mais exaustivo, ou seja, inventariando todas as manifestações já percebidas de jogo nas atividades humanas. Há ainda uma terceira via, que podemos perceber em Huizinga (1999). Assim ele escreve: “É legítimo considerar o jogo uma ‘totalidade’, no moderno sentido da palavra, e é como totalidade que devemos procurar avaliá-lo e compreendê-lo” (1999, p. 6). Esse é um caminho que parece bastante profícuo, pois talvez seja o procedimento pelo qual identificamos inúmeras coisas, ou todas as coisas. Antes, porém, de prosseguir na tentativa de identificar o jogo aplicando-lhe a ideia de totalidade, consideremos ainda outras afirmações. Buytendijk, por exemplo, refere-se da seguinte maneira a essa questão:

É possível encontrar, de algum modo, pessoas em qualquer idade e em quase todas as situações numa atitude tal que, na linguagem corrente, a sua forma de agir é designada pela palavra “jogar”. Aquele que quer falar sobre a atividade de jogar “em geral” é comparável com uma pessoa – e nesse ponto ele reforça seus argumentos citando Grandjouan – “que desejasse falar sobre as estrelas e ao mesmo tempo tratasse não só de astros longínquos e estrelas cadentes, mas também de estrelas-do-mar, condecorações em forma de estrela, da Place de l’Etoile e das estrelas do teatro e do cinema” [1974, p. 63].

Mesmo quando Buytendijk exemplifica as afirmações acima, mencionando fenômenos muito díspares que designam o jogo em certas línguas, ao passo que não são designados assim em outra língua, ele acaba descrevendo fenômenos que guardam familiaridade, tais como dizer-se em alemão ein Spiel spielen e em inglês to play a game. O acento da investigação sobre o jogo, tudo indica, não deve recair sobre o estudo da linguagem, como o reconhece o próprio Buytendijk. De modo que não seria a linguagem a fortalecer definitivamente o conceito que queremos aqui desenvolver. Em todo caso, creio que os alemães têm razão ao designar de forma tão ampla, por spiel, uma imensidão de acontecimentos. Os ingleses bem que poderiam fazê-lo, dado que, por exemplo, caçar a raposa ou tocar o violino guardam nítidas características lúdicas, o suficiente para que a língua alemã os identifique como sendo fenômenos de jogo. Essas indefinições são suficientes, no entanto, para colocar o pensador holandês em outra pista, mais segura para ele que a da linguagem. E, para tanto, ele menciona algumas palavras de Heidegger (apud BUYTENDIJK, 1974): “A essência

da linguagem não se esgota na significação, nem tem apenas caráter de sinal e de cifra. Uma vez que a linguagem é a casa do ser, nós chegamos a ele pela atividade contínua de andar por essa casa” (p. 64). E por aí ele prossegue, agora com suas próprias afirmações: “Este ‘andar contínuo’ é a verdadeira tarefa da fenomenologia. Esse andar, porém, é necessariamente um retroceder e, portanto, um recordar-se” (idem, p. 65). As observações de Buytendijk mostrar-se-ão muito úteis para este trabalho mais adiante. Não quero adiantá-las para poder dar seguimento à perseguição de alguma identidade para o jogo, não na linha de revelações ou de definições, mas de aquisição de alguma consistência que possa pelo menos identificá-lo entre outros fenômenos que não sejam jogo.

O INVENTÁRIO DO JOGO Alguns estudiosos do jogo seguiram um caminho, no meu entender, bastante tortuoso para identificar suas características e localizá-lo num ambiente típico. Apesar de tortuoso, esse é o caminho que a ciência, de maneira geral, segue, em seus procedimentos de investigação. Vou consumir algum tempo descrevendo as tentativas desses autores, não para reduzir suas obras exclusivamente a tais tentativas, mas para opor a elas outras, que considero mais férteis. Inicio por Roger Caillois (1990). Ele realiza um verdadeiro inventário de características, de tal forma que um fenômeno,

para caracterizar-se como jogo, deve apresentar os seguintes pontos: • o jogo é demonstração de superioridade; • o prazer do jogo advém do desafio; • o jogo implica perigo; • o jogo evoca, por igual, as ideias de facilidade, risco ou habilidade; • opõe-se ao caráter sério da vida (brinca com o real); • vontade de ganhar; • risco; • destreza; • inteligência; • acaso; • limite entre prudência e audácia; • regras arbitrárias, imperativas e inapeláveis; • facilidade dos movimentos; • noções de totalidade, regras, liberdade; • depois do jogo tudo volta ao normal; • jogo é ocasião de gasto total: tempo, energia, engenho, destreza; • livre, voluntário, fonte de alegria e divertimento; • o jogo é o sentido dele próprio. Já vimos como é confortável, diante de uma obra feita, procurarmos nela seus defeitos. Até parece que os defeitos são sempre mais verificáveis que as virtudes. Portanto, se o crítico não for cauteloso, torna-se parasita dos trabalhos

prontos, em vez de crítico. Espero não padecer desse pecado. Minha questão é metodológica. Não acredito que o caminho seguido por Caillois seja produtivo, porque, se os pontos apontados por ele na sua pesquisa sobre o jogo são inegáveis, a cada instante de observação do fenômeno lúdico outros pontos seriam acrescentados e isso não teria fim. No fim, o jogo seria um recipiente de todas as coisas e todas as coisas seriam reduzidas ao jogo. Em alguns pontos de seu trabalho, Huizinga (1999) não foi diferente de Caillois. Ele levantou as seguintes características pertencentes ao jogo: • forma de manipulação da realidade; • voluntário; • absorve inteiramente o jogador; • acontece num campo delimitado e imaginário; • organizado a partir de regras; • seu ritmo e harmonia são extremamente cativantes; • gera tensão, incerteza, acaso, imprevisibilidade; • promove liberdade; • não é vida corrente nem real; • gera alegria; • fixa-se como fenômeno cultural; • possibilita repetição; • cria ordem; • apresenta valores éticos e sagrados; • propicia um ambiente instável; • tem regras construídas;

• aglutina pessoas mesmo após seu término; • é limitado no espaço e no tempo; • frivolidade e êxtase como polos limitadores; • características lúdicas. Huizinga repete algumas características levantadas por Caillois e acrescenta outras ao jogo. Isso não tem qualquer importância. O que importa é o procedimento que, nesse caso, é idêntico em ambos os autores. Um caminho sem fim. Deixe-me repetir o exercício com outros autores, um pouco mais resumidamente, pois que seguem todos a mesma trilha. Para Brougère (1998), seguintes características:

a

brincadeira

apresenta

as

• não é inata; • não é vazia de significados; • é cultural; • apresenta troca constante; • exige regras geradas pelas circunstâncias; • possui regras flexíveis e construídas coletivamente; • é espaço para criatividade e liberdade de escolha; • a criança pode inventar sem riscos; • tem uma dimensão aleatória. Eu repetiria, para Brougère, os mesmos comentários que utilizei para os autores anteriormente mencionados.

Creio que vale a pena citar ainda Jean Chateau (1987), pela importância de sua obra entre os que se interessam por compreender o jogo. O jogo, para Chateau, possui as seguintes características: • preparação para o futuro, para condutas superiores; • exercita as funções; • o jogo é sério; • é um mundo à parte; • é evasão e compensação; • a criança imita o adulto; • o jogo é antes de mais nada uma prova; • tem um fim em si mesmo. Seria de uma monotonia sem fim prosseguir desfilando os argumentos dos diversos autores nas suas tentativas de distinguir o jogo daquilo que não é jogo. Eu mesmo, que lhes faço essa crítica, se não tomar cuidado, caio com frequência nessa armadilha. E isso não é feito sem razões. Sou um observador atento das brincadeiras que praticam as crianças, os adultos e também os idosos. Acho que eu não erraria: olho para a pessoa ou o grupo e digo, sem medo de errar, se estão ou não jogando. E o meu olhar atento distingue, nos detalhes, aqui um sorriso, ali um grito, acolá um desafio. E, como fazem quase todos os mortais que se entregaram um dia ao vício acadêmico de querer compreender todas as coisas, sigo afirmando: e então, é jogo porque há alegria; é jogo porque há risco; é jogo porque há regras…

Mais adiante voltarei ao que penso e às minhas próprias observações sobre esses sintomas de jogo. Agora abrirei um espaço maior para criticar o que pensam tais autores, de modo que a crítica já me caiba também. Não vale a pena mencionar muitos deles. De modo geral, os argumentos levantados são bastante coincidentes entre os diversos trabalhos. Portanto, creio que basta tomar como exemplo alguns casos. Começo por

Caillois,

esse

pesquisador

que

tem

contribuído tanto para a compreensão do fenômeno do jogo no mundo todo. Ele faz, entre tantas outras coisas, um excelente inventário a respeito das características do jogo. Uma delas, por exemplo, é o perigo presente no ato lúdico. Ora, o perigo está presente em muitas outras ocasiões, como em certos trabalhos, na guerra, na caça ou nas viagens, portanto, não se pode dizer que ele seja típico apenas do jogo. Assim como uma outra característica apresentada por Caillois, que é a ideia de facilidade que ele evoca. No entanto, um operário que trabalhe na linha de montagem de um veículo faz tão repetidamente seu trabalho, dia após dia, ano após ano, que nenhuma dificuldade mais se apresenta para ele naquela tarefa. Uma outra característica de jogo, compartilhada por muitos autores, entre eles Caillois, é a de que o jogo se opõe ao caráter sério da vida. Apesar de compreender que esses pesquisadores têm lá suas razões, estou aqui frente à janela de minha casa vendo meu sobrinho brincar com uma lanchinha a motor que ganhou de presente de Natal, achando

que ele contraria a opinião desses autores. Ele está a tal ponto intrigado com o funcionamento do motor, a hélice impulsionando o barco, que nada o distrai. Centenas de vezes ele movimenta o barco para um lado e para o outro numa bacia com água. Poucos de nós poderiam levar tão a sério seu trabalho quanto ele o faz com seu jogo nesse momento. Para Roger Caillois, o jogo é livre e voluntário, tanto quanto este trabalho que estou escrevendo, assim como, segundo ele, o jogo tem regras arbitrárias e imperativas, apesar de serem também assim as regras a que são submetidos funcionários burocráticos em muitos escritórios. Não preciso me alongar mais na crítica a esse capítulo do trabalho de Caillois porque seria inútil. As características que ele distingue no jogo, com mais ou menos esforço, podemos distingui-las em outros contextos que não o do jogo. Vejamos como, a respeito disso, saem-se outros autores. Huizinga, sem dúvida alguma, firmou-se como referência na questão que estou estudando. Sua obra é abrangente e um de seus tópicos refere-se ao que estou criticando neste momento. Como Caillois, ele insiste em identificar o fenômeno inventariando suas partes. Para ele, o jogo é uma forma de manipulação da realidade. Mas não é isso também que faz, boa parte das vezes, a publicidade? A exemplo de Caillois, Huizinga atribui ao jogo o caráter de atividade voluntária, promotora da liberdade e regrada. Ele afirma ainda que a atividade lúdica absorve inteiramente o jogador, porém, isso também pode ser perfeitamente presenciado em diversas situações de trabalho. E dizer, como

ele diz, que o jogo é limitado no espaço e no tempo, que é frívolo, que cria ordem ou gera alegria, em nada o distingue de outras atividades humanas. Muitos outros autores que seguem a mesma trilha de investigação podem ser mencionados. No entanto, as características levantadas para identificar o jogo são muito coincidentes. Pela repercussão da obra, estou ficando apenas com alguns deles. Como Gilles Brougère, por exemplo, que consumiu parte de seu trabalho levantando o que disseram sobre o jogo diversos estudiosos. Para ele, o jogo não é inato. Ora, por si só isso em nada o define, pois, quantas coisas do comportamento humano não são inatas? Segundo Brougère, o jogo é cultural, o que corresponde a chover no molhado. E, entre outras coisas, o jogo permite trocas constantes, como se outras atividades humanas, permitissem também.

como

o

trabalho,

não

o

Por fim, tenho que considerar o prestigiado Jean Chateau, que afirmava que uma das coisas que caracteriza o jogo é sua seriedade, algo que, sem dúvida alguma, é típico também do trabalho. Para ele o jogo é um mundo à parte e prepara a criança para o futuro. Ora, a escola também é um mundo à parte e suas tarefas pretendem preparar a criança para o futuro. Por último, ele afirma que o jogo tem um fim em si mesmo. Creio que toda atividade humana tem um aspecto que constitui um fim em si mesmo, além de outro que remete para outros fins. E não mais me alongarei nesse levantamento de características do jogo porque o que importa não é tanto o

que disseram tais autores, mas o método de que se utilizaram para compreender o fenômeno. Não estou afirmando que esse foi o único procedimento de que se utilizaram, tampouco que o que fizeram é destituído de valor. Porém, poderiam prosseguir indefinidamente nos seus inventários, encontrando sempre novas características. Posso tomar, para exemplificar o que afirmo, um fato bastante trivial. Posso constatá-lo de minha janela. Pouco abaixo um grupo de crianças brinca em uma pequena piscina de plástico. Não sei exatamente o que jogam, mas posso descrever algumas atitudes típicas: quase todas gritam muito. Sem exceção agitam-se bastante, correm de um lado para o outro, brigam constantemente e noto que algumas tramam maldades contra outras. De vez em quando uma delas concentra-se fortemente em algo que não distingo e falam, falam sem cessar. Além disso, com frequência mudam o teor da brincadeira. Eu não poderia dizer como começaram suas brincadeiras e muito menos o que lhes dá fim. Caso essa observação fosse utilizada por mim como referência para caracterizar o jogo e se eu seguisse os procedimentos dos autores que mencionei pouco antes, daria para listar certas características: • o jogo infantil caracteriza-se pelo barulho que fazem as crianças; • o movimento corporal intenso é uma marca típica do jogo; • o jogo é um espaço permanente de conflitos;

• o jogo exige concentração; • a brincadeira parece não ter começo nem fim. Não se pode negar que tais características estivessem realmente presentes no jogo que descrevi. Apesar disso, se eu me dispusesse a procurar outro grupo de crianças jogando e descrevesse seu jogo, pode-se duvidar que outras características surgiriam? Não tenho dúvidas quanto a isso. Minha busca de inventariar tudo do jogo não teria fim. Utilizei-me desse exemplo para demonstrar que o método que adotei, similar ao dos autores mencionados no início deste capítulo, não pode dar conta de investigar o fenômeno do jogo a ponto de esgotar as possibilidades de compreensão. Agir de modo a fragmentar o fenômeno em partes, analisando cada uma delas separadamente, juntando-as ao final, produz não uma compreensão, mas uma ilusão. O problema do jogo é complexo e deve, portanto, ser pesquisado do ponto de vista dessa complexidade. O simplismo da análise que constatei nos trabalhos de alguns autores tolhe a visão para o fenômeno. Eles caíram na armadilha positivista que por tantos séculos vem turvando a compreensão para a real complexidade dos fenômenos da natureza e da cultura humana. No caso do jogo, trata-se de uma questão que tanto diz respeito à natureza, porque os não humanos também jogam, como à cultura, pois adquire características muito particulares quando somos nós que jogamos. Jean Piaget (1978a), em cuja obra distinguimos com muita nitidez uma forte tendência para considerar a

complexidade dos fenômenos humanos, refuta amplamente a metodologia adotada pelos autores que investigaram o jogo trilhando os caminhos do positivismo. Quando dedicou mais tempo a pesquisar o jogo, aquele pensador suíço teceu algumas críticas a diversos autores. Para ele, estudar o jogo não era uma tarefa fácil: … o grande número das teorias explicativas do jogo desenvolvidas até aqui mostra suficientemente que esse fenômeno resiste à compreensão causal. Mas a razão dessa resistência é talvez que se tende a fazer do jogo uma função isolada (como, aliás, da própria “imaginação”, o que falseia o problema, levando à procura de soluções particulares, ao passo que o jogo tende sem dúvida simplesmente para um dos aspectos de toda atividade (como a imaginação em relação ao pensamento)… [p. 188].

Piaget não apenas criticaria querer compreender o jogo pela análise separada de cada uma de suas partes, como se recusaria a vê-lo num contexto isolado. Pelo contrário, para ele o jogo integra o fenômeno lúdico mais geral, assim como este se inclui na atividade humana como um todo, e só assim, no contexto da totalidade humana, poderia ser compreendido. Mais adiante ele prossegue: Do exame dos principais critérios habitualmente utilizados para dissociar o jogo das atividades não lúdicas, ressalta à evidência que o jogo não constitui uma conduta à parte ou um tipo particular de atividade dentre outras: ele se define somente por uma certa orientação da conduta ou por um “polo” geral de toda atividade, caracterizando-se assim cada ação particular por sua situação mais ou menos vizinha desse polo e pelo modo de equilíbrio entre as tendências polarizadas [PIAGET, 1978a, p. 188].

Jean Piaget não se furta a indicar-nos a tendência de orientação que pode caracterizar o jogo, segundo ele, como uma atividade humana como outra qualquer, indistinguível delas pelo exame de suas partes e que somente se mostra como tal ao deslocar-se para um dos polos, de modo que as ações que integram o jogo sejam magnetizadas por esse polo e se comportem de acordo com seu regime. Ao contrário da tarefa séria, do trabalho, em que os processos de assimilação do real ao eu equilibram-se com os processos de acomodação ao real, no jogo o polo assimilador predomina sobre o acomodador. Isso explicaria, segundo Piaget, porque, no jogo, “os conflitos mais precisos são transpostos de maneira que o eu tira sua desforra, seja pela supressão do problema, seja porque a solução se torna aceitável” (1978a, p. 191). Assim, tudo ocorreria como se o jogo tivesse poderes para enfraquecer o real, de forma que aquilo que para a criança não pode ser superado na atividade séria ou perdeu tanto sua força no jogo que foi eliminado, ou enfraqueceu-se o suficiente para ser superado. A assimilação polos mais gerais donde resultam humanos. Não se

e a acomodação seriam, para Piaget, os e opostos de toda adaptação humana, a aprendizagem e o desenvolvimento pode dizer que os enigmas de todos os

fenômenos humanos podem ser desvendados a partir da fórmula piagetiana. No entanto, é inegável que a inclusão do fenômeno do jogo, como qualquer outro, na atividade humana mais geral, distinguindo-a apenas por suas tendências num dado momento e contexto, é um avanço considerável no rumo

de ver o fenômeno do jogo do ponto de vista de sua complexidade. O caldo de cultura que fermentou pensadores como Piaget, talvez alimentado, mais que tudo, pelas descobertas da física quântica, produziu olhares voltados para um outro mundo que não o da organização simplista e previsível que perdurou até meados do século XIX. Mais particularmente no século XX, físicos quânticos como Heinsenberg e Bohr, o prêmio Nobel Ilya Prigogine, entre tantos outros, como Henri Atlan, Von Foerster e Capra, ensinaram-nos a olhar para a complexidade do universo. As certezas do modelo newtoniano dissolveram-se com o novo modo de investigar os fenômenos. As teses positivistas, embora ainda muito resistentes, já cumpriram seu papel, às vezes de maneira brilhante. Mas o mundo, que sempre foi o mesmo, agora é diferente – aos nossos olhos. Mais recentemente entrou em cena, a divulgar a nova ideia da complexidade, um pensador extremamente poderoso, cuja forma de tratar os problemas tem alcançado repercussão mundial. Trata-se de Edgar Morin, antropólogo de origem, francês, cuja obra tem sido muito divulgada no Brasil. Ao encontro das questões que venho levantando neste capítulo e das discussões a respeito do jogo, Morin escreve: A ideia da unidade complexa vai ganhar densidade se pressentimos que não podemos reduzir nem o todo às partes nem as partes ao todo, nem o uno ao múltiplo, nem o múltiplo ao uno, mas que temos que tentar conceber em conjunto, de modo simultaneamente complementar e antagônico, as noções de todo e de partes, de uno e de diverso [1987, p. 103].

