O Homem que Nunca Existiu

Este é um livro que relata um fato histórico da maior transcendência para o êxito de uma operação de vulto, desencadeada

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O Homem que Nunca Existiu

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Apresentação
Prefácio
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Posfácio
Apêndice 1
Apêndice 2

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O HOMEM QUE NUNCA EXISTIU

Título: O Homem que nunca Existiu Autor: Ewen Montagu Título original: The Man that never was © 1953 by the Montagu Estate Tradução do Cel. Alvaro Galvão Editora Bibliex Rio de Janeiro, 1978 173 págs.

Apresentação Este é um livro que relata um fato histórico da maior transcendência para o êxito de uma operação de vulto, desencadeada durante a Segunda Guerra Mundial — a invasão da Sicília. É uma obra de leitura atraente, que ao mesmo tempo constitui preciosa fonte de subsídios para a reflexão dos estudiosos dos complexos domínios da informação e da contrainformação. Demonstra como uma simples ideia, aparentemente esdrúxula, pode ganhar força e transformar-se numa arma de valor inestimável para o sucesso de um grande empreendimento, desde que encontre fatores favoráveis ao seu desenvolvimento: um objetivo relevante; o apoio e a confiança dos chefes; uma equipe com imaginação criadora e determinação para superar obstáculos, tudo isso aliado a um planejamento minucioso e detalhado e favorecido por uma conjugação de circunstâncias. O autor descreve, com rara habilidade, todas as etapas da ação, da qual participou desde seu nascimento, dando ensejo a que o leitor vá acompanhando, quase que didaticamente, a preparação, a montagem e a execução de uma operação de contrainformação trabalhosa, original e fundamentalmente arrojada. Sua leitura é um exercício de pensamento reflexivo contínuo. Praticamente nada é omitido ao leitor: erros e acertos, dificuldades e caprichos da sorte, coincidências e arranjos talentosos. Os cuidados tomados para tornar a ideia verossímil ao inimigo, os critérios adotados para escolha do local da operação, a capacidade de prever o comportamento das pessoas que participariam do encontro do corpo e a

preocupação de antever, com realismo, o tipo de raciocínio que seria desenvolvido pelo Serviço de Informações alemão são verdadeiras aulas de aplicação consciente e disciplinada de princípios lógicos e criterioso bom senso. Enfim, é um livro que esta Editora militar distribui aos seus Assinantes convicta de que todos muito o apreciarão.

BIBLIOTECA DO EXÉRCITO EDITORA

Prefácio Escrito pelo General Lord Ismay, G.C.B., C.B., D.S.O. Secretário-Geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte e, de 1940 a 1946, Chefe do Estado-Maior de Winston Churchill, Ministro da Defesa. Desorientar e confundir o inimigo sempre foi um dos princípios cardeais da guerra. Como consequência, desde o episódio do Cavalo de Troia, ou mesmo antes dele, ruses de guerre de diversos tipos têm representado algum papel em quase todas as campanhas. Os truques são utilizados há tanto tempo que não é fácil inventar um processo novo para disfarçar, seja nossa potência, sejam as nossas intenções. Além disto, para a execução dos truques, bem como para seu planejamento, exige-se um cuidado meticuloso. Caso contrário, em vez de iludirem o inimigo, servem apenas para revelar o que desejaríamos esconder. Depois da conquista da Tunísia, os aliados decidiram que o passo seguinte seria a invasão da Itália, através da Sicília. Como sempre acontece em tais ocasiões, tínhamos certeza de que esta decisão era um corolário tão óbvio da campanha da África do Norte, que o inimigo estaria esperando por ela, concentrando seus meios a fim de enfrentá-la. O que poderia ser feito para despistá-lo? Lembro-me perfeitamente quando, certa tarde, apresentaram-me o esboço de um plano de simulação, o qual veio a ser batizado com o nome horrível de Operação Mincemeat (Recheio). Confesso que tive dúvidas sobre a viabilidade do plano; de qualquer maneira, encaminhei-o

aos Chefes de Estado-Maior, que o aprovaram em princípio. Daí em diante, o pai da ideia, Capitão de Fragata Montagu, e seus colegas empenharam-se a fundo na execução do plano. O sucesso da operação ultrapassou em muito tudo o que pudéssemos imaginar. Resultado formidável foi o da pulverização do esforço defensivo alemão por toda a Europa. Os soldados que desembarcaram na Sicília, bem como suas famílias, têm motivos para ser particularmente gratos à Operação Mincemeat. Nem sempre a história completa de uma operação secreta pode ser revelada publicamente, narrada por alguém que conheça todos os detalhes. Os militares devem ficar felizes por poderem desfrutar a oportunidade de estudar um caso concreto sobre uma atividade extremamente especializada dentro da arte da guerra; os demais leitores terão o prazer de ler uma "novela real" — o que vem a demonstrar, mais uma vez, que a realidade é mais surpreendente do que a ficção. Paris 7 de junho de 1953

Nota do Autor Este livro conta a história verdadeira de uma operação executada em 1942-43. Os fatos que não contaram com a minha participação pessoal foram extraídos de documentos e relatórios da época, não se baseiam na recordação de alguém sobre o que ocorreu há dez anos, nem constituem a tentativa de alguém de justificar seus atos ou os de seus subordinados. Evidentemente, não pude falar nem escrever sobre ela até a publicação de uma obra de ficção baseada parcialmente nesta operação, nem antes que fatos relatados em biografias alemãs revelassem a posse dos documentos fundamentais da operação; depois disso, ficou evidente que já não seria possível ocultar os segredos guardados por todos os que participaram desta grande dissimulação. As autoridades compreenderam esta realidade e, sem dúvida, avaliaram as vantagens e as desvantagens que poderiam resultar de uma divulgação feita por escritores mal informados; como consequência, obtive permissão para escrever a história verdadeira. A operação foi executada por uma equipe que, infelizmente, deve permanecer no anonimato, porque muitos deles ainda trabalham para o governo. Por isso, troquei um nome verdadeiro pelo codinome "George" e preservei o sigilo sobre a verdadeira identidade do "Major Martin". Ao mencionar outras pessoas, mantive cargos e postos que ocupavam na época da operação. Quem estudar essa história certamente tirará algum proveito. Talvez, quando for revelado o "vazamento" de algum documento secreto, a opinião pública não se mostre tão disposta a lançar a culpa sobre nossos serviços de

segurança; é possível que ela procure saber se, em vez de tolo, o serviço de segurança não foi esperto demais. Desejo registrar meu agradecimento a Lord Ismay pela ajuda prestada em 1942 e 1943 e por haver escrito o prefácio, bem como a Jack Garbutt, do Sunday Express, pela gentileza e a orientação sábia a esta minha primeira incursão no campo da literatura. Registro também meu agradecimento profundo a meus colegas; sem a colaboração leal e as brilhantes ideias que me proporcionaram, não teria havido a operação Mincemeat. Agradeço ao Visconde Norwich, sem cuja colaboração não teria sido possível publicar esta obra. EWEN MONTAGU Warren Beach, Beaulieu 1953

1 O nascimento de uma ideia No cemitério da cidade espanhola de Huelva jaz um cidadão britânico. Quando morreu, solitário e cercado pela névoa úmida da Inglaterra, no fim do outono de 1942, jamais pensou que descansaria para sempre sob o céu ensolarado da Espanha, depois de um funeral com todas as honras militares, nem que prestaria, após a morte, um serviço aos aliados, serviço que salvou várias centenas de vidas inglesas e americanas. Em vida, pouco fizera pela pátria; depois de, morto, fez mais do que poderia durante uma vida inteira dedicada à carreira das armas.

Na realidade, tudo começou com uma ideia louca de George. Ele e eu integrávamos uma pequena comissão das forças armadas e de outros departamentos do governo que se reunia semanalmente para examinar assuntos relacionados à segurança de operações planejadas. Discutíamos e trocávamos informes recebidos de todos os tipos de fonte: de cada uma das forças armadas, de habitantes do país e de países neutros, bem como relatórios de Informações relativos aos países inimigos. Combinando tudo isto com os dados recentes sobre as "intenções" dos aliados — não só imediatas e prováveis, mas também as "possíveis a longo prazo" — tínhamos que tentar descobrir qualquer "vazamento" que pudesse ter ocorrido e qualquer "previsão sábia" que o inimigo pudesse ter feito, além de tomar providências para que não voltassem a ocorrer

"vazamentos", nem previsões por parte do inimigo, no futuro. Não se tratava de uma tarefa fácil, mas a comissão trabalhava bem; era composta por oficiais de carreira, muito cultos e experientes, e por oficiais convocados e civis das mais variadas procedências. Constituíamos um grupo heterogêneo; no nosso círculo, podíamos descobrir nos informes qualquer aspecto que chamaria a atenção de alguém dentro da gama variada de atividades humanas. Nossos conhecimentos abrangiam os mais diversificados campos e só não dispúnhamos de contatos em raríssimas esferas de atividade. A ideia de George nasceu durante um debate sobre um relatório que nos fora enviado da Europa ocupada; como acontecia, vez por outra, estávamos intrigados para descobrir se o assunto era verdadeiro, ou se fora "plantado" pelos alemães para ser transmitido aos aliados. George possuía uma inteligência viva e criadora, do tipo que andava sempre gerando ideias fantásticas — algumas delas tão engenhosas que, ou eram impossíveis de serem implementadas, ou eram tão complicadas que se tornavam de eficácia problemática; entretanto, por vezes eram brilhantes em sua simplicidade. Enquanto discutíamos se o relatório era verdadeiro, ou se os alemães haviam capturado o agente que o redigira e estavam enviando dados através dele, ou para ele, George lembrou-se de uma ordem recente, advertindo os oficiais sobre a proibição de conduzir documentos secretos em viagem aérea, por causa do perigo de serem abatidos sobre território inimigo. Partindo desta lembrança, George sugeriu que, para testar o relatório, deveríamos tentar fazer com que os alemães "plantassem" contra nós algo que soubéssemos ser "plantado"; com isto, ficaríamos sabendo qual a linha que estavam utilizando e de que forma eles "plantavam" os dados. Se lançássemos um aparelho telegráfico para um membro da Resistência francesa, explicou George, e ele

começasse a transmitir, seria difícil dizer se o aparelho estava sendo operado pelos alemães ou por um amigo francês; entretanto, a verificação seria mais fácil se o aparelho fosse lançado com um cadáver em paraquedas mal aberto. Um francês provavelmente nos revelaria o que havia acontecido, ao passo que os alemães tentariam ocultar o acidente e passariam a operar o telégrafo como se o agente ainda estivesse vivo. Não haveria certeza absoluta, mas a operação não envolvia muito esforço e valia a pena ser tentada. "Alguém sabe como podemos conseguir um cadáver?", indagou George. Evidentemente, não era uma das suas grandes ideias; foi destruída rapidamente. Agentes não carregavam seus códigos, nem a programação de transmissão de mensagens, para serem flagrados por quem os capturasse; logo, como os alemães poderiam começar a operar o telégrafo? Além disto, o que quer que estivesse pendurado em um paraquedas mal aberto sofreria um impacto violento ao atingir o solo; se fosse um corpo humano, com certeza surgiriam ossos quebrados, escoriações e arranhões. Ora, é sempre possível detectar ferimentos produzidos depois da morte. Também não havia jeito de lançar um cadáver atado a um paraquedas mal aberto evitando que os que descobrissem o corpo comprovassem que a morte ocorrera muito antes do impacto contra o solo. Por fim, mesmo que conseguíssemos um cadáver (e ninguém sabia onde obtêlo), nossa escolha ficaria restrita ao cadáver de alguém que houvesse morrido de uma queda de grande altura. Não; George se equivocara. Voltamos ao estudo do relatório; era falso ou verdadeiro? Meses depois, porém, a ideia maluca de George produzia resultados. No verão de 1942 nossa comissão achava-se engajada na sua primeira tarefa de vulto. Montava-se a operação Torch, a invasão da África do Norte; a experiência que adquiríramos na tentativa de preservar a segurança de

operações de pequeno vulto, compreendendo um número relativamente pequeno de unidades, estava enfrentando a primeira prova de fogo. Apesar de tudo o que se consegue fazer em matéria de segurança, é praticamente impossível evitar que o inimigo descubra que há algo em preparação. Em primeiro lugar, era evidente para qualquer pessoa que os aliados não ficariam inativos indefinidamente; deveria ocorrer uma invasão em algum lugar. Em segundo lugar, não era possível confinar os diplomatas estrangeiros; eles viajavam pelo país inteiro, encontravam e conversavam com diversas pessoas, não apenas com gente conhecida, mas também com inúmeras outras que viam a concentração de navios ou de tropas, antes de se dirigirem para outras regiões. Por outro lado, independentemente da posição oficial do nosso governo, nenhum de nós tinha ilusão sobre a pretensa neutralidade de alguns diplomatas. Além disto, até um diplomata anglófilo tem uma missão a cumprir: informar ao seu governo o que estiver acontecendo na Inglaterra. Ora, depois que o seu relatório chegar ao respectivo Ministério do Exterior, haverá sempre um outro diplomata ou funcionário disposto, seja dor dinheiro, seja por motivos ideológicos, a passar os dados para os alemães. Em terceiro lugar, inúmeros marinheiros e homens de negócios dos países neutros viajavam entre a Inglaterra e o continente. Portanto, não poderíamos alimentar a menor esperança de evitar que os alemães viessem a saber que havia uma operação em preparação. O que poderíamos fazer era evitar o "vazamento" dos dados essenciais: quando e onde. Antes do desencadeamento da invasão da África do Norte os aliados não tinham qualquer objetivo provável no continente europeu. Quanto à África, a guerra resumia-se a uma campanha no sentido de leste para oeste, com nossas forças baseadas na zona do canal de Suez. Em face desta situação, não havia motivo que impedisse os aliados de desfechar um ataque em qualquer lugar. Dentro das

hipóteses que os alemães formulariam, poderíamos desembarcar na Noruega, nos Países Baixos ou na França, ou tentar avançar através da Espanha; poderíamos conquistar as ilhas Canárias e os Açores, para ampliar a guerra contra os submarinos; ou poderíamos desembarcar na Líbia para atacar Rommel pela retaguarda. Com exceção do Egito, não estávamos engajados em parte alguma; qualquer lugar, da Europa, ocupado pelos alemães ou pertencente a país neutro, poderia ser alvo de ataque. Nestas circunstâncias, quando atacamos Dieppe, ou as ilhas Lofoten, ou planejamos qualquer outro ataque, tudo o que a nossa comissão teve que fazer foi tentar evitar que o inimigo soubesse do alvo verdadeiro e da data exata do ataque. Para isto bastava informar às tropas sobre um alvo falso e, quando desejável, apoiar tal dissimulação com ordens para a aquisição, por exemplo, de capacetes para sol — se fôssemos atacar realmente as ilhas Lofoten — ou outro truque qualquer; depois, tratava-se de dedicar todas as energias para reduzir ao mínimo os fragmentos de in formes que indubitavelmente sairiam do país. Em outras palavras, nossa norma era tentar tornar a segurança a mais completa possível e, em seguida, tentar evitar qualquer "vazamento" que, a despeito das medidas de segurança, pudesse revelar o verdadeiro alvo. Até o desencadeamento da operação Torch contra a África do Norte pudemos operar nestas bases. Entretanto, ao estudarmos nossos relatórios de Informações e constatarmos os deslocamentos realizados pelos alemães, concluímos que tal sistema só funcionara enquanto existiram objetivos em potencial tão numerosos que não permitiam aos alemães terem uma ideia de onde atacaríamos. Uma vez concluída a operação Torch, nosso problema seria totalmente diferente. Naquela fase da guerra os aliados teriam o domínio de todo o litoral do norte da África e estariam em situação de atacar aquilo que o Primeiro-

Ministro chamava de "parte vulnerável da Europa". Nossa comissão foi mantida a par da orientação estratégica tanto dos nossos Chefes de Estado-Maior como dos Chefes americanos. Sabíamos da existência de opiniões divergentes, mas existia uma elevada probabilidade de que atacássemos lá; cabia à nossa comissão estar preparada para desempenhar seu papel quando os aliados atacassem. Com todo o litoral do norte da África na posse dos aliados, era óbvio que não embarcaríamos as tropas de volta para a Inglaterra, a fim de invadir a França através do Canal da Mancha; parecia evidente que algumas grandes unidades se destinavam ao emprego no Mediterrâneo. Poderiam constituir parte de um exército para a conquista da Itália, ou poderiam ser utilizadas para desembarques no sul da França ou na Grécia. Qualquer uma dessas ações representava uma possibilidade e a nossa comissão tinha que estar preparada para trabalhar com aquela que fosse objeto da decisão final. Se isto fosse tudo, talvez pudéssemos cumprir esta missão valendo-nos do sistema que até então dera bons resultados; entretanto, havia um aspecto da situação estratégica que criou um novo problema. A Sicília situa-se no meio do Mediterrâneo, como uma bola de futebol no pé da Itália; enquanto não fosse conquistada, o deslocamento de um comboio pelo Mediterrâneo constituía uma operação delicada, sujeita a numerosas perdas, e esta situação subsistiria mesmo depois de conquistarmos os aeródromos da África do Norte. A nossa comissão ficou sabendo que, muito provavelmente, a Sicília teria que ser conquistada antes do desencadeamento de qualquer outra operação. Uma vez que sempre tínhamos que realizar nossos preparativos muito antes do desencadeamento de uma operação, admitíamos que o nosso próximo trabalho ia ser a segurança da invasão da Sicília; já pensávamos assim mesmo antes da montagem final da operação Torch.

A este respeito, prevíamos dificuldades. Se a Sicília constituía a possibilidade mais provável para nós, após a conquista da África do Norte, evidentemente os alemães também poderiam pensar da mesma forma. Na realidade, conforme declarou o Primeiro Ministro na hora da aprovação da nossa operação, não importava muito aceitar algum risco de revelar que a Sicília seria o alvo, pois "com exceção dos idiotas, todos sabiam que a ilha seria o objetivo". Quando chegasse a hora, como é que poderíamos evitar que os alemães reforçassem a defesa da Sicília em consequência do mesmo raciocínio estratégico que levaria os aliados a atacá-la? Enquanto quebrávamos a cabeça neste problema, de repente surgiu a inspiração e a ideia fantástica de George tomou forma. Dirigi-me aos amigos: "Acho que podíamos arranjar um cadáver, disfarçá-lo como oficial do estadomaior e deixá-lo transportar documentos do Alto Comando revelando que vamos atacar em algum outro lugar. Não precisamos lançá-lo em terra, porque o avião pode cair no mar, em voo para a região do Mediterrâneo. O cadáver com os documentos poderia aparecer numa praia da França ou da Espanha, não importa qual delas. Provavelmente a Espanha seria melhor, porque os alemães não terão muito tempo para examinar o cadáver, mas com certeza receberão cópias dos documentos." Assim nasceu a ideia. Entusiasmados, discutimos suas possibilidades. Precisaríamos verificar uma série de pontos: Que aspecto teria o cadáver da vítima de uma queda de avião no mar? Em tais acidentes, quais as causas normais da morte? 0 que revelaria uma autópsia? Conseguiríamos o cadáver adequado – ou melhor, conseguiríamos algum cadáver? Eis aí as primeiras indagações para as quais teríamos que procurar as respostas. Se estas fossem satisfatórias valeria a pena examinar o plano minuciosamente, pois todos nós tínhamos certeza de que, se fosse criada a oportunidade, os espanhóis

representariam o papel que lhes atribuíssemos; com isto, desfrutaríamos de uma vantagem incalculável.

2 Investigações preliminares Faláramos com desembaraço sobre "conseguir um corpo", mas sabíamos que haveria dificuldades; na realidade, porém, não tínhamos noção do grau de dificuldade que enfrentaríamos. É verdade que nenhum de nós sentira-se à vontade com a ideia; mesmo sob a tensão da guerra, o instinto natural de respeito, pela santidade do corpo humano é muito grande. Conseguimos sobrepujar este instinto pensando nas vidas que poderiam ser salvas através da utilização temporária de um cadáver; a compensação é que este corpo receberia, no fim, um enterro decente e honroso. A primeira dificuldade que enfrentamos resultava da própria segurança. Como é que poderíamos abordar os parentes, em um momento tão triste, e pedir-lhes licença para levar, sem qualquer explicação, os restos mortais de um filho, um marido ou um irmão que estavam velando? Se fosse necessário dar alguma explicação, o que haveríamos de dizer? Talvez numa história de ficção acontecesse encontrarmos um homem que era o único parente de alguém que acabara de falecer de causa mortis adequada ao nosso plano — e este homem seria daquele tipo raro que concordaria em levarmos o corpo sem indagar para que finalidade o queríamos. Em ficção talvez, mas não na vida real. Antes de iniciarmos a busca, primeiro precisávamos saber de que tipo de cadáver necessitávamos. Para que os alemães aceitassem o corpo como sendo o de uma vítima de um desastre de avião no mar, era preciso que lhes

oferecêssemos um cadáver que não apresentasse indícios de morte por um outro motivo qualquer. Achei que a melhor forma de resolver o problema era encará-lo do ponto de vista de quem iria fazer a autópsia. O que é que um patologista esperava encontrar, e o que é que não esperava encontrar, no corpo de um homem que viera dar à praia após o desaparecimento de um avião no mar? Porque, afinal de contas, não era preciso que o avião realmente tombasse ao mar. Pensei logo em Sir Bernard Spilsbury. Ninguém tinha mais experiência em patologia do que ele e também achei que não haveria risco para a segurança; podia-se ter certeza de que ele jamais comentaria o que eu lhe contasse, nem mencionaria a outra pessoa que "a opinião lhe fora solicitada por pessoa de confiança". Sob este prisma, não havia a menor diferença entre Sir Bernard e uma ostra. Além disto, ele apresentava uma virtude rara: eu tinha certeza de que não faria qualquer pergunta desnecessária à solução do problema que lhe fosse proposto. Ele encararia com naturalidade o fato de querermos que os alemães e espanhóis considerassem um cadáver achado na praia como sendo o corpo de uma vítima de desastre aéreo no mar; não haveria indagações sobre o porquê do fato, nem dirigidas a mim, nem a ninguém mais. Telefonei para Sir Bernard e marcamos um encontro, no seu clube, o Junior Carlton. Lá, por entre um copo de bebida, apresentei-lhe o problema. Após breve reflexão, fez-me uma daquelas exposições concisas, porém completas, que haviam convencido muitos jurados — e até alguns juízes. Seu conselho deu-me esperança. Se o corpo estivesse flutuando com um colete salva-vidas "Mae West" ao ser encontrado no mar, poderíamos utilizar o cadáver de um homem morto por afogamento ou por qualquer outra "causa natural", excetuando umas poucas. As vítimas de um desastre aéreo no mar por vezes morrem dos ferimentos produzidos pelo choque do avião com o mar; algumas

morrem por afogamento, outras por abalo emocional e outras por causa da permanência prolongada no oceano. Assim, nosso campo de busca do cadáver era menos limitado do que eu temera que fosse. A minha avaliação sobre Sir Bernard foi plenamente justificada; este homem extraordinário ouviu minhas perguntas e deu-me suas respostas sem jamais manifestar a curiosidade que o deveria estar assaltando. Fez-me indagações relacionadas patologicamente com o problema que eu lhe apresentava, mas não perguntou uma única vez o motivo pelo qual eu queria saber tal coisa, ou que é que eu estava pensando fazer. Mesmo assim a busca não era fácil. Não poderíamos realizar investigação alguma ostensiva — acima de tudo, tínhamos que evitar o que quer que pudesse gerar murmúrios. Não podíamos correr o risco de existir alguém que se lembrasse de uma pessoa atrás de um cadáver, pois era exatamente o tipo de coisa que dava origem ao disseme-disse. "Você ouviu? Uma coisa pavorosa. Outro dia Fulano perguntava a Sicrano onde poderia arranjar um cadáver." Por isto, nossa busca desenvolveu-se com extrema cautela. E eis-nos, em 1942, inopinadamente cercados de cadáveres, sem que pudéssemos aproveitar nenhum deles. Sentíamo-nos como o Velho Marinheiro — cadáveres, cadáveres por toda parte, sem qualquer utilidade! Sentíamo-nos como Pirandello — "Seis oficiais à procura de um cadáver". Em certa época chegamos a pensar que nos veríamos obrigados a sequestrar um cadáver — "ou matar alguém e carregar o corpo", como disse um companheiro. Não gostávamos da ideia e a evitaríamos, se fosse possível. Conseguimos realizar algumas investigações muito sigilosas junto a certos médicos militares de nossa confiança; eles nos forneceram indicações mas, quando chegávamos, ou os parentes não concordavam, ou não podíamos confiar que aqueles que nos iam dar a permissão não iriam relatar o

ocorrido para os demais familiares. Às vezes surgiam outros empecilhos, como complicações na causa da morte. Por fim, quando já estávamos achando que teríamos de apelar para o sequestro, a fim de não ampliar nossa investigação a ponto de provocar murmúrios, eis que nos chega a indicação sobre alguém que falecera vitimado por pneumonia. Do ponto de vista patológico, o cadáver parecia atender a todas as nossas exigências. Fizemos uma investigação acelerada sobre o seu passado e sobre seus parentes; logo ficamos satisfeitos por averiguar que eles não falariam, nem difundiriam os informes que lhes déssemos. Restava ainda a questão crucial: conseguiríamos permissão para utilizar o corpo sem dizer o que iríamos fazer com ele e sem explicar os motivos? A única coisa que poderíamos dizer era garantir que o corpo seria usado em uma atividade honrosa, que o que ia ser feito tinha a aprovação do mais alto escalão do governo e que o cadáver seria adequadamente enterrado, só que com um nome falso. Somos muito gratos pela permissão que nos foi concedida, sob a condição de que jamais revelássemos a quem pertencera o corpo. Portanto, basta dizer que o cadáver era o de um homem de cerca de 30 anos. Pouco antes de morrer, seu estado físico decaíra um pouco; isso não nos preocupava, como expliquei a um superior que me interrogara sobre este aspecto: "Ele não precisa parecer um oficial combatente; basta parecer um burocrata." Por uma medida de precaução voltei a conversar com Sir Bernard Spilsbury. Ele ficou satisfeito; a pneumonia ajudava, pois haveria algum líquido nos pulmões, exatamente o que aconteceria se o homem houvesse morrido enquanto flutuava em um mar agitado. Se a autópsia fosse realizada por alguém com a ideia preconcebida de que, provavelmente, a morte ocorrera por afogamento, havia pouca probabilidade de ser notada a diferença entre o

líquido nos pulmões, que já começavam a deteriorar, e a água do mar. Sir Bernard encerrou nossa conversa afirmando confiante: "Você não tem nada a temer de uma autópsia realizada na Espanha; para descobrir que este homem não morreu depois que um avião se perdeu no mar, seria preciso um patologista com a minha experiência — o que não existe na Espanha." Isso posto, providenciamos para que o corpo fosse conservado em uma geladeira até o momento em que estivéssemos prontos para utilizá-lo.

