O Grande Desconhecido – O Espírito Santo e seus dons [1 ed.] 9788584910731

Quando São Paulo chegou pela primeira vez a Atenas, entre os inumeráveis ídolos de pedra que preenchiam as ruas e praças

994 99 1MB

Portuguese Pages 352 Year 2016

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD FILE

Polecaj historie

O Grande Desconhecido – O Espírito Santo e seus dons [1 ed.]
 9788584910731

Citation preview



ecclesiae

O grande desconhecido

fr. anton io royo marí n, o.p.

O grande desconhecido O Espírito Santo e seus dons

Tradução de Ricardo Harada



ecclesiae

O grande desconhecido – o Espírito Santo e seus dons Fr. Antonio Royo Marín, O.P. 1ª edição – agosto de 2016 – CEDET Copyright © 1972 – BAC (Biblioteca de Autores Cristianos) Título original: El gran desconocido: el Espíritu Santo y sus dones.

Os direitos desta edição pertencem ao CEDET – Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua João Baptista de Queiroz Junior, 427 – Jardim Myrian Moreira da Costa CEP: 13098-415 – Campinas – SP Telefones: (19) 3249-0580 / 3327-2257 / 3257-0992 e-mail: [email protected] Editor: Diogo Chiuso Tradução: Ricardo Harada Revisão: Paulo Rodrigo Chiuso Capa & Diagramação: J. Ontivero

Conselho Editorial: Adelice Godoy César Kyn d’Ávila Diogo Chiuso Silvio Grimaldo de Camargo Thomaz Perroni

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

Índice  Introdução .....................................................................................................13 capítulo I – O Espírito Santo na Trindade ..............................25 1. a geração do mundo ........................................................................28 2. A processão do espírito santo ........................................................32 capítulo ii –

O Espírito Santo na Sagrada Escritura ............37

..........................................................................38 ..............................................................................40

1. Antigo testamento 2. novo testamento

capítulo iii –

Diferentes nomes do Espírito Santo .....................45

1. nomes próprios da terceira pessoa divina .......................................50 2. nomes apropriados ao espírito santo

capítulo iv –





............................................54

O Espírito Santo em Jesus Cristo .....................59

1. A encarnação

......................................................................................60

2. A santificação ......................................................................................62 3. O batismo

...............................................................................................66

4. As tentações no deserto ....................................................................68 5. A transfiguração .................................................................................74 6. Os milagres ............................................................................................76 7. a doutrina evangélica

......................................................................78

8. Atividades humanas ............................................................................82

capítulo v – O Espírito Santo na Igreja ..........................................85



...................................................................................90 ..................................................................................92 3. move e governa a igreja ...................................................................94 1. unifica a igreja

2. vivifica a igreja

O Espírito Santo em nós .......................................99 I. A graça santificante ........................................................................100

capítulo vi –



1. O que é a graça .............................................................................100



2. Efeitos da graça santificante

II.

...............................................106

A inabitação trinitária na alma ................................................112 1. existência ....................................................................................112 2. natureza ....................................................................................114 3. finalidade ....................................................................................119 4. inabitação e sacramentos ........................................................132 a) A Eucaristia ..............................................................................133 b) A confirmação ...........................................................................135

Ação do Espírito Santo na alma .....................141 I. As virtudes infusas ............................................................................142 1. natureza .......................................................................................143 2. existência .....................................................................................144 3. divisão ...........................................................................................144 3. como atuam ...............................................................................145 capítulo vii –

.............................................................148



II. os dons do espírito santo



III. os frutos do espírito santo



IV. As bem aventuranças evangélicas

1. os dons de deus ............................................................................148 2. existência .....................................................................................149 3. número dos dons .......................................................................151 4. natureza .....................................................................................152 5. a moção divina dos dons .......................................................154 6. necessidade dos dons do espírito santo ............................158 7. o modo deiforme dos dons do espírito santo .....................161

capítulo Viii –



....................................................169 ...........................................................171 3. natureza do dom de temor ............................................................175 4. seu modo deiforme ............................................................................175 5. virtudes relacionadas ....................................................................177 6. efeitos do dom de temor nas almas ...............................................182 7. bem aventurança e frutos que dele se derivam .......................187 8. vícios opostos ....................................................................................189 9. meios para fomentar este dom ......................................................190 2. diferentes classes de temor

O dom da Fortaleza ............................................195

1. natureza . ............................................................................................195 2. importância e necessidade . .............................................................200 3. efeitos que produz na alma . .........................................................207 4. bem aventuranças e frutos correspondentes . .......................212 5. vícios opostos . ...................................................................................213 6. meios de fomentar este dom . .....................................................214

capítulo x –



O dom de temor de Deus ...................................169

1. é possível que deus seja temido?

capítulo Ix –



........................................................165 ............................................166

1.natureza

O dom da Piedade ...................................................217

..............................................................................................217

2. importância e necessidade ...............................................................219 3. efeitos que produz na alma ................................................................221 4. bem aventurança e frutos que dele se derivam

........................227



5. vícios opostos . ...................................................................................228 6. meios de fomentar este dom . .....................................................231

capítulo xI – O



dom do Conselho ...................................................227 ..............................................................................................238 2. importância e necessidade ...............................................................239 3. efeitos que produz na alma ................................................................240 4. bem aventurança e frutos que dele se derivam ........................246 5. vícios opostos . ...................................................................................246 6. meios de fomentar este dom . .....................................................247 1.natureza

O dom do Ciência .....................................................251 ..............................................................................................252 2. importância e necessidade ...............................................................255 3. efeitos que produz na alma ................................................................256 4. bem aventurança e frutos que dele se derivam ........................264 5. vícios opostos . ...................................................................................265 6. meios de fomentar este dom . .....................................................267

capítulo xI –



1.natureza

O dom do Entendimento ......................................271 ..............................................................................................271 2. importância e necessidade ...............................................................274 3. efeitos que produz na alma ................................................................276 4. bem aventurança e frutos que dele se derivam ........................282 5. vícios opostos . ...................................................................................283 6. meios de fomentar este dom . .....................................................286

capítulo xI –



1.natureza

O dom da Sabedoria ................................................291 ..............................................................................................291 2. importância e necessidade ...............................................................297 3. efeitos que produz na alma ................................................................300 4. bem aventurança e frutos que dele se derivam ........................309 5. vícios opostos . ...................................................................................309 6. meios de fomentar este dom . .....................................................311

capítulo xI –



1.natureza

A fidelidade ao Espírito Santo ..........................319 ..............................................................................................320 2. importância e necessidade ...............................................................323 3. eficácia santificadora ........................................................................328 4. modo de praticá-la ..........................................................................331 5. como reparar nossas infidelidades . ...........................................342 6. Consagração ao Espírito Santo . .....................................................348

capítulo xI –



1.natureza

À Imaculada Virgem Maria, esposa fidelíssima do Espírito Santo e exemplar acabadíssimo de perfeição e santidade.

Introdução

Quando São Paulo chegou pela primeira vez a Atenas, entre os inumeráveis ídolos de pedra que preenchiam as ruas e praças e que renderam ao satírico Petrônio sua famosa frase de “ser mais fácil nesta cidade encontrar-se com um Deus do que com um homem”,1 chamou-lhe a atenção de maneira poderosa um altar com a seguinte inscrição: “ao Deus desconhecido”, o que lhe deu a oportunidade e ocasião para seu magnífico discurso no Areópago: “pois bem, aquilo que adorais sem conhecer, eu vos anuncio”.2

Mais tarde, ao chegar novamente o grande Apóstolo à cidade de Éfeso, buscou alguns discípulos que já haviam aceitado a fé cristã e lhes perguntou: “vós recebestes o Espírito Santo quando 1.  Petrônio, Satiricon, 17. 2.  At, 17, 23.

13

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

abraçastes a fé?”. Eles responderam: “nem sequer ouvimos dizer que existe Espírito Santo!”.3 Mesmo que pareça incrível, depois de vinte séculos de cristianismo, se São Paulo voltasse a formular a mesma pergunta a uma grande multidão de cristãos, obteria uma resposta muito parecida àquela tão desconcertante que lhe deram os primeiros discípulos de Éfeso. Em todo caso, mesmo seu nome soando materialmente familiar, é muito pouco o que sabem d’Ele a imensa maioria dos cristãos atuais. Cremos ser oportuno, antes de mais nada, expor os principais motivos e as tristes consequências deste lamentável esquecimento da adorável pessoa do Espírito Santo.4  a) falta de manifestações O primeiro motivo da ignorância geral a respeito da terceira pessoa da Santíssima Trindade, obedece, quiçá, a suas próprias manifestações muito pouco sensíveis e, por isso mesmo, muito pouco perceptíveis para a imensa maioria dos homens. Se conhece muito bem ao Pai, se lhe adora e ama. Como poderia ser de outra maneira? Suas palavras são palpáveis e estão sempre presentes aos nossos olhos. A magnificência dos céus, as riquezas da terra, a imensidão dos oceanos, o ímpeto das 3.  At 19, 2. 4.  Cf. Arrighini, Il Dio ignoto (Turin, 1937). Compilamos aqui as

principais ideias da introdução.

14

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

torrentes, o rugir dos trovões, a harmonia maravilhosa que reina em todo o universo e outras mil coisas admiráveis repetem continuamente, com soberana eloquência e ao alcance de todos, a existência, a sabedoria e o formidável poder de Deus Pai, Criador e Conservador de tudo quanto existe. Conhecemos, adoramos e amamos imensamente também ao Filho de Deus. Seus predicados não são menos numerosos nem eloquentes que os de seu Pai celestial. A história tão comovedora de seu nascimento, vida, paixão e morte; a cruz, os templos, as imagens, o cotidiano sacrifício do altar, suas numerosas festas litúrgicas recordam a todos continuamente os diferentes mistérios de sua vida divina e humana; a eucaristia, sobretudo, que perpetua sua presença real, ainda que invisível nesta terra, faz convergir a Ele o culto de toda a Igreja Católica. Mas com o Espírito Santo, as coisas ocorrem de forma diversa. Mesmo sendo verdade, como disse admiravelmente São Basílio e como veremos amplamente ao longo destas páginas, “tudo quanto as criaturas do céu, e da terra possuem na ordem da natureza e da graça, provém d’Ele de modo mais íntimo e espiritual”,5 a santificação que opera em nossas almas e a vida sobrenatural que difunde por todas as partes, escapam em absoluto à percepção dos sentidos. Nada mais visível do que a criação do Pai e nada mais oculto do que a ação do Espírito Santo. 5.  São Basílio, De Spiritu Sancto c.29 n.55.

15

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Por outra parte, o Espírito Santo não se encarnou como o Filho, não viveu e nem conversou visivelmente com os homens. Só três vezes se manifestou sob um signo sensível, embora simples e passageiro: em forma de pomba sobre Jesus ao ser batizado no rio Jordão, de nuvem resplandecente no monte Tabor e de línguas de fogo no cenáculo de Jerusalém. A isso se reduzem todas as teofanias evangélicas e nenhuma outra, ao que parece, teve lugar em toda a história da Igreja; razão pela qual sabiamente a própria Igreja proíbe representá-lo sob qualquer outro símbolo. Os artistas não dispõem aqui da variedade de possibilidades representativas: só dois ou três símbolos e estes, bem pouco humanos e nada divinos, são os únicos que podem oferecer à piedade dos fiéis para conservar a memória de sua existência e seus imensos benefícios. b) falta de doutrina Outro motivo do grande desconhecimento que sofrem os fiéis – e até mesmo o clero – do Espírito Santo e de suas operações, está relacionado à escassez de doutrina, que por sua vez, se deve à escassez de boas publicações antigas e modernas a respeito da mesma pessoa divina: Quantas vezes – escreveu sobre isso o monsenhor Gaume6 – ouvimos lamentarem-se a 6.  Monsenhor Gaume. Tratado del Espírito Santo.

16

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

nossos veneráveis irmãos de sacerdócio da penúria de obras a respeito do Espírito Santo! E por desgraça, suas lamentações são demasiadamente fundamentadas. De fato, qual é o tratado sobre o Espírito Santo que se tenha escrito em muitos séculos?... Mesmo os ensinamentos da teologia clássica sobre esse assunto se reduzem a alguns capítulos do tratado sobre a Trindade, do credo e dos sacramentos. Todos concordam que essas noções são totalmente ineficientes. E quanto aos catecismos diocesanos, que são ainda mais restritos do que os manuais de teologia elementar, quase todos se limitam a algumas definições. Há de se convir, com vivo sentimento, que inclusive nas primeiras nações católicas o ensinamento sobre o Espírito Santo deixa muito a desejar. Quem creria que, em meio a tantos sermões e panegíricos de Bossuet, não se encontra nenhum sobre o Espírito Santo, nenhum sequer em Masillon e apenas um em Bourdaloue? É verdade que o meio de se preencher esta lacuna tão lamentável seria o recurso aos Padres da Igreja e aos grandes teólogos do Medievo, mas quem teria tempo e possibilidade de fazê-lo? Daqui provém uma extrema dificuldade para o sacerdote zeloso, tanto para se instruir a si mesmo, como para ensinar aos outros.

E do pouco em geral que sabem os mestres, pode-se deduzir o pouco que sabem os discípulos. 17

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Algumas breves e abstratas noções, que deixam na memória mais palavras do que ideias, constituem a introdução da primeira infância. Com a ocasião do sacramento da confirmação chegam a ser, é verdade, um pouco mais extensas e completas; mas por uma parte, a idade ainda demasiada tenra, impede de tirar o devido proveito e, por outra, se continua no terreno das abstrações. Pela palavra do catequista o Espírito Santo não toma corpo, não chega a ser pessoa, mesmo Deus; e não sabendo o que dizer de sua íntima natureza, passa a falar de seus dons. Porém mesmo estes, sendo puramente espirituais e internos, não são acessíveis à imaginação nem aos sentidos. Grande é, pois, a dificuldade de explicá-los e maior ainda de fazê-los compreender. No ensinamento ordinário não se mostra a eles com clareza, nem em si mesmos, nem em sua aplicação aos atos da vida, nem em sua oposição aos sete pecados capitais, nem em sua necessária concatenação para a vida sobrenatural do homem, nem como coroamento do edifício da salvação. Por isso, ensina a experiência que, de todas as partes da doutrina cristã, a menos compreendida e a menos apreciada é precisamente a que mais deveria sê-lo, já que – e isto todos sabem e compreendem – conhecer pouco e mal a terceira pessoa da Santíssima Trindade é conhecer pouco e mal esse primeiro e principal mistério de nossa santa fé, sem o qual é impossível se salvar. 18

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

c) falta de devoções Um terceiro e grave motivo concorre com os precedentes em manter o lamentável estado de coisas que estamos denunciando: a escassez de devoções, funções e festas ao redor do Espírito Santo, enquanto se multiplicam sem cessar sobre tantas outras coisas. Certamente, todas as devoções aprovadas pela Igreja são muito úteis e santas, e devemos admirar e louvar à divina Providência, que as suscitou de acordo com várias exigências da vida religiosa e social. Algumas delas são indispensáveis para o verdadeiro cristão, tais como à Paixão do Senhor, ao Santíssimo Sacramento, à Virgem Maria, etc. O próprio Jesus e sua santa Mãe se compraziam em nos revelar a importância e as vantagens de algumas dessas devoções relativas a eles mesmos, tais como a do Sagrado Coração e a do Santíssimo Rosário. Mas tudo isso não deveria diminuir ou faze-nos esquecer uma devoção tão importante e fundamental como a relativa ao Espírito Santo. Essa é a devoção que deveríamos fomentar intensamente sem diminuir àquelas outras. A própria festa de Pentecostes, que no rito litúrgico só rivaliza com os solenes ritos da Páscoa e do Natal – o que mostra a importância extraordinária que a santa Igreja concede à devoção à terceira pessoa da Santíssima Trindade –, não se celebra ordinariamente com o esplendor e entusiasmo que seria de se desejar. Enquanto que nas outras duas 19

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

solenidades do ano litúrgico, Natal e Páscoa, nota-se claramente uma adequada correspondência por parte dos fiéis do mundo inteiro, a solenidade de Pentecostes passa completamente inadvertida, como se tratasse de um domingo qualquer. É um fato indiscutível que se repete ano após ano. Desse modo, vai transcorrendo quase todo o ano sem uma conveniente celebração ao Espírito Santo. Os cristãos reflexivos se espantam e se afligem com toda a razão. O pior de tudo é que a grande maioria dos fiéis nem sequer se dá conta desse inconveniente tão grande e nem se recorda que no Deus que adora existe uma terceira pessoa que se chama Espírito Santo. Como poderia ser de outra maneira, se quase nunca ouvem falar desse Deus, o qual não vêem comparecer jamais sobre nossos altares? Podemos afirmar sem temeridade: Para uma inumerável multidão de fiéis, o Espírito Santo é o Deus desconhecido, de quem São Paulo encontrou o altar ao entrar em Atenas. No entanto, convém observar – para não dar motivo a exageros ou mal-entendidos – que a fórmula paulina do Deus desconhecido, tomada em seu sentido óbvio, não quer dizer que os pagãos ignorassem completamente a existência de Deus, senão que não tinham uma ideia justa de suas perfeições e obras e, sobretudo, que não lhe rendiam o culto que lhe era devido. Aplicada ao Espírito Santo como fazemos nós, a fórmula Deus 20

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

desconhecido não tem nada de exagerada. Conforme o conceito de São Paulo - não que os cristãos de nosso tempo ignorem a existência da divindade do Espírito Santo – quer dizer que a maior parte deles não têm um conhecimento suficientemente claro de suas obras, de seus dons, de seus frutos, de sua ação santificadora na Igreja e nas almas e, especialmente, não rendem o culto divino a quem tem tanto direito quanto as outras duas pessoas da Santíssima Trindade. Nisso, cremos que todos estamos de acordo. Vejamos agora as tristes e perniciosas consequências que derivam de tamanha ignorância. d) consequências funestas deste esquecimento De tudo quanto acabamos de dizer, é evidente que o Espírito Santo, enquanto Deus, não pode experimentar nenhuma dor ou tristeza. Infinitamente feliz em si mesmo, não necessitaria de nossa recordação e de nossas homenagens para nada. Mas, se por uma absurda impossibilidade, fosse acessível à dor, certamente a experimentaria com grande intensidade ante nosso incrível desconhecimento e esquecimento de sua divina pessoa. Poderia repetir as mesmas palavras que o salmista põe na boca do futuro Messias abandonado por seu povo predileto: “conheces o opróbrio, a confusão e a ignomínia que padeço. Na tua presença estão todos os que me afligem. A ignomínia oprime 21

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

meu coração e eu vacilo, esperei em vão quem tivesse pena de mim, procurei quem me consolasse, mas não encontrei”.7 Esse lamento está tão mais justificado se tivermos em conta a dor – por assim dizer – que o Espírito Santo deve experimentar ao não poder se expandir sobre as almas e sobre o mundo cristão, como quer tão ardentemente. Nada há e nem pode haver de mais difuso do que este Espírito, que é pessoalmente o sumo bem; e, no entanto, ao tropeçar na rebeldia de nossa liberdade esquecidiça e indiferente, se sente como que constrangido a restringir-se, a limitar sua ação santificadora a poucas almas que lhe são inteiramente fiéis, a dar, como que com mão avara, seus dons inefáveis, posto que são muito poucos os que os pedem e menos ainda os que são dignos deles. Mais ainda: com frequência vê aqueles que são seu templo de carne e osso – esses templos consagrados por Ele mesmo com a água do batismo e santificados e embelezados depois de tantos modos – miseravelmente profanados com os mais sujos e repugnantes pecados, e se vê expulso vilmente desses templos para dar lugar ao espírito da fornicação, do ódio, da vingança, da soberba e de todos os demais pecados capitais. Porém muito mais do que o próprio Espírito Santo, os próprios cristãos deveriam se condoer ao se verem tão pouco instruídos e dignos de um 7.  Sl 69,20-21.

22

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Deus tão grande. Porque isso significa, sobretudo, ignorar ou desprezar a própria fonte da vida sobrenatural e divina. A Igreja, em seu Símbolo fundamental, reconhece expressamente no Espírito Santo este estupendo atributo de conferir às almas a vida sobrenatural: “cremos no Espírito Santo, que é o Senhor e que dá a vida (“Dominum et vivificantem”)”. A dependência da vida sobrenatural da divina virtude do Paráclito é um princípio fundamental e eminentemente dinâmico do cristianismo. Esse princípio, ou melhor, a orientação prática que deriva dele, constitui o ponto de partida de todo progresso espiritual, da ascensão progressiva desde a comum e simples vida cristã, até as formas mais elevadas e sublimes de santidade. Pode-se dizer que nessa palavra vivificante, referida ao Espírito Santo, está encerrada como que em germe toda a teologia da graça. De onde resulta que, sem um adequado conhecimento e culto do divino Espírito, o germe da vida cristã, sobrenaturalmente infundido por Ele no Batismo, se encontra como que paralisado ou contrariado em seu ulterior desenvolvimento. A alma sofre, vegeta, se debilita e muito dificilmente poderá chegará à virilidade cristã. Os que não se preocupam – e são muitíssimos, desgraçadamente – de conhecer e adorar ao Espírito Santo, opõem entre Ele e sua vida espiritual um obstáculo insuperável. Este mundo da graça, 23

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

este verdadeiro e único consórcio da alma com Deus, com todos seus elementos divinos, com suas leis maravilhosas, com seus sagrados deveres, com sua incomparável magnificência, com sua realidade eterna, com suas lutas, suas alegrias, suas alternativas e seu fim; este mundo superior para o qual foi criado o homem e que nele deve viver, se mover e habitar, é como se não existisse para ele. A nobre emulação que dele deveria espontaneamente derivar, transforma-se em fria indiferença; a estima, em desprezo; o amor, em desgosto; o entusiasmo, em tédio e aborrecimento. Criado para o céu, não busca e nem aprecia mais do que o terreno, sua vida se concentra no mundo sensível e se converte em puramente terrena e animal. Não há mais do que um meio para torná-la prática e verdadeiramente cristã: conhecer, invocar, amar, viver em união íntima e entranhável com o Espírito Santo, Senhor e doador de vida: Dominum et vivificantem. Vamos abordar o estudo teológico-místico da adorável pessoa do Espírito Santo, de sua ação santificadora na Igreja e nas almas através de seus preciosíssimos dons e carismas. Oferecemos estas páginas, uma vez mais, à Imaculada Virgem Maria, esposa fidelíssima do Espírito Santo, para que as bendiga e fecunde para a glória de Deus e santificação das almas.

24

 Capítulo I 

O Espírito Santo na Trindade

– como dogma primeiríssimo e fundamental entre todos – que existe um só Deus em três pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Consta de maneira clara e explícita na divina revelação e foi proposto infalivelmente pela Igreja em todos os Símbolos da fé. Por sua especial clareza e majestoso ritmo, expomos aqui a formulação do famoso símbolo atanasiano Quicumque:

A Doutrina católica nos ensina

Quem quiser salvar-se deve antes de tudo professar a fé católica. Porque aquele que não a professar, integral e inviolavelmente, perecerá sem dúvida por toda a eternidade. A fé católica consiste em adorar um só Deus em três Pessoas e três Pessoas em um só Deus. Sem confundir as Pessoas nem separar a substância. 25

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Porque uma é a Pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo. Mas uma só é a divindade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, igual a glória, coeterna a majestade. Tal como é o Pai, tal é o Filho, tal é o Espírito Santo. O Pai é incriado, o Filho é incriado, o Espírito Santo é incriado. O Pai é imenso, o Filho é imenso, o Espírito Santo é imenso. O Pai é eterno, o Filho é eterno, o Espírito Santo é eterno. E contudo não são três eternos, mas um só eterno. Assim como não são três incriados, nem três imensos, mas um só incriado, um só imenso. Da mesma maneira, o Pai é onipotente, o Filho é onipotente, o Espírito Santo é onipotente. E contudo não são três onipotentes, mas um só onipotente. Assim o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus. E contudo não são três deuses, mas um só Deus. Do mesmo modo, o Pai é Senhor, o Filho é Senhor, o Espírito Santo é Senhor. E contudo não são três senhores, mas um só Senhor. Porque, assim como a verdade cristã nos manda confessar que cada uma das Pessoas é Deus e Senhor, do mesmo modo a religião católica nos proíbe dizer que são três deuses ou senhores. 26

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

O Pai não foi feito por ninguém: nem criado nem gerado. O Filho procede do Pai: não foi feito nem criado, mas gerado. O Espírito Santo não foi feito, nem criado, nem gerado, mas procede do Pai e do Filho. Não há, pois, senão um só Pai, e não três Pais; um só Filho, e não três Filhos; um só Espírito Santo, e não três Espíritos Santos. E nesta Trindade não há nem mais antigo nem menos antigo; nem maior nem menor, mas as três Pessoas são coeternas e iguais entre si. De sorte que, como se disse acima, em tudo se deve adorar a unidade na Trindade e a Trindade na unidade. Quem, pois quiser salvar-se deve ter estes sentimentos a respeito da Trindade (D, 39).8

O Espírito Santo é, pois, a terceira pessoa da Santíssima Trindade, que procede do Pai e do Filho, não por via de geração – como o filho é engendrado pelo Pai –, senão em virtude de uma corrente mútua e inefável de amor entre o Pai e o Filho. Vejamos, em brevíssimo resumo, de que maneira se verifica a geração do Verbo pelo Pai e a espiração do Espírito Santo por parte do Pai e do Filho no seio da Trindade beatíssima. 8.  A sigla D se refere à obra de Denzinger, Enchiridion Symbolorum, definitionum et declarationum de rebus fidei et morum, na qual estão reunidas as definições dogmáticas e declarações da Igreja ao longo dos séculos, nos concílios e documentos pontifícios. A presente obra utiliza a numeração correspondente a edições anteriores à 32a edição, publicadas antes de 1963 – NT.

27

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

1.

a geração do filho

Eis aqui uma exposição simples e popular, ao alcance de todos:9 Se alguém se olha no espelho, produz uma imagem semelhante a si mesmo, pois se lhe assemelha não só na figura, mas também imita seus movimentos: se o homem se move, se move também sua imagem. E esta imagem, tão semelhante, vem a ser produzida em um instante, sem trabalho, sem instrumentos, tão somente mirando-se no espelho. Podemos ilustrar deste modo que Deus Pai, contemplandose a si mesmo no espelho de sua divindade com os olhos de seu entendimento e conhecendo-se perfeitamente, engendra ou produz uma imagem absolutamente igual a si mesmo. Pois bem, esta imagem é a figura substancial do Pai, seu perfeito resplendor..., expressão total da inteligência do Pai, palavra subsistente e única compreensiva, termo adequado da contemplação da soberana essência, esplendor de sua glória e imagem de sua substância.

É simplesmente, seu Filho, seu Verbo, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Esta geração é tão perfeita, que esgota em absoluto a infinita fecundidade do Pai: 9.  Miralles Sbert, citado por Docete t.1 p.21 e 27.

28

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Deus – disse Bossuet10 – não terá jamais outro Filho além deste, porque é infinitamente perfeito e não pode haver dois como Ele. Uma só e única geração desta natureza perfeita esgota toda sua fecundidade e atrai todo seu amor. Eis aqui porque o Filho de Deus se chama a si mesmo o único: Unigenitus, com o que mostra ao mesmo tempo que é Filho não por graça ou adoção, mas por natureza. E o Pai, confirmando desde o alto esta palavra do Filho, faz baixar do céu esta voz: ‘Este é meu Filho muito amado, em quem me comprazo’. Este é meu Filho, não tenho senão a Ele, e desde toda a eternidade lhe dei e dou sem cessar todo meu amor. A teologia católica – acrescenta o monsenhor Gay11 – assinala que Deus se enuncia a si mesmo eternamente em uma palavra única, que é a imagem mesma de seu ser, o caráter de sua substância, a medida de sua imensidade, o rosto de sua beleza, o esplendor de sua glória. A vida de Deus é infinita: milhões de palavras pronunciadas por milhões de criaturas que dissertaram acerca d’Ele sabiamente durante milhões de séculos, não seriam o bastante para contê-la. Mas esta Palavra única o disse tudo absolutamente. Quem ouve perfeitamente este Verbo, não faria mais que compreender todas as 10.  Bossuet, Elevaciones sobre los mistérios sem. 2a elev. 1a . 11.  Monsenhor Gay, Elevaciones 1,6.

29

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

coisas; pois compreenderia ao Autor das coisas que não ficariam para ele secretas na natureza divina. Mas só Deus ouve eternamente a Palavra que Ele pronuncia. Deus a disse; ela disse a Deus; ela é Deus.

Por sua parte, Dom Columba Marmión expõe a geração divina do Verbo nos seguintes termos:12 Eis aqui uma maravilha que nos descortina a divina revelação: em Deus há fecundidade, possui uma paternidade espiritual e inefável. É Pai, e como tal, princípio de toda a vida divina na Santíssima Trindade. Deus, Inteligência infinita, se compreende perfeitamente. Em um só ato vê tudo o que é e tudo quanto há n’Ele; com um só relance de olhar abarca, por assim dizer, a plenitude de suas perfeições; e em uma só ideia, em uma palavra, que esgota todo seu conhecimento, expressa esse mesmo conhecimento infinito. Essa ideia concebida pela inteligência eterna, essa palavra pela qual Deus se expressa a si mesmo, é o Verbo. A fé nos diz também que esse Verbo é Deus, porque possui, ou melhor dizendo, é com o Pai uma mesma natureza divina. E porque o Pai comunica a esse Verbo uma só natureza não só semelhante, mas idêntica à sua, a Sagrada Escritura nos diz que o engendra e, por 12.  Dom Columba Marmión, Jesuscristo en sus mistérios 3,1.

30

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

isso, chama ao Verbo o Filho. Os livros inspirados nos apresentam a via inefável de Deus, que contempla a seu Filho e proclama a bem-aventurança de sua eterna fecundidade: “Do seio da divindade, antes de criar a luz, te engendrarei”;13 “Tu és o meu Filho muito amado; em ti ponho minha afeição..14 Esse filho é perfeito, possui com o Pai todas as perfeições divinas, salvo a propriedade de “ser Pai”. Em sua perfeição iguala ao Pai pela unidade de natureza. As criaturas não podem comunicar senão uma natureza semelhante à sua: simili sibi. Deus engendra a Deus e lhe dá sua própria natureza e, por isso mesmo, engendra o infinito e se contempla em outra pessoa que é igual, e tão igual, que ambos são uma mesma coisa, pois possuem uma só natureza divina, e o Filho esgota a fecundidade eterna; pelo qual é uma mesma coisa com o Pai: Unigenitus Dei Filius... Ego et Pater unum sumus.15 Finalmente, esse Filho muito amado, igual ao Pai e, contudo, distinto d’Ele e pessoa divina como Ele, não se separa do Pai. O Verbo vive sempre na Inteligência infinita que lhe concebe; o Filho mora sempre no seio do Pai que lhe engendra.

13.  Sl 109,3. 14.  Mc, 1,11. 15.  Jo 10,30.

31

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

2. a processão do espírito santo A fé nos mostra que o Espírito Santo, terceira pessoa da Santíssima Trindade, procede do Pai e do Filho por uma sublime espiração de amor. Eis aqui uma exposição simples e popular do inefável mistério:16 Para compreender um pouco melhor esta inefável processão de amor, deixemos por um momento a metafísica divina e interroguemos simplesmente ao nosso coração, e ele nos dirá que no amor consiste toda sua vida. O coração bate, bate continuamente até que morre. Em cada batida não faz senão repetir: Amo, amo; essa é minha missão e única ocupação. E quando encontra, fisicamente, outro coração que lhe compreende e lhe responde: “Eu também te amo”. Oh! Que gozo tão grande! Porém o que há de novo dentre estes dois corações para fazê-los tão felizes? Seria por acaso só o movimento dos batimentos que se buscam e se confundem? Não. Não estou persuadido que entre mim e aquela pessoa que amo existe alguma coisa. Esta coisa não pode ser meu amor, nem tão pouco o amor dela; é, simplesmente, nosso amor, ou seja, o resultado maravilhoso dos batimentos, o doce vínculo que os encadeia, o abraço puríssimo dos dois 16.  Arrighini, Il Dio ignoto p.33-35.

32

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

corações que se beijam e se embriagam: nosso amor. Ah! Se pudéssemos fazê-lo subsistir eternamente para testemunhar, de maneira viva e real, que nos entregamos total e verdadeiramente um ao outro! Esta fatal impotência, que, nos amores humanos, deixa sempre uma margem a incertezas cruéis, jamais pode dar-se no coração de Deus. Porque Deus também ama. Quem pode duvidá-lo? É Ele, precisamente o amor substancial e eterno: Deu caritas est.17 O Pai ama a seu Filho: é tão belo! É sua própria luz, seu próprio esplendor, sua glória, sua imagem, seu Verbo... O Filho ama ao Pai: é tão bom, e se dá a Ele íntegra e totalmente a si mesmo no ato gerador com uma tão amável e completa plenitude! E estes dois amores imensos do Pai e do Filho não se expressam no céu com palavras, cantos ou gritos..., porque o amor, chegando ao máximo grau, não fala, não canta, não grita; senão que se expande em um alento, em um sopro, que entre o Pai e o Filho se faz, como eles, real substancial, pessoal, divino: o Espírito Santo. Eis aqui, pois, com o coração, melhor do que com o raciocínio metafísico, revelado o grande mistério: a vida da Santíssima Trindade, a geração do Verbo pelo Pai e a processão do Espírito 17.  1Jo 4,16.

33

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Santo sob o sopro de seu recíproco amor. Na vida da Trindade existe como que um contínuo fluxo e refluxo: a vida do Pai, o princípio e fonte, se desborda no Filho; e do Pai e do Filho se comunica, por via de amor, ao Espírito Santo, termo último das operações íntimas da divindade. Este Espírito Santo, que goza assim da recíproca doação do Pai e do Filho, seu dom consubstancial, os reúne e mantém, por sua vez, na unidade. As três pessoas, em possessão da única substância divina, não são entre si senão uma só coisa, um só Deus verdadeiro.

Em linguagem mais científica, embora com idêntica exatidão doutrinal, Dom Columba Marmión expõe do seguinte modo a processão divina do Espírito Santo:18 Não sabemos do Espírito Santo senão o que a revelação nos mostra. E que nos diz a revelação? Que pertence à essência infinita de um só Deus em três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Esse é o mistério da Santíssima Trindade. A fé aprecia em Deus a unidade da natureza e a distinção de pessoas. O Pai, conhecendo-se a si mesmo, enuncia, expressa esse conhecimento em uma palavra 18.  Dom Columba Marmión, Jesuscristo, vida del alma 6,1.

34

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

infinita, o Verbo, com ato simples e eterno. E o Filho, que engendra o Pai, é semelhante e igual a Ele mesmo, porque o Pai lhe comunica sua natureza, sua vida, suas perfeições. O Pai e o Filho se atraem um ao outro com amor mútuo único. O Pai possui uma perfeição e beleza tão absolutas! O filho é imagem tão perfeita do Pai! Por isso se dão um ao outro, e esse amor mútuo, que deriva do Pai e do Filho como de fonte única, é em Deus um amor subsistente, uma pessoa distinta das outras duas, que se chama Espírito Santo. O nome é misterioso, mas a revelação não nos dá outro. O Espírito Santo é, nas operações interiores da vida divina, o último termo. Ele fecha – se nos são permitidos estes balbucios falando de tão grandes mistérios – o ciclo da atividade íntima da Santíssima Trindade. Mas é Deus o mesmo que o Pai e o Filho, possui como eles e com eles a mesma e única natureza divina, igual ciência, idêntico poder, a mesma bondade, igual majestade.

Isto é o que a teologia católica, apoiando-se imediatamente nos dados da divina revelação, acerta ao nos dizer sobre o Espírito Santo no seio da Trindade Beatíssima. Bem pouca coisa, certamente, mas não sabemos mais. Somente quando se dissipem as sombras desta vida mortal e se descortine 35

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

o véu por meio da visão beatífica, contemplaremos arrebatados o inefável mistério, que fará eternamente felizes aos bem-aventurados moradores da Jerusalém celestial.

36

 Capítulo II 

O Espírito Santo na Sagrada Escritura

anterior acerca do Espírito Santo e das outras duas divinas pessoas da Santíssima Trindade, nada sabemos fora dos dados que nos proporciona a divina revelação. A razão natural, abandonada a suas próprias forças, pode demonstrar com toda certeza a existência de Deus, deduzida, por via de causalidade necessária, da existência indiscutível das coisas criadas.19 O relógio reclama inevitavelmente a existência do relojoeiro. Como já dissemos no capítulo

A demonstração científica da existência de Deus nos leva também ao conhecimento científico de certos atributos divinos, tais como sua simplicidade, imensidade, bondade, eternidade, perfeição infinita, etc. Mas de nenhum modo nos 19.  O definiu expressamente o concílio Vaticano I com as seguintes

palavras: “se alguém disser que o Deus uno e verdadeiro, Criador e Senhor nosso, não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana por meio das coisas criadas: seja anátema. (D 1806) 37

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

pode levar ao conhecimento das realidades divinas, que excedem e transcendem a via do conhecimento natural que o homem pode obter da contemplação dos seres criados. Entre estas verdades infinitamente transcendentes figura, em primeiríssimo lugar, o inefável mistério da trindade de pessoas em Deus. Sem a divina revelação, a razão natural não poderia ter suspeitado jamais a existência de três distintas pessoas na unidade simplíssima de Deus. Pois vejamos o que a Sagrada Escritura, que contém o tesouro da divina revelação escrita, nos diz acerca da divina pessoa do Espírito Santo. Vamos ver, separadamente, no Antigo e Novo Testamento: 1. antigo testamento No Antigo Testamento não aparece com clareza e distinção a pessoa divina do Espírito Santo, como tampouco as do Pai e do Filho. Entretanto, há uma multidão de indícios e vestígios que, à luz do Novo Testamento, aparecem como claras alusões ao Espírito de Amor.20 A expressão hebraica ruah Yavé (= espírito de Deus) aparece na Antiga Lei em diversos sentidos. São quatro os grupos principais que se podem estabelecer: a) Em primeiro lugar, significa o vento, pelo qual Deus dá a conhecer sua presença, sua força ou 20.  Cf. Iniciación teológica (Barcelona 1957) t.1 p.421ss.

38

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

sua ira. Assim aparecerá inclusive no cenáculo no dia de Pentecostes.21 É também já desde o princípio o sopro de vida que Deus inspira no homem e até nos animais. Quando Deus o retira, sobrevém a morte e, quando dado aos mortos, ressuscitam.22 Finalmente, em um sentido mais amplo, é o sopro criador, o vento de Deus que faz sair o mundo do nada.23 b) Às vezes há certos fenômenos de caráter especificamente religioso que se apresentam em dependência muito íntima do ruah Yavé. Tais são, principalmente, a arte dos obreiros do tabernáculo, o poder de governar ao povo recebido por Moisés e transmitido por ele aos anciãos e a Josué, a força guerreira e o valor dos libertadores de Israel e, sobretudo, a inspiração profética. Esta é recebida individual ou coletivamente, de um modo transitório ou também permanente, com ou sem fenômenos exteriores, pelos chefes do povo e pelos anciãos, ou por indivíduos que não pertencem à hierarquia; e se transmite por contágio ou se transfere.24 21.  Cf. Gn 3,8; Ex 10,13 e 19; 14, 21; Sl 18, 16; At 2,2. 22.  Cf. Gn 2,7; 7,15; Jb 12,10; 34,14-15; Sl 104, 29-30; Ez 37, 1-14;

2Mc 7,22-23.

23.  Cf. Gn 1,2; Sl 33,6. 24.  Cf. Ex 31,3; Nm 11,16-17; 27, 15-23; Jz 3,9-10; 6,34; 11,29; Nm

1,25; 19,20-24; 24,2; Gn 41,38; 2 Rs 2,15; 1Sm 19,24; Ez 1,28; 2,8 3,2227; 1Sm 10,5-13; 2Sm 23,1-2; Nm 11,26-29; 19,20-24; 2 Rs 2,9-10. 39

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

c) Em um terceiro grupo de textos, ruah Yavé se nos mostra como um sopro de santidade. No Miserere de Davi aparece pela primeira vez a expressão “Espírito Santo”. Seus efeitos são firmeza, boa vontade, contrição e humildade, submissão à vontade de Deus e endireitamento de nosso caminhar, retidão, justiça e paz, conhecimento da vontade divina e dom de sabedoria. Os rebeldes, ao contrário, que forjam projetos ou estabelecem pactos sem esse Espírito, acumulam pecados sobre pecados e entristecem ao Espírito Santo de Deus.25 d) Finalmente, ruah Yavé se nos apresenta como um fenômeno essencialmente messiânico, primeiro porque o Messias será possuído sem limites pelo Espírito de Deus e, ademais, porque na época do Messias se produzirá uma intensa efusão do Espírito de Javé.26

2. novo testamento É aqui onde aparece a plena revelação do Espírito Santo como terceira pessoa da Santíssima Trindade. O Espírito de Deus preenche a João Batista antes de nascer, leva à Maria o dinamismo do Altíssimo, se transmite à Isabel e, por contágio,27 a Zacarias e descansa sobre Simeão.28 25.  Cf. Sl 51,12-14 e 18-19; Is 57,15; 2 Sl 143,4-7 e 10; Is 32, 15-17;Sb

9,17; Is 30,1; 63,10.

26.  Cf. Is 11,1ss; 42, 1ss; 32,1ss; 442-3; Ez 11,14ss; 33,26-27; Zc 12,10;

13,1-5.

27.  Cf. Lc 1,15-17; 1,35; Mt 1,18-20; Lc 1,41-45; 1,67; 2,25-27. 28. Cf. Lc 1,15-17; 1,35; Mt 1,18-20; Lc 1, 41-45; 1,67; 2,25-27.

40

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Jesus tem sobre si o Espírito de Deus, é “movido” por Ele, arrastado por seu dinamismo, com a plenitude que lhe confere sua dupla qualidade de Messias e Filho. Começa seu ministério “cheio do Espírito Santo”, que possui como Filho. O enviará a seus apóstolos depois de sua ascensão e lhes comunicará o dinamismo e ardor necessários para levar seu testemunho até os confins da terra.29 Se realizou o dia de Pentecostes com vento e fogo segundo a profecia de Joel, o anúncio do Batista e a promessa de Jesus. Efusão primeira, logo renovada coletivamente em ocasiões diversas, seja por iniciativa divina, seja à petição dos apóstolos, como doação direta de Deus e, mais precisamente, de Jesus, ou mediante o rito de imposição de mãos.30 O Espírito assim recebido é um Espírito profético, o que falou pelos profetas; é também um espírito de fé e de sabedoria ou de dinamismo, como o de Cristo. Faz falar em todas as línguas e dá a faculdade de perdoar os pecados. Descende de um modo permanente sobre todos os discípulos de Jesus, assim como sobre o próprio Jesus; dirige constantemente aos apóstolos e a seus colaboradores como Mestre, mas também a ele se pode resistir.31 29.  Cf. Mt 3,16; Jo 1,32-33; Lc 4,1; 10,21; 4,14-16-21; Mc 3, 11; Jo

16,7; At 1,4-8.

30.  Cf. At 2,1-4; 17-18;11,6; 2,33; 11,15-16; 4,31; 8,14-19;10,44-45;

11,15; 15,8; 8,14-19; 10,44-45; 2,23; 19,2-6.

31.  Cf. At 2,4-11 e 17-18; 10,44-46; 1,16; 7, 15; 6,5; 11,24; 6,3; 1,8; 4,31; 10,38; 2,4; Jo 20,21-23; 6,3-5; 1,2; 8,29; 10,19; 5,3-9; 17,51.

41

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Em seu maravilhoso sermão da Ceia, Jesus disse a seus apóstolos que o Espírito Santo lhes ensinará todas as coisas e lhes trará à Memória tudo o que Ele lhes disse, lhes guiará para a verdade completa e lhes comunicará as coisas verdadeiras; glorificará a Cristo, porque tomará d’Ele e o dará a conhecer aos apóstolos.32 São Paulo especifica maravilhosamente a teologia do Espírito Santo. É o Espírito de Deus e de Cristo; sua operação é a mesma que a do Pai e do Filho e faz dos justos templos de Deus e do próprio Espírito Santo. Para os fiéis é o Princípio da vida em Cristo, embora viver em Cristo e no Espírito são a mesma coisa. É o distribuidor de todo dom; esquadrinha os segredos de Deus; é o dom por excelência; nos move de forma que agrademos a Deus e não devemos lhe contristar jamais.33 Finalmente, a fórmula do batismo, ditada pelo próprio Cristo, coloca o Espírito Santo em um plano de igualdade com o Pai e o Filho. Nas epístolas de São Paulo aparecem sem cessar as três pessoas divinas associadas. Deste modo, o Espírito de Deus, que pairava sobre o caos primitivo na aurora da criação, aparece depois como um ser pessoal que se manifesta na promoção das almas fiéis e da sociedade cristã. Ele nos faz invocar com gemidos 32.  Cf. Jo 14,26; 16,13-14. 33.  Cf. Rm 8,9-14; 1Co 2,10-14; 2Co 3,17; 1Co 12,3-13; 6,11; Tt 3,47; 1Co 6,19; 3,16; Rm 1,4; 8,1-16, 22-27; Gl 4,6; 6,7-8; Ef 4,1-6; Rm 5,5; Ef 4,30.

42

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

inenarráveis a revelação dos filhos de Deus e a redenção de nossos corpos. Será Ele quem realizará a vinda definitiva de Cristo.34 Estes são os dados fundamentais que nos proporcionam a Sagrada Escritura acerca da pessoa do Espírito Santo. Com base neles e no que subministra a tradição cristã – fonte legítima da divina revelação igualmente com a Bíblia, nas devidas condições – construíram os teólogos a teologia completa do Espírito Santo na forma que veremos nas páginas seguintes.

34.  Cf. Mt 28,19; Gl 4,6; Rm 8, 14-17; 15,15-16; 1Co 12, 4-6; 2Co 1,21-22; 13,13; Tt 3,4-6; Hb 9,14; Rm 8,26; Ap 22,17.

43

 Capítulo III 

Diferentes nomes do Espírito Santo

Para conhecer menos imperfeitamente a natureza íntima, própria ou apropriada, de uma das pessoas divinas em particular, é muito útil e proveitoso examinar os distintos nomes com que a Sagrada Escritura, a tradição e a liturgia da Igreja denominam a essa determinada pessoa, pois cada um deles encerra um novo aspecto ou matiz que nos dá a conhecê-la um pouco melhor. Para entender isso em seus justos limites é mister explicar a diferença que existe entre as operações próprias de cada uma das pessoas divinas e as que, mesmo sendo realmente comuns às três, se apropriam a uma determinada pessoa por encaixar muito bem com as propriedades que lhes são peculiares e exclusivas. A este propósito escreve admiravelmente o insigne abade de Maredsous:35

35.  Cf. Dom Columba Marmión, Jesuscristo, vida del alma 6,1.

45

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Como sabeis, em Deus há uma só inteligência, uma só vontade, um só poder, porque não há mais que uma natureza divina; mas há também distinção de pessoas. Semelhante distinção resulta das operações misteriosas que se verificam ali, na vida íntima de Deus e das relações mútuas que dessas operações se derivam. O Pai engendra o Filho, e o Espírito Santo procede de ambos. Engendrar, ser Pai, é propriedade pessoal e exclusiva da primeira pessoa; ser Filho é propriedade pessoal e exclusiva da segunda; e proceder do Pai e do Filho por via de amor é propriedade pessoal e exclusiva do Espírito Santo. Essas propriedades pessoais estabelecem entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo relações mútuas de onde provém a distinção. Mas excetuando essas propriedades e relações pessoais, tudo é comum e indivisível entre as divinas pessoas: a inteligência, a vontade, o poder e a majestade, porque a mesma natureza divina indivisível é comum às três pessoas. Eis aqui o pouco que podemos rastrear acerca das operações íntimas de Deus. No que concerne às obras exteriores, ou seja, as ações que terminam fora de Deus (operações ad extra), seja no mundo material – como na ação de dirigir a toda criatura a seu fim – seja no mundo das almas – como na ação de produzir a graça – são comuns às três pessoas. Por que é assim? Porque a fonte dessas operações ad extra, dessas obras exteriores à vida íntima 46

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

de Deus, é a natureza divina e essa natureza é una e indivisível para as três pessoas. A Santíssima Trindade age no mundo como uma só causa única. Mas Deus quer que os homens conheçam e honrem não só a unidade divina, mas também a trindade de pessoas. Por isso a Igreja, por exemplo, na liturgia, atribui a tal pessoa divina certas ações que se verificam no mundo e que, embora sejam comuns às três pessoas, têm uma relação especial ou afinidade íntima com o lugar – se assim posso me expressar – que ocupa essa pessoa na Santíssima Trindade, ou seja, com as propriedades que lhe são particulares e exclusivas. Sendo pois o Pai a fonte, origem e princípio das outras duas pessoas – sem que isso implique no Pai superioridade hierárquica nem prioridade de tempo –, as obras que se verificam no mundo e que manifestam particularmente o poderio, ou em que se revela sobretudo a ideia de origem, são atribuídas ao Pai; como por exemplo, a criação, pela qual Deus tirou o mundo do nada. No Credo dizemos: “Creio em Deus Pai todo poderoso, criador do céu e da terra”. Será, talvez, que o Pai teve mais parte, manifestou mais seu poder nesta obra que o Filho e o Espírito Santo? Seria um erro pensar assim. O Filho e o Espírito Santo atuaram na criação do mundo tanto quanto o Pai, porque – como já dissemos – em suas operações para 47

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

fora (ad extra) Deus obrou por sua onipotência, e a onipotência é comum às três divinas pessoas. Como, pois, fala desse modo a Igreja? Porque, na Santíssima Trindade, o Pai é a primeira pessoa, princípio sem princípio, de onde procedem as outras duas. Esta é sua propriedade pessoal exclusiva, a qual lhe distingue do Filho e do Espírito Santo. E precisamente para que não esqueçamos essa propriedade, atribuem-se ao Pai as obras exteriores que a sugerem por ter alguma relação com ela. O mesmo se deve dizer da pessoa do Filho, que é o Verbo na Trindade, que procede do Pai por via da inteligência e por geração intelectual, que é a expressão infinita do pensamento divino, considerado sobretudo como Sabedoria eterna. Por isso se lhe atribuem as obras em cuja realização brilha principalmente a sabedoria. E igualmente, no que diz respeito ao Espírito Santo, o que vem a ser a Trindade? É o termo último das operações divinas, da vida de Deus em si mesmo. Fecha, por assim dizer, o ciclo desta intimidade divina; é o aperfeiçoamento no amor e tem, como propriedade pessoal, o proceder ao mesmo tempo do Pai e do Filho por via de amor. Daí que tudo quanto implica aperfeiçoamento e amor, união e, por conseguinte, santidade – porque nossa santidade se mede pelo maior ou menor grau de nossa união com Deus –, tudo se atribui ao Espírito Santo. Porém 48

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

seria, por ventura, mais santificador que o Pai e o Filho? Não. A obra de nossa santificação é comum às três divinas pessoas. Mas repitamos que, como a obra da santidade na alma é obra de aperfeiçoamento e de união, ela se atribui ao Espírito Santo, porque deste modo nos recordamos mais facilmente de suas propriedades pessoais, para honrar-lhe e adorar-lhe no que do Pai e do Filho se distingue. Deus quer que levemos muito a sério o ato de honrar sua trindade de pessoas, assim como sua unidade de natureza. Por isso, quer que a Igreja recorde a seus filhos não só que há um só Deus, mas que esse único Deus é Trino em três pessoas. Isso é o que em teologia chamamos de apropriação. O termo é inspirado na divina revelação e a Igreja o emprega continuamente. Ele tem por finalidade pôr em relevo os atributos próprios de cada pessoa divina. Ao fazer ressaltar essas propriedades, nos faz conhecê-las e amá-las mais.

Vejamos agora quais são os nomes que pertencem ao Espírito Santo, de uma maneira própria e perfeita, e quais outros pertencem somente por uma apropriação muito razoável.

49

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

1.

nomes próprios da terceira pessoa divina

Segundo São Tomás de Aquino,36 os três nomes mais próprios e representativos da terceira pessoa divina são: Espírito Santo, Amor e Dom.37 Vamos examiná-los um a um. 1. espírito santo. – Consideradas separadamente, as duas palavras que compõem este nome convêm por igual às três divinas pessoas; As três são Espírito e as três são santas. Porém se tomadas como um só nome ou denominação, convêm exclusivamente à terceira pessoa divina, já que só ela procede das outras duas por uma comum espiração de amor infinitamente santa.38 A respeito deste nome santíssimo, a doutrina católica nos mostra: 1o Que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho: “qui ex Patre Filioque procedit”. Está 36.  Advertimos ao leitor que a Suma Teológica será citada sem ser

nomeada, fazendo referência a parte, questão e artigo correspondente. Assim, por exemplo, a referência I 14,3 significará: Suma Teológica, parte primeira, questão 14, artigo 3. A sigla I-II 2,4 quer dizer: Suma Teológica, parte primeira da segunda, questão 2, artigo 4. Quando o autor recorre à doutrina contida na solução das objeções, indica com a partícula latina ad; assim a sigla III 2,4 ad 2 significará: Suma Teológica, parte terceira, questão 2, artigo 4, solução 2a – NT.