Da mesma maneira como seria inútil a tarefa de tentar compreender o jogo afirmando cada um de seus componentes (o jogo é livre, é voluntário etc.), igualmente o seria negando-o por partes (o jogo não é trabalho, não é sério…). Numa ou noutra dessas direções estaríamos reduzindo o jogo às suas particularidades, portanto, deixando escapar aos poucos a ideia daquilo que ele é verdadeiramente: uma unidade complexa. Estabelecendo uma analogia com a organização da motricidade humana, podemos verificar nesta que, dependendo do contexto momentâneo em que se aplica, um certo arranjo particular de movimentos coordena-se para dar conta de uma situação qualquer, por exemplo, segurar um objeto que foi lançado de longe. Num outro momento, num outro contexto, um outro arranjo particular coordena-se para lançar um objeto longe, utilizando-se, para isso, de quase os mesmos movimentos da situação anterior. Assim, o corpo humano não dispõe de movimentos sempre originais para realizar os gestos necessários em cada situação de vida. Pelo contrário, dispõe de grupos limitadíssimos de movimentos que se incluem, todos, nos de manipulação, de locomoção e de manutenção da postura. O que não encontra limites são os arranjos, as combinações que se formam a cada instante. Há, portanto, uma tendência de orientação dos gestos, a depender do contexto em que se aplicam. Eu mesmo, em trabalho anterior, tive ocasião de comentar essa questão: Reduzimos, portanto, as realização de qualquer ação

possibilidades humanas de a apenas duas: tensões e

relaxamentos… Aparentemente são muito reduzidas as possibilidades de mobilização corporal que possui o ser humano. Mas, quando consideramos as possibilidades de combinação entre todos os segmentos móveis, cada qual podendo tensionar e relaxar suas cadeias musculares, perdemos a conta das possibilidades [FREIRE, 1991, p. 95].

Ora, a motricidade não é um caso à parte da atividade humana, assim como não o são as atividades lúdicas. Não posso conceber, para o jogo, qualidades tão particulares que não seriam encontradas em outras atividades humanas. Pelo contrário, o surpreendente seria que fossem exclusivas desta ou daquela atividade típica. Não haveria, nesse caso, uma lógica da economia da natureza se, por exemplo, as atividades não sérias fossem reservadas para o jogo e as atividades sérias para o trabalho. É o que Morin reafirma quando escreve que “Assim, as qualidades inerentes às partes no seio dum dado sistema estão ausentes ou virtuais quando estas partes se encontram isoladas” (1987, p. 105). Quando Huizinga, por exemplo, fala das regras construídas como uma característica do jogo, isso, tomado isoladamente, não quer dizer absolutamente nada. Qualquer atividade humana pode ter regras construídas. Até nas mais dramáticas situações que nada têm a ver com jogos, como por exemplo, as regras que constroem presídios para viverem cem pessoas dentro de uma cela onde cabem apenas vinte. É bom ficar atento, porém, à comunhão entre os elementos de uma unidade. Estão juntos por um motivo

definido e isso pode constituir uma das pistas para uma metodologia que investigue o jogo na sua complexidade. Vale lembrar nesse ponto, mais uma vez, as palavras de Edgar Morin: Por mais diferentes que possam ser, os elementos ou indivíduos que constituem um sistema têm, pelo menos, uma identidade comum de pertença à unidade global e de obediência às suas regras organizacionais [1987, p. 113].

O exemplo é banal, mas pode ser ilustrativo. Numa multidão de homens, todos são diferentes entre si, mas, por mais que o sejam, não vacilamos em identificá-los como homens. Podemos ir mais adiante. Comparados entre si, apresentarão diferenças notáveis, como a que se pode verificar entre os cabelos, os olhos, a cor da pele ou as orelhas. E isso não impede que, com muita facilidade, reconheçamos suas identidades. De modo algum as diferenças impedem-nos de fazer isso. “A organização dum sistema é a organização da diferença. Estabelece relações complementares entre as partes diferentes e diversas, bem como entre as partes e o todo” (MORIN, 1987, p. 113) Estou amplamente convencido, inclusive, de que a diferença é a face visível dos componentes de um sistema. Nos detalhes, é só o que enxergamos. No entanto, sabemos que há um invisível igual que garante os vínculos das partes entre si formando um todo que em hipótese alguma pode ser reduzido à simples soma das partes. Mas, é bom que se diga, também as diferenças garantem os vínculos, desde que a orientação esteja assegurada.

Seguindo no meu raciocínio, sugiro verificar, comparando agora uma multidão de homens com uma de chimpanzés, que tanto o humano como o macaco possuem orelhas, dedos, bocas, pés, olhos, e de tal forma que, em alguns casos, o nariz de um homem não é menos diferente do de um outro homem que do nariz de um chimpanzé. E nada disso nos confunde. Continuaremos sabendo distinguir homens de chimpanzés. Voltando ao jogo, o mesmo exercício poderia ser realizado. Podemos colocar lado a lado duas situações. Na primeira, uma criança brincando de montar, com blocos de madeira, uma complicada construção. Na segunda um funcionário de uma empresa de arquitetura debruçado sobre sua prancheta de projetos. Dificilmente um observador vacilaria em identificar uma e outra situação, ou seja, o resultado prático da situação é bastante previsível. Porém, a questão que resta é: o que significa isso? E refiro-me a uma questão que remete ao identificador da situação. O jogo da criança que brinca de construir com blocos de madeira impõe-se à nossa percepção com força admirável, tanto quanto o quadro do arquiteto sobre sua prancheta impõe-se como trabalho. Além disso, duvido que as fronteiras do jogo e do trabalho sejam impermeáveis a ponto de não se deixarem penetrar, a do jogo por elementos do trabalho, e a deste por elementos do jogo. Resta, portanto, buscar o significado do jogo, não mais na caracterização infindável de partes que o compõem, mas sim na identificação dos contextos em que ocorre. Seguramente há um nicho ecológico que acolhe o jogo e lhe permite manifestar-se, o único ao qual ele se adapta. É nesse

ambiente que temos de penetrar para tentar compreender o fenômeno do jogo.

CAPÍTULO • CINCO

A AMBIENTAÇÃO DO JOGO

Como



anunciei

anteriormente,

renuncio

ao

aporte

positivista para seguir na investigação sobre o jogo. Entretanto, não defino, de saída, o método que, a meu ver, possa ser o mais adequado para seguir nessa pesquisa. Suponho que, a depender da história de cada pesquisador, a fenomenologia ou a dialética indiquem os caminhos mais seguros para tratar dos complexos problemas que envolvem o fenômeno do jogo. De minha parte contento-me, por enquanto, em levantar indícios que delineiem, mesmo que num quadro um tanto nebuloso, o ambiente vital do jogo. Minha busca não se dará sobre partes constituintes do jogo, isoladamente, até porque já deixei claro que não acredito que o jogo seja constituído por regras, mais liberdade, mais atitudes não sérias, mais voluntarismo etc., e sim por interações entre partes quaisquer tendendo numa certa direção. A exemplo do que escreveu Morin recentemente:

Nós somos constituídos de 30 ou 50 bilhões de células. Mas, na verdade – e creio que foi Atlan quem fez essa observação –, nós não somos constituídos de células, somos constituídos de interações de células [MORIN & LE MOIGNE, 2000, p. 51].

É necessário esclarecer agora, antes que eu vá adiante, que em hipótese alguma deixo de reconhecer o valor das partes constituintes de um sistema complexo como o do jogo. Pelo contrário, no que proponho, a parte ganha status nunca alcançado quando vista isoladamente. Faz sentido procurar compreender profundamente cada parte apenas quando a concebemos fazendo parte do todo e, se isso ocorrer, sem dúvida podemos, inclusive, compreender o conjunto interacional formado a partir da compreensão profunda de uma única parte. Se num determinado contexto o jogo de um grupo de crianças mostra-as extremamente concentradas, essa concentração é real, é existente naquele contexto e, se eu puder identificar aquele conjunto como jogo, posso, se não deixar escapar a ideia de totalidade, dedicar-me à tarefa de investigar a concentração das crianças para compreender o jogo de que ela faz parte. A respeito disso Edgar Morin faz uma consideração, tomando como exemplo a organização biológica e a da linguagem: É notável constatar que na organização biológica dos seres multicelulares cada célula contém a informação do todo. Ela contém potencialmente o todo. E é nesse sentido um modo hologramático de organização. Na linguagem, o discurso ganha seu sentido com relação à palavra, mas a palavra só fixa seu

sentido com relação ao discurso no qual ela se encontra encadeada [idem, p. 56].

O SER E O JOGO Muito bem. Tentemos nos concentrar um pouco mais agora naquilo que é o objetivo deste capítulo: a ambientação do jogo. Sobre esse fenômeno, Sartre comentou, em O ser e o nada: …é preciso observar antes de tudo que o jogo, em oposição ao “espírito de seriedade”, parece a menos possessiva das atitudes: despe o real de sua realidade. Há seriedade quando se parte do mundo e se atribui mais realidade ao mundo do que a si mesmo… [1999, p. 709].

Chamo a atenção, quanto a essa observação de Sartre, para um aspecto muito curioso: ele aponta uma tendência de direção para o jogo. Ora, se aquele pensador comenta o jogo em oposição à seriedade do real, ele acaba por afirmar que o ambiente do jogo tende mais para o sujeito que para o mundo objetivo. É interessante observar aqui o quanto essa observação coincide com a de Piaget em A formação do símbolo na criança, a respeito dos polos complementares da adaptação, isto é, a assimilação das coisas ao eu e a acomodação dos esquemas do sujeito ao real: “…o jogo simbólico representa o polo da assimilação, no pensamento, e assimila assim, livremente, o real ao eu” (1978a, p. 212).

No jogo o ser humano retomaria o caminho para si mesmo, uma vez que se oporia ao mundo objetivo, o que equivale a retomar o caminho para a liberdade, dado que, segundo Sartre, O homem sério é “do mundo” e já não tem qualquer recurso em si mesmo; sequer encara mais a possibilidade de sair do mundo, pois deu a si próprio o tipo de existência do rochedo, a consistência, a inércia, a opacidade do ser-no-meio-do-mundo. É evidente que o homem sério enterra no fundo de si a consciência de sua liberdade; é de má-fé, e sua má-fé visa apresentá-lo aos próprios olhos como uma consequência: para ele, tudo é consequência e jamais há princípio; eis porque está tão atento às consequências de seus atos [1999, p. 710].

Sem dúvida, na visão de Sartre, o homem volta-se mais para si do que para o mundo quando joga. Predomina, nesse ambiente, a subjetividade, embora possam permanecer âncoras objetivas na realidade, como a criança que escolhe, para brincar de cavalinho, um bastão comprido em vez de uma mesa, por exemplo, porque o bastão, mais que a mesa, assemelha-se a um cavalo, e é essa semelhança que constitui o vínculo com a realidade. De alguma maneira, a criança vai ao mundo da fantasia na sua brincadeira de cavalinho, mas permanece com um pé na realidade ao escolher para brincar um objeto que se prende ao real. Portanto, o que está em discussão é um predomínio, uma certa tendência à subjetividade, e não um domínio exclusivo desta, como bem o aponta Sartre: Com efeito, tal como a ironia Kierkegaardiana, o jogo libera a subjetividade. Que é o jogo, de fato, senão uma atividade cuja

origem primordial é o homem, cujos princípios são estabelecidos pelo homem e que não pode ter consequências a não ser conforme tais princípios? A partir do momento em que o homem se capta como livre e quer usar sua liberdade, qualquer que possa ser, além disso, sua angústia, sua atividade é de jogo [1999, p. 710].

Estabelece-se aí uma relação conflituosa entre o mundo subjetivo, que incita ao jogo, e o mundo objetivo, que incita ao trabalho, à tarefa, às coisas sérias, conflito esse que deve permanecer por toda a vida, nitidamente tendendo para o primeiro na infância e para o segundo na vida madura, pelo menos nas atuais circunstâncias sociais. Não preciso mais que recorrer à figura da escola para exemplificar essa zona de conflito, exatamente no momento mais crucial de nossa vida de transição, de um território profundamente pessoal para um território fortemente socializado. E também não preciso mais que a escola para demonstrar a falta de sutileza de nossas instituições educacionais para administrar esse conflito e para tornar claro a serviço de que tendência atuam; sequer disfarçam o caráter de agente cruel da objetivação excludente da atividade humana. Poucos educadores conseguiram ser suficientemente originais e eficazes na proposição de procedimentos que atuassem satisfatoriamente na administração desse conflito. Mais adiante, proponho-me abordar detalhadamente a questão educacional, mas quero adiantar-me um pouco a respeito disso, mencionando, de passagem, algo da obra de Célestin Freinet, particularmente no capítulo em que ele se refere ao jogo-trabalho.

A sabedoria humana já observara que “quem brinca bem trabalha bem”, porque, nesse campo do jogo-trabalho, não existe, como se vê, nenhuma oposição essencial entre jogo e trabalho. Só que, com o uso, essa prática do jogo foi tão pervertida que às vezes evoluiu para formas eminentemente perigosas do ponto de vista individual e social. Psicólogos e pedagogos não souberam levar em conta essa degenerescência; não conseguiram encontrar, em suas fontes, a profunda dignidade do jogo-trabalho; a tal ponto que o adulto se irrita quando vê a criança brincar em vez de trabalhar [1978, p. 240].

Deixemos de lado, por enquanto, a questão educacional do jogo para voltar ao início do conflito que apontei entre os mundos subjetivo e objetivo. Para Sartre, “fica estabelecido que o desejo de jogar é, fundamentalmente, desejo de ser” (1999, p. 711), sendo o fazer uma categoria puramente transitiva entre os desejos de ser e de ter. O jogo localiza-se, portanto, no território do ser, apontando na direção das propriedades subjetivas do sujeito. De tal maneira que é possível que a indicação tão precisa que nos fornece nossa percepção, a respeito de ser uma atividade tal ou tal um jogo, provenha dessa nítida polarização da atividade lúdica no território subjetivo do ser. Falo, porém, de tendência, nunca de exclusão, pois que, para Sartre, o jogo também é apropriação e dirige-se, portanto, para o ter, ou, usando suas palavras, o “em-si”. É importante que não restem dúvidas quanto a isso, ou seja, o jogo não é só subjetivo, é também, em menor escala, objetivo, assim como o jogo não é só desejo de ser, é também, em menor escala, desejo de ter. Assim como o jogo de Piaget, que não era constituído puramente de assimilação, mas só

predominantemente. Ou, para exemplificar melhor, os estudos de Jean-Marie Lhôte (1976) sobre o simbolismo do jogo, que levantam algumas hipóteses sobre os jogos de bola que representariam o sol no firmamento. Quem sabe nossos ancestrais, para livrarem-se do medo que lhes incutia o astro rei, transformavam o sol em objetos redondos que o representassem e jogavam com eles, nitidamente se utilizando de uma maneira de apropriar-se dele. Se ele já me pertence, se já faz parte de mim, não o temo. Para ficar num outro exemplo mais próximo, a criança que procura dominar os segredos do jogo de pião exercita-se, adquire técnicas, repete à exaustão as práticas do jogo até que, por fim, o pião é como se fosse seu e domina-a o sentimento de conquista. O pião só se oferece à criança enquanto movimento giratório, enquanto ritmo e dança, e não inerte, jogado a um canto ou mal utilizado. Que graça tem para a criança o pião enquanto não puder girar, dançar para ela? Tal qual nos jogos amorosos. Que amante conceberia possuir a mulher amada ou o homem amado como quem possui um pacote de biscoitos adquirido em uma loja? Tendo em mente as considerações de Sartre e os exemplos descritos, sugiro extrema cautela aos que, imbuídos da crença irrefreável no despotismo quantificador, procuram determinar com precisão as fronteiras que definem até onde vão, no jogo, o limite do mundo subjetivo e o limite do mundo objetivo. Isso não importa; apenas o que importa é saber para que lado pende a balança. Certamente a extrema complexidade das interações que conduzem ao jogo não o

tornam menos misterioso que o emaranhado universo circunscrito num simples átomo. Para entender os mistérios deste último, solicita-se uma outra maneira de pensar. Que diabos quererá dizer? Os elétrons estão em todos e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Esta mesa é feita de átomos, portanto, basicamente de vazios, ou seja, a dificuldade que encontramos ao procurar compreender o fenômeno do jogo deve-se, acima de tudo, à dificuldade de o fazermos com nosso atual modo de pensar. Seria, então, o caso de perguntar se já temos um outro modo que permita pensar a complexidade. Respondo que, de modo geral, ainda não, mas o estamos construindo, e isso leva tempo, assim como há muito tempo iniciou-se sua construção. Posso exemplificar isso com uma passagem de Sartre a respeito do ato de esquiar: O esquiador faz com que a neve ofereça de si o que pode oferecer; a matéria homogênea e sólida só lhe entrega solidez e homogeneidade por meio do ato esportivo, mas solidez e homogeneidade permanecem como propriedades florescidas na matéria. Esta síntese entre eu e não-eu realizada aqui pela ação esportiva se expressa, como no caso do conhecimento especulativo e da obra de arte, através da afirmação do direito do esquiador sobre a neve: atravessei-o centenas de vezes, e centenas de vezes nele fiz brotar, pela minha velocidade, esta força de condensação e de apoio; ele é meu [1999, p. 715].

