O fantasma do Rei Leopoldo: uma história de cobiça, terror e heroísmo na África colonial 8571649367, 9788571649361

Nas últimas décadas do século XIX, quando as potências européias se lançavam ávidas sobre a África, o rei Leopoldo II da

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O fantasma do Rei Leopoldo: uma história de cobiça, terror e heroísmo na África colonial
 8571649367, 9788571649361

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Adam ochschrild • Fantasma

do Rei Leopoldo Uma h is tó ria de cobiça, t e r r o r e h ero ísm o na Á f r ic a C o lo n ia l

C om panhia Das L etras

Não é incomum encontrar quem considere 0 coração das trevas, de Joseph Conrad, com seu herói homicida, o coronel Kurtz, uma metáfora dos som­ brios desvãos da alma humana, a deman­ dar leituras freudianas, nietzscheanas oü niilistas, como fez Francis Ford Coppola errrseu Apocalipse Now, ao transpor o Congo de fins do século XIX para o Vietnã dosj anos 60. Entretanto, Adam Hochschild vem agora nos mostrar, com seu envolvente e espantoso 0 fantasma do rei Leopoldo, que o talento literário de Conrad ape­ nas trabalhava sobre dados da realidade o b serv ado\por esse polonês naturali­ zado britânico numa longa viagem feita a pé e de barco pelo Congo belga, em 1890. Detalhes macabros, tais como oficiais belgas orgulhosos por decorar os jardins e as cercas de suas casas com crânios humanos, estão, de fato, na ma­ triz realista da obra de Conrad. O mes­ m o se pode dizer do delírio totalitário que foi a dominação pessoal, em pro­ veito próprio, que o rei Leopoldo II exerceu sobre um território 75 vezes maior do que a Bélgica, onde, como monarca constitucional, era chefe de estado, mas não de governo. Entre 1815 e 1908, Leopoldo, que nunca pôs os pés no Congo, tirou de lá algo como 1 bilhão de dólares atuais em marfim, látex e minérios, sacrificando ,a metade da população do país em mas­ sacres, torturas, trabalho escravo ex­ tenuante, epidemias trazidas pelos co­ lonizadores e fome coletiva provocada por seqüestro de alimentos e êxodo for­ çado dos habitantes das aldeias. O rela­ to impactante de Hochschild nos mos-

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O FANTASMA DO REI LEOPOLDO

ADAM HOCHSCHILD

O FANTASMA DO REI LEOPOLDO Uma história de cobiça, terror e heroísmo na África colonial Traduçãò: BETH VIEIRA I

C o m p a n h ia D a s L e t r a s

UNICAMP

Copyright © 1998 by Adam Hochschild Titillo original: King Leopold's ghost: a story o f greed, terror and heroism in colonial Africa Capa: Ettore Bottini sobre óleo de Fernand Lantoine (1876-1956): Chasseurs en pirogue, environs de Matadi índice remissivo: Maria Cláudia Carvalho Mattos Preparação: Cássio de A r antes Leite Revisão: Beatriz de Freitas Moreira Ana Maria Barbosa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Hochschild, Adam O fantasma do Rei Leopoldo : uma história de cobiça, terror e heroísmo na África colonial / Adam Hochschild ; tradução Beth Vieira. — São Paulo : Companhia das Letras, 1999. Título original: King Leopold’s ghost. Bibliografia. ISBN 85-7164-936-7 1. Congo (República Democrática) - História 2. Congo (República Democrática) - Política e governo 3. Congo (República Democrática) - Relações raciais 4. Direitos humanos - Movimentos - História 5. Povos indígenas Congo (República Democrática) 6. Trabalho forçado - Congo (República Democrática) I. Título n. Título: Uma história de cobiça, terror e heroísmo na África colonial. 99-4220

cdd-967.51

índice para catálogo sistemático: 1. Congo : República Democrática : História 967.51

1999 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 72 7 04532-002 — São Paulo — SP Telefoné: (0XX11) 866-0801 Fax: (0XX11) 866-0814 e-mail: editora @companhiadasletras .com.br

Para David Hunter

SUMARIO

Introdução X ........................................................................... .. Prólogo: “Os traficantes estão raptando nosso povo” ..................

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Parte I CAMINHANDO RUMO AO FOGO 1. “Não desistirei da busca’*. - . .................. : . . . - . j31 2. A raposa atravessa o riacho................. . . . . . ................................ 43 3. O magnífico bolo ....................................................... ..................... 57 4. “Os tratados têm de nos conceder tudo”’, . .. /. . ........................ 71 5. Da Flórida para B erlim ...................... .............................

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Parte I CAMINHANDO^ RUMO AO FOGO

1 “NÃO DESISTIREI DA BUSCA ”

A 28 de janeiro de 1841, nascia na pequena cidade galesa de Denbigh ntigo mineiro de carvão que perdera uma das mãos num aciden33

te de trabalho. Outros alunos mais tarde disseram não se lembrar de ne­ nhuma revolta, muito menos de alguma liderada por Stanley; entretanto lembravam de Francis como sendo um homem delicado e de Stanley como seu queridinho, alguém que recebia favores e incentivos e que ficava to­ mando conta da classe quando Francis não estava. Os livros do asilo di­ zem que Stanley saiu não como fugitivo e sim para morar com o tio, en­ quanto continuava os estudos. Igualmente fantasioso é o relato de Stanley sobre seus dias em Nova Orleans. Ele vivia, segundo diz, na casa do benevolente corretor de algo­ dão, Henry Stanley, e de sua santa e frágil esposa. Quando a cidade foi atingida por uma epidemia de febre amarela, ela adoeceu e morreu, numa cama protegida por um cortinado de musselina branca, mas no momento da morte “abriu os olhos brandos e falou, como se de uma grande distân­ cia: ‘Seja um bom menino. Deus o abençoe!’”. Um pouco depois, o viúvo inconsolável abraçou o jovem protegido com força e declarou que “no futuro, você levará meu nome”. A seguir, diz Stanley, vieram dois anos idílicos de viagens de negócios ao lado do ho­ mem a quem se refere como “meu pai”. Eles subiam e desciam o Mississippi de barco, passeando juntos pelo convés, lendo em voz alta um para o outro e conversando sobre a Bíblia. Infelizmente, em 1861 o generoso pai adotivo de Stanley tomou o caminho de sua amada esposa. “Pela pri­ meira vez, compreendi a agudeza da dor que nos penetra na alma quando um ente querido jaz inerte com as mãos cruzadas sobre o peito no sono eterno. Enquanto contemplava o corpo, não me cansava de perguntar, Te­ ria sido minha conduta tão perfeita quanto eu desejara que fosse? Teria fa­ lhado em alguma coisa? Estimara-o como ele merecia ser estimado?” Uma história comovente — não fosse o fato de os registros mostra­ rem que o casal só veio a morrer bem mais tarde, em 1878, dezessete anos depois. Embora tenham adotado duas ciianças, eram ambas meninas. Se­ gundo anuários e relatórios do censo, o jovem Stanley não morou junto com o casal, e sim numa sucessão de pensões. E o comerciante Stanley, após um sério bate-boca com seu empregado, rompeu relações com ele e pediu para que nunca mais aquele nome fosse mencionado em sua presença. As descrições fantasiosas que Stanley fez de sua infância e juventu­ de devem-se, em parte, às narrativas de um contemporâneo seu, Charles Dickens, também muito chegado em cenas de moribundos, mulheres san­ tas e benfeitores ricos. Mas devem-se bem mais ao fato de Stanley achar que sua vida real era uma imensa desgraça e que seria preciso forjar uma outra para apresentar ao mundo. Ele não se limitou a inventar aconteci­ mentos de sua autobiografia; criou anotações num fictício diário em que 34

relata um naufrágio dramático e outras aventuras que nunca aconteceram. As vezes, um mesmo episódio de viagem aparece narrado de formas total­ mente diversas em seu diário, nas cartas, nos artigos que mandava para o jornal e nos livros que escreveu após cada viagem pela África. Para os psico-historiadores, isso tem sido uma festa constante. üflfrdos incidentes mais reveladores que Stanley descreve ou inventa aconteceu logo depois de sua chegada a Nova Orleans, quando dividia uma cama de pensão com Dick Heaton, outro rapaz que saíra de Liverpool trabalhando como marujo, ‘‘Era tão modesto que não se deitava antés de apagar a luz da vela e [... | quando ia para a cama, punha-se bem na bei­ rada, evitando qualquer contato comigo. Quando eu levantava, de manhã, via que ele não havia se despido.” Um dia, Stanley acordou e, olhando para Dick Heaton dormindo a seu lado, “fiquei atônito ao ver o que pensei serem dois tumores no peito do rapaz. [...] Sentei-me na cama [...] e gritei em voz alta |... | ‘Eu sei! Eu sei! Dick, você é uma moça’”. Naque­ la mesma noite, Diçky que então já confessara ser Alice, partiu. “Nunca mais a vi ou ouvi falar dela; mas venho torcendo, desde então, para que o Destino lhe tenha sido propício, já que acredito ter ele sido prudente em separar duas criaturas jovens e simples, que poderiam ter sido levadas, por excesso de sentimento, a cometer loucuras.” Assim como as cenas dickensianas à beira do leito de morte, também essa passagem cheira a lenda — a moça que se disfarça de rapaz para po­ der se alistar como soldado ou fugir para o rnar. Mas a mensagem trans­ mitida pelo episódio, seja ele real ou inventado, continua a mesma: o hor­ ror de Stanley diante da idéia de se ver assim tão perto de uma mulher. Quando começou a Guerra Civil nos Estados Unidos, Stanley alistouse no exército dos confederados, e, em abril de 1862, foi para a guerra com seu regimento de voluntários do Arkansas, participando da batalha de Shiloh, no Tennessee. No segundo dia de lutas, viu-se rodeado por meia dú­ zia de soldados da União e logo depois estava num campo de prisioneiros de guerra superlotado, nos arredores de Chicago. A única forma de esca­ par daquele lugar deplorável, conforme não demorou a descobrir, era alistar-se no exército da União, coisa que fez mais que depressa, apenas para adoecer com uma forte disenteria e receber baixa por motivos médicos. Depois de trabalhar como marinheiro, atravessando várias vezes o Atlân­ tico, alistou-se de novo em 1864, dessa vez na marinha da União. Sua boa letra lhe valeu um posto como escriturário naval na fragata Minnesota. Quando o navio bombardeou um forte confederado na Carolina do Norte, Stanley tomou-se uma das poucas pessoas a viver a guerra dos dois lados. O Minnesota voltou ao porto de origem no início de 1865 e na mes35

