O historiador e seu tempo
 9788571398559

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Nesta reunião de ensaios, pesquisadores destacados enfrentam temas centrais da historiografia contemporânea: a relação entre o historiador e seu tempo e os desafios teórico-metodológicos que acompanham o profissional da área.

O historiador

Antomo Uelso herreira Holien Gonçalves Bezerra Tania Regina de Luca (Orgs.)

'Q' editora

unesp

ISBN 9 78-35Apoio:

AIMPUH/SP

*JA P E S P

editora unesp

FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Marcos Macari Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Editor-Executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Conselho Editorial Acadêmico Antonio Celso Ferreira Cláudio Antonio Rabello Coelho José Roberto Ernandes Luiz Gonzaga Marchezan Maria do Rosário Longo Mortatti Maria Encarnação Beltrão Sposito Mario Fernando Bolognesi Paulo César Corrêa Borges Roberto André Kraenkel Sérgio Vicente Motta Editores-Assistentes Anderson Nobara Denise Katchuian Dognini Dida Bessana

A NTON IO CELSO FERREIRA HOLIEN GONÇALVES BEZERRA TANIA REGINA DE LUCA (Orgs.)

O HISTORIADOR E SEU TEMPO

Série Encontros com a História - ANPUH

editora unesp

© 2007 Editora UNESP Direitos de publicação reservados à:

S u m á r io

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Apresentação

1 O historiador sem tem po

C IP - Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

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Antonio Celso Ferreira

H58 0 historiador e seu tempo: encontros com a história/Antonio Celso Ferreira, Holien Gonçalves Bezerra, Tania Regina D e Luca (Orgs.). - São Paulo: Editora UNESP: A N P U H , 2008. Textos apresentados no XVIII Encontro Regional de História da A N P U H São Paulo, realizado de 24 a 28 de julho de 2006 na U N ESP ISBN 978-85-7139-855-9 1. História. 2. Historiografia. 3. Historiadores. I. Ferreira, Antonio Celso, 1952-. II. Bezerra, Holien Gonçalves, 1937-. III. D e Luca, Tania Regina, 1957-. IV. Associação Nacional dos Professores Universitários de História (Brasil). Núcleo de São Paulo. 08-3143.

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C D D ; 901 CDU: 931.1

2 Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil. Convergências e discordâncias 27 Maria Stella Martins Bresciani

3 Da senzala à colónia: quarenta anos depois

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Émília Viotti da Costa

4 Estrutura e agência na historiografia da escravidão: a obra de Emília Viotti da Costa 67 Rafael de Bivar M arquese

5 “N unca tive vocação para turista do passado nem para colecionadora de m em órias...” —um tributo a Emilia Viotti da Costa e aos quarenta anos de Da senzala à colónia 83 Editora afiliada:

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A so clad ó n d e E d lto rla le s U n iv e rsitária s de A m érica L a tin a y el C aribe

8§cEI A s s o c ia ç ã o B r a s ile ir a d e E d ito r a s U n iv e r s i tá r ia s

Cristina Wissenbach

6 Imprensa e ensino na ditadura

95

Maria de Lourdes M o n a co Janotti

7 A Revista do Brasil (1916-1944): notas de pesquisa Tania Regina d e Luca

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6

S U M Á R IO

8 Imprensa, história, historiografia. Algumas observações

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Márcia M ansor D'Alessio

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A presen tação

Escrever de novo a palavra M ulher”: recontando a história das lutas feministas 139 Margareth Rago

10 Historicizando o gênero

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Joana Maria Pedro

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11 Gênero, mulher e mulheres: aprimorando ferramentas e retomando narrativas em outro tem po... 189 Lidia M. V. Possas

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12 O professor de História e a produção dos saberes escolares: o lugar da memória 203 Helenice Ciampi

13 A produção de saberes históricos escolares: o lugar das memórias 223 Maria Carolina Bovério Galzerani

A relação entre o historiador e seu tempo é uma das questões cruciais do debate historiográfico, metodológico e teórico da História, com a qual invo­ luntariamente ou de maneira deliberada depara esse profissional das Ciên­ cias Humanas. Trata-se de uma problemática densa, mas propícia à reflexão crítica acadêmica, por isso mesmo escolhida como tema do XVIII Encontro Regional de História da AN PU H São Paulo, realizado de 24 a 28 de julho de 2006 na Universidade Estadual Paulista (Unesp), câmpus de Assis. Tendo em vista a qualidade e a abrangência das discussões então em pauta, considerou-se relevante publicar, na forma de coletânea, os textos das conferências e mesas-redondas ocorridas na ocasião. Apesar da diver­ sidade das abordagens e dos objetos nelas contidos, sobressai no conjunto a ênfase historiográfica, que se fundamenta na compreensão temporal dos sujeitos e práticas sociais, incluindo os próprios historiadores. O livro abre com o texto “O historiador sem tempo”, no qual Antonio Celso Ferreira rastreia a transformação da fábrica da história - expressão cunhada por Michel de Certeau - em indústria cultural e os desdobramen­ tos disso desde o século XIX em termos de modos de produção, sujeitos, práticas, mercados, produtos e seus valores. Ter em mente tais deslocamen­ tos, segundo ele, talvez seja o primeiro passo para refletir sobre a inserção (atordoante, mas nem sempre pensada) do historiador e seus bens culturais no fluxo acelerado do mercado capitalista atual. Maria Stella Martins Bresciani assina o segundo artigo, “Oliveira Vianna entre os intérpretes do Brasil. Convergências e discordâncias , em que não só coloca Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda em

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A PR ESEN T A Ç Ã O

interação nas lutas e projetos políticos de sua própria época, como também estabelece o tempo de seu diálogo crítico de historiadora com tais escritores. Dessa maneira, Bresciani retira os escritos desses “intérpretes do Brasil” da fixidez e do espaço sagrado impostos pela condição de "obras clássicas”, trazendo-os para o tempo presente. Os três textos seguintes foram debatidos na mesa-redonda em home­ nagem aos quarenta anos de publicação de Da senzala à colónia, de Emília Viotti da Costa. Inicialmente, a própria autora o situa em sua época de pro­ dução ao lembrar, com emoção e objetividade, que “toda obra de história é ao mesmo tempo ... individual e coletiva ..., uma visão do passado e um re­ trato do presente ... A obra também é expressão de determinadas condições de trabalho .... das tendências da historiografia, dos debates teórico-meto­ dológicos e das lutas políticas existentes na época de sua elaboração”. O balanço da contribuição de Emília Viotti à historiografia é feito, no segundo artigo, por Rafael de Bivar Marquese, que se vale ainda tanto das notas e do Prefácio acrescidos em sua segunda edição (1982) quanto do livro Coroas de glória, lágrimas de sangue (1994), em que a autora amplia os estudos da escravidão negra nas Américas. Para Marquese, ao trabalhar as “mediações entre estruturas históricas e agências dos sujeitos sociais”, a historiadora traz sugestões teóricas e metodológicas capazes de evitar alguns exageros interpretativos correntes na historiografia atual da escravidão. Por último, Cristina Wissenbach discorre sobre a importância da obra Da senzala à colónia em sua formação acadêmica e nas pesquisas que desenvolveu, afir­ mando que ela nos ajuda a “refletir sobre o posicionamento do historiador no desempenho do seu ofício” . O bloco de artigos a respeito das Relações de poder, imprensa e historio­ grafia assinala preocupações metodológicas indispensáveis no trabalho do historiador. No primeiro, Maria de Lourdes Monaco Janotti, ela mesma testemunha e historiadora do acontecimento enfocado, analisa os distintos aspectos como a imprensa abordou a crise do Colégio de Aplicação da Uni­ versidade de São Paulo, em 1967, durante o período da ditadura. Seguemse as notas de pesquisa de Tania Regina de Luca sobre a Revista do Brasil (1916-1944), que revelam de modo dinâmico a temporalidade presente da investigação diante da opacidade do passado. No arremate, tais textos são comentados por Márcia Mansor D ’Alessio, que os envolve na história dos mass media brasileiros ao longo do século XX.

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D a mesa-redonda Gênero e cultura são reproduzidas apresentações com a marcante preocupação historiográfica de localizar a emergência das temáticas femininas nas lutas afirmativas e no contexto sociocultural da época contemporânea. Em seu artigo, Margareth Rago recupera os insights teóricos foucaultianos presentes nos estudos das décadas de 1970 e 1980 e os atualiza na pesquisa que ora desenvolve sobre um grupo de militan­ tes anarquistas ativas durante a Revolução Espanhola (1936-1939). Joana Maria Pedro, por sua vez, demonstra de maneira cabal como as reflexões historiográficas sobre gênero são constituídas no interior do diálogo entre o campo acadêmico e os movimentos sociais das mulheres. A apreciação desses textos é feita por Lidia M. V. Possas, que os articula ao tema central do encontro acadêmico. Como não poderia deixar de ser, neste livro as relações entre o histo­ riador e seu tempo abrangem também a produção dos saberes escolares, assunto analisado nos dois últimos artigos: de Helenice Ciampi, acerca das memórias e práticas dos professores de História da rede municipal de São Paulo, e de Maria Carolina Bovério Galzerani, que discute a memória esco­ lar à luz de vários pressupostos teóricos —filosóficos, psicológicos, literários e históricos. Resta assinalar, por fim, a expectativa de que as pistas abertas nesta publicação possam contribuir no momento atual de notável capacidade expansiva e rigor especializado da produção histórica, que cada vez mais requer a auto-reflexão do historiador. Os organizadores

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H IS T O R IA D O R S E M TEM PO Antonio Celso Ferreira*

Não é fácil tratar da situação do historiador no tempo em que vivemos, cuja marca principal é a rapidez e a intensidade das rupturas. Desde as duas últimas décadas do século XX, quase todos os domínios da vida social fo­ ram modificados, o que esvaziou de sentido muitas das categorias que em­ pregávamos para descrever o mundo. Tornou-se flagrante a dificuldade dos especialistas em conceituar o novo sistema emergente. Uns falam de capi­ talismo pós-industrial, de sociedade globalizada ou organizada em redes, de capitalismo cultural ou cognitivo, outros de uma era de hiperconsumo, regida pela contínua revolução microeletrônica. O fato é que o próprio chão que pisamos nos parece estranho, como já anunciava Vilém Flusser, filósofo que não mereceu a devida atenção dos meios acadêmicos. Em suas aulas dadas no fim dos anos 1970 em Jerusalém, Marseille e São Paulo, quando apenas se iniciava o surto acelerado de mudanças, ele enfatizou que tudo tendia a se tornar rapidamente mutante: “nosso trabalho, nosso saber, nos­ sa saúde, nossa comunicação, nosso ritmo, nossa morada, nossas imagens, nosso jogo, nosso divertimento, nosso relacionamento, nossa escola, nosso •_ 1 receio... E preciso admitir que nosso ofício também foi abalado sob o impacto dessas transformações, como de resto todas as profissões intelectuais. Em-*1 tt

* Livre-docente do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Assis. E-mail: [email protected]. Conferência de abertura proferida no XVIII Encontro Regional da ANPUH, seção São Paulo, 24 jul. 2006. 1 FLUSSER, V. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades, 1983.

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bora a história não seja o setor de ponta das ciências apropriáveis pelo ca­ pitalismo, e nem mesmo das humanidades ou das artes economicamente utilitárias, temos sido progressivamente integrados ao novo sistema, ainda que de modo seletivo e desigual. Mas, apesar de estarmos acostumados a lidar com a mudança histórica em sentido retrospectivo, nem sempre con­ seguimos compreender as mutações contemporâneas de largo espectro e, sobretudo, seus impactos na nossa movediça e instável identidade. Confesso que estaria mais à vontade se escolhesse como tema qs histo­ riadores do passado, ou pelo menos aquelas gerações cuja atuação não al­ cançou a avalanche de rupturas do fim do século XX. Antes disso, o ofício da história encontrava-se em processo de afirmação e os horizontes culturais pareciam menos nublados. É certo que os totalitarismos, os genòcídios, as guerras mundiais e as ditaduras ameaçavam terrivelmente os intelectuais, mas em certa medida reforçavam o sentimento de u m a identidade de gru­ po, bem como os engajamentos filosóficos e ideológicos. Apesar dos muitos obstáculos a enfrentar, predominava a confiança no progresso do conheci-' mento e a crença na centralidade do papel desempenhado pelo historiador na vida social. Hoje, ao contrário, prepondera a incerteza quanto a essas mesmas convicções, apesar da inegável capacidade expansiva que nosso ofício alcançou desde então. Estou convencido de que para investigar como os historiadores intera­ gem com o tempo atual não basta analisar seus pensamentos, suas filiações, historiográficas e obras. É preciso situá-los nos processos de deslocamento, tanto os mais abrangentes aos quais me referi quanto os engendrados em seu mundo profissional específico. Mas quem se dispuser a fazê-lo enfren­ tará não só as dificuldades inerentes à caracterização e conceituação da di­ nâmica geral em curso, como também a falta de levantamentos e análises sobre a condição dos historiadores atuais, especialmente dos brasileiros. Michel de Certeau foi um dos primeiros historiadores a estabelecer as conexões entre nosso ofício e o sistema de produção mais amplo, que se enraíza no impulso transformador da modernidade ocidental. No início dos anos 1970, concebeu a operação historiográfica como uma prática so­ cial componente de um sistema fabril. Sua finalidade seria transformar o dado natural em produto cultural sob a forma escrita, mediante o uso de determinadas técnicas. Compreendeu, enfim, os historiadores como sujei­ tos vinculados a lugares de produção e instituições socioeconômicas, políti­

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cas e culturais, que permitem ou interditam o que fabricar.2 Se, à primeira vista, tal formulação permanece presa ao modelo de um capitalismo indus­ trial que já se encontrava em via de alteração naqueles anos, é necessário reconhecer que Michel de Certeau também se mostrou atento às formas contemporâneas de produção e consumo do simbólico, exemplificadas pela mercadoria cultural. Nessa medida, não ignorava o nítido avanço do capita­ lismo na apropriação dos bens culturais, que talvez constituam hoje um de seus núcleos mais expressivos. Ele ainda manifestou sua preocupação com os dilemas da universidade diante da cultura de massa, sugerindo questões que até hoje não fomos capazes de enfrentar decisivamente.3 Seguindo algumas pistas indicadas por Michel de Certeau e outros crí­ ticos da cultura contemporânea, pretendo nesta conferência apontar certos deslocamentos ocorridos no ofício historiográfico desde o século XIX, que talvez possibilitem refletir sobre a inserção do historiador no tempo atual. A estratégia escolhida comporta perigos evidentes, entre eles a generalização, as analogias carentes de bases empíricas mais sólidas e o estabelecimento de mo­ delos quase ideais de agentes, instituições e práticas. No limite, corro grande risco de subtrair a historicidade dos eventos, erro que é um pecado capital para o historiador, uma vez que seus principais objetos são as práticas e os sujeitos singulares, adequadamente localizados em seus contextos próprios. Mas quero dizer que estou consciente desses perigos ao propor esta reflexão.

M o d o s de produção De arte à indústria cultural Até meados do século XIX, os estudos históricos eram considerados uma atividade espiritual, guardando assim parentesco com a criação artísti­ ca e a especulação filosófica. Por oposição ao trabalho manual, o historiador era tido como um homem de letras voltado para a reflexão e a livre pesqui­ 2 CERTEAU, M. de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. Parte do capítulo intitulado “A operação historiográfica" foi publicada no primeiro volume de Faire de l’histoire, organizado por Jacques Le Goff e Pierre Nora, obra considerada mani­ festo da Nova História. 3 CERTEAU, M. de. A cultura no plural (parte II, cap.5). Campinas: Papirus, 1995.

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sa. Suas principais qualidades deveriam ser a mente superior, a sensibilida­ de para com o passado, o gosto pelo antiquário e pelas leituras. A história também se distanciava das ciências, que ainda não haviam conquistado seu campo autónomo. O século XIX assinala o limiar da profissionalização da atividade histó­ rica, que aos poucos vai se tornando um ofício —termo que a historiografia consagrou, embora se refira ao trabalho artesanal. Mas, ao longo do sécu­ lo, o ofício histórico ainda assegurava a relativa autonomia do historiador quanto à escolha de suas investigações e o controle do sujeito sobre o tempo e o processo de produção. E no século XX que a história, assim como outras áreas das humanida­ des, passa a orbitar, progressivamente, no circuito capitalista. Isso ocorre não só por analogia à forma de produção industrial, do modo caracterizado por Michel de Certeau, mas também pela absorção paulatina de seus pro dutos no mercado. É óbvio que isso não ocorreu de maneira homogénea pela própria diversidade dos bens produzidos, muitos dos quais são impróprios1 para o consumo ampliado. Soma-se a isso uma relativa impermeabilidade das instituições do saber às quais sua produção está subordinada, sobre­ tudo a universidade. Os próprios artífices (outra palavra que soa como um anacronismo) do conhecimento histórico relutaram e continuam relutando em admitir tal integração, sob vários argumentos, especialmente, os apelos à natureza distintiva do trabalho intelectual. Mas o universo das represen­ tações simbólicas dos historiadores deixa à vista a crescente assimilação da cultura de mercado, como a adoção de termos como fonte, para designar a matéria-prima de seu trabalho, produção, para indicar seu resultado, e pro­ dutividade, para definir o valor dos sujeitos envolvidos. Na atualidade, estreitam-se os laços da produção historiográfica com a indústria cultural, em um momento em que o capitalismo vai transformando, de modo gritante, os bens simbólicos e culturais em mercadorias. Lyotard cunhou esse novo sistema de capitalismo cultural. Outras expressões criadas por diversos autores seguem a mesma lógica.

Do vínculo duradouro ao contrato provisório No século XIX, a atividade do historiador era geralmente assegurada por vínculos duradouros de natureza diversa, que proporcionavam estabilidade

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para a realização de sua obra. A origem social abastada de alguns era a fonte segura para o dispêndio com atividades não-remuneradas; outros viviam de ocupações rentáveis na magistratura, na diplomacia e demais funções supe­ riores da política. O florescimento das universidades na Europa forneceu, por outro lado, as bases para a profissionalização do magistério, que viabili­ zou espaço para a pesquisa. De toda maneira, se comparados com a situação de hoje, tais vínculos garantiam uma atividade mais autónoma. Diferentemente disso, a condição do historiador contemporâneo é mar­ cada pelo declínio dos suportes sociais e pela emergência de vínculos pro­ visórios, indicando uma subordinação cada vez maior às leis do mercado: dependência de bolsas das agências de fomento à pesquisa, de contratos provisórios com instituições de ensino, ou de formas de trabalho pouco consolidadas, por exemplo, em arquivos, museus e na mídia. As univer­ sidades públicas, principalmente no caso brasileiro, ainda asseguram cer­ ta garantia de estabilidade. Enfrentam, porém, o dilema de como manter os contratos plenos e estáveis diante das exigências de produtividade e das novas demandas criadas pela massificação do ensino. Nada garante que a estabilidade se estenda às gerações futuras de historiadores.

Das horas vagas ao tempo exíguo Embora muitos historiadores do século XIX já falassem do tempo dis­ ciplinado e relativamente encurtado para suas leituras e investigações, ele geralmente equivalia ao tempo ocioso de outras ocupações pessoais: nos ne­ gócios, na política, na diplomacia, no próprio magistério superior, entre ou­ tras. Nesse aspecto, a disciplina significava autodisciplina, ou seja, controle do tempo pelo próprio sujeito. Na comparação com o tempo atualmente despendido para a formação profissional e a obtenção dos resultados de pes­ quisa, tratava-se de um tempo largo, que envolvia décadas. Hoje, o controle do tempo é imposto ao historiador pelas instituições de fomento à pesquisa, pelas instâncias reguladoras da universidade e pela demanda da mídia, incluindo a mídia acadêmica. O tempo se torna cada vez mais curto porque tende a ser medido pelos investimentos na formação dos recursos humanos e pela durabilidade dos produtos fabricados. Assim como outros agentes da produção cultural contemporânea, mas embora em posição marginal dentro do grande mercado, o historiador passa a ser guia­

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do, decisivamente, pela máxima: time is money, money is time. E, tendo em vista as tendências do capitalismo atual, não seria equivocado acrescentar: culture is moneytime, ou ainda, timemoney is culture. Surge assim um para­ doxo: como tratar do tempo - categoria central da reflexão histórica - sem tempo?

Da erudição à versatilidade No século XIX, tanto mais era valorizado o historiador quanto maior erudição demonstrasse. O cabedal de conhecimentos do homem erudito era adquirido de maneira autodidata ou pela frequência a cursos caracterizados pelo ecletismo: letras, direito, artes, humanidades. A opção por especialida­ des, além de menos comum, não descartava o domínio dos saberes gerais. Atualmente, a especialização predomina no mundo acadêmico, enten­ dendo-se por conhecimento a formação com fins claramente determina­ dos. Não ocorre de maneira distinta no território dos historiadores, que se: expandiu enormemente em escala global nas últimas décadas, conforme é demonstrado em Passados recompostos, organizado por Jean Boutier e Dominique Julia.4 No caso brasileiro, embora não disponhamos de dados sis­ tematizados, a tendência se manifesta já nos cursos públicos de graduação, cujos padrões são em grande parte definidos pela pós-graduação e implicam a desvalorização do ensino como formação universalista. Não é à toa que se, observa flagrante descaso coletivo em relação ao ensino fundamental e às licenciaturas de graduação. Mas a busca de especialização estimula a oferta de estágios de pós-doutorado e outras modalidades de formação continua­ da. Outras carreiras estão aí para demonstrar o que está por vir, como a indústria dos MBA5e até a pré-graduação, que já se insinua no cenário ex­ tremamente competitivo da atualidade. Tudo isso aponta para a preponderância do conhecimento recortado e amparado em metodologias e técnicas específicas, que sobrepujam a teoria 4 BOUTIER, J., JULIA, D. (Orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/FGV, 1998. Ver, especialmente, o artigo introdutório dos organizadores: “Em que pensam os historiadores?". Outro artigo sugestivo é o de Thimothy Tackett, um dos autores da coletânea, que comenta a situação dos Estados Unidos, onde a especialização se deu de modo mais intenso. 5 Master Business Administration.

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e a reflexão, uma vez que estas são apropriadas de maneira instrumental. Contra esse estreitamento da formação dos recursos humanos, acena-se hoje para a necessidade de agentes versáteis, capazes de transitar de uma especialidade a outra, mediante o domínio básico dos conhecimentos ge­ rais, adquiridos de forma rápida. A versatilidade, seja lá o que isto possa significar, é a substituta da erudição no novo perfil profissional requerido pelo mercado.

Sujeitos e práticas Da elite à massa O historiador do século XIX era, regra geral, um homem da elite, não apenas no aspecto da origem social, mas também da sua pertença a insti­ tuições controladas pelos grupos dominantes, por cargos na magistratura, no governo ou no magistério superior. Recrutado para ocupar tais posições, tinha a missão de garantir a solidez das instituições e perpetuar o mundo cultural das elites. Desde a segunda metade do século XX, o historiador passa gradativa­ mente a provir das massas, primeiro das classes médias e, hoje em esca­ la significativa, dos segmentos populares. Trata-se de um processo que, abrangendo a maioria das carreiras profissionais, deriva do impulso demo­ gráfico e da progressiva massificação do ensino secundário. Embora seja de incidência mundial, desdobra-se de maneira diferente, dependendo dos contextos sociais e nacionais. Os distúrbios recentes ocorridos na França, envolvendo protestos dos jovens da periferia, sobretudo imigrantes, e a po­ lêmica em curso no Brasil a respeito da inclusão social na universidade, re­ velam que está longe de ser solucionada a demanda pela democratização do ensino e da cultura, o que redundará em mudanças ainda mais profundas no universo dos profissionais universitários. Até agora, por democratização se entendeu apenas a ampliação da oferta de vagas e cursos. Está implícita a idéia de que caberá ao mercado assimilar os produtos rentáveis da massifi­ cação e jogar às margens suas sobras. O fato é que os cargos antes reservados à elite, embora insuficientes para incluir todos os aspirantes à profissão, passaram a ser ocupados por sujeitos

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mais diretamente ligados às massas, ainda que em busca de distinção social. Acentuou -se também a hierarquização no interior das profissões uni ver sitá rias. Se, no passado, a dedicação ao magistério de primeiro e segundo graus não fechava as portas à ascensão ao ensino universitário, hoje, mais do que nunca, as fronteiras entre os dois campos parecem rigidamente definidas. Apesar disso, no Brasil, o magistério superior dá sinais de experimentar um processo análogo ao que ocorreu nas escolas públicas de ensino fundamen­ tal e médio, nas quais foram decididamente rompidos os vínculos sociais e culturais com as elites.

Da maturidade à juvenilidade

I

Com raras exceções, o historiador consagrado pelo século XIX era o ho­ mem maduro, já experiente em seu ofício, e possuidor de um conhecimento longamente acumulado. Suas principais obras eram divulgadas à altura dos quarenta ou cinquenta anos, faixa etária vista como expressiva da maturi­ dade, considerando-se o tempo médio de vida das populações da época. Atualmente, o historiador cada vez mais valorizado pela universidade é o jovem, dos vinte e pouco à casa do trinta anos. Isso se dá em consonância com as regras estabelecidas pelas agências de fomento à pesquisa, que têm dado prioridade aos programas de iniciação científica e de jovens doutores, para os quais canalizam maior soma de recursos. O impacto dessa tendên­ cia já pode ser notado na disputa desenfreada por bolsas e por orientação. A própria relação entre orientador e aluno, remanescente do antigo elo de confiança entre mestre e discípulo, que garantia a interação continuada en­ tre velhas e novas gerações, transforma-se em algo contratual e cada vez mais efémero. As regras em vigor incluem a especialização na graduação e a redução dos prazos para a obtenção do doutorado. Objetiva-se estimular a produ­ tividade da faixa etária jovem, de acordo com as exigências do mercado. Considerando tal expectativa, é necessário indagar como esta mesma per­ formance poderá ser mantida tendo em vista o aumento da expectativa de vida da população atual. Quantas idéias verdadeiramente originais um in­ divíduo pode ter em sua vida? Há quem diga que o historiador elabora uma única tese em sua existência, o resto são preparações ou variações do mesmo tema.

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De intelectual a operador Como reconheceu Jean-François Sirinelli, não é fácil definir o intelec­ tual, em virtude da polissemia dessa noção e do polimorfismo do seu meio que, além do mais, foi abalado pelas intensas mudanças sociais e culturais dos últimos cem anos.6No século XIX, predominou a compreensão do his­ toriador como homem de letras dedicado às atividades intelectuais da elite, distintas do trabalho banal e cotidiano. Desde meados do século XX, no entanto, ganha corpo a idéia do intelectual engajado nas causas políticas e sociais, à moda sartriana. Muitos historiadores incorporaram tal imagem. Essa figura está em franco processo de desaparecimento, tanto a do re­ presentante das elites identificadas com as instituições nacionais, como a do intelectual engajado nas causas sociais. Nas palavras do sociólogo portu­ guês Eduardo Prado Coelho, a distinção entre trabalhadores intelectuais e trabalhadores manuais está hoje bastante obsoleta. O aparecimento de uma área da classe média que se ocupa dos chamados “serviços” e que lida com aspectos imateriais sem se situar no campo específico dos intelectuais acabou por baralhar os dados.7 Por outro lado, se aceitarmos os argumentos de Marilena Chaui, o inte­ lectual se transformou em operador de sistemas, em decorrência das rápidas transformações na profissão intelectual, da emergência de um mercado de bens simbólicos e dos princípios administrativos e tecnocráticos aplicados à universidade: operador da produção universitária, do mercado acadêmico e das agências de fomento à pesquisa.8Vilém Flusser foi mais longe, ao se referir à emergência de um exército de programadores em todas as áreas, sub­ metidos à interação com os sistemas e aparelhos desumanos.9 Não foi à toa que se introduziu na agenda cultural a polêmica sobre o silêncio dos intelectuais, que progressivamente abandonam o espaço público rumo à vida privada, tema, aliás, caro aos historiadores contemporâneos. Mas talvez eles não estejam em silêncio, ao contrário, o ambiente dos ope­ radores ou programadores é bastante ruidoso. Na verdade, surgem formas 6 SIRINELLI, J.-F. Os intelectuais. In: Por uma história política, p.231 -94. 7 COELHO, E. P. Novas configurações da função intelectual. In: MARGATO, I. e GOMES, R. C. (Orgs.). O papel do intelectual hoje. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p.l 5. 8 CHAUI, M. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Editora Unesp, 2001. 9 FLUSSER, V .O p.cit.

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inusitadas de expressão, afinadas com os novos tempos de programação da individualidade e do consumo.

Produtos, mercado, valor Da tese ao artigo, da raridade à profusão Os profissionais das humanidades, incluindo os historiadores, não acei­ tam com facilidade a idéia de que operam segundo regras do mercado, ain­ da que do mercado acadêmico. Relutam até em admitir a pertinência des­ ta expressão. O fato é que, progressivamente, seu trabalho é medido pela quantidade e durabilidade dos bens produzidos. Que tipo de bens? Produtos culturais, que devem ter alguma destinação definida e empiricamente verificável. Até pouco tempo atrás, sua atividade era julgada pela capacidade de contribuir para o avanço do conhecimen­ to pela elaboração de uma tese original, que muitas vezes era divulgada na forma de livro. Julgada por seus pares da corporação acadêmica, a tese era o ponto de chegada de uma carreira e o atestado da capacitação plena do historiador. Atualmente, nota-se a tendência de compreender a tese como ponto de partida, o que implica a diminuição de sua importância, a não ser como ritual acadêmico e degrau de ascensão na carreira. Mais do que isso, o historiador passa a ser avaliado ao longo da carreira pela capacidade de oferecer produtos continuamente renovados. A fórmula procede das áreas científicas e tecnológicas já assimiladas com mais inten­ sidade pelo mercado. O artigo científico representa a forma mais adequada para a destinação ao mercado, em virtude da menor quantidade de tempo e de recursos despendidos para sua elaboração e divulgação. Os historia­ dores têm dificuldade em aceitar inteiramente tal fórmula (veja-se como exemplo o debate que hoje vem sendo travado na Capes), embora a oferta de artigos para publicação e o número de periódicos da área tenham cresci­ do vertiginosamente. No período de nascimento e afirmação do ofício histórico, tanto quanto das demais áreas humanas e mesmo das científicas, a natureza da produção era definida pela raridade dos bens criados. Uma vez que a quantidade da oferta de bens era pequena, as obras eram originais porque raras, ou seja, eram os únicos meios disponíveis para possibilitar o acesso a certo tipo de

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conhecimento. A história de uma civilização antiga só se encontrava em determinado livro; por meio de outro se podia saber de uma descoberta ar­ queológica sem precedentes; aquele outro livro fornecia um quadro geral da nação e assim por diante. O mesmo ocorria no domínio científico: determi­ nada obra e só ela trazia descobertas de indiscutível importância, capazes de mudar os paradigmas biológicos, físicos, ou químicos. Atualmente, a profissionalização das áreas de saber, a explosão demo­ gráfica da comunidade científica e a massificação do ensino universitário criam uma profusão de bens culturais, colocados à disposição do mercado, mas nem todos podem ser apropriados pelo comércio varejista. Tais obras deixam de ser avaliadas pelo critério da originalidade, da descoberta ou da invenção de novos paradigmas. Como podem ser avaliadas? Esta é a ques­ tão atualmente enfrentada pela comunidade acadêmica, que tem procurado estabelecer critérios para assegurar sua suposta relevância e qualidade, em face do aumento da oferta dos bens culturais. No entanto, esses critérios se baseiam em aspectos quantitativos de maior ou menor inserção no mercado acadêmico. Busca-se aferir o impacto dos artigos pelo número de referên­ cias em outros trabalhos e classificar os periódicos de cada área de conheci­ mento de acordo com o fator qualis. A inflação de produtos tem alarmado os editores universitários. Lindsay Waters, da editora da Universidade de Harvard, alerta sobre as consequên­ cias disso, expondo os números meteóricos de livros publicados nos Estados Unidos por universidades como a da Califórnia, de Colúmbia ou de Yale. Livros cuja produção requer a derrubada de florestas inteiras e que, afinal, vendem cerca de duzentos exemplares cada um, redundando em imensos es­ toques imóveis nas livrarias e nas bibliotecas. Para ele, temos de nos pergun­ tar aonde leva essa ânsia de publicação e se estamos realmente publicando o que é significativo e socialmente relevante.10 Mas sua resposta é negativa: estaríamos pouco a pouco perdendo nossa capacidade de julgar tais valores.

Do público seleto ao mercado insólito Impõe-se à reflexão, portanto, o problema do mercado consumidor de bens culturais, e particularmente do mercado da história. O assunto tem 10 WATERS, L. Inimigos da esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição. São Paulo: Editora Unesp, 2006.

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sido timidamente discutido na área, por exemplo, no livro já mencionado de Jean Boutier e Dominique Julia, que lança alguns dados interessantes sobre a França, caracterizada por fenômenos como: enorme crescimento do número de periódicos e de associações profissionais, verdadeiro boom de congressos da área reunindo milhares de pessoas, participação cada vez maior do historiador na mídia, e até mesmo o surgimento da figura do his­ toriador globe-trotter, participante ativo das reuniões científicas e culturais. Infelizmente, não temos informações sistematizadas sobre o caso brasilei­ ro, mas as impressões indicam que, embora em escala diferente, vivemos a mesma experiência de formação e expansão do mercado. No período de nascimento e afirmação da história profissional, era pe­ queno o número de instituições, de sujeitos e produtos constituintes do universo das humanidades e das ciências, tanto quanto o seu público leitor. A história, em particular, era assunto de interesse de um segmento seleto de homens letrados que formavam a elite política e cultural. O resultado do trabalho do historiador não se traduzia em rentabilidade económica, e sim ,: simbólica, que significava, especialmente, a consagração entre os pares. A ampliação desse raio de alcance deu-se com a massificação do ensino, a entrada das classes médias no circuito e a configuração de um mercado aca­ dêmico, do qual uma pequena fatia passou a interagir com o mercado global. O mercado da história apresenta hoje essas mesmas tendências, cujas feições são, entretanto, insólitas. Pode-se falar de um mercado acadêmico formado pelas instituições de ensino superior, associações de profissionais ou de estudos, editoras uni­ versitárias, bem como por espaços de encontros e sociabilidade, como as reuniões científicas. Algumas agências culturais públicas e privadas que não integram o mundo universitário tendem a estabelecer contatos even­ tuais com tal mercado em crescimento, por exemplo: instituições bancárias, museus, editoras comerciais, associações empresariais e outras. É nesse ter­ ritório que é divulgada a maior parte da produção histórica, onde se consti­ tui uma espécie de mercado consumidor circular entre pares. De qualquer modo, a divulgação dos produtos históricos nesse mercado não acarreta rentabilidade económica, e sim gratificação cultural hierarquizada e algu­ ma possibilidade de disputar cargos nas instituições acadêmicas e culturais. Por outro lado, ela gera um sobretrabalho igualmente não remunerado, ou apenas de modo simbólico, que abrange a participação crescente em nu­

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merosas atividades acadêmicas: conselhos editoriais, comissões culturais, bancas, congressos, grupos de pesquisa e outras. Os periódicos e livros acadêmicos, em geral publicados pelas editoras universitárias, são destinados ao mercado circular dos próprios pares aca­ dêmicos, o que traz por consequência a preocupação com o elevado custo das tiragens em face do número restrito e relativamente fixo de leitores. Daí a solução que se tem buscado: publicações eletrónicas e tiragens sob enco­ menda para revistas ou mesmo para livros originários de tese. Os editores estão cada vez mais preocupados com o excesso da oferta desse tipo de mer­ cadoria, que se desvaloriza gradualmente. A história tem obtido certo êxito no mercado consumidor mais amplo, haja vista a ampliação da quantidade de livros publicados por editoras co­ merciais com razoável recepção do público leitor de massa. Nesse caso, dá-se preferência tanto a livros de autores consagrados, nacionais ou es­ trangeiros, quanto àqueles que pela novidade do tema revelam viabilidade comercial perante um público que valoriza exotismos, abordagens biográ­ ficas de sujeitos singulares, histórias turísticas ou nostálgicas. Há também um público consumidor de jornais, revistas de grande circulação, progra­ mas de rádio ou televisão e páginas da internet, cujo perímetro é incerto, mas que estimula a abertura de espaços de participação do historiador. Os produtos destinados a ele são os artigos de divulgação científica ou de opi­ nião e os comentários especializados sobre eventos do tempo presente. No caso da participação de historiadores em programas de entretenimento ou em noticiários da televisão brasileira, a experiência vem demonstrando que não são significativas as diferenças de conteúdo entre o enfoque histórico e o jornalístico. Isso indica, mais uma vez, a progressiva integração à cul­ tura de massa. Com raras exceções, os produtos dirigidos ao público mais ampliado não geram rendimentos económicos, e sim gratificação cultural, desta feita, a gratificação de tornar-se objeto de consumo.

Da mega à nano-história Segundo Vilém Flusser, o século XIX e a primeira metade do século XX foram caracterizados pelo gigantismo em todos os domínios sociais e culturais. O surgimento de cidades-metrópoles e de máquinas-monstros expressou muito bem tal marca. O conhecimento também se fundamentou nas grandes teorias, que tinham a pretensão de dar respostas aos grandes

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dilemas humanos. A época em que vivemos é marcada, ao contrário, pela miniaturização, representada não só pela concentração das pesquisas em partículas ínfimas e fugazes, como também pela fabricação de aparelhos cada vez menores, que funcionam através de chips de inteligência progra­ mável. Segundo ele, a miniaturização do saber significa que o universo do discurso da ciência vai-se ampliando e aprofundando. As nossas perguntas estão se tornando sempre mais férteis, e provocam sempre novas per­ guntas. As respostas que estamos recebendo a tais perguntas estão se tornando sempre menos satisfatórias, e o universo está se tomando sempre mais isento de valores e de causas.11 Nesse aspecto, o saber se desvaloriza como sabedoria porque o universo de sua significação é mais pobre. Não é fortuito que as grandes descobertas e invenções científicas tenham desaparecido da cena presente. Hoje se ope­ ra com a renovação contínua e a reciclagem de materiais e de métodos. A nanotecnologia pode ser a metáfora do conhecimento atual. Ocorreria o mesmo no campo historiográfico? Arrisquemos uma res­ posta. A fábrica da história tornou-se imensamente fértil desde a segunda metade do século XX. A renovação contínua e a reciclagem passaram a im­ perar entre nós, sob a forma de subdivisões historiográficas, temas, fontes e métodos. De forma correlata ao mundo da tecnologia, também começamos a fabricar nossos aparelhos celulares, cada vez menores e mais repletos de dispositivos de comunicação. Mas não confundamos esse tipo de produção com o que se chama de micro-história, vertente que ainda aposta nas gran­ des preocupações da macro-história, pela inversão da escala e do foco. Tra­ ta-se, na verdade, de nano-história, isto é, uma imensidão de produtos que fornecem pequenas respostas a uma infinidade de pequenas questões. A diferença em relação a outras mercadorias é que nossos nanoprodutos, além de carentes de maior significação, circulam apenas no mercado acadêmico.

Fluxos culturais Em Moralidades pós-modemas, Lyotard inventa uma estória —espécie de fábula - de uma antropóloga francesa que vai dar uma série de confe­ rências no Japão. Durante a viagem e sua estada no país, essa globe-trotter 11 Op. cit, idem, p.47.

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conhece várias pessoas do mundo cultural global que, assim como ela, fa­ lam a mesma linguagem, servem-se das mesmas máquinas e produzem os mesmos bens. Todas esperam ampliar seu leque de conhecimentos sobre singularidades dos povos, gêneros, indivíduos e comportamentos, mas vi­ vem em um universo cultural homogéneo. Refletindo sobre o assunto, a antropóloga conclui que o mundo atual reúne as alteridades em um enorme museu de quinquilharias. Que museu? O mundo cultural contemporâneo ... Capital cultural, quer dizer: todas as culturas a serem capitalizadas no banco cultural. E a memória da humanidade. E preciso saturar cada agência. O grosso está feito, salvaram e estocaram Lascaux, as tumbas do Nilo, as pirâmides astecas e também a linha Maginot, e os túmulos de Xi’an, Spinoza e Agatha Christie. Agora é preciso arquivar o contemporâneo. E assim a intelectual francesa também se descobre como um agente, mas bem-sucedido como fluxo rápido, desse fluxo cultural capitalista: um fluxo que tanto mais valor terá ou durará quanto puder dispor de idéias supostamente singulares e de meios técnicos rápidos e eficazes para produzir e divulgar mercadorias, cujo tempo de duração tem prazo de validade cada vez mais efémero. Será que esta fábula pode servir para os historiadores? Para terminar, recorro novamente ao alerta de Lindsay Waters que, con­ tra a pressa acadêmica atual de tudo pesquisar, tudo registrar, tudo publi­ car, tudo divulgar, enfim, de tudo transformar em cultura, lembrou que Picasso escondeu o seu Demoiselles d ’Avignon por seis anos depois de o ter pintado, menos por modéstia do que por medo do público. E não se tratava de um quadro pouco significativo ou original. A lição do pintor nos indica que “temos de saber quando temos de esconder as coisas, e quando é tempo de mostrá-las”. E que, diante da ruidosa indústria do mundo de hoje, que nos transforma em fluxos culturais cada vez mais rápidos, obrigando-nos a anunciar produtos e nos anunciar como produtos, talvez valha a pena re­ cordar o que disse Nietzsche: “Alguém deve falar apenas quando não deve ficar em silêncio” .12

12 Apud WATERS, Lindsay, op. cit.

2 O l iv e ir a V i a n n a e n t r e in t é r p r e t e s do

B r a s il . C o n v e r g ê n c ia s e d is c o r d â n c ia s Maria Stella Martins Bresciani'

Agradeço à direção da ANPUH-SP pelo convite para expor as idéias centrais de meu livro O charme da ciência e a sedução da objetividade. Oli­ veira Vianna entre intérpretes do Brasil, publicado pela editora da Unesp, em novembro de 2005.*1Agradeço também à professora Tania de Luca pe­ las palavras de apresentação. Ela definiu de modo claro os campos temáti­ cos de meus trabalhos: as leituras das cidades relacionadas às intervenções urbanísticas e as vertentes do pensamento político. Nesses dois campos temáticos, sempre me intrigou a forma como os autores estruturam seus discursos, sejam eles orais ou escritos; o modo como resvalam para a mani­ pulação das emoções, por mais que busquem e alardeiem objetividade. O recurso a palavras que formam imagens de grande poder persuasivo ou a linguagens que mesclam iconografia a palavras consiste em prática comum a esses dois campos temáticos. O apelo visual, detentor de imensa carga emotiva, é, pois, um componente essencial aos discursos que além de con­ vencer pelo argumento lógico, devem seduzir, persuadir pela emoção pro-

* Agradeço imensamente às colegas e amigas Vavy Borges, Márcia Naxara, Izabel Marson e Christina Lopreatto pela leitura e sugestões. 1 Os temas abordados na palestra estão mais desenvolvidos nesse livro e em alguns artigos. Destaco os mais recentes: Identidades inconclusas no Brasil do século XX - fundamentos de um lugar-comum. In: BRESCIANI, S., NAXARA, M. (orgs.). Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. 2. ed. Campinas: EdUnicamp, 2005; e O poder de sedução dos textos: o assédio pelas imagens e representações. In: SEIXAS, J., BRESCIANI, S. (Orgs.). Assédio moral. Desafios políticos, considerações sociais, incertezas jurídicas. Uber­ lândia: Edufu, 2006.

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duzida, ainda que subliminarmente. Quantas vezes não sintetizamos uma idéia complicada por uma imagem ou introduzimos imagens para ilustrar idéias complexas?2 Tal como tenho ensaiado "dialogar” com os urbanistas atuantes na cida­ de de São Paulo na primeira metade do século XX, propus para essa palestra refletir sobre a possibilidade de se estabelecer um diálogo com os intérpretes do Brasil ativos nesse mesmo período. O livro sobre Francisco de Olivei­ ra Vianna, publicado no fim de 2005, estava concluído havia mais de dois anos, o que me permite hoje voltar a ele de forma mais distanciada. Ao relêlo, tive certeza de que não se trata de um trabalho acabado, uma página vira­ da na trajetória de historiadora, mas da “prestação de contas” de um longo período de pesquisa, de atividades em sala de aula, orientação de alunos nos cursos de graduação e pós-graduação e, em grande medida, exposição do resultado de debates no grupo de colegas do Núcleo História e Linguagens Políticas, importante fórum de troca de idéias e críticas construtivas. A to­ dos os colegas do Núcleo - brasileiros e franceses —devo muito. Nessa nova leitura, dirigi minha atenção para o tema do Encontro: a questão do tempo e da temporalidade para o historiador. Organizei a apre­ sentação em três partes ou três tempos. O primeiro, o tempo do meu diálogo com alguns intérpretes do Brasil que produziram textos na primeira meta­ de do século XX: eu, historiadora buscando em meu tempo acompanhar a mensagem de seus escritos e projetos políticos, já que todos eles elaboraram projeções para o Brasil. O segundo tempo vai ao encontro das matrizes do pensamento liberal e seus pontos de concordância com o pensamento con­ servador. O terceiro tempo se “situa” no momento em que esses intérpretes estabeleceram diálogos entre si e o modo como construíram esse diálogo, pois considero que perdemos parte dessas trocas ao estudar cada um deles em separado. Pareceu-me importante apreender o modo como seus textos se articulam num diálogo e, por vezes, em debates nada amistosos. Procuro

2 Este campo de indagações esteve sempre presente em meus estudos. Ao iniciar as leituras de Oliveira Vianna mantive o procedimento de análise utilizado nas pesquisas sobre cidades, quer fossem opiniões, quer relatos de moradores, viajantes, memorialistas ou considerações teóricas e projetos urbanísticos de autoria de especialistas. A meu ver as questões políticas, principalmente em sua dimensão teórica, expressam-se de forma explícita nas interpretações da cidade e de seus problemas. Não há um abismo entre esses dois campos de estudo. Há diferença de objeto.

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localizar em suas análises e projeções políticas pontos de concordância e discordância em suas análises e projeções políticas. Trata-se, pois, de um exercício em torno da noção de tempo histórico, sua densidade e suas múl­ tiplas significações.

Ler Francisco de Oliveira Vianna O que me levou a pesquisar os escritos de Oliveira Vianna foi certo des­ conforto intelectual, por ocasião de uma disciplina de pós-graduação mi­ nistrada por Francisco Weffort em 1971. O objeto de estudo estava bem definido: as várias vertentes do pensamento autoritário, tema sobremaneira significativo naquele momento. Minha escolha recaiu sobre Oliveira Vian­ na. A leitura da bibliografia sobre pensamento político brasileiro indicava, de modo enfático, ser ele um pensador autoritário, reacionário e racista, au­ tor de uma interpretação do Brasil no mínimo problemática. Seu nome par­ ticipava da sequência inaugurada por Alberto Torres, liberal decepcionado com a política republicana que aderira à vertente nacionalista. Alberto Tor­ res formara-se na Faculdade de Direito de São Paulo, fora deputado esta­ dual, deputado federal, ministro da Justiça no governo Prudente de Morais e presidente do Estado do Rio de Janeiro entre Io de janeiro de 1897 e31 de dezembro de 1900. Precedia Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos, entre os pensadores “autoritários” mais estudados. Autores pou­ co lidos nos cursos de história aos quais se dá, entretanto, especial atenção na área de ciência política, em que constituem leitura obrigatória. Já no campo da crítica historiográfica, em parte escrita por filósofos, cientistas políticos e sociólogos, Oliveira Vianna é colocado no fim de uma seqúência de autores iniciada por Varnhagen ou junto à chamada “geração de 1870”, em sua maioria formados pelo pensamento positivista. São estu­ dos que trazem valiosas contribuições. A meu ver, no entanto, aprisionamse a um problema de base: o pressuposto ou rótulo colocado já no início da pesquisa que, de imediato, conduz ou induz a leitura e as conclusões. No que diz respeito a Oliveira Vianna, o rótulo de autoritário, racista e rea­ cionário sugere que se busque a confirmação dessa classificação ou dessas premissas, procedimento que conseqúentemente limita o estudo ao detalhamento de cada uma delas.

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Afinal, a leitura da bibliografia sugeria que a etiqueta mais prejudicava do que ajudava a pesquisa. A primeira aproximação aos trabalhos de Oli­ veira Vianna resultou na certeza da importância de analisar seus textos pela leitura menos aprisionada a essas premissas, uma leitura que permitisse de­ finir o lugar de autor sem aceitar aquele que lhe era predeterminado, ainda que correndo o risco de chegar às mesmas conclusões. Essa aproximação não implicou ignorar a trajetória profissional de Oli­ veira Vianna, formado em Direito, estudioso da sociedade brasileira,3 en­ tusiasta do Golpe de Estado de 1930, também nomeado Revolução de 30, colaborador do governo ditatorial de Getúlio Vargas, mentor e participante ativo da elaboração da Legislação Trabalhista e da Legislação Social do Es­ tado Novo. Atividades que desenvolveu simultaneamente à escrita de nu­ merosos estudos sobre a sociedade brasileira. Foi sua atuação no Ministério do Trabalho, na qualidade de consultor jurídico, que o tornou autor impor­ tante para a Ciência Política. Afinal, essa legislação marcou, e ainda marca, o mundo do trabalho no Brasil. Quanto à opção por um Estado centralizado e forte, ele mesmo confirma essa preferência para o Brasil, em 1949, quan­ do em Instituições políticas brasileiras manifesta desapontamento diante da cena política, em particular o retorno do regime democrático em 1945, para o qual não considerava estar preparado o “povo” brasileiro. A seu ver, o trabalho de forjar o cidadão não se completara. Temos assim, na opinião de Oliveira Vianna, uma noção de tempo, tempo da ação política, o período do Estado Novo, considerado insuficiente para formar o cidadão brasileiro. Aliás, faço um parêntese. Preocupou-me, nestes últimos dias, a entre­ vista do professor José Murilo de Carvalho, ao jornal O Estado de S. Paulo em 23 de julho último, na qual expressa uma opinião aceita por muitos, dentro e fora do mundo acadêmico.4*Com o título “Uma democracia de duas caras”, o autor retoma o tema da cidadania no Brasil de hoje e sua dupla dimensão de “caras e vozes”: uma delas, a democracia da “opinião pública formada por 16% dos eleitores e a outra, a “opinião nacional”, composta pelos outros 84%. Para ele, somente os “cerca de 16% ou 21 mi­ lhões de pessoas bem informadas” estariam “em condições de fazer esco3 Seu estudo sobre a sociedade brasileira se inicia com o volume I de Populações meridionais do Brasil, publicado em 1920. 4 CARVALHO, J. M. de. Uma democracia de duas caras. O Estado de S. Paulo, 23 jul. 2006,

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lhas políticas”, detendo a capacidade de voto consciente. Já “os outros 104 milhões de eleitores, por viverem no reino da necessidade e apoiarem quem lhes pareça capaz de ajudá-los”, votam essencialmente em função do neopopulismo do programa do Bolsa-família. Esses 84% se moveriam, pois, menos pela consciência política e mais por uma questão de sobrevivência, demonstrando assim o despreparo de parcela expressiva da população para exercer seu direito ao voto. José Murilo de Carvalho termina a entrevista afirmando que só teremos uma democracia de opinião pública quando os restantes 84% se igualarem na capacidade de opinar e na liberdade de es­ colher dos 16% da população consciente. Alcançaríamos então a condição de democracia de opinião pública nacionalmente estabelecida. Assusta-me esse posicionamento que, como assinalei, se encontra bastante difundido. Não expressa, portanto, uma voz isolada.

Cidadania e maturidade/maioridade política Ocorreu-me uma indagação: estaríamos diante do retorno de uma teoria das elites? Em termos de opção, partilho da opinião de que é mais importan­ te participarmos de uma forma democrática de governo, por mais compli­ cado e difícil que seja o aprendizado prático, do que aguardar que uma elite minoritária passe a toda a população seus valores éticos e políticos, alguns questionáveis. Mesmo porque não creio que nossa democracia seja menos representativa do que a dos Estados Unidos ou de países europeus e penso que os eleitores de lá como os de cá votam segundo seus interesses. Não posso negar minha preocupação com posições como essa que lem­ bram as de um autor citado por Oliveira Vianna como fonte de inspiração teórica, o historiador conservador francês Hippolyte Taine. Trata-se de au­ tor bastante lido no Brasil nas décadas finais do século XIX e iniciais do XX, embora seus textos não tenham sido traduzidos para o português. Ê de sua autoria extenso e importante trabalho sobre a Revolução Francesa, As origens da França contemporânea, no qual ele indagava por que a França não conseguia se estabilizar institucionalmente. A primeira parte foi publi­ cada em 1875, quando a França ainda levava as marcas da derrota diante da Prússia em 1870 e da insurreição da Comuna de Paris em 1871, e na Assembléia Nacional ocorriam debates sobre questões cruciais, como o su-

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frágio universal (masculino). Alem desses dois acontecimentos marcantes, Taine lembra que a França passara desde 1789 por varias formas de gover­ no sem chegar a instituições políticas estáveis e, a seu ver, sólidas: “jamais ficamos contentes com a nossa casa política (uma metáfora para falar da forma de governo); treze vezes em oitenta anos nós a demolimos para refazê-la, e mesmo assim, ainda não encontramos a que nos convém”. Citava como exemplo da incapacidade política dos eleitores franceses seu próprio embaraço pessoal, em 1848, quando aos 21 anos votara pela primeira vez constrangido a escolher entre formas de governo que pouco conhecia, osci­ lando entre a mansão nobre, a casa burguesa, a moradia operária, a caserna militar, o falanstério comunista e mesmo o acampamento de selvagens”. Para Hippolyte Taine, não se tratava de caso único e, tal como/ele, outros franceses não se encontravam em situação muito diferente, o que o levou a afirmar: “Dez milhões de ignorâncias não fazem um saber. Um povo con­ sultado pode, na verdade, dizer a forma de governo que lhe agrada, mas não aquela de que necessita”.5 Em sua opinião, o país não contava com uma elite e por isso, em outubro de 1871, manifesta entusiasmo pela fundação da Escola Livre de Ciência Política.6Acreditava ser possível, a partir dessa iniciativa, formar elites e recuperar a convicção quanto à necessidade de dispor de bons administra­ dores em um país que, ao cortar a cabeça do rei e da família real no período mais radical da Revolução, eliminara a certeza da importância de se contar com homens preparados para a administração. Seu trabalho sobre As ori­ gens da França contemporânea (1875-1892-93) não faz o elogio do Antigo Regime; ao contrário, nele há criticas à vacuidade da vida cortesã dos no­ bres franceses em nítido contraste com a nobreza inglesa ocupada com a administração de suas propriedades e com os assuntos políticos. Seus co­ mentários deixam claro a que clientela se destinava a Escola Livre de Ciên­ cia Política: o homem que tivesse rendimento suficiente para dedicar parte de seu tempo a um longo currículo que compreendia as várias dimensões dá administração do país, bem como complexas questões concernentes às re5 TAINE, H. Les origines de la France contemporaine. Paris: Robert Laffont, 1986. Essas ob­ servações estão no Prefácio do Autor. Analisei a posição de Taine no artigo O pensamento político conservador após a Comuna de Paris. In: BOITO JR., A. (Org.). A Comuna de Paris na História. São Paulo: Cemarx-Unicamp/Xamã, 2001, p.217-31. 6 Até hoje é a Ciência Política que forma a maioria dos homens de Estado na França.

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lações políticas e comerciais internacionais.7Nesse mesmo ano, Hippolyte Taine publica outro artigo e se posiciona em relação ao sufrágio universal, em discussão na Assembléia Nacional.8*A seu ver, a população francesa não se encontrava apta para o voto, principalmente por estar em jogo a esco­ lha da forma institucional de governo. Convencido de que a Assembléia trabalhava segundo um cidadão idealizado, expôs sua preocupação com o alto índice de analfabetismo entre operários e trabalhadores do campo. País voltado preferencialmente para a produção agrícola, nele predominaria o camponês, pouco ou nada esclarecido. Na ausência de opinião esclarecida, “as listas” conduziam os eleitores a escolher entre homens que não conhe­ ciam e, por isso, “votavam ao acaso, às cegas”. Esse aparente desvio do tema da palestra tem a finalidade de indicar uma das facetas dos debates na Assembléia francesa que, em 1875, deram lugar à Constituição da Terceira República. Mantido o sufrágio universal masculi­ no, a intenção de dar resposta ao problema da formação do cidadão institui a instrução pública obrigatória. A instrução passava a ser não só um direito, mas também um dever. Desse modo, reforçava-se o entendimento da polí­ tica como questão de opção consciente entre programas e idéias. Como indiquei, ao me referir ao artigo do professor José Murilo de Carvalho, a questão do significado pleno de cidadania continua presente. Quem está em condições de votar conscientemente? Ao se considerar a po­ lítica um campo de debates entre idéias e programas exigindo elevado nível de abstração, imediatamente se afirma não ter o cidadão pouco instruído condições de se posicionar. Em tese, votará em quem lhe prometer algum retomo imediato: algum benefício para seu bairro, sua cidade, ou mesmo para o sustento de sua família. Será esse cidadão menos consciente do que os 16% que, em tese, têm boa formação e sabem votar? Não estará a mino­ ria dos 16% votando com base em seus próprios interesses? A meu ver, as convicções em assuntos políticos são essenciais, porém não excluem nossos interesses ou os interesses de grupos. Não se pode negar, por exemplo, que 7 TAINE, H. Fondation de 1’École Libre des Sciences Politiques. In: Derniers Essais de criti­ que et d ’histoire. 3.ed. Paris: Hachette, 1903, p.134-49, publicado originalmente no Journal des Debats, 17 out. 1871. 8 TAINE, H. Du suffrage universel et de la manière de voter in Deniers Essais de critique et d’histoire. 3. ed. Paris: Hachette, 1903, p.150-85; publicada originalmente em Le Temps, 5 dez. 1871.