Num certo sentido, portanto, para Sartre, “A arte, a ciência, o jogo são atividades de apropriação, seja total ou parcialmente, e o que querem apropriar, para-além do objeto

concreto de sua busca, é o próprio ser, o ser absoluto do Emsi” (1999, p. 716). Não quero, de maneira alguma, encaixar argumentos, à minha tese da ambientação do jogo, que não sejam estritamente harmônicos com o ritmo das ideias aqui colocadas. Tanto que refutei um considerável repertório de argumentos levantados por inúmeros autores que dedicaram seu tempo a estudar o fenômeno do jogo. Não desejo fazer como a criança que, pretendendo encaixar uma peça em um orifício que tenham, ambos, tamanhos e formas incompatíveis, force o encaixe mesmo à custa de quebrar uma das peças. Mas há argumentos cuja harmonia com este texto salta aos olhos, mesmo que somente aos meus. É o caso do discurso de Tomás de Aquino na Suma teológica. O texto de Tomás é comentado por Jean Lauand: …assim como o homem necessita de repouso para o corpo para restabelecer-se, pois, sendo limitadas suas forças físicas não pode trabalhar continuamente – assim também necessita de repouso para a alma: o que se faz pelo jogar [1998, p. 2].

Não quero discutir a mística ou as intuições de Tomás de Aquino, mas é inegável que ele colocava o jogo no território das coisas da alma, da subjetividade, do ser, em oposição à objetividade do trabalho. E se esse argumento de Aquino não fosse suficiente, eu poderia acrescentar outro, o de que “no jogo cada um se mostra tal como realmente é”.

Assim vai se constituindo aos poucos um ambiente próprio para a manifestação do jogo, ou um solo fértil favorável ao seu crescimento, tal qual uma planta tropical que necessita de umidade e calor para se desenvolver. O jogo não é um caso à parte das demais atividades humanas. Como todas, é vida manifestando-se e, como elas, manifestando-se de maneira típica, apenas quando encontra ambiente fértil para isso. E, tudo indica, é o mundo do espírito humano, da subjetividade que acolhe o lúdico e o faz crescer. Quando o homem volta-se para si, livre das amarras da objetividade, pode jogar. E que não se confunda esse mundo interno que acolhe o jogo com qualquer atividade interna, mental, que muitas delas subjugam o homem, pelas amarras estabelecidas por injunções externas ou internas. Buytendijk reforça essa ideia ao afirmar que “A esfera do jogo é a esfera das imagens e, com isso, a esfera das possibilidades e da fantasia” (1974, p. 68). E as imagens, para o pensador holandês, são as coisas e os acontecimentos em seu caráter pático. Sendo assim, o ambiente no qual se desenrola o jogo tipicamente humano, apesar de sua existência também entre os animais e as crianças pré-verbais, é o ambiente interior, o mundo da fantasia para onde Bastian (ENDE, 1985) viajou com a missão de salvar a sociedade humana, a qual, segundo a história, ali era construída. Em A história sem fim, o jogo, encontrando na imaginação da criança seu nicho ecológico, constitui, por sua vez, o ambiente fértil em que se fomenta a construção do mundo real, que, no caso humano, é o mundo cultural. O que

chamamos de mundo real seria o produto exteriorizado de nosso jogo, de nossos sonhos, de nossas fantasias. É evidente que as barreiras impostas pela realidade, pelo mundo das coisas cerceiam o produto da imaginação, de modo a torná-lo física e socialmente aceito. Porém, no mundo interno, as construções imaginárias podem não ter limite e transgredir todas as regras da realidade. Quando sem freios na realidade, a manifestação dessa construção interior pode ser desastrosa, assim como pode ter requintes de obra de arte. Isso me faz retornar a um ponto mencionado no início deste capítulo, quando me referi ao conflito entre jogo e realidade. Esse conflito, que tem ele mesmo todas as características de um jogo, de um vaivém, mantém a lucidez do jogador, mantém-no de alguma maneira preso à realidade. De um lado há o território livre da criação, da imaginação que pode romper todas as fronteiras. De outro há o território das coisas do mundo que chamamos de real, com suas barreiras, seus constrangimentos. A vida em sociedade teria de ser marcada por esse equilíbrio mas o progresso tem a marca do desequilíbrio em favor do mundo da imaginação. É nele que os seres humanos ultrapassam as barreiras do real. Aquele que se torna um bom jogador, no sentido de lidar habilmente com a fantasia, pode perder-se nela como os personagens de A história sem fim, que iam a Fantasia e nunca mais conseguiam voltar. Por vezes, arrisca-se tanto o jogador que os limites entre o jogo e a realidade tornam-se por demais tênues, podendo romper-se de vez. Mas são esses os jogadores que, por vezes, voltam ao nosso mundo com as

obras mais belas. Julgo que seja nesse campo perigoso, que torna difusas as barreiras entre os dois mundos, que se constrói a beleza mais sutil, aquela que, muitas vezes, enlouquece seu autor. Excetuando alguns casos no campo da pedagogia, em que, seguindo um plano, jogo e trabalho andam lado a lado, é preciso estar livre de obrigações objetivas para ter acesso ao jogo. E é ao ver-se livre das obrigações objetivas que nos refugiamos na esfera do mundo subjetivo e podemos decidir, por nossa conta, o que fazer. Talvez nesse caso, joguemos. Mas, quando jogamos, é sempre nesse caso. Acredito que um razoável quadro do ambiente propício à ocorrência do jogo esteja sendo traçado aos poucos neste estudo. Isso não garante, entretanto, que os argumentos reunidos sejam suficientes para garantir ao observador instrumentos para identificar o jogo com segurança; ele não tem mais que a percepção imediata. E não poderia ser de outra maneira, uma vez que tudo no jogo aponta para o mundo interior do sujeito, invisível aos nossos olhos, e a tradução exterior dessa atividade, no plano da nossa razão, confunde-se com expressões de qualquer outra atividade. Neste ponto, levanto um problema: seria a razão instrumento suficiente para dar conta de toda a compreensão necessária de todas as coisas? Se o mundo do jogo desenrola-se na invisibilidade da subjetividade humana, sua tradução para o exterior, por mais que isso seja sutil, deixa vestígios e um deles, embora possa não ser visível em todos os tipos de jogos, é o caráter de

simulação. Ao ver alguém ou um grupo jogando, sabemos que jogam, em parte, porque sabemos que estão fazendo de conta, que estão representando, e mais, se autorrepresentando, e essa pode vir a ser a mais completa tradução, para o mundo exterior, que o jogo fornece. Essa questão, tal como a coloquei, costuma confundir com frequência os estudiosos do jogo, muito particularmente porque, se um adulto, ao jogar, sabe que está fingindo, que está simulando, nem sempre a criança sabe disso, até porque as crianças mais novas (até os três, quatro anos de idade mais ou menos), confundem com muita frequência fantasia com realidade. Como o caso que contei ao início deste trabalho, em que eu, com cerca de dois ou três anos, descrevia para meus pais os casos que já vivera como moleque de rua. Em hipótese alguma me convenciam de que aquilo não era verdade. Não quero dizer com isso que eu não mantinha algum vínculo com o real, mas ele costuma ser pouco perceptível. A criança finge e acredita naquilo que está fazendo, leva seu jogo muito a sério. Portanto, nesses casos, o observador maduro pode saber que a criança está fazendo de conta, mas a criança que joga não. No entanto, o fato de ela não ter consciência disso não descaracteriza o jogo como tal. Tanto é que, pouco tempo depois, um pouco mais madura, a criança pode jogar o mesmo jogo com plena consciência de que se trata de uma simulação. É quando ela diz que tal coisa é de mentirinha, ou “é à brinca”, na linguagem infantil. Além de ser interior, tendendo para a subjetividade, para o mundo imaginário da fantasia, da simulação, tudo indica

que o jogo só pode ocorrer na esfera do não necessário. De tal modo que não se pode conceber o jogo onde há faltas a serem supridas. O ambiente de jogo é um ambiente de sobra, para o qual são reservadas as energias em sobra. Arnold Gehlen chega a afirmar que “Só um ser que vive em uma situação assegurada e descansada e cujas necessidades vitais são cobertas desde fora, pode viver em semelhante exclusividade” (1987, p. 241). Pois não seria a melhor explicação para o êxito cultural da sociedade grega antiga o fato de terem vivido depois dos mesopotâmios, eméritos inventores? Os cidadãos gregos, satisfeitos com a herança mesopotâmia, quase nada inventaram, dedicando seu tempo a dar asas à imaginação, donde saiu o que todos conhecemos. Não nos consta que os escravos gregos tenham produzido magníficas obras de arte ou tratados filosóficos. O tempo dos escravos era dedicado a prover suas próprias faltas e as dos cidadãos de Atenas e outras cidades da Grécia. Mas, a respeito desse tema das sobras de energia e necessidades humanas, já o tratei mais aprofundadamente no capítulo 2 deste trabalho. A partir das palavras de Gehlen pode-se afirmar que, de fora, podemos indicar o jogo também quando percebemos que a pessoa que está fazendo uma atividade não precisaria estar fazendo-a, porque ela não seria objetivamente necessária, portanto, o jogador a faz porque quer, e não por obrigação. Sobre o mesmo tema escreveu a professora Gerda Verden-Zöller: O jogo nos seres humanos é uma atitude fundamental que é facilmente perdida devido a que requer inocência total. De fato,

qualquer atividade humana feita em inocência, isto é, qualquer atividade humana feita no momento em que é feita com a atenção nela e não no resultado, isto é, vivida sem propósito ulterior e sem outra intenção além de sua realização, é jogo… [MATURANA & VERDEN-ZÖLLER, 1994, p. 145].

Jogamos quando apenas jogamos. Uma conversa é um jogo quando as pessoas que a realizam apenas conversam e nenhum objetivo há além disso, nenhum compromisso exterior a essa conversa existe, nenhuma consequência futura é buscada. Saber jogar é saber estar presente em um determinado espaço e em um determinado tempo, e apenas estar neles. O jogo absoluto requer essa entrega total, mesmo que isso seja apenas uma ideia. Não tenho, neste momento, como afirmar que isso seja possível. Não sei se um jogador que se entregasse totalmente ao jogo poderia retornar ao chamado mundo real. Esse jogo absoluto, portanto, tal como o descrevi, dificilmente poderia ser constatado entre nós. Seus sintomas mais evidentes os encontramos entre crianças, principalmente as mais novas. Em alguns jogos, mostram-se tão tomadas pela atividade de jogo que dão a impressão de não poderem mais retornar à nossa realidade. Há alguma coisa nelas, porém, que as mantém ligadas ao mundo real, e que lhes permite retornar, muito provavelmente os objetos utilizados nas brincadeiras, palavras, sensações, isto é, ligações permanentes com a realidade que não se perdem durante os jogos. Porém, os adultos, progressivamente envolvidos em compromissos, confundem de tal forma jogo e tarefas, jogo e trabalho, que é necessário admitir que

dificilmente encontraremos uma forma pura de jogo nessa fase de vida. Quanto de trabalho não há no exercício de jogo de um jogador profissional de futebol? É preciso compreender, todavia, que essa atividade aparentemente desnecessária, a que chamamos jogo, só é desnecessária no sentido do cumprimento de adaptações imediatas, do suprimento de faltas localizadas, reconhecidas. Em outro sentido, porém, ela cumpre papel fundamental e até vital na sociedade humana, se considerarmos que pode estar suprindo nossa necessidade de imaginação, consequentemente, de cultura.

ALÉM DO SUJEITO DO JOGO Por último, quero tentar concluir este capítulo comentando um autor que talvez se oponha a essa conclusão. Trata-se de Hans-Georg Gadamer (1993), que tratou, no capítulo 4 de sua obra a respeito da ontologia da obra de arte, o jogo como fio condutor da explicação ontológica. Posso ser auxiliado por Gadamer em minha tentativa de descrever o ambiente de manifestação do jogo, assim como terei que me defrontar com sua ideia de não levar em conta a subjetividade do jogador, sendo que até agora, de modo geral, referi-me, no quadro que descrevi, ao jogo como uma esfera predominantemente da subjetividade humana. O pensador alemão afirma, sem meias palavras, falando do jogo, que “este possui uma essência própria, independente da consciência dos que jogam” (1993, p. 145).

Não nos esqueçamos de que o objeto principal das reflexões de Gadamer é a obra de arte, e é o que ele pensa da arte que o jogo lhe confirma: “O ‘sujeito’ da experiência da arte, aquilo que permanece constante, não é a subjetividade de quem experimenta, senão, a obra de arte mesma” (idem, ibidem). Da mesma forma, na concepção do autor, “O sujeito do jogo não são os jogadores, senão que através deles o jogo simplesmente acede sua manifestação” (idem, ibidem). Gadamer insiste, portanto, que a essência do jogo independe dos que jogam e, por mais chocante que isso possa parecer à primeira vista, para mim, parece fazer bastante sentido, e de maneira alguma põe em risco o quadro que venho traçando. Porém, para facilitar a compreensão, quero ir mais adiante no texto para citar algumas passagens muito ilustrativas. Logo após mencionar Huizinga para fortalecer o “primado do jogo frente à consciência do jogador”, ele afirma: O jogo representa claramente uma ordenação na qual o vaivém do movimento lúdico aparece como por si mesmo. É parte do jogo que esse movimento tenha lugar não só sem objetivo, senão também sem esforço. É como se marchasse sozinho. A facilidade do jogo, que desde logo não precisa ser sempre verdadeira falta de esforço, senão que significa fenomenologicamente só falta de um sentir-se esforçado, se experimenta subjetivamente como descarga. A estrutura ordenada do jogo permite ao jogador abandonar-se a ele e o livra do dever da iniciativa, que é o que constitui o verdadeiro esforço da existência. Isso se faz também patente no espontâneo impulso à repetição que aparece no jogador, assim como no contínuo renovar-se do jogo, que é o que dá sua forma a este (por exemplo, o estribilho) [1993, p. 148].

Esse trecho remete-me ao início deste estudo, para o Senhor do Jogo, que motivou todo o trabalho que até aqui se desenrolou. Eu falava ali, citando A história sem fim, dos riscos de ir a Fantasia e nunca mais voltar, de romper a cadeia do vaivém que dá ritmo e consistência ao jogo e que, num certo sentido é o ir ao jogo e voltar à realidade. Porém, de qualquer maneira eu falava do Senhor do Jogo, como poderia ter dito o Ser do Jogo, de todo modo referindo-me a uma entidade que bem caberia nas metáforas que no momento eu utilizava. É possível crer que haja um Ser do Jogo, um jogo além dos homens, dos bichos, que independe dos jogadores sem contradizer a ideia de ser a subjetividade a esfera do jogo, como afirmou Sartre? Lembro que ao religioso que vê no sorriso de uma criança uma manifestação de Deus, não lhe passa pela cabeça que Deus deixa de existir quando a criança para de sorrir. Da mesma maneira, nunca me ocorreu que o jogo deixaria de existir porque as crianças que brincavam de amarelinha tiveram de parar de jogar. Quando isso ocorreu, o jogo não terminou, foram as crianças que pararam de brincar. A derrota ou a vitória no futebol não significa o fim do jogo, mas apenas a interrupção de sua manifestação. Quando alguém morre, a vida continua. Não quero simplesmente pôr-me de acordo, mas considerar a gravidade das considerações de Gadamer. Quero refletir sobre a possibilidade do jogo além do jogador. O jogo, que escapa da objetividade da tarefa e localiza-se no terreno

da subjetividade, pode também estar além dela. É possível que o espaço de atuação do jogador seja, de fato, sua subjetividade (predominantemente), mas que o espaço de existência do jogo esteja além da subjetividade do jogador. Portanto, o jogo impor-se-ia à subjetividade do jogador, é nela que ele encontraria um de seus espaços de manifestação, mas não seria aí que residiria. O Senhor do Jogo moraria em outra esfera, o território do lúdico seria a natureza, todo o universo. O jogo que realiza o lúdico subverte a subjetividade humana e materializa-se em nossas ações e, como afirma o notável pensador alemão, …o modo de ser do jogo está tão próximo da forma do movimento da natureza que nos permitirá, sem dúvida, uma conclusão metodológica de importância. Com toda evidência não se pode dizer que também os animais joguem e que, em seu sentido figurado, joguem também a água e a luz. Ao contrário, haveria que dizer inversamente que também o homem joga. Também seu jogo é um processo natural. Também o sentido de seu jogo é um puro automanifestar-se, precisamente porque é natureza e enquanto que é natureza [idem, ibidem].

São notáveis as contribuições de Gadamer (1993) para o tema que estou investigando. Para ele o jogo identifica-se por seu caráter de vaivém, de repetição constante. Creio que, nesse aspecto, assim como ocorre com outros autores, Gadamer usa um argumento, fartamente utilizado na literatura, que resultou insuficiente. Senão vejamos. Lembrome de um exemplo ocorrido comigo muito tempo atrás. Eu trabalhava em um banco como office-boy, tinha cerca de 14 anos de idade e recebia dos meus chefes as tarefas mais

enfadonhas e estafantes possíveis. Uma delas era imprimir, com um carimbo, a palavra “Santos” em cada folha de cada talão de cheques da agência, que ficava na cidade do mesmo nome. Desse modo, certos dias eu tinha de carimbar milhares de vezes a tal palavra, sem parar, até concluir a tarefa. Aquilo cansava-me e aborrecia-me mais que qualquer outra coisa. Eu precisava encontrar um meio de suportar aquela rotina. Então inventei o seguinte: comecei a criar uma técnica de carimbar mais rapidamente. Pegava um talão de cheques e o colocava à minha esquerda na mesa. Do lado direito deixava a almofada de tinta e o carimbo. Apoiava minha mão esquerda sobre o talão e com o polegar esquerdo virava cada uma das vinte folhas. Com a mão direita carimbava “Santos” em todas as folhas, uma a uma. No princípio eu fazia os gestos devagar, prestando atenção: tum… tum… tum… tum. Aos poucos fui aumentando a velocidade: tum… tum… tum… tum, até tornar-me extremamente rápido: tum – tum – tum – tum, de tal forma que chamava a atenção dos colegas de trabalho e dos clientes do banco, que passaram a admirar meu espetáculo, sem contar que me livrava logo daquele trabalho. Virei um artista do carimbo e diverti-me muito com aquilo. Qual a diferença entre o que eu fazia como trabalho, antes de inventar meu espetáculo, e o que fazia para me divertir, isto é, entre o que era trabalho e o jogo que isso virou? Como se vê, não basta haver repetição para ser jogo, e nem basta o vaivém para caracterizá-lo. Enquanto não invoquei o Senhor do Jogo, enquanto não passei a fazer a

atividade, não mais por necessidade, mas porque eu queria fazê-la, enquanto não retirei a ação da esfera pura da objetividade, não joguei. E o que é que as pessoas viam naquele jogo e que vejo hoje, para identificá-lo como jogo? A repetição, sem dúvida, mas a repetição ritmada, a repetição que deu forma de beleza à ação, a repetição que tornou a ação apreciável para mim e para os espectadores, de tal maneira que eles podiam ver que aquilo não precisava ser feito daquele jeito, mas sendo feito assim tinha harmonia, tinha beleza e tinha a minha marca, e não a marca daquela tarefa que me exigiam. Essa repetição circular, esse vaivém, esse conflito entre forma e conteúdo, essa opressão da forma que insiste em tornar belas as coisas repetidas, esse jogar tomando conta do jogador mostra-se magnificamente nítido nos versos, que li com avidez, de um poeta popular que descobri no cancioneiro nordestino, um tal de Zé Limeira, segundo alguns, o maior violeiro daquela região (TEJO, 1988). Ele cantava, desafiando outros violeiros, versos como esses: Eu me chamo Limeira da Nação, O malhó cantadô da redondeza… Jesus Cristo vendia miudeza… Ferrabraz tinha tudo no Japão, Um macaco enrabou a mãe do cão, O Prefeito do Brejo não morreu, O sertão nesse dia escureceu, Salomão trabalhou no mesmo eito, Você hoje me paga o que tem feito Com os poetas mais fracos do que eu [p. 172].