ma hora o irrequieto Stanley desertou. Daí em diante, o ritmo das andan­ ças acelera-se bastante. E como se não tivesse mais paciência para insti­ tuições cheias de limites e regras, tais como um asilo, um navio mercante ou um vaso de guerra. Foi primeiro para St. Louis, onde começou a redi­ gir artigos como free lance para um jornal da cidade, enviando uma série de boletins inflamados de um Oeste cada vez mais distante: Denver, Salt Lake City, San Francisco. Em tom reprovador; Stanley escreve sobre o “deboche e libertinagem”, sobre o “redemoinho de pecado” das longín­ quas cidades do Oeste. Depois de uma viagem em busca de aventuras pela Turquia, Stanley voltou ao Oeste dos Estados Unidos, e foi então que sua carreira como jor­ nalista deslanchou. Durante boa parte de 1867, cobriu as chamadas Indian Wars, as revoltas indígenas, enviando notícias tanto para St. Louis quanto pára jornais da costa Leste. Pouco importa que a longa e inglória luta que ©Sandios das planícies do sul travaram contra os invasores de suas terras Ativesse quase no fim, tudo bem que a expedição que Stanley acompanhou tivesse visto muito poucos combates ou que boa parte do ano tivesse sido dedicada às negociações de paz; os editores de Stanley queriam artigos fa­ lando de batalhas dramáticas, e ele não se fez de rogado: “A guerra começou finalmente. [...] os índios* fazendo jus a suas promessas, a seus instintos sanguinários, a seu ódio selvagem pela raça branca e ao que aprenderam dom seus progenitores, pegaram em armas?%fe Esses boletins atraíram a atenção de James Gordon Bennett Jr., o exu­ berante e implacável fundador do New York Herald. E foi ele quem contra­ tou Stanley para cobrir uma guerrinha bem exótica, que prometia vender muito jornal: tratava-se de uma expedição* organizada pelo governo britânico para punir o imperador da Abissínia.1Em Suezv a caminho da guerra, Stanley subornou o chefe do telégrafo para que^fjguando os artigos dos cor­ respondentes chegassem do front, o seu fosse o primeiro a ser transmitido. A medida deu resultado e seu brilhante relato de como os britânicos ven­ ceram a única batalha significativa da guerra foi o primeiro a chegar aos ouvidos do mundo. Num magnífico golpe de sorte, o cabo telegráfico transmediterrânic© rompeu-se pouco depois que os artigos de Stanley .foram en­ viados. Os boletins de seus exasperados riv a is^ até mesmo os relatórios oficiais do exército britânico, tiveram que fazer uma parte da viagem por navio. Num hotel do Cairo, em junho de 1868, Stanley »saboreou o grande furo e a notícia de que fora nomeado correspondente estrangeiro perma­ nente e itinerante' ê&Hérald^ Ele estava com 27 anos de idade.

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Morando agora em Londres, Stanley ouvia por toda parte os primei­ ros rumores do que logo mais ficaria conhecido como a Corrida pela Parti­ lha da África. Numa Europa que entrava confiante na era industrial, mergu­ lhada na sensação de poderio que vinha das novas ferrovias e dos vapores transoceânicos, surge então um novo tipo de herói: o explorador africano. Para aqueles que haviam vivido na África durante milênios, é claro, “não havia nada a descobrir, nós estávamos aqui o tempo todo”, como diria um futuro estadista africano. Mas para os europeus do século xix, celebrar a descoberta de um novo rincão africano era, psicologicamente, um prelúdio à sensação de que o continente lhes pertencia e estava ali para ser tomado. Já então a Europa se via cada vez mais unida pelo telégrafo, pelo cir­ cuito de palestras e por jornais diários de grande circulação, e os explorado­ res africanos acabaram por se tomar as primeiras celebridades internacio­ nais. A fama desses homens cruzou as fronteiras nacionais, como acontece hoje com campeões do atletismo e astros de cinema. Partindo da costa oriental, os ingleses Richard Burton e John Speke empreenderam uma ou­ sada viagem pelo interior da África para descobrir o lago Tanganica, o la­ go de água doce mais comprido do mundo, e o lago Vitória, a maior mas­ sa de água do continente, e coroaram a aventura com um espetáculo que o público sempre aprecia, vindo de celebridades: uma acirrada briga pública. Da costa ocidental da África, o francês Paul Belloni Du Chaillu levou de volta peles e esqueletos de gorilas para relatar, diante de platéias embeve­ cidas, que aqueles grandes animais peludos raptavam e levavam mulheres para seus covis com objetivos demasiadamente vis para serem comentados. ?Por baixo de toda essa comoção européia havia a esperança de que a África? se tomasse uma fonte de matérias-primas para abastecer a Revolu­ ção Industrial, da mesma forma como o continente fora a fonte da maté­ ria-prima — escravos — que abastecera a agricultura das colônias. As pkpeetativas aumentaram de forma dramática depois que prospectores en­ contraram diamantes na África do Sul, em 1867, e ouro umas duas déca­ das depois. Mas os europeus gostavam de pensar que tinham motivos mais nobres. Os britânicos, em particular, acreditavam fervorosamente em levar a “civilização” e o cristianismo aos nativos; sentiam grande curiosidade em saber o que havia no interior desconhecido do continente; e estavam convictos de que queriam combater a escravidão. A Grã-Bretanha, naturalmente, tinha um direito meio dúbio a essa opinião tão nobre a respeito da escravidão. Os navios britânicos, afinal, dominaram por muito tempo o comércio de escravos e foi apenas em 1838 que os últimos vestígios de escravidão foram abolidos do Império Britâni­ co. Os ingleses, porém, esqueceram-se rapidamente disso tudo, assim co­ mo esqueceram-se de que houve inúmeras revoltas escravas na Jamaica e 37

de que fatores econômicos aceleraram o fim da escravidão, tomando-a menos rentável. Na opinião deles, a escravidão tinha acabado em quase to­ do o mundo por um único motivo: a virtude britânica. Quando o monu­ mento em memória do príncipe Albert foi construído em Londres, em 1872, uma das estátuas mostrava um jovem negro africano, nu à exceção de al­ gumas folhas na virilha. O livreto que acompanhou a inauguração do mo­ numento dizia que ele era um “representante das raças não civilizadas” as­ sistindo à aula de uma mulher européia e que as “correntes quebradas a seus pés eram uma referência ao papel assumido pela Grã-Bretanha na emancipação dos escravos”. Muito significativamente, boa parte do fervor antiescravista de fran­ ceses e britânicos, por volta de 1860, foi dirigido não contra Espanha e Portugal, que permitiam a escravidão em suas colônias, ou contra o Bra­ sil, com seus milhões de escravos. As denúncias todas eram despejadas contra um alvo distante, fraco, e que, convenientemente, não tinha a cor branca: os chamados traficantes árabes de escravos, que pilhavam o Leste da África. Nos mercados escravos de Zanzibar, os mercadores vendiam seres humanos a fazendeiros árabes da própria ilha e a outros comprado­ res da Pérsia, de Madagáscar e de vários sultanatos e principados da pe­ nínsula arábica. Para os europeus, ali estava um alvo ideal para desapro­ vação: uma raça “não civilizada” escravizando outra. Chamá-los de árabes era um engano; affo-árabes teria sido mais acer­ tado. Embora em geral os cativos acabassem indo parar no mundo árabe, os traficantes no continente eram quase todos africanos de língua suaíle, pro­ venientes de territórios onde hoje ficam o Quênia e a Tanzânia. Muitos ado­ taram vestes árabes, juntamente com o islamismo, mas apenas alguns deles eram parcialmente descendentes dos árabes. Mesmo assim, de Edimburgo a Roma, livros, sermões e discursos indignados condenavam os diabólicos es­ cravocratas “árabes” e, por inferência, a idéia de que qualquer parte da África pudesse vir a ser colonizada por alguém que não fosse europeu. Todos esses impulsos europeus — zelo antiescravista, busca de ma­ térias-primas, evangelização e pura curiosidade — estavam corporificados num homem, David Livingstone. Médico, garimpeiro, missionário, explo­ rador e, num determinado momento, até cônsul britânico, ele vagou duran­ te três décadas pela África, a partir de 1840. Buscou a nascente do Nilo, denunciou a escravidão, descobriu as cataratas Vitória, procurou por mi­ nérios preciosos e pregou o evangelho. Como primeiro branco a cruzar o continente de costa a costa,* tomou-se um herói nacional na Inglaterra. (*) Infelizm ente p ara os apóstolos da suprem acia européia, a prim eira travessia regis­ trada da Á frica central, que não foi reconhecida nem p o r Stanley nem pela m aioria dos ou-

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Em 1866, Livingstone partiu para outra longa expedição, em buspa de traficantes de escravos, de candidatos a cristãos, da nascente do Nilo e de qualquer outra coisa que estivesse precisando ser descoberta. Os anos foram passando e Livingstone não voltou. Quando as pessoas começaram a se perguntar o que teria sido feito dele, o editor do New York Herald, Ja­ mes Gordon Bennett, viu uma oportunidade de ouro. Em 1869, ou pelo menos foi essa a história que Stanley contou, ele, Stanley, recebeu um te­ legrama urgente de Bennett, seu patrão: v e n h a a p a r i s , a s s u n t o i m p o r ­ t a n t e . Um jornalista — Stanley já começara a escrever com aquele senso de grandiosidade pessoal que passou a fazer parte de sua personalidade — é “como um gladiador numa arena. [;..] Qualquer hesitação, qualquer co­ vardia e ele está perdido. G gladiador enfrenta a espada que foi afiada para ser cravada em seu peito — o [...] correspondente itinerante obedece ao comando que pode lhe ser fatal”. Ele correu a Paris para se encontrar com seu editor no Grand Hotel. Lá, uma conversa dramática sobre Livingstone culminou com a seguinte declaração de Bennett: “Vá, encontre-o seja onde for, Obtenha as notícias que conseguir sobre ele, e talvez {...] o ve­ lho esteja precisando de alguma coisa leve o suficiente consigo para ajudá-lo,»easo precise [...] faça o que achar melhor — , m a s e n c o n t r e

[J|§

l i v i n g s t o n e !’»