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concordar com uma melhor distribuição social da renda traduz a adesão a um programa político no qual está presente a preocupação com a justiça so­ cial, mas expressa também a convicção de ser esse um meio eficaz para dimi­ nuir o espantoso nível de violência cotidiana. Tal como os que necessitam do Bolsa-famiha, votamos baseados em nossas convicções e nossos interesses Essas observações me conduzem à reflexão de Hannah Arendt sobre a concepção moderna de revolução, inaugurada com os acontecimentos fran­ ceses de 17 8 9 ..E » RevoluHon, a autora afirma que, diante d a e x p o '^ da pobreza e a insurreição violenta”, os homens da Revolução se obriga­ ram a substituir a luta pela liberdade, bandeira política e estímulo primeiro do movimento, pela questão social, ou seja, pelas necessidades humanas basicas de sobrevivência. A questão social se instala no cerne do processo revolucionário e da história, e as questões relativas à administração pública substituem os assuntos políticos.'» Mantendo a idéia do diálogo entre autores, a observação de Arendt me conduz aos pressupostos do pensamenliberal no Segundo tratado do governo de John Locke (1690) escrito no momento em que na Inglaterra, em 1688, a Revolução Gloriosa substituía uma dinastia católica por um rei protestante que governaria com base em uma c ^ a constitucional ou pacto original, base da monarquia parlamenar. s e texto e John Locke e considerado a mais importante contribuição a lei constitucional inglesa.11 v Duas idéias cruciais do texto de John Locke formam a proposta do pacto SOC..L primeiro, diz respeito aos homens livres proprietários de sua pessoa e/ou de bens amealhados pelo trabalho eà formação da comunidade sociale política (Commonwealth) que, por sua vez, constitui o território. E se Arenesta correta quando diz que as diretrizes desse contrato social estiveram no modo como os colonos da América do Norte se constituíram em comumdade e pais livre, essa noção de contrato dá pistas para entendermos os uidos do pacto por ocasião da declaração de independência dos Estados

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Unidos, em 4 de julho de 1776. Tal como John Locke reserva o Capítulo IV para a escravidão, considerando-a a continuação do “estado de guerra”, a convicção na “igualdade natural da humanidade” não pareceu contradizer a exclusão dos indígenas, escravos negros e mulheres dos direitos políticos da nascente república.12O que não impediu ser o país nomeado democracia por Alexis de Tocqueville na década de 1830.13 A meu ver, o pressuposto territorial se fixa, em grande parte, com a Revolução Francesa ao se defrontarem os constitucionais com o dilema da participação política da grande massa populacional. Definia-se o “comum pertencimento ao corpo social”, mas o acesso diferenciado ao sufrágio. O direito à participação política passou a dividir os franceses em “cidadãos ativos” e “cidadãos passivos”. Três critérios se superpunham na mente dos constituintes de 1789 ao fixarem a noção de independência que qualificava os "cidadãos ativos”: ser dotado de pensamento racional, elemento indis­ pensável à independência intelectual; dispor de independência social, ou seja, atuar como indivíduo e não como membro de um "corpo”; ganhar sua vida por meio de profissão independente que lhe proporcionasse a inde­ pendência económica. Também lhes parecia natural a cisão entre o domínio civil e social e o domínio natural e doméstico, o que impedia, evidentemen­ te, que mulheres, homens menores de 25 anos, limite etário rebaixado em 1792 para 21 anos,14 e serviçais domésticos15usufruíssem o direito de voto. 12 Cf. W OOD, G. S. The American Revolution. A History. Nova York: Modera Library Edition, 2002, p.99-105. 13 TOCQUEVILLE, A. A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977, publicado originalmente em duas partes, 1835 e 1840. 14 A lei de 20 de setembro de 1792 fixou em 21 anos a maioridade civil plena; a discussão sobre a maioridade aos 18 anos só foi reaberta dois séculos depois e obtida por lei em 1974, em ROSANVALLON, Pierre. Le sacre du citoyen. Histoire du suffrage universel en France. Paris: Gallimard, 1992, p.114. 15 Na véspera da Revolução, 1778, havia em Paris entre quarenta mil a cinquenta mil empre­ gados domésticos para uma população de cerca de meio milhão de habitantes, logo, consti­ tuíam 17% da população ativa da capital. Rosanvallon diz que se estima em 42% o número dos empregados domésticos do sexo masculino alfabetizados em meados do século XVIII e relaciona o preconceito relativo a eles um lugar-comum do pensamento liberal e democrático inglês no século XVIII: considerava-se que aqueles que não podiam ser senhores de si mes­ mos, não poderiam participar do governo dos outros. Essa definição incluía secretários, preceptores, bibliotecários a serviço de uma casa rica. Mesmo o decreto de 11 de agosto de 1792 que abole a distinção entre cidadão ativo e cidadão passivo mantém excluídos os empregados domésticos. Cf. ROSANVALLON, 1992, op. cit., p.120-30. O item II - L'individu autonome - expõe de modo detalhado a questão da participação política na França, p. 105-48.

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Mantida a dualidade entre a independência jurídica e a dependência social, os empregados domésticos assimilados ao espaço do domus não foram ^con­ siderados membros verdadeiros da sociedade civil”. As observações acerca da democracia [norte] americana” em convívio quase secular com a escravidão e do sistema eleitoral censitário francês após o fim do Antigo Regime (exceto o curto período jacobino em que a Consti­ tuição de 1793 estabeleceu o sufrágio universal masculino) mostram o quão importante é repensarmos a historiografia que versa sobre a primeira Cons­ tituição brasileira de 1824 e a afirmação de que o liberalismo é no Brasil uma “idéia fora do lugar”. O preconceito que relaciona determinado nível de instrução formal à capacitação política pode ser atribuído à posição defensiva dos proprietá­ rios ingleses, cuja justificativa se encontra na teoria do “entendimento”, de John Locke, autor do já mencionado Segundo tratado do governo. Médico de formação, ele se interessou e escreveu, tal como vários homens letrados da época, sobre muitos temas, inclusive sobre a questão monetária. Seu es­ tudo On Human Understanding postula uma noção fundante do pensamen­ to liberal, a recusa da acepção de idéias inatas. Partia do pressuposto que nascemos com o cérebro como uma folha em branco a ser preenchida pelas experiências da vida. Embora admitisse a desigualdade mtelectiva natural entre as pessoas, atribuía maior peso ao desenvolvimento do entendimento humano ao grau, qualidade e diversidade das experiências vivenciadas pe­ los indivíduos. Quanto mais diversificadas e sofisticadas fossem essas expe­ riências, maior seria a capacidade de compreensão adquirida. Expõe, assim, o (suposto) baixo nível de entendimento do camponês motivado pela rotina repetitiva de suas ocupações e o horizonte limitado de suas experiências. A instrução seria, pois, crucial para se atingir um maior nível de entendimen­ to ao abrir caminho para a formação do pensamento abstrato e projetivo, imprescindível à atividade política.16 Não seria, portanto, pertinente repensar nossas instituições políticas pós-independência, sem estabelecer como paradigma o sufrágio universal outorgado à população masculina no momento mais radical do movimento revolucionário francês? Afinal, a Constituição jacobina de 1793 que con­ 16 LOCKE, J. An Essay conceming Human Understanding, 1690. Utilizei a edição México: Fondo de Cultura Económica, 1986.

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cedeu o sufrágio universal aos homens foi substituída em menos de dois anos pela Constituição censitária de 1795. Ou seja, penso ser fundamental colocar no debate as bases teóricas do contrato social liberal, inclusive em sua expressão democrática. Essa preocupação estimulou a leitura dos escritos de Oliveira Vianna com o mesmo procedimento com que li os projetos republicanos liberais e positivistas para a tese de Doutorado:17o questionamento da interpretação de larga difusão entre os autores acadêmicos sobre a incompatibilidade das instituições liberais para o Brasil —justificada para o período monárquico pelo instituto da escravidão e, para o momento da proclamação da Repúbli­ ca, pela ausência do cidadão apto a tomar livremente decisões conscientes.

Onde to d o s se encontram A opinião sobre o despreparo da população brasileira para o exercício consciente do voto já está presente nos primeiros textos de Oliveira Vianna: Populações meridionais do Brasil de 1922 e O idealismo da Constituição de 1923, nos quais o autor expressa a clara opinião de que as instituições libe­ rais não poderiam ter plena vigência no Brasil, dada a ausência de opinião pública formada por cidadãos conscientes. Essa leitura da história do Brasil não constitui interpretação isolada de um pensador de tendência conser­ vadora. Comparece em praticamente todos os escritos desde os anos 1910, com Alberto Torres, e avança século XX adentro, em percursos analíticos aproximados. Todos os autores voltam às origens, ou seja, ao momento em que os pais fundadores aportam na América do Sul. Todos percorrem os quatrocentos anos de colonização do território e concedem ampla impor­ tância ao meio físico tropical predominante e ao homem, o colono portu­ guês e às suas características étnicas, à forma como se mescla ou não com o indígena e o africano e ao significado dessa miscigenação. Em todos os in­ térpretes do Brasil se encontra claramente formulada a teoria da incompati­ bilidade de idéias avançadas diante da sociedade patriarcal ou patrimonial, tradicional, atrasada, embora sustentassem projetos políticos diferentes e 17 BRESCIANI, M. S. Liberalismo: ideologia e controle social. São Paulo, 1850-1910. 1976. Tese (Doutorado) —FFLCH-USP.

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ate divergentes. Mesmo Darcy Ribeiro em O povo brasileiro de 1995 afirma sermos nossa identidade inconclusa, "um povo a vir a ser... até hoje em ser na dura busca de seu destino’- Esses autores dão forma a interpretações persistentes e, de certo modo, barram a possibilidade de se pensar de outro ponto de vista. Trata-se de uma teoria formulada no início do século XX, mas com rista. No dom,mo toerário, „ exemplo clássico é Machado de Assis, cujos mces deram ensejo a leitura seminal de Roberto Schwarr em "As idéias A sdlj ° ' d“ ciãs relativas aoliberalismo e à posição hberal do Brasd no concerto das n a ç fe , . principalmente, nas relações do comérAJ “ “ PreSSaS “ Vifada do ***> XIX ao XX pelo pos.tivista Alberto Sales, em art.gos para o jornal O Estado do S. Pauto, ganhariam formulação teonca em Alberto Torres e Oliveira Vranna. A teoria introUZ “ m,erP '« * í » discursiva uma .magem de forte poder persuasivo a populaça» atrasada, retrógrada, malfonnada como cidadã, incapaz de vi­ re !!

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Pode-se afirmar ser este um denominador comum às interpretações da história do Brasil e base para a formulação de projetos políticos. Contu­ do, devo sublinhar que esse denominador comum não implica adesão a um mesmo campo conceituai. A evidência fica na premissa comum às análises desses autores de que as idéias e as instituições eram incompatíveis com a sociedade brasileira e de que as instituições políticas deveriam passar por mudanças mais ou menos radicais. Para Oliveira Vianna, o caminho passava pelo Estado autoritário, único capaz, nas condições do país, de forjar o cida­ dão. Para Gilberto Freyre, que com Oliveira Vianna compartilha a certeza de que a “importação” de idéias, instituições e bens materiais europeus nos afastaram de nossa matriz fundadora, o caminho previa a volta aos verda­ deiros valores culturais brasileiros, aqueles do Nordeste açucareiro anterior à abertura do país para os estrangeiros. Para Sérgio Buarque de Holanda, o caminho para “o aniquilamento das raízes ibéricas herdadas de nossa cul­ tura” exigia superarmos a incivilidade do “homem cordial”, possibilidade existente nas cidades, viveiros do moderno e da cidadania. Esses autores, de uma maneira ou outra, convidavam os leitores a olha­ rem para a sociedade brasileira, deixando de lado a imagem ideal de cidadão e de sociedade copiada da Europa e dos Estados Unidos. Oliveira Vianna conduzia seu olhar analítico para o interior do Brasil21 não só para conhe­ cê-lo, mas para nele encontrar no pater famílias mineiro os valores menos corrompidos pelas “idéias importadas”. Gilberto Freyre lançava um olhar saudoso ao paternalismo das grandes propriedades rurais materializado no binómio casa-grande e senzala. Sérgio Buarque de Holanda projetava seu olhar para o futuro; voltar os olhos para a “feia realidade brasileira” (a frase é dele) constituía o ponto de partida para que nos abríssemos para o mundo e acolhêssemos o desafio de pensar uma sociedade menos desigual, prenun­ ciada com a abolição da escravidão e a proclamação da República; propu­ nha uma revolução lenta, mas segura e concertada. Revolução que, a seu

21 Há um elemento-chave nessa “virada historiográfica” da política para a sociedade: a análise da atividade económica e o modo como se dispunha no território, o estudo de usos e costu­ mes. Nos trabalhos de Oliveira Vianna dos anos 1920, sua adesão aos pressupostos de HippolyteTaine (Les origines de la France contemporaine de 1875-1893, Notes sur VAngleterre de 1871, entre outros) coincide (ou é anterior) com a dos fundadores da Escola dos Annales que, nesse período do entre-guerras, se voltam para a sociedade, para os elementos e as forças que formam e mantêm sua estrutura.

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ver, nos livraria do iberismo-agrarismo, em declarada oposição a Oliveira Vianna, a quem cita nominalmente.22 Arrancar as raízes da pesada herança de nossos pais colonizadores, mal plantadas aqui por serem inadequadas a um meio ambiente hostil e, portanto, incapaz de acolher as instituições por­ tuguesas. Afinal, logo no início de Raízes do Brasil, Buarque de Holanda anuncia o fracasso dessa intenção fundadora. Pode-se dizer que, nos anos 1920-1930, vivia-se um momento - e a no­ ção de tempo denso, histórico, é aqui fundamental - em que todos os intér­ pretes do Brasil afirmavam a necessidade de se olhar para dentro do país. A força da afirmação de que nossas mazelas derivavam de mantermos o olhar voltado para os países mais civilizados pode ser aferida na orientação dada às indagações dos intelectuais “modernistas”. Em sua primeira'viagem para conhecer o Brasil, o “turista aprendiz”, Mário de Andrade, percorre a Amazônia e, na segunda, o Nordeste, desta feita conduzido pelas mãos se­ guras de Câmara Cascudo. As viagens, detalhadamente anotadas, oferecem a fórmula da síntese de etnias figurada em Macunaíma. A idéia da presença das três raças formadoras da cultura brasileira se fixa com força nesses anos, embora estivesse formulada desde meados do século XIX, com a proposta de Von Martius para se estudar a História do Brasil: separar e analisar as três heranças - do português, do negro e do indígena. Modelo adotado por Gilberto Freyre em Casa grande e senzala, que recorre aos documentos da Inquisição, publicados na Série Eduardo Prado, editados por Paulo Pra­ do, que também os utilizou para compor seu Retrato do Brasil. Freyre cita Franz Boas, antropólogo de peso, em curso a que assistira na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e o literato Mareei Proust, que o autoriza a fazer de recordações (supostas ou vivenciadas) um painel da “história ínti­ ma de um povo... de quase todo brasileiro” (sic), de acordo com a “história social da casa-grande”.23 A remissão à “introspecção proustiniana” o livra, e a nós leitores, da censura ao voyerismo, que permite entrar na intimidade da casa e dos comportamentos de seus moradores, e visualizarmos o sensualismo exacerbado, narrado em detalhes saborosos, por vezes escabrosos, como a história das escravas grávidas colocadas vivas nas fornalhas pelos 22 Nota B da 1*ed. de Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936, p.l 67 e se refere à citação da p.56. 23 FREYRE, G. Casa grande e senzala. Círculo do Livro, s.d., p.l 1 e 26.

hores que as engravidaram, ou de escravas cujos olhos eram arrancados por “senhoras” ciumentas. . . . . . . . F afirma inclusive, ter sido o carater menos disciplinado do portuFreyre ^ q sucesso 0nde os holandeses fracassaram. CagUes negativas para os outros intérpretes são para ele positivas: o 130 en uês é mestiço, nem bem europeu, bem pouco europeu, aliás. Freyre português imagem usada por Buarque de Holanda: Portugal, um . , .

te entre a África e a Europa. Essa caractenstica assegura a ma-

l^bihdade do português, um ser de transição melhor adaptável às terras ea . . r^rortorística Sérgio Buarque considera negativa, embora tropicais. UaracierisiN- que h c gundo ele valorize o sucesso da empresa colonial em termos de fixaçao territorial. O mais intrigante no caso de Gilberto Freyre e sua interpretação posi­ tiva da colonização portuguesa foi considerar ser mais autêntica a cultura brasileira, no período colonial quando dominava o regime semiconventual da casa-grande, a alcova resguardando as moças, a autoridade do pai tUm direito de vida e morte sobre todos em sua propriedade. Uma questão C ° • A. em t>m alcuns de Casa. grande e, senzala anunciadaja aigu prefácios f t , e retomada . , ,mais c detidamente em Sobrados e mocambos: a abertura dos portos e a vinda da fa­ mília real para o Brasil e, sobretudo, a independência propiciaram a entrada de “influências estrangeiras”. Ao deixarem as alcovas, as moças se postam às anelas dos casarões da cidade, tocam piano e se vestem com tecidos caroí • os homens portam fraque e usam cartola; estrangeirices que substituem os modos simples do campo. Entre Casa grande e senzala e Sobrados e moUmbos há um deslocamento evidente: no primeiro, os dois pólos do mundo rural se complementam, no segundo se interpõem distância e oposição, na cidade o mundo do trabalho não mais se submete à autoridade do pater fa ­ mílias Forma-se o paradoxo: ao nos tornarmos um país independente, uma . ’ deixáramos . ;Yáramos de ser mais autenticamente brasileiros, descaracterizanaçao, _ ção acentuada com a Abolição que viera privar o trabalhador da proteção PíltT ln álise da sociedade brasileira presente em Casa grande e senzala não converge em um projeto político para o país; esse projeto teria sido preten­ samente apresentado em 1926 no Manifesto regionalista, publicado somen­ te na década de 19 50. Escrito na forma de questionamento ao “movimento

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um olhar para o Nordeste, região que, de seu ponto de vista, muito antes de o café amargar a boca dos brasileiros, teria com o açúcar adoçado os costumes rústicos dos grandes proprietários. A cultura mais autêntica es­ tava no Nordeste e com base nela se poderia chegar a um projeto político mais adequado a nós, menos rígido e acabado, elaborado aos poucos como uma túnica larga onde coubesse toda a diversidade do país. Previa a subs­ tituição da divisão administrativa estadual pela regional, de modo que cada região dispusesse de independência para organizar sua própria forma de administração.24 Voltemos a Sérgio Buarque de Holanda e ao capítulo “O semeador e o ladrilhador”, que na versão original de 1936 se intitulava “O passado agrá­ rio (continuação)”, antecedendo o já citado “O homem cordial”'que por sua vez, prepara “Novos tempos” e "Nossa revolução”.25 Assim como o “homem cordial” o faz para a leitura da capacidade política da sociedade, O semeador e o ladrilhador” desempenha função de paradigma para os estudos das cidades brasileiras. Com frequência, este capítulo é recortado pelos estudiosos das cidades coloniais para se porem de acordo ou discor­ darem a respeito das diferenças contrastantes que o autor atribui às cidades de colonização portuguesa e espanhola. A colonização espanhola racional e impositiva contara com homens determinados a se estabelecerem em terras americanas; o reticulado da trama urbana expressa a racionalidade implíci­ ta nessa vontade. Já no Brasil, o colonizador deixara que as construções se adaptassem à topografia, e as cidades construídas sem determinação confir­ mavam a atividade de homens pouco dispostos a sair da costa atlântica. A falta de imaginação, a mentalidade chã do colonizador o impeliram a esse desleixo. Características inerentes ao caráter do colonizador português que anunciam, em parte, o fracasso da transferência das instituições. Explicam a prevalência do mundo rural e a formação do homem cordial e compõem, em sua sequência não passível de recortes arbitrários, o argumento-base do último capítulo “Nossa revolução”. Essa e a herança da qual deveríamos nos livrar - o “homem cordial”: rústico, emotivo, sujeito às atitudes de generosidade extrema e de cruelda24 FREYRE, G. Manifesto regionalista de 192b. MEC, 1955. HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil Rio de Janeiro: José Olympio, 1936.

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de exemplar, falto de civilidade, incapaz de estabelecer a separação entre o úblico e o privado, base da lei da cidade e da cidadania. P Há aproximações entre a “sociedade patriarcal” e a condição autárquica da grande propriedade em Sérgio Buarque de Holanda e em Oliveira Vianna. A colonização do território brasileiro, nos séculos XVI e XVII, teria se constituído por formas de organização quase autónomas, demandando somente a compra de sal, pólvora e armamentos. Tal autonomia moldara a hierarquia social de modo que o grande proprietário, colocado no topo, domina a todos os que se encontram sob sua tutela - escravos, mulheres e demais dependentes. Os dois trabalham com a noção de ‘ carater e de “identidade” (componentes de traços culturais e psicológicos) para falar do homem, suas atividades e seus costumes. Em Raízes do Brasil, verificamos que Sérgio Buarque de Holanda, em algumas passagens, escorrega no pre­ conceito de raça, como quando considera o convívio com o escravo um ele­ mento diluente de certas características específicas do colonizador.27 Quais relações sociais se formariam em uma sociedade altamente hie­ rarquizada? A independência entre os grandes proprietários, sediados em enormes extensões de terra, aliada à dependência e subordinação dos que se situam abaixo deles, inibira a formação de laços de solidariedade. Nes­ sa “civilização de raízes rurais”, diria Sérgio Buarque de Holanda, na qual predomina a “ditadura dos domínios rurais”, forma-se a mentalidade de casa-grande ... estereotipada por longos anos de vida rural”. Oliveira Vianna conduz suas reflexões para um mesmo campo interpretativo: a extensão territorial, ao isolar os senhores de terras em suas propriedades, nao forma solidariedade. A conformação do território torna pouco provável a amea­ ça de uma invasão pelo inimigo, salvo no extremo sul do território onde a

26 Séreio Buarque de Holanda recorre ao conflito entre Antígona e Creonte para expor a in­ compatibilidade fundamental entre dois princípios ... Creonte encarna a noção abstrata, im­ pessoal da Cidade em luta contra essa realidade concreta e tangível que e a família. Antígona, sepultando Polinice contra as ordenações do Estado, atrai sobre si a cólera do irmão, que nao age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade geral dos cidadaos, da patna , in Raízes do Brasil, 1936, p.93-4. .. D % 27 Este preconceito, evidente em Oliveira Vianna, foi abertamente criticado ^ Buarque J Holanda quando, em 1949, comentou as opimões expressas por Vianna em íns f P ticos brasileiras. HOLANDA, S. B. de. Cultura e Política. In: Tentativas de mitologia. Perspectiva, 1970, p.37-60.

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permanente luta com os colonos espanhóis forja certo tipo de solidariedade entre a população local. Ja em seu primeiro livro Populações meridionais, cujo volume I estuda a área hoje denominada Sudeste - Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro (Espírito Santo?) Oliveira Vianna afirma que a dispersão pelo território e o tipo de produção agrícola apagam a memória da solidariedade rural por­ tuguesa formada pelas atividades coletivas da colheita e das festas campes­ tres. Sem a necessidade de ajuda mútua não se forma o vínculo social básico, a solidariedade. Temos aqui outro ponto de concordância: tanto para Sérgio Buarque de Holanda como para Oliveira Vianna formamos uma “sociedade insohdána . As relações sociais e as características psicológicas teriam se estruturado na dependência dos que viviam sob a tutela do grande proprie­ tário e na independência total dos grandes proprietários entre si. Em suma, os dois autores concordam com a ausência de solidariedade social. A discordância se instala quando interpretam as “causas” da insolidariedade. Oliveira Vianna dedica o capítulo IX de Populações meridionais do Brasil ao tema da solidariedade e atribui ao meio físico a forma de apro­ priação da terra e aos costumes daí decorrentes. Sérgio Buarque de Holanda discorda dessa interpretação baseada no tripé positivista que atribui peso considerável aos fatores mesológicos e critica os que debitam “o predomí­ nio esmagador do ruralismo” a “certa misteriosa ‘força centrífuga’ própria ao meio americano que tivesse compelido nossa aristocracia rural a aban­ donar a cidade pelo isolamento dos engenhos". A seu ver, o predomínio das atividades agrárias se dera graças ao “esforço dos nossos colonizadores” e nao subordinado a “uma imposição do meio”. O fruto dessa organiza­ ção corporificara-se no “homem cordial”. De suas características centradas em uma solidariedade primária, familiar e clânica, só nos livraríamos ao se completar o lento cataclismo” - o aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura-com o deslocamento do “centro de gravidade" dos domínios rurais para os centros urbanos. Seu projeto político aponta, pois, em direção contrária aos de Oliveira Vianna e de Gilberto Freyre: para Sérgio Buarque de Holanda, a cidade constitui a sede da erradicação da “herança ibérica”; para os outros dois, o movimento se dá na direção do interior agrário do pais, ja que nele se encontra nossa expressão mais autêntica, os verdadeiros valores culturais a serem recuperados.

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Afirmar o descompasso entre idéias e instituições “importadas” e a so­ ciedade brasileira ou “realidade nacional” tem sido o fundamento prepon­ derante das interpretações da história do Brasil, embora a elaboração dos argumentos se estruture em campos conceituais diferentes. Oliveira Vianna se apóia no tripé positivista - meio físico, raça e história/momento - para justificar uma análise voltada para a inserção do colonizador no território, a presença das três raças, os usos e o direito costumeiro. Gilberto Freyre re­ corre à antropologia de Franz Boas e à busca literária proustiana do passado ao justificar o olhar intimista, retrospectivo e nostálgico voltado para um tempo a ser recuperado. Buarque de Holanda passa pela questão do meio físico e das características tipológicas dos pais fundadores para fixar depois o “caráter” do homem brasileiro pela noção de trabalho em Max Weber e de cidadania na Grécia clássica. Em sua interpretação, “nossa difícil ado­ lescência política e social” prende-se a uma questão originária: “trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira . Erro fundante e responsável por uma sequência de erros que redundara em um lamentável mal-entendido” : a adoção da “ideologia impessoal do liberalismo democrá­ tico” importado por “uma aristocracia rural e semifeudal”. Nada é fortuito nos argumentos desses autores. Os projetos políticos conduzem a análise da história do Brasil e lhe conferem sentido. Oliveira Vianna repisa a questão da “insolidariedade” na defesa de instituições forjadoras de solidariedade, em especial o sindicato, instituição capaz de, sob a tutela de um Estado centralizado e forte, acolher sob uma única bandeira interesses e aspirações de pessoas reunidas pelo mesmo trabalho. Gilberto Freyre repisa os valores tradicionais da economia açucareira como antído­ to às estrangeirices infiltradas pelos portos, particularmente do Sudeste do país. Sérgio Buarque de Holanda busca em Sófocles as premissas para cons­ truir a figura do “cidadão” em oposição ao “homem cordial”. Instala-se um diálogo-debate entre esses autores. Em Sérgio Buarque de Holanda, o debate se estrutura com a crítica a Oliveira Vianna, expli­ citada em várias passagens de Raízes do Brasil, como quando discorda da interpretação e principalmente do projeto político para o pais. A edição de 1936 traz, na longa “nota B”, uma oposição declarada às conclusões de Oli­ v e ir a Vianna. Da parte de Gilberto Freyre, o debate se estabelece, a meu ver, na disputa da importância relativa às regiões. Freyre retoma, em Casa

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grande e senzala, para a região Nordeste, o foco da matriz cultural brasi­ leira, deslocado por Oliveira Vianna para o “Sul”. Sua justificativa passa pela matriz política que se localiza no Rio de Janeiro após a transferência da capital de Salvador; já em São Paulo estava a força expansiva do movimento bandeirante e o atual poder económico; a Minas Gerais cabia a condição de guardia dos belos valores rurais contrastantes aos do grande proprietário nordestino. Todos os elementos do projeto político de Oliveira Vianna estão no Sul (hoje Sudeste): o ímpeto expansionista, a riqueza, a política, os valores éticos. Ate em relação as “bandeiras” eles se opõem. Para Freyre, os bandeiran­ tes agiram de forma imprevidente. Avançaram tanto pelo território em sua cobiça de pedras preciosas, ouro, caça ao índio, que puseram em perigo a própria existência do Brasil, se nordestinos e portugueses, vindos de outras regiões, nao se instalassem de forma permanente no território conquistado. Para Oliveira Vianna, a ação bandeirante dos paulistas persistia ainda no século XX. Perguntado em entrevista ao O Estado de S. Paulo (17 fev. 1924) sobre o que pensava da cidade de São Paulo, responde nada ter a dizer da capital do estado, mas que muito havia a ser dito sobre a ação colonizadora do paulista no norte do Paraná. Este conjunto de observações conduz meu argumento a um objetivo fundamental: sugerir a importância desse diálogo que envolve debate, opo­ sição, discordâncias e concordâncias entre os intérpretes do Brasil e que tem, e minha hipótese, explícita ou implicitamente, uma matriz nos textos de Oliveira Vianna. Lembro que Caio Prado Júnior cita Oliveira Vianna em nota do Prefácio à Ia edição de Evolução política do Brasil de 1934 e con­ cede-lhe o mérito, entre os “nossos historiadores”, de ser “o primeiro, e o umco ate agora a tentar uma análise sistemática e séria de nossa constituição económica e social no passado”. O reconhecimento não deixa de apontar a inexatidão que se observa [em sua obra] e que chega por vezes a grosseiras adulterações dos fatos”, mas reconhece ser um trabalho que “está ainda em seus primeiros passos”. O diálogo-debate entre autores, presente em escritos publicados na pri­ meira metade do século XX, é fundamental para a análise da historiografia brasileira.. Oliveira Vianna não foi o primeiro a formular a teoria da inadequaçao das idéias e instituições brasileiras em relação à sociedade por con­ sideradas importadas de países com outras trajetórias históricas.

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A teoria já estava presente nos escritos de Alberto Torres, ao propor o estudo da sociedade - “através das realidades e dos fatos” e não “dessas idéias arbitrariamente concebidas”. É deste autor afirmação que se repete em praticamente todas as análises da história do Brasil: com uma civilização de cidades ostentosas e de roupagens, de idéias decora­ das, de encadernações e de formas, não possuímos nem economia, nem opinião, nem consciência dos nossos interesses práticos, nem juízo próprio sobre as coi­ sas simples da vida. ... Não temos opinião e não temos direção mental. Ao dizer que deveríamos substituir “a atitude passiva, que nos tem tra­ zido a receber as idéias que nos exportam o acaso ou o instinto político de outros povos, por um trabalho autónomo de escolha e de seleção conscien­ te” formulava um projeto político e um procedimento analítico que tam­ bém se desdobraria com variantes em inúmeros outros projetos.28 Assim, quando Oliveira Vianna afirma no Capítulo XIX, o último do volume I de Populações meridionais do Brasil, que ‘ essas jovens nacionali­ dades [as do Novo Mundo] costum am ... resolver os graves problemas, que interessam a sua própria organização, adotando as soluçoes que lhes dao os velhos povos e as velhas civilizações do Ocidente” e chama a isso de erro funesto”, concluía, na mesma direção de seu “mestre” Alberto Torres, ser isso “uma sorte de reflexo inconsciente” ,29 Este constitui o ponto de concordância entre os autores que, com pa­ lavras diferentes e figuras de linguagem de alto impacto persuasivo, se aproximam da conclusão apresentada por Oliveira Vianna em Instituições políticas brasileiras, estudo em dois volumes publicado após o termino do Estado Novo: os nossos legisladores ... constroem ... para lisonja e encanto de nossos olhos nativistas uma estupenda arquitetura de fachadas suntuánas, copiadas, linha a linha, às similares da França, da Inglaterra ou dos Estados Unidos. ... essas Constituições impecáveis outra coisa não são que belas artificialidades lantejoulantes. Reflexos da cultura européia ou americana...30 28 As citações sãõde O problema nacional brasileiro. Introdução a um programa de organização nacional. Brasiliana, v.XVI, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1914, p.30, 33, 61. 29 Populações meridionais do Brasil, op. cit., p.285-98. 30 Instituições políticas brasileiras, op. cit., v.II, p.98.

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Se as análises dos autores partem da afirmação de que o arcabouço po­ lítico constituiu pura artificialidade desconectada da sociedade brasileira onde encontrar a “realidade nacional”? O pressuposto das análises exigia que os olhos se voltassem para outra direção. Qual? A sociedade tal qual moldada pelo meio ambiente e as características étnicas da população; sua base economica, usos e costumes e o direito consuetudinário, o único com base formada em território brasileiro. Este procedimento adotado por Oliveira Vianna o foi também por Paulo Prado em 1928, por Gilberto Freyre em 1933 e 1936, por Caio Prado Júnior em 1934, por Sérgio Buarque de Holanda em 1936. Onde colocar a linha de ruptura deles com Oliveira Vianna? De certo modo, a resposta pode estar no modo como foi entendida e tem sido utilizada a apresentação de Antonio Cândido a edição de 1969 de Raízes do Brasil. A meu ver, nas afirmações apresentadas como depoimento de “uma geração”, a dele, ou como deixa claro, de parte dela, foi deslocada para se tornar um divisor de águas da his­ toriografia. Voltemos a elas. Ao comentar “o significado de Raízes do Bra­ sil , Antonio Cândido diz que os homens que na época (a apresentação vem datada de dezembro de 1967) estavam próximos dos cinquenta anos apren­ deram a refletir e a se interessar pelo Brasil por causa de três livros - Casa grande e senzala de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda e Formação do Brasil contemporâneo de Caio Prado Júnior -, livros que exprimiam “a mentalidade ligada ao sopro do radicalismo intelectual e analise social, que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo”, sublinha o autor. Ao fazer essa afirma­ ção, Antonio Cândido, tal como Caio Prado Júnior havia feito em 1934, não deixa de mencionar e reconhecer “a obra por tantos aspectos penetrantes e antecipadora de Oliveira Viana”, embora acrescente ter sido superada por se apresentar “cheia de preconceitos ideológicos e uma vontade excessiva de adaptar o real a desígnios convencionais”. Antonio Cândido traz, assim, para o leitor de 1969 o olhar de outro tem­ po, a década de 1930 quando o livro de Gilberto Freyre expressara “força revolucionária”. Se o golpe de 1964 contara com a adesão do autor de Casa grande e senzala , esse rumo político não diminuíra para Antonio Cândido o impacto libertador... o intuito anticonvencional... da concepção libérri­ ma ’ do livro de Gilberto Freyre, a seu ver tão importante por apresentar a ormaçao do nosso modo de ser mais íntimo”. Outra fora a mensagem de

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Raízes do Brasil: nele o autor fornecera “indicações importantes para com­ preenderem [os leitores dos anos 1930] o sentido de certas posições políticas daquele momento, dominado pela descrença no liberalismo tradicional e pela busca de soluções novas”. Já o mérito de Formação do Brasil contempo­ râneo de Caio Prado Júnior e do anterior Evolução política do Brasil fora ser “o primeiro grande exemplo de interpretação do passado baseada na ‘linha interpretativa do materialismo histórico’, ou seja, em função das realidades básicas da produção, da distribuição e do consumo”. A linha divisória das preferências se localiza nos “moços de entre 1922 e 1942 ... que adotavam posições de esquerda” e “os jovens da direita ... que preferiam certos auto­ res mais antigos, com orientação metodológica de tipo naturalista ou (no sentido amplo) positivista, como Oliveira Vianna e Alberto Torres”. Se­ riam, pois, esses “autores mais antigos ... que Sérgio Buarque de Holanda criticava em Raízes do Brasil”. O teor do depoimento de uma geração construído com cuidado, sem rebaixar o tom crítico a autores com os quais não concordava em razão de posições adotadas na década de 1930 e 1940, expõe e confirma a dimensão política desses textos. Essa dimensão política expõe, de modo explícito, o teor do debate entre os autores e suas discordâncias; sugere a importân­ cia de uma leitura que não imobilize os estudos deles como de “clássicos intocáveis” e sim que esclareça as posições em jogo nos anos 1920, 1930 e 1940. É nesse sentido que penso ser um erro recortar parte do depoimento de Antonio Cândido e dele fazer um paradigma, como fizeram e fazem his­ toriadores e demais pesquisadores das áreas de ciências humanas e teoria literária. Os textos dos “intérpretes do Brasil” são datados, fazem parte de diá­ logos intelectuais e de lutas políticas, têm seu tempo. Amplo leque de pro­ jeções políticas está na base dessas interpretações e, gostemos ou nao, Oli­ veira Vianna é parte dele e, ouso afirmar, os outros autores perdem parte da força de seus argumentos ao serem seccionados do texto que, se nao abriu, alimentou sobremaneira o debate. Penso ser importante trazê-los para o lugar de autor e para um dialogo atual, de modo que reflita sobre os preconceitos que carregamos, e não sem consequências. Há uma imagem do brasileiro, formada nesses debates com finalidade política datada, que aderiu a nós como uma segunda pele forjan­ do uma “identidade”, identidade ressentida ou, como quis Darcy Ribeiro,

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inconclusa. Identidade que nos aprisiona a um suposto destino preesta­ belecido pelos nossos pais fundadores e seu legado, na opinião de Sérgio Buarque de Holanda, de "amor pronunciado pelas idéias fixas e pelas leis genéricas... construções de inteligência [que] representam um repouso para a imaginação”. Seríamos dotados de uma espécie de “preguiça mental” que recusa “tudo o que represente trabalho mental acurado e fatigante”, dei­ xando-nos aprisionar às “idéias claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma espécie de atonia da inteligência.”31 Preconceitos que induzem a clas­ sificar nossa condição política como "democracia de duas caras”. Esta exposição fez um percurso, o de minha pesquisa que também pas­ sou por outros autores fundamentais para entender os intérpretes do Bra­ sil. Lembro Alexis de Tocqueville anunciando, já nos anos 1830, o destino diferenciado da colonização inglesa em território da costa leste da América do Norte e o das terras da Américas Central e do Sul. Destino atado às con­ dições ambientais: a difícil conquista da “costa inóspita” do Atlântico norte exigira o empenho humano; a aparente facilidade oferecida pelas Antilhas e as costas sul-americanas, nas quais “os mares brilhavam do fogo do tró­ pico , suas águas transparentes, peixes, flores, árvores transbordantes de frutos que fizeram com que os homens acreditassem terem sido transpor­ tados “às regiões fabulosas celebradas pelos poetas”. No entanto, o árduo trabalho nas costas norte-americanas fora por Deus premiado com o vale do Mississipi entregue ao europeu como no sétimo dia da Criação. Em terras tropicais, a paisagem edênica “escondia a morte”, pois no ar desses climas remava uma “influência enervante que atava o homem ao presente e o tor­ nava descuidado com o futuro”. Em quantos trabalhos encontramos esta sugestiva e poderosa imagem confirmada? Tempos diversos—Tocqueville 1830, nossos intérpretes cem anos depois. Contudo, tal como o francês Tocqueville tem antecessores nos mestres enciclopedistas, também tem seguidores na própria França do pós-guerra franco-prussiana (1870). Há, portanto, um percurso dessas idéias, certezas e preconceitos apresentados como verdades científicas, o tempo da formação de saberes que se tecem no diálogo e na disputa intelectual, mas também nas lutas e projetos políticos. Esses saberes conformam um campo cultural que poderíamos denominar ocidental, sem que seus pressupostos se enraí­ 31 HOLANDA , S. B. de. Raízes do Brasil. 5.ed. 1969, p .l 17.

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zem nos laços de sangue e língua de um local determinado, como propõe a vertente romântica de pensamento que dá às idéias fundamentos nacionais. Há amplo domínio-comum de pressupostos, idéias, preconceitos formados a “descoberta” de “novos mundos” e no debate intelectual e político, do qual autores se apropriam para, modificando-os ou não, aplicá-los a situa­ ções específicas e a contextos locais em determinados momentos. Essas as questões que desejo deixar para nossa reflexão.

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Brasiliense publicou uma terceira edição, a quarta, erroneamente publicada como terceira, apareceu em 1998 pela Editora da Unesp. A partir daí houve várias reimpressões. Para avaliar o livro é preciso situá-lo em sua época. Toda obra de his­ tória é ao mesmo tempo uma visão do passado e um retrato do presente, um diálogo a partir do presente entre o historiador, suas inquietações, seus projetos, de um lado, e os traços deixados pelo passado, de outro. A obra também é expressão das tendências da historiografia, dos debates teóricos, metodológicos e das lutas políticas existentes na época de sua elaboráção. Por essa razão toda a obra histórica ilumina tanto o passado quanto o pre­ sente, tanto a história quanto a historiografia. Quando deixa de ter valor por sua interpretação do passado, passa a valer como documento que lança luz sobre o tempo em que foi escrita. Ela é ao mesmo tempo expressão de uma época e de um indivíduo, obra pessoal e coletiva. A obra histórica re­ sulta da formação do historiador ou historiadora, de seus objetivos, de sua vivência no sentido mais amplo da palavra, de seu posicionamento diante do presente e do passado, de sua filosofia da história. Depende ainda do pú­ blico que ele ou ela pretende alcançar. E também produto da documentação utilizada, o que, por sua vez, decorre do nível de organização dos arquivos e da própria conceituação de documento, a qual tem variado ao longo do tempo, assim como tem mudado o método crítico. Uma obra de história só pode ser avaliada por essas várias determinações. Isso é o que pretendemos fazer nesta fala. Da senzala à colónia dificilmente seria apresentado hoje como tese de livre-docência. Os tempos são outros. O ritmo do trabalho mudou. Hoje poucos disporiam do tempo que se dispunha na época em que o livro foi escrito. Da senzala à colónia levou dez anos entre a pesquisa e a elaboração final. Quem teria tempo hoje para pesquisar em tantos lugares: no Arquivo Nacional, no Arquivo do Estado de São Paulo, no Arquivo Público de M i­ nas Gerais, e neles consultar caixas e mais caixas de documentos os mais va­ riados? Quem teria tempo para ler relatórios de presidentes das províncias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas, de ministros da Agricultura, coleções de leis e posturas municipais, jornais antigos, como o Correio Paulistano, o Diário de São Paulo, A Província de São Paulo, o Diário Popular, e outras publicações menores, como a Revista Ilustrada de Ângelo Agostini (que por descuido nem sequer aparece mencionada na bibliografia, embora te­

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nha sido amplamente utilizada), e ainda consultar os Anais da Assembléia Legislativa de São Paulo, Anais da Câmara dos Deputados e do Senado, nu­ merosos livros de viajantes, que passaram pelo Brasil durante o século XIX, panfletos políticos, romances, livros de memória, cobrindo um período que vai da época da Independência à Abolição? Quem poderia hoje esperar dez anos, para terminar uma tese? Essa enorme pesquisa só foi possível devido às condições de trabalho e aos requisitos acadêmicos menos exigentes de então. Naquela época o historiador se imaginava o continuador de seus antecessores, o herdeiro de gerações que tinham pesquisado anteriormente, e haviam construído um conhecimento pelo qual seria possível avançar na compreensão da socie­ dade brasileira. O trabalho do historiador era visto como cumulativo, não acompanhava a lógica do mercado que veio cada vez mais dominar a pro­ dução cultural. Quando a autora foi contratada para lecionar no Curso de Metodologia e Teoria da História, foi nesse sentido que orientou os alunos, levando-os ao arquivo e iniciando-os na pesquisa. Dessa forma, entrosava magistério e pesquisa, segundo o ideal universitário de então, que considerava as duas atividades complementares, compatíveis e necessárias ao ensino univer­ sitário que visava a formar professores pesquisadores. Logo, os alunos do Departamento de História, que na época não eram tão numerosos quanto hoje, foram iniciados na pesquisa freqúentando o Arquivo do Estado de São Paulo, onde aprendiam a selecionar e criticar documentos e escrever pequenos trabalhos sobre a escravidão. Essa atividade permitiu à autora concentrar-se em sua pesquisa e, ao mesmo tempo, treinar seus alunos no que Marc Bloch chamou Le Métier d’historien. Com o tempo, essa geração foi sucedida, com raras e notáveis exceções, por uma geração imbuída de um espírito competitivo e individualista que a autora apelidou de geração “avant moi le déluge” (antes de mim o dilúvio), muito diverso do que ha­ via no início da década de 1960 na Universidade de São Paulo, quando um grande número de professores e alunos compartilhava um projeto coletivo de desenvolvimento e transformação do país que, não obstante as divergên­ cias individuais, os transcendia e unificava. A carreira profissional também obedecia a regras diferentes. A livre-do­ cência poderia ser feita diretamente, sem que o universitário fizesse previamente teses de mestrado e doutoramento. O candidato submetia-se a prova

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de títulos, um exame escrito, uma aula pública e a defesa de tese. Dessa forma, a tese era a culminação de anos de estudos e pesquisas. Antes de se submeter ao Concurso de Livre-docencia, a autora de Da senzala à colónia já publicara dezesseis artigos versando sobre a história do Brasil, a natureza do conhecimento histórico e o ensino da História. Alguns desses trabalhos haviam sido escritos para satisfazer a curiosidade de alunos do ensino se­ cundário sobre temas abordados de maneira insatisfatória pela historiogra­ fia. Tal foi o caso, por exemplo, do artigo sobre os degredados, publicado pela primeira vez em 1955 e republicado há alguns anos na Revista de His­ tória. A maioria desses trabalhos já anunciava uma intelectual engajada nos problemas do presente, fato comum em sua geração. Os estudos históricos não tinham ainda a nota de profissionalizáção que irá caracterizar o trabalho do historiador nos anos que se seguiram. Estáva­ mos em um período de transição do pesquisador autodidata e do ensaísta, característicos da geração anterior, para a do historiador profissional, aca­ dêmico, especialista, que via a história como “a ciência do homem”, no di­ zer de Lucien Febvre, um dos luminares do grupo dos Annales, que, com Fernand Braudel e Marc Bloch, tanta influência exerciam na historiografia de então. Essa era a época da hegemonia francesa no pensamento historiográfico. Era também a época em que o marxismo dava seus primeiros passos na historiografia brasileira com o aparecimento das obras de Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, que, embora diversas em seu escopo e realização, representavam uma mudança de rumo que os separava das obras mais antropológicas e a-históricas de Gilberto Freire, das crónicas de Hélio Viana, dos ensaios de Sérgio Buarque de Holanda, ou das especulações de um Alfredo Ellis, que detinha a cadeira de História da Civilização Brasilei­ ra nos anos em que a autora frequentou o curso de Geografia e História na Universidade de São Paulo. Na USP passara a época dos mestres franceses, com exceção de uns pou­ cos visitantes, como o medievalista Philipe Wolf; o professor de História do Protestantismo, Emile Leonard; os geógrafos Pierre Mombeig, Louis Papy, Pierre Gourou; e os professores de Teoria e Metodologia da História, Jean Glenisson e Yves Bernard Bruand, dos quais a autora foi assistente depois de formada. O ensino da História estava nas mãos dos discípulos da pri­ meira leva de professores estrangeiros, dos quais, na época em que a autora frequentou o curso, o mais brilhante era o professor de História Moderna

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e Contemporânea, Eduardo d’01iveira França, especialista da história de Portugal, de quem a autora foi assistente durante alguns anos, e o mais eru­ dito o então assistente da cadeira de História Medieval, Pedro Moacir Cam­ pos. Os alunos formados nessa época, embora tivessem a oportunidade de se familiarizar com o que havia de melhor na historiografia francesa, inglesa e mais raramente alemã (graças a traduções para o espanhol do Fundo de Cultura), não recebiam orientação alguma sobre pesquisa. Nesse sentido eram autodidatas, continuando a tradição brasileira que prevalecera até en­ tão. Sua salvação estava no Departamento de Ciências Sociais, em que Florestan Fernandes e Antonio Cândido, pelas qualidades pessoais, generosi­ dade, competência, brilho e erudição eram as estrelas-guia dos alunos de História que desejavam aprimorar sua formação. Terminado o curso básico e o de especialização, substituído mais tarde pelo mestrado, a autora foi com o auxílio de uma bolsa do governo francês para a École des Hautes Etudes, Sixième Section da Sorbonne, onde completou sua formação com Emest Labrousse, um socialista que se dedicava à história dos preços, o sociólogo George Gurvitch e o historiador Paul Leulliot. Seu orientador foi Charles Morazé, da Escola de Ciências Políticas. Aproveitou também seu tempo para assistir a um curso sobre Impressionistas no Museu do Louvre, que lhe valeu nova experiência em História da Arte. Foi em Paris que iniciou seu aprendizado de pesquisa em arquivo. Frequentou os Arquivos Nacionais da França com o propósito de escrever uma tese sobre a nobreza francesa no período da Restauração. Ao voltar ao Brasil em 1954 abandonou, no entan­ to, a pesquisa iniciada para escrever um livro sobre a transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Essa mudança de curso estava diretamente re­ lacionada com os acontecimentos políticos daquele período e a convicção de que no Brasil daquela época, especialização em história da Europa era um grande equívoco, dadas as dificuldades de acesso à documentação. (Ressal­ te-se que essa decisão ocorreu há meio século, quando as viagens para a Eu­ ropa ainda eram feitas em navios e levavam quinze dias, não havia internet, e a comunicação era bem mais difícil do que é hoje.) A história do Brasil passara a despertar um interesse renovado. O cená­ rio político depois da morte de Getúlio Vargas em 1954, a crescente pola­ rização entre seus continuadores e os que se opunham a ele, agravada pelo clima de tensão resultante da Guerra Fria, mobilizaram os intelectuais. Era difícil permanecer, indiferente à luta que se travava no Brasil e no mundo.

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O país industrializava-se e os problemas sociais no campo e nas cidades eram cada vez mais prementes. Parecia urgente mudar o país. Para isso era preciso conhecê-lo melhor; examinar suas lideranças políticas, as “elites”, como se dizia então; indagar de sua responsabilidade pelo estado deplorável em que se encontrava a grande maioria do povo brasileiro; procurar uma explicação para o atraso, o autoritarismo e o elitismo crónicos, a sobrevi­ vência das oligarquias e do regime de clientela e patronagem e a fraqueza das instituições democráticas. Apesar da industrialização e da presença crescente do capital estrangei­ ro, o país era ainda essencialmente agrário e mais de 80% de sua população vivia ainda nas zonas rurais em precárias condições e um alto grau de anal­ fabetismo. Nessas condições, os intelectuais eram chamados a continuar a obra iniciada pela geração anterior que lhes servira de guia. A preocupação que levara Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior a reescrever a história do Brasil instigava a nova geração a seguir o mesmo caminho. Entre os vários problemas da história do Brasil que chamavam atenção estavam a escravidão e seu legado, o preconceito racial, a abolição e a situação do negro na sociedade brasileira. Em São Paulo, jovens intelectuais orientados por Roger Bastide e Flores tan Fernandes iniciaram uma pesquisa sobre relações entre pretos e brancos e sobre a escravidão que a todos parecia essencial para a compreensão do país. Como fora possível acabar com uma instituição que durara vários sé­ culos sem levar o país a uma guerra civil parecia uma questão crucial para aqueles que almejavam mudar as estruturas vigentes. Foi nessas condições que Da senzala à colónia foi concebido. Durante os anos seguintes, a autora levou a cabo seu projeto sempre li­ gada aos acontecimentos contemporâneos, cada vez mais dramáticos com o agravamento da polarização entre esquerda e direita, entre nacionalistas e internacionalistas, durante os governos de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. Essa era uma época histórica de grandes esperan­ ças: o desenvolvimento económico autónomo parecia uma possibilidade. Desenvolvimentismo e nacionalismo eram bandeiras de luta. Apostava-se na conscientização crescente do povo brasileiro e em sua melhoria de vida. Homens como Paulo Freire e Celso Furtado eram símbolos desses tem ­ pos. A crescente mobilização da população, as reivindicações no campo e na cidade, as ligas camponesas, as greves urbanas conferiam credibilidade a essas aspirações. A Igreja Católica sob a direção do papa João XXIII e de

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seu sucessor adotava uma posição progressista. Padres e freiras juntavamse a militantes de esquerda nas atividades que visavam assistir as popula­ ções mais desamparadas. Até mesmo boa parte da imprensa dava cobertura simpática às reivindicações estudantis. O Teatro de Arena, sob a direção de Augusto Boal, e os festivais de música popular criavam um espaço público que estimulava o debate e a crítica e contribuíam para manter um clima de entusiasmo e otimismo. Não faltavam, no entanto, sinais de perigo. A violenta campanha de des­ moralização do governo Vargas, liderada por Carlos Lacerda, que levou Var­ gas ao suicídio, as tentativas de golpes de direita reprimidas durante o go­ verno Kubitschek, a renúncia de Jânio Quadros, a movimentação militar na tentativa frustrada de impedir a ascensão ao poder do vice-presidente João Goulart, tudo isso prenunciava tempos difíceis. Mas as crises políticas ainda não pareciam ameaçar o futuro do país. Eram vistas como acidentes normais de percurso. Por sua vez, apesar da Guerra Fria e do destino trágico do go­ verno reformista de Arbenz na Guatemala (1954), o cenário internacional trazia novidades promissoras. A revolução cubana, derrotando o ditador Batista e o imperialismo em 1959, prometia um mundo melhor. O socia­ lismo ganhava espaço em várias regiões do globo. As palavras do momento eram reforma ou revolução. Todo esse processo mudaria de rumo a partir de 1964 com o golpe militar. A partir de então as posições radicalizaram-se. Foi nesse período que vai do suicídio de Vargas em 1954 a 1964 que a documentação foi reunida e Da senzala à colónia foi redigido. Não se tratava de uma tese com o objetivo de obter apenas um título acadêmico, uma po­ sição universitária, pois na época os requisitos eram muito mais flexíveis do que hoje, as exigências, menores, a competição pelos cargos, mínima, devido ao pequeno número de candidatos. Mesmo quando nomeado, o doutoran­ do podia adiar o doutoramento por muitos anos, desde que demonstrasse sua competência mediante artigos publicados e suas atividades acadêmicas justificassem sua permanência nos quadros universitários, os quais eram ra ramente abertos em virtude da falta de vagas. Assim, a maioria dos jovens professores formados pela USP naquele período foi obrigada a trabalhar pelo menos certo número de anos no ensino secundário. Essa experiência os aju­ dou a se familiarizar com temas de interesse da comunidade que transcendia as paredes da Academia. Os docentes assim treinados lecionavam simulta­ neamente na universidade, sem nenhuma remuneração, e no ensino secun

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dário, por onde recebiam, até que fosse aberta uma vaga na universidade. Durante esse tempo amadureciam e desenvolviam a competência mediante artigos que publicavam em revistas especializadas. Preparavam aos poucos suas dissertações, enquanto lecionavam no secundário e na universidade. Some-se a tudo isso as responsabilidades de família que pesavam quase ex­ clusivamente sobre as mulheres. Foi essa a situação em que se encontrou a autora que viera de Paris para Sertãozmho, depois para o Colégio Estadual de Jundiaí e finalmente para o Colégio de Aplicação em São Paulo. Ao mes­ mo tempo dava aulas em uma Faculdade Católica em Sorocaba e trabalhava de graça na Universidade de São Paulo, até conseguir uma vaga no Departa­ mento de História como assistente de História Moderna e Contemporânea e depois de Teoria e Metodologia da História. , Na Introdução à primeira edição de Da senzala à colónia, a autorá decla­ rava suas motivações e seus objetivos. A escravidão marcara os destinos de nossa sociedade e deixara traços indeléveis tanto na herança que nos legara a cultura negra quanto nas condições sociais nascidas do regime escravista. Subsistiram na sociedade contemporânea representações e estereótipos as­ sociados a cor e as diferenças raciais forjadas no tempo da escravidão. Estes haviam criado padrões de comportamento que persistiram depois da abo­ lição. A existência de dominadores e dominados numa relação de senho­ res e escravos marcara a mentalidade nacional.” A necessidade de justificar esse estado de coisas gerara uma argumentação racionalizadora assentada em falsas bases morais. Afirmações dessa natureza iam além dos protocolos aceitáveis em uma sociedade que continuava a negar a existência de pre­ conceitos raciais. A autora denunciava mecanismos de dominação ainda vi­ gentes na sociedade. A escravidão desmoralizara a idéia de trabalho, afetara as relações familiares, mantivera os escravos na ignorância, retirara-lhes o senso da responsabilidade, que só existe onde há iniciativa e liberdade. A autora apontava a contradição profunda existente entre o liberalismo apregoado pelos senhores e a escravidão. Observava que o paradoxo dessa situação encontrava paralelismo em outros tempos: Sempre encontramos racionalizações e justificativas de interesses de certos grupos, os quais consciente ou inconscientemente mascaram a realidade e cer­ tamente em nossos dias, a um observador prevenido e competente não escaparão inúmeros exemplos desse tipo.

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Daí o particular interesse em estudar o sistema escravista e seu colapso. Era preciso explicar como a opinião pública, que até então permanecera anes­ tesiada despertou para a consciência do paradoxo. Tratava-se de analisar o comportamento dos vários setores da sociedade: senhores de escravos, a inci­ piente classe média e os escravos. Numericamente superiores nas zonas rurais, unidos na desventura, por que estes não se rebelaram coletivamente contra o regime que lhes fora imposto? Por que não efetuaram um massacre geral de brancos, uma revolução sangrenta? Como fora possível abolir uma ins­ tituição que sobrevivera por três séculos sem que isso tivesse causado uma tremenda convulsão social? Essas eram as questões que guiaram a pesquisa. O livro fazia um recorte que excluía da análise as transformações que se operavam no mundo com o avanço do capitalismo e da Revolução Industrial na Inglaterra e o abandono da escravidão nas colónias inglesas e francesas. Embora a autora estivesse plenamente consciente das conexões entre esse processo e a transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil, preferiu localizar as mudanças económicas, sociais, políticas e ideológicas que se operavam mternamente, colocando a conjuntura internacional entre parênteses. Deixou claro, no entanto, que a escravidão estivera intimamente ligada ao sistema colonial e seu desaparecimento estava relacionado com a crise desse sistema. O ritmo da transição, no entanto, fora diverso nas vá­ rias colónias, dadas as diferentes circunstâncias internas. O processo tivera sua especificidade em cada uma delas. Os homens que lutaram para manter a escravidão ou para eliminá-la, os que lutaram por soluções radicais ou os que preferiram reformas moderadas e paulatinas agiram sempre dentro de uma tradição que não era idêntica nas várias colónias e a ação que desenvol­ veram em prol da emancipação dos escravos esteve limitada pelas mudan­ ças que se operavam na economia e na sociedade. Somente uma análise des­ sas condições permitiria compreender a marcha do processo abolicionista e a transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Era preciso avaliar no jogo das influências recíprocas a importância das condições económicas, sociais, políticas e ideológicas, o papel da ação humana, os limites de sua liberdade de ação e de escolha, o grau de consciência possível em cada mo­ mento. Era preciso confrontar a visão que os homens tinham da realidade em que viviam com a própria realidade que os transcendia e os limitava. Essas palavras definiam em linhas gerais os propósitos da autora. Es­ boçava-se aí um verdadeiro método de pesquisa. Havia nele um desejo de

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aprimorar as abordagens marxistas, existentes até então na historiografia brasileira, evitando os economismos e reducionismos mecanicistas, a rigi­ dez estruturalista de algumas análises, respeitando a autonomia relativa das várias instâncias, reintroduzindo a ação dos homens e mulheres na Histó­ ria, sem desconhecer os limites que as estruturas lhes impõem. Tratava-se de definir a consciência de classe como um processo, capturar a subjetivi­ dade dos indivíduos e a objetividade das circunstâncias históricas que os moldam e por eles são moldadas e examinar as múltiplas formas que a luta de classes pode assumir ao longo do tempo. Os debates intelectuais sobre marxismo que inspiraram as obras de E. P. rhompson, Raymond Williams, Eric Hobsbawm e muitos outros do ou­ tro lado do Atlântico também se travavam no Brasil. Para aqueles, como para a autora, o marxismo não oferecia um modelo a ser copiado, não era uma ortodoxia, mas um método de análise a ser adequado a circunstâncias, diversas de espaço e tempo. Isso explica a existência de tantas e variadas leituras do marxismo que a perseguição, de um lado, e a ortodoxia soviética, ' de outro, conseguiram obscurecer. A autora de Da senzala à colónia acreditava e ainda acredita, a despeito dos pós-modernos, que a História não é ficção. Apesar de as qualidades lite­ rárias do texto serem imprescindíveis, a História tem características de uma ciência social específica, com um método que lhe é próprio. A autora estava convencida de que se podia não só chegar ao máximo grau de consciên­ cia possível em determinado momento como também a uma compreensão mais objetiva do processo histórico, de cuja realidade nunca duvidou. A partir de uma leitura flexível de Marx, a primeira parte de Da senzala à colónia foi dedicada ao estudo das transformações das forças produtivas, isto é, das condições naturais de clima e solo que favoreciam a plantação do café, da força de trabalho, escrava e livre, nacional e estrangeira utilizada em sua produção; o aperfeiçoamento dos métodos de transporte é vias de comunicação, do carro de boi e lombo de burro para a estrada de ferro, mu­ danças do método de produção, beneficiamento do produto, emprego de maquinário em substituição aos métodos manuais primitivos como o pilão e a secagem ao ar livre no terreiro. As mudanças introduzidas ao longo do tempo à medida que as fazendas se deslocavam para novos espaços em busca de terras virgens mais produ­ tivas levaram à alteração do ritmo de trabalho, e a especialização crescente

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fias fazendas. Liberaram também mão-de-obra e facilitaram a transição do trabalho escravo para o livre. Na mesma direção atuou a lei que fez cessar o tráfico. Aprovada sob pressão inglesa em 1831, ficou, no entanto, sem efeito. Apesar da perse­ guição inglesa dos navios ligados ao tráfico, o contrabando de escravos con­ tinuou sem trégua até 1850, sob os olhares complacentes das autoridades brasileiras. Por volta dessa data, no entanto, os senhores estavam abarro­ tados de escravos e o Estado brasileiro, passado o período de instabilidade da regência, achava-se mais competente para reprimi-lo. A pressão inglesa também aumentara. Dessa forma, a nova legislação teve condições de ser implementada. Finalmente o tráfico externo cessou, tendo sido substituído pelo interno, que passou a encaminhar escravos de regiões decadentes ou das cidades para as áreas cafeeiras, resultando não só na concentração de escravos nessas regiões como na alta progressiva dos preços de escravos. A partir de então, as experiências com a imigração multiplicaram-se. A lei do Ventre Livre deu mais um passo na direção da abolição. Apesar de seus efeitos serem sentidos apenas mais tarde, devido a medidas que os fazen­ deiros introduziram na legislação por seus representantes no Parlamento, a lei teve um efeito psicológico profundo, uma vez que interferia no direito de propriedade. Ao mesmo tempo a nova legislação levou ao envelhecimento progressivo da população escrava. O número de escravos diminuiu em re­ lação à população livre. A segunda parte do livro intitulada “Aspectos da vida dos escravos nas zonas urbanas e rurais” é a menos desenvolvida e a mais literária. É também a que foi mais complementada pela historiografia desde então. O objetivo era analisar as transformações ocorridas na vida dos escravos, o desapare­ cimento gradual do escravo urbano, substituído pelo trabalhador livre, sua concentração nas zonas rurais. Utilizando as posturas municipais, a autora detém-se na análise dos métodos de repressão e disciplina usados nas ci­ dades. Com auxílio das obras de viajantes, estuda o mesmo fenômeno no campo, revelando a importância que os senhores atribuíam à religião como meio de controle social. Examina também as formas de associação religio­ sa ou leiga utilizadas pelos escravos (associações, confrarias, irmandades, caixas de empréstimo, juntas de alforria, capoeiras) e outras formas de re­ sistência. Ao mesmo tempo que frisa as formas de solidariedade entre os escravos, a autora aponta as divisões internas e conflitos entre eles. Aborda

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também aspectos do cotidiano dos escravos, horários de trabalho, habita­ ção, vestuário, doenças mais comuns, epidemias, mortalidade, família e si­ tuações ambíguas que a escravidão gerava (irmãs que mantinham irmãos no cativeiro, por exemplo). O quadro não é estático. É sincrônico e diacrônico. Aqui também se ob­ servam alterações que foram sendo introduzidas ao longo do tempo não só pela legislação (a lei de 1869 que proibiu a separação de pais e filhos meno­ res de quinze anos, por exemplo), como também em virtude do movimento abolicionista e o apoio que homens livres passaram a dar a escravos (o caso de Luís Gama, recorrendo aos tribunais, por exemplo, ou os caifazes de Antô­ nio Bento que ajudavam os escravos a fugir) e, finalmente, pelas mudanças na própria consciência de escravos e senhores (por exemplo, marcas de'castigo que antes depunham contra o escravo passaram a depor contra os senhores). Os ideais de tolerância e benevolência fixados nos Códigos haviam perma­ necido letra morta até então, encontraram enfim condições para se efetivar. A segunda parte conclui com um capítulo sobre o protesto do escraviza­ do. Depois de examinar várias formas de protesto que sempre existiram em sociedades escravistas, desde assassinatos de senhores até a fuga e as insur­ reições, mostra a importância que a fuga em massa das fazendas teria nos anos que antecederam a abolição, quando a população escrava em São Paulo decresceu de 100 mil para 40 mil em poucos meses. A agitação chegou a tal ponto que a Assembléia Legislativa de São Paulo acabou solicitando ao Parlamento, por unanimidade, que fosse feita a emancipação. Finalmente, na terceira parte, intitulada "Escravidão e ideologia", a auto­ ra examina as transformações do pensamento escravista e emancipacionista desde a Independência até 1888, ligando-as às mudanças na economia e na sociedade. Um exame dos Anais do Parlamento revela que com o passar do tempo, escravistas e emacipadores foram mudando de posição, os primeiros passaram a encarar a possibilidade de emancipação desde que fosse feita com indenização, os emancipadores deixavam sua posição gradualista para se converterem em abolicionistas, enquanto as idéias abolicionistas foram ganhando peso. Depois de examinar as bases sociais do abolicionismo, e os métodos por eles usados, a autora mostra que as posições se radicalizaram. A medida que a opinião pública se convertia às idéias abolicionistas, a sen­ zala passava a agir de forma organizada em defesa própria e abandonava em massa as fazendas.