37.  Cf. Suma Teológica I q. 36-38. 38.  Cf. I q 36 a.1c e ad 1.

50

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

expressamente definido pela Igreja (D 691) contra os ortodoxos gregos, que rechaçam o Filioque e afirmam que o Espírito Santo procede unicamente do Pai. 2o A doutrina católica é clara. Se, por um absurdo, o Espírito Santo não procedesse também do Filho, de maneira nenhuma se distinguiria d’Ele. Porque as divinas pessoas não podem se distinguir por algo absoluto – pois a divina essência já não seria uma e mesma em todas elas –, mas por algo relativo e oposto entre si, ou seja, por uma relação de origem, que é, cabalmente, o que constitui as pessoas divinas como distintas entre si.39 3o O Espírito Santo não procede do Pai pelo Filho, no sentido de que o Filho seja a causa final, formal motiva ou instrumental da espiração do Espírito Santo no Pai, mas enquanto significa que a virtude espirativa do Filho lhe é comunicada pelo Pai.40 4o O Pai e o Filho constituem um só princípio do Espírito Santo, com uma espiração única e comum aos dois.41 5o O Espírito Santo não é feito, nem criado, nem engendrado, mas procede do Pai e do Filho (D 39). 39.  Cf. I q.36 a.2; De potentia q. 10 a.5 ad 4; Contra Gent. IV c.24. 40.  Cf. I q.36 a.3. 41.  Cf. I q.36 a.4.

51

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

2. amor. – A palavra amor, referida a Deus, pode ser tomada em três sentidos: a) Essencialmente, e neste sentido é comum às três pessoas. b) Nocionalmente, e assim convém unicamente ao Pai e ao Filho: é seu amor ativo, que dá origem ao Espírito Santo. c) Pessoalmente, e desta forma convém exclusivamente ao Espírito Santo, como termo passivo do amor do Pai e do Filho.42

Pode-se afirmar que o Pai e o Filho se amam no Espírito Santo, entendendo esta fórmula de amor nocional ou originante; porque neste sentido, amar não é outra coisa senão espirar o amor, assim como falar é produzir o verbo, e florescer é produzir flores.43 3. Dom. – Os Santos Padres e a liturgia da Igreja (Veni, Creator) empregam com frequência a palavra dom para designar ao Espírito Santo, o qual tem seu fundamento na Sagrada Escritura.44 Deve-se fazer aqui a mesma distinção, tal como o fizemos com o nome anterior. E assim: 42.  Cf. I q.37 a.2. 43.  Cf. I q.37 a.2

44. Jo 4,10; 7,39; At 2,38; 8,20. 52

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

a) Em sentido essencial significa tudo o que graciosamente pode ser dado por Deus às criaturas racionais, seja de ordem natural ou sobrenatural. Neste sentido convém por igual às três divinas pessoas e à mesma essência divina, enquanto que, pela graça, pode a criatura racional gozar e desfrutar de Deus45. b) Em sentido nocional ou originante significa a pessoa divina que, tendo sua origem em outra, é doada ou pode ser doada por ela à criatura racional. Neste sentido, o nome dom somente pode convir ao Filho e ao Espírito Santo; não ao Pai, que não pode ser doado por ninguém, pois não procede de ninguém. c) Em sentido pessoal é a mesma pessoa divina à qual convém, em virtude de sua própria origem, ser razão próxima de toda doação divina e de que ela mesma seja doada de uma maneira completamente gratuita à criatura racional. E nesse sentido pessoal, o nome dom corresponde exclusivamente ao Espírito Santo, o qual, pela mesma razão que procede por via de amor, tem razão de primeiro dom, porque o amor é o primeiro que damos a uma pessoa sempre que lhe concedemos alguma graça.46

45.  Cf. I q.43 a. 2 e 3. 46.  Cf. Iq.38 c.1-2.

53

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

2. nomes apropriados ao espírito santo São muitos os nomes que a tradição, a liturgia da Igreja e a própria Escritura Sagrada apropriam o Espírito Santo. Se chama Espírito Paráclito, Espírito Consolador, Espírito de verdade, Virtude do Altíssimo, Advogado, Dedo de Deus, Hóspede da Alma, Selo, União, Nexo, Vínculo, Beijo, Fonte viva, Fogo, Unção espiritual, Luz beatíssima, Pai dos pobres, Doador de dons, Luz dos corações, etc. Vamos examinar brevemente os fundamentos desses nomes apropriados ao Espírito Santo. 1. espírito paráclito. – O próprio Jesus Cristo emprega esta expressão aludindo ao Espírito Santo.47 Alguns a traduzem pela palavra Mestre, porque o próprio Cristo disse pouco depois que “ensinar-vos-á toda a verdade”.48 Outros traduzem por Consolador, porque impedirá que os apóstolos se sintam órfãos com a suavidade de sua consolação.49 Outros traduzem a palavra Paráclito por Advogado, que pedirá por nós, na frase de São Paulo, “com gemidos inenarráveis”.50 47.  Jo 14,16 e 26; 15,26; 16,7. 48.  Jo 14, 26. 49.  Jo 14,18. 50.  Rm 8, 26.

54

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

2. espírito criador. – “O Espírito – diz São Tomás – é o princípio da criação”.51 A razão é porque Deus cria as coisas por amor, e o amor em Deus é o Espírito Santo. Por isso diz o salmo: “Envia teu Espírito e serão criados”.52 3. espírito de cristo. – O Espírito Santo preenchia por completo a alma santíssima de Cristo.53 Na sinagoga de Nazaré, Cristo aplicou a si mesmo o seguinte texto de Isaías: “O Espírito Santo está sobre mim”.54 E São Paulo diz que, “se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse não é de Cristo”;55 mas “se o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus habita em vós..., dará também vida a vossos corpos mortais por virtude de seu Espírito, que habita em vós”.56 4. espírito de verdade. – É expressão do próprio Cristo aplicada por Ele ao Espírito Santo: “O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não lhe vê nem conhece”.57 Significa, segundo São Cirilo e Santo Agostinho, o verdadeiro Espírito de Deus, 51.  São Tomás de Aquino Contra Gent. IV c.20. É admirável o co-

mentário de São Tomás neste e nos dois capítulos seguintes.

52.  Sl 103,30. 53.  Lc 4,1. 54.  Is 61,1; cf. Lc 4,18. 55.  Rm 8, 9. 56.  Rm 8, 11. 57.  Jo 14, 17.

55

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

e se opõe ao espírito do mundo, à sabedoria embusteira e falaz. Por isso acrescenta o Salvador “que o mundo não pode receber”, porque “o homem animal não percebe as coisas do Espírito de Deus. São para ele necessidade e não pode entendê-las, porque deve-se julgá -las espiritualmente”.58 5. virtude do altíssimo. – É a expressão que emprega o anjo da anunciação quando explica a Maria de que maneira se verificará o mistério da encarnação: “O Espírito Santo virá sobre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”.59 Em outras passagens evangélicas se alude também à “virtude do alto”.60 6. dedo de deus. – No hino Veni, Creator Spiritus, a Igreja designa ao Espírito Santo com esta misteriosa expressão: “Dedo da destra do Pai”: Digitus paternae dexterae. É uma metáfora muito rica de conteúdo e muito fecunda em aplicações. Porque nos dedos da mão, principalmente da direita, está toda nossa potência construtiva e criadora. Por isso a Escritura coloca a potência de Deus em suas mãos: as tábuas da Lei foram escritas pelo “dedo de Deus” (Dt 9,10); os céus são “obra dos dedos de

58.  1Cor 2, 14. 59.  Lc 1, 35. 60.  cf. Lc 24, 49.

56

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Deus”;61 os magos do faraó tiveram de reconhecer que nos prodígios de Moisés estava “o dedo de Deus”,62 e Cristo expulsava demônios “com o dedo de Deus”.63 É, pois, muito apropriada essa expressão, aplicada ao Espírito Santo, para significar que por Ele se verificam todas as maravilhas de Deus, principalmente na ordem da graça e da santificação. 7. hóspede da alma. – Na sequência de Pentecostes se chama ao Espírito Santo “doce hóspede da alma”: dulcis hospes animae. A inabitação de Deus na alma do justo corresponde por igual às três divinas pessoas da Santíssima Trindade, por ser uma operação ad extra;64 mas como se trata de uma obra de amor, e estas se atribuem de um modo especial ao Espírito Santo, daí decorre considerar-Lhe de maneira especialíssima como hospede dulcíssimo de nossas almas.65 8. selo. – São Paulo diz que fomos “selados com o selo do Espírito Santo prometido” (Ef 1,13), e também que “Ora, quem nos confirma a nós e a vós em Cristo, e nos consagrou, é Deus. Ele nos marcou com o seu selo e deu aos 61.  Sl 8, 4. 62.  Ex 8,15; Vulg. 19. 63.  Lc 11, 20. 64.  cf. Jo 14,23; 1Cor 3,16-17. 65.  cf. 1 Cor 6, 19.

57

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

nossos corações o penhor do Espírito”.66 9. união, nexo, vínculo, beijo... – São nomes com os quais se expressa a união inseparável e estreitíssima entre o Pai e o Filho em virtude do Espírito Santo, que procede dos dois por uma comum espiração de amor. 10. fonte viva, fogo, caridade, unção espiritual. – Expressões do hino Veni, Creator, que encaixam muito bem com o caráter e personalidade do Espírito Santo. 11. luz beatíssima, pai dos pobres, doador de dons, luz dos corações... – Todas estas expressões são aplicadas pela santa Igreja ao Espírito Santo na magnífica sequência de Pentecostes, Veni, Sancte Spiritus. Estes são os principais nomes que a Sagrada Escritura, a tradição cristã e a liturgia da Igreja apropria ao Espírito Santo pela grande afinidade ou semelhança que existe entre eles e os caracteres próprios da terceira pessoa da Santíssima Trindade. Todos eles, bem meditados, encerram grandes ensinamentos práticos para intensificar em nossas almas o amor e a veneração ao Espírito santificador, a cuja perfeita docilidade e obediência está vinculada a marcha progressiva e ascendente para a santidade mais elevada.

66.  2Cor 1, 21-22.

58

 Capítulo VI 

O Espírito Santo em Jesus Cristo

Depois de termos estudado brevemente a pessoa do Espírito Santo no seio da Trindade beatíssima, por meio dos dados da Sagrada Escritura e dos diferentes nomes com que lhe denomina a própria Escritura, a tradição e a liturgia da Igreja, vamos examinar agora suas principais operações na pessoa de Jesus Cristo, na Igreja e no interior das almas dos fiéis.

Comecemos por nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro. Acerquemo-nos com respeito à divina pessoa do Verbo encarnado para contemplar ao menos algo das maravilhas que Nele realizou o Espírito Santo no momento da encarnação e ao longo de toda a sua vida.67 67.  Cf. Arrighini, op.cit., p 153ss; Dom Marmión, Jesúscristo, vida

del alma I 6. Citamos os trechos textualmente. 59

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Os principais episódios da vida de Jesus em que concorreu mais especialmente o Espírito Santo são os seguintes: encarnação, santificação, batismo no rio Jordão, tentações no deserto, transfiguração, milagres, doutrina evangélica e em todas suas atividades humanas. Vamos estudar um a um. 1.

a encarnação

A obra prima do Espírito Santo é, sem dúvida alguma, sua participação decisiva no mistério inefável da encarnação do Verbo nas entranhas virginais de Maria. Em realidade, a encarnação do Verbo é uma operação divina ad extra e, por isso mesmo, comum às três pessoas divinas. As três pessoas divinas participam conjuntamente desta obra inefável, embora se deva acrescentar em seguida que ela teve por termo final unicamente ao Verbo: somente o Verbo, o Filho de Deus, é quem se encarnou ou se fez homem.68 Embora seja uma obra realizada em uníssono pelas três divinas pessoas, ela é atribuída de uma maneira especial ao Espírito Santo por uma muito conveniente e razoável apropriação. Porque sendo a encarnação do Verbo a maior prova de amor que Deus deu a suas criaturas racionais, até o ponto de ter enchido de admiração ao próprio Cristo – de tal modo Deus 68.  Para empregar uma imagem da qual se serviram alguns Padres

da Igreja, diremos que, quando uma pessoa veste a si mesma com suas próprias vestimentas e é ajudada por outras duas, as três participam da mesma obra, embora somente uma delas termine vestida. É claro que esta imagem, como qualquer outra imagem possível, é muito imperfeita e falha em muitos aspectos. 60

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

amou o mundo, que lhe deu seu Filho unigênito –,69 o que há de estranho em se atribuir especialmente ao Espírito Santo, que é pessoalmente o Amor substancial, o Amor infinito no seio da Trindade Beatíssima? Assim foi reconhecido e proclamado sempre pela tradição cristã, desde os tempos apostólicos, e por isso o Símbolo da fé sempre repetiu: “Creio em Jesus Cristo nosso Senhor, que foi concebido por obra e graça do Espírito Santo e nasceu da Santa Virgem Maria”. O Credo não faz mais do que repetir as palavras dirigidas a Maria pelo anjo da anunciação: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus”.70 Desta maneira, a terceira pessoa da Santíssima Trindade vem a ser maravilhosamente fecunda, não menos do que as outras duas. De fato, enquanto a fecundidade do Pai aparece claramente na geração eterna do Filho, e a do Filho na processão do Espírito Santo juntamente com o Pai, o Espírito Santo permanecia aparentemente estéril, já que é impossível produzir uma quarta pessoa na Trindade. Ora, a Virgem Maria, ao consentir com seu fiat à encarnação do Verbo por obra do Espírito Santo, se converte misticamente na esposa do próprio Espírito divino e lhe faz divinamente fecundo de uma maneira puríssima e santíssima, porém não menos 69.  Jo 3, 16. 70.  Lc 1, 35.

61

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

real e verdadeira. É certo e evidente que o Espírito Santo não criou a divindade do Verbo, mas só a humanidade de Jesus para uni-la hipostáticamente ao Verbo; tampouco criou a humanidade de sua própria substância divina – o que seria monstruoso e absurdo -, mas utilizando seu divino poder sobre o sangue e a carne virginal da imaculada Mãe de Deus. Santo Ambrósio expressou o grande mistério com estas simples palavras: “De que maneira concebeu Maria do Espírito Santo? Se foi de sua própria substância divina, deveria se dizer que o Espírito se converteu em carne e ossos. Mas não foi assim, senão unicamente por sua operação e poder”.71 Desta maneira – continua o santo doutor – , da carne imaculada de uma virgem vivente, o Espírito Santo formou o segundo Adão, assim como de uma terra virgem o Deus Criador formou o primeiro. 2. a santificação Como mostra a teologia católica e é doutrina oficial da Igreja, ademais da graça chamada de união ou hipostática, em virtude da qual Cristo-homem é pessoalmente o Filho de Deus, sua alma santíssima possui com uma plenitude imensa a graça habitual ou santificante, cuja efusão na alma de Cristo se atribui também ao Espírito Santo.72 71.  Santo Ambrósio, De Spiritu Sancto II 5. 72.  Já estudamos amplamente tudo o que é relativo à graça de Cristo

– de união, santificante e capital – em outra de nossas obras publicadas nesta mesma coleção da BAC: Royo Marín, Jesuscristo y la vida cristiana n. 73-98. 62

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Para entender um pouco esta doutrina, devese ter em conta que em Jesus há duas naturezas distintas, ambas perfeitas, mas unidas na pessoa que as enlaça: o Verbo. A graça de união faz com que a natureza humana subsista na pessoa divina do Verbo. Essa graça é inteiramente única, transcendental e incomunicável: somente Cristo a possui. Por ela pertence ao Verbo a humanidade de Cristo, que se converte, por essa razão, na humanidade do verdadeiro Filho de Deus, e que é, portanto, objeto da complacência infinita para o Pai eterno. Mas mesmo que a natureza humana esteja unida de maneira tão íntima ao Verbo, nem por isso é aniquilada ou fica inativa; antes, guarda e conserva sua essência, sua integridade, com todas suas energias e potências; é capaz de ação, e é a graça santificante que eleva essa humanidade santa para que possa operar sobrenaturalmente. Desenvolvendo essa mesma ideia em outros termos, pode-se dizer que a graça de união ou hipostática une a natureza humana à pessoa do Verbo e diviniza desse modo o fundo mesmo de Cristo: Cristo é, por ela, um “sujeito” divino. Até aí alcança a finalidade dessa graça de união, própria e exclusiva de Jesus Cristo. Mas convém ademais que essa natureza humana seja embelezada pela graça santificante para operar de um modo sobrenatural ou divino em cada uma de suas faculdades. Essa graça santificante – que é conatural à graça de união, ou seja, que emana da graça de união de um modo natural em certo sentido –, 63

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

põe a alma de Cristo à altura de sua união com o Verbo; faz com que a natureza humana, que subsiste no Verbo em virtude da graça de união, possa operar como convém a uma alma sublimada a tão excelsa dignidade e produzir frutos divinos. Eis aí porque não se deu a graça santificante à alma de Cristo de maneira limitada, como se dá aos eleitos, senão em sumo grau, com uma plenitude imensa. Ora, a efusão da graça santificante na alma de Cristo é atribuída ao Espírito Santo. O próprio Cristo aplicou a si mesmo, na sinagoga de Nazaré, o seguinte texto messiânico de Isaias: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres...”.73 Nosso Senhor fazia suas as palavras de Isaias que comparam a ação do Espírito Santo a uma unção.74 A graça do Espírito Santo se difundiu sobre Jesus como azeite de alegria que lhe consagrou, primeiro, como Filho de Deus e Messias, e lhe encheu, ademais, no momento da encarnação, da plenitude de seus dons e da abundancia dos tesouros divinos. Porque não se pode esquecer que a graça santificante jamais é infundida sozinha. Ela sempre vai acompanhada do cortejo riquíssimo das virtudes infusas e dos dons do Espírito Santo. A própria graça informa a essência da alma, divinizando-a e elevando-a à ordem sobrenatural; ao 73.  Is 61,1; Lc 4,18. 74.  Na liturgia católica (Veni, Creator Spiritus) se chama ao Espírito

Santo unção espiritual (“spiritualis unctio”). 64

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

passo que as virtudes e outros dons informam as diversas potências para elevá-las ao mesmo plano e fazê-las capazes de produzir atos sobrenaturais ou divinos. Por isso o profeta Isaías, falando do futuro Messias, anuncia a plenitude dos dons com que será enriquecida sua alma santíssima: “Um broto vai surgir do tronco seco de Jessé, das velhas raízes, um ramo brotará. Sobre ele há de pousar o espírito do Senhor, espírito de sabedoria e compreensão, espírito de prudência e valentia espírito de conhecimento e temor do Senhor. No temor do Senhor estará sua inspiração”.75 A tradição cristã sempre viu nesse texto a plenitude dos dons do Espírito Santo na alma santíssima de Cristo. Em ninguém, jamais, tais dons produziram tão sublimes frutos de santidade. Mesmo enquanto homem, Jesus se apresenta com uma perfeição tal que supera infinitamente a de qualquer outro, por mais santo que seja. São Paulo se considera o menor dos apóstolos e indigno de ser chamado apóstolo.76 São João afirma que se alguém se considera sem pecado, se engana a si mesmo e a verdade não está nele.77 “Eu não sei, escreve De Maistre – que coisa seria o coração de um malfeitor; não conheço mais do que o de um homem honesto, e é espantoso”.78 De modo semelhante se expressaram 75.  Is 11, 1-3. 76.  1Cor 15, 9. 77.  1Jo 1,8. 78.  Joseph de Maistre, Las veladas de San Petesburgo.

65

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

todas as consciências retas. Mas não Jesus Cristo. N’Ele, não há arrependimento, nem desejo de uma vida melhor. Lança um desafio a seus inimigos: “Quem de vós pode acusar-me de pecado?”79 e nem os escribas e fariseus, nem Pilatos, nem Herodes, nenhum de seus grandes inimigos puderam lhe surpreender jamais no menor pecado que seja. A santidade de Jesus triunfou para sempre: “Ele é santo, inocente, imaculado, apartado dos pecadores e mais alto que os céus”,80 adornado de todos os dons e repleto de todos os frutos do Espírito Santo. Todas as virtudes floresceram n’Ele com a mesma exuberante e gigantesca vegetação: nenhum vazio, nem uma mínima mancha. É a santidade perfeita, a santidade própria de Deus. 3. o batismo Os tesouros de santidade e de graça que acabamos de recordar foram derramados pelo Espírito Santo na alma de Cristo no momento mesmo da encarnação do Verbo nas entranhas virginais de Maria; porém, se realizaram de uma maneira calada e escondida aos olhos do mundo. Era conveniente, pela mesma razão, que mais tarde se manifestasse publicamente sua santidade infinita e fosse proclamada sua divindade pelo próprio Pai Eterno na presença do Espírito Santo. E isto, 79.  Jo 8, 46. 80.  Hb 7, 28.

66

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

precisamente, foi o que ocorreu no batismo de Jesus por João Batista.81 A cena evangélica é de todos conhecida: “Então, Jesus veio da Galileia para o rio Jordão, até junto de João, para ser batizado por ele. Mas João queria impedi-lo, dizendo: “Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?”. Jesus, porém, respondeu-lhe: “Por ora, deixa, é assim que devemos cumprir toda a justiça!”. E João deixou. Depois de ser batizado, Jesus saiu logo da água e o céu se abriu. E ele viu o Espírito de Deus descer, como uma pomba, e vir sobre ele. E do céu veio uma voz que dizia: “Este é o meu Filho amado; nele está o meu agrado”.82

O Doutor Angélico, São Tomás de Aquino, adverte belissimamente que, no momento de seu batismo, foi convenientíssimo que o Espírito Santo descesse sobre Jesus em forma de pomba, para significar que todo aquele que recebe o batismo de Cristo se converte em templo e sacrário do Espírito Santo e deve levar uma vida cheia de simplicidade e candura, como a da pomba, como adverte o próprio Cristo no Evangelho.83 E foi também convenientíssimo que no batismo de Cristo se ouvisse 81.  Cf. Suma Teológica III q.39 a.8 ad 3. 82.  Mt 3,13-17. 83.  Mt 10,16; Cf III q 39 a 6c e ad 4.

67

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

a voz do Pai manifestando sua complacência sobre Ele; porque o batismo cristão – do qual foi figura o do Batista – se consagra pela invocação e a virtude da Santíssima Trindade, e no batismo de Cristo se manifestou todo o mistério trinitário: a voz do Pai, a presença do Filho e o descenso do Espírito Santo em forma de pomba.84 E note-se, finalmente, que o Pai se manifestou muito oportunamente na voz; porque é próprio do Pai engendrar ao Verbo, que significa a Palavra. Daí que a mesma voz emitida pelo Pai dá testemunho da filiação do Verbo.85 4. as tentações no deserto Os três evangelistas sinóticos – Mateus, Marcos e Lucas – relatam a misteriosa cena das tentações que sofreu Jesus no deserto por parte do diabo. E os três nos dizem que foi levado ou impelido para o deserto pelo próprio Espírito Santo. Eis aqui suas próprias palavras: “Em seguida, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio”86 “Logo depois, o Espírito o impeliu para o deserto. Lá, durante quarenta dias, foi tentado por Satanás”. 87 84.  Cf. III q 39 a.8. 85.  Cf. III q.39 a.8 ad 2. 86.  Mt 4,1. 87.  Mc 1,12-13.

68

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do rio Jordão e, no Espírito, era conduzido pelo deserto. Ali foi posto à prova pelo diabo, durante quarenta dias”. 88

O fato de ter sido impulsionado pelo próprio Espírito Santo ao deserto “para ser tentado pelo demônio” coloca uma série de dificuldades teológicas que devem ser explicadas, para se entender corretamente essa misteriosa passagem evangélica. Em primeiro lugar cabe perguntar por que o Espírito Santo levou ou impeliu a Jesus para o deserto. Acaso teria o Filho de Deus necessidade de submeter-se à penitência, ao jejum ou, o que resulta ainda mais estranho, às tentações do demônio? É evidente que não. São Paulo nos diz que, sendo Jesus “santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e elevado além dos céus, que não tem necessidade, como os outros sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, primeiro pelos pecados próprios, depois pelos do povo”.89 O próprio São Paulo nos dá a verdadeira explicação ao nos dizer que foi tentado para nos ajudar a vencer as tentações90 e compadecer-se de nossas fraquezas, sendo tentado em tudo a nossa semelhança.91 88.  Lc 4,1-2. 89.  Hb 7,26-27. 90.  Hb 2,18. 91.  Hb 4,15.

69

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Para nos dar também um exemplo eficaz de mortificação, durante os quarenta dias que permaneceu no deserto não comeu absolutamente nada.92 Abandonando-se ao impulso do Espírito Santo, que o transportou àquela natureza desértica e maldita, se segregou completamente do mundo exterior. Não sentindo sequer ter um corpo, que era necessário alimentar e preservar da injúria do clima e das feras, se entregou por inteiro à oração e aos graves pensamentos que embargavam seu espírito, prestes a começar sua missão pública sobre o povo escolhido. Por outra parte, recentes descobertas mostraram que, mesmo prescindindo de um socorro sobrenatural, o homem pode viver seis ou sete semanas, e inclusive um pouco mais, sem receber alimento algum. Tal situação, no entanto, deve ter um termo necessariamente; e então a natureza violentada reclama seus direitos com uma energia especial; por isso diz São Lucas explicitamente que, ao cabo dos quarenta dias, Jesus “teve fome”.93 Foi este o momento que o demônio escolheu para dar uma forma mais precisa e violenta às tentações com as quais, quiçá desde os primeiros dias de retiro, vinha assediando a Jesus. O próprio Evangelho parece sugerir que tais tentações foram se sucedendo durante todo o tempo que Jesus passou no deserto.94 As três referidas pe92.  Lc 4, 2. 93.  Lc 4, 2. 94.  cf. Mc 1,13.

70

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

los evangelistas em particular e conhecidas de todos, reunidas ao término de quarenta dias, seriam um resumo ou um ensaio das outras. Com respeito a essas misteriosas tentações, ocorre perguntar também até que ponto elas puderam influir na alma de Cristo e até que extremo lhe haveria abandonado o Espírito Santo a mercê do espírito do mal, e este teria chegado a lhe ofender. Para resolver com acerto essa questão, é preciso ter em conta que são três os princípios de onde procedem as tentações que padecem os homens: o mundo, o diabo e a própria carne ou sensualidade, que constituem, por isso mesmo, nos três principais inimigos da alma. Ora, Cristo não poderia sofrer os assaltos do terceiro desses inimigos, posto que não existia n’Ele o fomes peccati, nem a mais ligeira inclinação ao pecado (cf. D 224). Tampouco podiam lhe afetar as pompas e vaidades do mundo, dada sua clarividência e serenidade de juízo. Mas não há inconveniente algum em que houvesse se submetido voluntariamente à sugestão diabólica, já que é algo puramente externo a quem a padece e não supõe a mais mínima imperfeição n’Ele. Toda a malícia desta tentação pertence exclusivamente ao tentador.95 De todas as formas, a explicação teológica des95.  Cf. III q.41 a.1 ad 3.

71

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

sa questão traz em si uma grande dificuldade, por estar intimamente relacionada com o mistério da união hipostática e com o mistério da união essencial das três divinas pessoas entre si. Com efeito, é evidente que se supomos que a alma de Cristo é sempre igual e necessariamente iluminada pela comunicação direta do Verbo e pela efusão do Espírito Santo, a tentação não poderia ser para Ele nem perigosa e nem meritória; não seria uma luta, mas apenas uma simples aparência de luta, uma inútil e enganosa fantasmagoria. Se a irradiação divina perdura sempre do mesmo modo e com a mesma intensidade no fundo da consciência do Salvador, as manifestações de gozo ou de tristeza tão profundamente expressadas no Evangelho não têm significado real, sem excluir aquele último e supremo grito de angustia: “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonas-te?”.96 Como se pode explicar tudo isso? Os teólogos de todas as escolas concordam em dizer que, nas horas de provação, a divindade se contraía – por assim dizer – para a parte superior da alma de Cristo e se cobria com um véu; ou seja, que o Verbo e as outras duas pessoas divinas suspendiam sua comunicação luminosa e deixavam a alma humana de Cristo como que a mercê de si mesma. Assim como uma mãe parece deixar a seu pequeno filho que faça por si mesmo a experiência de suas próprias forças ao dar os primeiros passos, 96.  Mt 27,46.

72

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

retirando aparentemente a proteção de suas mãos maternais, porém permanecendo vigilante e alerta para que o menino não caia ao solo se, por desgraça, tropece ao tentar andar ou a lutar contra um obstáculo, é evidente que o fato de não cair ou de triunfar sobre o obstáculo constitui para a criança uma vitória e um mérito, independentemente de que tivesse assegurada a proteção dos braços maternos, caso necessitasse deles. Nas tentações de Jesus, a presença do Verbo e das outras duas pessoas da Trindade asseguravam sempre o triunfo mais rotundo e absoluto; mas não obstante isso, o isolamento momentâneo em que deixavam a sua alma humana estabelecia um verdadeiro mérito e um indiscutível triunfo para ela. Naqueles momentos de prova, Jesus parecia ter perdido seus poderes de Deus, para conservar unicamente a debilidade de escravo; porém, sua humanidade santíssima era tão pura e estava tão bem custodiada pela divindade, que resultava absolutamente impecável. Tendo isso em conta, eis aqui as principais razões pelas quais Cristo quis se submeter de fato às tentações de Satanás.97 a) Para merecermos o auxílio contra as tentações. b) Para que ninguém, por mais santo que seja, se tenha por seguro e isento de tentações. 97.  Cf. III q 41 a.1.

73

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

c) Para nos ensinar a maneira de vencê-las. d) Para nos dar confiança em sua misericórdia, segundo as palavras de São Paulo: “Porque não temos nele um pontífice incapaz de compadecer-se das nossas fraquezas. Ao contrário, passou pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado”.98

5. a transfiguração no monte tabor Os evangelhos sinóticos descrevem detalhadamente a fulgurante cena da transfiguração de Cristo em um “monte alto”, que, provavelmente, foi o monte Tabor. O rosto de Cristo tornou-se resplandecente como o sol, na presença de Pedro, Tiago e João; instantes depois, uma nuvem resplandecente lhes cobriu e dela saiu uma voz que dizia: “Eis o meu Filho muito amado, em quem pus toda minha afeição; ouvi-o”.99 Porque quis Jesus transfigurar-se desse modo na presença de seus três discípulos prediletos? A razão histórica imediata foi, sem dúvida alguma, para levantar o ânimo decaído daqueles discípulos aos quais acabava de anunciar a proximidade de sua paixão e morte.100 Acabava também de dizerlhes: “Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a

98.  Hb 4,15. 99.  Mt 17, 1-9. 100.  cf. Mt 16, 21.

74

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

si mesmo, tome sua cruz e siga-me.”.101 Ante uma perspectiva tão dura, é natural que os discípulos tenham experimentado certo abatimento e tristeza. Para levantar-lhes o ânimo, Cristo mostrou a eles, na cena da transfiguração, a glória imensa que lhes aguardava se permanecessem fiéis a ele até a morte.102 Mas o que nos interessa aqui destacar é a presença de toda a Trindade Beatíssima na cena do Tabor. Ouve-se a voz do Pai – como no batismo de Jesus – na presença de seu Filho muito amado e do Espírito Santo, simbolizado na nuvem resplandecente. Escutemos o Doutor Angélico expondo essa doutrina:103 “No batismo, quando foi anunciado o mistério da primeira regeneração, manifestou-se a obra de toda a Trindade, porque aí se manifestou o Filho encarnado, apareceu o Espírito Santo em figura de pomba e o Pai se anunciou verbalmente. Assim também na transfiguração, que é o sacramento da segunda regeneração, toda a Trindade manifestou-se — o Pai, pela voz; o Filho, pela sua humanidade; o Espírito Santo, pela nuvem resplandecente. Porque, assim como no batismo Deus dá a inocência, 101.  Mt 16, 24. 102.  Cf. III q.45 a.1. 103.  Cf. III q. 45 a.4 ad 2.

75

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

designada pela simplicidade da pomba, assim na ressurreição dará aos eleitos o esplendor da sua glória e a libertação de todo mal, simbolizados pela nuvem luminosa.”

6. os milagres Como já vimos mais acima, na sinagoga de Nazaré, Jesus aplicou a si mesmo o seguinte texto messiânico de Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, para sarar os contritos de coração, para anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a restauração da vista, para pôr em liberdade os cativos, para publicar o ano da graça do Senhor”.104

O Espírito Santo – de fato – estava sobre Jesus Cristo quando operava seus grandes prodígios e milagres, como aparece claramente no modo de realizá-los. Porque realizava como dono e senhor da natureza que o Espírito Santo, com seu sopro criador, havia vivificado desde o princípio. Realizava-os sem esforço algum, com a mesma calma com que anunciava ao povo as bem-aventuranças. E, para realizar tais maravilhas, Jesus não tinha necessidade de suplicar a ninguém, de recorrer ao 104.  Lc 4,18-19.

76

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

auxílio do céu, como ocorre com os santos taumaturgos, nos quais os dons do Espírito Santo se encontram de forma limitada e transitória. Bastava-lhe uma palavra, um gesto. Ele disse ao leproso: “Eu quero, sê curado”. E instantaneamente ficou limpo de sua lepra.105 Ordena ao paralítico: “Levanta-te e anda”, e de imediato é obedecido.106 Grita a Lázaro: “Lázaro, vem para fora!”, e o morto putrefato se levanta de sua tumba cheio de saúde e vida.107 Basta que estenda sua mão e as tempestades se acalmam, a água se converte em vinho, os pães e peixes se multiplicam, os demônios fogem, os anjos descem do paraíso... E notemos ainda que Jesus realizava tudo isso não para glória de outro, para provar a verdade de uma mensagem alheia, para inspirar a confiança no céu, mas para sua própria glória, para provar a verdade de sua própria religião, para inspirar a fé e a confiança em si mesmo; a fim de que Ele, juntamente com o Pai e o Espírito Santo, com quem formam uma só coisa, sejam reconhecidos, amados e adorados. Proclama a si mesmo, não menos que o Pai e o Espírito Santo, a fonte daqueles prodígios, e exclama: “aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas, porque vou para junto do Pai”.108 E, de fato, 105.  Mt 8,2-3. 106.  Jo 5,8-9. 107.  Jo 11,43-44. 108.  Jo 14,12.

77

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

os apóstolos e os santos realizaram também grandes prodígios, e alguns maiores que os de Cristo; mas sempre em nome de Cristo, pela virtude de Cristo; pela fé em Jesus Cristo; in fide nominis eius,109 enquanto que o próprio Cristo os realizava por sua virtude própria, por sua própria fé, por seu próprio divino poder, pelo Espírito Santo, que está e vive n’Ele.110 Se batiza, se expulsa os demônios dos possessos, se cura aos enfermos, se confere o poder de perdoar os pecados, é sempre em virtude do Espírito Santo, com aquele que forma uma só coisa em união com o Pai. Por isso, quer que se lhe adore e glorifique, até o ponto de afirmar solenemente: “Todo pecado e blasfêmia será perdoado aos homens, porem a blasfema contra o Espírito Santo não lhes será perdoada. Quem falar contra o Filho do homem, será perdoado; porém, quem falar contra o Espírito Santo, não será perdoado nem neste século, nem no vindouro”.111 7. a doutrina evangélica Também na sublime doutrina de Cristo se sente o sopro contínuo do Espírito Santo com seus dons de Sabedoria, entendimento, ciência e conselho. Suas palavras estão cheias do divino Espírito em sua forma e em sua substância ou conteúdo. 109.  At 3,16. 110.  Lc 4,18. 111.  Mt 12,31-32.

78

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Em primeiro lugar, em sua forma exterior. Jamais pensamentos mais sublimes e conceitos mais profundos foram expressos com menos palavras; e jamais as palavras, tão pesadas e materiais por si mesmas, que constituem o desespero dos escritores, foram de tal modo idealizadas e vivificadas no próprio pensamento. Não é hiperbólica a esplêndida afirmação do próprio Jesus Cristo: “Minhas palavras são espírito e vida”,112 mas sim a expressão exata da mais augusta realidade. A ciência não pôde encontrar ainda o modo de encerrar em um pequeno volume o caudal imenso dos conhecimentos humanos; mas Jesus Cristo conseguiu plenamente encerrar em poucas palavras, claras, distintas e radiantes de luz, as leis eternas das coisas, os princípios fundamentais dos indivíduos e dos povos, a vida e o progresso indefinido da humanidade. Outra característica impressionante da doutrina de Cristo é sua universalidade. Não pertence a uma pátria determinada: é de todas as nações. Não tem idade; é de todos os tempos. Cristo predicou sua doutrina na Palestina há vinte séculos. Mas ainda hoje não há como modificar um só de seus discursos, uma só de suas parábolas, de suas máximas, de seus sublimes ensinamentos. E é porque sua doutrina não é outra coisa senão a genuína expressão da verdade e a verdade não muda nunca, por mais que variem os lugares e os tempos. 112.  Jo 6,63.

79

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

A doutrina do Evangelho se revela divina e verdadeiramente cheia do Espírito Santo também em sua própria substância. Cada frase encerra tesouros de infinita sabedoria, sementes de vida sempre nova e maravilhosa. Cristo disse: “Bem aventurados os pobres, os que choram, os que sofrem perseguição pela justiça”. Sementes maravilhosas! Quem poderá avaliar as ricas colheitas que produziram? Delas saíram os apóstolos, os mártires, as virgens, os melhores benfeitores da humanidade. Jesus sentenciou: “Dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César” e estabeleceu com isso as bases fundamentais dos dois poderes dos quais procede a civilização humana. Proclamou: “Todos vós sois irmãos”, traçando com isso as grandes linhas da igualdade social. Disse também: “Pai nosso, que estais no céu...”, abrindo os corações e os lábios de todos à mais santa e eficaz das orações. Com razão dissemos que cada uma de suas palavras encerra um gérmen de progresso indefinido. A humanidade caminha, caminha velozmente sem cessar; bendiz e aclama em sua jornada aos gênios e aos heróis que se levantam para guiá-la; mas prontamente se esquecem deles e lhes vira as costas. A filosofia de Platão teve grande êxito em nossas épocas, mas hoje já não basta. A ciência de Newton é admirável, mas já foi superada. A geologia de Cuvier causou uma revolução, mas ninguém já se recorda dela. Aristóteles, Copérnico, Galileu, Leibnitz... estão ultrapassados. Só Jesus e 80

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

sua doutrina – declara o próprio Renán113 – não serão jamais superados. Qual homem, época ou sistema filosófico conseguiu superar seu pensamento ou ao menos soube compreende-lo inteiramente e aplicá-lo perfeitamente à vida? Que o mundo responda com seu grito de angústia. Os homens repartiram as vestes de Jesus, lançaram dados sobre sua túnica inconsútil; mas o espírito que se agitou com tanta energia n’Ele foi por acaso esgotado, possuído ou compreendido por inteiro? De maneira alguma. Permanece ainda e permanecerá sempre inesgotado e inesgotável, porque é infinito como Deus, eterno como a verdade; porque não é outra coisa senão O Espírito Santo. Os próprios apóstolos, discípulos do divino Mestre, não acertaram sempre em compreendê-lo, razão pela qual o Mestre deixou para o Espírito Santo a tarefa de completar seus ensinamentos: “Mas o Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito”.114 Jesus deixa para o Espírito Santo o encargo e a glória de completar sua doutrina, de deduzir as últimas consequências, de aplicá-las praticamente; o que, como é sabido, é sempre a parte mais difícil e não pode fazê-lo convenientemente senão aquele mesmo de quem procede tal doutrina. A doutrina evangélica, com efeito, não procedia menos do 113.  Renán, Vida de Jesús. 114.  Jo 14,26.

81

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Verbo que do Espírito Santo, sendo como são, uma só unidade com o Pai. 8. atividades humanas Os evangelhos nos mostram como a alma de Jesus Cristo, em toda sua atividade, obedecia às inspirações do Espírito Santo. O Espírito – como vimos – conduz-lhe ao deserto, onde será tentado pelo demônio.115 Depois de viver quarenta dias no deserto, o próprio Espírito lhe conduz novamente a Galileia.116 Pela ação desse Espírito expulsa os demônios do corpo dos possessos.117 Sob a ação do Espírito Santo salta de gozo quando dá graças a seu Pai, porque revela os segredos divinos às almas simples.118 Finalmente, nos diz São Paulo que a obra prima de Cristo, aquela na qual brilha mais seu amor ao Pai e sua caridade para conosco, o sacrifício sangrento da cruz pela salvação do mundo, o ofereceu Cristo com o impulso do Espírito Santo: “que pelo Espírito eterno se ofereceu como vítima sem mácula a Deus”.119 O que nos indicam todas estas revelações senão que o Espírito de amor guiava toda a atividade humana de Cristo? Sem dúvida alguma era o 115.  Mt 4,1. 116.  Lc 4,14. 117.  Mt 12,28. 118.  Lc 10,21. 119.  Hb 9,14.

82

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

próprio Cristo, o Verbo encarnado, quem realizava suas próprias obras; todas suas ações são ações da única pessoa do Verbo, na qual subsiste sua natureza humana. Porém não obstante isso, Cristo obrava sempre por inspiração e sob os impulsos do Espírito Santo. A alma de Jesus, convertida na Alma do Verbo pela união hipostática, estava ademais cheia de graça santificante e operava a todo momento pela suave moção do Espírito Santo. Daí que todas as ações de Cristo, mesmo as de aparência mais trivial, eram absolutamente santas. Sua alma, mesmo sendo criada como todas as demais almas, era santíssima. Em primeiro lugar, por encontrar-se unida ao Verbo; unida a uma pessoa divina, tal união fez dela, desde o primeiro momento da encarnação, não um santo qualquer, mas o Santo por excelência, o próprio Filho de Deus. Era santa, ademais, por estar embelezada com a graça santificante no sumo grau possível de perfeição, o que a capacitava para operar sobrenaturalmente em tudo e em perfeita consonância com a união inefável que constitui seu inalienável privilégio. Era santa, em terceiro lugar, porque todas suas ações e operações, mesmo quando eram atos executados unicamente pelo Verbo encarnado, se realizavam sob a moção e inspiração do Espírito Santo, Espírito de amor e santidade. O Homem-Deus é, sem dúvida alguma, a obra prima do Espírito Santo.

83

 Capítulo V 

O Espírito Santo na Igreja

algumas das principais maravilhas que o Espírito Santo operava na pessoa adorável de nosso Senhor Jesus Cristo. A ordem lógica das ideias nos leva agora a contemplar a ação do Espírito Santo na Igreja, fundada pelo próprio Cristo, Salvador do mundo.

Vimos no capítulo anterior

Escutemos, em primeiro lugar, a breve, porém luminosa exposição de Dom Columba Marmión:120 Antes de subir aos céus, Jesus prometeu a seus discípulos que rogaria ao Pai para que lhes desse o Espírito Santo e fez desse dom do Espírito objeto de uma súplica especial para nossas almas: “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito, para que fique eterna120.  Cf. Jesuscristo, vida del alma 6,3. “

85

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

mente convosco. É o Espírito da Verdade”.121 E já sabeis como foi atendida a petição de Jesus, com que abundância se deu o Espírito Santo aos apóstolos no dia de Pentecostes. Desse dia, data, por assim dizer, a tomada de posse por parte do Espírito divino da Igreja, Corpo místico de Cristo; e podemos acrescentar que, se Cristo é o Chefe e a Cabeça da Igreja, o Espírito Santo é a alma desse Corpo. Ele é quem guia e inspira à Igreja, guardando-a, como o prometeu Jesus, na verdade de Cristo e na luz que Ele nos trouxe: “Mas o Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito.122 Essa ação do Espírito Santo na Igreja é variada e múltipla. Vos disse anteriormente que Cristo foi consagrado Messias e Pontífice por uma unção inefável do Espírito Santo, e com unção parecida consagra Cristo aos que quer fazer participantes de seu poder sacerdotal para prosseguir na terra sua missão santificadora: “Recebei o Espírito Santo”...123 “o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastorear a Igreja de Deus”;124 o Espírito Santo é quem fala

121.  Jo 14 16-17. 122.  Jo 14, 26. 123.  Jo 20, 22. 124.  At 20, 28.

86

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

por sua boca e dá valor a seu testemunho.125 Do mesmo modo, os sacramentos, meios autênticos que Cristo colocou nas mãos de seus ministros para transmitir a vida às almas, jamais se conferem sem que preceda ou acompanhe a invocação ao Espírito Santo. Ele é quem fecunda as águas do batismo: “Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus.”.126 Deus – acrescenta São Paulo – nos salva na fonte da regeneração, renovando-nos pelo Espírito Santo”.127 Esse mesmo Espírito se nos “dá” no sacramento da confirmação, para ser a unção que deve fazer do cristão um soldado intrépido de Jesus Cristo; Ele é quem nos confere nesse sacramento a plenitude da condição de cristão e nos reveste da fortaleza de Cristo. Ao Espírito Santo – como nos evidencia, sobretudo, a Igreja Oriental – se atribui a transformação que faz do pão e do vinho no corpo e sangue de Jesus Cristo. Os pecados são perdoados no sacramento da penitência pelo Espírito Santo.128 Na unção dos enfermos se lhe pede que “com sua graça cure ao enfermo de suas doenças e culpas”. No santo matrimônio, enfim, se invoca também ao Espírito Santo para que os esposos 125.  cf. Jo 15,26; At 15,28; 20,22-28. 126.  Jo 3, 5. 127.  Tt 3, 5. 128.  Jo 20, 22-23.

87

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

cristãos possam, com sua vida, imitar a união que existe entre Cristo e sua Igreja. Vedes quão viva, profunda e incessante é a ação do Espírito Santo na Igreja? Bem podemos dizer com São Paulo que é o “Espírito de vida”;129 verdade que a Igreja repete no Símbolo quando expressa sua fé no “Espírito vivificador”: Dominum et vivificantem. É, pois, verdadeiramente a alma da Igreja, o princípio vital que anima à sociedade sobrenatural, o que a rege e une entre si seus diversos membros e lhes comunica vigor e beleza espiritual. Nos primeiros dias da Igreja, sua ação foi muito mais visível do que em nossos. Assim convinha aos desígnios da Providência, porque era mister que a Igreja pudesse se estabelecer solidamente, manifestando ao olhos do mundo pagão os sinais luminosos da divindade de seu fundador, de sua origem e de sua missão. Esses sinais, fruto da efusão do Espírito Santo, eram admiráveis e ainda nos maravilhamos ao ler o relato do início da Igreja. O Espírito descendia sobre aqueles a quem o batismo fazia discípulos de Cristo e os preenchia de carismas tão variados quanto assombrosos: graça de milagres, dom de profecia, dom de línguas e outros mil favores extraordinários concedidos aos primeiros cristãos para que, ao contemplar a Igreja embelezada com tal profusão de magníficos 129.  Rm 8, 2.

88

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

dons, se visse bem às claras que era verdadeiramente a Igreja de Jesus. Lede a primeira epístola de São Paulo aos Coríntios; e vereis com que fruição enumera o Apóstolo as maravilhas de que ele mesmo foi testemunha. Em cada enumeração desses dons tão variados acrescenta: “A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum”,130 porque Ele é amor, e o amor é fonte de todos os dons “no mesmo Espírito”. Ele é quem fecunda a esta Igreja, que Jesus redimiu com seu sangue e quis que fosse “santa e imaculada”.131

Vamos precisar agora, com todo rigor e exatidão teológica, em que sentido o Espírito Santo é e pode ser chamado alma da Igreja. Antes de mais nada, é evidente que o Espírito Santo não é e nem pode ser a forma substancial da Igreja no sentido em que o é a alma do corpo humano a quem ela informa. A alma, como é sabido e já foi definido pela Igreja, é a forma substancial do corpo humano a quem anima (cf. D 481). Com tal forma, tem a missão de informar, ou seja, de dar ao corpo seu ser de corpo humano, de formar com ele um mesmo e único ser, determinado específica e numericamente pela própria alma. É claro que o Espírito Santo não pode ser a alma da 130.  1Cor 12-7-13. 131.  Ef 5, 27.

89

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Igreja nesse sentido, porque, aparte de que a forma é parte de um composto determinado (e Deus não pode ser parte de nada e nem de ninguém), se seguiria que a Igreja teria um ser substantivamente divino, já que formaria uma mesma substância com sua forma, ou seja, que a Igreja seria Deus; o que é herético e absurdo. Porém, ademais da função de informar, ou ademais de dar ao corpo o ser que tem e de formar com ele uma unidade substantiva, a alma possui e desenvolve outras funções, tais como unificar as partes do corpo entre si, vivificá-las e movê-las. E isso sim pode fazê-lo e de fato faz o Espírito Santo como alma da Igreja. Vejamo-lo detalhadamente.132 1.

unifica a igreja

Há na Igreja uma grande diversidade de membros. Há diversidade hierárquica, diversidade carismática, diversidade santificadora. Há quem rege e quem obedece; e entre os que regem, há quem o faça com poder universal e quem o faz com poder limitado: papas, bispos, sacerdotes. Há também aqueles que possuem diversos carismas: uns fazem milagres, outros profetizam, outros ensinam... Há, ademais, diversos graus de santidade: uns possuem a graça santificante em suas manifestações mais excelsas; outros são menos 132.  Cf. Emilio Sauras, O.P., El Cuerpo místico de Cristo (BAC, Ma-

drid 1956) c.5 p.752ss, onde se estuda ampla e profundamente esta questão. Compilamos, em parte, as páginas 781-784 90

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

santos e não faltam aqueles que possuem apenas o imprescindível para se salvar ou até menos. Há santos muito santos, há justos que se limitam a estar em graça e há pecadores. Mas apesar de tanta diversidade, existe entre todos eles uma unidade íntima. Cristo a pediu para os que deviam ser seus membros: “Para que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para que também eles estejam em nós e o mundo creia que tu me enviaste. Dei-lhes a glória que me deste, para que sejam um, como nós somos um”.133 É digno de nota que a unidade que Cristo pede para sua Igreja seja parecida com aquela que Ele possui com o Pai. Cristo e o Pai têm muitos motivos de união. Possuem uma mesma natureza divina, numericamente idêntica; o primeiro está unido ao segundo, porque é seu Verbo subsistente. Mas o Espírito Santo dá uma razão especial para a união entre as duas pessoas. No mistério trinitário, o Pai e o Filho, comparados entre si, são distintos: o Pai engendra e o Filho é engendrado. Porém, comparados com o Espírito Santo, constituem um mesmo e idêntico princípio espirador. São unos na ação espiradora, da qual precede a terceira pessoa. E é significativo que se aproprie à terceira pessoa o amor e que Cristo deseje que a união que deve existir entre aqueles que formam seu Corpo místico seja união de amor: “Manifestei-lhes 133.  Jo 17, 21-22.

91

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

o teu nome, e ainda hei de lho manifestar, para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles”.134 Tudo isso parece significar que a união existente na Igreja, união parecida àquela entre o Pai e o Filho, deve se parecer àquela existente em sua relação com o Espírito Santo. O amor unifica à Igreja e o Espírito Santo a unifica pelo amor. E assim, os membros do Corpo místico se unificam onde se unificam o Pai e o Filho, ou seja, no Espírito Santo. É algo que São Paulo disse claramente quando, depois de nomear os muitos carismas e ofícios existentes na sociedade cristã, escreve: “Em um só Espírito fomos batizados todos nós, para formar um só corpo, judeus ou gregos, escravos ou livres; e todos fomos impregnados do mesmo Espírito”.135 2. vivifica a igreja A Igreja é um ser vivo, no sentido autêntico da palavra. É um verdadeiro Corpo místico, e o caráter místico ou sobrenatural se funda em um elemento divino e vivificador. Todas as sociedades constituídas pelos homens têm vida em certo sentido: movem-se, progridem, aperfeiçoam-se. Porém em realidade, o princípio que as anima está fora delas, é seu fim, e o fim é uma causa extrínseca. O que não condiz com a 134.  Jo 17, 26. 135.  1Cor 12, 13.

92

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

definição de vida, que é a de movimento que procede de dentro. Nem se diga que a vida das sociedades vem dos indivíduos que as constituem; estes são os que a manifestam, são os membros que dela se aproveitam. A vida dessas sociedades procede do fim, que se assimila mais ou menos, que é mais ou menos operante em cada um dos que a ele se dirigem. E o fim é sempre causa extrínseca. Por essa razão é que não se possa dizer com exatidão que as sociedades sejam organismos vivos. No entanto, a Igreja sim, o é, porque tem um princípio vivificador intrínseco. O Espírito Santo não somente é fim e meta; é também princípio animador da Igreja, princípio imanente ou interno, embora não formal. O Espírito é um princípio vivo e vivificador. Interveio na aparição visível de Cristo sobre a terra, fecundando ativamente a Maria, e intervém no nascimento da Igreja. O dia de Pentecostes foi o da proclamação oficial da sociedade estabelecida por Cristo, e esse dia aparecem no nascimento oficial dessa sociedade Maria e o Espírito Santo, como no nascimento de Cristo. A Igreja nasce com seu batismo, como nós nascemos com o nosso; e o batismo da Igreja foi o de Pentecostes. Referindo-se a esse dia disse Jesus a seus discípulos quando se despedia deles momentos antes de subir aos céus: “João batizou na água, mas vós sereis batizados no Espírito Santo daqui há poucos dias”.136 É certo que Cristo instituiu sua 136.  At 1, 5.