Zé Limeira ficava tomado pelo jogo das palavras nos versos aparentemente loucos. Mas, de louco ele não tinha nada. Só quem se permite ser possuído pelo Senhor do Jogo pode saber do prazer que isso dá. Não se pode dizer que a forma suprime o conteúdo, mas predomina. Quanto mais o jogador se entrega, mais a forma domina, mais o conteúdo, sem desaparecer, rende-se e a obra torna-se bela. E Limeira não parava nunca de cantar e de distribuir beleza pelos quatro cantos do Nordeste. Morreu com a viola no colo. Não sem antes deixar heranças como essas para todos nós: Peço licença ao truliso Dos olbús das periférias, Dos chuás das pontilíneas, Dos chomotós das matérias, Das grotas dos veluais, Das mimosas deletérias [idem, p. 144].

Que lindos os versos do poeta paraibano! E como são gostosos de cantar! Se eu fosse falar tudo o que sinto ao ler o poeta, todas as minhas frases terminariam em pontos de exclamação. Que grande jogador era Zé Limeira! Às vezes, tão lírico que me faz chorar, e aqui tenho que transcrever os versos do adversário do Limeira no desafio de viola, para dar ideia de como se davam os encontros. Primeiro os de José Alves Sobrinho, poeta maior, intelectual, amante dos versos de cordel: Vou pelo oceano em missão geográfica, Cantando enseadas, lagunas e rios,

Os volumes dágua, salgados e frios, Os golfos, as angras, bacia hidrográfica. Eu quero trazer a visão fotográfica Dos portos, das algas, por onde eu passar. Os álveos, as ilhas eu quero deixar, À praia voltando em roteiro romântico, E aí terminou meu passeio no Atlântico, Cantando galope na beira do mar [idem, p. 175].

Sobrinho era um mestre no galope à beira-mar, gênero que exigia um perfeito domínio rítmico, considerado, por muitos, o mais difícil da cantoria nordestina. Mas Limeira não se abalou. Ele não se abalava por nada. Confiava que o jogo saberia sempre o que fazer. Era só se entregar. E assim respondeu: Não sei onde fica esse tá de oceano, Nem sei que pagode vem sê esse má… Eu sei onde fica Teixeira e Tauá, Que tem meus moleques vestido de pano… A minha patroa é quem traça meus prano, Cem culha de milho inda quero prantá, Farinha, lugume, feijão e jabá, Com môi de pimenta daquela bem braba, Valei-me São Pedro, Limeira se acaba, Cantando galope na beira do má [idem, ibidem].

CAPÍTULO • SEIS

JOGO E EDUCAÇÃO

No capítulo anterior citei Buytendijk numa passagem em que ele lembra o caráter pático das imagens mentais, de que se nutria o jogo. Não é só a escola que se assusta com a atividade lúdica dos alunos, os pais também se descontrolam muitas vezes diante da compulsão por brincar de seus filhos. Portanto, não esperemos que a escola, em sua estrutura atual, contemple com boa vontade a ideia de acolher o jogo, ou como conteúdo de ensino, ou como recurso pedagógico educacional. Talvez não haja uma consciência clara por parte da escola quanto ao caráter pático do jogo, mas, certamente há uma intuição, pelo menos, baseada na observação pura e simples de crianças ou adolescentes brincando, quanto aos riscos implicados no ato de jogar. Tanto é que se instala um verdadeiro pavor entre professoras de salas de aula quando recebem a incumbência de ministrar aulas de educação física. O simples fato de as crianças saírem da sala de aula para o pátio torna-as incontroláveis para os procedimentos habituais

utilizados pelas professoras para manter a disciplina. Esse é, portanto, um dos motivos que fazem o jogo ser ausente da pedagogia escolar quase sempre. O outro, e levanto aqui apenas os dois que considero principais, é a ignorância quanto ao caráter educativo do jogo. De modo geral, esse papel educativo atribuído ao jogo refere-se quase que exclusivamente ao atributo utilitário que se percebe na atividade lúdica. Nesse caso, os alunos, envolvidos pelo clima do jogo, prestam-se a realizar tarefas escolares que, de outra forma, por exemplo, em sala de aula, não realizariam. Admito que, bem administrado, o jogo pode servir a esse fim, desde que a situação lúdica não fique comprometida. Porém, aquilo que considero o verdadeiro aspecto educativo do jogo, e que comentarei mais adiante, continua não sendo contemplado. Além disso, perder o controle sobre os alunos faz com que os professores abram mão de se utilizar do jogo como veículo educacional, mesmo que a intenção seja apenas utilitária. O ambiente natural da criança (o que equivale a dizer o ambiente cultural típico da criança) confunde-se com aquilo que chamei no capítulo anterior de ambiente do jogo. Na verdade, eu estenderia esse conceito até mais adiante, até a adolescência, por ser próprio dos jovens querer escapar frequentemente do mundo real, refugiando-se na fantasia, ou seja, voltar-se mais para si que para o mundo objetivo. O processo de socialização é lento e penoso, porque é um processo constante de renúncia, difícil de ser administrado, e desconfio mesmo que, durante nossa humanização, se há um aspecto pouco desenvolvido, é o da socialização. Em

contrapartida, a pedagogia utilizada pela escola envolve os alunos em um seríssimo conflito, sem que a escola os instrumentalize para enfrentá-lo. Os conteúdos e procedimentos pedagógicos escolares são estranhamente distantes da subjetividade dos alunos, drasticamente socializantes, sem que se crie um espaço de transição favorável a uma socialização menos traumática. Corre-se, inclusive, o perigo de o remédio para levar o aluno para o mundo social matar o indivíduo que existe nele. Portanto, um remédio perigosíssimo. Deixe-me adiar um pouco minhas conclusões enquanto reflito sobre considerações de outros estudiosos, como Gilles Brougère, por exemplo. Após comentar o aspecto de frivolidade do jogo levantado por alguns autores, Brougère localiza, quanto a isso, uma forte oposição entre a seriedade das tarefas escolares e a frivolidade da atividade lúdica, o que explicaria que antes do século XIX o jogo não fosse pensado como possibilidade educativa. Ou, como ele mesmo escreveu: Se o jogo se opõe à seriedade, dificilmente pode, enquanto tal, recobrir um valor ou uma intenção educativa. Ele vai se distinguir tanto da seriedade quanto da educação, que dizem respeito ao mesmo domínio [1998, p. 53].

Mesmo que esse pressuposto fosse verdadeiro, isto é, o jogo como oposto à seriedade, isso, por si só, não eliminaria as possibilidades educativas do jogo. No entanto, como já expusemos fartamente nos capítulos anteriores, é impossível caracterizar o jogo apenas pela análise de suas partes e, de tal

maneira, que encontramos atitudes lúdicas extremamente sérias, em alguns momentos de jogo, e outras nada sérias. Vejam como as opiniões são contraditórias a respeito desse tema, quando se tomam comparativamente vários autores. Domenico De Masi pensa exatamente o contrário dos pedagogos do século XIX. Para corroborar sua tese de vínculo entre trabalho e ócio, trabalho e tempo livre ou trabalho e jogo, De Masi menciona a tarefa do professor universitário. Eis o que ele pensa a respeito: Por exemplo, o aviltado modelo de vida do professor universitário, que a meu ver representa o futuro e não o passado. O professor universitário estuda em casa, quando não precisa de aparelhos ou instrumentos especiais, e escolhe como bem entende os horários, os livros e as pessoas com quem interage. Mantém mais contato com um colega estrangeiro do que com quem trabalha na mesma faculdade. Alunos e programa de ensino mudam todo ano, trabalho intelectual se confunde com o estudo e o tempo livre, e tudo isso o acompanha trezentos e sessenta e cinco dias por ano, vinte e quatro horas por dia [2000, p. 239].

Essa é uma atividade séria? Não me parece que seja mais séria que um jogo infantil e, no entanto, é um exemplo de trabalho praticado há muito tempo nas universidades. Qual a razão de acreditar que somente as coisas sérias podem caber numa escola? Sérias ou sisudas? Resta saber o que é que o autor francês chama de sério. O traço da nova sociedade vislumbrada por De Masi é definido assim por ele, ao responder a uma pergunta de uma entrevistadora:

Tempo livre. Um grande filósofo russo, Alexandre Koyré, escreveu: “Não é do trabalho que nasce a civilização: ela nasce do tempo livre e do jogo”. Creio que isso tenha sido mais verdadeiro no passado, quando era possível distinguir o trabalho do jogo, porque a maior parte dos trabalhos era de natureza física e provocava cansaço. Não é por acaso que Henry Ford escreveu na sua autobiografia: “Quando trabalhamos, devemos trabalhar. Quando jogamos, devemos jogar. A nada serve tentar misturar as duas coisas. O único objetivo deve ser aquele de desempenhar um trabalho e de ser pago por isso. Quando o trabalho estiver terminado, pode então começar o jogo, mas não antes”. Atualmente esse tipo de distinção, tipicamente industrial, perdeu muito do seu significado. Já não era assim na época rural: o camponês e o artesão viviam no mesmo lugar em que trabalhavam, o tempo que dedicavam ao trabalho misturava-se ao das tarefas domésticas, ao dedicado a cantorias e outras distrações [idem, ibidem].

De Masi acredita que, no futuro, jogo e trabalho se confundirão. O ser humano persegue a felicidade e ela não pode ficar reservada a lugares estanques, de modo que o aluno, por exemplo, pode ser feliz durante o recreio e infeliz na sala de aula. Qual a razão dessa distinção? E qual a razão da distinção entre jogo e trabalho na escola? O sério ao qual se refere Brougère é sinônimo de enfadonho, de tedioso, de opressor. Sem entrar em detalhes, eu gostaria de relembrar os relatos de Piaget (1977), quando investigou o juízo moral na criança. No jogo das bolinhas de gude, conteúdo de pesquisa daquele pensador, as crianças aprendiam muitas coisas, entre elas, a realizar julgamentos morais, desenvolvendo

conceitos como os de justiça ou de bem e de mal. Ou seja, não era pouco e não era destituído de importância o que aprendiam, pelo contrário. Ora, um jogo praticado por crianças na rua, no pátio da escola, em espaços tipicamente infantis pode ensinar tanto e a escola não pode? Seguindo no passo do jogo das bolinhas de gude, a escola não poderia adaptar procedimentos lúdicos que desenvolvessem atitudes morais? É evidente que sim, porém, isso romperia com os costumes escolares, com a reserva de disciplina que isola a instituição escolar do mundo real. Continuando com o texto de Brougère, ele mantém fortes restrições à presença do jogo na educação se este for descaracterizado como tal, servindo apenas de pretexto para seduzir os alunos para as tarefas que, de tão enfadonhas em sala de aula, são rejeitadas pelos jovens. O alerta do autor é preciso, pois, de fato, é o que mais ocorre nas escolas. Quando serve à pedagogia, o jogo, de modo geral, deixa de ser jogo para ser profanado por estratégias que, de modo algum, levam em conta o verdadeiro papel educativo da atividade lúdica. Porém, mesmo correndo esses riscos, desde que atentos a eles, não há por que não corrê-los: Esse interesse educativo só pode estar presente se as características do jogo forem mantidas. Além disso, tudo isso acontece de acordo com o ritmo da criança e encerra um aspecto aleatório e incerto. Se a liberdade faz o valor das aprendizagens efetuadas no jogo, também produz a incerteza quanto aos resultados. De onde a impossibilidade de definir de modo preciso as aprendizagens sobre o jogo. Este é o paradoxo do jogo, espaço de aprendizagem cultural fabuloso e incerto, às vezes aberto, mas

também fechado em outras situações: sua indeterminação é seu interesse e, ao mesmo tempo, seu limite [1998, p. 194].

Não é justo com o autor a mutilação de seu texto, portanto, não quero confrontar o pensamento de Brougère mais que além do respeito que devo por seu trabalho. Ele levanta potenciais educativos importantíssimos quanto ao jogo, bem mais que o espaço de que posso dispor neste texto. Porém, sem dúvida, ele também ignora outros componentes, certamente mais importantes que os levantados no seu livro. Creio que o potencial educativo do jogo é mais forte que o mencionado pelos pedagogos de modo geral e é mais importante pelo que encerra em si mesmo que pelo que pode arrastar na sua sedução, isto é, o caráter utilitário fartamente aproveitado pela escola.

UM ASPECTO ESQUECIDO DA APRENDIZAGEM Um

componente

frequentemente

negligenciado

pela

escola, e que não tem a ver exclusivamente com o jogo, diz respeito a uma certa posição bastante tradicionalista da educação. Além disso, não vejo sentido em ver o jogo, quando se trata de discuti-lo na educação, de forma isolada, mas, sim, no contexto educacional de modo geral. Para a escola, o ato de aprender é bastante diferente daquilo que significa aprender em outras situações de vida. A escola pouco se preocupa com o significado dos conteúdos. De modo geral, acredita-se que um aluno, diante de alguma coisa a aprender, tem apenas que assimilar aquilo, não

importando o significado que possua, onde ou quando vai se utilizar daquele conhecimento, ou se aquele conhecimento vai se manter, e assim por diante. Dessa forma, a escola preocupa-se com uma parte apenas da aprendizagem, o início, mas não com o que pode ocorrer em seguida. E é aqui que entra um aspecto bastante interessante do jogo como educação. Vamos separar isso em tópicos: a) O jogo ajuda a não deixar esquecer o que foi aprendido. Por analogia, podemos dizer que, se uma pessoa bastante musculosa quebrar o braço e o tiver imobilizado por um mês, ao tirar o gesso, notará o quanto o braço lesionado ficou mais fino, por falta de exercício. A receita da natureza é a mesma para todas as coisas. Se um conhecimento recém-adquirido não for solicitado por algum tempo, tenderá a se atrofiar como os músculos de um braço quebrado. Porém, observando as crianças pequenas, notamos que, assim que conquistam algum novo conhecimento, alguma nova habilidade, imediatamente passam a repeti-lo, e fazem isso à exaustão, mostrando farto prazer nessa atitude. Quando uma pessoa supera uma dificuldade que se impõe, caracterizando uma aprendizagem, o fim desse processo registra o prazer da conquista. Ora, a repetição do processo traz consigo o prazer anterior. Daí tantas repetições realizadas pela criança pequena espontaneamente. Como podemos verificar em estudos como o de Piaget, assim como já comentei anteriormente, essa repetição sistemática é bastante

típica dos jogos. De modo que, sem descaracterizar o que afirmei anteriormente, a criança, após aprender, repete para ter prazer e não mais para dar conta de um objetivo fora dela. Portanto, aquilo que era predominantemente objetivo, na aprendizagem, tornase predominantemente subjetivo no jogo que se segue. b) O jogo faz a manutenção do que foi aprendido. Considerando que o conteúdo do jogo não é inédito, jogamos com as coisas que já incorporamos, quer sejam habilidades motoras, quer sejam sensações ou ideias. Portanto, quando jogamos, fazemos repetir, de forma circular, as coisas que já conhecemos num outro plano, mesmo que isso remeta para outros conhecimentos. Essa repetição sistemática garante a integridade dos conhecimentos adquiridos. Caso não houvesse essa repetição, os conhecimentos poderiam deteriorar-se. No início da vida, cada parcela de tempo é tão significativa para a vida toda que aquilo que se adquire é repetido compulsivamente pela criança. c) O jogo aperfeiçoa o que foi aprendido. Sempre que o conteúdo de um jogo são as coisas que aprendemos numa determinada situação, a repetição sistemática do jogo inevitavelmente aperfeiçoa as habilidades adquiridas e envolvidas nele, porque essa circularidade facilita o exercício. E assim se passa com todas as coisas que repetimos. Um jogador de futebol não pode deixar de repetir diariamente as habilidades que tão bem conhece, sob pena de não mais progredir. Posso

voltar ao exemplo que dei anteriormente, quando fiz a tarefa enfadonha de carimbar talões de cheque transformar-se em jogo para mim. No início eu repetia os movimentos com certa lentidão e pouca habilidade. À medida que, incitado pelo jogo, repeti centenas, milhares de vezes o gesto, desenvolveu-se espantosamente. d) Se,

durante

o

jogo,

as

aquela

habilidades

habilidade podem

ser

aperfeiçoadas pela repetição, isso certamente vai fazer com que o jogador se prepare para novos desafios, isto é, para assimilar conhecimentos de nível superior. Nos seus Ensaios construtivistas, Lino de Macedo, a respeito disso, escreveu: …quando uma criança aprende a engatinhar, seus esforços de regulação concentram-se nessa difícil arte de coordenar braços, pernas e outras partes do corpo, de maneira que esse movimento (minimamente ajustado no espaço de suas posturas e no tempo de suas mudanças de estado) possa ocorrer. Nesta fase, vê-se que todos os esforços da criança concentram-se no aprender a engatinhar. E mal ela o consegue, volta-se para os “novos” objetos (uma mãe que teima em se afastar dela, um cachorrinho, uma bola interessante, mas distante etc.), utilizando o engatinhar como instrumento de aproximação ou afastamento [1994, p. 16].

Aquilo que era fim, logo em seguida torna-se meio para novas aquisições, ou seja, houve uma tematização dos esquemas de ação ali envolvidos. “Tematizar é, por isso, reconstruir em um nível superior aquilo que já realizamos em outro nível” (idem, ibidem).

Eu só acrescentaria que, entre uma coisa e outra, a aquisição nova é exaustivamente exercitada antes de se colocar como meio para novas aquisições. E esse exercício ocorre no jogo, não importa se no plano apenas prático das ações motoras, ou se no plano das imagens mentais. Isso porque o jogo encoraja as novas aquisições, pela progressão da habilidade. De modo que as novas aquisições são certamente vizinhas das anteriores, que, da forma como descrevi, puderam transformar-se em matéria do jogo.

