O Homem Grego

Table of contents :
INTRODUÇÃO
CAPITULO I
CAPÍTULO 2
As motivações dos combatentes
O mercenarismo
CAPITULO 3
CAPITULO IV
Introdução
O cidadão-guerreiro
Liberdade/democracia, tiiania/oligarquia
APENDICE DE TEXTOS
Pseudo-Xenofoníe, Constituição de Atenas^ 2,19-20
Pseudo-Xenofoníe, Constituição de Atenas^ 2,14-15
Aristóteles, Política, 1268b-1269a
Tucíditíes, 2,37
Tucídides, 6,38-39
CAPITULO V
O RÚSTICO
CAPITULO VI
CAPITULO VII
Visão, monumento, memória
Os espectáculos da glória; rei, guerreiro, atleta
Conhecimento auditivo e visual
O drama: origens e características
Tragédia: espectáculo dtadino
CAPITULO VIII
O HOMEM E AS FORMAS DA SOCIABILIDADE ^^
O homem político
CAPITUL0 IX
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPITULO I
CAPÍTULO vm
os AUTORES
INDICE

Citation preview

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F. BORGEAUD, G CAMBIANO, L, CANFORA, Y GARLAN C, MOSSÉ, 0„ MURRAY, J, REDFIELD, CH SEGAL, M., VEGETTI. J,-P. VERNANT

O HOMEM GREGO Direcção de Jean-Pierre Vernant

Tradução de: M aria J orge V e a r de F igueiredo

EDrrORlAL )0 0 M

PRESENÇA

FICHA TÉCNICA ITtulo original: L Uoino Greco Autores: F. Borgcaud, G. Cambiano. L Canfora, Y Garlan

C Mossé, O Murray, J. Rcdjield, Cfi Segai, M Vcgetli, J -P Vemant Direcção de: Jean-Pierre Vemant © 1991, Gius. Laterza & Figli Spa, Roma-Bari Tradução ® Editorial Presença, Lisboa, 1993 Tradução de: Maria Jorge Vilarde Figueiredo Capa: Sector Gráfico de Editorial Presença Composição: Multitipo — Artes Gráficas. Lda. Impressão e acabamento: Guide — Artes Gráficas I * edição, Lisboa, 1994 Depósito legal n * 63 412/93 Reservados todos os direitos para a Kngua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA Rua Augusto Gil, 35-A 1000 Lisboa

INTRODUÇÃO O que queremos dizer exactamente quando nos referimos ao homem grego, e em que sentído podemos considerar-nos autorizados a retratá-lo? Poder%e-á falar do homem grego no singular? De Atenas a Esparta, da Arcádia, da Tessália ou do Epiro até às cidades da Ásia Menor, às colónias do mar Negro, da Itália meridional e da Sicília, encontrar-se-á sempre, e em todo o lado, apesar da diversidade de situações, de sistemas de vida, de regimes políticos, um único modelo de homem? E esse grego, cuja imagem se tenta fixar, será o homem dos tempos arcaicos, o herói guerreiro cantado por Homero, ou o outro, diferente sob tantos aspectos, que, no século iv, Aristóteles definiu como um «animal político»? Embora os documentos de que disporqos nos tenham induzido a,çentr^ a nossa investigação no j^eríod^^ focando, na maior parte dos casos, a cidade de Atenas, a personagem que se esboça no final do estudo apresenta, mais do que uma imagem unívoca, uma figura decomposta numa multiplicidade de facetas, em cada uma das quais se reflecte o ponto de vista que os autores da obra preferiram privilegiar Assim, veremos sucederem-se uns aos outros, de acordo com o ponto de vista previamente escolhido, o grego cidadão, religioso, militar, económico, doméstico, ouvinte e espectador, participante das diver­ sas formas de convívio, um homem que, desde a infância até à idade adulta, segue um percurso obrigatório de provas e de etapas para se tomar homem no sentido pleno do termo, era conformidade com o ideal grego da realização do ser humano,. Embora, nesta galeria de retratos elaborados por estudiosos modernos, cada um corresponda singularaiente a um objectivo ou a um problema particular (o que significa, para um grego, ser cidadão, soldado ou chefe de família?), a série dos quadros não forma uma sequência de ensaios justapostos mas um conjunto de elementos que se intersecíam e se completam, para nos darem uma imagem original cujo equivalente exacto não existe em outro lugar Construído pelos historiadores, este modelo propõe-se de facto destacar os aspectos característicos das actividades desempenhadas pelos Gregos nos grandes sectores da vida colecüva Um esquema não arbitrário, que para encontrar uma estrutura se baseou numa documentação o mais ampla e precisa possível, e também não banal, na medida em que, pondo de parte os termos genéricos acerca da natureza humana, visa individualizar o que há de específico nas regras de vida dos Gregos, o seu modo particular de se servirem de práticas universalmente difundidas, tais como as referentes à guerra, à religião, à economia, à pohtica, à vida doméstica

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Singularidade grega, portanto. Tomá-la clara equivale a adoptar desde o primeiro ..momento u_mponto de vista comp^ativo e, em confronto com outras cultmas, a acen­ tuar, para lá dos aspectos comuns, as divergências, os desvios, as diferenças Em primeiro lugar, diferenças em relação a n^s, aos modos de agir, pensar e sentir que nos são tão familiares que nos parecem totaímente naturais, mas de que é necessário despojar-nos quando nos voltamos para os Gregos, para não bloquearmos a focagem do olhar que pousamos sobre eles Diferenças que também existem em relação a homens de Jemppsriiferentes do antigo, de civilizações diferentes da civilização grega. Todavia, é possível que o leitor, mesmo disposto a reconhecer connosco a originalidade do caso grego, se sinta tentado a fazer uma outra objecção e interro­ gar-nos acerca do termo «homem». Porquê o homem, e não a civilização ou a polh grega? E podería objectar que o que está sujeito a alterações constantes é o contexto social e cultural e que o homem adapta os seus modos de agir a essas variações, mas em si permanece idêntico. Em que é que o olhar do cidadão de Atenas, no sé­ culo v a , C., difere do olhar dos nossos contemporâneos? Certíssimo- Todavia, neste livro, o problema não diz respeito ao olhar ou ao ouvido mas ao modo como os Gregos se serviam deles: a visão e a percepção auditiva, o seu papel, as suas formas e o^seu estatuto respectivo. Para mc compreendefem melhor, citarei um exemplo, esperando que me seja perdoada a referência pessoal: como poderemos ver hoje a Lua com os olhos de um grego? Foi uma experiência que eu mesmo fiz, na minha juventude, durante a primeira viagem à Grécia., Navegava de noite, de ilha em ilha; estendido no convés, olhava o céu por cima de mim, onde a Lua brilhava, luminoso rosto nocturno que projectava o seu claro reflexo, imóvel ou oscilando sobre a obscuridade do mar. Sentia-me deslumbrado, fascinado por aquele suave e estranho brilho que banhava as ondas adormecidas; sentia-me emocionado como se se tratasse de uma presença feminina, próxima e simultaneamente longínqua, familiar mas inacessível, cujo esplendor tivesse vindo visitar a obscuridade da noite. O que eu estou a ver é Selene, dizia para comigo, nocturna, misteriosa e brilhante Muitos anos depois, ao ver no ecrã do meu televisor as imagens do primeiro astronauta lunar saltitando pesadamente, com o seu escafandro de cosmonauta, no espaço triste de uma desolada periferia, à impressão de sacrilégio que senti juntou-se o sentimento doloroso de uma ferida que não poderia ser curada: o meu neto, que como toda a gente viu essas imagens, já não será capaz de ver a Lua como eu a vi: com os olhos de um grego, A palavra Selene tornou-se uma referência meramente erudita: a Lua, tal como hoje surge no céu, já não responde a esse nome Todavia, como um homem é sempre um homem, continua a pensar-se que, se os historiadores conseguirem reconstituir perfeitamente o ambiente em que viviam os antigos, terão cumprido a sua missão e, ao lê-los, cada um poderá identificar-se com um grego. Saint-Just não era o único revolucionário a pensar que bastaria que o republicano de 1789 praticasse, à moda antiga, as virtudes da simplicidade, da frugalidade e da intransigência para se identificar com o grego ou com o romano. É Marx quem, na Sagrada FamÜia, coloca de novo as coisas no seu devido lugar:

«Um erro que se revela trágico quando Saint-Just, no dia da sua execução, apontando para a grande tábua dos direitos do homem exposta na sala da Conciergerie, exclama

com justificado orgulho; 'No entanto, isso é obra minha ’’ Mas esse texto proclamava justamente os direitos de um homem que não pode ser o homem da comunidade antiga, tal como as condições de vida económicas e industriais não podem ser as da Antigui­ dade .» Como escreve Françots Hartog, que cita esta passagem: «O homem dos direitos não pode ser o homem da polU amiga,» E ainda menos pode sê-lo o cidadão dos Estados modernos, o seguidor de uma religião monoteísta, o trabalhador, o indus­ trial ou o financeiro, o soldado cias guerras mundiais entre nações, o pai de família com a sua mulher e os seus filhos, o indivíduo considerado na sua vida pessoal íntima, o jovem actual, que até atingir a idade adulta vive uma adolescência que se prolonga indefmidamente Dito isto, qual deve ser a tarefa do apresentador, ao introduzir uma obra sobre o homem grego? Não certamente a de resumir ou comentar os textos com que, nos sectores que da sua competência, os mais qualificados helenistas contribuíram para esta obra, facto que quero agradecer-lhes sen tidamente Mais do que repetir ou glosar tudo o que eles exprimiram melhor do que ninguém, gostaria, de acordo com o mesmo espírito comparativo, de adoptar uma perspectiva ligeiramente diferente da deles, uma visão transversal em relação à sua visão; com efeito, cada um deles se auto-obrigou a limitar a sua análise a um aspecto do sistema de vida, distinguindo assim, na existência do grego antigo, uma série de planos distintos. Abordando de um outro ângulo o mesmo problema e centrando desta vez sobre o indivíduo a rede de fios que eles teceram, perguntar-me-ei quais são, nas relações do homem grego com o divino, com a natureza, com os outros, consigo mesmo, os pontos salientes que é necessário ter em conta para definir exactamente a «diferença» que o caracteriza nos seus modos de agir, de pensar, de sentir, ou seja, na sua forma de estar no mundo, na sociedade, no seu próprio eu Um projecto cuja ambição poderia fazer sorrir, se, para me atrever a tanto, eu não tivesse duas justificações. Em primeiro lugar, após quarenta anos de pesquisas levadas a cabo no seguimento e em companhia de outros estudiosos sobre aquilo que defini como a história interna do homem grego, ainda não chegou o momento de fazer o balanço, elaborando conclusões de carácter geral. Nos inícios dos anos 60, escrevi:

«Quer se trate de factos religiosos (mitos, rituais, representações figurativas), de ciência, de arte, de instituições sociais, de factos técnicos e económicos, consideramo-los sempre como obras criadas pelo homem, como expressão de uma actividade menta! organizada. Através dessas obras, procuramos o que foi o homem em si, esse homem grego inseparável do quadro social e cultura! de que ele é, ao mesmo tempo, artífice e produto » Uma declaração programática que, passado um quarto de século, considero poder continuar a subscrever. No entanto — e é esta a minha segunda justifica­ ção — , embora possa parecer demasiado temerário na sua ambição de captar traços gerais, o meu projecto é mais modesto porque mais circunscrito Ponho de parte os resultados — certamente parciais e provisórios, como sempre acontece com qual­

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quer estudo histónco — ch.pesqui_sa_que efectuei acerca das aJterações que, entre o século vin e o^século iv a._C., se produziram no quajdro das actividades e das ^nções psicológicas do homem grego: representações, do espaço, formas da temporalidade, memória, imaginação, vontade, pessoa, práticas simbólicas e utilizações dos signos, mqdos,de,.raciocinar, .instrumentos inteiectuais. Prefiro colocar o perfil cujas Unhas tento definir sob o signo não do homem grego, mas do homem grego e de nós Não 0 prego como foí em si, tarefa impossível porque a própria ideia está desprovida de significado, mas o Grego como nos aparece hoje, no fim de um percurso que, à falta de um diálogo directo, avança num vaivém incessante, de nós para ele, de ele para nós, conjugando análises objectivas e desejos de simpatia; incidindo na distância e na proximidade; afastando-nos para nos aproximarmos mais sem o perigo de nos confundirmos e aproximando-nos para melhor captar as diferenças e, ao mesmo tempo, as afinidades. Comecemos pelos deuses. O que é que o divino representa para um grego e como é que o homem se posiciona em relação a ele? Formulado nestes termos, o problema pode ser falseado ã partida. As palavras não são inocentes, Para nós, a palavra «deus» não evoca apenas um ser único, eterno, absoluto, perfeito, transcen­ dente, criador de tudo o que existe, mas, associado a uma série de outi’os conceitos àfms (o sagrado, o sobrenatural, a fé, a igreja e o clero), delimita, tomando-se soUdáiio com ele, um campo particular de experiência — o religioso — que tem um papel, uma função e um estatuto nitidamente diferentes das outras componentes da vida social. O sagrado opõe-se ao profano, o sobrenatural ao mundo da natureza, a fé à descrença, os sacerdotes aos leigos, e assim se separa deus de um universo que depende inteiramente dele, porque foi ele quem o criou e criou-o do nada. Todavia, as inúmeras divindades do politeísmo grego não possuem as características que, segundo este sistema, definem o divino. Não são eternas, perfeitas, omniscientes, ou omnipotentes; não criaram o mundo, nasceram nele e dele, vindo à luz do dia por gerações sucessivas, ã medida que o universo, a partir dos poderes primordiais, como Caos, o Vazio, e Geia, a Terra, se iam diferenciando e organizando, E o universo era a sua morada. Por conseguinte, a sua transcendência é absolutamente relativa, válida apenas em relação à esfera humana Tal como os homens, mas acima deles, os deuses fazem parte integrante do cosmos, O que significa que entre o humano e o divino não existe a fractura radical que, para nós, separa a ordem da natureza do sobrenatural, A percepção do mundo em que vivemos, tal como se oferece aos nossos olhos, e a procura do divino não constituem duas abordagens diferentes ou opostas, mas duas atitudes que podem coincidir ou confundir-se. A Lua, o Sol, a luz do dia, a noite, ou uma montanha, uma gmta, uma nascente, um rio ou um bosque podem ser interpretados e sentidos como qualquer uma das grandes divindades do panteão. Todos estes elementos suscitam as mesmas formas de respeito e de admirada deferência que caracterizam as rela­ ções entre o homem e a divindade. Qnd.e_está então a fronteira entre.ps homens e..os deuses? De um lado, existem seres lábeis, efêmeros, sujeitos às doenças, ao enve­ lhecimento, à morte; neles, tudo o que confere valor e luz à existência (juventude, força, beleza, graça, coragem, honra, glória) se deteriora paia sempre; não há nada que não implique, para cada bem precioso, o mal que lhe corresponde, e que é o seu

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contrário e o seu corolário: não há vida sem morte, juventude sem velhice, energia sem cansaço, abundância sem um penoso empenlio, prazer sem sofrimento. Neste mundo, toda a luz comporta a sombra, todo o esplendor tem a sua vertente obscura O contrário acontece entre aqueles que são chamados imortais {athànatoi), felizes {màkares), poderosos {kreittous)'. as divindades. Cada uma delas, no sector que lhe é próprio, encarna os poderes, as capacidades, as virtudes, os favores de que os homens, ao longo da sua existência, não podem usufruir senão como reflexo fugaz e opaco, como num sonho Entre as duas raças,.ü divina e a humana, há pois uma diferença, uma disparidade de que o Grego, na época clássica, está profundamente consciente Sabe que entre os homens e os deuses existe uma froníeiia intransponível: apesar dos recursos do espírito humano e de tudo o que o homem foi capaz de descobrir ou de inventar ao longo dos séculos, 0 futuro continua a ser indecifrável, a morte irremediá^vel, os deuses mantêrn-se fora do seu alcance e para íá da sua inteligência, eos olhosbumanos não podem suportar p esplendor do seu rosto De facto, no que diz respeito às relações com as divindãdes, uma das regras fundamentais da sabedoria grega é que ahpmenLnão pode.de Jorma alguma pretender tomarrse.igual,a ejes, A aceitação — como facto inerente à natureza humana e que seria inútil recrimi­ nar— de todas as imperfeições que necessariamente acompanham a nossa condição comporta uma série de consequências de sinal diverso. Em primeiro lugar, o Grego não poderia esperar — nem exigir — que os deuses lhe concedessem, sob uma forma qualquer, a imortalidade de que gozam. A esperança na sobrevivência do indivíduo após a morte a não ser como sombra amolecida e privada de consciência nas trevas do Hades, não entra na relação de permuta insdtuída com a divindade através do culto, ou, em todo o caso, não é o seu princípio nem um dos seus elementos primordiais. Os Atenienses do século rv deviam achar pardculamiente estranlia e incongruente a ideia de uma imortalidade individual, pelo menos a avaliai' pela circunspecção com que, no Fédon, e por intermédio de Sócrates, Platão afirma a existência de uma alma imortal em cada individuo Além do mais, essa alma, na medida em que é imperecível, é concebida como uma espécie de divindade, um daimon: longe de se confundir com o indivíduo humano, que converte num ser singular, asscmclha-sc ao divino dc que é como que uma partícula momentaneamente dispersa sobre a Terra, Segunda consequência. Embora intransponível, a distância entre os deuses e os homens não.exclui a existência de uma certa sem.elhança entre eles. São habitantes de um mesmo mundo, mas de um mundo construído em planos diferentes e rigoro­ samente hierarquizado, De baixo para cima, do inferior para o superior, a diferença é a que existe entre o menos e o mais, a privação e a plenitude, segundo uma escala de valores que se vai ampliando sem uma verdadeira cesura, sem aquela mudança total de plano que, devido ao facto de serem incomensuráveis, exige a passagem do finito paia o infinito, do relativo para o absoluto, do tempo paia a eternidade. Como as perfeições de que os deuses são dotadqs são um prolongamento Unear das perfeições que se manifestam na ordem e na beleza do mundo, na harmonia feliz de uma cidade governada segundo a justiça, na elegância de uma vida regida pela moderação e pelo autocontrolo, a religiosidade do homem grego não desemboca na via da renúncia ao mundo, mas na sua estetização.

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í, cU Íí.nir.:* também, no céu, um olho que vê tud.o, e se os nossos olhos veem é porque irradiam uma espécie de luz comparável à luz do Sol O raio luminoso que emana do objecto '■/r,, í-I - ds e 0 toma visível é da mesma natureza do raio óptico que sai dos nossos olhos e lhes dá a visão. O objecto emissor e o sujeito receptor, os raios luminosos e os raios ópticos pertencem a uma mesma categoria do real, acerca da qual se pode dizer que ignora a oposição físico-psíquico ou que é ao mesmo tempo de natureza física e psíquica. A luz ê visão e a visão é luminosa. Como observa Charles Mugler num estudo intitulado La lumière et la vision dans la poésie grecque-, a própria linguagem testemunha essa ambivalência.. Os verbos que designam, a acção de ver (blepein, dèrkesthau leussein) são utilizados tendo como complemento directo não só o objecto em que se fixa o olhar, mas também a substância ígneo-luminosa projectada pelo olho, como quando se arre­ messa um dardo, E esses raios de fogo, que, para nós, são físicos, arrastam consigo os sentimentos, as paixões, os estados de espírito, que, para nós, são psíquicos. Na realidade, os próprios verbos conjugam-se tendo como complemento directo termos que significam terror, fúria, raiva homicida Quando alcança o objecto, o olhar Iransmite-íhe aquilo que o observador sente ao vê-lo. E certo que a linguagem da poesia obedece a regras e a convenções específicas. Mas esta concepção do olhar está tão profundamente enraizada na cultura grega que volta a surgir em algumas observações, para nós desconcertantes, de um filósofo como Aristóteles. No De insoftmiís, o mestre do Liceu afirma que, se a vista é impressionada pelo seu objecto, «também exerce uma determinada acção sobre ele», como fazem todas as coisas luminosas, na medida em que se insere na categoria das coisas luminosas e coloridas. E prova-o com um exemplo: se as mulheres, durante o período menstrual, se olham num espelho, a superfície brilhanírr —l í

^ Jíevue des études grecques, I960, pp I > PctVu (líX feoj c j

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duração rcaí dessa sociedade camponesa no decurso da história grega Como é natural, AlAnas,.serve, m a i^ m a vez modeÍD- Emancipados com as reformas de Sólon, os camponeses áticos constituíram de facto a base da democracia que se estabeleceu com Ciístenes e se consolidou com Efialies e Pericles. É certo que subsistem dúvidas acerca do solo e do modo de vida dessa população rural. Os 0 ludps_maÍs„reçentesjCi>ufirmam um. enorrne fraccipnamerito do solo da Ática, embora esse fraccionamento signifique necessariamente a ausência de grandes prppriedades..que colocassem nas mãos de um único indivíduo bens existentes no áiiteirior de.um.mesmo demo ou entre vários demos. As poucas sondagens efectuadas nos campos áticos não permitem deduzir a existência de herdades isoladas Tudo indica que a Fixação em aldeias, que consfitufam geralniente p ceníro^dejuip, demo, foi a fornip predominante de fixação agrária, o que corresponde bem ao que :f ctC-! C

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Na mente do fííósoíò, essa democracia camponesa era evidentemente o oposto da democracia ateniense, mesmo se, ao raciocinar acerca da democracia radicai, Xrisióteles não cite explicitamente Atenas. Poderemos fazer a mesma coisa e ^Íjcar_o„modeio..ateniense_a_, outras cidades, como Corinto, Mégara, Mileto ou Siracusa? As fontes arqueológicas revelam a realidade de uma actividade artesanal importante em numerosas cidades marítimas Mas, na maioria das vezes, temos de confessar a nossa ignorância quanto à estrutura dessas acíividades e ao estatuto social de quem as exercia. Sabemos que Corinto exportava vasos, que Siracusa era famosa pela qualidade das suas moedas,e Mileto peia qualidade dos seus tecidos. Podemos portanto admitir que, nessas cidades e em várias outras, existiria um artesanato comparável ao de Atenas, mas fáltam-nos as informações fornecidas por fontes,literárias erínenções. S.ó as obras públicas são um pouco mais conhecidas graças às inscrições, que revelam que em todos os grandes estaleiros as condições de trabalho eram análogas às que encontramos em Atenas, nos estaleiros da Acró­ pole ou de Elêusis, O que não deve surpreender, se pensarmos que muitas vezes as equipas de operários, e mesmo os artistas, se deslocavam de um estaleiro para outro: basta pensar em Fídias, trabalhando em Olímpia, ou nas deslocações de Praxíteles, río século iv. Portanto, gjhpmem grego.,é também.um artesão. E, como tal, usufrui, como Pyerrp, Vidal-Naquet demonstrou, de um estatuto ambíguo. Possuidor de uma íe~ cjmè, toma::ise,p.Qrjss,Q.indi$pensávei para libertar os homens da opressão.da nature-, za. Todavia^como. se restringe a essa technè, não pode ascender à /ec/mè^sup.enor, g u e é a rec/mè politjkè. Protágoras era o único que admitia que todos podiam possuir a ciência das coisas políticas Mas não devemos esquecer que a teoria desenvolvida pelo filósofo de Abdera era a que servia de base à democracia, a mesma democracia em cujo seio, como repetia o Sócrates de Xenofonte, artesãos e comerciantes partilhavam com os camponeses o poder de decidir nas assembleias. Isto conduz-nos ao terceiro aspecto da actividade económica do homem grego; a actividade comercial. FoÍ acerca desta actividade que as discussões entre os moder­ nos tiveram a maior amplitude, e é também sobre ela que as nossas informações não deixaram de aumentar, graças aos progressos da investigação, e gOLhte,tudo.da,.investigaçaojJrqueoJógjca- A própria difusão^da..cerâmica prova que, no mundo grego, ocorreram tipcasjcq.rn.erciais desde os tempos mais remotos. Desde a época micénica que.,vasos, fabricados .no .continente helénico chegavam à Itália..meridional e aq .Orienie, A derrocada dos palácios micénicos pôs termo a esse tráfico, e quando se fala de comerciantes nos Poemas Homéricos trata-se sobretudo de fenícios oií dos miste­ riosos habitantes de Tafo mencionados na Odisseia Como FÍnleyJembrQU,.as.trpcus efectuadas no mundo„d.PS„jieróÍs. têm sobretudo.a ver.çqm práticas_de.,dádLvas...e, retribuições, estrar^as aq comércioprppriíuueníedito, Mas Hesíodo, em Os Trabalhos e os Dias, evoca as viagens de seu pai, obrigado a fazer-se ao mar num «negro barco» em busca de um lucro mais ou menos aleatório, porque acaba por se estabelecer em Acra. O comércio (emporie) é descrito ,pelq poeta como um remédio para fugir .«às dívidas e à amarga, fome», como um ma! menor que pode porém proporcÍonar..lucro (kerdos), se se üver o cuidado de navegar apenas durante os cinquenta dias, em pleno Verão, quando o mar não é demasiado perigoso. Portanto, é evidente que a partir do

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século vffi os Gregos participaram no deaibar das trocas comerciais no Mediterrâneo. íes. Segundo Lsócrates e Xenofonte, Atenas Já não pode viver da exploração dos tí;: seus aliados. Portanto, ter]oi_de encontrar em si mesma as receitas necessárias para.o í''"’ ~^''~'''''*bom funcionamento das instituições. Assim, o, século iv assiste, em Atenas, ao L desenvolvimento de um esboço de organização fiscal e ao aumento dos impostos. '■ pagos pelos mais ricos. Como não é de crer que estes reduzam o seu nível de vida ' ■' ^ V. _ tradicional — pelo contrário, a acreditar nas fontes literárias e nos testemunhos da arqueologia, o luxo privado continua a afirmar-se —, tem de se pensar em encontrar novas fontes dejendimento, por exemplo, o empréstimo marítimo a taxas de usura. Mas j$so implica que se dispoi^ia de„dinheirq líquido, ou seja, de excedentes. Por outras palavras, embora não sc concepíualíze a relação entre aumento da produção e aumento das receitas, embora se pense mais em aumentar o número dos escravos do que em aperfeiçoar as técnicas de produção, na prática acaba-se por produzir mais. É certo que devemos evitar' generalizar partindo de indicações fragmentárias. Todavia, no terceiro quartel do século iv, assiste-se ao despertar incontestável da indústria mineira e ao não menos real desenvolvimento das acüvidades do Pireu, o ■lo r que obriga a cidade a prestar mais atenção aos assuntos comerciais e a prever um procedimento mais rápido para os assuntos respeitantes ao enipòrion. E, facto talvez ainda mais significativo, verifica-se o aumento da importância das magi^stiaturas financeiras e do papel gue-são chamados a desempenhar no governo da cidade os «l,éçjiicii5>L.dos.,.assuntos financeiros como Calístiato, Eubulo e sobretudo Ltcurgo, encarregado da diòikesis. de toda a administração da cidade, verdadeiro administra­ ol \'l èíc- dor que não hesitava em levar a tribunal os concessionários de minas desonestos ou r' -'.-C imprudentes. Deve também mencÍonar-se a censura que os oradores da segunda vrj'.'.- - metade do século faziam aos cidadãos pelo seu desinteresse crescente quanto, aos - -i negócios-da.cidade, desinteresse que se alia a uma maior preocupação, pelos seus negócÍ0S-piLvadQS*_p.da,.ÂUa Jd ía . Essa censura podia ceríamente visar .pg cidadãos mais pobres, aqueles que a perda do irnpério e das clerúquias.fiAha privado,das Ínúmeras,vantagens.que usufrufam sob a forma de soldos, de despojos de guerra ou de_cqi^;^ões eram obrigados a viver çpm ps seus poucos bens •7^ e com^Igütnas distribuições do teórico,,subsídio pago aquando das representações dramáticas e que, segundo Demóstenes, se converteu numa espécie de ajuda finan­ ceira para os mais miseráveis... No entanto, essa censura visava também Os ricos, ^mais preocupados em ganhar dinheiro do que em intervir nos debates políticos que Icada vez mais eram dominados pelos profissionais do discurso ou pelos técnicos da guerra e das finanças Acerca deste assunto dispomos de uma fonte preciosa, o riicci Iteatro de Menandro, representante da Comédia nova, discípulo da escola peripalé' lica, que conheceu o seu apogeu nos dois últimos decênios do século, quando

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Atenas, vencida e sob p controlo de uma guarniçãojnacedónia, deixou de desempe­ nhar um papel de primeiro plano no Egeu. Nas comédias de Menandro nunca é feita qualquer alusão aos acontecimentos políticos, Os heróis que ele põe em cena são jovens ricos, muitas vezes erh litígio com os pais revoltados com a sua vida dissoluía e com as intrigas sentimentais que os fazem sair do bom caminho. Esses «burgueses» são obrigados a fazer frequentes viagens de negócios e em muitas das peças a acção tem início no momento preciso em que regressam. Possuem escravos, ricas moradias e, no fim da comédia, quando tudo termina com o casamento desejado, todos os criados são mobilizados e chama-se um cozinheiro famoso para preparar o banquete nupcial, Estamos muito longe do mundo camponês, folgazão e altameBíe.polÍÜ2ado,.de.,Aristófanes^E se os pobres são por vezes mencionados — e muitos deles são camponeses — , permanecem porém num plano secundário, a não ser que se venha a descobrir que são de origem nobre. Todavia, por toda a parte se afirma a importância do dinheiro, da riqueza que permite que os jovens mantenham corlesãs e que estas comprem a sua liberdade. É certo que devemos evitar ver no «povo de Menandro» uma imagem exacta da realidade social da época Contudo, isso não significa que não se desenhem as características de uma nova sociedade que será a da época helenística. Seria excessivo e arriscado afirmar que, em finais do século ív, o homem grego se converteu num homo oecvnomicus No entanto, podemos dizer sem grandes jiesjtações que já deixou de sev ãqneh zoonpoliiikòn que Aristóteles íerrtava em vão (T o w riC C ' ressuscitar. É certo que pjnundo grego, parcialmente subjugado, continua a ser um jmündõ^essencialmente constituído por cidades e que a vida política subsiste de um modo formal. Mas, as conquistas de Alexandre abriram aos Gregos um mundo imenso, que eles vão administrar sob a égide dos soberanos macedõnios que dividiram os despojos entre si, Embora não se deva atribuir à economia do mundo helenístico a amplitude dos desenvolvimentos que Rostovtzeff julgou descobrir, isso não impede que se tenha criado então um verdadeiro mercado mediterrânico i i I-. que gerou um aumento da produção e provocou o desenvolvimento das técnicas, se não produtivas pelo menos administrativas e financeiras. Contudo, para além da língua com que se exprimem e algumas práticas religiosas, os Gregos aue adminis­ tram as finanças dos reis iágidas ou seíêucidas já não têm nada em comum com.os Atenienses de Maratona ou os Espartanos das Termópilas. O homem grego foi substituído'pelò hqmern helenístico,.

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CAPÍTULO n

o HOMEM E A GUERRA por Yvon Carlan

Guerra e paz

O homem grego estava habituado à guerra e foi mesmo belicoso, como se pode demonstrar com facilidade e de várias maneiras.. Sempre que a nossa documentação o permite, ppdernos registar a frequência das guerras^e apercebermo-nos, por exemplo, de que, em média, a Atenas clássica esíeye.ejn guerra mais de dois anos em três, e nunca conheceu a paz durante dez anqs_seguidos; a isso acrescentar-se-á a insegurança crónica provocada por diversas formas, mais ou menos legais, de yipjênçia em tena firme e ainda mais no mar (acções de represálias, direito de naufrágig^piratanaprivada, semipúWica ou de natureza francamente estatal), Para­ lelamente, e sob o ponto de vista arqueológico, evocai-se-ão as fortificações cons­ truídas com grandesjdespesas em tomo dos principais cenbos__residenciais e de ^dêF(têntãntíÕ imaginar o que outrora significava o facto de se viver numa cidade «fechada») e as que se encontravam nos campos (torres de vida e de habitação, postos de controlo, refúgios) — sem esquecer que a grande maioria dasjBQnumêntos e das obras d.e„arie que,ornavjLm gs grandes santuários e os.Iugares.públicos não passavam de ofertas de vencedores. A docum entaç^ epigráfica mostrará o carácter z\i! efémero e precário dos tratado^ q u e punham fim às hostilidades durante um período muitas vezes limitado a cinco, dez ou trinta anos, como se a paz fosse, desde o primeiro momento, considerada precária ou mesmo concebida como uma espécie de trégua prolongada. Para osJiisíoriadores gregos, só a guerra parece ser um assunto verdadeira­ mente digno de memória: fomece-lhes o tema unificador das suas obras (as UueiJ.as„Pérsicas, no caso de Heródoto, a Guerra do Pelgppneso, no c ^ p de _JCucídides, o .imperialismo romano, no caso de Políbio) ou, pelo menos, confere ritmo às suas crónicas. Na vida diária, a guena é uma preocupação constante para os^cidadãos: por isso, p^ficípar nela é uma obrigação que, em Atenas, ia desde os dezanove até aos cinquenta e nove anos (até aos quarenta e nove anos, no activo, e depois, na reserva); decidir a. respeito dela constitui, por toda a parte, a compe- doí íência mínima das assembleias populares. A todos os níveis e em todos os campos se afirma o predomínio do modelo guerreiro: na vida farníiiar, o soldado é, corno. d it 49 V .'b-

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se pode ver nas decorações dos vasos áticos, a_figura central em tomo da qual se j^tictilam as relações internas do.ot/cqs; na vida religiosa, cada umajdas divinda­ des do Olimpo é dotada de uma função militar específica; na vida morai, o valor de.,um,,,homem de bem a sua aretè, consiste em primeiro lugar na coragem/acionai que manifésía tanto no seu intimo, ao lutar contra as paixões mesquinhas, como no campo de batalha onde o aguarda a «bela morte», a única que tem.um significado social. Todavia, apesar do seu activismo guerreiro, o homem gregQ„nãp se pode defmír como um hottto miUtaris,, se com isso se pretende designar um homem amante da violência pela violência, indiferente às formas que ela reveste e aos objectivos que lhe são atribuídos. A guerra civil (siasis), que opunha entre si os membros de uma mesma comuni­ dade política, concebida à imagem da famíita, era unanimemente considerada desastrosa e.ignominiosa. A única que podia ser valorizada era a guerra entre comunidades, o pòlemos, e mesmo essa sob condições. De facto, a guerra desen­ freada e selvagem, a guerra dos lobos, era .considerada uma transgressão escandalQsa„C/i>>í)rí.r) às^^nqnrias de convivêncm — por outras palavras, (^justiça — que os homens deviam respeitar'não s^entre eles mas também em relação aos deuses. P-AÒlfÍGoi.propriamenteditQ, pelo contrário, não podia prescindí r^da observância de determinadas regras: ^ e claracão de gueira na forma devída,'^realização dos sacrifícios.,, adequados^ífespeito. pelos, íuga^^^ (santuários}0j^las pessoas (arautos, peregrinos, suplicantes) ^ e j o s actos (juramento) referentes à divindade, Sncessão de^auíprização aos vencidos para recolherem os seus mortos e, em certa medida, (^abstenção da crueldade gratuita. É o que se verifica sobretudo nas guerras entre Gregos, cujo princípio virá mesmo a ser criticado (sem efeito visível), no século íV, pelos apóstolos do pan-helenismo; mas também se verifica, até certo ponto, nas guerras, justas por definição, travadas contra os «bárbaros». Obedecendo a essas regras, não provocavam nenhuma mancha pelo sangue derramado e jaão,.exigi^ nenhum rito de purificação final dos çombatentes,. Apesar da sua imprecisão e das inúmeras excepções de que foram objecto, essas «leis», consideradas comuns entre os Gregos e mesmo em toda a humanidade, contribujam para limitar a amplitude dos conflitos.. Por outro lado, seria ceder a uma ílusão de óptica imaginar que a guerra sempre grassou em todo o mundo grego. Com efeito, não devemos esquecer que, por meras razões documentais, o homem grego que nos é familiar e de que falaremos mais, é o. ;. .de Atenas e, em menor grau, de Esparta na época clássica, que se viu empenhado em vastos recontros de carácter imperialista, e não o da Grécia «profunda», repartida por mais de um milhar de pequenas cidades que viviam geralmente uma existência modesta, à margem e sob a protecção das grandes potências. O que vislumbramos, neste caso, são conflitos localizados que opõem entre si cidades limítrofes com objectivos e meios muito limitados, Apesar da sua multiplicidade, só deviam provo­ car modestos rasgões, logo remendados, num tecido espesso. O mesmo acontecia com os diversos actos de «pirataria», A conclusão de alianças podia decerto aumen­ tar esses rasgões, mas, também neste caso, não devemos exagerar os seus efeitos, na medida em que, regra geral, obrigavam apenas a contribuir com o envio de um

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contingente que ajudasse a defender o território dos aliados e não implicava a abertura de hostilidades contra os agressores, Também nada nos di z j o r exemplo, que a época arcaica tenha,rido globalmente tão belicosa como asjépocaajsegujntes, Todas estas limitações, de direito ou de facto, ajudam-nos a compreender que a omnipresença da guerra não significa de forma alguma que a totalidade da Grécia tenha estado permanentemente a ferro e fogo, A uma visão militarista da. história..grega opõe-se,porJ0m_o lugar eminente reservado ao elogio da paz, tanto na opinião pública como na obra dos teóricos. Poder-se-ia apresentar um abundante florilégio, muito repetitivo, de textos que exaltavam os seus benefícios, desde Homero até finais da época helenístíca. Q tema',''Po.,:: s' é sempre o mesmo: a p ^ é abundânçiaj boa yid.a, alegria, gozo dos prazeres rimples,; u , da existência: a guerra é abstinência, canseira (ponor), dor e. tris te ^ ParaJelameníe,; a nível conceptual, há a afirmação de Platão, segundo o qual «é na paz que se deve viver, e.o. melhor que.se puder, a maior parte da nossa existência» (Leis, 7 ,803d), ou a de.Ari,stóteles,, segundo o qual «a.paz é o.fim último, da guerra, como o lazer é o fim último do trabalho» (Política, 7, 1334a) — o que os impedia de fazer de .físparta. onde essa relação parecia invertida, um modelo^ DeduzíV-se-á de tudo isto que se assistiu ao confronto e ao triunfo alternado de duas correntes, de belicistas e de pacifistas, igualmente convictos, por razões de princípio, da justeza absoluta da sua causa? Certamente que não. Em primeiro lugar, porque as opiniões proferidas a esse respeito ou são apenas declarações de circunstância, por vezes refutadas pelo próprio autor com afirmações de sentido oposto, ou incidem unicamente sobre a oportunidade de uma ou outra guerra e não sobre a guerra em si (e é por isso que não se conhece nenhum ateniense do século V que se tenha oposto ao imperialismo enquanto tal). Depois, e acima de tudo, porque a paz só é considerada segundo um ponto de vista pessoal, hedonista e, por assim dizer, existencial, sem nenhuma consideração de carácter propriamente humanitário e sem qualquer desejo de ver mudar, nesse campo, as bases da sociedade ou a natureza do homem. Trata-se apenas do ponto de chegada, particuiarmente grato, que deve coroar os feitos guerreiros,. Corresponde ao momento em que o camponês tem o prazer de armazenar e consumir os frutos dos seus duros trabalhos. Ta! concepção não contradiz de forma alguma a necessidade, a racionali­ dade e a grandeza da guena; pelo contrário, tende a justificá-la, atribuindo-lhe como fim último a felicidade. Assim, embora funesta, a guerra soçia]ízada„pode revestir-se positivamente de iodos os valores de que a elite cívica se reclama.

As causas da guer ra «Vamos supor que se quer declarai' guerra àqueles que procedem justamente: evitar-se-ia admÍü-Io», declarava Alcibiades, que não frequentai'a por acaso a escola dos sofistas, no diálogo platónico que tem o seu nome (109c), A partir deste princípio, que complementa as «íeis» atrás evocadas, ou melhor, a partir desta petição de princípio que nada tem de especifícamente grego, desenvol-

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vera-se toda uma casuística que desembocava na ‘composição de repertórios de pretextos, como o que é proposto pelo autor aristotélico da Retórica para Alexandre^ no início do sécuio lli a^ C : «que, depois de termos sido vítimas de injustiças no passado, se tenha agora, dadas as circunstâncias, de punir os que cometeram essas injustiças, ou que, sendo actualmenie vítima de uma injustiça, se tenha de combater por si próprio ou por benfeitores ou prestar ajuda a aliados vítimas de uma injustiça, quer no interesse da cidade ou para sua glória, para o seu poder ou por qualquer outro motivo desse género. Quando incitamos â guerra devemos apresentar o maior número possível destes pretextos» (Í425a).

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A acreditar no que nos dizem os^Iiistoriadores gregos acerca das ofensas oficiab inente invocadas pelos beligerantes por ocasião de çada^çonflito, temos de reconhecer que não faltou imaginação e não se hesitou em recorrer a todos os meios; agre^ãp jterntorial, ataques às vias de abastecimento, desrespeito por acordos ,antenpres, estabelecimento de regimes malqujsjos, qualquer £orma de ameaça real ou potencial,impiedade, afrontas que ofuscavani a glória da cidade, tudo servia para fazerem justiça e para se defenderem . se possível, atacãndò'.' Os historiadores gregos tentaram pôr um pouco de ordem e introduzir uma certa profundidade de pontos de vista neste estranho arsenal de argumentos e de argúcias; Heródoto, combinando de várias formas a vontade divina, a víitgança das ofensas sofridas num passado mais ou menos remoto e os cálculos políticos; Tucídides, apontando, para aíém dos «agravos e diícrenàos» acumulados na véspera da Guerra do Peloponeso, a «causa mais verídica e menos confessada», que era o receio dos Espartanos perante o aumento do poder ateniense; PoJfbio, chegando a distinguir as causas profundas de um conflito, o seu pretexto e o seu ponto de partida. Todavia, todas as reflexões que fizeram neste domínio logo atingem o seu termo e nunca chegam a uma opinião explícita acerca das causas do fenómeno da guerra enquanto tal. Essa opinião, porém, não está ausente da literatura grega. Encontra-se essencial­ mente, mas não unicamente, em Platão e Aristóteles, que não excluíram a guerra (tal como a escravidão) dos seus projectos de sociedade ideal e não puderam, portanto, esquivar-se a explicar a sua existência. As suas respostas são convergentes e aparentemente simples: a causa da guerra teria sido o desejo de «possuir mais», de adquirir, segundo o primeiro, riquezas e evenlualmente escravos, para o segundo, sobretudo escravos, e para ambos, arranjar comida no mundo animal e no estádio pré-cívico da humanidade (uma vez desaparecida a abundância natural da idade de ouro ou a simplicidade dos costumes primitivos) Embora a palavra «riquezas» e «escravos» possam revestir-se de um sentido mais ou menos metafórico, isso não modifica em nada a perspectiva global dos nossos dois filósofos: para eles, a guerra era, essencialmente, a arte de adquirir pela força meios suplementares de existência, sob a forma de sustento, de dinheiro ou de agentes produtores, e a paz era a arte de usufruir de tudo isso. Portanto, os historiadores modernos encontraram-se perante o dilema seguinte: dever-se-á atribuir à guerra na antiga Grécia uma única causa, essencialmente 52

económica, ou causas múltiplas e heterogéneas (políticas, religiosas, ideológicas e económicas)? A maior parte, fazendo do edeclismo virtude, optou por esta última solução — embora admitindo a importância das condições e das consequências económicas da guerra e por vezes áescobnndo também uma unidade explicativa,'ao congregar a diversidade das afrontas numa mesma pulsão profunda, como o espírito agonístico dos Gregos ou até a combatividade natural da espécie humana, Mas será um bom método truncar tão brutalmenie a documentação antiga, recusando um ponto de vista em favor de um outro? Não será melhor tentar compreender a sua coexistência, distinguindo os níveis em que ambos se situam no conjunto da estru­ tura social? Para isso, recordemos antes do mais, em termos muito gerais, o papel fundamen­ tal desempenhado no mundo grego pela coacção física e jurídica, que se designa geralmente por extra-económica: por um lado, no interior da cidade, para a extorsão do excesso de produção que permite aos cidadãos realizar-se em detrimento de uma mão-de-obra dependente; por outro, no exterior das cidades, sob a fònna de uma expansão que constituí o principal modo de desenvolvimento económico e a princi­ pal via de resolução das contradições internas, E tudo isso se concretizava devido a uma «lei», nunca posta em causa, segundo a qual o direito do vencedor de se apropriar da pessoa e dos bens do vencido era o melhor título de propriedade, Neste contexto, característico das sociedades pré-capitalistas (e que, nos séculos passados, volta a encontrar-se, por exemplo, nas sociedades da região sahelo-nigeriana)', as noções de riqueza e de poder só podiam estar intimamente, organica­ mente ligadas, A sua amálgama constitui a base da polítíca no sentido grego do termo (a arte de viver na polis), onde cada uma se apresenta muitas vezes sob a forma da outra e se concretiza por seu intermédio. Assim se tece toda uma série de intrigas originárias que proliferam na esfera política (no sentido moderno, restrito, do termo), alimentando-se de todas as formas de sublimação geradas pelo senti­ mento da honra e pelo desejo de competir — com todos os riscos suscitados pelo acaso e pelo talento relativo dos protagonistas. Portanto, como foi mais ou menos sentido pelos próprios historiadores gregos, as relações internacionais, sejam quais forem as suas metamorfoses, revestem-se sempre de um aspecto económico, mesmo que a sua face mais saliente lenha, em geral, um carácter totalmente diferente. Na minha opinião, este pomo de vista é o único que evita um agravamento da oposição entre as causas económicas e não económicas da guena O complexo polMco-militar, com os valores particulares que lhe estão associados, insere-se assim da melhor forma nas estruturas socioeconómicas das cidades gregas.