®

Essa cena forneceu uma esplêndida introdução ao primeiro livro de Stanley, How I Found Livingstone [Como encontrei Livingstone], e trans­ formou Bennett, a quem o volume é dedicado, no mentor visionário da grande aventura. Entretanto, a tal conversa parece que jamais aconteceu. As páginas do diário de Stanley referentes às datas próximas ao suposto encontro com Bennett foram arrancadas, e na verdade Stanley só começou a procurar Livingstone um ano depois. Ainda que um tanto ou quanto distante da veracidade dos fatos, a his­ tória do dramático apelo que Bennett fez a Stanley em Paris vendeu um bocado de livros e, para Stanley, isso era o que importava. Ele queria mais do que a simples fama de explorador; sua índole melodramática, como re­ parou um historiador, fez dele “o progenitor de todos os escritores de via­ gens subseqüentes”. Stanley ganhou muito mais com seus artigos, livros e tumês de palestras do que qualquer outro escritor de viagens da época e, provavelmente, do século seguinte também. Para cada passo dado na África havia um meticuloso planejamento de como contar a história assim que tros exploradores b rancos, tinha sido feita m eio século antes p o r dois traficantes de escravos m ulatos, P edro B aptista e A nastasio José. A viagem deles foi tam bém a prim eira de ida e volta.

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voltasse. De um modo semelhante ao praticado no século xx, Stanley es­ culpiu sem descanso os detalhes da própria celebridade. Para não deixar nenhuma pista a possíveis rivais durante a procura de Livingstone, fez correr o boato, ao ir para a África, de que planejava ex­ plorar o riõ Rufiji. Em primeiro lugar dirigiu-se a Zanzibar, para contratar carregadores, e de lá escreveu uma enxurrada de cartas a Katie Gough-Roberts, uma jovem de sua cidade natal, Denbigh, a qiiem fizera a corte. Fora um namoro breve, nervoso, rígido, interrompido pelas muitas viagens jor­ nalísticas de Stanley, mas nas cartas ele abriu seu coração, confessando’in­ clusive o penoso segredo de seu nascimento ilegítimo. (Stanley planejava casar-se com ela depoisbe, encontrar fiiyingstone. Por fim, na primavera de 1871, acompanhado por um cachorro cha­ mado Ornar, carregador#, guardas armados, um intérprete, cozinheiros, um guia levando a bandeira norte-americana e dois marujos britânicos — cerca de 190 homens no total, a maior expedição africana até aquela da­ ta —, Stanley partiu da costa oriental em busca de Livingstone, que àque­ la altura não. era visto por nenhum europeu havia cinco anos. “Onde quer que-ele se encontre”, declarou Stanley a seus leitores nova-iorquinos, “es­ tejam certos de que não desistirei da busca. Se estiver vivo, os senhores sa­ berão o que ele tem a dizer; se morto, encontrarei e lhes trarei de volta seus restos m ortaisM | Stanley teve de caminhar durante mais deoitameggs an ||s de encon­ trar o explorador ip o d e r pronunciar a famosa f r a ^ ‘‘Doutor LivipgstpnpJ eu suponhoíl. A prolongada busçaaçabou sendo^pndária d e y i^ ^ g frie de boletins enviados por Stanley,e à eerteza.de Benn&tt :de.aue(ff^n,Aornal tinha em mãos um negócio da China, uma das histórias de maior interes­ se humanitário do século. Como Stanley fosse a* única fpnte de informa­ ção sobre a busca (seus dois companheiros b san op^^^ifram durante a expedição e ninguém nunca pensou em entrevistar o$ carregadores sobre­ viventes), a lenda permanecpu ,§pndo heróica. Houyp mesfS; de marcha pe­ nosa, pântanos tenebrosp^diabólicos traficantes, “árabfs” de escravos, mis­ teriosas d o fp ^fm o rtai^p erig o so s ataques de'^oepdil)^;e,- por fim,j^ descoberta triunfal do gentil doutor Livingstone. Livingstone foi santificado pela prosa de Stankjfffá que aquele§|||J nhor representava a nobre figura paterna que ele tanto procurara e, áté cer­ to ponto,,enconü ara. Segundo Stanley, o experiente §ábip^|*o intrèpido jo ­ vem herói tornaram-se amigos do peito à medida que ^pioravam , juntos, pptras ,t;erra§. estranhas, nos vários meses seguinte,; (Navegaram em tomo do extremo norte do lago Tanganica, na esperança dç encontrar a nascen­ te do Nilo, mas, para grande decepção dos dois, viram apenas um outro rio 40

desembocando no lago.) O velho Livingstone transmitiu toda a sua sabe­ doria ao jovem Stanley, até que um dia tiveram de dizer um triste adeus e separar-se parai sempre. Foi muito oportuno para Stanley que Livingstone tivesse permanecido na África e morrido logo depois, antes de ter a chan­ ce de voltar para dividir as luzes da ribalta ou contar uma história um pou­ co diferente. Stanley, muito espertamente, salpicou seu.relato com chefes muito pitorescos, sultões exóticos e servos fiéis, introduzindo também as amplas generalizações que permitiam a seus leitores sentir-se em casa num mundo desconhecido|f ‘0 s árabes não mudam nunca”|§fQs banianos são mercadores natos^MTelos mestiços sinto grande desdém”. *' Ao contrário do pacífico e paternalista Livingstone, que viajava sem grandeS séquitos de homens fortemente armados, Stanley era inflexível e brutalt “Os negros representam um problema atrás do outro; são ingratos demais para meu gosto”,.escreveu ele, durante a viagem. Embora suaviza­ dos por revisões sucessivasitfleus retateis revelam um homem sujeito a ex­ plosões de raiva. Ele ifcjfçava seus shónsens a subir montanhas e atravessar pântanos sem descanso» “Quando a lama e a umidade solapavam a ener­ gia física daqueles inclinado^ preguiça, uma boa chicotada no lombo res­ tituía-os a uma sólida | | | às vezes até extravagante — atividade.” Não ha­ via nem d o || anós Stanley desertara da marinha norte-americana, mas agora comentava com satisfação que “os desertores incorrigíveis [...] eram açoitados e postos em ferros”. Os moradores das aldeias pelas quais passou a expedição podem muito bem ter confundido aquele grupo com mais uma caravana de escravos. Assim como tantos outros que vieram depois, Stanley via a África como um território essencialmente vazio. “País despovoado”, era assim qué ele dizia. “Que bela cidade não teríamos neste vale! Vejam, é amplo o bastante para sustentar urna grande população. Imaginem uma torre de igreja erguida onde o tamarindo exibe sua folhagem escura, pensem em como uma vintena ou duas de casas.assentariam bem onde hoje só há mato e^árvores resinosas!” ® m ais||‘Restam ainda muitos [...] decanos peregri­ nas entre a raça anglo-saxônica, e quando a América estiver repleta de s|bus descendentes, quem sabe se não sec&aÁfrica [...] seu próximo pou­ so de descanso?”. Para ele e para o público que o ha, seu futuro estava firmemente li­ gado ao da África. Por ocasião de seu regresso^ Europa, a imprensa fran­ cesa comparou a façanha de ter encontrado Livingstone à travessia dos Al­ pes feita por Aníbal e. Napoleão. Bem mais apropriadamente, tendo-se em vista o alarde que Stanley fazia sobre matar qualquer um que se pusesse em seu caminho, o general Willia|ir Tecumseh Sherman. do exército nor41

tista dos Estados Unidos, recebeu-o para o café da manhã, em Paris, e comparou a viagem de Stanley a sua própria marcha arrasadora até o mar. Os britânicos foram um pouco mais hostis. A Royal Geographical Society havia tardiamente enviado uma expedição para encontrar Livingstone, e os integrantes do grupo ficaram pasmados quando cruzaram com Stanley bem no momento em que ele embarcava triunfante de volta à Eu­ ropa. Nas entrelinhas dos relatórios escritos por ressentidos funcionários da sociedade, era possível perceber a irritação provocada por Stanley. Afi­ nal, o dr. Livingstone não fora encontrado nem por um explorador de ver­ dade nem por um inglês de verdade e sim por um jornalista de “meia-pataca”, que escrevia para a imprensa marrom dos Estados Unidos. Mas, como perceberam alguns na Inglaterra, o sotaque norte-americano de Stan­ ley tendia a se transformar em sotaque galês sempre que se emocionava. Os rumores sobre seu nascimento ilegítimo numa pequena cidade do País de Gales preocupavam-no sobremaneira, uma vez que, escrevendo para um jornal de Nova York cheio de patriotadas e antibritâmeói era tido como nascido e criado nos Estados Unidos, (Ele às vezes dava a entender que era de Nova York; às vezes de St. Louis. Mark Twain enviou parabéns a seu “conterrâneo do Missouri” por ter encontrado Iivingstone&ffi* Stanley, que já se sentia rejeitado,sgobretudo pela burguesia inglesa, viu-se rejeitado também pela noiva. Durante suas viagens, Katie GoughRoberts casara-se com um arquiteto chamado Bradshaw. Stanley, ficou de­ sesperado para recuperar as cartas enviadas, sobretudo aquela em que lhe contara sobre suas origens. Mas quando escreveu pedindo a devolução, a moça recusou-se, a menos que fosse buscá-las pessoalmente. Durante uma palestra de Stanley proferida em Manchester, ela e o marido achavam-se na platéia. Em seguida, Katie foi até a casa em que Stanley se hospedara e pediu ao mordomo para avisá-lo de que estava com a carta. Stanley ins­ truiu o mordomo a pegar a carta de volta; uma vez mais, Katie se recusou a entregar a carta a qualquer outra pessoa que não fosse Stanley. Ele não quis ir até a porta e ela partiu, ainda de posse da carta. Seu orgulho ferido era como uma chaga aberta. Logo depois, buscaria consolo de novo na África.