A FÁBRICA DE SÍMBOLOS Quando se fala de jogo em educação, suas qualidades são um tanto vagas. Não se percebe claramente nos escritos para que serve o jogo. Geralmente diz-se que ele tem inegáveis qualidades educativas, sem que se diga quais são. Erasmo dizia, em trecho que foi citado por Colas Duflo: “Nele encontramos a ideia de que o jogo pode ter uma função educativa e que podemos utilizá-lo, mesmo que seja como açúcar que envolve o medicamento para dissimular seu amargor” (1999, p. 53). Ao longo da história,

colecionam-se

à

fartura

as

declarações a respeito das qualidades educacionais do jogo, muitas delas recuperadas de forma muito oportuna por Duflo. Como a de Leibiniz: “Aprovo muito que se exercite nos jogos de raciocínio, não por eles próprios, mas porque servem para aperfeiçoar a arte de meditar” (idem, p. 26)

Poucos estiveram atentos à hipótese de que o jogo tem um caráter educativo por si só, sem que tenha de estar a serviço de algum procedimento pedagógico, sem que sirva apenas de veículo para suavizar a dureza das tarefas escolares. Há um problema gravíssimo verificado atualmente no sistema escolar, apesar de ser bastante antigo. Creio que ele se tornou mais agudo porque o mundo em que vivemos está exigindo soluções inadiáveis para certos problemas. Esses problemas não estão ao alcance dos conhecimentos atuais que possuímos, nem de nossa inteligência criativa, nem da razão predominantemente individual que desenvolvemos. O fato é que passamos cerca de 11 anos na escola aprendendo inúmeros conteúdos e, ao final, pouco sabemos sobre essas coisas. Como pode uma pessoa que dedicou 11 anos ao aprendizado da matemática, alguma coisa como 1800 horas de estudos somente em sala de aula, saber tão pouco de matemática ao final do período escolar? A crise escolar denunciada por essa constatação, que vai se tornando mais aguda à medida que os problemas no mundo se avolumam, aponta para uma mudança estrutural na escola, que deverá se processar lentamente, dado o ritmo tradicional da instituição escolar. Daí o desespero de alguns pedagogos que passam a procurar saídas em procedimentos que não os tradicionais, o que recupera o valor da educação física, da educação artística, introduz a ecologia e, obviamente, o jogo.

Quero falar, aproveitando essa oportunidade, exatamente desse caráter educativo do jogo que está presente nele, que é parte constituinte dele e não um valor agregado apenas para tornar suave a aprendizagem. Retorno ao capítulo 3, quando mencionei as habilidades muito particulares de que são portadoras as várias espécies vivas no mundo que habitamos. Essas habilidades constituem o dispositivo especial através do qual os animais e os vegetais realizam suas ações adaptativas. A natureza proveu cada um de um recurso muito apropriado para um determinado nicho ecológico, garantindo que a interação entre a ferramenta de cada ser vivo e o ambiente natural sejam harmônicos. A regra não pode ser violada; se houver alteração, ou na natureza do ser vivo ou no meio ambiente, as condições de adaptação deixam de estar asseguradas. Conforme também já comentei, o ser humano não possui, quanto às regras da natureza, qualquer privilégio ou prejuízo. Conta, como qualquer espécie viva, de um recurso particular, assim também como de um especial nicho ecológico. Não pode interagir diretamente com a natureza como os outros vivos, dada sua fragilidade estrutural. Seus poderes motores e sensoriais não dão conta de prover uma relação direta com a natureza. Com facilidade constata-se como as habilidades de correr, de erguer, de lançar, de cheirar, ver ou ouvir são limitadas comparativamente a outros animais, por exemplo. Ora, se a natureza, tal qual é, não assegura uma interação direta com o homem, o que resta a este último é modificá-la, tornando-a habitável para ele. Para tanto, ele precisa de

algum instrumento que consiga promover essa alteração. E é aí que ele se ajusta às regras de todos os vivos; o instrumento que lhe permite alterar a natureza é sua habilidade particular, distintiva de todos os outros animais, não que ela esteja ausente neles, mas o privilegia de modo particular. Seu instrumento particular e privilegiado de adaptação ao mundo é o símbolo interno, a imaginação, a capacidade interna de representar as coisas e os acontecimentos. Quanto à natureza, hostil ao homem, com sua habilidade especial ele a modifica e cria sua própria natureza: a cultura. Com a cultura o ser humano pode interagir. Animal exótico, o homem habita a natureza que cria, a única com a qual consegue se relacionar diretamente. A extrema complexidade humana advém de sua extrema dificuldade de adaptação. Se em algum momento nos sentimos superiores a qualquer outra espécie viva nos enganamos, empolgados por nossa estrutura física, talvez, e, principalmente, por nossos recursos mentais. O que somos reflete nosso compromisso de viver. Se herdássemos ao nascimento a imaginação e todo o traçado de seu desenvolvimento, ainda seria confortável nossa tarefa. Mas agora, com os conhecimentos construídos pela ciência genética mais recente, sabemos que os genes só nos legam informações, deixando a cargo de nossa relação com o meio interno e externo o desenvolvimento. Portanto, se a natureza nos garante, à partida, a formação de imagens, é tarefa nossa desenvolver a imaginação. E, para tanto, algumas ações são privilegiadas sobre outras.

Para compreender melhor isso, temos que voltar um pouco e recuperar o que eu disse quando comentei sobre o ambiente do jogo, através das palavras de Sartre, principalmente. Ele falava do jogo como da esfera da subjetividade; ou seja, quando joga, o sujeito volta-se para seu mundo interior, e é ali que ele age. Além disso, de acordo com Buytendijk, o jogo tem um caráter pático, isto é, devasso, libertino, nada disciplinado, encontrando, mais que em qualquer outro ambiente, no nosso espírito o espaço mais favorável a essa devassidão. É provável que o jogo seja a antítese da burocracia, essa ditadura à qual todos nos submetemos no mundo das coisas objetivas e que dispensará futuramente ditaduras pela força das armas. Isso significa que é quando joga que o ser humano mais é fértil em produção de imagens. É tão prazeroso para todos nós brincar com as imagens que, se pudermos, ocupamos todo o nosso tempo ampliando as fronteiras da imaginação. No caso da criança então, ela é absorvida em quase todo o seu tempo pelo faz de conta, que não é outra coisa senão a construção de um mundo interior, esse mundo que, uma vez comunicando-se com a realidade, produz a cultura que vamos habitar. O jogo é, como vemos, uma das mais educativas atividades humanas, se o considerarmos por esse prisma. Ele educa não para que saibamos mais matemática ou português ou futebol; ele educa para sermos mais gente, o que não é pouco.

Um último aspecto ainda, fortemente desconsiderado quando o assunto é o jogo na educação, refere-se à característica juvenil da espécie humana. Destacando-se nisso entre os seres vivos, os humanos têm uma juventude excepcionalmente prolongada, além da condição já mencionada anteriormente, de que, ao longo da evolução, os hominídeos foram adquirindo feições mais jovens. Enquanto um animal tem uma amadurecimento rápido, que lhe consome parcela pequena da vida, rapidamente tornando-se apto para a reprodução sexual, o homem tem um amadurecimento que lhe toma de um terço a um quarto da existência. Devemos refletir sobre essa evidência. Tentando compreender esse fenômeno pelo lado do jogo, pensemos que, quanto mais novo o indivíduo, mais ele se dedica ao jogo, o que indica que o ato de jogar é mais forte em cada pessoa quanto mais jovem ela for. Ao mesmo tempo, enquanto esse intenso período de jogo subsiste, esses jovens são envolvidos (ou pelo menos deveriam ser) por um aparato social que lhes garante a subsistência, de modo que suas necessidades sejam supridas, caso contrário não haveria ambiente para o jogo. No começo da vida a criança passa a maior parte de seu tempo jogando, envolvida por muitos cuidados sociais. Aos poucos, as tarefas ditas sérias vão ocupar-lhe um certo tempo, até que, na idade madura, elas predominam (nas atuais condições sociais). Entendo essa questão como sendo indicativa de que a natureza humana inclui, numa juventude extremamente

prolongada, como sua atividade mais típica, o jogo, por ser este o fato mais notável da juventude. Não há como recusar, portanto, a evidência de que a espécie humana tem no jogo uma de suas atividades fundamentais, se aceitarmos que a juventude é um dos fatos típicos de nossa espécie. O jovem está aí para jogar e, para isso, ele tem um tempo de vida incrivelmente longo. Ora, se o jogo é assim tão importante é, certamente, porque cumpre uma função vital entre os humanos. O jogo tem a propriedade de trazer as experiências do mundo exterior para o espírito humano, de maneira que, jogando com elas, a cultura possa ser criada, revista, corrigida, ampliada, garantindo o ambiente de nossa existência. Ora, todos sabemos que no nosso espírito as experiências viram imagens, viram ações internas, imaginação. E essa imaginação subverte a realidade, tornando-a frágil perante nossos desejos. A matéria da experiência, tornada representação mental, especialmente na atividade de jogo, ganha uma plasticidade que se distancia muito do real. E é com essa plasticidade que jogamos para criar um outro mundo, aquele ao qual podemos nos ajustar. Claro que há um caminho de volta em que essa criação conflita-se com a realidade (natureza, sociedade), donde surgirão os acordos, as regras que definem o que pode e o que não pode ser realizado. Recapitulando, o homem é mais tempo jovem que qualquer outro animal. O jogo é típico da juventude. Sendo assim, nenhum animal é mais dotado para o jogo que o homem. Portanto, se a cultura humana é uma construção

que depende de nossa atividade interior, e o jogo tem a propriedade de “sugar” para esse interior as vivências da realidade, obviamente o jogo passa a ser indispensável à formação de nossa cultura. Do ponto de vista pedagógico, portanto, vemos claramente que há uma pedagogia subjacente à nossa relação com o mundo que tem no jogo seu ponto de referência. É pelo jogo que construímos nossas condições fundamentais de vida. É através do jogo que construímos nossas habilidade e capacidade mais tipicamente humanas: a habilidade de imaginar e a imaginação. Não se é jovem à toa e nem por mero capricho. Joga-se, no fundo, por necessidade. Pena que a escola não perceba isso. E quanto aos que não são mais jovens, não precisam mais do jogo? Lembrem que comentei, antes, que os traços humanos são jovens até o fim da vida, ou seja, seríamos sempre jovens. Sem dúvida, na idade madura a atividade de jogo diminui entre nós, mas não desaparece e volta sempre que nos sobra tempo e temos as necessidades satisfeitas. As fantasias nos assaltam quando menos esperamos e, quando chega a velhice, o jogo parece que novamente toma conta de nós. Imagino que, no futuro, quando as relações sociais permitirem que o trabalho seja estruturado de uma outra maneira, e o tempo livre for maior para cada um de nós, cumpriremos finalmente nossa tarefa humana de jogar sem precisar separá-la da tarefa de trabalhar.

INTELIGÊNCIA CRIATIVA

Volto aos problemas, cada dia mais urgentes, que proliferam na sociedade atual. Até há algum tempo, os problemas sociais eram apenas de gente pobre, boa parte da população do planeta, coisas como a fome, habitação, saneamento básico, enchentes, disenteria, entre tantos outros desse desfile macabro cuja passarela é constituída pelo que chamamos de terceiro, quarto, quinto mundos. Um quadro tão chocante, para pessoas que preservaram a sensibilidade, que o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, depois de fotografar as multidões de miseráveis do mundo todo, por mais de vinte anos, declarou, em recente entrevista, que tinha dúvidas, depois do que viu, quanto ao futuro humano. De uns tempos para cá, problemas emergentes, incubados na intimidade da sociedade mundial, passaram a mostrar sua gravidade. Assim é que, hoje, a doença que mais mata no planeta não é um mal exclusivo de pobres. As doenças cardíacas matam indistintamente mais que qualquer outra. Não escolhe entre favelados e executivos, mas só passou a ter destaque porque interrompe a vida de gente considerada importante. A indiferença é um outro mal que sorrateiramente foi se infiltrando no espírito de cada um de nós e, de repente, descobrimos que os sentimentos também adoecem. Somos capazes de, indiferentes, com um prato de comida na mão, assistir ao espetáculo televisivo de uma criança africana viver seus últimos momentos, sem perdermos o apetite. Aidéticos do mundo inteiro descobriram que há algo pior que o flagelo da AIDS: a indiferença do mundo por sua trágica situação.

A floresta amazônica perderá, até o ano 2020, numa previsão otimista, cerca de 20% de sua área. Com o avanço da ecologia descobrimos que ela responde por boa parte do equilíbrio da temperatura da Terra. Os mares são poluídos por cada um de nós todos os dias, e o oxigênio que produzem para nossos pulmões está ameaçado. A fome já era um velho problema conhecido, mas agora ficamos sabendo que não falta comida para todos, mas que sobra comida, e o que ocorre é que uma parcela da população retém o que falta à outra. Passamos séculos acreditando que o ouro era o mais precioso bem na face da Terra, até que a água potável começou a faltar e os privilegiados pelo ouro deram-se conta disso e começaram a entrar em pânico. Os próprios ricos sentiam-se seguros com a solidariedade de sua classe social, jamais acreditando que poderia haver algum componente de autodestruição na sua ideologia. Começam a ser ameaçados pela ganância que cultivaram e que só consumia os pobres. Enfim, confiantes no poder de análise e decisão que lhes dava uma razão hipertrofiada, desenvolvida numa escola referenciada unicamente na classe social que dominava e numa educação moral alicerçada na confiança sobre a estrutura familiar, os donos do mundo nunca se sentiram ameaçados. De verdade, nunca se sentiram sensibilizados pelo infortúnio dos pobres do planeta. Somente quando os velhos problemas atingiram todas as camadas sociais e novos

problemas emergiram é que passaram a se preocupar e questionar alguma coisa da organização social e dos métodos de ensino. Os norte-americanos julgavam que poderiam passar a vida toda invadindo os países pobres com suas mercadorias sem jamais serem invadidos pela horda de miseráveis que ajudavam a produzir. Até que perceberam que, por mais que ergam cercas, o terceiro mundo atravessará as fronteiras. Já há cidades americanas onde falar espanhol é comum e parte da população se amorenou, numa metamorfose chamada por alguns de imperialismo cromossômico, ou imperialismo às avessas. Pois bem, os problemas estão aí, e quem os resolverá? Se pedirmos a um desses brilhantes ministros de Estado de países ricos ou emergentes uma solução para o problema habitacional, ouviremos de pronto uma belíssima exposição teórica. Frases bem articuladas, proferidas em tom cortês e ornadas com belos sorrisos descrevem um quadro alentador a respeito daquilo que, em breve tempo, será a redenção dos sem-teto. Se perguntarmos sobre a fome, logo algum economista de terno preto ou azul-marinho põe-se a discorrer, em vários idiomas se necessário, sobre a distribuição de renda. Muito provavelmente eu mesmo ficaria impressionado com a articulação das frases, a segurança do tom, a coerência das ideias desses senhores de terno preto. Porém, o que expressam pode ser chamado de solução? Antes de mais nada sugiro observar nesses senhores donos do mundo e seus técnicos a fé inabalável na razão que tão zelosamente

desenvolveram nas melhores escolas. Porém, essa razão dá conta realmente de resolver os graves problemas do mundo atual, alguns dos quais descrevi um tanto sucintamente? O que propõem são soluções, ou não mais que frases bem articuladas? Penso que uma solução para problemas tão graves, que afligem tanta gente, que envolvem populações inteiras no mais atroz sofrimento e miséria, não poderia jamais ser constituída por atitudes que sequer emocionam quem as pratica. Suponho que soluções assim envolvem muito mais que raciocínios lógicos e palavras; envolvem ideias, palavras, emoções, articulações sociais, decisões, ações práticas, entre tantas outras coisas que consumiriam a energia de muitas pessoas cooperando entre si. Enfim, questões complexas jamais poderão ser resolvidas com atitudes tão infantilmente simplistas como as que verificamos sair da boca desses tecnoburocratas, que fazem pouco mais que garantir o controle contábil do movimento financeiro dos diversos governos, coisa que um office-boy bem preparado também faria. Nos últimos séculos, a assim chamada ciência moderna, desde Newton e Descartes, foi fincando seus alicerces na sociedade humana. De combustível das fogueiras da inquisição os cientistas alçaram a posição de verdadeiros prelados, pouco menos que inquisitoriais. A lógica do discurso científico a tal ponto é convincente que disputa com a religião a confiança cega da população. A articulação de seus argumentos parece não encontrar barreiras. Nascida no campo da dúvida, acaba virando dogma. Durante a

inquisição, Mateo Teobaldo Colombo (ANDAHAZI, 1997), o mais prestigiado médico da Europa na época, caiu nas malhas da inquisição por ter descoberto, em suas pesquisas, aquilo que para ele constituía a razão anatômica do amor, o clitóris. Pouco depois de o outro Colombo aportar em terras da América, “O centro da sua América tinha por certo um nome: Mona Sofia… Ali, ao alcance da mão, e sem outro esforço além do que implicava friccionar com sabedoria e perícia, tinha a chave das portas do coração das mulheres” (idem, 1997, p. 109). A 20 de março de 1558, uma comissão de doutores formava-se para examinar as acusações a Teobaldo Colombo, por conta de suas publicações: heresia, blasfêmia, bruxaria e satanismo. O acusador do Santo Ofício assim se pronunciou: Acuso o réu de satanismo e bruxaria. Tudo o que eu possa dizer-vos é pouco diante das provas que o próprio réu vos oferece: haveis ouvido a declaração das testemunhas; haveis lido tudo o que figura em atas; e haveis visto as pinturas que o réu fez com suas próprias mãos. Mas a prova mais conclusiva é a própria palavra do acusado. O descobrimento que ele reivindica não passa de um diabólico embuste. De que outra forma pode-se qualificar o pretenso Amor Veneris? O acusado atribui-se haver encontrado o órgão que governa a vontade, o amor e o prazer nas mulheres, como se a vontade da alma e o prazer do corpo pudessem ser colocados em pé de igualdade. De que outro modo senão “diabólico” pode ser chamado quem pretende encumear o Diabo nas alturas de Deus? [ANDAHAZI, 1997, p. 123].

Só havia uma saída para Colombo: demonstrar, cientificamente, que a mulher não possuía alma, do que, aliás, ele estava convicto. E Colombo o fez brilhantemente, de

modo que, ao final do julgamento, ele estava absolvido e a mulher sem alma. No que concerne às mulheres, se quereis reservar também para elas uma coisa semelhante à alma masculina, devereis, em consequência, situá-la dentro do corpo, tal como se encarna um demônio. E vos digo que esse demônio tem sua morada dentro do corpo, exatamente no órgão sobre o qual, agora mesmo, haverei de falar-vos. E me atrevo a dizer que, se pudermos explicar o funcionamento desse órgão, poderemos, por fim, explicar o obscuro proceder feminino [idem, 1997, p. 140].