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Quando a Câmara se reuniu em 1888, os deputados encontraram-se diante de uma situação de fato: João Alfredo, chamado pela princesa Isabel para assumir o Ministério, apresentou a proposta do Executivo para que se convertesse em lei a extinção imediata e incondicional da escravidão. Contrariamente aos vaticínios de alguns, a nação não se viu arruinada. O que houve foi um abalo de fortunas e a ruína de alguns proprietários, cuja situação já estava abalada anteriormente e que tinham posto todas as espe­ ranças em uma indenização que não veio. Muitos escravos abandonaram as fazendas e partiram em busca da liberdade. O movimento abolicionista ex­ tinguiu-se com a abolição. Fora principalmente um movimento de homens e mulheres em sua maioria brancos e livres. O abolicionismo nascera mais do desejo de libertar a nação do “fardo da escravidão” do que do desejo de libertar a raça escravizada em benefício dela própria. O liberto foi abando­ nado à sua própria sorte. 28 de julho de 2006

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e s c r a v id ã o

: a obra

E m í l i a V io t t i d a C o s t a 1 Rafael de Bivar Marquese**

Nas últimas duas décadas, a historiografia sobre a escravidão negra no Brasil verificou notável salto. Os estudos cresceram de modo exponencial, fruto da institucionalização da pesquisa histórica por diversos programas de pós-graduação em todo o Brasil, assim como o arco temático por eles abran­ gido se diversificou. Demografia da população escrava (família, estrutura de posse, crescimento vegetativo); tráfico negreiro transatlântico e tráfico interno de escravos; escravidão no campo, em atividades voltadas à expor­ tação ou aó mercado interno; escravidão urbana; escravidão na pecuária, na mineração e no extrativismo; alforria e inscrição dos libertos na sociedade colonial e imperial; resistência escrava; culturas e identidades escravas, suas articulações com o passado africano e suas intersecções com os mundos do trabalho; normas e práticas legais relacionadas ao cativeiro; ideologia da es­ cravidão e movimento antiescravista: a lista dos temas é longa, e todos eles geraram debates próprios que seguem motivando o aprofundamento das investigações (Schwartz, 2001, cap.l). No momento exato em que se iniciava esse arranque historiográfico, veio a lume a segunda edição de Da senzala à colónia, de Emília Viotti da Costa. Publicado originalmente em 1966, pela editora Difusão Européia do Livro, o livro adquirira na década seguinte o estatuto de clássico, isto é, uma obra fun­ damental que influencia decisivamente o curso dos debates no campo em que 1 Agradeço enormemente a Sylvia Basseto o convite para participar, com Maria Cristina Cortez Wissenbach, da mesa-redonda em homenagem aos quarenta anos de publicação de Da senzala à colónia, e, sobretudo, a honra de dividi-la com a própria professora Emília Viotti da Costa. * Departamento de História da FFLCH/USP.

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se inscreve. Nos anos que se seguiram à sua primeira edição, a autora passou por um período bastante conturbado, fruto de sua cassação pelo AI-5, de seu subsequente exílio e de sua inscrição no meio universitário norte-americano. No começo da década de 1980, no entanto, diante da nova conjuntura polí­ tica que se abria no Brasil, Viotti da Costa se sentiu motivada a republicá-lo. A edição de 1982, a cargo da editoria Ciências Humanas, se, por um lado, manteve intacto o texto original, por outro, trouxe novo prefácio, no qual a autora esclarecia os pontos teóricos e os eixos centrais de interpretação do li­ vro, ao mesmo tempo que avaliava, em longos rodapés, a historiografia pos­ terior à sua primeira edição. Em sua última nota, Viotti da Costa expôs uma verdadeira agenda de pesquisas para o tema da escravidão no século XIX brasileiro (Costa, 1989, p.54). A passagem é extensa, e, já que foi relem­ brada por minha colega Cristina Wissenbach, não cabe citá-la novámente (ver, neste livro, p.87. De todo modo, mais de vinte anos depois de escritas aquelas palavras, pode-se afirmar sem exageros que a agenda proposta por Emília Viotti da Costa foi cumprida. Contudo, o ponto teórico central do prefácio à segunda edição, qual seja, o “pressuposto de que são os homens (e não as estruturas) que fazem a história, se bem que a façam dentro de con­ dições determinadas” (o que por sua vez exige que o pesquisador investigue as inter-relações entre as condições objetivas do processo de produção” e as “condições subjetivas dos agentes históricos"), foi, salvo poucas exceções, deixado de lado pelas pesquisas que examinaram os temas elencados naque­ le rodapé. Como Viotti da Costa explicitou em diversas ocasiões (ver, por exemplo, Vinci de Moraes & Rego, 2002, p.65-93), esse ponto unifica toda sua produção, derivando de uma clara combinação entre os postulados da escola dos Annales e certas leituras marxistas, algo que de resto ela comparti­ lhou com outros colegas de geração e de universidade. A conjugação encon­ trou seu melhor desenvolvimento não em Da senzala à colónia, publicado quando a autora tinha 38 anos, e sim em seu mais recente Coroas de glória, lagrimas de sangue, editado originalmente em inglês em 1994 (Costa, 1998). Em meu rápido comentário em homenagem aos quarenta anos de lança­ mento da primeira edição de Da senzala à colónia, vou tratar do modo pelo qual Emília Viotti da Costa trabalhou as mediações entre estruturas histó­ ricas e agência dos sujeitos sociais nessa segunda obra, procurando indicar em que medida ela traz sugestões teóricas e metodológicas relevantes para a historiografia corrente sobre a escravidão negra no Brasil. A renovação

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historiográfica por aqui ocorrida nas últimas duas décadas muito ganhou ao focar os escravos como sujeitos históricos ativos na construção de seu devir. Todavia, certa ênfase unidimensional na capacidade de os escravos agirem como sujeitos tem conduzido, por vezes, a certos exageros interpretativos, que levam a se perder de vista as determinações estruturais que estabeleciam os parâmetros para a ação desses sujeitos históricos. Pretendo indicar como a proposição de Viotti da Costa para se examinar a agência dos sujeitos sociais, sempre se tendo em conta o campo de possibilidades historicamente dado para a ação humana, pode nos ajudar a evitar tais pro­ blemas. Para tanto, o texto foi dividido em duas partes. Na primeira, procu­ ro inscrever muito brevemente a obra de Viotti da Costa no campo dos es­ tudos marxistas sobre a escravidão negra nas Américas e, em especial, no Brasil; na segunda, de forma também sucinta, abordo o tema da estrutura e da agência em Coroas de glória, lágrimas de sangue. *** A tradição de estudos marxistas sobre a escravidão negra nas Américas se iniciou, grosso modo, com os intelectuais caribenhos na década de 1930. De fato, Çyril James, com seu The Black Jacobins, publicado originalmente em 1938 (edição revista e ampliada em 1963), e Eric Williams, em Capitalism and Slavery, de 1944 (baseado em uma tese de doutorado defendida em Oxford no mesmo ano da primeira edição do livro de James), apresentaram o que pode ser considerado as matrizes do debate nesse campo (Patterson, 1977, p.427). Em seus livros, James e Williams criticavam duramente a in­ terpretação dada pela historiografia canónica do Império inglês ao processo de abolição da escravidão negra nas Antilhas, então compreendido como fruto exclusivo do humanitarismo e idealismo dos antiescravistas metropo­ litanos, e dialogavam, ao mesmo tempo, com o contexto político mais am­ plo do movimento pan-africanista e do nacionalismo caribenho.2*Havia, no 2 Como bem destacou Ival Oxaal, “ambos os estudos ressaltavam o papel decisivo do conflito de classes na história. Williams atacou a complacência moral associada ao entendimento ritânico de seu passado escravista; James procurou demolir a mentira histórica da passividade negra sob a escravidão. Ambos eram trabalhos radicais de investigação escritos da perspectiva de intelectuais negros marginalizados, cujas experiências os tornaram conscientes da hipocrisia que subjazia à autocongratulação piedosa da metrópole a respeito das relações com suas colónias” (apud Sheridan, 1987, p.326).

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entanto, diferença significativa na abordagem dos dois autores. Se, no tra­ balho de Eric Williams, as forças económicas tudo regiam, como se observa em sua famosa tese dupla sobre as relações entre escravidão e capitalismo,3 no livro de James as ações dos escravos, ainda que conformadas por condi­ ções historicamente dadas, constituíram o centro da atenção (Blackburn, 2002, p.39-41). Sejacomofor, tanto um como outro tiveram, nas décadas de 1940e 1950, uma recepção relativamente fria no universo da historiografia anglo-saxônica, quando não francamente hostil (Sheridan, 1987, p.320). Williams, contudo, foi bastante lido por aqui na virada dos anos 1950 para os anos 1960. Como parte da reação ao modelo explicativo freyriano para o pas­ sado escravista e o presente das relações raciais brasileiras, um grupo in­ formal de cientistas sociais e historiadores que então trabalhavam ria Uni­ versidade de São Paulo, e do qual fazia parte Emília Viotti da Costa, muito se valeu da obra de Williams para examinar o peso da escravidão na for­ mação social e económica do Brasil. A despeito da diversidade dos temas tratados - que abrangeram desde a crise do sistema colonial português na América (Novais, 1979) até as relações raciais em São Paulo no pós-abolição (Bastide &Fernandes, 1955) - e do tratamento teórico e historiográfico distinto de cada um de seus trabalhos, a chamada “escola paulista” encam­ pou por completo a dupla tese de Eric Williams. Tal adoção foi um dos elementos que levaram alguns historiadores a afirmar que, nas publicações dessa “escola”, os escravos foram reduzidos a meros automatos das estruturas económicas. Este e o caso da crítica de Sidney Chalhoub a Fernando Henrique Cardoso a respeito da “coisificaÇ ã°” do escravo na obra do sociólogo (Chalhoub, 1990, p.37-42), ampla­ mente citada nos últimos quinze anos em teses e publicações acadêmicas. No entanto, se a crítica pode ser válida para os sociólogos, ela é inadequada para o livro de Viotti da Costa. A diferença foi salientada por João José Reis em recente entrevista: nos trabalhos da “escola paulista”, afirmou,

3 A escravidão das plantations e o tráfico negreiro transatlântico, articulados ao mercado me­ tropolitano por meio do comércio triangular, tiveram peso decisivo para a acumulação de capitais que levou à eclosão da Revolução Industrial (tese 1), que, ao vingar, exigiu a abolição do monopólio, do tráfico negreiro e da própria escravidão como condições necessárias para sua expansão (tese 2).

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o escravo não figura como agente ativo, como sujeito da História. A exceção é exatamente o trabalho da historiadora do “grupo”, se podemos considerá-lo como tal. Emília Viotti da Costa, em seu clássico Da Senzala à Colónia, intro­ duz a luta escrava como um fator decisivo, embora não suficiente, na derrocada da escravidão. Eu, aliás, acho que a historiografia recente tem a dívida de reco­ nhecer essa dimensão de seu trabalho. (Vinci de Moraes & Rego, 2002, p.324)

Com efeito, apesar de a citação não aparecer em seus rodapés, Da sen­ zala à colónia guardou mais proximidade com Jacobinos negros do que com Capitalismo e escravidão. A leitura e o debate das obras desses historiadores caribenhos fizeram parte, na década de 1960, da profunda renovação internacional ocorrida no campo da historiografia sobre a escravidão negra nas Américas, para a qual, diga-se de passagem, a produção dos sociólogos e historiadores de São Paulo muito contribuiu.4 A renovação conduziu, na década seguinte, à formação de “escolas historiográficas” fundadas em temas e abordagens particulares, que paulatinamente as isolaram umas das outras. É certo que, por vezes, ocorre diálogo entre elas, mas que em geral se limita ao empréstimo de mé­ todos pontuais. Sob o risco de uma excessiva simplificação, vale nomear ao menos,três dessas grandes vertentes de investigação. A primeira é a da história quantitativa, expressa nas pesquisas que recorrem às ferramentas da cliometria e nos trabalhos a respeito da demografia da escravidão, cuja interface com a história social é mais acentuada. A segunda é a dos estudos que tratam do problema intelectual da escravidão, examinando a natureza das críticas e das defesas da instituição e, eventualmente, suas relações com o surgimento do capitalismo. Por fim, há as pesquisas sobre a vida escra­ va, com pelo menos três outras subdivisões, que não raro se mesclam, os trabalhos sobre resistência escrava; os estudos sobre cultura escrava e suas articulações com o passado africano, e os que abordam a cultura escrava e suas relações com os mundos do trabalho. Excetuando-se o caso da cliometria, o marxismo teve papel importante em todos os demais campos da historiografia sobre a escravidão negra nas Américas, mas um marxismo muito informado por Gramsci e pela verten­ 4 Basta lembrar o aporte decisivo dos livros de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Car­ doso e Emília Viotti da Costa, entre outros, para os trabalhos de David Bnon Davis (1988) e Eugene Genovese (1979), matriciais na virada historiográfica dos anos 1960.

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te dos historiadores ingleses, sobretudo pela obra de E. P.Thompson. Na impossibilidade de passar em revista apenas os trabalhos mais significati­ vos, vale lembrar o peso que a produção de Thompson teve para os livros de Eugene Genovese (1974), David Brion Davis (1999) e Herbert Gutman (1976). Entretanto, é bom que se diga que o marxismo também esteve na base do cruzamento entre história e antropologia que Sidney Mintz vinha praticando em suas investigações das sociedades caribenhas desde fins da década de 1950, e que, nos anos 1970, forneceu as diretrizes para boa parte das pesquisas sobre vida escrava nas Américas (ver, além de Mintz 1974, o texto programático de Mintz & Price 2003). A expansão da historiografia sobre a escravidão brasileira nas décadas de 1980 e 1990 se fez com base nessas grandes linhas de investigação 'que haviam se consolidado na historiografia anglo-saxônica na década anterior. Nesta operação, a matriz teórica fundamental passou a ser fornecida pelo marxismo inglês, incorporado no mais das vezes pela obra dos historiadores norte-americanos. Deixou-se de lado, assim, a tradição de análise marxista da escravidão brasileira que vinha da década de 1960, que passou a ser vista por parcela substantiva da nova geração de historiadores como o passado político e historiográfico a ser negado e superado. Uma das razões para tan­ to foi, certamente, o caminho que os debates sobre a escravidão brasileira tomaram ao longo da década de 1970, com ênfase quase escolástica na dis­ cussão teórica do conceito de modo de produção, todavia parte do acerto de contas da esquerda brasileira com a derrota que sofrera com a implantação da ditadura militar. Não por acaso, a conjuntura que se abriu no início da ecada de 1980, com a volta da democracia, o surgimento de novos partidos políticos, a articulação do movimento negro e da campanha pela reforma agraria em escala nacional, apresentou novas questões para os historia­ dores.5 A ênfase, agora, passou a incidir sobre a experiência dos agentes histoncos submetidos às relações de dominação e de exploração, que não mais eram vistos como meros sujeitos passivos ou autómatos das estruturas económicas, mas antes como seres ativos na construção de seu futuro, en­ tendido, por seu turno, como vasto campo de indeterminação. 5 Í ST rtI,Cf ! f ° “ trej anOVa hlSt° n °grafia da escravidão e a conjuntura política mais ampla via HunoldV ^ m o ç / 980 ' eXpl'Cltada " ° balanç0 historiográfico programático de SilHunold Lara (1995), escnto por ocasião de um ciclo de debates em homenagem a E P Thompson, falecido em 1993. S

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Porém, a nova perspectiva analítica, ao abandonar o que denominara “discurso estrutural”, acabou por jogar fora a poderosa herança teórica e metodológica das duas primeiras gerações da escola dos Annales, que muito influenciara os próprios historiadores marxistas ingleses.6 A grande vítima, aqui, foi a categoria estrutura, substituída pela categoria experiência. Entre os muitos exemplos que poderiam ser lembrados, creio que cabe citar uma passagem do belo livro de Robert Slenes, fruto de ampla e densa investigação sobre a família escrava e os padrões culturais africanos que os cativos retive­ ram e reinventaram nas senzalas do sudoeste cafeeiro do Império do Brasil: Parto do princípio de que não é possível entender a dinamica da relaçao en­ tre cativo e senhor, nem as contradições e mudanças no sistema escravista, sem “entrar na cabeça” dos escravos, sem conhecer suas armas simbólicas e suas possibilidades de ativar e coordenar essas armas entre si. Enfim, se os escravos não eram seres anômicos, triturados até na alma pelo engenho do cativeiro, se tinham uma herança cultural própria e instituições, mesmo que imperfeitas, para a transmissão e recriação dessa herança, então o fato de que provinham de etnias africanas específicas toma-se importante. Torna-se, aliás, decisiva para o curso da história, se aceitarmos a idéia de que as pessoas interpretam a ex­ periência vivida, e tentam mudá-la, a partir de sua visão de mundo, por sua vez formada na experiência anterior; e se supusermos que é a luta entre grapos sociais - às vezes, grupos que se descobrem nesse embate como “classes , et­ nias” ou "nações” - que ergue, mantém e constantemente solapa as estrutu­ ras” ecoíiômicas e sociais. (Slenes, 1999, p .133-4)

A passagem é uma ótima súmula das preocupações temáticas e teóricas que tanto ajudaram a incrementar a historiografia recente da escravidão no Brasil, em especial a ênfase nas lutas entre senhores e escravos como o ele­ mento decisivo para a construção do devir da escravidão e a busca das ma­ trizes africanas subjacentes às ações e aos projetos dos escravos, o que, por sua vez, tem permitido amplo avanço das pesquisas que procuram articular as duas margens do Atlântico. Mas também é interessante observar nela que, enquanto o vocábulo experiência e a expressão luta entre grupos sociais não vêm entre aspas, o autor as emprega para o vocábulo estrutura. A razao disso foi explicitada no rodapé que encerra a passagem: 6 Ver, por exemplo, a avaliação de Hobsbawm (1998. p.193-200) e os comentários dispersos do próprio Thompson no polêmico A miséria da teoria, 1981, p.28-9,104.

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Evidentemente, as lutas de um dado momento são condicionadas por lutas anteriores, às quais muitos dão o nome de “estruturas", utilizando uma metá­ fora cara ao século XIX. Adoto aqui a posição de [E. P.] Thompson. ... Como Thompson, não sou avesso à utilização de metáforas para fins heurísticos, con­ tanto que se lembre que são apenas metáforas. (Slenes, 1999, p.209, nota 7) Há dois problemas na nota. O primeiro é que Thompson não considera a categoria estrutura como uma simples “metáfora”. Muito pelo contrário, pois em toda sua obra se valeu dela, não como “metáfora heurística”, mas como uma dimensão constitutiva do passado, real e cognoscível ao investi­ gador no presente. Tanto é assim que, em diversos trechos de A miséria da teoria (1981, p.61, 96-7, 112, 124-5), Thompson deixa claro que, pelo vo­ cábulo, compreende as pressões exercidas pelo processo histórico, criando o campo de possibilidades historicamente dadas para a ação humana; esse processo se refere, no caso dos temas que trata, à formação do capitalismo na Inglaterra - um processo de longa duração que se iniciou na crise do sé­ culo XIV. Seu propósito, na verdade, foi o de criticar a rígida dicotomia base (economicamente determinante) / superestrutura (política e culturalmente determinada), esta sim compreendida como uma metáfora abstrata e reificada, que freqiientemente conduz a explicações mecânicas e reducionistas da dinamica social. O segundo problema é que, ao adotar e mesmo radica­ lizar a proposta thompsoniana para substituir a dicotomia estanque base/ superestrutura pela categoria experiência, Slenes acabou caindo em uma das armadilhas que a reflexão teórica - mas não a prática historiográflca - do historiador inglês apresenta. Sewell Jr. (1990. p.59-66) fez uma avaliação contundente das inconsistências da teorização que Thompson imprimiu à categoria experiência, porém o aspecto central a destacar é a advertência de Perry Anderson (1985, p.80-1): a definição de experiência proposta por Thompson, escorada em sua textura unitária, leva à negação das idéias 1) da pluralidade dos tempos históricos e 2) da estrutura (a “longa duração”) como uma dimensão constitutiva essencial desses tempos. Os riscos em se abandonar a ídéia de estrutura como uma dimensão do tempo histórico na qual se inscrevem as ações dos sujeitos sociais em de­ terminado presente podem ser notados em algumas das interpretações cor­ rentes sobre dois eventos centrais da escravidão brasileira no século XIX, a saber, o término do tráfico transatlântico de escravos e a aprovação da lei

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do Ventre Livre. Assim, o porquê de o encerramento do tráfico ter ocorrido apenas em 1850, após décadas de pressão inglesa, vem sendo interpretado como uma resposta das elites políticas e das classes senhoriais brasileiras ao temor crescente de levantes escravos, em especial diante da extensão de um plano de revolta no Vale do Paraíba cafeeiro que teria sido abortado em 1848 (Slenes, 1992). Um modelo explicativo semelhante é aplicado à lei de 1871: conforme as palavras do influente trabalho de Chalhoub (1990, p 160), “a lei de 28 de setembro [de 1871] pode ser interpretada como um exemplo de uma lei cujas disposições mais importantes foram arrancadas pelos escravos às classes proprietárias”. A resistência escrava tornou-se, nesta perspectiva, como que o motor único da História. A expansão das no­ vas formas de escravidão negra nos quadros da economia-mundo do capi­ talismo industrial, a formação do Estado nacional brasileiro e suas relações com o chão escravista do país, a ausência de uma esfera pública que questio­ nasse a escravidão, a vitalidade do tráfico ilegal nos quadros das sociedades africanas, a campanha internacional contra a escravidão capitaneada pela Inglaterra, a política da escravidão em escala hemisférica, enfim, tudo isso e outras coisas mais que fariam parte da “metáfora da estrutura perde­ ram espaço a partir do momento em que o discurso histonografico passou a focar tao-somente as experiências dos sujeitos históricos imediatamente envolvidos na relação escravista. O quê o comentário tem a ver com a obra de Emília Viotti da Costa? No prefácio à segunda edição de Da senzala à colónia, ao expor o eixo geral de interpretação que adotara, a autora enfatizou insistentemente a necessida­ de de compreender a crise da escravidão no Brasil como “um processo de longa duração que envolve mudanças estruturais, situações conjunturais e uma sucessão de episódios que culminaram na Lei Áurea” (Costa 1989, p.28). Nesse modelo de análise, as transformações estruturais foram enten­ didas como condições necessárias para que os sujeitos pudessem exercer sua liberdade, e, portanto, não como os fatores que determinaram o que efetivamente fizeram. Vem daí o enquadramento dado à açao escrava: na década de 1880, / o fator decisivo na mudança de atitude dos fazendeiros das regiões cafeeiras, principal reduto do escravismo, foi a rebelião das senzalas. Fazer dela, no en­ tanto, a causa fundamental da abolição é interpretar este fato exclusivamente ao |É C i

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nível dos fenômenos de curta duração (situações conjunturais), minimizando as transformações estruturais de longa duração que tornaram possível o sucesso da insurreição escrava. O protesto escravo não foi uma invenção do século XIX. ... Mas, no século XIX, a rebelião dos escravos adquiriu um significado novo, porque ocorreu num contexto novo. ... No passado, a rebelião dos escravos es­ barrara na reprovação coletiva dos brancos. ... Na segunda metade do século XIX, no entanto, a situação era outra. ... Nessas condições, apoiados pelos abolicionistas, os escravos foram incorporados à ação abolicionista e seus atos de protesto adquiriram um significado político que não tinham anteriormente. (Costa 1989, p.40-1)

Como se pode perceber, a historiografia sobre a escravidão brasileira posterior à redação dessas palavras seguiu outro caminho analítico.

i i * 1

• • npodas articulações entre estrutura e agência. No livro, a cate0 e s c u r a funciona como uma chave p ar. se apreender a ,dé,a de totaê / d alética liberdade-necessidade. A estrutura nao e apenas metalidade e a dialet ^ própria dimensão do tempo em que agem os sujeitos f°ta ÍT Õ conseguinte, estamos longe tanto do modelo estanque de sociais. Ror con g - dos Annales (estrutura compreendida tos dos trabalhos geográfiCos, da produção material e dos como a somatona dos ^ tradicional marxista da “estrutura padrões demográficos) co + reiações de produção), económica da sociedade ( Ç - do termo no trabalho em Para compreender devidamen^ ^ ^ Jf (w92). questão, vale reco Segundo ele. o uso ■=“ frequência a tres pr

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« -* • r .f — aç5„ humana, a agen ^ Emília Viotti da Costa, contudo, não ficou parada no tempo. Na segun­ da metade da década de 1980, engajou-se em uma pesquisa sobre a grande revolta escrava da colónia inglesa de Demerara, em 1823, uma das maiores na história do Novo Mundo por ter envolvido mais de dez mil escravos. Como Viotti da Costa deixou claro em diversas ocasiões, o livro que resul­ tou dessa investigação foi concebido sobretudo como um exercício teórico e metodológico, o que lhe permitiu lidar com questões sempre presentes na obra do historiador: o papel dos in­ divíduos e das classes, a construção e função das ideologias, a importância do acaso e da determinação, as relações entre “infra e superestrutura”, tradição e inovação no transplante de culturas "africanas” para a América e a formação de uma nova cultura. (Vinci de Moraes & Rego, 2002, p.82)

Nele, a autora dialogou criticamente com as três “escolas historiográficas” correntes sobre a escravidão negra que identifiquei acima, bem como discutiu a virada linguística e o pós-modernismo nas ciências humanas, a cisão entre macro e micro-história, o empirismo raso e o abandono da noção de totalidade. Da incrível riqueza do livro, sem dúvida alguma uma das pe­ ças mais significativas da historiografia mundial sobre a escravidão publi­ cada nos últimos vinte anos, quero destacar rapidamente dois pontos.

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sociais sao reduzi (segundo problema), _ P conta de transformações

oria ^

dências humanas conduz com „ fat0 dc os argumentos "estrui do rígido na vida social; a

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na estrutura, e os atores deU. A expressão, por outro lado

a idéia de estabilidade, sem conseguir dar 2) não seciona ^ processo de raudança pela valise da ^ o W a ç a o („„ caso. o escravtsmo

xmpério inglês, em particular). Estrumas também o conjunto dos valores ^ consigo c «desenharam , q capitalism0 industrial em formaçao na -_ &guberdade que impul-

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e que foram lidas de modo particular ^ amplo das forças eConômicas, sociais, _______ de oossibilidades e estabele-

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ESTRUTURA E A G Ê N C IA N A H IST O R IO G R A F IA D A E S C R A V ID Ã O

ciam os limites para as ações dos sujeitos sociais, mas que estava ele mesmo em processo de rápida alteração nessa época por conta da própria agência dos atores em questão. Essa acepção se traduz de forma igualmente magis­ tral na organização do livro. Se os dois primeiros capítulos apresentam o ce­ nário mais amplo das contradições que polarizavam, no contexto atlântico e imperial inglês da virada do século XVIII para o XIX, senhores contra mis­ sionários e senhores contra escravos, os cinco capítulos seguintes partem para a observação dessas contradições nas ações dos agentes diretamente envolvidos na rebelião. Uma leitura rápida poderia dar a entender qtie a estrutura estaria presente apenas nos primeiros capítulos, ficando reservado à agência os outros cinco. Entretanto, a todo momento Viotti dá Costa in­ dica como a estrutura está na ação, no evento, e, inversamente, como a ação social, ou o evento, molda a estrutura. O segundo ponto que quero destacar é o papel que a narrativa ocupa na obra. Em realidade, Coroas de glória, lágrimas de sangue serve como um ex­ celente exemplo para demonstrar como parte substantiva do debate sobre a “volta da narrativa” carece de sentido, como aliás salientara Hobsbawm (1998,p.201-6)logo após a publicação do ensaio que dera ensej o à discussão (Stone, 1979). Cabe aqui lembrar outro historiador. Como ressalta o grande Reinhart Koselleck (2006, p. 132-45), em vigorosa defesa da “história es­ trutural” e de seu cruzamento com a história social e a história dos conceitos (Begriffsgeschichte), a forma da narração (isto é, o encadeamento de eventos em uma progressão discursiva linear) prende-se à dimensão temporal trata­ da pelo historiador, e não ao repertório dos recursos estilísticos que mobili­ za. Assim, lembra Koselleck, é impossível alguém narrar um tempo longo, ao passo que o tempo curto exige a forma narrativa. Estruturas são sempre descritas; eventos são sempre narrados. O livro de Emília Viotti é um belo exercício nesse sentido. A adoção da técnica do romance polifônico - cujas vozes são compostas pelos mis­ sionários, senhores, autoridades coloniais e, acima de tudo, pelos escravos - é uma das estratégias que ela emprega para dar conta, na escrita, da plu­ ralidade dos tempos históricos. A outra, estritamente atrelada ao fato de a autora - contra a maré pós-moderna —não “abrir mão dos privilégios e responsabilidades do narrador” (Costa, 1998, p. 19), reside na própria divi­ são dos capítulos. Enquanto os dois primeiros (que tratam basicamente das grandes mudanças ocorridas nas estruturas no mundo atlântico, na passa-

do século XVIII para o XIX, e sua dinâmica local em Demerara) são descritivos, os cinco últimos capítulos (que tratam da sequência de eventos niciada em 1808, com a chegada na colónia dos pnmeiros pastores da London Missionary Society, e que culminaria na revolta de 1823 na repressão subsequente e em suas repercussões atlânticas mais amplas) oferecem uma narrativa envolvente. De acordo com a lição de Koselleck (2006, p.139), seguida à risca em toda a trajetória de Emília Viotti da Costa, estruturas mais ou menos duradouras, mas de todo modo de longo prazo são condições de possibilidade para os eventos. ... Inversamente, certas estruturas só podem ser apreendidas nos eventos nos quais se articulam e por meio dos quais se deixam transparecer. ... A forma mais adequada para se apreen er caráter processual da história moderna é o esclarecimento reciproco dos eventos pelas estruturas e vice-versa.

Se houve razões muito justificáveis para se abandonar o “discurso estru­ tural” no Brasil do começo da década de 1980, dadas pelo momento pohtrco que então v.víamos, creio que há razões de sobra para se retoma, nos d,as correntésacategoriaestrutura, de umaperspectivarenovadaeclaro. A persistência das desigualdades sociais e a experiência dos governos de esquer a após a volta da democracia no Brasil, os processos globais de acumulaça do capital, a degradação do trabalho e da natureza em escala nuncaantes vista- tudo isso exige, do investigador, u m . perspectrva que nao .sole de sua análise o quadro de forças mais amplo no qual operaram os suje,tos soc.a.s do passado. A obra de Emilia Viotti da Costa, em resumo, amda tem mu,to a nos oferecer.

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teoria

ou“

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" N u n c a t iv e v o c a ç ã o p a r a t u r is t a d o P A S S A D O N E M PA RA C O L E C IO N A D O R A D E M E M Ó R IA S . . . "

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E m í l i a V io t t i d a C o s t a e a o s q u a r e n t a a n o s de

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a s e n z a l a à c o l ó n ia

Cristina Wissenbach* Devo dizer que não só é emocionante como difícil escrever um texto para esta mesa que tem como centro a historiadora Emília Viotti da Cos­ ta e sua obra já clássica, Da senzala à colónia. Em um primeiro momento pensei em apresentar uma reflexão sobre a produção historiográfica feita segundo sua inspiração. Reconsiderei e resolvi imprimir um tom um pou­ co mais direcionado que considerasse o sentido que tanto a leitura da obra como a proximidade com Emília Viotti tiveram em minha formação. Para depois destacar aspectos de seus estudos e de sua posição como historiadora que considero relevantes para o debate sobre a pesquisa histórica nos temas relativos à escravidão e à Abolição. E que sobretudo nos ajudam a refletir sobre o posicionamento do historiador no desempenho de seu ofício. Parte das reflexões aqui apresentadas já foram enunciadas por ela pró­ pria. Para além de minhas lembranças, na formulação deste texto reli trechos de seus estudos, rememorei o depoimento que fez em Linha de pesquisa em escravidão e história atlântica (do Programa de Pós-graduação em História Social da USP), em 2004, retomei as entrevistas que concedeu a Sylvia Basseto, na ocasião em que recebeu o título de Professor Emérito da F F L C H / USP,*12e a José Geraldo Vinci de Moraes e José Mareio Rego, publicada em Conversas com historiadores brasileiro? Depoimentos nos quais Emília ViotDepartamento de História da FFLCH-USP. 1 "Devemos rever a imagem que temos de nós mesmos”, entrevista de Emília Viotti da Costa a Sylvia Basseto, publicada em Revista Adusp, jun.1999, p.14-29. 2 VINCI DE MORAES, J. G., REGO, J. M. Conversas com historiadores brasileiros. São Pau­ lo: Editora 34, 2002, p.65-93. 1

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ti contou, de maneira instigante, algumas de suas experiências e expressou opiniões corajosas como mulher, professora e historiadora. Tomei a liberdade de refazer com base nesse material alguns paralelos entre minha trajetória e a da professora Emília Viotti. Devo dizer que so­ mente tive contato mais direto como sua aluna em alguns poucos meses de 1984 quando, vinda dos Estados Unidos para breve temporada brasileira ministrou uma disciplina na pós-graduação na História da USP, intitulada Capitalismo e Patronagem - a Era das Reformas 1870-1889. Curso em que abordava as linhas amplas do século XIX brasileiro e o processo da passa­ gem entre a Monarquia e a República, nas múltiplas versões históricas e historiográíicas, e sobretudo crítico em relação ao papel histórico das elites brasileiras e a sua capacidade de perpetuar, por sistemas de clientelismo e de patronagem, “valores tradicionais elitistas, antidemocráticos, autoritá­ rios, bem como a sobrevivência de estruturas de mando que implicavam a margmalização de amplos setores da população”.3Neste contato, não só me beneficiei de suas lições, como, em diálogo estimulante, pude apresentar trechos da documentação que então pesquisava e discuti com ela direções analíticas que se tornariam importantes para a elaboração de meu trabalho de mestrado. Antes disso, ou seja, antes desta época, posso dizer que quase sempre cheguei atrasada. Em 1964, comecei meu curso secundário no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia da USP, logo depois de sua saída.4Quando ingressei 3 Trecho retirado do prefácio de Da Monarquia à República: momentos decisivos. 7. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 1999, p. 15-6. 4 Criado em 1957, o Colégio de Aplicação era ligado à FFLCH-USP e funcionava como local onde se realizavam os estágios dos alunos de licenciatura. Marco de um ensino público de qualidade, manteve caráter experimental na implementação de experiências educacionais. Sobre o histórico da instituição ver, entre outros autores: JANOTTI, M. de L„ SOUZA, M. C. C. de. O Colégio de Aplicação da USP, anos 50 e 60. In: SIMSON, O. (O rg) Os desafios contemporâneos da história oral Campinas: Centro de Memória da Únicamp, 1997, p.267-90. WARDE, M. J. O Colégio de Aplicação da Universidade de São Paulo. In: GAR­ CIA, W. Inovaçao educacional no Brasil: problemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 1980, p. 101-31. Emília Viotti lecionou aí por algum tempo; em sua entrevista, lamenta o destino da escola: “Deixei o secundário num momento bastante crítico que prenunciava os trágicos eventos que estavam por vir. O Colégio de Aplicação foi invadido pela polícia a chamado de seu diretor, que discordou de uma manifestação de alunos. Para mim esta intervenção pare­ cia um contra-senso. O diretor dizia-se liberal. Mas quando os alunos quiseram expressar suas reivindicações encontraram pela frente a polícia. O Colégio fora organizado segundo os

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na universidade, no curso de História, Emília Viotti acabava de ser afasta­ da aposentada pelo A I-5.5No entanto, tanto na USP quanto no Aplicação sua presença era, de fato, ainda muito marcante. No colegial, a grande res­ ponsável pela opção que fiz por História foi a professora Maria de Lourdes Janotti, sua aluna. Na graduação, e no difícil ano de 1969, a disciplina de Metodologia da História era ministrada por Ana Maria de Almeida Camar­ go e Sylvia Basseto, que nos ofereciam um programa de curso que trazia, in­ discutivelmente, sua marca. Principalmente a preocupação em possibilitar e exigir dos alunos um contato sistemático com a pesquisa histórica pelo manuseio de fontes primárias. Com isso, usufruí a proximidade com Emília Viotti não só por seus discípulos, mas por uma programação acadêmica que dava ênfase à formação de professores-pesquisadores, instruindo-os para que abandonassem o estilo do ensaísmo histórico, introduzindo em seus horizontes de trabalho, desde cedo, o diálogo com as fontes. Devo dizer que a partir de então nunca mais deixei de lado os arquivos. E creio que o mesmo se deu com a geração que se formou comigo e com as que vieram depois. Para os historiadores que faziam, nessa época, trabalhos na área de his­ tória da .escravidão a interlocução com a obra de Emília Viotti foi funda­ mental. Em meu caso, foi pela leitura de Da senzala à colónia que muitos dos recortes da pesquisa que iniciava foram formulados e muito de seus detalhes ganhou sentido. Além de oferecer uma visão essencialmente hispreceitos de John Dewey, filósofo americano, predileto do professor de didática da USP. Era um colégio modelo, cujo objetivo era treinar professores para desenvolver a observação e o espírito crítico dos jovens ... A atitude tomada pelo diretor, chamando a policia para repri­ mir os alunos, anunciava maus tempos para uma escola que começara alguns anos antes de maneira tão auspiciosa...”. Entrevista a Sylvia Basseto, p.22-3. 5 Os motivos que causaram sua aposentadoria compulsória pelo AI-5, e estancaram a carreira acadêmica que se encontrava no auge, são extensamente comentados em seus depoimentos; o incidente entre ela e o ministro da Educação, Tarso Dutra, em programa de TV em que manifestou duras críticas à privatização da universidade e ao acordo MEC-Usaid, foi por ela considerado a gota d'água: "sempre desconfiei de que foi esse episódio que levou à mmha aposentadoria”, entrevista a Sylvia Basseto, p.25; Conversas com historiadores, p.74-5. 6 Emília Viotti, avaliando o curso de História e Geografia no momento em que ingressou como estudante, considera o distanciamento da pesquisa empírica não só um traço do curso, mas , também a diferença na formação dos profissionais das duas disciplinas: "O currículo do curso era rígido, tanto na sequência cronológica quanto no número de matérias obrigatórias em ístória e Geografia.... Os geógrafos treinavam os alunos para fazer pesquisa de campo. No curso de História ninguém ensinava os alunos a fazer pesquisa”. Entrevista a Sylvia Basseto, p. 17.

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tórica da sociedade escravista e de seus agentes, pela primeira e definitiva vez ouvi falar de malungòs, de Manuel Congo, do abolicionismo revolucio­ nário de Luís Gama e de Antônio Bento, do desembarque clandestino de africanos no Bracuy, entre outros processos e acontecimentos relacionados à sociedade escravista do sudeste brasileiro. Revelou-se aí, também, a im­ portância da revolta dos escravizados que cadenciou o processo de emanci­ pação e da Abolição, bem como da boataria que se difundia entre os distri­ tos cafeeiros e gerava, algumas vezes, rebeliões e fugas em massa, corpo as que ocorriam em Campinas e no Vale do Paraíba. Como também, em ou­ tra direção, o sentido que tiveram os cânticos africanos na organização das confrarias religiosas dos homens negros e dos cultos africanos dos mortos na cidade oitocentista, que a autora mencionou com base em Rogef Bastide e este, por sua vez, no memorialista Antônio Egídio Martins. Cânticos que acompanhavam os enterros, ainda na primeira metade do século XIX, e que cadenciavam os rituais da passagem para outra esfera: Zoio que tanto vio/ Zi bocca, qui tanto falô/ Zi bocca qui tanto zi comeo e zi bebeo/ Zi mão qui tanto trabaiô/ Zi perna qui tanto andô ...7Aspectos fugidios de um pas­ sado que a história oficial da cidade teimou em esconder e os historiadores vêm recuperando na confluência de motivações e de ensinamentos. Também com a leitura da obra, entrei em contato com ferramentas con­ ceituais que seriam fundamentais para pensar as questões da escravidão em São Paulo: as transformações profundas que marcaram a sociedade brasi­ leira no último quartel do século XIX e, imbricadas a elas, as relações entre senhores e escravos, a agência e a socialização de escravos, forros e africa­ nos livres, o processo de ladinização. Aprendi também a ler os indícios da movimentação dos libertos, no pós-Abohção, e a ídéia de que para eles “a liberdade implicava, antes de mais nada, o direito de ir embora, de se deslo­ car livremente, de abandonar a lavoura, de trabalhar onde, como e quando quiserem ,8 Foi, por fim, este contato que me ajudou a reiterar a impor­ tância das fontes primárias como base da interpretação histórica: processos criminais, códigos de posturas, relatórios de presidentes de província, ofí­ cios diversos, textos de viajantes e de cronistas, mencionados e citados às centenas no embasamento de seus argumentos. 7 Da senzala à colónia. 2. ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1982, p.219. 8 Da senzala à colónia, idem, p.439.

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Pensando em termos de sua longa trajetória, uma das características marcantes dos estudos de Emília Viotti é exatamente o entrosamento entre os diferentes textos. Considerando especificamente a história das socieda­ des escravistas das Américas e da transição do trabalho escravo ao trabalho livre, é possível estabelecer linhas de continuidade entre Da senzala à coló­ nia, de 1966, o prefácio de sua segunda edição,9 escrito em 1982, e entre os dois textos e seu trabalho sobre a revolta dos escravos em Demerara, Coroas de glória, lágrimas de sangue, escrito em 1994 e traduzido para o português em 1998.101* O prefácio à segunda edição de Da senzala à colónia é extremamente esclarecedor. Pode-se dizer que nele Emília Viotti orientou a distância: realizou balan­ ços historiográficos, formulou sínteses, enfrentou críticas, esclareceu e rea­ firmou enquadramentos teóricos e metodológicos.” Mas, principalmente, formulou a agenda de novos temas e generosamente descortinou rumos que as pesquisas históricas sobre a escravidão deveriam ou poderiam tomar. Apontando lacunas da historiografia, reclamando concentração de estudos em aspectos até então pouco explorados, ofereceu ampla gama de direções aos estudiosos que então iniciavam seus trabalhos. Permito-me citá-la na nota 29, deste texto: ;Um balanço geral da historiografia sobre a escravidão revela que os maio­ res avanços foram feitos pela história quantitativa. Por isso, conhecemos hoje com maior exatidão as taxas de natalidade, fertilidade, mortalidade, os índices de casamentos entre os escravos, o volume do tráfico interno e internacional, a curva de idade, o número de manumissões, a porcentagem de homens e de mulheres na população e de escravos qualificados e não-qualificados, trabalha­ dores no campo, domésticos, artesãos, etc. Muito menos se fez no sentido de se estudar o processo abolicionista. A maioria dos estudos concentrou-se nas 9 Idem, Prefácio à segunda edição, p.XXI-LIV. 10 Croums of glory; tears of blood. The Demerara slave rebellion o f 1823. New York: Oxford University Press, 1997. Trad. bras. Anna Olga de Barros Barreto. Coroas de glória, lágrimas de sangue. A rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 11 Segundo afirma a Vinci de Moraes e Rego, o Prefácio tinha “o propósito de evitar que o livro fosse lido como uma interpretação mecanicista e meramente económica da história. Por isso procurei dar ênfase à influência recíproca das várias instâncias...”, Conversas com historiado­ res, p.83.

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"NUNCA TIVE VOCAÇÃO PARA TURISTA D O PASSADO..."

regiões cafeeiras inicialmente desbravadas e poucos ousaram abrir novos ca­ minhos. Faltam estudos sobre o abolicionismo e os abolicionistas. Nesse senti­ do é de se estranhar o silêncio que paira sobre o papel da mulher na Abolição. Igualmente surpreendente é a falta de estudos sobre os líderes abolicionistas negros como Patrocínio, Gama, Rebouças e outros. Faltam também estudos de detalhe sobre o processo político da abolição. Pouco se sabe sobre o compor­ tamento dos membros dos vários partidos e grupos que representam. Como a maioria dos estudos publicados nos últimos anos dedicou-se a estudar o escravo nas regiões cafeeiras, pouco se acrescentou ao nosso conhecimento sobre o es­ cravo em regiões que não são de plantação e em outros estados do país. Mesmo áreas de plantação, como a Bahia ou o Maranhão, ainda aguardam estudos mais completos. Recentemente num seminário da UNICAMP, o professor Roberto Martins chamava a atenção para a importância de se estudar em Minas a po­ pulação escrava que vive em áreas que não são de plantação. Faltam também estudos sobre os escravos urbanos e sua participação no movimento abolicio­ nista, suas relações com os negros livres. Igualmente útil seria um estudo sobre a imprensa abolicionista, que só muito superficialmente foi analisada até agora. Finalmente, é preciso que, no estudo dos escravos, os historiadores voltem seu interesse para o estudo da história do escravo, seu processo de socialização, suas formas de acomodação e resistência, seus cultos, suas crenças. Esse tem sido um campo praticamente ignorado pela maioria dos que se têm dedicado ao estudo da escravidão nos últimos tempos. 12

Em 1983, na época em que eu lia a nova edição, em relação ao último tre­ cho, coloquei à margem, aliviadíssima confesso, uma observação: “é aqui que eu entro”. Nestes anos iniciais da década de 1980, suas considerações foram re­ levantes sobretudo porque começavam a se movimentar as pesquisas com vistas às comemorações do Centenário da Abolição e que seriam apresen­ tadas, já na forma de resultados, nos diversos congressos que aconteceram em 1988.13Para São Paulo, é possível destacar os encontros que ocorreram, 12 Prefácio à segunda edição, op. cit, p.LIV. 13 Este último, coordenado pelo professor José Jobson de Andrade Arruda, teve como comis­ são executiva Eni Samara Mesquista, liana Blaj, Maria Odila Leite da Silva Dias, Raquel Glezer, Reginaldo Prandi, Vera Lúcia Amaral Ferlini e Zilda Iokoi. A relação dos convida­ dos estrangeiros que vieram para os encontros mencionados é extensíssima, de tirar o fôlego; entre inúmeros outros, cita-se a participação de: Claude Meillassoux, Joseph Miller, Stuart Schwartz, Eric Hobsbawm, Orlando Patterson, Seymor Dresher, Kenneth Maxwell, Enriqueta Vila-Vilar. Em São Paulo, Emília Viotti da Costa apresentou seu trabalho na mesa

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em maio desse ano, na Universidade Estadual de Campinas, “Visões da li­ berdade”, em maio, e logo a seguir, entre os dias 7 e 11 de junho, “Escravi­ dão. Congresso internacional”, promovido pela Faculdade de Filosofia da USP No âmbito dos estudos da escravidão, foi este um momento excepcional de discussão entre estudiosos brasileiros e estrangeiros, sobre a institui­ ção nas Américas, o tráfico de escravos, a importância da história africana nestes estudos, a cultura e a religiosidade afro-americana. Representando a Universidade deYale, onde se encontrava desde 1973, EmíhaViotti da Cos­ ta participou de ambas as reuniões com a conferência “História, metáfora e memória: a revolta dos escravos de 1823 em Demerara”,1415em que resumia os primeiros recortes da pesquisa que vinha desenvolvendo e que resulta­ riam, anos mais tarde, no livro Crowns of glory, tears ofblood. Assim, pensando em termos de uma geração e na produção historiográfica da década de 1980, se houve avanços expressivos nos estudos sobre a escravidão no Brasil, seu prefácio foi um guia. De alguma forma, propôs u m a a g e n d a que antecipou a produção historiográfica dos anos 1980,1990e até hoje. Para isso, basta comparar o rol de temas recomendados pela autora com a produção historiográfica sobre a escravidão produzida no Brasil.13

“Diversas formas de resistência escrava", junto a Décio Freitas (do Mine), Claudia MolaFemandez (de Cuba) e Christine Hunefeld (do Peru), sob a coordenação de Maria Lígia Prado. Os módulos dos congressos eram variados e abrangiam uma multiplicidade de temas: cultura religiosa, cultura material, memória e iconografia, arquivos e documentação, o es­ cravo e o Direito, os abolicionistas, os legados e a situação do negro na sociedade de classes; com relação à história da África, as apresentações contemplavam o tráfico e a escravidão no continente. Infelizmente, as apresentações destes encontros não foram impressas, a nao ser na forma de catálogos com informações resumidas. 14 Conferência publicada posteriormente, com o mesmo título, em revista do Arquivo do Esta­ do de São Paulo. Emília Viotti da Costa, História, metáfora e memória: a revolta dos escravos em 1823 em Demerara. Arquivo. Boletim Histórico e Informativo, 9 (1), 1988, p.7-20. 15 Referência importante para avaliar os rumos e os avanços ocorridos na historiografia da es­ cravidão é o texto historiográfico de SCHWARTZ, S. A historiografia recente ^ escravi­ dão brasileira. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Trad. Jussara Simões. Bauru: EDLSC, 2001, p.21-88. Este artigo traz, ao final, uma relação bastante completa dos trabalhos produzidos, grosso modo, desde a década de 1960 mas incluindo também os trabalhos realizados anteriormente de Gilberto Freyre, Artur Ramos, Manoel Querino. Outros balanços - sobreuma produção que tendeu a crescer nas décadas seguintes ao evento - foram feitos por REIS, J. J Slaves as Agents in History: a Note on the New Historiography of Slavery in Brazib Ciência ■'e Cultura, 51, 5-6, p.437-44; e QUEIROZ, S. R. R. de. Escravidão negra em debate. In. FREITAS, M. C. de (Org). Historiografia brasileira em perspectiva. São Pau , ragança. Contexto; EDUSF„1998, p.103-17.

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ambiente de trabalho?17

Os trechos ilustram igualmente a atenção de Emília Viotti da Costa aos principais debates historiográficos travados em torno dos assuntos que aborda. Sem deixar de enunciar suas preferências e empatias, e manten­ do evidente recusa às visões conservadoras, quando se refere às polêmicas, mostra-se distante de intransigências e de ortodoxias, revelando profundo bom senso e notável discrição. Nas entrevistas mencionadas, indagada so­ bre as críticas a seus trabalhos, e sobre seus desafetos, limita-se a abordar a questão de forma geral, sem citar nomes e sem fazer referências diretas. Quanto aos debates, considera as diferentes posições mais no sentido da complementaridade do que como visões antagónicas. Indagada sobre a po lêmica entre os defensores da feição exportadora da colónia e os que advo­ gam o dinamismo do mercado interno - debate frequentemente revisitado na imprensa e nas discussões acadêmicas - , a historiadora considera as dife­ rentes análises, uma vez que, segundo ela, esclarecem aspectos distintos de uma complexidade que transcende a explicação unívoca. Mais do que nos seus posicionamentos em disputas acadêmicas, este posicionamento sempre apareceu na concepção de seus trabalhos. 1ambem

para a primeira geração dos que haviam sido desenraizados, teria sido impossível esquecer os mundos deixados para trás: sanções morais; noções do que era certo ou errado, do que era desejável, do que era adequado; as obrigações mútuas que ligavam esposos e esposas, família e parentela; rituais de iniciação; as coisas que deveriam ser ensinadas às crianças; a maneira como os jovens deveriam se diri­ gir aos mais velhos; as formas de celebrar a vida e pratear a morte ... Eles tam­ bém se lembrariam das maneiras de plantar e de colher, de empreender guerras, de dançar e cantar, do alimento e das roupas, das ferramentas, das casas, dos vilarejos, das plantas medicinais e de uma infinidade de coisas que não podiam ser facilmente esquecidas ou abandonadas, mas que nunca seriam as mesmas outra vez. No processo de criação de uma nova cultura, a memória do passado tornar-se-ia cada vez mais esmaecida e uma nova cultura seria criada 16

em entrevista afirmou:

Embora Emília Viotti não analise, nesta obra, a realidade histórica bra­ sileira referida ao tema da escravidão, e pouco dialogue com a produção na­ cional, o texto sobre a revolta nas Guianas apresenta também para nós uma atualidade relevante, sobretudo no que respeita às discussões conceituais e aos pressupostos de direção. E aqui novamente evidencia a generosidade em descortinar caminhos, ao indagar e deixar explícitas questões que ela própria não teve ainda oportunidade de enfrentar ou responder:

16 Coroas de glória, p.101-2.

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do domínio da religião, da arte e do folclore. ... Será que a predominância de carpinteiros e de outros escravos qualificados no meio dos líderes indica a so­ brevivência de sociedades secretas artesanais, então comuns a muitas partes da África? O u esse aspecto seria explicado pelos laços de fidelidade formados no

É possível vislumbrar na leitura de Coroas de glória, lágrimas de sangue a mesma generosidade em apresentar direções, sobretudo nos trechos em que indaga sobre as possibilidades de se pensar as continuidades e descontinuidades entre o passado africano e as experiências dos escravizados que participaram da revolta. Com base nas histórias de Quamina, seu filho Jack Gladstone, seu meio-irmão Goodluck e Susana, e utilizando os conceitos de transcritos ocultos e transcritos públicos - direitos claramente configurados e outros que os escravos não ousavam declinar a historiadora trabalha com processos históricos em que textos novos foram reescritos com base em textos antigos e evidencia um enorme bom senso quando explicita, nesta discussão, a inferência das gerações:

Tudo isso faz com que nos perguntemos se por trás da aparente transparên­ cia da documentação reunida pelos brancos, a quem a realidade da experiência dos escravos sempre permaneceu oculta, não haveria uma realidade “africana” muito mais profunda e impalpável, difícil de captar, uma realidade que ia além

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Eu almejava uma síntese que tornasse possível a fusão entre a história que se dizia científica e a literatura, entre a objetividade e a subjetividade, entre a história que os homens encontram já feita e que condiciona sua formação, e a história que eles mesmos constroem e que acaba por transformá-los. Uma his­ tória sem barreiras, em que as interconexões entre o económico, o político e o ideológico não se perdessem. Um a história que não fosse meramente descritiva, que se preocupasse não só com o narrar como as coisas acontecem, mas também explicar o porquê; uma história que de certa forma fosse um guia para a açao presente, não uma coleção de curiosidades. Nunca tive vocação para turista do

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passado nem para colecionadora de memórias.18

, 17 Coroas de glória, p.231. 18 Entrevista a Sylvia Basseto, p. 18.

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É possível perceber em sua produção, bem como em suas opiniões, ou­ tras sínteses, outras combinações. Entre as mais significativas, destaca-se a equivalência de importância que defende entre o ensino de História e a pes­ quisa: o ensino sempre apresentando novas questões às tarefas de campo. Em suas interpretações, encontramos também o ponto exato da confluência entre a história das elites políticas e a história dos dominados, entre as di­ mensões macro e a micro-história das biografias e do cotidiano. Finalmente entre estrutura, conjuntura e acontecimento. Nesse sentido, é destacável sua capacidade em transformar um episódio —significativo, é claro, como a revolta de Demerara - em lugar privilegiado de observação das dinâmicas do império britânico, do movimento abolicio­ nista, das ações e da ideologia dos missionários, das tensões entre colónia e metrópole, entre senhores e escravos. E finalmente, como acontecimento capaz de revelar aspectos do universo mental, do mundo da oralidade e das redes de sociabilidade forjadas entre os escravos de Demerara. Para finalizar, por conta de compromissos que assumi desde o mestrado, não posso deixar de considerar, em seus estudos, minhas predileções - os capítulos “O protesto dos escravizados”, do livro de 1966 e "Vozes no ar”, da obra sobre Demerara. Partes em que, por uma narrativa estimulante, transforma os escravos e os forros em protagonistas históricos - “homens e mulheres que criaram um mundo para si, imperceptível aos olhos do fo­ rasteiro, um mundo que não foi feito à imagem dos homens brancos, mas investido de significados que não eram mero reflexo do sistema escravista, e sim uma síntese criativa do passado e do presente”.19 Nesse sentido, tomo a liberdade de concluir os comentários retomando uma das cartas deTeodora Dias da Cunha, que apresentei a Emília Viotti da Costa lá pelos idos de 1984:

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de fazer promessa e não cumprio e agora ela esta presa no mal e por isso facilita com santos e por isso voce veja que a rainha é a maior do mundo e esta presa no mal e não pode se salvar porque São Benedito perdeu ela no mar não pode se salvar e por isso eu não facilito com santos eu espero inda cumprir ainda que esteja com cabelos brancos. De sua mulher, Teodora Dias da C u n h a20

Meu marido senhor Luis: Muito hei de estimar que esta va achar voce esteije com saude que meu de­ sejo voce me mande contar para onde hande voce esta morando. Quem me arre­ matou foi um moço muito rico de Campinas o homem chama Marciano Quina. Eu fiz uma promessa em congo voce não esta lembrado da promessa que voce que eu fiz voce não esta lembrado que voce pai vendeu voce para se lembra da promeça que me avisou de noite eu estava dormindo. Rainha tem companheiro 19 Coroas de glória, p. 102.