93

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Igreja antes da ascensão, mas a fé de vida da mesma se dá no dia que o Espírito Santo desce sobre Maria e sobre os apóstolos. Também é o Espírito Santo quem vivifica a cada um dos membros que consta a Igreja. N’Ele somos batizados; Ele nos dá, portanto, o princípio vital, que é a graça divina, e por dá-lo a nós, nos faz filhos de Deus: “Porquanto não recebestes um espírito de escravidão para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Aba! Pai!”.137 O Espírito é quem dá vida à Igreja e a cada um de seus membros. E a dá não desde fora, como a dá o fim às sociedades terrenas, mas desde dentro, como a dá a alma. Ao dizer que o Espírito Santo engendra e vivifica, não queremos dizer que faça isso sem penetrar dentro dos engendrados e vivificados. Está neles, inabita neles, porque, ao deixar-lhes a graça vivificadora, Ele está com as outras duas pessoas divinas, como veremos mais adiante. 3.

move e governa a igreja

Por último, como a alma move e governa ao corpo, assim o Espírito Santo move à Igreja. Para governar é necessário conhecer e amar, e o Espírito Santo é quem infunde o conhecimento do sobrenatural (a fé) e quem dá o amor divino 137.  Rm 5, 15.

94

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

aos cristãos (a caridade). Ele intervém também, como já dissemos, na designação dos hierarcas.138 E quando o Apóstolo assinala os diversos ofícios existentes na Igreja, acrescenta: “Mas um e o mesmo Espírito distribui todos estes dons, repartindo a cada um como lhe apraz”.139 Não é necessário acrescentar mais. Se é Ele quem governa e move aos membros do Corpo místico de Cristo, quem os unifica, quem os vivifica; e se faz tudo isso desde dentro, inabitando em cada membro e em todo Corpo, devemos concluir que desempenha autênticas funções de alma. Já o gênio de Santo Agostinho havia intuído esta verdade quando escreveu resolutamente: “O que é a alma para o corpo do homem, é o Espírito Santo para o Corpo de Cristo que é a Igreja”.140 O magistério oficial da Igreja aplicou também ao Espírito Santo a expressão alma da Igreja no sentido que acabamos de explicar. Vejamos, por exemplo, o seguinte texto de Pio XII em sua magistral encíclica Mystici Corporis:141 “A esse Espírito de Cristo, como a princípio invisível, deve atribuir-se também a união de 138.  cf. At 20, 28. 139.  1Cor 12, 11. 140.  “Quod anima est hominis corpori, Spiritus Sanctus est corpori

Christi, id est Ecclesiae”(Santo Agostinho, Serm. 186 de tempore: PL 38. 1231).

141.  Pio XII, encicl. Mystici Corporis n.26: AAS 55(1943) 219-20.

95

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

todas as partes do corpo tanto entre si como com sua cabeça, pois que ele está todo na cabeça, todo no corpo e todo em cada um dos membros; conforme as suas funções e deveres, e segundo a maior ou menor saúde espiritual de que gozam, está presente e assiste de diversos modos. É ele que com o hálito de vida celeste em todas as partes do corpo é o princípio de toda a ação vital e verdadeiramente salutar. É ele que, embora resida e opere divinamente em todos os membros, contudo também age nos inferiores por meio dos superiores; ele enfim que cada dia produz na Igreja com sua graça novos incrementos, mas não habita com a graça santificante nos membros totalmente cortados do corpo. Essa presença e ação do Espírito de Jesus Cristo exprimiu-a sucinta e energicamente nosso sapientíssimo predecessor, de imortal memória, Leão XIII, na encíclica “Divinum Illud” por estas palavras: “Baste afirmar que, sendo Cristo cabeça da Igreja, o Espírito Santo é a sua alma”.142

De sua parte, o Concílio Vaticano II consagrou uma vez mais esta magnífica doutrina na constituição dogmática sobre a Igreja com as seguintes palavras:

142.  Leão XIII, encíclica Divinum illud múnus: AAS 29 p.650.

96

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

“A cabeça deste corpo é Cristo... E para que sem cessar nos renovemos n’Ele,143 deu-nos do Seu Espírito, o qual, sendo um e o mesmo na cabeça e nos membros, unifica e move o corpo inteiro, a ponto de os Santos Padres compararem a Sua ação à que o princípio vital, ou alma, desempenha no corpo humano”.144

Depois deste rápido vislumbre sobre a presença e a ação do Espírito Santo em toda a Igreja de Cristo, vejamos agora a que corresponde cada um de seus membros em particular. Mas isto requer um capítulo à parte.

143.  cf. Ef. 4, 23. 144.  Concílio Vaticano II, constituição Lumen gentium c.1 n.7.

97

 Capítulo VI 

O Espírito Santo em nós

Abordaremos neste capítulo um dos temas mais santos e sublimes de toda a sagrada teologia: a inabitação do Espírito Santo na alma justificada pela graça.

Antes, é preciso ter as ideias muito claras sobre a natureza íntima da graça santificante, que é a base e o fundamento da inabitação do Espírito Santo e de toda a Trindade Beatíssima na alma justificada. Por isso vamos nos deter na exposição dos princípios fundamentais da teologia da graça, mesmo arriscando incorrer em uma pequena digressão, que julgamos necessária, muito prática e proveitosa.

99

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

I. A graça santificante Exporemos brevemente sua natureza e os principais efeitos que se produz em nossas almas 1.

o que é a graça

A graça santificante pode ser definida como um dom sobrenatural infundido por Deus em nossas almas, para nos dar uma participação verdadeira e real de sua própria natureza divina, fazernos seus filhos e herdeiros da glória. Vamos explicar a definição palavra por palavra, para captar melhor sua esplendida realidade. a) é um dom. – A graça é um imenso presente de Deus, um dom total e absolutamente gratuito que ninguém tem o direito de reclamar desde o ponto de vista natural. Uma vez em possessão gratuita desse imenso dom, já podemos negociar com ele e merecer novos aumentos de graça e a própria glória eterna, como veremos mais abaixo. Porém, antes de possuir a graça, absolutamente ninguém pode merecê-la, mesmo pedindo-a humildemente a Deus com a oração confiada e perseverante. É um belo e consolador aforismo teológico dizer que “a quem faz o que pode (com ajuda da mesma graça proveniente), Deus não lhe nega sua graça”. b) É um dom sobrenatural. – Sobrenatural quer dizer que está sobre, por cima da natureza. Tão acima que a graça é uma realidade divina, infinitamente superior a toda a natureza criada ou criável. 100

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Com efeito: escalonando o conjunto de todas as criaturas criadas por Deus em seus diferentes graus, conhecidos por nós através da luz natural e pela divina revelação, nos encontramos com os cinco seguintes, do menor ao maior: 1o Os minerais. – São de categoria inferior. Existem, porém não vivem. 2o Os vegetais. – Vivem, porém não sentem e não entendem. 3o Os animais. – Vivem e sentem, porém não entendem e não pensam. 4o O homem. – é, como disse São Gregório, uma espécie de microcosmos (um mundo em miniatura), que resume e compendia a todos os demais seres criados: Existe, como os minerais; vive, como os vegetais; sente, como os animais, e entende, como os anjos. 5o Os anjos. – Espíritos puros, não têm corpo, nem mescla alguma de matéria. São, por isso, naturalmente superiores ao homem, posto que estão mais próximos do próprio ser de Deus. A qual desses graus ou categorias pertence a graça habitual ou santificante? A nenhum deles, posto que os transcende e os rebaixa a todos. A graça, como explicaremos em seguida, é uma realidade divina que, por isso mesmo, pertence ao plano da divindade e está mil vezes acima de todos os seres criados, incluindo os próprios anjos. É uma realidade absolutamente sobrenatural, ou seja, que está acima, que rebaixa e transcende 101

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

toda a natureza criada ou criável. Por isso, a menor participação da graça santificante vale infinitamente mais do que a criação universal inteira, ou seja, que todo o conjunto dos seres criados por Deus que existiram, existem e existirão até o fim dos séculos.145 c) infundido por deus. – Somente Deus, autor da ordem sobrenatural, pode infundi-la na alma. Todas as criaturas juntas do universo jamais poderão produzir a mais mínima participação da natureza mesma de Deus, que é precisamente, o que nos comunica a graça santificante. d) em nossas almas. – A graça é uma realidade espiritual que radica na alma, não no corpo. Por ser espiritual, não pode ser vista com os olhos, nem ser tocada ou ouvida. Tampouco se pode ver ou tocar um pensamento, nem o amor, e, entretanto, não deixa de ser uma autêntica realidade que pensamos e amamos. e) para nos dar uma participação, verdadeira e real, de sua própria natureza divina. – É a primeira e maior prerrogativa da graça de Deus, que explicaremos detalhadamente mais abaixo ao falar dos efeitos da graça em nossas almas. f) nos faz verdadeiros filhos de deus. – É uma consequência necessária do fato de que a graça santificante nos faz participantes da natureza mesma de Deus. Sem essa participação, seriamos 145.  Por isso disse São Tomás que “o bem da graça de um só indivíduo é maior que o bem natural de todo o universo”( I-II q.113 a.9 ad 2)

102

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

tão somente criaturas de Deus, mas de nenhuma maneira seus filhos. Com efeito, para ser pai, é preciso transmitir a outro ser a sua própria natureza específica. O escultor que esculpe uma estátua não é o pai daquela obra inanimada, senão unicamente o autor. Por outro lado, os autores de nossos dias são verdadeiramente nossos pais na ordem natural, porque nos transmitiram realmente, por via de geração, sua própria natureza humana. É certo que Deus não nos transmite pela graça sua própria natureza divina por geração natural – como a transmite o Pai ao Filho no seio da Trindade Beatíssima –, senão em forma parcial e por via de adoção, não natural. Mas devemos nos guardar de crer que esta adoção divina por meio da graça é da mesma natureza que as adoções humanas: de maneira alguma. Quando uma criança órfã de pai e mãe é adotada legalmente por uma família caritativa, recebe dela uma série de bens e vantagens, entre as quais se destacam o sobrenome da família adotante e o direito aos bens que se lhe abona em herança. Mas há algo que não lhe dão e que jamais poderão lhe dar: o sangue da família. Essa pobre criança tem o sangue que recebeu de seus pais naturais, mas de modo algum o de seus pais adotivos. No entanto, quando Deus nos adota pela graça, não só nos dá o sobrenome da família divina – filhos de Deus – e o direito à futura herança – o céu –, senão que nos comunica de forma muito real e verdadeira sua própria natureza divina. 103

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Empregando uma linguagem metafórica – posto que Deus não tem sangue –, mas que encerra no fundo uma realidade sublime, poderíamos dizer que a graça é uma transfusão de sangue em nossas almas. Em virtude dessa divina transfusão, deste enxerto divino, a alma se faz de tal modo participante da vida mesma de Deus, que não só nos dá direito de chamarmo-nos filhos de Deus, mas também nos faz seus filhos efetivamente. Por isso exclama estupefato o evangelista São João: “Considerai com que amor nos amou o Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos de fato”.146 E o apóstolo São Paulo escreve em sua carta aos Romanos: “Porquanto não recebestes um espírito de escravidão para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Aba! Pai! O Espírito mesmo dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus. E, se filhos, também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo”.147 Pela graça somos, pois, verdadeiramente filhos de Deus por adoção, mas por uma espécie de adoção intrínseca, que nos incorpora realmente à família de Deus em qualidade de verdadeiros filhos. g) nos faz herdeiros do céu. – É outra conseqüência natural e obrigatória de nossa filiação divina adotiva. Nos recorda São Paulo nas palavras 146.  1Jo 3, 1. 147.  Rm 8, 15-17.

104

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

que acabamos de citar: “E, se filhos, também herdeiros”.148 Mas quão diferente é também a filiação adotiva da graça das adoções legais e puramente humanas! Entre os homens, os filhos não herdam senão quando morre o pai, e tanto é menor a herança quanto maior o número de herdeiros. Mas nosso Pai vive e viverá eternamente, e com Ele possuiremos uma herança tal que, apesar do imenso número de participantes, não experimentará jamais a menor míngua ou diminuição. Porque esta herança, ao menos nos seus principais aspectos, é rigorosamente infinita. É o próprio Deus, uno em essência e trino em pessoas, contemplado, amado e gozado com deleites inefáveis e embriagantes, que nesta vida terrena não podemos nem sequer imaginar. Nos serão comunicadas todas as riquezas internas da divindade, tudo o que constitui a felicidade mesma de Deus e lhe proporciona um gozo infinito e eterno: são as perfeições insondáveis da divindade. Finalmente, Deus porá à nossa disposição todos seus bens exteriores: sua honra, sua glória, seus domínios, sua realeza e todos os bens criados que existem no universo inteiro: “Tudo é vosso –disse São Paulo –, e vós sois de Cristo, e Cristo de Deus”.149 Tudo isto proporcionará à alma uma felicidade e alegrias inexplicáveis, que culminará plenamente, em abundancia transbordante, todas suas aspirações e anelos. 148.  Rm 8, 17. 149.  1Cor 3, 22-23.

105

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

E tudo isso receberá a alma em graça como herança devida a título de justiça: tem direito a isso. A graça – como já explicamos mais acima – é inteiramente gratuita, um dom imenso de Deus que ninguém absolutamente pode merecer desde o ponto de vista puramente natural; mas, uma vez possuída, nos dá a capacidade para merecer o céu a título de justiça. Há um perfeito paralelismo e correspondência entre a graça e o céu, como há também entre o pecado mortal e o inferno. A graça é como o céu em potência. Não há entre a graça e o céu mais do que uma diferença de grau, não essencial: é a própria vida sobrenatural em estado inicial ou em estado consumado. A criança não difere especificamente do homem maduro: é um adulto em gérmen. Isso mesmo ocorre com a graça e com a glória. Por isso pôde escrever São Tomás com toda exatidão teológica que “a graça não é outra coisa senão um começo da glória em nós”.150 2. efeitos da graça santificante a) nos diviniza fazendo-nos participantes da natureza mesma de Deus. – é o primeiro e maior dos efeitos que a graça santificante produz em nossas almas, a raiz e fundamento de todos os demais. Poderíamos apenas crer, se não constasse na divina revelação. O apóstolo São Pedro disse que Deus nos fez entrar “na posse das maiores e mais preciosas promessas, a fim de tornar-vos por este 150.  Cf. II-II q.24 a.3 ad 2.

106

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

meio participantes da natureza divina”.151 Os Santos Padres e mesmo a exegese moderna viram nessas palavras uma clara e manifesta alusão à graça santificante.152 E a Igreja exclama jubilosa em sua liturgia oficial: “Cristo subiu aos céus, a fim de nos tornar participantes de sua divindade”.153 Isso significaria que o homem se faz substancialmente divino pela graça no sentido panteísta da expressão? Afirmar isso seria um grande erro e uma verdadeira heresia. Não é e nem pode haver uma mudança substancial da natureza humana na substância divina. Trata-se unicamente de uma participação analógica e acidenta,l 154 em virtude da qual, o homem, sem deixar de ser tal, se faz participante da divina natureza na medida em que é possível a uma simples criatura. Os Santos Padres costumam utilizar a imagem de um ferro colocado em uma forja: o ferro não perde com isso sua própria natureza de ferro, mas adquire propriedades do fogo e se torna incandescente como ele. De maneira semelhante, a alma, ao receber a graça de 151.  2Pe 1, 4. 152.  “A fórmula physis divina - escreve um exegeta moderno – de-

signa ao ser divino, à mesma divindade. É a mesma natureza divina como oposta a tudo o que não é Deus. A fórmula lapidária de São Pedro é audaz e ao mesmo tempo clara, já que ela esclarece o mais esplêndido efeito da graça santificante... O cristianismo participa da própria natureza divina, ou seja, de todo o cúmulo de perfeições contidas de uma maneira formal-eminente na essência divina” (Salguero, O.P., em Bíblia comentada VII [BAC, Madrid 1965] p. 156).

153.  Prefácio II da festa da Ascensão do Senhor. 154.  Já explicamos amplamente tudo isso em nossa Teologia de la perfección cristiana (BAC, Madrid 1968) n.86. Nas edições anteriores era o n. 32.

107

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Deus, continua sendo substancialmente uma alma humana, porém recebe uma verdadeira e real participação da natureza mesma de Deus, porque a graça a torna capaz de conhecer e amar a Deus tal como Ele se conhece e ama; e como a natureza de Deus consiste precisamente em conhecer e amar ao divino, participar deste conhecimento e amor é participar real e verdadeiramente de sua própria natureza divina. A alma em estado de graça se assemelha a Deus precisamente enquanto Deus, ou seja, não tão somente enquanto ser vivo e inteligente, mas naquilo que faz com que Deus seja Deus e não outra coisa, em sua mesmíssima divindade. É impossível a uma criatura, humana ou angélica, escalar uma altura maior do que aquela a que é elevada pela graça santificante, se excetuarmos a união pessoal ou hipostática, que é própria e exclusiva de Cristo. A dignidade de uma alma em estado de graça é tão grande, que ante ela se desvanecem como fumaça todas as grandezas da terra. Que significa toda a criação ante um mendigo coberto de andrajos, que no entanto leva em sua alma o tesouro da graça santificante? Há mais distância entre esse mendigo e uma alma em pecado mortal (que carece da graça) do que aquela existente entre esse mendigo em estado de graça e o maior dos santos canonizados, incluindo a que há entre ele e a Santíssima Virgem Maria. A que altura tão egrégia nos eleva a simples possessão da graça santificante! Nos faz rebaixar as fronteiras de toda a criação natural, fazendo-nos alcançar, em seu voo de águia, 108

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

o plano mesmo da divindade: ao próprio Deus tal como é em si mesmo. O demônio prometeu a nossos primeiros pais no paraíso que, se comessem da árvore proibida, seriam como deuses.155 “É Jesus Cristo – disse Malebranche – quem, por meio da graça, cumpre em nós a magnífica promessa do demônio”.156 b) nos faz irmãos de cristo e co-herdeiros com Ele. – É a terceira afirmação de São Paulo no texto da epístola aos Romanos que citamos mais acima: “herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo”.157 E esta relação deriva imediatamente das outras duas anteriores. Porque, como disse Santo Agostinho, “aquele que diz Pai nosso ao Pai de Cristo, que lhe diz a Cristo? Irmão nosso?”. Pelo fato mesmo de que a graça santificante nos comunica uma participação da vida divina que Cristo possui em toda sua plenitude, é forçoso que venhamos a ser irmãos do próprio Cristo. Quis se fazer nosso irmão segundo a humanidade “a fim de nos tornar participantes da sua divindade”.158 Deus nos predestinou – afirma São Paulo – para sermos “conformes à 155.  Gn 3, 5. 156.  Citado pelo P. Sertillanges (Catecismo dos incrédulos [Barcelona 1934] p.211). 157.  Rm 8, 17. 158.  Prefácio II da festa da Ascensão.

109

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

imagem de seu Filho, a fim de que este seja o primogênito entre uma multidão de irmãos”.159 Certamente, não somos irmãos de Cristo segundo a natureza, nem somos filhos de Deus da mesma forma que Ele o é. Cristo é o primogênito entre seus irmãos, mas também é o Filho unigênito do Pai. Pela ordem natural Ele é o Filho único; mas na ordem da adoção e da graça é nosso irmão mais velho, ao mesmo tempo nossa Cabeça e a causa de nossa saúde. Por essa razão, o Pai se digna a olhar-nos como se fossemos uma mesma coisa com seu Filho. Nos ama como ama a Ele, o tem por nosso irmão e nos confere um título a sua própria herança. Somos co-herdeiros de Cristo. Ele tem direito natural à herança divina, já que é o Filho “a quem constituiu herdeiro universal, pelo qual criou todas as coisas”.160 Neste caso: “Aquele para quem e por quem todas as coisas existem, desejando conduzir à glória numerosos filhos, deliberou elevar à perfeição, pelo sofrimento, o autor da salvação deles, para que santificador e santificados formem um só todo. Por isso, (Jesus) não hesita em chamá-los seus irmãos, dizendo: Anunciarei teu nome a meus irmãos, no meio da assembleia cantarei os teus louvores”.161 Por essa causa, esses irmãos de Cristo hão de 159.  Rm 8, 29. 160.  Hb 1, 2. 161.  Hb 2, 10-12.

110

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

compartilhar com Ele o amor e a herança do Pai celestial. Deus nos modelou sobre Cristo; nós somos com Ele os filhos de um mesmo Pai que está nos céus. Definitivamente, tudo acabará, realizando-se o supremo anelo de Cristo: que sejamos uno com Ele, como Ele é uno com seu Pai celestial.162

c) nos infunde as virtudes infusas e os dons do espírito santo. – A graça santificante é uma qualidade sobrenatural que se infunde na essência mesma de nossa alma como um elemento estático, habitual, não imediatamente operativo. Para operar sobrenaturalmente, como exige nossa elevação à ordem sobrenatural pela mesma graça, necessitamos de algumas faculdades operativas de ordem estritamente sobrenatural que nos capacitem para realizar de maneira co-natural e sem esforço os atos sobrenaturais próprios de nossa condição de filhos de Deus. Tais são as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo, que se infundem em nós sempre juntamente com a graça santificante, da qual são inseparáveis163 e da qual constituem seu elemento operativo ou dinâmico. Trataremos amplamente sobre isso em seu lugar correspondente. 162.  Jo 17, 21-24. 163.  Com exceção da fé e da esperança, que podem subsistir sem a

graça, embora de maneira informe, ou seja, sem vitalidade alguma de ordem meritória sobrenatural. 111

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

II. A inabitação trinitária na alma A graça santificante, como já dissemos, nos dá uma verdadeira e real participação da natureza mesma de Deus, e neste sentido pode-se chamar divina com toda a propriedade e exatidão. No entanto, é evidente que ela não é o próprio Deus, mas uma realidade criada por Deus para fazernos participantes de sua própria natureza divina de um modo misterioso, embora muito real e verdadeiro. Porém, esta realidade criada que é a graça santificante, leva sempre consigo, inseparavelmente, outra realidade absolutamente divina e incriada, que não é outra coisa senão o próprio Deus, uno e trino, que vem inabitar no fundo de nossas almas. Vamos estudar esta realidade augusta com a máxima amplitude que nos permite os limites de nossa obra.164 1. existência. – A inabitação da Santíssima Trindade na alma do justo é uma das verdades mais claramente manifestadas no Novo Testamento.165 Com insistência, mostra bem às claras a importância soberana deste mistério, voltando o sagrado texto uma vez e outra a nos inculcar 164.  Transladamos aqui o que já escrevemos em nossa Teologia de la

perfección cristiana (BAC, Madrid 51968) n.40-44.

165.  Como é sabido, ainda que no Antigo Testamento haja alguns

rastros e vestígios do mistério trinitário – sobretudo na doutrina do “Espírito de Deus”e da “Sabedoria”- a plena revelação do mistério da vida íntima de Deus estava reservada ao Novo Testamento. 112

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

esta sublime verdade. Recordemos alguns dos testemunhos mais insignes: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e nele faremos nossa morada”.166 “Nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem para conosco. Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele”.167 “Não sabeis que sois o templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá. Porque o templo de Deus é sagrado - e isto sois vós”.168 “Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós, o qual recebestes de Deus e que, por isso mesmo, já não vos pertenceis?”.169 “Porque somos o templo de Deus vivo”.170 “Guarda o precioso depósito, pela virtude do Espírito Santo que habita em nós”.171 166.  Jo 14, 23. 167.  1Jo 4, 16. 168.  1Cor 3, 16-17. 169.  1Cor 6, 19. 170.  2Cor 6, 16. 171.  2Tm 1, 14.

113

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Como se vê, a Sagrada Escritura emprega diversas fórmulas para expressar a mesma verdade: Deus habita dentro da alma em estado de graça. Preferencialmente, se atribui essa inabitação ao Espírito Santo, não porque caiba uma presença especial do Espírito Santo que não seja comum ao Pai e o Filho,172 mas por uma muito conveniente apropriação, já que é esta a grande obra de amor de Deus ao homem e é o Espírito Santo o Amor essencial no seio da Santíssima Trindade. Os Santos Padres, sobretudo Santo Agostinho, escreveram páginas belíssimas comentando o inefável fato da inabitação divina na alma do justo. 2. natureza. – Muito foi escrito e discutido pelos teólogos acerca da natureza da inabitação das divinas pessoas na alma do justo. As opiniões são muitas, embora nenhuma delas nos dê uma explicação inteiramente satisfatória do modo misterioso como se realiza a presença real das pessoas divinas na alma do justo. Em todo caso, para a vida de piedade e avanço na perfeição, mais do que o modo como se realiza, nos interessa o fato da habitação em si mesma, no qual estão absolutamente de acordo todos os teólogos católicos. 172.  Assim pensaram alguns teólogos como Lessio, Petau, Tomassi-

no, Scheeben, etc.; mas a imensa maioria afirma a doutrina contrária, que se deduz claramente dos dados da fé e da doutrina da Igreja (D 281-703). Cf. Terrien, La gracia y la gloria 1.6 c.6 e apêndice 5; Froget, De l’habitation du Saint Esprit dans les âmes justes apêndice p. 442s; Galtier, L’habitation en nous des trois Personnes p.1a c.1 (Roma 1950) 114

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Logo, prescindindo das diversas teorias formuladas para explicar o modo da divina inabitação, vamos assinalar em que se distingue a presença da inabitação das outras presenças de Deus que assinalam a teologia. Pode-se distinguir, com efeito, até cinco presenças de Deus completamente distintas: 1a presença pessoal e hipostática.– É a presença própria e exclusiva de Jesus Cristo Homem. N’Ele, a pessoa divina do Verbo não reside como em um templo, senão que constitui sua própria personalidade, mesmo enquanto homem. Em virtude da união hipostática, Cristo-homem é uma pessoa divina e de nenhum modo uma pessoa humana. 2a presença eucarística.– Na Eucaristia, Deus está presente de uma maneira especial, que somente se dá nela. É o ubi eucarístico que, mesmo de uma maneira direta e imediata afeta o corpo de Cristo, afeta também indiretamente as três divinas pessoas da Santíssima Trindade: ao Verbo por sua união pessoal com a humanidade de Cristo, ao Pai e ao Espírito Santo pela circum-incessão ou presença mútua das três divinas pessoas entre si, que faz delas absolutamente inseparáveis. 3a Presença de visão.– Deus está presente em todas as partes – como veremos em seguida –, mas não em todas Ele se deixa ver. A visão beatífica no céu pode ser considerada como uma presença especial de Deus distinta das demais. No céu está Deus deixando-se ver. 115

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

4a Presença de imensidade.– Um dos atributos de Deus é sua imensidade, em virtude da qual Deus está realmente presente em todas as partes, sem que possa existir criatura ou lugar algum onde não se encontre Deus. E isto por três capítulos: a) por essência, enquanto que Deus está dando o ser a tudo quanto existe sem descansar um só instante, de maneira parecida a uma usina elétrica que manda energia sem cessar e mantém acesa a lâmpada. Se Deus suspendesse um só instante sua ação conservadora sobre qualquer ser, esse ser desapareceria ipso facto no nada, como a lâmpada elétrica que se apaga instantaneamente quando cortamos sua corrente. Neste sentido, Deus está mais presente inclusive na alma em pecado mortal e no próprio demônio, que não poderiam existir sem essa presença divina. b) por presença, enquanto que Deus tem continuamente diante de seus olhos todos os seres criados, sem que nenhum deles possa subtrairse um só instante de Sua visão divina. c) por potência, enquanto que Deus tem submetidas ao seu poder todas as criaturas. Com uma só palavra as criou e somente com uma poderia aniquilá-las.

5a Presença de inabitação. – É a presença especial que estabelece Deus, uno e trino, na alma justificada pela graça. 116

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Em que se distingue esta presença de inabitação da presença geral de imensidade? Antes, é preciso esclarecer que a presença especial de inabitação exige e pressupõe a presença geral por imensidade, sem a qual não seria possível. Porém acrescenta a esta presença geral duas coisas fundamentais: a paternidade e a amizade divinas; a primeira, fundada na graça santificante, e a segunda na caridade. Expliquemos um pouco estas realidades inefáveis. a) a paternidade. – Como já dissemos da graça santificante, propriamente falando, não se pode dizer que Deus seja Pai das criaturas na ordem puramente natural. É verdade que todas saíram de suas mãos criadoras, mas esse feito constitui a Deus como Autor ou Criador de todas elas, porém de maneira alguma faz de Deus o Pai das mesmas. O artista que esculpe uma estátua em um pedaço de madeira ou de mármore é o autor da estátua, mas de maneira alguma seu pai. Para ser pai é preciso transmitir a própria vida, ou seja, a própria natureza específica a outro ser vivente da mesma espécie. Por isso, se Deus quisesse ser nosso Pai além de nosso criador, seria preciso nos transmitir sua própria natureza divina em toda sua plenitude – e este é o caso de Jesus Cristo, Filho de Deus por natureza – ou, ao menos, uma 117

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

participação real e verdadeira da mesma: e este é o caso da alma justificada. Em virtude da graça santificante, que nos dá uma participação misteriosa, embora muito real e verdadeira da própria natureza divina, a alma justificada se faz verdadeiramente filha de Deus, por uma adoção intrínseca muito superior às adoções humanas, puramente jurídicas e extrínsecas. E desde esse momento, Deus, que já residia na alma por sua presença geral de imensidade, começa a estar nela como Pai e vê-la como verdadeira filha sua. Este é o primeiro aspecto da presença de inabitação, incomparavelmente superior, como se vê, à simples presença de imensidade. A presença de imensidade é comum a tudo quanto existe (inclusive às pedras e aos próprios demônios). A inabitação, no entanto, é própria e exclusiva dos filhos de Deus. Supõe sempre a graça santificante e, por isso mesmo, não se poderia dar sem ela. b) a amizade. – Mas a graça santificante nunca está só. Leva consigo o maravilhoso cortejo das virtudes infusas, entre as quais se destaca como a mais importante e principal a caridade sobrenatural. A caridade estabelece uma verdadeira e mútua amizade entre Deus e os homens: é sua própria essência.173 Por isso, ao se infundir na alma, juntamente com a graça santificante e a caridade sobrenatural, Deus começa a estar nela de uma maneira inteiramente nova: já não 173.  Cf. II-II q. 23 a.1.

118

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

está simplesmente como autor, mas também como verdadeiro amigo. Eis aí o segundo aspecto intrínseco da divina inabitação.

Presença íntima de Deus, uno e trino, como Pai e Amigo. Este é o feito colossal, que constitui a essência da inabitação da Santíssima Trindade na alma justificada pela graça e pela caridade. 3. finalidade. – A inabitação trinitária possui uma finalidade altíssima em nossas almas, como não poderia deixar de ser. É o grande dom de Deus, o primeiro e maior de todos os dons possíveis, posto que nos dá a posse real e verdadeira do próprio ser infinito de Deus. A própria graça santificante, por ser um dom de valor incalculável, vale infinitamente menos do que a divina inabitação. Esta última recebe em teologia o nome de graça incriada, diferente da graça habitual ou santificante, que se designa com o nome de graça criada. Há um abismo entre uma criatura –por mais perfeita que seja – e o próprio Criador. No cristianismo, a inabitação equivale à união hipostática na pessoa de Cristo, embora não a seja, senão a graça habitual que nos constitui formalmente como filhos adotivos de Deus. A graça santificante penetra e embebe formalmente nossa alma divinizando-a. Mas a divina inabitação é como a encarnação ou 119

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

inserção em nossas almas do absolutamente divino: do próprio ser de Deus tal como é em si mesmo, um em essência e trino em pessoas.

Duas são as principais finalidades da divina inabitação em nossas almas: 1a A Santíssima Trindade inabita em nossas almas para fazer de nós participantes de sua vida íntima divina e nos transformar em Deus. A vida íntima de Deus consiste, como já dissemos, na processão das pessoas divinas – o Verbo, do Pai por via de geração intelectual; e o Espírito Santo, do Pai e do Filho por via de procedência afetiva – e na infinita complacência que neles experimentam as divinas pessoas entre si. Ora, por incrível que pareça esta afirmação, a inabitação trinitária em nossas almas tende, como meta suprema, a nos fazer participantes do mistério da vida íntima divina, associando-nos a Ele e transformando-nos em Deus, na medida em que é possível a uma simples criatura. Escutemos a São João da Cruz – doutor da Igreja universal – explicando esta incrível maravilha:174 Este aspirar da brisa é uma capacidade que, segundo a própria alma o diz, lhe será dada por Deus, na comunicação do Espírito Santo. É 174.  San Juan de la Cruz, Cántico espiritual c.39 n 3-4 e 7.

120

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

este que, a modo de sopro, com sua aspiração divina, levanta a alma com grande sublimidade, penetrando-a e habilitando-a a aspirar, em Deus, aquela mesma aspiração de amor com que o Pai aspira no Filho, e o Filho no Pai, e que não é outra coisa senão o próprio Espírito Santo. Nesta transformação, o divino Espírito aspira a alma, no Pai e no Filho, a fim de uni-la a Si na união mais íntima. Se a alma, com efeito, não se transformasse nas três divinas Pessoas da Santíssima Trindade, num grau revelado e manifesto, não seria verdadeira e total a sua transformação. Essa aspiração do Espírito Santo na alma, com que Deus a transforma em Si, causa-lhe tão subido, delicado e profundo deleite, que não há linguagem mortal capaz de o exprimir; nem o entendimento humano, com a sua natural habilidade, pode conceber a mínima ideia do que seja. Na verdade, mesmo o que se passa na transformação a que a alma chega nesta vida, é indizível; porque a alma, unida e transformada em Deus, aspira, em Deus, ao próprio Deus, naquela mesma aspiração divina com que Deus aspira em Si mesmo à alma já toda transformada n’Ele... Não é, pois, coisa impossível chegar a alma a atingir tão grande altura, aspirando em Deus, por participação, como Ele mesmo nela aspira. Se Deus, de fato, lhe concede a graça de ser unida à Santíssima Trindade, tornando-se a alma 121

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

assim deiforme e Deus por participação, como podemos achar incrível que ela tenha em Deus todo o seu agir, quanto ao entendimento, notícia e amor, ou, melhor dizendo, sejam suas operações todas feitas na Santíssima Trindade, juntamente com Ela, como a mesma Santíssima Trindade? Assim o é, porém, por participação e comunicação, sendo Deus quem opera na alma. Nisto consiste a transformação da alma nas três divinas Pessoas, em poder, sabedoria e amor; nisto também torna-se a alma semelhante a Deus, e para chegar a este fim é que foi criada à Sua imagem e semelhança... Oh! Almas criadas para estas grandezas, e a elas chamadas! Que fazeis? Em que vos entretendes? Baixezas são vossas pretensões e tudo quanto possuís não passa de misérias. Oh! miserável cegueira dos olhos de vosso espírito! Pois para tanta luz estais cegas; para tão altas vozes, sois surdas; não vedes que, enquanto buscais grandezas e glórias, permaneceis miseráveis e vis, sendo ignorantes e indignas de tão grandes bens!.

Até aqui a citação de São João da Cruz. Realmente, o apóstrofe final do sublime místico está plenamente justificado. Ante a perspectiva soberana de nossa total transformação em Deus, o Cristo deveria desprezar radicalmente todas as misérias da terra e dedicar-se com ardor incontido e intensificar cada vez mais sua vida trinitária até se 122

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

remontar pouco a pouco aos mais altos cumes da união mística com Deus. Que não se pense, no entanto, que essa total transformação em Deus de que falam os místicos experimentais como coroamento supremo da inabitação trinitária tem um sentido panteísta de absorção da própria personalidade na torrente da vida divina. Nada mais distante disso. A união panteísta não é propriamente união, senão uma negação absoluta da união, posto que um dos termos – a criatura – desaparece ao ser absorvida por Deus. A união mística não é isso. A alma transformada em Deus não perde jamais sua própria personalidade criada. São Tomás coloca como exemplo, extraordinariamente gráfico e expressivo, do ferro incandescente, que, sem perder sua própria natureza, adquire as propriedades do fogo e se faz fogo por participação.175 Comentando essa divina transformação com base na imagem do ferro incandescente, escreve com acerto o P. Ramière:176 É verdade que no ferro abrasado está a semelhança do fogo, mas não é tal que o mais hábil pintor possa reproduzi-la servindo-se das cores mais vivas; ela não pode resultar senão da presença e ação do próprio fogo. A presença 175.  Cf. I-II q.112 a.1; I q.8 a.1; I q.44 a.1, etc. 176.  Enrique Ramère, S.I. El Corazón de Jesús y la divinización del

Cristiano (Bilbao 1936) c. 229-30.

123

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

do fogo e a combustão do ferro são duas coisas distintas; pois esta é uma maneira de ser do ferro e aquela uma relação do mesmo com uma substância estranha. Mas as duas coisas, por mais distintas que sejam, são inseparáveis uma da outra; o fogo não pode estar unido ao ferro sem que esse lhe abrase e a combustão do ferro não pode resultar senão de sua união com o fogo. Assim, a alma justa possui em si mesma uma santidade distinta do Espírito Santo; mas ela é inseparável da presença do Espírito Santo nessa alma, e, portanto, é infinitamente superior à mais elevada santidade que possa alcançar uma alma na qual não mora o Espírito Santo. Esta última alma não poderia ser divinizada senão moralmente, pela semelhança de suas disposições com as de Deus; o cristianismo, pelo contrário, é divinizado fisicamente e, em certo sentido, substancialmente, posto que sem se converter em uma mesma substância e em uma mesma pessoa com Deus, possui em si a substância de Deus e recebe a comunicação de sua vida.

2a A Santíssima Trindade inabita em nossas almas para nos dar a plena possessão de Deus e o gozo fruitivo das divinas pessoas. Duas coisas estão contidas nessa conclusão, as quais examinaremos separadamente: 124

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

a) para nos dar a plena possessão de Deus. Dizíamos, ao falarmos da presença divina de imensidade que, em virtude da mesma, Deus estava intimamente presente em todas as coisas – inclusive nos próprios demônios do inferno – por essência, presença e potência. E, no entanto, um ser que não tenha com Deus outro contato além daquele que provém unicamente desta presença de imensidade, propriamente falando não possui a Deus, posto que este tesouro infinito não lhe pertence de modo algum. Escutemos novamente ao P. Ramière:177 Podemos imaginar a um paupérrimo junto a um imenso tesouro, sem que se faça rico por estar próximo dele, pois o que faz a riqueza não é a proximidade, mas a posse do ouro. Tal é a diferença entre a alma justa e a alma do pecador. O pecador, o próprio condenado, têm ao seu lado e em si mesmo o bem infinito e, não obstante, permanecem em sua indigência, porque este tesouro não lhes pertence; ao passo que o cristão em estado de graça tem em si o Espírito Santo, e com Ele a plenitude das graças celestiais como um tesouro que lhe pertence em propriedade e do qual pode usar quando e como lhe pareça. Como é grande a felicidade do cristão! Que verdade, bem entendida por nosso entendimento, para alargar nosso coração! Que influxo 177.  Op.cit., p.216-217.

125

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

em nossa vida inteira se a tivéssemos constantemente ante nossos olhos! A persuasão que temos da presença real do corpo de Jesus Cristo no cibório nos inspira o mais profundo horror à profanação desse recipiente de metal. Que horror teríamos também à menor profanação de nosso corpo se não perdêssemos de vista este dogma de fé, tão certo como o primeiro, ou seja, a presença real em nós do Espírito de Jesus Cristo! É por ventura o divino Espírito menos santo que a carne sagrada do Homem-Deus? Ou pensamos que dá Ele à santidade desses recipientes de ouro e templos materiais mais importância que à santidade de seus templos vivos e tabernáculos espirituais?

Nada deveria causar tanto horror ao cristão como a possibilidade de perder este tesouro divino por causa do pecado mortal. As maiores calamidades e desgraças que possamos imaginar no plano puramente humano e temporal – enfermidades, calúnias, perda de todos os bens materiais, morte dos entes queridos, etc. – são brincadeira e dignas de riso comparadas à terrível catástrofe que representa para a alma um só pecado mortal. Aqui a perda é absoluta e rigorosamente infinita. b) para nos dar o gozo fruitivo das pessoas divinas. – Por mais assombrosa que possa parecer tal afirmação, é esta uma das finalidades mais entranháveis da divina inabitação em nossas almas. 126

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

O príncipe da teologia católica, São Tomás de Aquino, escreveu em sua Suma Teológica estas surpreendentes palavras:178 Não se diz que possuímos senão aquilo de que livremente podemos usar e desfrutar. Ora, somente pela graça santificante temos a possibilidade de desfrutar da pessoa divina (“potestatem fruendi divina persona”). Pelo dom da graça santificante a criatura racional é aperfeiçoada, não só para usar livremente daquele dom criado, senão para gozar da própria pessoa divina (“ut ipsa persona divina fruatur”)”.

Os místicos experimentais comprovaram na prática a profunda realidade destas palavras. Santa Catarina de Siena, Santa Teresa, São João da Cruz, Santa Elisabete da Trindade e muitos outros falam de experiências trinitárias inefáveis. Muitas vezes, suas descrições desconcertam aos teólogos especulativos, demasiadamente aficionados em medir as grandezas de Deus com a estreiteza da pobre razão humana, ainda que iluminada pela fé.179 178.  I q.43 a.3 c e ad 1. 179.  Na realidade, as discrepâncias entre teólogos e místicos são

mais aparentes do que reais. A experiência mística, por sua própria inefabilidade, não é apta para ser expressa com os pobres conceitos humanos. Daí que os místicos se vejam constrangidos a empregar 127

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Escutemos alguns testemunhos explícitos dos místicos experimentais: santa teresa. – “O nosso bom Deus quer já tirar-lhe as escamas dos olhos, bem como que veja e entenda algo da graça que lhe é concedida – embora isso se efetue de modo um tanto estranho. Introduzida a alma nesta morada, mediante visão intelectual se lhe mostra, por certa espécie de representação da verdade, a Santíssima Trindade – Deus em três Pessoas: Primeiro lhe vem ao espírito uma inflamação que se assemelha a uma nuvem de enorme claridade. Ela vê então nitidamente a distinção das divinas Pessoas; por uma noticia admirável que lhe é infundida, entende com certeza absoluta serem as três uma substância, um poder, um saber, um só Deus. Dessa maneira, o que acreditamos por fé é entendido ali pela alma por vista, se assim podemos dizer, embora não seja vista dos olhos do corpo, nem da alma, porque não se trata de visão imaginária. Na sétima morada, comunicam-se com ela e lhe falam as três Pessoas. Elas lhe dão a entender as palavras do Senhor que estão no uma linguagem inadequada que, à luz da simples razão natural, parece excessiva e inexata, quando na verdade está ainda muito abaixo da experiência inefável que trata de expressar. Vide, por exemplo, o texto de São João da Cruz que citaremos imediatamente. 128

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Evangelho: que viria Ele, com o Pai e o Espírito Santo, para morar na alma que O ama e segue Seus mandamentos. Oh! Valha-me Deus! Ouvir essas palavras e crer nelas é uma coisa; entender a sua verdade pelo modo de que falo é algo inteiramente diverso! E cada dia se espanta mais essa alma, porque lhe parece que as três Pessoas nunca mais se afastaram dela. Pelo contrário, vê nitidamente – do modo que dissemos – que estão em seu interior. E, no mais íntimo de si, num lugar muito profundo – que ela não sabe especificar, porque é ignorante -, percebe em si essa divina companhia.180 são joão da cruz. – Já citamos na conclusão anterior um texto extraordinariamente expressivo. Ouçamos o Santo ponderar o deleite inefável que a alma experimenta em sua sublime experiência trinitária: “Daí a delicadeza inexprimível do deleite sentido neste toque; nem queria eu falar nisso, para não se pensar que é apenas como eu digo, e não mais. Na verdade, não há termos capazes de declarar coisas tão subidas de Deus, como as que se passam nestas almas; por isto, a linguagem própria é somente entender dentro de si, e sentir no íntimo, calando e gozando 180.  Santa Teresa, Moradas séptimas 1,6-7.

129

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

quem o recebe (...) E assim, verdadeiramente, só se pode dizer que “a vida eterna sabe”. Embora nesta vida não se goze perfeitamente deste toque como na glória, contudo, por ser toque de Deus, a vida eterna sabe”.181 Santa Elisabete da Trindade. – “Eis aqui como entendo ser a “casa de Deus”: vivendo no seio da tranquila Trindade, em meu abismo interior, nesta fortaleza inexpugnável do santo recolhimento, de que fala São João da Cruz. Davi cantava “Minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor”.182 Me parece que esta deve ser a atitude de toda alma que se recolhe em seus átrios interiores para contemplar ali a seu Deus e se colocar em contato estreitíssimo com Ele. Sente-se desfalecer em um divino desvanecimento ante a presença deste Amor onipotente, desta majestade infinita que mora nela. Não é a vida quem a abandona, é ela quem despreza esta vida natural e quem se retira, porque sente que não é digna de sua essência tão rica, e que vai morrer e desaparecer em seu Deus”.183

181.  São João da Cruz, Llama de amor viva canc. 2 n.21. 182.  Sl 83, 3. 183.  Sor Isabel de la Trinidad, Ultimo retiro de “Laudem gloriae”.

Dia 16. Pode-se consultar em Philipon, La doctrina espiritual de sor Isabel de la Trinidad, ao final. 130

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Esta é, em toda sua sublime grandeza, uma das finalidades mais profundas da inabitação da Santíssima Trindade em nossas almas: nos dar uma experiência inefável do grande mistério trinitário, como uma antecipação da bem-aventurança eterna. As pessoas divinas se entregam à alma para que gozemos delas, segundo a assombrosa terminologia do Doutor Angélico, plenamente comprovada na prática pelos místicos experimentais. E mesmo que esta inefável experiência constitua, sem dúvida alguma, o grau mais elevado e sublime da união mística com Deus, não representa, no entanto, um favor de tipo “extraordinário” como nas graças “grátis dadas”; entra, pelo contrário, no desenvolvimento normal da graça santificante, e todos os cristão estão chamados a estas alturas, e a elas chegariam, efetivamente, se fossem perfeitamente fiéis à graça e não paralisassem com suas contínuas resistências a ação santificadora e progressiva do Espírito Santo. Escutemos a Santa Teresa proclamando abertamente esta doutrina: Vede que o Senhor convida a todos. Ele é a própria verdade, não há porque duvidar. Se esse convite não fosse geral, Ele não nos chamaria a todos e, mesmo que chamasse, não diria: Eu vos darei de beber.184 Ele poderia dizer: “Vinde todos porque, afinal, não podereis nada; e darei de beber a quem eu quiser”. Mas como Ele disse, sem impor essa condição, “a todos”, tenho 184.  Jo 7, 37.

131

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

por certo que não faltará dessa água viva a todos quantos não ficarem pelo caminho”.185

Vale a pena, pois, fazer de nossa parte tudo quanto pudermos para nos dispor, com a graça de Deus, a gozar, ainda neste mundo, desta inefável experiência trinitária. Os meios mais importantes para nos dispormos a isso são: fé viva, caridade ardente, recolhimento profundo e atos fervorosos de adoração das divinas pessoas habitantes de nossas almas. 4. inabitação e sacramentos. – Como acabamos de ver, toda alma em estado de graça é templo da Santíssima Trindade e sacrário do Espírito Santo, segundo consta expressamente na divina revelação.186 Mas esta inabitação das divinas pessoas se aperfeiçoa e torna mais profundas as raízes ao aumentar na alma o grau de graça santificante, seja qual for a causa que tenha determinado esse aumento.187 185.  Santa Teresa, Camino de perfección 19,15; cf. São João da

Cruz, Llama canc.2 v.27.

186.  Jo 14, 23; 1Cor 3, 16. 187.  Tais causas são três: os sacramentos, que aumentam a graça por

sua própria virtude intrínseca (ex opere operato); a prática das virtudes infusas, que constituem o mérito sobrenatural (ex opere operantis); e a oração, que pode nos aumentar a graça por sua força impetratória (como esmola gratuita), independentemente do mérito que leva consigo. Já explicamos amplamente tudo isso em nossa Teologia de la perfección cristiana n.284ss, para onde remetemos o leitor que deseje maior informação. 132

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Entre as causas determinantes desse aumento figuram, em primeiro lugar, os sacramentos, que foram instituídos por Jesus Cristo precisamente para nos dar ou aumentar a graça santificante.188 O batismo e a penitência – para aquele que recebe esta última nas devidas condições depois de ter perdido a graça por causa do pecado mortal – produzem na alma a divina inabitação ao lhe infundir a graça santificante, da qual são inseparáveis. Os demais sacramentos – e também a própria penitência para aquele que a recebe estando já em graça de Deus – produzem um aumento da graça e uma maior radicação ou inserção das divinas pessoas na alma. Com relação ao aumento da graça e ao aperfeiçoamento da inabitação trinitária na alma, interessa destacar, principalmente, a ação da Eucaristia e do sacramento da confirmação. Vejamos brevemente: a) A Eucaristia O maior e mais excelente dos sete sacramentos instituídos por Cristo é a santíssima Eucaristia. Nela não somente recebemos a graça, mas também o próprio Autor da mesma graça, que é o próprio Cristo. Recebemos a água juntamente com a fonte ou manancial de onde ela brota. Mas o que muitos cristãos ignoram é que, juntamente com o Verbo encarnado, recebemos na 188.  Cf. D 844.849.850.851.

133

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Eucaristia ao Pai e ao Espírito Santo, porque as três divinas pessoas são absolutamente inseparáveis entre si. Onde está uma delas, estão necessariamente as outras duas, em virtude desse inefável mistério que recebe em teologia o nome de divina circum-incessão. Este mistério consta expressamente na Sagrada Escritura e foi definido pelo magistério oficial da Igreja. Eis aqui as provas: a) a sagrada escritura. – O próprio Cristo disse: “Eu e o Pai somos um... o Pai está em mim e eu no Pai.189 “Quem me vê, vê o Pai... o Pai, que permanece em mim, realiza suas obras. Crede-me: eu estou no Pai e o Pai em mim.190 O mesmo deve ser dito, naturalmente, do Espírito Santo. b) o magistério da igreja. – Eis aqui, entre muitos outros textos, as palavras explícitas do concílio de Florença: “Por causa desta unidade, o Pai está todo no Filho, todo no Espírito Santo; o Filho está todo no Pai, todo no Espírito Santo; o Espírito Santo está todo no Pai, todo no Filho. Nenhum precede ao outro na eternidade, ou lhe excede em grandeza, ou lhe sobrepuja em potestade” (D 704). 189.  Jo 10, 30 e 38. 190.  Jo 14, 9-11.

134

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Este mistério, como já dissemos, recebe o nome em teologia de circum-incessão, que equivale aproximadamente à mútua e recíproca inserção das divinas pessoas entre si. Em virtude dela, onde esteja uma pessoa divina estão também necessariamente as outras duas, já que são absolutamente inseparáveis entre si e da mesma essência divina, que é comum às três pessoas. Logo, na Eucaristia, juntamente com a humanidade e a divindade de Cristo (o Filho de Deus), estão também o Pai e o Espírito Santo, embora por distintas razões: o Verbo divino se faz presente na Eucaristia em virtude de sua união hipostática com o corpo e o sangue de Cristo, enquanto que o Pai e o Espírito Santo estão presentes em virtude da circum-incessão intratrinitária. De onde conclui-se que, em cada comunhão eucarística bem recebida, se verifica na alma do justo uma mais penetrante inabitação ou inserção das divinas pessoas.191 A Eucarística constitui um verdadeiro tesouro para a alma que a recebe dignamente. b) A confirmação O sacramento da confirmação pode ser definido nos seguintes termos: É um sacramento instituído por nosso Senhor Jesus Cristo, no qual, pela imposição das mãos e a unção com o crisma sob 191.  Cf. I q.43 a.6 c ad 4.

135

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

a fórmula prescrita, se dá ao batizado a plenitude do Espírito Santo, juntamente com a graça e o caráter sacramental, para robustecer-lhe na fé e confessá-la valentemente, como bom soldado de Cristo. Nesta ampla definição estão reunidos todos os elementos essenciais que nos dão a conhecer a natureza íntima deste grande sacramento, chamado, com razão, o da plenitude do Espírito Santo. A fórmula sacramental que pronuncia o ministro é a seguinte: “Eu te assinalo com a cruz e te confirmo com o crisma da saúde em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. O Catecismo Romano192 expõe os efeitos deste sacramento na seguinte forma: O dom próprio da confirmação – além dos efeitos comuns com os demais sacramentos – é aperfeiçoar a graça batismal. Aqueles que se fizeram cristãos pelo batismo são ainda como crianças recém-nascidas,193 ternos e delicados. Com o sacramento da confirmação se robustecem contra todos os possíveis assaltos da carne, do demônio e do mundo, e sua alma se fortalece na fé para professar e confessar valentemente o nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Daí o nome de confirmação. 192.  Catecismo Romano p. 2a c.2 n.20. 193.  cf. 1Pd 2, 2.