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A RAPOSA ATRAVESSA O RIACHO

Quando, pelos fios do telégrafo, chegou à Europa a notícia de que Stanley encontrara Livingstone, havia muita gente acompanhando as no­ vidades com ávido interesse, naquela primavera de 1872. Uma delas era um cavalheiro muito espigado, de 37 anos, dono de uma barba imponente em forma de espada, morador do vasto castelo de Laeken, situado na en­ costa de uma pequena colina, nos arredores de Bruxelas. Sete anos antes, com a morte do pai, Leopoldo n herdara o título dis­ tintivo dos monarcas do país: Rei dos Belgas. A própria Bélgica era pou­ ca coisa mais velha que ele. Depois de dominações sucessivas por parte de espanhóis, austríacos, franceses e holandeses, o país tomara-se indepen­ dente em 1830, após uma revolta contra a Holanda. Ê como todo país que se preza precisa de um rei, os belgas saíram à cata do seu, resolvendo-se finalmente por um príncipe alemão, aparentado com a família real britâni­ ca, que assumiu o trono como Leopoldo i. A pequena nação era um amálgama não muito confortável de falantes de francês e flamengo, como era chamado o idioma holandês usado no Norte da Bélgica. Na corte de seu pai, o futuro Leopoldo n falava francês e alemão, e já na infância tomou-se fluente em inglês. No entanto, embora de vez em quando enfeitasse seus discursos com algumas poucas frases em flamengo, nunca se deu ao trabalho de aprender a língua de mais da me­ tade de seus súditos. Leopoldo não estava sozinho nesse ato de esnobismo, já que na época a acirrada divisão de línguas, além de cindir o país, marca­ va também as diferenças entre as classes sociais. Até mesmo no Norte, ho­ mens de negócio e profissionais liberais costumavam falar francês e olhar torto para os agricultores e operários pobres que falavam o flamengo. O casamento dos pais de Leopoldo fora uma união sem amor, resul­ tado de uma mera conveniência política. O primogênito era uma criança desajeitada e comprida, que parecia pouco à vontade no mundo; os pais não faziam segredo da preferência que tinham pelo irmão e pela irmã mais 43

novos. Quando completou catorze anos, a mãe de Leopoldo lhe escreveu: “Fiquei muito aborrecida de ver, no boletim do coronel, que você de novo se comportou de maneira preguiçosa, e que seus exercícios estão ruins e descuidados. Não foi isso que me prometeu e espero que se esforce para fazer melhor os deveres de casa. Seu pai ficou tão aborrecido quanto eu com esse último relatório”. O herdeiro não tinha o menor interesse nos es­ tudos, exceto quando se tratava de geografia. A partir dos dez anos, come­ çou a receber instrução militar; aos quinze tinha o posto de tenente no exército belga, aos dezesseis, de capitão, aos dezoito era major, aos deze­ nove, coronel, e ao completar vinte anos seria promovido a general. Um retrato formal pintado no fim da adolescência mostra o príncipe com es­ pada,,faixa, carmim e medalhas no peito. O desajeitado corpo do jovem Leopoldo é uma taquara; as dragonas douradas parecem grandes demais para os ombros; a cabeça, grande demais para o.tprso. Çaso Leopoldo á f q i s ç ^ ver o pai, tinha de pedir uma audiência. Quando o pai tinha algo a dizer ao filho, fazia-o por intermédio de seus se­ cretários. Foi nessa atinosfera gelada que, ainda adolescente, Leopoldo começou a a p r e n d ia reunir em volta de si pessoas esperançosas de obter seus favores. Os funcionários do reino estavam dispostos a ganhar a ami­ zade do futuro monarca, mostrando-lhe documentos de Estado, ensinan­ do-lhe .qss meandros do governo e satisfazendo-lhe a paixão por mapas e infoimaçõç® lu g^a^istanteS fdo globo. Ainda que houvesse pouca afeição entre pai e filho, o velho rei era bom observador. “Leopoldo é sutil e astuto”, disse ele a um de seus mi­ nistros. “Nunca se arrisca. Outro dia [...] observei uma raposa que queria cruzar o riacho: primeiro, mergulhou a pata com todo o cuidado para ver a profundidade, e depois, cercada de mil precauções, muito devagar, fez a travessia. E assim que Leopoldo age!” Nem sempre Leopoldo seria cau­ teloso; muitas vezes deu o passo maior do que as pernas ou revelou coi­ sas demais a respeito da presa que tinha em mira. Mas houve uma boa dose de esperteza na forma como esse monarca constitucional, governan­ te de um pequeno país cada vez mais democrático, acabou virando o di­ rigente totalitário de um vasto império, num outro continente. Dissimu­ lação e ocultamento seriam seus métodos, as mesmas qualidades das quais depende a raposa para sobreviver num mundo de caçadores e animais fe­ rozes.

Em 1853$jsúd nascente. 57

Reabastecido na hora H, Stanley e os esfrangalhados sobreviventes da expedição avançarâm lentamente a pé até Boma. Tendo saído de Zanzibar, na costa oriental, haviam prosseguido em ziguezague por mais de 11 mil quilômetros e estavam viajando havia mais de dois anos e meio. Galês disfarçado de cidadão nascido e crescido nos Estados Unidos, Stanley era tanto o anglo quanto o americano de sua Expedição AngloAmericana. O nome, entretanto, deixava mais ou menos claro que a viagem, bem mais cara e ambiciosa do que a anterior, em busca de Livingstone, es­ tava sendo financiada por James Gordon Bennett do New York Herald e por Edward Levy-Lawson, do Daily Telegraph de Londres, que publica­ vam seus boletins. Em troca, Stanley distribuía o nome dos respectivos do­ nos por onde passava: monte Gordon-Bennett, rio Gordon-Bennett, coli­ nas Levy, monte Lawson. O seu, guardou para as Stanley Falis, no centro do continente, e para um lugar cerca de 1500 quilômetros mais abaixo, no final das corredeiras, onde o rio Congo se abre num grande lago. Disse que a idéia de dar seu nome ao local fora do vice-comandante da expedi­ ção, Frank Pocock, que teria exclamado: “Ora [...] a este belo lugar va­ mos dar o nome de Stanley Pool [pego de Stanley]!”» Pocock entretanto não teve chance de confirmar ou negar o fato; morreu afogado no rio logo depois de ter batizado, ou. deixado de batizar, esse trecho. Às vésperas de sua formidável travessia da África-, Stanley estava de novo apaixonado, dessa vez por Alice Pike, uma herdeira norte-americana de dezessete anos de idade. Apaixonar-se por uma adolescente volúvel, com metade de sua idade, pouco antes de partir para uma viagem de três anos não era exatamente o melhor caminho para a felicidade conjugal, mas talvez tenha sido bem isso o que atraiu Stanley, já que ele òontinuava arisco y^nulheres. Ele e Alice concordaram em se ca^ar quando Stanley voltasse, ^ssinaram um pacto nupcial e marcaram a data. Foi depois desse noyo amor que Stanley deu nome ao principal meio de transporte da expedição. 0 Lady Alice era um barco de doze metros, de cedro espanhol, dividido em cinco seções. Quando as partes eram encai­ xadas umas nas outras, o barco podia ser remado por lagos e rios‘áfricanos; quando.separadas, çram suspensas em varas e carregadas pelas equi­ pes de carregadores por tantos quilômetros quantqs, fossem necessários. Stanley nunca se sentiu à vontade na companhia de pessoas cujos ta­ lentos pudessem ser maiores do que os seus. Dos 1200 homens que se can­ didataram para a expedição, alguns deles viajantes altamente experientes, Stanley escolheu três dos mais inadequados: um par de marujos pescado­ res, os irmãos Frank e Edward Pocock, e um jovem escriturário de hotel, chamado Frederick Barker. A maior habilidade de Edward Pocock parece 58

ter sido a de saber tocar clarim. Nenhum dos três tinha qualquer experiên­ cia em viagens exploratórias. Quando os quatro brancos saíram marchando rumo ao interior do continente, encabeçando a Expedição Anglo-Americana, iam à frente de um grupo quase duas vezes maior que a expedição montada para achar Livingstone — eram 356 pessoas no total, 46 delas mulheres e crianças, já que alguns dos africanos mais velhos tiveram o privilégio de poder seguir junto com a família. Esse pequeno exército levava mais de 7 mil quilos de carga, entre armas, equipamentos e mercadorias, para trocar por comida no caminho. Durante a marcha, a coluna estendia-se por quase um quilô­ metro, uma distância tãp grande que as paradas tinham de ser anunciadas pelo clarim de Edwârd Pocock. ' Os toques de clarim vinham bem a calhar; para Stanley, explorar è guerrear eram sinônimos. Nunca lhe passou pela cabeça contar os mortos que a expedição deixou pelo caminho, más com certeza foram centenas. O grupo de Stanley tinha rifles de último tipo e espingardas de caçar elefan­ te, com balas explosivas; os infelizes nativos tinham de lutar com lanças, arcos e flechas ou, na melhor das hipóteses, com antigos mosquetes com­ prados dos traficantes de escravos. “Atacamos e destruímos 28 cidades de bom tamanho e umas três ou quatro vintenas de aldeias”, escreveu ele no diário. Grande parte das lutas era travada em lagos e rios, com o explora­ dor e seus homens empunhando as bandeiras britânica e norte-americana e disparando do Lady Alice e das canoas que acompanhavam o barco. O melindroso Stanley era extraordinariamente franco na hora de admitir um certo pendor para tomar qualquer mostra de hostilidade como insulto mor­ tal. É quase como se estivesse sendo impelido continente adentro pelo sen­ timento de vingança. Conduzindo o Lady Alice para um determinado lugar do lago Tanganica, por exemplo, “a praia estava lotada de nativos furiosos e galhofeiros [...] percebemos que estávamos sendo seguidos por várias canoas e, em algumas, vimos lanças sendo sacudidas para nós [...] Abri fogo contra eles com a Winchester de repetição. Seis tiros e quatro mortos foi o suficiente para cessar com a galhofa”. Nos primeiros meses de viagem, Stanley pôde descrever várias esca­ ramuças como essa para o jornal; os artigos eram levados por mensagei­ ros até a costa oriental da África, de onde eram transmitidos para a Ingla­ terra por telégrafo. Naquele país, os artigos provocaram indignação por parte de grupos humanitários como a Sociedade de Proteção aos Aborígi­ nes e a Sociedade Antiescravocratá. Stanley “mata os negros Como se eles fossem macacos”, cofnentou o explorador e escritor Richard Burton. O ministro do Exterior britânico, todavia, parecia mais irritado com o fato de 59