As motivações dos combatentes

Fossem quais fossem as causas proclamadas de um conflito, o que parece, em todo o caso, ter contado para os interessados, eram as suas repercussões previsíveis, concretas e imediatas, sobre as suas condições de vida. Na melhor das hipóteses, a de uma guena ofensiva e vitoriosa, avaliavam-se os lucros menos em dinheiro do que em despojos de diversa natureza; prisioneiros, que

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se preferia Uberíar em troca de um resgate ou vender aos mercadores de escravos a utilizá-los para aumentar o número de escravos de cada um; gado capturado nos campos; produtos agrícolas já maduros ou ainda por colher; objecíos precisosos (metal trabalhado ou cunhado, tecidos) e mesmo toda a espécie de objectes utilitá­ rios (utensílios, revestimentos em madeira, etc. ) A reparüção desses despojos, a que podiam somar-se conquistas territoriais e tributos mais ou menos regulares, era um problema essencial e sempre delicado, como provam os tratados que regulamen­ tam antecipadamente a sua distribuição aos aliados, em função dos seus contingen­ tes ou em função da natureza, móvel ou imóvel, dos bens conquistados.. Infelizmente, não se sabe bem como é que essa distribuição se efectuava, uma vez deduzidas as partes concedidas aos combatentes mais valorosos e as armas, as riquezas e, por vezes, as terras consagradas a uma qualquer divindade sob a forma de primícias e de décimas: parece que ao Estado cabiam sobretudo (para além dos tributos e das conquistas territoriais) os melais preciosos obtidos nos saques ou mediante a venda dos prisioneiros; aos soldados, os bens de consumo e de equipa­ mento; aos seus chefes, algumas presas de qualidade — quanto mais não fosse para os compensar das somas que teriam desembolsado para melhorar'o rancho das suas teopas, se não mesmo para lhes fornecer armas e garantir o seu sustento, Será difícil afirmar algo de concreto a este respeito, dado que cada uma das partes procurava aproveitar-se das circunstâncias para ultrapassar os seus direitos e os costumes deviam variar segundo as épocas e as cidades; assim, em Esparta, um rei recebia, por norma, um terço dos despojos obtidos sob o seu comando Embora isso não fosse mencionado nas declarações oficiais, estas perspectivas de enriquecimento individual e colectivo, quando pareciam racionalmente concebíveis, conduziam à guena e influíam fortemente sobre o moral das tropas, Foi o que aconteceu em Atenas, em 415, aquando da partida para a expedição à Sicília: «Todos», refere Tucídides (6, 24, 3), «foram invadidos peia niesma raiva de partir: os adultos, pensando que iriain conquistar a região para onde embarcavam ou que, pelo menos, devido às suas poderosas forças militares, não corriam nenhum risco; os jovens com idade de servir no exército, pelo desejo de ver paises longínquos c aprender, e a certeza de que regressariam sãos e salvos; a grande muiridâo dos soldados, esperando ganhar dinheiro e, além disso, adquirir um poder [no Estado] que lhes garantisse rendimentos indefinidos»,

salários militares e também salários civis pagos aos cidadãos pelo exercício das magistraturas. Mas é em situações inversas — quando se tratava de rechaçar uma invasão inimiga e garantir a sua própria salvação — que as motivações dos combatentes nos são mais amiúde descritas. Nas operações militares, o que estava sobretudo — e muitas vezes exclusiva­ mente — em jogo era o território que os agressores saqueavam e devastavam tanto quanto lhes era tecnicamente possível e lhes parecia politicamente oportuno, Não havia cidade que não reagisse vivamente, mesmo que fosse apenas por razões meramente materiais, dado que a maioria dos cidadãos era constituída por proprie­

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tários fundiários, mesmo numa cidade tão «comercial» como Atenas em finais do século V, Qualquer ataque ao território provocava portanto uma ruptura mais ou menos grave do equilíbrio econômico e, indíreciamente, do equilíbrio social da comunidade, que corria o risco de se encontrar a braços, se não com a carestia pelo menos com dissensões internas entre aqueles que sofriam e aqueles que não sofriam com tal situação Este problema era tão importante que os legisladores, para melhor garantir a concórdia entre os cidadãos, podiam zelar para que as suas propriedades fossem iguairaente repartidas em relação às fronteiras, para que todos se sentissem igualmente sob a sua protecção lambém influía neste sentido o conjunto dos valores sociais, e nomeadaraente religiosos, ligados à posse da terra. Abstraindo da relação de forças em presença, as respostas variaram de acordo com a ideia que se tinha dos interesses supremos da cidade. Durante muito tempo, num ambiente mais ou menos autárquico, tentou-se pôr termo o mais depressa possível às incursões através de negociações ou provocando uma batalha decisiva em campo aberto. Foi a isso que se opôs resoluíamente Péricles no início da Guerra do Peloponeso, com prejuízo dos invasores comandados pelo rei de Esparta. Arquîdamo, e provocando a furia dos Atenienses que dificilmente se deixaram convencer a retirar maciçamente para o interior das Longas Muralhas que uniam a cidade ao Pireu; fez-se~Ihes notar que era a única maneira, embora dolorosa, de salvaguardar o essencial, ou seja, o seu império marítimo,. Outros exemplos da estratégia de Péricles poderíam ser assinalados quanto a cidades que tinham todo o interesse erti sacrificar a defesa do território à das fortificações urbanas ou que a isso eram obrigadas por um terceiro, bem como se continuou, a partir do século v, a recorrer de tempos a tempos a batalhas campais. No conjunto, todavia, o que prevaleceu foi a tendência para uma estratégia mais subtü e complexa que visava conciliar os dois imperativos de defesa; assegurar a defesa do território, tanto quanto possível, pela construção de fortificações rurais e a saída de comandos, sem se comprometer com isso a segurança do núcleo urbano, Era uma estratégia difícil de pôr em prática, como se pode perceber pela leitura do pequeno tratado de poliorcética elaborado por Eneias, o Táctico, em meados do século íV: são-nos descritos cidadãos que, num primeiro momento, anseiam por ir até aos seus campos para salvar o que podia ser salvo, e que depois se mostram impacientes por se bater com o inimigo, arriscando-se a cair em emboscadas, antes de os seus chefes conseguirem reuni-los em grupos de combate e impor-Ihes algumas pre­ cauções elementares. Em última instância, não restava outra possibilidade senão garantii' a todo o custo a protecção do aglomerado urbano, cujas fortificações, cada vez mais solicita­ das pelas mutações militares do século iv, não deixaram de aumentar em poderio e em complexidade para se adaptarem ao aperfeiçoamento das máquinas de assédio e à evolução da prática de assalto. Até ao início da época helenísdca, só Espaita poderá gabar-se de poder prescindir desses artifícios e dever a sua segurança a uma «coroa de gueireiros e não de tijolos» (Plutarco, Moralia, 228e), Por esse facto recebeu a aprovação de Platão, que consentia quanto muito em adaptar para fins defensivos as paredes exteriores das casas da periferia, mas não recebeu a aprova­ ção de Aristóteles, que exprimiría melhor a opinião geral: «Achar bem que não se

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construam muralhas em volta das cidades é o mesmo que procurar um terreno fácil de invadir e aplainar os locais montanhosos; e também é o mesmo que evitar construir muros em tomo das casas particulares, com medo que os seus habitantes se tomem cobardes» (Política, 1, 133Ia)^ Ainda mais do que numa batalha campal, um cerco é uma prova cruciai que mobiliza todas as energias dos combatentes e do conjunto dos habitantes, porque um assalto comportava os massacres e as pilhagens inerentes a este gênero de operação, e muitas vezes também a aniquilação da comunidade com a sua redução à escravidão.. Graças ainda ao tratado de Eneiais, o Táctico, podemos avaliar a angústia e a exaltação dos sitiados, bem como o engenho das medidas tomadas nessas circunstâncias: não só contra o inimigo externo, as suas máquinas e os seus estratagemas, mas também contra o inimigo interno, isto é, os opositores ao regime dispostos a trair para triunfar. Num clima de extrema tensão, o sentimento patriótico idenüficava-se então plenamente, no coração dos cidadãos, com a salvaguarda imediata da sua pessoa, da sua família, da sua posição social e dos seus bens. Por conseguinte, nas motivações dos combatentes predomina uma concepção «cantai», simultaneamente concreta e emotiva, da pátria — o que não significa evídentemente que tenham sido incapazes de se colocar acima dos seus interesses pessoais, a um nível de abstracção mais elevado. Em relação aos nossos contempo­ râneos, mais habituados a uma maior mistificação nesta matéria, essa concepção pode parecer um tanto limitada. Saibamos ao menos apreciar a sua frescura e autenticidade.

Função militar e estatuto social

Essa concepção tinha como corolário, contrariamente ao que costuma acontecer nos nossos dias, a proporcionalidade dos encargos militares dos membros da comu­ nidade em relação ao seu estatuto sod al É certo que podemos encontrar na Grécia alguns vestígios e alguns restos da trifuncionalidade indo-europeia tão bem analisada por G. Dumézil, que concebe a ordem cósmica e a ordem social como resultado da sobreposição das três funções de soberania, força é fertilidade. Assim, no universo mítico, nomeadamente, poder-se-á distinguir divindades como Ares e Atena, cujos atributos primitivos se associam à segunda função, numerosos heróis como Héracles, Tideu, Paríenopeu e Aquiles, cuja gesta ilustra o destino do guerreiro, bem como coíectividades de carácter nitidamente militar, como as dos Espartas em Tebas, dos Flégios em Orcómeno da Beócia, dos Egeidas em Esparta, dos Geneneus na Côlquida ou a dos Gigantes, inimigos dos deuses. A dualidade da função guerreira em relação à função de soberania, desenvolvendo-se autonomamente, aceitando colaborar em posição subordinada na manutenção do todo ou exercendo-se de uma forma desordenada ou ordenada, servirá para explicar, respecüvamente, a antítese de Ares e Atena, de Héracles e Aquiles, ou a oposição estabelecida por Hesíodo entre a raça de bronze e a raça dos heróis. Fossilizada num rito da época clássica,

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pensar-se-á detectar uma ou outra tripartição significativa, como, por exemplo, no facto de o jovem cretense receber do seu amante uma taça, um trajo de guerra e um boi.. Todavia, o que predomina na história grega, desde as tábuas mícénicas do século Xll e dos Poemas Homéricos do século vin, é algo lotalmente diferente: há uma concentração das capacidades e das responsabilidades militares no topo da hierarquia social, nas mãos de uma eÜíe que no campo de batalha desempenha um papel determinante, proporcional àquele que desempenha iguaímente na política e na economia, É a essa elite que compete exibir, na primeira fila, a sua riqueza, o seu poder e a sua coragem, enquanto o povo, em segundo plano, se acantona em formações compactas pam apoiar e aplaudir as façanhas dos campeões. Cabe-lhe também o privilégio das armas forjadas pelos deuses protectores, dos gigantescos paveses e sobretudo dos carros de guerra (mesmo que, nos Poemas Homéricos, se sirvam deles de um modo aberrante, como simples meios de transporte!), Cabem-Ihe também com toda a certeza os melhores despojos, belas prisioneiras e objectos preciosos, retirados do saque comum. Por conseguinte, as sociedades aristocráticas do limiar da história grega estavam sujeitas a uma hegemonia global e funcional­ mente indiferenciada, ainda que as virtudes guerreiras fossem as niais apreciadas e se exprimissem com a maior autonomia, A formação das cidades, iniciada no século vui, conduziu progressivamente ao estabelecimento de novas relações comunitárias No entanto, essa mutação, que conhecemos muito ma! em pormenor, não alterou o princípio de repartição das funções militares entre os membros de um corpo cívico que se irá alargando mais ou menos, ao longo dos séculos, segundo o regime adaptado . Passou a ser-se soldado porque se era cidadão e na medida em que se era cidadão, e não o contrário O exercício da força armada não constituía a Sfbníe, mas a expressão privilegiada de todo um conjunto integrado de posições estatutárias representativas dos diferentes aspectos da cidadania. Em primeiro lugar, estava a capacidade económica de os indivíduos se dotarem, em caso de necessidade, de um armamento adequado. Mas não era essa capacidade em si que determinava a sua categoria cívica. Assim, em Atenas, a classificação censitária dos cidadãos e as atribuições políticas que lhe estavam associadas baseavam-se na importância dos seus rendimentos e não em critérios de natureza militar: era natural que um dado serviço fosse exigível àqueles que atingiam um certo censo Esparta, que, no século IV, passará a gozar de uma fama exagerada de militarismo, não é uma excepção neste domínio. O que condiciona a entrada no corpo dos «semelhantes» (/lómoíoi) é, para além do nascimento, a posse de um vasto domínio cultivado por hiloías e, consequentemente, a possibilidade de pagar uma quota-parte nas refei­ ções comuns — o comportamento em combate só era tido em conta de um modo negativo, como causa de descrédito: é significativo que, no dia em que a Esparta heíenísüca pretendeu remediar a sua «oligantropia», integrando alguns hiloías no exército, procedeu ao seu recrutamento em bases censitárias, e não em função da sua bravura Depois de termos estabelecido este princípio, vejamos agora como é que ele se traduz concretamente na vida militar

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o modelo lioplita

A manifestação mais evidente do processo de formação das cidades é a aparição de um novo ripo de combatente: o hopliía A sua protecção era assegurada por grevas, elmo, couraça de bronze e um escudo circular de 80-90 cm de diâmetro, feito de bronze ou de uma amálgama de madeira, vimes e peles. A maior originalidade deste lioplon, que será a arma emblemática dos hoplitas, consistia porém em ter deixado de ser usado pendurado ao pescoço por uma correia, mas colocado no antebraço esquerdo graças a uma braçadeira central de bronze e a uma correia externa que servia de pega, Essa alteração tinha duas consequências muito importantes. Por um lado, o hopliía dispunha apenas do braço direito para manejar as suas armas de ataque; uma lança de madeira de cerca de 2,5 m de comprimento, provida de uma ponta e de um talão de feiro ou de bronze, e uma espada curta para a luta coipo a corpo. Por outro lado, a protecção do flanco direito, em parte descoberto, tinha de ser assegurada por um companheiro de linha no interior de uma falange sufícientemente compacta (tendo também em conta os limites que o elmo e a couraça impunham à visão e à agilidade dos soldados). Por isso, somos levados a admitir que essa dupla inovação técnica e táctica foi acompanhada por uma extensão do recrutamento a todos aqueles que eram capazes de se dotar de semelhante equipamento, e portanto, por um alarga­ mento do corpo dvico para lá dos limites da aristocracia tradicional. A proto-história dessa falange hoplita continua a ser muito controversa: em que data apareceu (meados do século va)? Surgiu de repente ou após um período de ensaios? Representou uma revolução total em relação aos modos de combate já existentes? FoÍ a causa ou a consequência das transformações sociopoUticas con­ temporâneas, e em especial da aparição da tirania? O que aconteceu então à cavala­ ria, que lería sido, segundo Aristóteles, a arma favorita das primeiras cidades aristocráticas? Eis algumas das perguntas que os historiadores modernos continuam a fazer e que eu tenho dè me limitar a recordar para me concentrar na época clássica, muito melhor documentada. O armamento dos hoplitas tinha-se entretanto simplificado e aligeirado. De um modo geral, desapareceram as braçadeiras, coxetes e protecções anti-setas, tal como a segunda lança utilizada como dardo, que aparecem em algumas reproduções arcaicas. A couraça de bronze moldada foi substituída por uma casaca de Unho ou de couro reforçada com placas metálicas. Mesmo assim, porém, o conjunto exigia um investimento importante, pelo menos de uma centena de dracmas áticas, que representavam cerca do salário trimestral de um operário medianamente qualifica­ do. Na Atenas do século v, tal esforço financeiro só era exigível a cidadãos peitenceníes a uma das três primeiras classes censitárias, a terceira das quais, a dos zeugitas, fornecia o grosso dos efectivos. Tais critérios de seiecção no interior do corpo cívico deviam existir um pouco por todo o lado, pelo menos nas regiões onde esse corpo não se limitava, como acontecia em Espaita, àqueles que tinham possibi­ lidades de se armar como hoplitas A prova decisiva que os aguardava era uma batalha campal, que costumava designar-se por agon, precisamente como uma competição atlética, e que também

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se caracterizava por sacrifícios preliminares (em diferentes etapas da progressão), por um recontro em campo fechado e por acções de graças, acompanhadas por oferendas muitas vezes análogas (coroas, trípodes). O combate propriamente dito desenrolava-se lealmente, de acordo com práticas fortemente ritualizadas, sem qualquer recurso ao efeito da surpresa,. Uma vez acordado, mais ou menos tacücamente, com o inimigo um local de encontro muito uniforme, como, por exemplo, uma planura agrícola, a falange dispunha-se, formando um grupo compacto, em várias fileiras (normalmente, oito), a fim de poder exercer uma pressão colectiva e garantir o preenchimento automático dos espaços vazios Os espaços entre os combatentes eram de menos de um metro, de forma que um exército de dimensões médias, digamos 10 000 homens, se estendia por cerca de 2,5 km As alas eram preenchidas por alguns contingentes de tropas ligeiras e de cavaleiros, que estavam encarregados de se opor a qualquer tentativa de cerco e de contribuir, no início e no fim da batalha, para lançar a confusão entre as Unhas inimigas. Depois de se ter invocado, com um último sacrifício, o favor divino, iniciava-se uma marcha ordenada em direcção ao inimigo, distante algumas centenas de metros, marcha essa que terminava muitas vezes em passo de corrida: os Espartanos executavam-na num silêncio impressionante, só ao som da flauta, enquanto outros a pontuavam de sons de trompas, gritos e peãs de ataque, em honra de Ares e de Eniálios O choque era frontal e só dava lugar a raras manobras laterais, à parte o facto de a faian^e ter uma tendência natural para avançar obliquaraente paia a direita, pela simples razão de cada um dos seus membros se deslocar insensivelmente para o lado oposto ao escudo para se encostar ao seu viziniio de Uniia. Portanto, salvo acidentais rupturas da frente, era nas alas que se decidia a sorte da batalha: a primeira ala direita que conseguia triunfar provocava pouco a pouco a desarticulação da falange inimiga, Como os chefes não podiam alterar o curso dos acontecimentos, sobretudo por falta de riopas de reserva, gerava-se o pâni­ co, a confusão e procedia-se a uma breve caça aos fugitivos. A batalha termina­ va com o vencedor a entoar uma peã de vitória em honra de Dioniso e de Apoio, com a erecção no local de um troféu (simples carcaça de madeira decorada com armas retiradas ao inimigo), a quem era permitido levar os seus mortos e, de regresso a casa, com preces acompanhadas de sacrifícios e de banquetes. Destinada a produzir rapidamente, na maioria das vezes durante uma manhã, uma sentença inapelável, a batalha hoplita só momentaneamente afastava os cida­ dãos das suas ocupações habituais, dado que ocorria no final de uma campanha de alguns dias ou, no máximo, de algumas semanas, judiciosamente marcada para a estação estival, para que se pudesse garantir as colheitas e apoderar-se das do inimigo Os problemas de intendência ficavam portanto reduzidos ao mínimo: bastava pedir aos civis mobilizados para se apresentarem com algumas provisões para a viagem e, quanto ao resto, contar com os frutos do saque e com o afiuxo espontâneo de vendedores seduzidos pelo lucro inesperado. Também não havia preocupações quanto ao equipamento, já que cada um se apresentava com as suas armas, os seus trajos militares — que não tinham o aspecto de um uniforme a não

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ser no caso das túnicas vermelhas usadas pelos Espartanos — e os seus objectos pessoais transportados numa mula ou por um escravo; Na realidade, a ruptura com a vida civil era mínima O cUma que reinava no exército também era bastante habitual. A arte da persuasão exercia-se, como na assembleia, sob a forma de exortações feitas aos soldados da frente imediatamente antes do ataque. O comando supremo competia a magistrados eleitos por todo o povo, como os dez estrategos atenienses, que agiam colegial mente, e aos seus principais assistentes, os taxiarcas, colocados à cabeça dos contingentes das tribos — à excepção de Esparta, cujo comando supremo competia aos reis ou a alguns dos seus parentes, rodeados por «companheiros de tenda», entre os quais os polemarcas eleitos, que eram colocados à cabeça dos diversos regimen­ tos, À excepção, mais uma vez, de Esparta, cujo exército, segundo afirma Tucídides (5, 65, 4) «é quase totaJmente constituído por comandantes hierarquizados», os oficiais subalternos eram em geral pouco numerosos, mantinham-se, durante o combate, na primeira linha da sua unidade, usavam poucas insígnias distintivas (penachos ou plumas no elmo) e não eram automaticamente reconduzidos nos seus cargos de uma campanha para outra: portanto, nada tinham de uma casta profissio­ nal, Os homens das fileiras, dotados de armas idênticas, formavam unidades intcrmutáveis, exceptuando o facto de os mais jovens serem colocados nas primeiras filas e de os mais motivados, porque mais interessados no êxito da operação, tenderem a ocupar a ala direita.. Nestas condições, a obediência baseava-se essen­ cialmente no consenso: os castigos, sobretudo físicos, dependiam de um julgamento com todas as formalidades previstas pela leí, num tribunal do exército ou, se possível, nos tribunais regulares da cidade. A coragem dos hoplitas não era portanto fruto de uma disciplina propriamente militar, nem, como vimos, de um furor guerreiro que não conhece o medo (como o prova a sua prontidão em admitir a derrota) Visando sobretudo garantir a coesão da falange, essa coragem baseava-se num sentido preciso de solidariedade, que consis­ tia em não abandonar os companheiros de combate e, portanto, permanecer firme no seu posto, O espírito de corpo era, por conseguinte, cultivado de um modo sistemá­ tico. Era inculcado constaníemente nos hòmoioi espartanos através de toda a organi­ zação comunitária da sua vida quotidiana Em Atenas, também era reforçado pelo agrupamento dos combatentes em tribos, ou mesmo em tritias.. Assim, no interior da falange, podiam exprimir-se plenamente as relações naturais de eníreajuda baseadas no parentesco, na amizade e na vizinhança. Se insistirmos demasiado nos aspectos lúdicos e ordinários da batalha hoplita, corremos o risco de nos esquecer da violência dos recontros individuais a que ela dava lugar, com perdas relativameníe pesadas, avaliadas em 14% no que se refere aos vencidos, e em 5% no que se refere aos vencedores. Longe de terem apenas de avançar lado a lado, como numa mêlêe de rugby, para conter e fazer recuar a frente adversária, os hoplitas tinham ainda de enfrentar pessoalmeníe, primeiro com a lança e depois com a espada, os seus adversários directos Por isso, pelo menos no auge da batalha, o recontro colectivo convertia-se numa série de duelos. Relativa­ mente à idade heróica, esses duelos já não deviam desenrolar~se autonomamente em busca da glória, como demonstra o caso do espartano que quís resgatar-se em

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Plateia do facto de ter sobrevivido nas Termópilas: acusado pelos seus coiiipanhairos de ter «abandonado a sua fileira como um louco furioso» porque «procurava manifestamente a morte para escapar à vergonha que pesava sobre ele», viu-se privado das honrarias (Heródoto, 9,71). Como bom cidadão, deveria ter sujeitado a sua acção a uma certa disciplina moral (súp/irosyne), tendo em conta os interesses da coleclividade, Esse modelo hoplita, estritamente definido em relação ao plano político e ten­ dente a validar a proeminência de uma determinada elite social, tem os seus limites temporais, Com efeito, a partir de finais do século v, e embora se continuasse a elogiar mais do que nunca os méritos deste üpo de combatentes, sobretudo nas pessoas dos maratonomacas, começou a aiargar-se a base do recrutamento, de facto senão de direito: em Esparta até abranger alguns inferiores, em Atenas, até abranger os tetes, que constituíam a quarta e última categoria censitária Por outro lado, no piano militar, a falange hoplita (que, na realidade, raramente tinha agido sozinha, como em Maratona) teve de contar cada vez mais com a infantaria ligeira e sobretudo com o corpo semiligeiro dos peltasías, antes de ter de admitir a sua inferioridade perante a falange macedónia. Simultaneamente, ia aumentando na arte militar a importância da surpresa, da astúcia, da traição, da habilidade técnica Os contemporâneos tiveram plena consciência disso e, em 341, Demóstenes confir­ mará amargamente, na sua Terceira Filípka (47-50), essa evolução. Todavia, evitemos, a este respeito, passar de um excesso para outro; a infantaria hoplita continuaráva ser, mesmo nas cidades helenísticas, a arma nobre por excelência e desempenhará por muito tempo um papel essencial nas batalhas campais que decidiram o curso da grande história.

Os deveres militares nos graus superiores e inferiores da escala social

As outras participações na vida militar da cidade situavam-se de um lado e do outro do eixo anteríormente destacado. Na Grécia, possuir um cavalo era um sinal evidente de riqueza e pertencer à cavalaria era uma distinção social, mesmo nas vastas planícies, como a Tessália, a Beócia ou a Campânia, que se prestavam optimamente à criação de gado cavalar. Em Atenas, parece que durante muito tempo se contou com a boa vontade dos jovens aristocratas, os únicos que possuíam meios para manter uma montada e que tinham pelo menos tanto tempo para praticar a equitação, para as paradas e as vitórias nas competições como para a guerra. Teria sido a conselho de Péricles que, em meados do século v, os Atenienses se dotaram de uma cavalaria regulai, formada primeiro por 500 e depois por 1000 cidadãos (e também por 200 archei­ ros a cavalo), a não ser que isso tivesse acontecido antes, no início do século, quando os vasos reproduzem as primeiras cenas de exame para o ingresso na cavalaria. Talvez Péricles tenha lido apenas o mérito de instituir o sistema de recrutamento em vigor na época clássica. Esse sistema consistia cm dar a um número escolhido de jovens provenientes das duas primeiras classes censitárias (e sobretudo da segunda, denominada precisamente ippèis) uma determinada quantia

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em dinheiro que bastava ou, pelo menos, que contribuía para a compra de um cavalo, cujo valor era periodicamente reavaliado e reproduzido era tábuas de chumbo encontradas em grande número na agorà, Para além disso, era-lhes con­ cedido um subsidio diário para a manutenção do cavalo. O alistamento na cavala­ ria estava, portanto, reservado a uma elite censitariameníe definida, cujo prestígio se exalta no friso interior do Parténon, por volta de 440, antes de vir a sofrer com a restauração democrática de 401, apesar dos discursos públicos proferidos por Xenofoníe, cerca do ano .360.. Todavia, sob o ponto de vista militar, a cavalaria grega esteve sempre limitada pela sua incapacidade em penetrar nas fileiras dos hopliías Dispondo de lanças curtas, que podiam ser usadas como dardos, por vezes munidos de esporas e de couraças ligeiras, mas desprovidos de estribos e de selas rijas, com o inconveniente, além do mais, da fragilidade das montadas não ferradas, os cavaleiros desempenha­ ram, normalmente, apenas uma tarefa de exploração e de desgaste, com efectivos que equivaliam, no máximo, na maior parte das cidades, a um décimo dos da falange. Os Espartanos revelaram-se particularmente negligentes neste domínio, já que esperaram pelo ano de 424 para se dotarem de uma pequena cavalaria de 400 homens. Os atenienses mais ricos, pertencentes, pelo menos na sua maioria, à primeira categoria censitária dos pentacosiomedimnos, tinham como missão específica contribuir para o armamento naval: de início, fornecendo talvez barcos no âmbito bastante mal conhecido das naucrariase, após a instauração da trierarquia, zelando pela manutenção e pelo funcionamento das trirremes construídas pelo Estado. Esta liturgia, paga periodicamente em função das necessidades, era muito onerosa, dado que podia comportar uma despesa de cerca de 6000 dracmas. Por isso foÍ necessário regulamentá-la de modo a repartir melhor o seu peso, primeiro, no final da Guerra do Peloponeso, dividindo-a por duas írierarquias e depois, em 357, endossando-a a grupos designados por simorias., Os outros pagamentos para fms militai-es chegavam a atingir numerosos zeugitas: tratava-se, em princípio, de contributos excepcionais (eisp/ioràt), mas que se tornaram mais ou menos regula­ res a partir da guerra do Peloponeso e cuja cobrança foi facilitada, a partir de 378-377, pela criação de simorias, modelos das simorias trierárquicas, em que os mais ricos figuravam como fiadores. Sobretudo a partir da segunda metade do sé­ culo !V, contou-se também com dádivas voluntárias (epídoseís) feitas pelos indiví­ duos dessas mesmas classes sociais, dádivas essas que eram recompensadas com belos decretos honoríficos. Estas eram as principais possibilidades internas de financiamento militar nas cidades onde as receitas regulares apresentavam um saldo muito escasso. Em contrapartida, dos inúmeros cidadãos atenienses que pertenciam à última classe censitária (uma boa metade do corpo cívico), só se podia esperar ura serviço pessoal, durante muito tempo limitado às armas mais depreciadas, Era o caso das tropas ligeiras de lançadores de daido, de archeiros e fundibulários, cuja interven­ ção, à margem da falange hopíita, fot, até ao século v, de pouca eficácia e cuja acção à distância parecia tão pouco recomendável sob o ponto de vista moral que fbt proibida, no início da época arcaica, num acordo firmado entre os Calcídicos e os

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Eretreus, que disputavam entre si a pequena planície lelantina. Os archeiros, em particular, não gozaram de boa reputação desde Homero até Euripides que, por intermédio de uma das suas personagens, estigmatiza Héracles nestes termos: «Nüiica usou um escudo no braço esquerdo, nem enfrentou uma lança; segurando o arco, a aima mais vil, estava sempre pronto para a fuga. Para um guerreiro, a prova de bravura não é o tiro ao arco, mas permanecer no seu posto e ver, sem baixar nem desviar 0 olhar, chegar diante de si uma fileira inteira de lanças erguidas, mantendo-se firme na sua fileira..» {Héracles, 159-64.)

Contudo, a partir da Guerra do Peloponeso, e sobretudo com a multiplicação dos peltastas dotados de dardos e de ura pequeno escudo ipelta), fòt-se tomando cada vez mais evidente que as tropas ligeiras podiam, por vezes, vencer os hoplitas e que a sua utilização se impunha em inúmeras ocasiões (protecção de limites territoriais, guerra de assédio), Os factos provaram então que os preconceitos que os atingiam não tinham muita razão de ser, mas não conseguiram fazê-los desaparecer por completo. As mesmas categorias sociais pertenciam os remadores, que, agarrados aos seus bancos, impeliam as trirremes, antes e durante as batalhas, ou pelo menos uma grande parte deles, dado que os tetes atenienses não teriam conseguido, sem o concurso de estrangeiros, encher duzentos ou trezentos navios. Das suas capacida­ des de manobra dependia o êxito do abalroamento, fundamento da táctica naval, dado que/.a tarefa da dezena de hoplitas existentes em cada trirreme era apenas concluir o que eles tinham iniciado Pode dizer-se que os remadores desempenha­ ram um papel de relevo no desenvolvimento do imperialismo maiifimo ateniense iniciado com a prestigiosa vitória de Salamina, em 480 No entanto, não gozavam de boa reputação entre os aristocratas, como o demonstra o que acerca deles é afirmado, na véspera da Guerra do Peloponeso, na ConslUuiçÕo dos Atenienses do «velho Oiigarca» ou, mais tarde, na obra de Platão. Outras cidades, como Esparta, limitaram-se mesmo a utilizar não cidadãos, dependentes rurais ou estrangeiros, nas suas frotas, sendo raras aquelas que, como foi o caso de Rodes na época helenistica, parecem ter tido em maior consideração o serviço na marinha.

À margem da cidade A lei da proporcionalidade entre o papel militar e o estatuto social continua válida se alargarmos a nossa análise às margens do corpo cívico. Os que tinham mais afinidades com os cidadãos eram os seus filhos menores, porque eram cidadãos potenciais, educados e tratados como tal Situando-se entre a infância e a idade adulta, na Grécia como em qualquer outro lugar, identificados respectivameiite cora a natureza e a cultura, numa fase de transição fortemente marcada por antigos ritos de passagem, dedicavam-se a exercícios que ora os opunham ora os preparavam para o combate hoplita. O primeiro destes aspectos atraiu a atenção dos historiadores modernos, à luz de inúmeros confrontos etnoló­ gicos fornecidos por outras sociedades arcaicas, como as africanas do século xix

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É O que revela com parücuiar evidência a educação espartana (agogè), que durante mais de dez anos multiplicava para os jovens agrupados em «rebanhos», provas de resistência e simulacros de combates, que apelavam sobretudo para a astiícia. No fim desse período probatório, os melhores entre os «irenes» eram submetidos à krypteia. Os criptas, ou seja, os «ocultos», eram enviados em pleno Inverno para as regiões mais remotas do tenitório, sem provisões e munidos de uma simples faca, e era-lhes ordenado que não se deixassem ver, se alimentassem do que apanhassem roubando e se dedicassem, de noite, à caça dos hilolas a quem os éforos tinham declarado guerra- Por conseguinte, durante esta fase de segregação, que precedia a sua agregação definitiva à comunidade dos adultos, comportavam-se, por assim dizer, como anti-hoplitas Em Atenas, o Estado só se encarregava dos jovens no final da adolescência, portanto muito mais tarde do que em Espana. Nessa altura, ficavam sujeitos à efebia, cuja existência deve remontar pelo menos ao início da época clássica, sob a forma, sem duvida, de um línico ano de formação reservada às três primeiras classes censitárías Mas nós só a conliecemos bem numa data muito posterior, após a sua reorganização e o seu reforço por parte de Epícraíes, cerca de 335-.334, no momento em que Licurgo tenta restaurar um poderio miiiiar fbrtemente comprometido pouco antes da derrota de Queroneia contra os Macedónios. Um capítulo da Constituição dos Atenienses de Aristóteles (42) e algumas inscrições fazem-nos então descobrir os principais aspectos do seu funcionamento. Nessa época, abrange o conjunto dos filhos dos cidadãos, independentemente da sua posição censitária, entre os deza­ nove e os vinte anos, Durante o primeiro ano, os efebos, depois de terem visitado todos os santuários, estabeleciam-se no Pireu, onde recebiam uma instrução miiiíai' muito completa; manejo das armas dos hopíitas, tiro ao arco, lançamento do dardo, manobra da catapulta. No ano seguinte, eram passados em revista e recebiam do Estado o escudo e a lança de hoplita, antes de marcharem através da Atica e de passarem algum tempo nos fortins fronteiriços. Encontravam-se assim, embora de uma forma menos marcada do que os criptas lacedemónios, tão marginalizados no espaço como politicamente, embora já estivessem inscritos nos registos dos demos, pela sua ausência na assembléia do povo e pela proibição de comparecerem era juízo salvo no que respeitava ao direito familiar. Em tempo de guerra, também só eram em parte combatentes, dado que a sua função, tal como a das classes constituí­ das pelos indivíduos entre os cinquenta e os cinquenta e oito anos, limitava-se teoricamente à defesa da Ática. A mesma posição antitética dos jovens em relação aos adultos encontra-se ainda a outros níveis e sob formas mais ou menos definidas, como, por exemplo, na distinção (platônica, nomeadameníe) entre a caça nocturna, com armadilhas, redes e nassas, recomendada a uns, e a caça a cavalo e com chuços, reservada aos outros. Essa antítese também aflora muitas vezes no universo mítico, rico em adolescentes peipétuos, imaturos e selvagens por não terem conseguido integrar-se no mundo dos adultos, como HipóHto, Outro representante dessa juventude que se revela na sua especificidade antes de se fundir na comunidade é o herói ateniense Melanto, «o Negro», que vence pela asliícia (apate) o campeão íebano .Xantos, «o Louro», num duelo pela posse de uma pequena zona fronteiriça, facto que deu o nome à festa

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das Apatúrias, no deconer da qual os adolescentes de dezasseis anos, tendo atingido a maturidade físológica, eram apresentados às fratrias dos seus pais (é esta a verdadeira etimologia do termo Apatúrias) e sacrificavam a sua cabeleira. A característica comum do resto da população era não possuir qualquer direito político e não fazer parte da cidade no sentido restrito do termo, Todavia, esses não cidadãos constituíam um elemento indispensável para a sua sobrevivência, e, em tempo de guerra, também partilhavam indirectamente os seus êxitos e sobretudo as suas derrotas, Portanto, não podiam viver totalmeníe desligados das actividades militares. De facto, senão de direito, passivameníe ou activamente, de uma forma mais ou menos regular e sempre em posições subordinadas, estavam implicados nelas, segundo modalidades concretas que dependiam, para cada categoria, da sua distância variável, ou melhor, da sua posição original em relação ao corpo cívico Assim, em Atenas, os cidadãos residentes que, em certa medida, tinham sido integrados ao ser-lhes conferido o estatuto privilegiado de metecos só contribuíam, em princípio e em unidades separadas, na defesa do território (como hopíitas ou como infantes, de acordo com os seus rendimentos, mas não como cavaleiros) e serviam sobretudo na armada como remadores ou marinheiros especializados (mas não como pilotos). Tam bém estavam sujeitos às eisphorài, em que contribuíam com um sexto, mas estavam excluídos da irieraiquia, na medida em que, durante muito tempo, tinha implicado o comando de uma trirreme, No exército espartano havia contingentes de hopíitas periecos e exploradores designados por «sídritas», que eram recrutados numa região montanhosa outrora conquistada por Esparta a Tegeia. Regra geral, o papel militar dos escravos consistia apenas em assegurar no seio do exército, tal como acontecia na vida civil, o serviço pessoal dos seus senhores. Só em períodos críticos, ou mesmo desesperados, se podia fornecer armas a alguns deles. As disposições tomadas neste sentido variavam, por um lado, de acordo com 0 estatuto dos interessados, e sobretudo conforme se tratasse de escravos-mercado­ ria de tipo ateniense ou de populações indígenas reduzidas à escravidão — era o caso dos hilotas espartanos Por outro lado, dependiam da honorabilidade da missão que lhes era confiada: mais remadores ou infantes do que hopíitas Em função disso, procedia-se ou não ã sua libertação, antes ou depois das operações No total, é significativo que os hilotas, considerados panicularmente sediciosos, tenham sido nitidamente mais solicitados do que os escravos atenienses, mas, na realidade, a sua vocação de povo outrora livre explica, ao mesmo tempo, o seu espírito de revolta e o seu relativo grau de qualificação militar. Mesmo as mulheres de origem cidadã, embora a coragem fosse por definição essencialmeníe masculina, estiveram mais ou menos implicadas na guerra, quer como vítimas exemplares que encarnavam as possibilidades últimas de perpetuação da comunidade e que eram capazes de esconjurar da melhor forma o seu aniquila­ mento através de lamentações, preces e encorajamentos aos soldados, quer, de uma forma absolutamente excepcional, como combatentes improvisados, lutando direcíameníe pela protecção dos seus lares. Neste caso, servem-se de armas adequadas à sua condição (por vezes, de utensílios de cozinha!) ou dos artifícios, muito pouco hopíitas, que lhes são inspirados pela sua natureza feminina. Só no universo mítico das Amazonas, ou no mundo utópico da República platónica, é que se transformam

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em mulheres-soldadofj, mas essa ponversão ou é condicionada pela sua dessexualização parcial (ablação do seio esquerdo para poderem manejar o arco), ou limitada às virgens iparthenoi) que ainda não encontraram no matrimônio a realização normal do seu sen

O amadorismo militar

Esse sistema de repartição estatutária das ftrnções militares, que devia existir por toda a parte sob formas variáveis, parece abstrair de qualquer qualificação adquirida através de um treino específico e colocar-se unicamente sob o signo do amado­ rismo. Tal facto converte-se num lugar-comum da retórica oficial das orações fúnebres, que tende particularmente a fundir a função bélica na fiinçao política, O melhor exemplo disso é-nos fornecido, no inicio da Guerra do Peloponeso, por Péricles, que declara com altivez: «A nossa confiança baseia-se pouco nos preparativos e nas astúcias e muito na firmeza de ânimo que vamos buscar a nós mesmos no momento de agir» (Tucídides, 2,39, I). De todas as condições sociais predispostas para desempenhar acüvidades milita­ res, a mais valorizada era a de agricultor Considerava-se que era a melhor iniciação para a guerra, e isso por diversas razões, expostas nomeadamente por Xenofonte no seu Económico (5). Antes do mais, porque a posse da terra «incita à defesa do território pelas armas, dado que as colheitas que ela produz estão ao alcance de todos, à mercê do mais forte»; depois, porque a agricultura «nos ensina a comandar os outros», inculcando o sentido da ordem, da oportunidade, da justiça e da piedade; por fira, porque «toma o corpo vigoroso» A este respeito, a agricultura conjugava os seus efeitos com os da caça, considerada na Ciropedia (1, 2) como «o mais autêntico treino para a guerra»: «De facto, a caça habitua os homens a levantar-se de manhãzinha, a suportar o frio e 0 calor, prepara para a marcha e para a corrida, obriga a arremessar dardos ou setas

conua os animais sempre que algum aparece; além disso, necessariamente, tempera o ânimo quando, como acontece amiúde, um animai corajoso surge à nossa frente e é preciso atingi-lo se se aproxima e saber evitá-lo se se precipita sobre nós Portanto, é difícil encontrar na guerra uma situação que não ocorra durante a caça. » Pelo contráiio, as actividades artesanais «arruinam o coqio dos operários que as exercem e daqueles que os dirigem, obrigando-os a uma vida caseira, sentados à sombra das suas lojas, e por vezes a passar o dia todo junto do fogo. Com os corpos assim debilitados, os ânimos tomara-se também mais vis», a ponto de essas pessoas «passarem por ser maus defensores da sua pátria» {Econômico, 4). Estas considera­ ções ideológicas reflecíiam-se, por vezes, nas instituições, já que, por exemplo, para se ser eleito estraíego em Atenas era necessário possuir terra dentro das fionteiras. Outra condição para essa eleição teria sido (porque não se sabe bem em que medida e até quando foi respeitada) a obrigatoriedade de o candidato ser também

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pai de família.; Com efeito, a preocupação com a salvaguarda da liberdade dos seus filhos dava ao soldado mais uma razão para combater, tal como, segundo Platão {República, V, 467a), «qualquer animal combate melhor na presença dos seus filhos».. Realizando plenamente o seu ser social, um cidadão atingia um grau supremo de responsabilidade e disponibilidade que o predispunlia ao sacrifício pela sobrevivência da comunidade, como aconteceu com os pais de fiamília que, em 480, os Espartanos obrigaram a integrar o contingente de elite, formado por 300 homens, que foi enviado para as Termópilas. Ao amadorismo dos executores correspondia o dos dirigentes e dos chefes. Os membros da assembleia ateniense, que decidiam até ao mínimo pormenor acerca do curso das operações, não tinham qualquer competência militar especial, A maioria dos estrategos, pelo menos no século v, não a possuía, dado que deviam a sua eleição sobretudo à fama adquirida nos debates da assembleia ou mesmo num outro sector da vida pública, como foi o caso de Sófocles Por conseguinte, até finais da época clássica, os responsáveis militares foram, na sua grande maioria, ricas indivi­ dualidades, que tinham, por tradição familiar, o sentido inato do comando e podiam, se necessário, contribuir para a manutenção das suas tropas: pode, por exemplo, constatar-se que 61% dos estrategos atenienses conhecidos figuram na lista dos grandes proprietários Os historiadores modernos insistiram correlativamente no papel desempenhado na aprendizagem militar por váiias práticas sociais de tipo cultural e religioso, características dos cidadãos que não estavam absorvidos pelas tarefas necessárias e que podiam usufhiir de tempo livre {scholè). Em primeiro lugar, havia as provas atléticas que se preparavam nos ginásios e nas palestras, tradicionalmente bastante ligados à vida militar, e que figuravam no programa dos concursos organizados no âmbito dos santuários cívicos ou pan-helénicos: corridas (uma das quais com armas de hoplita), saltos, lançamentos, luta e pancrácio Um campeão nestas especialida­ des só podia ser um excelente soldado, como o demonstra uma anedota de Diodoro Sículo referente a Mílon de Crotona: «Diz-se que este homem, seis vezes vencedor em Olímpia, guerreiro tão valente como bom atleta, avançou para o combate ostentando as coroas olímpicas e usando os atributos de Héracles, a pele de leão e a clava: artífice da vitória, conquistou a admiração dos seus concidadãos» (12, 9, 6). Em Esparta, os que tinham ganho uma coroa nos jogos combatiam ao lado do próprio rei. Havia também danças processionais com anuas hoplitas e outras espé­ cies de danças armadas, a mais célebre das quais era a pírrica; segundo Platão, «essa dança imita, por ura lado, os movimentos destinados a evitar os vários golpes desferidos de perto ou de longe — atirar-se de lado, recuar, saltar, baixar-se — e, por outro lado, os movimentos opostos, os que induzem a comportamentos ofensivos e tentam imitar o tiro ao arco ou o arremesso do dardo ou o gesto de desferir um golpe qualquen> {Leis, 7, 815a).

lõdavia, devemos evitar levar esta visão até ao absurdo De facto, sempre teve os seus antídotos: o interesse constante de todos pelas operações militares, pelas razões de fundo que já mencionámos, e a competência geral adquirida pela expe­

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riência (como prova, sobretudo em Atenas, o facto de os altos cargos militares tenderem, de facto, a concentrar-se hereditariamente num limitado numero de grandes famílias) Não esqueçamos também que nos referimos apenas ao modo de combater dos hoplitas, e é só acerca dele que o persa Feraulas, na Ciropêdia de Xenofònte (2, 3, 9), diz que «todos os homens téni um conhecimento natural desse modo de combater, ía! como cada animal conhece um certo tipo de combate, que aprendeu apenas com a natureza: os bois atacam com os chifres, os cavalos com os cascos, o cão com os denies e o javali com as presas; todos estes animais sabem esquivar~se dos mais temíveis perigos, sem lerem aprendido com nenhum mestre»

Em contrapartida, ninguém teria negado — a não ser correndo o risco de o vir depois a lamentar — que tudo se passava de modo diferente com as armas de arremesso e, sobretudo, na marinha que, segundo Tucídides (í, 142), «é uma questão de ofítíío». - Por outro lado, há muitos indícios que nos levam a acreditar que na vida prática o treino militar não era tão descurado como afirmavam os ideólogos da aristocracia. Mesmo na Atenas do século v os hoplitas deviam receber uma certa formação durante a sua efebia e eram, em seguida, periodicamente convocados para revistas, durante as quais se verificava o bom funcionamento dos equipamentos e, sem dúvida, se efectuavam algumas manobras em formações cerradas. Alguns recomen­ davam mesmo o recurso a instrutores profissionais que iam, de cidade em cidade e em troca de um salário, ensinar a manejar as armas dos hoplitas nas palestras privadas: essa arte, a hoplomachia, teria sido inventada na Arcádia em meados do século VI, Outros professores, de estratégia e de táctica (ou seja: do modo de exercer uma função de estratego e de dispor as tropas no campo de batalha) figuravam entre os amigos de Sócrates, segundo os Memoráveis de Xenofoníe. Seja como for, não há qualquer dúvida de que os Espartanos, apesar da sua desconfiança em relação a esse gênero de sofistas especializados na arte militar, se exercitaram mais do que os Atenienses no ofício das armas, o que provocou o desprezo de Pérides que, na sua oração fúnebre, troça «dessa gente que, desde a juventude, se treina para ganhar coragem» (Tucídides, 2, 39, 1) ínfelizmente, acerca dos métodos utilizados por esses «técnicos da guena» (como os designa Xenofonte) ignoramos quase tudo, excepto que atribuíam grande importância às evoluções tácticas, entre as quais figurava uma contramarcha especial que ficará conhecida sob a designação de «lacônica»,, Convém sobretudo realçar' que, durante a época clássica, se foi atribuindo uma importância cada vez maior aos aspectos técnicos da arte militar, Essa evolução é já sensível quando se confronta Heródoío, cuja (ec/me é quase totalmeníe substituída pela astúcia e pela força, com Tucídides, onde ela emerge, aliada à inteligência, na prática do comando, No século iv, as suas manifestações são demasiado numerosas para que as mencionemos a todas: aparição de tratados técnicos relativos sobretudo à guena de assédio (como o PoUorcético de Eneias, o Tàcrico); insistência de Platão

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na necessidade dos treinos militares, de acordo com uma tendência confinnada em muitas cidades (nomcadamenfe, em Tebas, na época de Epimanondas e de Pelópidas); prioridade concedida à experiência na escolha dos estrategos, como se vê na Política de Aristóteles e num opúsculo homónimo, do início da época helenística (o De eligendis magisiraíibus), que cita como exemplo «algumas pequenas cidades bem regulamentadas» onde «há três eleitos de entre os que já exerceram a estratégia e dois de entre os jovens»; especialização dos estrategos atenienses nas diversas esferas de actividade e distinção crescente entre estes e os oradores, entre os homens de guerra e os homens de assembleia, que agem muitas vezes de conivência, etc

O mercenarismo Na evolução que acabámos de descrever interveio um fenômeno que, à primeira vista, parece totalmente incompatível com o enraizamento cívico da função militar; trata-se da utilização, por parte das cidades, de mercenários, profissionais da guerra que, mediante um salário, servem uma potência estrangeira Desde a época arcaica que gregos oriundos sobretudo da Jónia tinham «aluga­ do» os seus serviços de «homens de bronze» aos soberanos orientais ou tinham assegurado, na própria Grécia, a guarda dos tiranos. Após um período de tréguas, o mercenarismo conheceu uma grande amplitudé a partir da Guerra do Peloponeso, primeiro etn benefício dos sâtrnpas persas da Ásia menor e depois da totalidade do mundo grego e da sua periferia., A famosa expedição dos Dez Mil, narrada por Xenofonte no seu Anaâase, é característica dessa época. Durante todo o século iv, dezenas de milhares de gregos de todas as origens seguiram essa via, como hoplitas, infantes ou peltastas. Com os seus comparsas, provenientes dos Bálcãs, desempe­ nharam um papel essencial na conquista do império persa por Alexandre e ainda mais na implantação dos reinos helenísticos. As causas do mercenarismo são múltiplas e complexas. As principais devem ser as que conduziam ao afastamento do indivíduo em relação â sua pátria, quer no caso de esta se encontrar desmembrada (sobretudo devido à guerra), quer pelo facto de ter sido banido, quer, e acima de tudo, por se ver reduzido à indigência devido ao excesso de população, às catástrofes naturais ou a uma alteração da situação sociopolíiíca Mas também se podia deixar arrastar para os caminhos da aventura pela perspectiva de tirai' proveito no exterior da sua qualificação militar (hoplitas peloponésicos, archeiros cretenses, peltastas trácios) e de beneficiar da generosidade de um empregador vitorioso e rico. A utilização maciça de mercenários por parte das cidades não deixou de ter consequências para essas mesmas cidades: aumento do tecnicismo das operações militares, dificuldades financeiras, propensão dos cidadãos para se esquivarem às tarefas menos atraentes (expedições a locais remotos, serviços de guarnição), res­ surgimento das tiranias, desesíabilízação dos laços internacionais tradicionais em favor dos Estados mais ricos. Sob este ponto de vista, o desenvolvimento do mercenarismo no século iv teve portanto muita importância paia o que tradicionalmente se define como «crise» da

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cidade; todavia, para não ultrapassarmos muito os limites que fixámos a nós pró­ prios, Umitar-nos-emos a precisar apenas os motivos pelos quais as cidades aceita­ ram lecorrer a mercenários. O principal motivo tem certamente a ver com a personalidade desses mercená­ rios. Como provinham de meios gregos ou helenizantes, não faziam figura de estrangeiros absolutos, como os Mamelucos no império otomano. Muitos continua­ vam a ter esperança de recuperai' a categoria de cidadãos dos seus países no termo das suas errâncias. Durante o período de actividade, vemo-los, em muitos casos, esforçar-se por reproduzir o modelo cívico sob diversas formas; adquirindo os direitos dos cidadãos como recompensa pelo seu honesto trabaUio, usurpando-os nas cidades conquistadas ou junto dos que lhes davam trabalho, por vezes mesmo fundando novas cidades, na melhor tradição colonial, ou, simplesmente, criando as mais variadas formas de associação de índole profissional, que se comportavam como cidades em ponto pequeno (voto de decretos honoríficos, envio de embaixa­ dores). A este respeito é bastante significativo o facto de os piratas, que revelam muitas analogias com os mercenários, terem também adopíado um modelo estatal, servindo-se de estruturas já existentes ou criando novas. • Em sentido inverso, deve dizer-se que o soldado-ddadão sempre tivera em si algo de mercenário Tanto para um como para outro, a guerra (inha de ser uma actividade muito íucraüva; aliás, como tudo indica, recebiam os mesmos salários e as mesmas partes dos despojos. O ardor patriótico do soldado-cidadão devia ate­ nuar-se quando o mandavam socorrer uma potência estrangeira: não são raros os casos era que não se sabe bem se os auxiliares se batem como aliados ou como mercenários. Por fim, o sistema regular de recrutamento podia acabar por transfor­ mar certos cidadãos em autênticos profissionais da guerra: assim, em Atenas, antes de se começar a recorrer «por tumos''> às várias classes etárias, confiou-se durante muito tempo a elaboração da «lista» dos cidadãos mobilizados aos estrategos, que tinham todo o interesse em conceder a prioridade aos voluntários e, em seguida, a ter em conta as aptidões individuais, A partir de finais do século v, assistiu-se também à constituição, em certas cidades, de um pequeno exército permanente, composto muitas vezes por ,300 ou 1000 cidadãos «escolhidos» que eram, por assim dizer, «mercenários internos».. Em 422, os Argianos, por exemplo, seleccionaram «mil dos seus concidadãos, os mais jovens, os mais robustos e os mais ricos; dispensando-os de qualquer outro serviço e alimentando-os a expensas do Estado, pediram-lhes para se dedicarem a um treino contínuo» (Díodoro Sícuio, 12, 75, 7) Mais famoso ê o «batalhão sagrado» de Tebas, que foi reorganizado, em 379, por Górgidas: «Escolheu 300 homens, cuja formação e manutenção eram asseguradas pelo Estado, e que estavam aquartelados em Cadmeia» (Plutarco, Pelôpidas, 18, 1) Na mesma época, também a Liga Arcádica se munia de «guardas pdblicos» chamados «eparitas», enquanto um pouco por todo o lado se multipÜcavam os soldados de elite denominados epilektoi (de que ignoramos, em geral, o modo de recrutamento e o estatuto). É neste contexto histórico que temos de situar os projectos contemporâneos de sociedades ideais com base funcional, não nos limitando a considerá-los como uma ressurgência da velha ideologia indo-europeta ou uma imitação do modelo egípcio