O episódio do anatomista é exemplar e ele foi impecável na sua argumentação lógica. Mas deixou uma dúvida crucial. Quem teria perdido a alma? A mulher ou Teobaldo? Ou teria sido a ciência que começou a perdê-la a partir dali? Com seu discurso, Descartes inaugurou a disjunção entre filosofia e ciência. Enquanto a primeira tornava-se cada vez mais reflexiva, abandonando o terreno minado da natureza, a ciência começava a afastar de si toda a subjetividade do pesquisador. “Com efeito, há pesquisadores de opiniões diferentes, de países diferentes, de classes diferentes, de metafísicas diferentes, e é isso que deve ser retirado, a sua subjetividade”, afirma Edgar Morin (MORIN & LE MOIGNE, 2000, p. 28) A ciência, por si só, nada cria de grave, de danoso. Danoso é fazer ciência sem consciência, sem alma. Danosa é a ausência desses atributos nos cientistas e o cultivo disso por parte do interesse mercadológico, e a indiferença quanto a isso por parte da população.

O fato é que a ciência avançou muito, boa parte dela cada vez mais objetiva e menos subjetiva, e está hoje mais no cotidiano de cada um de nós que a própria religião. Posso evitar que meus filhos recebam educação religiosa na escola, mas não posso evitar que recebam educação científica, porque, na sua quase totalidade, ensino escolar é ensino científico, desenvolvimento escolar é desenvolvimento da razão individual, e não se discute. Confiar cegamente na ciência é confiar que a hipertrofia da razão é o único caminho para compreender os fenômenos e significa, além disso, destituir a própria ciência de seu principal fundamento: a dúvida. Nossa fé inabalável no conhecimento científico alija de nossas vidas a importância que possuem sobre nossos destinos os outros conhecimentos, como o popular, o religioso, o estético, o sensível, tão verdadeiros ou tão falsos como os da ciência. Uma educação para uma sociedade que tem de, urgentemente, resolver seus problemas, precisa recuperar o valor humano da ciência, recuperando também a importância dos outros conhecimentos. Se temos que aprender ciência nas escolas, o perigo reside em assimilá-la destituída de qualquer sentido crítico e de subjetividade. A fé cega no conhecimento da igreja católica gerou uma das maiores carnificinas da história. A fé cega nos conhecimentos científicos gerou várias carnificinas no século XX. Morin e Le Moigne não se cansam de alertar quanto a isso. Eles mencionam o seguinte comentário de Morgenstern:

Desse modo, a economia, que é a ciência social matematicamente mais avançada, é a ciência social e humanamente mais atrasada, porque ela se abstrai das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas, ecológicas, inseparáveis das atividades econômicas, bem como das decisões, estratégias, inovações, invenções que aí intervêm [2000, p. 92].

Isso me faz lembrar um recente episódio que vivi na cidade de Recife. Eu tinha ido àquela cidade para participar de um congresso quando, num final de tarde, andando por uma rua próxima à praia, notei, vindo em sentido contrário ao meu, um grupo de uns cinco jovens, andando com um requebro malandro, gorros na cabeça, bermudas e em silêncio. Fiquei paralisado de medo, achando que iriam me assaltar, assaltado que estava pelas imagens da violência das metrópoles. Passaram por mim sem me causar qualquer problema. No dia seguinte, logo pela manhã, dirigia-me ao salão de café do hotel quando me deparei com uns cinco homens de terno preto impecáveis, pastas de couro nas mãos, cabelos penteados com requinte. Andavam apressados em minha direção, com ar ameaçador. Iam para alguma reunião muito importante, decidir alguma coisa fundamental. Instintivamente desviei-me deles, tive medo. Passaram sem me olhar. Talvez até hoje eu e boa parte da sociedade estejamos sentindo os efeitos de suas decisões naquela manhã. Todos esses argumentos que estou levantando são para desenhar um quadro que reflita nossa incapacidade atual para resolver os grandes problemas sociais. Aprendemos a

agir apenas racionalmente, só sabemos pensar individualmente, passamos a confiar cegamente que alguém irá sempre resolver o problema por nós, e descartamos os sentimentos, a sensibilidade, a beleza como componentes do conhecimento necessário à superação dos problemas cotidianos e planetários. Quanto ao conhecimento moral, a transgressão da moral imposta, heterônoma, que nos ensinaram a escola, a família e os meios de comunicação, ainda soa como heresia. Um grupo de inocentes naturistas que expõem seus corpos ao sol é considerado obsceno, enquanto um grupo engravatado de economistas decretando mais mortes de crianças africanas, decorrentes das taxas de juros que decidem aumentar, é reverenciado. Não é somente a reforma do ensino que precisamos incrementar; é a própria reforma do conhecimento. E aqui, neste tópico, pela primeira vez uso a palavra jogo, para introduzir a ideia de uma revolução na inteligência humana. O poder está nas mãos dos homens que aprenderam a lidar melhor com a imaginação, mesmo que o façam mal; ou seja, aqueles que aprenderam a desenvolver, em níveis superiores, a capacidade de representação mental, o que não quer dizer que haja uma ética correspondente a esse desenvolvimento no uso que fazem dessa habilidade. Esse poder, no entanto, não é uma graça divina, atributo privilegiado de uma determinada classe social. É uma construção potencialmente ao alcance de todos os seres humanos, desde que possam, dignamente, ter suas

necessidades satisfeitas, porque o mundo da imaginação humana é o mundo das sobras e não o das faltas. A inteligência humana precisa desenvolver-se para produzir soluções criativas e originais, portanto, a educação para isso tem que admitir a fantasia, o jogo, a transgressão. Vejam o seguinte exemplo, que darei inspirado num texto de Gregory Bateson (1987). Frequentemente coloco no quadro negro, para meus alunos universitários, uma sequência constituída pelos seguintes números: 2, 4, 6, 8, 10, 12, … E pergunto para algum deles, subitamente, qual o próximo número da sequência. Nunca ocorreu de não responderem 14, ao que retruco: errado! Como, errado?, perguntam. Ao que afirmo: o próximo número da sequência é 27. Como? Claro que não, dizem os alunos. E aí pedem uma explicação, que é sempre a mesma: é 27 porque a sequência é minha e coloco o número que eu quiser. Outra questão que os embaraça é quando lhes pergunto que nota acham que eu obteria na prova de matemática do vestibular da UNICAMP, confessando antes minha ignorância matemática. Arriscam algo em torno de 0 a 2. Errado!, eu lhes digo, sem dúvida tirarei 10. Como?, se espantam. Deem-me uma semana de prazo, lhes digo, que conseguirei a nota máxima. Ah! mas assim não vale. Você vai pedir ajuda, argumentam. E aí eu lhes explico que não há nada que deva impedir uma pessoa de pedir ajuda para resolver seus problemas. Posso, por exemplo, pedir ajuda ao mundo todo pela internet.

Esses casos são exemplares de nosso modo de pensar formatado pela escola. Evidenciam dramaticamente nossa incapacidade de gerar soluções criativas e de pensar coletivamente. Ora, se o grave problema da água potável é planetário, como pretendemos resolvê-lo pensando apenas individualmente, apenas racionalmente? Impossível! Mas é como raciocina o tal ministro de terno preto. É evidente que ele tem uma formação indiscutivelmente incompatível com o cargo público que ocupa, portanto, não deveria estar ali. Ele orienta-se pelas formas simplistas de pensamento, exatamente oposto ao quadro descrito por Bateson: Infelizmente (ou talvez felizmente) o que acontece é que o fato seguinte nunca está à nossa disposição. Só dispomos da esperança e da simplicidade e o fato seguinte conduzir-nos-á a um grau seguinte de complexidade [1987, p. 34].

Seria como dizer, de acordo com Morin, que, se queremos chegar a algum lugar que não conhecemos, temos que percorrer um caminho desconhecido. Se não me falha a memória foi São João da Cruz quem afirmou isso. E o que nos ensinaram foi exatamente o contrário, de forma que os economistas, aos quais estamos entregando nossos governos, são incapazes de pensar de forma original e raramente embrenham-se por algum caminho desconhecido. Se as demandas atuais do mundo são novas, novos devem ser nossos caminhos, originais nossas soluções, criativa nossa inteligência. Tudo indica que a chave do segredo é o domínio da imaginação, do símbolo. Toda a nossa educação deve ter

como sentido esse domínio. Em alguns momentos de nossa formação isso é absolutamente decisivo. No período escolar que denominamos atualmente de escola infantil, que compreende o que Piaget (1973) denominou pré-operatório ou simbólico, não seria necessário outro objetivo que não o do desenvolvimento das representações simbólicas. A escola, para dar conta desse objetivo, teria que definir seu método e, para tanto, bastaria respeitar as evidências. Em que época da vida mais compulsivamente joga um ser humano? Sem dúvida nessa época em que começa a escolaridade. Portanto, o jogo deve ser a base do método de ensino, simplesmente porque o jogo é uma fábrica de símbolos e é nesse período que o símbolo vai se constituir, ainda não especializadamente em linguagens formais, mas em leques de diversidade; ou seja, uma escola que nasceu apenas para cuidar dos filhos para as mães poderem trabalhar ganha status decisivo na formação. No entanto, o alerta é para que se garanta que a criança possa brincar livremente, no máximo com uma eleição de temas gerais pela escola e com conversas dos professores com os alunos para que aprendam a ser conscientes das ações que realizam. Uma escola, para formar inteligências para os problemas atuais no mundo, incluiria muitos conteúdos além do jogo. Insisto neste apenas porque constitui o campo mais fértil de transgressão, reivindica liberdade de ação e prepara a pessoa para novos desafios. Para finalizar este tópico, quero utilizar-me de um acontecimento que foi acompanhado pelo mundo todo poucos

anos atrás. Decidiam o título da NBA, a liga profissional norte-americana de basquetebol, as equipes do Chicago Bulls e do Utah Jazz. Seria a última partida da vida de Michael Jordan, o melhor jogador da história, defensor do Chicago, como profissional. Faltando poucos segundos para o final da partida, o Utah estava um ponto à frente no placar, o técnico do Chicago pediu tempo e, obviamente, orientou sua equipe para entregar a bola ao Jordan. Em resumo, tudo deveria convergir para ele nesse final. Se Jordan conseguisse converter a cesta, sua equipe venceria a partida e o campeonato. Tinha cerca de oito segundos para isso. Do outro lado, o Jazz preparou-se para evitar o plano adversário. Reiniciada a partida Jordan recebeu a bola, correu em direção à cesta adversária, deixou seu marcador caído com uma finta e fez a cesta vencedora. Foi o último lance de sua vida. O mundo do esporte ficou estarrecido. Ninguém sabia exatamente o que poderia acontecer. Jordan não respondeu que o próximo número da sequência seria 14. Para ele, podia ser qualquer dos “n” números possíveis. Ele tinha pouquíssimos segundos para decidir. Não era como um problema de matemática em sala de aula, ao qual podemos dedicar muitos minutos. E não era um problema individual, mas um que envolvia duas equipes de basquetebol, milhões de espectadores, dirigentes etc. Tudo tinha de convergir para que houvesse êxito. Mas o técnico, os colegas de equipe e principalmente Jordan mostraram ter um tipo de inteligência que habitualmente não apresentamos em situações formais controladas, como na escola, por exemplo.

Trata-se de uma inteligência muito típica de alguns jogos, especialmente os sociais e os de aventura, entre outros. A situação que descrevi exigia uma decisão que só poderia ser tomada de acordo com o desenrolar dos acontecimentos. Portanto, a decisão final não seria tomada em oito segundos, mas em muito menos. O técnico de Jordan, Phil Jackson, é responsável por uma frase que diz mais ou menos o seguinte: quando o jogo começa, o jogador para de pensar e joga. Eu diria que ele não para de pensar, mas vai aproximando cada vez mais pensamento e ação, e tanto mais quanto mais hábil se torna, até um ponto em que ambos ocorrem praticamente ao mesmo tempo, como no caso de Jordan, ou de Pelé, ou de Maradona. O inusitado que reveste o jogo é uma das possibilidades de desenvolvimento de formas bastante originais de inteligência, a inteligência diante do inusitado, a inteligência que leva o sujeito pelo caminho que nunca trilhou antes. O grande jogador não repete caminhos. Mas isso não resolve todo o problema. Nada garante que o jogador habilidoso transfira da situação de jogo para outras situações a inteligência que pratica tão bem no campo. Não preciso mais que recorrer a Garrincha para demonstrar isso. Falta algo, falta a consciência da própria ação, que é por onde devem passar as ações, os conhecimentos, para serem generalizáveis a campos não muito vizinhos da ação prática original. Mas, sobre isso, falarei um pouco mais adiante.

A DESCOBERTA DE CADA UM

Se o jogo está na raiz mesmo do desenvolvimento do mais precioso atributo humano, aquele do qual nasceu toda a cultura humana, isto é, as representações mentais, seu papel educativo é decisivo e vai além da educação escolar. Se a escola nunca soube lidar com essa questão, porque nunca a compreendeu, isso não destitui o jogo de sua importância na educação das pessoas, porque ela não ocorre somente nas escolas. Porém, se o ensino formal trabalha na contramão da inteligência criativa, alijando de seu currículo o ócio, o lazer, o lúdico, o jogo, e se os jovens ocupam parte de suas vidas em salas de aula, sem dúvida isso constitui um prejuízo considerável para a civilização humana. É um quadro grave e os ministros da educação de nosso país vão pouco além de acreditar que a melhora do ensino depende do aumento do número de horas-aula e quantidade de matrículas. Não bastasse o grave problema escolar, os meios de comunicação pouco contribuem para estimular o desenvolvimento da imaginação humana. É só lembrar que um programa de boa qualidade como o Balão Mágico, da rede Globo, foi extinto para que entrasse em seu lugar o programa da Xuxa. É curioso também o que tem acontecido com o samba. Começou no início do século XX com gente como Donga, Cartola e Pixinguinha e terminou o século com grupos medíocres de pagode, sob os auspícios da indústria de discos e da televisão, porque Paulinho da Viola não dá lucro, mas o Catinguelê dá. Daí que a escola, quando recorre ao jogo, precisa certificar-se dos resultados, isto é, do lucro. Tudo passou a

ter que dar lucro imediato, palpável, quantificável. Não se consegue perceber que a avaliação que se faz do ensino só pode aferir toscamente alguns indícios parciais de aprendizagem. O que de fato se aprende de fundamental, isto é, aquilo que liga a escola com a vida, só poderá manifestar-se em prazos muitos longos, quando se aplicar à realidade de cada indivíduo. Professor deveria ser aquele profissional que sabe que nunca saberá realmente o que ensinou. É por isso que a escola acaba por desistir do jogo e o usa apenas como forma de “distrair” as crianças, fora do currículo, ou como forma de sedução para ensinar conteúdos de sala de aula que, nesta, não conseguiu. Insisto no caráter educativo do jogo além do utilitarismo com que ele normalmente é tratado. Já levantei três hipóteses anteriormente: o jogo como tematizador de aprendizagens, o jogo como um fim em si mesmo, e como formador da inteligência criativa. Quero falar agora do jogo como formador da individualidade, já que no item anterior o descrevi como formador da inteligência que se dirige aos problemas da sociedade. Tenho por mim que um dos objetivos primordiais da educação é ensinar as pessoas a serem elas mesmas. Com frequência pergunto a meus alunos se eles acham que uma pessoa que jogasse futebol como Pelé seria um excelente jogador. Em geral todos concordam que sim. Retruco dizendo que seria impossível. Pelé foi genial exatamente porque descobriu um jeito Pelé de jogar bola. E mais, descobriu um

jeito Pelé de ser, o que poderia resultar em outra coisa que não o futebol. Mas seu jeito de ser achou no futebol o seu melhor jeito de viver, de realizar a vida. Um Pedrinho qualquer só poderia ser craque de bola se descobrisse o jeito Pedrinho de jogar. E cada um de nós, para nos realizarmos, precisaríamos descobrir nossos jeitos de ser. Parece uma tarefa descomunal, e é. Jamais a escola daria conta de missão tão grandiosa sozinha. Mas ela contribui com parte substancial na formação das pessoas e, naquilo que a toca, deve procurar ser competente. O primeiro argumento a favor disso é que todas as coisas da natureza, na sua base, formam-se na diversidade, e não na especialidade. O ser humano é, antes de ser cultura, natureza e não pode contrariar suas leis básicas. Não podemos, como queria um vereador de uma cidade interiorana, revogar a lei da gravidade. Portanto, a formação de base de um jovem, incluindo nela a escola, deve ser diversificada. A respeito disso quero levantar pontualmente alguns argumentos. Vou falar inicialmente de diversidades. Como é de conhecimento geral hoje em dia, nossos genes estão sujeitos a inúmeras mutações incessantes, sem que o percebamos. Jacques Monod menciona as investigações da física dizendo que ela Nos ensina que (exceto no zero absoluto, limite inacessível) nenhuma entidade microscópica pode deixar de sofrer perturbações de ordem quântica, cuja acumulação, no interior de um sistema macroscópico, alterará sua estrutura, gradual embora inevitavelmente [1989, p. 128].