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que esse atrevido escritor da imprensa popular, que se dizia norte-ameri­ cano, estivesse empunhando a bandeira britânica. Enviou a Stanley um re­ cado pomposo, declarando que não havia autorização para tal. Para James Gordon Bennett Jr., dono do New York Herald e antibritânico convicto, a polêmica só proporcionou deleite. Com grande entusias­ mo, desancou os críticos de Stanley, chamando-os de “dervixes vociferantes da civilização [...] muito seguros em Londres [...] filantropos [...] [cuja] visão absurda é a de que um líder [...] deve permitir que seus ho­ mens e ele próprio sejam massacrados pelos nativos, desperdiçando assim a oportunidade da descoberta, mas que jamais, em momento algum, deve puxar o gatilho contra essa espécie de praga humana”. Entre as façanhas desse primeiro estágio das viagens, Stanley dizia ter ensinado ao imperador de Uganda os Dez Mandamentos e de tê-lo con­ vertido ao cristianismo. No entanto, um oficial francês que estava também em visita a Uganda, nessa época, disse mais tarde que Stanley só conse­ guiu convencer o imperador porque falou que os cristãos tinham onze mandamentos. O décimo primeiro era: “Honrar e respeitar os reis, porque eles são os enviados de Deus”. Após meses transportando fardos pesados, muitos carregadores co­ meçaram a se revoltar, a surrupiar suprimentos e a fugir. Por inúmeras ve­ zes, Stanley castigou severamente os infratores: “O assassino de Membé [...]”, escreveu no diário, “foi condenado a duzentas chibatadas [...] os dois bêbados, a cem cada um e a ficarem acorrentados por seis meses”. Mais tarde, falando sobre os carregadores, escreveu: “São criados infiéis, mentirosos, ladrões e indolentes, que acabam ensinando um homem a des­ prezar a si próprio pela tolice de tentar empreender uma grande obra com escravos tão pífios”. Com a noiva, Alice Pike, o tom era bem diferente. Escrevendo no pri­ meiro Natal da expedição, ele dizia: “Como seu gentil coração de mulher iria se condoer por mim e pelo meu coração. [...] O acampamento está em extremo desconsolo e as pessoas parecem ter decidido cometer suicídio ou permanecer inertes até que a morte os redima”. Sempre levando a foto da moça consigo, bem embrulhada num oleado, Stanley marcou no mapa uma ilha Alice e as corredeiras Lady Alice. “Gosto tanto de dançar. [...]”, Alice escreveu. “Prefiro ir à ópera [...] do que a uma festa. [...] Quase todas as noites aparecem alguns rapazes — fico tremendamente entediada com eles. [...] Estou com o dedo horren­ damente dolorido, fiz uma bolha tocando harpa. Estou me dando bem com ela, só que nunca pratico.” Ao que tudo indica, ela não tinha a mínima idéia de onde Stanley estava, nem de que suas cartas, caso chegassem ao 60

destino, tinham de ser transportadas pelo mato durante meses. “Você nun­ ca me escreve, agora”, queixou-se, “e eu só queria saber por quê???? Es­ tou muito brava com a África central.”

No livro que escreveu após essa expedição, Through the Dark Continent [Através do continente negro], Stanley seguiu algumas regrinhas que acabaria adotando em todos os outros livros: espichar o relato para dois volumes (num total de 960 páginas, no caso); usar no título a palavra “darU'* (In Darkest África e My Dark Companions and Their Strange Stories sairiam a segpir); e empregar todos os meios possíveis para contar a história. Há fotografias do autor “antes” e “depois”, mostrando como o cabelo branqueou durante a viagem; “trechos de meu diário” (quando comparados aos cadernos verdadeiros, vê-se que não são muito fiéis); um encarte dobrável com um elaborado mapa mostrando a rota da viagem; mais de cem desenhos — de batalhas, encontros dramáticos; uma canoa sendo sugada por um redemoinho; plantas das casas africanas; mapas das ruas de uma aldeia; listas de suprimentos. Enfim, uma infinidade de dia­ gramas mostrando de tudo um pouco, desde a linhagem dos reis africanos até os formatos de diferentes remos. Muito astuto, Stanley pressentiu que a ignorância dos leitores a respeito da África os deixaria ainda mais fasci­ nados diante dessa multiplicidade de detalhes mundanos, tais como um catálogo de preços mostrando que uma galinha custava um colar de con­ tas em Abaddi, ao passo que seis galinhas custavam doze metros de teci­ do em Ugogo. Os leitores sentiam-se recompensados pelo dinheiro des­ pendido. Ainda que em uma época pré-eletrônica, os livros de Stanley eram verdadeiras produções multimídia. Lê-los hoje em dia é ver o quanto as viagens de Stanley foram um ato de apropriação. Ele está sempre medindo e registrando coisas: temperatu­ ra, quilômetros percorridos, profundidade de lagos, latitude, longitude e altitude (que ele calculava medindo a que temperatura a água fervia). Car­ regadores de confiança levavam as cargas frágeis contendo termômetros, barômetros, relógios, bússolas e pedômetros. E quase como se fosse um topógrafo, mapeando o território que cruzava para seus futuros donos. Foi a segunda parte da viagem de Stanley que a transformou numa façanha exploratória de proporções épicas. Do lago Tanganica, onde en­ contrara Livingstone, vários anos antes, ele e sua reduzida equipe de car(*) A palavra dark, em inglês, além d e significar negro, escuro, m isterioso, tem tam ­ bém conotações negativas com o inculto, som brio, ignorante, perverso. (N. T.)

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regadores, alguns dos quais já rebelados e acorrentados, começaram a ca­ minhada para oeste até chegarem, algumas semanas depois, a um grande rio conhecido na região como Lualaba. Nenhum europeu jamais se aven­ turara abaixo desse ponto e ninguém sabia aonde o Lualaba ia dar. Livingstone tinha achado que talvez fosse a tão procurada fonte do Nilo, uma vez que o Lualaba, ali, corre para o norte, direto rumo ao Egito. Stanley, no entanto, tinha certeza de que o Lualaba era grande demais para ser o começo do Nilo; por uns tempos, acreditou que talvez fosse o Níger, cujo escoadouro, assim como o do Nilo, fica bem ao norte. Depois, descendo o rio, foi se convencendo de que se tratava do Congo. Mas ain­ da assim não tinha certeza absoluta, uma vez que o estuário onde o Con­ go deságua no Atlântico, meio continente adiante, fica ao sul do ponto onde os astros lhe diziam que estava, ou seja, às margens do Lualaba, que corre para o norte. Nos mapas europeus, tudo o que há entre um ponto e outro estava em branco. Segundo o relato de Stanley, ele parou na ribanceira do rio misterio­ so e falou o seguinte aos integrantes da expedição: “Seja em que oceano for que esse grande rio deságüe, havemos de se­ gui-lo. [...] De suas vidas depende a minha; se eu arriscá-las, estarei ar­ riscando a minha. Como um pai que zela por seus filhos, zelarei por todos vocês. [...] Portanto, meus filhos, decidam-se — assim como eu me deci­ di, já que estamos no meio deste continente, e seria tão ruim voltar quan­ to continuar — por continuar nossa viagem, por mourejar adiante, sem descanso, por este curso e nenhum outro, até chegarmos ao mar.” Frank Pocock, o fiel vice-comandante da expedição, perguntou: “An­ tes de partirmos, senhor, diga-me uma coisa. O senhor acredita de fato, lá no fundo da alma, que conseguiremos?”. Ao que Stanley respondeu: “Se acredito? Sim, acredito que havere­ mos de emergir em plena luz de novo, alguma hora. Verdade que nossas chances são tão negras quanto a noite. [...] Acredito que [este rio] acaba­ rá por ser o Congo; se for o Congo, então deve haver muitas cataratas [...] seja o Congo, o Níger ou o Nilo, estou preparado. [...] Se acredito? Vejo a todos nós percorrendo cidades povoadas e não permitirei uma sombra de dúvida em minha mente. Boa noite, meu rapaz! Boa noite! E muitos bons sonhos com o mar e os navios. Que o prazer, a luta e o sucesso o acompa­ nhem em seu sono!”. Teria Stanley de fato parado às margens do rio e proferido palavras remotamente semelhantes a essas? Jamais saberemos, porque nenhum dos três brancos, que o acompanharam sobreviveu. Muito tempo antes de Frank Pocock morrer afogado, Fred Barker morreu de “acessos de sezão” 62