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Esses projectos atribuem sempre h classe dos guerreiros uma posição axiai. Para Hipódamo de Mileto, essa ciasse coexiste com duas outias classes, dos artesãos e dos agricultores, e a sua subsistência é garantida pela terra pública Muito mais célebre é evidentemente a República platônica, onde a elite dos guetreiros, alimen­ tada pela massa anônima dos produtores reduzidos ao estado de dependentes, leva uma vida comunitária totalmente subordinada aos interesses da cidade, sob a direc­ ção dos mais avisados. Estas diferentes tendências para o profissionalismo militar obrigam-nos a não exagerar demasiado o contraste entre os mercenários e os soldados-cidadãos e a não os dissociar, no final deste capítulo, ao analisarmos os problemas criados pela integração harmoniosa da função bélica no quadro político

O milUar e a política Sob este ponto de vista, a insubordinação crónica dos mercenários não era o único factor que gerava algumas dificuldades. Na maioria dos casos, os seus rivais de origem citadina, os «eleitos», também não tiveram nada de mais urgente do que querer impor a sua lei aos seus próprios compatriotas. No entanto, tratava-se apenas das manifestações mais espectaculares da propensão, por assim dizer, estrutural dos representantes da força armada para intervir direcíamente na vida interna das cidades '—. na ausência de qualquer outra força organizada capaz de fazer triunfar os interesses de classe ou de garantir a manutenção da ordem pública,. Qualquer conflito interno que se convertesse em guena civil tiaduzia~se espon­ taneamente, em termos militares, pela divisão dos soldados em dois campos opos­ tos, segundo uma linha de clivagem que passava geralmente entre os vários corpos constituídos: cavaleiros contra hoplitas, hopíitas contra infantes e marinheiros A habilidade dos governantes consistia precisamente em impedir que os facciosos se organizassem a este nível, conseguindo desarmá-los preventivamente ou afastá-los provisoriamente, sob qualquer pretexto, inserindo-os em unidades lealistas, proibindo o recrutamento de mercenários, etc. O recontro desenrolava-se, normalmente, na cidade, a partir dos locais naturais de encontro (ágora, acrópole, teatro, ginásio) e terminava com o massacre ou o exílio dos vencidos, que podiam prosse­ guir o combate fixando-se numa cidade estrangeira ou num posto fronteiriço de onde pudessem controlar uma parte do teiritório, São exemplares os acontecimentos ocorridos em Atenas, no ano de 411: sublevando-se contra os oHgarcas apoiados pelos cavaleiros, os hoplitas e os marinheiros estacionados em Samos procederam ã substituição dos seus estrategos antes de se fixarem no Pireu e imporem, por fim, a restauração da democracia. O que por vezes acendia o rastilho era uma modificação fortuita da relação de forças no interior do exército. Foi assim que, durante o cerco de Mitilene, em 427, o homem que detinha o poder, um tal Salaitos, «forneceu armas hoplitas ao povo, até então equipado com armas ligeiras, para marchar contra os Atenienses; mas o povo, quando recebeu as armas hoplitas, deixou de obedecer aos magistrados e formou ajuntamentos, exigindo dos notáveis que os seus víveres fossem mosttados e distri­ 71

buídos a todos» (Tucídides, 3, 27, 2"3) Mas também acontecia que efeitos deste tipo se fizessem sentir a mais ou menos longo prazo, sem provocarem violência, Eis alguns exemplos extraídos da Polifica de Aristóteles: «Em Taranto, a derrota e a morte de numerosos notáveis, vítimas dos lápiges pouco depois das guerras médicas, levaram á passagem da poUteia [democracia moderada] para a democracia [radical]. . Em Atenas, após os revezes sofridos peio exército, o número dos notáveis diminuiu porque se recrutava os combatentes de acordo com uma lista, durante a guerra lacónia » (5, Í303a ) Anteriormente, em Atenas, também a favor da democracia tinha jogado o facto de «0 povo, a quem se devia a supremacia no mar durante as Guerras Médicas, se ter gabado disso e ter escolhido para chefes vis demagogos, apesar da oposição das pessoas honestas» (2, 1274a), o que virá a repeiir-se no século ív, quando os tetes foram integrados no exército hoplita, A atenção constante de Aristóteles sobre este aspecto prova que não se tratava de simples epifenómenos de caracter patológico (como os historiadores modernos tendem a pensar), mas de tendências inerentes à vida nas cidades, Embora os várias regimes se tenham apoiado em critérios de riqueza e de distinção, tinham, em todo o caso, de cuidar do estabelecimento de uma estreita correspondência entre as funções políticas e militares dos cidadãos: uma oligarquia tinha de se apoiar na cavalaria, uma polUeia tinha de se compor de hoplitas (ou mesmo, como no caso dos Malianos, de reseivar o exercício das magistraturas àqueles que tinham idade para combater), ao passo que uma democracia podia contar apenas com os infantes e os marinheiros, 0 mesmo acontecia no domínio das fortificações, onde «a boa solução não é a mesma para todos os regimes políticos: assim, uma acrópole adequa-se a uma oligarquia e a uma monarquia, um terreno plano a uma democracia; nada disso se adequa a uma monarquia, que necessita de um certo numero de pontos fortifica­ dos» {PolUica^ 7, 1330b) Devido aos constrangimentos próprios da arte militar, nem sempre era fácil conseguir essa harmonia, sobretudo para os oUgarcas: recorrer aos pobres para constituir a sua infantaria «é constituí-la contra si mesmos. Mas como existem diferenças de idade e uns são de idade madura e outros jovens, os oligarcas têm de ensinar aos seus filhos ainda jovens os exercícios próprios das tropas ligeiras, escassameníe armadas, para eles se habituarem a essas práticas» (6, 1321a), Em caso de desequililirio, estrutural ou fortuito, é o fáctor militar que prevalece: porque «é impossível que pessoas capazes de recorrer à força e de resistir suportem ser sempre e apenas subordinados [ Aqueles que são mestres nas armas têm o poder de manter, ou não, o regime» (7, 1329a).. Todas estas passagens, mais ou menos legais e regulares, do campo militar para o político, e a preocupação de Aristóteles em esconjurar os seus perigos integram-se bem no nosso conceito inicial da guerra na Grécia antiga. Na medida em que os principais modos de exploração e de desenvolvimento repousavam essencíalmente no uso da coacção extia-económica, a guerra só podia figurar como fenômeno racional, estreitamente ligado ao nascimento da ordem garantida

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peia justiça como, Já desde as origens, provava o combate arquétipo entre os deuses e os Gigantes, que fizera surgir o Cosmos do Caos. A guerra contimiava a ser a grande parteira das comunidades políticas. Portanto, era normal que essas comunidades fossem constantemente perturbadas, no interior, e ameaçadas, no exterior, pelas forças armadas

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CAPITULO

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TORNAR-SE HOMEM por Giuseppe Cambiano

«Qual é o ser com uma única voz que tem dois, quatro e três pés?» Ao responder: «o homem», Édipo decifrou o enigma da Esfinge, A mudança dos modos de locomoção parecia ser um sinal evidente das três etapas cruciais da vida humana: a infância, a maturidade e a velhice. A estatura erecta, que, a partir de Platão e Aristóteles, muitos filósofos consideraram um traço distintivo essencial entre o homem e os outros animais, assinalava também o primado do homem adulto e a distância que o recém-nascido, tão próximo da situação animal do quadrúpede, tinha de percorrer para se tomar realmente homem. NaturaJmente, a primeira condição era sobreviver, escapando à mortalidade, não rara na Grécia antiga, devida a partos prematuros ou irregulares e depois a doenças derivadas da alimentação inadequada ou da falta de higiene, a que se juntava a impotência terapêutica de uma grande parte da medicina antiga. Em Erétria, entre finais do século viii e inícios do século VII a. C , a distância entre a criança e o adulto era também realçada pelo facto de os mortos, até aos dezasseis anos, serem inumados, e os adultos serem incinera­ dos, sujeitando-se portanto a um processo que marcava a sua passagem da natureza para a cultura Mas não era apenas a natureza que funcionava como selector de sobrevivência. Nascer em boas condições físicas permitia escapar à eliminação, a que não se hesitava em reconer no caso de deformidades, que eram sentidas pelos pais e por toda a comunidade como uma espécie de castigo divino de mau augúrio. Em Esparta, a decisão de deixar viver o recém-nascido competia aos membros mais velhos da tribo iphylè) a que o pai pertencia O recém-nascido disforme ou débil podia ser abandonado no Taígeto. Em Atenas e em outras cidades recorria-se ao método da exposição do recém-nascido, num vaso de bano ou noutro recipiente, longe de casa, muitas vezes em locais áridos, fora da cidade, onde podia morrer de fome ou dilacerado pelas feras, se não fosse recolhido por ninguém. No entanto, nem só as crianças disformes eram expostas; por vezes, eram-no também recém-nascidos em boas condições físicas. Os espectadores das representações trágicas ou das comédias de Menandro podiam ver em cena inúmeros casos de crianças expos­ tas e depois reencontradas: o próprio Édipo teve esse destino Para limitar os nascimentos, Aristóteles preferiría o aborto à exposição, mas confirmava a necessi­

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dade de urna lei que proibisse educar filhos disformes. Em Atenas, a decisão de expor 0 fiiho competia ao pai, ao passo que, na cidade cretense de Gortina, previa-se que, se uma mulher de condição livre tivesse um filho depois do divórcio, tinha de o levar, perante testemunhas, a casa do seu ex-marido; se este o recusava, cabia-lhe a decisão de o expor ou de o educar Antigamente, em Atenas, o pai tinha o direito de vender os seus filhos para saldar as dívidas Essa prática foi proibida por Sólon e a exposição toinou-se um insüumento alternativo, sobretudo para os mais pobres. Na Perikeirontene de Menandro, um pai contava que expôs o filho e a filha, quando a mulher morreu de parto e ele ficou na miséria após a perda de um carregamento que se afiindou no Egeu. Não existem dados numéricos seguros, mas é possível que a maior parte das crianças expostas fossem ilegítimas, e não legítimas supranumerârias, ou seja, filhos bastardos de pais de nacionalidade mista ou nascidos fora de um casamento legal, sobretudo filhos de escravos Era difícil, mesmo entre os pobres, que a exposição recaísse sobre o primeiro filho legítimo varão, e o número de recém-nascidos do sexo feminino expostos devia ser muito maior. Não devemos esquecer que, em Atenas, as raparigas tinham de receber um dote para encontrarem marido, ao-contrário do que acontecia nas representações homéricas e entre as famílias aristocráticas da época arcaica, onde era o futuro esposo quem oferecia presentes ao pai da noiva,. A exposição era também um modo de evitar um excesso de núbeis, que continuariam a pesar economicamente nas costas do pai. Sobretudo na época helenísüca, com a diminuição da natalidade, a que Políbio atribuiría a decadência da Grécia, e cora uma família-tipo constituída por um único filho, a exposição das crianças de sexo feminino assumiu maiores dimensões Por volta de 270 a. C., o poeta Posidipo afirmava: «Todos, mesmo os pobres, criam um filho varão; uma filha, mesmo que sejam ricos, expõem-na.» A criança exposta podia ser recolhida por outros, que tinliam a faculdade de a tratar como livre ou como escrava; tratá-la como livre não significava, porém, adqptá-la. No direito ático, a adopção era uma transacção entre o adopíante e o pai ou o tutor do adoptado, normalmente com o objectivo de assegurai' a existência de um herdeiro do sexo masculino Provavelmente, a prática mais corrente cra reduzir o exposto à condição de escravo, para o manter ao serviço — e, no caso de raparigas, também para as preparar para a prostituição — ou para o vender quando fosse oportuno. Heiiano menciona uma lei de Tebas que teria proibido que os cidadãos expusessem os filhos, ordenando aos pais pobres que levassem o recém-nascido, do sexo masculino ou feminino, perante os magistrados, que o entregari­ am a quem estivesse disposto a desembolsar uma soma mínima estabelecida. Como compensação pelas despesas de educação, o adquiridor podería depois uíilizá-lo como escravo Na Grécia antiga, tomar-se homem não equivalia apenas a tomar-se adulto A condição dos pais era essencial para se decidir quem podia e quem não podia tomar-se verdadeiramente homem Não só as aristocracias, mas também as demo­ cracias gregas faaseavam-se num limite numérico do corpo cívico cujo critério de inclusão era o nascimento. Era Atenas, isso tinha sido sancionado por uma lei proposta por Péricles, em 451-450 a. C., segundo a qual só os filhos de pais

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atenienses é que podiam usufruir do direito de cidadania, lei essa que foi restabele­ cida em 403-402, após um período de abrandamento durante a Guerra do Peioponeso lá Adam Smith fez depender as restrições atenienses na concessão do direito de cidadania da necessidade de não reduzir as quotas das vantagens econômicas derivadas dos tributos que Atenas recebia de outras cidades. Obviamente, mesmo os escravos tinham pais, mas não tinham direito a um parentesco reconhecido. Provi­ nham em grande parte de países bárbaros, mas também era possível que homens livres de origem grega se tomassem escravos. A guerra, mais do que outro qualquer facíor, podia ser fonte de escravidão: a prática corrente nas cidades conquistadas era matar os homens adultos e reduzir a escravos mulheres e crianças, Foi assim que Atenas procedeu com os habitantes de Mitilene, de Tóron, de Síon e de Meios, durante a Guerra do Peíoponeso Por vezes, a conclusão de acordos de paz previa a restituição das crianças tomadas escravas Mas o apelo feito por Platão ou Isócrates aos Gregos para não escravizarem outros Gregos confirma que esta prática não desaparecera no século rv a. C, Já em séculos anteriores, o destino de crianças e rapazes de belo aspecto oriundos das cidades jónicas conquistadas pelos persas era converterem-se em eunucos Heródoto contava que, por vingança, Periandro, tirano de Corinto, enviara para Saides 300 rapazes, filhos dos primeiros cidadãos de Córcira, para serem castrados,, Mas numa etapa da viagem, em Samos, tinham sido salvos pelos habitantes da ilha e reconduzidos à pátria. Sorte menos feliz devia caber aos rapazes que caíam nas mãos do mercador de escravos Panion de Quíos, que, segundo.Heródoto, os castrava pessoalmente, para os levar depois para Sardes ou Éfeso e vendê-los aos bárbaros por um preço elevado,. Nas cidades gregas, ser-se escravo significava ser-se excluído da participação na vida política, privado de muitos direitos civis, de uma grande parte das festas religiosas da cidade, e também das palestras e dos ginásios, onde se procedia à educação dos futuros jovens cidadãos. Para um escravo, tomar-se adulto não impli­ cava um salto qualitativo ou uma preparação gradual, como acontecia com os filhos dos cidadãos livres. Se o adjectivo a/idràpodort, homem-pé, usado para designar o escravo, tendia a identificá-lo com a condição dos quadrúpedes, tetràpoda, o termo pais, pelo qual era frequentemente chamado, realçava a sua eterna condição de menorídade, Como diz Aiisíófanes nas Vespas, «é justo chamarpais a quem apanha pancada, mesmo que seja velho». Em Atenas, só se podia aplicar castigos físicos a escravos e a crianças, não a adultos livres. Talvez só os escravos pedagogos, que acompanhavam os filhos do senhor a casa do mesüe, é que podiam aprender indirectamente a ler e a escrever, assistindo às lições Mas, por princípio, a única instrução que um escravo podia receber estava associada ao tipo de trabalho e de serviço que desempenhava em casa do patrão, numa gama que ia dos menos duros serviços domésticos ao trabalho duríssimo nas minas, reservado exclusivamente aos escravos e em que também se utilizavam crianças, não só nas minas da Núbía, de que nos fala Diodoro Sículo, mas também nas minas atenienses do Láurio, Aristóte­ les fala de um mestre que, em Siracusa e mediante um salário, teria ensinado aos escravos a ciência dos trabalhos domésticos, incluindo provavelmente também a culinária, dada a grande reputação da cozinha siciliana,. Um patrão podia enviar os seus jovens escravos para as oficinas artesanais a fim de aprenderem um ofício, de

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que depois tiraria lucros; mas talvez a prática mais corrente fosse a aprendizagem ligada ao trabalho na oficina do patrão, E essa aprendizagem devia começar muito cedo: pinturas em vasos atenienses reproduzindo cenas de oficinas mostram um grande número de crianças a trabalhar e não se pode decerto excluir a hipótese de que pelo menos uma parte dessas crianças era de condição escrava. Um artesão também podia comprar escravos para os ensinar, sobretudo se não íínha filhos a quem transmitir o seu oficio. Foi o que aconteceu, no século ív, com Pasfon e Fórmion, que se tomaram tão hábeis nas tarefas bancárias que foram libertados e se converteram em proprietários de bancos No discurso C ontra N eera, Demóstenes fala-nos da liberta Nicareles, que tinha comprado sete crianças pequenas, cujos dotes físicos avaliara ateníamente, a quem tinha educado e depois preparado para o ofício de prostitutas, fazendo-as mesmó passar por suas filhas para ganhar mais dos clientes, e que depois vendera em bloco. Mas as actividades artesanais não estavam exciusivamente nas mãos dos escra­ vos; havia muitos estrangeiros e também cidadãos, sobretudo menos abastados, que se dedicavam a essas actividades. Os seus filhos podiam receber instrução gímnica e elementar, na medida em que os salários dos mestres não eram muito elevados, mas, como dizia Protágoras no diálogo platônico homônimo, os filhos dos ricos entravam mais cedo para a escola e saíam mais tarde Aristóteles afirmaria claramente que os pobres, por não terem escravos, eram obrigados a servir-se das mulheres e dos filhos como escravos que os ajudavam nos seus trabalhos.. De facto, para os filhos de cidadãos mais pobres, tornar-se homem coincidia em grande parte com o desem­ penho de actividades artesanais ou com o trabalho nos campos, ainda que, sobretu­ do em cidades democráticas como Atenas, isso não lhes retirasse o direito de participar na vida política. Isso era igualraente válido para sectores como os da medicina.. Num breve texto da C olecção h ip o c râ tk a , intitulado Lei, posterior à segunda metade do século íV, afirma-se que, para se ser médico, devia-se começar a aprender muito cedo {paidomaí/iía), ao contrário do que teria acontecido na época imperial com tim médico imbuído de noções filosóficas e científicas como Galeno, que teria iniciado a sua aprendizagem da medicina por vo!ta’dos 16 anos. Muitas vezes, a oficina do artesão ^ta a sua casa, e era aí que se procedia à transmissão dos segredos do ofício, sobretudo de pais para filhos. Temos conhecimento de autênticas dinastias de pintores e escultores, O Juram ento hipocrático contém, aliás, o propósito de trans­ mitir ensinamentos escritos e verbais aos seus filhos, aos filhos do seu mestre e aos discípulos que fizessem o mesmo juramento Se não tinham filhos ou se estes não revelavam um talento particular — como teria sido o caso, segundo Platão, dos filhos do escultor Policleto —, era possível adoptar como herdeiros filhos de parentes e amigos, admitir como aprendizes filhos de cidadãos livres que não tinham meios de subsistência suficientes ou ainda comprar escravos e ensiná-los Seja como for, o único modo de aprender um ofício passava pela oficina e não através d o s canais institucionalizados de uma instrução dada peja cidade. Como acontecia com o s escravos e os melecos, a aprendizagem precoce tendia a separar os filhos dos cidadãos pobres das crianças da sua idade para os inserir de imediato num mundo adulto, sem percorrer ou percorrendo apenas íimitadamente

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um itinerário gradual de integração no tecido social, político e militar'. Disso estava isenta uma cidade como Esparta, que entregava todas as actividades laborais nas mãos dos hilotas e dos periecos. Todavia, de uma forma geral, a aprendizagem dessas actividades não era considerada como fazendo parte da paideia e do processo que conduzia à idade adulta, Não será inútil recordar que o termo paidià, jogo, formado a partir da palavra p ak, criança, se opunha a spoudè, actividade «séria» de adultos, e não a termos que designam actividades laborais Nas Nuvens de Aristófanes, a habilidade do pequeno Filipides para construir caixas, barcos, pequenas carroças era considerada por seu pai como um bom indício das suas aptidões para receber uma educação superior, não para vir a ser um bom artesão. Todavia, nas Leis, Platão consideraria este tipo de jogos como uma imitação das actividades artesanais que iriam exercer em adultos e uma preparação adequada para elas Porém, para ele, isso pouco tinha a ver com a paideia: não é por acaso que, nas Leis, as actividades agncolas e artesanais eram desempenhadas integralmenie por escra­ vos e estrangeiros. Segundo Plutarco, nenhum jovem de boa fánulia poderia invejar Fídias, Só na época helenística é que a presença do desenho surge no curriculum educativo, mas isso nada tem a ver com uma preparação para fins profissionais Os conteúdos e os métodos das artes também podiam ser conhecidos por quem não as iria exercer. Era o que acontecia com a medicina, considerada digna de ser conhe­ cida por Platão e Aristóteles, mas mais para se poder dar opiniões fundamentadas ou utilizar teoricamente os seus resultados do que para vir a ser~se médico O sexo era o outro factor decisivo para a determinação de quem podia tomar-se cidadão adulto no sentido pleno do termo; as mulheres estavam excluídas. Havia, naíuralmente, algumas excepções, sobretudo na época helenística e fora de Atenas, mas, de uma forma geral e sobretudo em Atenas, uma mulher estava integrada na cidade não como cidadã mas como filha ou mulher de um cidadão.. Só na época helenística é que se tem conhecimento de raparigas que firmam pessoalmente um contrato de matrimónio com o futuro esposo; em geral, esse papel era assumido pelo pai ou pelo tutor da rapariga,. Paia a maior parte das raparigas gregas de condição livre, a passagem à idade adulta era marcada pela etapa decisiva do matrimónio. A diferença de condição entre crianças do sexo masculino e do sexo feminino está bem expressa numa a}ter'naíiva apresentada nos Memoráveis de Xenofonte: a quem confiar crianças do sexo masculino, para serem educadas (paideusaí), e filhas virgens, para serem vigiadas {diaphylaxai)l À paideia correspondia, no caso das raparigas, a custódia. O termo «virgem» iparthenos) referia-se mais ao estado anterior ao matrimónio do que à integridade física propriamente dita Uma lei atribuída a Sólon determinava que, se um pai descobria que a filha mantinha relações sexuais antes do matrimónio — e o sinal inequívoco era a gravidez —, excluía-a da família e podia vendê-la, Para ela, deixava de haver perspectivas de matrimónio, donde a importância da custódia como garantia de preservação das condições de acesso às núpcias. Desde o nascimento que as jovens passavam grande parte da sua vida em casa, entregues aos cuidados da mãe ou das escravas. A urbanização crescente, a partir da i criação da polis — documentável só após a segunda metade do século vn —, õnha ]

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provocado uma transferência sensível das actividades da mulher para o interior de casa, reservando para os homens a possibilidade de se movimentar livremente no espaço exterior. Só as mulheres mais pobres ê que eram obrigadas a sair de casa para irem trabalhar nos campos ou como vendedeiras. Em casa, as jovens aprendiam desde muito cedo a ftar e a cozínliar. As festas religiosas da cidade eram a única oportuni­ dade de saída, dado que os simpósios eram proibidos a mulheres que não fossem cortesãs, bailarinas ou flautistas Na Atenas clássica, porém, e ao contrário do que acontecia com os rapazes, essas festas não coincidiam com momentos de iniciação à vida adulta para uma determinada classe etária. A iniciação só abrangia grupos restritos de raparigas, que eram escolhidas para representar o itinerário de preparação para o matrimónio Assim, todos os anos, durante as Arreforias, duas raparigas de família nobre, entre os sete e os onze anos, começavam, cerca de nove meses antes das Panateneias, a tecer o peplo que, nessa ocasião, seria oferecido a Atena. A confecção do peplo por parte de raparigas está também documentada noutros locais, como por exemplo em Argos, em honra de Hera; é provável que, em Esparta, as raparigas tecessem o clii ton que todos os anos era consagrado a Apoio, nas Jacíntias, Nos meses que antecediam as Panateneias, as duas raparigas levavam uma vida especial e no fím despojavam-se das suas roupas e dos colares de ouro. Para elas, as Arreforias eram um momento de passagem e de iniciação: aprendiam o trabalho da mulher, a fiação e a tecelagem, e preparavam-se para ser esposas e mães, levando à cabeça, de noite, desde a acrópole até um jardim dedicado a Afrodite, um cesto cujo conteúdo deviam ignorar e que colocavam num locai subtenâneo, de onde saíam trazendo outros objectos sagrados envoltos num pano. O cesto continha o simulacro de Eritónio e a serpente, símbolos da sexualidade e da gestação Entre milliares de crianças eram só duas as escolhidas: aquilo que, aníigamente, constituiria talvez a passagem de toda uma classe etária para uma nova condição, através de uma fase de segregação da comunidade e de uma prova, tomava-se, na época clássica, objecto de uma representação simbólica, Assim, temos conhecimento de cargos sacerdotais entregues a raparigas em idade pré-matrimonial na Arcádia e na Caláuria; as donzelas de Lócris eram mesmo obrigadas a prestar ura serviço vitalício no tempo de Atena., Normalmente, porém, a participação das rapíuigas em ritos e tarefas religiosas estava ligada simbolicamente à viragem decisiva da sua vida que coincidia com o matrimónio Em o que acontecia em Atenas com as festas designadas por Brauronias, Algumas raparigas, de idades compreendi­ das entre os cinco e os dez anos, deviam consagrar-se ao serviço de Ártemis no santuário de Brauron, fora de Atenas, durante um período que ignoramos. Em memó­ ria da ursa predUecta de Ártemis, que, depois de se ter refugiado no seu templo, tinha sido morta, essas raparigas eram denominadas «ursas» e expiavam esse sacrilégio servindo a deusa Ao mesmo tempo, refaziam o percurso da ursa, libertando-se de uma condição selvagem para se prepararem para coabitar cora o esposo e integrar a sexualidade na cultura. Procissões, danças e coros de raparigas eram elementos essenciais de muitas festas citadinas. No século rv a., C , na procissão das Panateneias, cem donzelas, pertencentes às famílias mais nobres, transportavam os utensílios para o sacrifício. Contudo, para um grande número de jovens atenienses, a participação talvez consis­ tisse mais em assistir do que em participar activamente nas festas.

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Na Atenas clássica, bem como noutras cidades, não existiam escolas para crian­ ças ou adolescentes do sexo feminino. Eram as mães, parentes velhas ou escravas que lhes contavam histórias da tradição mítica, ligada aos ritos religiosos cumpridos pela cidade, e que, por vezes, as ensinavam também a ler e escrever. Todavia, a máxima expressa em verso por Menandro: «Ensinar uma muüier a ler e escrever? Que erro tremendo! É como munir de mais um veneno uma horrível serpente» não devia andar longe da concepção corrente no mundo masculino, Na época helenistica, o índice das mulheres analfabetas continua a ser mais elevado do que o dos homens, o que é confirmado pela percentagem de mulheres que recorriam a oubem para escrever Em te o s existia uma escola frequentada por alunos de ambos os sexos e, em Pérgamo, havia concursos de recitação poética e de leitura para rapari­ gas, mas não se trata de fenômenos correntes, e mesmo a educação gímnica era uma prerrogativa essencialmente masculina A excepção mais conhecida era Esparta, onde as crianças do sexo feminino, tão bem alimentadas como as do sexo mas­ culino, mais do que serem ensinadas a tecer e a cozinhar, que seriam sempre ocupações de escravas, não de mulher, eram desde muito cedo ensinadas a exerci­ tar-se, nuas e na presença dos homens, na corrida, na luta, no arremesso do disco e do dardo Não sabemos se foi esse exemplo espartano que levou à instituição da corrida pedestre feminina nos jogos de Olímpia, embora em dias diferentes dos dos grandes jogos. Segundo Pausânias, essas corridas teriam sido repartidas por três grupos etários, mas não sabemos se nas competições participavam também rapari­ gas atenienses A aquisição de uma instrução de nível superior era ainda mais rara e difícil, São excepções os casos da hetera Aspásia, intima de Pérides e significativamente uma estrangeira, e do círculo de Safo em Lesbos, no início do século vi a, C.., de que não existem correspondentes documentados para a Grécia clássica entre o século V e o século IV Tratava-se de uma associação cultuai onde algumas raparigas não só de Lesbos, mas também de cidades da costa jónica, se exercitavam na dança e no canto, aprendiam a tocar lira e a participar em festas nupciais e religiosas e provavelmente em concursos de beleza, adquirindo as qualidades exigidas para poderem casar com personagens nobres, Isso parece confiimar a maior liberdade de que teriam gozado as donzelas de família nobre na época arcaica em relação à segregação tão caracte­ rística da Atenas clássica Nesse círculo também se criavam laços homoeróücos, que, no caso de Esparta do século vn a C,, são documentados pelas parténias de Alcman, mas isso não implica que não se ministrasse igualmente uma educação pré-matrimonial Na vida das raparigas gregas de condição livre, o matrimônio era o rito de passagem decisivo, Com o matrimônio, a situação da mulher, mais do que a do homem, sofria uma mudança radical. Tomar-se adulta, deixar* de ser paríhenos, significava converter-se em esposa e mãe potencial de futuros cidadãos do sexo masculino Em geral, e ao contrário dos filhos varões, as filhas não pennaneciam durante muito tempo em casa do pai; casavam-se cedo, muitas vezes antes dos dezasseis anos, e com homens mais velhos, pelo menos, uma dezena de anos. A promessa de matrimônio ocorria muito antes: a irmã de Demóstenes foi prome­ tida em casamento quando tinha cinco anos Segundo a lei de Gortina e de Creta, o

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início do período nubil ern aos doze anos A diferença de idade não coniiibuia para poíenciar os laços afecíivos e intelectuais entre os esposos Xenofoníe atribuiu a falta de educação das mulheres ao facto de casarem muito cedo, Para se compreender as características do matrimônio ateniense, convém recor­ dar que se tratava de um contrato entre dois homens, o pai ou o tutor e o futuro esposo Para as mulheres, porém, o matrimônio significava essenciaimeníe uma transferência da casa do pai para a do marido, da segregação sofrida na primeira para a da segunda, da tutela de um para a de outro em todas as transacções jurídicas. Porém, no Egipto, que, para Heródoto e Sôfocles, era a antítese por excelência do mundo grego, eram as mulheres que saíam de casa para arranjar comida, enquanto os homens ficavam em casa a tecer. A futura esposa preparava-se para o dia das núpcias oferecendo a Ártemis os seus brinquedos infantis e cortando o cabelo, sinal de que abandonava a adolescência., Em Trezene, também oferecia o seu cinto a Alena Apatúria. Na véspera das núpcias, os dois futuros esposos purificavam-se cumprindo o ritual do banho enquanto se entoavam himeneus, que propiciavam a geração de uma ôptima prole, e o pai da esposa oferecia um sacrifício a Zeus, Hera, Ártemis, Afrodiíe e Peito. A cerimônia propriamente dita, como itinerário da rapariga desde a casa do pai até à do marido, confirmava que a verdadeira protagonista do rito de passagem e de mudança de estado era a mulher Começava com um banquete em casa do pai, durante o qual uma criança passava entre os comensais transportando pão e pronunciando a ftase; «Escaparam ao mal; encontraram o melhor,» O pão simbolizava a transição de um regime selvagem para um regime civilizado, A rapariga assistia ao banquete velada e rodeada de amigas e só no fim é que devia mostrar o rosto aos presentes,. Depois de se terem entoado himeneus e procedido a Ubações e augúrios, um cortejo nocturno iluminado por archotes acompanhava a rapariga, que era levada de carro até à casa do marido, onde entrava transportando uma peneira para cevada, que prefigurava a sua nova actividade de cozinheira,. Junto da lareira da nova casa eram-lhe oferecidos doces e figos secos, que sanciona­ vam a sua integração Em seguida, os dois esposos entravam no quarto nupcial, a cuja porta montava guarda um amigo do marido, e consumavam o matrimônio. Tendo em conta o espaço onde decorria, a cerimônia nupcial era mais uma transfe­ rência de uma casa para outra do que uma transferência do espaço privado da casa paia o espaço amplo e público da cidade: ao deslocar-se, a rapariga possibilitava a criação de um laço entre duas famrlias «O matrimônio é, para a donzela, o que a guerra é para o jovem » (Vem aní) Numa situação de guerras e ameaças constantes de guerra, que também era um fáctor decisivo de prosperidade ou de decadência econômica, a posse de capacida­ des militares era essencial. Para os filhos varões de cidadãos, ser-se homeih signifi­ cava ser-se marido e pai, mas sobretudo ser-se cidadão capaz de defender a sua cidade e de a conduzir politicamente, A guerra e o combate hoplita, em fileiras cerradas, não eram confiados, pelo menos até ao século iv a. C , a um exército profissional, mas a cidadãos, que aí deviam demonstrar os mesmos dotes de firmeza e de coragem que permitiam governar a cidade em tempo de paz. Isso acontecia em

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todas as cidades, de regime aristocrático ou democrático. Todavia, e sobretudo após a sua vitória sobre Atenas na Guerra do Peloponeso, Esparta tinha assumido para vários intelectuais o papel de modelo de cidade capaz de preparar melhor os jovens para a guerra, Xenofonte atributa essa supremacia ao caracter público da educação espartana, que subtraía a formação dos rapazes às competências e ao arbítrio da família Os recém-nascidos eram imediatamente postos à prova e temperados pelas amas, que os lavavam com vinho e não com água, para evitar que fossem atacados por convulsões. Eram as amas e não as mães que os educavam, não os enfaixando e habituando-os a uma alimentação austera, a não terem caprichos e a não temerem a escuridão e a solidão. Um certo grau de idealização caracteriza os quadros da educação espartana desenhados por Xenofonte ou Plutarco, mas não há dúvida de que essa educação se destinava ao fortalecimento e ao adestramento físico desde a primeira infância, A viragem decisiva ocorria a partir dos sete anos, quando os rapazes eram agrupados em equipas, agelai — um termo que normalmente designa rebanhos de animais que necessitam de ser guiados —, habituados a viver em comum fora de casa e sujeitos à agogè, ao treino para adquirir disciplina, obediência e combatividade. Só os herdeiros do trono é que estavam isentos da agogè, mas recordava-se que Agesilau tinha passado por ele para aprender a obedecer Sujeitar-se à agogè habilitava a tomar-se hòmoioi, «pares», isto é, cidadãos de pleno direito, isentos de todas as actividades laborais,. Por conseguinte, os periecos e os hilotas estavam necessariamente excluídos. Os rapazes eram rapados e habituados a andar descalços','^os doze anos envergavam um mesmo trajo para todas as estações e dormiam em enxergões de canas que partiam com as suas próprias mãos. Nas Gimnopédias, festas celebradas em pleno Verão, executavam exercícios na ágora, nus sob o sol ardente. Também recebiam poucos alimentos, para aprenderem a obtê-los pela astúcia, roubando sem nunca serem descobertos, já que em caso contrário seriam chicoteados. A obediência era adquirida através de um sistema de prêmios e castigos: em todas as fases da sua formação, o jovem estava sempre sob o comando de alguém mais velho, mas sempre de condição livre, não escravo como era o caso do pedagogo, em Atenas, Um controlo social tão capilar gerava o máximo confor­ mismo e tendia a reforçar o desejo de integração no corpo social, mas também se aliava à necessidade, própria das estruturas militares, de seleccionar os mais aptos para o comando e de constituir corpos de elite. Era esse o objectivo das competições entre membros da mesma classe etária, no decorrer das festas, e sobretudo a instituição, tão característica, dos combates fictícios A música não estava ausente da instrução dos jovens Nas Gimnopédias eféctuavam-se concursos de danças corais, por vezes com máscaras, para ambos os sexos, como, a partir do século vn, acontecia durante as Cameias, em honra de Apoio, Nas Jacíntias havia coros de crianças e adolescentes. Mas a parte centrai da agogè era ocupada, mais do que pelo ensino da leitura e da escrita, pelos exercícios de ginástica, que também preparavam para as competições. Não é por acaso que, na fase mais arcaica dos Jogos Olímpicos, muitos vencedores eram espartanos. A par das competições e da guerra havia os combates fictícios, que ritualizavam a agressi­ vidade e se traduziam num misto de cooperação e de recontro Numa ilha formada pelo rio Eurotas, perto do templo de Ártemis, uma divindade particularmente

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associada ao mundo da adolescência e à tensão entre selvagem e domesticado, ocorria um combate entre duas equipas de jovens, a cada uma das quais era entregue por sorteio um dos dois pontos de acesso à ilha Na noite anterior, cada equipa sacrificava um cão em honra de Ares, o deus da Guerra; em seguida, assistia-*se a uma luta entre dois javalis, que servia para se fazer prognósticos acerca dos futuros vencedores A competição começava de madrugada e consistia na ocupação da ilha e na captura dos adversários, que eram atirados à água, num misto de combate olímpico por equipas e de luta selvagem, já que todos os golpes eram admitidos, incluindo mordidelas e pancadas nos olhos,. Mas a iniciação propriamente dita, nas suas fases de separação e de vida segregada e depois de reinserção, ocorria com a chamada krypteia, que dizia respeito apenas a ujma elite de efébos e era praticada por indivíduos isolados, não em grupo, em condições difíceis de vida prolongada ao ar livre, privados de roupas e de víveres, armados apenas com uma faca De dia, tinham de esconder-se e de não se deixar surpreender, para exercerem de noite um autêntico serviço de policia­ mento em relação aos hilotas, a quem faziam emboscadas. Não se deve esquecer que os espartanos adultos tinham a obrigação de participar diariamente nos sys$i~ í-ion, ou seja, nas refeições corhuns entre homens, e não residiam habitualmente nas suas terras Além disso, não eram raras as revoltas de hilotas, Daí a importância de um serviço de vigilância e policiamento: assim, os efebos começavam a ser prepara­ dos para uma função pública, A krypteia era uma instituição inversa e simétrica em relação ao combate hoplita: ocorria de noite, na montanha, competia a indivíduos isolados e desarmados, e assumia a forma de uma caçada, fora dos terrenos cultiva­ dos Era a dramatização do momento de abandono da infância e da preparação para a guerra. Tomados homens, aqueles que tinham estado sujeitos à krypteia eram provavelmente enquadrados nn corpo de elite dos 300 cavaleiros, que todavia combatiam a pé. No entanto, em Esparta, a transição para a vida adulta, cujo momento exacto é difícil de precisar, comportava uma maior continuidade com a vida vivida até então, precisameníe pela dominante militar de todas as fases, «É difícil dizer se, era Esparta, a idade adulta é uma infância prolongada ou se a infância não é uma preparação prematura para a vida do adulto e do soldado» (Vidal-Naqueí),, O ma­ trimónio era considerado obrigatório, como condição essencial para a reprodução dos futuros soldados, e estavam previstas sanções para os solteiros; mas, para os jovens, não se tratava de um rito de passagem que marcava o fim da adolescência e a adopção de um novo modo de vida. As núpcias ocoaiam por rapto da esposa Rapavam os cabelos à noiva, vestiam-ihe roupas masculinas e deitavam-na numa enxerga, sozinha e às escuras O isolamento, que preparava o efebo para a função do hoplita, preparava a rapariga paia o matrimónio, que era consumado rapidamente, depois do que o marido deixava a esposa e voltava a dormir com os seus compa­ nheiros, Ao contrário do que acontecia em Atenas, o oikos não tinha qualquer importância: mesmo após as núpcias, e até cerca dos trinta anos, o marido não convivia com a mulher mas, como acontecia também em Creta, fazia vida em comum com os membros da sua classe etária e só tinha com a esposa encontros casuais com fins procriativos, sendo mesmo admitido que ela fosse fecundada por

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outros As refeições comuns e a convivência prolongada entre homens estavam estreitamente ligadas à função pedagógica desempenhada pelas relações homoeróticas na sociedade espartana Nos syssífion dos adultos participavam também os paides, que aí aprendiam os comportamentos e as conversas adequados ao homem adulto livre, mesmo através dessas relações, A prática dos sysshion era corrente no mundo grego; está também documen­ tada em Mileto, Turis, Mégara, Xebas e noutras cidades, entre as quais, e em especial, Creta, onde a homossexualidade desempenhava uma função essencial na passagem para a idade adulta. Os antigos já faziam derivar de Creta muitas instituições espartanas. Aí a divisão em classes etárias era essencial para a organi­ zação da sociedade e para a reprodução no poder do corpo de elite dos aristocratas guerreiros, mediante o adestramento e da cooptação de novos membros, Também em Creta, após um periodo de permanência sob o governo das mulheres, as crianças do sexo masculino participavam nos syssííion em que participava o pai, sentadas no chão e servindo os adultos Instruíam-se na leitura, na escrita e na música e, sob a direcção de um paidonomos, dedicavam-se à ginástica e a comba­ tes fictícios. Aos dezassete anos, os psides das melhores famílias recnitavam outros da mesma idade para formarem as agelai, onde eram alimentados a expensas da cidade A cabeça de cada agele estava quase sempre o pai do jovem que tinha formado o grupo; era ele quem os guiava na caça e nos exercícios e aplicava os castigos Durante os dez anos de permanência numa agele, até cerca dos vinte e sete anoSi-'è antes de entrar para o grupo dos homens maduros, denominado heteria, e fazer com eles as refeições comuns e dormir no andreion, a casa dos homens, também se adestravam nas danças pinicas com armas. Em Creta, a relação homossexual entre um jovem e um amante mais velho era uma etapa essencial para ele se tomar homem, mas não assumia a forma de uma corte, assemelhando-se mais a um rapto ritual Três dias antes do rapto, o amante informava os amigos do jovem, Estes, tendo em conta a ciasse do amante — que devia ser igual ou superior à do jovem —, decidiam se permitiriam ou impediríam o rapto Se o rapto fosse permitido, o raptor, acompanhado por amigos, podia ievar o jovem para fora da cidade, para o campo, onde organizavam banquetes e iam à caça — o desporto típico dos heróis, modelos dos efebos — durante dois meses, findos os quais já não era permitido reter o jovem Era este o momento da segregação, acompanhado por uma vida de agregação, típico de uma iniciação Ao regressar à cidade, o jovem recuperava a sua liberdade, depois de ter recebido como presente o equipamento militar, um boi e uma taça; sacrificava o boi a Zeus e festejava o grupo que o tinha escoltado no regresso, manifestando a sua satisfa­ ção ou insatisfação pelo periodo de intimidade passado com o amante, Para os jovens de família nobre, não encontrar um amante era algo de vergonhoso, dado que equivalia ao reconhecimento da falta das qualidades que permitiam a entrada no grupo dos adultos guerreiros, simbolizada pela oferta das armas depois da iniciação homossexual, Além disso, os raptados ocupavam lugares de honra nos coros e nos ginásios e, como sinal de distinção, envergavam o trajo que lhes fora oferecido pelo amante. Assim começavam a fazer parte da elite constituída por aqueles que eram designados por kleinòi, «insignes»,

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Ern relação a estes modelos educativos, Atenas podia |á ser considerada pelos antigos como o local onde os pais podiam decidir acerca dos itinerários que os filhos deviam percorrer para serem homens. Todavia, isso só é parcialmente verdade, porque a vida da criança e do adolescente ateniense também estava presa numa densa rede de festas religiosas, durante as quais a cidade celebrava os seus valores, envolvendo toda a comunidade. O autor da Coiutituíção dm Atenienses lamentava o número excessivo de festas em Atenas, superior ao de qualquer outra cidade grega, e o facto de os sacrifícios de muitas vítimas permitirem dar de comer a todo o demos, mesmo aos pobres. Seja como for, em Atenas, os pais nunca tiveram direito de vida e de morte sobre os filhos, mas cabia-lhes a decisão de os admitir na família e 0 direito, até à sua maioridade, de os transferir para outra família mediante o processo de adopção, ou de os confiar a um tutor, em caso de morte. Órfão era, em primeiro lugar, aquele a quem morrera o pai. Entre o quinto e o décimo dia após o nascimento de um filho e na presença dos membros da família, tinham lugar' as Anfidrómias, altura em que o recém-nascido era transportado ao colo em redor da lareira da casa, como sinal da sua admissão No décimo dia, procedÍa-se a um sacrifício, celebrava-se um banquete e dava-se o nome à criança Durante os primeiros anos, era entregue aos cuidados da mãe ou de uma ama, normalmente uma escrava, enquanto o pai passava grande parte do dia fora de casa. Heródoto elogiava o costume persa de o pai não ver o filho antes de este completar os cinco anos, para evitar que a sua eventual morte prematura fizesse sofrer o pai. Jogos e narrativas da tradição mítica preenchiam os dias das crianças, que, nas Antestérias, festas em honra de Dioníso, estavam directamenie, envolvidos num rito centrado na abertura dos jarros e na prova do vinho novo, Efectuavam-se competi­ ções de bebidas, em que participavam também os escravos e as crianças do sexo masculino que tivessem mais de três anos. No segundo dia da festa, o chamado dia das canecas, essas crianças recebiam de presente pequenos carros ou figurinhas de animais feitas de barro e também uma pequena caneca, com a qual participavam na competição, coroados de flores. O acesso ao vinho representava o primeiro passo para a integração no mundo dos adultos, que tinha no simpósio, de que as mulheres eram excluídas, uma das suas manifestações mais salientes No túmulo das crianças mortas antes dos três anos, era colocada uma pequena caneca, que equivalia a uma realização simbólica pelo menos no Além. A iniciação nos mistérios de Elêusis também estava aberta às crianças, e entre os cargos hononficos estava previsto o chamado pais aph 'héstias, o filho proveniente do fogo da cidade, que pertencia a uma fanulia ateniense nobre e era eleito anualmente para ser iniciado a expensas da comunidade e obter assim para a cidade o favor de Deméter. Nas Oscoforias, em honra de Dioníso, outros dois jovens, escolhidos por nascimento e riqueza, levavam em procissão ramos de videira carregados de cachos, envergando trajos femininos, de acordo com um procedi­ mento típico dos ritos de passagem, que, dramatizando o acesso à virilidade, atenuava ao mesmo tempo a transição para o novo mediante um laço com a condição «feminina» da infância, vivida em casa, num mundo de mulheres que se estava prestes a abandonar, Uma função análoga tinha o corte dos cabelos, aos

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dezasseis anos de idade, que eram consagrados a Árieniis durante as Apatúrias, altura em que o pai jurava pela legitimidade do filho perante a sua fratria Um elemento essencial das festas eram as competições de ginástica e os concur­ sos musicais, que funcionavam também como demonstração, perante os adultos, das capacidades adquiridas Constituíam um instrumento de que a cidade se servia para verificar, entre os vários grupos etários implicados nas competições, a existên­ cia de condições para a sua reprodução e sobrevivência Assim, na época clássica, em Atenas, durante as Oscoforias, havia competições de corrida num percurso de cerca de 7 km que eram disputadas aos pares por vinte adolescentes das melhores famílias, Cada par representava uma das dez tribos que constituíam a cidade, que acabava portanto por ser a verdadeira protagonista da competição, que terminava com o desfile dos dez vencedores Em 566-565 a.. C., foram introduzidas nas Panatencias competições atléticas para as três classes etárias das crianças, dos adolescentes e dos adultos, competições essas que consistiam em provas já em grande parte conhecidas por Homero e no pentatlo, conjunto de luta, conida, salto em comprimento, lançamento de disco e de dardo Não há notícia de competições de natação, mas estão amplameníe documentadas corridas com armas ou a cavalo e as cspectaculares iampadofõrias, corridas com archotes por estafetas, durante as Teseias, instituídas por volta de 475 a. C . Contudo, o combate era uma realidade que ultrapassava as cidades: abria aos jovens espaços extracitadinos e gerava o desejo de competir com as outras cidades gregas, especialmente nos jogos pítícos, ístmicos, nemeus e olímpicos, onde, já na segunda metade do século vn, foram inlioduzidas competições para os jovens, com exclusão do pancrácio, um misto de luta e pugilaío que só foí admitido por volta de 200 a. C Em Olímpia, na tarde do segundo dia dos jogos, efectuavam-se as provas reservadas aos adolescentes, filhos legítimos de cidadãos gregos livres, de idades compreeendidas entre os doze e os dezoito anos, embora nem sempre fosse fácil confirmar a idade eféctiva, por fálía de certificados de nascimento. Naturalmente, os aristocratas tinham maiores possibilidades de treino preparatório e as competições equestres, dado o custo do equipamento, manííveram-se sempre seu apanágio. Só a alguns jovens promissores é que as cidades ou patronos privados davam dinheiro para se prepararem. Nos jogos, os concorrentes pertenciam a todas as classes sociais, embora o desporto não fosse uma componente habituai das actividades de todos os jovens. O combate aristocrático da época arcaica era uma prova de valor individual, ao passo que o combate hopliía tinha introduzido as fileiras e a cooperação como elementos decisivos. Em certa medída, as competições vinham absorver a agressi­ vidade individual jâ ausente ou secundária na guerra O seu objectivo não era estabelecer primados, mas vencer individualmente os adversários e partilhar a glória da vitória com a família e a cidade Era também este o caracter dos concursos musicais, que se efectuavam em muitas regiões do mundo grego. Há notícia de um naufrágio ocorrido em finais do século v a. C., em que pereceram 35 crianças de Messé, elementos de um coro que se dirigia a Reggio, a quem os Messénios enlatados dedicaram, em Olímpia, estátuas de bronze e Hípias de Elis dedicou uma inscrição,

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Numa época em que a função miÜiar tinha deixado de ser prerrogativa das classes aristocráticas e se delineara a nova figura do cidadão hopliía, a necessidade do treino gimnico sistemático ocupava o primeiro piano. No século vi a, C , começaram a surgir em quase toda a Grécia ginásios e palestras. O ginásio tomou-se, a par do teatro, um edifício típico das cidades gregas. Após as conquistas de Alexandre, quando os Gregos se fixaram no Egipto e no Oriente, o ginásio passou a ser um sinal de identidade em relação às populações indígenas. Em Jerusalém, o sumo sacerdote íasão, desejoso de se integrar na cultura dos dominadores, teria fundado, com a autorização do rei Antíoco, o Epífano, um ginásio para jovens hebreus, No ginásio, a partir dos doze anos, e talvez mesmo antes, os jovens, orientados por um mestre, o pedotriba, executavam todos os exercícios de ginástica que estavam incluídos nas competições citadinas ou supracitadinas. 'I'reinavara-se nus, ungidos de óleo e com acompanhamento musical. Em Pelene, na época helenística, não se podia ser cidadão se não se tivesse frequentado o ginásio. Normalmente, porém, a frequência do ginásio não era obrigatória por lei, embora suscitasse uma distinção social indubitável. Não é por acaso que, em Atenas, os escravos estavam proibidos de fazer ginástica e de se ungir nas palestras. Isso impedia-os também de se treinar para um eventual uso das armas, mas, numa lei atribuída a Sólon, os escravos ficavam também proibidos de manter relações homossexuais com jovens de condição livre Numa lei de Berea, de meados do século II a. C.., a proibição de frequentar o ginásio estendia-se também aos escravos libertos e aos seus filhos, aos indivíduos deficientes, aos que se prostituíam ou exerciam actividades comerciais, aos bêbados e aos loucos.. Isso servia também para evitar relações pederastas indignas de homens livres. A homossexualidade tinha indubitavelmente um grande peso nas comunidades de acentuado carácter militar, como Creta ou Esparta, ou como Tebas no século iv a.. C , onde o amante dava o equipamento de guerra ao amado, no momento era que lhe era conferida a efebta. Em Tebas, o chamado «batalhão sagrado» era constituído por pares de amantes. Mas, mesmo em comuni­ dades como Atenas, as relações homossexuais desempenhavam um papel decisivo na integração na vida adulta. Depois de abandonar a casa das muUieres, o jovem passava grande parte do seu dia no ginásio, onde a sua vida sexual começava a desenvolver-se. Dificilmente um jovem ateniense podia ter oportunidade para en­ contros sexuais com raparigas ou mulheres de condição livre, sobretudo de classe mais abastada Por outro lado, a maior facilidade de relações cora jovens escravas retirava valor a esses encontros e reduzia o seu alcance emocional Embora não seja de excluir que existissem relações homossexuais entre jovens da mesma idade, por norma devia haver uma diferença de idade entre o amante e o jovem amado Essa assimetria tomava possível, por um lado, a distinção entre o papel activo e o papel passivo, e não só no sentido físico, e, por outro lado, a dimensão pedagógica da relação. Para além dos jovens, o ginásio só podia ser frequentado por cidadãos adultos que dispunham de muito tempo livre, isto é, ricos e de boa família Podiam ver os jovens treinar-se e conversar com eles para provocarem o seu interesse,. Os antigos descrevem muitas vezes a corte servindo-se das metáforas da caça: uma presa faz-se respeitar e admirar quando não se deixa capturar de imediato. O jovem devia revelar ponderação e pôr à prova o amado, testando o seu carácter,.