136

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

O sacramento da confirmação equivale a um verdadeiro Pentecostes para cada um dos batizados em Cristo. A semelhança dos apóstolos, cuja debilidade e covardia nas horas da paixão de Cristo se converteu em energia e fortaleza sobre-humanas quando descendeu sobre eles o fogo de Pentecostes, o cristão que recebe o sacramento da confirmação sente robustecidas suas forças espirituais, sobretudo em relação à proclamação e defesa pública da fé que recebeu no batismo. O Sacramento da confirmação – escreve a propósito disto o P. Philipon194 – perpetua na Igreja todos os benefícios de Pentecostes. Os efeitos do batismo são maravilhosamente sobrepassados. O Espírito Santo, já em posse da alma cristã, a preenche esta vez com suas graças superabundantes, com a plenitude de seus Dons. Com razão se atribui a Ele o triunfo moral dos virgens e dos mártires. É o Espírito de Deus que forma a alma dos santos. Desta presença pessoal e misteriosa do Espírito Santo procedem na alma esses avisos secretos, esses incessantes convites, essas contínuas moções do Espírito, sem as quais ninguém pode se alistar, nem permanecer nos caminhos da salvação, muito menos avançar no caminho da perfeição. Pelo contrário, pelo jogo e funcionamento dos dons do Espírito Santo, o justo, que vive já a vida da graça desde seu batismo, se 194.  Los sacramentos en la vida cristiana c.2.

137

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

eleva até a perfeição. Graças a eles, a alma, dócil às menores inspirações divinas, avança com rapidez na vida de fé, de esperança, de caridade e na prática de todas as virtudes. Sua vida espiritual encontra sua plena expansão e desenvolvimento. Esses dons do Espírito Santo operam nela com tanta eficácia, que a conduzem até aos mais altos cumes da santidade.

O sacramento da confirmação imprime um caráter ou marca indelével na alma de quem o recebe validamente (ainda que o receba em pecado mortal, já que o caráter é separável da graça), em virtude do qual o cristão se faz soldado de Cristo e recebe o poder de confessar oficialmente – ex officio – a fé de Cristo e de receber as coisas sagradas de uma maneira mais perfeita, juntamente com o direito às graças atuais que durante toda sua vida lhe sejam necessárias para essa confissão e defesa da fé. É, pois, de um preço e valor inestimáveis. Mas precisamente por sua excelsa grandeza, o sacramento da confirmação leva consigo grandes exigências e responsabilidades. Eis aqui algumas das mais importantes: a) Obriga a adquirir uma boa cultura religiosa, como condição indispensável para a defesa da fé contra todos seus inimigos. b) Obriga a desprezar o chamado respeito humano, incompatível com o ardor e a valentia com 138

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

que o soldado de Cristo há de proclamar publicamente sua fé. c) Nos impulsiona ao apostolado em todas suas formas, principalmente em nosso próprio ambiente e circunstâncias especiais de nossa vida. d) Nos obriga a uma contínua atenção às inspirações internas do Espírito Santo e a uma refinada fidelidade para com a graça. A quem muito foi dado, muito será exigido.

139

 Capítulo VII 

Ação do Espírito Santo na alma

de que maneira o Espírito Santo, em união com o Pai e o Filho, é o doce hóspede de nossas almas – dulcis hospes animae –,195 onde mora como em um verdadeiro templo vivente. Acabamos de ver no capítulo anterior

Mas é algo evidente e claro que o Espírito Santo não mora em nossa alma de uma maneira passiva e inoperante, senão para desdobrar nela uma atividade vivíssima, orientada a aperfeiçoá-la de grau em grau e conduzi-la, se ela não colocar obstáculos a sua divina ação, até os cumes mais elevados da união com Deus, em que consiste a santidade. Como já indicamos no capítulo anterior, juntamente com a graça santificante, as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo nos são infundidos na alma e que ambos constituem o elemento dinâmico e operativo de nosso organismo sobre195.  Seqüência da missa de Pentecostes.

141

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

natural. São hábitos sobrenaturais que o Espírito Santo infunde e nossas almas juntamente com a graça santificante para nos capacitar a produzir atos sobrenaturais próprios de nossa condição de filhos de Deus. Sem eles não poderíamos realizar esses atos sobrenaturais,196 mesmo estando em possessão da graça santificante, já que esta – como já vimos – é um hábito sobrenatural entitativo, não operativo, que reside na essência mesma de nossa alma para a divinizar, mas sem que esteja destinada à ação. Para realizar atos sobrenaturais de maneira conatural a nossa filiação divina necessitamos dos correspondentes hábitos sobrenaturais operativos, que informem as potências de nossa alma, elevando-as ao plano sobrenatural e capacitando-as para produzir aqueles atos sobrenaturais. Estes hábitos sobrenaturais operativos são as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo. Ambos são movidos pelo Espírito Santo – embora de modo muito distinto, como veremos em seguida – na empresa sublime da santificação dos filhos de Deus. I. As virtudes infusas Exporemos brevemente sua natureza, existência, divisão fundamental e de que modo atuam em cada caso sob a moção do Espírito Santo. 196.  A não ser que haja o impulso violento de uma graça atual, como

explicaremos em seguida.

142

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

1. natureza. – As virtudes infusas são hábitos operativos infundidos por Deus nas potências da alma para dispô-las a operar sobrenaturalmente segundo o ditame da razão iluminada pela fé. Sua existência e necessidade se desprendem da própria natureza da graça santificante. Semente de Deus, a graça é um gérmen divino que pede, por si mesma, crescimento e desenvolvimento até alcançar sua perfeição. Mas como a graça não é por si mesma operativa – embora o seja radicalmente, como princípio remoto de todas nossas operações sobrenaturais -, segue-se que, naturalmente, exige e postula alguns princípios imediatos de operação que fluam de sua própria essência e lhe sejam inseparáveis. Do contrário, o homem estaria elevado à ordem sobrenatural somente no fundo de sua alma, mas não em suas potências ou faculdades operativas. E embora, absolutamente, Deus poderia elevar nossas operações à ordem sobrenatural mediante graças atuais contínuas, se produziria, não obstante, uma verdadeira violência na psicologia humana pela tremenda desproporção entre a pura potência natural e o ato sobrenatural a realizar. Ora, esta violência não pode se conciliar com a suavidade da Providência divina, que move a todos os seres em harmonia e de acordo com sua própria

143

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

natureza.197 A infusão desses princípios operativos sobrenaturais – virtudes infusas – evita este sério inconveniente, fazendo que o homem possa tender ao fim sobrenatural de uma maneira perfeitamente conatural, com suavidade e sem violências, sob a moção divina de uma graça atual inteiramente proporcionada a esses hábitos infusos.

2. existência. – A existência das virtudes infusas – sobretudo das teologais, que são as mais importantes – consta expressamente na Sagrada Escritura198 e foi proclamada reiteradamente pelo magistério oficial da Igreja.199 3. divisão. – As virtudes infusas se dividem em dois grupos fundamentais. O primeiro dispõe as potências da alma em relação ao fim sobrenatural: são as três virtudes teologais (fé, esperança e caridade). O segundo dispõe as mesmas potências em relação aos meios para alcançar aquele fim: são as quatro cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança), com todo o cortejo de suas virtudes anexas ou derivadas. No total são mais de cinquenta reunidas por São Tomás em sua maravilhosa Suma Teológica. 200 Com elas todas as 197.  Cf. I-II q.110 a.2. 198.  Cf. 1Cor 13,13; 2Pd 1,5-7; Rm 8,5-6; 8,15; 1Cor 2,14; Tg 1,5, etc. 199.  Cf. D 410.483.800.821, etc. 200.  Já expusemos amplamente tudo isso em nossa Teologia de la

144

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

potências e energias do homem são elevadas à ordem da graça. Em cada potência e com relação a cada objeto especificamente distinto, há um hábito sobrenatural que dispõe o homem a operar em conformidade ao princípio da graça e desenvolver com essa operação a vida sobrenatural. 4. como atuam. – Este é um ponto importante para determinar com toda a precisão e exatidão a ação do Espírito Santo em nossa própria santificação. Para que uma virtude infusa possa passar ao ato (ou seja, para que possa realizar a ação virtuosa correspondente), é absolutamente necessária a previa moção de uma graça atual procedente de Deus. Com efeito: é absolutamente impossível que o esforço puramente natural da alma possa pôr em exercício os hábitos infusos, uma vez que a ordem natural não pode determinar as operações do sobrenatural: há uma abismo insondável entre os dois, pertencem a dois planos inteiramente distintos, dos quais o sobrenatural rebaixa e transcende infinitamente todo o plano natural. Nem tampouco é possível que esses hábitos infusos possam atuar por si mesmos, porque um hábito qualquer nunca pode atuar senão perfección cristiana n.98-116 (5a ed. ), para onde remetemos o leitor que deseja maiores informações. 145

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

em virtude e por ação do agente que o causou; e, tratando-se de hábitos infusos, só Deus, que os produziu, pode pô-los em movimento. Se impõe, pois, a ação de Deus com a mesma necessidade absoluta com que se exige em metafísica a influência de um ser em ato para que uma potência qualquer possa produzir o seu. Falando em termos absolutos, Deus poderia desenvolver e aperfeiçoar a graça santificante, infundida na essência mesma de nossa alma, à base unicamente de graças atuais, sem infundir nas potências nenhum hábito sobrenatural operativo.201 Porém em troca, não poderia desenvolvê-la sem as graças atuais mesmo dotando-nos de toda classe de hábitos operativos infusos, já que esses hábitos não poderiam jamais passar ao ato sem a prévia moção divina, que na ordem sobrenatural não é outra coisa senão a graça atual.

Todo ato de uma virtude infusa qualquer e toda atuação dos dons do Espírito Santo supõem, por conseguinte, uma prévia graça atual que colocou em movimento essa virtude ou esse dom.202 Precisamente a graça atual não é outra coisa 201.  Embora tenhamos dito que isto seria antinatural e violento. Fa-

lamos agora unicamente da potência absoluta de Deus, não do que de fato realizou em nossas almas.

202.  Embora, desde logo, nem toda graça atual produz necessária

ou infalivelmente um ato de virtude. Pode se tratar de uma graça suficiente à qual o homem tenha querido resistir (p.ex., o pecador que sente em seu interior uma inspiração divina, um remorso, etc. e os ignora completamente). 146

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

senão o influxo divino que moveu esse hábito infuso à operação. De que maneira move o Espírito Santo o hábito de uma virtude infusa? Com que classe de moção? É a mesma moção com a qual move o hábito dos dons, ou se trata de uma moção completamente distinta? De momento vamos adiantar ao leitor que a moção do Espírito Santo com relação às virtudes infusas é completamente distinta da que move o hábito dos dons do próprio Espírito Santo. Às virtudes infusas as move com o impulso de uma graça atual ao modo humano (embora de ordem estritamente sobrenatural, como é óbvio, pois se trata de mover um hábito sobrenatural também), enquanto que a seus próprios dons os move o Espírito Santo com uma graça atual ao modo divino ou sobre-humano. O resultado é, naturalmente, que os atos procedentes dos dons do Espírito Santo são incomparavelmente mais perfeitos do que os procedentes das virtudes infusas. Aos explicar a natureza da divina moção donal, precisaremos com mais detalhes esta diferença fundamental com a moção das virtudes infusas, para deixar explícita a importância e necessidade dos dons do Espírito Santo em relação ao pleno desenvolvimento da vida cristã em sua ascensão à santidade.

147

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

II. Os dons do Espírito Santo Dada a grande importância dos dons do Espírito Santo em uma obra toda dedicada à terceira pessoa da Santíssima Trindade, vamos estudá-los com a máxima amplitude que nos permite o escopo de nossa obra.203 Neste capítulo nos limitaremos ao estudo dos dons em geral, reservando para os capítulos seguintes o estudo de cada um deles em particular. 1.

os dons de deus

O primeiro grande dom de Deus é o próprio Espírito Santo, que é o amor mesmo com que Deus se ama e nos ama. D’Ele disse a liturgia da Igreja que é o dom de Deus Altíssimo: Altissimi donum Dei. 204 O Espírito Santo é o primeiro dom de Deus, não só enquanto que é o Amor infinito no seio da Trindade Beatíssima, mas também enquanto está em nós por missão ou envio. Deste primeiro grande dom procedem todos os demais dons de Deus, já que, em última análise, tudo quanto Deus dá às criaturas, tanto na ordem sobrenatural como na própria ordem natural, não são senão efeitos totalmente gratuitos de seu libérrimo e infinito amor. 203.  O leitor que deseje mais informações, pode consultar, entre ou-

tras, a magnífica obra do P. Ignacio G. Menéndez-Reigada Los dones del Espíritu Santo y la perfección cristiana, publicada pelo Conselho Superior de Investigações Científicas (Madrid 1948).

204.  Hino Veni, Creator da liturgia de Pentecostes.

148

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Em sentido amplo, por conseguinte, tudo quanto recebemos de Deus são “dons do Espírito Santo”. Porém em sentido próprio e estrito, recebem esse nome certos hábitos sobrenaturais infundidos por Deus nas almas juntamente com a graça santificante e as virtudes infusas, para sua plena santificação. É neste sentido estrito que os tomamos aqui. 2. existência A existência dos dons do Espírito Santo tem seu fundamento remoto na própria Sagrada Escritura. É clássico o texto de Isaías (11,1-3): Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes. Sobre ele repousará o Espírito do Senhor, Espírito de sabedoria e de entendimento, Espírito de prudência e de coragem, Espírito de ciência e de temor ao Senhor. (Sua alegria se encontrará no temor ao Senhor.) Ele não julgará pelas aparências, e não decidirá pelo que ouvir dizer.

Este texto é claramente messiânico e propriamente fala apenas do Messias.205 Mas, não obstan205.  Cf. Bíblia comentada vol. 3, Livros proféticos (BAC, Madrid

1961) p. 139-43.

149

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

te, os Santos Padres e a própria Igreja o estendem também aos fiéis de Cristo em virtude do princípio universal da economia da graça que enuncia São Paulo, quando disse: “Os que ele distinguiu de antemão, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que este seja o primogênito entre uma multidão de irmãos”.206. De onde se infere que tudo quanto há de perfeição em Cristo, nossa Cabeça, se é comunicável, se encontra também em seus membros unidos a Ele pela graça. E é evidente que os dons do Espírito Santo pertencem às perfeições sobrenaturais comunicáveis, tendo em conta, ademais, a necessidade que temos deles, como veremos em seguida. Portanto, como a graça nas coisas necessárias é tão pródiga, pelo menos, como a natureza mesma, há que se concluir retamente que os sete espíritos que o profeta viu descansar sobre Cristo são também patrimônio de todos quantos permaneçam unidos a Ele pela caridade. Os Santos Padres, tanto gregos quanto latinos, falam com frequência dos dons do Espírito Santo, apoiando-se, em geral, no texto de Isaías e o aplicam a Cristo e a cada um dos cristãos em estado de graça. Entre os Padres gregos se destacam São Justino, Origines, São Cirilo de Alexandria, São Gregório Nazianzeno e Dídimo o Cego, de Alexandria. Entre os Latinos leva a primazia Santo Agostinho, seguido por São Gregório Magno; mas também se encontram coisas muito boas sobre os 206.  Rm 8, 29.

150

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

dons em São Vitorino, Santo Hilário, Santo Ambrósio e São Jerônimo. A Igreja falou expressamente deles no sínodo romano celebrado no ano 382 sob o papa São Dâmaso (cf. D 83). Alude repetidas vezes a eles na liturgia de Pentecostes (hino Veni, Creator, na seqüência Veni, Sancte Spiritus da missa, etc.) e na solene administração do sacramento da confirmação. O imortal pontífice Leão XIII expôs magnificamente a doutrina dos dons em sua encíclica Divinum illud múnus, dedicada integralmente ao Espírito Santo. O testemunho de toda a tradição, apoiado com sólido fundamento na Sagrada Escritura, leva a uma certeza absoluta sobre a existência dos dons do Espírito Santo em todos os fiéis em graça. E não faltam teólogos de grande autoridade que consideram esta existência como uma verdade de fé, em virtude do magistério ordinário e universal da Igreja.207 3. número dos dons Esta é uma questão de importância secundária. No texto massorético de Isaías que citamos mais acima, se enumeram unicamente seis dons, repetindo ao final o dom de temor. Mas na versão bíblica dos Setenta, assim como na Vulgata 207.  Entre eles João de São Tomás, o melhor comentarista do Doutor

Angélico na doutrina dos dons (cf. Cursus Theologicus t.6 d 18 a 2 n.4 p.583 (ed. Vivès, 1885). Entre os modernos, o P. Aldama, S. I., Sacrae Theologiae Summa, BAC vol.3 p. 726 (2a ed). 1953). 151

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Latina, se enumeram sete, acrescentando o dom de piedade aos seis do texto massorético. A divergência aparente entre ambas versões procede da dupla tradução que admite a palavra hebréia yira’t (“temor”), que pode ser traduzida também por piedade. Em todo caso, como é sabido, é muito frequente na Bíblia empregar o número sete para significar uma plenitude indeterminada, sem que tenha que se reduzir precisamente ao número concreto de sete. Santo Ambrosio e Santo Agostinho insistem que o número sete tem aqui um valor de plenitude; ou seja, todo o acúmulo de dons desejáveis habitavam no Messias.208 De todas as formas, seria temerário e sem valor objetivo algum lançar-se a improvisar outros nomes distintos dos sete que nos transmitiu unanimemente a tradição. Só com base neles se pode constituir seriamente a teologia dos dons, e assim o fizeram efetivamente os Santos Padres e os teólogos de todas as escolas. Também nós nos ateremos a eles. 4. natureza Mais que o número dos dons, interessa-nos conhecer sua natureza íntima. Ela se nos dará a conhecer pela seguinte definição teológica: 208.  Santo Ambrosio, De Spiritu Sancto 1, 159: PL 16,771; Santo

Agostinho, De civ. Dei 11,31: PL 41,344. 152

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Os dons do Espírito Santo são hábitos sobrenaturais infundidos por Deus nas potências da alma para receber e auxiliar com facilidade as moções do próprio Espírito Santo ao modo divino e sobre-humano.

Vamos explicar a definição palavra por palavra. a) são hábitos sobrenaturais. – O famoso texto de Isaias nos diz que os dons repousarão sobre o Messias, o que significa que permanecerão n’Ele de uma maneira constante, habitual. Logo, se conferem analogamente aos membros de Cristo também de modo permanente ou habitual. A própria fé nos mostra a presença permanente do Espírito Santo em toda alma em estado de graça,209 e o Espírito Santo não está nunca sem seus dons. b) infundidos por deus. – É algo claro e evidente se temos em conta que se trata de realidades sobrenaturais, que a alma não poderia adquirir jamais por suas próprias forças, já que transcendem infinitamente toda a ordem puramente natural. c) nas potências da alma. – São o sujeito onde residem, assim como as virtudes infusas, cujo ato sobrenatural aperfeiçoa os 209.  1Cor 6,19.

153

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

dons, dando-lhes a modalidade divina ou sobre-humana própria deles, como veremos em seguida. d) para receber e auxiliar com facilidade. – isso é próprio e característico dos hábitos, que aperfeiçoam as potências precisamente para receber e auxiliar com facilidade a moção do agente que os move. e) as moções do próprio espírito santo. – Que é quem os move e atua direta e imediatamente como causa motora e principal, diferentemente das virtudes infusas, que são movidas ou atuadas pelo mesmo homem como causa motora e principal, embora sempre sob a prévia moção de uma graça atual. f) ao modo divino ou sobre-humano. – Esta é a principal diferença entre a moção ordinária da graça atual, movendo as virtudes infusas ao modo humano, e a moção divina, que põe em ato os dons do Espírito Santo ao modo divino ou sobre-humano. Vamos explicar este ponto interessantíssimo. 5. a moção divina dos dons A moção divina dos dons é muito distinta da moção divina que põe em marcha as virtudes infusas. Na moção divina das virtudes, Deus atua como causa principal primeira, mas ao homem 154

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

lhe corresponde a plena responsabilidade da ação como causa principal segunda, inteiramente subordinada à primeira. Por isso os atos das virtudes são totalmente nossos, pois partem de nós mesmos, de nossa razão e de nosso livre arbítrio, embora sempre, desde logo, sob a moção de Deus como causa primeira, sem a qual nenhum ser em potência pode passar ao ato tanto na ordem natural quanto na sobrenatural. Porém no caso dos dons, a moção divina que os coloca em marcha é muito distinta: Deus atua, não como causa principal primeira – como ocorre com as virtudes –, mas como causa principal única, e o homem deixa de ser causa principal segunda, passando à categoria de simples causa instrumental do efeito que o Espírito Santo produzirá na alma como causa principal única. Por isso os atos procedentes dos dons são materialmente humanos, embora formalmente divinos, de maneira semelhante à melodia que um artista arranca de sua harpa, que é materialmente da harpa, mas formalmente do artista que a maneja. E isso não diminui em nada o mérito da alma que produz instrumentalmente esse ato divino auxiliando docilmente a divina moção, já que não atua como um instrumento morto ou inerte – como a plaina do carpinteiro ou a pluma do escritor –, senão como um instrumento vivo e consciente que se adere com toda a força de seu livre arbítrio à moção divina, deixando-se conduzir por ela e 155

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

auxiliando-a plenamente.210 A passividade da alma sob a moção divina dos dons é somente relativa, ou seja, somente com respeito à iniciativa do ato, que corresponde única e exclusivamente ao Espírito Santo; porém, uma vez recebida a divina moção, a alma reage ativamente e se associa intensamente a ela com toda força vital de que é capaz e com toda a plenitude de seu livre arbítrio. Dessa maneira se conjugam e completam mutuamente a iniciativa divina, a passividade relativa da alma, a reação vital da mesma, o exercício do livre arbítrio e o mérito sobrenatural da ação. Assim se explica porque, no exercício das virtudes infusas, a alma se encontra em pleno estado ativo. Seus atos se produzem ao modo humano e têm plena consciência de que é ela quem opera quando e como lhe apraz (p. ex., realizando um ato de humildade, de oração, de obediência, etc., quando quer e como quer). É ela, simplesmente, a causa motora e principal de seus próprios atos, embora sempre, desde logo, sob a moção divina da graça atual ordinária, que nunca falta e sempre 210.  O diz expressamente São Tomás ao contestar a uma objeção so-

bre a necessidade dos dons como hábitos. Eis aqui a objeção e sua resposta: – Objeção: “Os dons do Espírito Santo aperfeiçoam o homem, levando-o

pelo Espírito de Deus, como já se disse. Ora, levado por esse Espírito, o homem desempenha o papel de instrumento em relação a ele. Ora, não é próprio do instrumento ser aperfeiçoado por um hábito, senão o agente principal. Logo, os dons do Espírito Santo não são hábitos.” – Resposta: “A objeção procede quanto ao instrumento, que não age, mas é somente passivo. Ora, o homem não é tal instrumento, pois, dotado de livre arbítrio, também assim age quando levado pelo Espírito Santo. Logo, precisa de um hábito.” (I-II q.68 a.3 ad.2). São Tomás repete esta mesma doutrina em muitos outros lugares. Ver por exemplo, com respeito à humanidade de Cristo, instrumento do Verbo divino, que se movia, no entanto, por vontade própria, auxiliando a ação do Verbo (III p.18 a.1 ad 2).

156

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

está à nossa disposição quando queremos operar virtuosamente, como o ar que respiramos. O exercício dos dons – como já dissemos – é completamente distinto. O Espírito Santo é a única causa motora e principal que move o hábito dos dons, passando a alma para a categoria de simples instrumento, embora consciente e livre. A alma reage vitalmente ao receber a moção dos dons – e desta maneira se salva a liberdade e o mérito sob a ação donal –, mas somente para auxiliar a moção divina, cuja iniciativa e plena responsabilidade corresponde inteiramente ao próprio Espírito Santo, que atua como única causa motora e principal. Por isso, tanto mais perfeita e limpa resultará a ação donal quanto a alma acerte em auxiliar com maior docilidade essa moção divina, aderindo-se fortemente a ela sem torcê-la nem desviá-la com movimentos de iniciativa humana, que não fariam mais do que entorpecer a ação santificadora do Espírito Santo. Segue-se daqui que a alma, quando sinta a ação do Espírito Santo, deve reprimir sua própria iniciativa humana, reduzir sua atividade a auxiliar e secundar docilmente à moção divina, permanecendo passiva com relação a ela. Esta passividade – que fique claro – é só com relação ao agente divino; porém, na verdade, se transforma em uma atividade vivíssima por parte da alma, embora única e exclusivamente para secundar a ação divina, sem alterá -la, nem modificá-la com iniciativas humanas. Neste sentido pode e deve se dizer que a alma opera também instrumentalmente o que nela se opera, 157

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

produz o que nela se produz, executa o que nela o Espírito Santo executa. Se trata, simplesmente, de uma atividade recebida,211 de uma absorção da atividade natural por uma atividade sobrenatural, de uma sublimação das potências a uma ordem divina de operação, que nada absolutamente tem a ver com a estéril inação do quietismo. 6. necessidade dos dons do espírito santo Os dons do Espírito Santo são absolutamente necessários para a perfeição das virtudes infusas – ou, o que é o mesmo, para chegar à plena perfeição cristã -, e inclusive para a própria salvação eterna. Vejamos separadamente: 1) os dons do espírito santo são necessários para a perfeição das virtudes infusas. – A razão fundamental é pela grande desproporção entre as virtudes infusas mesmas e o sujeito onde residem: a alma humana. Com efeito: como é sabido, as virtudes infusas são hábitos sobrenaturais, divinos, e o sujeito no qual se recebem é a alma humana, ou, mais exatamente, suas potências ou faculdades. Ora, segundo o conhecido aforismo das escolas teológicas “o que se recebe, se recebe ao modo do recipiente”. Como as virtudes infusas, ao serem recebidas nas potências da alma, se rebaixam e se degradam, elas adquirem o nosso modo humano 211.  “No que concerne aos dons do Espírito Santo, a mente humana não se comporta como motor, mas antes, como movida” (II-II q.52 a.2 ad 1).

158

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

por sua inevitável acomodação ao funcionamento psicológico natural do homem – e estão como que afogadas nessa atmosfera humana, que é quase irrespirável para elas. E esta é a razão pela qual as virtudes infusas, apesar de serem muito mais perfeitas que suas correspondentes virtudes adquiridas (que se adquirem pela repetição de atos naturalmente virtuosos), não nos fazem operar com tanta facilidade como estas, principalmente pela imperfeição com que possuímos os hábitos infusos, que são sobrenaturais. Vê-se isso muito claramente em um pecador que se arrepende e confessa depois de uma vida desordenada: volta facilmente a seus pecados apesar de ter recebido com a graça todas as virtudes infusas. Coisa que não ocorre com aquele que, a força de repetir atos virtuosos, chegou a adquirir alguma virtude natural ou adquirida. Ora, é claro e evidente que, se possuímos imperfeitamente na alma o hábito das virtudes infusas, os atos que provenham dele serão também imperfeitos, a não ser que um agente superior venha a aperfeiçoá-los. E esta é, precisamente, a finalidade dos dons do Espírito Santo. Movidos e regulados, não pela razão humana, como as virtudes, senão pelo próprio Espírito Santo, proporcionam às virtudes infusas – sobretudo às teologais – a atmosfera divina que necessitam para desenvolver toda sua virtualidade sobrenatural.212 212.  Cf. I-II q.68 a.2. Esta é a razão da perfeita inutilidade de uma

operação dos dons ao modo humano, supondo que fosse possível. Não resolveria absolutamente nada no que concerne à perfeição das virtudes. Continuaria a mesma imperfeição da modalidade humana. 159

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

De maneira que a imperfeição das virtudes infusas não está nelas mesmas – são perfeitíssimas em si mesmas –, senão no modo imperfeito com que nós as possuímos, por causa de sua própria imperfeição humana, que lhes imprime ferozmente o modo humano da simples razão natural iluminada pela fé. Daí a necessidade de que os dons do Espírito Santo venham em auxílio das virtudes infusas, dispondo as potências da alma para serem movidas por uma agente superior – o Espírito Santo mesmo –, que as fará atuar de um modo divino, ou seja, de um modo totalmente proporcionado ao objeto perfeitíssimo das virtudes infusas. Sob a ação dos dons, as virtudes infusas se encontram, por assim dizer, em seu próprio ambiente.213 De onde se conclui que, sem a atuação frequente e dominante dos dons do Espírito Santo movendo ao modo divino as virtudes infusas, jamais poderão alcançar estas sua plena expansão e desenvolvimento, por mais que multipliquem e intensifiquem seus atos ao modo humano. Sem o regime predominante dos dons do Espírito Santo é impossível chegar à perfeição cristã.214 2) os dons do espírito santo são necessários, em certo sentido, inclusive para a salvação. – Para eliminar toda a dúvida, basta ter em conta a corrupção da natureza humana como consequência 213.  Cf. I-II q.68 a.2. 214.  Ver o estudo teológico exaustivo sobre esta matéria do padre

Ignácio G. Menendez-Reigada, Necesidad de los dones del Espíritu Santo (Salamanca, 1940). 160

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

do pecado original com o qual todos viemos ao mundo. As virtudes não residem em uma natureza sã, mas em uma natureza mal inclinada para o pecado. E ainda que as virtudes infusas, enquanto depende delas, têm força suficiente para vencer todas as tentações que se oponham, não podem, de fato, sem a ajuda dos dons, vencer as tentações graves que podem sobrevir inesperadamente e de súbito em um momento dado. Nestas situações imprevistas, nas quais a queda no pecado ou a resistência é uma questão de instante, não pode o homem lançar mão do discurso lento e trabalhoso da razão, mas é preciso que se mova rapidamente, como por instinto sobrenatural, isto é, sob a moção dos dons do Espírito Santo, que nos proporcionam, precisamente, essa espécie de instinto do divino. Sem essa moção dos dons, a queda no pecado seria quase segura, dada a inclinação viciosa da natureza humana, ferida pela culpa original. Claro que estas situações tão difíceis e embaraçosas não são frequentes na vida do homem. Porém é suficiente que possam se produzir alguma vez para concluir que, ao menos nessas ocasiões, a atuação dos dons se faz necessária mesmo para a própria salvação eterna. 7. o modo deiforme dos dons do Espírito Santo Como já explicamos mais acima, a característica mais importante e fundamental dos dons do Espírito Santo é sua atuação ao modo divino ou 161

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

sobre-humano, ou seja, a modalidade divina que imprimem aos atos das virtudes infusas quando são aperfeiçoadas pelos dons do Espírito Santo. Dada a importância excepcional desta doutrina na teologia dos dons, oferecemos ao leitor na continuação umas palavras do padre Philipon explicando admiravelmente estas ideias:215 A propriedade mais fundamental dos dons do Espírito Santo é seu modo deiforme: seus atos emanam de nós, mas sob a inspiração divina. Deus é sua regra e sua medida, seu motor especial. Com efeito, os atos humanos podem ter uma tripla medida: 1. Uma medida humana, que imprime a toda nossa vida moral a regulação da razão. É o caso das virtudes naturais ou adquiridas. 2. Uma medida humano-divina na ordem da graça santificante, que vem a sobrelevar em sua essência toda nossa atividade virtuosa para fazê-la participar na vida do pensamento, de amor e de ação de Deus trino mediante as virtudes cristãs (infusas), mas deixando ainda ao homem seu modo de operar conatural (ou seja, o modo humano), segundo as deliberações de sua razão discursiva e as bem fundamentadas inclinações de sua vontade. É o regime comum das virtudes teologais e morais (infusas) quando 215.  P. Philipon, O. P., Los dones del Espírito Santo (Barcelona 1966)

p. 149-151.

162

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

o homem, divinizado pela graça de adoção, realiza atos voluntários que, em substância, pertencem à ordem sobrenatural, mas cuja maneira de se realizar segue sendo humana. 3. Há, finalmente, um regime superior de vida virtuosa, deiforme não só em sua substância, senão também em seu modo, no qual os atos têm a medida divina do Espírito de Deus, que é seu Motor e sua Regra especificadora. Este é o caso dos dons do Espírito Santo. Deus não somente é a causa eficiente desses atos. Ele toma a iniciativa dos mesmos, os inspira, os realiza a sua medida divina, participada em graus diversos pelo homem, convertido em filho de Deus pela graça e dirigido por seu Espírito. Este operar deiforme reveste então a maneira de pensar, amar, querer e operar do Espírito de Deus, na proporção possível ao homem, sem sair de suas condições de espírito encarnado... O homem a quem anima o sopro do Espírito está como que arrebatado e sustentado pelas asas velozes de uma águia todo-poderosa. Este operar deiforme reveste a maneira de pensar, de amar, de querer e de obrar própria do Espírito Santo de Deus. A vida espiritual do homem vem a converter-se como uma projeção nele dos costumes da Trindade, em cujo seio entra a imitação do Filho único do Pai, não sendo mais do que um com Ele, misticamente, na unidade de uma mesma pessoa, transformando-se o cristão em “outro Cristo”que caminha pela 163

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

terra, identificado com todos os sentimentos do Verbo encarnado, glorificador do Pai e Salvador dos homens. O cristão avança assim pela vida, iluminado em sua inteligência pela claridade do Verbo, com sua vida de amor ao ritmo do Espírito Santo, atuando em toda sua conduta interior e exterior segundo o modelo da atividade “ad extra” das três pessoas divinas na indivisível unidade de sua essência. O Espírito de Deus se faz não só inspirador e motor, mas também regra, forma e vida desta atividade ao modo deiforme e cristiforme própria do cristão, cada vez mais revestido pela fé, pelo amor e pela prática, de todas as virtudes da santidade de Cristo. Nos diversos tratados dos dons do Espírito Santo não se insiste o bastante em que, dentro da ordem concreta da economia da salvação, a atividade dos dons se realiza em nós já não somente de um modo deiforme, mas também de modo cristiforme, que nos configura com o Filho único do Pai. Crer é ver tudo com o olhar de Cristo. Esperamos tudo da onipotente e misericordiosa Trindade, mas em virtude dos méritos de Cristo. Nossa vida de amor a Deus, nosso Pai, e aos homens, nossos irmãos, se expande em nossa amizade com todos na pessoa de Cristo. E igualmente sucede com as demais virtudes e com os demais dons do Espírito Santo. Toda nossa vida espiritual se desenvolve em nós, segundo a expressão de São Paulo, “em Cristo Jesus”. 164

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

O exemplar trinitário é a regra suprema da atividade deiforme dos dons. Animado pelo Espírito Santo em cada um de seus atos, o cristão deveria passar pela terra à maneira de um Deus encarnado”.

III. Os frutos do Espírito Santo Quando a alma corresponde docilmente à moção interior do Espírito Santo, produz atos excelentes de virtude que podem ser comparados aos frutos sazonados de uma árvore. Nem todos os atos procedentes da graça podem ser considerados frutos, senão unicamente os mais sazonados e excelentes, que levam consigo grande suavidade e doçura. São simplesmente os atos procedentes dos dons do Espírito Santo.216 Se distinguem dos dons como o fruto se distingue do ramo e o efeito da causa. E se distinguem também das bem-aventuranças evangélicas – das quais falaremos em seguida – nos graus de perfeição; estas últimas são mais perfeitas e acabadas do que os frutos. Por isso todas as bem-aventuranças são frutos, mas nem todos os frutos são bem-aventuranças.217 Os frutos são completamente contrários às obras da carne, já que esta tende aos bens sensíveis, que 216.  Embora não procedam exclusivamente. Eles podem proceder

também das virtudes. Segundo São Tomás, são frutos do Espírito Santo todos aqueles atos virtuosos nos quais a alma encontra consolação espiritual (cf. I-II q.70 a.2).

217.  Cf. I-II q.70 a.2.

165

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

são inferiores ao homem, enquanto que o Espírito Santo nos move ao que está acima de nós.218 Quanto ao número dos frutos, a Vulgata enumera dozes: caridade, gozo espiritual, paz, paciência, benignidade, bondade, longanimidade, mansidão, fé, modéstia, continência e castidade.219 Porém no texto paulino original, só são citados nove: caridade, gozo, paz, longanimidade, afabilidade, bondade, fé, mansidão, temperança. É porque – como disse muito bem São Tomás, de acordo com Santo Agostinho – o Apóstolo não teve intenção de enumerá-los todos, mas se limitou a citar alguns por via de exemplo; porém, na realidade são ou podem ser muitos mais, já que se trata de atos, não de hábitos, como os dons. IV. As bem-aventuranças evangélicas Mais perfeita ainda que os frutos são as bem-aventuranças evangélicas. Elas assinalam o ponto culminante e o coroamento definitivo – aqui na terra – de toda a vida cristã. Tal como os frutos, as bem-aventuranças não são hábitos, mas atos.220 Como os frutos, também procedem das virtudes e dos dons, mas são tão perfeitos que deve-se atribuí-los aos dons, mais do que às virtudes.221 Por causa das esplêndidas 218.  Cf. I-II q.70 a.4. 219.  Gl 5,22-23. 220.  Cf. I-II q.69 a.1. 221.  Cf. I-II q.69 a. 1 ad 1; q.70 a.2.

166

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

recompensas que as acompanham, são já nesta vida como que uma antecipação da bem-aventurança eterna.222 No sermão da Montanha, nosso Senhor as reduz a oito: pobreza de espírito, mansidão, lágrimas, fome e sede de justiça, misericórdia, pureza de coração, paz e perseguição por causa da justiça.223 Mas também podemos dizer que se trata de um número simbólico que não reconhece limites. Vejamos agora, em breve visão esquemática, a correspondência entre as virtudes infusas, os dons do Espírito Santo e as bem-aventuranças evangélicas, tal como a estabelece Santo Tomás:224

Morais

(em relação aos meios)

Teologais (em relação ao fim)

{ {

Virtudes

Caridade. . . .

Dons

Bem-aventuranças

Sabedoria . . .

Os pacíficos.

Entendimento . .

Os limpos de coração.

Ciência . . . . . .

Os que choram.

Esperança . . .

Temor . . . . . . .

Pobres de espírito.

Prudência . . .

Conselho . . . . .

Os misericordiosos.

Justiça . . . . . .

Piedade . . . . . .

Os mansos.

Fortaleza . . . .

Fortaleza . . . . .

Fome e sede.

Temperança . .

Temor . . . . . . . .

Pobres de espírito.

Fé . . . . . . . .

{

222.  Cf. I-II q. 60 a.2. 223.  Mt 5, 3-10. 224.  Cf. I-II q.68-69; II-II q.8.9.19.45.52.121.139.141 ad 3.

167

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

No quadro anterior não figura a oitava bemaventurança (perseguição por causa da justiça), porque, sendo a mais perfeita de todas, contém e abarca todas as demais em meio aos maiores obstáculos e dificuldades.225 Passemos agora ao estudo detalhado de cada um dos dons do Espírito Santo em particular.

225.  Cf. I-II q.69 a.3 ad 5; a.4 ad 2.

168

 Capítulo VIII 

O dom de temor de Deus

0s dons do espírito santo são todos perfeitíssimos; porém, sem dúvida alguma, existe entre eles uma hierarquia que determina diferentes graus de excelência e perfeição. Esta escala hierárquica começa na base com o dom de temor e acaba no topo com o dom de sabedoria, que é o mais sublime e excelente de todos. Vamos, pois, começar com o estudo do dom de temor.226 1.

é possível que deus seja temido?

O Doutor Angélico, São Tomás de Aquino, começa a longa e magnífica questão que dedica em sua obra fundamental ao dom de temor de Deus, perguntando se Deus pode ser temido.227 226.  Cf. Nossa Teologia de la perfección cristiana (BAC, Madrid

1968) n.353-358.

227.  Cf. II-II q.19 a.1.

169

5

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

À primeira vista parece, efetivamente, que Deus não pode e nem deve ser temido. E isso em virtude de dois argumentos muito claros e simples: a) O objeto do temor é um mal futuro que pode nos sobrevir. Mas de Deus, que é a suma bondade, não pode nos sobrevir mal algum. Logo, não pode e nem deve ser temido. b) O temor se opõe à esperança, como ensinam os filósofos. Porém temos suma esperança em Deus. Logo, não podemos temer-lhe e ter esperança ao mesmo tempo.

Apesar destas dificuldades, é coisa clara e evidente que Deus pode e deve ser temido retamente. Não é possível temer a Deus enquanto bem supremo e futura bem-aventurança do homem; neste sentido é objeto unicamente de amor e desejo. Porém Deus é também infinitamente justo, que odeia e castiga o pecado do homem; e, neste sentido, pode e deve ser temido, pois pode infringir-nos um mal como castigo de nossas culpas. À primeira dificuldade se responde que a culpa do pecado não vem de Deus como seu autor, mas de nós mesmos, já que nos apartamos d’Ele. O castigo ou pena desse pecado vem de Deus, porque é uma pena justa e, por isso mesmo, um bem. Porém, que Deus nos inflija 170

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

justamente uma pena ocorre primordialmente por culpa de nossos pecados, segundo lemos no livro da Sabedoria: “Deus não fez a morte (...) mas os ímpios a chamam com suas obras e palavras”.228 A segunda dificuldade se desvanece dizendo que em Deus deve-se considerar a justiça, pela qual castiga aos pecadores, e a misericórdia, pela qual nos livra. Com a consideração de sua justiça se suscita em nós o temor, e com a consideração de sua misericórdia nos invade a esperança. Deste modo, sob diversos aspectos, Deus é objeto de esperança e de temor.

Deve-se ter em conta, no entanto, que há muitas classes de temor, e nem todas são perfeitas ou virtuosas. Vamos especificá-lo imediatamente. 2. diferentes classes de temor Podem ser distinguidas quatro classes de temor, muito distintas entre si: 1) Temor Mundano. – É aquele que não vacila em ofender a Deus para evitar um mal temporal (p.ex., apostatando da fé para evitar tormentos do tirano que o persegue). É evidente que este temor não somente não é virtuoso, como também constitui um grande pecado, 228.  Sb 1, 13-16.

171

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

posto que se prefere um bem criado (a própria vida, neste caso) ao amor do bem incriado, que é o próprio Deus. Por isso disse Cristo no Evangelho: “Aquele que tentar salvar a sua vida, perdê-la-á. Aquele que a perder, por minha causa, reencontrá-la-á”.229 A este gênero de temor mundano se reduzem, em maior ou menor grau, os pecados que se cometem por respeito humano. Bem longe desta classe de temor mundano estava Santa Teresa de Jesus quando dizia que preferia ser antes “ingratíssima contra o mundo todo” do que ofender em um só ponto a Deus.230 2) Temor servil. – É próprio do servo que serve a seu senhor por medo do castigo que possa lhe sobrevir ao não servir-lhe. Deve-se distinguir duas modalidades nesta classe de temor: a) Se o medo do castigo constitui a única razão para evitar o pecado, então este medo em si constitui um verdadeiro pecado, posto que ao pecador não importa em nada a ofensa a Deus, senão unicamente pelo temor do castigo (p.ex., aquele que dissesse: “Cometeria o pecado se não houvesse inferno”). É mal e pecaminoso, porque embora evita a materialidade do pecado, de fato incorre formalmente nele pelo afeto que lhe professa; não lhe importaria em nada a ofensa a Deus se esta 229.  Mt, 10, 39. 230.  Santa Teresa, Libro de su vida c.5 n.4.

172

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

não levasse consigo a pena. Neste sentido se chama temor servilmente servil e é sempre mal e pecaminoso. b) Se o medo do castigo não é a causa única e nem próxima, mas acompanha à causa primeira e principal (que é o temor de ofender a Deus), é bom e honesto, porque, no fim das contas, rechaça o pecado principalmente porque é ofensa de Deus e, ademais, porque nos pode castigar se o cometemos. É a chamada dor de atrição, que a igreja declara boa e honesta contra a doutrina dos protestantes e jansenistas.231 Se chama também temor simplesmente servil. 3) Temor filial imperfeito. – É aquele temor que evita o pecado porque nos separaria de Deus, a quem amamos. É o temor próprio do filho que ama a seu pai e não quer se separar dele. Já se compreende que esta classe de temor é muito boa e honesta. Mas ainda não é perfeita, posto que ainda leva em conta o castigo próprio que lhe sobreviria: a separação do pai e, por tanto, do céu. Ainda é muito superior ao temor simplesmente servil, posto que o castigo que teme provém do amor que professa a seu pai, e não do medo a outra classe de penas. É o chamado temor inicial, que ocupa um lugar intermediário entre o servil e o propriamente filial, como vamos ver. 231.  Cf. D. 818.898.915.1.303-305.

173

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

4) Temor filial perfeito. – É próprio do filho amoroso, pendente das ordens do pai, a quem não desobedecerá unicamente para não lhe desagradar, mesmo sem ameaça alguma de pena de castigo. É o temor perfeitíssimo daquele que sabe dizer com toda verdade: “Ainda que não houvesse céu, eu te amaria, ainda que não houvesse inferno, te temeria”.

Pois bem, qual desses temores é dom do Espírito Santo? É evidente que nem o mundano e nem o servil podem sê-lo. Não o mundano porque é pecaminoso: teme mais perder ao mundo do que a Deus, a quem abandona pelo mundo. Nem tampouco o servil, porque, ainda que, em si mesmo, não seja mal, pode se dar também no pecador mediante uma graça atual que lhe mova à dor de atrição pelo temor da pena. Este temor é já uma graça de Deus que lhe move ao arrependimento, mas todavia não está conectado com a caridade e, por conseguinte, nem com os dons do Espírito Santo. Segundo São Tomás, só o amor filial perfeito entra no dom de temor, porque se funda diretamente na caridade e reverência a Deus como Pai. Porém, como o temor filial imperfeito (temor inicial) não difere substancialmente do filial perfeito, também o imperfeito passa a formar parte do dom de temor, embora só em suas manifestações incipientes ou imperfeitas. À medida que cresce a caridade, vai-se purificando o temor inicial, perdendo sua modali174

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

dade servil, que ainda teme a pena, para fixar-se unicamente na culpa enquanto ofensa de Deus.232 Com estas noções já podemos abordar a natureza íntima do dom de temor. 3. natureza do dom de temor O dom de temor é um dos mais complexos e difíceis de precisar com exatidão e rigor teológico. No que possui de mais íntimo e positivo, poderíamos dar dele a seguinte definição: O dom de temor é um hábito sobrenatural pelo qual o justo, sob o instinto do Espírito Santo e dominado por um sentimento reverencial para com a majestade de Deus, adquire docilidade especial para apartar-se do pecado e submeter-se totalmente à divina vontade.

No momento, basta esta noção geral. Ao precisar mais abaixo as principais virtudes com as que se relaciona e os admiráveis efeitos que produz na alma a atuação do dom de temor, acabaremos de perfilar a natureza íntima deste admirável dom. 4. seu modo deiforme Deus é a causa suprema e exemplar de todos os dons sobrenaturais que recebemos de sua divina 232.  Cf. II-II q.19 a.8-10.

175

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

liberalidade. Mas parece que com relação ao dom de temor não é possível encontrar n’Ele nenhuma sorte de exemplaridade, já que em Deus é absolutamente impossível a existência de qualquer classe de temor. A exemplaridade divina – escreve a este propósito o padre Philipon233 –, que salta à vista em todos os demais dons do Espírito Santo, é difícil de perceber no dom de temor. Compreende-se sem esforço que os dons intelectuais tenham por protótipo a inteligência, a ciência, a sabedoria e o conselho de Deus. O dom de piedade é como uma imitação da glorificação que Deus encontra em si mesmo, em seu Verbo. E o dom de fortaleza, como um reflexo da onipotência e imutabilidade divinas. Mas como descobrir em Deus um modelo do dom de temor? Sim, ele existe: seu afastamento de todo mal, ou seja, sua santidade infinita, que comunica aos homens e aos anjos, que “tremem” diante d’Ele; algo de sua pureza divina, inacessível à mais mínima mácula e dotada de um poder soberanamente eficaz contra todas as formas do mal. O Espírito de Deus é um Espírito de temor, assim como é de amor, de inteligência, de ciência, de sabedoria, de conselho, de fortaleza e de 233.  P. Philipon, O.P., Los dones del Espírto Santo (Barcelona 1966)

p. 337-338.

176

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

piedade. Em sua ação pessoal no mais íntimo da alma, o Espírito do Pai e do Filho transmite algo da infinita detestação do pecado que existe no próprio Deus, e de sua vontade de se opor ao “mal de culpa”, e de sua ordenação do “mal de pena” por sua vingadora justiça para sua maior glória e para restituir a ordem no universo. Um sentimento análogo é participado, no fundo das almas, sob a influência direta do Espírito de temor: antes de mais nada, uma detestação enérgica do pecado, ditada pela caridade; ademais, um sentimento de reverência para com a infinita grandeza daquele cuja soberana bondade merece ser o fim supremo de cada um de nossos atos, sem o menor desvio egoísta em direção ao pecado. O modo deiforme do Espírito de temor se mede pela santidade de Deus.

5. virtudes relacionadas Os dons do Espírito Santo se relacionam intimamente entre si e com todo o conjunto das virtudes cristãs, já que ambos são inseparáveis da caridade sobrenatural, que é a forma de todas as virtudes e dons, a alma de todos eles. No entanto, cada um dos dons se relaciona especialmente com alguma ou algumas virtudes infusas, às quais se encarrega de aperfeiçoar por sua grande afinidade com elas. O dom de temor se relaciona de forma muito especial com a esperança, a tem177

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

perança, a religião e a humildade. Vejamos com mais detalhes. a) a esperança – O homem sente a propensão natural de amar a si próprio desordenadamente, a presumir que algo é, algo vale e algo pode a fim de conseguir sua bem-aventurança. É o pecado de presunção, contrário por excesso à virtude da esperança. É unicamente a esperança que arrancará pela raiz o dom de temor ao nos dar um sentimento sobrenatural e vivíssimo de nossa radical impotência ante Deus, que trará como consequência o nosso apoio unicamente na onipotência auxiliadora de Deus, que é, cabalmente, o motivo formal da esperança cristã. Sem a atuação intensa do dom de temor, esta última nunca chegará a ser totalmente perfeita.234 “A esperança – escreve a este propósito o padre Philipon235 – induz à alma humana, consciente de sua fragilidade e de sua miséria, a refugiar-se em Deus, cuja onipotência misericordiosa é a única que pode liberá-la de todo mal. Sendo assim, o espírito de temor e a esperança teologal, o sentido de nossa debilidade e o da onipotência de Deus, prestam-se apoio mútuo em nós. O dom de temor se converte em 234.  Cf. II-II q.19 a.9 ad 1 e 2: q 141 a.1 ad 3. 235.  Op.cit.,p.339.

178

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

um dos mais preciosos auxiliares da esperança cristã. Quanto mais débil e miserável se sente o fiel, quanto mais inclinado a cair, mais se refugia em Deus, como uma criança carregada no colo de seu pai.

b) a temperança. – O dom de temor visa principalmente a Deus, fazendo-nos evitar cuidadosamente tudo quanto possa ofender-lhe e, nesse sentido, aperfeiçoa a virtude da esperança, como já dissemos. Porém, secundariamente, pode se direcionar a qualquer outra coisa da qual o homem se aparte para evitar a ofensa de Deus. E nesse sentido corresponde ao dom de temor corrigir a tendência mais desordenada experimentada pelo homem – a dos prazeres carnais -, reprimindo-a mediante o temor divino, ajudando e reforçando a virtude da temperança, que é a encarregada de moderar aquela tendência desordenada. Sem o reforço do dom de temor, a virtude da temperança seria impotente para vencer sempre e em todas as partes o ímpeto das paixões desordenadas.236 c) a religião. – Como é sabido, a religião é a virtude encarregada de regular o culto devido à majestade de Deus. Quando esta virtude é aperfeiçoada pelo dom de temor, alcança seu expoente máximo e plena perfeição. O culto à divindade se 236.  Cf. II-II q.141 a.3 ad 3.

179

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

enche desse temor reverencial que experimentam os próprios anjos ante a majestade de Deus: tremunt potestates;237 desse temor santo que se traduz em profunda adoração ante a perfeição infinita de Deus: “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos exércitos”.238 O modelo supremo desta reverência ante a grandeza e majestade de Deus é o próprio Cristo. Se nos fosse dado a contemplar a humanidade de Jesus, a veríamos subjugada de reverência ante o Verbo de Deus, ao qual estava unida hipostaticamente, ou seja, formando uma só pessoa divina com Ele. Esta é a reverência que coloca o Espírito Santo em nossas almas através do dom de temor. Ele cuida de fomentá-la em nós, mas moderando-a e fusionando-a com o dom de piedade, que põe em nossa alma um sentimento de amor e de filial ternura, fruto de nossa adoção divina, que nos permite chamar a Deus de Pai nosso.

d) A humildade. – O contraste infinito entre a grandeza e santidade de Deus e nossa incrível pequenez e miséria é o fundamento e a raiz da humildade cristã; mas só o dom de temor, atuando intensamente na alma, leva a humildade à 237.  Prefácio à missa. 238.  Is 6, 3.