tão severos que “seu sangue parecia estagnado nas veias” até que “o san­ gue coagulado não correu mais e [...] o pobre rapaz morreu”. Edward I*ocock foi vítima de delírios. “Corri para ele”, diz Stanley, “... apenas a tem­ po, porém, de vê-lo dar seu último suspiro.” Se por acaso o Lualaba fosse de fato o Congo, teria de fazer uma cur­ va de 180° em algum ponto, e Stanley sabia disso. Navegando rio abaixo, ou, sobretudo no início, caminhando ao longo do curso, muitas foram as vezes em que ele mediu a latitude e a longitude. Durante várias centenas de quilômetros, o rio continuou a surpreender e a correr para o norte. Mas, por fim, começou a fazer um amplo arco no sentido anti-horário, na dire­ ção oeste, terminando por fluir para sudoeste, em direção às temíveis ca­ taratas e ao Atlântico. A viagem de Stanley solucionou um outro mistério geográfico. O Con­ go começa e termina abaixo do equador, mas a parte de cima de seu imen­ so semicírculo fica acima do equador. Na África central, o equador funcio­ na como a linha divisória entre as estações de chuva e de seca: quando é uma coisa acima da linha, é outra abaixo dela. Portanto, seja qual for a época do ano, o Congo passa tanto por território irrigado pelas chuvas quanto por tre­ chos onde há estiagem. Isso explicava por que, no decorrer do ano, o fluxo do Congo variava bem menos do que o de outros rios tropicais. Aquele rio imenso, que se alargava constantemente, era uma rica fon­ te de comida para os moradores ribeirinhos, como o próprio Stanley cons­ tatou. Dessa época para cá, os cientistas já encontraram mais de quinhen­ tas espécies de peixes no rio. Esses peixes alimentam-se de uma enorme variedade de insetos, comem-se uns aos outros, ou então as frutas e folhas que caem na água, sobretudo durante as cheias, quando o rio extravasa e inunda as pradarias e florestas vizinhas. E frustrante que as únicas vozes africanas a serem ouvidas sobre essa aventura sejam aquelas registradas pelo próprio Stanley. Muito de vez em quando, ele repara numa delas ou quem sabe apenas a imagine, como se estivesse dando uma olhada rápida e meio culpada no espelho. Eis aqui uma dessas espiadelas, tirada de uma anotação feita em seu diário a 12 de setembro de 1876, o mesmo dia, coincidentemente, em que os dignitários trajados a rigor subiam as escadarias de mármore do Palácio Real para a abertura da Conferência Geográfica de Bruxelas, promovida pelo rei Leo­ poldo n: O hom em branco na opinião de um uagua: “Com o pode ele ser um bom hom em , se não veio comerciar, se não ve­ mos seus pés, se anda o tem po todo coberto de roupas, ao contrário de toda a gente? Não, existe algo de m uito m isterioso a seu respeito, talvez malva-

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do, quem sabe seja um m ágico. D e toda m aneira, o m elhor é deixá-lo em paz e não perturbá-lo,”

O avanço sangrento de Stanley, rio abaixo, tomou-se parte da histó­ ria oral da região, às vezes assumindo elementos de lenda, uma vez que o alcance e a precisão de seus rifles pareciam sobrenaturais àqueles que nunca tinham visto tais armas. Um viajante, alguns anos depois, ouviu um desses relatos. O chefe dos forasteiros estava coberto de panos e tinha o rosto branco, bri­ lhante com o raios de sol batendo no rio. [...] O chefe dos forasteiros tinha um só olho. p . .] Ficava no m eio da testa. [...] Q uando os basokos entraram no rio em suas canoas de guerra para lutar e capturar os forasteiros, gritaram : “Carne! C arne!” , porque pretendiam com ê-los. M as eles não se deixaram capturar e m ataram m uitos basokos com paus de onde saíam raios e trovões. Falavam palavras num a língua estrangeira. E les [.. .] continuaram a descer o rio e passaram pelos fortes basokos zom bando de todos.

Essa imagem de Stanley como homem de um olho só, guardada pelo povo basoko, talvez venha de alguma lembrança, alterada pelo tempo, da época em que o viam espiando por um telescópio ou fazendo mira. Além disso, ecoa de modo curioso a idéia dos geógrafos medievais, que imagi­ navam os africanos como criaturas de um único olho. Sabemos, a partir de um outro fiapo de tradição oral, que eles acreditavam que os europeus ti­ nham casco: desconhecendo os sapatos, alguns africanos ribeirinhos pen­ saram que fizessem parte da anatomia dos brancos. Muitas centenas de quilômetros abaixo do ponto de partida, Stanley foi obrigado a se desviar por terra das corredeiras, que ele batizou de Stan­ ley Falis, ou cataratas de Stanley. Depois disso, não houve mais nenhum obstáculo natural a seu progresso por mais de 1500 quilômetros, até Stan­ ley Pool. O Lady Alice e as cerca de duas dúzias de canoas que a expedi­ ção comprara ou roubara dos povos ribeirinhos navegaram sem problemas. No caminho, Stanley e a equipe de carregadores e soldados zanzibaritas foram vendo, com espanto crescente, o rio ir aumentando cada vez mais de tamanho, a ponto de, às vezes, mal se poder enxergar as margens. Espalhadas ao longo do percurso, havia cerca de 4 mil ilhas, muitas delas povoadas. Nas línguas faladas pelos ribeirinhos, o rio não era chamado de Congo. Devido a seus muitos tributários, era conhecido como Nzadi ou Nzere,* que significa “o rio que engole todos os rios”. Stanley não se aventurou pelos afluentes, mas ao passar por eles, todos com mais de cem (*) C u rio sam en te, fo i u m a co rru p tela d e ssa p alav ra, Z aire, qu e o d itad o r do C ongo, M o b u tu S ese Seko, esco lh eu p a ra ren o m ear o país, e m 1971.

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metros de largura, ficou impressionado com o tamanho. E não era para menos. Apenas um dos afluentes do Congo, o Kasai, tem um volume de água semelhante ao do Volga, e é quase duas vezes mais comprido que o Reno. Um outro, o Ubangi, é ainda mais longo. Stanley percebeu imedia­ tamente que barcos a vapor, nessa rede fluvial, poderiam viajar longas distâncias. Era como se tivesse encontrado o equivalente a milhares de quilômetros de linhas férreas já prontas. “A potência que tomar posse do Congo [...J”, escreveu, “absorverá o comércio de toda a imensa bacia que há em volta. Este rio é e será a grande estrada comercial do Centro-Oeste da África.” A última etapa da extraordinária viagem de Stanley foi a mais difícil de todas. No início do trecho final de corredeiras, justamente onde o rio se alarga para formar um pego, Stanley Pool, terminou o sossego. Stanley es­ tava preparado para contornar por terra as corredeiras e cataratas por vir, mas não se dera conta das dificuldades: o rio, dali em diante, precipita-se rumo ao mar através de gargantas rochosas que comprimem a água em re­ demoinhos de espuma branca impossíveis de navegar. Seu espanto aumentava sem parar. Em muitos lugares, calculou, pelo tempo que os troncos de árvore levavam para passar, que a água corria a quase cinqüenta quilômetros por hora. Tome um a faixa de m ar açoitada p o r um furacão [...] e obterá um a idéia bem precisa do que são suas vagas agitadas. [...] Prim eiro, as águas desabam no fundo de um im enso côncavo de onde, pela própria força, o enorm e volum e se ergue de novo, na vertical, até que, form ando um a crista, atira-se de re­ pente uns seis a nove m etros para o alto, antes de despencar em m ais um a depressão enorm e. [...] A base das duas m argens, constituídas por um lon­ go am ontoado de pedras enorm es, oculta-se sob a rebentação tem pestuosa. É um rugido trem endo e ensurdecedor. Só posso com pará-lo aos bram idos de um trem expresso atravessando um túnel escavado na rocha.

Esperando, em geral em vão, por trechos de águas mais calmas entre as corredeiras, o explorador ignorou o conselho de africanos da região e, durante um tempo quase que fatalmente longo demais, recusou-se a aban­ donar o Lady Alice e as canoas. Era dificílimo transportar essas canoas por terra, já que não podiam ser desmontadas e carregadas, como o Lady Ali­ ce. A maior delas tinha dezesseis metros de comprimento e pesava três to­ neladas. Os homens tinham de cortar e forrar de mato a trilha tosca, para depois arrastá-la para a frente. Às vezes, construíam trilhas de toras e usa­ vam outras na transversal, como esteiras rolantes. Levaram 37 dias para percorrer um trecho de 55 quilômetros. Em inúmeras ocasiões os montes de Cristal levantaram barreiras quase intransponíveis; numa certa altura, 65

tiveram de subir 365 metros com os barcos e empurrá-los uns cinco qui­ lômetros por terreno quase plano, para descer de novo. Aí vieram as chu­ vas, com aguaceiros que duravam de cinco a seis horas, todos os dias. O barulho constante das corredeiras foi ficando cada vez mais opres­ sivo. Os homens desmaiavam de fome. O último par de botinas de Stan­ ley desmanchou-se. Um dos seus melhores homens perdeu o juízo e saiu correndo pelo mato, levando apenas um papagaio. Por fim, depois de des­ perdiçar meses arrastando barcos inúteis, a expedição abandonou-os por completo. Em seu diário, nos registros desesperados de mortes, deserção em massa e rebeliões sucessivas, a letra elegante de Stanley torna-se qua­ se ilegível e a prosa, incoerente. Ao todo, ele e seu bando faminto e doen­ te levaram quatro meses e meio para viajar por terra os quatrocentos qui­ lômetros que separavam Stanley Pool do porto marítimo de Boma. O explorador foi vago e contraditório nos números que forneceu, mas a taxa de mortalidade da expedição foi espantosa. Muitos morreram de fe­ ridas infeccionadas, disenteria, varíola ou tifo, todas doenças exacerbadas pela falta quase absoluta de comida. Stanley não admitia que os carrega­ dores acometidos de varíola ficassem para trás, convalescendo, nem que entrassem na floresta, para morrer; fazia-os carregar seus fardos até cair mortos. E exigia praticamente tanto de si quanto de seus homens; durante a viagem, perdeu mais de trinta quilos. Muitas vezes, ficaram quase sem água potável; enfirentaram ataques de cobras e de hipopótamos, capins cortantes, vermes que entravam na sola do pé dos carregadores e trilhas que levavam direto para rochas afiadas como facas. Quando os sobrevi­ ventes chegaram a Boma, estavam entorpecidos de exaustão, sofrendo do que hoje em dia chamaríamos de síndrome do estresse pós-traumático. Muitos morreram pouco depois, sem nenhuma causa aparente, enquanto aguardavam o navio que os levaria de volta. “Que meios tenho eu para lhe transmitir todo o amor que me vai no coração”, Stanley escrevera a Alice Pike, do meio do continente, “senão esta carta que terá de atravessar mil milhas de selvageria, exposta a todos os perigos, enchentes, incêndios e batalhas, até chegar ao mar? [...] Este­ ja certa, portanto, de que meu amor continua inalterado, de que você con­ tinua sendo, em sonhos, meu esteio, minha esperança e meu farol. Acredite-me, continuarei a vê-la sob essa luz, até encontrá-la de novo.” Ao voltar a Zanzibar, com os poucos carregadores e soldados que ha­ viam restado, Stanley teve um choque. Entre a correspondência acumula­ da de dois anos que o aguardava, havia um recorte de jornal de dezoito meses antes, anunciando que Alice Pike casara-se com um herdeiro de 66