20 Sonhos africanos, vivências ladinas. Escravos e forros em São Paulo. São Paulo: Hucitec. Pro­ grama de História Social da USP, anexo, p.265.

6 I m p r e n s a e e n s in o n a d it a d u r a 1 Maria de Lourdes Monaco Janotti*

A atmosfera desenvolvimentista Nos anos 1950 e início dos anos 1960, muitas transformações impul­ sionavam a sociedade brasileira. A modernidade redesenhava as capitais, a industrialização parecia acenar para a redenção do proletariado, a vida cul­ tural adquiria um ritmo vertiginoso, a esfera acadêmica ampliava-se com a publicação de obras voltadas para a realidade brasileira, novas perspectivas estéticas revigoravam o teatro, as artes plásticas, a arquitetura, a música po­ pular e a literatura. Vivia-se a atmosfera do progresso também na educação e no ensino. Todas as disciplinas da área de Ciências Humanas foram influenciadas pelo desenvolvimentismo em suas diferentes nuances, preocupadas que es­ tavam em explicar e superar a dependência económica do país. O ensino de qualidade e a democratização de todos os seus níveis eram assunto debatido pelos jornais, atingindo setores da opinião pública. A Campanha em defesa pela escola pública em 1959 e a tramitação das Leis de Diretrizes e Bases da educação nacional de 1961 mobilizaram universida­ des, partidos e sindicatos. Professores licenciados do magistério oficial militavam por reformas edu­ cacionais e administrativas que valorizassem as escolas públicas, contagiando 1 Este trabalho faz parte do projeto intitulado “Relações de poder, imprensa e produção historiográfica”, desenvolvido pelo G T de Política de São Paulo. * Departamento de História da FFLCH-USP.

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o cotidiano escolar. Dermeval Saviani2 identifica a defesa da escola pública com tendências da moderna da educação humanista, distinguindo três cor­ rentes: a do liberal-pragmatismo, constituída pelo grupo dos educadores liga­ dos à tradição da Associação Brasileira de Educação; a do liberal-idealismo, representada pelo núcleo de professores das áreas de História e Filosofia da Educação da USP; e a do grupo de sociólogos liderado por Florestan Fernandes, com conotações socialistas. O liberal -idealismo se articulava com a concepção humanista tradicional sedimentada na ética kantiana. O liberalpragmatismo se prolongaria na década de 1970, com adaptações, na tendência tecnicista. O grupo de sociólogos apontava na direção da concepção dialética. Essas tendências ideológicas, profundamente difundidas entre os profes­ sores da USP, estavam indiretamente presentes quando da fundação do Colégio de Aplicação da Universidade de São Paulo em 1957. A escola destinavase ao exercício da prática de ensino dos licenciandos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras3e, também, à aplicação de novos métodos e técnicas de en­ sino. Em pouco tempo de existência, apenas dez anos, o CA adquiriu repu­ tação de ser um dos principais núcleos do ensino renovado e crítico do país. Apesar de alguns estudiosos enfatizarem a influência dos críticos da re­ forma Capanema nas propostas de renovação do ensino, a especificidade dos textos produzidos por professores do CA induz a que se considere decisivo o conhecimento que se processava na FFCL-USP nas diferentes disciplineis. O pensamento analítico-crítico das ciências humanas, a divulgação de bibliogra­ fia estrangeira, os novos métodos de ensino de literatura e línguas e o estudo consequente de posições epistemológicas foram decisivos para criar uma es­ cola de alto padrão como o CA. Conhecimento criativo, engajado nas mu­ danças conjunturais, associou-se com práticas didáticas inovadoras: emprego de várias dinâmicas para trabalho em grupo, incentivo de atividades extra­ curriculares (música e teatro), coordenação de diferentes disciplinas em tomo de uma temática, viagens para estudar em loco uma região (estudo do meio). Depoimentos coletados entre professores e alunos do Colégio de Aplica­ ção revelaram potencial significativo quanto à valorização das ações pedagó­ gicas praticadas na escola. Muito além do registro de experiências vivenciais 2 SAVIANI, D. Tendências e correntes da educação brasileira. In: MENDES, D. T. (Coord.). Filosofia da educação brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 19-25. 3 Exigência das leis da Reforma Capanema.

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únicas, as lembranças expressaram o sentimento de ter vivido um momen­ to histórico importante do ensino de qualidade, interrompido bruscamente pela repressão da ditadura militar e pelos equívocos da política educacional. Não foi apenas no magistério público que se manifestou o desejo de tor­ nar o ensino mais dinâmico. Em meados dos anos 1950, a Associação de Educadores Católicos, pretendendo renovar a escola confessional sem abrir mão dos objetivos religiosos, organizou palestras e cursos intensivos com o Pe Pierre Fauré, divulgador das idéias de Montessori e Lubienska. Foi fundado o Instituto Pedagógico Maria Montessori45, ligado à Associação Montessori Internacional, com sede na Holanda. Após o Concílio Vaticano II a Igreja, por intermédio dos movimentos de Ação Católica, tendeu a se comprometer concretamente na defesa dos interesses populares. Setores da Ação Católica passaram a desenvolver crescente participação política or­ ganizando o Movimento de Educação de Base. Surgiu ainda o Movimento Paulo Freire de Educação de Adultos com nítida inspiração cristã. Católi­ cos acabaram também por ultrapassar a tendência humanista tradicional, aproximando-se da concepção dialética da história. A nova perspectiva do pensamento católico não se encontra apenas em escolas confessionais, também essa linha ideológica orientou os Colégios Vocacionais de São Paulo, notadamente em seus primeiros momentos.6 O clima de efervescência cultural foi abruptamente interrompido pelo golpe militar de 1964, que sob a acusação de subversão terminou por extin­ guir todas as escolas renovadas do país.

A crise do Colégio de Aplicação 7 No momento em que a Universidade de São Paulo estava sob Inquérito Policial-Militar, em evidente violação de sua autonomia, convivendo com invasão de salas de aula por policiais armados em busca de alunos procu4 Inicialmente recebeu o nome de Instituto Pedagógico Montessori-Lubienska. 5 In MENDES, D. T. (Coord.). Filosofia da educação brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p.19. , 6 TAMBERLINI, A. R. M. de B. Os ginásios vocacionais: a dimensão política de um projeto ' pedagógico transformador. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. 7 O relato mais detalhado da crise encontra-se em JANOTTI, M. L. M. Problemas métodot_

/~ _ J ____ m B T I eário ? n 17 9001.

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rados como ativistas, presenciando a prisão e cassação de seus professores instaurou-se a denominada crise do Colégio de Aplicação. Atuavam diretamente no CA docentes do recém-criado Departamento de Educação da FFLCH da USP, vinculados aos Serviços de Orientação educacional e de Orientação pedagógica, dirigidos respectivamente pela Profa. Mana José Garcia Werebe e pela Profa. Amélia Americano Domingues de Castro. Em outubro de 1967, discordâncias pedagógicas e ideoló­ gicas entre os dois Serviços manifestaram-se na comissão que deveria ela­ borar um anteprojeto adaptando o Regulamento do Colégio à estruturação do Departamento de Educação. O texto redigido, sem unanimidade dos membros da comissão, atribuía ao Serviço de Orientação pedagógica a res­ ponsabilidade da direção da escola. Submetido ao Conselho Departamen­ tal, apesar de fortes objeções, o anteprojeto foi aprovado. Informado das resoluções do CD, entendeu o diretor do Colégio de Aplicação, prof. Clóvis da Silva Bojikian, que seu mandato duraria apenas até o fim do ano, passando a avisar professores e alunos de sua próxima saída. A reação dos alunos, professores e pais foi imediata, porque o diretor era admirado por sua dedicação e competência. Os alunos organizaram-se imediatamente em assembléia e divulgaram manifesto no qual afirmavam que CA era para alunos e não apenas para estagiários da FFLCH. Reuniões e assembléias sucederam-se no dia 9 de outubro. Nelas, o Setor de Orientação pedagógica defendia a posição do DE, sob contestação da maioria de alunos, pais e professores presentes. Tentando intermediar o conflito, foi eleita uma comissão de pais. No dia 10 de outubro, com um único voto contrário, o da Profa. Maria José Werebe, o Conselho do DE demitiu o diretor do CA.8A nova diretora, Profa. Julieta Ribeiro Leite, coordenadora das Classes Integradas do curso ginasial, enfrentaria os piores momentos da crise.9 Ao saber que a demissão do diretor era fato consumado, os alunos entra­ ram em greve. Pretendendo contornar as dificuldades do momento, o dire­ tor do DE, prof. Roque Spencer Maciel de Barros, suspendeu as aulas até o dia 19. Nesse meio-tempo, foram negadas duas solicitações da profa. Maria 8 Atas das reumoes do Conselho do Departamento de Educação, reunião do dia 10 de outubro de 1967. 9 Tomou posse no dia 13 de outubro, substituindo o prof. José Augusto Dias que exercera o cargo, durante três dias, em caráter provisório.

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para reabrir as discussões sobre o anteprojeto, assim como vá­ rias outras no mesmo sentido, em forma de abaixo-assinados. Todavia, a repercussão da greve atingiria os estudantes universitários. Os alunos do Curso de Pedagogia da FFLCH divulgaram manifesto, data­ do de 12 de outubro, contra as arbitrariedades do Departamento. Denuncia­ vam o acontecido como um golpe que o grupo reacionário havia perpetrado contra a prática da Orientação Educacional na Faculdade, privilegiando a Metodologia do Ensino, que já dirigia o Setor de Orientação Pedagógica do colégio e pelo anteprojeto ficaria também responsável pela direção. Vincu­ lavam esse golpe com a reestruturação da USP sob as diretrizes dos acordos com o governo norte-americano, denominado M EC/Usaid. O movimento estudantil alastrava-se; concentrações e assembléias discutiam os rumos da Universidade, propugnando por uma administração paritária de alunos, professores e funcionários. O Conselho do Departamento de Educação, por intermédio de seu di­ retor, permaneceu intransigente às solicitações de reconsideração do caso, passando a veicular seus comunicados aos pais e aos alunos pelo jornal O Estado de S. Paulo, mantendo tom autoritário e tornando público o que lá se passava. No dia 19 alunos faziam piquete de greve na porta da escola, impedindo a entrada de seus colegas, quando se aproximou uma viatura policial to­ cando sirene. Assustados, entraram de roldão no prédio. Realizaram, então, uma rápida assembléia que decidiu ocupar o Colégio e considerá-lo territó­ rio livre. Reivindicavam o afastamento da nova diretora e a participação de alunos e professores na elaboração do novo regimento interno da instituição. Indignado, o Conselho do DE decidiu devolver o CA à Secretaria de Educação, porém o Conselho Técnico-Administrativo da FFLC H foi con­ tra. Os ânimos tornavam-se incontroláveis de todos os lados. Estudantes de outros estabelecimentos solidarizavam-se com os alunos do CA pelos jornais. Na escola ocupada compareciam integrantes de vários Centros Acadêmicos, da União Brasileira de Estudantes Secundários e intelectuais faziam conferências no horário das aulas. Uma tentativa de conciliação, com a presença do diretor da Faculdade prof. Erwin T. Rosenthal e do prof. Roque Spencer M. Barros, deu-se na madrugada do domingo, dia 22, tendo os estudantes pedido prazo até o dia 23, quando realizariam uma assembléia geral para responder ao diretor e,

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provavelmente, encerrar o movimento. Acreditando que os alunos estavam apenas ganhando tempo, os professores procuraram o secretário de Segu­ rança Pública do Estado de São Paulo, cel. Sebastião Ferreira Chaves, pe­ dindo que o prédio fosse cercado e que se concedesse prazo para a retirada dos alunos. O secretário atendeu ao pedido e encarregou o delegado adjun­ to Alcides Cintra Bueno Filho, do Departamento Especializado de Ordem Política e Social, para sua execução. A ação se efetivou no mesmo dia às 23h30, quando chegaram ao Colégio carros de polícia com sirenes ligadas, transportando investigadores e guardas. Estes não se limitaram a ficar do lado de fora, invadiram a escola, desocupando-a em poucos minutos. A atitude dos diretores tornou irreversível a deterioração das relações pessoais no interior do CA, no Departamento de Educação e na FFLCH. Criou-se uma grande celeuma em torno do uso da violência na expulsão dos alunos, dividindo todos os envolvidos. Revoltada com os acontecimentos, a profa. Maria José Werebe apresen­ tou ao diretor da FFCL contundente ofício, acompanhado de volumoso relatório, contra as atitudes tomadas pelo Conselho do Departamento de Educação. Este, em contrapartida, solicitou ao diretor da FFLCH a ins­ tauração de sindicância para que se apurassem as responsabilidades com relação aos sucessos do CA. Aprovada pela Congregação da FFLCH, a Comissão de Sindicância sobre os acontecimentos do CA foi instituída em 6 de dezembro de 1967. Foram ouvidos trinta depoentes - diretores, professores, pais e estudan­ tes -, tendo vários deles comparecido a quatro sessões. Assim, a tarefa foi se desdobrando até janeiro de 1969, não tendo sido emitido nenhum parecer sobre o volumoso processo,10atropelado pelo AI- 5, pela cassação de profes­ sores e pelas discussões e lutas políticas em torno da reforma universitária. O conjunto de documentos reunidos pela Comissão de Sindicância e os de­ poimentos a ela prestados constituem importante dossiê sobre a crise. Sob muitos aspectos permite compreender como a situação política da FFLCH acabou por agravar consideravelmente a situação do CA. 10 Foram indicados para integrar a Comissão de Sindicância os profs. Eduardo d’01iveira Fran­ ça, presidente, Ruy Galvão de Andrada Coelho, Antonio Brito Cunha e Armando Toniolli, Antonio Cândido de Mello e Souza, logo substituído pelo prof. Aziz Ab’Saber Processo n.2624/67, arquivado na FFLCH, Edifício da Administração. Contém aproximadamente oitocentas páginas.

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Imprensa e crise do C A O noticiário de jornais não se lim ita a u m a sim ples constatação do vivi­ do entre o acontecim ento e o texto publicado há diversos mecanismos de apreensão do real: o ponto de vista do repórter-observador, a redação do noticiário, a edição do texto, editoração e arte, im agens do ângulo do fotó­ grafo, escolha das im agens, espaço disponível e posição política do jornal. Todos esses procedim entos acabam por criar um outro fato, que ordena os acontecim entos de acordo com certa representação simbólica da realidade.

A narrativa elaborada é necessariamente fragmentária, seletiva e subje­ tiva, contendo em si mesma uma versão própria dos acontecimentos condi­ zente com condições tecnológicas e políticas que influem na concepção da apresentação gráfica jornalística: A invenção da informação transformou os textos, pelo menos o texto do jornal francês no final do século XIX. A escrita literária e política, que nele era dominante, exigiam textos longos que impunham aos jornais páginas cinza e monótonas. A escritura dos fatos fragmentou o discurso da imprensa em se­ quências curtas e heterogéneas cuja unidade não provém mais da ordem interna do discurso, mas da ordem externa da diagramação.11 Assim, o texto publicado e sua elaboração sempre estão de acordo com o perfil do jornal que os divulga, em linhas gerais O Estado de S. Paulo apre­ sentou uma versão conservadora e reprovativa da ocupação do CA, diferente da Última Hora, jornal popular, que acentuou a violência da invasão do CA pela polícia e DOPS. Há um componente ético - político que perpassa todas as instâncias de produção e circulação dos jornais, tornando-os agentes his­ tóricos de grande importância para compreensão de diferentes conjunturas. Essas características, naturalmente ligadas à formação de opinião, têm sobre o público influência considerável, ainda mais no caso de jornais diá­ rios de grande circulação com grande número de assinantes, que aderem previamente à orientação do jornal. Há, portanto, uma interação profunda entre o texto do jornal, a linguagem empregada, os autores do texto e o pu­ blico ao qual ele se destina: 11 MOUILLAUD, Maurice e PORTO, Sérgio Dayrell (Orgs.). O jornal, daforma ao sentido. 2.ed. Brasília: UnB, 2002, p.32.

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IMPRENSA E ENSINO NA DITADURA

Produzir uma informação supõe a transformação de dados que estão no estado difuso, em unidades homogéneas. Um processo que não é a propriedade da mídia. Esta apenas representa o fim de um trabalho social uma formação que começa a montante dos aparelhos propriamente da mídia. A manifestação é apenas um dos múltiplos operadores pelos quais uma sociedade se torna visível a si própria.12

'■ | 1 |

A leitura do material jornalístico, publicado em outubro de 1967, sobre ■ os acontecimentos do CA exemplifica diversas diretrizes enunciadas. Jornais como Folha de S. Paulo, Folha da Tarde, O Estado de S. Paulo, Diário da Noite, Ultima Hora e Diário Oficial apresentaram versões dos acontecimentos muito próximas às lembranças de protagonistas. Poderse-ia mesmo supor que os textos publicados incorporaram-se à memória construída. Para melhor compreensão das notícias sobre o CA, impõe-se uma rápi­ da visão dos eventos sobre ensino e movimento estudantil, que mereceram manchetes e ocuparam espaços consideráveis nos jornais a partir de março até novembro de 1967. No início do governo do general Costa e Silva, a repressão agravou-se consideravelmente: prisões de estudantes que com­ pareceram ao Congresso da União Brasileira de Estudantes Secundários (UBES) / março; extinção de Diretórios Estudantis; protestos dos candida­ tos excedentes do vestibular da USP, apoiados pelos Diretórios estudantis; tentativas de solução da questão dos excedentes através de convénios com universidades particulares/março; greves de estudantes universitários em diversos Estados/abril; negação das diversas faculdades da USP em receber excedentes; protestos no país contra os acordos MEC-Usaid/abril; instala­ ção de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na USP/abril; ocupação de Centros acadêmicos pela polícia militar/abril-maio; ocupação de várias faculdades por estudantes/maio-junho; ampliação de greves e passeatas/ junho; protestos de professores da USP contra a intromissão da polícia militar/julho. Em agosto a situação foi piorando com a prisão de estudantes e padres do convento onde se realizou o Congresso da União Nacional dos Estudan­ tes (UNE), seguida de manifesto de artistas e intelectuais de apoio aos es­ tudantes e denúncia das arbitrariedades cometidas pela repressão. No Rio 12 Idem, A informação ou a parte da sombra, op. cit., p.42.

alarmantes de «gentes do DOPS » b entre os estudantes e p an também o paradeiro

^

capitais.

Drisioneiros estudantes e religiosos, da USP entrou em greve de pro-

U SPproeocando reação estudan.il gue resultou , nO P S no campus universitário. A Universidade de Brasília e de agentes do DO Pb no ca P docentes e expulsão de alunos, entrou em colapso com a o M J f W o e 0 Estado de S. Paulo deram Várros jornais, entredes o ■ do CA, fato inusitado por rnbertura praticamente diaria a greve se tratar de uma escola de ensino

2 staque, entre elas a prepa-

Há varias razões ração do congresso a ^ ma ^

dos Estudantes (UEE), proibido de p olícia Federal considerou

pelos órgãos de

imediato inquérito sobre os orga-

organizações políticas congresáo da UEE uma

tramnapreparagãodo expandir sua luta contra a apo,a,am a votação

r ;— ' os eleitos em 4 de novembro de Nos anos 1960, a nos jornais de circulação diaria, q tos, convénios, fessores estrangeiros. dos principais assuntos os jornm ,

Íe

p aulo estava sempre presente concursos, doutoramenvestibulares e visitas de prode São Paulo tornou-se um ser o CA pertencente a Faculdade noticiário. Somam-se a

^ « n t e de O Estudo de S. Poul. e

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diretamente envolvido no conflito do CA. Também na comissão formada por pais, para mediar o embate entre os estudantes e o Departamento de Educação da USP, havia vários profissionais liberais que tinham relações com jornalistas, artistas, políticos e religiosos contrários à repressão. Deve-se considerar ainda a dinâmica própria dos acontecimentos. Dia­ riamente, de 13 a 28 de outubro, foram divulgados manifestos de profes­ sores, alunos e pais, esclarecimentos da Direção, propostas de solução por todos os agentes do processo, comunicados da FFLCH e dos alunos da Pe­ dagogia. Realizaram-se diversas assembléias, sendo a mais noticiada a que se deu no Convento dos Dominicanos, no dia 21 de outubro, assim comen­ tada pela Folha de S. Paulo: foi a mais tumultuada das assembléias realizadas durante toda a crise. A assembléia mostrou-se então dividida em duas facções: a primeira, dos pais que queriam a volta imediata às aulas, e a outra que defendia a posição de que o retorno às aulas deveria ser acompanhado do atendimento de um mínimo das reivindicações dos estudantes.13

A invasão da escola pela polícia e agentes do DOPS no dia 24, ocorrência “ comum, causou polêmica sobre o uso da violência em relação a menores, tendo os jornais publicado depoimentos de policiais, alunos, pais, diretores e professores. Apesar de curto, o período que intermedeia a desocupação da escola e o fim da greve no dia 27 foi de intensa movimentação em busca de uma saída honrosa para os grevistas, cujos pais não achavam própria uma rendição total à intransigência o Departamento de Educação da USP. Radicalizaram -se as dissensões no corpo docente e discente, assim como na comissão de pais. Deputados do MDB tentaram mediar o impasse do CA, principalmente Raul Schwinden e Fernando Perrone, encontrando re­ sistência do chefe do DE. Depois de muita insistência conseguiram obter do DE um protocolo que concedia aos alunos ter representantes na Direção e no Conselho do Colégio, desde que voltassem imediatamente às aulas. Entretanto, enquanto os entendimentos estavam em curso, nos dias 26 e 27 desencadeia-se um dos fatos mais graves da luta estudantil. O Depar­ tamento de Polícia Federal havia proibido a eleição da UEE que vinha se 13 Folha de S. Paulo, 23.10.1967.

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realizando clandestinamente no Mackenzie, com apoio dos estudantes da USP Os universitários do Mackenzie estavam divididos e seu braço rea­ cionário era o Comando de Caça aos Comunistas (CCC). O CCC, ante a indiferença de policiais e agentes do DOPS, atacou a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, sediada na rua Maria Antônia, com bombas e tiros, in­ vadindo e depredando o prédio.14 Pretextando acalmar a situação, a polícia também invadiu o prédio. O relatório policial asseverava ter encontrado armas e material subversivo de toda espécie.15 Esse momento extremado deixaria marcas indeléveis na memória de professores e alunos da Faculda­ de Não foi uma simples coincidência o fato de os alunos do CA retornarem às aulas. Enquanto os jornais de grande circulação acompanharam passo a passo os eventos, os jornais Folha da Tarde, Diário da Noite e Última Hora cir­ cunscreveram-se mais ao momento da invasão do CA, tornando o emprego da violência em questão polemica. O Jornal da Tarde, do grupo O Estado de S. Paulo, publicou fotos de alunos e de policiais na frente do Colégio com várias manchetes: A crise do Colégio de Aplicação”, com grande destaque da seguinte frase: “O delega­ do Alcides Cintra Bueno Filho do DOPS, disse em relatório ao Secretário da Segurança, Coronel Sebastião Chaves, que não houve violências no Co­ légio de Aplicação”. Acrescentava ainda palavras do delegado afirmando que havia promiscuidade no território livre do Colégio, um caso típico para o Juizado de Menores.16 No corpo da notícia havia informações bastante equivocadas por falta de perspectiva cronológica correta. Informava, tam­ bém, que no dia anterior os alunos do CA recorreram à sede do Grémio da Faculdade de Filosofia para fazer uma reunião com o objetivo de continuar o movimento. Na assembléia foram lidos diversos manifestos de apoio, pro­ venientes de entidades estudantis e universitárias. Os alunos declararam ao repórter que haviam enviado uma carta ao diretor da Faculdade de Filosofia pedindo sua intermediação, mas isso não se concretizou. Entrevistado, o diretor disse que nunca recebeu a carta a ele endereçada. Essas informações que demonstram a disposição dos grevistas em aproximar-se do prof. Ro14 V. FERNANDES, Florestan. A questão da USP. São Paulo, Brasiliense, 19S4. 15 Todos os fatos mencionados podem ser seguidos nos jornais: Folha de S. Paulo de 1 .3 a 10.11.1967; O Estado de S. Paulo de 12.10 a 26.10.1967. 16 Jornal da Tarde, 24.10.1967.

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senthal não mereceram destaque, apesar de sua importância, mas o ú l t i i j paragrafo da matéria, ao contrário, suscitou várias cartas de leitores, p0is tratava da questão da promiscuidade e da omissão dos pais. Nos dias subse­ quentes o Colégio passou a ocupar um espaço mínimo no jornal. Esta grande chamada ocupou a primeira página da Folha da Tarde no dia 20: “Daqui ninguém nos tira”. Abaixo foto de alunos dormindo sobre carteiras com a legenda “Responderemos à violência com violência”. No interior do jornal em letras garrafais lê-se “Aplicação da greve”. A matéria de tres quartos de página, ilustrada por fotos, tinha os seguintes destaques: Tudo se passa no Colégio de Aplicação, ocupado na base do território livre e fechado”, “Como estão as coisas no território livre”, seguidos de texto tendencioso em que se responsabilizava a diretória da escola. ' No dia 24, seguindo o mesmo modelo sensacionalista, a Folha da Tar­ de estampava matéria enfatizando que houve espancamento de estudantes confirmado por um guarda civil que teria declarado: “Eles apanharam sim, sa° delinquentes”. Na mesma página, os diretores do CA e da FFLCH afirmavam não ter havido violência. Sob a manchete "Pediram interven­ ção encontram-se detalhes não mencionados nos demais jornais, que ex­ punham aspectos do comportamento temeroso de membros do Conselho do Departamento de Educação - responsáveis pelo pedido de intervenção ao secretário da Segurança Pública - que solicitaram um guarda civil para proteger suas residências, porque vinham recebendo ameaças. A coluna termina dando os endereços dos ameaçados, talvez um traço de humor do repórter?17 Expulsos e divididos, os estudantes passaram a ter um porta-voz no de­ putado Raul Schwinden, que apresentou, sem sucesso, uma proposta de acordo ao Departamento de Educação. Nos dias 25 e 26, professores e pais afirmaram que o comportamento dos alunos no território livre tinha sido exemplar não havendo promiscuidade. Condenavam enfaticamente a vio­ lência empregada na expulsão. A Folha da Tarde deu mais espaço para manchetes e fotos, enquanto a Folha de S. Paulo destacou pronunciamentos e comunicados, tendo em vista o público diferente dos dois jornais. O matutino visava seus assinan­ tes, identificados como leitores mais instruídos e de posição política pro17 Folha da Tarde, 24.10.1967, p.5.

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ssista, O vespertino visava leitores ocasionais, concorrendo com jornais Apulares como a Última Hora e Diário da Noite. Diferentemente, o Jornal P d°a Tardei também voltado para os leitores ocasionais, resumia o noticiário Je O Estado de S. Paulo acrescentando número maior de imagens e dando espaço destacado à opinião dos agentes da repressão. O Diário da Noite em todas suas reportagens enfatizava o aparato re­ pressivo, sempre apresentando fotos com policiais ao lado dos alunos. Os maiores interlocutores das reportagens eram os alunos, que tiveram oportunidade de expor suas posições detalhadamente. Em linhas gerais, o noticiário apresentava poucas manchetes, mas todas elas voltadas para os atos dos grevistas. Procurava responsabilizar as autoridades do CA, não dando destaque aos pronunciamentos emanados da Faculdade de Filosofia e da direção do Colégio, acentuando a inflexibilidade dos educadores e da repressão.18 O jornal Última Hora de 20 de outubro asseverou que a diretora diri­ gira palavras de agressão aos agentes do DOPS e policiais no dia em que os alunos invadiram o prédio. Também fazia crer que os debates sobre a reestruturação do Colégio de Aplicação se vinculavam às normas dos acor­ dos MEC-Usaid. Indignada, a diretora refutou essas afirmações em carta dirigida ao redator-chefe,19pedindo a publicação do documento, entretanto não foi atendida. A Última Hora, jornal popular declaradamente contra o golpe militar, tomou clara posição a favor dos grevistas, o que se pode notar por algu­ mas grandes manchetes como: “DOPS invade escola”, 20 “DOPS veio para bater”,21 cuja matéria, apesar de conter algumas informações equivocadas, registra frases agressivas dos policiais contra os alunos, colocando-se clara­ mente do lado daqueles que afirmavam ter havido violência na expulsão dos alunos, estampando vários depoimentos nesse sentido. Os redatores insis­ tiram, em todas as reportagens, em mostrar a hostilidade dos policiais em relação ao repórter e ao fotógrafo, prejudicando o trabalho da imprensa. As repercussões dos acontecimentos ampliaram-se tomando dimen­ sões políticas consideráveis. No Diário Oficial, encontram-se no Diário da 18 Diário da Noite, de 12 a 26.10.1967. 19 Cópia do ofício cedida pela prof*. Julieta Ribeiro Leite, s.d. 20 Última Hora 23.10.1967, p.5. 21 Idem, 24.10.1967, capa.

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Assembléia debates de deputados sobre a repressão e a luta estudantil, pro­ testos contra a Lei de Segurança Nacional, denúncias de atos do Executivo evidenciando confrontos dos partidos MDB e Arena. O Diário Oficial na seção Diário da Assembléia transcreveu discursos de Chopin Tavares de Lima, Raul Schwinden, Fernando Perrone, Helio Mendonça e Orlando Jurca, depoimentos de alunos, professores e pais que compareceram à Assembléia, relatórios de deputados que formaram uma comissão informal para visitar o Colégio e tentar uma solução.22 Também entre os deputados as posições foram conflitantes. Isso mostrou a poten­ cialidade política e o alargamento dos círculos sociais envolvidos. Não era mais uma pequena questão de desobediência de alunos. MDB e Arena tive­ ram mais um motivo de enfrentamento, explorado pelos jornais. Em 23 de outubro, o deputado Chopin Tavares de Lima, líder do MDB, ocupou a tribuna para denunciar a repressão aos alunos do CA.23O relato do deputado tornou-se referencial para todos os pronunciamentos posteriores: O jornal Folha de S. Paulo, edição da tarde, de hoje, descreve, em manchete de pagina inteira, a ação da Polícia do Estado, que invadiu um estabelecimen­ to secundarista e espancou estudantes menores e seus professores. Trata-se do caso eclodido no Colégio de Aplicação, da Faculdade de Filosofia, da Universi­ dade de São Paulo. Os jornais têm tratado da questão e demonstrado que aquela juventude secundarista está conduzindo com muita maturidade o problema ali existente, numa verdadeira escola de democracia. Alguns professores, agredidos pela posição dos jovens que queriam o diá­ logo democrático e educacional, recorreram ao DOPS e à Guarda Civil e, na noite de ontem, após os estudantes terem resolvido, em Assembléia, dialogar com o diretor da Faculdade de Filosofia e voltarem às aulas, foi palco, aquele estabelecimento, de uma cena de verdadeiro vandalismo. É assim que o Governo do Estado, através de sua força policial política, está, na juventude secundarista, criando revoltados, criando homens que vêem que os educadores, seus superiores hierárquicos, se recusam ao diálogo. Tenho em maos um manifesto que os pais de alunos lançaram contra aquelas ocorrências ... No entanto, na qualidade de líder da oposição, queria solicitar a V. Exa., Sr. Pres., que pedisse à Comissão de Educação e Cultura da C asa- Co22 S T 3110 LXXVI1' n '203 de 25 10-67; n -204 de 261°; “ -205 de 27.10; n.207 de 31.10; n.209 de 2.11; 213 de 9.11. 23 ^ a,r w 0 -fie'‘al' ^ no LXXVII n-203 de 25.10.67, Diário da Assembléia p.51-2. 236* Sessão Urdinariada 1 Sessão Legislativa, da 6* Legislatura, em 23.10.67.

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missão Permanente - que faça uma reunião extraordinária e entre em contato com as autoridades, com os estudantes e seus pais - porque aqueles que foram espancados são menores - para conhecer os fatos, e o Poder Legislativo possa, realmente, servir de intermediário, encaminhando a solução.

O discurso teve como referencial maior a Folha de S. Paulo e Folha da Tarde, não havendo nenhum questionamento sobre a matéria publicada. O Corpo Legislativo tem em várias épocas, inclusive na atual, utilizado sis­ tematicamente as informações jornalísticas como verdades indiscutíveis, usando-as como prova de seus argumentos. Confirma-se no caso do CA, a forma como as representações jornalísticas tornaram-se fatos novos e ad­ quiriram potencial político próprio. No mesmo dia, na sessão da tarde,24o deputado ChopinTavares de Lima discursou novamente sobre o CA, tendo sido aparteado várias vezes. E crianças foram espancadas, menores de 12, 13 e 14 anos foram surrados, puxados pelos cabelos e arrastados pelas escadas. Esta foi a violência que se pra­ ticou na cidade de São Paulo e que é inspirada pelas chamadas leis de arrocho, por essa maldita Lei de Segurança que o deputado Leite Carvalhaes quer alterar em vários de seus dispositivos. Estou informado que o deputado Fernando Perrone está elaborando traba­ lho de protesto em nome daqueles estudantes e que o deputado Raul Schwmden já tem providências para informar a este Plenário a respeito das irregularidades que se passam naquele estabelecimento. E, dessa tribuna, tratando da Lei de Segurança, num parêntese absoluta­ mente concernente com a matéria, dirijo um apelo ao MM. Juiz de Menores para que realmente interpele, dentro da sua autoridade de Juiz de Menores da Capital, a pessoa do Sr. Governador, por que a sua polícia política espancou, hoje, crianças? ... quero desta tribuna dirigir meu aplauso ao jornal Folha da Tarde que teve a coragem de cumprir o seu dever numa época como esta, tendo dedicado hoje uma página inteira a esse verdadeiro escândalo policial com o espancamento dos estudantes menores de idade.

O deputado Muzeti Antonio Elias, do MDB, pediu um aparte para acu­ sar o governador pela situação: ^ D i á r io Oficial. Ano LXXVII, n.204 de 26.10.67; Diário da Assembléia p.42. 237* Sessão Or­ dinária, da 1* Sessão Legislativa, da 6* Legislatura, em 23.10.67.

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nos casos de espancamento de estudantes, que se têm repetido com frequência assustadora em nossa Capital, não temos mais condições de apelar ao Poder Executivo, porque não podemos dissociar o Poder Executivo desses espan­ camentos continuados, já que a nosso ver, é ele, o Executivo, através do seu Chefe, do Governador Abreu Sodré, o maior responsável, o responsável direto por essa continuidade de espancamentos. ... defendemos a liberdade, e já que S. Exa. prometera liberdade ampla aos estudantes seria melhor que dialogasse com eles, através de elementos credenciados para isso, da Secretaria da Edu­ cação, por exemplo, e não mandar elementos do DOPS espancar brutalmente os estudantes, como fez ainda há pouco na Universidade, quando na calada da noite, sem o menor respeito até mesmo pelas moças, que ali dormiam, verificaram-se cenas vandáhcas, de verdadeiro banditismo. Portanto, a responsabili­ dade maior, ou total, cabe exclusivamente ao Governador Abreu Sodré, pelos poderes que enfeixa em suas mãos...

O orador Chopin Tavares de Lima retomou seu discurso para denunciar a irracionalidade da repressão na USP, tendo vários deputados da oposição se manifestado contra a brutalidade da polícia política, enquanto deputados da Arena defendiam a ação do governo. Especialmente para ouvir alunos, professores e pais de alunos do Co­ légio de Aplicação, a Comissão de Educação e Cultura se reuniu em 25 de outubro, sob a presidência do deputado Raul Schwinden. Vários alunos narraram as circunstâncias em que foram agredidos e al­ guns identificaram os guardas pelo número que portavam. O aluno Sérgio Rubinstein leu um comunicado no qual esclarecia vários pontos controversos, afirmando que.não houve premeditação na ocupação do prédio e que todas as decisões haviam emanado de assembléias, onde não havia elementos estranhos”. Quanto aos acontecimentos verificados na madrugada do dia 21 para 22, declarou que os professores do Depar­ tamento de Educação manifestaram o desejo de reunir-se com os alunos às 4,30 horas, quando não havia no Colégio uma comissão que pudesse responsabilizar-se em nome dos alunos pelo diálogo. Enfatizou que no dia 22 houve uma Assembléia Geral, que aprovou uma proposta conciliatória, comunicada à direção: estabelecia que os alunos do Colégio de Aplicação faziam o Prof. Erwin Rosenthal depositário de sua confiança e que, mercê desta condição, solicitavam-lhe fosse o fiador do diálogo. Tão logo fosse positivada a aceitação do Prof. Erwin,

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os alunos abandonariam o Colégio após a Assembléia a ser realizada no dia 23 às 15 horas e que voltaríamos às aulas normalmente a partir do dia 24.

Logo a seguir narrou pormenorizadamente como se desenrolou a de­ socupação do prédio, as agressões que sofreu, as tentativas de proteger os menores, o diálogo que manteve com os diretores, que nada fizeram para amenizar a situação, tendo ambos declarado: Nós apenas havíamos pedido o cerco do Colégio. O deputado Fernando Perrone perguntou se alguns dos pais presentes entraram no colégio durante a ocupação. Apresentou-se Bernardo Rubins­ tein alegando que estava, junto com outros pais, aguardando o resultado da apresentação de um ofício que a comissão de alunos estava endereçando ao diretor da Faculdade de Filosofia, prof. Erwin Rosenthal. Neste preciso instante aproximaram-se da confluência da R. Gabriel do Santos com Av. General Olympio da Silveira duas viaturas policiais, seguidas de dois carros onde se encontrava elevado número de guardas-civis. Os pais de alunos, que se encontravam na entrada do prédio, ... apavorados com as sirenes policiais, entraram no saguão principal da escola todos aturdidos. Nesse mesmo instante de seis a oito elementos do Departamento de Ordem Política e Social investiram a pontapés sobre o portão principal da escola, abrindo-o às escânca­ ras e agredindo sem dó nem piedade todos os que lá se encontravam, ou seja, pais, mães e alguns professores, e expulsaram-nos com violência para fora do pátio ... Enquanto isso se passava, os mesmos investigadores, acompanhados de vários guardas-civis, ingressaram no prédio: os pais gritavam em socorro dos filhos que se encontravam no interior, e as mães gritavam lancinantemente pedindo piedade em relação aos menores que lá estavam. Nada conteve a sanha dos investigadores que, pouco depois, conduziam os menores para fora do pré­ dio empregando indescritível violência...

Terminou seu depoimento afirmando que diretores e alguns professores mantiveram-se indiferentes ao que lá se passava. A seguir vários depoentes expuseram seu ponto de vista. Contradizendo as alegações de que havia promiscuidade entre os estudantes, pronunciouse a professora Susana Amaral Cruz Sampaio. Nós, professores, tínhamos um sistema de revezamento, para nos manter no prédio. Sempre havia mais de três ou quatro professores presentes... As noi-

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tes que passei lá estive em conversa com os alunos mais velhos, o que assisti simplesmente, era uma comovente tentativa de se mostrarem adultos, aqueles adultos que tentamos formar no Colégio de Aplicação, responsáveis por si e por seus atos. Havia dormitórios de meninos e dormitórios de meninas. Os mais novos não conseguiam se manter acordados a noite inteira. Jamais vi qualquer atitude que me levasse à idéia da alegada promiscuidade ... Também tomou a palavra Sérgio Luiz Caetano, repórter do Jornal da Tarde: O que vi foi a preocupação dos alunos em se divertirem vendo filmes, jogan­ do xadrez, no momento em que estive lá. Não vi nessa meia hora ambiente de promiscuidade citado pelo delegado de Polícia. Quanto à sujeira não yi nada, nem quanto a cadeiras quebradas. As viaturas da Polícia só ligaram as sirenes quando estavam próximas do prédio, para causar pânico. Deslocaram-se a bai­ xa velocidade. Eu estava na rua das Palmeiras, corri e cheguei antes da Polícia ao prédio. Em prosseguimento, ainda testemunharam mães de alunos que presen­ ciaram espancamentos e coerções. Elisabeth Mendes de Oliveira referiu-se a um estudante que foi brutalmente agredido por quatro guardas, que o machucaram e o pressionaram contra a parede externa do colégio, até que uma funcionária do estabelecimento implorou que parassem com aquilo. Está tudo documentado, com fotografias, pela ‘Folha’”. Encerrando a sessão, o deputado Raul Schwinden explicou que havia acertado com o Departamento de Educação uma sugestão de acordo, que iria apresentar na assembléia de pais e alunos, marcada para as 20 horas, na Faculdade de Filosofia: O que ficou assentado na presença do Prof. Roque foi isto: não haverá pu­ nição para os professores, nem alunos até a data de hoje. A diretora retira a polícia desde que os estudantes se comprometam, por escrito, a não reocupar o prédio. Se reocuparem o prédio o Departamento entregará o caso à justiça para resolver. A comissão encarregada do anteprojeto de estruturação do Colégio de Aplicação recebe sugestões por escrito dos alunos, sugestões que serão enviadas a Profa. Amélia Americano, encarregada da elaboração do anteprojeto. A dire­ tora propõe-se a receber uma comissão composta de representantes de classe para conversar sobre os planos de suas atividades dentro da escola depois que entrarem em aula e aceita a assessoria de um aluno indicado pelo DECA.

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Enquanto se tentava um acordo, os policiais foram retirados da frente da escola e, desobedecendo às ordens da comissão de greve, vários alunos re­ tornaram às aulas. A greve terminou oficialmente no dia 25 de outubro, em uma assembléia na qual se votou a continuidade do movimento ou a volta imediata às aulas; os continuístas foram vencidos. O CA deixou de ser notícia importante quando o CCC, localizado no Mackenzie, atacou a Faculdade de Filosofia, fato que passou a ocupar espa­ ços prioritários nos jornais.

Uma leitura possível Durante muito tempo vista com desconfiança pelos historiadores, hoje a imprensa é um dos mais importantes documentos de época, pela pluralidade de representações sociais que engloba. Como todos os demais documentos históricos, a imprensa possibilita diferentes leituras de aspectos objetivos e subjetivos da história imediata, no mesmo ritmo vertiginoso do acontecer. Na confemporaneidade, seu poder torna-a objeto de pesquisa obrigatório, principalmente quanto ao alcance de suas repercussões geradoras de novos fatos, campo ainda pouco explorado, apesar de há muito definido. A estreita correlação das notícias com a política se realiza, principalmente, àtravés da história e das manifestações discursivas. Excetuando os editoriais e artigos assinados, as matérias do noticiário se constituem em um segundo ou terceiro ou quarto texto, pois o primeiro texto pertence a instituições ou pessoas que geraram a informação. Levando essa idéia ao extremo, Antonio Fausto Neto chega mesmo a afirmar que o jornalismo e uma espécie de agente ventríloquo da política ,25 Encontra-se, também, a interdependência entre política, noticiário e re­ portagem na rotina da produção dos jornais.26 Há sempre alguém encarre­ gado nas redações de ler e resumir o Diário Oficial dos Estados e da União para sugerir pautas. Nas capitais há concentração de jornalistas, porque é da burocracia oficial que brotam as notícias de importância e, principal25 Telejomais e a produção da política... In: MOUILLAUD, Maunce e PORTO, Sérgio Dayrell (Org.). O jornal, da forma ao sentido. 2*ed. Brasília: UnB, 2002, p.521. 26 ADGHIRNI, Zélia Leal. Rotinas produtivas do jornalismo em Brasília. Idem, p.454.

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mente, onde se encontram informantes qualificados ou, no jargão jornalís­ tico, fontes oficiais . No período da ditadura militar, “...essa tendência foi ainda mais reforçada, ... pois a centralização do poder e a censura direta ou indireta na mídia não deixava alternativa aos jornalistas.27 Os jornais pesquisados construíram a historicidade dos acontecimentos do Colégio de Aplicação, tendo em vista um leitor virtual para o qual se des­ tinava o noticiário. Ao leitor de O Estado de S. Paulo, destinaram-se longas manifestações discursivas das autoridades constituídas, em especial as que emanaram do Departamento de Educação da FFLCH, com o objetivo de demonstrar a ilegalidade da ocupação da escola pelos estudantes, a neces­ sidade de disciplinar a juventude e a intocabilidade das decisões oficiais. O Jornal da Tarde, menos categórico, pensava o seu leitor como alguém que é atraído por grandes imagens e manchetes, seguidas de textos curtos e de­ poimentos conflitantes, visivelmente recortados. Entretanto, não era ape­ nas um sintetizador das notícias de O Estado de S. Paulo, seus repórteres foram os primeiros a fotografar o “território livre” dos estudantes, em ân­ gulos nada complacentes. Um leitor ávido de informações, progressista e descontente com a dita­ dura era o alvo da Folha de S. Paulo, que nesse período aumentou conside­ ravelmente sua tiragem ao conceder atenção especial às “fontes autoriza­ das” do MDB e amplo noticiário sobre setores descontentes com o governo. A Folha da Tarde visava um leitor mais jovem, interessado nas insígnias da modernidade e de forte simpatia pelo movimento estudantil, seu discurso e imagens eram francamente favoráveis aos secundaristas e universitários, com a cautela de falar por intermédio de suas lideranças. Não é arbitrária a presença de um dos seus repórteres na Comissão de Educação e Cultura da Assembléia, como depoente.

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tipo de estereotipagem da opinião pública, o que constitui um importante elemento de estagnação”.28 O Diário Oficial, pela prática de transcrever pronunciamentos dos de­ putados, depoimentos de vítimas e testemunhas, permitiu a apreensão do entrelaçamento das diferentes dimensões que constituem a conjuntura po­ lítica do momento: a solidariedade das forças democráticas, representadas por setores da imprensa, pelo MDB, pelo movimento estudantil e pela re­ pulsa de segmentos sociais ao cerceamento da liberdade.

Pós-escrito: Fim melancólico de uma experiência apaixonante Em 1968 e 1969, novas crises assolaram o CA, em consonância com a tragédia que se abateu sobre todo o país. Apesar dos esforços dos professo­ res em manter o trabalho didático sem interrupções, protestos se repetiram. Alunos e professores eram chamados para prestar depoimento no DOPS. Após incandescentes debates na Congregação e no CTA, em 1969 foi denunciadp o Convénio com a Secretaria de Educação e em 30 de janeiro de 1970 foi publicado o decreto de Desvinculação do Colégio Fidelino de Fi­ gueiredo (nome oficial do CA) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O movimento estudantil, atingido profundamente com a extinção de seus órgãos políticos e com a prisão ou silenciamento de suas lideranças, reagiu heroicamente até os primeiros anos da década de 1970, sendo, con­ tudo, sufocado violentamente.

Diário da Noite e a Última Hora produziram notícias e fotografias para um leitor que apreciasse imagens de impacto, manchetes garrafais e textos muito curtos com frases de efeito exagerado. Apesar de ambos terem posi­ ção francamente favorável aos alunos do CA, incorreram em um dos prin­ cipais riscos do jornalismo, muito bem apontado por Jean François Tétu: "a comunicação de massa de todos os países tem uma tendência a efetuar um 27 LIMA, Venício A. de. Brasília, 30 anos de Jornalismo oficial. Cadernos de Ciências Políticas. Apud ADGHIRNI, Zélia Leal, op. cit., p.455.

28 TÉTU , j^ F r ^ n ç o is . Le Monde e Liberation em perspect.va, PORTO, Sérgio Dayrell (Orgs.). O jornal, da forma ao senUdo. 2. ed. Brasília: UnB,

,

A R evista

do

B rasil (1916-1944):

N O T A S D E P E S Q U IS A Tania Regina de Luca‘

Manuais que sistematizam procedimentos básicos da pesquisa histórica e sugerem caminhos para abordar documentos de diferente natureza têm crescido nos catálogos das editoras, o que pode ser interpretado como sinal do interesse em discutir o longo caminho percorrido desde o recorte de um tema e sua transformação em um projeto até a apresentação das conclusões. E, de fato, a divulgação dos resultados, seja por meio de artigos em revistas especializadas ou livros, normalmente deixa de lado as hesitações, dificulda­ des, dúvidas e opções que se teve que fazer em prol da apresentação do edi­ fício já pronto. O presente texto, pelo contrário, pretende refletir sobre uma investigação ainda em curso com o intuito de explicitar as opções teóricometodológicas que foram (ou estão sendo) adotadas. Essas notas evidenciam como, no decorrer do trabalho, o curso originalmente imaginado acabou sig­ nificativamente alterado. Ao explicitar e compartilhar tais escolhas esperase poder contribuir, em alguma medida, para as discussões sobre as espe­ cificidades da produção do conhecimento na área das Ciências Humanas.

Im pressos periódicos com o fonte e objeto O objetivo inicial da pesquisa circunscrevia-se ao estudo sistemático da terceira fase da Revista do Brasil, que circulou entre julho de 1938 e dezem­ bro de 1943. Pretendia-se indexar, analisar e interpretar o material publiUnesp, câmpus de Assis. Pesquisa financiada pelo CNPq.

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cado no decorrer de seus 56 números, com o intuito de caracterizar a linha editorial da publicação e o grupo intelectual que se aglutinou em torno de sua redação, bem como averiguar o posicionamento do mensário e de seus responsáveis diante do regime instaurado por Vargas, para o que a questão das relações com o sistema de controle da imprensa posto em prática sobre­ tudo a partir do Estado Novo ocupava lugar importante. Enfim, tratavase de compreender, pelo estudo de importante lugar de sociabilidade, pelo menos parte da dinâmica dos grupos intelectuais do período. Contudo, o enfrentamento desse objeto apresentou uma série de ques­ tões de ordem teórico-metodológica, que antecederam a própria análise do material publicado. Tratou-se de refletir acerca das múltiplas decorrências de se tomar os impressos periódicos como fonte e objeto, o que engloba não apenas a forma como eles se apresentam aos leitores mas também outros elementos, não imediata e necessariamente patentes àqueles que percorrem suas paginas. Assim, o conteúdo de jornais e revistas não pode ser dissocia­ do das condições materiais e/ou técnicas que presidiram seu lançamento, os objetivos propostos, o público a que se destinava e as relações estabele­ cidas com o mercado, uma vez que tais opções colaboram para compreen­ der outras como formato, tipo de papel, qualidade da impressão, padrão da capa/pagina inicial, periodicidade, perenidade, lugar ocupado pela publi­ cidade, presença ou ausência de material iconográfico, sua natureza, formas de utilização e padrões estéticos. A estrutura interna, por sua vez, também e dotada de historicidade e as alterações aí observadas no decorrer do tempo resultam de complexa interação entre técnicas de impressão disponíveis, valores e necessidades sociais. Observações semelhantes aplicam-se aos anúncios, que têm sido alvo de estudos individualizados. Ao lado dos aspectos mais diretamente relacionados ao suporte e à apre­ sentação material e tipográfica, é preciso atentar para os responsáveis e colaboradores mais assíduos pois, na maioria das vezes, revistas e jornais constituem-se em projetos coletivos, “ponto de encontro de itinerários in­ dividuais unidos em torno de um credo comum”.' Daí a importância da escolha do título e dos textos programáticos, que explicitam intenções e expectativas, além de fornecer pistas a respeito dos projetos compartilhados 1

Une COntribution a 'hístoire des intellectuelsdes revues. In: P ■ ’ n k REBITSCH' M (Dirs.). Sociabilites intellectuelles. Lieux milieux reseaux. Paris: Cahiers de 1’Institut d ’Histoire du Temps Present, mar. 1992, n.20, p. 126. ’

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pelos propugnadores. A atenção ao círculo formado em torno das redações, essencial para a compreensão da linha editorial, aliada às contribuições dos estudos acerca dos intelectuais; tem permitido encarar esses locais como es­ paços de agregação, instituidores de redes específicas, como bem demons­ traram os trabalhos de Angela de Casto Gomes. Nessa perspectiva os periódicos, vistos como pólos em torno dos quais se reuniam e disciplinavam forças e instrumentos de combate e interven­ ção no espaço público, oferecem oportunidades privilegiadas para explicitar e dotar de densidade os embates em torno de projetos políticos e questões artístico-literárias que, longe de se esgotarem em si mesmas, dialogavam intensamente com os dilemas do tempo. Noutros termos, o índice que se apresenta ao leitor resulta de uma luta que cumpre ao historiador explicitar. Ao mesmo tempo que se tentava precisar um método de abordagem para as fontes periódicas, sem perder de vista a trajetória que a questão ocupou no campo historiográfico,3 era preciso particularizar as revistas nesse vasto universo e, mais ainda, averiguar o lugar que a Revista do Brasil ocupou na história da imprensa. Esses questionamentos exigiram que se discernissem as grandes linhas de força que separavam, de um lado, as revistas ilustradas e de variedades e, de outro, as estritamente culturais e literárias que, apesar de nao se destinarem ao grande público, ainda assim guardavam diferenças entre si. A construção de rígidas tipologias para dar conta das revistas parece fa­ dada aó insucesso. Contudo, é possível discernir grandes linhas de força que separavam, de um lado, as revistas ilustradas e de variedades e, de ou­ tro, aquelas estritamente culturais e/ou literárias que, de acordo com Brito Broca, “não cortejavam o grande público”.4Entretanto, nao se deve tomar a

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2 GOMES A deC . Essa gente do Rio. Modernismo e Nacionalismo. Rio de Janeiro: FGV, 1999 História e historiadores. A política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: 3 S s Váspe9ctosforamabordadosemLUCA.T. R. Historiados, nosepormeiodospenódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (Org.). Fontes históncas. Sao Paulo: Contexto, 2005 P ^ 12^ 4 BROCA B A vida literária no Brasil 1900.2.ed. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1960, p.221. O autor afirma, ainda, que “no terreno das revistas e dos periódicos devemos distinguir os de caráter essencialmente literário dos que, possuindo interesse geral e cunho mundano, davam t Z S m um espaço maior ou menor à literatura”, p.216. Já DIMAS, A. Tempos eufoncos. Análise da revista Kosmos 1904-1909. São Paulo: Atica, 1983, p.9-10, ao questionar a ca ractenzação de Kosmos e Renascença como revistas literárias, evoca o predomínio marcante ■' da Ilustração sobre o texto, a variedade imensa dos assuntos tratados, a destinaçao para um faixa de consumo genérico e conclui: "Eram revistas de ‘ilustração , de populanzaçao, p preencher o ócio com dignidade... mais para os olhos do que para o cerebio .

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citada oposição como absoluta, uma vez que a presença de matéria literária o trato de temas diversificados e o recurso à imagem não podem ser con­ siderados apanágio exclusivo de um dos grupos. Noutros termos, não é a presença ou ausência de certos elementos invariáveis que define a natureza da publicação, mas a análise articulada dos objetivos, natureza do conteúdo e sua estruturação interna, presença/ausência de material iconográfico, for­ mas de utilização e sentidos adquiridos no interior do periódico, públicoalvo, responsáveis e colaboradores é que permitem discernir o lugar ocupa­ do pela publicação seja na história da imprensa, seja em relação aos veículos contemporâneos. Para os fins da pesquisa, decidiu-se distinguir as publicações desti­ nadas a divertir e agradar das que exigiam um leitor disposto a enfrentar textos densos e/ou propostas estéticas inovadoras. Aliás, os movimentos de vanguarda foram particularmente eficientes na utilização das revistas como instrumento de luta e veículo privilegiado para a difusão de novos princípios e manifestos, tradição na qual se inscreve parte significativa das revistas modernistas, numerosas a partir da experiência pioneira de Klaxon (São Paulo, 1922). Além de cumprir a função de combater o passado e dar publicidade aos novos ideais, as revistas também desempenharam (e ainda desempenham) papel estratégico no processo que consagra e transforma a novidade em cânone, uma vez que colaboram para difundir procedimentos típicos de corrente literárias e para habituar os leitores a eles.