180

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

perfeição sublime que admiramos nos santos. Escutemos a um teólogo contemporâneo explicando esta doutrina:239 O homem ama, antes de tudo, a grandeza, dilatar-se e alargar-se mais do que lhe corresponde, o que constitui o orgulho, a soberba; mas a humildade lhe reduz a seus devidos limites para que não pretenda ser mais do que é, segundo a regra da razão. E sobre isso vem atuar o dom de temor, submergindo a alma no abismo de seu nada diante da totalidade de Deus, nas profundezas de sua miséria ante a infinita justiça e majestade divinas. E assim, a alma penetrada por este dom, como é nada diante de Deus e não tem de sua parte mais do que sua miséria e seu pecado, não deseja por si mesma grandeza nem glória alguma fora de Deus, nem se julga merecedora de outra coisa além de desprezo e castigo. Só assim pode a humildade chegar a sua perfeição: e tal era a humildade que vemos nos santos, com um desprezo absoluto de si mesmos.

Ao lado destas quatro virtudes fundamentais, o dom de temor faz sentir também sua influência sobre várias outras, relacionadas de algum modo com aquelas. Não há nenhuma virtude que, através 239.  P. Ignácio G. Menéndez-Reigada, Los dones del Espíritu Santo y la perfección cristiana (Madrid 1948) p. 579-580; cf. II-II q 19 a.9 ad 4.

181

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

de alguma teologal ou cardeal, deixe de receber a influência de algum dom. E assim, através da temperança, o dom de temor atua sobre a castidade, levando-a até a delicadeza mais refinada; sobre a mansidão, reprimindo totalmente a ira desordenada; sobre a modéstia, suprimindo em absoluto qualquer movimento desordenado interior ou exterior; e combate as paixões que, juntamente com a vanglória, são filhas da soberba: a jactância, a presunção, a hipocrisia, a pertinácia, a discórdia, a réplica irada e a desobediência.240 6. efeitos do dom de temor nas almas São inestimáveis os efeitos santificadores que a atuação do dom de temor produz nas almas, apesar de ser o último e menos perfeito de todos.241 Eis aqui os principais: 1) Um vivo sentimento da grandeza e majestade de Deus, que as submerge em uma adoração profunda, cheia de reverência e humildade. – É o efeito mais característico do dom de temor, que se desprende de sua própria definição. A alma submetida a sua ação se sente transportada com força irresistível ante a grandeza e majestade de Deus, que faz tremer aos próprios anjos: tremunt potestates. Diante 240.  Cf. II-II q.132 a.5. 241.  Cf. II-II q.19 a.9.

182

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

dessa infinita majestade se sente nada e menos que nada, posto que é um nada pecador. E se apodera dela um sentimento tão forte e penetrante de reverência, submissão e acatamento, que gostaria de desaparecer e padecer mil mortes por Deus. É então quando a humildade chega ao seu cume. Sentem desejos imensos de “padecer e ser desprezado por Deus” (São João da Cruz). Não se lhes ocorre ter o mais ligeiro pensamento de vaidade ou presunção. Veem tão claramente sua miséria, que, quando lhes elogiam, parece-lhes que zombam deles (Cura d’Ars). São Domingos de Gusmão se colocava de joelhos na entrada dos povoados, pedindo a Deus que não castigasse a aquele local onde iria entrar tão grande pecador. Chegados a estas alturas, há um procedimento infalível para atrair a simpatia e amizade destes servos de Deus: injuriar-lhes e encher-lhes de impropérios (Santa Teresa de Jesus). Esse respeito e reverência ante a majestade de Deus se manifesta também em todas as coisas que de algum modo dizem respeito a Ele. A igreja ou oratório, o sacerdote, os vasos sagrados, as imagens dos santos..., todos os veem e tratam com grandíssimo respeito e veneração. O dom de piedade produz também efeitos semelhantes; mas desde outro ponto de vista, como veremos no lugar correspondente. 183

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Esse é o aspecto do dom de temor que continuará eternamente no céu.242Ali não será possível – dada a absoluta impecabilidade dos bemaventurados – o temor da ofensa de Deus; mas permanecerá eternamente, aperfeiçoada e depurada, a reverência e acatamento ante a infinita grandeza e majestade de Deus, que encherá de estupor a inteligência e o coração dos santos. 2) Um grande horror ao pecado e uma vivíssima contrição por tê-lo cometido. – Iluminada sua fé pelos resplendores dos dons de entendimento e ciência e submetida a esperança à ação do dom de temor, que a enfrenta diretamente com a majestade divina, a alma compreende como nunca a malícia de certo modo infinita que encerra qualquer ofensa a Deus, por insignificante que pareça. O Espírito Santo, que quer purificar mais e mais a alma para a divina união, a submete ao dom de temor, que lhe faz experimentar uma espécie de antecipação do rigor inexorável com que a justiça divina, ofendida pelo pecado, há de castigá-la na outra vida, se não fizer nesta a devida penitência. A pobre alma sente angustias morais, que alcançam sua máxima intensidade na horrenda noite do espírito, antes de alcançar o cimo supremo da perfeição cristã. Lhe parece que está irremediavelmente condenada e que já não tem nada que esperar. Em realidade, é então quando a esperança chega a um grau incrível de heroísmo, 242.  Cf. II-II q.19 a.11.

184

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

pois a alma chega a esperar “contra toda esperança”, como Abraão,243 e a lançar o grito sublime de Jó: “Se ele me mata, nada mais tenho a esperar, e assim mesmo defenderei minha causa diante dele”.244 O horror que experimentam estas almas ante o pecado é tão grande, que São Luis Gonzaga caiu desmaiado aos pés do confessor ao acusar-se de duas faltas veniais muito leves. Santo Afonso de Ligório experimentou semelhante fenômeno ao ouvir pronunciar uma blasfêmia. Santa Teresa de Jesus escreve que “não podia haver morte mais dura para mim, do que pensar se tinha ofendido a Deus”.245 E de São Luis Beltrão se apoderava um tremor impressionante ao pensar na possibilidade de se condenar, perdendo com isso eternamente a Deus. Seu arrependimento pela menor falta é vivíssimo. Dele procede a ânsia reparadora, a sede de imolação, a tendência irresistível de crucificar-se de mil modos que experimentam continuamente estas almas. Não estão loucas. É uma consequência natural das moções do Espírito Santo através do dom de temor. 3) Uma vigilância extrema para evitar as menores ocasiões de ofender a Deus. – é uma consequência lógica do efeito anterior. 243.  Rm 4, 18. 244.  Jó 13, 15. 245.  Vida 34, 9.

185

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Nada temem tanto estas almas como a menor ofensa a Deus. Eles viram claramente, à luz contemplativa dos dons do Espírito Santo, que na realidade é este o único mal sobre a terra; os demais não merecem tal nome. Como estão distantes estas almas de se colocarem voluntariamente nas ocasiões de pecado! Não há pessoa tão apreensiva que escape com tanta rapidez e presteza de um doente empesteado como estas almas da menor sombra ou perigo de ofender a Deus. Esta vigilância extrema e atenção constante faz com que essas almas vivam sob a moção do especial do Espírito Santo, com uma pureza de consciência tão grande, que às vezes torna impossível – por falta de matéria – recepção de absolvição sacramental, a não ser que submeta a ela alguma falta da vida passada, sobre a qual recaia novamente a dor e o arrependimento.

4) desprendimento perfeito de tudo o que é criado. – O dom de ciência – como veremos – produz este mesmo efeito, embora desde outro ponto de vista. É que os dons, como dissemos, estão mutuamente conectados entre si e com a caridade, se entrelaçando e se influenciando mutuamente. É perfeitamente compreensível. A alma que através do dom de temor vislumbrou um relâmpago da grandeza e majestade de Deus, há de estimar forçosamente como sujeira e esterco todas as 186

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

grandezas criadas.246 Honras, riquezas, poderio, dignidades..., tudo o considera menos que palha, como algo indigno de merecer um minuto de atenção. Lembre-se do efeito que produziram em Santa Teresa as joias que sua amiga, Dona Luisa de la Cerda, lhe mostrou em Toledo: não lhe cabia na cabeça que as pessoas pudessem sentir apreço por uns cristaizinhos que brilham um pouco mais do que os correntes e ordinários: Eu ficava rindo comigo mesma e sentindo pena de ver o que os homens estimam, lembrando-me do que tem guardado para eles o Senhor. E pensava quão impossível seria para mim, ainda que eu comigo mesma quisesse tentar, ter aquelas coisas em alguma conta, se o Senhor não me tirasse a lembrança das outras.247

7. bem-aventuranças e frutos que dele se derivam Segundo o Doutor Angélico, com o dom de temor se relacionam duas bem-aventuranças evangélicas: a primeira – “Bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino dos céus”248 – e a terceira – “Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados”.249 246.  cf. Fp 3, 8. 247.  Vida 38,4. 248.  Mt 5, 3. 249.  Mt 5, 5.

187

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

A primeira corresponde diretamente ao dom de temor, já que, em virtude da reverência filial que nos faz sentir ante Deus, nos impulsiona a não buscar nosso engrandecimento nem na exaltação de nós mesmos (soberba) nem nos bens exteriores (honras e riquezas). É tudo o que pertence à pobreza de espírito, seja entendida como aniquilação do espírito soberbo e inflado – como disse Santo Agostinho –, seja do desprendimento de todas as coisas temporais por instinto do Espírito Santo, como dizem santo Ambrosio e São Jerônimo.250 Indiretamente, o dom de temor se relaciona também com a bem-aventurança relativa aos que choram.251 Porque do conhecimento da divina excelência e de nossa pequenez e miséria se segue o desprezo de todas as coisas terrenas e a renúncia aos deleites carnais, com o pranto e a dor dos extravios passados. Por isso se vê claramente que o dom de temor refreia todas as paixões, tanto as do apetite irascível como as do concupiscível. Porque, pelo medo reverencial à majestade divina ofendida pelo pecado, refreia o ímpeto das irascíveis (esperança, desesperação, audácia, temor e ira), e rege e modera todas concupiscíveis (amor, ódio, desejo, aversão, gozo e tristeza). É, pois, um dom de valor inestimável, embora ocupe hierarquicamente o último lugar entre todos. 250.  Cf. II-II q.19 a.12. 251.  Cf. II-II q.19 a.12 ad 2.

188

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Dos chamados frutos do Espírito Santo,252 pertencem ao dom de temor a modéstia, que é uma consequência da reverência do homem ante a divina majestade, e a continência e castidade, que se seguem da moderação e canalização das paixões concupiscíveis, efeito próprio do dom de temor.253 8. vícios opostos Segundo São Gregório,254 ao dom de temor se opõe principalmente a soberba, mais intensamente ainda do que à virtude da humildade. Porque o dom de temor – como já vimos – se concentra antes de mais nada na eminência e majestade de Deus, ante a qual o homem, pelo instinto do Espírito Santo, sente seu próprio nada e vileza. A humildade se concentra também preferencialmente na grandeza de Deus, em contraste com seu próprio nada; mas à luz da simples razão iluminada pela fé e, por isso mesmo, com uma modalidade humana e imperfeita.255 Portanto, é manifesto que o dom de temor exclui a soberba de um modo mais alto que a virtude da humildade. O temor exclui até a raiz e o princípio da soberba, como

252.  cf. Gl 5, 22-23. 253.  Cf. II-II q.19 a.12 ad 4. 254.  Cf. São Gregório, I Mor. C.32; ML 75, 547AB; cf. S. Th. I-II q.68

a.6 ad 2.

255.  Cf. II-II q.161 a. 1-2.

189

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

diz São Tomás.256 Logo, a soberba se opõe ao dom de temor de uma maneira mais profunda e radical do que a virtude da humildade. Indiretamente se opõe também ao dom de temor o vício da presunção, que injuria à divina justiça ao confiar excessiva e desordenadamente na misericórdia. Neste sentido, disse São Tomás que a presunção se opõe por razão da matéria, ou seja, enquanto que despreza algo divino, ao dom de temor, do qual é próprio reverenciar a Deus.257 9. meios para fomentar este dom Como já explicamos, os dons do Espírito Santo somente podem ser postos em exercício pelo próprio Espírito Santo; diferentemente das virtudes infusas, sobre as quais podemos atuar nós mesmos sob a influência de uma simples graça atual, que Deus põe sempre a nossa disposição, como o ar que respiramos. No entanto, podemos e devemos pedir ao Espírito Santo que seus dons atuem em nós, fazendo ao mesmo tempo de nossa parte tudo quanto pudermos para nos dispor a receber a divina moção, que colocará em movimento os dons. Aparte dos meios gerais para atrair para si o olhar misericordioso do Espírito Santo – recolhimento profundo, pureza de coração, fidelidade à graça, invocação frequente do divino Espírito, etc. 256.  Cf. II-II q.19 a.9 ad.4; q 161 a.2 ad 3. 257.  Cf. II-II q.130 a.2 ad 1; q21 a.3.

190

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

– ,eis aqui alguns meios relacionados com maior proximidade ao dom de temor: a) meditar com frequência na infinita grandeza e majestade de deus. – Nunca poderemos chegar a adquirir com nossos pobres esforços discursivos o conhecimento contemplativo, vivíssimo e penetrante que proporcionam os dons do Espírito Santo.258 Mas algo podemos fazer refletindo no poder e majestade de Deus, que tirou todas as coisas do nada só com o império de sua vontade,259 que chama por seu nome as estrelas, as quais respondem no ato, tremendo de respeito,260 que é mais admirável e imponente que os vergalhões do mar bravio, que virá sobre as nuvens do céu com grande poder e majestade a julgar os vivos e os mortos261 e ante aquele que eternamente tremerão de respeito os principados e potestades angélicas: tremunt potestates. b) acostumar-se a tratar a deus com confiança filial, porém cheia de reverência e respeito. – Não esqueçamos nunca que Deus é 258.  “Meditar no inferno, por exemplo, é ver um leão pintado; con-

templar o inferno é ver um leão vivo”. (P. Lallemant, La doctrina espiritual princ.7 c.4 a.5). É sabido que a contemplação é efeito dos dons intelectivos do Espírito Santo.

259.  Gn 1, 1. 260.  Br 3, 33-36. 261.  Lc 21, 27.

191

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

nosso Pai, mas também o Deus de tremenda grandeza e majestade. Com frequência as almas piedosas se esquecem deste último e se permitem familiaridades excessivas no trato com Deus, cheias de irreverente atrevimento. É incrível, certamente, até que ponto Eva sua confiança e familiaridade com as almas que lhe são gratas, mas é preciso que Ele tome a iniciativa. Enquanto isso, a alma deve permanecer em uma atitude reverente e submissa que, por outra parte, está muito longe de prejudicar à doce confiança e intimidade própria dos filhos adotivos. c) meditar com frequência na infinita malicia do pecado e conceber um grande horror para com ele. – Os motivos do amor são por si mesmos mais poderosos e eficazes que os de temor para evitar o pecado como ofensa a Deus. Mas também estes contribuem poderosamente para que nos detenhamos diante do crime. A lembrança dos terríveis castigos que Deus tem preparados para os que desprezam definitivamente suas leis seria o bastante para fazer-nos sair do pecado se só o meditássemos com seriedade e prudente reflexão. “É horrendo – disse São Paulo – cair nas mãos do Deus vivo”.262 Temos de pensar nisso com frequência, sobretudo quando a tentação venha a colocar diante de nós as lisonjas do mundo ou da 262.  Hb 10, 31.

192

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

carne. Deve-se procurar conceber um horror tão grande ao pecado, que estejamos prontos e dispostos a perder todas as coisas e ainda a própria vida antes do que cometê-lo. Para isso nos ajudará muito a fuga das ocasiões perigosas, que nos aproximariam do pecado; a fidelidade ao exame diário de consciência, para prevenir as faltas voluntárias e chorar as que nos tenham escapado; e, sobretudo, a consideração de Jesus Cristo crucificado, vítima propiciatória por nossos crimes e pecados. d) colocar cuidado especial na mansidão e humildade no trato com o próximo. – Aquele que tenha consciência clara de que o Deus de infinita majestade lhe perdoou misericordiosamente dez mil talentos, como ousará exigir com arrogância e desprezo os cem dinares que acaso possa lhe dever um co-sservo irmão seu?263 Devemos perdoar cordialmente as injúrias, tratar a todos com delicadeza, com profunda humildade e mansidão, tendo a todos por melhores que nós (ao menos enquanto que provavelmente não tenham resistido à graça tanto como nós se houvessem recebido os dons que Deus nos deu com tanta abundância e prodigalidade). Quem tenha cometido em sua vida algum pecado mortal, já nunca poderá se humilhar o bastante: é um “resgatado do inferno”, nenhum lugar tão baixo pode existir fora dele 263.  cf. Mt 18, 23-35.

193

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

que não seja demasiado alto ou elevado para quem mereceu um posto eterno aos pés de Satanás. e) pedir com frequência ao espírito santo o temor reverencial de deus. – No fim das contas, toda disposição perfeita é um dom de Deus que só pela humilde e perseverante oração podemos alcançar. A liturgia católica está cheia de fórmulas sublimes: “Se estremece minha carne por temor a ti e temo teus juízos”;264 “Mantém para com teu servo teu oráculo, que prometeste aos que te temem”,265 etc. Estas e outras fórmulas parecidas hão de brotar frequentemente de nosso coração e de nossos lábios, bem convencidos de que “o temor de Deus é o princípio da sabedoria”266 e de que é mister operar nossa salvação “com temor e tremor”,267 seguindo o conselho que nos dá o próprio Espírito Santo por meio do salmista: “Servi ao Senhor com temor e prestailhe homenagem com tremor”.268

264.  Sl 118, 120. 265.  Sl 118, 38. 266.  Eclo 1,15. 267.  Fl 2, 12. 268.  Sl 2, 11.

194

 Capítulo IX 

O dom de Fortaleza

Na escala ascendente dos dons do espírito Santo ocupa o segundo lugar o dom de fortaleza, encarregado primeiramente de aperfeiçoar a virtude infusa com o mesmo nome. Vamos estudá-lo com o cuidado e atenção que merece sua grande importância na vida espiritual.269 1.

natureza

O dom de fortaleza é um hábito sobrenatural que robustece a alma para praticar, por instinto do Espírito Santo, toda classe de virtudes heróicas com invencível confiança em superar os maiores perigos ou dificuldades que possam surgir.

269.  Cf. Nossa Teologia de la perfección cristiana (Madrid 51968)

n.442-47.

195

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Expliquemos um pouco a definição, palavra por palavra. É um hábito sobrenatural, como os demais dons e virtudes infusas. Que robustece a alma. Precisamente tem por missão elevar suas forças até o plano do divino, como veremos em seguida. Para praticar por instinto do Espírito Santo. É próprio e específico dos dons. Sob sua ação, a alma não discorre e nem raciocina; opera por um impulso interior, a maneira de instinto, que procede direta ou indiretamente do próprio Espírito Santo, que põe em marcha seus dons. toda classe de virtudes heroicas. Embora a virtude que o dom de fortaleza vem a aperfeiçoar e sobre a qual recai diretamente é a de seu mesmo nome, no entanto, sua influência chega a todas as demais virtudes, cuja prática em grau heroico supõe uma fortaleza de alma verdadeiramente extraordinária, que não poderia proporcionar a virtude por si só, abandonada a si mesma.270 Por isso, o dom de fortaleza, que tem de abarcar tantos e tão diversos atos de virtude, necessita, por sua vez, ser governado pelo dom de conselho.271 270.  “Quanto mais alta é uma potência –escreve São Tomás-, tanto

se estende a maior número de coisas... E, por isso, o dom de fortaleza se estende a todas as dificuldades que podem surgir nas coisas humanas... O ato principal do dom de fortaleza é suportar todas as dificuldades, seja nas paixões, seja nas operações” (In III Sant. D.34 q.3 a.1 q.2 sol.).

271.  Cf. II-II q.139 a.1 ad 3.

196

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Este dom – adverte o P. Lallemant272 – é uma disposição habitual que coloca o Espírito Santo na alma e no corpo para fazer e sofrer coisas extraordinárias, para empreender as ações mais difíceis, para se expor aos danos mais terríveis, para superar os trabalhos mais rudes, para suportar as penas mais horrendas; e isso constantemente e de uma maneira heroica.

Com invencível confiança. – é uma das mais claras notas de diferenciação entre a virtude e o dom de fortaleza. Também a virtude – disse São Tomás273 – tem por missão robustecer a alma para suportar qualquer dificuldade ou perigo; porém, proporcionar-lhe a invencível confiança de que os superará de fato, pertence ao dom de fortaleza. Expondo este ponto concreto, escreve com acerto o P. Arrighini:274 Apesar da semelhança da definição, não se deve confundir o dom de fortaleza com a virtude cardeal de mesmo nome. Porque, embora suponham ambos uma certa firmeza e energia de espírito, a virtude da fortaleza tem seus limites na potência humana, que nunca poderá superar; mas o dom de mesmo nome, ao contrário, se apoia na potência divina, segundo a expressão 272.  P. Lallemant, La doctrina espiritual princ.4 c.4 a.6. 273.  Cf. II-II q.139 a.1. ad 1. 274.  P. Arrighini, Il Dio ignoto (Roma 1937) p.334-36.

197

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

do profeta: “Com meu Deus atravesso a muralha”,275 ou seja, transpassarei todos os obstáculos que possam surgir para alcançar o último fim. Secundariamente, se a virtude cardeal da fortaleza proporciona a coragem suficiente para afrontar tais obstáculos em geral, não infunde, no entanto, a confiança de afrontá-los e superá-los todos, como faz o dom análogo do Espírito Santo. Ademais, a virtude da fortaleza, precisamente porque se encontra limitada pela potência humana, não se estende igualmente a toda classe de dificuldades; e por isso se dá o caso de quem supera facilmente as tentações de orgulho, mas não tanto as da carne; ou quem evita certa classe de perigos, mas não outros, etc. O dom de fortaleza, ao contrário, apoiando-se completamente na divina onipotência, se estende a tudo, se basta para tudo e faz exclamar com Jó: “Sê tu mesmo a minha caução junto de ti, e quem ousará bater em minha mão?”.276 Enfim, a virtude da fortaleza nem sempre consegue seu objeto, já que não é próprio do homem superar todos os perigos e vencer em todas as lutas; mas Deus pode muito bem fazer isso, e como o dom de fortaleza nos infunde precisamente a divina potência, poderá o homem com ele superar agilmente todo perigo e 275.  Sl 18, 30. 276.  Jó 17,3.

198

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

inimigo, combater e vencer em toda batalha e repetir com o Apóstolo: “Tudo posso naquele que me conforta”.277 Por tudo isso se compreende facilmente que o dom de fortaleza seja muito superior à virtude do mesmo nome. Esta traz sua energia da graça até o ponto em que o consente a potência humana; aquele, até o ponto que seja necessário combater e vencer. A primeira faz operar sempre ao modo humano; o segundo, ao modo divino. A fortaleza, como virtude, está sempre unida ao freio e ao juízo da prudência cristã; o dom, por sua vez, empurra a resoluções que, sem ele, pareceriam ser presunções, temeridades, exageros. Precisamente a isso se devem as críticas e os falsos juízos que inclusive os homens sensatos e crentes se permitem fazer a respeito de certos heroísmos de nossos santos. Os julgam segundo a prudência, mesmo cristã se quiser; os julgam de modo que poderiam operar eles mesmos. Mas não pensam que nos santos há outro motor muito mais alto e potente que pode lhes fazer correr e saltar a alturas inalcançáveis com suas pobres pernas. É preciso ter isso muito em conta para julgar com acerto essas aparentes loucuras dos santos”.

Há, de fato, uma grande diferença entre as possibilidades da virtude adquirida, a virtude infusa 277.  Fl 4, 13.

199

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

e o dom de fortaleza, ainda que os três levem o mesmo nome. E assim: a) A fortaleza natural ou adquirida robustece a alma para suportar os maiores trabalhos e expor-se aos maiores perigos, como vemos em muitos heróis pagãos; mas não sem certo tremor e ansiedade, nascido da clara percepção da fraqueza das próprias forças, únicas com que se conta. b) A fortaleza infusa se apoia, certamente, no auxílio divino – que é em si onipotente e invencível -, mas conduz em seu exercício ao modo humano, ou seja, segundo a regra da razão iluminada pela fé, que não acaba de tirar totalmente da alma o temor e o tremor. c) O dom de fortaleza, por sua vez, lhe faz suportar os maiores males e expor-se aos mais inauditos perigos com grande confiança e segurança, enquanto movida pelo Espírito Santo não mediante o ditame da simples prudência, senão pela altíssima direção do dom de conselho, ou seja, por razões inteiramente sobrenaturais e divinas.278

2. importância e necessidade O dom de fortaleza é absolutamente necessário para a perfeição da virtude cardeal de mesmo nome, para a de todas as virtudes infusas e, às 278.  Cf. João de São Tomás, In II-II d.18 a.6.

200

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

vezes, inclusive para a simples permanência no estado de graça. Vejamo-lo em particular. a) para a perfeição da virtude cardeal da fortaleza. – A razão fundamental é a que já indicamos mais acima. Embora a virtude da fortaleza tende por si mesma a robustecer a alma contra toda classe de dificuldades e perigos, não acaba de o conseguir totalmente enquanto permaneça submetida ao regime da razão iluminada pela fé (modo humano). É preciso que o dom de fortaleza lhe arranque todo motivo de temor ou indecisão ao submetê-la à moção direta e imediata do Espírito Santo (modo divino), que lhe dá uma confiança e segurança inquebrantáveis. Eis aqui como expõe esta doutrina o P. Arrighini:279 O primeiro efeito do dom de fortaleza é o de completar a virtude cardeal do mesmo nome e levá-la até onde ela, por si só, somente com as energias humanas que possa dispor, não chegará nunca. É necessário convir que a tais energias o dom de fortaleza acrescenta outras sobrenaturais que revigoram a vontade, inflamam o sentimento, excitam a fantasia e todas as outras faculdades mais nobres da alma para dispô-las serenamente aos maiores riscos. A experiência demonstra, ademais, que muitas 279.  Op.cit., p.336-38.

201

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

vezes o vigor sobrenatural deste dom se estende também ao corpo, comunicando-lhe uma resistência e energia muito superior à ordinária e que causa estupor a quem não conheça a divina fonte de onde brota. Em virtude desta fonte, ou seja, da fortaleza infusa pelo Espírito Santo especialmente no sacramento da confirmação, o mundo pôde contemplar, ao longo de vinte séculos, maravilhas incríveis. Viu milhões de almas de ricos e pobres, de doutos e ignorantes, de velhos e jovens, vivendo em todos os estados e condições, sob todas as latitudes, em meio a todos os perigos, fortes, cheios de coragem, constantes na execução de seus deveres cristãos, em superar as tentações do mundo, do demônio e da carne, em combater e vencer toda classe de inimigos e perigos. O próprio Espírito Santo rende pela boca de São Paulo seu próprio testemunho: “Pela fé subjugaram reinos, exerceram a justiça, alcançaram as promessas, obstruíram a boca dos leões, extinguiram a violência do fogo, escaparam ao fio da espada, convalesceram da enfermidade, se fizeram fortes na guerra, desbarataram os exércitos estrangeiros”.280 Deste modo conhecemos o que tantos cristãos realizaram com o dom de fortaleza. Vejamos agora o que suportaram e padeceram: “Devolveram vivos às suas mães os filhos mortos. 280.  Hb 11, 33-34.

202

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Alguns foram torturados, por recusarem ser libertados, movidos pela esperança de uma ressurreição mais gloriosa. Outros sofreram escárnio e açoites, cadeias e prisões. Foram apedrejados, massacrados, serrados ao meio, mortos a fio de espada. Andaram errantes, vestidos de pele de ovelha e de cabra, necessitados de tudo, perseguidos e maltratados, homens de que o mundo não era digno! Refugiaramse nas solidões das montanhas, nas cavernas e em antros subterrâneos.”.281 Eis aqui o que todo o mundo pôde ver e admirar.

b) Para a perfeição das demais virtudes infusas. – Uma virtude pode ser chamada perfeita unicamente quando seu ato brota da alma com energia, prontidão e inquebrantável perseverança. Ora, este heroísmo contínuo e jamais desmentido é francamente sobrenatural, e não pode ser explicado satisfatoriamente senão pela atuação do modo sobre-humano dos dons do Espírito Santo, particularmente – neste sentido – do dom de fortaleza. c) Para permanecer em estado de graça. – Há ocasiões em que o dilema se apresenta inexoravelmente: o heroísmo ou o pecado mortal, um dos dois. Nestes casos –muito mais frequentes do que se acredita – não basta a simples virtude da fortaleza. Precisamente pela violência repentina e inesperada da tentação – cuja aceitação ou re281.  Hb 11, 35-38.

203

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

pulsa, por outra parte, é questão de um segundo – não é suficiente o modo lento e discursivo das virtudes da prudência e fortaleza; é mister a intervenção rápida dos dons de conselho e de fortaleza. Precisamente – como já vimos – o Doutor Angélico se fundamente neste argumento para proclamar a necessidade dos dons, mesmo para a salvação eterna.282 Este dom – escreve a este propósito o P. Lallemant283 – é extremamente necessário em certas ocasiões nas quais o indivíduo se sente combatido por tentações imperiosas, às quais, se quer resistir, é preciso se decidir por perder os bens, a honra ou a vida. Nestes casos, o Espírito Santo ajuda poderosamente com seu conselho e sua fortaleza à alma fiel que, desconfiando de si mesma e convencida de sua debilidade e de sua insignificância, implora seu auxílio e coloca n’Ele toda sua confiança. Nestas situações, as graças comuns não são suficientes; é preciso de luzes e auxílios extraordinários. Por isso, o profeta Isaías enumera juntamente os dons de conselho e de fortaleza; o primeiro, para iluminar o espírito, e o outro, para fortalecer o coração.

282.  Cf. I-II q.68. a.2. 283.  La doctrina espiritual, princ. 4 c.4 a.6.

204

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Insistindo nestas razões e relacionando-as aos três principais inimigos da alma, escreve outro excelente autor.284 Por tudo quanto acabamos de dizer, se compreende sem esforço que o dom de fortaleza não é necessário unicamente aos heróis, aos mártires ou ao cumprimento de empresas extraordinárias; não menos do que os outros dons do Espírito Santo, é, por vezes, necessário indistintamente a todos os homens para conseguir sua eterna salvação e, também, para viver de modo cristão, combater e vencer nesta grande batalha que é a vida do homem sobre a terra, como nos adverte o próprio Espírit o Santo pela boca de Jó: “A vida do homem sobre a terra é uma luta”.285 A experiência o demonstra. É uma contínua batalha contra tudo e contra todos. Contra nossa própria natureza corrompida, posto que todos – sem excluir o próprio Apóstolo, que foi arrebatado até o terceiro céu – “Sentimos em nossos membros outra lei que repugna a lei de Deus e nos empurra ao pecado”,286 ao que é preciso resistir se não se quer chegar à desoladora conclusão daquele poeta pagão que 284.  P. Arrighini, op.cit., p.338-40 285.  Jó 7, 1. 286.  Rm 7, 23.

205

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

dizia: “Vejo o melhor e o aprovo, porém, faço o pior”.287 a) Batalha contra nossas paixões. – Como um cão de guarda – diz o P. Lacordaire –, espreitam no fundo do coração, dispostas a latir e a morder em qualquer ocasião. Basta uma insignificância: a visão de uma pessoa, a leitura de uma página de romance ou de jornal, uma palavra, um sorriso, um gesto, para despertá -las subitamente; porém, quantas lutas e fadigas para freá-las e submetê-las à reta razão! b) Batalha contra o mundo. – Contra sua moral corrompida e corruptora, as más companhias, suas inumeráveis seduções, suas modas escandalosas, seus prazeres, suas festas impuras... É impossível – dizia o próprio Platão, embora pagão – viver honestamente por muito tempo em meio ao mundo; até mesmo um anjo acabaria por cair sem um socorro especial do Espírito Santo. c) Batalha contra o demônio. – É o pior e mais terrível inimigo. A ele não se vê, não se sente, não se sabe de onde vem e nem para onde vai. Mas é certo, como disse São Pedro, que se encontra por todas as partes e se agita ao nosso redor “como um leão que ruge, buscando a quem devorar”.288 Se o próprio Cristo nosso

287.  Ovídio, Metamorfoses, 1.7 v. 20-21. 288.  1Pd 5, 8.

206

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Senhor foi tentado três vezes pelo demônio, quem poderá permanecer seguro e tranquilo? Todos devemos combater continuamente. Contra nós mesmos, contra nossas paixões, contra o mundo, contra o demônio. E ainda restam muitos inimigos: as doenças que atentam contra a saúde, as desventuras, as desgraças, os dissabores que nunca faltam, preocupações, fastios... Com razão dizia Jó que a vida do homem sobre a terra é uma contínua e interminável luta. Ora, como poderá homem por si só – mesmo que seja auxiliado somente com a virtude cristã da fortaleza, que coloca em exercício unicamente suas energias humanas –, nem mesmo superar, mas sequer afrontar tantos e tão poderosos inimigos? Compreende-se sem esforço que lhe será necessária alguma coisa a mais, uma ajuda divina, uma fortaleza estritamente sobre-humana, que é precisamente a que pode infundir na sua alma e em seus próprios membros o dom do divino Espírito Santo”.

3. efeitos que produz na alma São admiráveis os efeitos que a fortaleza produz na alma. Eis aqui os principais: 1) proporciona para a alma uma energia inquebrantável na prática da virtude. – É uma consequência inevitável do modo sobre-humano 207

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

com o qual, através do dom, se pratica a virtude da fortaleza. A alma não conhece desfalecimentos e nem fraquezas no exercício da virtude. Sente, naturalmente, o peso do dia e do calor, mas com energia sobre-humana segue intrépida adiante apesar de todas as dificuldades. Ninguém com tanta força e energia soube expor as disposições destas almas como Santa Teresa de Jesus quando escreve estas palavras: “Digo que importa muito, e o todo, uma grande e muito determinada determinação de não parar até chegar a ela (a perfeição), venha o que vier, suceda o que suceder, sofra o que sofrer, murmure quem murmurar, mesmo que não se tenham forças para prosseguir, mesmo que se morra no caminho ou não se suportem os padecimentos que nele há, ainda que o mundo venha abaixo.289 Isto é francamente sobre-humano e efeito claríssimo do dom de fortaleza. O P. Meynard resume muito bem os principais efeitos desta energia sobre-humana da seguinte forma: “Os efeitos do dom de fortaleza são interiores e exteriores. O interior é um vasto campo aberto a todas as generosidades e sacrifícios, que chegam com frequência ao heroísmo; são lutas incessantes e vitoriosas contra as solicitudes de Satanás, contra o amor e a busca de si mesmo, contra a impaciência. No exterior são novos e magníficos triunfos obtidos pelo 289.  Santa Teresa, Camino de perfección, 21,2.

208

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Espírito Santo contra o erro e o vício; e também nosso pobre corpo, participando dos efeitos de uma fortaleza verdadeiramente divina e entregando-se com ardor, ajudando sobrenaturalmente, às práticas da mortificação ou sofrendo sem desfalecer as dores mais cruéis. O dom de fortaleza é, pois, verdadeiramente o princípio e a fonte de grandes coisas empreendidas ou sofridas por Deus”.290 2) destrói por completo a tibieza no serviço de deus. – é uma consequência natural desta energia sobre-humana. A tibieza – verdadeira tuberculose da alma, que tem paralisado completamente a tantos no caminho de perfeição – obedece quase sempre à falta de energia e fortaleza na prática da virtude. Resulta-lhes demasiado penoso ter de vencer-se em tantas coisas e manter seu espírito dia após dia, na monotonia do cumprimento exato do dever até em seus mínimos detalhes. A maioria das almas desfalecem de cansaço e renunciam à luta, entregando-se a uma vida rotineira, mecânica e sem horizontes, quando não voltam completamente as costas e abandonam por completo o caminho da virtude. Só o dom de fortaleza, robustecendo em grau sobre-humano as forças da alma, é remédio proporcionado e eficaz para destruir em absoluto e por completo a tibieza no serviço de Deus. 290.  P. Meynard, O.P., Traité de la vie intérieure I 264.

209

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

3) faz da alma intrépida e valente ante toda classe de perigos ou inimigos. – É outra das grandes finalidades ou efeitos do dom de fortaleza, que aparece com características impressionantes na vida dos santos. Os apóstolos, covardes e medrosos, abandonam a seu Mestre na noite da quinta-feira santa – aquele Pedro que negou três vezes depois de ter prometido que morreria por Ele! –, se apresentam ante o povo em uma manhã de Pentecostes com uma inteireza e valentia sobre-humanas. Não temem a ninguém. Não levam em conta em momento algum a proibição de pregar em nome de Jesus imposta pelos chefes da sinagoga, porque “é preciso obedecer a Deus antes que aos homens”.291 Todos confessaram a seu Mestre com o martírio. E aquele Pedro que se acovardou de tal modo ante uma rameira, que não vacilou em negar a seu Mestre, morre com incrível inteireza, crucificado de cabeça para baixo, confessando ao Mestre, a quem negou. Tudo isso era perfeitamente sobre-humano, efeito do dom de fortaleza que receberam os apóstolos, com uma plenitude imensa, na manhã de Pentecostes. Depois deles são inumeráveis os exemplos nas vidas dos santos. Podemos apenas conceber as dificuldades e perigos que tiveram de vencer um São Luis, rei da França, para se colocar à frente da cruzada; uma Santa Catarina de Sie291.  At 5, 29.

210

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

na para fazer o papa voltar a Roma; uma Santa Joana d’Arc para lutar com as armas contra os inimigos de Deus e de sua pátria, etc. Eram verdadeiras montanhas de perigos e dificuldades as que se antepunham a eles; mas nada era capaz de lhes deter: posta sua confiança unicamente em Deus, seguiam adiante com energia sobre-humana até cingir suas cabeças com os louros da vitória. Era simplesmente um efeito maravilhoso do dom de fortaleza que dominava seu espírito. 4) faz suportar as maiores dores com gozo e alegria. – A resignação, por ser uma virtude louvável é, no entanto, imperfeita. Os santos propriamente não a conhecem. Não se resignam diante da dor: eles saem gozosos ao seu encontro. E algumas vezes essa loucura da cruz se manifesta em penitências e macerações incríveis (Maria Madalena, Margarita de Cortona, Enrique Susón, Pedro de Alcântara), e outras em uma paciência heróica, com a qual suportam, com o corpo destroçado, embora com a alma radiante de alegria, os maiores sofrimentos, enfermidades e dores. “Cheguei a não poder sofrer – dizia Santa Teresinha do Menino Jesus –, porque me é doce todo o padecimento”.292 Linguagem de heroísmo, verdadeiramente sobre-humano, que procede direta e imediatamente da atuação intensíssima do dom de fortaleza! Os 292.  Cf. Novíssima verba, dia 29 de maio.

211

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

exemplos são inumeráveis nas vidas dos santos. 6) proporciona à alma o “heroísmo do pequeno”, ademais do heroísmo do grande. – Não se necessita maior fortaleza para sofrer repentinamente o martírio, do que para suportar sem o menor desfalecimento esse martírio às alfinetadas, 293 que constitui a prática heroica do dever de cada dia, com suas milhares de miudezas e pequenas incidências. Ser obstinadamente fiel ao dever de cada dia, sem permitir jamais a menor infração voluntária, supõe um heroísmo constante, que só pode proporcionar à alma a intensa atuação do dom de fortaleza.

4. bem-aventuranças e frutos correspondentes São Tomás de Aquino, seguindo a Santo Agostinho, atribui ao dom de fortaleza a quarta bem-aventurança: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de santidade, porque eles serão saciados”,294 porque a fortaleza recai sobre coisas árduas e difíceis; e desejar santificar-se, não de qualquer maneira, mas com verdadeira fome e sede, é extrema-

293.  Alusão à expressão utilizada por Santa Teresa de Lisieux em

uma carta de 15 de março de 1889: “... enquanto esperamos, comecemos o nosso martírio. Deixemos Jesus arrancar-nos tudo o que nos é mais caro, e não lhe recusemos nada. Antes de morrer pela espada, morramos às alfinetadas”. Cf. Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face. Obras completas. São Paulo: Loyola, 2001. p. 399 – NT.

294.  Mt 5,6.

212

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

mente árduo e difícil.295 E assim vemos, com efeito, que as almas dominadas pelo dom de fortaleza têm um desejo insaciável de fazer e de sofrer grandes coisas por Deus. Já neste mundo começam a receber a recompensa com o crescimento das virtudes e os intensíssimos gozos espirituais com os quais Deus enche frequentemente suas almas. Os frutos do Espírito Santo que respondem a este dom são a paciência e a longanimidade. O primeiro, para suportar com heroísmo os sofrimentos e males; o segundo, para não desfalecer na prática prolongada do bem.296 5. vícios opostos Segundo São Gregório,297 ao dom de fortaleza se opõe o temor desordenado ou timidez, acompanhado muitas vezes de certa frouxidão natural, que provém do amor à própria comodidade, nos impede de empreender grandes coisas pela glória de Deus e nos impulsiona a fugir da abjeção e da dor. “Não se pode dizer – escreve o P. Lallemant298 – de quantas omissões nos faz culpáveis o medo. São muito poucas as pessoas que fazem por Deus e pelo próximo tudo quanto 295.  Cf. II-II q.139 a.2. 296.  Cf. II-II q. 139 a.2 ad.3. 297.  Cf. Morales c.49: ML 75, 593. 298.  Op.cit., princ.4 c.4 a6.

213

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

poderiam fazer. É preciso imitar aos santos, não temendo mais do que ao pecado, como São João Crisóstomo; enfrentando-nos com toda classe de riscos e perigos, como São Francisco Xavier; desejando afrontas e perseguições, como Santo Inácio.”

6. meios de fomentar este dom Ademais dos meios gerais para o fomento dos dons (recolhimento, oração, fidelidade à graça, invocar ao Espírito Santo, etc.), afetam muito de perto ao dom de fortaleza os seguintes, entre muitos: a) acostumar-se ao cumprimento exato do dever, apesar de todas as repugnâncias. – Há heroísmos que muitas vezes não estão a nosso alcance com as forças de que dispomos atualmente; mas não há dúvida de que com a simples ajuda da graça ordinária, a qual Deus não nega a ninguém, poderíamos fazer muito mais do que fazemos. Nunca, de maneira alguma, podemos chegar ao heroísmo dos santos até que atue intensamente em nós o dom de fortaleza; porém, esta atuação não costuma ser produzida pelo Espírito Santo para premiar a frouxidão e preguiça voluntárias. A quem faz o que pode, não lhe faltará a ajuda de Deus; mas ninguém pode se queixar de não experimentá-la se nem sequer faz o que pode.

214

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

b) não pedir a Deus que nos tire a cruz, senão unicamente que nos dê força para suportá-la santamente. – O dom de fortaleza se dá aos santos para que possam resistir as grandes cruzes e tribulações pelas quais inevitavelmente tem de passar todo aquele que queira chegar ao cume da santidade. No entanto, se ao experimentar qualquer dor ou sentir o peso de uma cruz que a Providência nos envia, começamos a nos queixar e a pedir a Deus que nos livre dela, por que nos surpreendemos se os dons do Espírito Santo não venham em nossa ajuda? Se ao nos provar em coisas pequenas, Deus nos encontra fracos, como pode seguir adiante com sua ação purificadora? Não nos queixemos das cruzes; peçamos ao Senhor somente que nos dê forças para carregá-la. E esperemos tranquilos, que prontamente soará a hora de Deus. Jamais se deixará vencer em generosidade. c) Pratiquemos, com valentia ou debilidade, mortificações voluntárias. – Não há nada que fortaleça tanto contra o frio quanto acostumar-se a viver na intempérie. Aquele que abraça voluntariamente a dor, acaba por não tremer ante ela e até mesmo encontra o gosto de experimentá-la. Não quer dizer que devamos nos destroçar a golpes de disciplina ou pratiquemos as grandes macerações de muitos santos: a alma ainda não está preparada para isso. Mas esses mil pequenos detalhes da vida diária: guardar silêncio quando se sente a comichão 215

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

de falar; não se queixar nunca da inclemência do tempo, da qualidade da comida, etc.; receber com humildade e paciência as gozações, repreensões e contradições, e outras mil pequenas coisas do mesmo tipo, podemos e devemos fazê-las nos violentando um pouco com ajuda da graça ordinária. Não é preciso se sentir valente ou esforçado para praticar essas coisas. Pode-se levar a cabo mesmo em meio à nossa fraqueza e debilidade. Santa Teresinha do Menino Jesus se alegrava de se sentir tão débil e com tão poucas forças, porque assim colocava toda sua confiança em Deus e tudo esperava d’Ele. d) Busquemos na Eucaristia a fortaleza para nossas almas. – A Eucaristia é o pão dos anjos, mas também o pão dos fortes. Como robustece e conforta a alma este alimento divino! São João Crisóstomo disse que devemos nos levantar da mesa sagrada com forças de leão para nos lançar a toda classe de obras heroicas pela glória de Deus.299 É que nela nos colocamos em contato direto e íntimo com Cristo, verdadeiro leão de Judá,300 que se compraz em transfundir em nossas almas algo de sua divina fortaleza. 299.  In. Io. hom.61: ML 59,260. 300.  Ap 5, 5.

216

 Capítulo X 

O dom de Piedade

O terceiro dos dons do Espírito Santo em escala ascendente do menor ao maior, é o chamado dom de piedade. Tem por missão fundamental aperfeiçoar a virtude infusa do mesmo nome – derivada da virtude cardeal da justiça -, imprimindo em nossas relações com Deus e com o próximo o sentido filial e fraterno que deve regular o trato dos filhos de uma mesma família para com seu pai e seus irmãos. O dom de piedade nos comunica o espírito de família de Deus. Vamos então estudá-lo cuidadosamente.301

1.

natureza

O dom de piedade é um hábito sobrenatural infundido por Deus com a graça santificante para excitar 301.  Cf. nossa Teologia de la perfección cristiana (BAC, Madrid 51968)

n. 407-412.

217

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

em nossa vontade, por instinto do Espírito Santo, um afeto filial para com Deus, considerado como Pai, e um sentimento enquanto irmãos nossos e filhos do mesmo Pai, que está nos céus.

Sobre esta definição convém destacar o seguinte: a) O dom de piedade, como dom afetivo que é, reside na vontade como potência da alma. b) Se distingue da virtude infusa de mesmo nome na qual tende para Deus como Pai – assim como o dom –, porém com uma modalidade humana, ou seja, regulada pela razão iluminada pela fé; enquanto que o dom o faz por instinto do Espírito Santo, ou seja, com uma modalidade divina incomparavelmente mais perfeita. c) O dom de piedade se estende a todos os homens enquanto filhos do mesmo Pai, que está nos céus. E também a tudo quanto pertence ao culto de Deus – aperfeiçoando a virtude da religião até o máximo -, e ainda a toda a matéria da justiça e virtudes anexas, cumprindo todas suas exigências e obrigações por um motivo mais nobre e uma formalidade mais alta, ou seja: considerando-as como deveres para com seus irmãos, os homens, que são filhos e familiares de Deus. Assim como a virtude da piedade é a virtude familiar por excelência, em um plano mais alto e universal, é o dom do mesmo nome o encarregado de unir e congregar, sob o 218

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

olhar amoroso do Pai celestial, a toda a grande família dos filhos de Deus.

2. importância e necessidade O dom de piedade é absolutamente necessário para aperfeiçoar até o heroísmo a matéria pertencente à virtude da justiça e a todas suas derivadas, especialmente a religião e a piedade, sobre as quais recai de uma maneira mais imediata e principal. Quão distinto é, por exemplo, praticar o culto de Deus unicamente sob o impulso da virtude da religião, que O apresenta a nós como Criador e Dono soberano de tudo quanto existe, e praticá-lo pelo instinto do dom de piedade, que nos faz ver n’Ele a um Pai amorosíssimo que nos ama com infinita ternura! As coisas do serviço de Deus – culto, oração, sacrifício, etc. – se cumprem quase sem esforço algum, com refinada perfeição e delicadeza: trata-se do serviço do Pai e já não mais do Deus de tremenda majestade. E no trato dos homens, que toque de acabamento e beleza coloca o sentimento entranhável de que todos somos irmãos e filhos de um mesmo Pai, às exigências, em si já sublimes, da caridade e da justiça! E ainda no que se refere às próprias coisas materiais, como tudo muda de panorama! Porque para os que estão profundamente governados pelo dom de piedade, a terra e a criação inteira 219

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

são a “casa do Pai”, na qual tudo quanto existe lhes fala d’Ele e de sua infinita ternura. Descobrem sem esforço o sentido religioso que pulsa em todas as coisas. Todas elas – mesmo o lobo, as árvores, as flores e a própria morte – são irmãs nossas (São Francisco de Assis). Então, é quando as virtudes cristãs adquirem um matiz delicadíssimo, de refinada perfeição e acabamento, que seria inútil exigir delas desligadas da influência do dom de piedade. Sem os dons do Espírito Santo – repitamo-lo uma vez mais – nenhuma virtude infusa pode chegar a seu perfeito desenvolvimento ou expansão. A piedade – diz a este propósito o P. Lallemant302 – tem uma grande extensão no exercício da justiça cristã. Se projeta não somente sobre Deus, mas sobre tudo quanto se relacione com Ele, como a Sagrada Escritura, que contém sua palavra; os bem-aventurados, que o possuem na glória; as almas do purgatório, que se purificam para Ele, os homens da terra, que caminham para Ele. Nos dá espírito de filho para com os superiores, espírito de pai para com os inferiores, espírito de irmão para com os iguais, entranhas de compaixão para os que sofrem e uma terna inclinação para socorrerlhes e ajudar-lhes... É ele que nos faz afligir com os afligidos, chorar com os que choram, 302.  Op. cit., princ.4 c.4 a5.

220

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

alegrar-se com os que se alegram, suportar com doçura as debilidades dos enfermos e as faltas dos imperfeitos; enfim, fazer tudo para todos, como o grande apóstolo São Paulo.303

3. efeitos que produz na alma São maravilhosos os efeitos que produz na alma a atuação intensa do dom de piedade. Eis aqui os principais: 1) uma grande ternura filial para com o Pai que está nos céus. – é o efeito primário e fundamental. A alma compreende perfeitamente e vive com inefável doçura aquelas palavras de São Paulo: “Porquanto não recebestes um espírito de escravidão para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Aba! Pai! O Espírito mesmo dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus”.304 Santa Teresinha do Menino Jesus – em quem, como é sabido, brilhou o dom de piedade em grau sublime – não podia pensar nisto sem chorar de amor. “Ao entrar certo dia em sua cela uma noviça, deteve-se surpreendida diante da celestial expressão de seu rosto. Estava costurando com grande atividade e, não 303.  1Cor 9, 22. 304.  Rm 8, 15-16.

221

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

obstante, parecia abismada em profunda contemplação. – Em que pensais?, perguntou-lhe a jovem irmã. – Estou meditando o Pai-nosso, respondeu ela. É tão doce chamar a Deus de Pai nosso!... E ao dizer isto, as lágrimas brilhavam em seus olhos”.305 Dom Columba Marmión, o célebre abade de Meredsous, possuía também em alto grau este sentimento de nossa filiação divina adotiva. Para ele, Deus é, antes de tudo e sobretudo, nosso Pai. O monastério é a “casa do Pai”, e todos seus moradores formam a família de Deus. O mesmo deve ser dito do mundo inteiro e de todos os homens. Insiste repetidas vezes, em todas suas obras, na necessidade de cultivar este espírito de adoção, que deve ser a atitude fundamental do cristão frente a Deus. O mesmo pedia mentalmente este espírito de adoção ao se inclinar no Gloria Patri ao final de cada salmo.306 Eis aqui um texto esplêndido de sua preciosa obra Jesuscristo en sus misterios, que resume admiravelmente seu pensamento: “Não esqueçamos jamais que toda a vida cristã, como toda a santidade, se reduz a ser por graça o que Jesus é por natureza: filho de Deus. Daí a sublimidade de nossa religião. A fonte de todas as preeminências de Jesus, o valor de todos seus estados, da 305.  Cf. História de uma alma, c.12 n.4. 306.  Devemos estes dados ao precioso estudo de Dom Raymond Thibaut, Un maître de la vie spirituelle: Dom Columba Marmión (Desclée, 1920), sobretudo em seu c. 16.

222

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

fecundidade de todos seus mistérios, está em sua geração divina e em sua qualidade de Filho de Deus. Por isso, o santo mais elevado no céu será o que neste mundo for melhor filho de Deus, o que melhor fizer frutificar a graça de adoção sobrenatural em Jesus Cristo”.307 A oração predileta destas almas é o Pai Nosso. Encontram nela tesouros insondáveis de doutrina e doçuras inefáveis de devoção, como lhe ocorreria a Santa Teresa de Jesus: “Espanta-me ver que em tão poucas palavras estejam encerradas toda a contemplação e a perfeição, parecendo que não temos a necessidade de estudarmos nenhum livro: basta-nos o Pai-nosso”.308 2) nos faz adorar o mistério da paternidade divina intra-trinitária. – Em suas manifestações mais altas e sublimes, o dom de piedade nos faz penetrar no mistério da vida íntima de Deus, dando-nos um sentimento vivíssimo, impregnado de respeito ao Verbo eterno. Já não se trata tão somente de sua paternidade espiritual sobre nós pela graça, mas de sua divina paternidade, eternamente fecunda no seio da Trindade Beatíssima. A alma se compraz com inefável doçura no mistério da geração eterna do Verbo, que constitui, se é licito falar assim, a própria felicidade de Deus. E diante desta perspectiva soberana, sempre eterna e sempre atual, a alma sente a necessidade de aniquilar-se, 307.  Dom Marmión, Jesuscristo en sus misterios 3,e. 308.  Santa Teresa, Camino de perfección c.37 n.1.