Ohio, dono de ferrovias, chamado Albert Bamey. Stanley entrou em pro­ funda depressão e nunca mais viu a moça.* ; Nas declarações públicas dadas após a viagem, Stanley pronunciou as condenações de hábito ao tráfico “árabe’’ de escravos, pediu aos missio­ nários que fossem para a África, execrou a maneira como os africanos an­ davam para baixo e para cima “na indecência geral de sua nudez” e pro­ clamou que o objetivo de sua viagem fora “acender um facho de luz na metade ocidental do Continente Negro”. Entretanto os negócios nunca es? tavam muito distantes de seu pensamento. Depois de partir de um distrito onde sofrera inúmeras deserções, além de uma enchente, escreveu no diá­ rio: “Um adeus a isto §;..] até que algum filantropo generoso e opulento permita que eu, ou algum outro, lidere uma força para suprimir este obs­ táculo ao comércio com a África central”:. O filantropo opulento' estava aguardando.

Na verdade, o filantropo estava nas nuvens. Durante os‘muitos meses que precederam o aparecimento de Stanley em Boma, Leopoldo vasculha­ ra ansioso o Times de Londres todos os dias, à procura de notícias sobre o explorador. Num determinado momento, escreveu a um assessor: “O pri­ meiro item da agenda | ... | é conferir outra vez se Stanley chegou ao Lualaba’Sf!Assim que Stanley reapareceu, o rei enviou-lhe um telegrama de congratulações. E pôde, enfim, ler os longos artigos que Stanley escrevia para o Daily Telegraph contando sobre a viagem, assim como os volumosos noticiários da imprensa sobre as homenagens e os banquetes que o explorador rece­ beu na Cidade do Cabo, no Cairo e em outras paradas de sua viagem de volta à Inglaterra. O Congresso norte-americano aprovou uma resolução conjunta, parabenizando Stanley pelo feito, e colegas exploradores^saudaram a descida do rio Congo como o maior feito exploratório do século. Leo­ poldo estava agora convencido de que aquele vasto território no coração da África, ainda milagrosamente não reivindicado pelas potências euro­ péias, poderia se tomar a colônia pela qual tanto ansiavahPor fim, a tão so­ nhada produção chegaria ao palco e Stanley seria o grande astro. (*) O explorador n u n ca soube q u e A lice B am ey passou a vida lam entando a escolha que fizera. M uito depois da m orte dele, n u m livro de m em órias altam ente rom anceado, que nunca foi publicado, ela reivindica os créditos d aquela g rande viagem pelo Congo: “E la tom ou a viagem possível para ele. Sem seu espírito a anim á-lo, ele jam ais teria consegui­ do, aliás nem sequer leria sentido desejo de penetrar naquela escuridão abism al outra vez. ;« ..] ‘Lady A liq|f| tinha conquistadora Á frica!” .

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O rei instruiu seu representante diplomático em Londres para mantêlo au courant das notícias sobre Stanley. Por trás da elegante cortina de fu­ maça de sua Associação Internacional Africana, Leopoldo manobrava com grande sutileza. Seja discreto, disse ele a seu enviado: “Estou certo de que se eu encarregar Stanley abertamente de tomar posse em meu nome de al­ guma parte da África, os ingleses me impedirão. Se pedir-lhes um conse­ lho, eles me impedirão da mesma forma. De modo que acho que apenas incumbirei Stanley de algum trabalho de exploração, que não ofenda nin­ guém e que nos dê as bases e o quartel-general de onde poderemos tomar posse mais tarde”. Acima de tudo, Leopoldo disse a seu homem em Lon­ dres: “Eu não quero me arriscar [...] a perder a chance de garantir uma fa­ tia desse magnífico bolo africano”. Numa enxurrada de telegramas, Leopoldo foi formulando um plano para interceptar Stanley e atraí-lo a Bruxelas. Em Alexandria, onde o explo­ rador ficou alguns dias, o rei deu um jeito de fazer alguém plantar a idéia na mente de Stanley, enquanto era convidado de honra num jantar a bordo do iate onde viajava o ex-presidente dos Estados Unidos, Ulysses S. Grant. De­ pois, como passo seguinte do namoro, Leopoldo procurou a ajuda de um amigo americano em Bruxelas, o general Henry Shelton Sanford. Foi uma escolha brilhante: com Stanley tão ansioso por se fazer passar por americano, quem melhor do que um conterrâneo americano para lhe fazer o apelo? O general Sanford estava louco para assumir a importante missão em nomè do rei Leopoldo. Filho de família rica, de Connecticut, fora nomeado por Abraham Lincoln como embaixador americano na Bélgica e acabara fi­ cando por lá após o término de seus oito anos no cargo. Ele e a esposa, uma famosfi beldade muito mais nova do que o marido, recebiam em grande esti­ lo cm sua casa de campo acastelada, nos arredores de Bruxelas,jCom sua car­ tola, bengala de castão de ouro, pincenê e belos bigodes e barba castanhos, Sanford era uma figura conhecida nos altos círculos da cidade. Mas nunca fora soldado; o posto de ‘‘general’’";^assim como a espada e a farda azul e dou­ rada que usava já havia alguns anos, eram reçompensas por ter dado uma ba­ teria, de canhões a um regimento de infantaria, durante a Guerra Civjl. , Sanford investira em ferrovias e propriedades imobifiárias§np Oeste dos Estados Unidos, bem como nos imensos laranjais da Flórida, dando à ejdade que surgiu para abrigar os trabalhadores nesses pomares o nome de Sanford.||M as, assim c o m o ^ u posto militarias; habilidades financeiras E y j^ S a n f o r d , n a F ló rid a, teve, seu tiré y e m ô m en tp d e frfitoriedade 75 a n ^ 'd e p o is , quand o ó c h e fe de p o lícia local, citan d õ u m a ffej m u n ic ip a l que proib ia .esp o rtes inter-raciais ’n a cidade, ord en o u q u e fadltíe R oM nsori dèiiãfW p-èaín p o no m eio de um jo g o de Ireinam ento.

de Sanford não eram lá grande coisa. Ele tinha a elegância de alguém que naseèu rico, mas não a esperteza necessária para ficar rico, e perdia di­ nheiro com tudo. Nunca recuperou os investimentos que fez numa série de patentes «stranhas i— para um tear de lã, um novo tipo de alambique para uísque e urna pequena caixa destinada a lubrificar os eixos dos vagões fer­ roviários com água em vez de óleo. Uma mina de prata em Nevada e uma de zinco em Arkansas acabaram em desastre. Em Minnesota, uma ferro-, via pediu falência. Sua safra de algodão numa fazenda da Carolina do Sul foi devorada por lagartas. Ao perceber a fortuna que herdara diminuindo a olhos vistos, deu-se conta de que suas conexões com a corte belga tinham se tomado ainda mais importantes. Chegou mesmo a batizar um dos filhos com o nome de Leopoldo. Sempre um juiz muito sagaz das pessoas, o rei compreendeu o que o patrocínio real significava para Sanford e passou a bajulá-lo sem descanso, sabendo que algum dia faria bom uso das lisonjas. Quando San­ ford fracassou em mais uma de suas várias tentativas infrutíferas de con­ seguir outro posto diplomático, o assistente de Leopoldo, o barão Jules Greindl, escreveu a ele: “O rei manifesta grande satisfação de que vá con­ tinuar residindo entre nós, onde tem o apreço e o amor de todos”. Assim como muitos norte-americanos, Sanford tinha uma queda pela realeza; além do mais, achava ele, era bem mais apreciado por Leopoldo do que por seu próprio governo. Em janeiro de 1878, Leopoldo despachou Sanford e Greindl, em se­ gredo; para se encontrarem com Stanley na França, onde o explorador, ainda a caminho de Londres, seria alvo de mais uma rodada de medalhas e banquetes. Os enviados alcançaram Stanley, muito magro, doente e exausto. na estação de ferro de Marselha, Éfo seguiram até Paris, onde lhe ofere­ ceram, formalmente, um emprego na Associação Internacional Africana. Stanley recusou mas mostrou-se muito grato. Sempre ansioso em ser bem recebido nos altósfcírculos da sociedade, Stanley não esqueceria que súdi­ tos do rei da Bélgica — um barão e um general, nem mais nem menos — o haviam procurado por ocasião de seu regresso à Europa. Da França, Stanley voltou finalmente a Londres, para uma recepção de herói. Apesar de sé dizer americano, seu coração ainda era britânico. Em a bandeira inglesa, ele disse em banquete após banquete, que deveria tremular sobre o território atravessado pelo grande rio. As Esperanças de Stanley de despertar o interesse britânico pela bacia do Congo aumenta­ ram quando o príncipe de Gales foi ouvir uma de suas palestras. Mas tudo o que o herdeiro da ebroa britânica disse no final foi que Stanley estava usando suas medalhas na ordem errada. Uma boa parte do mapa-múndi já 69

estava ocupada por domínios, colônias e protetorados britânicos de um tipo ou de outro; com uma recessão interna e várias rebeliões nas colônias ultramarinas, poucos britânicos interessavam-se por um novo território cuja principal rota de acesso estava bloqueada por notórias corredeiras. “Eu não entendo os ingleses”, escreveu Stanley. “Ou eles suspeitam que eu tenha interesses próprios, ou então não me acreditam. [...] Por ter achado Livingstone, me chamaram de impostor; pela travessia da África, fui chamado de pirata.” Tampouco nos Estados Unidos havia qualquer en­ tusiasmo pela colonização do Congo. James Gordon Bennett, em Nova York, agora queria mandar Stanley à procura do pólo norte. Leopoldo continuou a apertar o cerco. Fez com que seu embaixador em Londres convidasse Stanley para almoçar. Mandou Sanford até lá para conversar de novo com o explorador. E não se esqueceu de fazer com que Stanley tomasse conhecimento dos rumores de que poderia fazer um trato com outro explorador. Leopoldo conhecia seu homem. Cinco meses de­ pois de voltar à Europa, Stanley aceitou o convite para visitar a Bélgica.