Da fase à série Contribuições provenientes da história da leitura e da edição aportaram outras preocupações, uma vez que convidaram a apreender o corpo docu­ mental em seu todo, entendido como mais do que a mera somatória de ele­ mentos isolados ou partes. Em relação ao objeto Revista do Brasil, não se pode desconsiderar que a publicação circulou em diferentes momentos e sob a batuta de vários editores, que travaram lutas específicas ao longo de suas páginas. A idéia original do lançamento coube a Júlio de Mesquita, proprietário do jornal O Estado de S. Paulo, ao qual a publicação esteve ligada até maio de 1918, quando foi adquirida por Monteiro Lobato, que a manteve nos sete anos seguintes, até a falência de seus negócios em 1925,

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totalizando 113 números. A chancela foi adquirida por Assis Chateaubriand, que a relançou em três oportunidades: de 1926 a 1927 (2a fase, 9 núme­ ros); de 1938 a 1943 (3a fase, 56 números) e em 1944 (4a fase, 3 números). Acrescente-se, ainda, o ressurgimento dos anos 1984 e 1990 (5a fase, 12 nú­ meros), proposto por Darci Ribeiro. Essa insistência em relançar a Revista do Brasil é digna de nota e aponta para a possibilidade de, por seu inter­ médio, reler-se parcela considerável da história do país ao longo do século XX. Abria-se, portanto, a perspectiva, antes não imaginada, de se analisar o periódico em perspectiva diacrônica, o que exigiu a caracterização de cada fase, de modo que se evidenciassem os pontos de aproximação e distancia­ mento que permitissem refletir sobre a revista como um todo e não apenas acerca de cada fase isoladamente. Dessa forma a proposta inicial, limitada ao período 1938-1943, ampliouse em mais de um a direção. Em primeiro lugar, tratava-se de tomar a série e estabelecer conexões em seu interior, o que não eximia o estudo aprofunda­ do de cada momento de circulação, trabalho anteriormente realizado ape­ nas para os anos iniciais (1916-1925).5 A análise passou a abarcar os anos 1916 a 1944, excluindo-se o ressurgimento da década de 1980, ocorrido em cenário em que as universidades e os programas de pós-graduação já esta­ vam solídamente instalados no país e a especialização das revistas firmadas, o que compõe um quadro radicalmente diverso do vigente nas décadas ini­ ciais do século XX. A primeira fase e o seu momento de circulação foram re­ avaliados sob a perspectiva do conjunto, com especial atenção ao principal mentor, Monteiro Lobato, além de terem sido acrescidos os nove números da segunda fase e os três da quarta. Contudo, não se tratou apenas de estender a periodização e incorpo­ rar outras fases. Por força das questões teórico-metodológicas delineadas, a série (1916-1944) e cada fase (1916-25; 1926-27; 1938-43; 1944) foram articuladas às publicações que lhes eram contemporâneas. Dessa forma estabeleceu-se, para cada momento de circulação, as escolhas que um leitor contemporâneo poderia fazer no interior do universo das revistas culturais e literárias, com o intuito de discernir, por um lado, o lugar e o sentido da Revista do Brasil e, por outro, como eles se alteravam à medida que as fases 5 DE LUCA, T. R. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

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se sucediam, uma vez que não só os contextos de circulação foram muito diferentes como também os responsáveis e os objetivos perseguidos. Os resultados provenientes dos múltiplos cruzamentos e combinações entre sincronia e a diacronia das fases e da série também exigiram que se ampliasse o corpo documental que, ademais das quatro fases da Revista do Brasil, passou a ser composto por um grupo selecionado de publicações li­ terárias e culturais contemporâneo dela em cada fase - o que demandou a consulta a várias centenas de exemplares. Não há dúvida de que o contato com as diversas coleções é essencial para se obter um conjunto de informa­ ções importantes - quem eram os responsáveis, o número de exemplares publicados, os principais colaboradores, as temáticas abordadas, os padrões das capas, a ordenação interna do material, a duração, enfim, amplo rol de dados. Contudo, esse vasto manancial não pode revelar um aspecto essencial que diz respeito ao processo de produção da revista, o cotidiano de sua fa­ tura. E aqui as correspondências, memórias, produções autobiográficas ou textos que evocam a trajetória de escritores que se envolveram com a fun­ dação, direção ou foram assíduos colaboradores dos periódicos estudados desempenham papel fundamental. Isso sem perder de vista que é preciso distinguir analiticamente entre a correspondência, que é produzida no tem­ po curto dos acontecimentos, contemporânea aos dramas e aos desafios do momento vivido, e a evocação posterior que, na perspectiva do historiador, tem efeitos e sentidos diversos, como alertam as teorias da memória ao res­ saltar o quanto o ato de rememorar é trabalho que não reproduz o vivido, mas dele se apropria a partir do presente. Tais fontes de natureza pessoal e biográfica são imprescindíveis para flagrar o cotidiano das redações e a atuação de seus mentores, apesar de exigirem ampliação do percurso teóri­ co e o enfrentamento da questão do uso das “escritas de si”. Em relação ao primeiro momento de circulação (1916-1925), estabele­ ceu-se uma subfase para os anos nos quais a revista foi efetivamente diri­ gida por Paulo Prado, ou seja, janeiro de 1923 a maio de 1925, momento em que o mensário deixou de circular. Vale destacar que quando Lobato precisou ampliar o capital de sua empresa gráfico-editora o autor de Retrato do Brasil entrou no negócio, mas em troca assumiu a direção da revista. A presença de um nome ligado à Semana de Arte Moderna à testa do men­ sário trouxe mudanças significativas e implicou a abertura de suas páginas

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aos principais nomes do movimento, sem que tenham desaparecido delas os colaboradores que se ligavam a pontos de vista estéticos anteriores, fato que instaurou significativa tensão no seio da revista. Essa subfase, contrariamente à antecessora, guarda relação orgânica com as revistas modernistas fundadas a partir de Klaxon. Esse aspecto, ne­ gligenciado pela bibliografia especializada, permitiu integrar os anos finais da primeira fase da Revista do Brasil e toda a segunda no conjunto formado por Klaxon (SP, maio 1922 ajan. 1923), Estética (RJ, set. 1924 ajun. 1925), A Revista (BH, jul. 1925 ajan. 1926), Terra Roxa... e outras terras (SP, jan. 1926 a set. 1926), Revista do Brasil (2afase, RJ, set. 1926 ajan. 1927), Verde (Cataguases, set. 1927 ajan. 1928), Revista de Antropofagia (SP, Ia denti­ ção, maio 1928 a fev. 1929 e 2a dentição mar. 1929 a ago. 1929) e a Revista Nova (SP, mar. 1931 adez. 1932). Contemporâneas, ainda que vinculadas a outros grupos modernos, foram Novíssima (SP, dez. 1923 a jul. 1926), Festa (Ia fase, RJ, out. 1927 a set. 1929) e Movimento Brasileiro (RJ, out. 1929 a jan. 1930). Assim, os debates no campo do modernismo foram acompanhados ten­ do-se em conta não apenas a trajetória de cada periódico antes nomeado, tomado na sua especificidade e analisado em profundidade, mas sobretudo pela composição de amplo quadro organizado por sua articulação ao uni­ verso maior que integravam e com o qual estabeleciam complexas relações de identidade/alteridade, o que contribuiu para distinguir grupos e proje­ tos concorrentes. Ficou patente que a sucessão de títulos expressa a cres­ cente definição e assunção de posições no interior do movimento. Nesse contexto, ganham importância revistas como Novíssima, Festa e Movimento Brasileiro, que se opunham à leitura urdida pelo grupo reunido em torno de Mário de Andrade. A simples existência de uma revista modernista, ainda que por breve espaço de tempo, era em si mesmo significativa, uma vez que representava um espaço próprio, gerido e sustentado por escritores que se insurgiam con­ tra os valores dominantes. Por intermédio da luta pela fatura e manutenção desses veículos consolidavam-se relações, lançavam-se os mais recentes adeptos, revelavam-se valores. Mais ainda, de uma publicação a outra se definiam posições em torno do que se entendia por moderno, modernidade e arte nacional. A trajetória da Revista do Brasil entre 1923 e 1927 torna patente que, além de delimitar espaços próprios, os aspirantes ao reconhe­

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cimento também souberam invadir e apossar-se de veículos consagrados caso dos anos finais do mensário de Monteiro Lobato e de toda a sua se­ gunda fase, capitaneada, de um lado, por Assis Chateaubriand e Pandiá Calógeras e, de outro, por Rodrigo Melo Franco de Andrade e Prudente de Moraes, neto. A configuração de forças no campo intelectual, expressa pelas revistas, pode se constituir em fator importante para a mobilização - maior ou me­ nor - em prol do lançamento e/ou manutenção de periódicos e, sob esse as­ pecto, é possível demonstrar a importância dos anos Paulo Prado na Revista do Brasil para a difusão do ideal moderno e mesmo para a aparentemente tardia fundação de uma nova revista do grupo em São Paulo, o que apenas ocorreu em 1926, com Terra Roxa... e outras terras. Ademais, as disputas em torno de interpretações e da capacidade de arregimentar, orientar e influenciar o mundo letrado e suas instituições emaranhavam-se às relações pessoais, marcadas por afetos, ressentimentos, rompimentos e reaproximações não raro temperadas por fatores de ordem circunstancial, mas que se articulavam às características próprias do campo intelectual em dado momento, o que ajuda a compreender o realinhamento constante - às vezes surpreendente e aparentemente incompreensível - dos atores em questão. Detalhes acerca dessas configurações, que podem ser acompanhadas, sobretudo, pela correspondência, não compõem, portanto, um rol de curiosidades para satisfazer o interesse de leitores que se deleitam em espiar a intimidade alheia, com a vantagem, negada aos protagonistas, de dispor da possibilidade de confrontar cartas e depoimentos, mas antes informam sobre a constituição de diferentes leituras em disputa e o proces­ so de demarcação de posições, algumas suficientemente hegemónicas para se impor por longo tempo e até mesmo obter legitimidade científica, por­ que incorporadas ao discurso competente dos especialistas que, por vezes, não fazem mais do que atuar como ventríloquos de contendas alheias. Se as duas fases iniciais mantiveram relação estreita com a luta dos modernistas contra a ordem estabelecida e com as disputas no interior do próprio grupo, tal chave não se ajusta às fases três e quatro. Enquanto as revistas lançadas até o fim da década de 1920 caracterizaram-se, em sua maioria, pela curta duração e, pelo menos para um grupo delas, no qual se insere a Revista do Brasil a partir dos anos Paulo Prado, por um padrão (não aleatório) de sucessão encadeada, as publicações do

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decénio seguinte apresentam, em geral, maior longevidade e circulação si­ multânea. Tais mudanças devem ser articuladas a um conjunto complexo de fatores que envolviam desde questões internas ao grupo moderno, como as cisões motivadas por questões estéticas e políticas, até transformações de ordem muito mais geral associadas às condições de exercício da atividade intelectual, cujas possibilidades se ampliaram significativamente nos anos 1930 e chegaram mesmo a permitir a existência do “romancista em tempo integral”. Não se pode subestimar a presença de um Estado que mantinha intensas relações com as elites letradas, interferia de forma incisiva nos campos da cultura e da educação, ampliava em muito a máquina burocrática e absorvia crescente contingente de servidores públicos qualificados em diversos esca­ lões. De outra parte, registre-se a vigorosa expansão do mercado editorial favorecida tanto pelo aumento do letramento, reformas no ensino secundá­ rio e ampliação do segmento superior quanto pela própria conjuntura eco­ nómica internacional, pouco propícia à importação de livros.6 A despeito dessas alterações, as revistas culturais e literárias não per­ deram, nas décadas de 1930 e 1940, o caráter de empreendimentos frágeis do ponto de vista económico, sobretudo quando confrontadas com outros tipos de periódicos. Porém, mostrou-se essencial distinguir o novo contex­ to em que circularam e os sentidos então adquiridos, uma vez que extrapo­ laram o papel de porta-vozes de pequenos grupos vinculados à vanguarda estética. De fato, tais periódicos passaram a interessar mais diretamente livreiros e editores, que tinham em suas páginas um veículo de divulgação de autores e obras; profissionais liberais, burocratas e leitores ávidos por informações e certo verniz cultural; órgãos do governo e sua diversificada rede de instituições, que pretendiam difundir projetos e realizações oficiais; grupos jornalísticos, que adquiriam prestígio pela edição de suplementos e/ou periódicos culturais, e, sobretudo, não se pode menosprezar que, em todos os casos mencionados, as revistas também configuravam uma forma de intervenção no debate público acerca da realidade nacional, o que era indissociável das candentes questões políticas. 6 Á respeito consultar a extensa pesquisa de M ICELI, S. Intelectuais e classe dirigente no Bra­ sil (1920-1945). In :____. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, especialmente caps. 2 e 3.

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No campo historiográfico, contudo, destaque-se o minguado número de estudos sistemáticos sobre publicações culturais e literárias, justamen­ te no momento em que várias delas se tornavam perenes e deixavam para trás o famigerado mal-de-sete-números. Não se avança, com raras exce­ ções, além da alusão à data de lançamento, direção, lista de colaboradores consagrados e afirmações genéricas quanto a sua importância para o mun­ do letrado. Portanto, o que se tem é um quadro bastante diverso daquele que caracteriza as publicações dos anos 1920, alvo de pesquisas circuns­ tanciadas. Por vezes, a produção de escritores veiculada nesses periódicos constitui o corpo documental básico do trabalho, sem que se discuta ou problematize os seus veículos-suporte. Mesmo a revista Cultura Política, que ocupou lugar destacado na difusão do projeto político do Estado Novo e tem subsidiado obras fundamentais sobre o tema, ainda não mereceu uma análise global de todo o seu conteúdo que a tomasse, a um só tempo, como fonte e objeto. A exemplo do que se fez para as fases anteriores, foram selecionadas al­ gumas das publicações mais significativas, contemporâneas da 3a fase (jun. 1938 a dez. 1943) e 4a fase (abr. a out. 1944) da Revista do Brasil: Boletim de Ariel (RJ, out. 1931 a fev. 1939); Revista Acadêmica (RJ, set. 1933 a dez. 1948); Lanterna Verde (RJ, I a fase, maio 1934 a abr. 1938; 2a fase ago. 1943 a jul. 1944); Festa (RJ, 2a fase, jul. 1934 a ago. 1935); Dom Casmurro (maio 1937 a dez. 1946); Diretrizes (RJ, abr. 1938 a jul. 1944) e Cultura Política (RJ, mar. 1941 a maio 1945), ainda que não tenha sido possível estudar, de forma aprofundada, todas elas. A referida carência de investigações sobre o conjunto de publicações li­ mita a compreensão do papel da imprensa no primeiro período Vargas. Os periódicos fundados no início da década de 1930 não tiveram sobrevida sig­ nificativa após a queda do regime e - com exceção da Revista do Brasil - tam ­ pouco podiam evocar existência prévia, ou seja, constituíram-se em empre­ endimentos específicos do período e em torno dos quais a intelectualidade se agregou. A presença da censura, ainda que com intensidade diversa ao longo dos anos 1930 e 1940, foi outro elemento compartilhado por esses periódicos. A averiguação sistemática de tais impressos poderia matizar, ou confirmar cabalmente, as afirmações genéricas a respeito do grau de contro­ le da informação atingido pelo Estado, ponto exaustivamente reiterado pela produção historiográfica.

O HISTORIADOR E SEU TEMPO

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Para a compreensão do período 1938-1943, foi essencial caracterizar os Diários Associados de Assis Chateaubriand, proprietário da Revista do Brasil desde 1925, bem como acompanhar a trajetória intelectual e profis­ sional de Otávio Tarquínio de Sousa, seu diretor durante todo o período. A estreita vinculação entre os principais nomes da revista e os frequentadores mais assíduos da Livraria Editora José Olympio exigiu que se investigasse o processo de formação da livraria, a atuação de José Olympio, suas opções editoriais, relações com o poder, estratégias do catálogo, bem como o peso de Otávio Tarquínio nessa rede. Ficou patente a intensa troca entre a José Olympio e a Revista do Brasil, o que deve ser creditado a Otávio Tarquínio, amigo pessoal do livreiro editor, autor da casa, termo pelo qual o proprie­ tário referia-se ao seu negócio, e responsável, desde 1939, pela prestigio­ sa coleção Documentos Brasileiros, sem esquecer sua atuação nos Diários Associados e na elegante Sociedade Felipe d Oliveira, onde desempenhou papel de destaque na direção do seu boletim, Lanterna Verde. A ampliação da temporalidade abarcada e a incorporação de várias fon­ tes de natureza diversa não dispensaram a realização do que se propôs de saída, ou seja, o estudo sistemático do material publicado na Revista do Brasil, sua estruturação, os sentidos de seções e artigos, os colaboradores mais representativos e as temáticas abordadas. Tal conjunto permitiu di­ visar, ainda que de forma sutil e cuidadosa, a adoção de posição bastante crítica em relação aos caminhos seguidos pelo governo Vargas e que se ex­ pressou na seleção de matérias transcritas de periódicos internacionais, nas seções dedicadas à guerra, no tratamento dispensado às questões canden­ tes do cenário internacional, que foram constantemente mobilizadas como metáfora para criticar aspectos da situação interna. Posição que também se expressa pela ausência dos principais formuladores da política estatal e pelo silêncio guardado em relação à figura do chefe do Executivo e seus projetos, em momento em que as loas constituíam-se no lugar-comum. Porém, a ta­ refa está sendo realizada de uma perspectiva que, ao fim e ao cabo, espera-se tenha acabado por alterar o escopo e o alcance analítico da pesquisa.

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* .•

I m p r e n s a , h is t ó r ia , h is t o r io g r a f ia . A lg u m as o bservaçõ es Márcia Mansor D ’Alessiom

L 'excés d 'inquietude méthodologique dans la recherche sera toujours préférable à l 'absence d 'inquiétude. ” Pierre Vilar

Os. dois trabalhos apresentados inscrevem-se no mesmo campo de in­ vestigação: a articulação entre poder, imprensa e historiografia. Apesar de fazerem uso de documentação impressa, as pesquisas dife­ renciam-se quanto ao tipo de fonte escolhida: revistas literárias e culturais, pesquisadas por Tania de Luca, e jornais da grande imprensa, pesquisados por Maria de Lourdes Janotti. Além dessa diferenciação, no interior dos respectivos corpos documentais há nuances a serem destacadas o que, nos quadros de um estudo histórico, sugere reflexões a respeito de método. Tania de Luca, no início de seu estudo, já adverte: “Para os fins da pes­ quisa, decidiu-se distinguir as publicações destinadas a divertir e agradar das que exigiam um leitor disposto a enfrentar textos densos e/ou propostas estéticas inovadoras”.* 1A autora observa também que não se pode fazer uma classificação absoluta, pois elementos que desenham o perfil de um periódico podem estar presentes em seu congénere. Isto posto, para efeito de análi­ se, chamaremos os dois tipos de publicação de: revistas de entretenimento e revistas acadêmicas, destacando um dos elementos apontados pela autora como responsável pela natureza de cada uma delas, qual seja, o público-alvo. * PUC-SP. * “O excesso de inquietação metodológica na pesquisa será sempre preferível à ausência de inquietação.” 1 Tania Regina de Luca. “A Revista do Brasil (1916-1944): notas de pesquisa”, neste livro, p.l 17. 1

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As revistas que estamos chamando de acadêmicas destinam-se basica­ mente a especialistas das diferentes profissões e áreas do conhecimento e são concebidas e estruturadas com essa finalidade, o que restringe, ainda que involuntariamente, o público-alvo; as revistas de entretenimento visam a um público amplo, praticamente irrestrito, o que condiciona sua natureza. Assim como os jornais, as revistas de entretenimento podem ser vistas como meios de comunicação de massa, nos quadros da indústria cultural. E aí passamos da discussão de fontes (história/conhecimento) para a dis­ cussão de um dos fatos históricos mais importantes da contemporaneidade, qual seja, o papel da mídia na alteração do tempo e na feitura do fato histó­ rico contemporâneo (história/vivência). Nos anos 1970, quando o fenômeno da comunicação de massa se con­ solidou e o vocabulário do momento o nomeou, os autores empenhavamse em conceituá-lo. O sociólogo Claude-Jean Bertrand, em estudo sobre o tema, em 1974, escreveu: O que são os mass media? Cada um deles é uma indústria que, por meios técnicos específicos, envia uma mesma mensagem, simultaneamente ou quase, a uma massa de indivíduos. ... No uso corrente mass media evoca imprensa, rádio e TV, pelo fato de difundirem muito rapidamente uma informação sobre a atualidade.2

Ki

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IM PRENSA, HISTÓ RIA, H IS T O R IO G R A F IA

Embora o termo mass media abarque os três veículos de comunicação, é importante observar suas especificidades e as decorrentes consequências no uso de cada mídia como fonte empírica. O autor em questão sugere que a TV é a mídia por excelência e que "... imprensa, são antes de tudo os jor­ nais”.3São afirmações que nos suscitam algumas inquietações, como as que se seguem: em termos de objetivos e propostas qual a diferença entre TV e jornal? Estes meios de comunicação segregam ideologia ao construírem o fato histórico ou esta construção acontece por força da própria natureza destes veículos, qual seja, produção e difusão em massa em progressivo e ininterrupto desenvolvimento tecnológico? 2 “Qu est-ce que les mass media? Chacun d eu x est une industrie qui, par des moyens techniques spécifiques, délivre um même message, simultanément ou presque, à une masse d individus.... Dans 1'usage courant, ‘mass media’ evoque presse, radio et TV, du fait q elles diffusent três rapidement une information sur Vactualité." BERTRAND, J.-C. Les mass media aux États-Unis. "Que sais-je?” Paris: PUF, 1974, p.5. 3 BERTRAND, J. C„ op. cit., p.49.

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Talvez possamos dizer que o “princípio ativo” desses órgãos de impren­ sa é o mesmo e que ambos, o que é notável para o historiador, interferem na temporalidade histórica e no estatuto ontológico do fato; são construtores privilegiados da história-vivência e arquitetos de representações transmutadas “milagrosamente” em real. No campo da História, um dos autores mais importantes nesta discus­ são é Pierre Nora, que a inaugura em artigo de 1974, “O retorno do fato”, presente em coletânea que se tornou marco nos estudos de história da histo­ riografia.4 A reflexão de Nora desdobra-se em outras idéias sobre a mesma problemática na obra Les lieux de mémoire, de 1984,5por ele organizada. O pensamento do autor oferece elementos decisivos para a reflexão sobre os efeitos da mídia no tempo da contemporaneidade.

Aceleração do tempo O tempo da contemporaneidade é mais rápido que o tempo dos períodos que a antecedem, e a aceleração da História tem, pelo que se depreende do pensamento de Nora, um momento fundante: o da emergência do processo de industrialização. Isso não significa absolutizar o tempo do mundo oci­ dental moderno, mas apenas apontar sua hegemonia no jogo da articulação contraditória entre as várias temporalidades da história. Ao analisar a ne­ cessidade de memória das sociedades atuais em razão do arrebatamento do passado pela rapidez do tempo presente, o autor diz: Pensemos na mutilação sem retorno que representou o fim do campesinato, esta coletividade-memória por excelência, cuja presença como objeto de his­ tória coincidiu com o apogeu do crescimento industrial. ... é o mundo inteiro que entra nessa dança, pelo fenomeno da mundialização, da democratização, da massificação, da midiatização.6 4 LE GOFF, J., NORA, P. (Dir.). Faire de l histoire. Paris: Gallimard, 1984. 5 NORA, P. (Dir.). Les lieux de mémoire. I - La Republique. Paris: Gallimard, 1984. 6 “Q 'on songe à cette mutilation sans retour qu'a représentée la fin des paysans, cette collectivité-mémoire par excellence don’t la vogue comme objet dhistoire a coincide avec 1 apogée ■'de la croissance industrielle.” "... C est le monde entier qui est entré dans la danse, par le phénomène bien connu de la mondialisation, de la democratisation, da la massificatio, de la médiatisation.” NORA, P., op. cit., p.XVII.

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O fenômeno da aceleração do tempo, uma vez desencadeado pela in­ dústria, atingiu as múltiplas dimensões da história. Poderíamos mencionar duas de suas manifestações, ambas ligadas à produção: o mercado e a efi­ ciência no trabalho. Com efeito, a formação e o desenvolvimento do mercado levou, no sé­ culo XIX, à necessidade interna de integração territorial e externa de comu­ nicação entre países. Estradas, meios de transportes terrestres, marítimos, aéreos garantiam a circulação de mercadorias, mas também de idéias, cos­ tumes, valores, mundializando a história. As distâncias foram se tornan­ do quase abstrações, alterando definitivamente o tempo. Por outro lado, a rapidez no trabalho, se, em um primeiro momento obedeceu à lógica do aumento da produção, passou a responder, entre outras coisas, ao desejo insaciável de consumo do novo. Assim, a industrialização levou à mundialização, fenômeno responsável pela necessidade de recuperação do fato na feitura da história; o aconteci­ mento imediato, incessantemente veiculado pela mídia, sobretudo a televi­ são, compromete a vinculação e o apelo ao passado e põe o presente como tempo privilegiado da contemporaneidade. Neste contexto, os meios de comunicação de massa, segundo Nora, tomam o lugar do historiador, anteriormente o construtor do fato histórico por uma elaboração intelectual; agora, o evento foge de suas mãos, vem pronto, em uma espécie de autogestação, antes do trabalho do tempo”.7Vivido pelo telespectador da história simultaneamente ao momento em que acontece, torna-se quase atemporal porque etemamente presente. Esta presentificação introduz a emoção na reelaboração do fato: “A realidade propõe, o imaginário dispõe”.8 O autor parece sugerir que neste fato reelaborado a representação se transforma em real, preocupação que notamos também nas precursoras reflexões de Ador­ no sobre a televisão, a mídia por excelência, a "duplicata do mundo”: Argumentando que a televisão em ambiente escuro é desagradável, deixamse acesas as luzes à noite e não se fecham as persianas de dia: a situação deve afastar-se o mínimo da normal. É inconcebível que a experiência da coisa mes­ ma se mantenha independente disso. A fronteira entre a realidade e a imagem 7 NORA, P. O retomo do fato. In: LE GOFF, J. e NORA, P. História: novos problemas. 2.ed. São Paulo: Francisco Alves, 1979, p.183. 8 NORA, P., op. cit., p. 184.

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torna-se atenuada para a consciência. A imagem é tomada como uma parcela da realidade, como um acessório da casa, que se adquiriu junto como aparelho ...,910 Qual o lugar dos sujeitos históricos nessa história-espetáculo? Como um balanço da contemporaneidade e um alerta ao historiador, Pierre Nora fala em participação sem participação, “essa mistura exata de distância e intimidade que é para as massas a forma mais moderna, e ge­ ralmente única, de que dispõem de viver a história contemporânea”.’0 E Adorno diz que se pode encarar a TV “como uma espécie de voz do espírito objetivo, ainda que este não mais resulte espontaneamente do jogo de forças da sociedade mas seja planejado em moldes industriais .” Diferentemente do filósofo, os historiadores que refletem sobre a relação mídia/história não têm uma visão negativa da atualidade; ao contrário, cri­ ticam-na para sugerir saídas, redirecionamentos em seu próprio ofício. O apelo de Nora ao “retorno do fato” é proporcional à importância adquirida pelo fato na contemporaneidade em função da mídia. É semelhante a posi­ ção de Le Goff sobre o assunto: "... vejo na obrigação que hoje o historiador tem de dirigir-se aos mass media, um modo de ajudá-lo a reexaminar de maneira positiva a sua posição em relação ao acontecimento”.12 As revistas acadêmicas têm a mesma estatura do livro acadêmico. Do ponto de vista de sua utilização como fonte documental, por trazerem di­ ferentes autores e temas variados, têm a vantagem de oferecer ao pesqui­ sador um panorama mais alargado da produção científica. Além disso, a agilização que elas provocam no consumo das idéias possibilita ao estudio­ so avaliar mais intensamente seu efeito no social: o papel político por elas desempenhado ou de formadoras de opinião especializada. Ainda no universo dos periódicos, e acompanhando os movimentos e as necessidades da sociedade de massas, aparecem revistas que são, ao mes­ mo tempo, acadêmicas e de divulgação. O sinal mais aparente dessa sínte­ se como objetivo editorial é o fato de serem vendidas em bancas de jornal. Talvez sejam, entre as publicações, a melhor fonte para se examinar, pela receptividade dos leitores, o papel da historiografia na história. 9 ADORNO, T. W. Televisão, consciência e indústria cultural. In: COHN, G. (Org.). Comu­ nicação e indústria cultural. 4.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p.349. 10 NORA, P. O retorno do fato, op. cit., p.183. 11 ADORNO,T. W., op. cit., p.351. 12 LE GOFF, J. Reflexões sobre a História. Lisboa: Edições 70, s.d., p.21.

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1920-1960: Redescobertas do Brasil O objeto investigado por Tania de Luca, a Revista do Brasil, inscreve-se nos quadros das revistas literárias e/ou culturais. O aspecto enfatizado em sua exposição é a questão do método, o que torna o texto uma contribuição fundamental para a compreensão da construção do conhecimento histórico que, segundo Pierre Vilar, é um movimento permanente, um processo que não se esgota. A expressão fartamente utilizada por este autor, “história em construção”, certamente não se refere apenas à condição de historicidade da própria historiografia, mas também ao método nos estudos históricos; nesse sentido, propõe que cada historiador exponha a construção de seus proce­ dimentos metodológicos, contribuindo, assim, para o acúmulo de reflexões sobre como se escreve a história. Diz ele: Porque “o historiador está na história”, é importante que toda obra de his­ toriador traga, pelo próprio autor, seu ponto de vista exato sobre o método de reflexão e as circunstâncias da pesquisa. Esta “advertência” não é apenas lealdade para com o leitor ou a crítica. É dever (compromisso) em relação a um método histórico em criação contínua, discussão sempre reanimada, quando cada tentativa contribui com um teste­ munho. (p.5) A Revista do Brasil “circulou em diferentes momentos e sob a batuta de vários editores”, diz Tania de Luca; a constatação levou a autora a alte­ rar seu recorte temporal de maneira que compreenda permanências, mas também rupturas nas diferentes conjunturas. Um alargamento cronológico naturalmente implicou alargamento das fontes, o que veio acompanhado de uma ressalva metodologicamente importante, qual seja, a de olhá-las em seu conjunto, evitando fragmentações. Reconhecemos aí intenção de com­ preender as relações do fato —Revista do Brasil —com as questões definido­ ras do momento histórico vivido pelo país. A autora aponta uma trajetória de análise que vai desse desenho ou cenário aos movimentos do cotidiano, apresentando o tempo curto dos acontecimentos articulado à atmosfera ge­ ral construída em temporalidades de maior duração. Este método construído levou a uma evidência histórica importante: o momento analisado é o da construção da modernidade no Brasil. Da pesquisa de Tania de Luca se depreende o importante papel das re­ vistas literárias e culturais na primeira metade do século XX, momento de

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grande efervescência entre os intelectuais brasileiros no sentido de um de­ sejo de reencontro do Brasil, ainda que esse desejo se manifeste por diferen­ tes ideologias e diferentes interesses. Pode-se perceber também nelas uma função pedagógica, o que nos remete a sua receptividade pela sociedade. Para efeito de análise estabeleceremos uma possível periodização temá­ tica da história do Brasil contemporâneo: os anos 1920-1960 como o tempo nacionalitário do país. Não por acaso é o período de construção da moderna nação burguesa, vale dizer, é o momento de emergência da modernidade brasileira. Por modernidade vamos entender, como primeira aproximação, o mo­ mento da história do capitalismo no qual a industrialização se insinua e se consolida, inicialmente no centro hegemónico do sistema, que cria o fato e o “exporta”, e, posteriormente, em outras regiões, conforme o ritmo interno de transformações de cada país e sua vontade de integrar a forma de viver predominante no período contemporâneo. A percepção da industrialização como marco diferenciador de tempos históricos nos parece independer da crença no primado do económico; ela se justifica por ter a industrialização alterado radicalmente a forma de produção e reprodução da vida material e espiritual dos homens, por ter imprimido novo ritmo ao tempo e redesenhado o espaço, transformando os poderes, a sociabilidade, as crenças, os valores. A famosa frase do M a­ nifesto Comunista, enaltecida por Marshall Berman, “Tudo que é sólido desmancha no ar”, exprime de maneira cabal o espírito da modernidade, pois sugere o efémero das coisas determinando a obsessão pela inovação - leia-se, produção - constante. O Estado-nação, em seu movimento geral de centralização, que vai do económico ao espiritual, é a forma que o poder toma naquele momento da história do capitalismo. Há forte componente político na abrangência e predominância atingida por esse novo formato do poder na contemporaneidade: os países que não se construíssem e se fortalecessem como Estado-nacional não tinham voz na disputa por espaço no contexto internacional. A corrida pela delimitação clara do território, pelo exército poderoso, pela economia forte traduzida em conquista de mercado, pela população consentidamente unida na gran­ deza e defesa do país é um fenômeno definidor dos séculos XIX e primeira metade do XX. A palavra pátria, que anteriormente significava uma pai­ sagem material e espiritual na qual subjetividades sentiam-se abrigadas e

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se reconheciam, adquire uma conotação política que a torna sinónimo de 1 Estado-nação. O patriotismo nacionalista une internamente a população de ^ um território ao mesmo tempo que insufla a hostilidade entre os povos. Este I é o panorama que nem o internacionalismo proletário, contemporâneo do ■ nacionalismo, conseguiu combater. O Brasil assume este projeto político na era Vargas, mas talvez pelo fâto de o mundo ser a casa dos homens”, e a história de todos os povos pertencer também à historia mundial, já nos anos 1920 as elites intelectuais buscam reconhecer-se em um Uno, por elas construído, para que a população nele se reconhecesse. De vários setores desta elite apareceram representa­ ções de Brasil, disputando-se, entre outros meios, por publicações, todas portadoras de uma ideologia que superou os discursos nativistas anteriores que jamais levaram a uma resposta política como a de 1930. O trabalho apresentado mostra uma continuidade no aparecimento de diferentes periódicos nos anos 1920 e propõe, como já dito, uma aná­ lise do conjunto deles, capaz, diríamos, de dar sentido histórico ao que pode parecer ações individuais e/ou iniciativas fragmentadas. A proposta pode ser vista como um recurso de método, procedimento do ofício que permite desenhar um tempo histórico, revelar uma atmosfera, mostrar o estrutural ou o invisível convivendo com o visível das ações cotidianas que isoladas não contariam a história dos povos. Poderíamos acrescentar que esse conjunto configura um contexto marcado pelo fenômeno de cons­ trução do Brasil e do brasileiro modernos, construção esta que se faz pela incessante busca identitária capitaneada pelas elites e, a partir de 1930, pelo Estado; o impacto no social aparecerá fortemente nos anos 1950-1960, sob a forma de grande produção artística - música, cinema, teatro - e inúmeros projetos de uma educação renovada, renovação entendida na época como profundas transformações na forma e nos conteúdos. O golpe militar de 1964 rompe o ciclo nacionalitário no país, criando uma espécie de esquizofrenia, já que, enquanto ainda ressoavam os ecos de um nacionalismo cultural, o país já mudara seu modelo económico, geran­ do luta política intensa entre projetos políticos antagónicos. Os conflitos haviam se intensificado desde os anos 1950, quando o discurso nacionalista incorporara a questão social, esquerdizando setores da população. O apelo Brasil - ame-o ou deixe-o” jamais teve o significado, e muito menos o efei­ to, da palavra de ordem “O petróleo é nosso”: muitos brasileiros preferiram

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deixar o país, voluntária ou compulsoriamente, em vez de amá-lo, resulta­ do da intensa repressão desencadeada pelo regime e que atingiu fortemente aS áreas cultural e educacional, como nos mostra Maria de Lourdes Janotti: "Esse clima de efervescência cultural foi abruptamente interrompido pelo golpe militar de 1964, que sob a acusação de subversão terminou por extin­

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guir todas as escolas renovadas do país”.13 O texto apresentado por Maria de Lourdes Janotti versa sobre o ensino na ditadura militar de 1964. O objeto de investigação de sua pesquisa foi o Colégio de Aplicação; sua fonte, o noticiário dos jornais diários da grande imprensa. Por “lealdade” ao método, especificidades já mencionadas em re­ lação às revistas literárias e culturais devem ser destacadas. Ao escolher a seção de notícias como fonte, o historiador obtém do jornal o cotidiano da vida social no momento de seu acontecer. Por isso mesmo, a informação obtida é fragmentada. Quem dá sentido aos fatos é o histo­ riador, articulando a curta duração de sua eclosão às outras temporalidades da História. Este é uma dos aspectos que distinguem a notícia da análise, o repórter do articulista. O último produz uma interpretação, o primeiro se pretende fiel ao real (embora as reflexões metodológicas já tenham desmis-

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tificado essa crença, mas esta é outra discussão). A curta duração do fato não se dá, obviamente, só no estudo do presente, mas no caso da pesquisa de Maria de Lourdes Janotti há coincidência entre o tempo da fonte pesquisada - o tempo da notícia - e o momento históri­ co vivido pelo historiador. Em outras palavras, sua pesquisa inscreve-se na história do tempo presente, captada pelo imediatamente vivido dado pelo jornal diário. A isto podemos chamar também história do imediato, aquela que analisa o presente do contemporâneo. Conceituando-a Jean Lacouture escreve: “... 1'histoire immédiate - dont les composants irréductibles sont à la fois proximité temporelle de la rédaction de 1'oeuvre par rapport au sujet traité, et proximité matérielle de 1 auteur à la crise étudiée (p.271). Os meios de comunicação de massa registram e expõem o acontecido no momento de seu acontecer. Não há trabalho do tempo por parte do jor­ nalista. A especificidade do trabalho de Maria de Lourdes Janotti não está apenas na reunião dos “componentes irredutíveis” da história imediata, 13 JANOTTI, M. L. M. “Imprensa e ensino na ditadura” neste livro, p.95. * ... a história imediata - onde os componentes irredutíveis são a proximidade temporal da redação da obra pelo sujeito que a trata, e a proximidade material do autor à cnse estuda a

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pois além da proximidade temporal entre o acontecimento e sua investiga ção e da proximidade material do objeto investigado e seu investigador há participação ativa da autora no acontecimento pesquisado. Em outras pa lavras, a autora é, ao mesmo tempo, protagonista e pesquisadora do objeto investigado, situação na qual memória e história se fundem na produção do conhecimento. A interferência dos Estados Unidos na educação brasileira reforçou o caráter antiimperialista do nacionalismo no Brasil e levantou alunos e pro­ fessores contra os militares, que passaram a vê-los como inimigos altamente perigosos, evidência demonstrada na pesquisa de Janotti sobre o Colégio de Aplicação. A imprensa se revela lugar de intensas lutas políticas, e as dife­ rentes posições se revelam pelo conteúdo e pela forma tomados peló jornal, mas também pelo público para o qual os jornais se dirigem. Do ponto de vista do método, além de se observar a diferença, nas pes­ quisas apresentadas, entre os dois corpos documentais inscritos na rubrica imprensa: revistas literárias/culturais e jornais diários, é importante refletir sobre o que, nesses estudos, estas fontes trouxeram como conquista historiográfica: às primeiras, o mérito de revelar um fenômeno histórico, a saber, a construção da moderna nacionalidade burguesa; aos segundos, a revela­ ção da historicidade do político, ou seja, suas diferentes concepções e suas múltiplas práticas desenhando tempos históricos diferentes.

9 " E screver de n o v o a palavra M ulher": recontando

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h is t ó r ia d a s

l u t a s f e m in is t a s

Margareth Rago*

Que el posado se hunda en la nada !Qué nos importa del ayer! Queremos escribir de nuevo la palabra mujer! ... Lucía Sanchez Saornil H im no de M ujeres Libres, 1937

Deslocamentos Com um olhar de historiadora, é inevitável perceber que, se nas décadas de 1970 e 1980, privilegiamos em nossos estudos históricos sobre as mulhe­ res as análises do poder, percebendo e denunciando suas manifestações mi­ croscópicas, invisíveis, moleculares, sutis e sofisticadas nas relações sociais, étnicas e sexuais, na década seguinte, o foco principal foi outro. Depois de “politizar o cotidiano”, ao lado das conhecidas teóricas feministas, das fe­ ministas históricas” e das mais jovens, que vieram integrar o movimento de luta das mulheres, e fundamentalmente referenciadas pela analítica do poder de Michel Foucault, passamos para outras problematizações, não menos importantes.*1Demos destaque, então, não apenas às desconstruçoes * Departamento de História da UNICAMP. 1 Ver por exemplo ENGEL, M. Meretrizes e doutores. Saber médico e prostituição na cidade do Rio de Janeiro no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988; RAGO, M. Os prazeres da noite. Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo. Rio de Janeiro, az e Terra, 1991.

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que punham a nu as redes de poder constitutivas dos saberes e das práti­ cas, os micropoderes que atravessam as relações sociais, de gênero e étnicas entre outras, mas também às criações libertárias, femininas e feministas capazes de subverter as identidades impostas, questionar as hierarquias e revolucionar o mundo ou, pelo menos, nossos mundos. De Foucault, destacavam-se, nesse momento, os conceitos de “estéticas da existência” e de “cuidado de si”, formulados segundo sua leitura da expe­ riência histórica da constituição da subjetividade entre os gregos e romanos na Antiguidade Clássica.2Já o conceito de “heterotopias”, ou “outros espa­ ços”, como explicitava ele em palestra proferida para arquitetos em 1967, possibilitava renovar as discussões sobre a utopia.3Em relação às projeções e aos pensamentos utópicos, que nos levam temporalmente para lónge e espacialmente para fora e que, diz ele, “consolam”, Foucault propõe pensar de maneira pluralizada os inúmeros espaços que se entrecruzam, imbricam e se afetam, ao abrigarem a experiência cotidiana e que, a seu ver, deveriam ser dessacralizados, para poderem ser transformados. Nesse contexto, cha­ madas para o aqui e agora, para um olhar crítico sobre nós mesmas/os, so­ bre nossas práticas cotidianas, sobre nossos modos de operar, sobre nossas crenças e valores morais, a “invenção de si”, como construção de um sujeito ético-político se mostrou como uma importante dimensão emancipadora, como bem haviam aprendido, na prática, as feministas.4 No terreno dos estudos históricos, o eco dessas discussões ainda se faz sentir. Não foi tarefa fácil entender as discussões sobre a desnaturalização do sujeito, nem desfazer-se das noções de essência e “natureza humana”, fortemente arraigadas no imaginário social e passar a problematizar a his­ toricidade do sujeito. No Brasil, apenas começam a surgir trabalhos que se orientam nessa direção, embora já sejam muitos os que, revelando uma atitude de estranhamento do próprio presente, perguntam pelas condições de possibilidade do que fomos e do que temos sido, seja como “identidade nacional”, seja em relação às identidades assumidas de gênero. 2 FOUCAULT, M. História da sexualidade. O uso dosprazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1985. v.II; História da sexualidade. O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. v.III. 3 Idem, "Des espaces autres”. In: Dits et Ecrits. Paris: Gallimard, 1994, p.752. v.IV. 4 BRAIDOTTI, R. Sujetos Nómades. Buenos Aires/Barcelona/México: Paidós, 2000; BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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No caso dos estudos feministas, muitas pesquisas desvendaram as ar­ dilosas estratégias normativas de produção da figura e do corpo femininos, especialmente pelos discursos médico e jurídico, extremamente moralis­ tas e conservadores, assim como pela literatura e pela propaganda. Ainda são poucas, contudo, aquelas que investigam as experiências históricas de “invenção de si” das mulheres, especialmente quando saímos da área da literatura. Da forte incidência em nossas pesquisas da questão da normatização do corpo feminino e da domesticação dos instintos e dos sentimen­ tos femininos, uma nova perspectiva temática se configura, portanto, com a possibilidade de conhecermos as criações éticas femininas e as linhas de fuga feministas abertas ao longo da História. Aqui, não se trata apenas das novas sociabilidades diferenciadas com que as mulheres se articularam e puderam escapar às redes do poder, em vá­ rias épocas, transgredindo os códigos sociais impostos, burlando as normas e questionando a estrutura do poder patriarcal. Também não se trata apenas das inúmeras estratégias informais de sobrevivência com que driblaram as dificuldades económicas, os impedimentos paternos, as imposições fami­ liares do matrimónio e da maternidade, as condenações do adultério ou do aborto, como nos mostra o excelente trabalho de Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano e poder em São Paulo no século X IX .5* Trata-se, sobretudo, da maneira pela qual subverteram a ordem moral no mais íntimo de seu ser, isto é, na maneira pela qual se construíram a si mesmas, olhando-se de maneira independente do olhar masculino pro­ jetado sobre elas e, por conseguinte, de como puderam estabelecer novas relações consigo mesmas, tanto quanto com os outros. Está em jogo, nesse sentido, ao falarmos das “estéticas da existência”, a pergunta pelo modo como as mulheres contribuíram e contribuem para a construção de novos valores e códigos éticos, ajudando a renovar e a atualizar o imaginário polí­ tico e cultural de seu tempo. Se deslocamentos e transformações subjetivas são experiências pessoais que as mulheres têm realizado praticamente nas últimas três décadas, as elaborações e as discussões teóricas que suscitam avançam mais lentamen­ te, fora da psicologia e da psicanálise, sobretudo quando se considera o co5 DIAS, M. O. Le. da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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nhecimento histórico do passado ou as reflexões do presente, mesmo em se falando tão constantèmente sobre a importância da ética na vida e na política.6 Novamente, à exceção de excelentes trabalhos realizados na área literária, pouco sabemos de um rico e positivo passado em que as mulheres lutaram para escapar das redes de captura do Estado e do poder masculino no terreno dos modos de subjetivação, isto é, das formas de construção de sua própria subjetividade.7 E nesta direção que situo a pesquisa que realizo atualmente sobre um grupo de militantes anarquistas, especialmente ativas durante a Revolução Espanhola, ocorrida entre 1936 e 1939, intitulada “Experiência e subjetivi­ dade: as Mujeres Libres da Espanha”.8 É, portanto, uma reflexão em torno dessa pesquisa histórica e dos pressupostos teóricos que a norteiam que pro­ ponho brevemente neste texto. Viso a enunciar algumas das problematizações que orientam este trabalho de pesquisa e que, a meu ver, podem abrir novos caminhos para repensar o passado das lutas feministas, em geral, tão silenciadas pelos discursos dos vencedores, à direita ou à esquerda.

Estilísticas da existência Para essa reflexão, é inevitável retomar Foucault, já que são as suas problematizações e os conceitos que constrói que permitem olhar diferente­ mente para o passado e elaborá-lo, buscando não aquilo que supostamente fomos na origem, a partir da linha da continuidade histórica que legitima o nosso presente, mas perguntando, em uma perspectiva genealógica, pelas descontinuidades, pelas diferenças que nos separam dos antepassados, vis­ tos em sua alteridade. Vale lembrar que, para esse filósofo, a História tem por função deslegitimar o presente, questionando as formas instituídas e mostrando que 6 HUNING, S. M. e GUARESCHI, N. M. F. (Orgs.). RODRIGUES, H. C. ct. al. Foucault e a psicologia. Porto Alegre: Abrapso Sul, 2005. 7 Destaco os trabalhos pioneiros de TELLES, N. ENCANTAÇÕES. Escritoras e imagina­ ção literária no século XIX . 1986. Tese (Doutoramento) - PUC-SP; e ROLNIK, S. Carto­ grafia sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. 2.ed. Porto Alegre- Sulina/ UFRG, 2006. 8 RAGO, M. "Experiência e subjetividade: as Mujeres Libres da Espanha”. Projeto de pesquisa desenvolvido com apoio do CNPq.

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aquilo que é nem sempre foi, isto é, que é sempre na confluência de encontros, acasos, ao longo de uma história frágil, precária, que se formaram as coisas que nos dão a impressão de serem as mais evidentes, como afirma em “Structuralisme et poststructuralisme”.9 Aliás, essa foi sua própria experiência ao voltar-se para a história da Antiguidade greco-romana, nos volumes 2 e 3 da História da sexualidade, em que investiga os modos tão diferenciados pelos quais os antigos experi­ mentaram a subjetivação e a formação do cidadão, criando suas “artes da existência”, na busca de construção de uma vida bela e temperante. Para Foucault, as “artes da existência”, constituídas com base em “técnicas de si” poderiam ser definidas como práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo.10 Em outra passagem, explicando que os antigos gregos não entendiam o conhecimento de si como uma revelação de alguma essência alojada no fundo do indivíduo, nem visavam a atingir uma verdade pessoal pela de­ cifração de si, de uma hermenêutica do sujeito, Foucault afirma que por “estética da existência” deve-se entender... uma maneira de viver cujo valor moral não está em sua con­ formidade a um código de comportamento nem em um trabalho de purificação, mas depende de certas formas, ou melhor, certos princípios formais gerais no uso dos prazeres, na distribuição que deles se faz, nos limites que se observa, na hierarquia que se respeita.11 Entende-se, pois, que em sua tentativa de traçar uma “genealogia da alma moderna”, após estudar, no volume I da História da sexualidade, os procedimentos disciplinares desenvolvidos na modernidade, tenha partido em busca de outros modos de constituição de si, radicalmente diferentes 9 FOUCAULT, M. “Structuralisme et poststructuralisme” (1983). Dits et Écrits, op. cit., p.449. v.IV. 10 Idem, O uso dos prazeres, op. cit., p.15. 11 Ibidem, p.82.

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daqueles que conhecemos. Afinal, a moral burguesa apresenta-se como verdadeira e universal, valendo para não importa qual classe social, grupo étnico ou sexual, definindo a vida de cada um e de todos em todos os níveis e de ponta a ponta, ao contrário do que ocorria no mundo antigo. Assim, muito distante da experiência moderna, Foucault encontra, em nosso passado ocidental, morais que não se destinavam a assujeitar o indi­ víduo, a produzir “corpos dóceis”, obedientes e submissos, fazendo-o re­ nunciar a si mesmo, como pregará o cristianismo e fundamentará posteriormente a ciência. Conhecer-se a si mesmo não significava, naquele contexto, uma decifração de si, nem um ato de purificação e submissão ao olhar do outro, convertido em autoridade suprema. No mundo antigo, evidenciamse outros modos de subjetivação, a invenção de outros estilos de vida em que a preocupação maior é da ordem da ética e da liberdade, e não da submissão e do poder. Mostrando modos diferentes e estilizados de existir, Foucault aponta para as técnicas de si do mundo greco-romano como "práticas da liberdade”, exercidas na relação de si para consigo e constituídas por exer­ cícios que a sociedade oferecia e ensinava, como maneiras de formar auto­ nomamente o cidadão, educar o jovem na aprendizagem do “cuidado de si” e na relação com o outro. Segundo ele, as morais antigas ... eram essencialmente uma prática, um estilo de liberdade. ... a vontade de ser um sujeito moral, a procura de uma ética da existência eram principalmente, na Antiguidade, um esforço para afirmar sua liberdade e para dar à sua própria vida uma certa forma na qual se poderia reconhecer, ser reco­ nhecidos pelos outros...12 Para os gregos e romanos, portanto, era imprescindível saber “cuidar de si”, ter o governo de si para estabelecer uma relação libertária também com o outro. Se com o cristianismo, a salvação pessoal só pode ser obtida com a renúncia de si, com a negação dos próprios desejos, para os antigos, ao con­ trário, tratava-se de trabalhar-se, dando-se uma forma estilizada de vida, o que implicava saber usar os prazeres, para se chegar à vida temperante, equilibrada e harmoniosa. Segundo Foucault, para os Gregos e Romanos —sobretudo para os gregos —,para bem se conduzir, para praticar como se deve a liberdade, era preciso ocupar-se de si, preocu12 FOUCAULT, M. Dits et Écrits, op. cit., p.l 550. v.II.

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par-se consigo mesmo, ao mesmo tempo para conhecer-se ... e para formar-se, para superar-se a si mesmo, para dominar em si os apetites que ameaçariam levá-lo.13 Foucault insiste, portanto, em mostrar como o conhecimento de si, en­ tendido como uma busca do que existe de verdadeiro e autêntico no fundo de nós mesmos não é um ato neutro, mas um a forma de submissão ao olhar do outro, já que se estabelece, como explica o filósofo Frédéric Gros, “uma solidariedade histórica entre a constituição de si como objeto de conheci­ mento por si mesmo, a obediência indefinida ao Outro e a morte perpé­ tua para si mesmo”.14 Ao mesmo tempo, Foucault abre a possibilidade de problematizar a reinvenção de si, ao pensar a subjetividade como histórica e não natural, como uma construção e não como determinação biológica ou cultural inevitável, como afirma o século XIX e aceita grande parte do século seguinte.15 Portanto, dar destaque ao tema do “cuidado de si” na cultura greco-romana adquire, na atualidade, significado político maior, pois trata-se, nessa “conversão”. - e não “renúncia de si” - , da possibilidade das rebeldias e resistências, dos deslocamentos, das mudanças, do ser outro/a do que se é, tanto quanto da amizade, da invenção de novos laços sociais não regidos pelo desejo de poder e de hierarquização. O tema da amizade ganha aqui particular importância se lembrarmos que toda a tradição ocidental - de Aristóteles a Montaigne, chegando ao século XX - considerou as mulheres incapazes de laços estáveis, confiáveis, duradouros, seja entre si mesmas, seja com o outro. Como diz Ortega, remetendo a Jacques Derrida: "Derrida constata, com razão, como os discursos da amizade são discursos homoeróticos, que realizam uma dupla exclusão do feminino (amizades heteros­ sexuais e amizades entre mulheres)”.16 13 Ibidem, p .l531. 14 GROS, F. “O cuidado de si em Michel Foucault”. In: RAGO, M. e VEIGA-NETO, A. Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p.127-38. 15 Sobre o tema da reinvenção de si, ver ONFRAY, M. A escultura de si. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. Neste livro, o autor define a escultura da seguinte maneira: “Prática milenar. Extrair da matéria, depurar, suprimir para ir buscar no epicentro uma forma que se encontra no querer do homem, senão no seu espírito, eis a obra do escultor, sua tarefa”, p.82. 16 ORTEGA, F. Para uma política da amizade. Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000, p .59.

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Pode-se constatar que o feminismo rompe também aqui com a tradição ocidental, ao revelar que as mulheres são capazes não apenas de realizar as tarefas masculinas, desempenhando com competência as funções da esfera pública, mas que podem revolucionar as relações sociais, criando novos pa­ râmetros para pensar a si próprias, tanto quanto a amizade.17Foucault sabia bem que as mulheres traziam outro potencial criado com base em suas difí­ ceis experiências de vida, experiências de exclusão, opressão, humilhação e marginalização. Em suas palavras: Eu diria também, no que diz respeito ao movimento lésbico, em minha perspectiva, que o fato de que as mulheres tenham sido por séculos e séculos isoladas na sociedade, frustradas, desprezadas de várias maneiras lhes propor­ cionou uma possibilidade real de constituir uma sociedade, de criar um tipo de relação social entre elas, fora de um mundo dominado pelos homens.18 Ao mesmo tempo, em breve passagem de um de seus cursos reunidos em A hermenêutica do sujeito, reconhece a existência de inúmeras tentativas de construção de um novo sujeito ético e de novos espaços políticos e so­ ciais, ao longo da História.19Diz ele: podemos reler toda uma vertente do pensamento do século XIX como a difí­ cil tentativa, ou uma série de difíceis tentativas, para reconstituir uma ética e uma estética do eu. Tomemos, por exemplo, Stirner, Schopenhauer, Nietzsche, o dandismo, Baudelaire, a anarquia, o pensamento anarquista, etc., e teremos uma série de tentativas ... polarizadas pela questão: é possível constituir, re­ constituir uma estética e uma ética do eu? A que preço e em que condições? Ou então: uma ética e uma estética do eu não deveriam finalmente inverter-se na recusa sistemática do eu?... constituir hoje uma ética do eu, tarefa urgente, fun­ damental, politicamente indispensável, se for verdade que, afinal, não há outro ponto, primeiro e último de resistência ao poder político senão na relação de si para consigo.20) (grifos meus) 17 Importante discussão feminista sobre a construção da subjetividade feminina aparece em SWAIN, T. N. As heterotopias feministas: espaços outros de criação. Labrys, estudos femi­ nistas, n.3, jan./jul. 2003; sobre o tema da amizade entre os gêneros, ver IONTA, M. A. As cores da amizade na escrita epistolar de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade. São Paulo: Annablume, 2007. 18 FOUCAULT, M. Dits et Écrits, op. c it, p.1560. v.II. 19 Idem. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 20 Ibidem, p.305.

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A pergunta que, então, me formulo ao estudar a experiência histórica do Grupo “Mujeres Libres”, formado por militantes anarquistas durante a Guerra Civil espanhola, refere-se às interpretações e às práticas que de­ fenderam e criaram na produção de novas subjetividades e na construção de modos libertários de existência, em momento de profunda transforma­ ção socioeconômica e política. Pergunto como o anarquismo e o feminismo permitiram enfrentar, discutir e pôr em prática, naquele contexto histórico revolucionário, a criação de novos modos de existência, segundo a ética afir­ mada por essas doutrinas.

"M ujeres Libres" na Revolução Espanhola E hora de apresentar a Organização “Mujeres Libres”, criada, na Espa­ nha, pela iniciativa de três anarquistas —a médica pediatra Amparo Poch y Gascon (Saragoça, 1902 -Toulouse, 1968), a advogada Mercedes Comaposada (Barcelona, 1901 - Paris, 1994) e a poetisa e telefonista Lucía Sanchez Saornil (Madri, 1895 - Valência, 1970), todas antigas militantes da Confe­ deração Nacional do Trabalho (CNT), de orientação libertária.21 Formada em abril de 1936, poucos meses antes da eclosão da guerra civil deflagrada pelas tropas do general Francisco Franco contra as forças popu­ lares, os grupos liberais e os de esquerda, assim como contra a revolução social que explode concomitantemente, a Organização “Mujeres Libres” propôs-se a lutar pela emancipação das mulheres espanholas, consideradas vítimas da ignorância, da opressão do Estado e da Igreja e, não raro, de suas próprias famílias. No primeiro número da revista homónima que passam a publicar, já em maio de 1936, definem suas posições: Aqui estamos, então, na hora certa, dispostas a seguir até as últimas conse­ quências o caminho que nós traçamos: incentivar a ação social da mulher, dando-lhe uma visão nova das coisas, evitando que sua sensibilidade e seu cérebro 21 Sobre a história da Organização "Mujeres Libres”, ver: ACKELSBERG, M. Free Women in Spain. Anarchism and the Strugglefor the Emancipation of Women. Indianopolis: Indiana i University Press, 1991; NASH, M. Rojas. Las mujeres republicanas en la Guerra Civil. Bar­ celona: Taurus, 1999; RODRIGO, A. Una Mujer Libre: Amparo Poch y Gascon, médica y anarquista. Barcelona: Ediciones Flor del Viento, 2002; GIL, C. L. et al. Mujeres Libres. Luchadoras Libertarias. Madri: Fundación Anselmo Lorenzo, 1999.

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se contaminem com os erros masculinos. E entendemos por erros masculinos todos os conceitos atuais de relação e convivência; erros masculinos porque re­ chaçamos energicamente toda responsabilidade no devir histórico, no qual a mulher nunca foi atriz, apenas testemunha forçada e inerme.22 Entre suas numerosas realizações em várias partes da Espanha, a orga­ nização anarquista abriu cursos de capacitação para as operárias, cursos de alfabetização e creches; propôs a criação de “liberatórios de la prostitución”, isto é, abrigos para as prostitutas que quisessem tentar outras alternativas de vida; fundou centros de cultura para a reflexão e discussão das questões femininas e para a difusão dos ideais libertários; publicou uma revista inti­ tulada Mujeres Libres, redigida apenas por mulheres, pois, diziam elas, "sa­ bemos por experiência que os homens, por muito boa vontade que tenham, dificilmente atinam com o tom preciso”.23 Pressionou, enfim, os dirigentes políticos por transformações na área da saúde e da educação, de modo mais amplo. Vale lembrar que, em dezembro de 1936, o aborto foi legalizado na Catalunha, por obra da anarquista Federica Montseny - aliada, embora não participante do grupo -, que se tornara ministra da Saúde no governo do so­ cialista Francisco Largo Caballero.24Antigas anarquistas, as três fundadoras haviam concluído que, mesmo nos meios sindicais libertários que frequen­ tavam havia tempo, dava-se pouco espaço para as questões específicas das mulheres. E mesmo que, em determinados momentos, não se chamassem de “feministas” - já que identificavam por esse termo aquelas que lutavam apenas pelo direito de voto, sem questionar mais profundamente o Estado e a própria condição feminina -, tiveram uma atuação feminista radicalmente transformadora nas questões da sexualidade, da saúde, da educação, do tra­ balho feminino e, fundamentalmente, nas interpretações que construíram de seu próprio mundo. Como dizia Lucía Sanchez Saomil, no hino que dedica às “Mujeres Libres”, em 1937 e de onde empresto parte do título deste texto, ... Afirmando promesas de vida desafiemos la tradición; modelemos la arcilla caliente de un mundo nascido del dolor. 22 Editorial, revista Mujeres Libres (Madri), n.l, maio 1936. 23 Carta de "Mujeres Libres” a Hemandez Domenech, 27 de maio de 1936. 24 NASH, M., op. cit, p.143.

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Que el pasado se hunda en la nada !Qué nos importa del ayer! Queremos escribir de nuevo la palabra mujer! ...‘25 O próprio nome adotado pelo grupo provocou muitas polêmicas e in­ dignações, como é de supor, pois sabemos que até algumas décadas atrás, na Europa ou no Brasil, “mulher livre”, assim como “mulher alegre”, “de vida fácil” ou “pública” eram expressões associadas à prostituição e à liber­ tinagem. Nos inícios do século XX, não era raro que costureiras, floristas, chapeleiras, trabalhadoras das fábricas de tecido, artistas e militantes políti­ cas fossem percebidas como prostitutas, não apenas na Espanha. Portanto, as palavras de Lucía Sanchez Saornil, refletindo, um ano depois, sobre o nome dado à sua organização, são esclarecedoras: No mês de maio de 1936 nascia a revista Mujeres Libres. Não era uma mera casualidade a coincidência dessas duas palavras. Pretendíamos dar ao substan­ tivo “mulheres” todo um conteúdo que se lhe havia negado reiteradamente, e ao associá-lo ao adjetivo “livres”, além de nos definirmos como totalmente independentes de toda seita ou grupo político, buscávamos a reivindicação de um conceito —mulher livre - que até o momento havia sido preenchido com in­ terpretações equívocas, que rebaixavam a condição da mulher ao mesmo tempo que prostituíam o conceito de liberdade, como se ambos os termos fossem in­ compatíveis.26 A pesquisa sobre esse grupo revolucionário me leva a perguntar pelas “artes da existência” que praticaram, marcadas tanto pelos princípios anar­ quistas quanto pelos feministas, especialmente ao longo dos três anos de duração da experiência revolucionária, violentamente curto-circuitada pela vitória das forças fascistas e pela instalação da ditadura do general Franco, em 1939. Aliás, desde as origens do anarquismo, no século XIX, a forma* ... Afirmando promessas de vida / desafiemos a tradição; / modelemos a argila quente / de um mundo / nascido da dor. / Que o pasado se perca no nada / !Que nos importa o ontem! / Queremos escrever de novo / a palabra mulher!... 25 ,SAORNIL, L. S. “Himno de Mujeres Libres” (1937). Poesia. Valência: Pre textos, 1996, p.24. 26 SAORNIL, L. S. C N T (Madri), n.551, 30 jan. 1937. Também reproduzido em GIL, C. L. et al. Mujeres Libres. Luchadoras Libertarias. Madri: Fundación Anselmo Lorenzo, 1999, p.42.