3 Operação Mincemeat Tratava-se de obter, agora, a aprovação geral para o esquema da operação. O primeiro passo, como em toda operação, consistia em achar um codinome. Excetuando-se o caso de algumas operações de grande envergadura, quando o próprio Primeiro-Ministro inventava o codinome, nos demais casos o codinome era escolhido em uma lista elaborada por nós e enviada a cada força armada e aos diversos comandos. Por isto, fui procurar na lista os codinomes destinados a serem utilizados pelo Almirantado; descobri que a palavra Mincemeat voltara a figurar na relação, depois de ter sido empregada em uma operação bem sucedida algum tempo atrás. Como o meu senso de humor tornara-se um tanto macabro, a palavra pareceu-me de bom agouro. Assim, nossa operação foi batizada como operação Mincemeat. O passo seguinte consistiu em determinar o local para onde enviar o corpo; escolhi Huelva como o melhor destino, desde que fosse possível fazer o corpo chegar lá. Isto porque sabíamos da existência de um agente alemão muito ativo em Huelva, dotado de excelentes contatos com certos espanhóis, tanto do governo como de outras atividades. Se o corpo chegasse a Huelva haveria uma probabilidade muito grande de que este agente recebesse qualquer documento ou objeto importante encontrado junto com o corpo. Se alguma circunstância impedisse isto, não tínhamos dúvida de que o agente, ou receberia cópias, ou receberia informações pormenorizadas. Também tínhamos certeza de que o agente alertaria seus superiores, em Madri, os quais

interceptariam os documentos em um escalão mais elevado. O nosso único receio era de que os espanhóis entregassem o corpo ao Vice-Cônsul inglês com tanta rapidez que ninguém pudesse interceptar nada. Mas a cooperação entre espanhóis e alemães era tão estreita que esse procedimento parecia bem improvável. Se houvesse um espanhol capaz de fazer essa proposta, não tenho dúvida de que vários outros interfeririam para evitá-la. Huelva apresentava a vantagem adicional de não se situar muito próxima de Gibraltar; não queríamos que os espanhóis enviassem o corpo para ser enterrado lá. A chegada a Gibraltar do corpo de um oficial que realmente não existia poderia dar origem a rumores que certamente chegariam à Alemanha, através de agentes alemães que recebiam informes dos inúmeros espanhóis que entravam e saíam todo dia de Gibraltar. Em seguida, dirigi-me ao Serviço de Hidrografia do Almirantado e formulei indagações sobre as condições meteorológicas e de marés em diversos pontos ao largo do litoral da Espanha, em diferentes épocas do ano. Continuávamos com sorte. A corrente marítima não nos ajudaria muito porque corria ao longo do litoral espanhol, mas o vento de sudoeste, predominante durante o mês de abril, empurraria tudo "para a praia". O Serviço de Hidrografia julgava que "um objeto" seria impelido para a praia; um corpo vestido com um Mae West sofreria com mais intensidade a ação do vento, se comparado com o objeto descrito por mim. Decidimo-nos por Huelva. Praticamente, nenhuma dúvida havia de que o corpo flutuaria até a praia; depois disto, o corpo seria entregue ao Vice Cônsul inglês para sepultamento. Conforme já afirmei, confiávamos em que a eficiência do agente alemão no local proporcionaria aos alemães os documentos encontrados ou, pelo menos, cópia deles. Este agente não desmereceu a nossa confiança.

Na medida em que nos aprofundávamos no estudo do ponto exato para a chegada de Mincemeat, verificamos que havia necessidade de decidirmos sobre o meio de transporte a ser utilizado. Não poderíamos jogar o corpo por causa do perigo de provocar ferimentos. Assim, sobravam três modos de colocar o corpo no mar: utilizando um submarino, utilizando um hidroplano, ou desviando temporariamente um dos navios de escolta de um comboio que passasse ao largo do litoral da Espanha. Dos três, o submarino era o que mais poderia aproximar-se da praia sem correr o risco de ser detectado. Por isto, obtive permissão do Vice-Chefe do Estado-Maior da Armada para discutir as possibilidades com o Almirante Barry, comandante da nossa flotilha de submarinos. O assunto seria abordado na base de planejamento experimental, com a finalidade de poder elaborar um plano completo a ser submetido à consideração dos Chefes de Estado-Maior. O Almirante Barry percebeu rapidamente as possibilidades da ideia e enviou-me para uma conversa preliminar com o seu chefe de estado-maior. Este decidiu que Mincemeat poderia ser transportado por um submarino que se dirigisse a Malta, pois eles costumavam transportar para aquela ilha artigos importantes, mas não muito volumosos. Examinamos o aspecto do transporte, para saber se o cadáver seria transportado em local no interior do submarino ou embaixo do convés. Apesar do tamanho do invólucro, com cerca de 2 metros de comprimento por 60 centímetros de diâmetro, o chefe do estado-maior achou que o volume viajaria no interior do submarino e seria retirado pela torre, na hora de ser depositado no mar. Esta solução facilitava o nosso problema, pois significava que precisaríamos apenas de um esquife hermeticamente fechado e não de um capaz de suportar a pressão da água, o que o tornaria mais pesado e de construção mais complicada. Restava o problema de saber se, depois de retirado da geladeira, o corpo permaneceria o tempo

necessário em um esquife simples sem sofrer decomposição excessiva, ou se haveria necessidade de se construir um esquife do tipo garrafa térmica. Mais uma vez voltei a consultar Sir Bernard Spilsbury. Ele foi de opinião que a temperatura seria pouco importante, se o corpo estivesse realmente congelado ao ser colocado no esquife. O importante era extrair do esquife a maior quantidade possível de oxigênio, pois era ele quem acelerava a decomposição. Aconselhou nos sobre o melhor método a ser utilizado, e que seria: colocar o contêiner em pé e enchê-lo com gelo seco; ao derreter, este se transformaria em gás carbônico, evitando a entrada do ar; em seguida, deveríamos colocar cuidadosamente o corpo no esquife, envolvendo-o também com gelo seco. Com o esquife dentro, o contêiner deveria ser bem fechado; restaria tão pouco oxigênio dentro que o grau de decomposição seria bem retardado. Se o corpo fosse encontrado logo após ser colocado no mar, apresentaria condições semelhantes às de um cadáver que houvesse passado alguns dias no mar. Providenciamos a confecção de um contêiner de chapas de aço, com parede dupla e lã de vidro entre as duas chapas. A tampa, também de parede dupla, ajustava-se sobre uma gaxeta de borracha, para vedação total, e era presa por 16 parafusos sextavados; havia uma chave de boca amarrada à tampa por uma corrente, e que ficava alojada na tampa quando não estivesse sendo usada. Havia um puxador em cada extremidade do contêiner, para facilitar o transporte, pois o volume pesaria 180 quilos quando completo. Para completar o relato desta fase dos preparativos, devo registrar que voltei ao Almirante Barry, mais tarde, e comuniquei que o plano estava em andamento; se obtivéssemos a aprovação final, gostaríamos que a operação fosse executada no fim de abril. Esta época também era favorável à ação do submarino, porque

estaríamos na fase da lua nova, o que dificultaria a identificação de observadores por ventura existentes no litoral. 0 Almirante decidiu que o submarino Seraph poderia ser utilizado na operação, retardando por 15 dias a sua partida para Malta e passando este período em patrulha na costa inglesa. Tivemos sorte na escolha do Seraph, pois o seu comandante, Tenente Jewelll, e a tripulação haviam participado de operações especiais relacionadas com os desembarques na África do Norte; apanhara o General Giraud, que fugira da prisão, e transportara o General Mark Clark até uma praia na África do Norte, onde ele estabelecera contato com os franceses, e o trouxera de volta. O projeto de "ordem de operações" que preparei para o comandante do submarino foi aprovado pelo Almirante Barry; por sugestão sua, o Tenente Jewelll foi convocado ao quartel-general da Flotilha de Submarinos e conversou comigo sobre toda a operação. Entreguei-lhe a "ordem de operações" assim redigida: OPERAÇÃO MINCEMEAT 1. Finalidade Fazer com que uma pasta contendo documentos chegue até a praia, o mais próximo possível de Huelva, na Espanha, de forma que se pense ser o fato resultado da perda de um avião no mar, quando a pasta estava sendo conduzida por um oficial inglês para o quartel-general das forcas aliadas na África do Norte. 2. Procedimento

Um cadáver, vestido com o uniforme de campanha de major dos Reais Fuzileiros Navais e envergando um Mae West, será transportado em um submarino, juntamente com uma pasta e um bote de borracha. O cadáver será embalado vestido e pronto (e enrolado em um cobertor para evitar atrito) em um contêiner cilíndrico hermeticamente fechado (exteriormente rotulado como "instrumento ótico"). O contêiner mede cerca de 2 metros de comprimento por 60 centímetros de diâmetro, sem saliências laterais. A extremidade a ser aberta está fixada por parafusos sextavados e conduz uma chave de boca acorrentada a ela. Ambas as extremidades dispõem de puxador desdobrável. Pode-se carregar o contêiner segurando em cada um dos puxadores, ou segurando apenas pelo puxador colocado na tampa; seria conveniente não utilizar, sozinho, o puxador da outra extremidade, uma vez que a chapa é muito fina para aguentar com todo o peso do volume. Cheio, o contêiner pesará cerca de 180 quilos. Em volta do cadáver e dentro do contêiner há gelo seco. Portanto, o contêiner só deve ser aberto no convés, pois o gelo seco produzirá gás carbônico. 3. Posição O corpo deve ser colocado na água o mais perto possível da praia, observadas as prescrições de segurança, e o mais próximo possível de Huelva, preferentemente a noroeste da foz do rio. Segundo o Serviço de Hidrografia, as correntes da região circulam ao longo do litoral; deve ser feito todo esforço para colocar o corpo na água na ocasião em que o vento soprar do mar para a terra. Nesta época do ano predominam os ventos de sudoeste na região. Em anexo, a mais recente tabela de marés fornecida pela Superintendência de Marés.

4. Entrega do volume O volume será transportado por rodovia até o porto de embarque e poderá ser entregue no dia que for determinado, de preferência o mais próximo possível do dia da partida. Na mesma ocasião a pasta será entregue ao comandante do submarino. O bote de borracha constituirá um volume separado. 5. Lançamento do corpo Quando o corpo for retirado do esquife, será necessário amarrar no cinto da capa impermeável a corrente que se acha presa à pasta. A corrente é do tipo usado por baixo da capa, circundando o tórax e saindo pela manga; as pontas dispõem de presilhas, uma para ser presa na alça da pasta e a outra em torno do tórax. Esta volta é que deveria estar amarrada no cinto da capa impermeável, para dar a impressão de que o oficial a retirara do tórax para viajar mais confortavelmente sem, entretanto, desprendê-la do corpo, seja para não esquecer a pasta, seja para evitar que ela caísse no chão do avião. Depois disso o corpo deverá ser depositado na água, bem como o bote de borracha. O bote seria empurrado pelo vento a uma velocidade diferente do corpo, por isto não era muito importante a posição exata do bote; conviria que fosse colocado perto do corpo mas, se possível, não muito junto. 6. Difusão em Gibraltar Foram informados da operação o F.O.I.C.1 de Gibraltar e seu S.O. (I.)2. Proibido difundir o assunto para qualquer outro integrante da guarnição.

7. Comunicações Se a operação for executada com sucesso, deverá ser transmitido "MINCEMEAT completo". Se a transmissão partir de Gibraltar, o S.O. (I.) enviará mensagem pessoal para o D.N.I.3 Para transmissão partindo de outra origem, seguir as prescrições baixadas pelo F.O.S.4 8. Cancelamento Se a operação for cancelada, será transmitida a mensagem "cancelar MINCEMEAT". Neste caso, o corpo e o contêiner deverão ser afundados em águas profundas; devido à possibilidade de o contêiner flutuar, deverá ser lançado com um peso, ou perfurado para permitir a entrada da água do mar. Neste último caso é preciso ter cuidado para que o corpo não saia do contêiner. A pasta será devolvida ao S.O. (I.) em Gibraltar, com instruções para incinerar o conteúdo sem abri-la, se isto não puder ser feito antes. O bote de borracha também será entregue ao S.O. (I.). 9. Anulação Se a operação tiver que ser anulada, será transmitida, com a maior brevidade possível, a mensagem "anulada MINCEMEAT" (ver número 7, acima). 10. Cobertura Este aspecto tem grande importância. Até que a operação seja realmente executada, admite-se que o rótulo do contêiner, Instrumentos óticos", proporcionará cobertura suficiente. Depois de completada a operação, sugere-se

utilizar como cobertura a tentativa de revelar um agente alemão muito ativo naquela região, proporcionando aos espanhóis, através da operação, provas suficientes para expulsá-lo do país. A tripulação deve ser doutrinada sobre a importância de revelar o agente alemão, bem como sobre o fato de que qualquer "vazamento" que possa ocorrer comprometerá a capacidade de atuação dos espanhóis neste caso; por outro lado, a tripulação não poderá se interessar pelo resultado da operação, uma vez que nossos contatos com os espanhóis são totalmente secretos, pois, do contrário, eles não poderiam agir contra o alemão. Na realidade, é absolutamente indispensável que os espanhóis e os alemães aceitem os documentos como originários do previsto no parágrafo 1. Se desconfiarem que os documentos foram "plantados", podem surgir consequências funestas para nós. (a) E. E. S., MONTAGU Capitão de Fragata, Res. 31/3/43 Em seguida, discutimos a operação, descendo aos seus mínimos pormenores. Enquanto tudo isto sucedia, ocupávamo-nos de coisas mais interessantes. Que documento haveríamos de fornecer para impressionar os alemães a ponto de fazê-los alterar seus planos e o dispositivo de suas forças? De que forma poderíamos dar ao documento um cunho tão convincente a ponto de levar os alemães a considerá-lo verdadeiro? PoohBah estava certo quando falou de "... detalhe comprobatório, destinado a dar verossimilhança artística a uma história que, de outra forma, seria inútil e inconvincente".

________________ 1 Flag Officer in Charge (almirante ou vice-almirante chefe). 2 Staff Officer, Intelligence (agente de inteligência/informação do Estado-Maior). 3 Director of Naval Intelligence (diretor de inteligência naval. 4 Flag Officer, Submarines (Almirante Barry).

4 O documento vital Uma coisa parecia-me cristalinamente clara: se a finalidade do documento era iludir os alemães a ponto de levá-los a tomar providências, então o documento precisaria ser realmente de alto nível; os alemães não agiriam baseados em uma indiscrição ou "vazamento" de algum oficial superior. Mesmo uma transgressão das regras de segurança na correspondência entre generais de brigada, contra-almirantes ou brigadeiros seria insuficiente para acionar os alemães. Para que o Estado-Maior germânico se convencesse de que o nosso próximo objetivo não era a Sicília, o que contrariava todas as probabilidades, teria que ter diante de si um documento que houvesse circulado entre oficiais que deveriam, por dever de ofício, conhecer nossos planos verdadeiros, que não poderiam estar equivocados de forma alguma, nem poderiam estar sendo vítimas de um plano de cobertura. Para valorizar a nossa operação, eu precisava ter um documento escrito por alguém bastante conhecido pelos alemães — alguém que eles soubessem estar realmente "por dentro" do nosso planejamento estratégico. Dentro desta ordem de ideias, propus que o General Sir Archibald Nye, Vice-Chefe do Estado Maior Imperial, escrevesse uma carta para o General Alexander (que comandara um exército na Tunísia, subordinado ao General Eisenhower), no comando do 18° Grupo de Exércitos. A carta deveria ter o estilo de correspondência entre velhos amigos e empregar um tom cordial, mais ou menos assim: 

"Olhe, companheiro, espero que você compreenda que nós entendemos os seus problemas, mas nós também temos os nossos. O CA.G.S. teve que rejeitar alguns dos seus pedidos, embora você se empenhasse para vê-los atendidos. Há motivos que não permitem que você receba, agora, aquilo que solicitou; os motivos são os seguintes: ..."  E assim prosseguiria, o tipo de carta amistosa que fornece dados e esclarecimentos que não podem ser registrados na correspondência oficial. Este era o tipo de carta, e o único tipo, que seria capaz de informar aos alemães, de forma convincente, de que o nosso próximo objetivo não era a Sicília e que, apesar disso, poderia ser encontrada em poder de um oficial, em vez de num saco de correspondência cheio de documentos oficiais enviado do território metropolitano para nosso exército no exterior. Eu visava a um objetivo elevado — e tinha que fazer isso. Eu esperava algo como uma explosão — e consegui. Na realidade, muita gente, mesmo entre os mais capazes e os mais eficientes, não conseguia entender o que se esperava do meu tipo de trabalho; para entendê-lo, havia necessidade de um tipo especial de abordagem e um tipo peculiar de mentalidade, capaz de olhar para um quebracabeças por vários ângulos diferentes ao mesmo tempo. Você é um oficial de Informações inglês; do outro lado, existe um oficial de Informações inimigo, digamos em Berlim (como na última guerra), e acima dele acha-se o Comando das Forças Armadas. O que você pensa, como inglês e enxergando através de olhos britânicos, que possa ser deduzido do documento não tem a menor importância. O que importa é o que pensará o oficial de Informações do inimigo, com a sua mentalidade germânica; o que importa é o que ele deduzir do documento. Portanto, se você deseja que ele pense tal e tal coisa, deve fornecer-lhe algo que faça com que ele (e não você) pense daquela forma. Mas ele pode ficar em dúvida e desejar confirmação; você tem que imaginar quais pedidos de busca ele fará (e

não que investigações você faria) e fornecer-lhe as respostas que o satisfaçam. Em outras palavras, você tem que lembrar que um alemão não pensa nem reage da mesma forma que um inglês; você tem que se colocar dentro da mentalidade dele. Além disso, você não pode esquecer do comando ao qual o oficial de Informações envia seus relatórios e a quem precisa convencer, a fim de que tenha sucesso a operação que você planejou. O Comando alemão não conhece todas as dificuldades dos aliados — por exemplo, não sabe que você enfrenta uma escassez de embarcações de desembarque; por isto, pode estar em condições de acreditar na viabilidade de uma operação ofensiva que o nosso Estado-Maior sabe que não pode ser executada. Você não pode esquecer que o seu plano tem que iludir o inimigo e não o nosso Estado Maior. Mas não são todos que conseguem compreender e aplicar estes conceitos. Foi aí que enfrentamos dificuldades. Antes de revelá-las, devo dizer algumas palavras sobre "alvos de cobertura" e "planos de cobertura". Se você quer evitar que haja uma concentração inimiga sobre o alvo escolhido para o nosso desembarque, você deve tentar desviar as forças e o esforço defensivo do inimigo para um outro lugar; se possível, o inimigo deve se convencer de que você não atacará o alvo real, mas que atacará um outro alvo qualquer — isto é, que você atacará o que chamamos de "alvo de cobertura". Conforme já expliquei, é quase certo que haverá algum "vazamento" a respeito de uma operação que está sendo planejada, e que as medidas de segurança estabelecidas com a finalidade de evitar que tais "vazamentos" revelem o alvo verdadeiro podem, às vezes, ser adaptadas para atingir uma outra finalidade: ajudar a divulgar o alvo de cobertura. Por exemplo, se houvesse ocorrido algum "vazamento" a respeito da operação que planejávamos, digamos contra as ilhas Lofoten, e o inimigo soubesse da encomenda de

capacetes para sol, o "vazamento" poderia levar o inimigo a concluir que o alvo se situava em alguma região tropical. Se os navios designados para o transporte das tropas recebessem mapas e outros dados relativos ao alvo de cobertura escolhido (digamos Dacar), a integração dos diversos "vazamentos" e outros fatores poderiam levar o Serviço de Informações alemão a tirar as conclusões que desejávamos. O melhor alvo de cobertura será aquele que se situar tão distante do alvo real, que este ficará a salvo de qualquer medida defensiva adotada pelo inimigo. Um exemplo exagerado: se você vai invadir a África do Norte e consegue convencer o inimigo que vai desembarcar na Noruega, qualquer medida defensiva extra implantada na Noruega provavelmente não poderá ter qualquer interferência com a sua operação real. Na guerra atual, porém, o alvo de cobertura pode ver-se na contingência de ter que ficar situado na mesma região do alvo verdadeiro; com isto, não será possível desviar todo o conjunto defensivo do inimigo. Na época do desembarque na África do Norte em 1942, por exemplo, se houvéssemos escolhido como alvo de cobertura um desembarque na retaguarda de Rommel, digamos em Tobruk, — e se houvéssemos conseguido convencer os alemães — poderíamos ter desviado do alvo real algumas unidades terrestres e, talvez, a Luftwaffe, mas os submarinos alemães seriam atraídos para o estreito de Gibraltar, por onde teriam que passar os comboios que realmente transportavam tropas para a operação verdadeira. Portanto, muitas vezes há necessidade de conciliar o que seria um alvo de cobertura perfeito com aquilo em que é possível fazer o inimigo acreditar. Relacionando toda esta explicação com o problema que enfrentava a nossa equipe de Informações, para nós tratava-se de tentar convencer os alemães de que não iríamos atacar a Sicília — alvo que deveria ser evidente para

eles — e de persuadi-los a deslocar suas forças para outro lugar qualquer, gastando tempo e esforço na implementação da defesa de outras regiões.