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A passividade constitutiva do amado não devia transfonnar-se em escravidão.. As­ sim se forjavam modelos de conduta que visavam formar o futuro cidadão livre na sua capacidade de mandar e ser mandado. O jovem de condição livre que se prostituía por diniieiro era excluído da comunidade, porque aceitava o papel passivo do prostituto, geralmente um escravo ou um estrangeiro. Em Atenas estavam previstas penas para pais, parentes e tutores que, por dinheiro, prostituíam uma criança livre do sexo masculino e também para quem comprava os seus favores Cora o despontar da barba, o rapaz deixava de ter o estatuto de amado; já adulto, podería assumir o papel de amante, mesmo depois do matrimônio, A relação homossexual não era, portanto, vivtda e considerada como oposta à relação heteros­ sexual; se esta permitia, no matrimônio, a reprodução física de futuros cidadãos livres, a dimensão pedagógica da relação homossexual contribuía para a sua forma­ ção moral e intelectual. O outro local que, em Atenas e noutras cidades, talvez mesmo antes do ginásio, acolhia os filhos dos cidadãos livres era o didaskaleion, a escola, onde aprendiam a ler e a escrever Confirma-se a existência de escolas já no início do século v a, C , quando, em Quios, o íecto de uma escola teria desmoronado matando 119 crianças que aí aprendiam os gràmmata, Estas mortes em massa de crianças eram registadas com especial emoção, porque privavam de repente pequenas cidades gregas das gerações vindouras,. No mesmo século, o atleta Cleóraedes de Astipaleia, privado do prémiomos jogos por ter provocado a morte do adversário, batera furioso na pUastra que suportava o tecto de uma escola, onde estavam 50 crianças. Tucídides também referia que trácios tinham irrompido na escola mais frequentada de Micalesso, matando todas as crianças Antes da época helem^stica, não há provas da existência de uma insUrução obrigatória para os filhos legítimos dos cidadãos ateni­ enses; todavia, todos podiam recebê-la e de facto os país tendiam a entregá-la aos cuidados dos grammatistài e aos pedótribos por períodos que variavam de acordo com as suas possibilidades econômicas, Uma das obrigações do tutor de um órfão que possuísse alguns bens era educá-lo, pagando as despesas. Os cuidados devidos aos órfãos em Atenas e noutros locais não coincidia com os cuidados devidos aos pobres. Os únicos órfãos privilegiados eram os filhos dos que tinham monido na guerra, para os quais Atenas tinha determinado, a partir de meados do século v a , C, que fossem mantidos e educados a expensas da cidade até atingirem a idade adulta. O decreto de Teozótides alargou esse direito aos filhos dos atenienses que tinham morrido de morte violenta sob a tirania dos Trinta. Por ocasião das grandes Dionisíacas, antes das representações trágicas, os óifãos dos que morreram na guena eram apresentados ao povo e um arauto anunciava que os seus pais tinham morrido como valentes e que a poih os educaria como filhos Em seguida, teriara direito mesmo aos primeiros lugares no teatro. Era uma medida política evidente, destinada a garantir a coesão social e o empenho militar, mas permitia também que alguns membros da classe mais baixa tivessem acesso a uma instrução que habitualmente só os filhos dos cidadãos mais ricos podiam receber na íntegra. Alexandre também determinou que aos órfãos dos macedónios mortos fosse pago o salário do pai. Algumas inscrições da época helenística mencionam

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ofertas àe particulares às cidades de Teos e de Mileto com o objectivo de pagar os salários dos mestres de todas as crianças de condição livre, e, no século ii a. C , os reis de Pérgamo enviaram trigo e dinheiro para Rodes, a fim de pagarem essas despesas. Trata-se, porém, de casos excepcionais; normalmente cabia aos pais a iniciativa de dar instrução aos filhos. E a instrução não era, só por si, fáctor de promoção social: os filhos dos metecos também podiam recebê-la, sem que isso alterasse o seu estatuto jurídico. Enviar o filho a casa de um mestre — e não a um edifício publico construído a expensas da cidade, como era o ginásio — estava de certa forma associado à tradição mítica, que descrevia o herói expulso de casa por um tutor, como Aquiles por Fênix. Mas o dida^kaleion tinha o condão de acolher vários alunos sob a orientação de um único mestre. O jovem era acompanhado por um escravo de seu pai, o pedagogo, que tinha de o vigiar e que podia castigá-lo, se fosse necessário. Em Atenas, os mestres não podiam abrir a escala e os pedótribos as suas palestras privadas antes do nascer do Sol e mantê-las abertas depois do crepúsculo. Mas não existiam mestres autorizados, nomeados ou controlados pela cidade com base em requisitos de competência ou em apresentação de diplomas. O único controlo da cidade sobre a escola era de tipo moral: só uma idade mais avançada e um espaço público como o ginásio podiam permitir a instituição de relações homossexuais com uma base pedagógica correcta No didaskaleion, o rapaz aprendia a ler e a escrever e aprendia música, mas não com objectivos profissionais, como acontecia com os escríbas orientais. Com o alargamento da escrita à redacção de leis e decretos da cidade, a capacidade de ler podia parecer relevante para que um jovem se convertesse em cidadão no sentido pleno do termo. Aprender a ler em voz alta, passando das letras para as sílabas e para as palavras, e depois aprender a escrever segundo a mesma sequência podia levar vários anos.. Em seguida, o jovem começava também a aprender de cor versos e excertos mais amplos de poetas, sobretudo de Homero, que foi sempre considera­ do como um ponto de referência ímpar de modelos de conduta e de valores Todavia, as línguas estrangeiras estiveram sempre ausentes das preocupações peda­ gógicas dos Gregos, Num papiro do século iií a. C., destinado à escola, surgem também exercícios elementares de aritmética. Mas a instrução matemática de nível superior, não destinada exclusrvamente a fins práticos de cálculo ou medida, mante­ ve-se sempre circunscrita a um círculo bastante restrito de especialistas. O aspecto competitivo que existia na ginástica começou também a surgir neste tipo de instrução e há inúmeras notícias, nomeadameníe da época helenística, de concursos de leitura e de recitativos; em Magnésia chegava mesmo a efectuar-se um concurso de cálculo., Esses concursos coincidiam muitas vezes com festas religiosas celebradas no ginásio ou na cidade e neles ocupava um lugar de destaque o outro ingrediente fundamental, a pai da ginástica, da formação dos rapazes: a música, que era uma componente essencial dos coros e das danças que animavam essas festivi­ dades, em Atenas e também em Esparta Na Arcádia, segundo P oIjI dío, a música acompanliou a educação até aos trinta anos. O ensino da música consistia em primeiro lugar em tocai' citara e cantar acompanhado por esse instrumento, A par da citara havia o aidòs, um instrumento de sopro mais parecido com o oboé do que

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com a flauta; mas a cítara deixava a boca livre para cantar, ao passo que o mdòs deformava o rosto, de modo que, para um aristocrata como Aicíbíades, parecia indigno de um homem iívre, dado que privava do uso da palavra, Não era só no mito que Apoio vencia Mársias, o virtuoso do aulòs: a partir do século ív a C , o uso deste intrumento foi sendo progressivamente entregue a especialistas A aprendiza­ gem da música e do canto, tão importante para o culto e o auto-elogio da cidade e, portanto, para a integração dos mais jovens, fãzia-se de ouvido, sem texto escrito Durante os concursos, os coros de rapazes eram instruídos por mestres sob a direcção de coregos, cidadãos eleitos para essa função, de idade superior a quarenta anos, suficientemente ricos para poderem pagar as despesas da instnição e dos preparativos, e que punliam as suas casas à disposição para os ensaios. A ginástica e a música eram ingredientes reconhecidos pela cidade para a formação do cidadão como modelo de homem O momento imediatamente anterior à passagem para a idade adulta era a efebia Em Atenas, a partir de 3.38 a. C., a instituição da efebia — que provavelmente tinha uma origem anterior — foi-se codificando como fbnna de serviço militar Durava dois anos e era obrigatória para todos os filhos legítimos de atenienses, de qualquer condição social, a quem a cidade fornecia o sustento Mas, em relação ao periodo anterior, inscrições que datam do período que medeia entre 261 e 171 a C. registam uma forte diminuição do número de efébos, de 20 a 40 por ano, em relação à média anterior de cerca de 650 por ano. Durante este penodo, o serviço fora reduzido para um ano e já não era obrigatório' para todos nem estava a cargo da cidade, de forma que os pobres estavam automaticamente excluídos Nos séculos ii e i a C , os efebos também contribuíam, tal como o cidadão rico encanegado da efebia, para as despesas.. Numa época em que o peso político e militar de Atenas tinha necessariamente diminuído, a efebia foi adquirindo cada vez mais um carácter de instituição cultural de aparato, atraindo mesmo, sob o domínio romano, estrangeiros provenientes do Oriente e da Itália, Tal facto conduziu, a partir de 161 a. C , a um aumento do número dos efebos, Contudo, na época de Aristóteles, a efebia era um exclusivo dos cidadãos: os jovens que tinham completado dezoito anos eram inscritos no registo do demo, a circuns­ crição territorial a que pertencia o seu pai. Por voto secreto, a assembleia do demo decidia se o novo cidadão linha a idade regulamentai' e se era descendente legítimo de pais atenienses . Posíeriormente, o conselho confirmava ou recusava, por inegular, essa inscrição, que os tutores podiam por vezes ter interesse em adiar e os tutelados em antecipar. O jovem recusado voltava para a classe dos paides, mas também podia apelar para o tribunal, arriscando-se porém, no caso de ser condena­ do, a ser vendido como escravo A inscrição no demo e, portanto, o ingresso de pleno direito na cidadania era um passo bastante delicado e antecedia a prestação do serviço militar na qualidade de efebo, sob a superintendência de um cosmeta e de dez sofronisías, um por cada . tribo, A assembleia procedia à eleição de dois pedótribes, um mestre de armas, um de tiro ao arco, um de lançamento de dardo e um de catapulta, que se encarregavam da instrução dos efebos. Por ocasião da festa de Ártemis Agroteras, os efebos participavam numa procissão e, no santuário de Aglauro, juravam defender a pátria, as suas fronteiras e as suas instituições e não abandonar o camarada de annas.

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Depois, dirigiam-se para o Pireu, onde prestavam serviço de guarda em duas fortalezas No segundo ano de sendço, os efebos eram passados em revista pela assembleia, no teatro de Dioniso, onde demonstravam o que tinham aprendido durante a instrução militar; Ao entregar-lhes o escudo e a lança, a cidade exprimia a sua passagem para a condição adulta do hoplita, Em seguida, sob o comando dos estrategos, começavam a patrulhar o território da Ática, a prestar serviço nas fortalezas e a garantir a segurança nas sessões da assembleia, envergando a clâmide negra. O serviço de patrulha em zonas fronteiriças, fora da cidade, acompanhado por estrangeiros, colocava o efebo numa zona intermédia antes de ocupar, como cidadão de pleno direito, o espaço central da cidade, provavelmente em memória ou como herança de uma época de iniciação repartida por classes etárias, embora já tivesse prestado Juramento como hoplita,. Os efebos estavam plenamente integrados nas festas da cidade: participavam em sacrifícios e competições e, acima de tudo, prestavam serviço de escolta ao trans­ porte de objectos sagrados ou estátuas de divindades por ocasião de procissões, segundo itinerários canónicos que passavam por certos espaços simbólicos da cidade. Isso não acontecia apenas em Atenas; há noticia da difusão da efebia numa ,centena de cidades helenisticas. A uma contendo as cinzas de Füopémen, moito em 183 a,. C. pelos Messéníos, foi levada em procissão até Megalópolis pelo futuro iiistoriador Polfbio, então jovem efebo de família nobre. Todavia, sobretudo a partir do século m a, C,, o aspecto militar da efebia foí sendo cada vez mais complementado por uma instrução de tipo superior, O ginásio continuava a ser o centro da vida dos efebos. Atenas tinha três fora da cidade, o Liceu, a Academia e o Cinosarco Em finais do século m a C., foram criados mais dois, o Ptolomeu e o Diogéneo, provavelmente construídos em honra de benfeitores privados, Nesses ginásios, porém, não se praticava apenas a ginástica; havia tam­ bém aulas e conferências de filósofos, mestres de retórica, e por vezes também de médicos, No século i a. C., até um astrónomo fez conferências no ginásio de Delfos, Entre 208 e 204, foi erigida no Ptolomeu uma estátua ao filósofo estoico Crisipo, que deve ter ensinado nesse locai Assim, a vida dos jovens atenienses e também dos estrangeiros que em número crescente chegavam a Atenas para ouvir as lições dos filósofos e dos mestres de retórica assumia uma nova dimensão. Os livros começavam a surgir: há documentos que confirmam a existência de bibliotecas de efebos em Teos, Cós e Atenas Um decreto ateniense de 117-116 a C estabelecia que os efebos de cada ano fizessem uma doação de livros. O reconhecimento público do alcance pedagógico não só da filosofia, da retórica e, em geral, de uma instrução superior, mas também do livro, para o itinerário que conduzia à condição de homem não é um facto óbvio e temos de retroceder um pouco para compreender o seu significado. Embora já em finais do século vr a, C. Xenófanes de Cólofon tenha protestado contra a injustificada primazia conferida à ginástica que, na sua opinião, não contribuía para o bom ordenamento e o bem-estar das cidades, o que é um facto ê que, em muitas cidades gregas, a formação do cidadão-soldado baseara-se sempre num equihTirio substancial entre a ginástica e a música. Todavia, com a alteração das modalidades da vida política e a crescente

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cenLralidade da palavra, sobretudo nas cidades democráticas, como instrumento para chegar a decisões, impor pontos de vista ou triunfar nos processos, esse equihTirio começara a deleriorai-se. Na segunda metade do século v a, C , os sofistas tinham surgido como símbolos e fautores dessa mudança Não se dedicavam a um ensino regular e contínuo, num lugar fixo; iam de cidade em cidade, pronunciando discursos demonstrativos para arranjar discípulos e dando aulas, onde se aprendia sobretudo a falai' convincente­ mente em público,. Tratava-se em grande parte de um ensino formal, que incidia nas diferenças de linguagem, nas figuras de retórica e no estilo, mas que não desdenha­ va de aplicar esses conhecimentos a temas políticos, éticos e religiosos de interesse gerai. Hípias de Elis também se mostrava atenta aos conteúdos das disciplinas especiais, desde a Astronomia à Matemática, que precisamente nessa época come­ çava a estruturar-se e a assumir forma de manual com a obra de Hipócrates de Quios O ensino dos sofistas era privado e pago De facto, só os jovens das famílias mais ricas é que podiam ter acesso a ele e o seu objectivo consistia essencialmente na formação de elites governativas Exíremameníe aíractivo para os jovens, erá um tipo de ensino que podia parecer prematuro em relação à tradicional distinção das tarefas próprias das várias idades da vida humana, porque antecipava para a juven­ tude a aprendizagem e o exercício do saber falar que, a partir de Homero era considerado próprio — a par da bravura na guerra — do homem completo, se não mesmo do ancião: e o principio da ancianídade era fundamentai para a atribuição do poder em tpdas as cidades gregas. Antes de mais, o jovem devia preparar-se para combater: saber faiar viria com o tempo, com a experiência. O ensino dos sofistas parecia, porém, querer queimar as etapas. Os insucessos e a derrota de Atenas na Guerra do Peloponeso contribuíam para o enfraquecimento da autoridade das gera­ ções mais velhas e dos tradicionais canais pedagógicos de que essas gerações se tinham servido para que os filhos se assemelhassem aos pais. ü m tema típico de discussão na segunda metade do século v a, C. é se de maus pais podem nascer filhos melhores ou vice-versa O confronto entre gerações é o ponto fulcral das Nuvens de Aristófanes, onde Sócrates parccc identificado com os sofistas, capaz de ensinar Astronomia, Geome­ tria, coisas divinas, mas também de fazer objecções e de fazer prevalecer os discursos mais fracos Todavia, ao contrário dos sofistas itinerantes, Sócrates estava num «pensatório», implantado dentro da cidade, e, por isso, mais familiar e, simul­ taneamente, mais perigoso para os cidadãos Frequentando o seu ensino, o jovem Fidípides podia fazer a seguinte objecção a seu pai Estrepsíades; quando eu era pequeno, batias-me; por que não posso fazer-te o mesmo? Eu também nasci Üvre. A idade deixava de ser um factor de distinção. E precisamente nesta comédia que Aristófanes exprime o modo como os defensores do tempo passado contrapunham a antiga à nova paideia através da antítese entre o ginásio e a ágora. A antiga paideia do ginásio, gínuiico-musical, tomava os rapazes pudicos, robustos e fiéis às tradi­ ções: fizera os homens que tinham combatido em Maratona. A nova, porém, centrava-se na ágora e nos banhos, que se enchiam de adolescentes, esvaziando as palestras: aí não aprendiam a ser moderados, mas a cultivar a língua e a fázê-la investir até contestarem os pais. Nas Rãs, Aristófanes imputava a Hurípides o ensino

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da tagarelice, laiia, que tinha esvaziado as palestras, e nos Cavaleiros, o Salsicheko apontava a ágora como local da sua educação, entre rixas e confusões tais que um mestre de retórica chegara mesmo a predizer o seu futuro destino de demagogo. No discurso Contra Álcibíades, de Andócides, repetia-se a oposição entre ginásios e tribunais, que se traduzia na inversão das funções etárias: os velhos combatiam e os jovens falavam ao povo. O modelo dessa inversão era Álcibíades, que em Tuctdides era também o campeão da igualdade entre jovens e velhos, por oposição ao velho Nícias, aquando da decisão acerca da expedição militar contra Siracusa O retrato de Sócrates, traçado por Aristófanes nas Nuvens, era também sintoma de outra mudança, Na comédia, o velho Estrepsíades é ironicamente representado como frequentador do «pensaíório» de Sócrates,. Uma das diferenças mais visíveis entre a figura do filósofo Sócrates e a dos sofistas — que emergem sobretudo em Platão — consistia precisamente no facto de o ensino filosófico se ter alargado também à idade adulta e de praticamente não se concluir. A escola filosófica, que Platão instituiria no século ív a„ C-, não na ágora, mas no ginásio suburbano da Academia, não se baseava em distinções de idade, Um dos seus antecedentes, a comunidade dos Pitagóricos em Croíona, também se tinha dedicado aos adultos, distinguindo — a partir do modelo das iniciações religiosas aos mistérios — dois níveis progressivos de iniciação a conteúdos de saber cada vez mais complexos. Nos diálogos platónicos, Sócrates é apresentado sucessivamente como um jovem, um adulto e um ancião que continua a desejar aprender, de tal fornia que o citarista Conos, que ele visitava com frequência, era ridicularizado como mestre de velhos; além disso, está rodeado de discípulos adultos, como o maduro Criton, Na Apolo^ gia, a acüvidade de Sócrates é uma espécie de paideia permanente para todas as idades e para todos os cidadãos, destinada a um melhoraménte conrinuo dos seus espíritos. Os acusadores de Sócrates, Meleto na Apologia e Ânito no Ménon, consideravam que os verdadeiros educadores dos jovens eram os cidadãos atenien­ ses que tinham assento na assembleia, no conselho, nos tribunais Por outro lado, no Protágoras, o sofista elogiava o aparelho educativo ateniense A uma Atenas, escola de democracia e de Justiça, Platão opunha a tese radical segundo a qual os próprios cidadãos atenienses, que estavam longe de ser educadores, deviam ser educados. A transposição do modelo da dietética médica do corpo para a alma permitia a Platão conceber a filosofia como uma técnica educativa de prevenção e terapia indispensável a todas as idades Na República, as cidades historicamente existentes, e sobretudo Atenas, eram mesmo apresentadas como corruptoras das naturezas dotadas de tendências filosófi­ cas. Segundo Platão, uma verdadeira cidade deveria ocupar-se da filosofia, contra­ riamente ao que acontecia na realidade. Segundo uma concepção muito corrente — expressa por Cálícles, no Górgias, e por Adimanto, na República — as dis­ cussões filosóficas eram adequadas a jovens, não a homens adultos, No caso de um jovem, podiam contribuir para a sua paideia, mas com a condição de serem depois abandonadas; porém, se se tratava de um cidadão adulto ou de um ancião, pareciam indignas, porque o levavam a colocar-se à margem da cidade, a cochichar a um canto com três ou quatro jovens, em vez de o fazerem no seu centro, méson, na ágora, onde os homens atingem o melhor de si mesmos, ou seja, na condução dos

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assuntos políticos Efécüvamente, para o Piatão da República, a escola filosófica também era um lugar onde qualquer um se podia refugiar da má educação minis­ trada pela cidade e pelos sofistas, que só repetiam os valores dominantes na cidade e que, portanto, perpetuavam a sua doença. Mesmo fisicamente, a maioría das escolas filosóficas estabeleceu-se longe do centro da cidade. Invertendo o ponto de vista corrente, Platão excluía da cidade justa uma aprendi­ zagem precoce da parte mais complexa da filosofia, a dialéctica, que podia ser usada — como acontecia com os sofistas — para contradizer e pôr em causa os valores da tradição, e previa como idade adequada para o início do estudo da filosofia os trinta anos, depois de um estudo demorado das disciplinas matemáticas, isso não significa que a Academia platónica" não admitisse alunos de idade inferior aos trinta anos, mas a Academia não estava situada numa cidade justa Aristóteles também se apercebeu de uma disparidade de níveis nas capacidades de aprendizagem, reconhe­ cendo que, se os jovens podiam facilmente tornar-se bons matemáticos, não tinliam tanta facilidade para adquirir a sageza capaz de os guiar nas vicissitudes da vida ou a competência em estudos de filosofia da natureza, porque nesses domínios era preciso ter-se muita experiência dos pormenores, experiência essa que só o tempo podia proporcionar É interessante que Teofrasío, nos Caracteres, ridicularize a figura do opsimailiès, aquele que começa tarde a aprender, ou formas de juvenilismo nos adultos, que queriam continuar a fazer ginástica, correr e dançar como os rapazes, e não diga nada acerca do ensino superior e da filosofia, De uma maneira geral, os filósofos antigos partilharam sempre a convicção expressa por Epicuro, segundo o qual nenhuma idade é inadequada para se dedicar' à saúde do espírito, ou seja, para filosofar. Entre o século iv e o século m a . C., a figura do filósofo tende a surgir como um novo modelo de homem, por vezes em alternativa com a imagem tradicional do cidadão, Esta operação fora tornada possível graças à absorção nesse novo modelo e à transposição pata um outro plano dos dotes que caracterizavam a moral do hopHta: resistência, autocontrolo, cooperação No Fédon, Sócrates é-nos apresen­ tada na sua serenidade perante a morte, sem renegar a filosofia, precisamente como o hoplita sabia enfrentá-la combatendo pela pátria A integração da moral militar na morai filosófica triunfaria com o estoicismo, na figura do sábio insensível aos sofrimentos e indestrutível perante os golpes do destino. Também a função procriativa podia ser reabsorvida e transposta para outro nível: em Platão, exprimia-se através das metáforas da alma grávida de saber e levada a parir pelas hábeis interrogações filosóficas, A escola filosófica convertia-se no lugar de reprodução e de perpetuação de um novo modelo de homem. Tal facto permitia a Platão introdu­ zir na sua noção de eros, entendido como veículo de ascese filosófica e, portanto, instrumento essencial para se adquirir o estatuto de verdadeiro homem, a relação entre adulto e jovem que, no mundo grego, dava uma dimensão pedagógica à relação homossexual. Mas também lhe permitia atenuar a rigidez de uma distinção radical de funções entre os sexos. Quer na República quer nas Leis, homens e mulheres percorriam um itinerário educativo comum, para desempenharem, como adultos, as mesmas funções: isso era válido não só para a música e a ginástica, mas também para o treino militar e para a preparação filosófica. Nas Leis, a diferença

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mais saliente entre os dois sexos parecia consistir no facto de as mulheres se casarem pelo menos dez anos mais cedo do que os homens e ascenderem aos cargos públicos dez anos mais tarde, por volta dos quarenta anos. Há documentos que comprovam a existência de mulheres na Academia plató­ nica, na escola de Epicuro e na escola dos Cínicos, mas é difícil dizer se se dedicavam ao ensino ou se se limitavam a escrever; seja como for, trata-se de casos raros, Apesar das declarações platónicas, a filosofia permaneceu sempre como uma actividade masculina, Aristóteles redrou à polémica platónica contra a cidade histó­ rica o seu carácter explosivo: para se ser homem, ou seja, bom cidadão, e capaz de governar a cidade não era necessário ser-se filósofo, Isso não significa que, para Aristóteles, a filosofia não representasse o mellior tipo de vida e que para se ter acesso a ela não fosse necessário ser-se cidadão e, portanto, dtular dos direitos e dos deveres polítícos da cidade onde se desempenhava a actividade filosófica. A apren­ dizagem e o exercício da filosofia também eram totalmente compatíveis com a condição de meteco, como era evidente no caso de Aristóteles, oriundo de Estagira, e de muitos filósofos da época heíenística, que tiníiam vindo de várias cidades do mundo grego para estudar em Atenas e que depois aí ficaram a ensinar, voltando a percorrer um itinerário que já no século v a. C. levara Anaxágoras a sair da sua Clazómenas natal para se fixar em Atenas. Os Estoicos chegavam mesmo a elaborar teorias acerca da compatibilidade do exercício da filosofia com a condição de escravo. Apesar da variedade de pressupostos e de posições das várias correntes, a filosofia surgia como a via mais adequada para a concretização do objectivo de se ser homem, Mas ser-se homem já não significava apenas ser-se cidadão. A cidade não podia acompanhar o impulso de firga da filosofia em relação a ela, nem a diferença entre ser-se cidadão e ser-se filósofo O ponto culminante dessa fiiga tinha sido atingido pelos Cínicos, mas através de uma mudança radical da imagem da infância. A maior parte dos filósofos, com excepção sobretudo dos Cínicos, parti­ lhou a concepção corrente da criança como ser privado de razão e de palavra, amplamente documentada por Homero aos oradores do século iv a. C„ Essas características da criança tomavam a sua situação particularmente delicada e era necessário intervir desde o inicio, se se queria que ela atingisse a condição de homem. Para Platão, era mesmo necessária uma espécie de ginástica intrauterina indirecta através dos movimentos executados pela mãe e, posteriorraente, uma vida passada não só dentro de casa e formas de jogo que imitassem e prefigurassem actividades e dotes da vida adulta Na sua opinião, só através da paideia se podia vtr a ser homem e nisso ele inseria a necessidade de uma educação pública — como acontecia em Esparía, mas sem o desenvolvimento unilateral da ginástica — minis­ trada a todos, que abrangesse a leitura, a escrita, a cítara e a dança. A discussão acerca da paideia citadina expressa por Aristóteles na Política parte de pressupostos bastante semelhantes. Contudo, tendo em conta as considerações da literatura médica, dava uma maior atenção às condições fisiológicas da nahireza infantil, No interior de um quadro da natureza articulado segundo uma escala continua de compexidade crescente, que culminava na figura do homem adulto,

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caracterizado pela plena racionalidade e pela estatura erecta, a criança estava, na opinião de Aiistótelés, perígosáiriénte perto da animalidade, como provava a sua condição de «anão», com as partes superiores mais desenvolvidas do que as inferio­ res, o que a obrigava a mover-se sobre quatro patas semelhantes às dos animais. A esta desproporção entre as partes estava também associado o facto de o calor produzido pelos alimentos ingeridos se dirigir para a parte superior e fazer com que as crianças pequenas dormissem a maior parte do tempo e, na sua maioria, só começassem a sonhar por volta dos quatro ou cinco anos. Segundo Aristóteles, nos primeiros quarenta dias, o recém-nascido, quando está acordado, não chora, não rí nem tem cócegas, isto é, não possui traços típicos que distinguem o homem adulto dos outros animais. No primeiro período de vida, a alma dos pequenos futuros homens não difere da dos animais: a criança, como o animal, não pode ser conside­ rada propriamente feliz e capaz de práxis, que exija o uso do raciocínio e da capacidade de deliberar No entanto, ao contrário dos animais, a criança é susceptí­ vel de um processo de desenvolvimento e de afastamento dessa condição animal, quer na relação entre as partes superiores e inferiores, que acabam por se equilibrar, quer na articulação das faculdades psíquicas. Era neste itinerário natural das poten­ cialidades da vida infantil até à actualização dos dotes humanos no adulto que podia inserir-se a actividade educativa, destinada a secundar esse desenvolvimento regu­ lar. «Ninguém», concluía Aristóteles na Ética a Nicômaco^ exprimindo um ponto de vista amplamertte difundido, «optaria por viver durante toda a vida com a razão [dianôia] dejuma criança.» No entanto, era precisaraente para uma posição deste gênero que pareciam convergir os Cínicos mais radicais Um dos seus pressupostos era o abandono da aplicação metafórica das idades da vida humana à «história» do gênero humano que levara Esquilo, no Prometeu, a designar os homens — na sua condição anterior ao conhecimento dos astros, das estações, da navegação, das letras do alfabeto, da medicina, da adivinhação e, em geral, de todas as technai, que lhes tinha sido doado por Prometeu — pelo apelativo já horaérico de «infantes» (népioi), incapazes de falar. Todavia, a posição cínica configurava-se como uma deliberada regressão até à infância, paralela a um retomo da cultura para a natureza. É certo que, mesmo antes dos Cínicos, já se detectavam algumas excepções à imagem negativa da criança Assim, o Hino a Hermes, de Homero, já tinha traçado o retrato do deus-criança precoce, ladrão e astucioso, capaz de inventar a citara utilizando a carapaça de uma tartaruga No entanto, também neste caso o modelo positivo continuava a ser dado pelos dotes mais próprios e habituais na idade adulta; além disso, tratava-se de um deus. Os conceitos de inocência, espontaneidade e simplicidade da criança não pare­ ciam estai muito difundidos na mentalidade comum, tal como a ideia de que se podia voltar a ser bom regressando à infância. Algumas histórias acerca do cínico Díógenes que, partindo do exemplo das crianças que bebiam na concha das mãos ou punham lentilhas no pão, fora levado a deitar fora e a prescindir de tigelas e recipientes, reflecíem uma inversão desse ponto de vista e a recusa da cidade e das necessidades artificiais por ela geradas, para se voltar apenas às funções essenciais determinadas pela natureza. Não é por acaso que, para o cinismo, a par da criança,

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eram os animais que serviam de modelo para se ser um verdadeiro homem, uma figura bastante rara, na opinião de Diógenes. Assim se elaborava uma imagem positiva de criança boa, capaz de ensinar o adulto, corrompido pela vida das cidades, a voltar a ser criança. Esta concepção da criança boa e de uma natureza humana oríginariamenie não corrompida era também aceite pelos Estóicos, que, no entanto, a opunham à consta­ tação da loucura e da maldade da maior parte dos homens adultos. Situando o início do processo de corrupção na obra das mães e das amas que, com os banhos quentes, eliminavam dos corpos das crianças o tonos, a tensão que devia porém caracterizar toda a vida moral mesmo do adulto, e geravam a ideia falsa da coincidência do bem com o prazer, os Estóicos, ou pelo menos alguns deles, evitavam responsabilizar directameníe a cidade pela corrupção. Ou antes, o estorcismo integrava-se cada vez mais nas instituições da cidade. Embora sob inspiração do rei Antígono Gônatas, Atenas podia emitir um decreto em honra do fundador da escola estóica, Zenão, por ter educado bem «os jovens que lhe eram confiados para serem instruídos na virtude e na moderação» e por os ter guiado «até às metas mais elevadas dando como exemplo a todos a sua própria vida». Apesar do brevíssimo parêntese de 307, quando um decreto visara expulsar os filósofos, Atenas e os filósofos das escolas depressa se reconciliaram. A inserção do ensino da filosofia no período da efebia era o stnal do reconhecimento, por parte da cidade, da importância da filosofia na paídem juvenil. Em certos aspectos, parece assim confirmado o sonho platônico de uma filosofia como parte integrante da cidade, embora continue a prevalecer a dimensão privada do seu ensino, a que mesmo os estrangeiros tinham acesso. Todavia, no momento em que a filosofia foi institucionalmente reservada aos efêbos, esse sonho foi radicalmente abandonado. Uma boa parte das tendências filosóficas e, em primeiro lugar 0 próprio Platão, admitiam que, para se ser filósofo era necessário uma longa aprendizagem, que só poucos eram capazes de fazer até ao fim. Isso não significa que, para os filósofos, os outros adultos não tivessem necessidade de educação, Nas Leis, Platão tinha detectado na própria cidade, com as suas instituições, as suas normas, os seus mitos, narrados primeiro pelas amas e depois constaníemente relembrados pelos anciãos mitólogos, o instrumento com que toda a cidade, em todas as classes etárias, se encantava (epodè) a si mesma, interiorizando e aceitando os valores que regiam a sua existência. Também Aristóteles reconhecia que a maioria dos homens, cuja vida se baseava nos pathe, não podiam normalmeníe ser convencidos pela força do lagos e do ensino e considerava que as leis eram o instrumento da educação permanente do próprio mundo dos adultos, na medida em que eram dotadas de maior força e suscitavam menor hostilidade do que regras impostas por indivíduos. De facto, Atenas podia acolher a filosofia não tanto como modelo supremo de vida humana, mas como actividade preparatória da formação do tipo de homem que continuava a encamar-se, embora numa medida cada vez mais simbólica, na figura do cidadão-soldado. A linlia vencedora tinha sido a que fora expressa pelos Cálicles e pelos Adimantos e reformulada com especial vigor por Isócrates, no século iv a, C No Aeropagííico, escrito pouco antes de meados do século, tinha oposto a antiga 100

educação preventiva à nova, que mais uma vez tinha o seu centro na agora e nas casas de jogo repletas de tocadores de flauta,, A educação antiga baseava~se no reconheci­ mento das diferenças sociais e da necessidade de disciplinar as paixões juvenis e de as orientar para ocupações nobres, encaminhando os mais pobres para o trabalho nos campos e para o comércio, de forma a subtraí-los ao ócio, causa principal das rpás acções, e os mais ricos para o hipismo, a ginástica, a cinegética e a fílosofia., Isócrates pretendia apropriar-se da linha educativa que ele atribuía à velha paiáeia, dirigindo-se a uma elite suficientemeníe rica para poder pagar as aulas, que duravam em média três ou quatro anos. No fim da sua vida, registava que, num periíodo de cerca de quarenta e cinco anos, essas aulas tinliam sido frequentadas por uma centena de alunos, muitos dos quais vieram a ser personagens ilustres da vida política ateniense e não só„ Mas aquilo que ele designava por filosofia não coincidia com a de Sócrates, Platão e da Academia. Esta, que ele identificava com discussões acerca do numero dos seres ou coisas semelhantes — um tipo de discussão presente, por exemplo, no Sofista de Platão e no primeiro livro da Metafísica ou da Física de Aristóteles —, não era totalmente refutada, mas era-lhe atribuído um valor mera­ mente propedêutico ou auxiliar. Isócrates comparava-a à geometria e à astronomia, disciplinas inúteis na prática, mas utilizáveis no interior de uma «concepção mus­ cular» das faculdades psíquicas (Finíey) e de um programa gímnico de treino mental, pelo que essas acU’vidades eram adequadas aos jovens, mas não aos adultos, Para estes, porém, a filosofia que ele ensinava, muito mais viril do que a que os paides aprendiam nas escolas, conservava todo o seu valor Segundo Isócrates, uma ciência capaz de determinar com exactidão como se deve falar e agir era inacessível para a natureza humana. No entanto, o saber falar, deliberar e agir no interesse da comunidade, que ele ensinava, consistia na capacidade de se ter uma opinião acerca do que parece preferível para a maioria, de acordo com as circunstâncias A retórica, como arte de dizer, depurada dos usos despreconceiíuosos para fins pessoais e plenamente integrada no horizonte de valores das classes mais abastadas, capaz de remeter para o passado histórico para a planificação do futuro, de fornecer exem­ plos morais e de justificar decisões políticas, podia tomar a apresentar o bom cidadão como modelo de homem e apresentar-se a si própria como via privilegiada para se ser homem» Os filósofos, por sua vez, embora não renunciassem ao primado da vida filosófica, destinada a poucos, ao aceitarem a integração das suas actividades no tecido da cidade de Atenas acabavam por aliar-se de facto ã solução de Isócrates e por atenuar a incompatibilidade entre retórica e filosofia que por vezes se radicalizara nas páginas platónicas e quejá Aristóteles tinha atenuado Em 155 a» C., quando os Atenienses enviaram uma embaixada a Roma para que Uies fosse per­ doada uma multa, quem defendeu a sua causa perante o senado foram os represen­ tantes de três escolas filosóficas, o académico Caméades, o peripatético Critolau e o esíóico Diógenes. Os melhores oradores eram filósofos O antagonismo entre filo­ sofia e retórica deixara de existir; solidariamente, ambas podiam intervir no ensino e na formação dos jovens das classes superiores da sociedade grega e romana.

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CAPITULO IV O CIDADAO por Luciano Canfora

Introdução No século Ví a. C., em muitas cidades gregas, as aiisíocracias, apoiadas pejas armas espartanas, expulsaram os chamados tiranos e assumiram o controlo da política citadina Tanto quanto sabemos, a maior paite das tiranias tinha uma base popular: o tirano fora, de início, um demagogo Apesar disso, na tradição literário-política que chegou até aos nossos dias, a imagem da tirania assumiu definitivamente um valor negativo e acabou mesmo por se confundir com a noção de domínio oligárquico (como veremos melhor mais adiante). Como é sabido, o epicentro e o protótipo das aristocracias gregas foi Esparta, onde a noção de elite (os Espartanos) coincide com a própria noção de homens livres, e portanto de cidadãos de pleno direito O domínio dessa aristocracia per­ feita, dedicada em primeiro lugar à virtude da guerra, apoÍa~se num amplo pedestal de classes dependentes (periecos, hílotas). Portanto, em Esparta, a polaridade ho­ mens livres/escravos coincide com a polaridade eüte/massas Entre os dois «mun­ dos» (os Espartanos e os outros) hâ uma constante tensão de classe e de raça, que é sentida e vivida como uma verdadeira guerra: todos os anos, simbolicamente, mas não demasiado, os éforos espartanos «declaram guerra» aos hilotas, e jovens espar­ tanos fazem o seu tirocínio como guerreiros dedicando-se ao desporto da caça nocturna aos hilotas, cuja morte tem mesmo — para além do desejado efeito terrorista — um evidente significado ritual e sacrificial O cidadão, o espartano, o macho, deve aprender sobretudo a matar. A. H , M Jones afirmou que os aristocratas atenienses, embora revelassem uma constante admiração pelo sistema espartano (basta recordar o nome de Crítias, mas também o de Platão), dificilmente se adaptariam a uma comunidade tão fechada e espiritualmente tão estéril. O primeiro texto em prosa ática, a Constituição dos Atenienses, que chegou até nós entre os opúsculos de Xenofonte (mas que não foi decerto escrito por ele), inicia, por assim dizer, esta série de tributos ao ideal espartano O autor revela-se saudoso, por exemplo, do duro tratamento que é permitido infligir aos escravos em Esparta, tal como ambiciona um regime político.

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a eimomia («o bom governo»), em que o povo ignorante e incompetente e, por conseguinte, não legitimado para deter o poder seja «reduzido à escravidão» Todavia, em Atenas, esse idealismo, tão do gosto de uma aristocracia nada resignada e desarmada, nunca se concretizou. Ou, mellior, concretizou-se, e desatrosamente, nos dois brevíssimos peiíodos de 4II e de 404-403, quando as derrotas militares sofridas por Atenas no longo conflito com Esparta conseguiram tomar actual a possibilidade de instaurar também em Atenas o «modelo Esparta», Qual o motivo desse fracasso, se é que se pode falar de fracasso? O autor da Consíiíitiçao dos Atenienses, embora ponha em destaque o principal defeito da democracia (o acesso dos incompetentes aos cargos públicos), reconhece que, em Atenas, o povo entrega aos «senhores» os cargos militares mais delicados. Na realidade, a aristocracia ate­ niense adaptou-se, como veremos, a um sistema político aberto — a democracia parlamentar — que colocou em bases novas o problema capital da cidadania. Portanto, essa aristocracia tinha conservado, embora num clima político mais movimentado do que em Esparta, uma legitimação para dirigir o Estado, baseada na posse de deteraiinadas competências (não só bélicas) e na duradoura predominância dos seus valores, sancionada também pela linguagem política; o termo sophrosyne significa não só «sageza» mas também «governo oíigárquico» (Tucídides, 8,64, 5) Na Europa do século xvm, até à Revolução Francesa, mesmo depois, era normal comparar-se Roma a Esparta, o que não era totaimente infundado. Já Políbio o tinha feito em termos de comparação constitucional, e detectara no sistema político romano um aperfeiçoado equilíbrio entre os poderes Aliás, não escondia que o eixo desse equilíbrio era uma aristocracia, que coincidia com o próprio órgão (o Senado) de exercício do poder. Por conseguinte, há motivos para que a aristocracia sêja a protagonista da experiência política de que vamos falar nas páginas que se seguem,, Se quiséssemos resumir numa expressão a característica de um predomínio tão duradouro, podería­ mos falar na sua capacidade de se renovar e de cooptar, E, neste domínio, foi precisamente a aristocracia modelo, a aristocracia espartana, que demonstrou, com factos, a menor clarividência.

Os Gregos e os outros

«As cidades não eram grandes, e o povo habitava no campo, totaimente absor­ vido nos trabalhos agrícolas»; é este o quadro económico em que Aristóteles situa a formação das tiranias, no quinto livro da P o/i/ íczi (1305 a 18). «Dada a grandeza das cidades, nem todos os cidadãos se conheciam uns aos outros»; é um dos factores materiais de que Tucídides se serve para explicar o clima de suspeição e a dificul­ dade de relações que caracterizavam Atenas nos dias que antecederam o golpe de Estado oíigárquico de 411 a C. (8, 66, ,3).. A cidade arcaica é pequena; isso toma a democracia directa, ou seja, toma obrigatória a participação de todos os «cidadãos» nas decisões, facto que não se pode negar, sobretudo quando uma parte sempre crescente de «cidadãos» (ou candidatos a cidadãos) converge para a ágora e deixa de permanecer agarrada aos campos, totaimente absorvida nos trabalhos agrícolas. 106

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Enquanto a situação se mantém como Aristóteles a descreve («o povo habitava no campo, totaimente absorvido nos trabalhos agrícolas»), a luta pelo poder é apanágio de alguns «senhores», que têm o privilégio — um privilégio que podemos observar nos objectos funerários dos túmulos antigos (nos antigos túmulos dos demos de Afidna, Tórico, Elêusis, os nobres são sepultados com as suas armas, o que não acontece com os populares) — de usar armas, assim exercendo a sua hegemonia A mÔTjpotpopía, costume bárbaro de passear com armas, «é um sinal de nobreza», escreveu Gustave Glotz, «que acompanha o aristocrata até no túmulo» Nesta fase arcaica, as formas de governo determinadas pela alternância dos senhores no poder — aristocracia, tirania, «interregno» de um «mediador» {aisymneíes, diallaktès) — , embora tenham denominações diferentes, devidas muitas vezes ao ponto de vista de quem escreve, são, na realidade, muito pouco diferençá­ veis. Basta pensar nos factos ocorridos na Lesbos de Alceu, e em figuras como a de Pítaco, diallaktès na furiosa contenda entre clãs aristocráticos mas que Alceu alcunha de «tirano», embora tivesse depois surgido no empíreo dos «sete sábios» a par do seu homólogo ateniense Sólon, Aqueles que Alceu, e outros como ele, alcunhavam de «tiranos» eram — segundo Aristóteles — os que assumiam a «condução do povo» (prostatai toii dentou). Gozavam — como Aristóteles escreve no excerto citado — da confiança do povo, e o «penhoo> (pistis) dessa confiança era «o ódio aos ricos», ódio que — como explica Aristóteles — se concretizava, por exemplo, no massacre do gado pertencente aos ricos, surpreendido junto do rio pelo «tirano» Teagenes de Mégara, homem da confiança do povo, como, aliás, Fisístrato, que Aristóteles menciona no mesmo contexto. Todavia, a dada altura, o paralizante trabalho nos campos (\x, porque o seu Estado ideal é a «imitação {mimesis) da melhor vida, da vida mais bela», e por isso encarna «a tragédia mais verdadeira» {Leis, 7.817b). Pondo de parte a sua relevância no que diz respeito ao conceito que Platão tinha do seu papel de educador, estas observações podem ser interpretadas sob um ponto de vista histórico para se ter, retrospectivamente, uma ideia da centraUdade do teatro na comunidade ateniense e da importância das reacções do público. O orguUio especial que os Atenienses sentiam por estes espectáculos é confirmado também pelas observações atribuídas por Tucídides a Péricles, no discurso fúnebre Péricles louva Atenas pela quantidade de distracções que permitem esquecer o trabalho quotidiano, distracções essas que consistem em «jogos [agòttes] e festas durante todo o ano», cujo «prazer» {tèrpsis) afugenta o cansaço Prosseguindo com o discurso, ele opõe Atenas a Esparta pela sua abertura: ninguém é impedido de «conheéer ou ver qualquer coisa» (espectáculo, íhèama), a não ser que isso consti­ tua uma ajuda directa ao inimigo (2.39.1). A linguagem de Tucídides é genérica e um tanto vaga, mas os espectáculos teatrais cívicos podem segurameníe ser incluí­ dos no íhèama de que Péricles fala; e talvez pensasse neles quando proferia a sua famosa e incisiva afirmação: «Resumindo, afirmo que toda a cidade é um exemplo de educação para a Grécia» (2,41 1).