Apesar de sofrerem os genes tantas perturbações, as espécies vivas, e mais particularmente o homem, raramente manifestam tais mutações, o que realmente é espantoso e prova da resistência do organismo às mudanças. Ao longo de sucessivas gerações, um número incalculável de mutações fica disponível sem que isso determine mudanças morfológicas e comportamentais. E isso apesar das pressões que ocorrem no meio ambiente para que tais mudanças efetivamente ocorram. Monod afirma que na população humana atual “produz-se em cada geração mais ou menos de cem a mil bilhões de mutações” (1989, p. 140), um número fantástico. Para aquele autor, todas as propriedades dos seres vivos seguem uma regra de conservação e não de evolução, caso contrário, o fantástico número de mutações a que nossos genes são submetidos tornaria imensamente vulneráveis nossos organismos. E sabemos que somente pressões ambientes muitíssimo dramáticas podem acarretar manifestações de mutações, caso o banco genético tenha, em seu arquivo imenso, mutações que correspondam às pressões. De forma que, quanto maior a diversidade de mutações, maiores as chances de êxito da espécie mutante. À primeira vista parece que, acumulando tantas informações no nível dos genes, as chances de adaptação às pressões seletivas seriam enormes, mas não é bem assim que se passa, pois existem muito mais espécies mortas que vivas. Só a extrema diversidade pode aumentar as possibilidades. Quando escreveu um de seus últimos trabalhos, O possível e o necessário (1985), Piaget fez afirmações, em

relação ao comportamento, muito semelhantes às de Jacques Monod quanto à estrutura genética. Creio que se pode dizer que Piaget falou de verdadeiras mutações cognitivas e da diversidade que se seguia a isso. A diferença básica é que, enquanto os genes sofrem perturbações de várias ordens, provocando mutações que se acumulam, as estruturas cognitivas sofreriam perturbações incessantes acarretadas pelas novidades, isto é, o sujeito do conhecimento depara-se a cada instante com situações originais, ao menos parcialmente; novas, portanto, problemáticas. Tais situações inusitadas afetariam o sujeito, provocando transformações internas no sistema cognitivo, chamadas por Piaget de possíveis, porque, perante essas situações, antes de agir o sujeito torna suas ações possíveis. Ora, um novo possível na pessoa não se forma do nada; a partir das interações de possíveis existentes com a novidade, um ou alguns deles, certamente os que mais se aproximam do problema, atuam no sentido de, tanto conservarem-se como são, como diferenciarem-se em tantos outros assemelhados, porém diferentes o suficiente para aumentar as chances de darem conta da nova situação. Um dos possíveis “mutantes”, consequentemente, talvez tenha êxito e o problema será resolvido. Claro que o fenômeno é mais complexo que isso, mas essa sucinta descrição é suficiente para mostrar a complexidade em que se vai transformando o sistema cognitivo humano. Forma-se, aos poucos, um banco de dados de imensa

complexidade, aumentando as chances de êxito de uma pessoa diante dos problemas. Restam ainda alguns pontos a esclarecer. Toda situação é nova, comportando pelo menos alguma coisa de original. Quanto mais vizinha de situações anteriores, menos perceptíveis as novidades, de modo que, em boa parte de nossa ações, achamos que estamos apenas repetindo velhos procedimentos. Se isso fosse verdade, o que explicaria que um operário que repete milhares de vezes por dia o mesmo gesto técnico pode, num certo momento, ferir-se com o instrumento de trabalho? Se nada fosse jamais alterado, não haveria perigo de acidentes. Alguém poderia alegar: ele distraiu-se. Exatamente aí entrou algo novo, como em todas as vezes entra, mas é tão imperceptível que a adaptação se faz sem dificuldades. Outro esclarecimento: diante do novo, o organismo, consciente ou inconscientemente, busca, entre os possíveis cognitivos, aqueles mais familiares à situação, o que facilita sobremaneira a produção de novos possíveis eficazes, como, por exemplo, no caso das coordenações motoras. Em pouco tempo a criança define grupos de coordenações. Assim é que suas ações se distribuem entre aquelas de manipular, as de se locomover e as de manutenção da postura. Em seguida, cada grupo subdivide-se em subgrupos e assim por diante, de forma que a orientação diante de cada novidade se vê facilitada. Somente quando as novidades são radicais elas são percebidas como tal e chegam à consciência, por deflagrarem

conflitos de nível suficiente para isso; ou seja, nesse caso o organismo encontra dificuldades para escolher possíveis familiares disponíveis e, portanto, certamente valendo-se dos menos distantes, produzirá modificações mais significativas em termos de possíveis. De toda maneira, a produção de novos possíveis ou a disponibilidade dos já existentes não garante o êxito da ação. Como pudemos perceber, Piaget sugere que o organismo acumula ao longo da vida um vasto e complexo banco de dados cognitivo. Assim como o banco de mutações genéticas aumenta as chances da espécie quanto mais amplo for, também os possíveis cognitivos aumentam as chances de cada indivíduo e do grupo social. Porém, se a lei da conservação se aplica aos genes, deve aplicar-se também ao comportamento. E podemos perceber isso pela resistência que, em certos aspectos, o comportamento apresenta às mudanças. Não é porque uma pessoa oriunda de uma classe social privilegiada estude e compreenda o que se passa com os mais pobres, que necessariamente alterará substancialmente seu comportamento social. Não me consta que um patrão, porque conseguiu se diplomar em ciências sociais, necessariamente tome a iniciativa de melhorar a vida de seus operários. Como resultado dessas inferências podemos afirmar, portanto, que os possíveis cognitivos podem ser ampliados pelo comportamento, inclusive pelos procedimentos da educação, ao contrário do que ocorre com os genes. E a regra para isso jamais poderia ser a especialidade. Somente a

diversidade amplia as chances de proliferação dos possíveis, portanto, segundo Piaget, de desenvolvimento da inteligência humana, considerando que esses procedimentos pedagógicos teriam que saber investir nas novidades significativas, isto é, nos conflitos, radicais suficientemente para solicitar fortemente do aparelho cognitivo, e não excessivos para não se distanciarem demais das famílias de possíveis existentes. Os possíveis cognitivos estão para a inteligência individual e social como as mutações genéticas estão para a inteligência da espécie. Apesar de o comportamento humano ser conservador, como todas as estruturas, ele é muito mais vulnerável que a estrutura biológica, sem dúvida alguma. A palavra-chave desse quadro de extrema complexidade que tracei, portanto, é diversidade. Como me soam estúpidas as ideias de professores de educação física e técnicos esportivos que afirmam ser necessário especializar precocemente crianças no esporte! Como é cruel a atitude de pais e professores que colocam menininhas de quatro, cinco anos para fazer aulas de balé como se fossem adultas! Bem, mas a ideia é fazer convergir todo esse arrazoado de ideias para a proposição de que um dos papéis fundamentais da educação é ensinar cada pessoa a aprender a ser ela mesma e definir qual a participação do jogo nisso tudo. É preciso, para começar, considerar a hipótese de que não nascemos definidos, prontos, acabados, com o destino rigorosamente traçado, fazendo ao longo da vida apenas seguir as programações genéticas. Nem as espécies, em suas filogêneses, são tão rígidas. Consideremos, portanto, que uma

pessoa forma-se ao longo da vida, ao sabor dos encontros realizados a cada instante em seu meio ambiente. Consideremos ainda que só pode realizar escolhas aquela pessoa que tem entre o que escolher. E a que tiver mais disponibilidade de opções tem mais chances de escolha. A pedagogia dominante em nosso sistema de ensino e, por que não dizer, nos meios de comunicação como um todo, é aquela que orienta a aprendizagem por meio de modelos externos, num mecanismo simplista de transmissão de dados. De um lado, esse é um procedimento confortável, porque não acarreta surpresas, dado que o modelo pode ser previamente preparado e a avaliação facilmente controlada. Trata-se de um processo simplista e reducionista, que foi radicalmente combatido por Chomsky nos Estados Unidos, com registros em seu famoso debate com Piaget nos anos de 1970 (PIAGET & CHOMSKY, 1987). De outro lado, esse procedimento é interessante porque é fortemente ideológico, uma vez que não investe na educação de uma moral autônoma, pois trata-se aí de transmitir, junto com os conhecimentos, também um conjunto de valores incorporados pela tradição moralista das gerações mais velhas. Num sistema pedagógico desse tipo, consequentemente, é mais fácil transformar o Pedrinho em Pelé que fazê-lo descobrir-se Pedrinho. E assim, ele jamais poderá jogar bem futebol, porque nunca poderá ser Pelé, mas apenas uma cópia superficial e tosca do grande craque brasileiro. Nesse sistema, encontrar a identidade em si mesmo, reconhecer-se como ser único, inconfundível com qualquer outro, o que equivale

dizer, desenvolver a própria autonomia, é praticamente impossível. O desenvolvimento da autonomia decorre, entre outras coisas, da possibilidade de decidir, entre opções, em cada situação, aquela que for julgada pelo sujeito a mais adequada. Para tanto, o sujeito precisa dispor de um leque amplo de opções que, como vimos, depende de poder defrontar-se com situações diversificadas e, de preferência, perceptivelmente diversificadas. Só pode ser autônomo aquele que pode escolher. Só pode decidir o melhor aquele que puder escolher entre possíveis de qualidade. Só pode ter opções aquele que formou sua base de conhecimento de forma diversificada. Aquele que não tem como optar tem que ficar com os modelos impostos. Resta agora buscar, entre os procedimentos pedagógicos, aqueles que melhor podem favorecer a autonomia e a identidade própria do sujeito. Não comentarei outros conteúdos que não o jogo. Tive ocasião, neste trabalho, inúmeras vezes, de mencionar os aspectos de liberdade, de risco, de decisões do jogo. Além disso, quando falei da ambientação do jogo, falei da esfera da subjetividade como o campo mais típico de sua manifestação. Portanto, o jogo remete para as instâncias básicas favorecedoras dos atributos de identidade e de autonomia. O vaivém próprio do jogo, preparando a habilidade exercitada nele para um desafio de nível superior, supõe o preparo para o enfrentamento em novas situações. Além disso, sendo simulação, o risco de o novo poder ser mais bem enfrentado, uma vez que, sendo

brincadeira, pode-se parar a qualquer hora e, se não der certo, não haverá consequências danosas. Por último, sendo exercido predominantemente na esfera da subjetividade, ele orienta o sujeito na direção de si mesmo, para reconhecer-se como autor da própria ação. O que equivale a dizer que o sujeito, se puder dispor entre uma miríade de possíveis entre os quais escolher, fará, por fim, a única escolha que, de fato, interessa à sua formação: a escolha por ser ele mesmo, condição indispensável para que, de posse da autonomia que tal condição confere, possa estar com o outro. No tempo em que trabalhei como técnico de uma equipe de hóquei sobre patins, cujos atletas eram adolescentes, procurava estimulá-los a experimentar, durante os treinamentos, as muitas possibilidades de jogadas em cada situação, para que um dia pudessem escolher o melhor jeito de jogar, que seria, não tenho dúvidas, o jeito próprio de cada um. Na verdade, eu esperava que meus treinamentos fossem aulas em que os jogadores, experimentando os diversos jeitos de resolver cada situação, encontrassem os mais adequados e descobrissem a si mesmos. Tentei ensinar cada um a ser ele mesmo. Acho que o consegui com alguns, com outros não. Posso manter minha convicção, portanto, de que o jogo constitui um terreno bastante fecundo para a provocação de novos possíveis, consequentemente, mais chances de escolha, portanto, mais autonomia e identidade, porque o jogo é, sem dúvida alguma, um campo particularmente favorável, não exatamente para a criação do conflito, mas para seu enfrentamento e superação. Quero lembrar mais uma vez

Sartre, que dizia que “o desejo de jogar é, fundamentalmente, desejo de ser” (1999, p. 711), além de Buytendijk, que, a respeito do mesmo tema, afirmou que “a esfera do jogo é a esfera das imagens e, com isso, a esfera das possibilidades…” (1974, p. 68), invocando, para sustentar isso, o caráter pático das imagens.

A FACE UTILITÁRIA DO JOGO De cinco argumentos levantados neste capítulo a respeito do jogo e educação, apenas um, este que inicio, refere-se ao aspecto utilitário e, mesmo assim, com restrições. É comum ocorrer que a escola, sentindo-se incompetente para ensinar matemática, história ou português, sirva-se do jogo para camuflar seus conteúdos. Uma vez que a sala de aula torna insuportável o ambiente de ensino, porque não sabe tratar criança como criança, nem adolescente como adolescente, acaba recorrendo ao jogo para criar um clima agradável e motivador. O jogo passa a ser, então, apenas um veículo através do qual se altera a metodologia do enfado comum da sala de aula. Deixe-me dar um exemplo absolutamente ridículo de mau uso do jogo na pedagogia. O professor traça no chão um desenho do jogo da amarelinha, com os quadrados numerados de 0 a 9. Ele fala para algum aluno um número, por exemplo, 12, e a criança tem que saltar nos quadrados de forma a totalizar 12. Acaba descaracterizando de tal maneira o jogo que o torna tão enfadonho quanto a maioria das atividades de sala de aula.

Ou o caso do professor de educação física que, preocupado em desenvolver em seus alunos a noção de cooperação, propõe o jogo da queimada mas obriga os alunos a, antes de queimar o adversário, passar a bola para três ou quatro colegas de equipe. Com a ilusão de que, com isso, promove a cooperação, desrespeita a lógica do jogo e a inteligência dos alunos. Alguns pedagogos deram um tratamento bem mais digno ao jogo na educação. Célestin Freinet foi um deles. Sem dúvida ele foi um pedagogo que teve êxito na sua tarefa de ensinar. Uma das razões de seu êxito foi ter compreendido que não é necessário separar jogo de trabalho na escola, talvez recuperando algumas das práticas medievais do artesão e contrariando a mecânica da linha de montagem inaugurada com a revolução industrial e que, como ideologia, passou a dominar os métodos escolares. Além disso, seu trabalho pedagógico aponta para o futuro, pelo menos para a utopia de um dia os trabalhadores poderem produzir no lazer, no ócio, como o descreveu De Masi. Há uma coisa que as pessoas defensoras do purismo do jogo esquecem: aquilo que é feito na escola deve ter a marca da escola, ou seja, se há coisas que os alunos podem fazer sem o professor, sem a escola, então ela deixa de ser necessária. Por exemplo, se é só para brincar de um jeito que independe de isso ser feito no ambiente escolar, então é melhor brincar fora dele. A pergunta que cabe aí é a seguinte: como esse jogo deve ser praticado de forma que sem a presença do professor não aconteceria (excetuando aí os

exemplos anteriores de jogo enfadonho em que o lúdico é eliminado da situação)? Em outro trabalho que estou preparando sugiro que os conteúdos sejam tematizados, de maneira que, se o objetivo educacional num certo momento é gerar atitudes cooperativas, selecionam-se jogos predominantemente cooperativos, se num outro momento o objetivo for incrementar o poder de imaginar, selecionam-se jogos simbólicos, e assim por diante. Além disso, a marca da escola deve ser firmada pelo objetivo de desenvolver no aluno a consciência sobre as práticas realizadas. Para tanto, proponho que os jogos sejam sempre repetidos com o acréscimo de algum componente novo, para que a novidade se conflite com os esquemas atuais e possam produzir tomadas de consciência. Acresça-se a isso a estratégia de conversar com os alunos em rodas, antes, às vezes durante, e depois das práticas, outro fator gerador de tomadas de consciência. Não deve ser esquecido também o fato de que, se uma pessoa vai à escola, ela o faz para aprender um tipo de conhecimento que difere dos que se aprendem em outras instâncias. Se um jovem vai à escola vai para aprender conhecimentos, os mesmos e únicos possíveis no mundo, em linguagens formalizadas, ou seja, aprende-se a organizar as experiências de vida em linguagens como a da matemática, a do português, a das artes, a da motricidade etc., de modo que podemos dizer que se vai à escola para se alfabetizar, o que equivale dizer, para aprender a falar a língua universal. Portanto, se fosse só para brincar espontaneamente, não precisaríamos de escolas. A gente vai cada dia à escola para

saber mais do que sabia, não importa se jogando ou escrevendo na lousa. Vou agora falar mais diretamente, e é o que ainda falta, do jogo em seu caráter utilitário para a educação. Nesse caso, temos de dizer que, antes de mais nada, o jogo sempre perderá parte de seu caráter lúdico, pois se confundirá com tarefas objetivas, com trabalho. Portanto, o objetivo pedagógico não é ensinar apenas aquilo que já faz parte do jogo, mas acrescentar outros atributos que foram colocados nele. Para falar desse tema, volto a Freinet e sua ideia de não separar as coisas do trabalho das coisas do jogo. Julgo ser conveniente descrever o ambiente que ele criava para suas aulas, o que dá uma belíssima ideia de como se concretizavam seus objetivos pedagógicos: As nossas crianças estão mesmo mais calmas aqui do que em família, porque são melhor compreendidas e menos contrariadas nas suas atividades. Os grupos ocupam-se em trabalhos diferentes: observação livre, fichas de cálculo, tipografia, desenhos, leitura, trabalhos manuais, envio de correspondência, venda na cooperativa, etc. [1977, p. 361].

Ao imaginar esse quadro, lembramos um pouco as brincadeiras infantis de casinha, de viagem, de comidinha, mas a diferença é que, no caso de Freinet, trata-se de uma atividade escolar, na qual há jogo, mas há também compromisso, há obrigações. As crianças trabalhavam e produziam muito, mas estavam motivadas, porque eram tratadas como crianças.

Um outro bom exemplo desse jeito de ensinar encontramos nos treinamentos desportivos, aqueles que ainda conservam o lúdico. Quem conhece uma sessão de treino sabe que ali se trabalha, mas, sendo um esporte, ali também se joga. Ou seja, tanto no caso de Freinet como no do esporte, há um objetivo além do jogo; no primeiro caso aprender, por exemplo, a cooperar ou matemática, no segundo, uma técnica de passar ou de finalizar. E o jogo viabiliza isso sem descaracterizar-se, porque a criança não precisa deixar de ser criança, transformando-se em operária; ela continua brincando até sem perceber que está trabalhando, ou o contrário, ela continua trabalhando sem perceber que está brincando. Lino de Macedo, a respeito disso, afirma que Não se trata de ministrar os conteúdos escolares em forma de jogo. Isso pode ser interessante, mas nesse momento não é o que se está defendendo… A escola propõe exercícios, mas lhes tira o sentido, o valor lúdico, o prazer funcional… penso que as matemáticas, as línguas etc. são também jogos cujas regras nós ensinamos de forma esvaziada e portanto sem valor [1997, p. 140].

Penso que quando a escola se utiliza do jogo para ensinar seus conteúdos, o resultado tem sido desastroso. Lembro a malfadada psicomotricidade, fazendo crianças andar equilibrando-se sobre linhas traçadas no chão, ou a educação física, que nos forneceu alguns exemplos horripilantes, como o de colocar as crianças sentadas, cada uma com uma bola e,

ao sinal do professor, fazer todas as crianças, como autômatos, quicar bolas no chão ao redor do corpo; ao próximo sinal, paravam, e assim sucessivamente. No primeiro exemplo, nem equilíbrio nem jogo, no segundo, nem basquete nem jogo. Em contrapartida, se bem planejados, até os conteúdos escolares podem ser ensinados na forma de jogo, desde que a professora de sala tenha formação para tanto ou desde que ela planeje junto com o professor de educação física. Isso pode ser feito, por exemplo, no jogo chamado dia e noite. É um jogo simples, em que os alunos se organizam em duas colunas com o mesmo tanto de pessoas em cada uma delas, chamadas de “Dia” e de “Noite”, cada aluno da coluna “Dia” correspondendo a um aluno da coluna “Noite”. A brincadeira começa com o professor chamando subitamente um dos dois nomes. Se disser “Dia”, os alunos que pertencem a essa coluna correm até um ponto marcado alguns metros adiante, perseguidos pelos da coluna “Noite”. Se chamar “Noite”, inverte-se a situação. E a brincadeira segue com o professor fazendo combinações de chamadas: além de “Dia”, a coluna pode chamar-se também “Céu”, e além de “Noite” a outra pode chamar-se também “Inferno”. Mais tarde ele pode dizer que vai chamar números. Se chamar um número par, correm os alunos “Dia”, se for número ímpar, correm os alunos “Noite”. Depois, diz que vai chamar dois números; se a soma for par correm os “Dia”, e assim por diante. Dá para ensinar matemática, português, história, desde que os alunos de fato possam brincar.