O quadro da situação, visto do lado aliado, era o seguinte: o General Eisenhower dispunha de um exército baseado na parte francesa do norte da África e o Marechal de Campo Sir Henry Wilson dispunha de outro exército baseado no Egito; o conjunto dominava todo o litoral da África do Norte. Sabíamos que se pretendia usar estes dois exércitos em uma única operação. Os motivos para isto eram muitos e levaria muito tempo para explicá-los pormenorizadamente; em síntese, basta dizer que necessitaríamos de todas as forças disponíveis para atacar as defesas costeiras da Sicília e prosseguir subindo pela península italiana. Esta operação engajaria uma grande quantidade de unidades e de aviões; a escassez de embarcações de desembarque e a dificuldade para reunir o número necessário de navios de transporte e navios de guerra, tanto para os desembarques como para o prosseguimento das operações, impediam a realização simultânea de duas campanhas. Observado com o enfoque dos alemães, o quadro da situação era bem diferente. De acordo com as Informações que possuíam, os aliados poderiam utilizar o exército de Eisenhower no Mediterrâneo ocidental para atacar o sul da França, embora esta operação impusesse a conquista prévia da Sicília, Sardenha e Córsega e representasse uma operação arriscada, pois a Itália constituía uma base excelente para ataques de flanco contra a linha de suprimento dos aliados. Por outro lado, este exército, ou o baseado no Egito, poderia ser utilizado para atacar a Itália; se o exército ocidental fosse lançado contra a Itália, com

toda certeza precisaria, antes de mais nada, conquistar a Sicília. Por último, o exército oriental poderia ser empregado para invadir a Grécia e progredir através dos Bálcãs. Não havia motivo para acreditar que os alemães tinham conhecimento da nossa escassez de embarcações de desembarque; era bem possível que eles pudessem ser induzidos a acreditar que realizaríamos duas operações, uma no Mediterrâneo ocidental, com o exército do General Eisenhower, e outra no Mediterrâneo oriental, com o exército de Sir Henry Wilson. Quando a nossa equipe estudou a dissimulação que pretendia fazer com a operação Mincemeat, raciocinamos do seguinte modo: como o grosso das forças aliadas encontra-se na Tunísia, seria inútil tentar convencer os alemães de que vamos embarcá-las em comboios para o Mediterrâneo oriental, atravessando o estreito bem próximo dos aeródromos germânicos na Sicília. Logo, para que os alemães acreditem que essas forças serão empregadas contra o alvo de cobertura, e preciso que este se situe a oeste da Itália. A Sardenha já fora escolhida como alvo de cobertura, para fingir que íamos desbordar a Sicília e conquistar a Sardenha e a Córsega, o que nos daria a opção de atacar, seja o litoral da Itália, seja o sul da França. Nós não dependíamos de uma série de "vazamentos", que poderiam ou não chegar até os alemães, pois íamos usar um único documento; por isto, pareceu-me que poderíamos ir mais longe. Senti que havia possibilidade de convencer os alemães de que Sir Henry Wilson, com o exército comandado pelo General Montgomery, não iria tomar parte na mesma operação do General Eisenhower; iria dirigir uma invasão da Grécia e progressão pelos Bálcãs. Não parecia existir motivo algum que impedisse a tentativa de levar os alemães a acreditarem em uma operação dupla, com um ataque em cada extremidade do Mediterrâneo. Se conseguíssemos convencê-los disto, faríamos com que realizassem uma dispersão de forças muito mais ampla do

que a obtida através de um único alvo de cobertura na Sardenha. Isto posto, propus que a carta ao General Alexander revelasse a realização de duas operações: a sua, sob o comando do General Eisenhower, contra a Sardenha e, talvez, a Córsega, e a outra, sob o comando do Marechal de Campo Sir Henry Wilson, contra a Grécia. Sugeri também que a carta revelasse que íamos tentar convencer os alemães de que invadiríamos a Sicília. O que me pareceu interessante nesta ideia é que, se houvesse um "vazamento" real a respeito do nosso plano verdadeiro, os alemães pensariam que se tratava de um "vazamento plantado" fazendo parte da cobertura que havia sido mencionada na carta. Se eles engolissem a dissimulação que íamos lançar através da carta, não acreditariam em informe algum, neste caso absolutamente verdadeiro, sobre a invasão da Sicília. A proposta foi encaminhada aos Chefes de Estado-Maior; aí começaram as dificuldades. Pouca gente viu a proposta, uma vez que os "canais de rotina" foram desbordados; mesmo assim, enquanto o plano da operação e o rascunho da carta iam e vinham, entre nós e os Chefes de EstadoMaior, cada pessoa que tomava conhecimento do assunto, e se julgava conhecedora da mentalidade alemã, apresentava uma ideia brilhante. Uma dizia ser extremamente perigoso levar a coisa a um escalão tão elevado, propondo que a carta fosse escrita em nível mais baixo e apresentasse apenas uma data falsa para a invasão; outra achava que jamais iludiríamos os alemães e acabaríamos revelando o ataque contra a Sicília; outra opunha-se a mencionar a Sardenha como o suposto alvo real porque, se os alemães descobrissem a dissimulação, seriam levados a concluir pela Sicília como alvo real.

Talvez o feito mais destacado de toda operação tenha consistido em convencer os nossos chefes de que estávamos diante de uma oportunidade que não se repetiria e de que precisávamos jogar alto, caso desejássemos obter um grande sucesso. Ao recordar o passado, não tenho dúvida que iludir o Alto Comando alemão não representou nada diante da dificuldade para persuadir o Alto Comando inglês de que isto poderia ser feito. Felizmente, no fim de algum tempo o próprio Sir Archibald Nye deixou-se cativar pelo assunto; ele tentara escrever uma carta, por livre e espontânea vontade, baseada em rascunho que lhe apresentei. Fomos obrigados a explicar-lhe que, embora a carta mencionasse adequadamente os alvos de cobertura, tratava-se de documento inconvincente. Era uma carta muito seca, o tipo de documento que seria enviado pelo malote oficial; jamais haveria necessidade de utilizar um oficial como portador da mesma. Sir Archibald sentiu-se estimulado pelo desafio e produziu uma carta verdadeiramente estupenda. Para ajudar na dissimulação, no caso de os alemães ouvirem algo sobre Husky (o codinome verdadeiro de invasão da Sicília), empregou esta palavra como codinome da operação contra a Grécia e utilizou Brimstone, um codinome falso, para a operação contra a Sardenha. Eis o teor da sua carta:  Telefone: Whitehall 9400 Chefe do Estado-Maior Imperial  Ministério da Guerra  Whitehall Londres, S. W. 1 23 de abril de 1942 PESSOAL E SECRETO

Meu caro Alex, Aproveito a oportunidade de enviar-lhe uma carta pessoal, em mãos de um dos oficiais de Mountbatten, para revelar o que está por trás da nossa troca recente de telegramas a respeito de operações no Mediterrâneo e seus respectivos planos de cobertura. Você deve ter sentido que as nossas decisões foram um tanto arbitrárias, mas posso assegurar-lhe que a Comissão de Chefes de Estado-Maior levou em consideração, de fato, tanto as suas recomendações como as apresentadas por Jumbo.1 Informes recentes revelaram que os boches andaram reforçando e ampliando as defesas da Grécia e de Creta; por isto, o C.I.G.S.2 considerou insuficientes as forças disponíveis para o assalto. Os Chefes de Estado-Maior concordaram em reforçar a 5ª Divisão com uma brigada, para o ataque contra a praia ao sul do cabo ARAXOS; reforço idêntico será dado à 56ª Divisão, em KALAMATA. Estamos reunindo as unidades para o embarque. Jumbo Wilson propôs escolher a Sicília como alvo de cobertura para Husky, entretanto, já a havíamos escolhido para cobertura da operação Brimstone. A Comissão de Chefes de Estado-Maior voltou a examinar o assunto exaustivamente e chegou à conclusão de que, devido aos preparativos na Argélia, à instrução anfíbia que será realizada no litoral da Tunísia e ao pesado bombardeio aéreo que será desencadeado para neutralizar os aeródromos na Sicília, deveríamos manter o plano original de utilizar a ilha como cobertura para Brimstone. Na realidade, temos grande probabilidade de fazer com que eles pensem que vamos invadir a Sicília; trata-

se de um objetivo óbvio e que seria motivo para preocupação de nossa parte. Por outro lado, os Chefes de Estado-Maior acharam que não haveria muita possibilidade de convencer os boches de que nossos preparativos no Mediterrâneo oriental também visavam à Sicília. Por este motivo, disseram a Wilson que seu plano de cobertura deveria contemplar alvos na região como, por exemplo, o Dodecaneso. Como as nossas relações com a Turquia agora são mais estreitas, os italianos devem estar preocupados com aquelas ilhas. Acho que você concordará com estes argumentos. Sei que você anda muito atarefado e que não tem tido muito tempo para conversar com Eisenhower sobre operações futuras. De qualquer maneira, se você desejar apoiar a proposta de Wilson, avise-nos logo, porque não poderemos adiar o assunto por muito tempo. Lamento muito não termos podido atender ao seu pedido sobre o novo comandante da Brigada de Guardas. O seu escolhido sofreu uma gripe violenta e levaria algumas semanas para poder voltar ao serviço ativo. Entretanto, não duvido das qualificações de Foster; saiu-se muito bem no comando de uma brigada aqui na Inglaterra e, creio, era o melhor homem disponível no momento. Você deve estar tão aborrecido quanto nós a respeito da questão das medalhas de combate e Purple Hearts. Todos concordamos com você; não desejamos ofender nossos amigos americanos, mas há outros aspectos que devem ser considerados. Se as nossas tropas em serviço num determinado teatro de operações tiverem que receber condecorações extras, só porque os americanos também estão recebendo, vamos enfrentar muito descontentamento entre as tropas que estiverem

servindo em outros teatros — e até combatendo com mais ardor. Na minha opinião, deveríamos agradecer aos americanos pela gentileza do oferecimento, mas dizer-lhes com firmeza que isto nos traria problemas e que lamentamos recusar o oferecimento. O assunto acha-se em pauta para a próxima reunião conjunta; creio que teremos uma decisão para breve. Desejo-lhe muita sorte. Do amigo Archie Nye Ao General  Sir Harold R. L. G. Alexander  G.C.B., C.S.I., D.S.O., M.C. Quartel-General  18° Grupo de Exércitos O documento não poderia ter sido mais perfeito; desenvolvia o esquema que lhe fora apresentado, mas com um estilo próprio de quem privava da amizade pessoal de seus pares. Apenas por dedução, pois o assunto era mencionado superficialmente, poderiam os alemães concluir sobre uma operação no Mediterrâneo oriental, envolvendo um desembarque na Grécia; por outro lado, ficava claro que desejávamos que os alemães pensassem que a operação no Mediterrâneo ocidental seria contra a Sicília (o que tornava evidente que aquele não poderia ser o alvo real). Tudo isto era dito sem a fraseologia "oficial", junto com assuntos estritamente pessoais, escritos no restante da carta. Aí estavam os ingredientes que tornavam natural a remessa do documento por mensageiro e não pelo correio oficial. Eu ainda tinha duas objeções. A primeira relacionava-se com o desejo de assegurar-me que os alemães recebessem um alvo perfeitamente definido como sendo o nosso

objetivo ocidental; conhecia os alemães e sabia que eles precisavam de algo em que se fixar. Entretanto, os Chefes de Estado-Maior negaram autorização para que a Sardenha fosse mencionada na carta; julgaram que isto atrairia a atenção sobre a Sicília, caso os alemães descobrissem a dissimulação. Felizmente, depois que o Primeiro-Ministro percebeu toda a trama de forma completamente realística, conforme já relatei, consegui incluir uma referência jocosa à Sardenha em uma outra carta redigida por nós e assinada por Lord Louis Mountbatten — e que, conforme veremos, teve grande valor. A segunda objeção era menos séria. Eu queria incluir na carta algo que atraísse a mente do leitor alemão por ser coerente com suas próprias ideias. Na minha opinião, uma pessoa de raciocínio normal fica mais disposta a acreditar na veracidade de um documento quando parte dele contém algo que ela já saiba. Achei que a melhor forma de colocar uma referência deste tipo seria incluir na carta uma zombaria com o General Montgomery, capaz de sensibilizar a falta de humor dos alemães. Sugeri que Sir Archibald indagasse ao General Alexander: "O que há com Monty? Faz uma semana que ele não solta nenhuma ordem do dia." Pouco antes da data da carta o General Montgomery expedira uma série de ordens do dia, com a finalidade de estimular seus subordinados, o que despertara críticas entre vários comandantes. Por motivos que jamais cheguei a compreender, porém, os Chefes de Estado-Maior recusaram categoricamente minha zombaria. Admito que a piada não tinha graça e que a recusa não causaria prejuízo algum, mas tinha certeza que os alemães registrariam e ficariam satisfeitos com a anedota. A carta de Sir Archibald foi datilografada em papel de sua repartição, endereçada a "Meu caro Alex" e assinada pelo próprio; foi expedida lacrada e em dois envelopes, como era a regra para documentos secretos e pessoais.

O documento vital estava pronto; era sinal de sorte ter a data do dia de São Jorge. ________________ 1 Apelido do marechal de campo Sir Henry Wilson, Comandante em chefe, Oriente Médio. 2 Chief of the Imperial General Staff (Chefe do Estado Maior Imperial).

5 Major Martin, dos Reais Fuzileiros Navais Enquanto preparávamos o documento, que denominávamos de "carta vital", tínhamos que pensar no "homem" que haveria de conduzi-la porque, sem dúvida, a primeira pergunta que seria feita em Berlim teria que ser: "Como é que a carta chegou a Huelva?" É claro que se tratava do tipo de carta para ser levada por um oficial e não para ser enviada por malote. De qualquer maneira, o oficial de Informações alemão indagaria: "Era conduzida por um oficial? Ele se parecia com um oficial de verdade?" Portanto, nossa primeira providência consistia em demonstrar que o cadáver era de um oficial. Não poderíamos contar com um uniforme usado porque, seja por motivos de segurança, seja para cumprir a minha promessa de ocultar a identidade do corpo, era indispensável que utilizássemos um uniforme novo. Inicialmente, não pensáramos em outra coisa a não ser que o cadáver seria o de um oficial do Exército; acho que isto havia entrado na nossa cabeça pelo fato de ele conduzir uma carta do Vice-Chefe do Estado Maior Imperial para o comandante de um exército e também pelo fato de o Exército contar com um efetivo enorme durante a guerra. Entretanto, depois de algum tempo resolvemos não colocá-lo no Exército. Houve inúmeras razões para chegarmos a esta decisão, mas a principal, e preponderante, relacionava-se com a "distribuição" de telegramas e relatórios que haveriam de circular entre Londres e o adido respectivo em Madri, depois que o corpo chegasse à praia espanhola. Normalmente, os telegramas e

mensagens chegam à repartição competente da força armada envolvida e são distribuídos, automaticamente, para os oficiais e seções encarregados do assunto contido nos textos; esta distribuição se processa em obediência a listas de distribuição devidamente aprovadas. Assim, qualquer telegrama que tratasse da descoberta de um cadáver na praia espanhola seria encaminhado à força armada do morto e automaticamente distribuído para determinadas pessoas, as quais também receberiam os telegramas seguintes que abordassem o assunto. Dentro do sistema adotado no Almirantado, eu poderia conseguir, por interferência do D.N.I., evitar a distribuição automática e fazer com que todas as mensagens decorrentes da nossa operação fossem encaminhadas exclusivamente para mim — devo esclarecer que esta distribuição exclusiva não provocaria a menor suspeita. No sistema adotado no Ministério da Guerra não era fácil conseguir uma distribuição exclusiva, seja só para mim, seja só para um colega do Ministério da Guerra. Por isto decidimos que o cadáver não seria "incorporado" ao Exército, devendo ficar na jurisdição do Almirantado; imediatamente nos vimos diante de problemas que não havíamos imaginado. Não seria fácil transformar o cadáver em oficial do Corpo da Armada; um oficial do Exército poderia realizar o voo que desejávamos, de Londres para um quartel-general na África do Norte, trajando uniforme de campanha, mas um oficial de Marinha teria que usar o uniforme do dia — acontece que o uniforme de campanha pode ficar folgado no corpo, mas um uniforme de marinheiro tem que ser feito sob medida. Mentalizamos rapidamente a cena horrível da alfaiataria Gieves mandando um homem para tomar as medidas do cadáver e abandonamos a ideia. A outra única possibilidade de manter este "oficial" dentro da jurisdição naval seria incorporá-lo aos Reais Fuzileiros Navais; isto solucionaria o problema do uniforme,

mas geraria outros. Em primeiro lugar, confiávamos que, em face do enorme efetivo do Exército, nenhum oficial espantar-se-ia por ouvir a notícia da morte de um outro oficial da sua unidade e que nem chegara a conhecer; mesmo durante a guerra, o efetivo dos fuzileiros navais era tão pequeno, que os oficiais se conheciam entre si — ou, pelo menos, sabiam da existência de seus pares. Em segundo lugar vinha a dificuldade de obter uma fotografia. Por vários motivos não tínhamos, nem poderíamos obter, qualquer fotografia do jovem cujo cadáver estávamos utilizando, principalmente uma fotografia que se adaptasse à carteira de identidade da sua nova personalidade. No Exército os oficiais não levam carteira de identidade com retrato durante viagem ao exterior, mas os fuzileiros navais levam. Discutimos estes problemas em profundidade; compreendemos logo o perigo decorrente do pequeno efetivo de oficiais fuzileiros navais e percebemos que se os espanhóis enviassem o corpo para ser enterrado em Gibraltar, aumentaria muito o risco que havíamos aceito para o caso de o corpo pertencer a um oficial do Exército. Por fim, decidimos que, tendo em vista a distância entre Huelva e Gibraltar, poderíamos aceitar um risco maior, decorrente da condição do cadáver pertencer a um fuzileiro. Decidimos também enfrentar a dificuldade de obter uma fotografia adequada, só que neste caso não previmos o grau de dificuldade que haveríamos de encontrar. Inicialmente, experimentamos tirar fotografias do cadáver, no tamanho adequado; o fracasso foi total. Pessoas vivas costumam criticar os fotógrafos dizendo: "Parece que estou morto nesta fotografia". A crítica pode ser justa ou injusta, mas desafio que alguém tire a fotografia de uma pessoa já morta e consiga torná-la parecida com alguém vivo. É inútil tentar descrever como se parece com um morto a fotografia de uma pessoa morta.

Começou, então, uma busca febril de um "sósia" do cadáver — ou de alguém suficientemente parecido que permitisse que uma fotografia de má qualidade tivesse alguma semelhança com o que deveria ter sido a fisionomia do cadáver, quando ainda em vida. A dificuldade era enorme; embora julgássemos que a fisionomia do cadáver era a de um rosto comum, não conseguíamos achar o homem que procurávamos. Todos nós andamos vários dias olhando fixamente para quem quer que viesse ao nosso encontro e que pudesse ser persuadido, por qualquer motivo, a se deixar fotografar. Por fim, resolvemos pedir a um jovem oficial que trabalhava no N.I.D. (Divisão de Informações Navais) que vestisse uma jaqueta do uniforme de campanha e se deixasse fotografar — não lembro qual foi a desculpa que apresentei. Conforme eu previra, o resultado não foi muito bom, mas achamos que havia alguma semelhança, talvez por causa da má qualidade da foto. De repente fomos bafejados pela sorte. Em uma reunião para tratar de assunto completamente diferente, eis que vejo, sentado na minha frente, alguém que podia passar por irmão gêmeo do cadáver; nós o convencemos imediatamente a se deixar fotografar e removemos o obstáculo que enfrentávamos.

Antes de transformar o cadáver em oficial era preciso dar-lhe um nome e um posto. Senti que um oficial pouco graduado dificilmente receberia a missão de conduzir uma carta tão importante como o nosso documento vital; também havia muitos motivos para que ele não fosse um oficial muito graduado. O principal deles era ser o nosso cadáver jovem demais para já haver atingida p topo da hierarquia, a não ser que houvesse praticado tais atos de

bravura que, por certo, seus pares pelo menos teriam ouvido falar dele. Decidimos fazê-lo capitão, comissionado como major; em seguida, pus—me a estudar o Almanaque da Marinha, na parte referente aos oficiais fuzileiros navais, até que encontrei um grupo com mais ou menos o mesmo posto e todos com o mesmo sobrenome: "Martin". Parecia-me haver uma vantagem em um grupo deste tipo. Se a morte de um "Major Martin" provocasse alguma discussão na sala de armas de algum navio, sempre haveria a esperança de que os presentes não conhecessem todos os Martins dos Reais Fuzileiros Navais — ou que, se alguém conhecesse todos, pudessem admitir a possibilidade de erro na letra inicial, divulgada ao invés do nome inteiro, e ficassem em dúvida se deveriam escrever indagando, ou se deveriam enviar pêsames. Também poderia não acontecer nada disto (no que me concerne, os Martins que conhecia eram irmãos), mas; tratava-se de mais uma precaução contra um risco tique não parecia muito grave — evidentemente, sempre haveria algum risco, qualquer que fosse o nome dado ao cadáver. Depois, acrescentei um nome corriqueiro, "William", e mediante aprovação do Comandante Geral dos Reais Fuzileiros Navais, que concordou em aceitá-lo na corporação, o cadáver transformou-se no "Capitão (comissionado Major) William Martin, dos Reais Fuzileiros Navais". Por último, tomei as providências adequadas para o caso de ser feita alguma indagação ao Comando Geral dos Fuzileiros. Eu tinha uma carteira de identidade em branco e comecei a usá-la dentro do bolso da calça para ver se ela adquiria o aspecto de uma carteira usada. Embora isso me desse trabalho, o envelhecimento da carteira era muito lento; tive uma outra ideia. Decidi que o Major Martin havia perdido a carteira de identidade original e recebera uma nova. Obtive uma carteira em branco, preguei a foto, preenchi os dados e assinei pelo Major Martin; fui à repartição competente e consegui que ela fosse expedida

com data de 2 de fevereiro de 1943, "em substituição à de nº 09650, perdida" — era o número da minha carteira de identidade, o que ajudaria a diminuir as complicações, caso houvesse alguma investigação — e consegui que fosse devidamente carimbada. Na carteira, onde estava "navio", decidi que o Major Martin servia no Quartel-General de Operações Combinadas, por motivos que explicarei depois; sem nenhum motivo especial, escolhi Cardiff como local de nascimento. Pronta a carteira, resolvi envelhecê-la convenientemente, utilizando o mesmo processo do bolso da calca. Estavam estabelecidas as bases da personalidade do Major Martin; quem quer que achasse seu corpo poderia identificá-lo pela carteira de identidade. Mas eu tinha certeza de que os alemães em Huelva, Madri ou Berlim haveriam de querer saber por que o Major Martin se dirigia para a África do Norte; se pudéssemos deixá-los encontrar indícios que respondessem a esta pergunta, aumentaria a credibilidade da "carta vital". Por que estaria um oficial fuzileiro naval voando para a África do Norte? Que circunstâncias justificavam o fato de o Vice-Chefe do Estado-Maior Imperial ter conhecimento desta viagem? Por que confiara a este oficial uma carta tão importante? Depois de muito meditar, encontrei um motivo que a nossa equipe julgou plausível. Montava-se uma operação anfíbia contra um litoral defendido; isto implicaria no emprego de embarcações de desembarque, assunto que poderia requerer a assessoria de um perito. O Major Martin poderia ser este perito; resolvemos fornecer-lhe um documento que confirmasse a sua especialidade. Assim, redigi uma carta a ser assinada por Lord Louis Mountbatten, Chefe de Operações Combinadas, endereçada ao Almirante Sir Andrew Cunningham, comandante da esquadra do Mediterrâneo. Eis o texto:

Ao responder, mencione: S. R. 1924/43 Quartel-General de Operações Combinadas 1 A Richmond Terrace Whitehall, S.W. 1 21 de abril de 1943 Prezado Almirante de Esquadra Prometi ao Vice-Chefe do Estado-Maior Imperial que o Major Martin obteria do senhor um meio para entregar a carta que leva para o General Alexander. Como contém assunto muito urgente e muito "quente", além de algumas observações que não podiam chegar ao conhecimento de outras pessoas no Ministério da Guerra, seu texto não pôde ser transmitido pelo telégrafo. Tenho certeza de que posso contar com o senhor para fazê-la chegar ao destinatário em segurança e rapidamente. Acho que Martin é o homem que deseja. Ele parece calmo e tímido, mas realmente é um perito na sua especialidade. Estava mais certo do que nós sobre o provável desenrolar dos acontecimentos em Dieppe e está perfeitamente atualizado com as experiências com as novas embarcações e equipamentos lá na Escócia. Solicito enviá-lo de volta logo depois da realização do assalto. Ele pode trazer algumas sardinhas — aqui, elas estão "na moda"! Sinceramente  Louis Mountbatten Ao Almirante de Esquadra Sir A. B. Cunningham G.C.B., D.S.O. Comandante da Esquadra do Mediterrâneo 