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ção de um novo ser humano solidário, livre e justo —o “novo homem” e a “nova mulher” - foi um tema recorrentemente afirmado e discutido, pois entendia-se que os indivíduos são produtos históricos, sociais e culturais. Os anarquistas, em especial, sempre investiram fortemente na educação e na moral, fundando inúmeras “escolas modernas”, ateneus, centros de cultura, grupos artísticos, revistas e jornais, defendendo que estes seriam os meios apropriados para formar novos indivíduos, amantes da liberdade, críticos do poder, da dominação e das injustiças sociais.27 Diferentemente do que conclui a historiadora Sheila Rowbotham, em relação ao movimento anarquista espanhol desse período, ao afirmar que “havia uma tendência muito forte de tentar viver segundo os ideais da fu­ tura sociedade pretendida dentro do próprio mundo em que se estava”,28 considero que não se tratava de uma tendência específica, mas muito mais de um princípio e de uma prática, já que para os anarquistas, a revolução se faz aqui e agora, desde os meios empregados para atingir os fins determina­ dos, como ensinaram tanto Bakunin e Malatesta quanto Emma Goldman e Lucía Sanchez Saornil. Discutindo a questão feminina com um compa­ nheiro, ela afirmava: “Está bem esperar a revolução todos os dias; porém, melhor ainda é ir ao seu encontro, forjando-a minuto após minuto nas inte­ ligências e nos corações”.29 Em outro momento, sua crítica à lentidão das mudanças, ou à preser­ vação dos antigos hábitos, ou ainda à cooptação da revolução aparece em relação às formas de organização do trabalho. No capítulo intitulado "Re­ volução e contra-revolução” de Horas de la Revolución,30 Lucía critica a maneira pela qual as iniciativas populares estavam sendo destruídas ou po­ dadas pelo discurso que atemorizava diante da guerra. Em nome de “acabar

27 NAVARRO, J. N. A la Revolución por la cultura. Valência: Universidad de Valência, 2004; HOFMANN, B., TOUS, R J., TIETZ, M. (Eds.). El Anarquismo Espanhol y sus tradiciones culturales. Frankfurtam Main: Vervuert; Madri: Iberoamericana, 1995. 28 ROWBOTHAM, S. Vi/omen, Resistance and the Revolution. New York: Vintage Books, 1974, p.96, In: PORTER, D. (Ed.). Visions on Fire: Emma Goldman on the Spanish Revolu­ tion. Mass: Commonground Press, 1983, cap.VIII, p.259. 29 SAORNIL, L. S. Resumen al margen de la cuestión femenina para el companero M. R. Vásquez. Solidaridad Obrera, 3 nov. 1935. In: NASH, M. (Org.). “Mujeres LibresEspana 1936-1939. Barcelona: Tusquets, p.63. 30 SAORNIL, L. S. Horas de Revolución. Barcelona: Sindicato Único del Ramo de Alimentación de Barcelona, 1937.

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com a guerra”, diz ela, também se diz ser preciso acabar com os comités e evitar a socialização da terra e das indústrias: Em uma palavra, nega-se a Revolução. Sob a palavra de ordem “obediência cega”, que se pretende seja sinónimo de disciplina, quer-se impedir a iniciativa popular.... A guerra tem um motivo e um objetivo, e este objetivo e este motivo são, simplesmente, a Revolução social. È verdade que temos de ganhar a guerra para a Revolução, mas alto lá! Há que atuar revolucionariamente ao mesmo tempo...31 Destaco o anarquismo presente constantemente nas atitudes, reflexões e críticas dessa ativista, como, por exemplo, quando ela denuncia as mano­ bras que vão sendo feitas à medida que o povo consegue maior liberdade e autonomia. Algumas páginas depois, ela afirma que sob pretexto de ganhar a guerra - “sem dizer por que nem para que - dia a dia, vamos vendo morrer os organismos criados nos primeiros momentos pela iniciativa popular..." 32 Não é o caso aqui de estender-me detalhadamente sobre a atuação das “Mujeres Libres”, tema que enfrento em trabalho maior, mas desejo sina­ lizar para a importante experiência histórica desse grupo anarcofeminista, ainda hoje pouco conhecida, e que, no entanto, faz parte do “único banco de dados que possuímos”, como diz o historiador Gaddis, referindo-se à nossa tradição.33 No contexto de uma Espanha ultraconservadora, preconceituosa e re­ ligiosa, mas também da eclosão de um dos mais importantes movimentos revolucionários do século XX, a Revolução Espanhola (1936-1939), que implementa imensa obra de descentralização política, de coletivização dos campos e das fábricas, de reforma dos sistema assistencial e educacional, entre outras importantes atividades políticas, sociais e culturais, “Mujeres Libres” chegou a contar com cerca de trinta a quarenta mil afiliadas, em várias localidades da Espanha. Lutou ativamente para que as mulheres se autonomizassem não apenas economicamente, mas subjetivamente, com­ preendendo que, muitas vezes, o pior inimigo se encontrava em sua própria casa, na figura do pai, do irmão ou do marido. Nessa direção, assinando o 31 Ibidem, p.30. 32 Ibidem, p.40. 33 GADDIS, J. L. Paisagens da História. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p.15.

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artigo “La doble lucha de la mujer”, publicado na revista Mujeres Libres, a militante Use afirma com muita lucidez que, ao contrário do homem revo­ lucionário, que em sua luta enfrenta o mundo exterior, a mulher que quer emancipar-se na igualdade de direitos, tem de empreender primeiro a luta em seu próprio campo. E nesta luta, além de encontrar-se só, além de contar unicamente consigo mesma, dificulta-lhe a luta o inimigo que reside em seu próprio campo; um inimigo a quem nunca reconheceu conscien­ temente como tal, a quem está ligada infimamente e por instinto desde sua pri­ meira infância.34 Segundo ela, eram enormes as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para romper com a família e a tradição e com tudo o que “reprime sua per­ sonalidade”: é difícil lutar contra entes queridos que a querem induzir à espera passiva e virginal do homem que lhe ofereça o matrimónio e lhe assegure uma existência na qual a mulher, cheia de ignorância e preconceitos, não consegue encontrar a felicidade, mas sim uma vida desolada e triste. ... Nessas circunstâncias, a liberdade interior era impossível.35 Lucía Sanchez Saornil, por sua vez, questionando a teoria da diferencia­ ção sexual, segundo a qual as mulheres nasceram para ser mães, indignavase com a pressão exercida sobre elas, como aparece em artigo publicado no jornal libertário Solidaridad Obrera: Antes se exaltava a mãe prolífica, parideira de heróis, de santos, redentores ou tiranos; de agora em diante, se exaltará a mãe eugenista, a engendradora, a gestadora, a parideira perfeita. ... Agora temos algo pior: o conceito de mãe absorvendo o de mulher, a função anulando o indivíduo.36 E interessante observar como em momento em que se difundia a ideo­ logia da domesticidade no mundo ocidental, em que ser mulher significa­ va, acima de tudo, experimentar o desejo da maternidade e de dedicação 34 ILSE. Mujeres Libres, n.7, VIII mês da Revolução, 1937, p.4. 35 Ibidem. 36 SAORNIL, L. S. Solidaridad Obrera, 15 out. 1935. In: NASH, M. (Org.). Mujeres Libres: Espana, 1936-1939. Barcelona: Tusquets, 1977, p.55.

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ao lar, como afirmavam cientificamente os governantes e os homens cultos do período, estas anarquistas lançavam críticas radicais a essas concepções higiénicas, críticas que seguramente serão retomadas pela segunda vaga do feminismo, desde meados dos anos 1960. Lucía afirmava veementemente: A mãe é o produto da reação masculina frente à prostituta que é para ele toda mulher. ... a mãe como valor social não deixou de ser, até o presente mo­ mento, a manifestação de um instinto, instinto tanto mais agudo quanto a vida da mulher só girou em torno dele durante anos ... A mulher, ao contrário, é o indivíduo, o ser pensante, a entidade superior. Pela mãe, queres excluir a mulher, quando poderias ter mulher e mãe, porque a mulher não exclui nunca a mãe.37 E, no artigo “Mujeres!”, em que se posicionava contra o individualismo doméstico e familiar, no editorial da revista Mujeres Libres, declarava-se: Dissemos muitas vezes que a independência da mulher é inseparável de sua independência económica. Dissemos que “o lar” era, na maioria dos casos, um símbolo da escravidão. Suplicamos pela substituição de maquilagens e coquetismos por algo mais alegre, mais sólido e duradouro ... Porém, já não se trata de nada disso. ... Trata-se de que todas as mulheres saiam’de sua dependência, de seu “lar”, de sua própria vida. De que todas as mulheres sintam o instante responsável e criador. De que todas as mulheres formem uma unidade feminina de triunfo e progresso.38 A crítica ao conftnamento das mulheres no mundo privado estendeuse também à experiência sexual, já que o anarquismo defende a liberdade sexual para todos e todas. Enquanto Lucía Sanchez Saornil teve América Barroso como sua companheira de vida, a médica Amparo Poch y Gascon, que também assinava como dra. Salud Alegre, nas páginas da revista, de­ nunciava, em seu “Elogio del amor libre”, os efeitos corrosivos da vida doméstica estrita, do ideal burguês de feminilidade e do modelo do amor romântico. Em discurso poético, emocionado e feminino, contestava: II. Yo no tengo Casa. Tengo, sí, un techo amable para resguardar-te de la lluvia y un lecho para que descanses y me hables de amor. Pero no tengo Casa. No quiero! No quiero la insaciable ventosa que ahila el Pensamiento, absorbe la 37 Ibidem, p. 56. 38 Editorial. Mujeres Libres, n.7, VIII mês da Revolução, 1937, p.l.

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Voluntad, mata el Ensueno, rompe la dulce línea de la Paz y el Amor. Yo no tengo Casa. Quiero amar en el anchucroso “más allá” que no cierra ningún muro ni limita ningún egoísmo. ... Yo no tengo Casa, que tira de ti como una incomprensiva e implacable garra; ni el Derecho, que te limita y te niega. Pero tengo, Amado, un carro de flores y horizonte, donde el Sol se pone por rueda cuando tú me miras. Cuando tú me besas..,**39 E incitava as mulheres a amarem livremente, sem pressões e submissões ao sexo oposto: Y entonces, mujer, apasionadamente enamorada, no pidas nada por tu amor. Gránalo, como la vid; florécelo, como el rosal; levántalo como el eucaliptus; sin preguntar nada, sin pedir nada para el manana. ... Deja que todo vaya e venga; y tú, sonríe siempre, tenaz buscadora de todas las alegrias terrenas. ... La Vida está harta ya de la Mujer-esposa, pesada, demasiado eterna, que há perdido las alas y el gusto por lo deliciosamente pequeno y por lo noblemente grande; ... está harta de la Mujer-prostituta ...; está harta de la Mujer-virtude, seria, blanca, insípida, muda... Crea el nuevo tipo; pon la sal en la Vida; el Color y la llama en los besos de­ siguales. Ama, habla, trabaja. Comprende, ayuda, consuela.” 40 * II. Eu não tenho Casa. Tenho, sim, um teto amável para resguardar você da chuva e um leito para que você descanse e me fale de amor. Mas não tenho Casa. Não quero! Não quero a insaciável ventosa que enfraquece o Pensamento, absorve a Vontade, mata o Sonho, quebra a doce linha da Paz e do Amor. Eu não tenho Casa. Quero amar no extenso “além” que não fecha nenhum muro nem limita nenhum egoísmo. Eu não tenho a Casa, que o arrasta como uma intransigente e implacável garra; nem o Direi­ to, que o limita e o nega. Mas tenho, Amado, um carro de flores e horizonte, onde o sol se põe como roda quando você me olha. Quando você me beija.... 39 POCH Y GASCÓN, A. Elogio del amor libre. Mujeres Libres, n.3, jul. 1936. Esse texto foi traduzido por Natália Montebello e publicado em Verve, revista do NU-SOL, Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais, PUC-SP, n.9, 2006, p.226-34. ** E então mulher, apaixonadamente apaixonada, não peça por seu amor. Grane-o, como a videi­ ra; floresça-o, como a roseira; levante-o, como o eucalipto; sem perguntar nada, sem pedir nada para o amanhã.... Deixe que tudo vá e volte; e você, sorria sempre, tenaz procuradora de todas as alegrias terrenas. A Vida está cansada já da Mulher-esposa, pesada, demasiado eterna, que já perdeu as asas e o gosto pelo deliciosamente pequeno e pelo nobremente grande; está can­ sada da Mulher-prostituta...; está cansada da Mulher-virtude, séria, branca insípida, muda... Invente o novo tipo; ponha o sal na Vida; a cor e a chama nos beijos desiguais. Ame, fale trabalhe. Comprenda, ajude, console. 40 Ibidem, p.233.

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Naquele contexto, afirmar o amor livre e o direito ao prazer sexual tam ­ bém para as mulheres tinha como contraponto a condenação da prostituição não, porém, pela total rejeição ao fenômeno, como aparece em outros grupos femininos e feministas, de esquerda ou de direita. Vista como “degradação social” provocada pelo sistema capitalista, “Mujeres Libres” propôs, como forma de combate à comercialização do sexo, a criação de "liberatórios de la prostitución”, isto é, locais onde poderiam oferecer às prostitutas tratamen­ to médico-psiquiátrico, “orientação e capacitação profissional, ajuda moral e material em qualquer momento que lhes seja necessário, mesmo depois de ter-se independentizado dos liberatórios”. Em relação aos homens, es­ pecialmente aos companheiros de luta, cobrava uma posição ética que não incentivasse o estímulo às práticas da venda feminina do corpo.41 Sabe-se pouco, ainda hoje, a respeito da realização dessa proposta inova­ dora, no entanto, segundo a historiadora Martha Ackelsberg, o próprio fato da guerra, as dificuldades económicas, a falta de recursos materiais em que viveram nesses anos difíceis, a premência de outras frentes de luta tenham inviabilizado sua implementação.42 São muitas, de qualquer modo, as dimensões em que se podem encontrar práticas libertárias feministas postas em ação pelo grupo, visando a libertar as mulheres da sujeição aos modelos de feminilidade vigentes, dicotomi­ camente polarizados entre a “mulher-esposa” e a "mulher-prostituta” — como afirmava a dra. Amparo Poch y Gascon -, e indicar-lhes caminhos possíveis de autonomia pessoal. Mas vale esclarecer que as possibilidades abertas pelo grupo para criar subjetividades libertárias não se efetivaram em um marco individualista. Visavam a uma intensificação das relações consigo mesmas, mas não no sentido de uma valorização da vida privada em detrimento da pública, nem no de uma acentuação do valor do indiví­ duo sobreposto em relação ao grupo. Longe de estimular o apego ao priva­ do como refúgio perante o mundo competitivo dos negócios e da política, segundo a ideologia da domesticidade, contra a qual, aliás, elas se batiam fortemente, essa cultura de si do anarco-feminismo propunha a criação de novas relações de si para consigo, mas também com a/o outra/o, relações 41 Liberatórios de prostitución. Mujeres Libres, n.5, 65 dias de la Revolución, 1936, p.4. 42 ACKELSBERG, M. Mujeres Libres. El anarquismo y la lucha por la emancipación de las mujeres. Barcelona: Virus Editorial, 1999, p.211.

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solidárias, de amizade, de companheirismo político, anti-hierárquicas, em um meio sofrido e perseguido como o operário. Nessa direção, é interessante recorrer às memórias de outra militante do “Mujeres Libres”, Conchita Liano, ao se recordar, muitos anos depois, das fortes relações de solidariedade estabelecidas entre elas e marcar as diferen­ ças diante de outras organizações femininas: Com meu testemunho... quis contar como absolutamente todas as mulheres integrantes de MM.LL. havíamos feito da solidariedade à mulher da Espanha um valor essencial. Tudo girava ao redor da solidariedade, porque, volto a dizer, não havia líderes. Cada qual conhecia suas limitações e as mais inteligentes não tiravam disso nenhuma vantagem. Seria possível comparar-nos a uma colinéia de abelhas, cada qual em seu lugar desempenhava sua tarefa.43 Mercedes Comaposada também insiste em reafirmar a posição femi­ nista diferenciada que levavam no Grupo, pois não se tratava de rejeição ao diálogo e contato com os homens, especialmente com os companheiros anarquistas, mas de luta contra as relações de poder estabelecidas também entre os gêneros. As práticas de liberdade que defendiam e implementavam inseriam-se, pois, em contexto de militância e de luta política em nome do anarquismo: a Organização Mujeres Libres, que já se estende para além de Madri e Barce­ lona, a Valência, Alicante e a outras localidades, não representa uma divisão da organização nem significa pugilatos feministas, mas ao contrário capacitação da mulher para um trabalho em comum, mais eficaz tanto na Revolução quanto na guerra ...44 Visava-se, pois, a fortalecer as redes da militância política - respeitandose, porém, as diferenças de gênero - tanto entre elas mesmas como em rela­ ção aos companheiros ligados a outras entidades, sobretudo nesse momento de intensa movimentação revolucionária em que um novo mundo parecia totalmente possível. 43 GIL, C. L. Acerca del grupo de intelectuales que dieron nacimiento a las agrupaciones de Mujeres Libres, 1935-1939. In: GIL, C. L. Mujeres Libres: luchadoras libertarias, op. cit., p.60. 44 COMAPOSADA, M. Origen y actividades de la agrupación Mujeres Libres. Tierra y Libertad, 27 mar. 1937. In: NASH, Mary (Org.), op. cit., p.72.

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Exílio A derrota da Revolução social e das conquistas sociais, económicas, po­ líticas e culturais resultantes do processo autogestionário, instalado nas ci­ dades e nos campos, e a ascensão da direita franquista resultaram no fuzila­ mento, prisão ou na violenta expulsão da Espanha de milhões de espanhóis, entre eles anarquistas, trotskistas, socialistas e republicanos. Várias das mi­ litantes do “Mujeres Libres” tiveram de exilar-se na França, onde puderam estabelecer-se apenas depois de uma difícil travessia pelos Pirineus, muitas vezes realizada a pé e de um longo período de muita carência e sofrimento nos “campos de concentração” em que foram recebidos no sul desse país.45 Décadas depois, no fim dos anos 1960, as próprias militantes, entre as quais Mercedes Comaposada, Sara Berenguer, Lola Iturbe, Concha Liano Gil, Conchita Guillén, Pepita Cárpena, auxiliadas, entre outras, pela mi­ litante anarquista Antonia Fontanillas e pela escritora Antonina Rodri­ go, iniciaram difícil trabalho de construção do próprio arquivo histórico, conscientes de que suas lutas seriam esquecidas e silenciadas para sempre, se não se mobilizassem também para preservar suas memórias. Desse im­ portante empreendimento, resultaram vários livros, artigos, vídeos e outras publicações, lioje reunidos em alguns arquivos libertários, como o da Fundación Anselmo Lorenzo, em Madri, ou o Centre Internacional de Recherches Anarchistes (Cira), em Lausanne e a Federación Libertária Argentina (FLA), em Buenos Aires, ou ainda, em arquivos particulares, como os de Antonia Fontanillas e o de Helenio Iturbe, mas também em outros arquivos públicos europeus, o que tem permitido o reencontro com essa importante experiência revolucionária, em nossa atualidade.

Ainda algum as reflexões... Muitas vezes, as/os historiadoras do anarquismo entendem que, se até mesmo as mulheres anarquistas sentiram a necessidade de abrir espaços destinados às questões femininas, se elas próprias tiveram de adotar com45 PONS PRADES, E. Las guerras de los ninos republicanos. (1936-1945). Madri: Companía Literaria, 1997; DREYFUS-ARMAND, G. El exilio de los republicanos espanoles en Francia. (De la guerra civil a la muerte de Franco). Barcelona: Crítica, 2000.

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'E S C R E V E R DE N O V O A PA LA V R A M U L H E R "

portamentos feministas, isso revela a assimetria das relações de gênero no interior do anarquismo e concluem, em seguida, pelo fracasso dessa doutri­ na e movimento social desde sempre. Esta questão, a meu ver, necessita ser um pouco mais refletida e discu­ tida. De um lado, afirmar a necessidade de criar um espaço próprio para as mulheres pobres discutirem maternidade, casamento, adultério, aborto, prostituição, a elevação dos salários, a ausência de melhores oportunidades económicas e de acesso à cultura não implica necessariamente nivelar to­ dos os homens em nossa sociedade, acreditando que todos são machistas do mesmo modo. Implica, sim, questionar as estruturas patriarcais da socie­ dade moderna e suas manifestações microscópicas nos múltiplos espaços da vida cotidiana. Nesse sentido, e no caso do anarquismo, não há nada que indique que a formação do Grupo Mujeres Libres, na Espanha dos anos 1930, tenha resultado da incapacidade de dialogar e de estabelecer relações mais igualitárias entre os gêneros no interior dos sindicatos e grupos liber­ tários. Indica, porém, a existência de condições de possibilidade de que as mulheres abrissem outros espaços de luta, de reflexão, de discussão, dife­ rente dos masculinos, em que pudessem definir seus próprios interesses e afinar suas problematizações, ao contrário do que ocorreria em um universo de relações rígido, fechado e duro. De outro lado, afirmar que os anarquistas defendiam a emancipação da mulher, o amor livre, a educação libertária, a autogestão económica e a des­ centralização política não significa dizer que todos os militantes e simpati­ zantes tivessem nascido já anarquistas e, portanto, que não necessitassem de um trabalho pessoal para transformarem-se em sujeitos éticos, isto é, capazes de praticar aquilo que postulavam como exercício da liberdade, da justiça social e da criação de novas formas de sociabilidade. É, aliás, exa­ tamente disso que trata o presente texto: uma tentativa de dar visibilidade a experiências históricas de busca de constituição de um sujeito ético ao longo da História; neste caso, especificamente, em momento de profundas transformações revolucionárias, entre sociais, políticas, culturais e subjeti­ vas dos acontecimentos conhecidos como a Revolução Espanhola. Sem dúvida, o Grupo Mujeres Libres diferiu de outros grupos femininos/istas de sua época não apenas por causa de iniciativas como a criação de cursos para operárias e de creches para seus filhos, mas pelos modos de construção de novas formas de subjetividade e de sociabilidade que expe­

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rimentaram segundo os princípios anarquistas. Nisso consiste, a meu ver, sua radicalidade. Em levar as práticas da liberdade ali propostas ao limite, perguntando por todos os direitos sociais e individuais não da espécie h u ­ mana em geral, mas considerando as diferenças de gênero. Contudo, m an­ tendo-se ao mesmo tempo aliadas dos companheiros, em luta por novos horizontes coletivos e individuais. Finalizo retomando as palavras de Conchita Liano Gil, avaliando a própria experiência 55 anos depois: Aquelas sementes que (com) tanta fé, ardor e esforços semeamos lutando contra o relógio, porque sabíamos que tínhamos o tempo contado, germinaram. Apenas acrescentarei que para nós, fundadoras de MM.LL, era imperativo que as mulheres compreendessem que não era impossível sacudir esse condiciona­ mento atávico e que deviam começar a modificar os esquemas a partir de si mesmas e de seu próprio lar, começando por sua descendência filial, não outor­ gando aos varões privilégios sobre as mulheres. Por que deviam as meninas ser empregadas de seus irmãos?46

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10 H is t o r ic iz a n d o o g ê n e r o Joana Maria Pedro

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Como qualquer categoria de análise, a categoria gênero também tem história.*1 Nas ciências humanas, a disciplina História é certamente a que mais tardiamente apropriou-se dessa categoria. A trajetória, costumeira­ mente “cautelosa”, da disciplina e o domínio do campo por determinadas perspectivas de abordagem têm retardado significativamente o avanço das discussões, mesmo que tenha sido uma historiadora norte-americana, Joan Scott —e talvez até por isso - , quem divulgou de maneira mais abrangente esta categoria. O impacto de seu artigo “Gênero, uma categoria útil de aná­ lise histórica”,2 no Brasil, por exemplo, foi maior em outras disciplinas da área de ciências humanas do que na da História. Neste texto, antes de tentar esboçar um panorama da historiografia bra­ sileira que tem se debruçado sobre a categoria “gênero”, pretendo discutir outras categorias que a antecederam, como “mulher” e “mulheres”, obser­ var o contexto em que estas foram se constituindo e apontar as apropriações feitas pelas historiadoras.3* * Professora doutora do Departamento de História da UFSC. 1 Este texto foi concebido para a mesa-redonda “O historiador e seu tempo: gênero e cultura” realizada no XVIII Encontro Regional de História - Anpuh São Paulo - O historiador e seu tempo, realizado entre 24 e 28 de julho de 2006 na UNESP, câmpus de Assis, São Paulo. Parte dele já foi publicada em: PEDRO, J. M. Traduzindo o debate: o uso da categoria gêne­ ro na pesquisa histórica. História. São Paulo: Editora Unesp, v.24 (1), p.77-98, 2005 (ISSN 010190-74) 2006. Aqui apresentamos outra perspectiva e alguns acréscimos. 2 SCOTT, J. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e realidade (Porto Alegre), 16(2), p.5-22, jul./dez. 1990. / 3 Neste texto, contrariando a gramática da língua portuguesa, usarei os plurais no feminino quando incluírem palavras masculinas e femininas. Faço isto para apontar a contingência das regras gramaticais que estabelecem o masculino como o plural e o universal.

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Kstou considerando que as categorias de análise que empregamos ern nossas reflexões historiográfiças são constituídas no interior de diálogo en­ tre o campo acadêmico e aquilo que entendemos como acontecimentos. No caso da categoria “gênero”, o impacto dos movimentos sociais de mulheres feministas, gays e lésbicos,4os quais passaram a ganhar visibilidade a partir dos anos 1960, podem ser pensados como o início de uma trajetória que vai desembocar na formulação, sempre instável, desta categoria, a qual foi formulada de maneira interdisciplinar. Foi a trajetória dos movimentos de mulheres e feministas de “Segundá Onda 5que questionou parâmetros herdados e definiu identidades que ini­ cialmente foram formuladas nesses movimentos sociais, depois apropria­ das pelo debate acadêmico, e mais tarde questionadas. Esta trajetória expõe as apropriações múltiplas em rua de mão dupla entre movimentos sociais e formulações acadêmicas. Ajuda-nos a pensar que, para além do “aquário” acadêmico, há porosidades nas formulações e intercâmbios constantes. 4 Estou entendendo, como movimento feminista, as lutas que reconhecem as mulheres como oprimidas. É a afirmação de que as relações entre homens e mulheres não são inscritas na natureza e, portanto, são passíveis de transformação. Como movimento de mulheres, estou entendendo que se tratam de movimentos cujas reivindicações não são de direitos específi­ cos das mulheres. Trata-se de movimentos sociais cujos componentes são, em sua maioria, mulheres. Ver, a esse respeito, HIRATA, H. et. al. Dictionnaire critique du féminisme. Paris! Presses Universitaires de France, 2000, p. 125-130. Por movimentos gays e lésbicos estou entendendo as lutas que exigem que a sociedade reconheça indivíduos que consideram seus relacionamentos íntimos, com pessoas do mesmo sexo, como essenciais à sua identidade pessoal. No entanto, convém destacar que algumas lésbicas não querem ser consideradas pertencentes ao movimento gay. Querem ser identificadas como mulheres que se relacionam sexual e afetivamente com outras mulheres e que suas atitudes são “um ato político”. Ver. ARRIOLA, E. R. Desigualdades de gênero: lésbicas, gays e teoria legal feminista. Estudos Feministas, v.2, n.2, p.388-427,1994. 5 O feminismo, como movimento social visível, tem vivido algumas "ondas”. O feminismo de “primeira onda” teria se desenvolvido no fim do século XIX; centrado na reivindicação dos direitos políticos - como o de votar e ser eleita -, nos direitos sociais e económicos - como o de trabalho remunerado, estudo, propriedade, herança. O feminismo chamado de “segunda onda surgiu depois da Segunda Guerra Mundial, e deu prioridade às lutas pelo direito ao corpo, ao prazer, e contra o patriarcado - entendido como o poder dos homens na subordina­ ção das mulheres. Naquele momento, uma das palavras de ordem era: "o privado é político”. Convém lembrar que há discussões sobre a quantidade de períodos em que se dividiria a tra­ jetória do feminismo. Enquanto algumas autoras, e entre elas eu me incluo, definem a existên­ cia de duas ondas . Outras autoras, como Ana de Miguel Álvares, relacionam três grandes “blocos" da trajetória do feminismo. Ver ÁLVAREZ, A. de M. História do feminismo. Dis­ ponível em: www.creatividadfeminista.org. Ver, também, DELPHY, C. Patriarcat (Théories du) In: HIRATA, H. et al. (Org.). Dictionnaire critique du féminisme. Paris: PUF, 2000.

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A categoria “mulher”, presente de forma interdisciplinar em trabalhos acadêmicos, principalmente no fim dos anos 1970, foi, inicialmente, for­ mulada pelos movimentos sociais, tornando-se palavra de ordem e forma de identificação. A presença desta palavra, formulada como identidade, por sua vez teve uma trajetória que começou com a prática de formação de “grupos de consciência” . Esta prática foi uma técnica iniciada nos Estados Unidos, por volta de 1966-1967, chamada de bitch session, formada somente por mulheres. Pre­ tendia a expansão da consciência. Cada participante de uma dessas seções deveria, também, tornar-se uma formadora de outro grupo de consciência.6 As práticas foram desenvolvidas no que se chamou, nos Estados Unidos, de “feminismo radical” . Tais grupos consistiam em reuniões informais, realizadas em geral na casa das pessoas, mas não somente: podiam ser no escritório, no porão de uma igreja, em um café. Constituíram a base do movimento de Libertação da Mulher” dos fins da década de 1960 e início da de 1970, sendo tributário dos movimentos negros, estudantis e de contracultura.7Eram baseados em pequenos grupos, dos quais participavam apenas mulheres. A razão era que consideravam que a presença de homens dificultava que as mulheres falas­ sem sem éntraves. Tratava-se de conversas que se iniciavam com as expe­ riências vividas pelas mulheres. Alguns desses ciclos de conversas adotaram a metodologia de focalizar diferentes etapas da vida: a infancia, o período em que veio a primeira menstruação; a juventude; o casamento; quando fi­ zeram abortos; os partos; a relação com o marido; a menopausa, e assim por diante. Nenhum aspecto da existência das mulheres era deixado sem dis­ cussão. O. pressuposto era de que o pessoal é político. Ou seja, a vida pes­ soal de cada um é politicamente estruturada com lutas viscerais de poder”.8 Mulheres urbanas de camadas médias criaram grupos de consciência que se reproduziram em diferentes países. Formaram, assim, um movi-

6 ERGAS, Y.. O sujeito mulher. O feminismo dos anos 1960-1980. In: DUBY, G. ePERROT, M. História das mulheres no Ocidente. Porto: Edições Afrontamento; São Paulo: Ebradil, 1995, p.583-611. 7 É também desta época a publicação de pesquisas sobre práticas sexuais. Relatórios destas pesquisas tornaram-se livros e foram traduzidos para várias línguas. A este respeito, ver NECKEL, R., 2004. 8 FARRELL, A. E., 2004, p.37-8.

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HISTORICIZANDO O GÊNERO

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mento internacional, expresso em manifestações, lutas por mudanças legis­ lativas, publicação de periódicos que, coincidentemente ou não, possuíam em geral título semelhante. Na pesquisa que realizamos,9encontramos seis periódicos que circularam nas décadas de 1970 e 1980 com nome seme­ lhante. Assim, é possível encontrar, além do boletim Nosotras, de Paris,10o periódico Nós Mulheres, de São Paulo, Brasil.11 Na década de 1980, é pos­ sível encontrar a revista Nos/Otras, de Santiago do Chile,12 o Nosotras,13 da Cidade do México, o Nosotras que nos queremos tanto...14 Ainda en­ contramos o periódico Noidonne, de Roma, Itália.15Muitos dos periódicos, diziam, eram produzidos por um ‘Coletivo de Mulheres”, ou representava um Círculo de Mulheres”. O que se observa, aqui, é a referência a co­ letivos, círculos, enfim, que lembram a forma como se organizavam estes grupos de consciência”. E mais, se utilizam da mesma identificação: no caso da língua espanhola, de um pronome feminino; no caso da língua por­ tuguesa e italiana, do recurso à palavra mulheres ou donne, para dar o mes­ mo sentido ao título. —

A organização dos grupos tinha, como objetivo, “unir as mulheres, para estabelecer estreitos laços de amizade e solidariedade entre elas mesmas”. Assim, o objetivo final seria, pelos pequenos grupos, formar "coletivida­ des revolucionárias”. Neste caso, as pessoas deveriam perceber que, "assim como os problemas da mulher não são de índole privada e pessoal, tampou 9 Os dados para este texto são originários da pesquisa Revolução do Gênero: apropriações e identificações com o feminismo (1964-1985). Iniciada em março de 2004, coordenada por mim, conta com a participação da profa. Roselane Neckel, e, a partir de 2006, com a ex­ pansão da pesquisa para o Cone Sul, incorporou a profa. Cristina Scheibe Wolff e o prof. Marcos Montysuma. Conta, ainda, com os seguintes estudantes, por ordem alfabética: Gabriela Marques, Gabriel Jacomel, Juliano Silveira, Maria Cristina Athayde, Soraia de Mello, Vendiana Oliveira. Conta com apoio financeiro do CNPq. Os acervos onde estes pe­ riódicos foram encontrados são: Centro de Informação da Mulher (CIM), em São Paulo, e Bibliothéque Marquerite Durand, em Paris. 10 Circulou entre 1974 e 1976. 11 Circulou entre 1976 e 1978, e foi publicado sob a responsabilidade da Associação de Mulhe­ res de São Paulo. 12 Editado pelo Circulo de Estúdios de la Mujer. 13 A publicação era de responsabilidade da Associación de Trabajadoras Unidas. 14 Editada pelo Coletivo de Feministas Lesbianas de Madrid. 15 Começou em 1944, e se estendeu até 1981 como boletim. Em 1981, criou uma revista com o mesmo nome, que continua circulando até hoje. Era de responsabilidade da Cooperativa: "Libera Stampa”.

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co seria a sua solução”. Deveriam, então, passar de uma "autoconsciência pessoal para uma consciência de grupo, fazendo a transição do pessoal para o político”.16 Convém lembrar que grande parte destas mulheres que tomaram a ini­ ciativa de se reunir em “grupos de consciência” tinha participado, junta­ mente com os homens, de diversos movimentos sociais que lutavam contra o racismp, pelos direitos civis, contra a guerra do Vietnã, contra a corrida armamentista; ou, no caso das latino-americanas, a luta pelas transfor­ mações sociais e contra as ditaduras. Estas relatam que, nas reuniões dos movimentos sociais, a sua palavra era desqualificada. Suas opiniões eram desconsideradas. E era justamente para fugir destas desqualificações que as mulheres passaram a integrar grupos nos quais a fala de cada uma era estimulada e qualificada. Tratava-se, portanto, de um movimento de “singularização”17 das mulheres em relação aos homens e, conseqúentemente, de constituição de identificações.18 O movimento de mulheres e feministas de “Segunda Onda” constituiu uma identificação: a de “mulher”, separada da de ho­ mem”, como ser universal. Elas estavam afirmando que eram diferentes dos homens, ao mesmo tempo que buscavam a igualdade com eles. Tratase, como já sabemos, de um paradoxo. E este, já muito bem discutido por JoanScott.19 Foi dessa maneira que “mulher” tornou-se uma palavra de ordem. Esta categoria era pensada em contraposição à palavra “homem”, considerada universal, ou seja, quando se queria dizer que as pessoas são curiosas, por exemplo, dizia-se de forma genérica “o homem é curioso”. Aqui, a palavra homem pretendia incluir todos os seres humanos. Até hoje, é muito comum em nossa fala ou na escrita, quando nos re­ ferimos a um grupo de pessoas, mesmo sendo em sua grande maioria mu-

16 Ibidem, p.63-4. 17 O sentido, aqui, de “singularização”, está seguindo as discussões de GUATTARI, F., e ROLNIK, S. Micropolitica. Cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. 18 A idéia de identificação, neste texto, é baseada em HALL, S. Quem precisa da identida­ de? In: SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 103-33. 19 SCOTT, J. W. A cidadã paradoxal. As feministas francesas e os direitos do homem. Florianópolis: Mulheres, 2002.

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Todo este debate fez ver que não havia a “mulher", e sim as mais di versas mulheres”, e que aquilo que formava a pauta de reivindicações de umas, nao necessariamente formaria a pauta de outras. Afinal, as sociedaes possuem as mais diversas formas de opressão e o fato de ser uma mulher nao a torna igual a todas as demais. Assim, a identidade de sexo não era su ciente para juntar as mulheres em torno de uma mesma luta. Isso fez com que a categoria “mulher" passasse a ser substituída, em várias reivinícaçoes, pela categoria “mulheres”, respeitando, assim, o pressuposto das múltiplas diferenças que se observavam dentro da diferença. E, mais: que a exp ícaçao para a subordinação não era a mesma para todas as mulheres, e nem aceita por todas. Mesmo assim, era preciso não esquecer que, mesmo prestando atenção nas diferenças entre as mulheres, não era possível esque­ cer as desigualdades e as relações de poder entre os sexos.2728 Convém destacar que, independentemente de usar a categoria “mulher” ou mulheres , a grande questão a que todas queriam responder, e que buscavam nas diversas ciências, era o porquê de as mulheres, em diferen­ tes sociedades, serem submetidas à autoridade masculina, nas mais diversas ormas e nos mais diferentes graus. Assim, constatavam, não importava o que a cultura definia como atividade de mulheres: esta atividade era sempre esquahficada em relação àquilo que os homens, da mesma cultura, faziam. 01 dessa forma que, também nos trabalhos acadêmicos, e entre eles os a r istoria, micialmente a categoria de análise mais usada foi, exatamen­ te, mu er . Foi com essa categoria que as historiadoras e historiadores procuraram integrar, na narrativa que se fazia da história da humanidade, a presença das mulheres. Foi, também, buscando mostrar a diferença no inenor da categoria “mulher” que passaram a utilizar a palavra “mulheres”. Mas não foi a história a pioneira nestas discussões. Na primeira metade do século XX, a antropóloga Margareth Mead afirmava que cada sociedade umana usava a diferença sexual como argumento na constituição dos papéis sociais. Entretanto, diz ela, estes usos são diferentes em cada sociedade.29 27 ™ ™ l i DE

Éd. de la Martinièie, iOO, p l í ) ,

28 A categoria "papel aocial" p m u p f c

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Ela estava, então, separando sexo - considerado dado biológico - do tem­ peramento - definido pela cultura. Em 1949, a filósofa Simone de Beauvoir, em O segundo sexo, usava a cate­ goria “mulher” para discutir, nos referenciais do existencialismo, a constitui­ ção da “mulher” como ser social. “Não se nasce mulher, toma-se”, frase em­ blemática, inúmeras vezes citada, promovia aprofundado estudo, retirando da biologia e levando para a cultura e para a história as justificativas do com­ portamento da “mulher”. Mas Beauvoir não era historiadora; em seu livro, comm aisdemil páginas, ela dedica à história da mulher apenas uma pequena parte: 125 páginas. Seus argumentos, hoje questionados pelas historiadoras, era de que a “mulher” fora sempre submetida aos homens, e que as poucas que conseguiram fugir da submissão não legaram para as outras as conquis­ tas que alcançaram. Para ela, a transformaçao viria com a luta coletiva. Para escrever a história da Mulher, Beauvoir usou uma historiografia car­ regada de preconceito, e embora abordasse os textos de forma critica muito do sexismo aí presente foi incorporado por ela.2' Enquanto, para a mihtancia do movimento de mulheres e feministas, o livro de Simone de Beauvoir foi muito importante, as historiadoras não se apropriaram dele como fizeram outras disciplinas. Beauvoir, certamente pela influencia de Levis-Strauss, foi vista pelas historiadoras como tendo uma perspectiva a^historma^Obras importantes para a historiografia das mulheres, como as de Michelle ^ r r o t e Georges Duby,34 não citam O segundo sexo de Simone de Beauvoir. Em 1979 a socióloga Andrée Michel alertou para a ausência de perso­ nagens femininos na história recente da França. Em Ofermmsmo mostrava que, embora inúmeras mulheres francesas tivessem participado do esforço “ I T i i X Ú v Õ Í R i r d e . O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do f J T 1967 O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro s.d. 31 PANTEL P S P W AGNER-HASEL,B.L’Antiquité.In:GALSTER,I.(Orgs.). inwne deBJuvoi’r Le Deuxième Sexe. Le livre fondateur du férmnisme modeme en situation. Parrs. Éditions Champion, 2004, p.l2L 3Y

^

elementares do parentesco.

33 N robm tle^ERRO T0^ (Org.). Une histoire desfemmes est-elle possible? Paris; Marseille: £ 5 1984, o livro de Simone de Beauvoir não é citado como importante p . a a h,to ® OPT1Z C Moyen Ãge et Ancien Regime. In. GALo 1 C.K, .

baudeeot.

« f * « * . Paria,

os indivíduos

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sociedade e o

34

e outros ensaios. São Paulo: T piras 1989 DUBY, G. O cavaleiro, a mulher e o padre. Lisboa. Dom Quix

' irSnS; 8 » p““*•*» e não cita Simone de Beauvoir. 35 OPTIZ, C. In: GALSTER, I. (Org.)., op. cit.

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para pôr fim às guerras coloniais —e ela as nomeia a disciplina História delas se esqueceu, trazendo apenas nomes masculinos e dando visibilidade para algumas enfermeiras, pelo fato de elas desempenharem função aceita pelos homens como feminina.36 Convém lembrar que “entrar para a História” tem sido um valor dispu­ tado. A antiga forma de escrever a História, costumeiramente chamada de positivista , ou às vezes “empirista”, dava destaque a personagens, em ge­ ral masculinos, que tinham de alguma forma participado dos governos e/ou de guerras. Para muitas pessoas, esta era uma forma de “imortalidade”. Per­ tencer a esta grande narrativa significava, e ainda significa, prestígio. Elizabeth Fox Genovese37chama este tipo de história de “história de governantes e de batalhas . Nesta história, afirma ela, não havia lugar para as mulheres. Mas não era só para mulheres que não havia lugar: também não havia lugar para quem não ocupava cargos no Estado ou não dirigia guerras, não im ­ portando se fossem homens ou mulheres. Nesta perspectiva da “história de governantes e de batalhas , as mulheres só eram incluídas quando ocupa­ vam, eventualmente, o trono (em caso de ausência de filho varão) ou, então, quando se tornavam a “face oculta” que governava o trono ou a República, por trás das cortinas, dos panos, do trono ou seja lá do que for,38 em clara insinuação sensual/sexual de que as coisas são decididas nos leitos de aman­ tes. Estes leitos costumam ser considerados os responsáveis pelas “grandes” decisões da História, e promovem a queda ou a ascensão de governantes. Carregadas de estereótipos, as análises reforçavam mitos ora da supre­ ma santidade, ora da grande malvadez, das poucas mulheres que ocupam algum cargo de destaque nos governos e/ou nas guerras. Engrossam este panteão as rainhas, as princesas e as donzelas guerreiras, das quais Joana D Arc é uma espécie de arquétipo do “bem”, enquanto Lucrécia Borgia, por exemplo, é considerada um exemplo do “mal”. Nessa forma de escrita da história, com base principalmente em fontes narrativas oficiais, não pode haver lugar para a categoria “gênero”, mas apenas para a categoria “mulher”, vista como categoria universal. Nesta perspectiva, 36 MICHEL, A. O feminismo-, uma abordagem histórica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p.78. 37 FOX-GENOVESE, E. Cultura e consciência na história intelectual das mulheres eúropéias. In: The joumal ofWomen in culture and society (Printed by the University of Chicago) v 12 n.31,1987, p.S29-47. ' ’ 38 PERROT, M. As mulheres, o poder, a história. In :___ _ . Os excluídos da história: operá­ rios, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.168.

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algumas historiadoras e historiadores, investindo na onda do movimento fe­ minista, tentaram “resgatar”, para a História, a narrativa da vida das “grandes mulheres”. É exemplo dessa abordagem um dicionário, recentemente publi­ cado, que se intitula: Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade, biográfico e ilustrado.39 Ele é fruto de um projeto, cujo título emprega a cate­ goria “mulher”. Chama-se “Projeto Mulher - 500 anos por trás dos panos”. Como se pode observar, novamente aparece a metáfora do poder escondido, nele, há novecentos verbetes com dados biográficos de mulheres brasileiras. Não pretendo, aqui, questionar a riqueza e utilidade desta obra, que aliás é amplamente reconhecida. Quero, apenas, alertar que o dicionário, publicado em 2000, mostra-nos que o fato de várias historiadoras passarem a usar a categoria “mulheres” e/ou “gênero”, não significa que mulher não continue sendo usada, seja nas narrativas históricas, seja em movimen­ tos sociais. Ou seja: quero deixar claro que as categorias que estou historicizando não formam uma evolução na direção da categoria mais correta . Entre as historiadoras e os historiadores que passaram a seguir a tradi­ ção da historiografia dos Annales - que pretendia ampliar o leque de fontes e observar a presença de pessoas comuns - , tomou-se mais fácil escrever uma história que incluísse as mulheres. A proposta do método regressivo de Marc Bloch em seu livro-testamento O ofício do historiador,40 permite-nos pensar o passado não só pelas questões do presente, como, também, observar outras fontes, além das unicamente oficiais e narrativas. Assim, com os pés planta­ dos em seu tempo, a historiadora ou o historiador que se engaja nesta tradiçao não poderia ficar alheia (sic) aos movimentos sociais das mulheres em suas múltiplas configurações, nos múltiplos feminismos que, desde meados do século XIX, reivindicavam direitos e o fim das hierarquias baseadas no sexo. Nessa perspectiva, um novo acervo de fontes tornou-se possível para a escrita da História. Foi nesse sentido que, escrevendo na década de 1980 do século XX, Maria Odila Leite da Silva Dias perguntava, em seu livro, que se tornou base para a nova historiografia, se o que tornava difícil a história das mulheres era a ausência de fontes ou a invisibilidade ideológica destas. E a proposta era a de buscar as minúcias, de ler nas entrelinhas, de garimpar o metal precioso das fontes em meio a abundante cascalho.41Tem sido dessa forma que inúmeras pessoas têm escrito a história das mulheres. 39 SHUMAHER, S. e BRAZIL, E. V. Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 ate a atualidade. 2 .ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. . . . • v . Qí,nl 40 BLOCH, M. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, z ju c 41 DIAS, M. O. L. daS. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 19 .

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O HISTORIADOR E SEU TEMPO

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Na trilha da História das Mulheres, muitas pesquisadoras e pesqui,. dores tem procurado destacar as »,vencias comum,, os trabalhos, as i„, i» sobrevivências, „ resistências das mulheres no passado. Assim desm cam-se, no plano internacional da historiografia, os nomes de Michelle Per rot, Georges Duby, Françoise Thébaud, Joan Scott, June Hamier, N ,a i'e emon Davis, para c ta r as estrangeiras, e de Maria Odila da Silva Dias Margareth Rago Mir.am Moreira Leite, Rachel Soihet, Mar,ha de A b™ Esle.es, Mary Del Pnore, E„, de Mesquita Sâmara, Leila Algranti Ma na Lucia de Barros Mott de Melo e Souza, Maria Izild, Santos de Matos Luciana Figueiredo, Temis Parente, Lídia Viana Possas e eu mesma,” par, citar algumas das brasileiras.45 P 12 P,“

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43 M0/ r ÍtaSaL,0braScdaSaUt0raSeaUt0rescitadas/os;™treestas destacamos-PERROT w Mulheres pubhcas. Sao Paulo: Ed. Unesp, 1998; DUBY, Georees e PERROT M 4 i^ ' res e L^boa, Portugal: Ed. Dom Quixote, 1995- T H É B A U D T S " j , mères donnaient la vie. - La matemité en A v ! 7 ° ' R Quand nosg™ndUniversitaires de Lyon 1986- SCOTT I W A eux'guerres ^ y ° n ■^ resses • „ direitos do h o i l , '. *— Z T t T J r °-A luta PdoS dveitos da mulher no B asil IS S ofoT O F lor.L l" Editora Mulheres; Santa Cruz/RS: Edunisc, 2003. «onanopolis: ^

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A escrita da história das mulheres no Brasil, assim como em outros paí­ ses teve relação direta com o movimento de mulheres e feministas que aqui se desenvolveu. O contexto da ditadura militar deu para este movimento, no Brasil uma configuração diferente daquela que se encontra em outros países como na França ou nos Estados Unidos. Aliás, foi exatamente o contexto da ditadura que, ao levar para o exílio várias militantes de movi­ mentos de resistência, fez com que estas tivessem contato com o feminis­ mo Dessa forma, foram de apropriação e de repulsa os sentimentos que permearam a» relações, nas décadas de 197» . 1980, entre os f.mmismos que se constituíram no Brasil e os organizados na Françae nos Estados Uni­ dos No Brasil, um feminismo considerado ‘Verdadeiramente nacional ,e afirmado inúmeras vezes como "nunca contra os homens”, trouxe a marca do medo da ditadura militar e da tentativa de controle por parte de gru pos e partidos de esquerda. E. mais. a rejeição a tudo que fosse estrangeiro. L d e n tem e n te . nesse contexto, as idéias vindas da França sofreram menor rejeição que aquelas que vinham dos Estados Unidos - prmcpal alvo da resistência, acusado de interferência imperialista , Assim, o feminismo, no Bras.l, que se constituiu na chamada Segunda O nda” . teve, como uma de suas caraterísticas, a criação de grupos de reflexão” formados apenas por mulheres, teve configurações diferentes: o nacionalismo e as relações que as mulheres envolvidas mantinham com os grupos de esquerda do período promoveram uma tal dewal.ficaçao desse tipo de atividade que ela acabou por não constituo, no Bras.l, um fato, grande importância na identificação com o feminismo, como ocorreu em outros países. Mesmo assim, surgiram, a part.r de 1972. g ™ ^ e cons­ ciência „„ Brasil. Adaptaram a metodologia qne hav.am aprend.do, muitas destas mulheres, em viagens que fizeram aos Estados Umdose * £ ■ » * Europa Ocidental. Liam uma literatura que estava sendo publicada no ex terior.com pouca tradução no Brasil. Foi nesse contexto que, em Sao Paulo, em 1972, Célia Sampaio e Walnice Nogueira Galvão, de regresso dos Es dos Unidos e d» Europa, chamaram algumas pessoas par» conversar «obre „ movimento feminista com o qual tiveram contato « . — O grupo foi formado por professoras universitárias ligadas a militanc p rica de esquerda, cujas idades variavam entre 30 e 38 anos. A matona tinha grupos de “pequeno-burguesas”.

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HISTORICIZANDO O GÊNERO

militado em partidos políticos, ou, então, era parenta, filha ou esposa de gente envolvida com a luta de resistência à ditadura.47Entre elas estava uma historiadora que mais tarde se tornou formadora de outras pesquisadoras da História das Mulheres: Maria Odila Leite da Silva Dias. Maria Odila narra que o grupo de São Paulo, do qual participava, era chamado de “grupo de conscientização feminista”. As reuniões ocorriam semanalmente na casa de uma pessoa, em rodízio. Aí, faziam leituras fe­ ministas.48 Os livros que liam tinham vindo na bagagem de várias das mu­ lheres que haviam estado, principalmente, na França e nos Estados Uni­ dos. Eram, assim, resultado do movimento feminista, que ganhava espaço nas ruas e na mídia em geral, de diversos países da Europa, e nos Estados Unidos. No Brasil, entretanto, tudo isso era novidade. Conta, ainda, que participaram do grupo algumas pessoas que, hoje, são famosas no campo do feminismo, como Albertina Costa e M arta Suplicy. O grupo durou até 1975.49 Maria Odila narra, também, como foi sua identificação com o feminis­ mo nos Estados Unidos. Quando se divorciou, em 1968, foi para Yale, a célebre universidade americana. Lá, embora estivesse fazendo uma tese de doutorado sobre outro assunto, passou a se interessar pelo feminismo. Co­ meçou a comprar livros e a descobrir algumas editoras. Quando voltou para o Brasil, passou a integrar o grupo de consciência.50 Para a historiografia brasileira, a presença de Maria Odila nestes grupos representou também a escrita de um dos trabalhos que mais influenciaram a História das Mulheres no Brasil, o livro Quotidiano e poder. Mônica Raisa Schpun, escrevendo sobre a história das mulheres e do gênero no Brasil,51 inclui a autora entre as precursoras e formadora de toda uma geração de historiadoras das mulheres. Evidentemente, outras historiadoras também 47 ERGAS, Y. O sujeito mulher. O feminismo dos anos 1960-1980. In: DUBY, G. e PERROT, M. História das mulheres no Ocidente. Porto: Edições Afrontamento; São Paulo: Ebradil, 1995, p.583-611. 48 Maria Odila Leite da Silva Dias nasceu em São Paulo, em 1940. Hoje é professora da PUC-SP e reside em São Paulo. Entrevista realizada em 24.6.2005, em São Paulo, por Roselane Neckel (transcrita por Veridiana Oliveira). 49 Ibidem. 50 Ibidem. 51 SCHPUN, M. R. Uhistoire desfemmes et du genre au Brésil: enquête sur trois générations. Clio - Histoire, Femmes et Sociétés. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, n.19, p.193207, 2004.

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foram responsáveis pela formação de profissionais neste campo; entretanto, Maria Odila destaca-se pelo pioneirismo.52 A trajetória de Maria Odila - contato com grupos feministas dos Esta­ dos Unidos e formação de grupos de consciência no Brasil - segue o roteiro da própria prática destes grupos, ou seja, de reprodução em rede. E, assim como houve este grupo em São Paulo, no Rio de Janeiro também se formou um grupo a partir de 1972. De acordo com Annete Goldberg, no Rio, em vez de grupo de consciência ou de autoconsciência, passaram a chamá-los de “grupo de reflexão”, para não confundir com “militância política”.53 O primeiro grupo do Rio foi formado por Branca Moreira Alves, e du­ rou até 1973.54Ele teve, principalmente, a influência do feminismo dos Es­ tados Unidos. Branca Moreira Alves estudava em Berkeley quando entrou em contato com o feminismo, participando, por três meses, de um dos gru­ pos de reflexão.55 Ao chegar ao Brasil, decidiu usar a mesma metodologia, reunindo mulheres. Fez, inicialmente, um só grupo com mulheres das mais diferentes idades. Entretanto, a diferença de geração estava inibindo as pes­ soas. Ela, então, dividiu o grupo entre as da geração de sua mãe - acima de 45 anos - e as da geração dela. Este grupo das mais jovens durou de 1972 até o fim de 1973.56 Resumindo, é possível perceber que no feminismo que se desenvolveu no Brasil, a categoria “mulher” esteve presente na constituição de grupos de “consciência” ou de “reflexão”, no início da década de 1070. Também era a palavra "mulher” que designava os eventos que passaram a ocorrer, a partir de 1975, com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU), após a instituição por esta do Ano Internacional da Mulher. Os eventos, entretan­ to, tiveram como característica o controle pelos grupos de esquerda que lu52 Além de Maria Odila, Mônica destaca outras historiadoras que têm sido responsáveis pela formação de novas pesquisadoras, entre elas, Rachel Soihet, Mary Del Priore, Cristina Scheibe Wolff, Margareth Rago e eu. Eu acrescentaria, ainda, Maria Izilda Matos, Eni de Mesquita Samara, Cleci Favaro, Marlene de Faveri, entre outras. 53 GOLDBERG, A. Feminismo e autoritarismo: a metamorfose de uma utopia de liberação em ideologia liberalizante. 1987, p.108-9. Dissertação (Mestrado) - IFCS, UFRJ, Rio de Janei­ ro. Apud SOHIET, R. Defrontando-se com os preconceitos: mulheres e a luta pelo controle do corpo, p.3, inédito. 54 PIN TO, C. R. J. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003, p. 50-1. 55 GOLDBERG, A., op. cit., p.101. 56 Ibidem.

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tavam pelo fim da ditadura militar no Brasil e pela anistia. Brasil Mulher,57o primeiro periódico do movimento de mulheres, deste período, exemplifica bem o uso da categoria “mulher”. Entretanto, já em 1976 surgia o jornal Nós Mulheres,58mostrando mudança nas palavras de ordem do movimento, acompanhando, portanto, as mudanças no contexto das discussões inter­ nacionais. A partir do fim da década de 1970, com o retorno das exiladas e o estabelecimento de diálogos mais fortes entre os feminismos no Brasil e o movimento internacional, o movimento ganhou nova configuração. O jornal Mulherio,59 surgido na década de 1980, é representante deste perío­ do, em que a categoria “mulher” já havia sido questionada e “mulheres” pretendia designar as diferenças no interior da diferença constituída pela categoria “mulher”. Nos meios acadêmicos a década de 1980 significou, no Brasil, o início da formação de Grupos e Núcleos de Estudos da Mulher. Estes começaram com denominações que acompanhavam a formação de categorias de análise pelos movimentos de mulheres e feministas. Assim, se começaram deno­ minando-se “Estudos da Mulher”, passaram depois a empregarr a palavra “mulheres”, e posteriormente “gênero”. Pesquisas realizadas na década de 1990 apontavam a existência de quase 150 núcleos60de estudos sediados em universidades. Outra pesquisa de 1997 constatou a existência de 147 deles.61 Para muitas, o engajamento nos Núcleos de Estudos significava e signi­ fica a continuidade do engajamento militante, que haviam experimentado nos movimentos sociais nos quais haviam atuado. Na academia, tentam in­ terferir, mediante problemáticas inovadoras, questionando os pressupostos das disciplinas em que atuam. Esta atuação, entretanto, nunca é tranquila. Joan Scott,62por exemplo, falando da Associação de Historiadores nos Esta­ dos Unidos, lembra das dificuldades que as historiadoras que trabalhavam 57 58 59 60

Este jornal teve publicado seu número 0 em 9 de outubro de 1975, e circulou até 1980. Este jornal passou a ser publicado a partir de junho de 1976, e durou até 1978. Este jornal circulou entre 1981 e 1987. COSTA, A. A. A. e SARDENBERG, C. M. B. Teoria e práxis feminista na academia. Os núcleos de estudos sobre a mulher nas universidades brasileiras. Revista Estudos Feministas, número especial, p.389,1994. 61 GROSSI, M. P. e MIGUEL, S. M. Mapeamento dos grupos e organizações de mulheres/gêne­ ro/feministas dos anos 90 no Brasil. Florianópolis: Antropologia em Primeira Mão, n.5, s/d. 62 SCOTT, J. História das mulheres. In: BURKE, P. (Org.). A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992, p.63-96.

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em pesquisa de História das Mulheres tiveram para que sua investigação fosse considerada um conhecimento legítimo. Assim como no movimento feminista, foi do interior da categoria “mu­ lheres” que surgiu a categoria gênero; foi, também, entre as historiadoras que escreviam sobre história das mulheres que a categoria de análise “gêne­ ro” passou a ser empregada. Estas foram inspiradas, em sua maioria, pelo texto, muitas vezes citado, de Joan Wallach Scott: “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”,63publicado no Brasil em 1990. Entretanto, convém salientar que, antes mesmo que os textos de Joan Scott fossem apropriados pelas historiadoras, a discussão sobre “gênero” já se dava em outras disciplinas. Afinal, do que estamos falando quando dizemos “relações de gênero”? Estamos nos referindo a uma categoria de análise, da mesma forma como quando falamos de classe, raça/etnia, gera­ ção. Mas, o que isso significa? Todas/os nós sabemos que, em gramática, quando perguntamos pelo gênero de uma palavra, a resposta, invariavelmente, em português, é: mas­ culino ou feminino. Em português, não temos o neutro, como no latim. Como exemplo, vamos analisar gramaticalmente a palavra cadeira: ela é substantivo, singular e feminino, não é? E a palavra mar: em português, é masculina, mas em francês —la mer —é feminina. Em português, como na maioria das línguas, todos os seres animados e inanimados têm gênero. Entretanto, somente alguns seres vivos têm sexo. Nem todas as espécies se reproduzem de forma sexuada; mesmo assim, as palavras que as designam, em nossa língua, atribuem-lhes um gênero. E era justamente pelo fato de que as palavras na maioria das línguas têm gênero, mas não têm sexo, que os movimentos feministas e de mulheres, nos anos 1980, passaram a usar a palavra “gênero” no lugar de “sexo”. Buscavam, dessa forma, reforçar a idéia de que as diferenças que se constatavam nos comportamentos de homens e mulheres não eram dependentes do “sexo” como questão biológica, e sim, eram definidos pelo “gênero”, e portanto ligadas à cultura. O uso da palavra “gênero”, como já dissemos, tem uma história que é tributária de movimentos sociais de mulheres, feministas, gays e lésbicas. 63 SCOTT, J. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação eRealidade (Porto Alegre), 16(2), p .5-22, jul./dez. 1990.