223

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

de calar e de amar, sem mais linguagem além da adoração e das lágrimas. Gosta de repetir no mais fundo de seus espírito aquela sublime expressão do Glória da missa: “Te damos graças por tua imensa glória: propter magnam gloriam tuam”. É o culto e a adoração da Majestade divina por si mesma, sem nenhuma relação com os benefícios que dela tenhamos podido receber. É o amor puro em toda sua impressionante grandeza, sem mescla alguma de elementos humanos egoístas. 3) um filial abandono nos braços do pai celestial. – Intimamente penetrada de sentimento de sua filiação divina adotiva, a alma se abandona tranquila e confiada nos braços de seu Pai celestial. Nada lhe preocupa, nem é capaz de perturbar a paz inalterável de que goza. Não pede nada, nem rechaça nada em relação a sua saúde ou enfermidade, vida curta ou longa, consolos ou aridez, energia ou debilidade, perseguições ou louvores, etc. Se abandona totalmente nos braços de Deus, e o único que pede e ambiciona é glorificar-lhe com todas suas forças e que todos os homens reconheçam sua filiação divina adotiva e se portem como verdadeiros filhos de Deus, louvando e glorificando ao Pai que está nos céus. 4) nos faz ver no próximo a um filho de deus e irmão em Jesus Cristo.- É uma consequência natural da filiação adotiva da graça. Se Deus é nosso Pai, todos somos filhos de Deus e irmão 224

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

em Jesus Cristo, em ato ou ao menos em potência. Porém, com que força percebem e vivem esta verdade tão sublime as almas dominadas pelo dom de piedade! Amam a todos os homens com apaixonada ternura, vendo neles a irmãos queridíssimos em Cristo, aos quais quiseram encher de todas as classes de graças e bendições. Deste sentimento transborda a alma de São Paulo quando escrevia aos Filipenses (4,1) “Portanto, meus muito amados e saudosos irmãos, alegria e coroa minha, continuai assim firmes no Senhor, caríssimos”. Levada por esses sentimentos profundos, a alma se entrega a toda classe de obras de misericórdia para com os desgraçados, considerando-os como verdadeiros irmãos e servindo-lhes para comprazer ao Pai de todos. Todos quantos sacrifícios exija o serviço do próximo – mesmo do ingrato e malagradecido – lhe parecem pouco. Em cada um deles vê a Cristo, o Irmão maior, e faz por ele o que faria com o próprio Cristo. E tudo quanto faz – sendo heroico e sobre-humano muitas vezes – lhe parece tão natural e simples, que se admiraria muitíssimo e lhe causaria grande estranheza que alguém o ponderasse como se tivesse algum valor: “Mas se é meu irmão!”, se limitaria a responder. Todos seus movimentos e operações em serviço do próximo os realiza pensando no Pai comum, como próprios e devidos a irmãos e familiares de Deus;309 e isto faz 309.  cf. Ef 2,19.

225

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

com que todos eles venham a ser atos de religião de um modo sublime e eminente. Mesmo o amor e a piedade que professa a seus familiares e consanguíneos estão profundamente penetrados desta visão mais alta e sublime, que os apresenta como filhos de Deus e irmãos em Jesus Cristo. 5) Nos move ao amor e devoção às pessoas e coisas relacionadas de algum modo com a paternidade de Deus ou a fraternidade cristã. – em virtude do dom de piedade se aperfeiçoa na alma o amor filial para com a Santíssima Virgem Maria, a quem considera como terníssima mãe e com quem tem todas as confianças e atrevimentos de um filho para com a melhor das mães. Ama com ternura aos anjos e santos, que são seus irmãos maiores, que já gozam da presença contínua do Pai na mansão eterna dos filhos de Deus. Às almas do purgatório, às quais atende e socorre com sufrágios contínuos, considerando-as como irmãs queridas que sofrem. Ao papa, o doce “Cristo na terra”, que é a cabeça visível da Igreja e pai de toda a cristandade. Aos superiores, nos quais se concentra, sobretudo, em seu caráter de pais mais do que de chefes ou inspetores, servindo-lhes e obedecendo-lhes em tudo com verdadeira alegria filial. À pátria, que quisesse vê-la empapada do espírito de Jesus Cristo em suas leis e costumes e pela qual derramaria com gosto seu sangue ou se deixaria queimar 226

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

viva, como Santa Joana D’Arc. À Sagrada Escritura, que lê com o mesmo respeito e amor, como se trata de uma carta do Pai enviada desde o céu para lhe dizer o que tem de fazer ou o que quer dela. Às coisas santas, sobretudo as que pertencem ao culto e serviço de Deus (cálices sagrados, custódias, etc.) nos quais vê os instrumentos do serviço e glorificação do Pai. Santa Teresinha estava felicíssima por seu ofício de sacristã, que lhe permitia tocar os vasos sagrados e ver seu rosto refletido no fundo dos cálices...

4. bem-aventuranças e frutos que dele se derivam Segundo São Tomás,310 com o dom de piedade se relacionam intimamente três das bem-aventuranças evangélicas: a) Bem-aventurados os mansos, porque a mansidão tira os impedimentos para o exercício da piedade. b) Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque o dom de piedade aperfeiçoa as obras da virtude da justiça e todas suas derivadas. c) Bem-aventurados os misericordiosos, porque a piedade se exercita também nas obras de misericórdia corporais e espirituais. 310.  Cf. II-II q.121 a.2.

227

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Dos frutos do Espírito Santo devem atribuir-se diretamente ao dom de piedade a bondade e a benignidade; e indiretamente a mansidão, enquanto aparta os impedimentos para os atos de piedade.311 5. vícios opostos Os vícios que se opõem ao dom de piedade podem ser agrupados sob o nome genérico de impiedade. Porque, como precisamente ao dom de piedade corresponde oferecer a Deus com filial afeto o que lhe pertence como nosso Pai, todo aquele que de uma forma ou de outra quebre voluntariamente este dever, merece propriamente o nome de ímpio. Por outra parte, “a piedade, enquanto dom, consiste em certa benevolência sobre-humana para com todos”,312 considerando-os como filhos de Deus e nossos irmãos em Cristo. E, neste sentido, São Gregório Magno opõe ao dom de piedade a dureza de coração, que nasce do amor desordenado a nós mesmos.313 O P. Lallemant escreveu uma página admirável sobre esta dureza de coração. Ei-la aqui:314

311.  Cf. II-II q.121 a.2 ad.3. 312.  São Tomás de Aquino, In III Sent. D.9 q.1 a.1 q.1 ad 4. 313.  II Moral. C.49: ML 75.593. Cf. S. Th. I-II q.68 a.2 ad 3; a.6 ad 2;

II q.159 a.2 ad 1.

314.  Op.cit., princ.4 a.5.

228

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

O vício oposto ao dom de piedade é a dureza de coração, que nasce do amor desordenado de nós mesmos: porque este amor faz com que naturalmente sejamos mais sensíveis a nossos próprios interesses e que nada nos afete senão aquilo que se relaciona com nós mesmos; que vejamos as ofensas a Deus sem lágrimas, e as misérias do próximo sem compaixão; que não queremos nos incomodar em nada para ajudar aos outros; que não possamos suportar seus defeitos; que arremetamos contra eles por qualquer bagatela e que conservemos para com eles em nosso coração sentimentos de amargura e de vingança, de ódio e antipatia. Ao contrário, quanto mais caridade e amor de Deus tem uma alma, mais sensível é a todos os interesses de Deus e do próximo. Esta dureza é extrema nos grandes do mundo, nos ricos e avaros, nas pessoas sensuais e nos que não abrandam seu coração pelos exercícios de piedade e pelo uso das coisas espirituais. Se encontra também com frequência nos sábios que não juntam a devoção com a ciência, e que para lisonjear-se deste efeito o chamam de solidez de espírito; Porém os verdadeiros sábios são os mais piedosos, como Santo Agostinho, São Tomás, São Boaventura, São Bernardo, e na Companhia, Lainez, Suarez, Belarmino, Leslio. Uma alma que não pode chorar seus pecados, ao menos com lágrimas do coração, tem 229

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

muito de impiedade ou de impureza, ou de ambas as coisas ao mesmo tempo, como ocorre ordinariamente aos que têm o coração endurecido. É uma grande desgraça quando se estima mais na religião os talentos naturais e adquiridos do que a piedade. Vereis com frequência religiosos, e talvez superiores, que dirão em voz alta que fazem muito mais caso de um espírito capaz de atender a muitos negócios do que de todas essas pequenas devoções, que são, dizem, boas para mulheres, mas impróprias de um espírito sólido; chamando solidez de espírito esta dureza de coração, tão oposta ao dom de piedade. Deveriam pensar estes senhores que a devoção é um ato da virtude da religião, ou um fruto da religião e da caridade, e que, por conseguinte, é preferível a todas as virtudes morais, já que a religião segue imediatamente, no que concerne à dignidade, às virtudes teologais. Quando um padre grave ou respeitável pela idade, ou pelos cargos que desempenhou na religião, afirma diante dos jovens religiosos que estima os grandes talentos e os empregos brilhantes, ou que prefere aos que sobressaem pela ciência ou engenho mais do que aos que não têm tanto essas coisas, ainda que tenham mais virtude e piedade, faz um gravíssimo dano a esta pobre juventude. É um veneno que se lhes inocula no coração e do qual provavel230

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

mente jamais se curarão. Uma palavra que se diz confidencialmente a outro é capaz de lhe transtornar completamente”.

6. meios de fomentar este dom Aparte dos meios gerais para fomentar os dons do Espírito Santo (recolhimento, oração, fidelidade à igreja, etc. ), se relacionam com maior proximidade ao dom de piedade os seguintes: a) cultivar em nós o espírito de filhos adotivos de Deus. – Não há verdade que se nos inculque tantas vezes no Evangelho como a de que Deus é nosso Pai. Só no sermão da montanha o Senhor o repete catorze vezes. Esta atitude de filhos diante do Pai se destaca tanto na Nova Lei, que alguns quiseram ver nela a nota mais típica e essencial do cristianismo. Nunca insistiremos o bastante em fomentar em nossa alma o espírito de filial confiança e abandono nos braços de nosso Pai amorosíssimo. Deus é nosso Criador, será nosso Juiz na hora da morte; porém, antes e acima de tudo, é sempre nosso Pai. O dom de temor nos inspira para com ele uma respeitosa reverência – jamais medo –, perfeitamente compatível com a ternura e confiança filial que nos inspira o dom de piedade. Somente sob a ação transformante deste dom a alma se sente plenamente filha de Deus e vive com infinita doçura sua condição 231

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

de tal. Mas desde já podemos fazer muito para atingir este espírito, dispondo-nos, com ajuda da graça, a permanecer sempre diante de Deus como um filho ante seu amorosíssimo pai. Peçamos continuamente o espírito de adoção, vinculando esta petição a qualquer exercício que tenhamos que repetir muitas vezes ao dia – como fazia Dom Marmión a cada Gloria Patri do final dos salmos – e nos esforcemos em fazer todas as coisas pelo amor a Deus, tão somente para comprazer a nosso Pai amoroso, que está nos céus. b) cultivar o espírito de fraternidade universal com todos os homens. – É este, como vimos, o principal efeito secundário do dom de piedade. Antes de praticá-lo em toda sua plenitude pela atuação do dom, podemos fazer muito de nossa parte com ajuda da graça ordinária. Alarguemos cada vez mais a capacidade de nosso coração até introduzir nele o mundo inteiro com entranhas de amor. Todos somos filhos de Deus e irmãos de Jesus Cristo. São Paulo repetia com persuasiva insistência aos primeiros cristãos: “porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus”.315 Se fizéssemos 315.  Gl 3,26-28.

232

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

de nossa parte tudo quanto fosse possível para tratar a todos os nossos semelhantes como verdadeiros irmãos em Deus, sem dúvida atrairíamos sobre nós seu olhar misericordioso, que em nada se compraz tanto quanto em nos ver a todos unidos intimamente a seu divino Filho. O próprio Cristo quer que o mundo conheça que somos discípulos seus no amor entranhável que tenhamos uns aos outros.316 c) considerar todas as coisas, mesmo as puramente materiais, como pertencentes à casa do pai, que é a criação inteira. – Que sentido tão profundamente religioso encontram em todas as coisas as almas governadas pelo dom de piedade! São Francisco de Assis se abraçou apaixonadamente a uma árvore porque era “seu irmão”em Deus. São Paulo da Cruz se extasiava ante as flores de seu jardim, que lhe falavam do Pai celestial. Santa Teresinha se pôs a chorar de ternura ao contemplar a uma galinha abrigando a seus pintinhos debaixo de suas asas, lembrando-se da imagem evangélica com que Cristo quis nos mostrar os sentimentos de seu divino coração, inclusive para com os filhos ingratos e rebeldes.317 Sem chegar a estes requintes, que são próprios do dom de piedade atuando intensamente, que sentido tão distinto poderíamos dar a nosso trato com 316.  Jo 13, 35. 317.  cf. Mt 23, 37.

233

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

as criaturas – mesmo as mais puramente materiais – se nos esforçássemos em descobrir, à luz da fé, seu aspecto religioso, que pulsa tão profundamente em todas elas! A criação inteira é a casa do Pai, e todas as coisas nela pertencem a Ele. Com que delicadeza trataríamos as coisas puramente materiais! Descobriríamos nelas algo divino, que nos faria respeitá-las como se fossem cibórios sagrados. A que distância do pecado – que é sempre uma espécie de sacrilégio contra Deus ou as coisas de Deus – nos poria esta atitude tão cristã, tão religiosa e tão meritória diante de Deus! Toda nossa vida se elevaria de plano, alcançando uma altura sublime sob o olhar amorosíssimo de nosso Pai, que está nos céus. d) cultivar o espírito de total abandono nos braços de deus. – Em toda sua plenitude não o conseguiremos que atue intensamente em nós o dom de piedade. Mas, enquanto isso, esforcemo-nos em fazer de nossa parte tudo quanto pudermos. Devemos nos convencer plenamente de que, sendo Deus nosso Pai, é impossível que nos suceda algo mal em tudo quanto quer ou permita que recaia sobre nós. E assim devemos permanecer indiferentes à saúde ou doença, à vida longa ou curta, à paz ou à guerra, ao consolo ou aridez de espírito, etc., repetindo continuamente nossos atos de entrega e abandono a sua santíssima vontade. O fiat, o “sim”, o “o que queiras, Senhor” deveria 234

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

ser a atitude fundamental do cristão diante de seu Deus, em total e filial abandono à sua divina e paternal vontade, que não pode querer para nós senão os maiores bens, mesmo que às vezes tenham a aparência de males ante nossa visão puramente humana e natural.

235

 Capítulo XI 

O dom de Conselho

Em 25 de julho de 1956, um desastre marítimo comoveu o mundo inteiro. O melhor barco italiano, o Andrea Doria, afundou no Atlântico, perto de Nova York. As causas? Um descuido do timoneiro, que não soube desviar com rapidez suficiente quando o Stockolm, barco sueco, cruzou em sua rota. Se pudéssemos conhecer os acidentes que ocorrem todos os dias e a todas as horas às almas dos homens, por falta de direção ou de intuição! A virtude da prudência, e sobretudo o dom de conselho, que a aperfeiçoa, nos ensinarão a nos salvar destes graves inconvenientes.318

318.  Cf. nossa Teologia de la perfección cristiana (Madrid 51968)

n.381-386.

237

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

1.

natureza do dom de conselho

O dom de conselho é um hábito sobrenatural pelo qual a alma em graça, sob a ação do Espírito Santo, intui retamente, nos casos particulares, o que convém fazer para alcançar o fim último sobrenatural.

Sobre essa definição, deve-se notar principalmente o seguinte: a) Os dons do Espírito Santo não são moções transeuntes ou simples graças atuais, mas hábitos sobrenaturais infundidos por Deus na alma juntamente com a graça santificante. b) O Espírito Santo põe em movimento o dom de conselho como única causa motora; mas a alma em estado de graça colabora como causa instrumental, através da virtude da prudência, para produzir um ato sobrenatural, que procederá enquanto à substância do ato da virtude da prudência e, enquanto a sua modalidade divina, do dom de conselho. Este mesmo mecanismo atua nos demais dons. Por isso seus atos se realizam com prontidão e como que por instinto, sem necessidade de trabalho lento e laborioso do discurso da razão.319 c) A prudência sobrenatural julga retamente o que se deve fazer em um dado momento, guiandose pelas luzes da razão, iluminada pela fé. Mas 319.  cf. Mt 10, 19-20.

238

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

o dom de conselho intui rapidamente o que se deve fazer sob o instinto e moção do Espírito Santo, ou seja, por razões inteiramente divinas, que muitas vezes ignora a própria alma que realiza o ato. Por isso o modo da ação é discursivo na virtude da prudência, enquanto que o dom é intuitivo, divino ou sobre-humano.

2. importância e necessidade É indispensável a intervenção do dom de conselho para aperfeiçoar a virtude da prudência, sobretudo em certos casos repentinos, imprevistos e difíceis de resolver, que requerem, no entanto, uma solução ultrarrápida, posto que o pecado ou o heroísmo é questão de um instante. Estes casos – mais frequentes do que se imagina – não podem ser resolvidos com o trabalho lento e laborioso da virtude da prudência, recorrendo a seus oito momentos ou aspectos fundamentais;320 é necessária a intervenção do dom de conselho, que nos dará a solução instantânea do que deve ser feito por essa espécie de instinto ou co-naturalidade característica dos dons. Por vezes é muito difícil conciliar a suavidade com a firmeza, a necessidade de guardar um segredo sem faltar com a verdade, a vida interior com o apostolado, o carinho afetuoso com a cas320.  São os seguintes: memória do passado, inteligência do presente,

docilidade, sagacidade, razão, providência, circunspecção e cautela ou precaução. (cf. II-II q.49 a.1-8). 239

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

tidade, a prudência da serpente com a simplicidade da pomba.321 Em muitos casos, para todas essas coisas não bastam as luzes da prudência: requerese a intervenção do dom de conselho. Há na Sagrada Escritura – escreve o P. Lallemant322 – muitas passagens nas quais transparece com clareza a intervenção do dom de conselho; como no silêncio de nosso Senhor diante de Herodes,323 na admirável resposta que deu para salvar a mulher adúltera ou confundir aos que lhe perguntaram maliciosamente se deveria se pagar o tributo a César; no juízo de Salomão; na empresa de Judith para libertar o povo de Deus do exercito de Holofernes; na conduta de Daniel para justificar a Susana da calunia dos dois velhos; na de São Paulo quando enredou a fariseus e saduceus entre si e quando apelou para o tribunal de César, etc,. etc., e muitos outros casos do mesmo estilo.

3. efeitos do dom de conselho São Admiráveis os efeitos que produz nas almas afortunadas onde atua. Aqui estão alguns dos mais importantes: 321.  Mt 10, 16. 322.  Op. cit., princ. 4.c.4 a.4. 323.  É sabido que, como consta no texto de Isaías (11,2) e explica

São Tomás, nosso Senhor Jesus Cristo possuía em grau perfeitíssimo a plenitude dos dons do Espírito Santo (cf. III q.7 a.5-6). 240

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

1) nos preserva do perigo de uma falsa consciência. – É muito fácil se iludir neste ponto tão delicado, sobretudo quando se tem profundo conhecimento de teologia moral. Praticamente não há pequena paixão desordenada que não possa ser justificada de algum modo, invocando algum princípio de moral, talvez muito certo e seguro em si mesmo, mas mal aplicado a esse caso em particular. Para o ignorante é mais difícil, mas o técnico e entendido encontra facilmente um “título floreado” para justificar o injustificável. Com razão dizia Santo Agostinho que “o que queremos é bom, e o que nos apraz, é santo”. Somente a intervenção do dom de conselho que, superando as luzes da razão natural, obscurecida pelo capricho ou pela paixão, dita o que se deve fazer com uma segurança e força inapeláveis, pode nos preservar deste gravíssimo erro de confundir a luz com as trevas. Neste sentido, ninguém necessita tanto do dom de conselho quanto os sábios e teólogos, que tão facilmente podem se iludir, colocando falsamente sua ciência a serviço de suas comodidades e caprichos. 2) resolve, com inefável segurança e acerto, uma multidão de situações difíceis e imprevistas. – Já dissemos que não bastam, por vezes, as luzes da simples prudência sobrenatural. É preciso resolver em ato situações urgentíssimas que, teoricamente, não seriam possíveis de resolver em várias horas de estudo, e de cuja 241

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

solução acertada ou equivocada dependa a salvação de uma alma (p. ex., um sacerdote administrando os últimos sacramentos a um moribundo). Nestes casos difíceis, as almas habitualmente fiéis à graça e submissas à ação do Espírito Santo recebem prontamente a inspiração do dom de conselho, que lhes resolve em ato aquela situação dificilíssima com uma segurança e firmeza verdadeiramente admiráveis. Este surpreendente fenômeno se deu muitas vezes no santo Cura d’Ars, que, apesar de seus escassos conhecimentos teológicos, resolvia no confessionário instantaneamente, com admirável segurança e acerto, casos difíceis de moral que causariam pasmo aos teólogos mais eminentes. 3) inspira os meios mais oportunos para governar santamente aos demais. – A influência do dom de conselho se refere sempre a casos concretos e particulares. Mas não se limita ao regime puramente privado e pessoal de nossas ações; se estende também à acertada direção dos demais, principalmente nos casos imprevistos e difíceis. Quanta prudência necessita o superior para conciliar o afeto filial, que deve procurar inspirar sempre a seus súditos com a energia e inteireza em exigir o cumprimento da lei; para juntar a benignidade com a justiça, conseguir que seus súditos cumpram seu dever por amor, sem acumular preceitos, mandatos e repreensões! E o diretor 242

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

espiritual, como poderia resolver com segurança e acerto os milhares de pequenos conflitos que perturbam as pobres almas, aconselharlhes o que devem fazer em cada caso, decidir em matéria de vocação quando aparece uma duvidosa e guiar a cada alma por seu próprio caminho para Deus? Não se concebe este acerto sem a intervenção frequente e enérgica do dom de conselho. Houve santos que tiveram este dom em sumo grau. Santo Antonio de Florença se destacou tanto pela admirável inspiração de seus conselhos, que passou para a história com o sobrenome de Antoninus consiliorum. Santa Catarina de Siena era o braço direito e o melhor conselheiro do papa. Santa Joana d’Arc, sem possuir a arte militar, traçou planos e dirigiu operações que pasmaram de admiração aos mais expertos capitães, que viam sua prudência militar infinitamente superada por aquela pobre mulher. E Santa Teresinha do Menino Jesus desempenhou com extraordinário acerto, em plena juventude, o difícil e delicado cargo de mestra de noviças, que tanta maturidade e experiência requeria. 4) Aumenta extraordinariamente nossa docilidade e submissão aos legítimos superiores. – Eis aqui um efeito admirável, que à primeira vista parece incompatível com o dom de conselho, e que, no entanto, é uma de suas consequências mais naturais e espontâneas. 243

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

A alma governada diretamente pelo Espírito Santo parece que não precisará em momento algum obrigação ou necessidade de consultar suas coisas com os homens; e, contudo, ocorre precisamente o contrário: ninguém é tão dócil e submisso, ninguém tem tão forte inclinação em pedir luzes dos legítimos representantes de Deus na terra (superiores, diretor espiritual...) como as almas submetidas à ação do dom de conselho. É porque o Espírito Santo lhes impulsiona a isso. Deus determinou que o homem seja regido e governado pelos homens. Na Sagrada Escritura temos inumeráveis exemplos disso. São Paulo cai do cavalo derrubado pela luz divina, mas não se lhe diz o que tem de fazer, senão unicamente que entre na cidade e Ananias o dirá da parte de Deus.324 Deus segue este mesmo procedimento com todos seus santos: Lhes inspira a humildade, submissão e obediência a seus legítimos representantes na terra. No caso de conflito entre o que Ele lhes inspira e o que lhes manda o superior ou diretor, quer que obedeçam a estes últimos. Santa Teresa disse explicitamente: “Sempre que o Senhor me ordenava algo na oração, se o confessor me dizia outra, o próprio Senhor retornava para dizer que lhe obedecesse; depois Sua Majestade o movia para

324.  cf. At 9, 1-6.

244

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

que mo voltasse a mandar”.325 Mesmo quando alguns confessores, com muita falta de juízo, mandaram à Santa que zombasse das aparições de nosso Senhor (tendo-as por diabólicas), lhe disse o próprio Senhor que deveria obedecer sem réplica: “Dizia-me o Senhor que não me perturbasse com isso, que fazia bem em obedecer, mas Ele faria com que se entendesse a verdade”.326A santa aprendeu tão bem a lição que, quando o Senhor lhe mandava realizar alguma coisa, o consultava imediatamente com seus confessores, sem lhes dizer que o Senhor o havia mandado (para não coagir a sua liberdade de juízo); e somente depois de terem decidido o que convinha fazer, dava-lhe conta da comunicação divina, caso coincidissem ambas as coisas; e se não, pedia a nosso Senhor para que mudasse o parecer do confessor, embora seguisse obedecendo a este último. É este um dos mais claros e manifestos sinais de bom espírito e de que as comunicações que se acreditam receber de Deus são realmente d’Ele. Revelação ou visão que inspire rebeldia e desobediência, não necessita de mais exame para ser rechaçada como falsa ou diabólica.

325.  Santa Teresa, Vida 26, 5. 326.  Vida 29,6.

245

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

4. bem-aventuranças e frutos correspondentes Santo Agostinho associa ao dom de conselho a quinta bem-aventurança, correspondente aos misericordiosos.327 Mas São Tomás o admite unicamente no sentido diretivo, enquanto que o dom de conselho recai sobre as coisas úteis ou convenientes para a salvação, e nada tão útil como a misericórdia para com os demais, que nos fará alcançá-la também para nós mesmos. Mas no sentido executivo ou elicitivo, a misericórdia corresponde –como já vimos – ao dom de piedade. Enquanto relacionado com a misericórdia, correspondem de algum modo ao dom de conselho os frutos de bondade e benignidade.328 5. vícios opostos ao dom de conselho Ao dom de conselho se opõem, por defeito, a precipitação em obrar, seguindo o impulso da atividade natural, sem dar lugar a consultar ao Espírito Santo. E a temeridade, que supõe uma falta de atenção às luzes da fé e à inspiração divina por excessiva confiança em si mesmo e nas próprias forças. E por excesso se opõe ao dom de conselho a lentidão excessiva, porque, embora seja necessário usar de madura reflexão antes de obrar, uma vez tomada uma decisão segundo as luzes do Es327.  Mt 5, 7. 328.  Cf. II-II 52,4; 121,2; 52,4 ad 3.

246

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

pírito Santo, é necessário proceder rapidamente à execução antes de que as circunstâncias mudem e as ocasiões se percam. 6. meios de fomentar este dom Aparte dos já concebidos para o fomento geral dos dons (recolhimento, vida de oração, fidelidade à graça, etc.), sobre os quais nunca se insistirá o bastante, os seguintes meios nos ajudarão muito para nos dispormos à atuação do dom de conselho quando seja necessário: a) profunda humildade para reconhecer nossa ignorância e demandar as luzes do alto. A oração humilde e perseverante tem força irresistível ante a misericórdia de Deus. É preciso invocar ao Espírito Santo pela manhã ao nos levantarmos para lhe pedir sua direção e conselho ao longo do dia; no começo de cada ação, com um movimento simples e breve do coração, que será, ao mesmo tempo, um ato de amor; nos momentos difíceis ou perigosos, nos quais, mais do que nunca, necessitamos as luzes do céu; antes de tomar uma decisão importante ou emitir algum juízo orientador para os demais, etc. b) nos acostumar a proceder sempre com reflexão e sem pressa. – Todas as industrias e diligências humanas resultarão muitas vezes insuficientes para obrar com prudência, como 247

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

já dissemos; mas a quem faz o que pode, Deus não lhe nega sua graça. Quando for preciso, o dom de conselho atuará sem falta para suprir nossa ignorância e impotência: mas não tentemos a Deus esperando por meios divinos o que podemos fazer por meios postos por Ele a nosso alcance com ajuda da graça ordinária. c) atentar em silêncio ao mestre interior. – se conseguíssemos esvaziar nosso espírito e calássemos por completo os ruídos do mundo, ouviríamos com frequência a voz de Deus, que na solidão costuma falar ao coração.329 A alma há de escapar do tumulto exterior e sossegar por completo seu espírito para ouvir as lições de vida eterna que lhe explicará o divino Mestre, como em outro tempo à Maria de Betânia, sossegada e tranquila a seus pés.330 O cristão – escreve a este propósito o P. Philipon331- deveria caminhar por este mundo com o olhar fixo no sublime destino que lhe espera: a consumação de sua vida na unidade da Trindade, na sociedade com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, com os demais homens, seus irmãos, e com os anjos, chamados também a habitar com nós na mesma Cidade de Deus, formando todos juntos uma só família divina: a Igreja do Verbo encarnado, o Cristo total. 329.  cf. Os 2, 14. 330.  cf. Lc 10, 39. 331.  P. Philipon, Los dones del Espíritu Santo (Barcelona 1966) p.

281.

248

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Por que nossa atividade moral não brota em nós desta suprema orientação de nossa existência em função da beatificante visão da Trindade? Nos arrastamos em uma atmosfera de vaidades, de horizontes meramente terrestres. E, contudo, a graça de Deus nos assiste para divinizar nossos atos e valorizá-los até em seus menores detalhes, sobrelevando-os até colocá-los ao nível das intenções de Cristo, nível no qual nos deveríamos manter sem desfalecimentos, conscientes de nossa filiação divina. Nossas vidas deveriam se desenvolver, em todos seus instantes, ao sopro do Espírito do Pai e do Filho, sem desviar-se nunca para o mal, sem retardar jamais seu impulso para Deus. O Espírito Santo se encontra não só muito perto de nós, mas dentro de nós, no mais fundo de nossas almas, para nos iluminar com as claridades de Deus, para nos inspirar a realização de ações inteiramente divinas e nos facilitar seu cumprimento. Quanto mais se entrega uma alma ao Espírito Santo, mais se diviniza. A santidade perfeita consiste em não recusar nada ao Amor. d) extremar nossa docilidade e obediência a quem deus colocou na igreja para nos governar. – Imitemos os exemplos dos santos. Santa Teresa – como já vimos – obedecia a seus confessores com preferência ao próprios Senhor, e este louvou sua conduta. A alma dócil, 249

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

obediente e humilde está em insuperáveis condições para receber as ilustrações do alto. Não há nada, pelo contrário, que afaste tanto de nós o eco misterioso da voz de Deus como o espírito de autossuficiência e de insubordinação a seus legítimos representantes na terra.

250

 Capítulo XII 

O dom de Ciência

O quinto dom do Espírito Santo,

seguindo a escala ascendente de menor à maior perfeição, é o dom de ciência, que estudaremos cuidadosamente neste capítulo.332

Alguns autores atribuem ao dom de ciência a missão de aperfeiçoar a virtude da esperança. Mas São Tomás o atribui à fé, atribuindo à esperança o dom de temor, como já vimos. Nós seguimos este critério do Doutor Angélico, que se fundamenta, nos parece, na natureza mesma do dom de ciência.333

332.  Cf. nossa Teología de la perfección cristiana (BAC, Madrid

1968) n. 343-348.

333.  Cf. II-II q.9 e 19.

251

5

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

1.

natureza

O dom de ciência é um hábito sobrenatural infundido por Deus com a graça santificante, pelo qual a inteligência do homem, sob o influxo da ação iluminadora do Espírito Santo, julga retamente as coisas criadas em função do fim último sobrenatural.

Expliquemos os termos desta sintética definição para captar um pouco melhor a verdadeira natureza deste dom admirável. é um hábito sobrenatural infundido por Deus com a graça santificante. – Não se trata da ciência humana ou filosófica, que dá origem a um conhecimento certo e evidente das coisas deduzido pelo raciocínio natural de seus princípios ou causas próximas ou remotas. Tampouco da ciência teológica, que deduz das verdades reveladas por Deus as virtualidades que contêm valendo-se do discurso ou raciocínio natural. Trata-se, no entanto, de certo conhecimento sobrenatural procedente de uma ilustração especial do Espírito Santo, que nos descobre e faz apreciar retamente o nexo das coisas criadas com o fim último sobrenatural. Mais brevemente: é a reta estimação da presente vida temporal ordenada para a vida eterna. É um hábito infuso, sobrenatural, inseparável da graça, que se distingue essencialmente dos hábitos adquiridos, da ciência natural e da teologia. pelo qual a inteligência do homem. – O dom de ciência, como hábito, reside no entendimento, 252

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

o mesmo que a virtude da fé, à qual aperfeiçoa. E é primariamente especulativo, e secundariamente prático. Sob a ação iluminadora do Espírito Santo. – É a causa agente que coloca em movimento o hábito sobrenatural do dom. Em virtude dessa moção divina, muito diferente da graça atual ordinária, que põe em movimento as virtudes, a inteligência humana apreende e julga as coisas criadas por certo instinto divino, por certa co-naturalidade, que o justo possui potencialmente, pelas virtudes teologais, com tudo quanto pertence a Deus. Sob a ação deste dom, o homem não procede por raciocínio laborioso, mas julga retamente a partir de tudo o que é criado por um impulso superior e uma luz mais alta do que a da simples razão iluminada pela fé. julga retamente. – Esta é a razão formal que distingue o dom de ciência do dom de entendimento. Este último, como veremos, tem por objeto captar e penetrar as verdades reveladas por uma profunda intuição sobrenatural, sem emitir, porém, juízo sobre elas (“simplex intuitus veritatis”). O dom de ciência, no entanto, sob a moção especial do Espírito Santo, julga retamente das coisas criadas em função do fim último sobrenatural. E nisto se distingue também do dom de sabedoria, cuja função é julgar das coisas divinas, não das criadas.

253

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

“A sabedoria e a ciência –escreve o P. Lallemant334 – têm algo em comum. Ambas fazem conhecer a Deus e às criaturas. Mas quando se conhece a Deus pela criaturas e quando nos elevamos do conhecimento das causas segundas à causa primeira e universal, é um ato de ciência. E quando se conhecem as coisas humanas pelo gosto que se têm de Deus e se julga dos seres criados pelos conhecimentos que se têm do primeiro ser, é um ato de sabedoria.”

Das coisas criadas em função do fim último sobrenatural. – É, como já dissemos, o objeto material sobre o qual recai o dom de ciência. E como as coisas criadas podem se relacionar com o fim, seja impulsionando-nos a ele, seja tratando de nos apartar do mesmo, o dom de ciência dá ao homem justo o reto julgar em ambos sentidos.335 Mais ainda, o dom de ciência se estende também às coisas divinas que se contemplam nas criaturas, procedentes de Deus, para manifestação de sua glória, segundo o que diz São Paulo: “O invisível de Deus, seu eterno poder e divindade, são conhecidos mediante as criaturas”.336 “Este reto julgar das criaturas é a ciência dos santos; e se funda naquele gosto espiritual e 334.  Op. cit., princ.4 c.4 a.3; cf. II-II q.9 a.2 ad 3. 335.  Cf. II-II q.9 a.4. 336.  Rm 1, 20.

254

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

afeto de caridade que não descansa somente em Deus, senão que passa também às criaturas por Deus, ordenando-as a Ele e formando um juízo delas segundo suas propriedades, ou seja, pelas causas inferiores e criadas; distinguindose nisto a sabedoria, que arranca da causa suprema, unindo-se a ela pela caridade”.337

2. importância e necessidade O dom de ciência é absolutamente necessário para que a fé possa chegar a sua plena expansão e desenvolvimento em outro aspecto distinto daquele que corresponde – como veremos – ao dom de entendimento. Não basta apreender a verdade revelada, ainda que seja com essa penetração profunda e intuitiva que proporciona o dom de entendimento; é preciso que se nos dê também um instinto sobrenatural para descobrir e julgar retamente as relações dessas verdades divinas com o mundo natural e sensível que nos rodeia. Sem esse instinto sobrenatural, a própria fé perigaria: porque, atraídos e seduzidos pelo encanto das coisas criadas e ignorando o modo de relacioná-las com o mundo sobrenatural, facilmente erraríamos o caminho, abandonando – ao menos praticamente – as luzes da fé e atirando-nos, com uma venda nos olhos, nos braços das criaturas. A experiência diária confirma muito tudo isso para que seja necessário insistir em coisa tão clara. 337.  João de São Tomás, In I-II d.18 a 43 n.10

255

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

O dom de ciência presta, pois, inestimáveis serviços à fé, sobretudo na prática. Porque ele, sob a moção e ilustração do Espírito Santo e por certa afinidade e co-naturalidade com as coisas espirituais, julgamos retamente, segundo os princípios da fé, do uso das criaturas, de seu valor, utilidade ou perigos para a vida eterna; de tal maneira que aquele que obra sob o influxo deste dom pode se dizer com muita propriedade e exatidão que recebeu de Deus a ciência dos santos: “dedit illi scientiam sanctorum”.338 3. efeitos São admiráveis e variados os efeitos que produzem na alma a atuação do dom de ciência, todos eles de alto valor santificante. Eis aqui os principais: 1) nos ensina a julgar retamente as coisas criadas em função de deus. – é próprio e específico do dom de ciência. “Sob o impulso – diz o P. Philipon339 –, um duplo movimento se produz na alma: a experiência do vazio da criatura, de seu nada; e também, em vista da criação, o descobrimento da marca de Deus nas coisas criadas. O próprio dom de ciência arrancava lágrimas em Santo Domingo ao pensar na sorte dos pobres pecadores, enquanto que o espetáculo da 338.  Sb 10, 10. 339.  P.Philipon, O. P., La doctrina espiritual de sor Isabel de la Tri-

nidad c.8 n.6.

256

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

natureza inspirava em São Francisco de Assis seu famoso Cântico ao sol. Os dois sentimentos aparecem na conhecida passagem do Cântico Espiritual de São João da Cruz, onde o Santo descreve o alívio e ao mesmo tempo o tormento da alma mística frente à criação, quando as coisas do universo lhe revelam as marcas de seu Amado, enquanto Ele permanece invisível até que a alma, transformada n’Ele, lhe encontre na visão beatífica”. O primeiro aspecto fazia Santo Inácio exclamar ao contemplar o espetáculo de uma noite estrelada: “Oh! Quão vil me parece a terra quando contemplo o céu!” E o segundo fazia São João da Cruz cair arrebatado ante a beleza de uma nascente, de uma montanha, de uma paisagem, de um pôr-do-sol, ou ao escutar “o silvo dos ares nemorosos”. O nada das coisas criadas, contemplado através do dom de ciência, fazia com que São Paulo as estimasse todas como esterco, a fim de ganhar Cristo;340 e a beleza de Deus, refletida na beleza e fragrância das flores, obrigava São Paulo da Cruz a lhes dizer entre transportes de amor: “calai-vos florzinhas, calai-vos...” E este mesmo sentimento é o que dava ao Poverello de Assis aquele sublime sentido de fraternidade universal com todas as coisas saídas das mãos de Deus: o irmão sol, o irmão lobo, a irmã flor... 340.  Fl 3, 8.

257

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Era também o dom de ciência quem dava a Santa Teresa aquela pasmosa facilidade para explicar as coisas de Deus valendo-se de comparações e semelhanças tomadas das coisas criadas. 2) nos guia certeiramente acerca do que temos de crer ou não crer. – As almas nas quais o dom de ciência atua intensamente têm instintivamente o sentido da fé. Sem ter estudado teologia nem possuir erudição de nenhuma classe, se dão conta no ato se uma devoção, uma doutrina, um conselho, uma máxima qualquer, está de acordo e sintoniza com a fé ou está em oposição a ela. Não lhes pergunte as razões que têm para isso, pois não as sabem. Sentem-no assim, como uma força irresistível e uma segurança inquebrantável. É admirável como Santa Teresa, apesar de sua humildade e rendida submissão a seus confessores, nunca pôde aceitar a errônea doutrina de que certos estados elevados de oração convém prescindir da consideração da humanidade adorável de Cristo.341 3) nos faz ver com prontidão e certeza o estado de nossa alma. – Tudo aparece transparente e claro à penetrante introspecção do dom de ciência: “nossos atos interiores, os movimentos secretos de nosso coração, suas qualidades, sua bondade, sua malícia, seus princípios, seus 341.  Eis aqui suas próprias palavras: “... e conquanto nisso me te-

nham contradito e dito que não o entendo, porque são caminhos por onde leva Nosso Senhor e quando as almas já passaram dos princípios, é melhor tratar em coisas da Divindade e fugir das corpóreas, a mim não me farão confessar que é bom caminho.” (Sextas moradas 7,5; cf. Vida c.22, onde explica amplamente seu pensamento). 258

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

motivos, seus fins e intenções, seus efeitos e consequências, seu mérito e seu demérito”342 Com razão dizia Santa Teresa que “em aposento onde entra muito sol, não há teia de aranha escondida”.343 4) nos inspira o modo mais acertado de nos conduzir com o próximo em função da vida eterna. – Neste sentido, o dom de ciência, em seu aspecto prático, deixa sentir sua influência sobre a própria virtude da prudência, de cujo aperfeiçoamento direto se encarrega – como já vimos – o dom de conselho. “Um pregador – escreve o P. Lallemant344 – conhece por este dom o que deve dizer a seus ouvintes e como deve lhes inspirar. Um diretor conhece o estado das almas que dirige, suas necessidades espirituais, os remédios de suas faltas, os obstáculos que se opõem à sua perfeição, o caminho mais curto e seguro para conduzi-las, quando deve consolá-las ou mortificá-las, o que Deus opera nelas e o que devem fazer de sua parte para cooperar com Deus e cumprir seus desígnios. Um superior conhece de que maneira deve governar a seus súditos. Os que participam mais do dom de ciência são os mais esclarecidos em todos seus conhecimentos. Vêem maravilhas na prática da virtude. 342.  P. Lallemant, op. cit., princ. 4 c.4 a.3. 343.  Santa Teresa, Vida 19,2. 344.  Loc. cit.

259

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Descobrem graus de perfeição que são desconhecidos dos outros. Vêem em um relance se as ações são inspiradas por Deus e conformes a seus desígnios; tão logo se desviam um pouco dos caminhos de Deus, percebem-no imediatamente. Assinalam imperfeições onde os outros não as podem reconhecer e não estão sujeitos a se enganar em seus sentimentos nem a se deixar surpreender pelas ilusões de que o mundo está cheio. Se uma alma escrupulosa se dirige a eles, saberão o que é necessário lhe dizer para curar seus escrúpulos. Se hão de dirigir uma exortação a religiosos ou religiosas, lhes acudirão à mente pensamentos conformes às necessidades espirituais destas pessoas religiosas e ao espírito de sua ordem. Se lhes propõem dificuldades de consciência, as resolverão excelentemente. Se pedir-lhes a razão de sua resposta, não os dirão uma só palavra, posto que conhecem tudo isto sem razão, por uma luz superior a todas as razões. Graças a este dom São Vicente Ferrer predicava com o prodigioso êxito que lemos em sua vida. Se abandonava ao Espírito Santo, fosse para preparar os sermões, fosse para pronunciá-los, e todos saiam impressionados. Era fácil ver que o Espírito Santo falava por sua boca. Um dia no qual devia predicar ante um príncipe, pensou que deveria aportar à preparação de seu sermão um maior estudo e diligência humana. O fez assim com extraordinário interesse; mas nem o 260

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

príncipe e nem o resto do auditório ficaram tão satisfeitos com esta pregação tão estudada como a do dia seguinte, que fez, como o fazia ordinariamente, segundo o movimento do Espírito de Deus. Se fez notar a diferença entre esses dois sermões. “É – respondeu – que ontem predicou o frei Vicente, e hoje foi o Espírito Santo.” 5) nos desprende das coisas da terra. –Na realidade isto não é mais do que uma consequência lógica daquele reto julgar das coisas que constitui a nota típica do dom de ciência. “Todas as criaturas são como se não fossem diante de Deus”.345 Por isso deve-se rebaixá-las e transcendê-las para descansar só em Deus. Mas unicamente o dom de ciência dá aos santos essa visão profunda sobre a necessidade do desprendimento absoluto que admiramos, por exemplo, em São João da Cruz. Para uma alma iluminada pelo dom de ciência, a criação é um livro aberto onde descobre sem esforço o nada das criaturas e o todo do Criador. “A alma passa pelas criaturas sem vê-las, para não se deter senão em Cristo... O conjunto de todas as coisas criadas, merece sequer um olhar para aquele que sentiu a Deus, ainda que não seja mais do que uma só vez?”346 É curioso o efeito que produziram em Santa Teresa as joias que lhe mostrou sua amiga dona 345.  Cf. São João da Cruz, Subida I 4,3. 346.  Cf. P. Philipon, 1.c.

261

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Luiza de la Cerda. Eis aqui o texto Teresiano com toda sua inimitável galhardia: “Quando estava com aquela senhora que tenho dito, aconteceu-me, uma vez, sentir-me mal do coração (porque, como já o disse, tenho sofrido muito dele, embora já não sofra), como ela era de muita caridade, me fez tirar, para as ver, joias de ouro e pedras preciosas, que as tinha de grande valor, em especial uma de diamantes avaliada em muito. Ela pensou que me alegraria com isso. Eu estava-me rindo comigo mesma e tendo compaixão de ver o que os homens estimam, recordando-me do que o Senhor nos tem guardado e pensava quão impossível me seria, embora eu a mim mesma me quisesse convencer, ter em conta aquelas coisas, se o Senhor não me tirasse a lembrança de outras. É isto um grande senhorio para a alma, tão grande que não sei se o entenderá senão quem o possuir; é o verdadeiro e natural desapego, que nos vem sem esforço nosso, pois tudo é feito por Deus. É que Sua Majestade mostra estas verdades de tal modo, que ficam tão impressas, que se vê claramente que, por nós mesmos, não poderíamos adquirir isto, desta maneira, em tão breve tempo”.347 6) nos ensina a usar santamente as criaturas. – Este sentimento, complementar do anterior, é outra derivação natural e espontânea do reto 347.  Santa Teresa, Vida 38,4.

262

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

julgar das coisas criadas, próprio do dom de ciência. Porque é certo que o ser das criaturas nada é comparado com o ser de Deus, mas não o é menos que todas as criaturas, que “são migalhas que caíram da mesa de Deus”348, e d’Ele nos falam e a ele nos levam quando sabemos nos utilizar retamente delas. Isto é, cabalmente, o que faz o dom de ciência. Os exemplos são inumeráveis nas vidas dos santos. A contemplação das coisas criadas remontava suas almas a Deus, de quem viam sua marca nas criaturas. Qualquer detalhe insignificante, que passa inadvertido ao comum dos mortais, impressiona fortemente suas almas, levando-as a Deus. 7) nos enche de contrição e arrependimento de nossos erros passados. – É outra consequência natural do reto julgar das criaturas. À luz resplandecente do dom de ciência se descobre sem esforço o nada das criaturas: sua fragilidade, sua vaidade, sua escassa duração, sua impotência para nos fazer felizes, o dano que o apego a elas pode acarretar à alma. E ao recordar outras épocas de sua vida nas quais esteve sujeita com tanta vaidade e miséria, sente no mais íntimo de suas entranhas um vivíssimo arrependimento, que eclode ao exterior em atos intensíssimos de contrição e desprezo de si mesmo. Os patéticos acentos do Miserere brotam espontaneamente de sua alma como uma 348.  São João da Cruz, Subida I 6,3.

263

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

exigência e necessidade psicológica, que lhe alivia e descarrega um pouco o peso que lhe oprime. Por isso corresponde ao dom de ciência a bem-aventurança “dos que choram”, como veremos em seguida.

Tais são, em linhas gerais, os efeitos principais do dom de ciência. Graças a ele a virtude da fé, longe de encontrar obstáculos nas criaturas para remontar-se até Deus, se vale delas como alavanca e ajuda para fazê-lo com mais facilidade. Aperfeiçoada pelos dons de ciência e de entendimento, a virtude da fé alcança uma intensidade vivíssima, que faz a alma pressentir as divinas claridades da visão eterna. 4. bem-aventuranças e frutos derivados Ao dom de ciência corresponde a terceira bem-aventurança evangélica: Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados”(Mt 5,5). Corresponde tanto por parte do mérito, quanto por parte do prêmio. Por parte do mérito (as lágrimas), porque o dom de ciência, enquanto importa uma reta estimação das criaturas em função da vida eterna, impulsiona o homem justo a chorar seus erros passados e falsas esperanças no uso das criaturas. E por parte do prêmio (a consolação), porque, à luz do dom de ciência, estima-se retamente as criaturas e ordenam ao bem divino, do qual se segue a consolação espiritual, que 264

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

começa nesta vida e alcançará sua plenitude na outra.349 Enquanto a outros frutos do Espírito Santo, correspondem ao dom de ciência a certeza especial acerca das verdades sobrenaturais, chamada fides, e certo gosto, deleite e fruição na vontade, que é o gaudium ou gozo espiritual. 5. vícios contrários ao dom de ciência São Tomás, no prólogo à questão relativa aos pecados contra o dom de entendimento, alude à ignorância como vício oposto ao dom de ciência.350 Vejamos de que forma. O dom de ciência , com efeito, é indispensável para desvanecer completamente, por certo instinto divino, a multidão de erros que em matéria de fé e de costumes se nos infiltram continuamente por causa de nossa ignorância e debilidade mental. Não somente entre pessoas incultas, mas mesmo entre teólogos notáveis – apesar da sinceridade de sua fé e do esforço de seu estudo -, correm muitas opiniões e pareceres distintos em matéria de dogmática e moral, que forçosamente têm que ser falsos à exceção de um só, porque uma só é a verdade. Quem nos dará um critério são e certeiro para não declinar da verdade em nenhuma dessas intrincadas questões? Na esfera universal e objetiva 349.  Cf. II-II q.9 a.4c e ad 1. 350.  Cf. II-II p.15 prol.

265

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

não pode haver problema, em virtude do magistério da Igreja, que é critério infalível de verdade (por isso jamais erra quem se atém estritamente a dito magistério infalível). Mas na esfera pessoal e subjetiva, o acerto constante e sem falha alguma é algo que supera as forças humanas, mesmo do melhor dos teólogos. Só o Espírito Santo, pelo dom de ciência, pode nos proporcioná-lo como instinto divino. E assim se dá o caso de pessoas humanamente sem cultura e até analfabetas que assombram aos maiores teólogos pela segurança e profundidade com que penetram as verdades da fé e a facilidade e acerto com que resolvem por instinto os mais intrincados problemas de moral. No entanto, de quantas ilusões padecem nas vias do Senhor os que não foram iluminados pelo dom de ciência! Todos os falsos místicos o são precisamente pela ignorância, contrária a este dom. Esta ignorância pode ser culpável e construir um verdadeiro vício contra este dom. E o pode ser, seja por ocupar voluntariamente nosso espírito em coisas vãs ou curiosas, ou mesmo nas ciências humanas sem a devida moderação (deixando-nos absorver excessivamente por elas e não dando lugar ao estudo da ciência mais importante, que é a da nossa própria salvação ou santificação), seja pela vã presunção, confiando demasiadamente em nossa ciência e nossas próprias luzes, pondo com isso obstáculos 266

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

aos juízos que deveríamos formar com a luz do Espírito Santo. Este abuso da ciência humana é o principal motivo de que abundem mais os verdadeiros místicos entre pessoas simples e ignorantes do que entre os demasiado intelectuais e sábios segundo o mundo. Enquanto não renunciem a sua voluntária cegueira e soberba intelectual, não é possível que cheguem a atuar em suas almas os dons do Espírito Santo. O próprio Cristo nos avisa no Evangelho: “Por aquele tempo, Jesus pronunciou estas palavras: Eu te bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequenos”.351 De maneira que a ignorância, contrária ao dom de ciência – que pode se dar e se dá muitas vezes em grandes sábios segundo o mundo –, é indiretamente voluntária e culpável, constituindo, por essa razão, um verdadeiro vício contra o dom.352

6. meios de fomentar este dom Aparte dos meios gerais para o fomento dos dons em geral (recolhimento, fidelidade à graça, oração, etc.), eis aqui os principais referentes ao dom de ciência: 351.  Mt 11, 25. 352.  Cf. P. I. G. Meneéndez-Reigada, Los dones del Espíritu Santo y la perfección cristiana c.9 p.596-600.