Quartel-General Aliado  Argel Fiquei muito satisfeito com esta carta. Explicava por que o Major Martin estava de posse da "carta vital" e por que ela não fora expedida pelos canais oficiais. Também esclarecia o motivo da viagem do Major Martin. Como o PrimeiroMinistro era de opinião de que pouco interessava o fato de os alemães concentrarem-se sobre a Sicília caso a nossa operação fracassasse, a carta pôde fazer referência à Sardenha. A referência estava implícita na zombaria de mau gosto, mas eu acreditava que o tipo de trocadilho estava ao gosto dos alemães, que seriam capazes de percebê-lo e de compreender seu significado. Esta piada, com sua alusão à Sardenha, haveria de desempenhar seu papel no nosso sucesso final. A carta também escondia um outro truque. Eu tinha certeza de que os alemães de Berlim receberiam a "carta vital", ou uma cópia dela, não tinha certeza se receberiam os demais documentos, ou apenas um resumo do que continham estes documentos auxiliares. Todavia, eu precisava assegurar que Berlim recebesse a carta de Mountbatten completa. Eu queria que Berlim lesse a piada sobre a Sardenha e queria que tomasse conhecimento do motivo da viagem do oficial e da razão pela qual conduzia um "documento vital" fora do comum. Por isto coloquei a história sobre Dieppe. Tenho certeza de que nenhum alemão resistiria à tentação de passar para seu superior o que parecia ser a admissão, feita pelo chefe de Operações Combinadas, de que a nossa incursão contra Dieppe não obtivera o sucesso esperado. Não sei se consegui, ou não, entender perfeitamente a mentalidade alemã mas, além do documento vital, esta carta foi o único outro documento do Major Martin do qual encontramos uma cópia completa nos

arquivos alemães e que foi exaustivamente analisado pelas informações alemãs em Berlim. A carta foi devidamente datilografada no QG de Operações Combinadas, assinada por Lord Louis e recebeu um número de referência fictício, mas plausível. No fim, encarregamos o major Martin de levar mais uma parta, além dos seus documentos pessoais. Preocupava-nos o fato de que, em situação normal, um oficial colocaria no bolso as duas cartas postadas em envelope de tamanho normal, apesar do grau de sigilo de um deles. Se o Major Martin fizesse isso, nada nos garantia que os espanhóis os encontrassem antes de nos devolver o cadáver. Não queríamos nos arriscar a ver o agente alemão em Huelva repreendendo seus prepostos por não revistarem o corpo. Era preciso que o Major Martin tivesse uma desculpa para colocaras as cartas numa pasta. Tínhamos que encontrar essa desculpa. Acontecia que estava para ser publicado o panfleto "oficial" sobre os Comandos, escrito por Hilary Saunders; a edição inglesa seria seguida por uma edição americana. Consideramos que seria viável Lord Louis Mountbatten escrever uma carta para o General Eisenhower pedindo-lhe que escrevesse o prefácio para o panfleto. Assim, redigimos uma carta com a solicitação e incluíamos as provas tipográficas da publicação, bem como as fotos adequadas ao texto. Aproveitamos a oportunidade para lançar mais um indício de que o Major Martin era um oficial destacado. O texto da carta era o seguinte:  Ao responder, mencione: S. R. 1989/43 Quartel-General de Operações Combinadas 1 A Richmond Terrace Whitehall, S. W. 1 22 de abril de 1943 Prezado General,

Envio-lhe em anexo duas cópias do panfleto que relata as atividades da minha grande unidade; junto estão cópias das fotografias que constarão do texto. Esta brochura foi escrita por Hilary Saint George Saunders, inglês e autor de "A Batalha da Inglaterra: Comando de Bombardeiros" e outros livros que alcançaram sucesso neste país e no seu. A edição a ser publicada nos Estados Unidos já conta com a venda antecipada de mais de um milhão e meio de exemplares; creio que as autoridades americanas vão distribuir o livro por todo o Exército dos Estados Unidos. O Serviço Inglês de Divulgação, em Washington, informou-me que gostaria de contar com uma "mensagem" sua para utilizá-la na propaganda do panfleto; enviaram-lhe esta solicitação diretamente, por intermédio de Washington. Envio-lhe as provas do livro por intermédio de um oficial do meu estado-maior, Major W. Martin, dos Reais Fuzileiros Navais. Não preciso dizer o quanto nos sentiremos honrados se o senhor nos mandar o prefácio. Compreendo o quanto o senhor tem sido solicitado numa época em que precisa se dedicar a coisas muito mais importantes. Acredito, porém, que o senhor encontrará alguns minutos para honrar o livro com a expressão da sua valiosa aprovação, para que ele tenha ampla difusão e tenha a oportunidade de se constituir em mensagem de cooperação entre nossos dois povos. Observamos o seu magnífico progresso com admiração e satisfação, desejando poder acompanhá-lo.

O senhor pode falar livremente com o Major Martin a respeito deste assunto ou de qualquer outro; trata-se de um oficial da minha inteira confiança. Sinceramente Louis Mountbatten Ao General Dwight Eisenhower  Quartel-General Aliado  Argel A carta foi assinada por Lord Louis e, ao ser colocada no envelope com os anexos, justificava plenamente que o Major Martin levasse uma pasta para carregar todos os documentos. Mesmo assim, sob este aspecto, nosso problema não terminou aí. Descobríramos uma justificativa para mostrar os documentos aos espanhóis e o fazíamos de uma forma que admitia até ineficiência da parte deles; tínhamos certeza de que os documentos seriam descobertos. Mas resolvêramos o problema? Quando estávamos nos congratulando pela nossa engenhosidade, a dúvida surgiu inopinadamente: quem nos garantiria que o corpo e a pasta chegariam juntos a Huelva? Era possível enfiar a alça da pasta na mão do Major Martin, mas não podíamos nos arriscar a deixar que os dedos se abrissem e a pasta viesse a ser tragada pelo mar. Realizei pesquisa sobre a rigidez da morte, mas quando adicionei o elemento complicador (depois de permanecer congelado, o corpo sofreria o descongelamento), tornou-se evidente que os imponderáveis seriam excessivos. A única solução que encontramos não nos agradava, porque era o aspecto que parecia menos autêntico de toda a montagem. Resolvemos admitir que um oficial conduzindo documentos realmente secretos e importantes poderia prender sua pasta a um tipo de corrente, forrada com couro, normalmente utilizada por mensageiros bancários; como a

corrente passa por dentro da manga do paletó, não é percebida à primeira vista, mas impede que o volume seja arrancado das mãos do mensageiro. Esta solução se nos afigurava horrivelmente fictícia; além disto, sabíamos que os oficiais ingleses não utilizavam este processo. Decidimos aceitar o risco e esperar que os nossos colegas de profissão, em Berlim, nada percebessem. Afinal de contas eles não podiam ter certeza de que um oficial inglês jamais utilizaria este processo para proteger documentos. Em suma, decidimos correr o risco e usar a corrente. Conforme deve ter sido notado na instrução fornecida ao Tenente Jewelll, resolvemos que o Major Martin não permaneceria sentado durante o voo com a pasta dependurada no seu braço; isto parecia razoável, pois, ao invés de se arriscar a esquecer ou perder a pasta, ele a manteria presa à corrente, a qual ficaria atada ao cinto da sua capa impermeável (mais confortável do que atada ao redor do tórax). É difícil julgar; talvez estivéssemos preocupados demais, talvez, por outro lado, os alemães em Berlim suspeitassem desta providência. Nesta altura do livro não vou antecipar o que viemos a saber depois; portanto, direi apenas que tivemos sorte e ninguém desconfiou do processo adotado. Ainda assim, gostaria de saber se foi justificável o risco que corremos, uma vez que o aceitamos baseados na hipótese de que os espanhóis relatariam pormenorizadamente este aspecto e que o nosso adversário não teria muita certeza de que a corrente constituía uma falha tão grave em uma montagem convincente, a ponto de levá-los a rejeitar a autenticidade dos documentos. Jamais saberemos se acertamos ou erramos. Só podemos afirmar que jamais o saberemos. Por fim, como servia no QG de Operações Combinadas, o Major Martin precisava de um passe especial; obtivemos um. Sentíamos estar havendo uma tendência para

transformar o Major Martin no paradigma de todas as virtudes; já era hora de acrescentarmos falhas humanas, além da perda da carteira de identidade. Como se vê, também estávamos empenhados em criar para ele um tipo pessoal que o revelaria um tanto descuidado com seus assuntos particulares, apesar das qualidades como oficial; de qualquer maneira, não podíamos separar completamente suas características pessoais de suas virtudes militares. Além disso, ocorreu um fato na sua vida (conforme será contado no próximo capítulo) que deu motivo para o esquecimento de coisas banais, como a renovação de um passe. Assim, decidimos que ele cometeria a mesma transgressão já cometida por quase todos nós: esquecer de renovar o passe. O passe que lhe déramos expirara em 31 de março de 1943; estávamos certos de que os alemães não se surpreenderiam (da mesma forma que não era motivo de surpresa para nós) com o fato de o Major Martin continuar a usar o passe vencido até a época da viagem, na terceira ou quarta semana de abril. Só falta fornecer ao Major Martin o uniforme.

Um dos meus subordinados, mais ou menos com a mesma estatura do Major Martin, comprou um uniforme de campanha, ao qual acrescentamos o distintivo dos fuzileiros navais, o brasão dos Comandos e a coroa, que era a insígnia de major. Conseguimos também uma capa impermeável usada, na qual colocamos a insígnia do posto comissionado, mas sem esquecer de fazer três furos em cada ombreira, correspondentes à insígnia do posto real. Depois obtivemos as botinas, as perneiras, uma camisa e a roupa de baixo; esta não era nova, mas apagamos todas as marcas antigas das lavanderias, juntamente com as marcas dos lenços e

mandamos lavar tudo junto a fim de que tivessem a marca da mesma lavanderia. Compramos uma camisa na alfaiataria Gieves e achamos que Bill Martin poderia ter guardado a nota no bolso da capa. Esta foi a única gafe real que cometemos: o oficial que foi comprar a camisa não era da Marinha e, por isso, tomou a providência inacreditável de pagar à vista. Como Bill Martin não tinha conta na Gieves, o comprador não podia proceder de outra forma, a não ser que quisesse receber a nota com um nome errado. Depois que o corpo já estava fora das nossas mãos lembrei-me, de repente, que nenhum oficial comprava na Gieves pagando à vista. Apesar disso, o que me consolava era pensar que estávamos iludindo os alemães; eles podiam não ter certeza se a alfaiataria dava aos oficiais convocados o mesmo crédito concedido aos oficiais de carreira. De qualquer maneira, cometêramos um erro infantil. Assim, o cadáver do “homem que nunca existiu” transformou-se no de um oficial, Major Martin dos Reais Fuzileiros Navais; quem encontrasse o corpo também acharia provas de quem ele era e por que estava no lugar em que seria achado. Ainda assim, era o cadáver de um oficial, mas não o de uma pessoa. Precisávamos fornecerlhe sentimentos afetivos com outro ser humano, a fim de transformá-lo em gente de verdade.

6 A criação de uma pessoa Conforme já mencionei, decidíramos que o Major Martin era um oficial brilhante e que gozava da confiança dos seus superiores; os únicos lapsos visíveis constituíam fatos corriqueiros: perda da carteira de identidade e relaxamento na renovação do passe do QG de Operações Combinadas. Desde um estágio inicial o Major Martin transformara-se em uma pessoa real para nós. Seria muito conveniente que esta nossa sensação também fosse sentida por quem quer que examinasse o cadáver; quanto mais real parecesse o Major Martin, mais convincente seria a operação. Além do mais, eu não tinha dúvida de que, em um caso tão importante como este, os alemães haveriam de examinar os mínimos por menores, na tentativa de encontrar alguma falha na criação do Major Martin; eles teriam que se convencer de que o episódio era verdadeiro e não "plantado". Mais tarde, conforme fiquei sabendo, os fatos comprovaram que eu estava certo: os alemães anotaram até as datas de duas entradas para teatro, colocadas por nós no bolso do Major Martin. O método adotado para criar a personalidade do Major Martin foi o de conversar a respeito dele — assim como se estivéssemos falando sobre um amigo, na ausência dele. Na verdade, conversávamos tanto sobre Martin, que chegamos a sentir como se ele fosse um velho amigo de muitos anos. Entretanto, admito que a nossa tendência foi moldar seu tipo e sua personalidade de modo a satisfazer nossos interesses, embora ele se haja transformado em uma pessoa praticamente real para toda a nossa equipe.

Com esta base, criamos um tipo de pessoa que podia ser compreendido através dos documentos deixados nos bolsos; este foi o processo que imaginamos para dar conhecimento da sua personalidade aos alemães. Pensamos que ele precisaria desfrutar de alguns momentos de lazer e obtivemos um convite de um clube noturno endereçado a ele. Seu banco enviara lhe carta acusando saldo negativo em sua conta corrente; isto só poderia resultar de alguma extravagância. Imaginamos que Martin estivesse hospedado no hotel de trânsito dos fuzileiros, durante sua permanência em Londres; isto daria lugar a um recibo referente à hospedagem. Desta forma íamos transformando uma ficção em algo mais concreto. Como poderíamos realmente "dar-lhe vida"? O único jeito era deixar em seus bolsos cartas que levassem o leitor a tomar conhecimento de algum fato íntimo. Por outro lado, se alguém parasse um transeunte na rua e revistasse seus bolsos, dificilmente encontraria cartas pessoais, exceto cartas que abordassem assuntos bastante triviais. Durante o exame deste problema, chegamos à conclusão de que a única situação que certamente levaria um homem a carregar cartas relacionadas com a sua vida íntima seria a situação de se achar comprometido com uma moça e estar se preparando para desposá-la. Assim, decidimos "arranjar um casamento" entre Bill Martin e alguma moça; ambos teriam resolvido pelo matrimônio pouco antes da viagem de Martin. Desta forma, o Major Martin "encontrou" uma moça bonita, chamada Pam, no começo de abril, ficou noivo imediatamente (esses noivados de tempo de guerra!), ela presenteou-o com uma fotografia e ele presenteou-a com o anel de noivado. Martin possuía duas cartas da noiva: uma escrita quando ela passara um fim de semana fora e outra redigida no escritório (enquanto o patrão estava ausente), durante um momento de tristeza, depois que ele deixara transparecer que viajaria para o exterior. Martin teria

consigo a nota de compra do anel — ainda não paga porque ele estava com saldo negativo na sua conta bancária. Por fim, Martin teria um pai antiquado, desses que são contra os casamentos de guerra, e que insistia para que ele fizesse um testamento, caso não desistisse da realização do casamento. Achamos que não tínhamos condições para criar, com apenas um punhado de cartas, uma personalidade mais definida do que esta. Mas as cartas precisavam parecer verdadeiras e teriam que ser escritas por alguém. E claro que nós mesmos estávamos em condições de redigir as cartas — quase todos sabiam o que dizia uma carta do banco mencionando um saldo negativo, alguns já haviam feito testamento ou recebido cartas amorosas; achei, porém, que deveríamos confiar o problema a mãos experientes, a fim de evitar a possibilidade de qualquer erro. Alguns pontos foram solucionados com relativa facilidade. Por exemplo, um integrante da nossa equipe recebera um convite para o Cabaret Club sem que seu nome estivesse escrito no convite; ficou resolvido o problema do clube noturno. A carta do banco também não foi difícil. Outro membro da equipe conseguiu uma carta do Lloyds Bank, datada de 14 de abril, convocando o Major Martin para pagar um débito de cerca de 79 libras. Mais tarde perguntaram-me se era normal que uma carta relativa a uma quantia tão pequena fosse assinada pelo gerente-geral da matriz. Eu observara este ponto, pois sabia, por experiência própria, que tais cartas costumam ser assinadas por um gerente da seção de correntistas. Na ocasião, quando levantei o problema, garantiram-me que as cartas eram expedidas pela gerência geral em determinadas circunstâncias, embora o normal fosse a expedição pela seção de correntistas. Mas como o oficial encarregado de conseguir a carta tinha "conhecimentos" junto à gerência geral, só foi possível obtê-la ali. Achei que

os alemães não tinham tanta experiência quanto nós em matéria de saldo negativo. Além disso, mesmo sendo reduzida a quantia envolvida, o pai do Major Martin era um homem de certa importância. A carta foi redigida pelo Sr. Whitley Jones, gerente-geral do Lloyds Bank, datilografada em seu escritório e assinada por ele. O texto era o seguinte:  Lloyds Bank Limited  Matriz Londres, E.C. 3 14 de abril de 1943 Pessoal Major W. Martin, FN Club do Exército e Marinha  Pall Mall Londres, S.W. 1 Prezado senhor, Chegou ao meu conhecimento que persiste o seu débito de £ 79. 19s. 2d., apesar de nossos repetidos apelos para pagamento. Nestas circunstâncias, escrevo-lhe para informar que se não for paga tal soma, acrescida dos juros de 4% até o dia do pagamento, não teremos outra alternativa a não ser a de tomar as providências necessárias para a proteção dos nossos interesses. Cordialmente (a)  E. Whitley Jones  Gerente-Geral Ficou combinado com o banco a remessa da carta, pelo correio, para o Major Martin no Clube Naval e Militar, mas o banco endereçou equivocadamente para o Clube do Exército e Marinha, na Pall Mall; ao recebê-la, a portaria escreveu no envelope: "desconhecido neste endereço", e

acrescentou "tentar no Clube Naval e Militar, em 94 Piccadilly". Isto pareceu-nos um indício convincente de que a carta era real, e não especialmente preparada; decidimos que o major conservaria esta carta dentro do envelope. Um outro dos nossos conseguiu a cooperação do Clube Naval e Militar; obtivemos uma conta, datada de 24 de abril, mostrando que o Major Martin fora sócio temporário do clube e lá se hospedara nas noites de 18 até 23 de abril, inclusive; além de contribuir para a criação da pessoa do major, esta nota constituía uma prova concreta de que ele estivera em Londres até o dia 24. Obtivemos a nota de compra do anel de noivado sem grande dificuldade. Escolhi a joalheria S. J. Phillips, de Bond Street, porque soube que possuía filiais no exterior; provavelmente os alemães encontrariam outras notas de compra nesta firma e, por comparação, comprovariam a autenticidade da nota do Major Martin. A nota estava datada de 19 de abril, mas mostrava que o anel fora realmente negociado no dia 15. É claro que enfrentamos alguns problemas para a obtenção deste e de outros documentos. Evidentemente, não podíamos explicar o verdadeiro motivo da nossa solicitação, mas eu achava que o simples fato de solicitá-los sem dar qualquer explicação já constituía razão para o aparecimento de rumores. Por outro lado, se apresentássemos um motivo plausível, pensávamos poder contar com a discrição das pessoas que nos atendiam. Assim, a minha "história cobertura" era a seguinte: havia alguém muito suspeito e que parecia interessado em oficiais que enfrentavam dificuldades financeiras momentâneas; estávamos procurando obter documentos que configurassem escassez de dinheiro e que determinada pessoa pudesse deixar em seu alojamento, onde seriam vistos pelo suspeito. Com isto, poderíamos observar a conduta do suspeito. A história pareceu-nos coerente e

nunca nos negaram ajuda — nem ninguém nos comprometeu com o mais leve "vazamento". Entre os documentos que poderiam ser chamados de auxiliares, faltava-nos obter os "relevantes". Em primeiro lugar, precisávamos de uma boa fotografia de Pam, a noiva do Major Martin. O processo que imaginamos foi o de pedir emprestada uma foto da moça mais bonita entre as que trabalhavam no nosso ministério, para incluí-la em um álbum fotográfico de identificação — desses álbuns em que as fotos de um ou dois suspeitos estão misturadas às de inocentes e que são apresentados à "testemunha", a fim de que ela indique quem viu. Solicitamos fotografias a várias moças e recebemos a cooperação de muitas. Escolhemos uma e devolvemos as demais. A moça escolhida tinha acesso a documentos secretos; por isso, explicamos a ela que pretendíamos usar a foto para representar uma noiva fictícia em uma simulação; obtivemos sua autorização. Nenhum de nós queria escrever as cartas de amor — afinal de contas não conhecíamos o enfoque feminino. Pedimos a uma moça de uma das nossas seções que arranjasse alguém para escrever as cartas. Ela aceitou a missão, mas nunca nos revelou o nome de quem havia produzido as duas magníficas cartas que o Major Martin levaria. Resolvi que a primeira carta seria escrita no papel timbrado do meu cunhado, pois tinha certeza de que nenhum alemão duvidaria da "britanicidade" de um endereço como "The Manor House, Ogbourne St. George, Marlborough, Wiltshire"; a carta tinha a data de "domingo, dia 18" e dizia o seguinte: The Manor House Ogbourne St. George Marlborough, Wiltshire

Telefone: Ogbourne St. George 242 Domingo, dia 18 Acho, querido, que ver gente como você ficar na plataforma de uma estação é o pior tipo de coisa que pode acontecer. Um trem que se afasta pode abrir uma brecha dolorosa na vida de uma pessoa e o único jeito é tentar desesperadamente — mas em vão — preenchê-la com o que se desfrutou cinco semanas atrás. Aquele dia maravilhoso que passamos juntos — oh! alguém já disse isto antes, mas se o tempo pudesse parar. Bem, estes pensamentos não levam a nada. Ponha as ideias em ordem, Pam, e deixe de bancar a boba. Sua carta me fez bem, mas ficarei muito vaidosa se você continuar a dizer o que disse a meu respeito; não sou nada disso, e receio que em pouco tempo você venha a descobrir a realidade. Eis-me aqui para o fim de semana neste lugar divino, junto com mamãe e Jane, parecendo alegre e compreensiva todo o tempo, mas extremamente entediada e ansiosa para que chegue a segundafeira, só para voltar à roda-viva. Quanta tolice! Bill querido, avise-me assim que você decidir sua situação e puder fazer mais alguns planos; por favor, não deixe que o mandem para longe, da forma que eles costumam fazer — não agora, que nos achamos no meio deste mundo todo; creio que não suportaria. Com todo o meu amor Pam Acompanhada por duas folhas de papel fino, das usadas nas repartições públicas para cópias em carbono, a segunda carta estava datada de "quarta feira, dia 21". A parte inicial

estava redigida com letra coerente, mas degenerava, de repente, para uma série de rabiscos e terminava apressadamente, com o anúncio da chegada do chefe da autora. Eis o seu texto:  Escritório  Quarta-feira, dia 21 O perdigueiro saiu do canil por meia hora e eisme, mais uma vez, a lhe escrever bobagens. Sua carta chegou hoje pela manhã, na hora em que eu saía — e como sempre atrasada. Você escreve coisas tão lindas. O que representam estas terríveis ameaças veladas de ser enviado para algum lugar, e que você deixa transparecer na carta? É claro que não pronunciarei uma só palavra sobre o assunto — jamais conto a ninguém o que converso com você —, mas será que você vai para o exterior? Eu não quero, diga a eles que eu não quero. Querido, por que fomos nos encontrar no meio da guerra, a coisa mais tola que se pode fazer? Se não fosse a guerra, poderíamos casar logo e sair juntos para escolher cortinas etc. Não quero ficar sentada em uma repartição pública datilografando ofícios bobos o dia inteiro — sei que o trabalho inútil que estou fazendo não vai encurtar a guerra nem por um minuto. Querido Bill, estou tão emocionada com o meu anel — que coisa linda — você sabe que eu adoro diamantes — simplesmente não consigo parar de olhar para ele. Tenho que acompanhar Jock e Hazel a uma festa hoje de noite; acho que elas convidaram alguns rapazes. Você sabe como costumam ser os amigos delas: gogós delicados e carecas reluzentes. Pareço

ingrata e agressiva, mas você sabe que é realmente isso, não sabe? Olha, querido, não vou trabalhar no próximo domingo, nem na segunda-feira, por causa da Páscoa. Vou para casa, venha também se puder; se não puder sair de Londres, corro para cá e passaremos uma tarde divertida (aliás, tia Marian pediu-me que levasse você para jantar, na próxima vez, mas acho que isso pode ser adiado). Lá vem o perdigueiro, muito amor e beijos de  Pam Acreditamos haver obtido as cartas ideais para satisfazer nossa finalidade. Para desempenhar o papel do pai do Major Martin, escolhemos um oficial convocado, que produziu um excelente trabalho; o envelope e a carta, datados de 13 de abril, pareceram tão impregnados com a pomposidade eduardiana, que seria impossível dizer que eram fictícios — só um pai da velha guarda poderia redigir aquele texto. Eilo: Telefone n° 98 Black Lion Hotel Mold N. Wales 13 de abril de 1943 Meu caro William Não posso dizer que este hotel continua tão confortável como quando o conheci nos dias anteriores à guerra. Entretanto, hospedo-me aqui como única alternativa para escapar da sua tia, cuja

criadagem desfalcada e absoluto respeito pela economia de combustível (o que julgo necessário em tempo de guerra) tornaram a casa quase inabitável para um hóspede da minha idade. Proponho-me estar na capital nas noites de 20 a 21 de abril, quando, sem dúvida, teremos oportunidade de nos encontrar. Anexo a cópia de uma carta que enderecei ao Gwatkin, do McKenna, a respeito dos seus negócios. Você verá que o convidei para almoçar comigo no Carlton Grill (que imagino estar funcionando) às doze e quarenta e cinco de quartafeira, dia 21. Ficaria contente se você providenciasse para nos fazer companhia. Entretanto, não retardaremos o almoço por sua causa; creio que, se você comparecer, haverá de fazê-lo pontualmente. Sua prima Priscilla envia-lhe recomendações. Ela se tornou uma moça atraente, mas não sei se o seu trabalho no Exército Territorial contribuiu para melhorar-lhe o aspecto. A este respeito acho que ela se parecerá com o lado paterno da família. Carinhosamente,  Pai Cópia Telefone n° 98 Black Lion Hotel Mold N. Wales 10 de abril Meu Caro Gwatkin Examinei sua última carta a respeito da fundação que pretendo criar por ocasião do casamento de William. As disposições que você

esboçou parecem-me razoáveis, exceto em um aspecto. Neste caso, como a família da esposa não contribuirá para a fundação, não acho correto que caiba a ela participação alguma, depois da morte de William, nos recursos que eu vou proporcionar. Concordaria com isto no caso de surgirem filhos deste casamento. Assim, reveja as disposições no sentido de estabelecer que, caso haja filhos, será paga uma renda à esposa até que ela volte a se consorciar, ou até que os filhos se tornem adultos. Daí em diante, só os filhos serão beneficiários. Pretendo estar em Londres nas noites de 20 e 21 de abril. Estimaria que você viesse almoçar comigo no Carlton Grill às doze e quarenta e cinco horas de quarta-feira, dia 21. Se você trouxer consigo as novas disposições, teremos tempo para examiná-las depois da refeição. Escrevi para William e espero que ele venha juntar-se a nós. Sinceramente (a) J.G. Martin  F. A. S. Gwatkin, Esq. McKenna & Co. 14 Waterloo Place. Londres, S. W. 1 Escolhemos o Black Lion Hotel, em Mold, por dois motivos: o endereço era tão britânico que, por si só, transmitia uma impressão de veracidade; em segundo lugar, a região condizia com o local de nascimento do Major Martin, em Cardiff. Creio que a direção do hotel nos perdoará por haver furtado e utilizado o papel timbrado — além de nos perdoar por duvidarmos do conforto que é uma das características do hotel.