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Tem uma trajetória que acompanha a luta por direitos civis, direitos huma­ nos, enfim, igualdade e respeito. Em 1968, Robert Stoller, em Sex and Gender, empregou a palavra “gê­ nero” com o sentido de separação em relação ao "sexo”. Neste livro, Ro­ bert Stoller estava discutindo sobre o tratamento de pessoas consideradas “intersexos e transexuais”, enfim, tratava de intervenções cirúrgicas para adaptar a anatomia genital (considerada por ele sexo) com sua identidade sexual escolhida (considerada gênero).64 Para o autor, o “sentimento de ser mulher” e o “sentimento de ser homem”, ou seja, a identidade de gênero, era mais importante do que as características anatômicas.65 Neste caso, o “gênero” não coincidia com o “sexo”, pois pessoas com anatomia sexual feminina sentiam-se homens, e vice-versa. Entretanto, diferentemente do que Robert Stoller propusera —ou seja, de que gênero era o sexo social/cultural e sexo se referia à biologia —, para Joan Scott, no artigo citado anteriormente, que ganhou muita acolhida no Brasil, o gênero é constituído por relações sociais: estas estavam baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e, por sua vez, constituíam-se no interior de relações de poder. Joan Scott, neste texto, retoma a diferença entre sexo e gênero, já apre­ sentada na década de 1960 por Robert Stoller; entretanto, ela o articula com a noção de poder. Assim, ela informa que sua definição de gênero tem duas partes ediversas subpartes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser distinguidas na análise. O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e o gêne­ ro é um primeiro modo de dar significado às relações de poder.66 Em artigo publicado em 1988, nos Estados Unidos, Joan Scott explicava como chegou a essa categoria. Informava, então, que “gênero significa o sa­ ber a respeito das diferenças sexuais ’, e este saber, dizia ela, era pensado no sentido que lhe dava Michel Foucault, ou seja, sempre relativo; seus usos e 64 STOLLER, R. J. Sex and gender. Nova York:. Science House, 1968, apud STOLCKE, V., op. cit., p.86 e MORAES, M. L. Q. Usos e limites da categoria gênero. Cadernos Pagu, n. 11, p.99-105,1998. 65 MORAES, M. L. Q., op. cit., p.99-105. 66 SCOTT, J.t op. cit., 1990, p.14.

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significados “nascem de uma disputa política e são os meios pelos quais as relações de poder —de dominação e de subordinação - são construídas” .67 Assim, concluía Scott, “gênero é a organização social da diferença se­ xual.” Por outro lado, ela lembrava que gênero não refletia ou implementa­ va diferenças fixas e naturais entre homens e mulheres, mas “um saber que estabelece significados para as diferenças corporais”.68 Ela, então, alertava que a disciplina História não era apenas o registro, e sim a forma como os sexos se organizavam e dividiam tarefas e funções ao longo do tempo. A história era, ela mesma, responsável pela "produção sobre a diferença sexual”.69 Pois uma narrativa histórica que nunca é neu­ tra, e apenas relata fatos em que homens estiveram envolvidos, constrói, no presente, o gênero. A história, neste caso, é uma narrativa sobre o sexo masculino, e constitui o gênero ao definir que somente, ou principalmente, os homens fazem história. O que motivava a autora, ao teorizar sobre “gênero”, era a mesma coisa que motivava o movimento feminista e as historiadoras feministas a escre­ verem a história das mulheres, ou seja, “apontar e modificar as desigualda­ des entre homens e mulheres”. Assim, o que ela pretendia era propor uma análise sobre “como as hierarquias de gênero são construídas, legitimadas, contestadas e mantidas”.70 Para responder a esta questão, Scott apóia-se nos pós-estruturalistas,71 que se preocupam com o significado, pois enfatizam a variedade e a nature­ za política destes.72 Assim, desta perspectiva, ela propõe que a história seja escrita a “respeito de como os significados subjetivos e coletivos de homens e mulheres, como categorias de identidade, foram construídos”.73 Dessa forma, uma história feminista toma-se uma maneira de fazer a crítica da forma como esta história é narrada e como esta disciplina atua, 67 Este artigo foi traduzido e publicado no Brasil em SCOTT, J. W. Prefácio a Gender and politics of history. Cadernos Pagu, n.3, p.11-27, 1994. 68 Ibidem, p. 13. 69 Ibidem. 70 Ibidem, p. 14. 7 1 0 pós-estruturalismo questiona a ideia de uma estrutura fixa e objetiva de significado ou rela­ ções sociais - que eram a base do estruturalismo. Ver WOUTHWAIT, W. e BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento social do século X X . Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p.276. 72 SCOTT, J. W„ op. cit., 1994, p.17. 73 Ibidem, p.19.

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tornando-se um “lugar de produção do saber de gênero”.74Para quem quer escrever esta história, trata-se de observar os significados “variáveis e con­ traditórios” que são atribuídos à diferença sexual. Além disso, é preciso perceber em quais contextos políticos os significados da diferença sexual são criados e/ou criticados e, assim, verificar como, por exemplo, o “ver­ dadeiro homem” ou a “verdadeira mulher” são diferentes em cada período do passado, procurando sempre se diferenciar um do outro e, ao mesmo tempo, nunca coincidindo com as pessoas de “carne e osso”. 75 , Para as historiadoras, o uso da categoria de análise gênero significava, como lembrou a historiadora Natalie Zemon Davis, em 1974, combater o determinismo biológico, focalizando a relação entre homens e mulheres, compreendendo as significações do gênero no passado.76 Traduzindo: elas estão nos convocando para observar o que significava ser homem ou mulher no passado. O que levou Scott a discutir uma categoria de análise como o “gênero” foi, segundo ela, o fato de que as/os historidoras/es não são muito “treina­ dos” para ser “reflexivos ou rigorosos sobre sua teoria”, e que, por isso, ficou preocupada quando observou o pouco impacto da história das mulheres.77 São poucas as historiadoras e os historiadores que, no Brasil, têm refle­ tido sobre gênero como categoria de análise. O que mais se observa é seu uso em títulos de livros e de artigos. Nos textos, é comum que apareçam citações de autoras como Joan Scott78 e Judith Butler,79 sendo bem rara a prática da reflexão aprofundada sobre o assunto.80 74 Ibidem, p.25. 75 Ibidem, p .l6. 76 DAVIS, N. Womens History in Transition: the European case. Feminist Studies, v.3, 3-4, p. 83-103,1976. ApudTHÉBAUD, F. Genre et histoire. In: CHRISTINE BARD, C., CHRISTIAN BAUDELOT, C., JANINE MOSSUZ-LAVAU, J. Quand lesfemmes s’en mêlent - genre et pouvoir. Paris: Ed de la Martinière, 2004, p.44-63. 77 SCOTT, J. W., op. cit., 1994, p.14. 78 SCOTT, J., op., cit., 1990. 79 E muito citado o livro de BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da iden­ tidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 80 Algumas autoras se aventuraram nesta direção; entre elas, destacamos: DIAS, M. O. L. da S. Teoria e Método dos Estudos Feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano. In: COSTA, A., BRUSCHINNI, C. (Org.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro/São Paulo: Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, 1992, p.39-53. SAMARA, E. de M., SOIHET, R., MATOS, M. I. S. de. Gênero em debate: trajetórias e perspectivas na historio­ grafia contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997; MATOS, M. I. S. de. Estudos de gênero:

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Os textos de Joan Scott, como já vimos, passaram a ser traduzidos e pu­ blicados no Brasil a partir de 1990, e sua influência foi muito grande em diversas disciplinas e, também, na historiografia. Poucos são os trabalhos que discutem gênero que não a citam - mesmo que seja para refutá-la Al­ gumas historiadoras que escreviam sobre história das mulheres continua­ ram a fazê-lo; entretanto, usando a categoria gênero. O uso da categoria de análise “gênero” na narrativa histórica passou a permitir que as pesquisadoras e os pesquisadores focalizassem as relações entre homens e mulheres, mas também as relações entre homens e entre mu­ lheres, analisando como, em diferentes momentos do passado, as tensões, os acontecimentos, foram produtores do gênero. Foi dessa maneira que Cleci Eulália Favaro, falando das famílias italianas que migraram para o Rio Gran­ de do Sul, mostrou o estabelecimento de hierarquias no significado do que era ser feminina entre sogras e noras. Ou seja, o que Cleci focalizou foi a re­ lação de gênero entre mulheres. Neste caso, a sogra, na relação de poder com a nora, mostrava-lhe o quanto ela era “muito mais mulher” do que a nora.81 Rachel Soihet apontou a forma como o antifeminismo atua na constitui­ ção do gênero.82 Maria Bernardete Ramos Flores observou, na década de 1920 e 30, o reforço do gênero pelos discursos que enfatizavam a materni­ dade nas campanhas de regeneração nacional que se vinculavam à eugenia e à higiene.83 Françoise Thébaud refletiu sobre as duas guerras mundiais, perguntando até que ponto elas interferiram na constituição do gênero.84

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percursos e possibilidades na historiografia contemporânea. Cadernos Pagu, n .ll, p.67-75, 1998; SOIHET, R. História das mulheres e história do gênero. Um depoimento Cadernos Pagu, n .ll , p.77-87, 1998; RAGO, M. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu, n .ll, p.89-98, 1998. RAGO, M. Epistemologia feminista, gêneroe história. In: PE­ DRO, J. M. e GROSSI, M. P. Masculino, feminino, plural: gênero na interdisciplinaridade. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998, p.21-41. PEDRO, J. M. Relações de gênero na pesqui­ sa histórica. Revista Catarinense de História, n.2, p.35-44, 1994. COSTA, S. G. Gênero e história. In: ABREU, M. e SOIHET, R. (Org.). Ensino de história: conceitos, temáticos e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. FAVARO, C. E. Imagens femininas. Contradições, ambivalências e violências. Porto Alegre: Edipucrs, 2002. SOIHET, R. Violência simbólica. Saberes masculinos e representações femininas. Estudos Feministas, v.5, n .l, 97, p.7-29. RAMOS, M. B. O Brasil dos meus sonhos: feminismo e modernismo na utopia de Adalzira Bittencourt. Estudos Feministas, v. 10, n .l, p.l 1-37, 2002. THÉBAUD, F. A grande guerra. O triunfo da divisão sexual. In: DUBY, G. e PERROT, M. História das mulheres no Ocidente, v.5; O século XX, Porto: Afrontamento; São Paulo: Ebradil, 1995, p. 68.

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HISTORICIZANDO O GÊNERO

Inúmeras vezes já se afirmou que as guerras promoveram mudanças nas relações entre homens e mulheres, ou seja, que as guerras trouxeram mais oportunidades, para elas, de ganharem autonomia financeira, o que, conseqúentemente, levou à conquista de direitos políticos, reduzindo as hie­ rarquias de gênero. Será verdade? É isto que a historiadora citada aborda e questiona. Considera que as mudanças ocorridas foram apenas provisórias, e que, após a guerra, presenciou-se um retorno aos antigos significados do gênero, com reforço na rigidez das afirmações da diferença. Ou seja: é como se, após a guerra (período considerado de exceção), homens e mulheres ti­ vessem voltado a seus “devidos lugares”; assim, todas aquelas que haviam sido convidadas a participar de diferentes funções costumeiramente atribuí­ das aos homens, teriam sido convidadas a retornar para suas antigas ativi­ dades, ligadas àcasa e ao privado.85 Por outro lado, no Rio Grande do Sul, Aurea Tomatis Petersen,86 por exemplo, mostrou, em sua tese de doutorado, como as mulheres ingressa­ ram no Banco do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, em substi­ tuição aos homens que foram para a guerra, mudando, assim, a relação no interior do banco. Marlene de Faveri, em sua tese de doutorado, narra como homens e mulheres de diferentes etnias envolveram-se de maneira diferen­ ciada com o cotidiano da guerra, em Santa Catarina. Mostra como a guerra teve significado diferente para cada pessoa, em vista do gênero e da etnia.87 Por sua vez, várias autoras, como Margareth Rago, Maria Izilda Matos, Cristina Scheibe Wolff, Roselane Neckel, Mônica Schpun,88 entre outras, têm contribuído para o conhecimento da história das relações de gênero, fo­ 85 Ibidem. 86 PETERSEN, A.T. Trabalhando no banco: trajetória de mulheres gaúchas desde 1929.1999. Tese (Doutorado)- História, PUC-RS. 87 FAVERI, M. de. Memórias de uma (outra) guerra. Cotidiano e medo durante a Segunda Guerra em Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UFSC; Itajaí: Univali, 2004. 88 RAGO, L. M. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; RAGO, M. Entre a história e a Liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo: Unesp, 2001; MATOS, M. I. S. de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001; WOLFF, C. S. Mulheres da floresta: uma história do Alto Juruá - Acre (1890-1945). São Paulo: Hucitec, 1999; NECKEL, R. Pública vida íntima: a sexualidade nas revistas femini­ nas e masculinas(1969-1979). 2004. Tese (Doutorado)-História, PUC-SP. SCHPUN, M. R. Les Années folies à São Paulo: hommes et au temps de 1’explosion urbaine (1920-1929). Paris: L’Harmattan, 1997.

O H IS T O R IA D O R E S EU T E M P O

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calizando a maneira como o gênero se constitui em um ponto de apoio para constituições de subjetividades, políticas públicas e relações com a história. E, ainda nas mesmas discussões, Durval de Albuquerque Jr. vem dando historicidade às masculinidades no Nordeste.89 Além do uso das contribuições de Joan Scott, as historiadoras e histo­ riadores têm incorporado novas discussões do campo do gênero e partici­ pado dos debates teóricos que trouxeram o historiador Thomas Laqueur, a filósofa Judith Butler e a historiadora Linda Nicholson. É dessa forma que seus trabalhos têm colocado em questão a diferença entre sexo e gênero, enfatizando, ainda mais, o afastamento em relação ao essencialismo. Con­ vém destacar, ainda, que muito destes questionamentos são tributários dos movimentos gays e lésbicos. Um livro que tem sido, recentemente, muito citado pelas estudiosas do gênero, é o de Thomas Laqueur. O historiador da medicina, em 1992, pu­ blicou um livro chamado Making sex - body and gender from the greeks to Freud, publicado em espanhol em 1994 e em português em 2001. A grande novidade do livro era que, diferentemente de Stoller e de outros que se­ paravam sexo de gênero, ou de outras pesquisadoras que relacionaram o gênero com as “diferenças percebidas entre os sexos”, como é o caso de Joan Scott, que no caso dava antecedência ao sexo, colocando-o quase como um elemento pré-discursivo, Laqueur invertia a questão, afirmando que era o gênero quem constituía o sexo.90 O impacto de Laqueur foi mostrar o que Foucault91 falava sobre o saber como elemento de poder, e o que Scott articulava como constituindo o gê­ nero. Pela história da medicina, Laqueur mostrou como a diferença entre os sexos era uma invenção que remontava ao século XVIII. Ou seja, que até esta época havia o registro de um único sexo - o masculino; neste caso, a “mulher” era considerada um “macho incompleto”. De acordo com o autor, foi a partir de então que se reforçou a diferença, passando ao registro de dois sexos, considerados muito diferentes. Neste caso, de acordo com o autor, fo­ ram as relações de gênero que instituíram o sexo. Em suas próprias palavras: 89 ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. Nordestino - uma invenção do falo. Uma história do gênero masculino (Nordeste —1920-1940). Maceió: Catavento, 2003. 9Ó LAQUEUR, T. La construcción Del sexo: cuerpo y género desde los griegos hasta Freud. Madrid: Ed. Cátedra, 1994. 91 FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

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E ele natural, anatômico, cromossômico ou hormonal, e como deve a crí­ tica feminista avaliar os discursos científicos que alegam estabelecer tais “fa­ tos para nós? Teria o sexo uma história? Possuiria cada sexo uma história ou histórias diferentes? Haveria uma história como se estabeleceu a dualidade do sexo, uma genealogia capaz de expor as opções binárias como uma construção variável? Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos discursi­ vamente por vários discursos científicos a serviço de outros interesses políticos e sociais? Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma.95

Judith Butler está, então, questionando a própria categoria gênero como “interpretação cultural do sexo”. E mais: afirma, categoricamente, “gênero não está para a cultura assim como o sexo está para a natureza”. Dessa forma, a autora focaliza o sexo como resultado “discursivo/cultural”, e questiona a constituição do sexo como “pré-discursivo” e, portanto, anterior à cultura.96 Outra pesquisadora que também tem sido grande referência para as dis­ cussões entre as historiadoras, sobre o gênero, é Linda Nicholson. Seguindo as discussões de Foucault, Laqueur e Butler, ela lembra que separar sexo de gênero e considerar o primeiro essencial para elaboração do segundo pode ser, como queriam as feministas dos anos 1970, uma forma de fugir do de­ terminismo biológico, mas constitui-se, por sua vez, em um “fundacionalismo biológico”. Isto porque “postula uma relação mais do que acidental entre a biologia e certos aspectos de personalidade e comportamento”.97 Ou seja, “funda” sobre o biológico aquilo que a cultura estabelece como perso­ nalidade e comportamento de homens e mulheres. Assim, seguindo estas propostas teóricas, o sexo deixa de ser pensado como o significante sobre o qual se constrói o significado. O próprio significante é questionado em sua materialidade “neutra” . Nesta trilha, têm surgido trabalhos que focalizam a forma como a medicina lida com as crian­ ças hermafroditas, ou seja, quando os médicos “decidem” qual sexo será o “verdadeiro”, tendo por base o gênero. E assim que, em caso de dúvida, costuma-se dar à criança um “sexo” feminino.98 O que se está mostrando é a forma como as relações de gênero não só instituem o “verdadeiro sexo”, como atuam no regime de uma heterossexualidade obrigatória.99 A heterossexualidade obrigatória vem sendo discutida e questionada pelos estudos feministas e queers. A divisão sexual do trabalho, a formação cultural da diferença entre os sexos conduz para a heterossexualidade. Em um momento datado, a heterossexualidade tornou-se a “verdadeira expres­ são” do ser humano. Passa-se a exigir que haja coerência entre sexo, gêne-

92 LAQUEUR, T., op. cit., p. 23. 93 É importante destacar, embora não seja minha questão, neste texto, as discussões sobre a teoria queer, as quais têm se amparado nos aportes teóricos trazidos pelas discussões de Thomas Laqueur e Judith Butler. 94 BUTLER, J., op. cit. 95 Ibidem, p.25.

96 Ibidem. 97 NICHOLSON, L. Interpretando o gênero. Revista Estudos, v.8, n.2, p.9-41, 2000. 98 MACHADO, P. S. O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) natural. Cadernos Pagu, n.24, p.249-81, jan./jun. 2005. 99 Uma historiadora brasileira que tem trabalhado nessa perspectiva é Tânia Swain. Ver SWAIN, T. N. Feminismos: teorias e perspectivas. Textos de História: revista do Programa de pós-graduação em História da UnB. Brasília: UnB, 2000, v.8.1/2.

quase tudo que se queira dizer sobre sexo - de qualquer forma que o sexo seja compreendido - já contém em si uma reivindicação sobre o gênero. O sexo tanto no mundo do sexo único como no de dois sexos, é situacional: é explicável apenas dentro do contexto de luta sobre gênero e poder.92 Juntamente com este autor, outras autoras passaram a questionar a for­ ma como o gênero estava sendo pensado em relação ao sexo, pois, apesar da afirmação de que se tratava de coisas diferentes, era sobre o sexo biológico que se estava constituindo a identidade de gênero e, no caso dos integrantes dos movimentos gays e lésbicos, os termos não coincidiam.93 Foi nessa perspectiva que Judith Butler questionou a categoria gênero como calcada no sexo biológico, em Problemas de gênero.94Assim, seguindo a perspectiva de Foucault sobre o caráter discursivo da sexualidade, Butler propõe o que ficou sendo chamado “teoria performática”. De acordo com a teoria, a “performatividade” do gênero é um efeito discursivo, e o sexo é um efeito do gênero. Para chegar a esta questão, a autora pergunta: “o que é o sexo?” E con­ tinua perguntando:

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H IST O R IC IZ A N D O O G Ê N E R O

ro, desejo e prática sexual.100 Os estudos queer têm procurado questionar1 as identidades sexuais - aqui entendidas como constituídas por vários ele mentos como o genital, o gênero e as práticas eróticas. O que se pergunta é- 1 por que é necessário haver identidades sexuais? A proposta é criar lugares “1 de libertação das heterossexual idades compulsórias e de todo e qualquer -í enquadramento identitário que promova limitações.101 Com estes aportes, é necessário pensar que pesquisas estamos fazendo na História. Estamos usando a disciplina para reforçar a heterossexualidade I ao considerá-la norma? Como estamos observando os discursos da consti- | tuição do Estado? O que é generificado nestes discursos? Quais relações são feminilizadas e quais masculinizadas? ,. Ao observarmos, como profissionais da história, as práticas que ense- ' jam a divisão sexual do trabalho, dos espaços, das formas de sociabilida­ de, bem como a maneira como a escola, os jornais, a literatura, enfim, os diferentes meios de comunicação e divulgação constituem as diferenças reforçando e instituindo os gêneros, estamos escrevendo uma história que questiona as “verdades” sedimentadas, contribuindo para uma existência menos excludente.

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historiador está da exigência de reto re novas questões, gejan dimentos, embora há também a satisfamar antigas perguntas r P ^ tinha sobre a historia de ção de realizar a revisão de mui de geu cotidiano conviver e um passado recente. Dessa mí*ne g divergentes perspectivas de implementar o debate que exp íci vner;ências de pesquisa. Elas são análise revigoradas a luz d^ ® ^ ^ ! ^ ctorno» à historiografia produzida, sustentadas necessariamen p d(, análise ou seja, o aprimoramenum ar e v i s ^

da A N PU H .1

^ * Q liÍs R 100 HAWKESWORTH, M. Confundir el género. Debate Feminista, v. 20, p.3-38,1999. 101 LOURO, G. L. Corpos que escapam. Labrys: revista eletrónica de estudos feministas, n.4, ago./dez. 2003.

1

XVffl E ncontro

de 2006 com o tem a U m stor feminismos e sexualidade.

debates que envolvem no mo-

m f • realizado na UNESP, câm pus de A ssis em julho e 0 seu tem p o ", e a m esa-redonda proposta for Genero,

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G Ê N E R O , M U LH ER E M U LH E R E S

categorias de análise como “mulher”, “mulheres”, “feminismos” sem ex­ cluir as questões que diretamente relacionadas à opção do historiador e o seu tempo. O campo da história tomou-se amplo e a disponibilidade de “ferramentas” de análise e de fundamentação ampliou-se diante do traba­ lho de pesquisa. Assim a criação de novas categorias não está descartada pela possibilidade de constantemente captar a realidade em seus movimen­ tos complexos sem determinações teóricas a priori. E lícito afirmar que a historiografia contemporânea apresenta-se reno­ vada e significativamente alargada perante aquela instaurada a partir do século XIX, em que primava a visão homogénea de mundo, de realidade e linear quanto à perspectiva do processo histórico. Hoje a história apresentase fragmentada como a “Clio despedaçada”,2atravessada pelos vários enfo­ ques, pelos distintos métodos de análise, pela amplitude e variedade dos temas e principalmente de sujeitos como atores sociais em foco. O historiador inserido nesse contexto observa ainda a presença de ou­ tros “tempos” possíveis no século XXI, vivenciando a hiperespecialização do conhecimento histórico, reconhecendo a existência da fragmentação e da crise dos paradigmas explicativos. Os objetos de análise diversificamse e distintos atores sociais saem do anonimato intencional em que foram colocados, das margens, indo para o centro da narrativa, segundo a feliz percepção de Natalie Zemon Davies (2001 ).3 A convalidação que distribuía as categorias de análise da história em compartimentos distinguindo o social, o político, o económico e mesmo o cultural na perspectiva de uma produção literária e artística que reforça­ va a tendência a uma espécie de etiquetagem de campos foi sensivelmen­ te abalada a partir dos anos 1980. Inicialmente foi provocada pela intensa possibilidade de diálogo entre as áreas do conhecimento das humanidades 2 Trata-se de uma representação que explicita a atual tendência historiográfica, das “muitas histórias possíveis", que se apresenta fragmentada e partilhada de subespecialidades. BARROS, J. D. A.. O campo da história. Petrópolis: Vozes, 2004. Clio, a “musa da história", na mitologia grega é uma das nove filhas de Zeus com Mnemosine, guardiã da memória. Daí ser considerada filha da memória. 3 Um trabalho publicado em 2001 pela historiadora norte-americana que analisa a vida de mu­ lheres urbanas, sexagenárias do passado, que viveram “pontos em comum” e disparidades nas formas de conduzir suas vidas, demonstrando como foram ousadas, como reinventaram o cotidiano mesmo se encontrando nas margens. Mulheres do século XVII. São Paulo: Com­ panhia das Letras, 2001.

O H IS T O R IA D O R E SEU T E M P O

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que diante das conjunturas avassaladoras das mudanças buscavam explicar uma realidade mais dinâmica e complexa que teimava em não ser aprisio­ nada e engessada por modelos e determinismos. Assim a história, o historiador em seu ofício foram capturados pelas de­ mandas dos movimentos sociais naquele fim de século XX, ficando mais atentos a suas lutas e reivindicações. As organizações feministas, da cha­ mada “segunda onda”, exigiam além de visibilidade de suas aspirações e direitos, uma maior representação política, pelas distintas formas de “empoderamento”4*tendo em vista a inserção das mulheres no processo desen­ volvimento global. Essas lutas recorrentes tornaram-se tema de pesquisa acadêmica, permitindo a produção de novos conhecimentos relacionados às questões de desenvolvimento económico, de uma agenda política que era forçada a se rever e ampliar diante dos efeitos da globalização e de estraté­ gias de inclusão social. É recuperando essa trajetória e atenta ao “O historiador e seu tempo” que propusemos rediscutir as questões relativas a gênero, feminismos e se­ xualidade, temáticas que atualmente se apresentamam interagindo com as possibilidades abertas às mulheres tanto no plano individual como coletivo no sentido de assumirem o controle sobre suas vidas. E para tanto tomou-se necessário recuperar a trajetória de algumas cate­ gorias de análise, como de “gênero”, observando as “confusões” em torno do termo e as formas como foi empregado e como tem se comportado dian­ te das novas interpretações e pesquisas. E ainda como podemos entender a relação entre gênero, mulher e mulheres, categorias distintas no âmbito de uma opção de pesquisa que objetiva explicar a inserção feminina na História. A “história se faz com documentos”, disse Leopold Von Ranke. No en­ tanto, reconhecemos como historiadores que é preciso um pouco mais para o exercício desse ofício. Desenvolver sensibilidades e acurar a percepção para captar as falas subjacentes, os silêncios ruidosos são habilidades que 4 “Empoderamiento” (empowerment) de acordo com Irene Rodriguez Manzano (2006), no artigo Sobre el Término Gênero. In: RIVA, M. C. de la (Coord.). Género y desarrollo. El camino hacia la Equidad. Madri: Catarata, é uma nova estratégia de ação implementada por organizações de mulheres, a partir dos anos 1970, no bojo do processo de desenvolvimento do Terceiro Mundo. A melhoria da condição das mulheres estaria condicionada à transfor­ mação das relações de poder tanto dentro como fora do lar, no plano nacional e internacional. Ressalta ainda “el adelanto de las mujeres no tendrá lugar a menos que se muevan... y comiencen tener voz em la sociedad", p.36.

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GÊNERO, MULHER E MULHERES

extrapolam os métodos, fornecendo condições de compreender melhor os instantes e a presença de indivíduos, mulheres e homens vivendo em tem­ pos distintos daquele necessário a uma transformação maior do mundo em que vivem. Essa observação tem se apresentado nos últimos anos diante da constru­ ção e da possibilidade de outras formas narrativas. As categorias abstratas, tradicionais, como classe, povos, elites não permitiam vislumbrar a existên­ cia de movimentos pluralizados com a multiplicidades de sujeitos agindo e interagindo. Reconhece-se que houve momentos em que se perderam os liames dian­ te da exacerbação do indivíduo e o acontecimento. E com isso fez emer­ gir contundentes críticos àquela forma de "fazer" história denominando-a reducionista. Entre eles está François Dosse com “história em migalhas” (1987) que estancou a euforia vivida com muitas interrogações, expondo os impasses do momento entendido como a “era dos retornos” e de questionamento dos esquemas globais. Sua denúncia soou como um ato de guerra. Suas declarações foram con­ sideradas radicais e exacerbadas na época. No entanto, na década seguinte integrando outra equipe de cientistas sociais, o próprio autor em A leitura política da História: o esfacelamento (2004) fez uma espécie de “catarse” inte­ lectual, uma releitura de sua proposta e reflexões assumindo a necessidade de “desfazer as pretensões ilegítimas de toda postura de superioridade” e buscar a moderação que segundo ele não foi devidamente entendida pelos historiadores daquele tempo.s Após uma fase de ampla discussão que motivou a revisão historiográfica na perspectiva de apontar caminhos, redefinir parâmetros explicativos, os historiadores ingressaram no século XXI mais céticos em relação a herdar modelos e atentos ao diálogo com outras áreas do conhecimento. As cate­ gorias de análise não ficaram ilesas e grande parte delas passou a ser testada e (re) avaliada. Mais cuidadosos com a teorização dos procedimentos vivenciados pela pesquisa empírica que desnudava situações inusitadas expondo as experiên­ cias vivenciadas foi possível gerar um leque de opções em tempos e espaços variados. Assim vivemos atualmente, UM TEM PO, uma fase pródiga de 5 DOSSE, F. História e ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2004, p.25-9.

O HISTORIADOR E SEU TEMPO

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se rever os objetos, de desnaturalizar as categorias de análises expondo a possibilidade de outras verdades, de outras histórias. Esse tempo vivenciado por nós historiadores não é, no entanto, de man­ sidão intelectual, de certezas de ter encontrado um caminho após a preconi­ zação do “fim da História”. É mais atenta em nosso tempo, vivendo este aqui e agora que retomo as idéias iniciais indagando: como a categoria “gênero” tantas vezes referen­ ciada nos trabalhos acadêmicos tem sido refletida e rediscutida após o mo­ mento de sua construção teórica por Joan Scott no fim dos anos 1980?6Que procedimentos foram assumidos para aproximar os resultados de pesquisas com as categorias anteriormente construídas: Mulher e Mulheres? O que deixamos de observar, de olhar em nosso trabalho de pesquisa sendo cien­ tes de que vivenciamos constante processo de reflexão/revisão de teorias que sustentam as ferramentas de análise que empregamos? O debate proposto pela mesa-redonda “Gênero, feminismos e sexuali­ dade” visou exatamente a refletir sobre o atual estado da arte de “gênero”, relacionado com os tempos históricos com base em trabalhos de pesquisa­ doras como Joana Maria Pedro (UFSC)7 e Margareth Rago (Unicamp),8 ambas historiadoras especialistas pela opção que fizeram de pensar a mu­ lheres em vários e distintos cotidianos bem como as relações e práticas so­ ciais construídas. Ambas estiveram atentas às ferramentas de análise como “mulher” e “mulheres” visando a dar não só maior visibilidade ao sujei­ to histórico durante muito tempo silenciado pelas narrativas construídas, 6 A discussão sobre “gênero" que inicialmente chegou ao Brasil foi uma publicação da autora com o título original de Gender: A Useful Category of Historical Analyses, em Nova York, pela Columbia University Press em 1989 e depois em nosso país na obra Educação e realida­ de (Porto Alegre), 16(2), p.5-22, jul./dez. 1990. 7 A historiadora tem vários trabalhos, iniciando com Mulheres himestas e mulheresfaladas. Uma questão de classe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1984; depois como reflexões decorrentes das pesquisas realizadas produziu artigos onde rediscute “Relações de gênero na pesquisa histó­ rica”. Revista Catarinense de História, n.2, p.35-44,1994, e o “Traduzindo o debate: uso da categoria gênero na pesquisa histórica". História, v.24, n.l, p.77-98,2005, Scielo entre alguns. 8 Entre suas várias publicações cito: Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinada - Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; Os prazeres da noite. São Paulo: Paz e Terra, 1991; Trabalho feminino e sexualidade. In. DEL PRIORI, M. (Org.). História das mulhe­ res no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997; Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu, n .ll, p.89-98,1998; Epistemologiafeminista, gênero e história. In: PEDRO, J. M. e GROSSI, M. P. Masculino, feminino, plural: gênero na interdisciplinaridade. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998, p.21-41.

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como evidenciar a variedade conceituai do que seja feminino e ainda rela­ cionar com distintas temporalidades. Os trabalhos apresentados souberam aproveitar as possibilidades intro­ duzidas pela categoria “gênero”, permitindo evidenciar a existência de diferentes dimensões de lutas femininas; lutas essas que estiveram surdas e silenciadas devido às relações de poder e ao predomínio dos discursos e paradigmas científicos androcêntricos.9 E fato que uma produção historiográfica anterior as abafava e as comprimia ao espaço do privado, embora hoje reconheçamos que elas, as mulheres, nunca deixaram de explicitar as suas resistências. Tanto Joana Pedro como Margaret Rago permanecem atentas a seus ob­ jetos originais, as mulheres, porém a produção recente de cada uma delas explicita novas preocupações e vislumbra as possibilidades de avançar, re­ tomar, rever para a realização de uma operação historiográfica no dizer de Certeau ”entre a linguagem de ontem e linguagem contemporânea”. O trabalho de Joana Maria Pedro situa-se em um tempo que exige reco­ locar luz sobre “a trajetória de Gênero”, que como vimos trata-se de uma das categorias mais fecundas pensadas no fim do século XX e que possibi­ litou não só a visibilidade da história das mulheres como desnudou a exis­ tência de práticas de relações de dominação nas diferenças aparentemente biológicas entre homens e mulheres, desnaturalizando-as. As questões enfatizadas visaram a retomar a categoria “gênero”, discutin­ do outras categorias que a antecederam, como “mulher” e “mulheres” per­ mitindo assim esboçar um panorama no âmbito da historiografia contempo­ rânea e principalmente as distintas apropriações feitas pelas historiadoras. Ao debruçar-se sobre essa trajetória, Joana Pedro expôs como as apro­ priações foram múltiplas e ao mesmo tempo realizadas em clima de tensão tendo em vista as especificidades das lutas dos movimentos sociais e de sua repercussão nas formulações acadêmicas. Ressalta ainda que tudo isso re­ sultou na existência de “porosidades nas formulações e intercâmbios cons­ tantes”, principalmente no que diz respeito à academia.

Ao analisar a categoria “mulher”, recorrente no fim dos anos 1970, to­ mando como base o movimento de “Libertação da Mulher”, simultâneo aos movimentos negros, estudantis e de contracultura para uma ação po­ lítica pela formação dos “grupos de consciência”, evidenciou a organiza­ ção que tinha com objetivo “unir as mulheres formando “coletividades revolucionárias” e projetando suas lutas da esfera privada para a esfera do político. Com isso outra dimensão foi reforçada: a de “singularização” das mulheres em relação aos homens e o termo “mulher” assumiu a idéia de uma categoria pensada em contraposição à “homem”, até então, um termo que incluía todos os seres humanos. No entanto essa distinção e perspectiva “separatista”, em vez de im­ pulsionar a luta acabou por desdobrar-se em novos problemas cingindo o movimento: um grupo de mulheres que reivindicavam os mesmos direitos dos homens na esfera pública passou a ser denominado “igualitarista”, ou seja, defendendo as mesmas posições dos opressores e o outro que preco­ nizava a “feminização”, a “reinvenção do feminino”, foi identificado como “diferencialista”. Essas distintas formas de apropriação enfraqueceram o movimento de mulheres e o próprio uso da categoria “mulher” que sofria interpretações das mais diversas, dependendo da maneira como entendiam * as relações. É nesse contexto que autora evidencia a presença da categoria “mulher” nos trabalhos acadêmicos que passaram a defender a revisão da narrativa que se fazia da história da humanidade e garantindo um olhar mais atento sobre a presença das mulheres, mesmo que ainda timidamente. Mais tarde, buscando observar a existência da diferença no interior da categoria “mu­ lher”, a palavra “mulheres” foi sendo absorvida e incorporada diante de no­ vas pesquisas e enfoques que revelavam a pluralidade de lutas e de formas femininas de inserção social. Portanto, a relevância está na afirmação que se rompeu a homogeneida­ de dos sujeitos abstratos e “mulheres” concretas foram captadas pela his­ tória, confirmando definitivamente a existência de um lugar como sujeitos

9 As Ciências Sociais vêm demonstrando a exclusão social e política das mulheres dos paradig­ mas científicos diante da preocupação em evidenciar prioritariamente a opressão de classes e a dominação masculina ao desenvolvimento do capitalismo. Ver importante discussão em SCAVONE, L. Dar a vida e cuidar da vida. Feminismo e Ciências Sociais. São Paulo: Edi­ tora da UNESP, 2004, p.10-54.

da História. Foi justamente naqueles anos 1980 em que se retomava com muito fô­ lego as reflexões de Marc Bloch que o historiador, a historiadora situados em seu presente passaram a repensar o seu ofício e com isso rever o passa­ do de acordo com questões do presente: as mulheres estavam em cena e os

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movimentos feministas, diante das especificidades históricas vivenciadas, propalavam agendas políticas em que se evidenciavam vários feminismos, reapresentando a questão das diferenças e o fim das hierarquias de sexo. Dilatando esse cenário para o Brasil, a autora insere a discussão a res­ peito do uso das categorias "mulher” e “mulheres” e oferece importante retrospectiva da historiografia brasileira, principalmente com as lutas perante a instalação da ditadura militar (1964-1984). Ela destaca que no "feminismo que se desenvolveu no Brasil, a categoria ‘Mulher’ esteve presente na constituição de grupos de ‘consciência’ ou de “reflexão”, no início da década de setenta”. E os vários acontecimentos sub­ sequentes ao golpe militar, liderados pelos grupos de esquerda, seja na luta armada, seja mais tarde pela anistia, foram exemplo dessa tendência para garantir maior visibilidade às mulheres. A Academia como um dos centros de resistência organizada ao regime militar não ficou apartada das questões que se apresentavam, principalmen­ te para explicar as mudanças e analisar as permanências estruturais da so­ ciedade brasileira. Grupos de pesquisa e de estudos enfocando as mulheres, ressaltando as várias atuações e papéis sociais distinguindo as relações entre mulheres e homens foram organizados, revendo as categorias existentes e introduzindo a mais recente discussão: a categoria “gênero” e a superação das diferenças baseadas em sexo. Não cabe aqui retomar o termo “gênero” buscando as origens, as inter­ pretações iniciais, as muitas imprecisões conceituais, mas apontar para as novas exigências e as constantes reflexões de uma categoria de análise por seu uso e principalmente diante da experiência acadêmica provocada pelas pesquisas e diante do diálogo possível entre as ciências das humanidades. No fim dos anos 1980, a historiadora Joan Scott10tornou-se referência qua­ 10 A categoria género foi responsável ainda pelos trabalhos de crítica das estruturas do patriarcado e da sociedade de classes, revendo, portanto, a perspectiva teórica e questionando as ba­ ses filosóficas do dualismo platónico, da verdade cartesiana em que se propunha rompimento da “pura objetividade”, das abstrações e generalizações, reapresentando a discussão de novos paradigmas na elaboração científico-epistemológica da realidade e revolucionando o cam­ po conceituai em que se situava a questão do feminismo, dos feminismos. Ver: OAKLEY, A. Sex, gender and society, 1972; SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade, 16(2), jul./dez. 1990; DIAS, M. O. Teoria e método dos es­ tudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano. In: COSTA, A. de O. e BRUCHINIC. (Orgs.). São Paulo, s.e. 1992.

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se obrigatória nos estudos sobre mulheres ao enfatizar que a diferença entre sexo e gênero deveria ser compreendida e articulada com a noção de poder. Com isso abriu-se um dos mais fecundos pressupostos teóricos capaz de articular-se com os demais campos do conhecimento científico e avançar. Aqui cabe ressaltar as contribuições de Michel Foucault, também iden­ tificadas pela autora em seu texto, ao evidenciar que “os usos e significados das diferenças sexuais nascem de uma disputa política e são os meios pelos quais as relações de poder são construídas”. Assim, o trabalho de Joana Pedro retoma a longa trajetória dos movi­ mentos sociais feministas e evidencia a criação dos aportes teóricos que emergiram e contribuíram para enfrentar as questões relativas às diferenças entre os sexos enfrentando o determinismo biológico existente e cristaliza­ do pelo discurso da verdade, possibilitando a compreensão sobre as signi­ ficações do gênero no passado e sobre as identidades sexuais, garantindo portanto os “lugares” seja de libertação das heterossexualidades, seja de qualquer outro enquadramento identitário, conforme ela ressalta. Margareth Rago como historiadora inserida em seu tempo trouxe para o debate a perspectiva de desafiar o modus vivendis das categorias analíti­ cas e a certeza de um passado vivenciado que nem sempre foi aquilo que é narrado com a proposta de fazer um “deslocamento” dos estudos sobre as mulheres e as relações de poder pelas contribuições de Michel Foucault, mais atenta às descontinuidades, as diferenças diante dos nossos antepas­ sados de modo que deslegitime o presente e questione as formas instituídas e naturalizadas. A pesquisa realizada sobre um grupo de militantes anarquistas, “M u ­ jeres Libres”, durante a Revolução Espanhola, entre 1936 e 1939, visou a captar as “experiências e subjetividades”, o que possibilitou repensar o pas­ sado das lutas daquelas feministas libertárias e rever os discursos narrativos construídos tanto da direita como da esquerda que o silenciavam. Procurando captar o cotidiano das militantes espanholas que criaram suas “artes da existência”, constituídas por “técnicas de si”, a autora retoma as importantes reflexões de Foucault sobre as condições em que se operaram a “genealogia da alma moderna” para desnudar a existência de procedimen­ tos disciplinares desenvolvidos na modernidade ocidental. Eles se originam de outros modos de constituição de si, sendo radicalmente opostos à moral burguesa que aceita como verdadeira e universal passou a definir a vida das

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pessoas e a ditar comportamentos, diferentemente do que ocorreu em outro tempo, por exemplo no mundo antigo. O trabalho de Margareth Rago, ao referenciar-se em Foucault para bus­ car em outras temporalidades a ancestralidade da experiência moderna, de­ monstra a existência de uma cultura e de práticas que “não se destinavam a assujeitar o indivíduo, a produzir ‘corpos dóceis’, obedientes e submissos, fazendo-o renunciar a si mesmo’’, como fez o cristianismo e posteriormente a ciência”. Logo, no mundo antigo greco-romano havia outros modos de subjetivação, de invenção de estilos de vida que sustentavam uma ordem da ética e da liberdade, bem diferente da nossa sociedade que prega a de submissão e de poder. Com isso a autora fundamenta os novos procedimentos de análise que rompe com a “falsa” linearidade explicativa que sempre colocou a história como justificativa de processos de dominação e de exclusão. E pensando assim que os movimentos de luta das mulheres, identifica­ dos em muitos feminismos, assumem uma posição na contramão daquela tradição ao ressaltar que são capazes de realizar as tarefas masculinas e de desempenhar com competência as mais variadas funções da esfera pública, inclusive a de natureza política. Foi exatamente percorrendo o rastro dessa possibilidade que Marga­ reth Rago propôs-se a estudar a experiência histórica do grupo “Mujeres Libres”, formado por militantes anarco-feministas durante a Guerra Civil Espanhola (1936) que defendiam uma luta “pela emancipação das mulhe­ res espanholas, consideradas vítimas da ignorância, da opressão do Estado e da Igreja e, não raro, de suas próprias famílias”. Ao tomar a categoria “mulheres” para analisar a produção de novas sub­ jetividades femininas na construção de modos libertários de existência e da construção das relações entre homens e mulheres situados em uma conjun­ tura de profunda transformação socioeconômica e política do país enfatiza a questão: “como o anarquismo e o feminismo permitiram enfrentar, discutir e por em prática, naquele contexto histórico revolucionário, a criação de novos modos de existência?”. Apoiada em uma produção historiográfica recente, trabalhando com da­ dos e informações obtidos em documentação inédita, como a memória e o relato de algumas militantes, a autora suscita novas questões que enfrentam

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a naturalização e a exclusividade da vocação feminina para a maternidade, para o lar e sobre certa sexualidade contida a determinados fins, com dis­ cursos engendrados para criar identidades frágeis e dependentes. Assim foi possível evidenciar como a experiência da modernidade foi reinventada para domesticar os indivíduos, estabelecendo redes de poder constitutivas de saberes e de práticas, de micropoderes que perpassam as relações sociais e reforçam as construções de gênero. Em uma tentativa de aproximação e de síntese, os trabalhos expostos enfatizaram a importância de estarmos atentos à historicidade dos concei­ tos e das categorias de análise, rompendo com um a linearidade fictícia entre o passado e o presente um vez que narrativas históricas exigem novos focos, novas explicações. Com isso defendo que qualquer categoria de análise pode ser constante­ mente retomada e estar no cerne da discussão do objeto analisado, questio­ nando qualquer forma de reificação e de sua lógica de determinação.11 A historicização de sua formulação, as distintas contribuições de inte­ lectuais das mais diversas áreas interagindo diretamente com as pesquisas empíricas realizadas explicitam novas situações, rediscutem as formas de abordagens e revelam as inúmeras dúvidas que ficaram. A categoria “gênero” se encontra ainda em debate, não devendo portan­ to cristalizar-se em si mesma como uma ferramenta de uso coletivo e ho­ mogéneo, uma espécie de “pau para toda obra” para aqueles que vivenciam a pesquisa sobre a temática feminina. Para dar um exemplo: no 52° Con­ gresso de Americanista em Sevilha, realizado em julho de 2006, constatei como essa categoria de gênero pode ser enriquecida e avançar, diante de outras problematizações, de pontos de vista distintos, de outros elemen­ tos estruturantes de realidade como a questão da construção da identidade seja fem i n i n a, seja masculina, do património cultural de povos em espaços 11 E. P. Thomson pode ser considerado um bom exemplo. Representa um dos primeiros histo­ riadores a retomar a categoria “classe social” revendo sua determinação anterior “do político e social pelo económico” e afirmando a presença de valores e comportamento de um grupo social e a valorização de outras questões como a etnia, o gênero e as tradições culturais, por exemplo, dos trabalhadores. Ao introduzir outra categoria, “a experiência”, colocou em cena a vivência dos atores históricos. Ver interessante discussão na historiografia em GOMES, A. de C. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões. In: SOIHET, R. et al. (Org.). Culturas Políticas. Ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p.21-44.

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e tempo distintos. Com isso pude observar ainda como se dá a operação teórica e metodológica para captar os novos sujeitos diante do complexo processo histórico da globalização que vivemos. Dessa maneira a categoria “gênero” pode ser revitalizada, impulsionan­ do e enriquecendo a discussão, a crítica diante das problemáticas temáticas apresentadas, não permanecendo como uma descoberta passiva, de uso co­ mum sem as devidas relações com o tempo da história. No mesmo Congresso de Americanistas, em outro seminário temático sobre as "Mulheres e o poder”, vivenciei a experiência muito rica de tra­ balhos e pesquisa recentes que retomaram o foco, desta vez sobre a protagonização das mulheres na história política. Seria uma espécie de retorno ao passado próximo à última onda feminista? Os trabalhos retomaram a questão da visibilidade feminina, sua inserção na política, nas relações in­ ternacionais, na participação de organizações mais institucionalizadas da América Latina. As mulheres foram novamente observadas em suas expe­ riências enfatizando as contradições de sua inserção no espaço público. Não considero esse procedimento, investir na categoria “mulheres”, um retrocesso histórico, uma forma de “retorno” da história. Trata-se de voltar para avançar principalmente diante das críticas que se fizeram aos trabalhos sobre a história das mulheres em coleções como a dirigida por Duby e Michele Perrot no fim do sécúlo XX. As historiadoras americanistas aproveitando o momento propício do re­ ferido Congresso lançaram mais uma importante publicação, contemplan­ do relevante revisão historiográfica: a História de las Mujeres em Espana y América Latina.12 E diante desta obra e de outras que estão sendo lançadas no Brasil e mesmo dos trabalhos abordando os estudos de “gênero” inscritos nesse Encontro Regional de História da AN PU H,13 que atualmente os estudos 12 A obra completa (quatro volumes) retoma a história das mulheres em seus cotidianos, tra­ balhos, formas de religiosidade, escrita e idéias e principalmente sua participação na vida social e política evidenciando as representações culturais sobre o feminino em contraposição ao mundo masculino. O jornal El País ressaltou ser um "libro de referencia sobre el coletivo femenino a lo largo de la historia". Madri: Cátedra, 2006. 13 O seminário temático "Gênero, Feminismos e Sexualidade", coordenado pela dra. Lídia Maria Vianna Possas (UNESP, câmpus de Marília- docente) e a dra. Andréa Borelli (Unicsul docente) reuniu dezesseis trabalhos entre projetos de pesquisa em andamento, dissertações de mestrado e teses de doutorado de vários centros acadêmicos paulistas e de outros estados realizando importante debates teórico e metodológico.

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de Gênero representam uma temática consolidada no seio da Academia, evidenciando pesquisas de caráter interdisciplinar que se avolumam e se consolidam por intermédio de publicações, revistas e periódicos que cada vez mais se tomam expressivos em nosso país confirmando a presença de uma produção científica de excelência e expressão acadêmica. Concluo recuperando o tempo de Virgínia Wolf, que em 1929, em A roam of one’s, own foi despertada pela temática feminista afirmando: “uma mulher deve ter o dinheiro e um quarto onde possa escrever suas próprias ficções”. E hoje, aqui e agora recupero a idéia afirmando: uma mulher dever ter direito de escrever a sua história e de muita outras mulheres, revendo as narrativas e captando outro Tempo.

Na ocasião foi 7ealizada ainda a 5* Reunião Nacional do GT de Estudos de Gênero da ANPUH reafirmando diretrizes e ações de natureza política para a ampliação e divulgação do GT, bem como a divulgação e publicação dos trabalhos.

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*

Na década de 1990, reforçou-se uma série de processos de exclusão dos professores, ocasionando, em paralelo, uma redefinição de suas funções sociais e profissionais, tradicionalmente atribuídas. Recorro à imagem do jogo de bridge, empregada pelo pesquisador português António Nóvoa, no prefácio de seu livro Profissão professor. Nela, um dos parceiros ocupa o “lugar do morto” , sendo obrigado a expor as suas cartas em cima da mesa: nenhuma jogada pode ser feita sem atender às suas cartas, mas ele não pode interferir’no desenrolar do j ogo. Imaginemos agora um triângulo no qual dois vértices criam uma relação privilegiada, representando o terceiro vértice o “lugar do morto”: está presente, tem de ser levado em consideração, mas a sua voz não é essencial para fixar o desfecho dos acontecimentos. (Nóvoa, 1999, p.7)

Sugere três triângulos para ilustrar os processos de exclusão dos profes­ sores: triângulo pedagógico, político e do conhecimento. O triângulo pedagógico se organiza em torno dos vértices professores, alunos e saber. Por uma relação privilegiada entre dois destes vértices, é possível imaginar, de forma necessariamente simplificada, três grandes mo­ delos pedagógicos: a ligação entre os professores e o saber configura uma pers­ pectiva que privilegia o ensino e a transmissão de conhecimentos; a junção entre professores e os alunos valoriza os processos relacionais e formativos; a articulação entre os alunos e o saber favorece uma lógica de aprendizagem. Doutora em História Social pela USP e professora da PUC-SP.

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O P R O F E S SO R DE H ISTÓ R IA E A P R O D U Ç Ã O D O S SA B E R ES

Professores

K,______________ £ Saber

Alunos

Nóvoa sublinha as tendências que apontam para uma consolidação do eixo saber-alunos, com os professores a ocuparem o "lugar do morto”. Não deseja criticar correntes apoiadas em práticas de autoformação ou de au­ togestão das aprendizagens, mas ressaltar o reaparecimento de correntes que defendem uma tecnologização do ensino. Estas tendências retomam as utopias das “máquinas de ensino” que levariam à substituição dos pro­ fessores. Hoje, os avanços da informática e das telecomunicações obrigam a situar o debate em outro patamar. Nóvoa questiona a forma como, por vezes, se constroem discursos teóricos que, implicitamente, incluem certa desvalorização da relação humana e das qualificações dos professores. Para ele, é difícil imaginar um processo educativo que não considere a mediação relacional e cognitiva dos professores. O triângulo político, ou seja, os modos de organização do sistema educa­ tivo, apresenta os seguintes vértices: professores, Estado, pais/comunidades.

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tado ocupou o campo educacional, consolidando uma ligação privilegiada aos professores, a qual conduziu ao afastamento dos pais/comunidades. Atualmente, há uma tendência de reforçar as ligações entre o Estado e os pais/comunidades, levando os professores a ocuparem o lugar do morto . Os anos 1980 trouxeram para o debate o problema da participação dos pais/comunidades nas decisões do foro educativo: a necessidade de uma presença mais ativa dos pais e dos atores locais na organização das diferen­ tes modalidades de ensino. É uma questão que deve ser vista no contexto de uma reorganização mais ampla dos modos de intervenção do Estado na vida social e económica. Nos anos 1990, esta questão trouxe, como prioridade, o debate sobre a privatização do ensino: a idéia de uma educação a serviço do cliente . Percebe a tendência de pautar a educação pela lógica do mercado e de impor às escolas critérios de eficácia que não levam em conta a especificidade do trabalho pedagógico. O novo papel dos pais e das comunidades, na gestão dos assuntos edu­ cativos, é uma exigência do nosso tempo, mas é impensável que a mudança acarrete uma redução do poder dos professores. O triângulo do conhecimento procura traduzir a existência de três tipos de saberes:' o saber da experiência (professores); o saber da pedagogia (espe­ cialistas em ciência da educação) e o saber das disciplinas (especialistas das diferentes áreas do conhecimento). Saber da experiência 41

Professores Estado

/

\

Pais/Comunidades

it_________________ £ K*___ _____________

i

Durante muito tempo, as práticas institucionalizadas de educação foram objeto de uma transação direta entre professores, Estado, pais/comunida­ des, quase sempre com mediação da Igreja. A partir do século XVIII, o Es-

Saber da pedagogia

Saber das disciplinas

Nos períodos de inovação educacional, há uma tendência em valorizar a ligação dos professores especialistas aos especialistas da pedagogia. Nos momentos conservadores, procura-se relacionar o saber da experiencia ao saber das disciplinas. Atualmente, afirma Nóvoa, o saber dos professores

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O PR O F ESSO R D E H IST Ó R IA E A P R O D U Ç Ã O D O S S A B E R E S

tende a ser desvalorizado em favor de um conhecimento científico, da peda­ gogia ou das outras disciplinas. Um dos paradoxos principais na história dos professores reside, segundo o autor, no fato de que momentos de grande reflexão científica em educação contribuem para maior prestígio dos professores mas, paralelamente, em certa desvalorização de seus saberes próprios. A afirmação do saber da pe­ dagogia faz-se, freqúentemente, por uma depreciação do saber da experiên­ cia dos professores. As práticas de racionalização do ensino contêm os ele­ mentos de uma deslegitimação dos professores como produtores de saber. Hoje, a tendência a reforçar o saber das disciplinas e a expansão significati­ va dos especialistas em ciências da educação leva a conceder menor atenção ao saber da experiência: os professores voltam a sentar-se no “lugar do morto”, Apesar de ter insistido nas formas de exclusão dos professores, legitima­ das em processos de tecnologização, de privatização e de racionalização do ensino, Nóvoa afirma que não se pode ignorar a existência de outros mo­ vimentos em sentido contrário. As realidades educativas são paradoxais e, muitas vezes, contraditórias. Todo o esforço teórico para compreendê-las tem de fugir às linearidades e refletir a complexidade das posições em confronto. Nesse sentido, centralizarei minha exposição na explicitação de con­ ceitos que auxiliam a compreensão da prática educativa dos professores de uma forma mais consistente: saber escolar e o saber docente; e como eles ajudam a analisar as memórias e práticas de professores de História da rede municipal da Cidade de São Paulo, subprefeitura de Pirituba, projeto que coordeno desde 2005.

O saber escolar1 Nas três últimas décadas do século XX, estudos e pesquisas, voltados para as questões relativas ao currículo escolar, buscaram investigar as rela1 A parte referente ao saber escolar é adaptada da segunda parte do texto de MONTEIRO, A. M. Ensino de História e História cultural: diálogos possíveis. In: SOIHET, R. et al. Cultu­ aras políticas. Ensaios de história cultural, história política e ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. Constitui, porsua vez, parte do artigo intitulado “Balanço crítico das pesquisas, tendências e demandas de investigação sobre os saberes escolares e saberes docentes no ensino de História , redigido por Ana Maria Monteiro e Helenice Ciampi, apresentado no seminário temático "Saberes escolares e saberes docentes” no VII Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História (Enpe) realizado na UFMG, Belo Horizonte, em fevereiro de 2006.

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ções entre escola e cultura, com o objetivo de compreender melhor o papel desempenhado pela escola na produção da memória coletiva, das identida­ des sociais e da reprodução (ou transformação) das relações de poder. Atualmente, as pesquisas confirmam que o currículo é campo de criação simbólica e cultural, permeado por conflitos e contradições, de constitui­ ção complexa e híbrida, com diferentes instâncias de realização: currículo formal, real e oculto.2* No campo da epistemologia, discutem-se a historicidade e a relatividade do conhecimento científico, questionando-se a idéia de que a ciência pro­ duz a única forma de conhecimento válido e verdadeiro, reconhecendo-se a diversidade das formas de conhecimento, com diferentes racionalidades e formas de validação. Por outro lado, no meio educacional, os estudos reconhecem as características, cada vez mais evidentes, dos fenômenos práticos: complexidade, incerteza, instabilidade, singularidade e conflitos de valores. Os diferentes sujeitos, com visões de mundo e interesses variados, estabelecem relações entre si, com múltiplas possibilidades de apropriação e interpretação. Essas nòvas perspectivas permitem avançar em relação a estudos e aná­ lises que, ao não reconhecer a especificidade da cultura escolar, buscavam a melhoria do ensino pela maior aproximação com o conhecimento científico. O ensino seria aperfeiçoado à medida que fosse mais semelhante, coerente e atualizado em relação à produção científica. Essa orientação induzia, por exemplo, pesquisadores a identificar erros no ensino realizado nas escolas, uma vez que sua atualização se faz mais lentamente e também porque um processo de síncrese é realizado, com a utilização de contribuições de diferentes autores, alguns deles com pressu­ postos teóricos distintos, para configurar explicações ou exemplificações. Por ser radicalizada, a crítica levou muitos a considerar o saber escolar um saber “de segunda classe”, inferior ao conhecimento científico, resul­ tante de simplificações necessárias para o ensino a crianças, adolescentes ou adultos semi-alfabetizados. 2 Para melhor compreensão dos conceitos, ver os trabalhos de MOREIRA, A. F. B. Cur­ rículo, utopia e pós-modemidade. In :____ (Org.). Currículo: questões atuais. Campinas: Pápirus, 1997 e de SACRISTAN, J. G. Escolarização e cultura: a dupla determinação. In: SILVA, L. H. da; AZEVEDO, J. C. de; SANTOS, E. S. dos (Orgs.). Novos mapas culturais. Novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996, p.34-57.