Práticas como essa são bem diferentes do autoritarismo que se disfarça de jogo. Heloísa Dantas diz que “A oferta de prazer parece constituir nova justificativa para a imposição adulta, caracterizando a nova face, insidiosa e disfarçada, do autoritarismo” (1998, p. 112). Persiste na prática do jogo educacional, no entanto, um equívoco, que eu gostaria de desfazer. Em educação física, por exemplo, professores e diretores de escolas ficam maravilhados pelo fato de os alunos mostrarem-se felizes com as brincadeiras que acontecem nessa disciplina. Brinca-se do começo ao fim da aula e os alunos a terminam alegres. É comum, nesse caso, esquecer-se de que escola é para ensinar alguma coisa definida, mais organizada do que o seria fora da escola, e numa linguagem específica que aponte para o universal. Até porque pais e professores esperam que esse conhecimento objetive a cidadania, isto é, que possa ser usado fora da escola. Sendo assim, brincar por brincar, tanto quanto o exercício técnico, pode restringir-se apenas ao imediato, generalizando-se, quando muito, a situações muito vizinhas, mas nunca apontando para o universo todo. E sabemos, depois de muitos estudos, especialmente os de Piaget (1978b), que só o que aponta para o universo é aquilo que vai à consciência, esse atributo que permite ao sujeito saber o que se passa com as experiências que vive, testemunhando-as, como bem o disse Damásio: De um modo mais imperioso, talvez a consciência seja a função biológica crítica que nos permite saber que estamos sentindo tristeza ou alegria, sofrimento ou prazer, vergonha ou orgulho, pesar por um amor que se foi ou por uma vida que se

perdeu… Não culpe Eva por conhecer; culpe a consciência, e agradeça a ela [2000, p. 19].

Objetivando ilustrar essa questão, quero descrever um jogo que preparei especialmente para provocar a consciência daqueles que o praticam, sobre suas próprias ações. O jogo chama-se nunca três. Pedimos aos alunos que se organizem em duplas, de mãos dadas e encontrem um lugar para se fixar na quadra. Escolhemos um pegador e um fugitivo. A um sinal do professor, o pegador persegue o fugitivo; este, para se salvar e não virar pegador se for apanhado, pode segurar na mão de alguém de uma das duplas. Nesse momento, o outro dessa dupla assume o lugar do fugitivo e foge do pegador. O professor deixa a brincadeira acontecer por uns cinco minutos ou mais, até que todos a realizem com facilidade. Note-se que os alunos correm sempre num mesmo sentido e essa organização espacial acaba virando hábito. Nesse instante, o professor interrompe o jogo e informa aos alunos que, daí em diante, quando um fugitivo pegar na mão de alguém de uma das duplas, o outro da dupla, ao invés de seguir como fugitivo, vira pegador, consequentemente, o pegador vira fugitivo. Ora, isso quebra radicalmente a coordenação espacial montada para a versão anterior da brincadeira. De sua parte, os jogadores tendem a continuar utilizando essa coordenação, que é vizinha da exigida para a nova versão, mas que comporta muitas diferenças. O resultado é que a maioria dos alunos, no princípio, e dependendo de suas experiências motoras, chocam-se uns com os outros, correm na direção errada, vacilam, falam, gritam, o que torna o jogo muito engraçado. Seus conflitos de ordem espacial são visíveis. Aos poucos vão adaptando uma nova coordenação, até começarem a acertar o que fazer no jogo. Esse exemplo mostra como é possível, sem descaracterizar um jogo, educar da forma como a escola deveria educar os

alunos. A ideia é que, em uma aula, os alunos aprendam mais sobre algum tema dado anteriormente. Iniciam a aula jogando um jogo que exige um certo conhecimento a respeito de espaço, que vou chamar de nível A de conhecimento. Esse conhecimento pode ser pouco consciente, isto é, reduzir-se a coordenações práticas, motoras. Isso equivale a dizer que os alunos sabem fazer mas não sabem exatamente o que sabem. Falta-lhes consciência sobre os procedimentos utilizados. A estratégia adotada foi repetir o jogo incluindo uma novidade nele (a mudança de direção). Como os procedimentos anteriores resultavam em fracasso, isso chocou-os, contradisse-os e eles tiveram dúvidas. Se pudéssemos traduzir em perguntas suas atitudes de dúvidas, diríamos que seriam: e agora? O que eu faço? Para onde vou? Por que deu errado? Como fazer? etc. Essas são as boas perguntas pedagógicas, as perguntas que se fazem para si mesmo, as questões que possuem o poder de levar os acontecimentos para dentro de si e testemunhá-los interiormente; é ver para dentro. A consciência e a compreensão decorrentes equivalem a coordenar internamente de forma adequada o acontecimento externo. Ao final, pode-se, nesse caso, ter consciência do espaço vivido. Será pouco ter consciência espacial? Claro que não. Nosso mundo, tal como o organizamos, é feito de tempo, espaço e objetos. Nosso conhecimento é conhecimento dessas coisas em níveis diferentes e superiores. Nada mais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Jogo é tudo aquilo que minha percepção me disser que é jogo. A percepção pode se enganar? Claro que sim, como frequentemente se engana, não só quanto ao jogo, mas a respeito de todas as coisas. E para os atores do jogo que presenciei, também será jogo para eles? Não sei, não dá para saber, a menos que lhes perguntemos. Porém, quanto à minha perspectiva, sei que o que vi, ouvi, toquei etc. é jogo e isso é absolutamente certo no momento em que presenciei o ato. Talvez daí a pouco eu mesmo possa mudar de ideia, constatando meu engano, mas isso não anula a verdade há pouco revelada por minha percepção, porque ela era a verdade daquele momento. Ansiamos por possuir um critério universal para julgar o valor de todas as coisas, quer seja o jogo, a arte, a mentira ou a verdade. Sei também que os fenômenos apresentam sintomas, pistas, pelos quais se guia nossa percepção e é bem possível que ela coincida, eventualmente, com a percepção dos outros, mas não há qualquer garantia quanto a isso. Assim é que sabemos que uma pessoa está com raiva pelos sintomas que ela manifesta, mas não necessariamente ela

estará mesmo com raiva. Só saberemos da verdade, quanto ao ator do ocorrido, se ele nos contar sua verdade, caso contrário, jamais teremos certeza. E isso não importa muito, especialmente em se tratando do jogo, ou seja, não importa ter certeza das coisas, porque as coisas não são tão certas assim e jamais teremos um critério para decidir o que verdadeiramente é jogo ou arte, por exemplo, a não ser esse critério inicial e frágil da percepção. As conclusões a que chego não se baseiam em critérios de verdade, mas em sintomas, em pistas, em incertezas, bastante claudicantes. Basta-me, para a compreensão, ao menos no momento, espírito diretamente exterior. Quando jogo, espírito; quando jogo,

saber e só não é não é

que o jogo é alimento para o indiretamente para o mundo o estômago que tem fome, mas o a pele que requer abrigo, mas o

espírito. O jogo é alimento da alma e é a alma que vai alimentar o mundo dos homens em sociedade. Posto isso, posso dizer que o jogo não é apenas representação, é autorrepresentação, no que ele difere do teatro, onde os atores representam para uma plateia. No jogo, os atores representam para si mesmos. “A autorrepresentação do jogo faz com que o jogador logre ao mesmo tempo a sua própria jogando a algo, isto é, representando-o” (GADAMER, 1993, p. 151). Para Gadamer, nem mesmo os jogos esportivos, assistidos por uma plateia e voltados para servir um espetáculo a essa plateia, são jogados tendo como referência os espectadores. Tal fato marca uma diferença entre o jogo como o temos discutido neste trabalho e o jogo da

representação teatral, por exemplo, no qual atores e espectadores formam um único conjunto. Segundo Gadamer, “para os atores isto significa que não cumprem seu papel simplesmente como em qualquer jogo, senão que o executam para alguém, o representam para o espectador” (idem, p. 153). Ao final deste estudo preliminar, que pretendo constituase uma abertura para novas investigações, penso ter levantado argumentos ainda não suficientemente demonstrados. Comentei a respeito da evidência gritante da presença do jogo, especialmente durante a infância, portanto, constituindo-se em fenômeno que não é trivial, que não pode ser desconsiderado como tem ocorrido com frequência. Argumentei sobre a característica particularmente humana de termos uma energia superavitária dirigida à construção de nossa própria cultura, de modo a constituirmos assim um nicho ecológico favorável às nossas experiências de vida. Falei sobre o mistério da formação do símbolo, que deve persistir ainda por muito tempo, dada nossa incapacidade atual de compreender a compreensão, pensar o pensamento, ser consciente da consciência. Procurei localizar o jogo em seu ambiente próprio, aquele em que podemos vivê-lo com nossas disposições subjetivas e apaixonadas, o que não é outra coisa senão reviver o mundo das experiências objetivas desprovidas da disciplina das regras do mundo em sociedade e até as da própria natureza. E, por fim, comentei o jogo na educação, buscando localizar exatamente aquilo em que ele é mais poderoso quanto à formação humana.

Para encerrar este estudo, quero ainda discorrer sobre um outro ponto, ainda tão obscuro que não me arrisco mais que sugerir que seja mais bem pesquisado futuramente. Trata-se, sem cair nas malhas da análise linguística, de investigar um significado da ação de jogar, buscando, contudo, o sentido da ação, mais que da palavra. Jogar também quer dizer lançar, arremessar, atirar. Aqueles autores que pretenderam compreender o jogo analisando a linguagem, deram-se mal no sentido de não encontrar futuro na investigação, tantos são os fenômenos designados pelo nome jogo. Porém, creio que vale a pena, em investigações futuras, pesquisar o significado da ação de jogar, nesse sentido que mencionei no início do parágrafo, isto é, o de arremessar alguma coisa. Façamos uma imagem. Uma pessoa joga cinco pedrinhas no chão. Elas caem todas espalhadas, distantes umas das outras. Joga-as uma segunda vez e agora caem muito próximas entre si. Na terceira tentativa, duas delas caem próximas uma da outra e as demais ficam bem espalhadas. Depois a pessoa efetua um quarto, um quinto e um sexto lançamento e, a cada um deles, as cinco pedrinhas situam-se em formações diferentes. Esse exemplo serve para mostrar que jogar pode ter esse sentido de lançar, de arremessar, que é bem diferente de colocar com cuidado, de arrumar no lugar certo. O significado do jogo pode ser buscado por caminhos diferentes, um deles esse da ação de arremessar, de lançar coisas ao acaso,

descuidadamente, com um destino mais incerto que o das coisas colocadas com objetividade. Usemos um outro exemplo. Uma pessoa pega cinco pedrinhas e coloca-as cuidadosamente sobre o chão. Em seguida ela procura memorizar a posição de cada pedrinha no chão. Recolhe, então, as pedras e, na próxima vez, procura colocá-las novamente no mesmo local onde estavam anteriormente. É certo que a posição das pedrinhas será quase a mesma da ação anterior, dependendo, logicamente, da memória da pessoa. Suponhamos agora que essa pessoa marque no chão, com um giz, a localização de cada pedra. Na terceira vez que ela for colocar as pedras no chão, usará como referência as marcações. É quase certo que ficarão dispostas da mesma forma que na ação anterior. Comparando as duas situações percebemos a diferença entre as atitudes de lançar a esmo as pedras e colocá-las cuidadosamente no chão. Nos dois casos podem ocorrer acontecimentos imprevisíveis, mas há uma tendência maior para a imprevisibilidade no primeiro. Há riscos nos dois casos, mas há mais riscos no primeiro. As coisas jogadas não possuem a objetividade das coisas arrumadas, depositadas cuidadosamente, porque, se pretendo ser objetivo, não há por que jogar. Não pretendo com isso afirmar que tudo o que se faz no jogo é feito com descuido, de qualquer jeito. Não é esse o sentido de jogar. A diferença das coisas do jogo é que a ação do jogador não é marcada pelo resultado final, pelo

compromisso externo, apesar de haver um resultado final e um compromisso. A objetividade não é a marca do jogo. Tanto é que uma plateia de aficionados por futebol perderia o interesse pela partida cujo resultado fosse previamente anunciado depois de combinado entre as equipes. Há canais de televisão que transmitem tapes de partidas procurando esconder o resultado dos telespectadores para aumentar o interesse. É no sentido de lançar as peças do jogo sem saber como cairão, ou seja, sem saber como se desenrolará exatamente o jogo e muito menos seu final que podemos dizer que jogar é o mesmo que lançar ou arremessar. O jogo de dados é um dos exemplos mais típicos do que estou afirmando. Se eu tivesse a tarefa de colocar o dado sobre a mesa com a face 6 virada para cima eu não o lançaria, mas o colocaria cuidadosamente na mesa. Se eu arremessar os dados, sem dúvida terei muito menos garantias de que caia virada para cima a face 6. Nessa hipótese, não posso assumir compromissos com o resultado, tenho que arriscar para ver o que acontece e contar com o fator sorte ou azar. Porém, se me dessem a tarefa de colocar vários dados sobre uma mesa com a face 6 ou 5 virada para cima, eu não jogaria, eu depositaria cuidadosamente os dados para não correr riscos e para cumprir meu compromisso. Outro jogo exemplar para ilustrar esse fenômeno é o da cara ou coroa. Jogamos a moeda para cima e não podemos precisar com que face cairá na palma da nossa mão. Porém,

se eu desejar ter a face coroa na palma da mão, terei que dar um jeito de eliminar o risco do ato de jogar. Portanto, as coisas de um jogo são jogadas no sentido de não se referenciarem rigorosamente por um objetivo externo ao sujeito jogador. Não é o outro, não é a realidade que diz como deve ser conduzido o jogo até se chegar a um resultado, mas é o jogador e as próprias características de seu jogo que o farão. E mais, nem sequer podemos afirmar que o jogador tem o controle absoluto dos procedimentos, pois, ao entrar no jogo, ele tem que obedecer às regras que são próprias de cada jogo, não importa se é uma brincadeira infantil de casinha ou um jogo social como o xadrez. O jogador não pode entrar na partida de futebol e dizer que só joga se todos concordarem em mudar o tamanho das traves, o número de jogadores e a forma da bola. Há uma instância superior à sua vontade que determina como ele deve se conduzir, apesar do espaço que lhe resta para executar suas ações. O jogo é uma coisa nova feita de coisas velhas. Quem vai ao jogo leva, para jogar, as coisas que já possui, que pertencem ao seu campo de conhecimento, que foram aprendidas anteriormente em procedimentos de adaptação, de suprimento de necessidades objetivas. Os ingredientes do jogo, portanto, são as coisas velhas fechadas pela objetividade que marcou sua aprendizagem. No entanto, quando do jogo, o jogador lança-as como lançaria as pedrinhas, a esmo, reabrindo-as para novas disposições. Durante o jogo, formarão novos arranjos imprevisíveis, sempre diferentes a cada vez, como o que ocorre com as peças coloridas de um

caleidoscópio. Quem se interessaria pelas mesmas peças sempre iguais desse brinquedo se todas fossem dispostas cuidadosamente uma a uma? Brincando com o caleidoscópio, ao girar o brinquedo e olhar para os espelhos no interior do cilindro, a criança maravilha-se com os arranjos surpreendentes que as peças compõem. O caleidoscópio, como o jogo, produz arranjos de beleza, surpreende, é imprevisível, chama a atenção, desperta a curiosidade, renova-se a cada jogada, reabre as peças para novas criações enquanto durar o jogo. O caleidoscópio imita a vida no seu aspecto lúdico, apesar de raramente nossa pedagogia o perceber. Ainda se poderia argumentar que, num jogo como o do par ou ímpar, as sucessivas jogadas apresentam apenas as alternativas: ora par, ora ímpar, e que nada de novo pode acontecer além disso. Claro, o jogador sabe que nesse jogo o resultado sempre será uma das duas únicas opções, mas nunca saberá o desfecho antecipadamente. Trata-se de um jogo simples, com poucas combinações, um caleidoscópio de apenas duas peças, porém, igualmente imprevisível. Seria completamente diferente, e não seria jogo, se os jogadores combinassem antecipadamente o número de dedos que cada um deles colocaria. Talvez seja justo imaginar que um caleidoscópio com apenas duas peças não tenha graça. Mas não é o que constatamos quando observamos crianças brincando de par ou ímpar. Mesmo parecendo só haver duas combinações possíveis, há outros fatores em jogo além da quantidade: há as expectativas, há a esperança de tornar a ganhar ou de compensar a derrota anterior, há os

sentimentos de realização e de frustração, entre tantas outras coisas em jogo, impossíveis de descrever. Restaria encaminhar, quanto a esta particularidade, um problema gigantesco, como parece que o são todos os que se referem ao jogo. Em que medida uma brincadeira infantil como a de casinha é um jogo no mesmo sentido do jogo de cara ou coroa ou o de dados? Na primeira, não se percebe que as crianças estejam lançando alguma coisa ao sabor da sorte ou do azar. Sem dúvida, o que podemos dizer é que elas estão se utilizando de peças que retiraram da realidade, como o fogãozinho de mentirinha, as mesas, as cadeiras, o pai, a mãe, os filhos. São peças como as peças de qualquer outro jogo. Não me parece que aí essas peças são lançadas como no jogo de dados, mas não tenho dúvidas de que o compromisso dos jogadores não tem nada a ver com a objetividade dos personagens reais de uma família. Essas peças são dispostas pelos jogadores de acordo com seus desejos, o que é diferente do lançamento ao acaso dos dados. Porém, se observarmos bem essas brincadeiras, elas estão longe de ser previsíveis. Adquirem uma dinâmica própria à medida que o jogo se desenrola e sofrem desvios de percurso a cada vez que os conflitos que vão surgindo provocarem obstáculos. De tal sorte que muitas vezes o roteiro é completamente alterado e o observador vê suas previsões contrariadas. Por exemplo, uma brincadeira que se desenrole com razoável harmonia às vezes nos surpreende com uma interrupção brusca em que os jogadores não querem mais brincar e vão-se embora ou mudam de jogo.

Caí mais uma vez no eterno problema: tudo que chamamos de jogo guarda alguma ou algumas características comuns? Procurei mostrar que sim, que o jogo tende para uma direção, sem guardar exclusivamente esta ou aquela característica. Descrevi o jogo como uma atividade em que as coisas são feitas sem que precisem ser feitas, porque não se distingue nela um compromisso objetivo com algo exterior ao jogador. Deixei mais aberta que qualquer outra questão esta última, segundo a qual todas as coisas que chamamos de jogo são jogadas, isto é, lançadas, arremessadas ao sabor da imprevisibilidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTARRIBA, Xavier (1998). El ocio en el siglo XXI. >www.ociforum.com/P_ALTA.htm