Por fim, para completar o quadro, arranjamos um amigo da firma McKenna para escrever a seguinte carta em papel timbrado: McKenna & Co. 14 Waterloo Place Procuradores Londres, S. W. 1 Nossa ref.: McL/EG 19 de abril de 1943 Prezado senhor Em relação aos seus negócios  Agradecemos a sua carta datada de ontem devolvendo, devidamente aprovado, o rascunho do seu testamento. Incluiremos a herança de 50 para o seu ordenança e o nosso Gwatkin terá o texto definitivo quando encontrar o senhor no almoço do dia 21, para que o senhor possa assiná-lo. O inspetor de impostos solicitou-nos detalhes sobre seus vencimentos e gratificações durante 1941/2, a fim de fixar as deduções que lhe serão permitidas para aquele ano fiscal. Como nossos arquivos não contêm tais dados, solicitamos a gentileza de enviá-los. Atenciosamente  McKenna & Co. Major W. Martin, FN Clube Naval e Militar 94 Piccadilly Londres, W. 1 Quando fizemos a leitura de todos esses documentos juntos, eles nos transmitiram a impressão de que nos

deparávamos com gente real — com uma pessoa que vivia — um homem que realmente existia. Julgamos que não se poderia fazer mais nada baseado em uns poucos documentos que, razoavelmente, um homem poderia carregar nos bolsos. Contudo, ainda tomamos algumas precauções antes de entregar as cartas ao Major Martin. Com exceção das cartas de amor, andei com as demais dentro dos meus bolsos o número de dias suficiente para dar-lhes o aspecto desejado. As cartas de amor constituíam um problema, principalmente a escrita em papel fino. Evidentemente, haviam sido lidas e relidas; não teriam mais o mesmo aspecto do dia em que haviam sido escritas. Entretanto, a aparência adequada não podia ser obtida amassando-as e depois alisando-as (conforme um idiota sugeriu ser o melhor método); depois que se amassa uma folha de papel, não há alisamento capaz de disfarçar este fato. E se havia uma coisa que o Major Martin jamais faria, era amassaras cartas de Pam. Por isto, fiz aquilo que ele teria feito; dobrei e desdobrei as cartas várias vezes e friccionei-as cuidadosamente na minha roupa, a fim de que a tinta ficasse um pouco desbotada.

O contêiner

Passe do Comando de Operações Combinadas

Carteira de identidade do major Martin

Ingressos de teatro

Carta de Lord Louis Mountbatten para o Almirante Cunningham

Alguns detalhes corroborativos

O perdigueiro vai — e volta

Pam

Nota de compra do anel de noivado

O Major Martin vai para a guerra

7 Major Martin pronto para a guerra Nossos preparativos foram todos realizados sem esmorecimento, mas ainda faltava obter a aprovação final para o desencadeamento da operação. Depois de examinarem a carta de Sir Archibald Nye, os Chefes de Estado-Maior concederam a aprovação, em princípio; agora, precisávamos receber poderes para agir. Não havia como escapar aos conflitos de interesse durante esta fase. Muito naturalmente, os Chefes de Estado-Maior relutavam em permitir que os alemães recebessem os informes contidos na carta porque nossa estratégia poderia mudar — e se isto sucedesse, não seria a primeira vez. Por outro lado, para que a operação produzisse resultado, a carta teria que estar na Espanha no princípio de maio; precisávamos dar tempo ao Serviço de Informações alemão para receber o informe, certificar-se da sua autenticidade através das verificações que imaginasse, estudá-lo adequadamente e, depois, difundir o resultado para o Alto Comando. Este, por sua vez, precisava de tempo para tomar providências e para enviar suas forças para os lugares errados. Se desejávamos que eles não fortificassem a Sicília, era inconveniente esperar até que as fortificações estivessem prontas. Os Chefes de Estado-Maior aceitaram estas ponderações e concederam a aprovação final, sujeita à decisão do Primeiro-Ministro, a quem o assunto foi apresentado pelo General Ismay. Ao ser informado de que havia o risco de revelar a Sicília, caso a operação fracassasse, o Primeiro-Ministro respondeu

(conforme já registrei): "Não acho que isto tenha importância. Com exceção dos idiotas, todos sabem que o objetivo é a Sicília." Julgamos que o Primeiro-Ministro também precisava ser informado de que os nossos esforços poderiam ser inúteis, uma vez que o corpo poderia ser encontrado por um espanhol que não estivesse colaborando com os alemães; neste caso, os documentos nos seriam devolvidos intatos. O Primeiro-Ministro achou que este risco também não seria muito grande, e resolveu o assunto sorrindo e declarando: "Também não acho que isto tenha importância. Sempre poderemos tentar outra vez. Assim, recebemos o sinal verde, dependendo apenas de o General Eisenhower ser informado sobre o plano. Se ele tivesse alguma objeção, ou se houvesse alguma alteração na estratégia antes de o corpo ser colocado na água, a operação poderia ser cancelada segundo o que estava estabelecido no número 8 da "ordem de operações" entregue ao Tenente Jewell. Tratava-se, agora, de realizar a parte mais desagradável da tarefa: preparar o corpo para o cumprimento da sua missão. Esta tarefa desagradava-nos profundamente. Em que pese o grande serviço que o cadáver haveria de prestar à sua pátria, causava-nos repulsa perturbar o seu repouso; além disto, havia uma reação psicológica cada vez que víamos o corpo rígido dentro da geladeira. Na ocasião o Major Martin já se transformara, para nós, em uma pessoa viva; sentíamos a sensação de conhecê-lo como conhecíamos nossos amigos. Afinal de contas, é preciso ter muita intimidade com um amigo para ler suas cartas de amor e as cartas pessoais recebidas de seu pai; passáramos a ter a sensação de que conhecíamos Bill Martin desde a juventude e adquiríramos interesse real e pessoal no desenvolvimento do seu noivado e na solução das suas dificuldades financeiras. Cheguei a pensar que nós, que o

havíamos criado, o conhecíamos como um pai conhece seu filho, mas esta afirmativa não seria exata. Nós o conhecíamos melhor do que muitos pais conhecem seus próprios filhos, pois, para criá-lo, tivéramos que penetrar em cada um dos seus pensamentos e prever a reação provável a cada fato que pudesse ocorrer na sua vida. Desgostava-nos a perspectiva de ter que fazer uma visita ao local onde o corpo congelado permanecia guardado; eu e George chegamos a fazer três visitas a este local. A primeira perturbação do seu repouso ocorreu quando tiramos a fotografia; aproveitamos a ocasião para tirar as medidas do cadáver, principalmente a medida do pé para ver que número ele calçava. Depois, resolvemos visitá-lo pela segunda vez e vesti-lo, a fim de que estivesse completamente pronto para a viagem e evitar qualquer dificuldade que não pudesse ser solucionada com rapidez. Esta decisão foi excelente, porque havíamos esquecido um ponto. Já utilizei a expressão "rígido e frio". Imaginávamos que seria difícil vestir um cadáver, inclusive com a roupa de baixo, na situação em que ele se encontrava. Quando tiramos a fotografia, estudamos o problema e verificamos que era difícil, mas não impossível. Esquecemo-nos, porém, das botinas. Para ter uma ideia da nossa dificuldade, basta que você tente calçar um par de botinas mantendo os tornozelos e pés totalmente rígidos e com os pés formando um ângulo reto com as pernas — a operação é quase impossível. A experiência foi desmoralizante. Sabíamos que congelar um corpo, descongelá-lo e, depois, voltar a congelá-lo constituía o melhor meio para acelerar o processo de decomposição, na ocasião em que o corpo fosse definitivamente descongelado. Se fizéssemos isto poderíamos estar destruindo as premissas em que se

apoiara o parecer de Sir Bernard Spilsbury. Como deveríamos agir? De repente, atinamos com a solução. Arranjamos uma resistência elétrica e descongelamos apenas os tornozelos e os pés. Em seguida, rapidamente, vestimos o cadáver e, com sinceras desculpas mentais pelo que fizéramos, recolocamo-lo na geladeira. Nossa terceira visita ocorreu no sábado, dia 17 de abril de 1943 às 18 horas, quando fomos pegar o Major Martin para o início da viagem. Primeiro, colocamos nos bolsos as cartas pessoais e a carteira com os passes dentro. Depois, colocamos as "miudezas" que um homem sempre carrega, desordenadamente espalhadas pelos bolsos. Eis a relação do que o Major Martin levava: 2 plaquetas de identificação gravadas "Major W. Martin, FN, Res.", penduradas em uma corrente; cruz de prata em corrente de prata, pendurada no pescoço; relógio de pulso; carteira contendo: fotografia da noiva, bloco de selos postais — faltando dois, 2 cartas da noiva, medalha de São Cristóvão, convite para o Cabaret Club, passe do Comando de Operações Combinadas — plastificado, carteira de identidade do Almirantado — plastificada – e cabeçalho cortado de carta); 1 nota de £ 5 com o número 227C45827; 3 notas de £ 1 com os números X34D527008; W21 D029293 e X66D443119;

1 moeda de meia coroa; 1 moeda de 2 shilings; 2 moedas de 6 pence; 4 pennies; carta do pai; carta do pai para McKenna & Co.; carta do Lloyds Bank; recibo do Clube Naval e Militar; nota da alfaiataria Gieves; nota de compra do anel de noivado; 2 bilhetes de passagem de ônibus; 2 ingressos do Teatro Príncipe de Gales, de 22 de abril de 1943; caixa de fósforos; maço de cigarros; molho de chaves; toco de lápis; carta de McKenna & Co. Convém deter-me um pouco na explicação dos dois ingressos do Teatro Príncipe de Gales. Conforme disse, fomos pegar o Major Martin no dia 17 de abril, mas ele viajaria no dia 19; deveria ser colocado no mar, ao largo de Huelva, no dia 29 ou 30 de abril. Por outro lado, se ele estivesse viajando por via aérea, como queríamos fazer os alemães acreditarem, a viagem teria levado apenas um dia. Quando percebemos esta diferença de tempo entre a viagem por submarino e a aérea, começamos a raciocinar com as datas de trás para a frente; o corpo deveria chegar a Huelva por volta do dia 30 de abril, mas subtraindo cinco ou seis dias que o corpo supostamente levaria boiando no mar depois que o avião afundasse (calculáramos que o possível grau de decomposição corresponderia a um certo período de imersão do corpo), tudo isto significava que o Major Martin deixara Londres por volta do dia 24 de abril. Por este

motivo, aliás, o recibo de hospedagem no Clube Naval e Militar era datado deste dia. Nesta altura, George teve uma outra ideia brilhante. Lembrou-se repentinamente de que qualquer pessoa que vê um canhoto de ingresso de teatro imagina logo que os ingressos foram usados. Para nós era fácil adquirir, antecipadamente, ingressos para data posterior à saída do cadáver de Londres, destacar os canhotos e jogar os ingressos fora. Assim, decidimos que Bill Martin e Pam realizariam uma festa de despedida, antes que ele viajasse; acreditamos que gostariam de ver o show de Sid Fields no Teatro Príncipe de Gales e compramos quatro ingressos para o espetáculo (mais tarde explicaremos por que compramos quatro ingressos); destacamos os canhotos de dois ingressos e os colocamos no bolso do Major Martin. Mais uma vez um pequeno detalhe desempenharia seu papel na dissimulação; esta última ideia de George "acertou na mosca", ao passo que o recibo de hospedagem no clube foi desprezado pelos espanhóis e pelos alemães. Enchemos com gelo seco; quando o gelo derreteu, recompletamos o contêiner e, mais uma vez, esperamos o gelo derreter. Depois, carregamos o Major Martin com muita reverência e cuidado e o colocamos dentro do contêiner, envolvendo-o com mais gelo seco. Por fim, colocamos a tampa e apertamos os parafusos. O Major Martin estava pronto para ir para a guerra. Por último, acrescentamos a pasta contendo os documentos importantes; aqui, fizemos uma ligeira alteração no que ficara combinado e que eu avisara ao Tenente Jewell. O plano original era levar a pasta até Clyde, separada do corpo, e entregá-la aos cuidados do Tenente Jewelll; depois, verificamos que a pasta poderia ser colocada dentro do esquife com o corpo. Adotamos esta linha de ação porque constituía uma salvaguarda contra qualquer esquecimento durante a colocação do corpo na água, ao largo de Huelva. O Tenente

Jewell estaria cumprindo uma missão difícil, principalmente se o mar estivesse agitado; sua atenção estaria voltada para o mar e para a segurança de seu submarino. Seria horrível se o corpo do Major Martin chegasse à praia e a pasta ficasse guardada no cofre do Tenente Jewell. Depois de vestirmos o cadáver, de colocarmos tudo nos bolsos e prender a pasta na corrente, envolvemos o corpo gelado com um cobertor para evitar qualquer fricção durante a viagem. Pusemos o contêiner em pé e enchemos com gelo seco; quando o gelo derreteu, recompletamos o contêiner e, mais uma vez, esperamos o gelo derreter. Depois, carregamos o Major Martin com muita reverência e cuidado e o colocamos dentro do contêiner, envolvendo-o com mais gelo seco. Por fim, colocamos a tampa e apertamos os parafusos. O Major Martin estava pronto para ir para a guerra.

8 A viagem para o norte O grupo consistia de George, eu próprio, Jock Horsfall, o famoso corredor de automóveis que estava prestando serviços especiais ao Ministério da Guerra e cujo caminhão Ford tomáramos emprestado, e o Major Martin dentro do contêiner. Logo no início da viagem, quando voltávamos do "frigorífico" para o apartamento de George em Londres, avistamos uma fila de gente na porta de um cinema esperando para ver um filme de espionagem. Imediatamente cada um de nós teve o mesmo pensamento: o que haveria de pensar aquela gente, se parássemos e disséssemos: "Esqueçam o filme. Podemos contar uma história muito melhor, e a nossa é verdadeira. Quem quer espiar dentro deste contêiner?" Rimos tanto que Jock quase derrubou um sinal de parada de bondes com o caminhão. Chegamos com segurança ao apartamento de George. Cozinhamos alguma coisa para o jantar e, durante a refeição, nos revezamos na vigilância do caminhão. Se algum ladrão roubasse nossa carga, certamente ficaria muito desapontado — e surpreso — quando abrisse o contêiner, mas seu desapontamento não seria nada diante do nosso. Por isso, preparamos sanduíches e enchemos de café as garrafas térmicas, pois sabíamos que não poderíamos nos afastar do caminhão na viagem para o norte. Terminados os preparativos, partimos para Greenock, com Jock e eu revezando na direção do caminhão. A viagem foi longa e cansativa, principalmente porque só podíamos

acender os faróis de escurecimento; em certo trecho da estrada, fomos acabar em cima da rótula de contorno da encruzilhada que, felizmente, era apenas coberta por grama. Nossas preocupações aumentavam quando ouvíamos o ruído dos aviões voando em formação. Embora o Seraph só devesse desatracar no dia 19, o Tenente Jewell nos pedira que chegássemos antes do meio-dia de 18 de abril, com tempo suficiente para solucionar algum problema de última hora para o transporte do contêiner. Ainda dispúnhamos de bastante tempo, como margem de segurança, para reparar qualquer pane no caminhão, mas não podíamos nos arriscar a um retardamento por efeito de bombardeio aéreo inimigo. De qualquer maneira, nada houve com o caminhão e, ao que soubéssemos, todos os aviões eram amigos. Dirigimos durante a noite inteira, revezando-nos para tirar um cochilo no chão da viatura.

No dia 18, chegamos a Greenock de manhã cedo e nos dirigimos para o cais, onde havíamos combinado encontrar a lancha que nos conduziria até o Forth, navio de apoio de submarinos ancorado em Holy Loch. Enfrentamos, então, uma dificuldade inesperada. Eu previra alguma complicação para arriar o contêiner dentro da lancha; por isso, em telegrama passado pelo D. N. I. anunciando a nossa chegada, eu ressaltara "um, repito, um" volume pesando de cerca de 180 quilos e pedira ajuda para embarcá-lo. Apesar deste cuidado, interpretaram que nossa bagagem toda pesava 180 quilos no total de diversos volumes. Em consequência, deparamo-nos com uma lancha oscilando um metro abaixo do nível do cais e um marinheiro para transportar a carga. Ele ficou encabulado, mas não dispunha de corda alguma; era evidente a impossibilidade de embarcar o volume sem risco de danificá-lo.

Percebi que eu, elemento estranho ao local, não tinha condições para contornar a dificuldade; corri para a sala do oficial de dia. A sorte ainda estava do meu lado. O oficial de dia era uma Wren1 que servira na seção de Comunicações em Hull, na época em que eu era um dos membros do estado-maior da unidade. Saudamo-nos como velhos conhecidos e tudo foi resolvido rapidamente; retornei ao cais acompanhado por meia dúzia de marinheiros e corda suficiente para arriar o contêiner. Navegamos até o Forth, onde entreguei o Major Martin ao Tenente Jewell. Entreguei-lhe também o bote de borracha que seria lançado com o corpo. A fim de produzir a impressão de açodamento no curso de um acidente, o bote ia ser lançado emborcado; julgamos que seria melhor deixar dentro apenas um dos remos de alumínio. Por isso, conservei o outro remo em meu poder, e ainda o guardo como lembrança. Entretanto, conforme verificamos, o uso do bote não produziu o menor resultado; um cadáver pode não ter valor para um pescador espanhol, mas um bote de borracha com certeza tem — assim, nunca ouvimos referência alguma ao nosso bote. Disseram-nos que se um hidroplano Catalina soçobrasse no mar, muito provavelmente nenhum destroço viria dar à praia; por isso não fornecemos nada ao Tenente Jewell para simular indícios de um desastre. O contêiner foi devidamente acondicionado a bordo do Seraph; tive uma conversa final com o Tenente Jewell. Sugeri que ele poderia ser capaz de lançar o corpo na água com a presença apenas de oficiais no convés. Isto reduziria o número de "conhecedores" da operação, o que tornaria menos provável algum "vazamento" sobre o caso; era extremamente importante prevenir qualquer "vazamento", em particular porque a história do lançamento de um

cadáver ao largo do litoral espanhol propiciava material excelente para boatos e especulações. Por outro lado, o lançamento do corpo exigia uma "história cobertura" para ser contada à tripulação; era preciso não esquecer que esta veria ser alçado para o convés um volume supostamente destinado à ilha de Malta, e enquanto o submarino navegava ao largo do litoral espanhol. Depois disto, ninguém mais veria a carga. Sugeri que ele podia dizer à tripulação que os tais instrumentos óticos eram, na realidade, uma boia com dispositivos secretos para captação e transmissão de dados meteorológicos; se os espanhóis soubessem disto, removeriam a boia. Se houvesse necessidade de ter a tripulação no convés durante o lançamento, seja por causa do mar agitado, seja por outro motivo qual quer, cabia-lhe utilizar a história cobertura constante da "ordem de operações". Tudo correra bem até a entrega do corpo.  De volta a Londres, pudemos terminar o relatório declarando: "No dia 19 de abril de 1943, às 18 horas, horário inglês de verão, o submarino Seraph zarpou de Holy Loch."  Ao lembrar-me da natureza da carga, achei que estes dois nomes eram muito convenientes e prenunciavam sucesso para a operação. ________________ 1 Women's Royal Naval Service (Serviço Real Naval Feminino)

9 O lançamento do corpo Passamos, então, para um período de expectativa; jamais senti qualquer apreensão a respeito do sucesso da operação, mas agora, quando sua execução saíra da minha mão, comecei a pensar em coisas que poderiam não dar certo. Por mais estranho que pareça, não me preocupava a possibilidade de os alemães descobrirem a dissimulação. Tinha certeza de que não a descobririam. Minha ansiedade limitava-se ao lançamento do corpo. Será que o corpo realmente flutuaria até a praia ou, depois de tanto esforço, teríamos que confessar que a operação fora um fiasco? Em momentos de depressão eu visualizava o Seraph em dificuldades ao largo de Huelva, para onde fora exclusivamente para cumprir o meu plano. Felizmente as minhas outras atividades não me deixavam muito tempo para ficar imaginando coisas; durante esta fase, pelo menos em uma noite passamos por momentos alegres. Pareceu-nos absurdo desperdiçar os ingressos cujos canhotos encontravam-se no bolso do Major Martin. Por isto, conforme já disse, compramos quatro ingressos e tomamos o cuidado de dar ao Major Martin as poltronas centrais das quatro que havíamos comprado. Eu e George convidamos "Pam" (isto é, a moça que nos cedera a foto) e Jill, a moça que arranjara a autora das cartas amorosas, para a "festa de despedida do Major Martin". Começamos indo ao Teatro Príncipe de Gales, onde o gerente nos deixou entrar depois de examinar o talão de ingressos da bilheteria e após ouvir nossa explicação de que, "por brincadeira", quem nos presenteara com os quatro

ingressos havia retirado os canhotos correspondentes às poltronas do centro — não contamos a ele que nós é que estávamos fazendo uma brincadeira com os alemães. Depois do teatro, fomos jantar no Clube Gargoyle. Conduziram-nos a uma mesa junto à parede, com um banco de dois lugares colado à parede e duas cadeiras do outro lado da mesa. Sugeri que as duas moças ocupassem a banqueta, mas Jill se virou para George e disse: "Considerando que Bill e Pam estão noivos, eles parecem o casal menos sentimental que já vi. Não querem sentar juntos nem na festa de despedida, antes de ele embarcar para o exterior." Estas palavras despertaram a atenção do casal que ocupava a mesa vizinha e eles apuraram os ouvidos. "Expliquei" a Jill que, embora estivéssemos noivos, nos conhecíamos há poucos dias (ouviu-se na mesa vizinha uma condenação evidente aos casamentos de guerra), mas tudo seria diferente depois que nos conhecêssemos melhor, pois, conforme escrevera meu chefe (em carta que ela lera1), apesar de parecer calmo e tímido, eu realmente entendia da profissão. Diante disso, o casal da mesa vizinha articulou uma reprovação mais forte e se levantou para dançar. Posso acrescentar outro resultado desta identificação anedótica do Major Martin comigo. Pam me ofereceu uma cópia ampliada da foto que estava a caminho da Espanha, na carteira do Major Martin, e fez uma dedicatória: "Até que a morte nos separe. Sua adorada Pam" — uma dedicatória segura, pois "eu" já estava "morto".

Certa vez, em visita a minha mãe, e para testar sua reação, deixei a foto na minha mesa de cabeceira; fiquei desapontado: ela não disse nada. Um ano mais tarde, quando minha esposa voltou da América, onde trabalhava

no nosso Serviço de Coordenação de Segurança, mostrei-lhe a foto e ela me olhou espantada, dizendo: "Então é por isso que sua mãe começou a me escrever cartas dizendo que achava que eu devia voltar logo que o trabalho permitisse!"