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O diálogo com o conhecimento científico é absolutamente fundamental. Mas é preciso compreender melhor como se dá a construção do saber es­ colar, que envolve a interlocução com o conhecimento científico e também com outros saberes que circulam no contexto cultural de referência. Nesse sentido, o conceito de saber escolar referenciado em pesquisado­ res do campo educacional da área do currículo e da história das discipli­ nas escolares oferece contribuição importante para a melhor compreensão dos processos educativos. Entre os primeiros, podemos citar os trabalhos de Forquin e Goodson, que utilizam uma abordagem sócio-histórica para análise da construção curricular e, no Brasil, o de Lopes.3 Na história das disciplinas escolares, temos o trabalho de André Chervel e de Dominique Julia.4 , 3 FORQUIN, J. C. Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais. Teoria & Educação, n.5. Porto Alegre: Pannonica, 1992, p.28-49; Escola e Cultura. As bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993; e As abor­ dagens sociológicas do currículo: orientações teóricas e perspectivas de pesquisa. Educação e Realidade. Currículo e política de identidade, v.21, n.l. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Faculdade de Educação, 1996, p.187-98. GOODSON, I. Currículo: teoria e história. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. LOPES, A. R. C.. Conhecimento escolar: processos de seleção cultural e mediação didática. Educação e Realidade. 22 (1), p.95-112, jan./jun. 1997. Incluo também sua tese de dou­ toramento, defendida na UFRJ, Conhecimento Escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. Nela amplia questões próprias da pesquisa em ensino de Ciências e Quími­ ca, desejando compreender a Educação como fenômeno social mais abrangente. "O eixo argumentativo orientador desta análise é a interpretação pluralista e descontinuísta de cultura, fundada no pluralismo da razão, do real e do método. Essa interpretação'concebe a existência de diferentes saberes embasados em diferentes racionalidades e, por conseguinte, concebe a existência de uma ruptura entre conhecimento científico e conhecimento cotidiano” (p.13). Procura situar as constituições e características entre conhecimento escolar e saberes espe­ cíficos no interior das discussões da cultura e de suas diferentes manifestações. Mas conclui que "o papel da epistemologia não se resume à discussão da validade epistemológica dos saberes, mas na possibilidade de introduzir uma nova forma de compreender e questionar o conhecimento, intemamente, na sua própria forma de se constituir. Assim, a epistemologia contribui diretamente para a definição dos diferentes saberes sociais e de suas relações. Ao questionarmos a razão instrumental, os conhecimentos absolutizados, a unidade e universa­ lidade da razão, não devemos desmerecer a razão, a epistemologia, a relação dialética entre objetividade e subjetividade” (p.166-7). Sugere, inclusive, o conceito de “mediação didáti­ ca" para superar a insuficiência do conceito de “transposição didática”. 4 Andre Chervel, no trabalho História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa.. Teoria & Educação, n.2. Porto Alegre: Pannonica, 1990, p.177-229. Chervel, investigando a história do ensino de francês, verificou que a gramática escolar francesa foi "historicamente criada pela própria escola, na escola e para a escola", auxiliando na aprendi­ zagem da ortografia francesa. Estes estudos articulam-se com os de Goodson, sobre o ensino

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A perspectiva, que reconhece a especificidade epistemológica des­ ta construção, tem, na escola, o lócus por excelência; escola que deixa de ser considerada apenas local de instrução e transmissão de saberes para ser compreendida como espaço educacional, configurado e configurador de uma cultura escolar, na qual se confrontam diferentes forças e interesses sociais, económicos, políticos, culturais.5 Os saberes escolares, antes inquestionáveis e universais, passam a ser objeto de indagações que se voltam para aspectos relacionados à seleção cultural - quais saberes, motivos de opção, implicações culturais e reper­ cussões sociais e políticas das opções, negações, ocultamentos, ênfases. Mas não basta selecionar. É preciso tornar os saberes possíveis de serem aprendidos. Nesse sentido, os estudos voltados para as formas de organiza­ ção destes saberes investigam os processos de didatização buscando superar a perspectiva instrumental e técnica, usando o conceito de transposição di­ dática6ou mediação didática7para analisar as alternativas empregadas para viabilizar aprendizagens. Por último, e não menos importante, é preciso lembrar que o saber es­ colar, em sua constituição, passa por um processo de axiologização, ou seja, é veículo de transmissão e formação de valores entre os estudantes. A di­ mensão educativa, portanto, é configurante deste saber, não sob a forma de proselitismo, mas pela seleção e didatização realizada: saberes negados da geografia na Inglaterra, que revelam a anterioridade da geografia escolar, antes de sua incorporação no currículo acadêmico. Estas e outras pesquisas permitem-nos entender que a História como uma área do conhecimento e a História como disciplinar escolar não têm o mesmo processo de desenvolvimento. O saber acadêmico nem sempre é anterior ao saber escolar. A presença das disciplinas escolares no currículo (obrigatória ou optativa), sua legi­ timidade, não se restringe a problemas epistemológicos ou didáticos. JULIA, D. Disciplinas escolares: objetivos, ensino e apropriação. In: Lopes, A. R. C. e MA­ CEDO, E. (Orgs.). Disciplinas e integração curricular: história e políticas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. O autor entende cultura escolar como um conjunto de normas que definem os saberes a serem ensinados; um conjunto de condutas a serem inculcadas; e de práticas que permitem a transmissão destes saberes e a incorporação destes comportamentos. Estas normas, saberes e práticas são históricas, alterando-se mediante as finalidades da educação e a cultura das sociedades humanas. 5 Ver MONTEIRO, A. M. F. C. Ensino de História: entre saberes e práticas. 2002. Tese (Doutorado), Programa de Pós-graduação em Educação da PUC-RJ. Rio de Janeiro. 6 CHEVALLARD, Y. La transposición didáctica. Del saber sabio al saber ensenado. Buenos ' Aires: Aique Grupo Editor, s.d. Neste trabalho, Chevallard analisa a transposição didática no âmbito do ensino da matemática. 7 LOPES, A .R. C„ op. cit.

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ou afirmados; formas democráticas ou autoritárias de ensinar, métodos ba­ seados na repetição e memorização, ou baseados no desenvolvimento do raciocínio e pensamento crítico.

O saber docente No que diz respeito ao campo da formação de professores, a crítica à racionalidade técnica, que orientou e serviu de referência para a educação e socialização dos profissionais em geral, e dos professores em particular, durante grande parte do século XX, gerou uma série de estudos e pesquisas que têm procurado superar a relação linear e mecânica entre o conhecimen­ to técnico-científico e a prática na sala de aula. Os limites e insuficiências dessa concepção levaram à busca de novos instrumentos teóricos capazes de dar conta da complexidade dos fenômenos e ações que se desenvolvem durante atividades práticas.8 Diferentemente do proposto pela racionalidade técnica, as pesquisas co­ meçaram a revelar que o professor intervém num meio ecológico complexo, num cenário psicológico vivo e mutável, definido pela interação simultânea de múltiplos fatores e condi­ ções. Nesse ecossistema, o professor enfrenta problemas de natureza priorita­ riamente prática, que, quer se refiram a situações individuais de aprendizagem ou formas de comportamentos de grupos, requerem um tratamento singular, na medida em que se encontram fortemente determinados pelas características situacionais do contexto e pela própria história da turma enquanto grupo social. (Gómez, 1995, p.102)

As pesquisas que têm investigado o conhecimento tácito, elaborado e mobilizado durante a ação pelos professores e, também, por qualquer outro profissional prático (reconhecendo-se as especificidades de cada fazer), pos­ sibilitaram o desenvolvimento de uma epistemologia da prática, que abre, também, perspectivas promissoras para os estudos do campo educacional. Esses estudos somam-se àqueles que têm como pressuposto a críti­ ca à idéia de que uma das origens das dificuldades encontradas no campo 8 A parte referente ao saber docente foi adaptada do texto de MONTEIRO, A. M. Professo­ res: entre saberes e práticas. Educação & Sociedade, 74. Campinas: Cedes, 2001.

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educacional é a desqualificação e a incompetência dos professores, e que se voltam para a questão da profissionalização, buscando compreender sua especificidade e constituição pelos processos de socialização, identificando nos saberes os aspectos que podem melhor definir e fortalecer a identidade e autonomia profissional. No bojo desses estudos, foi criada a categoria “saber docente”, que busca dar conta da complexidade e especificidade do saber constituído no (e para o) exercício da atividade docente e da profissão (Tardif, Lessard e Lahaye, 1991; Tardif, 1999). Tardif, Lessard e Lahaye chamam a atenção para o fato de que o saber docente é plural, estratégico e desvalorizado, constituindo-se em um amál­ gama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissio­ nal, dos saberes das disciplinas, dos currículos e da experiência. Os primei­ ros têm sua origem na contribuição que as ciências humanas oferecem à educação e nos saberes pedagógicos (concepções sobre a prática educativa, arcabouço ideológico, algumas formas de saber-fazer e algumas técnicas) (1991, p. 219). Saberes das disciplinas são os difundidos e selecionados pela instituição universitária, correspondendo aos vários campos de conhe­ cimento; saberes curriculares, aqueles que a instituição escolar apresenta como os que devem ser ensinados. Os saberes da experiência são os constituídos no exercício da prática cotidiana da profissão, fundados no trabalho e no conhecimento do meio. “São saberes que brotam da experiência e são por ela validados. Incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades, de saber fazer e de saber ser” (1991, p.220). Esses saberes não provêm das instituições de formação ou dos currículos, esses saberes não se encontram sistematizados no quadro de doutrinas ou teo­ rias: eles são saberes práticos (e não da prática: eles não se aplicam à prática para melhor conhecê-la, ele se integram a ela e são partes constituintes dela enquan­ to prática docente)... são a cultura docente em ação. (1991, p.228) (grifo nosso)

Os saberes da experiência surgem pela articulação, reorganização dos demais. Os autores afirmam que “os saberes da experiência não são saberes como os demais, eles são, ao contrário, formados de todos os demais, porém retraduzidos, ‘polidos’ e submetidos às certezas construídas na prática e no vivido” (1991, p.232).

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Posteriormente, Tardif (1999) aprofunda a análise das características do saber docente, avançando na valorização do saber da experiência. Segundo o autor, os saberes profissionais são saberes da ação, saberes do trabalho e no trabalho, o que os distingue dos saberes universitários (científicos?) São temporais, plurais e heterogéneos, personalizados e situados, carregando com eles as marcas do seu objeto, que é o ser humano (os alunos). Nesse sentido, a prática profissional não é um local de aplicação dos sa­ beres universitários e, sim, de “filtração”, onde eles são transformados em função das exigências do trabalho. Essas características permitem superar a visão do professor como um “idiota cognitivo”, ou “dependente” e/ou “de­ terminado por estruturas sociais, pelo inconsciente ou cultura dominante contribuindo para avançarmos na conquista da autonomia profissional.

Memórias de professores de História Esta pesquisa emergiu no contexto da reformulação dos cursos de For­ mação de Professores da Educação Básica em nível superior, curso de Li­ cenciatura de Graduação Plena, no qual a PUCSP vem debatendo uma política de graduação e desenvolvendo uma discussão acadêmica na defi­ nição de um Projeto Institucional para a Formação de Professores da Edu­ cação Basica (PIFPEB). Estas discussões no âmbito acadêmico têm expri­ mido a preocupação de contemplar as imbricações do trabalho pedagógico no contexto de sua prática, para poder repensar a própria formação desses profissionais. Entre os pressupostos do PIFPEB, a prática de pesquisa, voltada às pro­ blemáticas do processo de ensino-aprendizagem e às demandas da realida­ de escolar, é a norteadora da formação profissional e da organização interna dos cursos. Nesse sentido emerge a intenção de registrar as memórias e práticas de professores de História da cidade de São Paulo, para conjuntamente repen­ sar a formação do Profissional de História. O projeto privilegia recortes da memória social dos docentes entrevistados, pois o senso de historicidade é formado por referenciais que extrapolam a universidade e o conhecimento sistematizado. A memória implica um campo social que põe em destaque a força de outros processos, lugares e agentes sociais.

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O registro das memórias e das observações das aulas poderá expressar dimensões de contradições, conflitos e ambiguidades vivenciados no pro­ cesso de vida pessoal, formação e exercício profissional, reforçando práticas “tradicionais” ou expressando tentativas de interagir com o tempo presen­ te, reformulando práticas e valores. A investigação visa a propiciar um exercício de pesquisa aos alunos da graduação do curso de Licenciatura em História e do Mestrado Lato Sensu - História, Sociedade e Cultura, ambos da PUCSP. Aos professores de História da rede pública municipal, entrevistados,9oferece um espaço de diálogo que possibilite o repensar a sua prática e, pela rememoração propi­ ciada pela entrevista, ressignificar suas experiências e sua auto-estima. Pa­ ralelamente, os dados registrados constituem fontes para futuras pesquisas e reflexão sobre a formação dos profissionais de História do século XXL Formação pensada, não como mero exercício prático ou como mecânicas “transposições didáticas” de conhecimentos prontos, mas como um pro­ cesso de articulação de saberes específicos pensados na perspectiva da in­ serção política. Esse processo de trabalho possibilitou aos estagiários10 troca de expe­ riências interativas, de fundamental importância para a prática pedagógica, assim como apropriação da metodologia da história oral como ferramenta de produção de conhecimento. A metodologia privilegia entrevistador e en­ trevistado como participantes da pesquisa, razão pela qual a confecçao do roteiro da entrevista e dos indexadores para a organização da edição foram elaborados coletivamente, isto é, entre os próprios estagiários e eu, coorde­ nadora da pesquisa11 (Meihy, 2005). ' 9 Cada ano setóm am os uma Subprefeitura da rede pública municipal para o registro das memórias e práticas de professores de História, entre as escolas com as quais realizamos estágios. Em 2005, trabalhamos com os professores da subprefeitura de Pintuba. O numero estabelecido são dez profissionais e dez estagiários. 10 Foram dez os estagiários que, inicialmente, participaram do projeto. Mas somente sete permaneceram e realizaram as entrevistas: Belmiro Augusto Brasil de Castro Cândido Lo­ pes, Claudemir Silva Novais, Lisbeth de Almeida Batista, Maira Barbosa Serra, Rodrigo Torquato Martins da Silva, Rosana Eva Eksterman Mastroem (Graduação-Licenciatura) e Lívia Freitas dos Santos (Pós-graduação, mestrado lato sensu). 11 Na parte prática, elaboração do roteiro da entrevista e processamentos técnicos desta, con­ tamos com a colaboração de profissionais do Museu da Pessoa - instituição particular -, que desde a sua criação em 1991 recorre à história oral como uma ferramenta para a democratiza­ ção da memória social.

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Entrevista é fonte criada pela interação entre entrevistado e entrevista­ dor. Este deve ajudar o entrevistado a “ativar” suas lembranças e a estrutu­ rar sua narrativa de modo que tenha fluidez. Lembranças são selecionadas por determinado estímulo, no caso, o roteiro da entrevista. Para evitar o dis­ curso e provocar a narrativa de suas práticas cotidianas, recorremos à histó­ ria de vida, pois facilita ao entrevistado articular suas lembranças em uma narrativa mais pessoal e espontânea, afastando-se do discurso elaborado. Partimos do pressuposto de que a memória, longe de ser um receptáculo passivo, ou um sistema de armazenagem, um ban­ co de imagens do passado, é, isto sim, uma força ativa, que molda; que é dinâ­ mica - o que ela sintomaticamente planeja esquecer é tão importante quanto o que ela lembra e que ela é dialeticamente relacionada ao pensamento histórico, ao invés de ser apenas uma espécie de seu negativo.... Ela porta a marca da ex­ periência, por maiores mediações que esta tenha sofrido. Tem, estampadas, as paixões dominantes em seu tempo. (Samuel, Raphael, 1997, p.44)

No trabalho com a memória, a pesquisa ancora-se ainda nas considera­ ções de Walter Benjamin, com o conceito de rememoração e de experiências vividas, e de Eclea Bosi, reforçando o presente nesse processo de relembrar, assim como em Jeanne Marie Gagnebin, que discute as questões entre ver­ dade e memória do passado. O foco central da investigação é, pelas memórias e práticas de professo­ res da rede pública municipal da cidade de São Paulo, registrar dados que nos possibilitem identificar os professores como sujeitos do conhecimento e o saber docente como plural e temporal, no qual se articulam conheci­ mentos historiográficos, educacionais com as experiências de vida pessoal, social, formação acadêmica e a cultura escolar na qual desenvolvem suas práticas educativas. Para tanto, estávamos interessados em registrar dificuldades e desafios enfrentados assim como ganhos e expectativas quanto ao ensino da Histó­ ria; conhecer suas escolhas pedagógicas no cotidiano escolar: que temas e problemáticas constituem suas opções programáticas? Quais as razões que fundamentam suas escolhas? Quais os fatos e sujeitos históricos privilegia­ dos? Quais os tipos de abordagens mais constantes? Como se relacionam com a produção histórica existente: aceitam, reproduzem ou questionam as versões oficiais? Centralizam suas narrativas no passado ou voltam-se

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para o presente de sua duração histórica, propiciando reflexões que con­ templam a diversidade cultural e social de sua realidade, quer social, quer escolar? O arcabouço teórico apoiou-se nos autores mencionados, que trabalha­ ram com o conceito de saber escolar e saber docente. Forquin lembra-nos que a conservação e a transmissão da herança cul­ tural do passado, função essencial da educação em todas as sociedades, se faz paralelamente a uma reinterpretação e reavaliação contínua daquilo que é conservado. Por uma necessidade vital, o trabalho da memória coletiva supõe sempre uma “capacidade ativa de esquecimento” (1992, p.29). E en­ sinado apenas uma ínfima parte da experiência humana acumulada, pois há seleção e organização por parte do professor. Apoiando-se em Raymond Williams, afirma que o trabalho de cristalização de uma “tradição” consti­ tui dinâmica conflituosa envolvendo uma série de fatores sociais, políticos e ideológicos. Interroga-se, seguindo Bernstein, sobre as condições e as implicações sociais e políticas dos processos de “reforço” ou de atenuação das divi­ sões entre estes diferentes tipos de saberes, os legitimados e os que tendem a ser excluídos do corpo dos saberes ensinados (Forquin, 1992, p.30). Interessa-nos o questionamento de Forquin sobre o valor intrínseco “da coisa ensinada”, sua legitimidade, sentimento partilhado pelo professor e que tem a ver com a sua própria identidade, “pois constitui a especificidade da intenção docente como projeto de comunicação formadora” (1993, p.9). Acrescenta que este tipo de questionamento, existente desde a década de 1960, constitui um “fator essencial da crise da educação”, generalizada e expressa na instabilidade dos programas e cursos. “Não se sabe mais o que verdadeiramente merece ser ensinado a título de estudos gerais: o círcu­ lo dos saberes formadores, aquilo que os Gregos chamavam de ‘enkuklios Paidéia’, perdeu seu centro e seu equilíbrio” (idem, p.10). Essa a questão que nos preocupou: como os professores de História de Pirituba selecionam e justificam a sua opção para ensinar o que ensinam? Dos nossos sete entrevistados, cinco profissionais são nascidos em São Paulo, uma nascida na Bahia, mas que com três meses de idade veio para a paulicéia, e o sétimo é mineiro. Todos, com exceção de um, frequentaram a escola pública. Cinco têm graduação em História, uma em Ciências So­ ciais e outro em Filosofia. Quatro cursaram a PUC-SP, dois a USP e um,

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o seminário. São profissionais na faixa dos quarenta aos cinquenta anos12 com, no mínimo, quatro13e, no máximo, 24 anos de docência. À exceção de um professor, com licenciatura curta em História, os demais obtiveram for­ mação inicial em licenciatura plena em História, formação por eles identifi­ cada como significativa, com influências visíveis em sua prática e, por vezes, presente na forma como justificam suas escolhas. Embora todos enfatizem as dificuldades enfrentadas na vida profissional e o desafio de conseguir a participação dos alunos, o docente com licenciatura curta, em especial, con­ fessa o quanto lutou e luta para se fazer "entendido” e respeitado pelos alu­ nos. Revela como se submeteu às determinações da coordenação da atual escola (Pirituba), diante de suas dificuldades em trabalhar com crianças de 5a e 6a séries e como sucumbiu, temporariamente, “pela força da tradição2’, à pressão dos alunos. Por outro lado, expressa a sua surpresa quando tentou fazer algo diferente: Foi no meu primeiro ano que trabalhei com EJA à noite. Eu cheguei fazendo o que muitos professores de História fazem, quando você pega uma turma mais adulta: aqui vou realizar o meu sonho! Não sei se é o sonho de vocês, mas é o meu e de alguns colegas. De tentar gerar consciência, de trazer alguns temas mais atuais e gerar um debate. O ano passado, trabalhei eleição, até que um dia, tinha um mês, um mês e pouco que estava dando aula, uma aluna, Guiomar, virou pra mim e falou: —Professor quando o senhor vai começar a dar aula? Eu falei: O que é dar aula? Escrever na lousa, professor! O meu caderno não tem nada de história, o senhor só fica enrolando, vindo aqui, ganhando o dinheiro do senhor, não faz nada! —Aquilo pra mim foi um choque muito forte, que me­ xeu com a minha estrutura. Eu achando que estava indo, mas na verdade não estava. Aí eu comecei a adotar com eles, escrever na lousa, dar algumas questões para escreverem, para lerem, e aí, para eles, eu comecei a dar aula, comecei a ser professor. Paralelamente, suas práticas sociais evidenciam um comprometimento político e a busca de caminhos alternativos e do significado da escola e da educação no século atual. A sua opção pela docência está articulada com o

12 Um docente com 34 anos, dois com 39 anos, três na faixa dos quarenta (41,43 e 48 anos) e um professor com cinquenta anos. 13 Quatro anos de docência (dois), cinco anos de docência (um), quinze anos de docência (dois), dezenove anos de docência (um) e vinte e quatro anos de docência (um).

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gosto pela leitura, desencadeada pela escola, familiares ou professores. Lia muito na escola livrinhos da série ‘Vaga-lumes’.”, comenta Patrícia. Shirley esclarece que seu pai, apesar de não ter muita cultura, precisava sentir-se informado. “Lia jornal diariamente”, o que a contaminou. Fazer o Básico na PUC-SP foi definitivo em sua vida, “porque as discussões eram mui­ to sérias, em termos de você se colocar na sua vida”. Influenciou-a, para a História, “a questão do debate, da discussão, da troca de idéias, da eferves­ cência, das teorias. Isso me ajudou muito a me conhecer também”. Luciene afirma que foi uma professora do ensino médio que a levou a fazer História, pois a “fazia viajar”. Acrescenta que sua formação pela PUC-SP “influen­ ciou totalmente a sua prática”, porque incentiva a interpretação, “algo to­ talmente diferente de ler e responder” mecanicamente. Wanderley confessa que a escola lhe proporcionou o espaço no qual era possível pensar algumas coisas. Sua geração pensava que podia ser “algu­ ma coisa” e a História, uma disciplina que poderia ajudar a compreender o mundo em que vivia. Cursar a PUC-SP foi decisivo em sua formação, pois ao ingressar na Universidade era completamente alienado e passou a ver o mundo de outra maneira. Constatou “que não sabia ler, que não sabia escrever” . Descobriu Paulo Freire e o papel do diálogo na educação, o que o marcou como aluno e como professor. Rias não foi somente a formação que o marcou, também os alunos. Denise teve uma trajetória diferenciada. Lecionar não foi a sua primei­ ra opção. Depois que criou os filhos, fez licenciatura e iniciou a carreira docente. Dois professores cursaram o seminário, tendo um deles cursado, tam­ bém, a licenciatura plena. Um foi muito influenciado pela vivência com as Comunidades Eclesiais de Bases e o outro confessa que a “teologia o ajudou tanto na vida pedagógica como na prática de vida”. A relação teoria e prática parece sedimentar o "saber fazer” de cinco dos docentes entrevistados. Dois deles, entretanto, estão mais voltados para as relações pessoais: preocupação em manter aberto o canal de comunicação entre professor e alunos. Dos sete docentes, somente um não usa o livro didático, pois o “texto é horrível”, razão pela qual o substitui por paradidáticos ou romances como, por exemplo, A revolução dos bichos. Dos seis pro­ fessores que adotam livros didáticos, cinco não o seguem como bíblia. Têm o domínio sobre o livro didático, colocando-o a seu serviço e não o contrário.

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Voltam-se, inclusive, para temas atuais abordados pela mídia pois, segun­ do um dos docentes, “é no que eles [os alunos] estão realmente ligados”. O bairro de Pirituba, na visão de um dos docentes, é muito heterogéneo, com condições socioeconômicas muito complicadas. Isso, em sua opinião, talvez explique ‘‘por que as pessoas não sabem exatamente o valor que a escola tem na vida deles”. Conscientes das desigualdades, os profissionais encaram positivamente os problemas atuais da educação. É evidente, para eles, a valorização da escola pelos alunos e familiares, mas não exatamente com a qualidade do ensino, mas com a possibilidade de os alunos receberem material, uniforme, alimentação e transporte. “Se o aluno aprendeu ou não acaba ficando em segundo ou terceiro plano. Você fica pensando: o que é que estamos fazendo aqui na escola?”. Daí valorizarem muito a participa­ ção do aluno em todos os sentidos: leitura, desenhos, dramatizações. Os profissionais entrevistados observam que os interesses dos alunos mudam rápido. A questão da sexualidade, hoje, é muito precoce. “Alu­ nos com doze, treze anos já são praticamente chefes de família” (Patrícia). A dificuldade de leitura e escrita é comentada por todos, mas enfrentada diferentemente. Assim, Denise tem usado a História quase como pano de fundo. Fazê-los entender que as palavras têm um sentido, que eles não podem usar qualquer palavra a qualquer hora. É um trabalho lento e muito chato, porque você tem que ficar batendo na mesma tecla o tempo inteiro. Reforçam a dimensão política e a responsabilidade social do trabalho pedagógico. “Para mim, dar aulas é mais do que trabalhar. É mais do que passar a matéria, é mais do que isso. É uma responsabilidade política muito grande” (Lucilene). Ser professor de História, afirma outra docente, “é ca­ minhar a passos muitos curtos. Você pensa que está andando, mas na reali­ dade não está, você está tentando sair do lugar” (Shirley). Wanderley gosta da escola onde trabalha: Ela é o caos no sentido forte do termo. Todo mundo manda, a merendeira manda, a coordenadora pedagógica manda. O novo diretor, quem sabe, consi­ ga mandar. ... Havia um nível de violência no recreio muito grande [três anos atrás]. Eles se batiam, se chocavam. Hoje, sinto que a violência entre eles é me­ nor. Foi um ganho.

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“Ser professor de História é ter a sensibilidade de ver o todo e as partes. Ponto!” A sensibilidade alegada pelo professor é ressaltada pelo seu colega, para quem há identidade com os alunos da periferia. Acha que ajuda, nessa inte­ ração, a sua história de vida, de família pobre, com pouco acesso cultural: Essas crianças têm direito a ela. Quanto mais pessoas eu conseguir informar, melhor. A questão de buscar, de fazer faculdade, de sonhar, de que é possível você sair deste mundinho, não que esse mundinho seja ruim, mas que você tem que almejar, ter sonhos! ... O que me inquieta muito é que acho que o professor de História é um plantador de sonhos! (Prof. Rodrigo)

Percebemos, pelo exposto, o amálgama de saberes que constitui os sabe­ res docentes deste conjunto de professores de História, de Pirituba, saberes advindos de suas experiências de vida, formação acadêmica e práticas so­ ciais. É possível articular as falas dos professores entrevistados com o ca­ ráter social dos saberes docentes, já assinalado. A este respeito, é instigante uma passagem de hl on íot, a qual nos leva a pensar sobre esse caráter social a que se refere Tardif. í

Para Moniot, a história escolar não precisa buscar nenhuma prática social de referência: ela própria, no sentido de história vivida, é a primeira dessas prá­ ticas sociais. Mas, além disso, a história escolar dialoga com as visões, textos e expressões históricas presentes em diferentes e específicas práticas sociais - a dos autores, diretores e narrativas de filmes históricos, documentários, progra­ mas de televisão, novelas ou peças teatrais; na prática social dos curadores de exposições museológicas, artísticas, científicas; dos jornalistas e comentaristas políticos; dos guias das atividades de turismo; nas práticas cotidianas dos dife­ rentes grupos sociais, entre eles o familiar, e que servem de referência e dialo­ gam com o saber acadêmico na constituição do saber escolar, chegando à escola através dos diferentes meios de comunicação, dos alunos, dos professores e de seus pais. (Apud Monteiro, 2002, p. 106)

Nesse sentido, o pensamento de Jaurés, “na verdade não se ensina o que se sabe, mas o que se é”, expressa essa posição, pois o saber, o conhecimen­ to, interage com outras dimensões do meu eu, articulando pensamentos, valores e práticas. Por outro lado, as vozes destes profissionais remetemnos aos dilemas atuais da profissão docente que, segundo Nóvoa, passam,

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desde 1990, por um processo de exclusão, no qual ocorre uma redefinição que tende a modificar as funções sociais e os papéis profissionais que, tradi­ cionalmente, lhe eram atribuídos (Nóvoa, 1999). No registro das memórias e práticas docentes e nas discussões ao longo do projeto, independentemente das intencionalidades individuais dos docentes (formação para a vida, cidadania), os estagiários identificaram que compete ao professor ser um canal eficaz de transmissão de um “conteúdo discipli­ nar . Perceberam, também, que esta posição não é respaldada, exclusiva­ mente, pelos fundamentos epistemológicos e teóricos. Advém das próprias condições concretas das relações vividas dentro da escola e na sociedade. Para os estagiários, ficou evidente que ao professor compete dominar conhecimentos relativos à sua área disciplinar de tal forma que a interprete e comunique, segundo sua perspectiva, ao aluno a quem ensina. Paralela­ mente, como ser histórico, vivência experiências marcadas pelo seu tempo e espaço, experiências forjadoras de sua trajetória familiar, pessoal, cultu­ ral e profissional. Qualquer que seja a valorização dada pelas pedagogias à ação do professor, sujeito central ou mediador do processo educativo, há temas/conteúdos a serem selecionados e redimensionados. Perspectiva esta evidenciada nas análises de alguns estagiários, dos quais seleciono uma: Num primeiro momento, durante o acompanhamento do estágio, minha visão era baseada em conceitos acadêmicos, o que acredito tenha me levado a posturas pragmáticas e preconceituosas. Acho até que essa rigidez foi prejudi­ cial para um entendimento maior do contexto do professor. Durante a segunda etapa, a preparação para a entrevista, houve uma ampliação no que cabe ao sa­ ber escolar, a possibilidade de um novo olhar. Foi interessante confrontar a en­ trevista, o discurso do professor, com o cotidiano acompanhado em aula. Acho que, a partir daí, é que se pode estabelecer alguma idéia do que é o contexto desse profissional. (Rosana Mastroeni) Neste depoimento como em outros, percebemos que os estagiários iden­ tificaram os conceitos básicos com os quais trabalhamos: cultura escolar e saber docente. Concluindo, desejo enfatizar a importância do registro destes depoimen­ tos como prática organizadora e formadora dos futuros docentes. Processo de formaçao em que ensino e pesquisa não se constituíram em atividades concorrentes mas em complementares, possibilitando, ao licenciando, a

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compreensão de que o ensino é um objeto de pesquisa, reflexão e sistemati­ zação. Em 2006, dando continuidade ao Projeto, estamos trabalhando com professores de História em outro bairro paulistano, o Butantã.

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A

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esco lares: o

l u g a r d a s m e m ó r ia s

Maria Carolina Bovério Galzeranx

A língua indicou, inequivocamente, que a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o seu meio. A memória é o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Walter Benjamin, 1931

O contexto cultural Proponho-me, inicialmente, em breve movimento analítico, a enraizar a temática ora focalizada no contexto cultural, do qual faz parte. Ou seja, concebo-a como expressão de avanços reflexivos coletivos, conquistados nestes últimos vinte anos, no Brasil, em relação, particularmente, ao ensino de História. Refiro-me, inicialmente, ao término do período da ditadura militar em nosso país, nos anos finais da década de 1980 - momento rico, instigante, que gerou inúmeras resistências culturais, engendradas por diferentes seto­ res da sociedade brasileira e, entre eles, professores, alunos, pesquisadores de diferentes níveis e, inclusive, de diversas áreas disciplinares. Resistên­ cia cultural expressa na elaboração em 1986, da Proposta Curricular para o Ensino de História, pela Coordenadoria de Ensino e Normas Pedagógicas (Cenp) do estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Educação, com os seus avanços e recuos. Universidade Estadual de Campinas.

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A PRODUÇÃO DE SABERES HISTÓRICOS ESCOLARES

É interessante observar que esta proposta foi rejeitada amplamente pela mídia, pela Secretaria de Estado da Educação, bem como por parte da academia, como sendo “subversiva”, “perigosa”. O salto qualitativo fun­ damental que propiciou é a concepção do aluno (bem como do professor) como produtor de conhecimentos históricos.1Tal concepção, por sua vez, enraizava-se, naquele momento histórico, tanto em tradições historiográficas (especialmente na marxista cultural inglesa, com as contribuições do historiador Edward Palm Thompson) como em vertentes educacionais (so­ bretudo no construtivismo piagetiano, e nas produções de Paulo Freire). A partir do fim da década de 1980, analisando a relação do contexto nacional com o mundial, constata-se que as pesquisas relativas à chamada educação histórica” beneficiaram-se das produções reflexivas2de historia­ dores da educação, como Ivan Goodson (1990), André Chervel (1990), Dominique Julia (2001), bem como de educadores como Jean-Claude Forquin (1993), Michel Apple (1999), Edgar Morin (2002), além de psicopedagogos como Lev Vigotski (1984), além de outros. Estes intelectuais em suas pesquisas colocaram em ação conceitos como os de cultura(s), escolar(es), saber(es) escolar(es), saber(es) docente(s) entre outros. Estes, por sua vez, têm a potencialidade de trazer à tona dimensões mais relacionais e mais ativas, relativas aos sujeitos produtores de conhecimentos históricos (tanto professores como alunos). í Tal concepção de produção de conhecimento histórico pressupõe o diálogo ativo entre o sujeito e o objeto, com suas respectivas propriedades e qualidades respeitadas, bem como visualizadas em interação dialética. Para o aprofundamento desta discussão, é possível con­ sultar, fundamentalmente, THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981 - além de obras educacionais, consideradas paradigmáticas no Brasil na década de 1980 e que fundamentaram a Proposta Curricular para o ensino de His­ tória da Cenp, São Paulo, em 1986: PIAGET, J. Psicologia e Epistemologia. Por uma teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1973; FREIRE, P. Pedagogia do oprimi­ do. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. Ainda, dediquei-me a tal questão no seguinte artigo: GALZERANI, M. C. B. Políticas públicas, e ensino de história. In: Dez anos de pesquisa em ensino de História. Londrina: UEL, 2005, p. 157-62. 2 Entre tais produções, destacamos as seguintes, com seus respectivos autores: GOODSON, I. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997; CHERVEL, A. História das dis­ ciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria e Educação, n.2, Porto Alegre: Pannonica, 1990, p.177-229; JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de Educação. Campinas: Autores Associados, n.l, jan./jul. 2001, p.9-43; FORQUIN, J. C. Escola e cultura: as bases epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artmed, 1993; APPLE, M. Políticas culturais e educação. Porto: Porto Editora, 1999; MORIN, E. A religação dos saberes. O desafio do século XXL Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002; VIGOTSKI, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

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Em contextos nacionais marcados fortemente pelo avanço da moderni­ dade tardia,3com seus efeitos culturais globalizadores, com a intensificação tecnológica e midiática, com o esfacelamento de práticas socioculturais e de paradigmas de análise, um número cada vez maior de pesquisadores (his­ toriadores, educadores, linguistas),4*de diferentes partes do mundo, tem-se dedicado a compreender os processos de formação da consciência histórica (Pais, 1999; Laville, 1999; Russen, 2001; Huarte, 2001), juntamente com os estudos relativos à cognição em História (Carretero, 1997; Cooper, 1994; Barca, 2000; Lee & Ashby, 2000; Pereira, 2003). No Brasil, particularmente, neste fim da década de 1990, surgiram vá­ rios documentos e orientações oficiais, relativos à educação escolar, como a nova Lei das Diretrizes e Bases da Educação (LDB, 1996), as Diretrizes Curriculares para todos os níveis de ensino e os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino Fundamental e Médio (PCNs,1997 - 1998). Se tais documentos oficiais expressam a continuidade das lutas, das resis­ tências culturais de intelectuais brasileiros dedicados à construção de uma "nova” ordem social, mais justa e inclusiva, por outro lado, tais produções oficiais expressam a sujeição a uma lógica de mercado global, cada vez mais em expansão em nosso país; nesse sentido, representam, ambiguamente, a reprodução de visões comprometidas com a manutenção do stctus quo. A análise da tessitura discursiva dos PCNs revela verdadeira guerra de símbolos, em que a concepção de aluno como produtor de conhecimentos 3 No que respeita ao conceito de modernidade tardia, ver GIDDENS, A. Modernidade e iden­ tidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. 4 Entre estes pesquisadores, imprimo destaque aos seguintes, com as suas seguintes obras: PAIS, J. M. Consciência histórica e identidade. Oeiras: Celta, 1999; LAVILLE, C. Além do conhecimento produzido e disseminado. Consciência histórica e educação histórica. Traba­ lho apresentado no IX Encontro Regional da ANPUH-MG, Belo Horizonte, julho 2002. Extraído de www.fae.ufmg.br/ANPUH; RUSSEN, J. Razão Histórica. Teoria da Histó­ ria, fundamentos da ciência histórica. Brasília: UnB, 2001; HUARTE, G.La historia y los contenidos básicos comunes de ciências sociales en el tercer ciclo de la educación general básica. FLACSO (Tesis de Maestria-Inédita) Buenos Aires, 2001; CARRETERO, M. Construir e ensinar as Ciências Sociais e a História. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997; COOPER, H. The teaching os History inprimary shools. Londres: David Fulton Publishers, 1994; BARCA, I. O pensamento histórico dos jovens. Braga: Universidade do Minho, 2000; PEREIRA, M. do C. M. E. O conhecimento tácito histórico dos adolescentes. Braga: Universidade do Minho, 2003; LEE, P. e ASHBY, R. Progression in Historical Understanding among students ages 7-14. In: STEARNS, P. et al. Knowing, Teaching and leaming Historiy. New York: New York University Press, 2000.

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históricos é apresentada, mas, ao mesmo tempo, contraditoriamente apa­ gada. Ou seja, até que ponto o que prepondera, ainda, nesta argumentação são as visões “científicas”, as que devem ocupar o alto da pirâmide cultu­ ral, hierarquizadora dos saberes? Até que ponto o que prepondera são os conhecimentos academicamente dados —mesmo que considerados mais “críticos” - apresentados para serem transpostos para a cultura escolar de maneira que assegure o prevalecimento das visões homogeneizadoras, as produtoras dos “cidadãos, concebidos como economicamente na sua utili­ dade máxima e politicamente dóceis”.5Para problematizar tal questão, ele­ jo, neste momento, a temática da produção de saberes escolares na relação com o conceito de memória.

A memória em foco Por que eleger a memória para problematizar a produção de saberes his­ tóricos escolares? Por que hoje, nas pesquisas histórico-educacionais, fala-se tanto em memória? Trata-se, sem dúvida, de uma construção histórica, muitas vezes natu­ ralizada. Contudo, deve ser localizada historicamente, sobretudo, nos anos 1970, diante da crise da modernidade capitalista, no pós-guerra. Neste mo­ mento, passam a prevalecer, culturalmente, as incertezas relativas ao futu­ ro, a crise das utopias e, ao mesmo tempo, ocorrem fortes questionamentos ao prevalecimento do Estado Nacional, como produtor de uma história concebida como memória nacional, única e homogénea. Grupos minoritários, com maior determinação, em diferentes partes do mundo, posicionam-se, requerendo as suas próprias e diferentes memórias. Diante das incertezas, o passado passa a seduzir muito mais do que o futuro, e tal sedução imbrica-se à lógica capitalista dominante, transformando me­ mórias em meros objetos comercializáveis, fetiches para o consumo - pelo menos como tendência cultural prevalecente.6Fetiches, “fantasmagorias”, 5 FOUCAULT, M. Microftsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984. 6 A este respeito consultar, HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeropla­ no, 2000.

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diria Walter Benjamin,7escamoteando as singularidades espaço-temporais, bem como as relações sociais, plurais, contraditórias. Um dos grandes méritos das reflexões do historiador Pierre Nora8(1997), na relação com os estudos do sociólogo Maurice Halbwachs9 (1990), é, jus­ tamente, diferenciar historicamente os conceitos de memória e de história; memória, como tradição artesanal, afetiva, múltipla, vulnerável; história como disciplina, com estatuto científico, considerada reconstrução intelec­ tual problematizadora, que demanda análise e explicação. É importante observar, além disso, num pequeno esboço analítico em que não podem passar desapercebidas as tensões, as guerras de símbo­ los -, que a tradição historiográfica ocidental localiza na antiguidade grecoclássica o lócus onde se originaram tais concepções. Em Platão,10por exemplo, o conceito de memória surge como sinónimo de conhecimento. Conhecimen­ to portador de uma dimensão mística, visualizada como o reconhecimento, via instrução, de saberes de outras vidas, que se perderam com esta encar­ nação. O conceito de história, entre os gregos antigos, por sua vez, deriva de historie, significando procurar, investigar. No fim do século XIX é produzido o conceito de história como disciplina: este passa a dissociar-se das artes e da filosofia e adquire conotações técnicas e científicas.11 No fim dos oitocentos, com o avanço da modernidade capitalista, ocorre, pois, a hierarquização dos saberes, o prevalecimento da história (como ciência, como disciplina), em relação à memória. Quanto à pedagogia moderna,12 centrada na educação escolar, esta preconiza, de um lado, a desqualificação da memória, conce­ bendo-a como mera decoração. De outro, tal pedagogia organiza o currícu­ lo de maneira que privilegie os saberes considerados científicos e técnicos. 7 Consultar, especialmente, o artigo de BENJAMIN, W. Paris, capital do século IX. In: KOTHE, F. R. (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985. 8 NORA, P. Entre memóire et Histoire. La problematique des lieux.In Lieux de memóire. Paris: Gallimard, 1997. 9 HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice,1990. 10 Consultar a este respeito, TADIÉ, J.-Y. e MARC. Le sens de la mémoire. Paris: Editions Gallimard,1999. 11 Ver LE GOFF, J. Memória/História, Documento/Monumento. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional, 1984. v.l; GALZERANI, M. C. B. Memória, tempo e Histó, ria: perspectivas teórico-metodológicas para a pesquisa em ensino de história. In: Anais do VII Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História. Belo Horizonte: UFMG, no prelo. 12 CORTEZ, C., SOUSA, C. de. Escola e memória. Bragança Paulista: Ed. USF, 2000.

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Se focalizarmos, por sua vez, as pesquisas de historiadores anglo-saxônicos,13como James Fentress e ChrisWichham (1992), Tomas Butler (1989), Patrick J. Geray (1996), voltadas, sobretudo à história oral, encontraremos registros de denúncias em relação ao caráter dicotômico, hierarquizador dos saberes, desqualificador das memórias, presente nos trabalhos de Halbwachs - extensíveis, por conseguinte, às produções de Pierre Nora. Observe-se que até mesmo nas importantes contribuições destes inte­ lectuais, relativamente às memórias, podemos flagrar efeitos de sentido, comprometidos com as tramas culturais dominantes na modernidade ca­ pitalista. Particularmente em Pierre Nora, podemos flagrar uma concepção de memória historicizada, convertida em mero objeto da História, qué não mais existe e que só se faz presente pelas luzes da História (sicl). Contudo, os críticos da tradição anglo-saxônica, antes citados, na ten­ tativa de aproximar a memória da história, o fazem em demasia, acabando por diluir as contribuições específicas da primeira, como os esquecimentos, as dimensões afetivas, as involuntárias - e que potencializam, também, tra­ zer à tona pessoas mais inteiras, menos partidas.14 Portanto, o que estou tentando explicitar é o quanto é difícil, nas prá­ ticas de pesquisa, de ensino, colocarmos em ação o conceito de memória na contemporaneidade, se queremos, de fato, produzir movimentos mais dialogais entre os diferentes sujeitos, portadores de diferentes experiências na produção de conhecimento histórico. O quanto é difícil rompermos com as amarras culturais, presentes na cotidianidade acadêmica, escolar e ousar­ mos inventar novas trilhas, relativas à educação histórica. Nesse sentido, vale, também, observar que se as práticas contempo­ râneas de memória constituem resistências culturais ao prevalecimento da imagem da História como senhora absoluta do passado - imagem esta 13 Entre tais pesquisadores, destaco os seguintes, com suas obras respectivas: BUTLER, T. (Org.). History, culture and the mind. Londres: Basil Blackell, 1989; FENTRESS, J., WICKHAM, C. Social memory. Oxford: Blackell,1992. 14 A historiadora Jacy Alves de Seixas, em instigantes trabalhos recentes, tem chamado a aten­ ção para forte presença das tradições historiográficas francesa e anglo-saxônica, no contexto das pesquisas nacionais relativas às memórias. As críticas relativas às perspectivas hierarquizadoras dos saberes —entre outras —, perceptíveis nas obras de Halbwachs e de Nora, também são por ela compartilhadas. Ver sobre este tema: SEIXAS, J. A. Percursos de memó­ rias em terras de História: Problemáticas atuais. In: BRESCIANI, M. S. M. e NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (Re)Sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001, p.37-53.

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centrada na racionalidade técnica de outro lado, estas mesmas práticas de memória, fundadas na valorização da subjetividade, muitas vezes, têm corroborado para a radicalização das mesmas subjetividades,15fortalecendo as práticas culturais intimistas, que tanto fazem sentido à preservação e ao avanço da modernidade capitalista na contemporaneidade. Para enfrentar tal desafio, proponho um diálogo com as contribuições do filósofo, ensaísta, crítico-literário, poeta, tradutor e hedonista alemão Walter Benjamin.16 Analista sensível e, ao mesmo tempo, crítico mordaz em relação ao avanço da modernidade capitalista, produz imagens relativas às memórias profundamente questionadoras das tendências culturais mo­ dernas, hoje em processo de radicalização. Refiro-me ao individualismo, ao narcisismo, à compartimentalização e à hierarquização das práticas sociais, dos saberes, à derrocada da esfera pública. Em textos da década de 1930,17*focaliza os sentidos da memória por diá­ logos estabelecidos com o filósofo Henri Bergson, com os literatos Mar­ eei Proust, Charles Baudelaire e Edgar Allan Poe, além da psicanálise, de Freud a Jung - entre outros. Nesta focalização, destaca o entrecruzamento de presente e passado, de diferentes localidades, do eu e do nós, de diferen­ tes visões sociais de mundo, de racionalidade e de sensibilidade, de cons­ ciente e de inconsciente. Acompanhemos seu olhar poético, produtor de 15 Vide RICOEUR, P. Le mémoire, Vhistoire, ioubli. Paris: Seuil, 2000. 16 Há no Brasil uma considerável bibliografia dedicada aos estudos relativos a tal pensador. Na área da educação, destaco os trabalhos de KRAMER, S. e, em particular, Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo: Ática, 1993, no qual inspirada, sobretudo, pelo pensa­ mento benjaminiano, dispõe-se a escovar fragmentos da educação contemporânea brasileira a contrapelo. Nos últimos anos, venho também dedicando-me a tais estudos, tentando inventar brechas educacionais, articulando os campo da memória, da história e da educação. Ver, pois, alguns destes últimos trabalhos por mim produzidos: GALZERANI, M. C. B. Imagens entrecruzadas de infância e de produção de conhecimento histórico em Walter Benjamin. In: GOULART DE FARIA, A. L.; FABRI, Z. de B.; PRADO, P. D. (Orgs.). Por uma cultu­ ra da infância. Metodologias de pesquisa com crianças. Campinas, SP: Autores Associados, p.48-68,2002; Memória, História e (re)invenção educacional: uma tessitura coletiva na escola pública. In MENEZES, M. C. (Org.). Educação, memória, história. Possibilidades, leituras. Cámpinas: Mercado das Letras, 2004, p.287-330; Memória, tempo e História: perspectivas teórico-metodológicas para a pesquisa em ensino de história, op. cit.; Percepções culturais do mundo da escola: em busca da rememoração. In: Anais do III Encontro Nacional de Pes­ quisadores do Ensino de História, Campinas, Gráfica da F.E./UNICAMP, p.99-108,1999. 17 Entre os textos produzidos por Benjamin neste período, enfatizamos: Crónica Berlinense, Infância em Berlim por volta de 1900, Experiência e pobreza, O narrador. A Paris do Segun­ do Império em Baudelaire, Sobre alguns temas em Baudelaire.

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alegorias: “Para o autor, que recorda, o principal não é o que ele viveu, mas o tecer de sua recordação, o trabalho de Penélope da rememoração”.18 Ou seja, rememorar para Benjamin é um ato político, com potenciali­ dades de produzir um “despertar” dos sonhos, das fantasmagorias, para a construção das utopias. Despertar que possibilita trazer imagens do pas­ sado vivido, como opção de questionamento das relações e sensibilidades sociais, como uma busca atenciosa relativa aos rumos a serem construídos, sobretudo, no presente. Benjamin articula o conceito de memória ao de narrativa. A narrativa experiência que, segundo o autor, tende a desaparecer com a modernidade - é por ele concebida como a transmissão de saberes entre as gerações, fundada na circulação coletiva de tradições, de sensibilidades, na acepção plural de verdade, na relação do narrado com o vivido, na dimensão mais ampla de ser pessoa (portadora de consciência e inconsciência), e, sobretudo, na recuperação da temporalidade. Nesse sentido, para Benjamin a narrativa não existe sem a memória, não existe sem sua vinculação com as dobras do tempo. Por sua vez, a recuperação da memória benjaminiana pressupõe a narrativa das experiências vividas entre diferentes gerações. Ficam aqui, pois, algumas das imagens benjaminianas, ressignificadas por mim muito mais como um convite aos leitores para a realização de ou­ tras “viagens”19 pelos textos benjaminianos. “Viagens” abertas à produção de significados, plurais, inventivos!

A produção de saberes históricos escolares - processo ou produto? Pensamento histórico ou entendim ento? Autonom ia ou subordinação? Estas categorias analíticas nos foram propostas pelo historiador cana­ dense Christian Laville, em texto por ele produzido no ano de 2002, rela18 BENJAMIN, W. A imagem de Proust. In: Magia, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.37. (Obras escolhidas) v.l. 19 Erfahrímg, expressão, no original alemão, significando tanto viagem como experiência. Ver, especialmente, os artigos “Experiência e pobreza” e “O narrador". In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. (Obras escolhidas) v.l, op. cit, respectivamente, p.114-9, 197-221. Ver, também, BENJAMIN, W. Rua de mão única. (Obras escolhidas) v.2. São Pau­ lo: Brasiliense, 1987; BENJAMIN, W. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. (Obras escolhidas) v.3. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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tivo à produção de saberes históricos escolares. É importante destacar que não estão sendo aqui concebidas de maneira dicotômica. Muito mais, são possibilidades de se captar os movimentos relacionais, ambivalentes, pre­ sentes na complexidade das práticas educativas. É possível rompermos em relação à pedagogia da história devotada à Nação/Estado, cujo objetivo era promover no cidadão o senso de inclusão e de respeito pela ordem estabelecida? Pedagogia devotada à produção da consciência histórica concebida de maneira homogénea, unidimensional? E possível superamos uma história didática tradicional, com seus con­ teúdos a priori definidos, com seu currículo manejável e com valores préacondicionados? Como construir uma pedagogia baseada no que chama­ mos de pensamento histórico? Pensamento complexo, que vai muito além das abordagens fragmentadas, sem reproduzir o utopismo da primazia do todo. Uma visão abrangente, que deve nascer da complementaridade, do en­ trelaçamento, da relação, “do pensamento do abraço”, inclusive entre dife­ rentes campos dos saberes.20 Desde os anos 1970 e 1980, ensinar os estudantes a pensar historica­ mente tornou-se um dos principais objetivos da educação histórica. Tal abordagem, segundo Christian Laville: J encoraja o desenvolvimento destas qualidades intelectuais e afetivas que os es­ tudantes precisarão no exercício de suas responsabilidades cívicas. Ele recru­ ta as faculdades críticas comuns a historiadores - sua habilidade em isolar um problema, analisar suas partes componentes e oferecer uma interpretação - as­ sim como suas qualidades de curiosidade, empatia, etc., todas elas construídas sobre uma fundação sólida de razão analítica.21

O historiador canadense, dedicando-se à educação, neste movimento reflexivo, aproxima a história produzida pelos alunos da reflexão dos histo­ riadores, deixando de lado as hierarquizações dos saberes, já tão cristaliza­ das nas práticas culturais e, particularmente, nas educativas. Rompe com uma visão estabelecida pela racionalidade instrumental, prevalecente com o avanço da modernidade capitalista, que lida com o aluno como portador, apenas, de racionalidade e não de sensibilidades. 20 MORIN, E. A religação dos saberes. O desafio do século XXI, op. cit. 21 LAVILLE, C., op. cit., p.2-3.

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Mas, como pôr em prática tal educação histórica voltada para o desen­ volvimento do pensamento histórico? O papel do professor, segundo Laville, é fornecer as ferramentas reflexivas para tal, de modo que lhes permita a expressão e a produção de pensamentos autónomos. O próprio Laville destaca a tendência cultural, presente nas práticas educativas por ele anali­ sadas, de retomada das permanências pedagógicas, comprometidas com a manutenção da ordem social dominante. Ou seja, a permanência da busca, por parte do professor, do entendimento do texto pelo aluno, o que implica o retorno às narrativas preestabelecidas. A continuidade da ótica docente que privilegia não o processo de produção de conhecimento, mas a aquisição do produto. Não a habilidade do raciocinar, articulando hipóteses subjeti­ vas ao objeto - produzindo argumentos capazes de desvelar contradições e apresentar vieses culturalmente dissonantes -, mas a produção de mais um texto radicalmente subjetivo, em um mundo moderno de hipertextos. Podemos avançar na análise destas amarras do próprio sistema capitalis­ ta, no que respeita à produção de saberes histórico-escolares e em relação à própria reflexão de Christian Laville, retomando o conceito de memória. Este - o conceito de memória —está presente na ótica analítica do pen­ sador canadense, ao reconhecer que as pesquisas (sobretudo as européias) contemporâneas, relativas à consciência histórica, incluem os conceitos de memória e de identidade. Contudo, tais conceitos figuram em sua produção como “ferramentas” possíveis de serem postas em ação pelo historiador-educador. A proposta de trabalho com a memória é apresentada por Walter Benja­ min por uma linguagem diferente da de Laville, em seu artigo “Imagens do pensamento”22- ainda que haja entre ambos conexão de sentido. Retome­ mos as inspiradas palavras do autor, já apresentadas no início do texto em forma de epígrafe, lembrando que estas (as palavras) não apenas escamo­ teiam sentidos, mas, sobretudo, os revelam:23 A língua indicou, inequivocamente, que a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o seu meio. A memória é o meio onde 22 In BENJAMIN, W. Rua de mão única. (Obras escolhidas) v.2. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.143-277. 23 Concebo a linguagem, nas pegadas deMichel Foucault (1987), como plena de “positividades” e não apenas como máscara que escamoteia os sentidos. Entre outras obras de FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1987.

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se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas.24

Nesta aproximação podemos apreender que a retomada da categoria de memória como meio, como palco da produção de saberes históricos, implica a negação explícita da matriz da racionalidade técnica, instrumental - que predomina nas práticas acadêmicas, escolares hodiernas - e a aproximação com a “racionalidade estética”.25 Não se trata, nas práticas educativas, de assumir a lógica do manejar os saberes (inclusive, as memórias) em uma relação de exterioridade e de plena posse e domínio, com o objetivo, muitas vezes não explícito, de manter a posse e o domínio em relação ao aluno, o outro... Não se trata de hierar­ quizar os saberes, historiográficos, científicos, ou experienciais, relativos às memórias, inclusive, intitulando estes últimos como "senso comum” . Não se trata de separar dicotomicamente - como se fossem blocos monolíticos - os mesmos saberes. Não se trata, portanto, de separar o sujeito do objeto, os sujeitos dos sujeitos e nem, muito menos, apartar os sujeitos produtores de saberes das experiências vividas. Trata-se, sim, de reconhecer que, nas práticas de educação histórica, professores e alunos produzem saberes no palco das memórias, concebido sempre em movimento. Memórias-meio com a potencialidade de ressignificarmos, os conceitos de História e de Educação —atuando como brechas, alternativas, no interior das “ruas de mão única”, que, muitas vezes, domi­ nam os cenários da cultura escolar contemporânea. Se conceber a memória como meio, como palco das práticas relativas à temporalidade, ela deverá envolver todos os sujeitos que participam, direta e indiretamente, neste caso, da comunidade escolar. Portanto, pressupõe uma amálgama de diferentes saberes, de diferentes dimensões, situados em dife­ rentes vivências ou experiências vividas. Pressupõe, ao mesmo tempo, intera­ ções entre diferentes temporalidades, diferentes espaços, diferentes sujeitos. A memória-palco é lugar, ou seja, vale-se de lugares simbólicos para se exprimir, materializar-se. Nesse sentido, considero esta dimensão como própria, intrínseca à memória e não como exterior a ela - e problematizo, 24 BENJAMIN, W„ op. cit., p.239. 25 MATOS, O. Os arcanos do inteiramente outro. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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igualmente, a noção de lugar de memória” produzida por Pierre Nora (1997), como memória histoncizada, memória que é possível, segundo ele de ser somente atualizada pelas luzes da História...26 Ousar, como poetas alegoristas, apesar das incertezas.... Ora, se quisermos ousar construir uma educação história alternativa, comprometida com a emancipação, com a constituição de uma sociedade mais justa, é fundamental, como professores de História, que consigamos nos beneficiar das contribuições benjaminianas relativas à memória. Com ela podemos nos inspirar para retomar as possibilidades do diálogo entre os saberes historiográficos, educacionais e os saberes experienciais2728 ou os de memória. Diálogo capaz tanto de problematizar os abusos da me­ mória como de trabalhar (historiográfica-educacionalmente) as memórias, beneficiando-se de suas contribuições cognitivas, sensíveis. Contribuições, por exemplo, relativas à ampliação - tanto do ponto de vista social como psicológico - da concepção de ser sujeito (portador de racionalidade/sensibilidade, consciência/inconsciência, memória, esqueci­ mento). Ainda, a concepção de produção de conhecimento histórico, muito mais articulada à vida, como “viagem”, como experiência que sempre parte do e retorna ao presente, abrindo possibilidades para o futuro. Produção de saberes históricos escolares que se propõe como um exercício dialogai, aberto à interação com o outro, imbricado nas experiências vividas, que não se posiciona como verdade absoluta, mas, pelo contrário, que renuncia a tudo preencher, para deixar que algo do outro possa dizer-se. Nesse sen­ tido, produção de saberes históricos escolares que se aproxima do conceito benjaminiano de narrativa.

os tempos passados em tempos redescobertos - na produção dos saberes históricos escolares —, possibilitando conferir às experiências outrora vivi­ das atualizações de significados. Enfim, reconheço que trabalhar com educação história pela raciona­ lidade estética” no contexto contemporâneo da modernidade tardia, espe­ cialmente das culturas e práticas escolares hodiernas, não é fácil. Muitos são os desafios a enfrentar. Porém, parafraseando Mário Quintana, podemos registrar; Se as coisas são inatingíveis - Ora! Não é motivo para não querê-las Que tristes os caminhos, se não fora... A mágica presença das estrelas?29

Enfim, caberá a cada professor de História, a cada educador, atuar na mediação da produção dos saberes históricos escolares pelos próprios alu­ nos, de forma que permita a emergência da diversidade das narrativas, con­ tribuindo para a construção de relações educacionais mais dialogais e mais estimulàntes, culturalmente. O desafio está posto. As possibilidades - ainda que tênues, marginais, não definitivas - estão abertas. Abertas em nosso presente, neste momento singular, único para nos percebermos vivos, criativos, atuantes socialmen­ te. Fica) novamente, o convite —talvez o alerta —sobretudo para aqueles, como Benjamin, como poetas alegoristas, que conseguem se inspirar para (re)inventar o próprio presente.

Com tais propostas, podemos também nos acercar da “racionalidade estética . Esta que liberta o imaginário e a diversidade, em todas as suas dimensões (na linguagem escrita e falada, na expressão corporal, na produ­ ção de imagens, de símbolos). Racionalidade estética que permite a explici­ tação de pontos de vista e não de pontos fixos; racionalidade que transforma 26 Ver também a este respeito, o artigo de SEIXAS, J. A. de. Os tempos da memória: (des)contmuidade e projeção. Uma reflexão (in)atual para a História?. Projeto História (São Paulo) (24), jun. 2002, p.43-63. 27 TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. 28 Consultar sobre este tema: RICOEUR, P. Le mémoire, l"histoire, 1’oubli. Paris: Seuil, 2000; TODOROV, T. Les abus de la mémoire. Paris: Arléa, 1995.

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29 QUINTANA, M. Espelho mágico. Porto Alegre: Globo, 1951, p.52.

SO B R E O LIVRO Formato : 16 x 23 cm Mancha: 27,5 x 49,0 paicas Tipologia : Horley O ld Style 11/15 Papel: Offset 75 g/m2 (miolo) Cartão Supremo 250 g/m2 (capa) V edição: 2008 Edição de texto Regina Machado e Antonio Alves (Preparação de original) Agnaldo Alves (Revisão) Editoração Eletrónica Eduardo Seiji Seki (Diagramação)

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