O drama: origens e características

Embora o objectivo de Homero seja fazer-nos «ver» os grandes leitos do mundo épico com os olhos da «maravilha» {thàutna, thàmbos), não tem dúvidas de que a palavra recitada (e cantada) é o verdadeiro veículo da comunicação e da memória.

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A partir de finais do século vm a. C , quando a escrita começa a adquirir uma importância cada vez maior, essa relação entre os olhos e os ouvidos altera-se. Em fmais do século Ví e inícios do século v, poetas como Simónides, Píndaro e Baquilides, embora preconizem (e por vezes mantenham) relações de tipo pessoal com os seus mecenas, possuem uma ideia da sua arte que evolui num sentido mais profissional Escrevendo a troco de dinheiro, por encomendas que lhes chegavam de diversas partes do mundo grego, estão muito mais afastados da relação directa com o público própria do cantor de tipo homérico. Essa relação mais livre com o recitaíivo oral também é evidente nas metáforas visuais criadas por Píndaro e Baquilides para os seus cantos. Ao contrário do imaginário vocal de Homero e Hesíodo, muitas dessas figuras não têm nada, ou têm muito pouco, a ver com as circunstâncias da execução, ou mesmo com a voz ou a música. A ode é uma estátua, uma grinalda, um adorno bordado, um templo, uma copiosa íibação de vinho, uma fresca fonte, flores, fogo, asas, O próprio poeta pode ser uma águia que se liberta nas alturas, um archeiro ou um lançador de dardo que faz brotar um canto-projéctíl, um viandante que caminha por uma longa estrada ou um viajante num barco que sulca os mares. Quando Simónides diz: «A pintura é poesia muda, a poesia é pintura que fala» (Píutarco, De Gloria Athen , 3.346F), não relaciona a poesia com o recitativo mas com a experiência visual, um domínio, portanto, bastante diferente. Somos tentados a associar a analogia de Simónides entre o visual e o acústico com a interaccção de som e visão que, mais ou menos no mesmo período, a tragédia começava a desen­ volver, sobretudo porque Simónides é sob muitos aspectos um precursor do sofista itinerante e da sua liberdade de especulação racional. Na tragédia, a organização do material narrativo dos mitos através de um texto escrito toma possível uma nova e vigorosa narração visual; voz e visão estabelecem entre si relações complexas de um novo tipo. Com essa maior insistência em aspectos e conteúdos inovadores, o espectáculo ou o teatro tornam-se metáforas para descrever a experiência humana em geral, No Filebo, Platão sugere a ideia de que a vida é comédia ou tragédia (50b), e talvez seja esta a primeira formulação, na literatura ocidental, da analogia entre o mundo c o palco, tomada famosa pelo melancólico Jaques shakespeariano (Ar you like it, II, 7) Epicuro observava: «so­ mos todos um público bastante numeroso para os outros» (citado por Séneca, Cartas a Ludlio, 7.11). Na sua formulação mais geral, a ideia é expressa, provavel­ mente em fmais do século i d, C,, por Longino, no tratado De sublime, ao comparar todo o universo a um grande espectáculo, de que o homem é um espectador privilegiado e onde reconhece a grandeza a que está destinado pelas enormes possibilidades do seu pensamento (35). De facto, este excerto, bastante influenciado pelo estoicismo plaíonizaníe, reivindica para a humanidade aquilo que, no pensamento da Grécia arcaica e clássica, constitui uma prerrogativa dos deuses: ser um espectador distanciado dos sofrimentos e dos conflitos existentes na vida dos homens, É essa também a perspectiva da divina sabedoria do filósofo no epicurismo (cff, Lucrécío, De Rerum Natura, 2, 1—13). Tanto o público da poesia épica como o da tragédia possuem algo dessa perspectiva privilegiada; em sentido figurado, na poesia épi­

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ca, na medida em que o narrador omnisciente nos faz participar do segredo do que os deuses vêem e sabem; em sentido mais iiíerai, na tragédia, porque estamos sentados, dominando a acção a uma distância quase olímpica, embora não com olímpica indiferença. Tanto na poesia épica como na tragédia, esse espectáculo do sofrimento humano toma, porém, mais intensa a consciência dos Haiites que pesam sobre a vida dos mortais Todavia, a visão filosófica visa justamente ultrapassar esses limites. Embora as origens da tragédia continuem a ser obscuras e controversas, a relação que Aristóteles estabeleceu entre ela e o ditirambo {Poética, 4 1449a) é largamente aceite, O ditirambo, que começou por ser uma movimentada representa­ ção coral em honra de Dioniso, parece ter-se convertido, em finais do século iv, numa forma de caracter mais grave, mais lírico, em que se narravam mitos sobre os deuses e, posteriormente, sobre os heróis. A questão dos laços existentes entre a tragédia e Dioniso Já se colocava para os antigos- Por isso, a expressão «Nada para Dioniso» foi interpretada como sendo uma cntica à excessiva distância existente entre a tragédia e o culto propriamente dito do deus, durante a mais importante das festas que lhe eram dedicadas, as grandes Dionisíacas, a principal ocasião para as representações dramáticas, Embora os primeiros inícios da tragédia remontem ao tempo do tirano Pisístraío (a data tradicional é o ano de 534 a, CT, foÍ retomada e aperfeiçoada na época da nova democracia, no princípio do século v. A associação de Dioniso com o culto popular, mais do que as tradições aristocráticas, pode ter encorajado o seu desenvolvimento. Dioniso é 0 deus da vegetação, e em especial das videiras e do produto da sua fermentação; é também associado h loucura e ao êxtase religioso. Surge muitas vezes nos vasos com um cortejo de Sátiros, criaturas com pés de cabra, meio homens meio animais, que dão livre curso à sua natureza animal na embriagues, nos gestos lascivos e num indiscriminado apetite sexual Segundo Aristóteles {Poética, 4.1449a), as danças satíricas também contribuíram para o desenvolvimento da tragédia, e, durante as Dionisíacas, a par das três tragédias de cada um dos autores em concurso, representava-se um drama de carácter mais ligeiro, com um coro de Sátiros. Outras acompanhantes de Dioniso, em estreita (embora não necessariamen­ te harmoniosa) relação com os Sátiros, são as Ménades («loucas»). Também elas personificam uma desinibida libertação de energia emotiva e física no quadro de uma entrega total ao deus e ao seu culto As associações de Dioniso ao irracional, à loucura, às mulheres, às danças e às músicas frenéticas, e à flexibilidade dos limites que existem entre o animal, o homem e o deus são todas relevantes para a tragédia, A ligação de Dioniso à máscara é ainda mais imediata De facto, Dioniso é muitas vezes venerado por intermédio de uma máscara, umas vezes pendurada numa árvore ou numa coluna, outras vezes adornada com folhas de hera, a planta consagrada ao deus- A máscara toma possível a representação mimética dos mitos em forma dramática, O actor mascarado também pode explorar a fusão entre diferentes identidades, essências ou categorias da experiência: macho e fêmea, humano e bestial, estranho e amigo, iniciado e profano. A máscara íoma-se assim essencial na experiência teatral como indício da vontade do publico em se submeter à ilusão, ao jogo, à ficção, em

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esbanjar' energias emotivas em algo que está conotado como fictício ou Outro. Como sugeriu Vemant, o olhar fíxo da máscara é também o modo de representar a presença da divindade entre os homens Por todos estes motivos, Dioniso é o deus mais adequado para superintender à tragédia e aos seus aspectos peculiares: a atmosfera carregada de emoção própria de um espectáculo de tipo mimélico; o profundo sentimento de identificação com o mundo mágico criado e personificado por actores mascarados; a habilidade para pôr em confronto a alteridade do bestial e do divino na vida humana e para reconhecer a irracionalidade e a emotividade, associadas ao elemento feminino numa sociedade dominada pelos homens; a abertura às problemáticas de mais amplo fôlego tornada possível pela presença dos deuses agentes visíveis no mundo dos homens O fas­ cínio da máscara dionisíaca liberta, em doses controladas, os medos, a ansiedade, a irracionalidade que fermentam sob a patina de esplendor da Atenas de Péricles, A tragédia redefine o papel do espectador Em vez do prazer, ou tèrpsis, do reciíaíivo épico ou da representação coral, a tragédia envolve o seu público numa tensão entre os dois pólos do prazer que se espera de um espectáculo de alta qualidade e da dor provocada pelos seus conteúdos Por vezes, os próprios autores fazem notar esta contradição, para o «paradoxo trágico» do prazer no sofrimento (cfn Eurípides, Medeia, 190-203, e Bacantes, 8Í5) A tragédia não dá apenas uma tangível e impressionante representação dos mitos antigos; também centra neles a sua atenção em situações de crise. Ao contrário da narração ampla e expansiva da poesia épica oral, a tragédia selecciona aspectos cnticos e condensa a sorte de uma família ou de uma cidade numa acção fortemente unitária que se desenrola num tempo e num espaço limitados. Todas as componentes da tragédia existem na poesia do passado: os recitativos poéticos dos discursos do mensageiro; os cantos corais de alegria, de lamento, ou que apelam para exemplos mitológicos; e, em certa medida, também o diálogo Contudo, estes elementos adquirem uma nova força quando interagem no novo organismo que é a tragédia. Ésquilo serve-se da simetria do refrão entoado pelo coro ou do responsório para produzir o efeito de uma multidão aterrorizada, como em Os Sete contra Tebas (150-180) Nos Persas, combina o responsório lírico do lamento com o espectáculo visual do rei derrotado que mostra as vestes rasgadas, para dar a ideia do ímpacte da denota em toda a comunidade (Persas, 906-1077) A identifica­ ção do público do teatro com a cidade ameaçada através da repetição imítativa do perigo confere a estas cenas uma intensidade que ultrapassa qualquer exemplo extraído da lírica coral. A antiga Vida de Ésquilo realça o seu poder de èkplexis, de «impressionar» o público com efeitos visuais irresistíveis. Segundo se refere nessa obra, quando as Fúrias apareceram, nas Euménides, houve desmaios de crianças e algumas mulheres abortaram. A veracidade da anedota é dúbia, mas reílecte provavelmente o espírito da arte de Ésquilo. Os seus efeitos acústicos são igualmente poderosos: os uivos de terror das Danaides, nas Suplicantes, o misterioso ototototòi pòpoi dà opòllon opòllon de Cassandra, misto de pavor e de profecia (Agamémnon, 1072 seg.); os murmúrios e os rosnados das Fúrias quando o fantasma de Clitemnestra as desperta, no início das Euménides (119 segs,), logo seguidos pelo seu terrível e envolvente

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canio contra a sua vítima (307-396); ou o a a e c de Io, cujo significado se desconhece, quando entra em cena perseguida por um moscardo {Prometeu Agri­ lhoado, 566) Sófocles e Eurípides são mais comedidos, mas também têm a sua Esfinge que assobia (Eurípides, Édipo, fragm H Austin), os seus heróis que uivam de raiva (Sófocles, Traquínias, 805, 983-1017; Eurípides, Héraclès, 869 segs..), as persona­ gens que sofrem e que por isso se lamentara ou gritam (Sófocles, Electra, 826-30, 840-845; Piloctetes, 730-757), No extremo oposto, também são capazes de utilizar o silêncio para provocar um efeito iguaímente poderoso. Aristófanes troça dos lon­ gos silêncios dos protagonistas de Esquilo nas cenas de abertura {Rãs, 911-920), As silenciosas saídas de cena de Jocasía, Dejaniia e Eurídice (respectivamente em Édipo Rei, nas Traquínias e na Antigona, de Sófocles), representara o sinistro mo­ mento de calma que antecede o furacão da desgraça, Em Édipo eni Colona, Sófocles cria uma atmosfera de tensão mantendo o velho Édipo mudo durante uma cen­ tena de versos, até que a raiva que sente por seu filho Polinices explode em tremen­ dos insultos e maldições (1254-1354). Utilizando a ainda recente inovação do ter­ ceiro actor, Esquilo deve ter surpreendido o seu público no Agamêmnon, quando Cassandra, que permanece muda na longa cena entre Agamêmnon e Clitemnestia, irrompe inesperadameníe nos seus terríveis gritos de desespero e profecia.. Na tragé­ dia seguinte da trilogia, Pílades mantém-se também silencioso até ao ponto culmi­ nante, quando, no terrível momento da decisão, encoraja Ores tes a matar a mãe, pronunciando os três únicos versos que lhe cabem na tragédia {Coêforas, 900-902),

A linguagem e a tragédia

O poder significante da linguagem é uma questão fundamental na tragédia. Termos éticos de importância cmcial como «justiça», «bondade», «nobreza», ou «pureza» são consíantemente postos em causa e redefinidos. O paradoxo de uma «ímpia piedade» está no centro ào. Antigona. O significado dos termos «bom senso» {sop/irososyne) e «sabedoria» {sop/üa) é fundamental, respecüvamente, para o Hipéliío e para as Bacantes de Eurípides, Obras como o Agaménmon de Esquilo, o Édipo Rei, as Traquínias e o Piloctetes de Sófocles devem muito do seu poder ao aprofundamento do tema do fracasso da comunicação, entre os homens e eníie os homens e os deuses. As ambiguidades da linguagem próprias das profecias e dos oráculos determinam os acontecimentos destas e de outras tragédias. Sob este ponto de vista, a tragédia não só reage ao minucioso exame crítico da linguagem caracte­ rístico do iluminismo sofista, mas também antecipa o propósito platônico de confe­ rir estabilidade aos valores éticos no interior desse meio instável e traiçoeiro que são as palavras. A importância das temáticas da linguagem e do significado é-nos revelada pelo facto de surgirem tanto na cena cômica como na tragédia. As Nuvens, de Aristófa­ nes, ficam a dever muita da sua carga humorística à iniciação de Estrepsíades nas subtilezas do estudo sofista da gramática, dos gêneros, da moifologia.. O auditório da comédia não se deliciava só com a voz humana O coro dos Pássaros deve ter

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sido uma notável evocação do canto dos pássaros (como a que o poeta arcaico Álcman se dizia capaz de imitar [fragms. 39 e 40 PMGj), uma divertida experiência testemunhada nos manuscritos em nosso poder só pelo towiowíorotorotix / kikkabàu kikkabàu (cfr 223 segs., 260 segs , 310 segs.) As comédias de Aristófanes estão repletas de jogos de palavras, de duplos sentidos, de inúmeros divertimentos verbais, Os nomes servem de motivo para piadas, muitas delas obscenas, como a que transforma um demo ático numa comunidade de onanistas {Anaphlystioi e anaphlàn: Rãs, 427). A palavra, a música e o movimento constituíam a parte preponderante da tragédia, o que está de acordo com o papel subordinado atribuído por Aristóteles ao õpsis, ao espectáculo, na Poética. O dramaturgo íinlia algumas máquinas cênicas à sua disposição. Uma grua podia transportar carros ou heróis voadores (como Perseu) O enkyklema podia expor aos olhos do público as consequências da acção — geralmente violenta — que ocorria dentro de casa Esquilo, como se viu, foi o mais audaz dos dramaturgos cujas obras chegaram até nós a criar mirabolantes efeitos espectaculares, Porém, no conjunto, a representação teatral era mais conven­ cional do que realista e fazia um uso relativamente escasso de andaimes e simples panos de fundo. A recitação das personagens, mascaradas e vestidas com grande esmero, devia ser bastante estilizada; a voz, a dicção e os gestos exploravam totalmente o seu valor expressivo Os próprios músicos eram apreciados pelos seus movimentos e pelos seus gestos, A propósito do célebre flautista Prónomos, por exemplo, Pausânias refere que «com a compostura do seu rosto e com os movimen­ tos do coipo dava grande prazer ao público no teatro» (9.12 .6) De qualquer forma, os efeitos visuais de Sófocles e Eurípides parecem relacio­ nar-se mais com os temas centrais do drama do que os de ÉsquUo, e exprimem melhor as características e as situações dos protagonistas: a cegueira de Édipo, nas duas tragédias de Édipo, Penteu vestido de ménade, nas Bacantes, a miséria e a doença de Piloctetes. Eurípides leva muitas vezes a acção até ao extremo do sofrimento e do horror, e depois interrompe-a bruscameníe com a aparição de uma divindade (o deus ex machina) Sófocles serve-se deste expediente apenas uma vez, e de uma forma bastante diferente: no Piloctetes, Héracles chega do Olimpo, viva voz e personificação do heroísmo e da generosidade que permaneceram adormeci­ dos no herói doente e amargurado As frequentes paródias que Aristófanes faz dos efeitos visuais da tragédia mostram até que ponto eles impressionavam o público ateniense. De uma forma substancialmente idêntica, Sófocles e Eurípides imitam cenas de Ésquilo, em espe­ cial da Oresteia, nas suas versões do mito Nas Traquínias, a entrada em cena do cortejo de Héracles com a prisioneira silenciosa, íole, é um eco visual da entrada de Agamêmnon com Cassandra, no Agamêmnon: um expediente que lança a sombra da homicida Clitemnestra sobre a fiel e paciente Dejanira. A Electra, de Eurípides, talvez seja o eco visual mais rico das cenas de Ésquilo Electra atrai Clitemnestra a sua casa para executar o matricídio, com o pretexto de que ela, casada com um pobre camponês, deu à luz um filho e precisa de ajuda para os ritos da purificação Chegando num carro, ricameníe vestida e acompanhada por escravas troianas como suas aias, Clitemnestra desempenha o papel do Agamêmnon

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culpado de hybrií do drama de Esquilo, ao passo que Eíectra, que atrai a persona­ gem poderosa a sua casa para levar a efeito uma horrível e ímpia vingança, interpreta o papel desempenhado por sua mãe, no Agamênmon. Tanto na Elecíra de Sófocles como na de Eunpides, estes ecos cênicos podem fazer pensar na execução de um justo castigo, mas também implicam a perpetuação da impiedade e da violência criminosa

Espectáculo e narração

Mesmo quando atinge a sua plena evolução como forma de espectáculo, a tragédia não rompe totalmente com a tradição oral. Os longos discursos dos mensageiros que narram frequentemente os acontecimentos culminantes da tragédia deviam ser fami­ liares para um público habituado às longas narrações em verso da poesia épica. Todavia, o sentido destas narrações na tragédia c bastante diferente do da poesia épica. A batallia entre Etéocles e Polinices nas Femcias de Eunpides, por exemplo (1359-1424), está estreitamente ligada aos duelos entre heróis da Híada. No entanto, em vez da clara, nítida distinção entre amigo e inimigo, a narração trágica fala de maldição, impiedade e fúsão/confusão dos dois irmãos que não podem reconciliar-se nem separai-se. Dai que, neste caso, a expressão homérica «morder a terra com os dentes» ao morrer se combine com o motivo trágico do assassínio de alguém do mesmo sangue e da impossibilidade da distinção (1423 seg )Mais do que mostrados em cena, os acontecimentos mais violentos e dolorosos da tragédia grega são narrados nesses discursos: o assassínio do marido levado a cabo por Ciitemnestra e a sua morte às mãos dos filhos; o desmembramento de Penteu; Tiestes comendo os seus próprios filhos; Medeia envenenando as suas vítimas e depois matando os filhos corn a espada, etc. Todavia, na tragédia, esses acontecimentos não se confinam ao âmbito da narração, e isso por três motivos. Em primeiro lugar, o público pode ver imediatamente as consequências dos actos violentos cuja narração escutou: os corpos de Agaraémnon e de Cassandra arrasta­ dos para fora do palácio sobre o enkyklema, a aparição de Édipo cego ou de Polimestor (na Hécuba, de Euripides), ou Agave mostrando a cabeça de Penteu, nas Bacaníes. Em segundo lugar, as narrações ocorrem muitas vezes na presença de duas ou mais personagens que têm reacções diametralmente opostas. Na Eleara, de Sófocles, por exemplo, Electra e Ciitemnestra respondem de forma antitética à notícia (falsa) da morte de Orestes Nas Traqiiínias e no Édipo Rei, um discurso de um mensageiro tem um certo significado para um protagonista masculino (respecti­ vamente, Ilo e Édipo) e outro, toíalmente diferente, para uma figura feminina, que abandona a cena, muda na sua dor, e se suicida (Dejanira e Jocasta). Em terceiro lugar, e mais importante, a narração da violência ocorrida fora de cena chama a atenção para o que nõo se vê. Atribui-se assim um estatuto privile­ giado a esse espectáculo invisível só pelo fácto de não ser visto Esse «espectáculo negativo» — como poderia ser definido — estabelece um contraponto entre os acontecimentos que podem ser vistos à luz do Sol, na orquestra, e os acontecimen­ tos ocultos, que ocorrem no exterior, Estes adquirem uma dimensão ulterior de 192

mistério, horror e fascínio só peio simples facto de ocorrerem atrás da cena. Esse espaço para lá da cena, que representa muitas vezes o interior da casa ou do palácio, funciona como espaço do irracional ou do demoníaco, como as áreas da experiência ou os aspectos da personalidade que estão ocultos e que são obscuros e terríveis., Assim são, por exemplo, o palácio onde Ciitemnestra atrai Agamémnon para o assassinar, a casa onde Dejanira guarda e depois utiliza o sangue venenoso do Centauro, a tenda onde Hécuba e as suas companheiras matam os filhos de Polimesíor e cegam o pai, ou a prisão subterrânea onde a aparição de Dioniso disfarçado de touro começa a pôr em perigo a autoridade racional de Penteu. O discurso do mensageiro no Édipo Rei, o mais famoso relato deste típo na tragédia grega, explora a fundo o contraste entre o que está «oculto» e o que «se pode V6D>, A reticência ou a. incapacidade de relatar «as desgraças que mais atingem os homens» (1228-I2.31) envolve a cena numa sugestiva penumbra A «recordação» do mensageiro permite-nos seguir .locasta até à sua câmara, que ela nos impede imediata­ mente de ver, fechando a porta (1246). A barreira concreta das portas fechadas e a que é simbolizada pelas hesitações do mensageiro ao recordar e ao narrar tomam invisível a sua agonia; contudo, ouvimo-la «chamar» por Laio e evocar os actos da concepção e do parto, cujo horror a encerra agora no espaço fechado do quarto, O clímax da narração do mensageiro é a misteriosa e inexplicada revelação de que «um deus qualquer lhe indicou [a Édipo] o caminho» (1258). Soltando gritos terríveis, Édipo derruba as portas trancadas, permitindo-nos ter a visão medonha do corpo de .íocasta, que oscila suspenso no nó corrediço. O «espectáculo horrível» antes oculto é por fim revelado (1253 seg., 1263 seg,), mas só a quem estava no palácio (e na narrativa) e não ao público do teatro. «Foi um espectáculo horrível», prossegue o mensageiro (1267) quando volta a falar de Édipo, que agora «vê» locasta e que arranca os olhos com as fivelas das suas vestes (1266 segs,). O repetido tema da visão bloqueada ou parcial é adequado quando se está na presença de uma imagem demasiado leriível para ser narrada ou encenada. Todavia, a tensão entre a narração daquilo que é visível e daquilo que está oculto, entre o que é ouvido e o que é visto, dissipa-se na visão plena de Édipo, que quer que se abram os portões para que «se mostre a todos os tebanos» a sua impiedade (1287-1289). O narrador fornece as didascálias: «Estão a abrir-se as portas do palácio: em breve vereis um espectáculo [íhèaim] que causaria dó mesmo a um inimigo» (1295 seg,,). A aparição, voluntariamente teatralizada, de Édipo permite que as emoções reprimi­ das se exprimam colectivamente nos gritos do coro quando este, tal como o público, vê por fim com os seus próprios olhos o que até então não passara de uma experiência meramente oral/auditiva «Ó catástrofe terrível para a vista humana», grita 0 coro, «a mais terrível que alguma vez vi!»

Tragédia: espectáculo dtadino

Embora o tema da tragédia seja, mais ou menos indirectamente, o marginal, o diferente, o inacional, todas as partes da representação teatral reflectem a sua integração na cidade e nas suas instituições democráticas. Um dos magistrados de

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dasse mais elevada escolhia os três autores trágicos cujas obras cieveriam ser representadas nas festas citadinas das Dionisíacas e das Leneias Ao contrário do que acontecia no teatro romano, os actores e os elementos do coro eram cidadãos e, no inicio do século v, eram os próprios poetas que desempenhavam um papel nos seus dramas. Os juizes eram cidadãos escolhidos por sorteio em cada uma das dez tribos. O próprio teaho era um edifício público; era ai que, um dia após o final das Dionisíacas, a assembléia se reunia para decidir se a festa decorrera normalmeníe. Nas Dionisíacas, a par das representações dramáticas, recebia-se a homenagem dos aliados, proclamava-se os benfeitores da cidade e os filhos dos cidadãos mortos na guerra desfilavam com as aimas que lhes eram fornecidas pelo Estado Como sugere 1'ucídides, no discurso fúnebre de Péricles, e Aristófánes, nos Acamenses (496-507), as Dionisíacas eram uma oportunidade para a cidade se exibir perante os aliados e as cidades vizinhas, para dar uma visão espectacular de si mesma Mas a tragédia não é apenas uma parte qualquer desse espectáculo citadino, dado que, com a sua extraordinária abertura, leva a cidade a reflectir sobre o que está em conflito com os seus ideais, sobre o que deve excluir ou reprimir, sobre o que teme ou considera estranlio, desconhecido, Outio. Nesta perspectiva, pode entender-se a recorrente dramatização do poder e da fúria das mulheres no âmbito doméstico (Esquilo, Oresíeia; Sófocles, Traquínias‘, Euripides, Medeia^ Hipólito, Bacantes), com a inversão dos papéis sexuais e a transformação de poderosos soberanos em párias derrotados e miseráveis (Édipo, Jasão, Héracles, Creonte, Penteu, etc ) Euripides podia idealizar Atenas como justa e piedosa defensora dos fracos {Heraclidas, Suplicantes) e o mesmo fez Sófocles em Édipo em Colona Todavia, Euripides também escreveu obras como Hécuba e ás Troianas, criticando implicitamente a brutalidade da política de guerra ateniense Nos Persas, a atitude de Esquilo para com os invasores derrotados era de indulgência e compreensão, A comédia pôde exprimir o desejo de paz, formulado clarameníe em obras como os Acamenses, a Paz ou Usistrata, além de criticar instituições como os tribunais ou a assembléia {Vespas, Ecclesiazuse), ou personagens públicas como Cléon {Cava­ leiros) . A tragédia podia levar à cena, de forma simbólica, debates contemporâneos acerca de temas políticos e morais, como, por exemplo, a limitação dos poderes do Areópago nas Eiimênides, de Ésquílo, No entanto, o seu significado cívico e político também podia ser mais difuso e indirecto O papel de Odisseu no Ájax de Sófocles, por exemplo, afirma o valor democrático do compromisso sobre o autori­ tarismo e a intransigência aristocráticas. A tragédia também levanta a questão dos perigos inerentes ao exercício do poder {Persas, Oresteia, Antigona), mostra as infaustas consequências da divisão ou da discórdia na cidade {Sete contra Tebas, Fenidas), ou descobre uma eshutura moral que está na base das acções humanas, como se pode ver pelo lento, difícil e muitas vezes doloroso caminho da justiça através de muitas gerações, por exemplo, nas trilogias de ÉsqulJo Enquanto a lírica coral tende a consolidar as tradições e os valores das famílias aristocratas, a forma relativamente nova do espectáculo dramático é a que caracte­ riza a pólis democrática. Na verdade, cora a sua integração na vida da cidade, a sua

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estrutura de debate dialéctico, as reíações sempre instáveis entie o herói e a comuni­ dade representada pelo coro, a tragédia é-o género artístico mais caro à democracia, após os seus inícios no tempo de Písístraío. O ethos aristocrático do individualismo, da honra pessoal e da excelência na competição, expresso na poesia épica está ainda vivo no século v Como está claramente demonstrado em obras como Os Sete contra Tebas, de Esquilo, o Ájax e o Filoctetes, de Sófocles ou o Héracles, de Euripides, uma das funções da tragédia é reexaminar esses comportamentos à luz das necessidades de compromisso e de cooperação próprias de uma sociedade democrática Os mitos apresentados na tragédia não reflectemjá os valores tradicionais de uma época remota, idealizada, Pelo contrário, tomam-se o campo de batalha das lutas internas na cidade: antigas concepções de vingança cruel contra o novo legalismo cívico (Oresteia); as obrigações familiares contra as obrigações civis (Antigona); os conflitos entre os sexos e entre gerações (Alceste, Medeia, Bacantes, de Euripides), as diferenças entre o governo autoritário e o democrático (Euripides, Suplicantes; Sófo­ cles, Ájax e Édipo em Colona). Por estas razões, as representações trágicas também não são concebidas como um entretenimento de que se pode usufruir em qualquer altura (como o teatro moderno), íímííando-as às duas festas citadinas dedicadas a Dioniso e ocorrendo no espaço carnavalesco associado a esse deus Acima de tudo, a tragédia cria um espírito comunitário, no teatro e na cidade. Na cidade, os cidadãos-espectadores, embora diferentes, têm consciência da sua unida­ de dentro dajcidade e do edifício público onde estão reunidos. Os espectadores da tragédia tomam-se espectadores uns dos outros enquanto cidadãos e enquanto espectadores da peça. O teatro liga entre si os cidadãos, que partilham emoções e piedade. No final do Hipôlito, de Euripides, por exemplo, a dor pela morte do fiUio de Teseu é uma «dor comum» que se espalha «por todos os cidadãos» (1462-1466), apesar de HipóUto ter preferido aos deveres políticos os objectivos pessoais da caça e do desporto. A comemoração cívica, além do mais, é o tributo que uma comuni­ dade pode oferecer, em contraste com o ritual privado e religioso com que a sua deusa, Ártemis, honrará a sua memória (1423-1430). A tragédia não só faz incidir o espelho distanciador do mito sobre problemas contemporâneos como reproduz algumas das mais importantes instituições citadi­ nas,. As sua maiores afinidades são com os tribunais. Com efeito, os juízes dos dramas são dez espectadores escolhidos à sorte As rápidas trocas de palavras entre os antagonistas asseme!ham-se às argumentações da defesa e da acusação nos tribunais. Na realidade, as tragédias convertem o público numa espécie de juiz dos complexos problemas morais em que ambas as partes exigem justiça e em que é difícil separar o justo do injusto. A discussão entre Hécuba e Polimestor, na Hécuba, por exemplo, é uma situação de tipo jurídico (1129 segs ) . Pode iguaimente citar-se a cena do julgamento, nas Euménides de Ésquilo, e a paródia de um tribunal, nas Vespas de Aristófanes. Escritores posteriores chegaram mesmo a elogiar as tragédias pela sua aproximação realista com o debate jurídico (cff,. Quintiliano, 10,1.67 seg.) Mais ainda do que da atribuição da culpa e do castigo, a tragédia trata do problema da decisão. Em quase todos os dramas que chegaram até aos nossos dias

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figura um protagonista atormentado por uma opç5o difícil entre alternativas opostas» ou obrigado a decidir entre a segurança e um acto perigoso ou de resultados incertos. «Que farei?» (ri drmo?) é um grito recorrente em momentos de crise Personagens como Medeia, Fedra ou Orestes hesitam, vacilam, mudam de opinião, A intransigência pode ser tão funesta como a indecisão ou a inconstância, como demonstra o Filocieíes de Sófocles. Situações como a inversão de Creonte, na Antígana, ou a explosão de raiva de Édipo contra Tirésias, no Édipo Rei, mostram ao público não só o carácter destrutivo dos conflitos familiares, mas também as consequências de juízos precipitados, ditados pela cólera ou errados. Essa dramati­ zação da decisão, da inversão, da rigidez, etc , apelava para a experiência que o público tinha das assembleias e dos tribunais. A narração de Tucídides acerca da mudança de posição dos Atenienses depois da condenação dos habitantes de Mitilene é uma demonstração de como a vida real se baseava em decisões tomadas e alteradas (3-36)

Tragédia e escrita

É provável que os trágicos tenham composto mentalmente largas porções das suas obras, como os bardos da tradição oral, e oralmente as tenham ensinado aos actores e ao coro. Todavia, a mentalidade ligada ao alfábetismo e à produção de textos escritos parece quase indispensável à estrutura da tragédia: concentração antecipadamente planeada de uma acção complexa numa forma altamente estrutu­ rada e que se manifesta num espaço simbólico, geométrico e convencional. Nas Rãs de Aristófánes, escrita em 405 a. C., mostra-se o conflito entre a velha e a nova concepção da poesia e do teatro. Esquilo acusa o seu mais jovem rival, Eurípides, de funcionar como factor desagregador da moralidade antiga pelas suas subtilezas intelectuais e pelos seus paradoxos, e por colocar em cena personagens femininas imorais (cfr 1078-1088). O velho poeta, mais próximo da cultura oral do passado, está também mais próximo de uma correspondência directa entre palavra e coisa e do papel tradicional do poeta como poita-voz de valores comunitários (1053-1056)- A arte de Eurifpides associa-se ao movimento sofista, aos livros, à ligeireza superficial, à facúndia enganadora da língua. É apresentada como disso­ ciando a linguagem da realidade («a vida não é vida»). Por outro lado, o discurso de Esquilo possui a materialidade terrena própria da voz na cultura oral; as suas expressões provêm das «entranhas», do «diafragma» ou do «sopro» (844, 1006, 1016). Na «batalha dos prólogos», em que os versos são pesados na balança, as subtilezas «aladas» da Persuasão de Eurípides perdem em confronto com o peso dos carros, da Morte e dos cadáveres de Esquilo (1381-1440). A ironia atinge o seu auge quando Dioniso escolhe Ésquilo utilizando justamente o verso de Eurípides acerca da separação entre «língua» e «mente» (Rãs, 1471; cfr. Hipólito, 612). Pode parecer paradoxal associar a tragédia, que, para uma multidão excitada e muitas vezes ruidosa de milhares de pessoas, é um misto de espectáculo visual, música e poesia, com a comunicação austera e monocrómica que associamos à literatura não falada Todavia, é precisamente o poder oculto da escrita que permite

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associar organicamente a visão, o discurso e a audição na representação multimédia Na tragédia, o uso frequente de metáforas sínestésicas e a harmonização explícita de experiências visuais e acústicas em momentos de alto valor dramático, chamam a atenção para essa interligação de diferentes sentidos Tanto o espaço gráfico da escrita como o espaço teatral do drama dependem da criação de um campo de actívidade simbólica onde os signos mais pequenos podem revestÍF'Se do maior significado. A atenção concentra-se num espaço limitado, deiiberadamente miniaturizado Esse microcosmos é o modelo de uma ordem mais vasta, quer social quer universal Tanto a escrita como a tragédia exigem uma actividade interpretaüva que se concentre numa área restrita. Ambas dependem da capacidade para agir dentro de um sistema de convenções, para reconhecer signos, interpretá-los e colocá-los numa sequência correcta, «julgar o presente na esteira do passado», como diz Jocasla a propósito de Édipo (referindo-se também à sua habilidade para decifrar enigmas), no Édipo rei (916). Em grego, «len> é «reconhe­ cer», ariaghignòskein, e Aristóteles também utiliza o termo «reconliecimento», anagnòrisis, para designar o clímax da tragédia O extraordinário poder da tragédia pode ficar, pelo menos em parte, a dever-se ao facto de ela emergir num momento de transição da cultura grega, quando o poder do mito ainda não tinha sido corroído pela mentalidade crítica que acompanha a escrita, o pensamento abstracto e as posições éticas sistemáticas, A comédia con­ serva a sua vitalidade e o seu poder inovador até ao século iv, em parte porque Menandro e os seus sucessores conseguem desviar a atenção da Comédia Antiga para questões mais privadas e domésticas, servindo-se do sentimentalismo dos últimos enredos de Eurípides, baseados no reconhecimento, e desenvolvem um estilo coloquial e ao mesmo tempo elegante. Todavia, nenhuma transformação desse gênero deu nova vida à tragédia. As tragédias escritas após o século v não foram consideradas dignas de ser conservadas, e nenhuma sobreviveu. A tragédia do século v não era capaz de combinar a seriedade moral e religiosa e a imaginação mítica própria da poesia épica oral com a pesquisa intelectual caracte­ rística de uma época em que o processo de alfabetização ia progredindo e em que se tentava corajosamente conceptualizar o homem e a natureza na ciência, na medici­ na, na filosofia, na história, na geografia, etc. Na tragédia, como na filosofia, o pensamento e a visão penetram no desconhecido. Ésquilo compara «o pensamento profundo» a um mergulho «nos abismos», ou lenta perceber a mente de Zeus, que é «visão sem limites», algo que escapa à compreensão humana (Suplicantes, 407 seg e 1057; cfr. Os Sete contra Tebas, 593 scg.., Agamé}7mon, 160 segs ,),, A representação visual dos antigos mitos na tragédia parece privilegiar as aparên­ cias superficiais da percepção sensível, mas explora constantemente as distinções entre superfície e profundidade, palavras e actos, parecer e ser. Na autêntica plenitude do seu poder representativo, através da combinação de palavra, música, dança e gesto mimético, põe em destaque a inacessibilidade de uma verdade definitiva, e a dificul­ dade, ou mesmo o tormento, em compreender a natureza complexa do comportamen­ to dos homens, a condição dos deuses, os termos e os limites da mortalidade. Embora os meios que utilizaram sejam diferentes, os poetas trágicos são os irmãos espirituais de filósofos que, como Heraclito, Demócrito e Platão, sabem que

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à superfície do mundo há mais engano que verdade e se esforçam por compreender porque é que a vida é o que é, porque existe a dor, como é que a justiça e a morai se podem concretizar na sociedade e qual é a ordem mais geral, se é que existe alguma, que toma inteligível a nossa existência. Após o século v, continua-se a escrever e a representar tragédias, mas as energias criativas, as preocupações éticas e as pesqui­ sas teológicas que tinham produzido as obras-primas canalizavam-se agora para a filosofia e paia a história, Os espectadores de ÉsquÜo e de Sófocles são também leitores de Platão e de Aristóteles,

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CAPITULO VIII O HOMEM E AS FORMAS DA SOCIABILIDADE ^^ por

Murray*

* As notas deste ensaio são propositadaraente breves e querem apenas remeter o íeitor para os textos mais autorizados c para as posições mais recentes sobre o assunto Para uma bibliografia mais pormenorizada dos temai tratados, remete-se para M. Detíenne e J -P Vemant (1979) de J Svenbro, in P Schmitt Pamd (1987) eO Murray (1989 a).

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o homem é um animal social O homem grego é uma criatura da polis: é este o sentido da famosa definição do homem dada por Aristóteles. De facto, o homèm aristotélico é «naturalmente político» (Política, 1, 1253a). Contudo, a definição de Aristóteles era formulada no contexto de uma teoria ético-biológica, segundo a qual, para se ser plenamente humano, era preciso exercer plenamente todas as potencialidades inerentes à natureza humana, e em que uma hierarquia moral privilegiava o pensamento em detrimento das emoções. Portanto, a sua ideia da polis como a-iforma de organização social que permite que o homem concretize melhor as suas potencialidades, subordinava as exigências religiosas, familiares e emotivas ao lugar que ocupavam na ordem política em que se inseriam., A história dos estudos da organização social grega é toda uma luta, mais ou menos consciente, para escapar a essa visão arisíotélica da sociedade grega e subsíituí-Ia por uma imagem que redimensione a importância desse fenómeno único na história que é a polis e tenda a «despolitizar» o homem grego, para ver qual a relação que existe entre as formas de organização social dos Gregos e as de outras sociedades do mundo antigo, Em síntese, é a história dos estudos sobre a cidade grega, desde Fustel de Coulanges (1864) até aos nossos dias A relação que se estabelece entre o homem e a sociedade é sempre dinâmica: cada época específica do homem tem um passado e um futuro, e não há um homem grego, mas uma sucessão de homens gregos, como nos explica Burckhardt no quarto volume da sua História da Cultura Grega Seguindo o seu exemplo, distinguirei quatro tipos ideais, ou quatro épocas do homem grego: o homem da época heróica, o homem agom'stico, o político e o cosmopolita. É evidente que estas grosseiras classificações cronológicas não têm uma validade absoluta, mas são necessárias para se compreen­ der, através de uma análise diacrónica, as relações síncrónicas que estão na base das

' Fuslc! de Coulanges, 1864, - BurckliardL 1898-1902; na minha opinião, os impimames parágrafos do Capímlo 9 — volu­ me rv são o melhor untado da sociabilidade grega (festas religiosas c tipos de comcnsalidade} Acerca do simpósio, veja-se também Von der Mühl!, 1957

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várias fornias de sociabilidade Descrever as evoluções sociais através dos séculos é falsificar a história da cultura, privilegiando a causalidade em detrimento da ftinção, e enfatizar a continuidade é ignorar as transformações fündamenüus que ocorrem por detrás do ecrã da linguagem e das instituições. Formas sociais e comensalidade

O fenómeno da sociabilidade pode ser estudado sob uma variedade de pontos de vista, mas talvez seja útil começar por apresentá-lo na sua relação com a economia. Por detrás da fachada das formas sociais existem as relações económicas, expressas pela diferente distribuição dos bens. Para uma análise marxista, a estrutura social e as relações sociais são uma consequência da luta por uma partilha desigual de bens limitados. Posteriormente, alguns estudiosos realçaram a abundância dos recursos naturais nas sociedades primitivas e a consequente importância de actividades sociais como os presentes, a festa, o luxo, a exibição da riqueza perante os homens e os deuses^ Em ambos os casos, o excedente, grande ou pequeno, é consumido para criar uma estrutura social, que depois apota as actividades culturais, políticas e religiosas da comunidade: são as formas da redistribuição do excedente, eféctuada com alardes de generosidade ou de poder, que estruturam a sociedade. Dada a primazia da terra e dos seus produtos no mundo anügo, o excedente agrícola é o mais geraímente usado para estruturar a sociedade e a sua cultura,. A redistribuição desse excedente, efectuada durante as festas religiosas, cria, graças ao seu ritual preciso, um modelo de sociabilidade que vai servir depois para as outras relações sociais. Certos produtos em especial, por serem bastante raros, tomam-se símbolos de estatutos privilegiados; o banquete é ritualizado e serve para definir a comunidade como um todo. ou uma classe dentro dessa comunidade. Na Grécia, os produtos mais carregados de significado são a carne e o vinho, reserva­ dos para ocasiões especiais e consumidos em rituais especiais. A carne é um alimento sagrado, reservado aos deuses e aos heróis do passado. É consumida sobretudo durante cerimónias religiosas ligadas ao sacrifício em que a oíérenda é queimada: os deuses recebem o perfume das vísceras, enquanto os homens festejam juntos, comendo o animal que acaba de ser morto e cuja carne foi cozida para ficar tenra. Essas cerimónias não são acontecimentos raros; trata-se de ocorrências normais, estruturadas de acordo com um complexo calendário de festividades. Ser­ vem para exprimir o sentido de comunidade do grupo que está ligado por uma expe­ riência de prazere de festa, que inclui os homens e os deuses. A adoração dos deuses é um momento de alegria e de repouso do trabalho que normalmente envolve toda a comunidade ou uma das suas partes (como os adolescentes ou as mulheres) e que, por vezes, chega mesmo a permitir a participação dos estrangeiras e dos escravos O álcool é sobretudo uma droga social, cujo ritual está associado ao reforço dos laços de um grupo fechado ou ao alívio catártico de tensões sociais numa espécie de

^ Veja-se, porexempio, Engels, 189!; Veblen, Í899; Sahlins, 1972 ^ Detienne e Vemant, 1979

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camavaí da permissividade. O poder do vinho e a necessidade de exercer um controlo social sobre o seu uso são bem explícitos na cultura grega,. Os bárbaros entregam-se a um consumo de álcool desordenado e excessivo; o homem grego, pelo contrário, caracteriza-se precisamente pelo consumo ritualizado do vinho que só é bebido diluído em água e num contexto social específico. Por motivos que ilustraremos a seguir, o vinho torna-se um veiculo para a criação de pequenos gmpos especializados, com funções bélicas, políticas ou hedonistas. O uso do vinho como instrumento de libertação é menos comum, mas repete-se certamente em vários rituais ligados a Dioniso As mulheres, excluídas do consumo do vinho em contextos sociais e por isso descritas como dedicando-se a beber secretameníe e de uma forma não estruturada, adoravam Dioniso em rituais onde todas as regras eram postas de parte: a vítima do sacrifício não era morta com uma faca mas despedaça­ da, era devorada crua em vez de assada ou cozida, e o vinho, puro, era consumido desordenadamente. Todavia, isso não era uma expressão de sociabilidade, mas uma libertação das tensões criadas pelos próprios rituais sociais, Do estudo da cultura grega pode facilmente deduzir-se a importância da comensaiidade e dos rituais ligados à comida e à bebida A partir de Homero, a poesia grega fez sempre parte integrante do banquete, sobretudo da sua forma arcaica, o symposion. Quanto ao acompanhamento musical, ao metro e ao tema, a poesia grega antiga deve ser analisada em função do seu local de representação que, para a lírica coral, dançada e cantada por grupos de donzelas ou jovens, é a festa religiosa, e, para a elegia e a lírica monódica, é o círculo aristocrata, A arte grega da cerâmica e da pintura de vasos serviam sobretudo para satisfazer as exigências desses grupos; as formas e a decoração reflectem os mesmos interesses sociais expressos pela poesia arcaica. O ordenamento da comensalidade pública e privada nos períodos arcaico e clássico, com o seu corpits de regras e privilégios escritos em forma de íeis ou decretos revela a importância da comensalidade nas actividades dessas associa­ ções. Mais tarde, a evolução de uma literatura filosófica da comensalidade no mundo clássico e pós-clássico criou uma visão idealizada de uma instituição social, talvez já não tão centra] como tínha sido no passado, mas que continuava a ser suficientemente típica da cultura grega para atrair o interesse de escritores de coisas antigas dos períodos helenístico e romano. Os Deipnosofistas de Ateneu, verdadeira enciclopédia da comensalidade grega de finais do século li a C., reproduzem o seu próprio tema estruturando-o como uma conversa num deipnon, em que os conteúdos estão ordenados de acordo com as actividades dos convidados imaginários^. O homem da época heróica

Nos Poemas Homéricos, o mundo está estruturado em tomo dos ritos da comensaiidade As características essenciais da casa de um basUèiis heróico são o mègaron, ou sala dos banquetes, e o armazém, onde se conserva o excedente da produ-

’ Acerca da histdría dos estudos sobre a comensalidade grega, veja-se a introdução a Murray, 1989a 203

ção, para o uîiüzar nas fesias ou para o oferecer a hóspedes da mesma classe social, Odisseu disfarçado diz que reconhece a sua casa pelo uso que se faz desse excedente em acüvidades sociais ligadas à comensalidade: «Vejo lá dentro muitos homens banqueteando-se: há um cheiro a gordura, e ressoa; e ouço o som da citara, que os deuses fizeram companheira dos festins» (Odisséia, 17, 269-71). O basilèm distraí os membros da sua classe com «banquetes de honra» e assim conquista autoridade e prestígio num mundo onde se luta pela honra, O grupo assim individualizado é um grupo de guerreiros, cujo estatuto se exprime e cuja coesão se mantém através do banquete, Num certo sentido, o banquete continua a ser um rito social, ligado aos processos de auto-identificação e de formação de um grupo por parte de uma elite aristocrática; todavia, essa elite é também a classe dos guerreiros, cuja função é proteger a sociedade. As mentiras de Odisseu, tal como as metáforas homéricas, talvez sejam mais verdadeiras do que a narrativa em que estão inseridas, já que (enquanto escrita de segundo grau) querem recordar ao público a sua própria experiência, A relação recíproca entre o banquete e a actividade militar, quer pública quer privada, é bem descrita no relato que Odisseu faz da sua vida de filho ilegítimo de um nobre cr^tense, que, depois ter sido excluído da herança, consegue conquistar um lugar na aristocracia graças ao seu valor de gueneiro profissional: enriquecera com os despojos trazidos das expedições ultramarinas. Tratava-se de empresas privadas, mas, quando eclodiu a Guerra de Tróia, foi o próprio povo quem o aclamou e o quis para chefe, «e não houve meio de recusar-se porque a voz do povo me pressionava». Depois da guerra, voltou às suas empresas privadas: «Aparelliei nove naus, e a equipagem depressa se reuniu, Durante seis dias os meus fiéis companheiros banquetearam-se; eu fomecÍ-!hes muitas vítimas para sacrificarem aos deuses e prepa­ rarem os seus festins» (Odisséia, 14, 248-51). Nestas descrições são apresentados dois tipos de empresa: a razia privada de uma elite guerreira, formada por chefes aristocratas e «companheiros» da mesma classe cujos laços de lealdade se criam no decurso de competições e de festins em comum; e o direito do «povo» de reclamar o comando da classe dos guerreiros em caso de guerra. A expedição a Tróia é do segundo tipo e prevê banquetes a cargo da comunidade para os participantes e multas para os que se recusem a partir, No interior da comunidade, o estatuto é definido pela comida; no famoso discurso de Sarpédon a Glauco, ele afirma que os dois campeões, honrados «na Lícia com os assentos de honra e com jarros cheios» e habitando num (èmenos, têm o dever de combater pela sua comunidade; então a gente dirá: «Os nossos nobres que detêm o poder na Lícia são grandes homens, comem gordas ovelhas e bebem o melhor vinho, doce como m el Mas são homens fortes porque combatem entre os mais bravos dos Lícios» (llidda, 12, 310-28)*^ A Ilíada centra-se na cólera de Aquiles, que se exprime pelo seu isolamento e pela sua recusa em participar nos rituais da comensalidade; na Odisséia, comparam-

^ Acerca do banquete homírico e da sua função social, veja-sc Finslcr, 1906, Jeanmaíre, 1939, Capítulo í, e Murray, 1983 204

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-se dois modelos de comensalidade: o do mundo ideal dos Peaces e o dos pretenden­ tes de ítaca, onde a decadência dos valores sociais se manifesta precisamente pelo transgressão das normas de comensalidade que comportam a reciprocidade e a competição: «saí de minha casa, preparai outros banquetes comendo os vossos bens, indo de uma casa para outra» diz Teiémaco aos pretendentes (2, 139-40), culpados por terem usurpado as prerrogativas de uma classe de guerreiros na ausência do chefe militar, A complexa relação desta representação poética com uma qualquer realidade histórica não deve interessar-nos. Os Poemas Homéricos dão-nos uma imagem de uma sociedade passada que reforça uma imagem mental «contemporânea» e, ao mesmo tempo, influencia a evolução futura da comensalidade grega E certo, porém, que essa imagem tem todas as probabilidades de ser uma imagem parcial, ignorando as formas de sociabilidade do povo, nomeadamente as que se referem às festividades religiosas. Apesar disso, as características dessa imagem mental são importantes para o desenvolvimento da sociabilidade grega, O banquete homérico (deipnon ou dais) é antecedido de um sacrifício em que as vítimas animais são mortas como se fossem oferecidas a certas divindades, muitas vezes em ocasiões especiais de culto festivo ou de grande significado familiar A carne é grelhada em espetos e o banquete decorre numa sala (mègaron) onde os convidados do sexo masculino estão dispos­ tos em filas ao longo das paredes, com pequenas mesas diante deles, dois por mesa; ocasional mente são mencionados assentos e porções especiais, mas em gerai o que se acentua é a igualdade O hóspede não convidado, quer seja um aristocrata de igual nível ou um mendigo, também recebe a sua parte, O vinho é misturado com água e servido da cratera. O poeta apresenta uma imagem de felicidade humana expressa num ritual de sociabilidade; no centro desse ritual, situa-se a si mesmo: «Porque penso que não há prazer mais belo / do que quando a euplirosyne invade toda a gente, / os convidados ouvem o cantor na sala, / sentados por ordem, as mesas a seu lado estão cheias / de pão e de carnes, o copeiro tira vinho da cratera, / leva-o e deita-o nos copos: / con­ fesso que é a coisa mais bela que conheço» (Odisséia, 9, 5-11). Trata-se de uma imagem que pretende ser simultaneamente descrição e representação do banquete, porque o bardo homérico é o próprio cantor que tange a lira e que, do interior da narração, representa a própria narração. Pode ser-nos difícil ter a noção de uma performance de poesia épica no interior do banquete, mas é claro que Homero quer fazer-nos acreditar que a sua poêsia é o acompanhamento da eiiphrasyne, Se a lUada exprime a função social «externa» do banquete guerreiro na organi­ zação da actividade militar, a Odisséia é uma poesia épica «interna», construída como entretenimento para o banquete. Cada episódio das viagens de Teiémaco é assinalado pela experiência da comensalidade: toda a acção converge para o ban­ quete ou se afasta dele. A nanativa central das viagens de Odisseu é apresentada como uma representação durante o banquete, que compreende diversas e até opos­ tas formas de comensalidade, entre os Loíófagos, entre os Ciclopes, Junto de Circe e no mundo dos mortos- Em ítaca, a refeição simples do porqueiro contrasta com o banquete imundo dos pretendentes que saqueiam a casa do herói ausente. A acção 205

final desta poesia épica da comensalidade centra-se no massacre dos pretendentes enquanto se banqueteiam, Ao cantar durante o banquete, o poeta evoca o horror imaginário de um outro banquete e os ouvintes identificam-se com ele: é sobre a sua sala que a noite cai, é da sua carne que goteja sangue, enquanto crescem os uivos e os lamentos e o sangue salpica as paredes e as traves do tecto {Odisseia, 20, 345 segs ), A Odisseia cria com o seu próprio lugar de representação uma estrutura narra­ tiva, envolve o seu público na própria acção épica: é uma representação poética que se destina ao banquete e que do banquete extrai a sua matéria nanaíiva. Por isso o público participa no interior da narração: tanto o poeta como o seu público fazem parte de um duplo acontecimento, narrado e vivido A função desta poesia no mundo da comensalidade é exprimir, por intermédio dos participantes, o significado do ritual social em que estão empenhados. Assim, 0 banquete dos heróis apresenta já muitas das características principais de que virão a revestir-se os rituais gregos da comensalidade. Por um lado, está ligado extemamente à função social da guerra, por outro lado, a nivel «interno», está profundameníe ligado ao prazer {etiphrosyne). No contexto da poesia heróica, o tema do banquete possuí uma forma narrativo-dialógica adequada à representação rio"âmbito convivia! e capaz de se refíectir nas actividades do banquete. Todavia, a imagem apresentada ainda só está parcialmente ligada às necessidades da comuni­ dade e muitas das características específicas dos posteriores rituais gregos de socialização estão ainda ausentes.