Enquanto esperávamos em Londres, o Seraph realizava uma viagem calma até o litoral da Espanha. A primeira notícia que recebemos foi um telegrama combinado, datado de 30 de abril, informando que a operação Mincemeat "tinha sido completada". Depois, chegou uma carta enviada pelo Tenente Jewelll, de Gibraltar:  SECRETO E PESSOAL Do: Comandante do submarino Seraph  Data: 30 de abril de 1943 Para: Diretor de Informações Navais  Cópia para o F. O. S. Pessoal para o Capitão de Fragata E. E. S. Montagu Operação Mincemeat Condições meteorológicas: o vento mostrou-se variável, alternando entre sudoeste e sudeste, com força  2. Admite-se que a brisa marítima haja aumentado pela manhã, empurrando para a praia, exatamente como ocorreu na manhã do dia anterior. Estado do mar — 2:00; céu encoberto, com nuvens muito baixas; visibilidade moderada, 1 a 2 quilômetros; barômetro 1016. 2. Embarcações de pesca: havia uma grande quantidade de barcos de pesca operando na baía. O mais próximo ficou

a 2 quilômetros de distância e não é provável que haja visto o submarino. 3. Operação: a hora escolhida foi 4h30min, pois permitia que o submarino se achasse já em distância segura por ocasião do crepúsculo matutino. O contêiner foi aberto às 4h15 e removido o cadáver. Retirou-se o cobertor e o corpo foi examinado. Verificou-se que a pasta estava presa com firmeza. O Mae West inflou totalmente e não houve necessidade de injetar mais ar. O corpo foi colocado na água às 4h30 na posição 148° de Portil Pillar, distante 2 quilômetros, a aproximadamente 1.600 metros da praia e começou a ser empurrado para o litoral. Isto foi ajudado pelo deslocamento do submarino navegando a toda força para vante. O barco de borracha foi colocado na água inflado e emborcado, cerca de 800 metros ao sul desta posição. O submarino deslocou-se para altomar e o contêiner, cheio de água, com o cobertor e o invólucro do barco de borracha dentro, foi lançado na posição 36° 37' 30 norte, 07° 18'00 oeste, profundidade de 558 metros. Inicialmente o contêiner não afundou; depois de crivado de projéteis de canhão Vickers e disparos de revólver .45, a curtíssima distância, foi visto submergindo. Telegrama anunciando operação completa transmitido às 7h15. Em anexo, amostra da água nas vizinhanças da praia. N. A. Jewelll  Tenente comandante Esta carta incluía a descrição das condições do corpo; a decomposição era superior à que esperávamos (talvez por causa do oxigênio preso dentro da roupa e do cobertor), sem ser maior do que a admissível em um corpo que houvesse flutuado semissubmerso no mar durante alguns dias.

Posteriormente, recebi um relato detalhado escrito por um membro da tripulação, na época. Trata-se de documento escrito a posteriori e por um homem que se tornou jornalista profissional. Incluo-o neste livro exatamente como o recebi e por não ser capaz de escrever um relato tão interessante. Ei-lo:  Enquanto o Seraph se afastava do navio de apoio e descia o Clyde, o comandante — tinha apenas 29 anos de idade — fez continência do alto da torre e desceu. Dos cinco oficiais e cinquenta marinheiros da tripulação, só ele conhecia o segredo de sua estranha carga. Gracejos O cilindro de metal jaz em um comprimento dianteiro do submarino. Por causa de seu peso e forma, os seis marinheiros que o carregaram até lá dizem gracejos a respeito do "corpo de John Brown". Há também muitas piadas sobre "nosso novo tripulante, Charlie". Hoje, dez anos depois, aqueles ex-integrantes da tripulação do Seraph ficariam espantados se soubessem como estavam próximos da verdade. Em um briefing sobre a viagem, disseram a eles que o cilindro de metal continha um aparelho secreto para transmissão de dados meteorológicos que ficaria flutuando, experimentalmente, ao largo do litoral da Espanha. Na realidade, o rótulo dizia: "Carregue com cuidado — instrumentos óticos — remessa especial do F. O. S." O Seraph navegou durante dez dias e a tripulação não viu a luz do sol. Emergindo apenas durante a noite, chegou ao largo de Huelva, no litoral sudoeste da Espanha, no dia 30 de abril, sem ser detectado e dentro do calendário programado.

O lugar escolhido para enviar o "Major Martin" para a praia situava-se a 1.500 metros da foz do rio Huelva. Durante a tarde o Seraph fez um reconhecimento da área. O periscópio avistou uma flotilha de cerca de cinquenta barcos de pesca. Entretanto, o nevoeiro e uma volta de mais de um quilômetro de raio ajudaram o submarino a escapar da detecção. Depois, a embarcação voltou para o fundo do mar pelo resto do dia. Mistérios A hora H foi às 4h30 da madrugada. Quando o Seraph emergiu estava escuro como breu. Nem a lua nova aparecia no céu e a maré estava invertendo seu fluxo. Os cinco oficiais subiram pela torre e o submarino equilibrou-se em uma posição que deixava um dedo de água em cima do casco. O misterioso contêiner foi alçado. Só então, com toda a tripulação embaixo, foi que o Tenente Jewelll compartilhou o segredo com seus oficiais. Disse-lhes que o contêiner abrigava um cadáver e que a operação fazia parte de um plano aliado destinado a iludir os alemães, atraindo suas forças para longe do ponto escolhido para desencadeamento do ataque principal, em uma invasão a ser realizada no Mediterrâneo. Tratava-se de "plantar" no inimigo planos falsos de invasão, usando o cadáver deste homem que se fazia passar pelo "Major Martin", vítima de um desastre aéreo no mar. Huelva fora escolhida porque se sabia que o agente alemão que operava ali era fartamente alimentado por informes trazidos por colaboradores locais. Que história fantástica para ser jogada em você, inopinadamente, no meio da noite e com as águas do Atlântico lambendo seus pés. Mas se os jovens oficiais ficaram abalados pela revelação dramática e horrível do comandante, nada deixaram transparecer.

A única reação foi o comentário de um deles: "Será que dá azar carregar cadáveres por aí? Tensão Silenciosa e rapidamente os cinco executaram suas tarefas. Enquanto três observavam, os outros ajudavam o Tenente Jewelll a desapertar os parafusos da tampa com a chave de boca a ela presa. Trabalharam dez minutos até abrirem a tampa. O corpo enrolado foi cuidadosamente retirado do esquife fechado a vácuo. A tensão diminuiu por um instante quando os oficiais se perfilaram respeitosamente na presença do morto. Ajoelhando-se outra vez, o Tenente Jewelll removeu as fitas gomadas e o cobertor caiu. Realizou-se a inspeção final. Estaria intacto o uniforme do Major? E os distintivos? A mão segurava a alça da pasta? A pasta estaria presa ao cinto da capa impermeável? Com tudo em ordem, Jewelll curvou-se para inflar o Mae West do major. Só faltava uma coisa — aliás não prevista nas instruções. Quatro oficiais descobriram a cabeça e guardaram silêncio enquanto o comandante murmurava as preces que conseguia lembrar e prescritas no cerimonial de enterro. Obrigados a guardar segredo, as palavras do Salmo 38 tiveram significado especial para eles: "Porei um freio à minha boca enquanto o ímpio estiver diante de mim. Fiquei mudo, em silêncio, mas (com isto) a minha dor exacerbouse." Um empurrão suave e lá se foi o guerreiro desconhecido para a sua última e gloriosa viagem, carregado para a praia pela maré. O "Major Martin" partira para a guerra.

Ao se arriscar a chegar tão perto da praia o Tenente Jewelll nos proporcionara todas as probabilidades de sucesso. Só nos cabia esperar, agora, para ver se o Major Martin desempenharia o seu papel. ________________ 1 A carta que Lord Louis Mountbatten escrevera ao Almirante Cunningham.

10 O Major Martin chega à Espanha No dia 3 de maio, recebemos mensagem do Adido Naval em Madri. Dizia-se informado pelo Vice-Cônsul em Huelva de que o corpo do Major Martin, dos Reais Fuzileiros Navais, fora recolhido por pescadores a poucos metros da praia, no dia 30 de abril. O corpo fora devidamente entregue ao ViceCônsul e fora enterrado com honras militares, às quais se fizeram representar as forças armadas espanholas e as autoridades locais, no cemitério de Huelva e por volta do meio-dia de 1º de maio. A mensagem do Adido não fazia menção a qualquer pasta preta, nem a qualquer documento oficial. Seguiu-se uma troca de telegramas entre o Almirantado e o Adido Naval. Se os documentos fossem realmente aquilo que fingiam ser, quando o Quartel General de Operações Combinadas tomasse conhecimento da morte do Major Martin e da chegada do corpo à Espanha, evidentemente perceberia que um documento dos mais secretos fora extraviado e que a referência a Sir Archibald Nye revelaria, em toda a sua extensão, a possibilidade de haver ocorrido um pernicioso "vazamento" de assuntos estratégicos. Estas circunstâncias forçariam a remessa de mensagens ao Adido, pressionando-o no sentido de obter a restituição dos documentos a qualquer preço, mas também alertando-o para não deixar transparecer uma ansiedade exagerada, a ponto de despertar a atenção dos espanhóis e estimulá-los a abrir ou "perder" os documentos. É claro que tínhamos que agir como se o episódio fosse realmente verdadeiro; portanto, os telegramas seguiram esta orientação.

Iniciamos por um telegrama no dia 4 de maio, esclarecendo que o Major Martin conduzia alguns documentos de grande importância e elevado grau de sigilo e instruindo o Adido para apresentar um pedido oficial de restituição. Se os documentos não fossem devolvidos, cabia-lhe realizar uma investigação profunda, mas discreta, em Huelva, para apurar se os mesmos haviam chegado junto com o corpo e, em caso positivo, o que acontecera com eles. Se recuperasse os documentos, competia-lhe enviar telegrama pessoal ao D.N.I. citando o nome dos destinatários; não lhe competia abrir os envelopes, mas sim remetê-los com urgência ao D.N.I. O telegrama seguinte informava ao Adido sobre a existência de três cartas sumamente importantes e que deveriam estar dentro de uma pasta preta, marcada com o sinete real. Mais uma vez lembrava-se ao Adido para não despertar a atenção dos espanhóis sobre os documentos. Através da resposta do Adido ao primeiro telegrama, ficamos sabendo que fora informado pelo Ministro da Marinha, em esclarecimento a uma indagação discretamente formulada, estarem os documentos transitando pelos "canais navais", devendo chegar a Madri remetidos pelo Distrito Naval de Cadiz. Isto levaria alguns dias. Nosso Adido também informava que o Vice-Cônsul em Huelva não conseguira recuperar a pasta, nem qualquer documento. No dia 13 de maio, o Adido informou-nos que o Chefe do Estado-Maior da Armada, em substituição ao Ministro que se ausentara da capital, entregara-lhe todos os pertences do Major Martin, inclusive uma pasta preta — a qual achava-se aberta e com uma chave na fechadura. O Chefe do EstadoMaior da Armada declarara "estar tudo ali" e o Adido agradecera. Nosso Adido informou-nos ter quase certeza de que o Chefe do Estado-Maior da Armada tomara conhecimento do texto das cartas, mas acrescentou que não tinha motivo

algum para pensar que aquele oficial-general divulgaria o conhecimento adquirido. Evidentemente não suspeitávamos daquele homem, mas se ele conhecia o assunto das cartas, com certeza outras pessoas também haviam tomado ciência do mesmo. As coisas iam bem — principiara o "vazamento". Nosso otimismo cresceu com a mensagem seguinte enviada pelo Adido. O Ministro da Marinha, em pessoa, referira-se aos documentos durante a audiência concedida ao Adido no sábado, dia 15 de maio. Parece que ouvira dizer, quando em Valência, que os documentos haviam chegado a Madri e dera ordem, imediatamente, ao Chefe do Estado-Maior da Armada para devolvê-los. Procedera assim temendo que alguém, sem autorização, examinasse os documentos, o que constituiria, explicou, uma transgressão grave. Nada do que fora dito ao Ministro da Marinha, antes da sua saída de Madri, revelara a menor ansiedade sobre o texto dos documentos; por isto, não tínhamos a menor dúvida de que os envelopes haviam sido abertos. Desta forma, estávamos certos de que algum espanhol graduado "sabia de tudo" e passaria a informação para os alemães. Só viemos a saber o quanto era íntima esta cooperação depois que a guerra acabou.

Enquanto isso, investigações discretas em Huelva completaram alguns pormenores do que ocorrera. Soubemos, com absoluta segurança, que um pescador vira um objeto flutuando e acenara para uma lancha que se encontrava nas vizinhanças, a qual recolheu o objeto a bordo. A lancha transportou o objeto, que vinha a ser o corpo do Major Martin, para a praia mais próxima e

entregou-o a um oficial que dirigia a instrução de um destacamento de Infantaria naquela praia. Chamado ao local, um oficial da capitania dos portos recolheu todos os documentos e objetos pessoais do morto. Depois de identificado, o corpo foi removido para o necrotério de Huelva para ser autopsiado. O médico atestou que o corpo caíra no mar ainda com vida e não apresentava nenhuma escoriação; a morte ocorrera por asfixia, resultante de imersão no mar nos cinco ou oito dias anteriores. Um piloto da Força Aérea americana, cujo avião caíra no mar no dia 27 de abril, foi chamado para examinar o cadáver e identificá-lo, o que não conseguiu fazer obviamente. O homem que sabíamos ser o principal agente alemão na redondeza prontamente tomou conhecimento do desembarque do corpo. Rapidamente apurou os pormenores, inclusive o nome dos destinatários das cartas encontradas na pasta; tentou obter cópias dos documentos, o que só não conseguiu por uma circunstância infeliz: nem ele, nem nenhum dos seus auxiliares, possuía relacionamento íntimo com o elemento da capitania que fora chamado pelo comandante da tropa que se exercitava na praia. Mesmo confiantes de que tudo corria bem, queríamos uma prova conclusiva. Esperamos impacientemente pelo retorno dos documentos que o Major Martin conduzira; assim que os recebemos em Londres, submetemo-los a provas científicas. Antes de entregá-los ao Major Martin, tomáramos certas precauções (evidentemente não vou mencioná-las) que nos ajudariam a verificar se os envelopes haviam sido abertos. Embora a imersão em água do mar nos prejudicasse um pouco, estávamos em condições de declarar com certo grau de certeza, em face das provas físicas, que pelo menos duas cartas haviam sido retiradas dos envelopes, embora estes parecessem intatos.

Quando fizemos a integração destas provas com os informes recebidos de Huelva e do Adido Naval, ficamos plenamente satisfeitos. Não havia dúvida de que os espanhóis abriram as cartas e tomaram conhecimento dos assuntos nelas abordados; também não havia dúvida de que o Serviço de Informações alemão conhecia a importância dos destinatários. Cabia-nos confiar na eficiência dos alemães para obterem o que desejassem. Acreditávamos que a nossa confiança nos representantes do Serviço de Informações alemão na Espanha não seria vã. Agora, cabia a Berlim desempenhar o seu papel.

Faltava dizer adeus ao Major Martin. Ele prestara um grande serviço ao país; competia-nos zelar para que o local de seu último repouso fosse condizente, bem como prestarlhe as honras devidas. Alegrava-nos poder homenageá-lo sem correr o risco de comprometer o sucesso da operação na qual ele desempenhara um papel tão vital. Na realidade, fazer o que os nossos sentimentos exigiam tornaria ainda mais difícil para os alemães a verificação do laudo da autópsia do médico espanhol — laudo com o qual estávamos inteiramente de acordo. Visitas frequentes de oficiais ingleses, ou seus representantes, à sepultura pelo menos impediriam uma exumação, enquanto não ficava pronto o túmulo mandado construir. Primeiro, mandamos o Adido Naval colocar na sepultura uma coroa de flores em nome de Pam e da família; depois, providenciamos para que o túmulo fosse concluído o mais depressa possível. Por fim, escrevi ao Adido Naval solicitando-lhe que agradecesse ao Vice-Cônsul em Huelva, em nome da família do Major Martin, por toda a atenção que dedicara ao caso; pedi também que fossem tiradas

fotografias do túmulo, as quais seriam guardadas com' carinho pela família e pela noiva do Major Martin. A coroa foi montada com flores retiradas do jardim de uma companhia de mineração inglesa em Huelva; o túmulo era de mármore branco e a campa apresentava a seguinte inscrição: "William Martin. Nascido em 29 de marco de 1907. Falecido em 24 de abril de 1943. Filho querido de John Glyndwyr Martin e da falecida Antonia Martin, de Cardiff, Gales. Dulce et decorum est pro patria mori. R.I.P."

Nada mais podíamos fazer por ele, embora lhe devêssemos muito e achássemos que, dentro de pouco tempo, milhares de patrícios seus e aliados americanos poderiam dever a vida a ele, quando desembarcassem nas praias da Sicília. Agora, a minha confiança nesta probabilidade já era compartilhada pelos altos escalões. Eu tinha que enviar uma mensagem para o Tenente Jewelll, dando ciência de que a sua participação na operação fora coroada de sucesso. Mas não convinha enviar a mensagem pelos canais competentes, porque isto poderia dar margem a indagações. Assim, achei que o Tenente Jewelll entenderia o significado da frase "você ficará contente em saber que o major desfruta agora de todo conforto" escrita por mim em um cartão postal comum. Os Chefes de Estado-Maior ainda fizeram melhor. Enviaram telegrama ao Primeiro-Ministro, que na ocasião estava em Washington, dizendo o seguinte, depois de decodificado: "Recheio todo engolido."

11 Arrumando as coisas na Inglaterra Nesta altura dos acontecimentos, nós listo é, todo nós no lado aliado) já havíamos completado a nossa parte da tarefa. Ainda que mal comparando com um jogo de cartas, nós já fizéramos a canastra; só faltava os alemães baterem, quando o jogo chegasse ao fim com a invasão da Sicília. Assim, no conjunto, ficamos sentados e aguardando o desenrolar dos acontecimentos. Entretanto, com o passar dos dias, lembramos que The Times costumava ser vendido em Lisboa e que os alemães poderiam estar esperando pela lista de baixas que o jornal publicava periodicamente. Por isto, verifiquei o espaço de tempo que decorria normalmente entre uma morte e a sua divulgação no jornal; pareceu-me que, de modo geral, este período não excedia de cinco semanas. A partir de 24-de abril, isto nos levaria para a primeira semana de junho. Valeria a pena incluir o nome do Major Martin na lista de baixas? Será que isto compensaria o trabalho? O desembarque na Sicília estava planejado para a segunda semana de julho e dificilmente os alemães podiam ter certeza de que o nome de uma baixa verdadeira tinha que ser publicado. Por outro lado, se a dissimulação os houvesse levado a tomar providências, estas teriam que ser adotadas antes da primeira semana de junho; eles também não teriam tempo para remediar qualquer equívoco — ou mesmo começar a fazê-lo — antes de nosso desembarque. Além disso, sempre existia a possibilidade de que a invasão da Sicília viesse a ser adiada por algum motivo. Depois de certa hesitação, decidimos que a omissão na divulgação da

baixa poderia causar prejuízo e que seria melhor ter certeza do que lamentar a falta de sorte. Contudo, no fim, realmente lamentamos a inclusão desse requinte na nossa obra, não porque nos causasse algum prejuízo, e sim pelos problemas que nos criou. No que concerne ao objetivo da dissimulação, tudo correu bem e conservamos nossa sorte monumental. Foi muito fácil conseguir que a Seção de Baixas da Divisão de Pessoal do Almirantado, a pedido do D.N.I., incluísse o nome do "Capitão (comissionado Major) William Martin, FN", entre os "mortos" na lista seguinte de baixas a ser divulgada. Nem lembro mais a desculpa que dei ao transmitir o estranho pedido.

A notícia foi publicada no The Times de sexta feira, 4 de junho de 1943. Provavelmente jamais saberemos se os alemães encontraram o nome; se o encontraram, viram na mesma lista os nomes do Contra-Almirante P. J. Mack, D.S.O., e do Baronete T. L. Beevor, Capitão de Mar e Guerra. Anteriormente, os jornais haviam divulgado, sem mencionar os nomes, que estes dois oficiais tinham morrido quando um avião se perdera no mar. Nada seria mais plausível do que admitir que o Major Martin morrera com eles — confesso que foi pura sorte a coincidência dos nomes na mesma lista. Alimentei a esperança de que os alemães tivessem visto a lista, pois seria uma pena se esta feliz coincidência passasse despercebida. Mas foi aí que começaram os problemas. As listas de baixas são examinadas por repartições ignoradas por mim, umas, e completamente esquecidas, outras. Comecei a perceber o que teria me acontecido se tivesse deixado que as mensagens do Adido em Madri seguissem a

distribuição normal, em vez de me serem enviadas diretamente. O Departamento de Pessoal da Marinha queria saber se o Major Martin deixara testamento e, em caso positivo, onde estaria. O Diretor de Saúde, no Departamento Geral da Marinha, queria saber se o Major Martin morrera em combate ou em consequência de ferimentos, se morrera em serviço ativo ou no cumprimento de missão estranha à força, tudo isto para que a baixa fosse relacionada na estatística adequada. Por felicidade, funcionaram satisfatoriamente as providências que tomara no sentido de controlar qualquer indagação sobre o Major Martin ou seus documentos. Tomei conhecimento das indagações quando elas ainda estavam num escalão tão baixo que me foi possível sustar seu andamento, mas tive que me entender com todas as repartições interessadas. Dei tratos à bola para encontrar respostas. Por exemplo, não podia indicar ao Departamento de Pessoal a firma McKenna, que produzira o testamento do Major Martin antes da viagem. Agora, entendia perfeitamente a sabedoria do aforismo "Oh, que teia de aranha tecemos com a dissimulação"; estava enredado nela. Disse aos chefes de cada departamento que não precisavam se preocupar com o Major Martin, nem registrar sua morte. Expliquei que era de um agente especial enviado em missão importante, depois de receber (com a devida autorização do Primeiro Lord do Mar), a título de cobertura, o posto de oficial dos Reais Fuzileiros Navais. Afinal de contas, esta história era bem verdadeira. A única coisa que "esquecia" de revelar é que ele já estava morto antes de partir para a missão. Com apoio do D.N.I., fiz-lhes ver a necessidade absoluta de sigilo e eles avocaram o assunto a seus respectivos gabinetes. Conseguíramos vedar o que mais se aproximara de provocar um "vazamento".

Vale a pena acrescentar o que aconteceu muitos anos depois, quando eu já estava licenciado da Marinha. Ainda havia gente manipulando listas de baixas e recebi uma solicitação para comparecer urgentemente à Divisão de Informações Navais. Acontece que a Divisão estava recebendo novas indagações a respeito do Major Martin e queria saber o que eu havia feito nesses casos, enquanto estava no serviço ativo; a Divisão queria dar, agora, respostas idênticas às minhas.

Excluindo estes aspectos relacionados à lista de baixas, a operação Mincemeat já não estava mais em nossas mãos. Desempenháramos nosso papel; o Tenente Jewelll e o Major Martin haviam cumprido suas respectivas missões. O que estariam fazendo os alemães?