267

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

a) considerar a vaidade das coisas terrenas. – Nunca, de maneira alguma, podemos com nossas pobres “consideraçõezinhas”353 nos aproximarmos da penetrante intuição do dom de ciência sobre a vaidade das coisas criadas; mas sem dúvida podemos fazer algo meditando seriamente nisso com os procedimentos discursivos ao nosso alcance. Deus não nos pede a cada momento mais do que podemos lhe dar; e a quem faz o que pode de sua parte, não lhe nega jamais sua ajuda para avanços ulteriores.354 b) acostumar-se a relacionar a Deus todas as coisas criadas. – É outro procedimento psicológico para se aproximar pouco a pouco do ponto de vista no qual nos colocará definitivamente o dom de ciência. Não descansemos nas criaturas: passemos através delas a Deus. Acaso as belezas criadas não são um pálido reflexo da divina formosura? Esforcemo-nos em descobrir em todas as coisas a marca e o vestígio de Deus, prepa353.  A expressão, de uma força realista insuperável, é de Santa Te-

resa (Vida 15,14).

354.  Pode ajudar neste esforço a leitura de certas obras sobre este

mesmo assunto. O venerável Luis de Granada escreveu páginas admiráveis em várias de suas obras e o frei Diego de Estella compôs seu famoso Tratado de la vanidad del mundo, que não perdeu todavia seu frescor e atualidade. 268

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

rando os caminhos para a ação sobre-humana do Espírito Santo. c) opor-se energicamente ao espírito do mundo. O mundo tem o triste privilégio de ver todas as coisas – desde o ponto de vista sobrenatural – precisamente ao contrário do que são. Não se preocupa mais do que desfrutar das criaturas, pondo nelas sua felicidade, virando completamente as costas para Deus. Não há, por conseguinte, outra atitude mais contrária ao espírito do dom de ciência, que nos faz desprezar as criaturas ou usar delas unicamente por relação a Deus e ordenadas a Ele. Fujamos das reuniões mundanas, onde se lançam e correm como moeda legítima falsas máximas totalmente contrárias ao espírito de Deus. Renunciemos aos espetáculos e diversões tantas vezes saturados ou ao menos influenciados pelo ambiente malsão do mundo. Andemos sempre alerta para não nos deixar surpreender pelos assaltos deste inimigo ardiloso, que trata de apartar nossa vista dos grandes panoramas do mundo sobrenatural. d) ver a mão da Providência no governo do mundo e em todos os acontecimentos prósperos ou adversos de nossa vida. – 269

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

custa muito colocar-se neste ponto de vista, e nunca o conseguiremos totalmente até que atue em nós o dom de ciência, e sobretudo o de sabedoria; mas esforcemonos em fazer o que podemos. É um dogma de fé que Deus cuida com amorosíssima providência de todos nós. É nosso Pai, que sabe muito melhor do que nós o que nos convém e nos governa com infinito amor, mesmo que não acertemos muitas vezes em descobrir seus secretos desígnios no que dispõe ou permite sobre nós, sobre nossos familiares ou sobre o mundo inteiro. e) preocupar-se muito com a pureza de coração. – Este cuidado atrairá a benção de Deus, que não deixará de nos dar o que necessitamos para consegui-la totalmente se formos fiéis à sua graça. Há uma relação muito estreita entre a guarda do coração e o cumprimento exato de todos nossos deveres e as iluminações do alto: “Sou mais sensato do que os anciãos, porque observo os vossos preceitos”.355

355.  Sl 118, 100.

270

 Capítulo XIII 

O dom de Entendimento

O dom de entendimento – o mesmo que o de ciência, mas em outro aspecto – é o encarregado de aperfeiçoar a virtude teologal da fé. Vamos estudá-lo cuidadosamente.356 1.

natureza

O dom de entendimento é um hábito sobrenatural, infundido por Deus com a graça santificante, pelo qual a inteligência do homem, sob a ação do Espírito Santo, se faz apta para uma penetrante intuição das coisas reveladas e também das naturais, em função do fim último sobrenatural.

Examinemos detalhadamente esta definição para conhecer a natureza íntima deste grande dom. 356.  Cf. nossa Teologia de la perfección cristiana (BAC, Madrid 51968)

n. 337-342.

271

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

é um hábito sobrenatural infundido por deus com a graça santificante. – Este é um elemento genérico, comum a todos os dons do Espírito Santo. Não são simples graças atuais transeuntes, senão verdadeiros hábitos infundidos nas potências da alma em estado de graça para auxiliar com facilidade as moções do próprio Espírito Santo. pelo qual a inteligência do homem. – O dom de entendimento reside, efetivamente, no entendimento especulativo, a quem aperfeiçoa – previamente informado pela virtude da fé – para receber conaturalmente a moção do Espírito Santo, que colocará em ato o hábito donal. sob a ação iluminadora do Espírito Santo. – Só o divino Espírito pode pôr em movimento os dons de seu mesmo nome. Sem sua divina moção, os hábitos donais permanecem ociosos, já que o homem é absolutamente incapaz de atuá-los nem sequer com ajuda da graça. São instrumentos diretos e imediatos do Espírito Santo, que se constitui, por isso mesmo, em motor e regra dos atos que deles procedem. Daí provém a modalidade divina dos atos donais (única possível por exigência intrínseca da própria natureza dos dons). O homem não pode fazer outra coisa, com ajuda da graça, a não ser se dispor para receber a moção divina – removendo os obstáculos, permanecendo fiel à graça, implorando humildemente essa atuação santificadora, etc. – e auxiliar livre e 272

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

meritoriamente a moção do divino Espírito quando se produza de fato. se faz apta para uma penetrante intuição. – É o objeto formal do dom de entendimento, que assinala a diferença específica entre ele e a virtude teologal da fé. Porque a virtude da fé proporciona ao entendimento criado o conhecimento das verdades sobrenaturais de uma maneira imperfeita, ao modo humano – que é o próprio e característico das virtudes infusas quando atuam por si mesmas, como já vimos -, enquanto que o dom de entendimento lhe faz apto para a penetração profunda e intuitiva (modo sobre-humano, divino, suprarracional) dessas mesmas verdades reveladas.357 É, simplesmente, a contemplação infusa da qual falam os místicos (Santa Teresa, São João da Cruz, etc.), que consiste em uma simples e profunda intuição da verdade: “simplex intuitus veritatis”.358 O dom de entendimento se distingue, por sua vez, dos outros três dons intelectivos (sabedoria, ciência e conselho) em que sua função própria é a penetração profunda nas verdades da fé no plano da simples apreensão (ou seja, sem emitir juízo sobre elas), enquanto que aos outros dons intelectivos corresponde o reto juízo sobre elas. Este 357.  “O dom de entendimento recai sobre os primeiros princípios do

conhecimento gratuito (verdades reveladas), porém de modo diverso da a fé. Porque à fé pertence a assistência a eles; e ao dom de entendimento, penetrá-los profundamente”(II-II q.8 a.6 ad 2).

358.  Cf. II-II q.180 a.3 ad 1.

273

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

juízo, quando se refere às coisas divinas, pertence ao dom de sabedoria; quando se refere às coisas criadas, é próprio do dom de ciência, e quando se trata da aplicação aos casos concretos e singulares, corresponde ao dom de conselho.359 das coisas reveladas e também das naturais, em função do fim último sobrenatural. – É o objeto material sobre o qual versa ou recai o dom de entendimento. Abarca tudo quanto pertence a Deus, ao homem e a todas as criaturas com sua origem e seu fim. Este objetivo material se estende, pois, a tudo quanto existe; mas primariamente às verdades da fé, e secundariamente a todas as demais coisas que tenham certa ordem e relação com o fim último sobrenatural.360 2. necessidade Por muito que se exercite a fé de modo humano ou discursivo (via ascética), jamais se poderá chegar à sua plena perfeição e desenvolvimento. Para isso é indispensável a influência dos dons de entendimento e de ciência (via mística). A razão é muito simples. O conhecimento humano não é por si só discursivo, por composição e divisão, por análise e síntese, ou por simples intuição da verdade. Desta condição geral do conhecimento humano não escapam as virtudes infusas 359.  Cf. II-II q. 8 a.6. 360.  Cf. II-II q.8 a.3.

274

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

ao funcionar sob o regime da razão e a nosso modo humano (ascética). Mas sendo o objeto primário da fé o próprio Deus, ou seja, a verdade primeira manifestando-se –“veritas prima in dicendo”361 –, que é simplíssima, o modo discursivo, complexo, de conhecê-la não pode ser mais inadequado e imperfeito. A fé é, em si mesma, um hábito intuitivo e não discursivo;362 e por isso as verdades penetrantes da fé não podem ser captadas em toda sua limpeza e perfeição (embora sempre no claro-escuro do mistério) mas por um golpe de vista intuitivo e penetrante do dom de entendimento, ou seja, quando a fé tenha se liberado inteiramente de todos os elementos discursivos que a purificam e se converta em uma fé contemplativa. Então se chega à fé pura, tão insistentemente inculcada por São João da Cruz como único meio para a união de nosso entendimento com Deus. Entende-se por fé pura – escreve sobre isto um autor contemporâneo363 – a adesão do entendimento à verdade revelada, adesão fundada unicamente na autoridade de Deus que revela. Exclui, pois, todo discurso. Desde o momento em que 361.  Pode-se considerar a Deus como verdade primeira de três ma-

neiras: in essendo, ou seja, sua própria deidade, ou essência divina; in cognoscendo, ou seja, sua infinita sabedoria, que não pode se enganar, e in discendo, ou seja, a suma veracidade de Deus, que não pode nos enganar.

362.  Cf. II-II q.2 a.1; De veritate q.14 a.1. 363.  P. Crisógono de Jesus, Compendio de ascética e mística p. 2a .

c.2 a.3 p. 104 (1a ed.).

275

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

entra em jogo a razão, desaparece a fé pura, porque se mescla com ela um elemento alheio à sua natureza. O raciocínio pode preceder e seguir à fé, mas não pode acompanhá-la sem desnaturalizá -la. Quanto mais haja discurso, menos há adesão à verdade pela autoridade de Deus, e, por conseguinte, há menos fé pura. De onde se deduz até a evidência a necessidade da contemplação mística ou infusa (causada pelo dom de entendimento e os outros dons intelectuais) para chegar à fé pura, sem discurso, de que fala São João da Cruz; e, por conseguinte, a necessidade da mística para a perfeição cristã, sem que seja suficiente a ascética.364 3. efeitos São admiráveis os efeitos que produz na alma a atuação do dom de entendimento, todos eles aperfeiçoando a virtude da fé até o grau de incrível intensidade e certeza que chegou a alcançar nos santos. Porque lhes manifesta as verdades reveladas com tal clareza, que, sem lhes desvelar totalmente o mistério, lhes dá uma segurança inquebrantável da verdade de nossa fé, até o ponto de que não lhes cabe na cabeça que possa haver incrédulos ou indecisos em matéria de fé. Isto se vê experimentalmente nas almas místicas, que 364.  Já explicamos amplamente tudo isso em nossa Teologia de la

perfección cristiana (6a ed., n.181ss), para onde remetemos ao leitor que queira maior informação sobre este ponto importantíssimo. 276

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

têm desenvolvido este dom em grau eminente: estariam dispostas a crer o contrário do que veem com seus próprios olhos antes do que duvidar no mais mínimo de alguma das verdades da fé. Este é um dom utilíssimo aos teólogos – São Tomás o possuía em grau extraordinário – para fazer-lhes penetrar no mais fundo das verdades reveladas e deduzir depois, pelo discurso teológico, as conclusões nelas implícitas. O próprio Doutor Angélico assinala seis modos diferentes com que o dom de entendimento nos faz penetrar no mais fundo e misterioso das verdades da fé.365 1) nos faz ver a substância das coisas ocultas sob os acidentes. – Em virtude desse instinto divino, os místicos percebem a divina realidade oculta sob os véus eucarísticos. Daí sua obsessão pela Eucaristia que chega a constituir neles um verdadeiro martírio de fome e sede. Em suas visitas ao sacrário não rezam, não meditam, não discorrem; se limitam a contemplar ao divino Prisioneiro do amor com um olhar simples e penetrante, que lhes enche a alma de infinita suavidade e paz: “Lhe vejo e me vê”, como disse ao santo Cura d’Ars aquele simples aldeão possuído pelo divino Espírito.

365.  Cf. II-II q.18 a.1.

277

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

2) nos desvela o sentido oculto das divinas Escrituras. – é o que realizou o Senhor com seus discípulos de Emaús quando “lhes abriu a inteligência para que entendessem as Escrituras”.366 Todos os místicos experimentaram este fenômeno. Sem discursos, sem estudos, sem ajuda alguma de nenhum elemento humano, o espírito Santo lhes descobre imediatamente e com uma intensidade vivíssima o sentido profundo de alguma sentença da Escritura que lhes submerge em um abismo de Luz. Ali costumam encontrar seu lema, que dá sentido e orientação a toda sua vida: o “cantarei eternamente as misericórdias do Senhor”, de Santa Teresa;367 o “se alguém é pequenino, que venha a mim”, de Santa Teresinha;368 o “louvor e glória”, de Santa Elisabete da Trindade...369 Por isso se lhes caem das mãos os livros escritos pelos homens e acabam por não encontrar gosto além das palavras inspiradas, sobretudo nas que brotaram dos lábios do Verbo encarnado.370 3) nos manifesta o significado misterioso das semelhanças e figuras. – E assim São Paulo viu a Cristo na pedra que manava água viva 366.  Lc 24, 45. 367.  Sl 88, 1. 368.  Pv 9, 4. 369.  Ef 1, 6. 370.  “Eu nada encontro nos livros, a não ser no Evangelhos. Esse li-

vro me basta” (Santa Teresinha do Menino Jesus: Novíssima Verba, 15 de maio). 278

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

para apagar a sede dos israelitas no deserto: “petra autem erat Christus”.371 E São João da Cruz nos revela, com pasmosa intuição mística, o sentido moral, anagógico e parabólico de inúmeras semelhanças e figuras do Antigo Testamento que alcançam sua plena realização no Novo, ou na vida misteriosa da graça. 4) nos desvela sob as aparências sensíveis as realidades espirituais. – A liturgia da Igreja está cheia de simbolismos sublimes que escapam em sua maior parte às almas superficiais. Os santos, no entanto, experimentam grande veneração e respeito à “menor cerimônia da Igreja”,372 que lhes inunda a alma de devoção e ternura. É que o dom de entendimento lhes faz ver, através daqueles simbolismos e aparências sensíveis, as sublimes realidades que encerram. 5) nos faz contemplar os efeitos contidos nas causas. – “Há outros aspecto do dom de entendimento – escreve o P. Philipon373 – particularmente sensível nos teólogos contemplativos. Depois do duro labor da ciência humana, tudo se ilumina de pronto sob o impulso do Espírito Santo. Um mundo novo aparece em um princípio ou causa universal: Cristo-Sacerdote, único 371.  1Cor 10, 4. 372.  “... contra a menor cerimônia da Igreja que alguém visse que

eu ia, por ela ou por qualquer verdade da Sagrada Escritura, eu me ofereceria a morrer mil mortes”(Santa Teresa, Vida 33,5).

373.  P. Philipon, La doctrina espiritual de sor Isabel de la Trinidad

c. 8 n.7.

279

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

mediador do céu e da terra; ou o mistério da Virgem co-rredentora, levando espiritualmente em seu seio a todos os membros do Corpo místico; ou, por fim, o mistério da identificação dos inumeráveis atributos de Deus em sua soberana simplicidade e a conciliação da unidade de essência com a trindade de pessoas em uma deidade que ultrapassa infinitamente as investigações mais secretas de toda visão criada. Outras tantas verdades que aprofundam o dom de entendimento sem esforço, saborosamente, no gozo beatificante de uma “vida eterna começada na terra” à luz mesma de Deus”. 6) nos faz ver, finalmente, as causas através dos efeitos. – “Em sentido inverso –continua o mesmo autor –, o dom de entendimento revela a Deus e a sua onipotente causalidade em seus efeitos, sem recorrer aos longos procedimentos discursivos do pensamento humano abandonado a suas próprias forças, mas por uma simples visão comparativa e por intuição “à maneira de Deus”. Nos indícios mais imperceptíveis, nos menores acontecimentos de sua vida, uma alma atenta ao Espírito Santo descobre de um só traço todo o plano da Providência sobre ela. Sem raciocínio dialético sobre as causas, a simples vista dos efeitos da justiça ou da misericórdia de Deus lhe faz entrever todo o mistério da predestinação divina, o “excessivo amor”374 374.  Ef 2,4.

280

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

com que persegue às almas para uni-las à beatificante Trindade. Através de tudo, Deus conduz a Deus”.

Tais são os principais efeitos que a atuação do dom de entendimento produz na alma. Não se rompem jamais completamente nesta vida os véus do mistério – “agora vemos como por um espelho, confusamente”375 –; Mas suas profundidades insondáveis são penetradas pela alma com uma vivência tão clara e entranhável, que se aproxima muito à visão intuitiva. É São Tomás, modelo de ponderação e serenidade em tudo quanto diz, quem escreveu estas assombrosas palavras: “Nesta mesma vida, purificado o olho do espírito pelo dom de entendimento, pode-se ver a Deus em certo modo”.376 Ao chegar a estas alturas, a influência da fé se estende a todos os movimentos da alma, iluminando todos seus passos e fazendo-a ver todas as coisas através do prisma sobrenatural. Estas almas parece que perdem o instinto do humano para se conduzirem em tudo pelo instinto do divino. Sua maneira de ser, de pensar, de falar, de reagir ante os menores acontecimentos da vida própria ou alheia, desconcertam ao mundo, incapaz de compreendê-las. Pode-se dizer que padecem de 375.  1Cor 13, 12. 376.  “In hac etiam vita, purgato óculo per donum intellectus, Deus

quodmmodo videri potest” (I-II q.69 a.2 ad 3). 281

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

estrabismo intelectual para ver todas as coisas ao contrário de como as vê o mundo. Em realidade, a visão torcida é a deste último. Aqueles tiveram a felicidade inefável de que o Espírito Santo, pelo dom de entendimento, lhes dera o verdadeiro sentido de Cristo – “Nos autem sensum Christi habemus”377 –­, que lhes faz ver todas as coisas através do prisma da fé: “O justo vive da fé”.378 4. bem-aventuranças e frutos que derivam deste dom Ao dom de entendimento se refere a sexta bemaventurança: a dos limpos de coração.379 Nesta bem-aventurança, como nas demais, se indicam duas coisas: uma, a modo de disposição ou de mérito (a limpeza do coração), e outra, a modo de prêmio (o ver a Deus); e nos dois sentidos pertence ao dom de entendimento. Porque há duas classes de limpeza: a do coração, pela qual de expelem todos os pecados e afetos desordenados, realizada pelas virtudes e dons pertencentes à parte apetitiva; e a da mente, depurando-a dos fantasmas corporais e dos erros contra a fé, e esta é própria do dom de entendimento. E enquanto à visão de Deus é também dupla: uma, perfeita, pela qual se vê claramente a própria essência de 377.  1Cor 2, 16. 378.  Rm 1, 17. 379.  Mt 5, 8.

282

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Deus, e esta é própria do céu; e outra, imperfeita, que é própria do dom de entendimento, pela qual, ainda que não vejamos direta e claramente que coisa seja Deus, vemos que coisa não é; e quanto mais perfeitamente conhecemos a Deus nesta vida, tanto melhor entendemos que excede tudo quanto o entendimento pode compreender.380 Enquanto aos frutos do Espírito Santo – que são atos de virtudes procedentes dos dons -, pertencem ao dom de entendimento, como fruto próprio, a fides, ou seja, a certeza inquebrantável da fé; e, como fruto último e perfeito, o gaudium (gozo espiritual), que reside na vontade.381 5. vícios contrários São Tomás dedica uma questão inteira ao estudo destes vícios.382 São principalmente dois: a cegueira espiritual e o embotamento do senso espiritual. A primeira é a privação total da visão (cegueira); a segunda é uma debilitação notável da mesma (miopia). E as duas procedem dos pecados carnais (luxúria e gula), enquanto não haja nada que impeça tantos voos do entendimento – ainda naturalmente falando – como a veemente aplicação às coisas corporais que lhe são contrárias. Por 380.  Cf. II-II q.8 a.7. 381.  Cf. II-II q. 8 a.8. 382.  Cf. II-II q.15.

283

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

isso a luxúria – que leva consigo uma mais forte aplicação ao carnal – produz a cegueira espiritual, que exclui quase por completo o conhecimento e apreço dos bens espirituais; e a gula produz o embotamento do senso espiritual, que debilita o homem para esse conhecimento e apreço, de maneira semelhante a um objeto agudo e pontudo – um prego por exemplo – não pode penetrar com facilidade na parede se tiver a ponta obtusa.383 Esta cegueira da mente – escreve um autor contemporâneo384 – é a que padecem todas as almas tíbias; porque têm em si o dom de entendimento; mas, engolfada sua mente nas coisas daqui de baixo, faltas de recolhimento interior e espírito de oração, derramadas continuamente pelos canos dos sentidos, sem uma consideração atenta e constante das verdades divinas, não chegam jamais a descobrir as claridades excelsas que em sua obscuridade encerram. Por isso as vemos frequentemente tão enganadas ao falar de coisas espirituais, das finezas do amor divino, dos primores da vida mística, das alturas da santidade, que talvez cifram em algumas obras externas cobertas com a sarna de suas visões humanas, tendo por exagero e excentricidade as delicadezas que o Espírito Santo pede às almas. 383.  Cf II-II q.15 a.3. 384.  P. I. G. Menéndez-Reigada, op. cit.,p 593-594.

284

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Estes são os que querem ir pelo caminho das vacas, como se diz vulgarmente; bem afincados na terra, para que o Espírito Santo não possa levantá-los pelos ares com seu sopro divino; entretidos em fazer montinhos de areia, com os quais pretendem escalar o céu. Padecem essa cegueira espiritual, que lhes impede de ver a santidade infinita de Deus, as maravilhas que sua graça opera nas almas, os heroísmos de abnegação que pede para corresponder a seu amor imenso, as loucuras de amor por aquele a quem o amor conduziu à loucura da cruz. Dos pecados veniais fazem pouco, e só percebem os mais notáveis, omitindo-se em relação às imperfeições. São cegos, porque não abrem mão dessa lâmpada que ilumina um lugar tenebroso385, e muitas vezes com presunção pretendem guiar a outros cegos.386 Quem padece, pois, desta cegueira ou miopia em sua vista interior, que lhe impede de penetrar as coisas da fé até o mais mínimo, não carece de culpa, pela negligência e descuido com que as busca, pelo fastio que lhe causam as coisas espirituais, amando mais as que lhes entram pelos sentidos.

385.  2Pd 1, 19. 386.  Mt 15, 14.

285

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

6. meios de fomentar este dom Como já dissemos repetidas vezes, a atuação dos dons do Espírito Santo depende inteiramente do próprio divino Espírito. Mas a alma pode fazer muito de sua parte dispondo-se, com ajuda da graça, para essa divina atuação.387 Eis aqui os principais meios: a) avivar a fé, com ajuda da graça ordinária. – É sabido que as virtudes infusas se aperfeiçoam e desenvolvem com a prática cada vez mais intensa das mesmas. E é verdade que, sem sair de sua atuação ao modo humano (via ascética), não poderão jamais alcançar sua plena perfeição e desenvolvimento. Fazer tudo quanto seja de nossa parte no que se refere os procedimentos ascéticos ao nosso alcance é a disposição excelente para que o Espírito Santo venha a aperfeiçoar as virtudes infusas com os dons. É de fato que, segundo sua providência ordinária, Deus dá suas graças a quem melhor se dispõe para recebê-las.388 387.  “...embora nesta obra que faz o Senhor não possamos fazer

nada, podemos fazer muito, dispondo-nos para que Sua Majestade nos faça esta mercê.”(Santa Teresa, Moradas quintas 2,1). Fala a Santa da oração contemplativa de união, efeito dos dons de entendimento e sabedoria.

388.  O diz maravilhosamente de muitas maneiras Santa Teresa de

Jesus: “como não falhe por não vos terdes disposto, não tenhais medo que se perca o vosso trabalho”(Camino, 18,3). “Que bela disposição esta (o exercício das virtudes) para que lhes faça toda a mercê.”(Moradas terceras 1,5) Oh! valha-me Deus! que palavras tão verdadeiras, 286

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

b) perfeita pureza de alma e corpo.- Ao dom de entendimento, como acabamos de ver, corresponde a sexta bem-aventurança, que se refere aos “limpos de coração”. Só com a perfeita limpeza de alma e corpo a alma se faz capaz de ver a Deus: nesta vida, no claro-escuro da fé iluminada profundamente pelo dom de entendimento, e na outra, com a clara visão da glória. A impureza é incompatível com ambas as coisas. c) recolhimento interior. – O Espírito Santo é amigo do recolhimento e da solidão. Somente ali fala no silêncio das almas: “As levarei à solidão e lhes falarei ao coração”.389 A alma amiga da dissipação e do balbucio não perceberá jamais a voz de Deus em seu interior. É preciso esvaziar-se de todas as coisas criadas, retirarse à cela do coração para viver ali com o divino Hóspede até conseguir gradualmente não perder nunca a presença de Deus mesmo em meio dos afazeres mais absorventes. Quando a alma tenha feito de sua parte tudo quanto possa para se recolher e se isolar de tudo o que não é necessário, o Espírito Santo fará o demais. e como as entende a alma, que nesta oração o vê por si mesma! E como o entenderíamos todas, se não fosse por nossa culpa...! Mas, como nós faltamos em nos dispor ... não nos vemos neste espelho que contemplamos, onde está esculpida a nossa imagem”(Moradas séptimas 2,8) 389.  Os 2, 14.

287

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

d) fidelidade à graça. – A alma deve estar sempre atenta para não negar ao Espírito Santo qualquer sacrifício que lhe peça: “Se hoje ouvireis sua voz, não endureçais vossos corações”.390 Não somente deve evitar qualquer falta plenamente voluntária, que, por pequena que fosse, contristaria ao Espírito Santo, segundo a misteriosa expressão de São Paulo: “Não contristeis o Espírito Santo de Deus”,391 mas deve cooperar positivamente com todas suas divinas moções até poder dizer com Cristo: “Faço sempre o que é do seu agrado”.392 Não importa que os sacrifícios que nos pede muitas vezes pareçam superar as nossas forças. Com a graça de Deus, tudo se pode – tudo posso naquele que me conforta”393 – e sempre nos resta o recurso à oração para pedir ao Senhor antecipadamente isto mesmo que quer que lhe demos: “Dai-me, Senhor, o que mandas e manda-me o que quiseres”.394 Em todo caso, para evitar inquietações e tormentos nesta fidelidade positiva à graça, contemos sempre com o controle e os conselhos de um sábio e experimentado diretor espiritual.

390.  Sl 94, 8. 391.  Ef 4, 30. 392.  Jo 8, 29. 393.  Fl 4, 13. 394.  Santo Agostinho, Confissões 1.10 c.29.

288

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

e) invocar ao espírito santo. – Porém nenhum destes meios poderemos praticar sem a ajuda da graça proveniente do próprio Espírito Santo. Por isso devemos lhe invocar com frequência e com o máximo fervor possível, recordando-lhe a nosso Senhor sua promessa de no-lo enviar.395 A sequência da festa de Pentecostes (“Veni Sancte Spiritus”), o hino de terça (“Veni Creatur Spiritu”) e a oração litúrgica desta festa (“Deus, qui corda fidelium...”) deveriam ser, depois do Pai-nosso e Ave-Maria, as orações prediletas das almas interiores. Repitamo-las muitas vezes até obter aquele recta sapere que nos há de dar o Espírito Santo. E, imitando os apóstolos quando se retiraram ao cenáculo para esperar a vinda do Paráclito, associemos a nossas súplicas as do Coração Imaculado de Maria – “Cum Maria matre Iesu”396 –, a Virgem fidelíssima397 e celestial esposa do Espírito Santo.

395.  Jo 14, 16-17. 396.  At 1, 14. 397.  A preciosa invocação da litania da virgem: Virgo Fidelis, ora pro

nobis, deveria ser uma das jaculatórias prediletas das almas sedentas de Deus. O divino Espírito se comunicará a eles na medida de sua fidelidade à graça; e a esta fidelidade devemos obter por meio de Maria, Mediadora universal de todas as graças por vontade do próprio Deus. 289

 Capítulo XIV 

O dom de Sabedoria

O dom encarregado de levar a sua última perfeição a virtude da caridade é o de sabedoria. Sendo a caridade a mais perfeita e excelente de todas as virtudes, já se compreende que o dom de sabedoria será, por sua vez, o mais perfeito e excelente de todos os dons. Vamos estudá-lo com toda a atenção que merece.398 1.

natureza

O dom de sabedoria é um hábito sobrenatural, inseparável da caridade, pelo qual julgamos retamente de Deus e das coisas divinas por suas últimas e altíssimas causas sob o instinto especial do Espírito Santo, que nos faz saboreá-las por certa conaturalidade e simpatia. 398.  Cf. nossa Teología de la perfección cristiana (BAC, Madrid

1968) n. 368-373.

291

5

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Expliquemos detalhadamente a definição para nos darmos conta exata da verdadeira natureza deste grande dom. é um hábito sobrenatural, ou seja, infundido por Deus na alma juntamente com a graça e as virtudes infusas, como todos os demais dons. inseparável da caridade.- É precisamente a virtude que vem a aperfeiçoar, dando-lhe uma modalidade divina, da qual carece submetida ao regime da razão humana, mesmo quando iluminada pela fé. Por sua conexão com a caridade, possuem o dom de sabedoria (enquanto hábito) todas as almas em estado de graça e é incompatível com o pecado mortal. O mesmo ocorre com os demais dons. pelo qual julgamos retamente. – Nisto, entre outras coisas, se distingue do dom de entendimento. O próprio deste último – como já vimos – é uma penetrante e profunda intuição das verdades da fé no plano da simples apreensão, sem emitir juízo sobre elas. O juízo é emitido por outros dons intelectivos na seguinte forma: acerca das coisas criadas, o dom de ciência; e enquanto à aplicação concreta a nossas ações, o dom de conselho. Enquanto que supõe um juízo, o dom de sabedoria reside no entendimento como em seu sujeito próprio; mas como o juízo, por conatura292

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

lidade com as coisas divinas, supõe necessariamente a caridade, o dom de sabedoria tem sua raiz causal na caridade, que reside na vontade. E não se trata de uma sabedoria puramente especulativa, senão também prática, já que ao dom de sabedoria pertence, em primeiro lugar, a contemplação do divino, que é como a visão dos princípios; e em segundo lugar, dirigir os atos humanos segundo razões divinas. Em virtude desta suprema direção da sabedoria por razões divinas, a amargura dos atos humanos se converte em doçura, e o trabalho em descanso.399

de deus. – Esta diferença é própria do dom de sabedoria. Os demais dons percebem, julgam ou atuam sobre coisas distintas de Deus. O dom de sabedoria, por sua vez, recai primária e principalmente sobre o próprio Deus, do qual nos dá conhecimento saboroso e experimental, que enche a alma de indizível suavidade e doçura. Precisamente em virtude desta inefável experiência de Deus, a alma julga todas as demais coisas que a Ele pertencem pelas razões mais altas e supremas, ou seja, por razões divinas; porque, como explica São Tomás, quem conhece e saboreia a causa altíssima por excelência, que é o próprio Deus, está capacitado para julgar todas as coisas por suas próprias razões divinas.400 Voltaremos sobre isso ao assinalar os efeitos que produz na alma este dom. 399.  Cf. II-II q.45 a.2; a.3c e ad 3. 400.  Cf. II-II q. 45 a.1.

293

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

e das coisas divinas. – Propriamente sobre as coisas divinas recai o dom de sabedoria, mas isto não é obstáculo para que seu juízo se estenda também às coisas criadas, descobrindo nelas suas últimas causas e razões que as entroncam e relacionam com Deus no conjunto maravilhoso da criação. É como uma visão desde a eternidade que abarca tudo o que é criado com uma visão estruturadora, relacionando-o com Deus em sua mais alta e profunda significação por suas razões divinas. Mesmo as coisas criadas são contempladas pelo dom de sabedoria divinamente. Por aqui parece claro que o objeto formal ou primário do dom de sabedoria contém o objeto formal ou primário e material da fé; porque a fé visa primariamente a Deus e secundariamente às outras verdades reveladas. Mas se diferencia dela no que a fé se limita a crer, enquanto que o dom de sabedoria experimenta e saboreia o que a fé crê.401

por suas últimas e altíssimas causas. – Isto é próprio e característico de toda verdadeira sabedoria. Há várias classes de sabedoria, às quais êconvêm recordar aqui. 401.  Santa Teresa fala, nas Sétimas moradas, da sublime experiência

trinitária da alma que chega aos cumes da união mística com Deus – efeito da atuação intensíssima do dom de sabedoria -, escreve: “Oh! valha-me Deus! Quão diferente coisa é ouvir estas palavras e crer nelas, ou entender por este modo quão verdadeiras são!”(Moradas séptimas, 1,7). 294

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Sábio, em geral, é aquele que conhece as coisas por suas últimas e mais altas causas. Antes de chegar a essas alturas há diversos graus de conhecimento, tanto na ordem natural quanto na ordem sobrenatural. E assim: a) O que contempla uma coisa qualquer sem conhecer suas causas, tem dela um conhecimento vulgar ou superficial (p. ex., o aldeão que contempla um eclipse sem saber a que se deve aquilo). b) O que a contempla conhecendo e apontando suas causas próximas, tem um conhecimento científico (p.ex., o astrônomo ante o eclipse). c) O que pode reduzir seus conhecimentos aos últimos princípios do ser natural, possui a sabedoria filosófica, ou meramente natural, que recebe o nome de metafísica. d) O que, guiado pelas luzes da fé, esquadrinha com sua razão natural os dados revelados para lhes arrancar suas virtualidades intrínsecas e deduzir novas conclusões, possui a máxima sabedoria natural que se pode alcançar nesta vida (a teologia), entroncada, já, radicalmente, com a ordem sobrenatural.402 402.  É sabido que o hábito da teologia é entitativamente natural,

porque procede do discurso natural da razão examinando os dados da fé e extraindo-lhes duas virtualidades intrínsecas, que são as conclusões teológicas. Mas radicalmente – ou seja, em sua raiz – é ou se pode chamá-la sobrenatural, enquanto que parte dos princípios da fé e recebe sua influência iluminadora ao longo do discurso ou raciocínio teológico (cf. I q.1 a.6c e ad 3). 295

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

e) E o que, pressuposta a fé e a graça, julga por instinto divino as coisas divinas e humanas por suas últimas e altíssimas causas – ou seja, por suas razões divinas –, possui a autêntica sabedoria sobrenatural, que é, precisamente, a que proporciona à alma o dom de sabedoria em plena atuação. Por cima deste conhecimento não há nenhum outro nesta vida. Só lhe superam a visão beatífica e a sabedoria incriada de Deus, que é o Verbo divino.

Fica claro que o conhecimento que proporciona à alma a atuação intensa do dom de sabedoria é incomparavelmente superior ao de todas as ciências, incluindo a própria sagrada teologia, que tem já algo de divina. Por isso se dá, por vezes, o caso de uma alma simplória e ignorante, que carece em absoluto de conhecimentos teológicos adquiridos pelo estudo, e que, no entanto, possui, pelo dom de sabedoria, um conhecimento profundíssimo das coisas divinas que pasma e maravilha aos mais eminentes teólogos, como ocorreu com Santa Teresa e outras muitas almas que não tinham “letras”, ou seja, estudo científico nenhum. sob o instinto especial do espírito santo. – é próprio e característico dos dons do próprio divino Espírito, que adquire seu expoente máximo no dom de sabedoria pelas alturas de seu objeto: o próprio Deus e as coisas divinas. O homem, sob a ação dos dons, não procede pelo lento discurso 296

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

e raciocínio, senão de uma maneira rápida e intuitiva, por um instinto especial, que procede do Espírito Santo mesmo. Não lhes perguntemos aos místicos experimentais as razões que tiveram para agir assim ou para pensar ou dizer tal ou qual coisa, pois não o sabem. Sentiram-no assim com uma clarividência e segurança infinitamente superiores a todos os discursos e raciocínios humanos. que nos faz saboreá-las por certa co-naturalidade e simpatia. – é outra nota típica dos dons, que alcança sua máxima perfeição no dom de sabedoria, que é em si mesmo um conhecimento saboroso e experimental de Deus e das coisas divinas. Aqui a palavra sabedoria significa, ao mesmo tempo, saber e sabor. As almas que a experimentam compreendem muito bem o sentido daquelas palavras do salmo: “Provai e vede o quão suave é o Senhor”(Sl 33,9). Experimentam deleites divinos que as empurram ao êxtase e lhes fazem pressentir um pouco os gozos inefáveis da eternidade bem-aventurada. 2. importância e necessidade O dom de sabedoria é absolutamente necessário para que a virtude da caridade possa se desenvolver em toda sua plenitude e perfeição. Precisamente por ser a virtude mais excelente, a mais perfeita e divina de todas, está reclamando e exigindo, por sua própria natureza, a regulação divina do dom de sabedoria. Abandonada a si mesma, 297

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

ou seja, manejada pelo homem no estado ascético, tem que se submeter à regulação humana, ao pobre modo humano que forçosamente lhe imprimirá o homem. Pois bem, esta atmosfera humana lhe torna um pouco menos que irrespirável; a afoga e asfixia, impedindo-lhe de voar às alturas. É uma virtude divina que tem asas para voar até o céu, e a obriga a se mover rasteira ao solo: por razões humanas, até certo ponto, sem se comprometer muito, com grandíssima prudência, com mesquinhez raquítica, etc. Unicamente quando começa a receber a influência do dom de sabedoria, que lhe proporciona a atmosfera e modalidade divina que ela necessita por sua própria natureza de virtude teologal perfeitíssima, começa a caridade, por assim dizer, a respirar livremente. E, por uma consequência natural e inevitável, começa a crescer e se desenvolver rapidamente, levando consigo a alma, como que voando, pelas regiões da vida mística até o cume da perfeição, que jamais poderia alcançar submetida à atmosfera e regulação humana no estado ascético. Desta sublime doutrina se deduzem como corolários inevitáveis duas coisas importantíssimas. Primeira: que o estado místico (ou seja, o regime habitual ou predominante dos dons do Espírito Santo) não só não é algo anormal e extraordinário no desenvolvimento da vida cristã, senão que é, precisamente, a atmosfera normal que exige e reclama a graça (forma divina em si mesma) para 298

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

que possa desenvolver todas suas virtualidades divinas através de seus princípios operativos (virtudes e dons) , principalmente as virtudes teologais (fé, esperança e caridade), que são absolutamente divinas em si mesmas. O místico deveria ser precisamente o normal em todo cristão, e o é, de fato, em todo cristão perfeito. E segunda: que uma atuação dos dons do Espírito Santo ao modo humano, ademais de impossível e absurda, seria completamente inútil para aperfeiçoar as virtudes infusas, sobretudo as teologais; porque, sendo estas últimas superiores aos próprios dons por sua própria natureza,403 a única perfeição que podem receber deles é a modalidade divina (própria e exclusiva dos dons), jamais uma modalidade humana, que já tem as virtudes teologais abandonadas a si mesmas no estado ascético, ou seja, submetidas à regulação humana, que já tem as virtudes teologais abandonadas em si mesmas no estado ascético, ou seja, submetidas à regulação humana da pobre alma imperfeitamente iluminada pela luz obscura da fé. 403.  Cf. I-II q.68 a.8. As virtudes teologais têm por objeto direto e

imediato ao próprio Deus (crido, esperado ou amado), enquanto que os dons recaem diretamente sobre as virtudes infusas (ou seja, algo muito distinto de Deus), para aperfeiçoá-las. Logo, é evidente que as virtudes teologais são, por sua própria natureza, superiores aos próprios dons. Mas, em contrapartida, estes são superiores a todas as virtudes infusas – incluindo as teologais – por sua modalidade divina (enquanto instrumentos diretos e imediatos do Espírito Santo, não da alma em graça, como as virtudes). Mais brevemente: as virtudes teologais são superiores aos dons por sua própria natureza teologal, mas os dons superam a eles por sua modalidade divina. 299

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

3. efeitos Por sua própria elevação e grandeza e pelo sublime da virtude que deve aperfeiçoar diretamente, os efeitos que produz na alma a atuação do dom de sabedoria são verdadeiramente admiráveis. Eis aqui alguns dos mais importantes: 1. dá aos santos o senso do divino, de eternidade, com que julgam todas as coisas. – é o mais impressionante dos efeitos do dom de sabedoria que aparecem no exterior. Poderia se dizer que os santos perderam por completo o instinto do humano e que foi substituído pelo instinto do divino, com que vêem e julgam todas as coisas. Vêem tudo das alturas, desde o ponto de vista de Deus: os pequenos episódios de sua vida diária da mesma maneira como os grandes acontecimentos internacionais. Em todas as coisas vêem de forma claríssima a mão de Deus, que dispõe ou permite certas coisas para sacar bens maiores. Nunca se concentram nas causas segundas imediatas; passam por elas, sem se deter um só instante, até a causa primeira, que rege e governa tudo desde o alto. Teriam que fazer a si mesmos grande violência para descender aos pontos de vista com que a mesquinhez humana julga as coisas. Um insulto, uma bofetada, uma calunia que se lance contra eles..., e no ato se remontam a Deus, que o quer e o permite para lhes exercitar na paciência e aumentar sua glória. Não se detêm 300

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

um só instante na causa segunda (a maldade dos homens); se remontam em seguida a Deus e julgam o feito desde aquelas alturas divinas. Não chama desgraça ao que os homens costumam chamar (enfermidades, perseguição, morte), mas unicamente ao que o é em realidade, por sê-lo diante de Deus (o pecado, a tibieza, a infidelidade à graça). Não compreendem que o mundo possa considerar como riquezas e jóias a uns quantos cristaizinhos que brilham um pouco mais do que os demais (Santa Teresa). Vêem de maneira claríssima que não há outro tesouro verdadeiro além de Deus ou as coisas que nos levam a Ele. “De que me vale isto para a eternidade, para glorificar a Deus?”, costumava se perguntar São Luis Gonzaga; eis aqui o único critério diferencial dos santos para julgar o valor das coisas. Dentre outros muitos santos, este dom de sabedoria brilhou em grau eminente em São Tomás de Aquino. É admirável o instinto sobrenatural com que descobre em todas as coisas o aspecto divino que as relaciona e une com Deus. Um acerto tão grande, tão rotundo, tão universal em tudo quanto toca, não pode ser explicado suficientemente por uma sabedoria humana, por mais elevada que se suponha que ela seja; é preciso pensar no instinto divino do dom de sabedoria.404 404.  Cf. P. Gardeil, O.P., Los dones del Espíritu Santo en los santos

301

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Em nossos dias é admirável o caso de Santa Elisabete da Trindade. Segundo o P. Philipon – que estudou tão a fundo as coisas da célebre carmelita de Dijon -, o dom de sabedoria é o mais característico de sua doutrina mística e de sua vida.405 Arrebatada sua alma por uma sublime vocação contemplativa até o seio mesmo da Trindade Beatíssima, nela estabeleceu sua morada permanente, e desde aquelas divinas alturas contemplava e julgava todas as coisas e acontecimentos humanos. As maiores provas, sofrimentos e contrariedades não acertavam em perturbar um só momento a paz inefável de sua alma: tudo resvalava sobre ela, deixando-a “imóvel e tranquila, como se sua alma estivesse já na eternidade”... 2. faz viver de um modo inteiramente divino os mistérios de nossa santa fé. – Escutemos ao padre Philipon explicando admiravelmente estas coisas:406 “O dom de sabedoria é o dom real, o que faz entrar mais profundamente às almas na participação do modo deiforme da ciência divina. É impossível elevar-se mais alto fora da visão beatífica, que segue sendo sua regra superior. É a visão do “Verbo espirado ao Amor” comudominicos (Vergara 1907) c.8. 405.  Cf. P. Philipon, La doctrina espiritual de sor Isabel de la Trini-

dad c.8 n.8.

406.  P. Philipon, ibid.

302

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

nicada a uma alma que julga todas as coisas por suas causas mais altas, mais divinas, pelas razões supremas, ‘à maneira de Deus’. Introduzida pela caridade na intimidade das pessoas divinas, sob o impulso do Espírito de amor, contempla todas as coisas desde esse centro, ponto indivisível de onde se apresentam a ela como ao próprio Deus: os atributos divinos, a criação, a redenção, a glória, a ordem hipostática, os mais pequenos acontecimentos do mundo. Na medida em que é possível a uma simples criatura, sua visão tende a se identificar com o ângulo de visão que Deus tem de si mesmo e de todo o universo. É a contemplação ao modo deiforme, à luz da experiência da deidade, da qual a alma experimenta em si mesma a inefável doçura: per quandam experientiam dulcedinis.407 Para compreender isto é preciso recordar que Deus não pode ver as coisas mais do que em si mesmo: em sua causalidade. Não conhece as criaturas diretamente em si mesmas, nem no movimento da causas contingentes e temporais que regulam sua atividade. Ele as contempla em seu Verbo, sob um modo eterno, apreciando todos os acontecimentos de sua providência à luz de sua essência e de sua glória. A alma, feita participante pelo dom de sabedoria deste modo divino de conhecer, penetra 407.  I-II q.112 a.5.

303

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

com visão escrutinadora nas profundezas insondáveis da divindade, através das quais contempla todas as coisas coloridas pelo divino. Poderia se dizer que São Paulo pensava nestas almas quando escreveu aquelas assombrosas palavras: ‘porque o Espírito penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus’”.408 3. faz viver em sociedade com as três divinas pessoas, mediante uma participação inefável de sua vida trinitária. – “Enquanto que o dom de ciência – escreve ainda o P. Philipon 409 - toma um movimento ascendente para elevar à alma desde as criaturas até Deus, e o de entendimento, por uma simples mirada de amor, penetra todos os mistérios de Deus por fora e por dentro, o dom de sabedoria, por assim dizer, não sai jamais do coração mesmo da Trindade. Tudo se apresenta a ela neste centro indivisível. A alma assim deiforme não pode ver as coisas mais do que por suas razões mais altas e divinas. Todo o movimento do universo, até os menores átomos, cai sob sua visão à puríssima luz da Trindade e dos atributos divinos, mas ordenadamente, segundo o ritmo em que as coisas procedem de Deus. Criação, redenção, ordem hipostática, tudo se lhe apresenta, mesmo o próprio mal, ordenado à maior gloria da Trindade. Elevando-se, 408.  1Cor 2,10. 409.  Ibid.

304

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

enfim, em uma suprema mirada por cima da justiça, da misericórdia, da providência e de todos os atributos divinos, descobre de pronto todas essas perfeições incriadas em sua fonte eterna: nesta deidade, Pai, Filho e Espírito Santo, que sobrepuja infinitamente todas nossas concepções humanas, estreitas e mesquinhas, e deixa a Deus incompreensível, inefável, inclusive à vista dos bem-aventurados e mesmo à visão beatífica de Cristo; este Deus que é, ao mesmo tempo, em sua simplicidade sobre-eminente, unidade e trindade, essência indivisível e sociedade de três pessoas viventes, realmente distintas segundo uma ordem de processão que não suprime de modo algum sua consubstancial unidade. O olho humano não poderia jamais descobrir um tal mistério, nem o ouvido perceber tais harmonias, nem o coração suspeitar uma tal beatitude se por graça a divindade não houvesse se inclinado até nós em Cristo para nos fazer entrar nestas insondáveis profundidades de Deus sob a direção mesma do Espírito”. A alma chegada a estas alturas já não sai nunca de Deus. Se os deveres de seu estado assim o exigem, se entrega exteriormente a toda classe de trabalhos, mesmo os mais absorventes, com uma atividade incrível; mas “no mais profundo centro de sua alma – como diria São João da Cruz – sente permanentemente a divina companhia de ‘seus Três’ e não lhes abandona 305

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

um só instante. Se juntaram nela Marta e Maria de modo tão inefável, que a atividade prodigiosa de Marta em nada compromete o sossego e a paz de Maria, que permanece dia e noite em silenciosa em entranhável contemplação aos pés de seu divino Mestre. Sua vida aqui na terra é já um começo da eternidade bem-aventurada”. 4. leva até o heroísmo a virtude da caridade. – É precisamente a finalidade fundamental do dom de sabedoria. Liberada de suas amarras humanas e recebendo a plenos pulmões o ar divino que o dom lhe proporciona, o fogo da caridade adquire rapidamente proporções gigantescas. É incrível até onde chega o amor de Deus nas almas trabalhadas pelo dom de sabedoria. Seu efeito mais impressionante é a morte total do próprio eu. Amam a Deus com um amor puríssimo, somente por sua bondade, sem mistura de interesse ou de motivos humanos. É verdade que não renunciam à esperança do céu, porém a desejam mais do que nunca; mas é porque nele poderão amar a Deus com maior intensidade ainda e sem descanso, nem interrupção alguma. Se, por um absurdo, pudessem amar e glorificar mais a Deus no inferno do que no céu, prefeririam sem vacilar os tormentos eternos.410 É o triunfo definitivo da 410.  Este sentimento foi experimentado pelos santos em grande nú-

mero. Veja-se, por exemplo, com que simples e sublime delicadeza o expõe Santa Teresinha do Menino Jesus: “Uma noite, não sabendo como testemunhar a Jesus que lhe amava e quão vivos eram meus 306

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

graça, com a morte total do próprio egoísmo. Então é quando começam a cumprir o primeiro mandamento da lei de Deus com toda a plenitude possível neste pobre desterro. No aspecto que concerne ao próximo, a caridade chega, paralelamente, a uma perfeição sublime através do dom de sabedoria. Acostumados a ver a Deus em todas as coisas, mesmo nos mais mínimos acontecimentos, o veem de uma maneira especialíssima no próximo. Lhe amam com uma ternura profunda, inteiramente sobrenatural e divina. Servem-lhe com uma abnegação heróica, plena, por outra parte, de naturalidade e simplicidade. Veem a Cristo nos pobres, nos que sofrem, no coração de todos os irmãos..., e correm para lhe ajudar com a alma cheia de amor. Gozam privando-se das coisas mais necessárias ou úteis para oferecê-las ao próximo, cujos interesses antepõem e preferem aos próprios, como anteporiam os do próprio Cristo, com quem lhe veem identificado. O egoísmo pessoal com relação ao próximo morreu inteiramente. Às vezes, o amor de caridade que abrasa seu coração é tão grande que eclode ao desejos de que fosse servido e glorificado por toda parte, me sobreveio o triste pensamento de que nunca, jamais, desde o abismo do inferno, lhe chegaria um só ato de amor. Então lhe disse que com gosto consentiria em me ver abismada naquele lugar de tormentos e de blasfêmias para que também ali fosse amado eternamente. Não podia lhe glorificar assim, já que Ele não deseja senão nossa bem-aventurança: mas quando se ama, alguém se vê forçado a dizer mil loucuras”(Historia de un alma c. 5 n.23; 3a ed., Burgos 1950). 307

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

exterior em divinas loucuras que desconcertam a prudência e os cálculos humanos. São Francisco de Assis se abraçou estreitamente a uma árvore – como criatura de Deus –, querendo com isso estreitar em um abraço imenso a toda criação universal, saída das mão de Deus... 5. proporciona a todas as virtudes o último rasgo de perfeição e acabamento. – É uma consequência do efeito anterior. Aperfeiçoada pelo dom de sabedoria, a caridade deixa de sentir sua influência sobre todas as demais virtudes, da qual é verdadeira forma, embora extrínseca e acidental, como ensina São Tomás. Todo o conjunto da vida cristã experimenta esta divina influência. É esse não sei quê de perfeito e acabado que têm as virtudes dos santos e que em vão buscaríamos nas almas menos adiantadas. Em virtude dessa influência do dom de sabedoria através da caridade, todas as virtudes cristãs se elevam de plano e adquirem uma modalidade deiforme, que admite inumeráveis matizes (segundo o caráter pessoal e o gênero de vida dos santos), mas todos tão sublimes que não se poderia precisar qual deles é o mais delicado e refinado. Morto definitivamente o egoísmo, perfeita em toda classe de virtudes, a alma se instala no cume da montanha da santidade, de onde se lê aquela inscrição sublime: “Só mora neste monte a honra e glória de Deus” (São João da Cruz). 308

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

4. bem-aventuranças e frutos que dele derivam São Tomás, seguindo Santo Agostinho, atribui ao dom de sabedoria a sétima bem-aventurança: Bem aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus”.411 E prova que lhe convém em seus dois aspectos: enquanto ao mérito e enquanto ao prêmio. Enquanto ao mérito (“os pacíficos”), porque a paz não é outra coisas senão “a tranquilidade da ordem”; e estabelecer a ordem (para com Deus, para com nós mesmos e para com o próximo) pertence precisamente à sabedoria. E enquanto ao prêmio (“serão chamados filhos de Deus”), porque precisamente somos filhos adotivos de Deus por nossa participação e semelhança com o Filho unigênito do Pai, que é a Sabedoria eterna.412 Enquanto aos frutos do Espírito Santo, pertencem ao dom de sabedoria, através da caridade, principalmente estes três: a caridade, o gozo espiritual e a paz.413 5. vícios opostos Ao dom de sabedoria se opõe o vicio da estultícia ou necedade espiritual,414 que consiste em 411.  Mt 5, 9. 412.  Cf. II-II q.45 a.6. 413.  Cf. I-II q. 70 a.3; II-II q. 28 a.1 e 4; q.29 a.4 ad 1. 414.  Cf. II-II q.46.