O homem arcaico

Há dois elementos que são convencionalmente considerados como traços distin­ tivos da comensalidade grega no período histórico: o facto de os convivas comerem reclinados e não sentados e a separação entre as actividades ligadas à comida e à bebida. Ambos os elementos fazem parte de um mais amplo desenvolvimento da comensalidade grega do inicio da época arcaica. O costume de os convivas comerem reclinados é confirmado pela primeira vez pelo profeta Amos como comportamento dos habitantes de Samaria, no século vm (Amos, 6, 3-7); trata-se provavelmente de um costume que os Gregos foram buscar à cultura fénicia. O primeiro testemunho grego explicito desse costume remonta aos finais do século vn, na arte corintia e na poesia de Álcman, mas pode demonstrar-se que já existia desde o século anteriorT rata-se de uma mudança fundamentai da comensalidade grega, porque condiciona a própria organização do grupo. De facto, os convidados reclinados, individualmente ou aos pares, em leitos dispostos ao longo das paredes da sala, obrigavam a uma organização do espaço do banquete que

’ Acerca das origens, vcja-se J M Dcntóer, que faz remontar ao século va a introdução deste costume na Grécia (mas eu proporei o século vni como data dessa introdução, num próximo artigo sobre a taça de Nestor) 206

determinava as dimensões do grupo'’. O mèf>aron transformou-se no andròn, uma sala propositadamente desenhada para conter um número fixo de leitos. Além disso, as dimensões do grupo eram limitadas também pela possibilidade de comunicar de um lado para o outro da sala: a medida tipo albergava 7, II ou 15 leitos, pelo que o número dos convivas oscilava normalmente entre 14 e 30 homens. Este tipo de organização do espaço insere-se cíaramente na evolução da arquitectura civil e religiosa da época clássica e na das necrópoles etruscas, que são um dos melhores indicadores arqueológicos da influência grega sobre as formas de comensalidade de outras culturas antigas, Mas a sua principal importância reside no facto de ter feito parte de uma evolução mais vasta que levaria à formação de pequenos grupos e à elaboração de rituais especializados. Um desses rituais diz respeito à separação da comida e das bebidas A comensa­ lidade grega do período histórico está dividida entre o deipnon, onde são consumi­ dos alimentos e bebidas, e o posterior symposion, onde o elemento mais importante é o vinho, bebido acompanhado de simples fogaças. 0 deipnon do período pré-helenístico tem sido pouco estudado, mas parece que seria muito simples e despro­ vido de qualquer carácter ritual, salvo em cerimônias religiosas especiais que previam algumas interdições. A elaboração do discurso e dos rituais sociais é característica do symposion . Em tomo do symposion desenvolve-se também uma complexa decoração. O pró­ prio andròn podia estar provido de fechaduras, pavimento revestido e sistema de drenagem, os Jeitos e as mesinhas laterais eram muitas vezes de boa confecção e tinham decorações embutidas; havia também elegantes almofadas e tapeçarias. Uma grande parte das formas da cerâmica fina, arcaica e clássica antiga, é ideali­ zada de propósito para o symposion: a cratera para misturar a água e o vinho, o psykièr para refrescar a mistura, coadores e jarros para o servir e uma enorme variedade de taças para o beber, de formas e nomes diferentes, cada qual com uma função especial. As imagens que ornam a louça reproduzem as idéias e as activida­ des da classe social que participava no symposion São frequentes as cenas eróticas, as cenas de guerra e as cenas extraídas do repertório poético, bem como as imagens extraídas da vida aristocrática: o desporto, a caça e a corte homossexual,. Pelo contrário, são raras as cenas de trabalho, as que reproduzem as actividades femini­ nas e as de tema religioso Um destaque especial é dado, naturaimente, à representa­ ção dos vários momentos do symposion dos deuses, dos heróis e dos contemporâ­ neos: a iconografia reflecte quase todo o espectro das actividades ligadas ao symposion, desde as cenas mais decorosas até às cenas eróticas e de embriagues violenta Este comentário metassimpótico do symposion reflecte, através da ima­ gem, o fenômeno de auto-reférência que já encontrámos na produção poética que gira em tomo desse tema; a iconografia que daí resultou é complexa e sofisticada’ . A poesia com acompanhamento musical continuava a ser um elemento central do symposion. Desenvolveram-se duas formas principais, que correspondiam mais

“ Acerca do conceito de espaço do banquete., vcja-se Bregquist, 1989 ®Lissarrague, 1987 207

ou nienos aos dois tipos de instrumento musical utilizados no acompanhamento^ A flauta dupla {aulòs) era o instrumento do campo de batalha e também da poesia elegíaca; entre os instrumentos de corda, a kithara homérica cedeu o lugar ao bàrbiíotu com um som mais grave; segundo a tradição, íeria sido inventado por Terpandro, era o instrumento preferido para o canto da poesia lírica e é o sinal distintivo dos poetas especializados no symposion, como Anacreonte. As formas poéticas reflectiam a competição espontânea e a criação por parte de poetas amado­ res: o dístico elegíaco é paiticularmente adequado à circularidade da improvisação: um tema escolhido era glosado por todos os convidados, um de cada vez; o skòlion é uma das suas elaborações mais formais. Pequenos poemas líricos com versos e métrica repetitivos, acompanhados por melodias simples, apontam para um tipo análogo de representação- Os primeiro poetas líricos, como Arquíloco, Alceu e Safo, compunham e cantavam as suas próprias poesias, e a elegia parece ter-se mantido sempre na esfera da improvisação. É por isso que aí se repetem as emo­ ções, as experiências pessoais narradas in propria persona e a exortação directa ao publico; por vezes, o poeta utiliza a primeira e a segunda pessoas No século vi, surgiu uma classe de poetas profissionais, como Mimnermo e Anacreonte, que tomaram a dicção poética mais sofisticada e subtil, servindo-se das mesmas técnicas mas omitindo a referência ã experiência pessoal do poeta Os temas desta poesia refíectem os interesses do grupo social e o seu estilo de vida aristocrático. Como já vimos quanto à iconografia da cerâmica, dizem respeito aos feitos heróicos, à guerra e ao amor homossexual São frequentes os hinos, quer sérios quer divertidos, dedicados aos deuses que presidem ao symposion, mas voltamos a não encontrar referências aos rituais religiosos da época, A família e a cidadã estão ausentes: exprime-se abertamente o desejo sexual mas apenas em relação às escravas ou às prostitutas, A polêmica política e o incitamento à acção política vão desde a defesa da pátria ao apelo à guerra civil Essas temáticas baseiam-se na formação de uma éüca de grupo, num mundo onde os participantes estão ligados por laços de lealdade (pistis) e por valores comuns A actividade do banquete tem consciência dos seus valores e das suas funções e começa a surgir um vocabulário específico, simbolizado pela própria palavra sym~posion.. Essa linguagem tem a sua expressão plena na poesia de Alceu, composta para ser cantada durante as reuniões de grupos de companheiros (heíairoi) da aristocracia de Mitilene, no ano 600 a C O contexto continua a ser em grande parte homérico, a grande casa resplandece de armaduras de bronze, mas a ênfase dada ao «vinho, mulheres e canto» (aqui associados pela primeira vez) revela um novo tipo de euphrosyne, A função do grupo já não é a da guerra contra o inimigo externo num sólido contexto social, mas a da unidade, no interior da polis, em defesa dos privilégios de classe: a guerra que se anuncia é uma guerra civil, apela-se para a unidade do grupo na sua acção contra o tirano, Alceu não quer convencer um vasto público, a sua mensagem destína-se àqueles que já fazem parte do grupo, que partilham os seus valores e os seus objectives.. Tudo isso é

Reitzenstein, 1983; Gentiií, 1984

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caracterisUco dos primórdios da polis e demonstra a fiisão total entre as formas de sociabilidade e a acção política no interior do grupo aristocrático, A liderança da comunidade pertence de direito a Alceu e aos seus companheiros aristocratas, mas foi-lhes arrancada das mãos e tem de ser reconquistada com a guerra civil e mesmo com a ajuda do ouro dos bárbaros- Essa estreita ligação entre política e comensalidade centra-se na concepção aristocrática do symposion como organização ex­ clusiva destinada a manter a hegemonia de uma classe social no mundo mais vasto da polis No século VII e no século vi, esse mundo aristocrático foi ameaçado pelo advento de novas formas políticas, econômicas e militares. A comensalidade ar­ caica correspondia ao declínio da aristocracia e à crescente importância da polis pelo menos em dois aspectos, enfatizando os dois caracteres opostos da comensaJidade grega. A comensalidade militar de tipo homérico podia adequar-se às instituições comunitárias masculinas, como as que existiam na sociedade cretense tradicional, onde os elementos de continuidade e de adaptação são extremamente evidentes, A comunidade masculina estava organizada em grupos, cada qual com a sua «casa dos homens» (andreion), onde os homens se reuniam para comer; a comida era fornecida pela cidade e provinha das terras comunitárias ou dos contributos indivi­ duais A continuidade destes costumes é demonstrada pelo facto de se ter mantido o hábito de os convivas comerem sentados em vez de reclinados; a sua importância na definição da. comunidade é revelada pela cuidada separação dos visitantes, para quem estava reservada uma «mesa para os estrangeiros», dedicada a Zeus Xenios, Depois da refeição, discutia-se assuntos de interesse público e «narrava-se os feitos bélicos, elogiava-se os homens corajosos, que eram considerados como exemplos de coragem para os mais jovens» A pederastia era ritualizada e tinha o caracter de um rito de iniciação O amante oferecia ao amado os três presentes que simboliza­ vam a virilidade: uma veste, um boi e uma taça, símbolos da sua entrada na comunidade dos adultos Provavelmente, a primeira função social da elegia foi reforçar os valores guer­ reiros mais pela exortação do que pelo processo indirecto da descrição utilizada nos poemas épicos. Essa mudança indicia já uma tensão e uma tentativa para reforçar os valores e os comportamentos tradicionais, fenômeno típico de uma sociedade em transição: «Por quanto tempo ainda permanecereis molemeníe deitados? Quando reconquistareis a vossa forte coragem / ó jovens? Não vos envergonhais de ceder as terras de fronleíra / tão facilmente?», diz Calino de Éfeso. A elegia guerreira recria a imagem heróica num campo militar mais vasto, agora ao serviço da polis.. O exemplo mais completo dessa «institucionalização do banquete» é o de Esparta no período arcaico, mais ou menos a par da sua adopção da nova técnica militar de massas, a dos hoplitas, A comensalidade espartana pode ter derivado de práticas dóricas do tipo das que existiam em Creta, mas fora toíalmente transfor-

" Rosier. 1980 Ateneu, 4, 143; 11,782; Jeanmatre, 1939, Cap VI

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mada nas institníções sociais e militares criadas por Licurgo, Os jovens cidadãos do sexo masculino, depois de terem passado pelo rigoroso sistema baseado em classes etárias, coniieddo por agogè, eram eleitos para um sysshioth um grupo de guerrei­ ros reunido em tomo da prática diária do banquete comum, que decorria no phidition. Cada participante devia fornecer uma certa quantidade fixa de comida e de vinho provenientes das suas tenas; a impossibilidade de o fazer implicava a perda do direito de pertencer ao grupo e por isso também a perda dos plenos direitos de cidadania, A relação entre comensalidade e organização militar é descrita por Heródoto: Licurgo tinha criado as leis de Esparta «e depois delas, as suas institui­ ções militares, os grupos ajuramentados [eiwmotiai], os grupos dos trinta {tríekades] e os grupos de comensais [ryrriria]» (Heródoto, 1, 65). Foi justameníe com esse tipo de agrupamentos baseados nos números 15 e 30, que o exército espartano combateu durante todo o período arcaico e clássico. Esses números refleclem a organização arcaica do espaço do symposion, ba­ seada em 7 ou 15 leitos: o primeiro testemunho literário explícito do symposion em Álcman refere-se a um contexto espartano e confirma a disposição em 7 leitos. A refeição espartana obedece à clássica divisão grega em duas paites, que em Esjparta se designavam por aikion e epaiklon. Ambas prevêm ofertas obrigatórias e por isso são elementos rituais originários. Todavia, segundo o sistema de valores espartano, o aikion tinha a função simbólica de dar continuidade às formas mais antigas e de reconfirmar a igualdade e a austeridade de sempre Os alimentos eram sempre os mesmos: fogaça de cevada, porco cozido e o famoso caldo negro de Esparta. Pelo contrário, o epaiklon, através de um leque de possíveis contributos, realçava as diferenças patrimoniais, de estatuto e de coragem militar; por isso, acabou por se converter num tipo mais elaborado de symposion, que previa uma série de alimentos adicionais, sobretudo carne não sacrifica! proveniente da caça. Apesar de Atenas, no século iv, ter tentado propor como exemplo uma presumível abstinência de vinho por parte dos Espartanos ou pelo menos a sua moderação na bebida, o vinho desempenhava um papel de primordial importância no ritual Este modelo de comensalidade está estreiíamente ligado à criação da polis dos hoplitas como uma «corporação de guerreiros» (Max Weber), o que se afasta do modelo homérico, pela universalização das prerrogativas aristocráticas, e do mo­ delo dórico, por ter isolado e privilegiado a função militar. Por isso, não surpreende que o poeta espartano Tirteu tenha sido um dos imitadores mais próximos do modelo homérico, mas também aquele que mais aperfeiçoou o gênero da elegia militar A evolução da comensalidade grega sublinha o seu aspecto intrínseco de encar­ nação do princípio do prazer. Por isso, poderia servir para fomentar o refúgio de uma aristocracia marginalizada no específico mundo privado da euphrosyne.. Os símbolos de uma ciasse privilegiada e abastada assumiram uma importância sempre crescente no periodo arcaico: como a guerra e o poder político tinham perdido o seu

Ateneu, 4, 138-142; Bíelschowsky, 1869; Niisson, 1912 Bowie, 1989

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carácter de direitos exclusivos, criou-se o desporto e o symposion para os substituir. Isso é particularmeníe evidente no mundo das colónias da Grécia ocidental, onde a nova aristocracia dos primeiros colonizadores tentou adquirir um estatuto no de­ curso do século VII: nesse contexto, o costume do symposion desenvolveu-se ampla­ mente, tendo sido depois aceite pelos grupos emergentes, os Etruscos e os Itálicos, como símbolo imprescindível da vida aristocrática O prazer provinlia sobretudo da elaboração dos rituais, do aumento do luxo e das comodidades, do cada vez maior requinte dos entretenimentos, poéticos e de outro tipo, e da libertação da sexualidade em relação aos constrangimentos sociais , Por outro lado, porém, o consumo do vinho e da comida não parece ter-se transformado de uma forma significativa: contrariamente ao que acontecera no império persa, as formas da comensalidade grega mantiveram-se simples e a tryphè era expressa mais pela elegância e pelo requinte do que pelo consumo excessivo de alimentos ou vinhos exóticos. Referimo-nos já à poesia e aos rituais do symposion', resta-nos agora tiatar do tema do entretenimento não poético. De uma maneira geral, o entretenimento durante o symposion era o trivial, envolvendo profissionais como tocadores de flauta, bailarinas, acrobatas, mimos e comediantes. Na época clássica já existiam empresários responsáveis por grupos de artistas e os jovens e atraentes escravos de ambos os sexos podiam especializar-se nas artes do symposion . A figura do bobo ou àkleíos, o hóspede não convidado que ganha a vida entretgndo os convivas, aparece sempre na literatura do symposion Há um certo número de jogos específicos, conhecidos desde o período arcaico: o ‘mais famoso de todos é o kòttabos, que consistia em atirar a um alvo a borra do vinho que ficava nas taças e que era considerado como uma invenção sicíliana. Brindava-se muito em honra de um convidado, e é a esse costume que se deve a frequência da inscrição do nome de um homem nas taças, acompanhado pelo adjectivo kàlos. A pròposis, ou desafio, era um dos elementos do symposion mais tarde criticados pelos moralistas, que opunham a indulgência ateniense perante esses incentivos a um consumo excessivo de bebida à sua ausência em Esparta. O elemento competitivo é característico dessas activídades na época do homem agonístico, Foi no domínio da sexualidade que a comensalidade grega teve a sua influência mais forte. A homossexualidade era normal no mundo viril do grupo dos guerreiros e, em muitos casos, estava institucionalizada como fazendo parte dos ritos de iniciação dos jovens.. Há uma forte componente de idealização e de sublimação no laço criado através do ritual da corte entre o homem jovem, erasiès, e o adolescente, eròmenos, que podia (como acontecia em Creta) ser formalmente admitido no mundo adulto da comensalidade graças a uma relação desse género. Enquanto não atingiam plenamente a idade adulta e não adquiriam por consequência o estatuto militar, os jovens não podiam reclinai-se durante o symposion, sentando-se ao lado

Ampoio, I970-1971; D 'Agosüno, 1917, Ribbeck, 1883; Fehr, 1989; Pcilizer, 1989. 211

do pai ou do amante. Portanto, a expressão do amor homossexuaJ no contexto do symposion é muitas vezes idealizada e tem mais a ver com a perseguição e a competição do que com a conquista; assume sempre o aspecto de uma educação sentimental e está directamente associada a outras áreas da vida do jovem adulto, como, por exemplo, o mundo do desporto. Segundo a terminologia de Michel Foucauit, a pederastia é «problematizada», ou seja, colocada ao serviço das mais vastas necessidades da comunidade A livre sexualidade entra no symposion arcaico graças à presença de escravos, homens e mulheres, como criados ou artistas- O mito de Zeus e Ganimedes exprime bem a relação tradicional entre o convidado e o jovem que está junto da cratera e serve o vinho A existência de duas formas distintas de amor homossexual — o que tem por objecto um homem livre e o que tem por objecto um escravo — complica ainda mais a nossa compreensão desse fenómeno. O tipo de relação sexual que existia com os escravos poder-se-á compreender melhor se a compararmos com o que se passava com as mulheres. As mulheres livres, ou cidadãs, nunca estavam presentes nos symposia gregos; também não há confirmações da sua presença nos banquetes nupciais ou nos fúnebres, áreas a que as mulheres estão tradicional mente muito ligadaS- As reuniões femininas estavam sobretudo ligadas a festividades religiosas, de que os homens eram normalmente excluídos, ou à formação dos coros sagrados; o único caso em que é possível vislumbrar uma espécie de comunidade feminina, na poesia de Safo, é muito controverso e parece sugerir uma dependência das formas de comensalidade m a s c u lin a N o entanto, Afrodite e Dioniso são divindades associadas e normal­ mente invocadas na poesia recitada nos sy?nposia, desde o primeiro testemunho da «Taça de Nestor», do século vin, As mulheres presentes nessas ocasiões eram, na sua maioria, escravas, muitas delas preparadas para executarem a sua tarefa de animadoras, bailarinas, acrobatas e músicas; como os jovens que desempenhavam papéis idênticos, eram escolhidas pela beleza e pela idade e parece que actuavam quase nuas e que muitas vezes acabavam (como acontecia também com os jovens), deitadas nos leitos Todavia, ao contrário do que acontecia com os rapazes, as mulheres podiam adquirir um estatuto especial se se ligavam estavelmente a um ou mais homens: nesse caso, eram denominadas hetairai^ reiciència. irónica ao mas­ culino hetairoi, ou membros do grupo, As «heteras» possuíam grandes talentos artísticos e de entretenimento e muitas vezes pertenciam a dois ou mais homens São estas práticas sociais que conferem à poesia de amor da Grécia arcaica as suas caracteristicas particulares Por um lado, há a intensidade romântica do amor homossexual que é personalizado e na maioria dos casos inspirado por jovens membros da mesma classe social: esse amor é descrito como insatisfeito, mais ligado ao desejo de atingir um idea! puro de beleza do que à satisfação sexual, um

Foucauit, 1984 Caiama, 1977 O melhor relato cia vida cie uma hetera Hgura no discurso de Demóstcncs Comra Neera. 59; veja-se também Ateneu, iivro 13

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desejo que provoca as emoções profundas do amor e do ciúme,, Por outro lado, há a poesia de amor, livre de coacções sociais e despreocupada, inspirada pelas jovens escravas consideradas como objectos sexuais; um amor sem complicações, passa­ geiro e de fácil satisfação, um sentimento que, quando muito, pode provocar a melancolia pela juventude passada e pela ideia da morte. Assim, o mundo do symposion criava uma ordem à parte e estranha às regras da comunidade mais vasta, com os seus valores alternativos próprios. A libertação ritual das inibições pelo consumo de álcool exigia regras próprias destinadas a manter o equilíbrio entre a ordem e a desordem Costumava eleger-se um symposiarchos, ou basilèus, para controlar a mistura do vinho, os comportamentos obede­ ciam a normas precisas, os convidados cantavam ou falavam um de cada vez e cada cratera dc vinho misturado tinha um carácter diferente. Como afirma o poeta cômico Eubulo: «Só três crateras misturo para os avisados: uma para a saúde, que eles bebem em primeiro lugar; a segunda para o amor e o prazer; a terceira, para o sono; bebida esta, os convidados avisados vão para casa, A quarta já não nos pertence, pertence à insolência; a quinta, aos gritos; a sexta, à orgia; a sétima, aos olhos negros; a oitava, ao oficial da justiça; a nona, à bílis; a décima, h loucura e aos móveis atirados para a rua», (in Ateneu,

3,36)

O poeta arcaico é o legislador do symposion: por isso, muita da sua poesia é metassimpótica, ou seja, está ligada ao comportamento a ter ou a evitar durante o symposion^ cujos direitos e deveres prescreve. Em Álcman, a mera descrição de um symposion prescreve também a organização do ritual; do mesmo modo, Xenófanes descreve e advoga um modelo de ritual simpótico de onde sejam excluídos os poemas épicos e as discussões sobre a guerra civil, para dar lugar à exaltação da coragem,, No corpus poético de Teógnis há muitos excertos onde se descreve o comportamento correcto durante o symposion e as relações adequadas entre os participantes, cxaltando-se acima de tudo os laços de amor e de confiança mútua,. De facto, a poesia monódica grega é um produto do symposion e apresenta uma complexa série de referências às diversas formas da sociabilidade arcaica, A confiança e o juramento são momentos importantes da transição das actívídades internas do symposion para as actividades externas, O problema de saber quem é digno de confiança e das verdades reveladas durante a embriagues é um tema importante em Teógnis; os grupos de heteras de Alceu juraram fidelidade a uma empresa, A unidade do grupo é considerada como um imperativo mora! absoluto; no século V, trair a confiança é mesmo considerado, segundo Andócides, um parricídio Um dos processos para reforçar esses laços é a execução de actos anti-sociaís ou mesmo criminosos, para se criar uma pisüs, uma garantia de cumplici­ dade Essas atitudes reflecíem as tensões existentes entre o grupo e o resto da sociedade

^ Andócides. I, 51; 2,7; 35 c segs

21,3

Com efeito, o comportamento irregular no interior do grupo prepara para a exibição de embriagues importuna que atinge toda a comunidade durante o ritual do komos. No final do symposion, os convidados, ornados de grinaldas, andam muitas vezes embriagados pelas mas, dançando seminus e agredindo de propósito os transeuntes com insultos, actos de violência e de vandalismo, numa demonstração do seu poder social e do seu desprezo pela comunidade Essas atitudes podiam levar à formulação de leis repressivas por parte da polis arcaica. Em Mitilene, por exemplo, o legislador decretou duplas sanções para as transgressões da lei perpretadas em estado de embriaguês; em Atenas, Sólon criti­ cou 0 comportamento dos ricos e instituiu no código da hybris um delito público referente aos actos destinados a desonrar a vítima. Essas normas remetem para os direitos das mulheres e mesmo dos escravos, e parecem reflectir o mundo do symposion Noutras cidades foram criadas leis que regulamentavam a idade em que era permitido beber E evidente que os deuses também desempenhavam um papel nesses ritos aristo­ cráticos da sociabilidade, Isso podia ocorrer por ocasião de um acontecimento religioso, dado que o deipnon é muitas vezes precedido de um sacrifício e termina cjom uma Hbação, com vinho puro, em honra de Agathòs Daimon O próprio symposion começa com a distribuição de coroas aos convidados, libações a Zeus Olímpio, aos Heróis e a Zeus Soíer e com uma peã cantada em honra de todos os deuses. Durante o banquete, os deuses mais invocados eram Díoniso e Afrodite; no fim, fazia-se uma iibação a Zeus Teleios, Todavia, apesar desta presença ritual, as divindades permaneciam em segundo plano, já que se tratava de uma ocasião essencialmente profana tanto pela sua função como pela sua linguagem. O banquete religioso propriamente dito decorre num contexto diferente-^. A comensalidade religiosa envolve toda a comunidade; as festas dizem respei­ to aos deuses enquanto protectores e garantes da comunidade e ao calendário das estações de que a comunidade depende. A comensalidade, no âmbito religioso, é uma acüvidade pública e a sua organização corresponde à da sociedade; os sacerdotes recebem porções especiais devido à sua função, mas os membros da comunidade são considerados iguais. Por conseguinte, o seu fulcro é cada vez mais a polis.. Todos os ritos da comensalidade religiosa estão cuidadosameníe diferenciados para corresponderem ao significado do culto, como provam dois exemplos esparta­ nos. Durante a mais importante festa religiosa dórica, as Cameias de Esparta, construíam-se nove «refúgios» ou cabanas, onde nove homens se banqueteavam, divididos em três «confrarias» representadas em cada cabana; esta disposição reflecte a organização social originária em três tribos e nas respectivas fratrias, Trata-se de uma repetição simbólica da forma de comensalidade espartana num período

Lissarrague, 1989 ^ Murray., 1989 Acerca do ^mposion, veja-se Nilsson, 1932; acerca da festa religiosa.. Gemet.. 1928; Gold­ stein, 1978 214

anterior à polis, que evoca a fundação da comunidade.. Além disso, certas festas religiosas que decorriam no antigo centro pré-espartano de Amiclas e noutros locais incluíam uma refeição especial para os estrangeiros denominada kopis. Ao lado do templo de Apoio construíam-se cabanas com leitos feitos de ramos de árvores onde os estrangeiros podiam recIinar-se; depois, todos os convidados, espartanos ou estrangeiros, comiam carne de cabra, fogaças e outros alimentos simples O exclusi­ vismo dos rituais cívicos de Esparta atenua-se num contexto religioso especial Poder-se-ia referir outras tantas variantes do fenómeno da comensalidade religiosa existentes noutras cidades; a referência aos rituais primitivos, reais ou imaginários, e o problema da hospitalidade para com os estrangeiros são temas recorrentes; alguns rituais desenrolam-se fora da cidade, num santuário vizinho; os que se desenrolam na cidade podem dividir-se em duas categorias: aqueles em que a carne do sacrifício é consumida no recinto do templo e aqueles em que é consumida noutro local Todavia, não há uma separação nítida entre o symposion aristocrático e as festas públicas. Os tiranos do periodo arcaico íentaiam nomeadamente acentuai o carácter luxuoso e exibicionisía do seu estilo de vida simpótico e incrementar novas formas de festejos públicos baseadas na sua concepção «heróica» de vída. Assim, Clístenes de Sícion criou uma mistura especial de symposion e de dgon aristocrático, com jogos e banquetes públicos, durante um concurso pela mão de sua fiUia, que só acabou passado um ano, com o sacrifício de cem bois e um banquete para os pretendentes^ e para todos os cidadãos de Sícion (Heródoto, 6, 126 segs ) O ban­ quete para os pretendentes assumiu a forma de um sumptuoso symposion Este tipo de mistura parece ter sido muito comum no tempo de Píndaro, que compunha as suas odes de exaltação da vitória dos atletas aristocratas em ocasiões que pareciam ser um misto de festividades públicas e festas privadas ^ Mesmo aqueles que desejavam proclamar a sua rejeição do mundo normal da polis faziam-no constituindo grupos que se definiam através de diversos rituais de comensalidade Assim, os Pitagóricos, no princípio do século V, criaram um modo de vida baseado na separação da comunidade através de complexas proibições alimentares e de uma vida era comum que começava pela obediência ã regra dos cinco anos de silêncio: a sua paradoxal ideia de pureza ritual «pode ser interpretada como um movimento de protesto contra o establishement da polis.. Os seus tabus alimentares põem em causa a mais elementar forma de comunidade, a da mesa; rejeitam o ritual central da religião tiadicional, a refeição sacrificial» Todavia, os seus ritos, que decorriam em locais propositadamente destinados para esse efeito, não são mais do que uma inversão das formas de comensalidade universalmente aceites Durante algum tempo, os Pitagóricos estiveram no poder em Crotona, mas os seus concidadãos acabaram por se revoltar e vingaram-se, ateando fogo aos seus lugares de reunião e massacrando os membros da seita

Ateneu, 4, 138-139; Bmit, 1989 ^ Van Groningen., 1960 Burkert, 1985, p 385 215

A experiência religiosa cemrada na polis é uma experiência partilhada pela maioria dos Gregos, e por eles transferida para os grandes festivais pan-heíénicos da época arcaica, muitas vezes ligados aos jogos (Olímpia, istmo de Corinto e Nemeia) ou aos oráculos (Delfos); a sua função talvez fosse aproximar grupos considerados homólogos como os Jónios (o Paniónion, em Príene ou Deíos), Todavia, o seu objectivo comum era a criação, por intermédio da festa e do sacrifício, de um sentimento de «helenídade» {to hellenikòn), derivado da consciência de «um sangue comum, lugares comuns de culto, hábitos e sacrifícios comuns» (Heródoío, 8, 144).

O homem político

As formas de sociabilidade que distinguem o período clássico são frutos e adaptações de formas anteriores; o que se altera é sobretudo o contexto social e a relação entre a sociabilidade e a polis. Para o homem clássico, segundo Aristóteles, «todas as formas de associação parecem ser partes da associação política» (Ética a Nicômaco, 9, 1160a 7)- No entanto, mesmo essa poiitízação das formas sociais não é„um facto totalmente novo e a diferença reside mais na complexidade das relações recíprocas entre diversos tipos de associação do que na subordinação de um tipo a um outro A diferente importância que lhes é atribuída traz para o primeiro plano certos aspectos da actividade comunitária que eram menos visíveis durante o período arcaico, mas que não deixam de ser importantes, Muitos viram no conceito de «lar comum» as origens da sociabilidade política.. O culto de Héstia e a existência de um lar comum da polis são fenómenos muitos comuns, quase universais, na Grécía^^ O lar da cidade está associado à existência de um fogo eterno e ambos oferecem uma imagem simbólica da comunidade política como grupo familiar; tal como uma esposa que leva o fogo da casa paterna para a sua nova casa, os colonizadores levavam o fogo da sua cidade natal para a cidade recém-fundada Este simbolismo pode muito bem ser um dos primeiros sinais do emergir de uma consciência da polis; o fogo e o lar são conservados num santuário ou num edifício público, e estão sob 0 controlo directo dos magistrados da cidade aristocrática arcaica, ao contrário de outras formas de culto citadino, que são oficiadas por dinastias de sacerdotes. Em Atenas, e em muitas outras cidades, o «lar comum» ficava noprytaneion, residência oficial do mais alto magistrado, o arconte epónimo O prítaneu era iguaímeníe o local principal da comensaíidade pública; os outros arcontes também tinham lugares destinados à comensaíidade, mas de menor impor­ tância, No pritaneu, os arcontes, na sua qualidade de chefes, entretinham os hóspe­ des da cidade, costume que revela uma continuidade mítica com os tempos mais antigos da comensaíidade heróica, baseando-se no facto de o sinecismo de Teseu prever a abolição dos prytaneia locais e a instituição de um pritaneu principal em Atenas, A instituição é aristocrática, o ritual não prevê uma refeição comum ou

GemeU952; Malídn. 1987, cap II. 216

mesmo apenas representativa, mas a refeição honorífica de uma eíite. De facto, comer no pritaneu é a mais alta honra conferida pela cidade democrática, uma honra a que um membro comum do demos não pode aspirar É este o sentido do comentá­ rio irónico e insolente de Sócrates que, depois de ser condenado, aílrma que, em vez de ser castigado, deveria receber refeições gratuitas no pritaneu durante toda a vida {Apologia, Com efeito, só uma pequena elite aristocrática, definida por lei, tem o direito de comer permanentemente no pritaneu. Um texto legal ateniense, fragmentário, de meados do século v, enumera os que têm esse direito: os sacerdotes dos mistérios de Elêusis, os dois descendentes mais directos dos tiranos, Harmódio e Aristogíton, os «escolhidos por Apoio», os vencedores numa competição importante dos quatro grandes jogos internacionais e (provavelmente) os generais (/G, I, 3, 131); os arcontes também deviam decerto estar presentes. Além disso, o convite para comer no prítaneu era uma forma de xenia com que se honravam os embaixadores estran­ geiros, as embaixadas atenienses que estavam de regresso, e em geral todos aqueles que a cidade queria homenagear Tais privilégios foram alargados e usados com mais frequência no século !V, tomando-se parte das honras regulares que a assem­ bleia citadina decidia de tempos a tempos tributar aos benfeitores da cidade; por exemplo, aqueles a quem era conferida a cidadania eram convidados para comer no pritaneu, e, em finais do século iv, Ínstiíuiu-se a possibilidade de um direito permanente, e por vezes mesmo hireditário, de ííícsís. As leis religiosas da Atenas clássica contêm também referências a outros deten­ tores do direito de sitesis no prítaneu ou noutros íocais- São designados pelo termo técnico deparàsitoi e tudo indica que seriam os assistentes oficiais do arconte ou do sacerdote de um culto religioso particular; os paràsitoi do archon basilèus, escolhi­ dos entre os cidadãos dos demos da Ática, eram responsáveis pela administração das décimas de cevada e tinham uma sede própria, O uso pejorativo do termo «parasita» deriva justameiiíe dessa situação e é a resposta popular ao tradicional costume aristocrático de aqueles que se ocupavam de assuntos públicos comerem a expensas públicas O carácter aristocrático dessas formas de comensaíidade é bem visível neste excerto poético; «Quando o Estado honra Héracles sumptuosamente e celebra sacrifícios em lodos os demos não contrata para ministrar esses sacrifícios os parasitai dos deuses eíegendo-os à sorte, nem escolhendo-os ao acaso; sempre escolheu cuidadosamente doze homens nascidos de pais cidadãos, gente de bem e proprietários de terras.» (Diodoro de Sinope, in Ateneu, 6, 239d )

O costume de comer no pritaneu deriva de uma antiga instituição do Estado aristocrático, conservada e desenvolvida no período clássico como parte de um sistema honorífico, mas nunca foi uma forma de comensaíidade partilhada por toda a comunidade política, nem directamente nem simbolicamente através da Milicr, 1978;Henry. 1983 Veja-sc a erudita discussão acerca de parastws cm Ateneu, 6, 234 scgs 217

selecção dos representantes do povo. O único exemplo contíário que se conhece é o da refeição consumida no pritaneu pelo povo de Naucratis, no decorrer de certas festas religiosas (Ateneu, 4, 149 sg.), mas refere-se a uma polis excepcional, formada por diferentes comunidades preexistentes, Este tipo de comensaíidade constitui por isso uma adaptação dos costumes aristocráticos ao mundo da polis, e tem a sua expressão arquitectónica nos Héstiatòria públicos, filas de salas destina­ das aos simpósios, que foram encontradas no centro das cidades e junto dos santuários mais importantes, como Brauron, a partir de meados do século iv, e que se destinavam às refeições oficiais de uma elite de magistrados, hóspedes importan­ tes e sacerdotes Contudo, o o Estado ateniense tinha um outro local, este verdadeiramente democrático, para as refeições públicas. A partir do momento em que, por sorteio, se foimava um conselho para tratar dos assuntos a discutir em assembleia, havia cinquenta prítanes que trabalhavam ao mesmo tempo e colocava-se à sua disposição uma cozinha e uma sala de banquetes, na íholos Este edifício circular tinha uma forma que não se adequava ao banquete tradicional, em que os convivas comiam reclinados, e além disso não podia albergar todos os leitos necessários; a sua forma arquitectónica evoca a das skiades, estruturas provisórias ou refúgios para uso popular que se encontravam junto dos santuários, fora dos muros da cidade, e sugere uma distinção de classe entre os dois tipos de comensaíidade: o que previa convidados reclinados e o que os previa sentados Os membros do conselho rece­ biam porções de carne sacrificial e uma diária em dinheiro. É significativo que não possuamos qualquer informação pormenorizada acerca desta forma prática e não honorífica de comensaíidade O Estado democrático ateniense nunca instituiu ritos universais de comensaíidade que possam comparar-se com os de Esparta.. Apesar disso, «os legisladores [„ .] ditaram as leis relativas às refeições das tribos e dos demos e dos thiasoi e das fratrias e dos orgeones'» (Ateneu, 5, 186a): os pormenores dos regulamentos referentes às festas do Estado mostram até que ponto os Atenienses se esforçaram por criar um corpus jurídico que definisse a complexa rede de hábitos e comensaUdades e que exprimisse o sentido de uma comunidade política unida no ritual religioso. Podemos distinguir cinco fases principais neste processo, embora na maioria dos casos seja difícil determinar a data em que certos costumes específicos foram introduzidos As leis de Sólon, do inicio do século vi, estabeleceram regras para o pritaneu e talvez também para o conselho, bem como para os banquetes aristocráticos, quer privados quer religiosos; já então existia um grande número de associações reconhecidas: «Se um demo ou phràiores ou orgeones ou gennetai ou grupos que se reúnem para beber ou associações especializadas nas cerimónias fúnebres ou associações religiosas ou piratas ou comerciantes estabelecem entre si regras, estas devem ser consideradas vinculativas, a menos que sejam contrárias às leis públicas w {Digesto, 47, 2 2 ,4 .)

Biirkcr, 1983 Schmitt Pantel, 1980; Cooper e Morris, 1989

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A actividade dos tiranos, que reorganizaram alguns dos grandes cultos ate­ nienses, como os mistérios de Eléusis, as Panateneias e as Dionisíacas, deve ter tido algum efeito nos sacrifícios e nos banquetes da comunidade Ainda mais importante neste sentido foi a intervenção de Clístenes (508-507 a. C,), que criou uma rede de instituições locais oficiais, demos e fratrias que regulavam a aquisi­ ção da cidadania sob a supervisão geral da cidade; cada uma dessas instituições possuía, ou depressa adquiriu, os seus ritos de comensaíidade próprios. Em finais do século V, as leis religiosas de Atenas foram codificadas pela primeira vez por Nicómaco, e é a esse período que devem pertencer todos os fragmentos que possuímos das leis referentes às associações religiosas Por fim, a restauração dos costumes religiosos tradicionais associada ao estadista democrático e conser­ vador Licurgo (338-322 a, C.) implicou uma restruturação econômica e religiosa e a ampliação dos mais importantes rituais da comensaíidade Como resultado deste longo processo, a fusão entre instituições cívicas e sociabilidade expressa no banquete religioso é quase total, e todos os grupos sociais públicos e privados, como os citados nas leis de Sólon, tratam dos seus assuntos imitando o modelo da assembléia ateniense, com funcionários, propostas e decretos acerca da organiza­ ção interna ou em honra de «benfeitores» e processos contabilísíicos formais, muitas vezes gravados na pedra, como se esses grupos constituíssem pequenas cidades dentro da cidade. As grandes festas comunais de Atenas ilustram a complexidade destas relações. Uma das principais liturgias (deveres periódicos dos atenienses ricos) era a da hestiasis, ou seja, o dever de organizar um banquete paia os membros da sua tribo durante as Dionisíacas ou as Panateneias Parece que o sacrifício oferecido pela cidade fornecia a carne para ser amplamente distribuída: nas Dionisíacas de 334-333 a. C , foram sacrificadas 240 vacas. A distribuição foi organizada pelos demos no Cerâmico, talvez na zona do Pompeion, às portas da cidade, de onde partiam as grandes procissões, zona onde foram encontrados vestígios de salas de banquete e de banquetes populares Provavelmente, a liturgia que previa o fornecimento de refeições a uma tribo inteira fazia parte dessa cerimônia, em que a cidade fornecia a carne e o homem rico fornecia tudo o resto Da mesma forma, na festa feminina das TesmofÕrias, escolhia-se duas muUieres de homens ricos, a quem competia presidir à festa e fornecer a comida para os banquetes organizados nos demos. Assim, o povo pedia aos ricos que fornecessem as refeições rituais ao secíor da cidadania a que pertenciam, como parte dos seus deveres cívicos. Também competia ao homem rico entreter os membros do seu demo durante os banquetes nupciais Mas era sobretudo em tomo da firatiia que se centravam os ritos de passagem dos cidadãos atenienses, numa série de banquetes ligados à antiga festa jónica das Apatúrias Havia funcionários que superintendiam ao banquete e tinham o dever de fornecer uma parte da comida, mas a came provinha dos sacrifícios

Veja-sc Lfsias, Contra Nicómaco, 30 Acerca das reformas de Licurgo, veja-se Schwenk, 1985; Humphreys, 1985 ^ Acerca do Pompeion e do Festplatz, veja-se Hoepfner, 1976, pp 16-23. 219

oferecidos pelos pais em nome dos seus filhos. Três momentos especiais das Apatúrias assinalam as fases de transição do jovem ateniense para a idade adulta: o meion, por ocasião do primeiro ingresso no gropo, o koiireion, na puberdade, e a gamelia, no casamento. Cada uma destas fases é comemorada com um banquete organizado pelos membros da mesma fratria e é essa cerimónia pública que prova a legitimidade do acto. Por isto se pode ver até que ponto os rituais e os actos — originalmente referentes ao grupo de parentesco — foram depois transformados pela cidade numa prática universal e passam a ser utilizados como critérios de legitimação e cidadania Todas estas h‘ansformações da comensalidade no seio da Atenas democrática são a prova de um longo processo de politização dos costumes sociais baseados na comida, no seio da po/is já estruturada; podem ser consideradas em parte como a continuação de costumes anteriores e em parte como a difusão de costumes antes limitados a classes particulares e a ocasiões especiais. A comensalidade privada continuou, naturalmente, centrada na instituição e nos rituais do symposion, que não deixou de ser considerado como parte de ura estilo de vida aristocrático, Nas Vespas, Aristófanes apresenta-nos o seu herói populista, FUócleon, como alguém que desconhece as regras do comportamento num banque­ te, dado que têm de lhe ensinar como se deve reclinar e estabelecer conversa, No final, Aiístófánes mostra-o tão entusiasmado que chega a raptar a flauüsta e re­ gressa a casa perseguido pela fúria dos cidadãos a quem, embriagado, danificara alguns dos bens durante o komos (Vespas, 1131-264, 1292-1449), Estes grupos aristocráticos aliavam os simpósios às actividades políticas que se desenvolviam nos clubes políticos, ou hetairehi, organizados, para «influenciar os casos judiciais e as eleições» (Tucídides, 8, 54); políticos democráticos como Péricles ou Cléon, cujo poder se baseava na assembleia, são descritos como pouco apreciadores dos simpósios devido à sua conotação política aristocrática. Platão descreve os verdadeiros filósofos: «Aqueles que, desde jovens, não sabem o caminho que conduz à praça, nem onde se situa o tribunal ou a sede do conselho ou qualquer outro lugar de reuniões públicas da cidade; não vêem nem ouvem leis e decretos, escritos ou proferidos; nem era sonhos lhes passa pela cabeça participar em grupos à conquista de cargos e em encontros e banquetes e festas com tocadoras de flauta.» (Teeíeto, 173d) Em finais do século v, os heíaireiai converteram-se em centro de uma revolu­ ção oligárquica: daí partiram as ordens para o assassínio dos opositores e vieram os chefes do golpe de Estado armado de 411 a. C A passagem de uma actividade política de elite, mas ainda legal, para a subversão (statis) foi facilitada pelo papel da pistis ou juramento de solidariedade (ver nas páginas anteriores). Em 411, 0 assassínio dos adversários políticos foi apresentado como uma forma de pistis, e já em 415 a destruição sistemática das Hermes itifálicas situadas diante das casas atenienses foi interpretada como sendo obra das heíaireiai que trama­ vam a revolução; os inquéritos que se seguiram revelaram que muitos grupos aristocráticos cometeram deííberadameníe sacrilégio oficiando os mistérios eleu-

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sinos durante os simpósios Com a restauração da democracia, no século iv, as heíaireiai constituídas para subverter a democracia (Demósíenes, 46, 26) foram proibidas formal e compreensivelmente, e os juramentos dos cidadãos de outras cidades continham a promessa explícita seguintes: «Hão farei parte de nenhuma conspiração Isynomosia]». Todavia, em Atenas vivia-se um período excepcional: normalmente, os assaltos cometidos em estado de embriagues e os sacrilégios de pouca importância, como urinar nos pequenos templos ao longo da estrada ou roubar e comer os pedaços de carne sacrificial destinados aos deuses, eram o máximo do sacrilégio; alguns grupos divertiam-se a parodiar os Oüasoi religio­ sos, chamando uns aos outros nomes obscenos e reunindo-se nos dias de mau

augúrio^^. Estas actividades irregulares são as actividades normais dos thiasoi e dos orgeones religiosos, associações privadas ou semipúblicas que se dedicavam ao culto de divindades particulares, que existiam desde sempre e que, como se disse, já eram reconhecidas nas leis de Sólon; na época clássica, proliferaram juníameníe com o culto de heróis menores e de divindades estrangeiras. A actividade fulcral desses grupos era a refeição comum consumida após um sacrifício, de acordo com os cos­ tumes de cada culto, mas comportando, em geral, o deipnon e o symposion. Aristó­ teles refere que esses sacrifícios e essas reuniões tinham por finalidade «prestar' homenagem aos deuses, e proporcionar agradáveis ócios», e afirma que eram organizados por amor ao prazer {Éíica a Nicâmaco, 8, 1160a 6). Havia outros grupos que ppdem ser classificados de acordo com a sua função: de início, o êranos era um banquete organizado com o contributo de todos; mais tarde, converteu-se numa importante instituição de socorro mútuo, que emprestava dinheiro aos seus membros sem lhes exigir juros; cenírava-se muitas vezes num culto e incluía um banquete comum. Da mesma forma, grupos especializados nas cerimônias fúnebres asseguravam uma adequada sepultura aos seus membros, mas, na realidade, desem­ penhavam uma função social mais ampla. De facto, a morte era um domínio problemático. Em geral, a comensalidade não ultrapassava os limites da sepultura, mas esses ritos eram tão importantes durante a vida que alguns cultos tentaram criar para os seus adeptos uma crença no symposion eterno. Platão descreve assim as doutrinas órficas: «conduzindo-os ao Hades, íntroduzem-nos no banquete dos eleitos onde, coroados de flores, os fazem passai' o tempo a embriagar-se, como se a mais bela recompensa da virtude fosse uma embriaguês eterna» (República, 2, ,36,3). O motivo principal da iniciação nos mistérios de Eleusis era precisamente a promessa dos simpósios post mortem. Mas essas crenças só servem para realçar a diferença entre os prazeres sociais da vida e a sua ausência na morte. Só aos heróis era dado escapar a esse destino mortal, e na época helenística isso tomou-se um importante factor de difusão do culto dos mortos heroificados

Acerca dos clubes atenienses e do seu papel político, veja-se sobretudo Calhoun, 1913; Murray. 1989b Quanto ao tema artístico do Toienmahl. a crítica de Denízer, 1982, &fundamental

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o caracter reflexivo da representação literária da comensalidade no período clássico tende a ignorar a dimensão religiosa e refère-se sobretudo à dimensão social do rito. A primeira tentativa de carácter memoríalista, a de lon de Quíos, dá um lugar proeminente aos grandes homens encontrados nos simpósios, e julga os seus caracteres. Um dos temas preferidos e mais frequentes era já o dos costumes exóticos, citados para demonstrar a «diferença» dos bárbaros (Heródoío, Eurípides no Ciclope) que não compreendem as regras da comensalidade civilizada. Os costumes das várias comunidades gregas são analisados por Ciitias como prova das suas características morais,. Estes textos, a par das descrições dos simpósios da poesia arcaica, são os antecessores do gênero filosófico do «simpósio», criado por Platão e Xenofonte nos seus retratos de Sócrates,. Neste tipo de textos, os rituais do discurso e do comportamento durante o symposion determinam quer a estrutura quer os temas da discussão. Para os filósofos, o amor, especialmente o homossexual, é o único tema adequado à discussão num symposion', Platão, por exemplo, com o seu talento para evocar uma visão mística do poder do amor, revela a sua compreensão pela atmosfera do symposion Mais tarde, nas Leis, revela-nos uma compreensão igualmente profunda do poder do vinho e da co­ mensalidade e da influência que eles exercem sobre o espírito humano e as relações sociais” , E por isso que, para os Gregos, as relações pessoais de amor e de amizade são fenômenos sociais, Aristóteles defme a amizade em termos de grupo social, porque «todas as formas de amizade implicam uma forma qualquer de associa­ ção»; enumera a amizade que figa os parentes e os companheiros, os cidadãos, os membros da tribo, os companheiros de viagem e a que se exprime no vínculo da hospitalidade,. Cada uma destas formas implica um tipo de associação {koinonia), e a polis é descrita nos mesmos termos, isto é, como sendo uma koinonia, constituída por uma rede de koinoniai (Ética a Nicómaco, 8, 1261b). Todos os momentos da vida do homem são marcados por laços de amizade, expressos nos rituais sociais, muitas vezes através da comensalidade, mas também da religiosi­ dade, do desporto, da educação e da guena. Em termos práticos, o significado de uma vida desse gênero é elucidativamente descrito no famoso apelo de 404 a, C , durante a guerra civil: «Concidadãos, por que nos expulsais da cidade? Por que quereis matar-nos? Nunca vos fizemos nenhum mal Partilhámos com vocês os ritos mais sagrados, nos sacrifícios e em esplêndidas festas; dançámos juntos nos coros e combatemos juntos nos mesmo exército, enfrentando corajosamente os perigos em terra e no mar, em defesa da seguran­ ça e liberdade comuns Em nome dos deuses dos nossos pais e mães, dos laços de parentesco, de matrimônio e de amizade que ligam muitos de nós, de ambas as partes, rogo-vos que vos envergonheis de vós mesmos perante os deuses e os homens e que deixeis de fazer ma! à nossa pátria.» (Xenofonte, Helénicas, 2 ,4 , 20-22 )

” Acerca do gênero literário do «simpdsio» na filosofia e na literatura, veja-se Martin, 1931; acerca de Platão, veja-se lecusan, 1989.