12 O serviço de informações alemão faz a sua parte Desde os meses de maio e junho, e até julho de 1943, não dispúnhamos de qualquer indício para apoiar nossa crença de que havíamos obtido sucesso na operação; restava-nos a nossa fé na penetração alemã na Espanha e na ingenuidade germânica. Tínhamos certeza de que os alemães possuíam os documentos; concretizado este primeiro passo, o quadro com que se deparavam era tão completo e convincente, que nenhuma seção de Informações poderia duvidar de haver conseguido um triunfo marcante. Imaginávamos os diretores de Informações esfregando as mãos; estariam inclinados a pensar que o cuidado e a eficiência empregados na implantação de seus órgãos na Espanha e a importante ligação com o mundo oficial espanhol, motivo de orgulho especial para o Almirante Canaris1, afinal produzira resultado. Anteriormente, a rede alemã na Espanha deve ter proporcionado a Berlim a maioria dos informes sobre movimento de navios através do estreito de Gibraltar, bem como Informações obtidas nas Ilhas Britânicas e na América, difundidas a partir de Madri; mas era exatamente com esta finalidade que a rede fora montada. Fora disto, a rede mostrara-se, ineficaz antes do ataque contra o norte da África quando, ao que saibamos, os alemães foram apanhados de surpresa. Agora, finalmente, conseguia-se um triunfo verdadeiro. Ser capaz de fornecer ao Alto Comando a cópia de uma carta de um Vice-Chefe de Estado-Maior para o comandante de um exército em campanha (uma carta como a que

preparáramos) estava muito além das expectativas mais otimistas de um oficial de Informações — talvez isto não passasse de um sonho em toda a carreira de um oficial. Se utilizados oportunamente pelo Estado-Maior, informes do tipo dos contidos na carta poderiam evitar um desastre, ou poderiam levar a infligir aos aliados uma derrota esmagadora em um momento crucial da guerra e, com isto, talvez alterar todo o curso da história. É possível que haja sido este o motivo que me levou a lutar com tanto ardor contra as sugestões no sentido de que não nos deveríamos arriscar demasiadamente, de que deveríamos utilizar o plano para transmitir alguma desinformação menos expressiva, coisa que circula em documentos de oficiais subalternos. Se as cartas conduzidas pelo Major Martin contivessem este tipo de material, não só os alemães poderiam não se ter esforçado para obter as cópias, como também, mesmo de posse delas, poderiam não as ter aproveitado para a tomada de decisões estratégicas. Ora, aquilo que Sir Archibald Nye escrevesse para o General Alexander tinha que ser verdade; o Vice-Chefe do Estado-Maior Imperial tem que saber quais são os planos aliados, e não pode ser ele próprio vítima de um "plano de cobertura" ou de desinformação. Se o Serviço de Informações alemão engolisse as cartas como verdadeiras, não poderia deixar de difundi—las — e nenhum EstadoMaior de posse de tais dados, com a veracidade atestada pelo Serviço de Informações, poderia deixar de utilizá-los na formulação da estratégia. Por isso, ficamos sentados e aguardando. Chegou o dia D da operação Husky e o assalto correu bem. A Sicília assemelha-se a um triângulo apoiado sobre uma das pontas; nas primeiras horas da manhã de 10 de julho, os aliados desembarcaram em ambos os lados desta ponta e progrediram rapidamente, seja pelos lados do triângulo, seja pelo seu centro. Outros elementos contribuíram para a

surpresa obtida, como as condições meteorológicas desfavoráveis e a "fase da lua" escolhida, mas esta surpresa não abalou a confiança do nosso grupo de que o sucesso da operação Mincemeat constituiria a grande contribuição. Esta opinião ia sendo confirmada na medida em que começávamos a receber documentos e relatórios de Informações provenientes da Sicília; não restou mais dúvida de que os alemães haviam desviado o esforço na preparação da defesa da Sicília, deslocando-o do Sul (onde desembarcamos realmente) para o ângulo ocidental do triângulo e para o seu lado norte. Precisamente estes seriam os pontos perigosos se tivéssemos executado um ataque diversionário durante uma invasão da Sardenha, ou um assalto depois da conquista da Sardenha. Não foram apenas os campos de minas recentes, os obstáculos e as posições defensivas que foram desviados para o norte da Sicília; a potência defensiva e as reservas disponíveis na ilha eram inferiores ao que estimáramos e particularmente deficientes ao sul e no leste. Diante dos informes disponíveis, foi oficialmente reconhecido o sucesso da nossa participação na dissimulação. A opinião dos que estavam investidos em funções de comando naquela operação foi sintetizada no relatório do Almirante Cunningham: "O eficientíssimo plano de cobertura e as rotas disfarçadas dos comboios contribuíram" para a surpresa obtida — só mais tarde viríamos a saber quão preponderante fora a contribuição do plano de cobertura. Isso porque a amplitude e o grau do nosso sucesso só se tornaram públicos muito mais tarde — na realidade, meses depois do dia da vitória na Europa. Certa manhã eu trabalhava na minha sala mal ventilada e sufocante no Almirantado — encerrando a minha atividade, escrevendo relatórios sobre o que havia sido feito, a fim de servir de orientação, em guerras futuras, para aqueles que jamais teriam tempo para lê-los (ou que achariam não valer a pena lê-los), e aguardando a data

marcada para a desmobilização do meu grupo — quando o telefone tocou. Era o D.D.N.I.2 e sua voz estava tão perturbada pelo riso que tive dificuldade para entender o que dizia; percebi que me chamava a seu gabinete. Subi até lá; ainda rindo, entregou-me alguns documentos que estavam na mesa. Apanhei-os e os reconheci logo, apesar de meus olhos se terem fixado no cabeçalho de um deles: "Lieber Grossadmiral". Tratava-se das cartas da operação Mincemeat, ou pelo menos da tradução das cartas para o alemão, que completavam a longa jornada de retorno à origem. O D.D.N.I. explicou o motivo do riso. Havia um oficial selecionando e traduzindo o que fora encontrado nos arquivos navais alemães, apreendidos em Tambach, na Alemanha. Naquela manhã o homem entrara no gabinete do D.D.N.I. com uma cara muito espantada e solicitara instruções, em vista do que estava acontecendo. O oficial encontrara "estes dois documentos" no arquivo que estava examinando; um era a cópia de uma carta do Vice-Chefe do Estado-Maior Imperial para o General Alexander e, declarou o oficial, parecia comprovar uma gravíssima violação da segurança, além de possível transgressão de todas as prescrições regulamentares. Ele costumava entregar ao representante do Ministério da Guerra as cartas que lhe pareciam ter algum valor para o Exército, mas os documentos em questão pareciam-lhe "quentes" e vinculados a complicações no alto escalão; por isto, achava que o D.N.I. podia tratar do assunto no nível hierárquico compatível. O D.D.N.I. reconhecera as cartas e desfizera a preocupação do oficial. A partir daí iniciou-se a busca de outros documentos relacionados ao assunto; em pouco tempo encontramos as provas do nosso triunfo sobre o Serviço de Informações alemão.

Conforme prevíramos, o Serviço reconhecera imediatamente a importância dos documentos para o Alto Comando, caso fossem autênticos; por isso, não perdeu tempo. Parece que os agentes em Madri comunicaram a Berlim, na primeira semana de maio e por via telegráfica, o texto dos documentos de um relatório sobre o que havia sido encontrado; em documento com data posterior, encontramos referência ao fato de haver circulado uma mensagem telegráfica, no dia 9 de maio, com uma apreciação do Serviço de Informações sobre as intenções dos aliados, e isto antes da chegada a Berlim dos "documentos originais". Quando o Serviço de Informações em Berlim recebeu este informe, reagiu exatamente como prevíramos: solicitou provas que sustentassem a autenticidade dos documentos. Tanto isto é verdade que ao primeiro relatório de Madri seguiu-se um outro bem mais pormenorizado; este segundo relatório revelava que ainda seriam realizadas investigações mais minuciosas. Mas o tempo era pouco; Berlim avaliara perfeitamente a importância do informe e decidira que os pormenores fornecidos por Madri eram suficientes. E o Serviço fez o que pôde com os documentos. O primeiro documento importante era uma apreciação do Serviço de Informações contendo, em anexo, a tradução para o alemão da carta de Sir Archibald Nye ao General Alexander. Estava datada de 14 de maio de 1943 e continha o seguinte carimbo de instruções, além do de "secreto": "Para circular em mãos. Não protocolar." A difusão assinalada no documento era para o Comandante-Chefe da Marinha Alemã, Almirante Doenitz; no dia 15 de maio o Chefe do Estado-Maior do Almirante rubricou o documento e traçou nele uma cruz, com lápis azul, indicando que o próprio Doenitz deveria lê-lo. O Almirante leu-o, colocou sua rubrica por cima da cruz azul e acrescentou o número 18 para indicar a data da leitura, realizada no regresso da visita

a Hitler e Mussolini. Havia mais dois outros oficiais incluídos na difusão. A apreciação dizia o seguinte: Assunto: documento inimigo capturado, relacionado com operações no Mediterrâneo. Anexos: (a) tradução de uma carta capturada, endereçada pelo Estado-Maior Imperial ao General Alexander;  (b) apreciação do Estado-Maior (alemão). Os assuntos abordados em outros documentos capturados simultaneamente carecem de importância. O exame exaustivo realizado por 3 SKL revelou o seguinte: 1. Não há dúvida sobre a autenticidade dos documentos capturados. Continuam a ser examinadas as hipóteses de os documentos haverem sido colocados em nossas mãos propositalmente — hipótese muito remota — ou de o inimigo só ter conhecimento do desaparecimento dos documentos no mar, sem saber que o capturamos. É possível que o inimigo não saiba da captura dos documentos. Por outro lado, o inimigo tem certeza absoluta de que os documentos não chegaram ao destino. 2. Há necessidade de considerar se o inimigo alterará as operações pretendidas ou se antecipará a data prevista para o desencadeamento das mesmas; é pouco provável que realize qualquer destas ações. 3. Data provável da operação — O assunto está sendo tratado em caráter de urgência; apesar disto, ainda houve tempo, no dia 23 de abril e por mensageiro aéreo, para informar o General Alexander sobre as propostas do General Wilson, no sentido de utilizar a Sicília como objetivo de cobertura para o assalto no Mediterrâneo oriental; solicitase que Alexander responda imediatamente, caso apoie a

proposta de Wilson, "pois não poderemos adiar o assunto por muito tempo". Neste caso o Estado-Maior Imperial admite alterar o planejamento para o Mediterrâneo ocidental e oriental, ainda havendo tempo para isto. 4. Sequência das operações — Admite-se que ambas as operações serão desencadeadas simultaneamente, uma vez que a Sicília não serve como objetivo de cobertura, ao mesmo tempo, para as duas operações. 5. A região de Tobruk afigura-se como ponto de partida para as operações no Mediterrâneo oriental. Alexandria não foi cogitada por ser incoerente com um alvo de cobertura na Sicília. 6. Ainda não ficou claro se a dissimulação produzida pelo alvo-cobertura refere-se apenas ao período que vai até o início das operações ou se, na realidade, seria utilizada tanto uma operação cobertura, como um assalto real. 7. O documento em anexo não esclarece se só a 5ª e a 56? Divisões desembarcarão no Mediterrâneo oriental (em Araxos e Kalamata). Entretanto, só estas duas divisões vão ser reforçadas para o assalto que realizarão. É sempre possível admitir que o documento haja mencionado todas as tropas de assalto e seus alvos. 8. É preciso realçar que o documento torna claro que também estão sendo realizados grandes preparativos no Mediterrâneo oriental. Isto é importante porque estamos recebendo daquela região muito menos Informações sobre preparativos do que as Informações provenientes da Argélia; talvez por causa da localização geográfica. O primeiro ponto de destaque é que o Serviço de Informações alemão já se engajou na afirmação categórica de que "não há dúvida sobre a autenticidade dos documentos capturados"; embora protejam-se prudentemente, declarando estarem investigando tanto a possibilidade de os documentos terem sido "plantados",

como o grau do nosso conhecimento sobre o destino dos documentos, as Informações alemães já afirmam que, para o primeiro caso, as possibilidades são "mínimas". Também empenharam-se em decidir que seria "improvável" uma alteração nos nossos planos ou a antecipação da data do assalto; dentre as pessoas que conhecem os pormenores e as dificuldades inerentes ao planejamento e execução das operações de grande envergadura, nenhuma concordaria com tal opinião. Há um caso que ilustra perfeitamente a necessidade, para quem está trabalhando em uma dissimulação deste tipo, de penetrar na mente do inimigo e tentar visualizar seu grau de conhecimento geral; é a declaração do parágrafo 5. Os alemães consideraram a Sicília inviável como alvo de cobertura para uma operação com tropas baseadas em Alexandria — provavelmente por julgarem a distância muito grande. Se fosse nosso Estado-Maior que estivesse examinando o documento, a reação teria sido diferente: sabia que a distância não era muito grande e que as tropas de Alexandria podiam ser empregadas em assalto à Sicília, o que ocorreu na realidade. Não preciso analisar detalhadamente o restante do documento porque tratarei das apreciações do Alto Comando sobre os documentos no capítulo seguinte. Entretanto, as considerações já apresentadas revelam a atenção dispensada a cada palavra e a cada implicação da carta do Vice-Chefe do Estado-Maior Imperial. Esta apreciação foi complementada por outro documento difundido pelo Serviço de Informações alemão, datado de 15 de maio de 1943. Dizia o seguinte: Assunto: Mensageiro oficial inglês encontrado na praia de Huelva. Os aspectos abaixo foram esclarecidos em conversa, no dia 10 de maio de 1943, com o encarregado do caso, um oficial do Estado-Maior espanhol com quem mantemos contato há vários anos.

1. Presa na mão do cadáver havia uma pasta comum, contendo os seguintes documentos: (a) — um envelope comum, de papel branco, contendo cartas endereçadas ao General Alexander e ao Almirante Cunningham. O envelope não tinha nenhuma inscrição. Cada uma das três cartas achava-se em envelope separado, endereçada na forma habitual e com o nome do destinatário, aparentemente lacrada com o selo próprio do remetente. Os lacres achavam-se em perfeito estado. As próprias cartas, conforme pude constatar, também se apresentavam em perfeito estado. Para conseguir cópias, os espanhóis secaram-nas com calor artificial e, depois, colocaram-nas em água salgada durante 24 horas, sem produzir alterações sensíveis em relação às condições originais das mesmas; (b) — a pasta continha ainda as provas tipo gráficas de um panfleto sobre atividades do Comando de Operações Combinadas, mencionadas por Mountbatten na carta de 22 de abril, bem como as respectivas fotografias. As provas achavam-se em perfeitas condições, mas as fotografias estavam bastante danificadas. 2. O mensageiro também conduzia uma carteira no bolso interno da capa contendo documentos pessoais, inclusive sua identificação militar com fotografia Ide acordo com esta identificação, tratava-se do Major Martin, mencionado por Mountbatten na carta de 22 de abril), além de uma carta escrita pela noiva do Major Martin, outra escrita por seu próprio pai e uma conta de um clube noturno de Londres, datada de 27 de abril. Portanto, o Major Martin deixou Londres na manhã de 28 de abril, no mesmo dia em que o avião sofreu o desastre

nas vizinhanças de Huelva. 3. O Cônsul inglês achava-se presente por ocasião do recolhimento do cadáver e foi informado sobre o que ocorrera. A esperada solicitação do Cônsul no sentido de que lhe fossem entregues os documentos foi rejeitada sob o argumento de que todos os artigos encontrados com o corpo, inclusive todos os papéis, deveriam ser inventariados pela autoridade espanhola. Depois de copiados, o Estado-Maior espanhol restabeleceu as condições originais de todos os documentos, dando a impressão exata — conforme eu mesmo constatei — de que nenhum deles fora violado. Hoje os documentos serão restituídos aos ingleses, através do Ministério do Exterior espanhol. O Estado-Maior espanhol está realizando investigação a respeito do paradeiro do piloto do avião, provavelmente ferido no desastre, a fim de interrogá-lo sobre o destino de outros passageiros. Do ponto de vista da nossa pequena equipe, este era o documento mais interessante. Justificava plenamente o cuidado que tivéramos para criar a personalidade do Major Martin, pois a própria "realidade" deste oficial aumentava a convicção na veracidade dos documentos que ele conduzia; mostrava-nos, também, como o acaso adicionava importância a certos pormenores e reduzia o valor de certos outros. Este documento comprovava o acerto da nossa convicção, na qual se baseava toda a operação, de que os alemães teriam acesso a tudo que os interessasse e que fosse colocado nas mãos do Estado-Maior espanhol. Nossa primeira conclusão foi sobre a desnecessidade de nos preocuparmos em saber se era ou não plausível prender a pasta no Major Martin com uma corrente; os alemães só ficaram sabendo que ele agarrava a pasta com a mão. Logo,

tanto a incompetência dos espanhóis como a cooperação que prestavam aos alemães nos foram favoráveis. Não entendi o que dizia o parágrafo 1 (a) a respeito de um "envelope de papel branco" contendo os outros envelopes. Ou os espanhóis haviam acrescentado algo para evitar que as cartas ficassem manchadas, ou algum envelope com as provas do panfleto havia mudado de lugar; de qualquer maneira, uma coisa era certa: nós não havíamos colocado o tal envelope branco. Por outro lado, os lacres não representavam o selo do remetente, mas sim o brasão real. Registramos o fato de os documentos pessoais terem sido retirados da carteira e examinados; sentimo-nos satisfeitos porque as cartas de Pam e do pai do Major Martin não se extraviaram — este esforço artístico não foi em vão. A carta de Lord Louis Mountbatten ao Almirante Cunningham, conforme mostrava o documento alemão, também desempenhara o papel que lhe fora atribuído na revelação de quem era o Major Martin. Este documento demonstrava de forma cabal uma das maiores dificuldades enfrentadas na execução de uma dissimulação. Quem pratica a dissimulação só pode apresentar ao adversário o material; cabe ao adversário tirar conclusões por conta própria. Por isto, o autor da dissimulação tem que avaliar com que eficiência e descortino será tratado o seu material. Creio que estava certa a nossa percepção sobre o descortino alemão, mas parece que lhe atribuímos um grau excessivo de eficiência, porque ele cometeu dois equívocos, ambos relacionados com as datas. Conforme se pode ver, comparando a foto da carta de Lord Louis Mountbatten ao Almirante Cunningham com a cópia fotostática da tradução alemã da mesma carta, os alemães não se preocuparam em copiar as datas corretamente. A carta estava datada de 21 de abril, mas os

alemães, ou ao copiarem a carta ou ao traduzi-la, alteraram a data para 22 de abril. Este erro não influiu em nada, mas o outro erro foi mais perigoso. O relatório menciona "a conta de um clube noturno de Londres datada de 27 de abril"; chegamos à conclusão de que o erro resultou de leitura pouco atenta dos canhotos dos ingressos de teatro. O convite para o Cabaret Club não era uma conta, nem estava datado. Também não podia se tratar da conta, datada de 24 de abril, referente à hospedagem por algumas noites no Clube Naval e Militar, porque ela não se parecia com uma conta de clube noturno. Evidentemente, nem os espanhóis confundiriam "Entrada e Saída" com presença em um clube noturno. Logo, concluí, que o erro decorria de confusão entre os canhotos para o Teatro Príncipe de Gales e o convite para o Cabaret Club. Não tinha importância confundir teatro com clube noturno, mas trocar as datas era grave. Conforme era nossa intenção fazer com que os alemães acreditassem, o relatório concluiu que o Major Martin partira da Inglaterra no dia seguinte ao da sua festa de despedida; mas o erro na data estabeleceu a partida do Major Martin como tendo ocorrido "na manhã do dia 28 de abril, no mesmo dia em que o avião sofreu o desastre nas vizinhanças de Huelva". Se os alemães tivessem levado em consideração o laudo do médico espanhol a respeito da data da morte (sem dúvida o agente em Huelva sabia da existência do laudo) e o associassem com a data da partida, haveriam de ficar cheios de suspeitas. Com alguma razão, o médico espanhol admitira a ocorrência da morte vários dias antes de o corpo ser recolhido no dia 30 de abril; o menor prazo estimado pelo médico foi de cerca de cinco dias. Assim, o desastre que provocara a morte do Major Martin deveria ter sucedido por volta do dia 25 de abril.

A minha capacidade de filosofar não vai ao ponto de me permitir divagar sobre o que se pode deduzir deste fato. Pode-se argumentar que tivemos sorte, uma vez que ninguém prestou atenção a esta discrepância, o que teria "estourado" a nossa dissimulação. Não creio ser egoísmo excessivo declarar que não aceito tal argumento. Proporcionamos aos espanhóis e aos alemães todos os dados necessários para que eles tirassem as conclusões que desejávamos. Admito ser absurdo declarar que fazíamos jus a uma cooperação inteligente e competente da parte do inimigo, mas acho que podemos declarar que fornecemos os dados corretos e que eles tiraram as conclusões exatas, mesmo que tivessem chegado a essas conclusões cometendo erros. De qualquer maneira, o relatório revela que os alemães concluíram que o Major Martin viajara por via aérea e que o desastre com o avião sucedera em data compatível com a sua partida da Inglaterra e o estado de decomposição do cadáver, ao ser retirado do mar. O parágrafo seguinte também mereceu a nossa atenção. Mostrava que se justificava plenamente a nossa opinião sobre a cooperação hispano-germânica em Huelva. Quando a intervenção fortuita de uma unidade militar e de um oficial da capitania dos portos impediu o acesso imediato aos documentos, o relatório assinala como a tentativa do Vice-Cônsul inglês "foi rejeitada" mediante um pretexto. Tínhamos certeza de que podíamos confiar nos espanhóis. Por fim, há o registro do fato de que os envelopes, já com as cartas recolocadas, e os outros documentos não foram devolvidos antes de serem manuseados e inspecionados pelo agente alemão em pessoa. Foi daí que ele colheu a impressão de que as cartas "não foram violadas". Esta

impressão não me surpreendeu; o mesmo teria ocorrido comigo, se não houvéssemos tomado as devidas precauções. Em suma, no que dizia respeito ao Serviço de Informações alemão, estávamos vitoriosos. No que lhes concernia, poder-se-ia repetir a frase dos Chefes de EstadoMaior: "Mincemeat (recheio) engolido todo." Sem sombra de dúvida, o Serviço de Informações aceitara tudo como verídico. Mas a nossa vitória não teria significação se o Alto Comando alemão não adotasse a mesma opinião e prosseguisse nos preparativos para enfrentar a invasão da Sicília. Felizmente, também engoliram tudo. ________________ 1 Chefe da Inteligência e Espionagem Militar Alemã. 2 Vice-Diretor da Inteligência Naval.

13  O alto comando alemão fica agitado Os dados que recolhemos dos arquivos navais alemães capturados em Tambach também eram muito esclarecedores sobre as reações que a operação Mincemeat produziu no Alto Comando alemão. Os resultados que conseguimos superavam de muito as nossas expectativas mais otimistas. As nossas previsões sobre aquilo que, inicialmente, os alemães esperavam da parte dos aliados, depois da conquista da Tunísia, estavam absolutamente corretas; havíamos até subestimado as dificuldades que iríamos enfrentar. Encontramos uma cópia da mensagem do Alto Comando alemão ao exército na Tunísia, datada de fevereiro de 1943. Eles haviam decidido que a nossa operação seguinte seria no Mediterrâneo e contra uma das grandes ilhas. A ordem de prioridade que estabeleceram colocava a Sicília em primeiro lugar, Creta em segundo lugar, seguida da Sardenha e da Córsega. Por isso, quando realizávamos o nosso planejamento em Londres, estávamos certos ao pensar, desde o começo, que os alemães se concentrariam na Sicília; na medida em que progredissem nossos preparativos no Mediterrâneo ocidental, perceberiam que os mesmos não se destinavam a um ataque contra Creta, enquanto a Sicília barrasse o caminho. Prevíramos tudo isto com correção, mas a mensagem incluía uma declaração: "os relatórios a respeito das futuras operações angloamericanas, enviados por nossos agentes, permitem concluir que o inimigo está praticando a dissimulação em larga escala". Esta conclusão ia se revelar correta, mas a

minha dúvida é se teríamos tido permissão para desencadear a operação Mincemeat caso os Chefes de Estado-Maior soubessem como os alemães estavam atentos para a dissimulação. Os dados revelam que os alemães conservaram esta perspectiva estratégica até o início de maio de 1943. Então, no dia 9 de maio, o quadro inteiro mudou: o Alto Comando recebeu a notícia da posse dos documentos do Major Martin. O Serviço de Informações deve ter enviado uma apreciação ao Alto Comando no dia 9 de maio, porque encontramos o documento abaixo no arquivo, logo em seguida à apreciação de 14 de maio, mencionada no capítulo anterior: Em complemento ao meu 2144/43, de 9 de maio de 1943, esta apreciação baseia-se no recebimento do material original: 1. Prevê-se um desembarque de vulto considerável nas partes oriental e ocidental do Mediterrâneo. (a) O alvo da operação no Mediterrâneo oriental, comandada pelo General Wilson, é o litoral nas vizinhanças de Kalamata e o trecho do litoral ao sul do cabo Araxos ambos na costa ocidental do Peloponeso). A 56ª Divisão de Infantaria, reforçada, está destinada a desembarcar em Kalamata e a 5a Divisão de Infantaria, reforçada, no cabo Araxos. Não se sabe se as divisões vão desembarcar como grandes unidades constituídas ou se o desembarque ocorrerá por partes. Na primeira hipótese, haverá necessidade de um espaço de tempo de 2 a 3 semanas, pois, no dia 9 de maio, a 56ª Divisão acha-se engajada em Enfidaville, com duas brigadas empregadas, e precisará, antes de mais nada, descansar e embarcar. Esta hipótese, que envolve uma certa demora antes que o desembarque possa ser desencadeado, parece ser a mais provável, pela forma como a carta foi escrita. Entretanto, se o desembarque

for efetuado apenas por certas unidades de ambas as divisões, poderá ser desencadeado em qualquer época, pois uma brigada de 56ª Divisão e uma ou duas da 5ª Divisão provavelmente já se encontram disponíveis na região de concentração (Egito-Líbia). O codinome para o desembarque no Peloponeso é Husky. O Estado-Maior anglo-americano propôs que se realizasse, simultaneamente, uma operação de cobertura contra o Dodecaneso; até o dia 23 de abril o General Wilson ainda não se decidira a respeito. (b) Não foi mencionado o alvo para a operação no Mediterrâneo ocidental, comandada pelo General Alexander. Na carta, uma referência jocosa indica a Sardenha. O codinome desta operação é Brimstone. O alvo de cobertura proposto para Brimstone é a Sicília. 2. É essencial a preservação do maior sigilo sobre esta descoberta, além de limitar a difusão deste informe.   Este documento deu-me grande satisfação em um detalhe. Eu já estava satisfeito com o fato de o agente alemão em Madri ter se preocupado em enviar uma cópia da carta, aparentemente sem grande valor, de Lord Louis Mountbatten para o Almirante Cunningham, ao contrário do desprezo que dedicara à carta ao General Eisenhower. Teria isso acontecido por causa da revelação do nosso fracasso em Dieppe? Mas o parágrafo 1 (b) da apreciação mostrava que a minha piada infeliz sobre as sardinhas atingira o alvo — "uma referência jocosa indica a Sardenha". O assunto não constava da mesma carta, mas pode-se desculpar o erro em uma apreciação deste tipo. Tirávamos vantagem da veia humorística germânica. O Serviço de Informação alemão engolira a dissimulação; agora, o Alto Comando aceitava a opinião do Serviço. É possível que devamos agradecera Hitler por isto; sabemos, através do diário das audiências do Almirante Doenitz com Hitler, que, por volta do dia 14 de maio, o Führer estava

convencido da veracidade dos documentos e daquilo que eles revelavam. Doenitz fora enviado à Itália para encorajar Mussolini depois do desastre na África do Norte; no regresso, avistou-se com Hitler, antes mesmo de ler os documentos. Perguntado sobre a opinião de Mussolini a respeito das "intenções anglo-americanas", respondeu estar o Duce convencido de que eles atacariam a Sicília. Eis o que Doenitz registrou a respeito da resposta de Hitler: "O Führer não concorda com o Duce em considerar a Sicília como local provável da invasão. Além disto, acredita que a descoberta de ordens anglo-americanas confirma a hipótese de que o ataque planejado será dirigido principalmente contra a Sardenha e o Peloponeso." Evidentemente Hitler comprara a ideia de que pretendíamos desembarcar na Grécia; depois de chegar a esta conclusão, manteve-se irredutível. Assim, no dia 23 de julho, quase duas semanas após o desembarque aliado na Sicília, Hitler ainda acreditava que o ataque principal seria uma invasão da Grécia e nomeou o seu general ",preferido, Rommel, para comandar as forças que estavam sendo reunidas naquele país. No dia 25 de julho Rommel viajou para a Grécia, de onde foi chamado às pressas para assumir um comando na Itália e reorganizar a defesa do país após a queda de Mussolini. Entretanto, não seria justo colocar toda a culpa em Hitler. No mesmo dia em que Hitler discordara da opinião do Duce, dia 14 de maio, o diário de guerra oficial do Alto Comando Naval alemão registrou o fato de o Estado-Maior do Exército haver chegado à conclusão final de que os documentos eram verídicos e deduzido que o ataque seria contra a Sardenha, mas que poderia haver um ataque diversionário contra a Sicília. Em síntese, no dia 14 de maio de 1943, os estadosmaiores, o Alto Comando e o próprio Führer tinham sido convencidos pelo que desejávamos. A operação Mincemeat obtivera sucesso completo. Ainda nos faltava descobrir o

que tudo isto significou, no final, para as forças angloamericanas.