309

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

certo embotamento do juízo e do senso espiritual que nos impede de discernir ou julgar as coisas de Deus segundo o próprio Deus pelo contato, gosto ou conaturalidade, que é o próprio do dom de sabedoria. Mais lamentável ainda é a fatuidade, que leva consigo a incapacidade total para julgar as coisas divinas. Logo, a estultícia se opõe ao dom de sabedoria como coisa contrária; a fatuidade, como a pura negação.415 Desta estupidez adoecemos sempre que apreciamos em algo as ninharias deste mundo ou julgamos que vale algo qualquer coisa que não seja a possessão do sumo bem ou que a ela conduz. Portanto, se não somos santos, temos de reconhecer que somos verdadeiramente estúpidos, por muito que doa ao nosso amor próprio.416

Quando esta estupidez é voluntária por ter o homem submergido nas coisas terrenas até perder de vista ou fazer-se inepto para contemplar as divinas, é um verdadeiro pecado, segundo aquilo que diz São Paulo: “O homem animal não compreende as coisas do Espírito de Deus”.417 E como 415.  Cf. II-II q.46 a.1. 416.  P.I.G. Menéndez-Reigada, Los dones del Espíritu Santo y la per-

fección cristiana p. 595.

417.  1Cor 3, 14.

310

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

não há coisa que embruteça e animalize mais ao homem, até afundar-lhe por completo no lodo da terra, do que a luxúria, dela principalmente provém a estultícia ou necedade espiritual; embora também contribua para isso a ira, que ofusca a mente pela forte comoção corporal, impedindolhe de julgar com retidão.418 6. meios de fomentar este dom Aparte dos meios gerais que já conhecemos (recolhimento, vida de oração, fidelidade à graça, invocação frequente do Espírito Santo, profunda humildade, etc.), podemos nos dispor para a atuação do dom de sabedoria com os seguintes meios, que estão perfeitamente a nosso alcance com ajuda da graça ordinária: a) nos esforçarmos em ver todas as coisas desde o ponto de vista de deus. – Quantas almas piedosas e até mesmo consagradas a Deus veem e ajuízam todas as coisas desde o ponto de vista puramente natural e humano, quando não totalmente mundano! Sua estreiteza de visão e miopia espiritual é tão grande que nunca acertam em remontar sua visão acima das causas puramente humanas para ver os desígnios de Deus em tudo quanto ocorre. Se lhes incomodam – mesmo inadvertidamente –, se irri418.  Cf. II-II q.46. a.3c e ad.3.

311

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

tam e levam tudo por mal. Se um superior lhes corrige algum defeito, em seguida lhe tacham de exigente, tirano e cruel. Se lhes manda alguma coisa que não encaixa com seus gostos, lamentam sua “incompreensão”, sua “distração”, sua completa “inaptidão para mandar”. Se lhes humilha, fazem um escarcéu. Ao seu lado deve proceder com a mesma cautela e precaução com a qual se trataria de uma pessoa mundana inteiramente desprovida de espírito sobrenatural. Não é de estranhar que o mundo ande tão mal quando os que deveriam dar o exemplo andam tantas vezes assim! Não é possível que em tais almas atue jamais o dom de sabedoria. Esse espírito tão imperfeito e humano tem completamente asfixiado o hábito dos dons. Até que não se esforcem um pouco em levantar suas vistas para o céu e, prescindindo das causas segundas, não acertem a ver a mão de Deus em todos os acontecimentos prósperos ou adversos que lhes sucedam, seguirão sempre rastejando pelo solo com sua pobre e penosa vida espiritual. Para aprender a voar, deve-se bater muitas vezes as asas para o alto; pelo preço que for, custe o que custar. b) combater a sabedoria do mundo, que é estultícia e necedade ante Deus. – A frase é de São Paulo.419 O mundo chama de Sábios aos

419.  1Cor 3, 19.

312

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

néscios ante Deus.420 E como o mundo está cheio desta sorte de estultícia e necedade, por isso nos diz a própria Sagrada Escritura que “é infinito o número de néscios ”.421 De fato – escreve o P. Lallemant 422 –, a maior parte dos homens têm o gosto depravado e se lhes pode chamar, com justa razão, de loucos, posto que fazem todas suas ações pondo seu fim último, ao menos praticamente, na criatura e não em Deus. Cada um tem algum objeto ao qual se apega e refere todas as demais coisas, não tendo quase afeição ou paixão, senão dependência desse objeto; e isso é ser verdadeiramente louco. Queremos realmente conhecer se somos do número de Sábios ou néscios? Examinemos nossos gostos e desgostos, seja ante Deus e as coisas divinas, seja entre as criaturas e coisas terrenas. De onde nascem nossas satisfações e dissabores? Em que coisas nosso coração encontra seu repouso e contentamento? Esta sorte de exame é um excelente remédio para adquirir a pureza de coração. Deveríamos nos familiarizar com ele, examinando com frequência durante o dia nossos gostos e desgostos, tratando pouco a pouco de referi-los a Deus. 420.  1Cor 1, 25. 421.  Ecle 1,15. 422.  P. Lallemant, oc.,princ.4 c.4 a.1.

313

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Há três classes de sabedoria reprovadas nas Sagradas Escrituras,423 que são outras tantas loucuras verdadeiras: a terrena, que não gosta mais do que das riquezas; a animal, que não apetece mais do que os prazeres do corpo e a diabólica, que põe seu fim em sua própria excelência. E há uma loucura que é verdadeira sabedoria ante Deus: amar a pobreza, o desprezo de si mesmo, as cruzes, as perseguições, o ser louco segundo o mundo. E, no entanto, a sabedoria, que é um dom do Espírito Santo, não é outra coisa senão esta loucura, que não gosta senão do que nosso Senhor e os santos gostaram. Mas Jesus Cristo deixou em tudo quanto tocou em sua vida mortal – como na pobreza, na abjeção, na cruz – um suave odor, um sabor delicioso; mas são poucas as almas que têm os sentidos suficientemente finos para perceber este odor e para degustar este sabor, que são de todo sobrenaturais. Os santos correram para o odor destes perfumes;424 como um Santo Inácio, que regozijava de se ver menosprezado; um São Francisco, que amava tão apaixonadamente a abjeção, que fazia coisas para cair no ridículo; um São Domingos, que se sentia melhor em Carcasona, onde era extraordinariamente escarnecido, do que em Tolosa, onde todos lhe honravam”. 423.  Tg 3, 15. 424.  Ct 1, 3.

314

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

c) não se afeiçoar em demasia às coisas deste mundo, mesmo que sejam boas e honestas. – A ciência, a arte, a cultura humana, o progresso material das nações, etc., são coisas em si mesmas boas e honestas quando canalizadas e ordenadas retamente. Mas, se nos entregamos a essas coisas com demasiado ardor e afã, não deixarão de nos prejudicar seriamente. Acostumado nosso paladar ao gosto das criaturas, experimentará certa torpeza ou estultícia para saborear as coisas de Deus, tão superiores em tudo. O deixar-se absorver pelo apetite desordenado da ciência - mesmo a sagrada e teológica-, paralisa em sua vida espiritual uma multidão de almas, acarretando com isso uma perda irreparável; perdem o gosto pela vida interior, abandonam e encurtam a oração, se deixam absorver pelo trabalho intelectual e descuidam da coisa “única e necessária” de que nos fala o Senhor no Evangelho.425 É uma grande lástima, pois lamentarão no outro mundo, quando não tiverem mais remédio! “Que diferentes – continua o P. Lallemant 426 – são os juízos de Deus em relação ao juízo dos homens! A sabedoria divina é uma loucura a juízo dos homens, e a sabedoria humana é uma loucura a juízo de Deus. A nós cabe ver com qual destes juízos queremos conformar o 425.  Lc 10, 42. 426.  Ibid.

315

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

nosso. É preciso tomar um e outro pela regra de nossos atos. Se gostamos de louvores e de honras, somos loucos nesta matéria; e tanto teremos de loucura quanto tenhamos de gosto em ser estimados e honrados. Como, ao contrário, tanto teremos de sabedoria quanto tenhamos de amor à humilhação e à cruz. É monstruoso que mesmo nas ordens religiosas se encontre pessoas que não gostam mais do que aquilo que possa lhes fazer agradáveis aos olhos do mundo; que não fizeram nada durante os vinte ou trinta anos de vida religiosa senão pra aproximar-se do fim que aspiram; nunca tem alegria ou tristeza senão relacionada a isso, ou, ao menos, são mais sensíveis a isso do que a todas as demais coisas. Tudo o mais que concerne a Deus e à perfeição lhes resulta insípido, não encontram gosto algum nisso. Este estado é terrível e mereceria ser chorado com lágrimas de sangue. Pois, de que perfeição são capazes esses religiosos? Que fruto podem fazer em benefício do próximo? Mas que confusão experimentarão na hora da morte quando se lhes mostre que durante todo o curso de sua vida não tenham buscado nem gostado mais do que o brilho da vaidade, como mundanos! Se estão tristes estas pobres almas, diga-lhes alguma palavra que lhes proporcione alguma esperança de certo engrandecimento, 316

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

mesmo que falso, e as vereis no mesmo instante mudar de aspecto: seu coração se encherá de gozo, como ante o anúncio de algum grande êxito ou acontecimento. Por outra parte, como não têm o gosto da devoção, não qualificam suas práticas mais do que de bagatelas e de entretenimentos de espíritos débeis. E não somente se governam eles mesmos por estes princípios errôneos da sabedoria humana e diabólica, senão que comunicam ademais seus sentimentos aos outros, ensinando-lhes máximas totalmente contrárias às de nosso Senhor e do Evangelho, do qual tratam de mitigar o rigor pelas interpretações forçadas e conformes às inclinações da natureza corrompida, fundando-se em outras passagens da Escritura mal entendidas, sobre as quais edificam sua ruína”. d) não apegar-se aos consolos espirituais, mas passar a deus através deles. – Até tal ponto querem Deus unicamente para si, desprendidos de toda a criação, que querem que nos desprendamos até dos próprios consolos espirituais que tão abundantemente, muitas vezes, prodiga na oração. Esses consolos são certamente importantíssimos para nosso adiantamento espiritual,427 mas unicamente como estímulo e alento para buscar a Deus com maior ardor. Buscá-los para se deter neles e saboreá 427.  Cf. P. Arintero, O. P., Cuestiones místicas (BAC, Madrid 1956)

317

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

-los como fim último de nossa oração seria francamente imoral; e mesmo considerados como um fim intermediário, subordinado a Deus, é algo muito imperfeito, do qual é mister purificar-se se queremos passar à perfeita união com Deus.428 Deve-se estar pronto e disposto a servir a Deus na obscuridade, assim como na luz, na secura assim como nos consolos, na aridez e nos deleites espirituais. Deve-se buscar diretamente a Deus nos consolos e não os consolos de Deus. Os consolos são como o molho ou condimento, que serve unicamente para tornar melhor os alimentos fortes, que nutrem verdadeiramente o organismo; por si só, ela não alimenta e até mesmo pode estragar o paladar, fazendo-lhe insípidas as coisas convenientes quando se apresentam sem ela. Este último é mau, e deve ser evitado a todo custo se queremos que o dom de sabedoria comece a atuar intensamente em nós.

428.  Cf. São João da Cruz, Subida del monte Carmelo e Noche oscura,

passim.

318

 Capítulo XV 

A fidelidade ao Espírito Santo

de que maneira o Espírito Santo – juntamente com o Pai e o Filho – é o doce Hóspede de nossa alma: dulcis hospes animae. E vimos também de que maneira atua continuamente em nós, seja movendo o hábito das virtudes infusas ao modo humano nos começos da vida espiritual (etapa ascética) ou o dos dons ao modo divino até levar à alma fiel aos cumes da perfeição cristã (etapa mística).

Vimos nos capítulos precedentes

Mas não podemos pensar que o Espírito Santo não exige nada da alma em troca de sua divina liberdade e liberalidade. Exige dela uma contínua fidelidade a suas divinas moções, sob pena de suspender ou diminuir sua ação, deixando-a estancada a meio caminho, com grande perigo inclusive de sua própria salvação eterna. Por isso cremos que nosso pobre estudo, direcionado a dar a conhecer a pessoa e a ação do 319

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

divino Espírito em nossas almas, ficaria incompletíssimo – aparte de muitas outras falhas e imperfeições – se não o terminássemos com um capítulo especial inteiramente dedicado à primorosa fidelidade com que a alma deve corresponder incessantemente à ação santificadora do Espírito Santo, que quer levá-la, em contínua progressão ascendente, até os cumes mais elevados da união íntima com Deus. Estudaremos a natureza da fidelidade ao Espírito Santo, sua importância e necessidade, sua eficácia santificadora e o modo concreto de praticá-la.429 1. natureza A fidelidade, em geral, não é outra coisa senão a lealdade, a adesão cumprida, a observância exata da fé que um deve ao outro. No direito feudal era a obrigação que tinha o vassalo de se apresentar a seu senhor, render-lhe homenagem e ficar inteiramente obrigado a lhe obedecer em tudo, sem lhe opor jamais a menor resistência. Tudo isso tem aplicação – e em grau máximo – em se tratando da fidelidade ao Espírito Santo, que não é outra coisa que a lealdade ou docilidade em seguir as inspirações do Espírito Santo em qualquer forma que se nos manifestem. 429.  Cf. nossa Teología de la perfección cristiana (BAC, Madrid, 51968)

n. 635-638; P. Lallemant, op.cit. princ.4 c.i e 2; P. Plus, La fidelidad a la gracia (Barcelona 1951); Cristo en nossotros (Barcelona 1943) 1.5. 320

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Chamamos inspirações – explica São Francisco de Sales430 – a todos os atrativos, movimentos, censuras e remorsos interiores, luzes e conhecimentos que Deus opera em nós, prevenindo nosso coração com suas bendições,431 por seu cuidado e amor paternal, a fim de nos despertar, exercitar, empurrar e atrair para as santas virtudes, ao amor celestial, às boas resoluções; em uma palavra, a tudo quanto nos encaminha a nosso bem eterno. De várias maneiras se produzem inspirações divinas. Os próprios pecadores as recebem, impulsionando-lhes à conversão; mas, para o justo, em cuja alma habita o Espírito Santo, é perfeitamente conatural recebê-las a cada momento. O Espírito Santo, mediante elas, ilumina nossa mente para que possamos ver o que se deve fazer e move nossa vontade para que possamos e queiramos cumpri-lo, segundo aquelas palavras do Apóstolo: “Porque é Deus quem, segundo o seu beneplácito, realiza em vós o querer e o executar”.432

Porque é evidente que o Espírito Santo age sempre segundo seu beneplácito. Inspira e age na alma do justo quando quer e como quer: “Spiritus 430.  San Francisco de Sales, Vida devota p.2a c.18. 431.  Sl 20, 4. 432.  Fp 2, 13.

321

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

ubi vult spirat ”.433 Algumas vezes somente ilumina (p.ex., nos casos duvidosos para resolver a dúvida); outras somente move (p. ex. para que a alma realize aquela boa ação que ela mesma estava pensando); outras, por fim – e é o mais frequente –, ilumina e move ao mesmo tempo. Às vezes a inspiração se produz em meio ao trabalho, como de improviso, quando a alma estava inteiramente distraída e alheia ao objeto da inspiração. Outras muitas se produz na oração, na sagrada comunhão, em momentos de recolhimento e fervor. O Espírito Santo rege e governa ao filho adotivo de Deus tanto nas coisas ordinárias da vida cotidiana como nos assuntos de grande importância. Santo Antonio Abade entrou em uma igreja e, ao ouvir que o predicador repetia as palavras do Evangelho: “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!”,434 foi imediatamente à sua casa, vendeu tudo quanto possuía e se retirou ao deserto. O Espírito Santo nem sempre nos inspira diretamente por si mesmo. Às vezes se vale do anjo da guarda, de um pregador, de um bom livro, de um amigo; mas sempre é Ele, em última instância, o primeiro autor daquela inspiração.

433.  Jo 3, 8. 434.  Mt 19, 21.

322

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

2. importância e necessidade Nunca se insistirá o bastante na excepcional importância e absoluta necessidade da fidelidade às inspirações do Espírito Santo para avançar no caminho da perfeição cristã. Em certo sentido, é este o problema fundamental da vida cristã, já que disto depende o progresso incessante até chegar ao cume da montanha da perfeição ou o ficar paralisados em seu próprio sopé. A preocupação quase única da alma deve ser a de chegar à mais primorosa e constante fidelidade à graça. Sem isso, todos os demais procedimentos e métodos que intente estão irremediavelmente condenados ao fracasso. A razão profundamente teológica disto deve ser buscada na economia da graça atual, que guarda estreita relação com o grau de nossa fidelidade. Com efeito, como já dissemos mais acima, a prévia moção da graça atual é absolutamente necessária para poder realizar qualquer ato saudável. É na ordem sobrenatural o que a prévia moção divina na ordem puramente natural: algo absolutamente indispensável para que um ser em potência possa realizar seu ato. Sem ela, nos seria tão impossível fazer o mais pequeno ato sobrenatural – mesmo possuindo a graça, as virtudes e os dons do Espírito Santo – como respirar sem ar na ordem natural. A graça atual é como o ar divino, que o Espírito santo envia a nossas almas para fazê-las respirar e viver no plano sobrenatural. 323

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

A graça atual – diz o P. Garrigou-Lagrange435 – nos é constantemente oferecida para nos ajudar no cumprimento do dever de cada momento, assim como o ar que entra incessantemente em nossos pulmões para nos permitir reparar o sangue. E assim como temos que respirar para introduzir nos pulmões esse ar que renova nosso sangue, do mesmo modo devemos desejar positivamente e com docilidade receber a graça, que regenera nossas energias espirituais para caminhar em busca de Deus. Quem não respira, acaba por morrer de asfixia; quem não recebe com docilidade a graça, terminará por morrer de asfixia espiritual. Por isso disse São Paulo: “Vos exortamos a não receber em vão a graça de Deus”.436 É preciso responder a essa graça e cooperar generosamente com ela. É esta uma verdade elementar que, praticada sem desfalecimento, nos ergueria bastante até a santidade.

Porém, há mais todavia. Na economia ordinária e normal da graça, a providência de Deus tem subordinadas as graças posteriores que deve conhecer uma alma para o bom uso das anteriores. Uma simples infidelidade à graça pode cortar o rosário das que Deus vinha concedendo sucessivamente, ocasionando-nos uma perda irreparável. No céu 435.  Las três edades de la vida interior (Buenos Aires, 1944) p. 1a c.3 a.5. 436.  2Cor 6, 1.

324

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

veremos como a imensa maioria das santidades frustradas – melhor dizendo, absolutamente todas elas – se malograram por uma série de infidelidades à graça, sejam veniais em si mesmas, mas plenamente voluntárias, que paralisaram a ação do Espírito Santo, impedindo-lhe de levar a alma até o cume da perfeição. A primeira graça de iluminação –continua o padre Garrigou437 – que em nós produz eficazmente um bom pensamento, é suficiente com relação ao generoso consentimento voluntário, no sentido de que nos dá não este ato, mas a possibilidade de realizá-lo. Só que, se resistimos a este bom pensamento, nos privamos da graça atual, que nos inclinaria eficazmente ao consentimento dela. A resistência produz sobre a graça o mesmo efeito que o granizo sobre uma árvore em flor que prometia frutos abundantes: as flores ficam destroçadas e o fruto não chegará à sazão. A graça eficaz se nos brinda na graça suficiente como o fruto na flor; claro que é preciso que a flor não se destrua para que dê o fruto. Se não opusermos resistência à graça suficiente, se nos brindará a graça atual eficaz, e com ajuda vamos progredindo, com o passo seguro, pelo caminho da salvação. A graça suficiente faz com que não tenhamos desculpas 437.  Ibid.

325

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

diante de Deus, e a eficaz impede que nos gloriemos em nós mesmos; com seu auxílio vamos adiante humildemente e com generosidade.

A fidelidade à graça, ou seja, as moções divinas do Espírito Santo, é pois, não somente de grande importância, senão absolutamente necessária e indispensável para progredir nos caminhos da união com Deus. A alma e seu diretor espiritual não deveriam ter outra obsessão que a de chegar a uma contínua, amorosa e preciosa fidelidade à graça. Em realidade –escreve a este respeito o P. Plus438 –, A história de nossa vida, não se resumirá muitas vezes na história de nossas perpétuas infidelidades? Deus tem sobre nós planos magníficos, mas lhe obrigamos a modificá-los continuamente. Tal graça que se dispunha a nos conceder há de suspendê-la porque nos descuidamos em merecê-la. E assim a correção se acrescenta à correção. Que resta do projeto primitivo? Deus vive em si mesmo, de antemão, eternamente, aquilo que nos quer fazer viver no tempo. A ideia que tem de nós, sua eterna vontade sobre nós, constitui nossa história ideal: o grande poema possível de nossa vida. Nosso Pai amoroso não deixa de inspirar a nossa 438.  Cristo em nosotros (Barcelona 1943) p. 169-170.

326

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

consciência esse belo poema. Cada vibração imperceptível é um dom, um talento que hei de receber, um impulso que hei de seguir, um começo que hei de terminar e fazer valer. E vós sabeis, oh Pai!, as resistências, as incompreensões, as perversões. A cada resistência ou incompreensão, vossa providência substitui com outro poema (poema diminuído, mas ainda assim, magnífico) a aqueles e a todos os demais cuja a inspiração deixei de seguir. Há almas que não chegam à santidade porque um dia, em um dado instante, não souberam corresponder plenamente a uma graça divina. Nosso porvir depende às vezes de dois ou três sins ou de dois ou três nãos que convinham dizer e não disseram, e dos quais pendiam generosidades ou desfalecimentos sem número. A que alturas não chegaríamos se nos resolvêssemos caminhar sempre ao mesmo passo que a magnificência divina! Nossa covardia prefere passos de anão. Quem sabe a que medianias nos condenamos, e talvez a coisas piores, por não ter respondido atentamente aos chamamentos do alto? Ouvimos as estranhas palavras de Jesus Cristo a Santa Margarida Maria de Alcoque sobre o perigo de não ser fiel. E esta não menos urgente: ‘Tem muito cuidado de não permitir que se extinga jamais esta lâmpada (seu 327

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

coração), pois se uma vez se apaga, não voltarás a ter fogo para acendê-la’. Não tenhas falso temor, mas tampouco vã presunção. Não se deve jogar com a graça de Deus. Esta passa, e se é verdade que volta muitas vezes, ela não volta sempre. Se volta, e supomos que vem com tanta força como a primeira vez, encontra o coração já enfraquecido pela primeira covardia; por conseguinte, menos armado para corresponder. E logo, Deus fica menos convidado a nos dar outra graça. Para que? Para que sofra a mesma sorte que a anterior? É um testemunho perigoso no tribunal de Deus essa graça desaproveitada, essa inspiração menosprezada, esse inqualificável “deixar para depois”. Os santos tremiam diante da ideia do mal que causa a infidelidade às divinas inspirações”.

3. eficácia santificadora Deixando aparte os sacramentos, que, dignamente recebidos, são o manancial e a fonte da graça, e cuja eficácia santificadora, em igualdade de condições, é muito superior à de toda outra prática religiosa, é indubitável que, entre as que dependem da atividade do homem, ocupa o primeiro lugar a fidelidade perfeita às inspirações do Espírito Santo. Escutemos sobre isto o Mons. Saudreau:439 439.  El ideal del alma ferviente (Barcelona 1926) p. 108.

328

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Como não há de produzir coisas admiráveis em seu coração dócil esta graça divina? Deus, infinitamente bom e santo, nada deseja tanto quanto comunicar seus bens, fazer participantes a seus filhos de santidade e de felicidade. Constantemente seu olhar paternal está posto neles, esperando sua boa vontade e suplicando seu consentimento para cumulá-los de riquezas. Sua sabedoria sabe muito bem por quais caminhos os há de levar para fazê-los santos e felizes. Que garantia, pois, a dos que sempre e em tudo se deixam guiar por um guia tão Sábio e tão amante? Nestes, a onda de suas graças vai sempre crescendo; ao princípio, como um orvalho intermitente; depois, como um riacho; logo, como uma corrente, enfim, como um rio caudaloso e principal. E ao mesmo tempo que as graças são mais abundantes, são também mais puras e intensas.

É muito útil realizar seriamente por algum tempo a prova de não negar ao Espírito Santo nenhuma coisa que se veja que claramente nos pede. Um antigo autor afirma terminantemente que três meses de fidelidade perfeita à todas as inspirações do Espírito Santo colocam a alma em um estado que lhe conduzirá com toda segurança ao cume da perfeição. E acrescenta: “Que alguém faça a prova, durante três meses, de não recusar absolutamente nada a Deus, e verá que profunda mudança experimentará em sua vida”.440 440.  Cf. Mahieu, Probatio caritatis (Brujas 1948) p. 271.

329

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

“Toda nossa perfeição – escreve o P. Lallemant441 – depende desta fidelidade, e pode se dizer que o resumo e compêndio da vida espiritual consiste em observar com atenção os movimentos do Espírito de Deus na nossa alma e em reafirmar nossa vontade na resolução de segui-los docilmente, empregando ao efeito todos os exercícios da oração, a leitura, os sacramentos e a prática das virtudes e boas obras... O fim a que devemos aspirar, depois de termos nos exercitado por um longo tempo na pureza de coração, é o de ser de tal maneira possuídos e governados pelo Espírito Santo, que seja somente Ele quem conduza e governe todas nossas potências e sentidos e quem regule todos os nossos movimentos interiores e exteriores, abandonando-nos inteiramente a nós mesmos pela renúncia espiritual de nossa vontade e próprias satisfações. Assim, já não viveremos em nós mesmos, mas Jesus Cristo, por uma fiel correspondência às operações de seu divino Espírito e por uma perfeita submissão de todas nossas rebeldias ao poder da graça... A causa de que se chegue tão tarde ou não se chegue nunca à perfeição é que não se segue em quase tudo mais do que à natureza e ao sentido humano. Não se segue nunca, ou quase nunca, ao Espírito Santo, de quem é próprio esclarecer, dirigir e inflamar... Pode-se dizer com verdade que não há senão pouquíssimas pessoas que se mantenham cons441.  Op. cit., princ. 4 c.2 a.1 e 2.

330

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

tantemente nos caminhos de Deus. Muitos se desviam sem cessar. O Espírito Santo lhes chama com suas inspirações; mas, como são indóceis, cheios de si mesmos, apegados a seus sentimentos, assoberbados de sua própria sabedoria, não se deixam facilmente conduzir, não entram senão raras vezes no caminho e desígnios de Deus e raramente permanecem nele, voltando a suas concepções e ideias, que lhes fazem voltar atrás. Assim avançam muito pouco, e a morte lhes surpreende não tendo dado mais do que vinte passos, quando poderiam caminhar dez mil se tivessem se abandonado à direção do Espírito Santo”. 4. modos de praticá-la A inspiração do Espírito Santo é para o ato de virtude o que a tentação é para o ato do pecado. Por uma simples escada desce o homem ao pecado: tentação, deleitação e consentimento. O Espírito Santo propõe o ato de virtude ao entendimento e excita a vontade; o justo, finalmente, o aprova e o cumpre. Três são, por nossa parte, as coisas necessárias para a perfeita fidelidade à graça: a atenção às inspirações do Espírito Santo, a discrição para saber distingui-las dos movimentos da natureza ou do demônio e a docilidade para levá-las a cabo. Expliquemos um pouco cada uma delas.

331

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

1) Atenção às inspirações. – Consideremos com frequência que o Espírito Santo habita dentro de nós mesmos.442 Se nos desprendêssemos de todas as coisas da terra e nos recolhêssemos no silêncio e paz em nosso interior, ouviríamos, sem dúvida, sua doce voz e as insinuações de seu amor. Não se trata de uma graça extraordinária, senão de algo normal e ordinário em uma vida cristã seriamente vivida. Por que, pois, não ouvimos sua voz? Por três razões principais: a) Por nossa habitual dissipação. – Deus está dentro, e nós vivemos fora. “O homem interior se recolhe muito rápido, porque nunca se derrama totalmente ao exterior”.443 O próprio Espírito Santo nos recorda disso expressamente: “A levarei à solidão e ali falarei ao coração”.444 Eis aqui um magnífico texto do padre Plus insistindo nestas ideias:445 Deus é discreto, mas não o é nem por timidez, nem por impotência. Poderia se impor; se não o faz, é por delicadeza e para deixar para nossa iniciativa mais campo de ação. 442.  1Cor 6, 19. 443.  Kempis, 2,1. 444.  Os 2, 14. 445.  P. Plus, S. I. La fidelidad a la gracia p. 59ss (Barcelona 1951),

preciosa obra, que está entre o melhor que já se escreveu sobre o assunto. 332

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Mas não se pode imaginar que o Senhor não seja um grande Senhor; não pode ser que não tenha muito vivo o sentimento de sua suprema dignidade. Suponhamos que onde quer entrar e agir não haja mais do que loucas preocupações, o ruído de matracas, agitações, redemoinhos, potros selvagens, frenesi de velocidade, deslocamentos incessantes, busca inconsiderada de ninharias que se agitam; para que vá a pedirlhe audiência! Deus não se comunica com o ruído. Quando descobre o interior de uma alma obstruída por mil coisas, não tem nenhuma pressa em se entregar, em se alojar em meio a essas mil trivialidades. Tem seu amor próprio. Não gosta de se parear com quinquilharias. Às vezes, não obstante, o toma a seu encargo e, apesar da desatenção, impõe a atenção. Não se queria lhe receber: entrou e fala. Mas em geral, não procede assim. Evita uma presença que, claramente, não se buscava. Se a alma está em graça, é evidente que Ele reside nela, mas não se lhe manifesta. Já que a alma não se digna em adverti-lo, Ele permanece inadvertido; posto que há substitutivos que se preferem a Ele, o bem supremo evita se fazer preferir apesar de tudo. Quanto mais a alma se derrama nas coisas, tanto mais insiste Ele. 333

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Se, pelo contrário, observa que alguém se desembaraça dessas ninharias e busca o silêncio, Deus se aproxima. Isto lhe entusiasma. Pode se manifestar, pois sabe que a alma lhe ouvirá. Nem sempre se manifestará, nem será o mais comum se mostrar de uma maneira patente; mas a alma, seguramente, se sentirá obscuramente convidada a subir... Outra razão pela qual a alma que aspira à fidelidade deve viver recolhida, é que o Espírito Santo sopra não somente onde quer, senão quando quer. A característica própria dos chamados interiores, observa Santo Inácio, é manifestar-se para a alma sem prévio aviso, quase não se deixando ouvir. Em qualquer momento, por conseguinte, é necessário estar atento; não, certamente, com atenção ansiosa, mas inteligente, em harmonia perfeita com a sábia atividade de uma alma entregue por completo ao seu dever. Por desgraça, “a maioria das pessoas vivem na janela”, como dizia Foissard; preocupados unicamente com a balbúrdia, pelo ir e vir das ruas, não dirigem um só olhar àquele que, em silêncio, espera, no interior da habitação, com muita frequência em vão, para poder iniciar uma conversação.

E um pouco mais adiante acrescenta o mesmo autor: 334

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Como alcançar, na prática, o recolhimento? Em primeiro lugar, deve-se destinar um lugar fixo para um tempo determinado de oração: não se chega à oração espontânea, habitual, de todas as horas, a não ser exercitando-se na oração determinada, prescrita, em tempos pré-fixados. Cabe a cada um consultar sua graça particular, as circunstâncias em que lhe colocam suas obrigações e os avisos de seu diretor espiritual. Uma vez determinados os exercícios de oração, falta treinar-se no recolhimento habitual, em um certo silêncio exterior, de ação ou de palavra e, sobretudo, no silêncio interior. Alguns princípios simples resumem tudo: Não falar mais do que quando a palavra seja melhor do que o silêncio. Evitar a febre, a pressa natural. O mais rápido, quando se tem pressa, é não se apressar. Como dizia um grande cirurgião ao ir praticar uma operação urgente: “Senhores, vamos devagar; não podemos perder um só momento”. Quem não recorda as críticas que dirigia em todos os retiros o Mons. Dupanloup?: “Tenho uma atividade terrível... levarei sempre mais tempo que o necessário para fazer algo”. Ao declinar de sua vida: “Não perdi tempo o bastante, fiz demasiadas coisas, demasiadas coisas pequenas a custa das grandes”. E sempre repetia o mesmo: “Por nada deixemos a vida 335

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

interior; sempre a vida interior antes de tudo”. Não sonhou durante algum tempo se retirar na Grande Cartuxa? b) por nossa falta de mortificação. – Somos ainda demasiados carnais e não estimamos e nem saboreamos mais do que as coisas exteriores e agradáveis para os sentidos. E, como disse São Paulo, “o homem animal não percebe as coisas do Espírito de Deus”.446 É Absolutamente indispensável o espírito de mortificação. Devese praticar o famoso agere contra, que tanto inculcava Santo Inácio de Loyola. c) por nossa afeições desordenadas. – “se alguém não estiver totalmente livre das criaturas, não poderá tender livremente às coisas divinas. Por isso se encontram tão poucos contemplativos, porque poucos acertam em se desvencilhar totalmente das criaturas e coisas semelhantes”.447 Duas coisas, pois, é preciso praticar para ouvir a voz de Deus: desprender-se de todo afeto terreno e atender positivamente ao divino Hóspede de nossas almas. A alma deve estar sempre em atitude de humilde expectativa: “Falai, Senhor, o vosso servo escuta”.448

446.  1Cor 2, 14. 447.  Kempis, 3, 31. 448.  1Sm 3, 10.

336

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

2) discrição de espíritos. – é de grande importância na vida espiritual o discernimento ou discrição de espíritos, para saber que espírito nos move em um determinado momento. Eis aqui alguns dos mais importantes critérios para conhecer as inspirações divinas e distingui-las dos movimentos da própria natureza ou do demônio: a) a santidade do objeto. – O demônio nunca impulsiona a virtude; e a natureza tampouco costuma fazê-lo quando se trata de uma virtude incomoda e difícil. b) a conformidade com nosso próprio estado. – O Espírito Santo não pode impulsionar um cartuxo a predicar, nem a uma monja contemplativa a cuidar dos doentes nos hospitais. c) paz e tranquilidade de coração. – Disse São Francisco de Sales: “um dos melhores sinais de bondade de todas as inspirações, e particularmente das extraordinárias, é a paz e a tranquilidade no coração de quem as recebe; porque o divino Espírito é, em verdade, violento, mas com uma violência doce, suave e apaziguadora. Se apresenta como um vento impetuoso449 e como um raio celestial, mas nem derruba ou perturba os apóstolos; o espanto que seu ruído causa neles é momentâneo e vai imediatamen-

449.  At 2, 2.

337

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

te acompanhado de uma doce segurança”.450 O demônio, ao contrário, alvoroça e enche de inquietude. d) obediência humilde. – “Tudo é seguro na obediência e tudo é suspeito fora dela. Quem diz que está inspirado e se nega a obedecer aos superiores e seguir seu parecer, é um impostor”.451 Testemunha disso são o grande número de hereges e apóstatas que se diziam inspirados pelo Espírito Santo ou gozar de um carisma especial. e) o juízo do diretor espiritual. – Nas coisas de pouca importância que ocorrem todos os dias não é necessária uma longa deliberação, mas escolher simplesmente o que pareça mais conforme à vontade divina, sem escrúpulos nem inquietudes de consciência; porém nas coisas duvidosas de maior importância, o Espírito Santo inclina sempre a consultar os superiores ou o diretor espiritual.

3. docilidade na execução. – Consiste em seguir a inspiração da graça no mesmo instante que se produza, sem fazer esperar um segundo ao Espírito Santo.452 Ele sabe melhor do que nós o que 450.  São Francisco de Sales, Tratado del amor de Dios 8,12. 451.  Ibid.,6,13. 452.  Isso se refere unicamente aos casos nos quais a inspiração divina

é clara e manifesta. Nos casos duvidosos, deveria refletir, aplicando as regras do discernimento ou consultando com o diretor espiritual. 338

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

nos convém; aceitemos, pois, o que nos inspire e levemo-lo a cabo com coração alegre e esforçado. A alma deve estar sempre disposta a cumprir a vontade de Deus a todo momento: “Ensinai-me a fazer vossa vontade, pois sois o meu Deus”.453 A natureza, desconforme com isto, colocará em nosso caminho um triplo obstáculo:454 a) a tentação da dilação. – É como dizer ao Espírito Santo: “Desculpe-me por hoje; o farei amanhã”. Porque Deus coloca geralmente em suas petições uma infinita discrição, na qual consiste a suavidade de seus caminhos, chegamos a esquecer quão odioso é fazer esperar à Majestade soberana. Bem estaria não responder imediatamente ao vigário de Cristo na terra! Nos permitiremos ser negligentes porque é o próprio Deus quem manda? Precisamente porque Ele é tão delicado ao solicitar nossa fidelidade, uma grande delicadeza por nossa parte deveria nos fazer voar e servir-lhe. Assim o faziam os santos. Muitas almas chegam ao final de sua vida sem ter nunca ou quase nunca consentido que o Espírito Santo fosse seu dono absoluto. Sempre lhe impediram a entrada, sempre lhe fizeram esperar. Na hora da morte o verão clara453.  Sl 142, 10. 454.  Cf. P. Plus, op. cit., p. 90ss, cuja doutrina resumimos aqui.

339

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

mente, mas então será demasiado tarde: já não haverá lugar para o “amanhã sem falta”, para a dilação contínua. Terminou o tempo e se entra na eternidade. Pensemos com frequência nos lamentos daquela última hora por não ter respondido imediatamente às inspirações da graça, por ter feito aguardar em demasia àquele que tanto quis nos elevar. b) os furtos da vontade.- às vezes se proclama ou confessa a própria covardia. Temos medo do sacrifício que nos pede. É o medo que todos sentimos quando se trata de executarmos (toda execução leva consigo a morte de algo em nós, é sempre uma “execução capital”). A natureza protesta, lamentando-se de antemão das generosidades nas quais terá de consentir: “Deus meu! – exclamava Rivière455 –, afastai de mim a tentação da santidade. Contentai-vos com uma vida pura e paciente, que eu com todos meus esforços tratarei de vos oferecer. Não priveis dos gozos deliciosos que conheci, que amei tanto e que tanto desejo viver. Não confundais. Não pertenço à classe precisa. Não me tenteis com coisas impossíveis”. Aí temos descrito ao vivo, em uma alma nada vulgar, o medo da entrega total, a inclinação aos rodeios; o prurido, muito explicável, de soslaiar ao obstáculo em vez de superá-lo.

455.  Santiago Rivière, A la trace de Dieu p. 279.

340

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Não obstante, se suspeitássemos que recompensa aguarda a entrega total e generosa! É famosa a história do mendigo da Índia de que nos fala Tagore. É a história de muitas vidas: “Caminhava – refere o pobre maltrapilho – mendigando de porta em porta a caminho de um povoado, quando à distancia apareceu tua carruagem dourada, qual sonho radiante, e admirei ao rei dos reis. O carro se deteve. Pousaste tua mirada em mim e te apeaste sorridente. Senti chegada a sorte de minha vida. De repente, estendeste a mim tua mão direita e disseste: Que vais me dar? Ah! Que piada era esta, estender a mão um rei a um mendigo para mendigar? Fiquei confuso e perplexo. Por fim, saquei de meus alforjes um grão de trigo e o dei a ti. Mas grande surpresa foi a minha, quando ao declinar o dia e esvaziar meu saco, encontrei uma pepita de ouro entre o punhado de grãos vulgares. Então chorei amargamente e me disse: lástima não haver tido o pressentimento de tudo te dar!” c) o afã de recuperar o que demos. – Se mesmo depois de termos entregado o misero grão de trigo ou as escassas existências de nossos alforjes, não tratássemos de recuperá-las! É a eterna história das crianças que tendo oferecido suas guloseimas ante o presépio, enquanto 341

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

voltamos as costas tentam recuperá-las para “saborear seu sacrifício”. O duque de Veneza, ao tomar posse do cargo, atirava ao mar, para simbolizar as bodas da república com o oceano, uma aliança de ouro. Mas contam que, tão logo terminava a festa, os mergulhadores se encarregavam de recuperá-la. Assim somos nós. Quem, sem necessidade de muitas investigações, não comprovará em sua conduta moral exemplos parecidos? Não estamos acostumados a subtrações em nossos holocaustos, a esperar ávida e imediatamente o prêmio depois da oferenda de nossos melhores sacrifícios? Eterna miséria de nossa condição! Deve-se humilhar-se por ela, mas não se desanimar. E fazer o quanto possamos para que o nosso egoísmo seja o mais reduzido possível.

5. como reparar nossas infidelidades Depois da suprema desgraça de se condenar eternamente, não há maior desventura do que a do abuso das graças divinas. Mas assim como a desgraça eterna é absolutamente irreparável, as infidelidades à graça podem ser reparadas totalmente ou em parte enquanto vivamos neste mundo.456 Em uma oração difundida entre algumas comunidades religiosas se formula esta tripla petição à misericórdia divina: 456.  Cf. Augusto Saudreau, El ideal del alma ferviente (Barcelona

1926) p. 128 ss.

342

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Deus meu, tende comigo a misericórdia e a liberalidade de me fazer reparar, antes de minha morte, todas as perdas de graças que tive a desgraça ou insensatez de causar-me. Fazei com que chegue ao grau de méritos e de perfeição ao qual vós me queirais levar segundo vossa primeira intenção, e que eu tive a infelicidade de frustrar com minhas infidelidades. Tende também a bondade de reparar nas almas as perdas de graça que por minha culpa se tenham ocasionado.457

Nada mais razoável do que tais petições. Deus pode, se se pede a Ele, acrescentar as graças preparadas para uma alma; e se esta se mostra fiel nestes novos adiantamentos divinos, tal aumento pode compensar as perdas anteriores. Àquele que não utilizou uma adversidade, pode o Senhor enviar-lhe outras em sucessão: as que houvesse tido sendo sempre leal e as destinadas a substituir às que não deram fruto. Também podem se multiplicar as ocasiões de sacrifícios para substituir aos sacrifícios que se reutilizaram. As graças de luz podem ser mais abundantes, a vontade pode receber mais força e Deus pode comunicar um amor mais firme, intenso e acentuado. Estes suplementos não estão sobre o poder de Deus, nem são 457.  O P. Lallemant ensina que devemos dirigir a Deus muitas ve-

zes estas três petições (op.cit., princ.4 c.2 a.1). 343

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

contrários à sua justiça. É certo, certíssimo, que a alma infiel não os merece; mas a oração fervente e perseverante – aquela na qual Deus prometeu tudo458 – pode consegui-los infalivelmente. Como poderia se explicar, se não fosse assim, que grandes pecadores tenham se tornado grandes santos? Seus pecados passados foram ocasião para se remontar a uma maior virtude. O desejo de repará-los lhes induziu a praticar grandes austeridades e a redobrar seu amor fervente a Deus. As lágrimas de São Pedro, que continuam derramando-se durante toda sua vida, não haveriam corrido tão copiosamente nem, por tanto, produzindo tão numerosos atos de amor se não houvesse negado a seu Mestre tão covardemente. Nosso Senhor disse a Santa Margarida de Cortona que suas penitências haviam apagado de tal maneira seus nove anos de desordem, que o céu a colocaria no coro das virgens. Estes e outros muitos exemplos nos ensinam que jamais devemos desanimar por nossos pecados e passadas infidelidades: mas também que não basta deplorá-los: é necessário repará-los e expiá-los. Se o trem de nossa vida vem com atraso aproximando-se da estação de chegada, é evidente que chegaremos a ela com um irreparável atraso, ao menos que aumentemos intensamente a velocidade, dedicando o que nos resta de vida a uma entrega total e absoluta às exigências, cada vez mais imperiosas, da união íntima com Deus. 458.  Mt 7, 7-11.

344

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

A expiação volta a Deus mais favorável, atrai graças muito mais abundantes e poderosas, aparta da alma os impedimentos postos pelo pecado, que impedem o exercício perfeito das virtudes. Deste modo não só repara as faltas anteriores, mas por ela a alma se eleva na virtude muito mais do que se não houvesse pecado. São Paulo escreveu em sua carta aos Romanos estas consoladoras palavras: “Tudo coopera para o bem dos que amam a Deus”,459 e o gênio de Santo Agostinho se atreveu a acrescentar: etiam peccata, até mesmo os pecados. Se, ao contrário, não se leva a sério o expiar as próprias faltas e reparar os abusos cometidos contra as graças e inspirações recebidas da bondade divina, o Senhor dará a outras almas fiéis as graças que nós desprezamos com tanta insensatez e loucura. Não o adverte expressamente na Parábola das minas: “E disse aos que estavam presentes: Tirai-lhe a mina, e dai-a ao que tem dez minas. Replicaram-lhe: Senhor, este já tem dez minas!...Eu vos declaro: a todo aquele que tiver, dar-se-lhe-á; mas, ao que não tiver, ser-lhe-á tirado até o que tem”.460 É muito consolador pensar que, mesmo depois de ter sido desleal, se pode recuperar o perdido sendo generoso com Deus. É indubitável que, se não nos esforçamos em redobrar nosso fervor – aproveitando precisamente de nossas infidelidades 459.  Rm 8, 28. 460.  Lc 16, 24-26.

345

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

passadas –, não recuperaremos o tempo perdido, nem alcançaremos o grau de perfeição ao qual Deus queria nos elevar, do mesmo modo que o trem não pode recuperar o atraso sofrido na metade de seu caminho se o maquinista não se preocupa de acelerar a marcha antes de sua chegada à estação final. Alguns corações desconfiados imaginam que já não podem esperar subir ao grau de fervor do qual caíram por sua contínua infidelidade à graça. Conhecem muito mal a longanimidade e misericórdia divinas. São inumeráveis os textos da Sagrada Escritura que nos inculcam isto expressamente: “Renuncie o malvado a seu comportamento, e o pecador a seus projetos; volte ao Senhor, que dele terá piedade, e a nosso Deus que perdoa generosamente. Pois meus pensamentos não são os vossos, e vosso modo de agir não é o meu, diz o Senhor; mas tanto quanto o céu domina a terra, tanto é superior à vossa a minha conduta e meus pensamentos ultrapassam os vossos”.461 O que quer dizer que a misericórdia de Deus, essa misericórdia que enche o universo – misericórdia Domini plena est terra462 – sobrepuja em muito a ideia de que dela possam se formar as raquíticas inteligências dos homens. Mesmo os que mais abusaram, porque mais receberam, devem ter esta confiança, pois se tanto 461.  Is 55, 7-9. 462.  Sl 33, 5.

346

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

receberam é porque Deus os preferiu, e só resta por sua parte voltar a ser o que eram. Os dons de Deus – ensina São Paulo -, a vocação do povo escolhido e, sem dúvida alguma, a de uma alma em uma altura eminente, são irrevogavelmente sine poenitentia sunt dona vocatio Dei.463 É indubitável que os desígnios divinos ficam em suspenso quando o homem lhes coloca obstáculos; mas Deus não revoga sua eleição. Tirem os obstáculos e se realizarão os planos primitivos da Providência. Aqueles que degustaram os dons de Deus, os que foram favorecidos pelas graças místicas, podem ter perdido por sua infidelidade tão imensos favores; mas Deus, que os tratou como privilegiados, sempre está disposto a enriquecê-los com graças maiores, se querem expiar generosamente suas faltas e erros passados. Devemos, pois, fomentar em nós a santa ambição de adquirir para a eternidade esta riqueza de glória, ou, melhor dizendo – já que nossa felicidade se constituirá no amor e na posse de Deus amado -, devemos procurar adquirir a grande suma de amor que Deus predestinou para nós ao nos criar. Por grandes que tenham sido até agora nossas infidelidades, creiamos com firme confiança que podemos, com auxílio divino, reparar e recuperar o que perdemos. Mas entendamos muito bem que, para alcançar este resultado tão desejável, é preciso ser generoso a toda prova. E é necessário 463.  Rm 11, 29.

347

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

começar hoje mesmo nossa tarefa, sem nossas dilações suicidas. Já declina o dia 464 e se aproxima a noite, na qual ninguém pode trabalhar;465 ou, se se prefere assim, já estão se dissipando as sombras da noite desta vida e no horizonte próximo amanhecem já as primeiras luzes da eternidade. É preciso pressa para não chegar demasiado tarde. 6. consagração ao espírito eanto Existe uma fórmula magnífica, difundida entre muitas comunidades religiosas, para expressar ao Espírito Santo nossa entrega total e perfeita consagração à sua divina pessoa. É claro que não basta recitar uma prece, por mais sublime que seja; é necessário viver essa perfeita consagração que com ela queremos expressar. Mas não cabe dúvida que, recitando e saboreando lentamente a magnífica fórmula que exporemos na continuação, acabaremos por conseguir da divina misericórdia uma perfeita sintonia entre nossa vida e o que está expressado por esta fervorosa oração. Ei-la aqui:466 464.  Lc 24, 29. 465.  Jo 9, 4. 466.  Ignoramos quem seja o autor desta preciosa oração. Costumava

propagá-las entre as almas seletas o santo padre Arintero, O.P., fundador da revista “La vida sobrenatural”e morto em Salamanca em 20 de fevereiro de 1928 em odor de santidade. A causa de sua beatificação já foi introduzida em Roma. Ignoramos se a Consagração ao Espírito Santo a escreveu ele mesmo ou a recebeu de alguma das grandes almas que ele soube dirigir até os cumes da santidade. 348

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Ó Espírito Santo, laço divino que unis o Pai com o Filho, em um inefável e estreitíssimo laço de amor! Espírito de luz e de verdade, dignai-vos derramar toda a plenitude de vossos dons sobre minha pobre alma, que solenemente vos consagro para sempre, a fim de que sejais seu preceptor, seu diretor e seu mestre. Vos peço humildemente fidelidade a todos vossos desejos e inspirações e entrega completa e amorosa a vossa divina ação. Ó Espírito Criador! Vinde, vinde a operar em mim a renovação pela qual ardentemente suspiro; renovação e transformação tal, que seja como uma nova criação, toda de graça, de pureza e de amor, com a que dê princípio verdadeiramente à vida inteiramente espiritual, celestial, angélica e divina que pede minha vocação cristã. Espírito de santidade, concedei à minha alma o contato com a vossa pureza e ficará mais branca do que a neve! Fonte sagrada de inocência, de candor e de virgindade, dai-me de beber de vossa água divina, apagai a sede de pureza que me abrasa, batizando-me com aquele batismo de fogo cujo divino batistério é vossa divindade, sois vós mesmo! Envolvei todo meu ser com suas puríssimas chamas. Destruí, devorai, consumi nos ardores do puro amor tudo que haja em mim que seja imperfeito, terreno e humano; tudo que não seja digno de vós. 349

a n to n i o r oyo m a r í n , O . P.

Que vossa divina unção renove minha consagração como templo de toda a Santíssima Trindade e como membro vivo de Jesus Cristo, a quem, com maior perfeição ainda que até aqui, ofereço minha alma, corpo, potências e sentidos, com tudo que sou e tenho. Feri-me de amor, ó Espírito Santo!, com um desses toques íntimos e substanciais, para que, à maneira de flecha incendiada, fira e transpasse meu coração, fazendo-me morrer a mim mesmo e a tudo que o que não seja o Amado. Trânsito feliz e misterioso que só vós podeis operar, ó Espírito divino, e que anseio e peço humildemente. Qual carro de divino fogo, arrebatai-me da terra ao céu, de mim mesmo a Deus, fazendo que desde hoje habite já naquele paraíso que é seu coração. Infundi-me o verdadeiro espírito de minha vocação e as grandes virtudes que exige e são penhor seguro de santidade: o amor à cruz e à humilhação e o desprezo de tudo o que é transitório. Dai-me, sobretudo, uma humildade profundíssima e um santo ódio contra mim mesmo. Ordenai em mim a caridade e embriagai-me com o vinho que engendra virgens. Que meu amor a Jesus seja perfeitíssimo, até chegar à completa alienação de mim mesmo, àquela celestial demência que faz perder o sentido humano de todas as coisas, para seguir as luzes da fé e os impulsos da graça. 350

o g r a n de de scon h ec i d o: o e s p í r ito sa nto e s e u s d on s

Recebei-me, pois, ó Espírito Santo!, que totalmente e completamente me entrego a vós. Possuí-me, admiti-me nas castíssimas delícias de vossa união, e nela desfaleça e expire de puro amor ao receber vosso ósculo da paz. Amém.

351

ficha catalográfica Royo Marín, Antonio O grande desconhecido: o Espírito Santo e seus dons / Fr. Antonio Royo Marín, O.P.; tradução de Ricardo Harada – Campinas, SP: Ecclesiae, 2017.

ISBN: ????? 1. Igreja Católica: Teologia ascética e mística I. Autor II. Título CDD

– 248.2

índice para catálogo sistemático 1. Igreja católica: Teologia ascética e mística – 248.2

Este livro foi impresso na Gráfica Daikoku. O miolo foi feito com papel chambril avena 80g, e a capa com cartão supremo 250g.