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Neste tipo de sociedade a liberdade do indivíduo, como nós a interpretamos, não existe, porque o indivíduo é sempre considerado um animal social e nunca está só consigo mesmo. Há porém uma diferença entre as sociedades criadas em tomo de um conceito único de comensalidade, como por exemplo Espaita, e o complexo mundo de Atenas: Aristóteles, criticando a ingenuidade do ideal platónico da comunidade como família universal, afirma: «Pois bem, é meliior que cada um dos 2000 ou 10 000 cidadãos diga “é meu'*, referindo-se à mesma coisa, ou que se diga “é meu" como agora se díz nas cidades? Com o nosso sistema, a mesma pessoa é “meu fiiho’* para um, "meu irmão" para outro, “meu sobrinha" para outro, e o mesmo acontece com outros laços de sangue ou afinidade ou casamento que liguem directamente essa pessoa a outras pessoas, pelo que depois lhe chamarão “meu companheiro de tribo” ou "meu companheiro de fratria" » (Política, 2, 1262a 8-17.)

O que falta em Atenas é o conceito de indivíduo, não o da sua liberdade. De facto, há uma liberdade pessoal, uma capacidade de viver segundo os seus desejos, que faz parte do ideal ateniense: é a liberdade de escolher entre uma multiplicidade de laços sociais que se sobrepõem uns aos outros e de encontrar o seu lugar numa espécie de «Uberdade intersticial». lrata~se porém de uma liberdade socializada, uma liberdade que provém da certeza de se pertencer ao mesmo tempo a realidades sociais muito diferentes

O homem helenistico

O mundo helenistico foi dominado por duas formas opostas dc organização social que tiveram naturalmente os seus efeitos sobre os rituais da sociabilidade; a vida na corte das monarquias helenísticas, com os seus funcionários, e a transforma­ ção dos anteriores rituais cívicos numa rigorosa organização colonial que se difun­ diu por todo o território do anterior Império Persa, desde o Afeganistão e a índia do Norte até ao Egipto e ao Norte de África. A comensalidade real macedónia, que serviu de base à das monarquias helenísti­ cas, reflecte tradições gregas arcaicas e, em muitos aspectos, recorda o mundo homêrico; apesar de ter adoptado muitos costumes gregos posteriores, como o de os convivas estarem reclinados durante os banquetes, foi sempre concebida a uma maior escala O monarca e os seus «companheiros» constituíam uma elite aristocrá­ tica que comia em conjunto, e às vezes com muitos convidados; a comida era abundante e os Macedónios eram conhecidos como grandes bebedores. Certas práticas tradicionais revelam o modo como os Macedónios adoptaram e adaptaram costumes gregos. Entre essas práticas figurava, por exemplo, a obrigatoriedade de um homem ter de caçar um javali para poder comer reclinado e não sentado (o que

A discussão acerca da liberdade do indivíduo na anüga Grécia começa já com Constam, 1819 223

rcflecte a distinção que, entre os Gregos, se fazia entre adultos e jovens), ou o uso da trombeta para anunciar o ftm do deipnon e o início do sympodon A disposição da sala para este tipo de banquete não é muito clara; muitos dos grandes edifícios helem'sticos encontrados têm caractensíicas que sugerem a disposição em grupos quase independentes de convivas numa única sala. A dificuldade em conciliar a tradição grega da igualdade entre todos os participantes com as realidades de uma corte real é confirmada por dois motivos anedóticos opostos: um realça a tradição da «liberdade de expressão» {parrhesia) dos cortesãos no symposion e a consequen­ te aceitação da igualdade dos convidados por parte do rei; o outro descreve os litígios, as rixas entre bêbados e também os homicídios perpretados pelo monarca na sua fúria real, a corrupção provocada pelo poder e a impossibilidade de uma verdadeira amizade entre pessoas não iguais, O estilo do entretenimento é que é característico da corte helenística, provavel­ mente com o acréscimo de elementos persas . O rei e os seus funcionários, designa­ dos peio título de «amigos», constituíam um grupo que muitas vezes comia em conjunto e exibia publicamente o luxo e a abundância reais; esse luxo {tryphè) tomou-se, segundo o estilo persa, uma virtude régia. As festas eram sumptuosas paradas; ficou-nos a descrição de uma delas, organizada em Alexandria por Ptolomeu Fiiadelfo (Ateneu, 5, Î96 segs. Essa festa incluía uma grandiosa procissão e um symposion real efectuado num pavilhão construído de propósito e descrito como sendo capaz de conter 130 leitos dispostos em círculo, O edifício estava decorado com pinturas, tapeçarias, obras de arte e armas ornamentais caracten'sticas das salas de symposion-, duzentos convidados ocupavam cem leitos de ouro. Junto dos quais existiam duzentas mesas de tripés também de ouro. Num leito especial estavam dispostas as taças, que eram igualmente de ouro e cravejadaá de pedras preciosas O valor total dos adornos ascendia a dez mil talentos de prata (cerca de trezentos mil quilos). Infelizmente, o banquete propriamente dito não é descrito, nem temos a descrição do modo preciso como foram distribuídas as grandes quantidades de vinho e de animais sacrificiais exibidos durante a procissão; todavia, apesar de toda a componente de ostentação prodigiosa, a festa estruturava-se em tomo dos rituais tradicionais da comensalidade grega Outros monarcas talvez não pudessem compe­ tir com a riqueza dos Ptolomeus, mas a sua vida de corte imitava o mesmo estilo simpótico, e também eles organizavam análogas exibições de opulência. Quanto ã esfera privada. Ateneu descreve-a a propósito do banquete nupcial de um nobre macedónío (4,128 segs ). Trata-se mais uma vez de um banquete ao estilo grego, mas com entretenimentos e presentes em ouro e prata, tão sumptuosos que «os hóspedes procuram agora comprar casas, terra ou escravos». Houve mesmo quem afirmasse que a baixela de ouro e prata era rara no período clássico e só se tomou corrente na época helenística: é certo que a maior facilidade de acesso dos Macedónios ao ouro e à prata deve ter criado costumes diferentes, sobretudo depois de a conquista de Alexandre ter aberto caminho para as reservas de ouro e de prata

Acerca dos simpósios macedónios. veja-se Tomiinson, 1970 e Borza, 1983 Studniczka. 1934,

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do Império Persa; também se aventou a hipótese de o declínio do nível artístico da cerâmica pintada grega estar ligado a essa transformação,. Contudo, se é verdade que, durante o período grego clássico, os metais preciosos se destinavam quase exclusivamente a um uso religioso e o luxo se propagou mais tarde, o alcance da transformação ocorrida na época helenística não deve ser sobrestimado: no sé­ culo I a, C ., Juba da Mauritânia afirmou que «até ao período macedónío [inclusive], a baixela usada à mesa era de louça» (Ateneu, 6, 229c) e que o uso da prata e do ouro era uma recente inovação romana ” . As novas cidades gregas da época helenística eram possessões coloniais instala­ das num ambiente estrangeiro, indiferente e por vezes hostil; por conseguinte, as suas instituições reOectiam o desejo de manter e reforçar a sua identidade cultural e de grupo. Se o homem do período clássico tinha encontrado a sua mais autêntica expressão na acção política e portanto tendera a subordinar qualquer outro aspecto da sua vida social a esse aspecto da polis, no período helenistico, ser um cidadão significava pertencer à elite cultural helénica; em tomo desta nova noção de cidada­ nia desenvoiveram-se naturalmente formas específicas de sociabilidade e o ban­ quete cívico como experiência cultural foi remodelado Neste processo, a educação revestia~se de uma grande importância. Em Atenas, nos finais do século iv, o ingresso no grupo dos cidadãos já pressupunha um período de iniciação, a efebia, durante o qual todos os cidadãos do sexo masculino entre os dezoito e os vinte anos efectuavam um treino de preparação geral e militar sob o controlo de.,funcionários estatais: esses efebos constituíam classes etárias que ten­ diam a perpetuar-se em rituais da comensalidade. Nas cidades helenísticas, a educa­ ção formal era ministrada no ginásio, sob a direcção de um funcionário estatal, o ginasiarco; o acesso a essa educação era um direito exclusivo dos cidadãos, de forma que, por exemplo, muitas das disputas respeitantes às reivindicações de cidadania por parte das comunidades hebraicas residentes em cidades gregas inci­ diam no direito de acesso ao ginásio e nos problemas ligados à obrigatoriedade de estudar textos literários não hebraicos e ao costume de os jovens se treinarem nus A instituição do ginásio existiu durante um longo período de tempo e em vastas áreas: o mesmo ordenamento constituído por 140 normas de origem délfica foi encontrado no ginásio de Ai Khanum no Afeganistão, no da ilha de Teras, no mar Egeu, na Anatólia e no Egipto.. Assim, grupos de efebos e de tieoi proliferaram numa nova estrutura por classes etárias, em que se dava muita importância às actividades desportivas e venatórias dos Jovens, O sistema litúrgico do período clássico também sofreu alterações, quando os ricos foram encorajados pela concessão de condecorações públicas a competir nos cargos civis e religiosos com actos de magnanimidade para com o povo. Os testemunhos mais comuns das formas de sociabilidade deste período são decretos que ditam as normas de festividades religiosas a organizar a expensas de um rico

Estas breves alusões não esgotam a ampla discussão iniciada por Vickers, em 1985, acerca da relação entre prata e cerâmica Acerca deste assumo, vcja-sc cm especial a terceira parte de Schmitt Pantcl, 1983 225

euergetes, ou textos que louvam um benfeitor pela sua generosidade passada. Esses actos de beneficência publica são muitas vezes idênticos ao dever de sitexis imposto ao rico ateniense, na medida em que estão ligados a um desempenho especial nos cargos públicos ou nas festas religiosas, mas desenvolverara-se posíeríormente quando os ricos começaram a desejar ser recordados por doações funerárias e legados que previam a distribuição periódica de comida e óleo ao povo, ou por um banquete fúnebre em sua m e m ó ria M u ita s destas actividades decorriam em redor do ginásio, dos santuários ou de outros espaços públicos. O fenômeno do evergetismo não implica um deslizar para uma forma de clieníelismo, em que os pobres dependem dos ricos; exprime sobretudo uma comunhão de valores, esperada e (pelo menos em termos ideológicos) livremente oferecida como mediação entre os ricos e os cidadãos comuns, separados por um abismo econômico cada vez maior. O espí­ rito público, a quem foi negado espaço na política, exprime-se na exibição e na ritualização de uma despesa efectuada em prol da comunidade. Quem beneficiava das doações podia ser um grupo exclusivo de funcionários, conselheiros ou sacerdo­ tes; podiam também ser membros de um subgrupo citadino, como por exemplo, da tribo do benfeitor. Todavia, era mais frequente que fosse toda a comunidade a ser convidada para uma demothoinia ou para receber presentes Os limites dessa maghárdraidade variam: por vezes, destinava-se a todos os que participavam numa festa religiosa, outras vezes, porém, quem dela beneficiava eram apenas os cidadãos do sexo masculino da polh, Os escravos nunca são expHcitaraente incluídos e as mulheres recebem presentes, mas nunca são convidadas para os banquetes,. No entanto, o convite é, em geral, aberto a «todos», cidadãos do sexo masculino, estrangeiros residentes e de passagem e por vezes também aos «Romanos» — con­ siderados uma categoria à parte —, ou seja, aos Itálicos Essês convites exprimem bem a vontade da polis de pertencera uma mais vasta comunidade cultural helénica, dado que não são endereçados aos não gregos, exceptuando a categoria privilegiada dos «Romanos»; com efeito, embora os cidadãos de outras cidades gregas sejam bem recebidos, os camponeses locais são excluídos. Era assim, através de formas culturais, que as novas cidades do mundo grego tentavam criar um sentido de comunidade que nos períodos anteriores existira espontaneamente; interpretar esses costumes apenas em termos de continuidade é ignorar a novidade expressa na sua universalização e na sua nova função. As associações baseadas na acüvidade econômica sempre existiram na polis grega, mas, ao contrário do mundo romano e da cidade medieval, não parecem ter sido um elemento significativo da estrutura social; isso reflecte talvez o baixo estatuto social das actividades comerciais e a subordinação da esfera econômica à

A importância do evergetismo é o tema central do ensaio de Veyne, 1976, para cuja segunda parte se chama a atenção. Acerca do evergetismo c dos cultos fúnebres., veja-se Schmitt Pantei, 1982 A manifestação extrema desta forma de comensalidade é o culto real instituído pelo rei Antíoco de Comagena em finais do século l a C., que prescrevia como obrigatória para todos os seus súbditos a realização de uma série de banquetes no cume de montanhas desertas, em sua honra e dos seus antepassados 226

esfera política. Ocasionalmente são mencionadas as actividades de culto de gru­ pos como o dos trabalhadores do bronze ou dos oleiros, mas terá de se esperar pelo período romano para que essas associações sobressaiam no domínio público. Aníeriormente, a importância de associações artesanais estava largamente confi­ nada às actividades profissionais fora da estrutura cívica; precisamente por serem itinerantes, os médicos, pelo menos a partir do século V, tinham mantido o culto a Asclépio, centros de preparação profissional (em especial. Cós), um conceito próprio de grupo profissional e um «juramento de Hipócrates». O período helenístico viu emergir as íechniiai de Dioniso, corporações de actores profissionais cujas actividades se propagaram por todas as cidades gregas. Este fenômeno, tal como a existência de grupos organizados de estrangeiros residentes em zonas especiais de Atenas e de outras cidades, exprime mais a necessidade de formas sociais que transcendam a polis do que a estrutura desta Do mesmo modo, grupos de origem militar, muitos deles com um carácíer nacional específico, eram uma consequência natural do recrutamento de mercenários provenientes da Campânia e de outras regiões, que muitas vezes podiam obter a cidadania ou impor-se à polis*^. A organização da transmissão do saber obedecia ao esquema tradicional da organização do culto, caracterizada por propriedades em comum e camaradagem na comensalidade O velho quadro da filosofia durante o período socráíico, tal como foi pintado por Platão, com lições públicas e encontros privados nas casas da aristocracia ou nas ruas de Atenas, foi substituído por instituições permanentes ligadas a ginásios (a Academia platônica), a edifícios públicos (a Stoa) ou a santuá­ rios (o Liceu arisíotélico), O núcleo de uma destas escolas era um grupo de amigos que partilhava a utilização de um edifício para encontros e lições e que tinha livros comuns, embora a efectiva propriedade estivesse nas mãos de quem dirigia a escola.. Ofereciam sacrifícios comuns e comiam juntos regularmente. Do mesmo modo, a organização do ensino criada por Ptolomeu Filadelfo em Alexandria, o Museu, era constituída por um grupo de estudiosos ligados pela participação na organização de um culto e pela sua vida em comum no interior do palácio e à mesa real, Era o período dos simpósios dos sábios, onde se discutiam questões literárias ou filosófi­ cas, período que durou até 145 a. C., quando Ptolomeu Vin, exasperado, expulsou os intelectuais da sua corte. O Jardim de Epicuro é o exemplo mais interessante dessa vida comunitária: os discípulos viviam juntos «uma vida oculta» na casa do mestre, onde efêctuavam um banquete mensal na data do nascimento de Epicuro. No grupo estavam também incluídas mulheres casadas, heteras e escravos, do sexo masculino e feminino Estava organizado hierarquicamente, como uma seita mís­ tica, em três níveis: professores, assistentes e alunos. Assim, embora estivessem isolados do mundo da polis, os discípulos de Epicuro não podiam esquivar-se às normas sociais do banquete comum e do culto do Mestre como herói

" Acerca das associações profissionais., veja-se Ziebarth, 1896; Polajid, 1909. A íeoria e a prática da amizade epicurista suo discutidas nos capítulos 1 e 7 de Rist, 1972

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A essas normas escaparam apenas os Cínicos, cuja fuga da sociedade incluía também a recusa total a qualquer coacção social Contudo, a sua concepção da vida simples não conseguiu construir uma nova estrutura onde o homem livre se pudesse inserir, dado não ser mais do que uma inversão das formas de sociabilidade a que tentavam esquivar-se. O mais interessante trabalho filosófico do penodo helenistico, a República, escrita, na sua fase «cínica», pelo fundador da escola estóica, Zenão de Cítio, descreve um Estado ideal oposto ao da República platônica, onde o homem sábio rejeita os laços da polis porque não pertence a uma comunidade real, mas a uma cosmòpolu idea! de sábios. Estas respostas refíectem as dificuldades de se libertardes vínculos da sociabilidade que, em todos os períodos, caracterizaram o homem grego.

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CAPITUL,0 IX O HOMEM E OS DEUSES por Mario Vegeííi

Conta Aristóteles que o velho sábio HeracUto, «dirigindo-se aos hóspedes que desejavam visitá-lo e que, mal entraram, o viram a aquecer-se junto ao fogo da cozinha, os convidou a entrar sem hesitar: “os deuses também estão aqui”» {De parúbiis animalium 1, 5), A anedota aristotéüca é por vários motivos significativa e útil para se compreen­ der o comportamento religioso do homem grego. Em primeiro lugar, revela o caiácter difuso da experiência do «sagrado», a sua proximidade em relação aos tempos e Iiígares da vida quotidiana Por exemplo, a lareira, em volta da qual a farmlia se reúne para cozinhar e comer, é consagrada a uma divindade, Héstia, que protege a prosperidade e a continuidade da vida familiar; todos os recém-nascidos são levados a dar uma volta em tomo da lareira, sancionando assim religiosamente a sua inserção no espaço doméstico. As palavras de Heracüto demonstram que o sagrado se prolonga numa relação de familiaridade com os deuses que é muito característica da experiência religiosa grega; a divindade não está longe nem é inacessível, pode dizer-se que o convívio com ela caracteriza todos os momentos significativos da existência privada e social; é tão frequente encontrá-la, em imagens, em práticas cultuais específicas, na nanação familiar e pública onde se esboçam as tramas densas de uma simbolização significativa da existência, que parece não ser de perguntar por que é que os Gregos acreditavam nos seus deuses. Dever-se-ia antes perguntar como seria possível que eles não acreditassem, visto que isso implicaria a negação de uma grande parte da experiência quotidiana de vida. Ao sentido de difusão do sagrado e de familiaridade com os deuses vem Juntar-se, no contexto aiistotélico da anedota, uma terceira caiacteristica, que diz especificamente respeito à atitude intelectual dos filósofos para com a esfera do divino,. Este é cada vez identificado com o princípio e a garantia da ordem, da regularidade, do sentido do mundo natural (com efeito, Aristóteles cita as palavras de Heracüto para legitimar o estudo teórico da natureza viva, um domínio decerto menos nobre do que o dos céus e dos astros, mais próximo da divindade, mas igualmente regido por normas de ordem e de valor, portanto também ele «cheio de deuses»). Esta atitude filosófica não contrasta, pelo menos no essencial, com as características da expe­

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riência religiosa comum, prolonga-as numa nova concepção que transforma a proximidade e a familiaridade do divino na sua imanência em relação à ordem do mundo^ Mais adiante fãlar-se-á analiticamente de todas estas características da experiên­ cia religiosa Todavia, para se compreender o seu aspecto fundamental e aparente­ mente contraditório, isto é, o facto de ser uma experiência difusa e presente em todos os actos da existência, mas, ao mesmo tempo, e por assim dizer, «ligeira», não opressora psicológica e socialmente, terá de se proceder primeiro a algumas delimi­ tações em negativo Em suma, dever-se-á esclarecer o que a religião grega não foi.

Uma religião sem dogmas e sem igreja

Em primeiro lugai; essa religião não se baseia em nenhuma revelação «positiva» dada directamente pela divindade aos homens; por conseguinte, não tem nenhum profeta fundador, ao contrário das grandes religiões monoteístas do Mediterrâneo, e não possui nenhum livro sagrado que enuncie as verdades reveladas e constitua um princípio de um sistema teológico A ausência do Livro implica a ausência de um grupo de intérpretes especializados; nunca houve na Grécia uma casta sacerdotal permanente e profissional (já que o acesso às funções sacerdotais estava, em princípio, aberto a todos os cidadãos, e normalmente com carácter transitório), e muito menos uma igreja unificada, entendida como aparelho hierárquico e isolado com legitimidade para interpretar as verdades religiosas e oficiar as práticas de culto, Também nunca houve dogmas de fé cuja observância fosse imposta e vigiada e cuja transgressão desse lugar às imagens da heresia e da impiedade. Este sistema de ausências prolonga-se num silêncio particular' mas bastante significativo. No conjunto das crenças e das narrativas em tomo da divindade, não têm nenhum papel central — e de facto, não existem, senão em correntes marginais e sectárias, como veremos — os que se referem à criação do mundo e dos homens; portanto, a crença generalizada é de que, no mundo, sempre houve uma convivênvia entre a estirpe dos deuses e a dos homens, Também não há (com as excepções já referidas) nenhuma ideia de um «pecado original» de que os homens tenham de ser purificados e salvos: se não se macular com uma culpa e uma contaminação específica, o homem grego é normalmenle «puro» e como mi pode livremente desempenliar as funções sagradas. Igualmente marginal é, pelo menos a nível da religião pública, a questão da sobrevivência da alma e da sua salvação exíraterrena, embora tenda a emergir, como veremos, no âmbito dos cultos dos mistérios e iniciáticos. Esta série de considerações negativas toma difícil falar positivamente de uma «religião» grega, pelo menos no sentido em que o termo é usado no contexto das tradições monoteístas, Na Hngua grega nem sequer existe uma palavra cujo campo semântico seja equivalente ao íemio «religião». A que mais se aproxima, eusèbeia, ê definida pelo sacerdote Êutifron, o protagonista do diálogo homônimo de Platão, como «os cuidados [t/ierapeia] devidos aos deuses» (Platão, Êutifron, I2e). Por­ tanto, a religiosidade consiste na observância pontual dos ritos cultuais que expri­ 2.32

mem o respeito, a veneração e a deferência dos homens pela divindade, e que consistem sobretudo em oferendas sacrificiais e votivas. O equivalente grego do termo «fé» também não é muito expressivo. Na língua corrente, a expressão «crer nos deuses» {nomizein tom theom) significa mais «respeitar», honrar a divindade através das práticas de culto, do que estar racionalmente convencido da sua existên­ cia (como acontecerá com a linguagem filosófica posterior); portanto, nomizein equivalerá a íherapeuein, ter para com a divindade os cuidados rituais convenientes Assim, o elemento central da relação entre homens e divindades, da «religião» e da «fé» dos Gregos parece consistir na observância dos cultos e dos ritos prescritos pela tradição, Isso não deve porém levar-nos a pensai' numa riíuaíização obsessiva e omnipresente, O sarcástico retrato da superstição (deisidaimonia) que o filósofo Teofrasto traça nos seus Caracteres (16), em finais do século iv a. C , foÍ provavel­ mente inspirado por uma atitude comum: o supersticioso é aquele que vive atormen­ tado por um constante receio do poder divino e que, ridiculamente, dedica uma grande parte da sua existência ao esforço de agradar à divindade através dos ritos, à tentativa maníaca de evitar a impiedade e de se purificai' de qualquer possível culpa. Trata-se, porém, de um «carácter» da comédia: a sátira teofrástíca não permite qualquer dúvida acerca do facto de a obsessão ritualista não ser nem comum nem apreciada no contexto da religiosidade grega. É evidente que isso não significa que não existisse um profundo e enraizado temor à divindade e à sua capacidade de punir as culpas dos homens reduzindo o seu tempo de vida e atingindo também a sua descendência. Esse temor está bem patente em toda a experiência cultural grega do século V, e, no século seguinte, Epicuro, um filósofo quase contemporâneo de Teofrasto, ainda pensava que uma das missões fundamentais da filosofia, se se queria restituir a serenidade à vida dos homens, devia consistir precisamente em libertá-los desse receio do castigo divino Uma anedota ingénua, narrada pelo historiador Heródoto — que escreve no século V mas que se refere aos actos do tirano ateniense Pisístrato (meados do século VI) — demonstra bem a complexidade de todas estas atitudes Heródoto descreve um estratagema usado por Pisístrato para reconquistar o seu poder em Atenas: disfarçou de deusa Atena uma rapariga e enviou-a num carro até à acrópole, fazendo-a preceder de arautos que intimavam o povo a receber de novo o tirano, que regressara à cidade pela mão da própria deusa protectora da polis. O estratagema resultou, e Heródoto surpreende-se com a ingenuidade dos Atenienses, que, porém, como e mesmo mais do que os outros gregos, «eram considerados mais avisados e mais avessos à credulidade dos néscios própria dos bárbaros» (1, 60), A anedota pode ser interpretada segundo duas perspectivas diferentes. Por um lado, a familiaridade dos Gregos com os seus deuses, o hábito do contacto quotidia­ no com as suas imagens, explicam que os Atenienses possam ter «acreditado», como prova imediata de que não tinha qualquer sentido duvidar, no aparecimento de Atena à cabeça do cortejo de Pisístrato, ou pelo menos que tenham podido sensaíamente mostrar uns aos outros que acreditavam nessa aparição. Contudo, há um outro aspecto, que realça a «ligeireza» dessa crença e que, portanto, não desmente mas confirma a habituai incredulidade atribuída por Heródoto aos Gre­ gos A mesma familiaridade que os leva a «acreditar» permite também que Pisístra-

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to e os seus preparem o estratagema imitando o aspecto da deusa, sem grandes receios de estarem a cometer um sacrilégio e de assim se exporem à ira divina. A divindade está demasiado perto dos homens, demasiado disponível, para não ser por vezes transformada em instrumento de jogo, de engano, de astutos ardis,. Por conseguinte, no comportamento religioso dos Gregos, credulidade e incredulidade, temor ao divino e desenvoltura para com ele, estão estreitamente ligados; dar um realce excessivo a qualquer um desses aspectos significaria compreender mal esse comportamento Esta peculiaridade só pode ser explicada remontando à gênese e à organização das figuras do sagrado e do divino na tradição cultural grega, que, em certos aspectos, não tem paralelo noutros universos religiosos

O sagrado

Hieròs, «sagrado», é uma palavra grega provavelmente ligada a uma raiz Índo-europeia que tem o significado de «forte» A experiência grega do sagrado em geral (não diferente, neste caso, de muitas outras culturas) talvez tenha nascido da sensação da presença de poderes sobrenaturais em locais secretos (florestas, nascen­ tes, grutas, montanhas), em fenômenos misteriosos e íeimVeis (o raio, a tempes­ tade), em momentos cruciais da existência (o nascimento, a morte). Essa experiên­ cia primária foi depois divergindo em duas direcções, embora não opostas. Por um lado, o «sagrado» adquiriu uma dimensão territorial, ligando-se a locais «fortes», caracterizados por limites precisos, da manifestação do sobrenatural: esses locais, que passam a ser consagrados a um culto dos poderes que aí residem, vão-se transformando progressivamente em santuários (tèmenoi), que podem albergar tem­ plos dedicados às divindades propriamente ditas, ou delimitar outros espaços de devoção (por exemplo, as Ninfas das nascentes, ou os túmulos dos «heróis», muitas vezes sepulturas de origem micénica convertidas em talismãs que garantem a prosperidade de famílias e comunidades, como o lendário «túmulo de Édipo» no subúrbio ateniense de Colono), Essa delimitação dos espaços sagrados comporta uma série de proibições e de interdições que preservam da profanação e do abuso tudo o que neles está contido, em primeira lugar o receptáculo da eventual imagem divina, mas também as ofertas votivas que lhe são dedicadas e os seus ministros. Por extensão, «sagrado» será depois considerado tudo o que está contido nos recintos do culto ou que lhe é dedicado, como as vítimas dos sacrifícios, as formas tradicionais do rito e os seus oficiantes. Todavia, na Grécia, essa delimitação espacial do sagrado nunca assume, como acontece noutros locais, a forma do tabu: as proibi­ ções nunca excluem a relação com os homens, o convívio, embora sujeito a regras; implicam-na estrutural mente, dado não existir sacralidade sem culto colectivo Portanto, o respeito pelo sagrado nunca se converte no terror mudo e cego que existe noutras culturas. Por outro lado, para os Gregos, «sagrado» — desta vez em sentido difúsivo, não intensivo mas extensivo — é tudo o que provém dos poderes sobrenaturais e, especificamente, dos desejos divinos Por isso, sagrado é também a ordem da 234

natureza, a alternância das estações, das colheitas, do dia e da noite; e também o é a ordem imutável da vida social, a sucessão regular das gerações assegurada pelos casamentos, pelos nascimentos, pelos ritos de sepultura e de veneração dos mortos, a permanência das comunidades políticas e dos sistemas de poder. Em ambas as acepções, a experiência do sagrado é portanto, e acima de tudo, a de um poder, ou de um sistema de poderes, que intervêm nos processos da natureza e da vida — e cuja intervenção pode ser tão impenetrável mente benéfica, como princípio de ordem e de harmonia natural e social, como perturbadora, violenta, destrutiva, na tempestade, na doença e na morte (a língua grega continuará a denominar «sagrada» a mais incompreensível e peiturbante doença, a epilepsia). Assim, a atitude para com o domínio do poder sobrenatural tenderá a propiciai' o seu carácter benévolo, e a esconjurar a sua violência negativa, sendo, portanto conce­ bida, segundo as palavras do sacerdote Êutifron em Platão, como o «cuidado dos servos para com o seu senhoD> {Êutifron, I3d) O rito propiciatório — um acto individual e colectivo que pode, e deve, ser eficaz se efectuado correctamente, de acordo com os procedimentos determinados pela tradição que se supõe grata ao poder a quem se dirige — consistirá sobretudo na oferta votiva, acompanhada pela invocação e pela prece, Para os Gregos, essa oferta inclui presentes, libações, prestigiosos edifícios de culió; todavia, o seu elemento essencial é a oferta alimen­ tar, o sacrifício de animais. Como veremos, o sacrifício pode assumir formas diversas, em função das divindades e dos meios sociais, mas exprime sempre a renúncia, pOr parte do grupo humano, a uma porção dos seus recursos alimentares mais preciosos, e a sua entrega aos poderes divinos, que, devido a esse «cuidado», deveriam apiacar-se e revelar-se benévolas para com os homens. Refira-se mais uma vez que é importante que o ritual se desenrole segundo os processos e nas alturas definidas pela tradição; por conseguinte, o calendário grego é acima de tudo o conjunto das regras rituais, e os nomes dos meses associar-se-ão sempre às cerimónias do culto que devem decorrer nesse período do ano, O ritual, em que se celebra e se assegura a relação positiva entre homens e poderes divinos, também é, naturalmente, um momento alto da convivência entre os homens, da auto-exaltação das suas comunidades, pelo que é sempre acompanhado pelos even­ tos mais significativos da civilização grega, desde o banquete comum até aos jogos desportivos, às danças, às procissões e às representações teatrais, Todavia, se o rito — e em primeiro lugar, o sacrificial — garante a continuidade da boa relação entre os homens e o sagrado, essa relação pode ser alterada e perturbada. Por vezes, os homens invadem o espaço do sagrado, violam os seus privilégios ou infringem as normas divinas que regem a ordem social. Isso acontece, por exemplo, na Ilíada, quando os Gregos reduzem à escravidão a filha de um sacerdote de Apoio, Criseide, que, por nascimento, está consagrada ao deus e faz parte dos seus bens; ou quando Édipo executa o seu gesto parricida manchando-se com o sangue de Laio; ou ainda, nos tempos históricos, quando a família dos Alcmeónidas mata Cílon e os seus sequazes que se tinham refugiado como suplicantes no templo de Atena (Heródoto, 5,71). Em todos estes casos existe «contaminação» (miasma), como existe sempre que se infringem juramentos feitos em nome dos deuses, se

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derrama sangue humano ou não se respeitam as regras do rito. A contaminação é uma culpa que ultrapassa os limites da ordem jurídica e moral: faz recair sobre o culpado a vingança divina e difunde-se quer no espaço, envolvendo a comunidade que 0 alberga (quem expia as culpas de Agamémnon e de Edipo são o exército dos Gregos e a cidade de Tebas, com a «pestilência» que lhes 6 enviada pelos deuses), quer no tempo, atingindo implacavelmente os descendentes do contaminado, como aconteceu às famílias trágicas dos Labdácidas e dos Atridas. A ideia do miasma tem provavelmente origens materiais, exprimindo a sujidade, a imundície, a mácula de quem vive sob ou fora das nomias impostas pela sua comunidade social, e revelan­ do-se, em sentido próprio, nas mãos sujas de sangue do homicida, nas chagas que cobrem o corpo de quem, segundo se pensa, sofre um castigo divino. É claro que a sujidade material das origens tende depois a moralizar-se, convertendo-se numa metáfora da «culpa» e da «maldição» divina Quem está infectado não pode aproxi­ mar-se do sagrado nas práticas rituais, e deve ser banido da sua comunidade que, de outro modo, corre o risco de ser contagiada O ritual antiquíssimo do phanmkòs, que revela proveniências orientais indubitáveis é uma reminiscência dessa situação: todos os anos, a comunidade escolhe um dos seus membros marginais com defor­ mações físicas ou psíquicas c declaia-o banido, acompanhando-o em procissão até às portas da cidade, para que com ele sejam expulsas todas as contaminações que possam existir no grupo social (a expulsão de Édipo, rei parricida e incestuoso, da cidade de Tebas, com que se conclui o Édipo Rei de Sófocles, é segurameníe uma reminiscência literária desse ritual). Se a ideia de contaminação tem origens materiais, o acto da puriíicação ikàíharsis), na sua forma ritual, também é material. Trata-se essencial mente de uma ablução efectuada com água (mais raramente de uma fumigação): visa reconduzir o indivíduo sujo, impuro, ao nível de limpeza, portanto, de pureza, exigido pela sua civilização. A ablução purificadora efectuar-se~á em todos os casos em que oconam, mesmo sem a existência de qualquer culpa, fenómenos potencialmente contaminados, como o nascimento, a morte, o sexo, a doença,, No livro nono das Leis, Platão prescreve também este ritual nos casos de homicídio involuntário ou legítimo; as pessoas deverão igualmente putificar-se após uma relação sexual que anteceda a preparação para os actos de culto; do mesmo modo, será purificada a casa onde ocorreu um nascimento ou uma morte Nos casos de miasma mais graves, o rito será executado de acordo com os ditames de um responso pedido aos sacerdotes de Apoio, o deus purificador (kathariès) por excelência Na consciência religiosa e moral das seitas, continuada depois no pensamento filosófico, de que falaremos mais adiante, a ideia da purificação desenvolve-se em paralelo com a concepção da culpa contaminante que caracteriza a condição hu­ mana: a vida será então entendida como exercício de purificação da corporeidade e dos vícios que Uie são inerentes, até que o elemento salvador do elemento espiritual, a alma, se liberte dos seus laços terrenos. Contudo, esta evolução extrema da concepção do míasma e da kàtharsis terá sempre a ver com minorias religiosas e intelectuais marginais, embora influentes, relativameníe à vida religiosa da socie­ dade grega.

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Os deuses, os poetas e a cidade

Os elementos até agora traçados não são específicos da cultura grega, já que se podem detectar em formas bastante idênticas na experiência religiosa de outros povos de cultura tradicional, e também não podem constituir o perfil e o quadro unitário de um universo religioso propriamente dito. Essa especificidade e essa unificação do religioso resultam sobretudo de dois factores culturais peculiarmenle gregos; em primeiro lugar, a poesia épica (em que a Ilíada de Homero e a Teagonia de Hesíodo desempenham um papel decisivo) e, em segundo lugar, a figuração artística, que sob este ponto de vista é o suplemento iconográfico da poesia A poesia épica nasce seguramente tendo como pano de fundo os relatos míticos tradicionais acerca das divindades e dos poderes sobrenaturais que habitam o mundo e o dominam. Anónimos, difusos, repetidos e aprendidos de geração em geração, esses relatos — uma espécie de vasto catálogo do imaginário religioso — constituem todo o saber social acerca dos deuses, imediatamente credível e persuasor, não questionável, precisameníe devido ao seu anonimato, à sua difusão no tempo e no espaço, à antiguidade imemoriável das suas origens Todavia, e devido a essas mesmas características, o politeísmo que emerge da massa emaranhada dos relatos míticos é caótico, confuso, desprovido de uma forma imediatamente com­ preensível e controlável. A intervenção da poesia épica — principalmente, a Ilíada, embora não faltem provavelmente antecedentes micénicos — é acima de tudo uma operação de selecção e de ordenamento, imprimindo uma forma orgânica e visível à esfera do divino, que passa a ficar indelevelmente marcada. Portanto, o politeísmo, antropomórfico e ordenado segundo relações funcionais e de poder muito precisas, da Ilíada é o sinal de uma extraordinária revolução intelectual, que dá à religião grega a sua forma histórica, Contudo, a poesia épica conserva, e até reforça com a eficácia da grande literatura, o carácter fundamental dos relatos míticos, quer dizer, continua a ser a narração dos factos e das proezas dos deuses, indicando os locais onde ocorreram, definindo os seus protagonistas como indivíduos dotados de nome, personalidade e caracteres específicos: personagens narrativas, portanto, e não abstracções conceptuais ou metafísicas nem figuras totémicas, Quando Hesíodo tentou dar uma nova ordem ao universo religioso homérico, compondo com a Teogonia aquele que foi o primeiro e, no fundo, o único «manual» religioso grego, só pôde partir desta experiência de base e por isso as relações entre os deuses-personagens não serão ordenadas segundo a trama dos conceitos e das construções teológicas, mas segundo a ordem genealógica das gerações e da alternância dos poderes, isto é, segundo a ordem própria dos laços que existem entre individualida­ des singulares, vivas e agentes. O gesto fundador da poesia épica, o seu olhar configurador do universo da divindade como narração antropomórfica, está associado à cultura da aristocracia grega empenhada na colonização da Ásia Menor. Na poesia épica, essa aristocracia exalta-se a si mesma, as suas origens e os seus heróis, e ao mesmo tempo dá forma, prqjectivamente, às suas divindades: os seus deuses não derivam propriamente, como escreve Snell, do culto ou dos ensinamentos dos sacerdotes; «são criados pelo canto, juntamente com os heróis». 237

A dimensão projectiva da formação de um universo divino na poesia épica, no mesmo contexto do dos heróis aristocráticos, define as suas características de tipos.. Os deuses são representados como heróis cuja excelência (areíè) máxima é devida à beleza, à inteligência, à força, à perpetuidade desses dotes, à imortalidade: como é natural, esta implica também, e desde logo, uma transcendência da condição huma­ na, um limiar intransponível que separa os deuses dos heróis mais do que estes o estão, pela sua excelência, do resto dos homens,. Esse limiar é imposto pelo carácter projectivo que rege o imaginário poético criador das divindades homéricas; tende, porém, a ser constantemente transposto devido ao próprio acto intelectual que o gerou O acto que configura o universo divino permanece «artístico», portanto, em certa medida, «artificiai»; a sua origem estetizante e tranquilizadora estabelece uma relação especular entre a natureza mortal do herói aristocrático e a natureza imortal dos seus deuses O limiar é transposto em primeiro lugar na genealogia, que garante aos heróis uma descendên­ cia e um parentesco divinos graças à frequente união dos deuses e das deusas com os mortais, de que provêm as famílias da aristocracia grega, Há depois vínculos constantes entre os deuses e os homens, com quem aqueles convivem assiduamente, ligados como estão por laços de parentesco, de afecto ou de aversão, e, quanto mais não seja, pela própria necessidade de exigir constantemente as honras que Unes são devidas enquanto senhores de um poder desmedido Dai derivam os cruzamentos e as sobreposições constantes entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens que são uma característica saliente da Ilíada e, depois dela, do imaginário religioso dos Gregos E é também daí que deriva o hábito do contacto com os deuseá, uma familiaridade com a sua presença, atribuindo-lhes relações propriamente humanas: os deuses podem ferir os heróis e ser feridos por eles no campo de batalha, sentem amor, ciúme, inveja e são dominados por qualquer outra paixão própria dos ho­ mens Tudo isto faz com que os deuses, embora sejam temidos pelo seu enorme poder, possam ser também vistos com a ironia e por vezes com o sarcasmo que recaem sobre as fraquezas dos homens; por isso, a Ilíada, que é o poema fundador de um universo religioso, também pôde ser definido, paradoxalmenie mas com alguma razão, como «o mais irreligioso de todos os poemas» (P Mazon). Platão tinha plena consciência disso, quando, no livro terceiro da República, lamentava o facto de os deuses da Ilíada serem representados vencidos pelo riso, peio pranto ou pelo desejo erótico: «é preciso acabar com essas fábulas: há o perigo de elas criarem, nos nossos jovens, uma grande facilidade em cometer o mal» (391e segs ). Portanto, o educador Platão propunha que se emendasse as páginas religiosas da poesia épica, ou melhor, que se banisse Homero e os seus seguidores da nova polis, bem como todos os seus perigosos poemas (República, livro X).. Contudo, o projecto de Platão não teve êxito e a experiência religiosa dos Gregos continuaria a moldar-se pelos textos da poesia épica que deram início à sua cultura,. O politeísmo antropomórfico, em que a divindade é vista sobretudo como a personagem concreta de uma narrativa, depois tomada visível através da figuração que a ilustra, tem uma série de consequências importantes. Por um lado, exclui a omnipotência e, em certo sentido, também a omnisciência tanto das divindades como do seu rei, Zeus. Onde há omnipotência não há obviamente narrativa, jâ que