Não conheço em detalhes o que fizeram o Exército alemão e a Luftwaffe, mas teria de ser alguma coisa muito importante e de grande envergadura. Por exemplo, uma ordem mandava a 1ª Divisão Panzer sair da França, atravessar toda a Europa e estabelecer seu quartel-general em Trípoli, uma cidade do Peloponeso localizada em situação ideal para comandar a resistência contra desembarques em locais que incluíam Kalamata e Araxos. Se considerarmos o esforço despendido para realizar um deslocamento de tal vulto com uma divisão Panzer inteira, e se considerarmos quão "afastada da guerra" ficou esta grande unidade naquela ocasião, poderemos dizer que só este fato mais do que recompensou o nosso trabalho na operação Mincemeat, mesmo que a operação não houvesse ajudado em nada a invasão da Sicília. Também encontramos nos arquivos alemães um memorando revelando que o Ministério do Exterior fora solicitado a comunicar ao governo da Turquia a movimentação de tropas e carga para a Grécia e ressaltar que o fato não envolvia qualquer intenção hostil em relação àquele país. Esta precaução não causará surpresa, se levarmos em conta a extensão dos preparativos alemães; conforme afirmei, não conheço os detalhes dos movimentos realizados pelo Exército e pela Luftwaffe, mas devem ter sido enormes, se os julgarmos à luz da atividade naval alemã, sobre a qual os arquivos revelavam um quadro bem completo. Por volta do dia 20 de maio o Alto Comando Naval já havia ordenado (ver Apêndice 1) o lançamento, ou a

conclusão, de três novos campos de minas ao largo da Grécia, incluindo um no litoral de Kalamata. O almirante que comandava a região do mar Egeu recebeu ordem para assumir o controle dos campos de minas lançados pelos italianos na costa ocidental da Grécia; baterias de costa alemãs deveriam ocupar posição em território controlado pelos italianos. Estas constituíam apenas algumas providências "planejadas, ou já executadas" até aquela data, uma vez que os alemães consideravam que todo o litoral da Grécia, bem como as ilhas gregas, estavam sob ameaça; esperavam poder repelir o ataque aliado, apesar da fraqueza germânica na região. Estas instruções foram completadas com ordens para a criação de bases para lanchas R1, postos de comando, serviço de patrulhamento naval e outras medidas de segurança; isso tudo envolvia um esforço muito grande. Cresciam os resultados da operação Mincemeat. Os documentos mostravam que eram resultados exclusivos de operação, pois essas ordens (Ver Apêndice 1) baseavam-se em decisões decorrentes das cartas do Major Martin (fato que, por motivos de segurança, não podia ser mencionado nestas ordens). As ordens, porém, declaravam que a probabilidade de desembarque aliado, em larga escala, na parte oriental e ocidental do Mediterrâneo, fora deduzida, a despeito do fato de "só termos recebido indícios do Mediterrâneo ocidental a respeito de preparativos envolvendo grande número de embarcações de desembarque". Quem comparasse os dois documentos — a carta de Mincemeat e estas ordens — poderia levantar a correlação. Pouco tempo depois, no princípio de junho, um grupo inteiro de lanchas R foi transferido da Sicília para o Egeu. Os resultados aumentavam rapidamente.

Enquanto isso, também aconteciam coisas na região do Mediterrâneo ocidental. Posso sintetizar melhor a reação germânica recorrendo a uma ordem expedida pelo General Keitel, Chefe do Estado-Maior das Forcas Armadas, em nome de Hitler e datada de 14 de junho de 1943. Esta ordem baseava-se nitidamente na consideração alemã de que a utilização da Sicília como "alvo de cobertura" para um ataque contra a Sardenha poderia incluir um ataque diversionista contra a primeira ilha (o mesmo ponto de vista fora adotado em relação à utilização do Dodecaneso como alvo de cobertura para operação no Mediterrâneo oriental; ver Apêndice I e apreciação de 14 de maio). A ação daquele fator sobre o raciocínio do Estado-Maior alemão também pode ser comprovado pelas medidas defensivas que encontramos na Sicília, conforme já mencionei anteriormente. Encontramos registrado o fato de que uma poderosa força Panzer, com seus respectivos apoios e suprimentos para dois meses, fora enviada para a Córsega, em junho, em cumprimento a uma ordem expedida em nome de Hitler; daí para a frente aumentou a ênfase no reforço da Sardenha e da Córsega, seguindo-se na prioridade o litoral norte da Sicília. No dia 9 de julho, véspera do nosso desembarque na Sicília, Keitel difundiu uma apreciação extensa, dizendo tratar-se da apreciação de Doenitz. Este documento abordava tanto as partes oriental e ocidental do Mediterrâneo, como também a futura estratégia aliada baseada em operações naquelas duas regiões; a conclusão dizia ser possível um ataque contra as três ilhas, Sardenha, Córsega e Sicília (simultaneamente, ou uma de cada vez), bem como uma operação contra a Grécia. Doenitz estima as

tropas aliadas existentes na África do Norte como suficientes para as duas operações e para o aproveitamento do êxito a partir de uma cabeça de ponte que os aliados conseguissem conquistar na Grécia. Sua previsão julgava improvável um desembarque de vulto no litoral da Itália (depois da conquista das ilhas italianas) porque naquele país os alemães poderiam reagir com grande rapidez; na Grécia, os reforços e suprimentos alemães demorariam a chegar e dali os aliados poderiam atacar os campos petrolíferos da Romênia; também seria considerável o efeito da operação sobre a Hungria, e sobre a Romênia. Por fim, a conclusão de Doenitz, promulgada por Keitel, era: "as forças que atuarão na parte ocidental parecem prontas para um ataque imediato" capaz de ser desfechado a qualquer momento (puxa! como ele estava certo...), ao passo que "a força oriental parece estar sendo concentrada" (como estava equivocado... na realidade, elas participaram da invasão da Sicília). Nossas tropas desembarcaram na Sicília na madrugada de 10 de julho, mas os alemães continuaram a acreditar que não se tratava do ataque principal (pois não desconfiavam que as cartas tinham sido "plantadas"); o Alto Comando alemão determinou a seus agentes que realizassem vigilância especial sobre o estreito de Gibraltar, a fim de localizar os comboios que deveriam atravessá-lo conduzindo as tropas para o ataque à Sardenha e à Córsega. Provavelmente, os alemães ainda pensavam que os desembarques na Sicília (mesmo realizados no lado da ilha não previsto por eles) constituíam uma diversão para distrair a atenção da operação principal. Por volta de 12 de julho começou a fraquejar a crença alemã na veracidade dos documentos Mincemeat — afinal de contas, a invasão da Sicília era comprovadamente verdadeira e estava em curso há dois dias. Encontramos duas mensagens trocadas entre o Comandante Naval alemão na Itália e o Alto Comando

Naval. Na primeira, o Comandante Naval na Itália queixavase amargamente da perda do 1° Grupo de Lanchas R (enviadas ao mar Egeu, para a defesa da Grécia), fato que prejudicara a defesa da Sicília, pois a brecha criada no patrulhamento anulou-lhe a eficácia. Declarava ainda que a escassez de embarcações de pequeno porte era "crônica" e que a partida de outras embarcações, como lhe fora ordenado, afetaria gravemente o trabalho defensivo e de escolta. A mensagem de resposta declarava que os relatórios de reconhecimento revelavam que os aliados já haviam engajado tantas unidades na Sicília a ponto de não haver mais possibilidade de desembarque na Grécia, antes da conclusão da campanha siciliana. "Por ora" (será que Mincemeat ainda exercia alguma influência tanto sobre o Alto Comando como sobre Hitler?) a defesa da Grécia passaria para segunda prioridade e, como consequência, cancelava-se a ordem de transferência das sete lanchas da 11ª Flotilha de Lanchas R; tais embarcações continuariam sob o comando do Comandante Naval na Itália. Assim, terminaram as repercussões imediatas da operação Mincemeat — exceto para as forças germânicas que ainda permaneciam ociosas na Grécia. Eis um resumo do levantamento sobre os resultados da operação:  1. Quanto à execução da operação — iludimos os espanhóis que colaboravam com os alemães; iludimos o Serviço de Informações alemão na Espanha e em Berlim; iludimos o Alto Comando e o Estado-Maior alemão; iludimos Keitel; e, por fim, iludimos o próprio Hitler, mantendo-o iludido até o fim do mês de julho. 2. Quanto ao Mediterrâneo oriental — provocamos um aumento considerável do esforço para a defesa da Grécia, com a criação de campos de minas, instalação de baterias de costa etc.; provocamos uma tal concentração de tropas

na Grécia, que chegou a justificar a nomeação de Rommel para comandá-las, estas tropas incluíam uma Divisão Panzer, que teve que atravessar a Europa até chegar lá; tudo isto representava desperdício de esforços da parte dos alemães e diminuição do potencial defensivo na Sicília e na Itália. 3. Quanto ao Mediterrâneo ocidental — provocamos o incremento das fortificações e dos reforços na Sardenha e na Córsega, em prejuízo da Sicília; fizemos com que os preparativos defensivos na Sicília fossem desviados das praias onde os aliados realmente desembarcaram para praias onde não desembarcamos; levamos os alemães a enviarem lanchas R da Sicília para o Egeu, provocando uma brecha nas defesas, a qual "prejudicou a defesa da ilha", além de agravar a escassez de embarcações de escolta. Tudo isso pôde ser comprovado através dos documentos da época. Creio poder alegar que os resultados da operação foram realmente vultosos — maiores do que os que prevíramos nos momentos de maior otimismo. Os outros que avaliem quantas vidas inglesas e americanas foram salvas pelo "homem que nunca existiu" e que efeito sua atuação produziu no desenrolar da guerra. ________________ 1 Pequenas embarcações navais detectoras de minas da Kriegsmarine (marinha alemã) antes e durante a Segunda Guerra Mundial.

 

Posfácio Em vez de concluir este livro com uma exaltação apoteótica — exaltação que julgo merecer a memória do homem que existiu realmente, e que se transformou no "Major Martin, dos Reais Fuzileiros Navais" — preferi acrescentar algo que colocasse na medida devida a minha participação na operação. Como consequência daquilo que eu já sabia sobre o sucesso da operação Mincemeat, fui agraciado com a O.B.E., em 1944. Ao colocar a medalha na minha túnica, Sua Majestade indagou de que forma fizera jus a ela. Ao ouvir a minha resposta — "Trabalhando no Almirantado" — percebi um certo espanto na sua fisionomia. A outra pergunta foi imediata: "O que foi que realizou?" Surpreso, só consegui articular: "Participei do planejamento da operação Husky. " A minha resposta me fez compreender como as duas coisas se haviam ajustado e, conforme já disse, ajudou-me a colocar minha colaboração na devida medida. Apesar de toda a sua "elegância" e emoção, a operação Mincemeat constituiu apenas uma parte do planejamento de uma operação moderna.

 

Apêndice 1  Cópia do Estado-Maior da Armada — Operações 1942/43 Secreto — Só para oficiais do Estado-Maior  20 de maio de 1943 De mensagem telegráfica difundida para: Comando Supremo das Forças Armadas/Seção de Operações das Forças Armadas  Cópias para: Comando Sul do Grupo Naval, ComandanteChefe da Força Aérea, Seção de Operações da Força Aérea, Capitão de Mar e Guerra Mossel, no Alto Comando do Exército, Capitão de Mar e Guerra Weygoldt, oficial de ligação com o Estado-Maior do Exército. Difundida como mensagem para destinatário único. O Estado-Maior da Armada examinou meticulosamente as possibilidades de operação inimiga de desembarque na Área Sudeste e chegou às seguintes conclusões:  1.  (i) — a possibilidade de desembarques inimigos nas partes oriental e ocidental do Mediterrâneo,devem ser avaliadas junto com prova concreta sobre a preparação de grande número de embarcações de desembarque, existente apenas para a parte ocidental do Mediterrâneo. (ii) pontos de partida viáveis para operações de desembarque: (a) região Arta-Pyrgos: golfo de Arta, golfo de Patras, costa sul do cabo Araxos e ambos os lados de Pyrgos, e também ilhas ao largo dessas áreas, especialmente Corfu e Cefalônia; (b) a costa sul do Peloponeso: Navarino, golfo de Corone (Kalamata) e golfo de Maratona; (c) Creta: de preferência na costa norte; na costa sul na baía de Mesara e em Hierapetra,

mas apenas com forças reduzidas; (d) Rodes; (e) ilhas no mar Egeu: Leros, Milos, Chios, Mitilene e Lemnos; (f) a costa leste do Peloponeso e Grécia central: golfo de Nauplia, golfo de Petali (litoral leste de Atica); (g) Salônica: golfo de Salônica, golfo de Orphani; (h) Trácia: golfo de Cavala e litoral do leste de Tasos. (iii) pode-se admitir que provavelmente o inimigo realizará um desembarque inicial onde julgar que encontrará menor resistência e onde possa obter os melhores resultados no menor tempo possível. Como consequência, no momento, pode-se descartar um desembarque inicial em Creta; em face do estágio avançado das obras e do equipamento da fortaleza Creta, haveria um consumo enorme de forças, além do requisito prévio de operações secundárias para a conquista de aeródromos no Dodecaneso e Peloponeso, próximos do local das operações. De qualquer maneira, a conquista de Creta representaria apenas a consecução parcial dos objetivos do inimigo. Do mesmo modo, é improvável um golpe que desbordasse Creta e penetrasse no Egeu, para a ocupação das ilhas mais importantes e uma tentativa de desembarque no litoral leste do Peloponeso e da Grécia central. Não foi avaliado um golpe imediato contra a região da Salônica e da Trácia. Para uma operação deste tipo, o inimigo necessitaria de forças enormes para a proteção de suas rotas de suprimento. Perdas vultosas seriam inevitáveis, enquanto os aviões e forças navais ligeiras alemãs estivessem operando a partir de Creta. (iv) na opinião do Estado-Maior da Armada, as tentativas de desembarque mais prováveis serão realizadas na área do litoral oeste da Grécia, onde a região Corfu-Arta-Pyrgos oferece a maior probabilidade de sucesso. Possibilidades: um ataque partindo do norte em direção a Larissa — Volos, isolando a Grécia central do

Peloponeso; no centro, um avanço em direção à Grécia central e Atica. No sul, progressão em direção ao istmo de Corinto. As ilhas ao largo deste litoral (principalmente Corfu e Cefalônia) constituiriam bases valiosas nas mãos do inimigo. A importância excepcional destas ilhas deve merecer especial atenção. Simultaneamente, podem ocorrer desembarques secundários em Navarino (borra porto para forças navais destinadas a proteger os desembarques e as rotas de suprimentos), Kalamata (aeródromo) e talvez também no golfo de Maratona. Ataque secundário através de Trípoli em direção a Corinto. Simultaneamente ou com breve antecedência, pode-se esperar uma operação diversionária no Dodecaneso (Rodes). 2.  Ainda é muito débil o poder defensivo destas regiões ameaçadas. Apesar disto, na opinião do Estado-Maior da Armada, seria possível repelir as tentativas aliadas de desembarque, se os ataques forem executados com forcas limitadas. De acordo com os indícios fornecidos pelo EstadoMaior do Exército ao Estado-Maior da Armada, no momento o inimigo só dispõe de poucas divisões no Mediterrâneo oriental. A capacidade de transporte disponível também só dá para atender a essas forças. Portanto, devem ser tomadas todas as providências para reforçar, imediatamente, a capacidade defensiva das regiões particularmente ameaçadas. Só poderá ser considerada a construção de uma segunda linha de defesa (aproximadamente na região Salônica — norte da Grécia) depois de concluída a primeira. 3.  O Estado-Maior da Armada visualiza ou já tomou as seguintes providências:  (i) colocação de campos de minas: ao largo de Kalamata, em fase de conclusão; estreito de Cerigoto,

concluído um campo e outro em preparação. O comando do Grupo Sul (almirante no mar Egeu) deve pressionar os italianos para que lancem minas no litoral ocidental da Grécia. (ii) a instalação de baterias de costa, também na área ocupada pelos italianos (solicitada decisão ao Comando Supremo das Forças Armadas). (iii) as principais bases navais para nossas forças ficarão em Pireu e Salônica; estão ou serão devidamente abastecidas. Como bases auxiliares, Melos, Leros e Lemnos receberão apenas quantidades limitadas de suprimentos para as forças navais. (iv) examina-se a possibilidade de instalar bases de operação para embarcações S no Peloponeso e em Creta. (v) foram realizadas conversações preliminares com o comandante da Forca Aérea Sudeste sobre as atividades de reconhecimento e ataque da Força Aérea na fase preparatória das operações inimigas (podem ser realizados ataques aéreos contra a frota de desembarque enquanto ela estiver parada nos portos de partida e estes portos podem ser minados pela aviação). (vi) preparação de um serviço de patrulha com os navios de defesa do litoral para oeste; sul e leste de Creta. (vii) preparação de um posto de comando em Salônica para o almirante em comando no mar Egeu, para assegurar o controle ininterrupto no caso de haver necessidade de deslocar o quartel-general. Naval War Staff Reg. No. 1st Naval War Staff 1 Op. 1492/43.  Most Secret. S.O. only.

Apêndice 2 Estado-Maior da Armada — 17 189/43 — SECRETO Distribuição: cópia n° 1, Chefe do Estado-Maior da Armada; n° 2, Estado-Maior da Armada; n° 3, seção 1ª; n° 4, seção de operações; n° 5, seção 1m; n° 6, Estado-Maior da Armada qu A; n° 7, Estado-Maior da Armada qu A; n° 8, seção 1f; n° 9, seção 1b. Arquivo 13 Mensagem telegráfica  MBBZ 02175 de 14-6-43, 23:34 Anterior  GWASL 02633 14-6 21:30 Ao Comando Supremo da Marinha, Estado-Maior da Armada Também para: Estado-Maior do Exército, Inspetor Geral das Forças Blindadas, Comando Supremo da Marinha (Estado-Maior da Armada, Comandante Chefe do Sul, Força Territorial, Departamento do Exterior). SECRETO (A) O Führer expediu as seguintes ordens para o reforço da Sardenha e da Sicília. (1) Providências a serem tomadas pelo Estado Maior do Exército:  (i) cada ilha deve receber um Regimento de Infantaria de Fortaleza completo, com companhia, comando e 4 batalhões. Se houver necessidade, podem ser utilizados 3 batalhões March na Itália, constituídos com a convocação de junho. A propósito, o Führer ressalta particularmente a necessidade de estar bem equipado com armamento adequado para a defesa contra blindados e ataque terrestre. Com esta finalidade

podem ser utilizados os canhões anticarro franceses de 25 e 37 milímetros, com projéteis perfurantes. Os regimentos devem estar prontos para se deslocarem até o dia 28 de junho de 1943. Se não for possível obter até esta data os canhões anticarro necessários para a Sicília, os mesmos deverão ser enviados para a ilha o mais tardar até o dia 20 de julho. (ii) a Sardenha deve receber um grupo de Artilharia para a defesa de costa. Equipamento — 2 baterias de canhões de 170 mm e 1 bateria de canhões de 100 mm (estes últimos estão disponíveis no Comando Sul). Partir para a ilha o mais depressa possível. (iii) o destacamento da Sardenha deve receber um comboio anticarro com 12 canhões anticarro para cada regimento. Cada comboio de Infantaria motorizada do destacamento da Sicília deve estar equipado com 2 canhões anticarro. Se não existirem imediatamente disponíveis canhões anticarro pesados e médios, podem ser utilizados canhões anticarro leves, disparando projéteis perfurantes. Entretanto, os comboios anticarro devem ser equipados com canhões pesados e médios. (iv) o comando blindado da Sardenha será ampliado para batalhão blindado com um mínimo de 50 carros de combate (dos quais pelo menos 25 serão carros Mark IV), através do fornecimento das pequenas unidades necessárias e respectivo equipamento. o fornecimento será feito no mais curto prazo possível. (v) enviar um comboio blindado, com 20 carros de combate Mark IV, para o 215° Batalhão Blindado na Sicília. (Este comboio visa a compensar os carros de combate Tigre que foram transferidos para a Divisão Hermann Göring). o comboio deverá estar pronto para seguir destino no dia 15 de julho de 1943.

(vi) enviar diversos destacamentos de Comunicações para reforçar o comando da Sardenha. (2) O Comando Supremo da Marinha organizará um grupo de Artilharia de Costa com as três baterias citadas e que serão liberadas pelo Comando Sul para serem enviadas à Sicília mediante pedido. (3) Outras necessidades do Comando Sul de verão receber menor prioridade, exceto no caso de ordem especial em contrário. (B)  (1) O Estado-Maior do Exército informará à Seção de Operações do Estado-Maior das Forças Armadas sobre:  (i) o equipamento proposto para os Regimentos de Fortaleza, mencionando o calibre dos canhões anticarro e de outras armas pesadas. (ii) pormenores da distribuição dos canhões anticarro, de acordo com o calibre, entre as unidades recém-criadas e os reforços solicitados. (iii) a data em que cada reforço estiver pronto para ser transportado (esta informação também será prestada ao Departamento do Exterior da Força Territorial. (2) O Comando Supremo das Forças Armadas in formará à Seção de Operações do Estado-Maior das Forças Armadas e ao Departamento do Exterior da Força Territorial a data em que o grupo de Artilharia de Costa estiver pronto para ser transportado. (3) O Departamento do Exterior da Força Territorial será responsável pelo transporte rápido destes reforços. (a) Keitel  Comando Supremo das Forças Armadas/ Estado-Maior das Forças Armadas  Op. n:º 002820 SECRETO