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esta exige uma pluralidade de sujeitos agentes, cuja força e cujas intenções se limitam e se condicionam altemadamente, criando a intriga narrativa: embora fosse o mais poderoso dos deuses, Zeus nSo podia decidir, de imediato e sozinho, o resultado da Guena de Tróia, sem vencer oposições, estabelecer compromissos, foij ar planos complexos.. Por outro lado, é certo que o que separa os deuses dos homens é acima de tudo a sua força: eles são «os mais fortes» Isso deriva quer da experiência primária da existência de poderes sobrenaturais que agem sobre o mundo, quer do aoto poético de representação da divindade através de uma projecção das qualidades heróicas. Os deuses são diferentes devido à especificidade do domínio em que exercem o seu poder, embora, não se tratando de abstiacções conceptuais mas de personagens concretas, sejam por norma figuras pluriáincionais, cujos poderes se exercem muitas vezes numa multiplicidade de sectores, cruzando-se e sobrepondo-se, No conjunto, neste imaginário religioso, como escreveu Dumézü, «conceitos, imagens e acções articulam-se e formam com os seus nexos uma espécie de rede onde, em princípio, toda a matéria da experiência humana deve estar contida e repartida», Essa pluralidade de funções expríme-se na multiplicidade de apelativos específi­ cos que acompanham o nome de cada divindade quando é invocada tendo em conta os vários domínios em que exerce o seu poder e a sua tutela. Assim há um Zeus dos juramentos, um Zeus das fronteiras, um Zeus protector dos suplicantes e dos hóspedes, um Zeus da chuva e do raio, Mas, por detrás dessa pluralidade de funções, a figura do deus conserva um unidade focal, uma individualidade própria, que não provém da sua situação num sistema teológico mas da trama narrativa que a identifica como personagem (existem, porém, excepções, quando o nome de um dos deuses do Olimpo homérico se sobrepõe a figuras cultuais preexistentes mas dificil­ mente identificáveis, como é o caso de Artemis, virgem e caçadora no universo poéüco, mas ligada, por exemplo em Éfeso, a um culto da deusa-mãe de origem oriental), Essa unidade focal pode ser sumariamente demonstrada pelas doze principais divindades do Olimpo Zous é o princípio da soberania legal, que reúne em si a força e a justiça c que, graças ao seu eminente poder, é o garante universal da ordem do mundo e da sociedade É este aliás o motivo do poder de Zeus, que não é primigénio mas conquistado numa série de feitos heróicos.. Segundo a genealogia de Hesíodo (séculos vm~vn a. C ), Zeus teria posto termo a mna dinastia divina de origens nocturnas e caóticas, que culminara em seu pai, Crono, que costumava devorar os seus próprios filhos Subtraído à fúria paterna pela astúcia de sua mãe, Reia, Zeus teria deposto Crono, tornando-se rei dos deuses; a nova dinastia, celeste e olímpica, teria defmitivamente afirmado o seu poder graças à guerra vitoriosa travada por Zeus contra divindades ctónias e primitivas como os Titãs, ligados ao mundo caótico de Crono. Por conseguinte, com o advento da realeza de Zeus, dá-se a separação ordenada entre o céu e a terra, a luz e as trevas, e garante-se a sucessão harmoniosa das gerações,. A sua mulher. Hera, enquanto garante do matrimônio regular, da união capaz de gerar uma descendência legítima no âmbito da família, está ligada à própria existência da sociedade humana e da civilização, que ela impede de voltar a cair na ferocidade desregrada do estado natural. 239

o irmão de Zeus, Poséidon, é uma amiga e poderosa divindade de evidcme origem mrcénica. No mundo homérico, encontra-se em certa medida marginali­ zado: se Zeus detém o poder sobre o céu e a terra, para Poséidon resta o poder sobre os abismos marinhos e o subsolo, o que o converte em senhor da tempestade e do lerramoto. Divindade tenaível, Poséidon, como protector dos navegantes, ficará sempre muito próximo dessa dimensão fundamental da experiência grega. De todos os filhos de Zeus, a predilecta é Atena, a donzela que ele gerou directamente, sem intervenção feminina, e que portanto, no âmbito do seu sexo, simboliza o princípio patriarcal, o valor masculino que pode ser partilhado pela mulher. Neste sentido, Atena é depositária da inteligência prática que preside tanto ao trabalho dos artesãos como ao trabalho tipicamente feminino da tecelagem Reproduzida normalmente envergando uma armadura hopllta, Atena é também pròmachos^ guia e protectora armada Neste aspecto duplo, Atena assume o pape! de divindade tutelar da polis ateniense, isto é, de deusa especificamente ligada aos destinos da cidade e portanto objecío de uma veneração particular (muitas são aliás as divindades tutelares femininas, como Hera, em Samos, e Ártemis, em Éfeso, o que se pode explicar pela sua qualidade de amas, garantes da fecundidade e da prosperidade da população, a que se pode acrescentar' também a sua qualidade de proíectoras armadas). Um dos outros filhos de Zeus que teria desempenhado um papel extraordinário é Apoio, Grande divindade solar, e de início também guerreira, Apoio assumiría cada vez mais o caracter de deus da luz, purificador e curandeiro. Dotado do dom fundamental da sapiência, Apoio conhece o futuro e, consequentemente, preside aos grandes santuários oraculares, como o de Delfos; ligado à música e à poesia, portanto, à dimensão cultural essencial da civilização grega, e garante da harmonia, da beleza, da ordem esteticamente definida do mundó, Apoio seria a divindade «filosófica» por excelência. Por todos estes motivos, na época histórica, o seu prestígio teria por vezes ofuscado o do próprio Zeus. Outra grande e antiga divindade grega (mas a que os próprios Gregos atribuíam origens orientais), Dioniso, situa-se no extremo oposto de Apoio. Deus do vinho, Dioniso está ligado à embriagues, ao delírio, à loucura; domina a zona obscura que precede a ordem da existência civilizada, onde se criam laços imediatos entre os homens, os animais e a natureza O seu culto, que prefere a montanha e a floresta e atrai as mulheres e os bárbaros, costuma ser considerado desviante em relação à ordem constituída da polis\ marginal na poesia épica, onde prevalece a imagem heróica da divindade, Dioniso toma-se a divindade protectora da poesia trágica Contrasta com a ordem e a harmonia próprias de Apoio, é a figura do Outro — o outro aspecto do sagrado, não estável e regular mas perturbador e inacessível. Todavia, a experiência religiosa grega tentou arduamente conseguir a integração não confHtual desses dois aspectos, No próprio santuário de Delfos, Dioniso foi venerado ao lado de Apoio, como seu irmão; na religião da cidade, concedeu-se a Dioniso um lugar e um papel específicos na festa, nos momentos carnavalescos em que o vinho domina, e sobretudo nos festivais teatrais, que visavam tomar compre­ ensível e aceitável, na ordem social, a alteridade dionisíaca e as dimensões da experiência que ela representa. 240

Três divindades femininas e três divindades masculinas completam o Panteão grego. Aríemis, irmã gémea de Apoio, é uma deusa virgem, donzela ligada aos espaços exteriores à cidade, como o bosque onde gosta de caçar com arco e flechas, ao contrário de Atena, que se instala, com a sua armadura de hoplita, no centro da cidade. Ártemis está ligada ao culto feminino, preside aos rituais das raparigas e à sua passagem da condição de virgens para a de mulheres casadas, protegendo também os partos e os nascimentos Muito diferente é a natureza de Afrodite, deusa do sexo e da geração, provavel­ mente aparentada com as grandes deusas orientais da fecundidade. Associada ao desejo erótico (de facto, é mãe de Eros), Afrodite mantém-se alheia à zona familiar e conjugal: ligada como está à dimensão incontrolável e primordial da sexualidade, define-se portanto, em certos aspectos, por oposição ã reprodução matrimonial­ mente regrada simbolizada por Hera. L.igada à fertilidade da terra e aos ciclos da natureza, Deméter pode comparar-se a Dioniso; todavia, o seu domínio não está associado ao vinho mas ao cultivo dos cereais, e portanto às próprias origens da civilização agrícola. Em Perséfone, a filha de Deméter que Hades levou para o subsolo, o reino da morte e das trevas, e que, por intervenção de sua mãe, regressa na Primavera à luz do Sol, celebra-se a alternância sazona! das searas, da sementeira, mas também, e mais em geral, o ciclo dos nascimentos e das mortes. Estes aspectos convertem Deméter numa divindade particularmente ligada aos cultos femininos; além disso, como veremos, as vidas de Deméter e,de Perséfone conferem-lhes um papel central nos mistérios de Elêusis. Quanto ao trio masculino, inclui uma divindade com caracterisücas muito espe­ ciais, Hermes, que personifica a figura do mensageiro e do viajante; divindade móvel, ligada aos caminhos e aos espaços abertos, Hermes simboliza além disso a passagem do mundo dos vivos para o mundo dos mortos, já que tem a tarefa de conduzir ao Além as almas dos defuntos. A sua capacidade de proceder a trocas e de fazer contactos, bem como a sua mobilidade de viajante tomam-no um deus funda­ dor dos comércios e da cultura, como arte de comunicação e de compreensão entre os homens. No lado oposto está Hefésto, divindade artesanal ligada aos espaços fechados da oficina e da fotja do ferreiro, expressão do poder transformador e criador da técnica. No culto dos artesãos, Hefesto costuma ser associado a Atena. Contudo, a sua mulher é Afrodite, união que liga a capacidade generativa e sexual da natureza à produtividade artificial da técnica Mas Afrodite ignora o laço matrimonial, prefe­ rindo ao laborioso Hefesto a força primordial, guerreira e destruidora de Ares: deus da guerra, temível divindade dos campos de batalha, Ares está especiaímeníe ligado à coragem dos combatentes homéricos, na sua dimensão de furor e de incontrolado impulso homicida O Panteão grego inclui naíuralmente outras divindades, para além dos doze grandes deuses Algumas dessas divindades menores são bastante antigas, como os já citados Hades, deus dos infernos e dos mortos, Héstia, Eros e Perséfone Outros se lhes juntam, na época clássica, após um típico processo de conceptualização moralizadora, de carácter juridico e político, do universo religioso da época arcaica À medida que esse universo vai parecendo inadequado, na sua personalização 241

narrativa e ícónica, para exprimir a complexidade crescente da experiência social, vão sendo integradas figuras não provenientes da originária conformação poética do mundo dos relatos míticos, mas directamente da abstracção, da sublimação de valores e problemas da nova realidade colectiva. Surgem assim divindades como Dice, a Justiça, concebida como filha de Zeus para simbolizar o seu envolvimento directo na garantia dos valores ético-políticos da coexistência social; ou Irene, a Paz, uma divindade que exprime a necessidade de harmonia no interior e no exterior da polis, ou, mais tarde. Tique, a Fortuna, cujo culto assumirá grande importância na época helenística dada a sensação geral de insegurança pessoal e colectiva. Ainda na época helenística, os contactos com culturas religiosas alógenas, so­ bretudo a egípcia, levarão a incluir divindades estrangeiras no panteão grego, embora associadas sincreticameníe às que eram tradicionalmente fámiliares: assim, Ámon será associado a Zeus, por vezes venerado com duplo nome, Ísís a Deméíer e Osíris a Dioniso No entanto, as velhas divindades do Olimpo homérico já tinham passado por uma outra, e decisiva, transformação: tinham sido integradas no horizonte da polis, tomando-se representantes de uma religião cívica e politizada O aparecimento, no horizonte da Grécia clássica, de um organismo social e político abrangente, capaz de: restruturai a experiência colectiva e a vida pública e privada, como foi a polis, não podia deixar de se intrometer no tipo de relação entre homens e deuses e no papel destes na existência humana As divindades olímpicas são integradas nos espaços sociais da vida pública, chamadas a prestar, como qualquer cidadão activo, o seu serviço na polis dos homens Esse serviço — que será compensado com práticas de culto sujeitas a regras, legisladas e financiadas pela comunidade polí­ tica — consistirá acima de tudo em garantir protecção e prosperidade à polis — tarefa confiada em primeiro lugar às divindades tutelares — e depois em aconse­ lhar, ajudar e assegurar as suas actividades,. Não há guerra ou fundação de colónias, promulgações de leis ou tratados, ajuste de matrimónios ou contratos, que não requeira a protecção de uma divindade, cuja atenção é solicitada com os actos de culto adequados e os sacrifícios necessários; e não há nenhum acto de convivência entre cidadãos, desde a festa à assembleia, que não seja consagrado à divindade de quem se espera protecção e benevolência. O lugar de eleição da concídadania entre homens e deuses é a residência construída pela cidade para as suas divindades, representadas pelas respectivas estátuas: situado no centro da cidade, no coração do seu espaço público e bem visível de todos os pontos da polis, o templo está aberto ao público e é propriedade de todos os cidadãos. A comunidade cultual que se reúne no templo e nos rituais que aí se praticam identifica-se com o corpo cívico e reforça a sua coesão, porque cimenta a unidade dos cidadãos, que é gaiantida pela sua relação comum com a divindade Por isso, Héstia, a divindade que preside ao lar comum da polis, pode ser identificada com «a própria legalidade» da cidade (Xenofonte, Helénicas, 2, 3,52) Por conseguinte, as funções sacerdotais, os colégios de padres {hierèis) que administram os templos e oficiam o culto, não podem ser considerados cargos profissionais peimanentes e estruturas separadas do corpo cívico. Os cargos sacer­ dotais, tal como as magistraturas, costumam ser atribuídos por eleição ou por 242

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sorteio, e aliás os próprios magistrados da polis, bem como os arcontes atenienses e os éforos espartanos, desempenham funções sagradas. Contudo, mesmo no caso de existirem sacerdócios hereditários, como os que cabem às famílias atenienses dos Buzigues e dos Praxiérgides, esses cargos estão sujeitos ao controlo público da polis: na sua qualidade de tesoureiros do culto e dos bens divinos, portanto comuns, têm de prestar contas dos seus actos perante a cidade, no termo do seu mandato, que é sempre provisório e revogável. Aliás, dadas as características fundamentais da religião grega, também não se pode exigir que os sacerdotes possuam uma compe­ tência teológica especial, para lá do património mítico-ritual que todo o cidadão conhece; do ponto de vista moral, bastará que estejam isentos de contaminação e cumpram os ritos de purificação obrigatórios antes de darem início aos rituais e aos sacrifícios,. O sacrifício às divindades olímpicas constitui seguramente o momento fulcral daquilo que Platão define como «a amizade entre deuses e homens» (Banqiteie, 188c) e portanto também da amizade política entre os homens, que aquela deve garantir. Como referimos, o elemento essencial do sacrifício é naturaimente a oferta votiva aos poderes divinos. Porém, na concepção mitológica dos Gregos, e na sua ritualização do sacrifício, existe algo de mais específico.. De acordo com o mito, na origem do sacrifício está um ardil, urdido por Prometeu, que tinha reservado para os homens a carne do animal, deixando para os deuses apenas as partes não comestí­ veis, destinadas a serem queimadas e convertidas em fumo. Esse ardil pôs termo à comensalidade originária de homens e deuses e confériu-lhes um regime alimentar diferente: para os deuses imortais, fumos e aromas; para os homens, a carne, associada à mortalidade. A ruptura provocada por Prometeu não é eliminada no acto sacrificial — porque não se pode regressar à comensalidade das origens — mas harmoniosamente reconstituída. Os deuses assistem ao sacrifício e regozÍjam-se com ele; quanto aos homens, são autorizados a comer carne porque se alimentam de animais cuja morte é legitimada, não contaminadora, devido à sua consagração ao culto divino. Ao sacrifício segue-se portanto o banquete, uma refeição comum em que a repartição das carnes sanciona e legitima as hierarquias sociais, cabendo as partes melhores aos magistrados, aos sacerdotes e aos cidadãos mais eminentes. Tanto o sacrifício como o banquete decorrem num ambiente festivo: as Panateneias atenienses, por exemplo, tal como são reproduzidas nos frisos do Parténon, são um dos mais extraordinários exemplos de auto-exaltação do corpo social, de representa­ ção da concórdia e da harmonia que reinam entre os seus membros, e entre estes e as suas divindades. «Os deuses, compadecidos do género humano», escreve Platão, «que nasceu para sofrer, concederam uma trégua e fixaram-na na sucessão das festas devidas à divindade, e para companheiros da festa deram as Musas e Apoio Musageta e Dioniso» (Leis, 2, 653d). Uma trégua prolongada, se pensarmos que em Atenas, no século v, cerca de cem dias por ano eram dedicados às diversas festas que acompanhavam os ritos sacrificiais. O carácter público, festivo, solar do sacrifício oferecido às divindades olímpicas é ainda mais realçado, por contraste, pelos aspectos dos ritos sacrificiais dedicados aos poderes infernais, ctónicos, ligados ao mundo dos mortos, que persistem, embora numa posição marginal, na polis clássica. Desenrolam-se normalmente na 243

escuridão nocturna, sem um altar erguido e bem visível a todos mas direciamente na terra nua; em geral, pratica-se o holocausto, ou seja, a combustão de todo o corpo da vítima sacrificial, pelo que não ficam partes disponíveis para o banquete comum Por conseguinte, globalmente, trata-se mais de um ritual apotropaico, de esconjuro e de aversão do que de contacto e de pacificação harmoniosa entre o grupo humano e as divindades que o protegemAliás, esta vertente obscura do rito sacrificial oculta uma dimensão da experiên­ cia religiosa grega, um emaranhado de problemas existenciais ligados ao medo da morte, ao temor inspirado pelo invisível e pelo desconhecido, a que a religião olímpica, tanto na sua vertente «heróica» primitiva como na sua posterior metamor­ fose política, não pode dai' respostas tranquilizadoras nem conceder formas de compreensão e de controlo, É neste terreno — o teneno difícil do destino individual e da angiistia gerada pela sua precariedade — que se encontram os limites de uma religiosidade tolalmeníe ligada à projecção de uma dimensão pública, social, comu­ nitária.. Por isso, será complementada com formas diferentes de relação com o sagrado, que constituem uma vertente subterrânea, mas em certos aspectos não menos importante, da religiosidade do homem grego.

Os mistérios e as seitas

Para os Gregos, o deus dos infernos, Hades, é uma divindade sem templo nem culto. A sua remoção do mundo da visibilidade olímpica, a par do tenor gerado pelo mundo do invisível, do indizível, do contaminante, provoca a necessidade de uma experiência religiosa diferente, longe dos espaços e das formas de culto público e diurno. É dessa neceásidade que nascem os mistérios (o termo mysièria deriva de myr/eí, iniciado, e exprime o secretismo que envolve esses cultos, a obrigação que têm os seus participantes, os iniciados, de manter silêncio acerca do que é feito e visto durante os rituais). Contudo, será de esclarecer desde já um equívoco que pode facilmente associar-se ao carácter iniciático e secreto dos cultos mistéricos De facto, não estão reservados a uma minoria exclusiva e sectária: qualquer cidadão pode ser iniciado e, na realidade, costuma sê-lo; por outro lado, são admitidos indivíduos normalmente excluídos dos cultos olímpicos da polh, como os estran­ geiros e os escravos, e naíuralmeníe também as mulheres. Portanto, os cultos misteriosos não são mais restritos do que os cívicos; em princípio e também de facto, são até mais abertos, já que a esfera dos iniciados potenciais e efectivos supera de longe os limites da cidadania , Isso significa que se dirigem mais ao homem enquanto tal do que ao palitei, e que penetram portanto num domínio de experiência mais profundo, mais radical e mais difuso, do que o que respeita à auto-representação e à garantia do corpo cívico da polis. A necessidade de um complexo processo de iniciação e o segredo que envolve os rituais misteriosos não implicam portanto uma selecção entre os possíveis parti­ cipantes, antes remetem para o carácter profundo, inexprimível, terrífico da dimen­ são de experiência em que decorrem É possível que a raiz mais remota da religiosi­ dade misteriosa resida nos festivais pré-históricos de exorcismo da morte, nas 244

inefáveis experiências de perda da corporeidade e de imortalidade que deviam ocorrer nessas ocasiões e que são devidas ao uso de drogas alucinogéneas. No que se refere aos Gregos, possuímos informações escassas (porque o segredo iniciático foi, em geral, surpreendentemente mantido) acerca dos mistérios de Elêusis, cele­ brados no âmbito da polis ateniense (mas existiam outros importantes cultos misté­ ricos, como os de Samotrácia) O ponto fulcral das celebrações eleusinas era a alternância entre Demêter e Perséfone: uma clara referência, portanto, à alternância da morte e da ressurreição própria do ciclo vegetal; mas íambém, e para além disso, à dimensão da geração sexual, e da esperança de uma salvação e de um resgate da morte que é o fim último de toda a experiência individual, «As coisas vistas, ditas e feitas» nos mistérios — segundo a expressão canônica que define o seu ritual — culminarão portanto numa visão, ou numa série de visões, capazes de evocar, directa ou simbolicamente, o sexo, a morte, a ressurreição, e de provocar assim uma sensação de terror primordial nos assistentes (o ponto culmi­ nante do ritual ocorre de noite, numa caverna iluminada por archotes) e, era seguida, de eliminar, através da epifanía tranquilizante da salvação e do novo nascimento, essa mesma sensação, de «purificar» os seus espectadores-actores, Embora profunda e radical, embora dirigida ao homem enquanto tal e não ao cidadão, a experiência dos cultos misteriosos complementa, mas não nega nem exclui, a da religião olímpica A polis ateniense tutela, protege e administra os mistérios de Elêusis, que não geram um tipo de homem ou uma forma de vida estranhos aos da comunidade política, já que o iniciado não vive nem deseja uma existência diferente da dos seus concidadãos (aliás, por norma, também iniciados). Os mistérios atingem portanto uma esfera de experiência e de problemas psicológi­ cos e religiosos a que os cultos públicos da polis não dão voz nem respostas e, precisamente por isso, funcionam como um complemento, tão necessário quão haimoniosamente integrável, não provocando nenhum conflito, privado ou público, entre o cidadão e o iniciado O caso das seitas sapienciais-reiigiosas, expressão da vertente mística ou, me­ lhor dizendo, «puritana» da religiosidade dos Gregos, é totalmente diferente O movimento órfico — do nome de Orfeu, um cantor, poeta e teólogo lendário a quem se atribuía uma descida aos infernos — surge na Grécia do século v a C nos mesmos meios culturais e sociais onde se tinham desenvolvido os cultos dionisíacos e que tinham provavelmente recolhido os ecos da tradição xamânica oriunda do mundo cííico e também das crenças indo-iranianas acerca da imortali­ dade, Do ponto de vista social, esses movimentos religiosos de protesto parecem estar associados às áreas de exclusão e de mal-estar provocadas pela fonnação do universo politizado das cidades: mulheres, estrangeiros, comunidades periféricas, figuras de intelectuais marginalizados, Do ponto de vista psicológico, os movi­ mentos sectários respondem às necessidades provenientes dos estratos mais indivi­ duais e profundos da experiência religiosa, que também existiam na ritualidade misteriosa, dando-lhes todavia respostas mais explícitas, mais articuladas tanto no plano religioso como no plano intelectual, surgindo por fim não como uma complemeníarização mas como uma alternativa radical à forma da religiosidade olím­ pica e citadina. 245

Essa alternativa surge em primeiro lugar como proposta de uma forma de vida oposta à do cidadão. Articula-se numa série complexa de obrigações e proibições, em especial a de comer carne, cujo sentido religioso veremos mais adiante; todavia, mais importante ainda do que o conteúdo material dessas obrigações e proibições é a sua capacidade de estabelecer uma regra minuciosa e de provocar depois entre os iniciados um fervoroso zelo de observância e de disciplina. A regra e a disciplina é que garantem a pureza dos membros da seita e confirmam a sua diferença em relação aos outros, aos profanos, com o seu mundo impuro e contaminado. Por conseguinte, a forma de vida escrupulosamente construída e observada pelas seitas constitui o princípio de exclusão que separa os poucos que optaram pela via da purificação e da salvação da irredutível multidão dos ímpios, o mundo da cidade triunfante que julga poder segregar os fracos e os marginais e que acaba por ser, graças à opção sectária, renegado e excluído. Contudo, em que é que se baseia a recusa da cidade e da sua religião por parte dessas minorias sectárias, ligadas a grupos sociais e a experiências culturais estra­ nhas à polis'? O que se recusa em primeiro lugar é o carácter violento, o aspecto cruel e homicida que se considera como elemento essencial da poliúzação da vida, A tÿdade surge sobretudo ligada à exclusão e à opressão de grupos sociais inteiros, à guerra entre diferentes comunidades, à stasis e ao pòlenws, ao assassínio (phonos) que lhe está inevitavelmente associado. Em suma, a cidade está indissoluvelmente ligada à memória da violência heróica da Ilíada, que a marca mesmo na sua prática religiosa. De facto, no centro dessa prática, está o sacrifício cruel, a morte do animal, o deixamamento do seu sangue; e nessas formas de religiosidade puritana, destinada, como veremos, a assumir também formas de teoria, há a consciência difusa de que a possibilidade latente em cada sacrifício é o homicídio, de que a violência, uma vez desencadeada, não pode ser sujeita a regras e contida na sua simbolização sacrificial. A vida social está portanto contaminada por uma culpa de sangue, que prolonga e perpetua outra culpa dupla, mais antiga, que marca a própria existência da humanidade, por um lado, e a de cada indivíduo, por outro. Há de facto um assassínio originário: segundo um mito órfico, os Titãs teriam atraído a uma cilada, assassinado, cozido e devorado o deus-criança Dioniso. Das cinzas dos Titãs, atingidos peio raio de Zeus como castigo por essa íeofagia primordial, teriam nascido os primeiros homens, manchados portanto desde o início por essa atroz contaminação. Mas a culpa originária muUiplica-se em cada existên­ cia individual: segundo Empédocles, um sábio do inicio do século v ligado tanto à religiosidade órfica como à filosofia pitagórica, cada vida está ligada à presença, num corpo mortal, de uma alma-demónio imortal, de origem divina mas expulsa da sua morada celeste devido a um assassínio ou a um perjúrio (B 115 Diels-Kranz), e obrigada depois a expiar a sua culpa vivendo uma vida tenena. Portanto, a vida dos homens sofre o peso dessa tripla culpa, que caracteriza a própria existência da humanidade, da sua sociedade política e de cada indivíduo; o castigo da culpa é a violência que contamina cada acío da vida, a dor, a opressão e a angústia que a acompanham, a espera funesta da morte. Mas há uma via para a salvação, para uma felicidade imortal capaz de resgatar os próprios limites da condição humana. Essa

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via consiste numa dupla estratégia: em primeiro lugar, deve opor-se à corporeidade contaminada e mortal o elemento divino e imortal que existe em nós, a alma (a concepção forte da alma nasce, na cultura grega, precisamente neste contexto religioso e sapiencial), Por conseguinte, é preciso libertar a alma, libertá-la dos laços da corporeidade. Ao mesmo tempo, é preciso purificar a alma da culpa que a fez descer da sua condição de demónio divino e penetrar num corpo; o laço com a corporeidade é usado como um instrumento necessário para expiar a culpa cujo castigo simboliza Para se atingir qualquer um dos objectivos — purificação da corporeidade e purificação da alma — a vida terá de ser vista como um exercício de sacrifício, de renúncia, de ascese: é o que visam todas as regras que definem o modo de vida sectário, A renúncia principal e fundamental, do ponto de vista simbólico, é a de comer carne, e, ao mesmo tempo, do sacrifício que lhe está indissoluvelmente associado na religião da cidade: essa dupla renúncia simboliza a recusa da violência, do assassínio, do derramamento de sangue que contaminam a existência humana Existe depois toda uma série de regras de abstinência, a começar pelo controlo da sexualidade, que exprimem a recusa de misturar a alma e o corpo No diálogo platónico em que mais ressoa a tradição órfica e pitagórica, o Fêdon, a vida caracteriza-se nitidamente como exercício de preparação para a morte: «Portanto, a purificação [tór/ian/y] não é, como dizem os antigos, mais do que a preparação para manter a alma separada do corpo, e habituá-ia a recolher-se e a fechar~se em si mesma, fora de todo o elemento físico, e aí ficar, tanto quanto possível, na vida presente como na futura, solitária em si mesma, empenhada na sua libertação em relação ao corpo como se fosse um vínculo [.,..], E não é a isso, a essa libertação e separação da alma era relação ao corpo que se chama morte?» (67c-d ) Por conseguinte, para o orfismo, a salvação individual é essencialmente a salva­ ção da alma, salvação merecida pela prática de uma purificação que não se reduz a um gesto ritual, antes caracteriza toda a existência: o deus por excelência do orfismo é Apoio kaíhartès, o «purificador».. Liberta do corpo, a alma purificada pode regressai' à beatitude da sua originária condição divina; os adeptos da seita costuma­ vam levar para o túmulo tabuinhas de ouro ou de chifre (como as que foram encontradas em Locros, na Magna Grécia, e em Olbia, no mar Negro), que confir­ mavam a sua purificação e invocavam os deuses do Além para que a alma do defunto fosse recebida junto deles Os Órficos basearam essa concepção da alma e da sua salvação numa teogonia que se opõe à de Hesíodo tal como a sua recusa do sacrifício cruel se opunha às práticas religiosas da polis, teogonia que conhecemos apenas fragmentariamente (entre outros, graças a um papiro recentemente encontrado êm Derveni). Se Hesío­ do descrevia a organização do mundo divino como uma passagem do caos dos inícios para a ordem concretizada no reinado de Zeus (onde se podia reconhecer a sociedade dos heróis e depois a sociedade política), para os Órficos há, pelo contrário, a passagem de uma ordem inicial, simbolizada pela unidade do Princípio primordial — a plenitude do Ovo cosmogónico, a indistinção da Noite — para a desordem da multiplicidade e da diferenciação, com o conflito e a violência que 247

comportam.. Há porém uma nova ordem, que se exprime pelo advento de Dioniso, pela sua «paixão» — no acto leofagico dos Titãs — e peia sua recomposição final; no homem, o equivalente do que aconteceu com Dioniso exprime-se pela contami­ nação originária, a purificação e a salvação da alma No horizonte religioso do orfismo, Dioniso desempenha pois um papel tão importante como Apoio, ou mesmo mais importante.. A relação existente entre o puritanisme ascético e vegetariano do orfismo e a orgia libertadora dos rituais báquicos próprios do dionisismo constitui um sério problema interpretativo Há sem dúvida a referência comum a estratos sociais marginais e a formas de cultura e de religiosidade de protesto, alternativas às formas de cultura e de religiosidade «ofi­ ciais» da sociedade da polis. Todavia, para além disso, o orfismo viu provavelmente em Dioniso o deus da inocência originária e perdida, da pacificação entre os homens e entre os homens e a natureza, que as violentas sociedades da guerra e da política tinham posto em crise. É certo que a inocência do dionisismo comporta uma purificação da condição histórica dos homens que tende para um retomo à inocência natural da animalidade, enquanto a dos órfícos visa sobretudo a recuperação de uma condição divina por parte da alma; porém, as duas vertentes puderam decerto ser interpretadas como expressões de uma recusa comum, de uma comum aspiração a uma ordem e a uma paz que a religião da política não podia assegurar. Contudo, a referência a Apoio — deus da sapiência e também da pureza — domina, incontestada, na tradição filosófica que, desde os Pitagóricos até Platão, retoma e elabora teoricamente a mensagem religiosa do orfismo. Entre o século vi e o século v, os Pitagóricos desenvolvem a concepção órftea da salvação numa elaborada doutrina do ciclo das reencamações da alma.. Demônio imortal, a alma sofre uma série de encarnações em vários corpos mortais, de condição superior ou inferior segundo o nível de purificação atingido na vida anterior. No fim, a alma poderá afastar-se definitivameníe do ciclo dos nascimentos para regressar ao divino de que provém (segundo uma versão da doutrina), ou poderá reencarnar' nas formas de vida mais elevadas concedidas ao homem, as do rei justo e sobretudo do sábio, que passará — como acontece definitivamente na reelaboração platônica desta tradição — a ser o filósofo Aliás, nos Pitagóricos, a purificação ascética exigida pela «vida» órfíca já apresenta um aspecto novo: às abstenções e às renúncias rituais alia-se a forma mais elevada da purificação «apolínea», que implica a dedicação à sapiência teórica, ao estudo dos mais puros objectos de conhecimento Por um lado, a matemática, a geometria, a harmonia, a astronomia, a cosmologia e a filosofia — em suma, o domínio da teoria pura — completam e, em certo sentido, relegam para segundo plano os aspectos propria­ mente rituais e religiosos das práticas de purificação da alma; por outro lado, adquirem um valor religioso, uma consagração apolínea, que converterão a forma de vida do sábio e do filósofo na mais elevada e mais grata aos deuses. Esta tradição chegará mesmo a atingir um pensador «leigo» como Aristóteles, que nas últimas páginas da sua Ética a Nicómaco (iO, 7-9) elaborará um verdadeiro hino à perfei­ ção, à béatitude, à proximidade com o divino que são apanágio da vida filosófica No decurso deste caminho, a relação entre o comportamento dos sábios, dos filósofos, dos intelectuais e as crenças religiosas nem sempre será, porém, de 248

integrações e de transferências progressivas, como acontece com a conrente minori­ tária e sectária que vai do orfismo ao pitagorismo e a Platão Essa relação iria conhecer momentos de conflito e de crise.

A crítica à religião e a partilha das crenças

Para os Gregos, a experiência religiosa sÍtuou-se sempre em dois planos diferen­ tes mas estreitamente ligados.. Por um lado, a rituaiidade quotidiana; por outro, como seu nível de sentido e de inteligibilidade, o conjunto dos relatos míticos, mais ou menos directameníe ligados a necessidades profundas de garantia da ordem do mundo, de sentido e valor da experiência social e individual. Portanto, a observân­ cia do ritual exige em certa medida a crença no universo do mito; e essa crença acaba por ser possível — num panorama intelectual que se vai tomando cada vez mais complexo, mais cheio de problemas, de instrumentos e de desafios — só através de uma transferência para um espaço e um tempo diferentes do espaço e do tempo históricos e sociais. Isto é, exige a inscrição num registo autónomo de verdade, não comunicante e não vinculado aos registos referentes à dimensão histórica, política e intelectualmente dominável da vida. Num certo sentido, na Poética, Aristóteles podia ainda considerar os factos do mito como eventos {genòmena) realmente ocorridos (1451b 15 segs.), mas apenas na medida em que perten­ cem a uma dimensão espácio-temporal não homogénea e allieia àquela em que se desenrola a experiência histórica e sobre a qual os seus intiumentos intelectuais podem agir. A crise da crença mítica, o seu conflito com a racionalidade político-filosófica que reina sobre a vida social dos homens, verificam~se, pelo contrário, quando essa racionalidade tende a invadir o espaço da crença, ou quando a própria crença se coloca numa dimensão espácio-temporal não distanciada da dimensão histórica. O primeiro desses choques ocorre quando a forma de racionalidade sapiencial e depois filosófica, devido à sua crescente capacidade de abstracção, tende a invadir o espaço «outro», não quotidiano, do mito Nesse confronto desigual, a imagem religiosa antropomórfica do mito revela de imediato a sua inadequação intelectual, a sua natureza poética e ingenuamente projectiva. Já Xenófànes, no século Ví, assina­ lava impiedosamente esse aspecto: «Os mortais julgam que os deuses são gerados e têm um modo próprio de vestir, uma voz e um aspecto» (B 14 Diels-Kranz); «aliás, se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos, ou fossem capazes de pintar e de executar com as suas próprias mãos obras de arte como os homens, os cavalos pintariam imagens de deuses e moldariam estátuas semelhantes a cavalos, e os bois pintá-las-iam e moldá-las-iam semelhantes a bois» (B 15 Diels-Kranz); «os Etíopes afirmam que os seus deuses são atarracados e negros, os Trácios afirmam que têm olhos azuis e cabelos ruivos» (B 16 Diels-ííranz) Esta critica devastadora ao antropomorfismo mítico deixa o campo livre e disponível para a abstracção filosófica. Será aí que Parménides, logo a seguir a Xenófànes, instalará o seu ser uno, imóvel, necessário (o oposto da variegada e múltipla nanatividade própria do mundo mítico); depois dele, esse nível «outro» 249

e superior do mundo irá sendo ocupado por outras configurações teóricas, até à teologia de Aristóteles, que, na Metafísica, consentirá em lançar um olhar retrospec­ tivo sobre os seus precursores,. «Os homens originários e antiquíssimos viram estas coisas sob a forma do mito, e dessa forma as transmitiram aos que se lhes seguiram, dizendo que os corpos celestes são divindades, e que a divindade cerca toda a natureza,» Até aqui, Aristóteles é compreensivo e indulgente. Todavia, logo a seguir acrescenta: «O resto [isto é, os nomes e os relatos dos deuses] foi acrescenta­ do depois, também miticamente, para convencer a maioria e para impor a obediên­ cia à lei e por interesses. De facto, dizem que esses seres divinos são semelhantes aos homens ou a outros animais, e acrescentam outras coisas, que derivam dessas ou que são muito semelhantes a elas » (12, 8,.) Portanto, Aristóteles separa nitidamente um núcleo de verdade, um «resto» da sapiência antiga — a fé na divindade dos astros — da configuração mitico-poética, daquele antropomorfismo narrativo em redor do qual se articulara a religião dos gregos, Uma vez que invadiu o seu espaço, o pensamento filosófico só pode dar uma explicação instrumental de toda essa bagagem mítica tradicional A primeira explicação é de tipo político: os deuses da crença comum foram inventados — na sua versão moralizada, de garantes da Justiça — para incutir o respeito pela lei e pelos valores sociais nas mentes dos simples, que os transgrediriam se não receassem o castigo divino. Neste sentido, Aristóteles já fora precedido, em finais do século v, pelo sofista oligárquico Crítias, que escreveu: «Creio que um homem astuto e sábio inventou para os homens o medo dos deuses, para que os maus receassem também pelo que às escondidas faziam ou diziam ou pensavam J Assim, penso que houve alguém que conven­ ceu os homens de que os deuses existem» (B 25 Diels-Kranz) E, depois de Crítias e Aristóteles, uma longa tradição filosófica, desde Epicuro a Lucrêcío, esforçar-se-ia por convencer os homens de que o receio dos castigos divinos era um absurdo, A segunda explicação instrumental do mito reside na sua explicação alegórica, que também se orgulha de uma longa tradição, desde os sábios pré-socráticos até aos filósofos estóicos e neoplatónicos Segundo essa tradição, o mito exprimiria de uma forma poética, para uso das mentes simples e para adorno, um núcleo de verdades filosóficas ocultas: assim, o carro de Apoio simbolizaria o movimento do Sol, a justiça de Zeus simbolizaria a existência de uma razão providenciai que estabelece a legalidade da natureza, as gerações dos deuses simbolizariam a ordem de constituição do cosmos, e assim por diante, Se 0 primeiro conflito entre crenças mítico-religiosas e racionalidade filosófico-poiítica ocorre quando essa racionalidade, devido ao seu poder de abstracção, invade o espaço remoto das crenças, o segundo ocorre quando essas crenças, pela sua capacidade de condicionar, através da educação, a vida histórica dos homens, invadem o espaço ético-político. Como vimos, Platão receava os efeitos deseducativos da poesia «teológica» de Homero e dos seus seguidores, e propunha ao legisla­ dor da nova cidade que corrigisse de um modo edificante os textos antigos e banisse para sempre da polis os poetas. Segundo Platão, enquanto se pensar que «Homero educou a Hélade e que merece ser aprendido para se poder governar e educar o mundo dos homens, e a vida de cada um for organizada e vivida segundo as regras desse poeta», não haverá nem uma boa forma de vida nem uma cidade justa; porque, 250

acrescenta ele, «se admitires a sedutora Musa iirica ou épica, no teu Estado reinarão o prazer e a dor, em vez da lei e desse princípio que, de comum acordo, sempre se considerou como o melhor, a razão», isto é, a razão filosófica (República, 10, 606a s g ) A nova cidade não só deve banir a má religião mitológica dos poetas, pelos efeitos perversos que tem na educação dos cidadãos, como também deve basear as suas próprias instituições e a sua educação numa nova teologia, que corresponda aos ditames da razão filosófica: tratar-se-á, segundo as Leis platónicas, de uma teologia baseada na crença na divindade dos astros, e na existência de uma provi­ dência divina que garante a ordem do cosmos e é, por isso, normativa em relação à existência humana Essa nova teologia filosófica, bastante mats pobre de conteúdos narrativos e imaginários do que a «poética», mas muito mais exigente em termos de obrigações normativas e educativas e muito mais rica de asserções dogmáticas, sentir-se-á tentada a dotar-se de um aparelho de controlo e de coacção, entre o Estado e a Igreja, capaz de impor a ortodoxia e de punir as transgressões. Assim, Platão pensará dotar a teologia formulada no livro décimo das Leis de um órgão de controlo, o Conselho nocturno, capaz de punir com a morte o crime de impiedade (Leis, 10, 12); e, no século m a, C,, o estoico Cleantes ainda proporá que se julgue por impiedade perante um tribunal pan-helénico o astrónomo Aristarco, que tinha posto em dúvida a centralidade da terra (e, consequentemente, dos homens e dos seus deuses) no sistema dos astros e dos planetas. Peránte os diferentes impulsos desagregadores — sectários e filosóficos — a polis reage, em defesa da religião e do panteão que a instituem e a alicerçam, de modos diferenciados. Como se viu, em relação ao dionisismo adopíam-se formas de integração no âmbito da religião cívica, que permitem ao mesmo tempo um controlo dn seu potencial subversivo e uma profícua utilização da sua relação com uma dimensão «outra» do sagrado (ao contrário de Roma, a polis grega nunca chegará a proibir os ritos báquicos, proibição aliás posta em cena por Eurípides, nas Bacantes, por ordem do rei Penteu, cruelmente punido pelo deus devido à sua impiedade). Os Orficos foram repelidos e mantidos numa situação marginal e desacreditada de magos purificadores e de místicos com alguns laivos de charlatanismo, que iam de cidade em cidade, de casa em casa, oferecendo os seus livros e os seus ritos estranhos, e instalados em comunidades extremamente periféricas em relação ao universo da polis O caso dos Pitagórícos é diferente: dado terem tentado converter, na Magna Grécia, a sua anomalia religiosa num regime político que tinha por objectivo o puritanismo da seita, foram escorraçados — como aconteceu em Crotona, provavelmente em meados do século v a, C.. — por um pogrom sangrento; em seguida, a díáspora pitagórica na Grécia atingiu um nível idêntico ao da marginalização do orfismo, embora iniclectuaimente fosse muito mais influente, A atitude da polis e da sua religião para com o desafio filosófico apresenta caiacteristicas complexas, de difícil interpretação. Desprovida de uma ortodoxia teológica própria, é norma da polis ignorar as provocações e as transgressões filosóficas, aliás restritas a uma escassa minoria de intelectuais sem efectíva inci­ dência política. Todavia, na época clássica, essa atitude conhece duas excepções aparatosas: os processos por impiedade intentados em Atenas contra Anaxágoras,

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por voUa de 440 a. C., e contra Sócrates, em 399 a. C Aquele era acusado de ter negado a divindade dos astros e em especial do Sol, figura apolínea por excelência, considerando-os como aglomerados de matéria incandescente, e foi punido com o exílio Sócrates, como se sabe, foi acusado de desencaminhar a juventude ateniense, negando, entre outras coisas, as divindades da polis e importando novos deuses, de natureza talvez óríica (o «demónio») e cosmológica (as «nuvens» de que falava Aristófanes na sua sátira) Por estes crimes, Sócrates foi condenado à pena de morte, que ele recusou converter em exílio, como teria sido seu direito. Coníraríameníe ao que poderiam Jevar~nos a pensar, estes dois processos — que levaram, porém, os filósofos a adoptar uma atitude de prudência em relação à polis, de ta! forma que Platão, como discípulo de Sócrates, preferiu exilar-se temporaria­ mente, e Aristóteles chegou a recear que se repelisse com ele o processo de Sócra­ tes — não significam que na cidade existisse umá intolerância religiosa que levasse à perseguição das heresias. Tanto o processo de Anaxágoras como o de Sócrates são sobretudo considerados como episódios da luta política em curso na cidade: em Anaxágoras queria atingir-se o meio político-intelectual próximo de Péricles, e Sócrates era um membro eminente do grupo oligárquico chefiado por Crítias que, cong o golpe de Estado de 404, tinha posto cm perigo a democracia ateniense Todavia, mantém-se o facto de, em ambos os casos, um júri popular, que represen­ tava a polis inteira, ter sido levado a formular um voto de condenação de natureza política com base em motivações religiosas. Isso significa, em suma, que a obser­ vância da religião olímpica e da sua ritualidade era sentida como associada à própria existência da polis e da sua ordem política; «acreditar nos deuses» significava em primeiro lugar não tanto um acto espiritual de fé ou um respeito teológico, mas uma sensação imediata de se pertencer à comunidade política, e acabava por equivaler a ser-se um bom cidadão ateniense, ou espartano e assim por diante Precisamente por isso, a polis reservou~se sempre o direito de legislar sobre o culto dos deuses e sobre a composição do seu panteão: a admissão de novos deuses, como aconteceu com a entrada de Asclépio em Atenas, em 420 a. C., e maciçamente na época helenística com o reconhecimento de divindades de origem oriental ou ligadas ao culto dos novos monarcas, só não violava a ordem e a estabilidade da cidade se fosse comunitariamente e pubÜcamente sancionada.. Igualmente regula­ mentados pela polis e colocados sob a sua tutela estavam os momentos de religiosi­ dade transcitadina e pan-lielénica, como as leis religiosas (anfictionias), os Jogos Olímpicos, a aceitação da autoridade dos sacerdotes de Delfos sobre toda uma série de acontecimentos públicos. Esses momentos de religiosidade pan-helénica, em­ bora fossem sempre regulados pela polis, faziam com que a aceitação da religião olímpica, do seu panteão e dos seus ritos, significasse não só que se era cidadão de uma polis, mas também que se era Grego, isto é, no fundo, que se era homem no sentido pleno do termo. Compreende-se assim que a recusa dessa comunidade religiosa podia comportar, para a consciência comum, uma auto-exclusão do corpo cívico, da civilização helénica, do próprio consórcio humano que com ela se identificava, à parte das degenerações bárbaras. Porém, como essa aceitação era pública e se limitava à esfera pública, não comportando nem uma fé consciente nem uma ortodoxia teológica, era possível separar os níveis de crença, o que foi ocor­ 252

rendo progressivamente Assim, na religião olímpica, «crer» continuaria a exprimir a observância dos ritos comuns e a participação no saber narrativo dos mitos que eram o indício de que se pertencia a uma comunidade, a uma cultura, a uma civilização, a par do uso da língua grega, do conhecimento de Homero, dos costu­ mes constituídos da vida social. A um outro nível, essa crença poderia muito bem coexistir, como foi acontecendo cada vez mais amplameníe a partir do sé­ culo rv a., C.,, com o monoteísmo e o imanentismo próprio da religião filosófica que pouco a pouco fora penetrando nas camadas cultas da sociedade (que tende cada vez mais a identificar os deuses com o primeiro deus, e este, como acontece com os Estóicos, com o princípio racional de ordem e de sentido imanente à natureza do mundo), ou até com o cepticismo religioso muito presente entre os intelectuais. Por conseguinte, na consciência dos gregos, o tolerante politeísmo dos mitos e dos ritos, ressalvadas as exigências políticas e sociais a que estava indissoluvel­ mente ligado, conviveu largamente com as mais ousadas experimentações intelec­ tuais no campo teológico, ético e científico. Pelo menos até à aparição de novas formas religiosas, dotadas de uma forte carga de ortodoxia teológica e de uma instituição eclesial com poderes coercivos, que atacaram directamente tanto esse politeísmo como essas experimentações. Todavia, com tudo isto, estamos já muito além da experiência religiosa dos Gregos, ainda que os novos monoteísmos, desde o judaico e cristão até ao islâmico, se tivessem, em medidas diferentes, reclamado das suas elaborações teológicas e da sua concepção redentora da alma.

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CA PITU LO II N:lo é este o local adequado para fomecer uma ampla bibliografia No entanto, poder-sc-á facilmente constituir uma a panír de um certo número de estudos gerais Entre os manuais de inspiração factual e positivista, surgidos sobretudo na Alemanha, no século XIX e no início do século XX, os mais utilizáveis são os de H Delbrück. Geschichte der Kriegskimt im Rahmen der poliüschcn Geschichte, I. 1900 (nova edição organizada por K Christ, 1964) e de J Kromayer c G Veith, Hecr,vesen und Kriegführung der Griechen und Römer, in W Otto, Handbuch der Aitermmswissenschaft. IV, 3~. 1928; veja-sc também P Couissin. Les Institutions militaires el navales des anciens Grecs. !932 Aigumas sínteses recentes propõem uma interpretação mais «sociolôgica» da guerra: F E. Adcock, The Greek and Macedonian Art of War. 1957; J-P Vernant (direcção de), Problèmes de la guerre en Grèce ancienne. 1968; Y Garlan, La guerre dans l'Antiquité. 1972; P. Ducrey, Guerre et guerriers dans la Grèce antique, 1958, corn abundantes ilustrações AcrcsccnSe-se ainda R lonis, «La guerre en Grèce Quinze années de recherche: 1968-1983», in Revue des études grecques, 98, 1985, 321-79 Numerosas obras mais especializadas são mais ou menos marcadas por essa nova orientação: AA VV, Années et fiscaliié dans le monde antique, 1977; J K Anderson, Military Theory and Practice in the Age of Xenophon, 1970; A Aymard, Etudes d'histoire anciesme, 1967, pp 418-512; Brelich, Guerre, agoni e adti nella grecia arcaica. 1961; P Brun, ELsphora, Syntaxis. Siratiotika, 1983; P Ducrey, Le traitement des prisonniers de guerre dans la Grèce antique, 1968; Y Garlan, Recherches de poliorcétique grecque, 1974; Id , Guerre et économie en Grèce ancienne, 1989; P D A Gamsey e C R Whittaker (Direcção de). Imperialism in the Ancient World, 1978; P A L Grecniiaigh. Early Greek Watfare, 1973; V. D H. Hanson, Warfare and Agriculture in Classical Greece. 1983; Id , The Western IVay of War. Infantry Battle in Classical Greece, 1989; V. Ilari, Guerra e diritto nel mondo antico. I, I960; M Launey, Recherches sur les armées hellénistiques, 1949-50 (reeditado em 1987, com posfádo de Y. Garlan, Ph Gauthier e C Orrieux); J F Lazenby, The Spanan Army, 1985; P Lerichc c H Trézîny (Direcção de), La fonißcation dans Thistoire du monde grec. 1986; F. Lissarrague, L'autre guerrier Archers, Pcltastas, Cavaliers dans l'imagerie attique. 1990; R Lionis, L^s usages de la guerre entre Grecs et Barbares, 1969; Id . Guerre et religion en Grèce à l'époque classique, 1979; N loraux. L'invention d'Athènes Histoire de Toraison funèbre dans la cité classique, 198! c numero­ sos artigos sobre a ideologia bélica; L P Marinovic, Le mercenariat grec au /V' siècle avant notre ère et la crise de la polis, em russo, 1975; tradução francesa, 1988; J., S Morrison e R T. Williams, Greek Oared Ships 900-322 B C , 1968; W, K Pritchett, The Creek State at IVar, MV, 1971-85; A. M Snodgrass, Artns and Armour of the Greeks. 1967; M. Sordi (Direcção de), La pace nel mondo antico, 1985; P. Vidaî-Naquet, l e chasseur noir. 198J. pp, 123-207; Id , «The black hunter revisited», in Proc Canbr Philal Soc , 212, 1986, pp 126-44 (efr Mélanges P Lévêque. Il, 1988) Para uma melhor abordagem problemática, veja-se E Ciccotti, La guerra e la pace nel mondo mirico, 1901; M I Finîcy, «Empire in the Greco-Roman World», in Greece Æ Rame, 25, 1978, PP 1-15; Id , «War and Empire», în Ancient History, 1985; fora do mundo clássico: J Bazin e E Terray, Guerres de lignage et guerres d'Eiai en Afrique, 1982; C. Meillassoux, Anthropologie de l'esclavage. 1986; W. V Harris (direcção de), The imperialism of Mid-Republican Rome, 1984 Entre os artigos recentes, são de assinalar: W R. Connor, «Early Greek land warfare as syrnbolic expression», in Past