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4 “OS TRATADOS TÊM DE NOS CONCEDER TUDO 1

A 10 de junho de 1878, Henry Morton Stanley atravessou o canal da Mancha para ter seu primeiro encontro com o Rei dos Belgas. Não sabe­ mos o que fez Leopoldo em seu gabinete no Palácio Real enquanto aguar­ dava o explorador, mas estando na iminência de começar a colher os fru­ tos de meses de cerco paciente, não seria despropositado imaginar que o rei-geógrafo estivesse, uma vez mais, estudando os mapas. Esse possível estudo confirmaria que só na África Leopoldo teria chances de concretizar o sonho de se apoderar de uma colônia, sobretudo uma qüe fosse muitas vezes maior do que a Bélgica. Não havia mais ne­ nhum território disponível nas Américas, e a desastrosa aventura de Maximiliano e Carlota no México era um lembrete das coisas que podiam acon­ tecer se alguém tentasse tomar posse de um país independente por lá. Também não havia espaços em branco na Ásia: o Império Russo estendiase até o Pacífico, os franceses tinham a Indochina, os holandeses, as índias Orientais, e grande parte do restante do Sul da Ásia, de Aden a Cingapura, já constava dos mapas na cor-de-rosa característica das possessões bri­ tânicas: Só restava a África. Stanley seguira pelo rio Congo por cerca de 2400 quilômetros. Mas obviamente não vira tudo que havia para ser visto, porque quando o alcan­ çou, o rio já tinha quase 1,5 quilômetro de largura. Uma exploração com­ pleta levaria muitos anos; mas, depois de devorar os artigos de Stanley, Leo­ poldo tinha uma boa idéia do que o explorador encontrara. Ao fim e ao cabo, as estatísticas seriam conhecidas. A bacia fluvial do Congo tem mais de 3,3 milhões de quilômetros quadrados, uma área maior do que a índia* e cerca de um sexto do potencial hidrelétrico de todo o planeta, Mais importante ainda, para um construtor de impérios do sé­ culo xix, o rio e sejas afluentes, distribuídos em forma de leque, forneciam mais de 11 mil quilômetros de vias fluviais interligadas: era uma verda­ deira rede de transporte pronta para ser usada, como muito poucas outras



no mundo. Assim que os barcos a vapor desmontados pudessem ser trans­ portados por terra até essa rede, passando ao largo das grandes corredei­ ras. encontrariam lenha para suas caldeiras crescendo bem ao lado: quase todos os rios navegáveis correm pelas florestas tropicais úmidas que co­ brem metade da bacia. Sobre ps povos que viviam na bacia do Congo, os europeus sabiam bem pouco, Quando não estava mirando na cabeça de um deles, Stanley limitava-se a encará-los como fonte de suprimento!, gente com quem po­ dia trocar bugigangas ou tecido por comida. Mas ele fizera duas importan­ tes descobertas sobre os habitantes da região. Uma era que não represen­ tavam qualquer ameaça militar: as cerca-de três dúzias de combates que travou com os ribeirinhos mostraram que aquelas lanças, flechas e mos­ quetes não eram páreo para os noyos rifleSiSnl&*de retrocarga. A outra descoberta foi que, ao longo da principal frie^ia de transporte, não havia um único Estado todo-poderoso que. precisasse .sersubj ugado. Explorações posteriores ao longo de seus afluentes encontraram vários grandes reinos, mas séculos de ataques por parte de traficantes de escravos, vindos tanto da costa leste quando oeste da África, haviam enfraquecido sobremaneira a maioria deles. Boa parte dos povos da bacia do Congo tinha populações pequenas. Como a próxima etapa exploratória mostraria, havia mais de duzentos diferentes gínpoS)étniççf§ falando mais de quatrocentas línguas e dialetos. Cprn um adversário.çm potencial assim fragmentado, a con­ quista seria redativamente fácil. Naquele dia de 18178, à espera do tão ansiado encontro com Stanley, Leopoldo estava com 43 anos. Já não tinha mais o pedantismo canhestro da juventude e aprendera a desempenhar de modo soberbo o papel de rei. Por sua vez, embora fosse uns vinte centímetros mais baixo que o monar­ ca e estivesse inseguro de seu francês rudimentar, também Stanley, então com 37 anos, desabrochara. O imprestável desertor de meros treze anos atrás era agora um autor famoso, reconhecido como um dos maiores ex­ ploradores vivos de todos os tempos: Seu rosto severo, de fartos bigodes, aparecia nas revistas do mundo inteiro debaixo do quepe Stanley, inven­ ção sua. O quepe tinha copa alta, com orifícios para ventilação, aba sobre os olhos e tapa-nuca, um pano para proteger as welhas e â nuca do sol. Hoje, o quepe parece um cruzamento entre oíchapéu usado pela Legião Estrangeira e o que ainda hoje usam os porteiros de alguns hotéis e restau­ rantes — o que, de certa forma, resume íaípersrinâlidade de Stanley: em parte um titã de força indomável e ;bonfiança su0teÉ|sâFem patte-crianfá ilegítima e vulnerável da classe operária, lutando anÉbsamente para Obter a aprovação dos poderosos. Nas fotó^essáãídiiás metades Mo-visíveis: o 72

explorador demonstra tanto uma determinação feroz quanto uma grandp mágoa. Nesse primeiro encontro, Leopoldo deixou Stanley imediatamente à vontade com seu inglês fluente. Os homens que se encontraram naquele junho, no Palácio Real, representavam, cada qual, um tipo e uma classe que viriam a se tomar muito familiares. Os comandantes das tropas de inr fantaria, na grande corrida que houve pela posse das terras africanas, os brancos que lideraram os soldados pelo mato, que dirigiram o fogo dos ri­ fles e das metralhadoras, que empunharam os instrumentos de medição e que enfrentaram malária, disenteria e tifo vinham, em geral, assim como Stanley, da classe operária ou da classe média baixa. Para eles, a África era uma chance de obter mobilidade social, riqueza e glória. Mas os que fizeram grandes fortunas de fato, durante a Partilha da África, a exemplo de Leopoldo, já eram ricos antes disso. Embora tivesse vivido entre iates e palácios, Leopoldo era, dos dois-, o mais escolado. Avaliara direitinho a enorme ambição de Stanley, sua imensa capacidade de trabalho, seu desejo constante de ser elogiado e sua necessidade de um patrono"? Stanley, ainda melindrado com o desinteresse dos britânicos pelo Congo, ficou encantado de encontrar um monarca que admirava seus feitos e que queria vê-lo fazendo mais. ' Depois do encontro, Stanley viajou pela Europa até o final de 1878, promovendo Through thè Dark Continent, encontrando-se com membros do novo Clube Stanley em Paris e recebendo homenagens por toda parte. Leopoldo enviou mensagens e emissários atrás dele, para mantê-lo fisga­ do. Antes que o ano acabasse, os dois tinham chegado a um acordo sobre os termos da volta de Stanley ao Congo, e dessa vez ele trabalharia para o rei. O contrato de Stanley era de cinco anos; ele receberia 25 mil francos por ano durante o tempo que passasse na Europa e 50 mil francos (mais ou menos 250 mil dólares, em moeda de hoje) por ano durante o tempo que passasse na África. E, claro, Leopoldo custearia a força expedicioná­ ria que iria acompanhá-lo. Concordaram que Stanley estabeleceria primeiro uma base perto da embocadura do rio, e que, depois, construiria uma estrada em volta das corredeiras, através dos escarpados montes de Cristal — uma espécie de precursora da via férrea. Por essa estrada, os carregadores transportariam diversos navios a vapor, desmontados em vários pedaços que, posterior­ mente, Stanley montaria e usaria para navegar rio acima, construindo uma cadeia de postos comerciais ao longo do trecho navegável do rio Congo -— cerca de 1500 quilômetros. Em seguida, poderia escrever um livro sobre suas experiências — mas Leopoldo teria o direito de editá-lo. 73

Entre as riquezas que Leopoldo esperata encontrar no Congo, a que mais o atraía era o marfim. Os comerciantes europeus e americanos já es­ tavam comprando grandes quantidades de marfim nos mercados de Zanzibar. Por sua facilidade em ser entalhado, o marfim eray no século xix, uma versão mais rara e cara do que é o plástico hoje, com a vantagem adi­ cional de ter origens exóticas — vantagem que cresceu ainda mais depois que o público passou a idolatrar os exploradores da África. O marfim da presa dos elefantes era transformado em cabos de faca, tacos de bilhar, pentes, leques, porta-guardanapos, teclas para piano e órgão, peças de xa­ drez, crucifixos, caixas de rapé, broches e estatuetas. Numa cópia meio apagada do que representava para o elefante, o marfim também era usado para fazer dentaduras. Apesar das longas distâncias que tinha de atraves­ sar até chegar à costa, era uma mercadoria atraente porque, assim como drogas ou metais preciosos, seu valor era alto e o volume pequeno. Os cinqüenta quilos de marfim contidos num par de presaS- de elefante africano davam para fazer centenas de teclas de piano Ou milhares de dentaduras. Havia também os elefantes indianos, mas os comerciantes preferiam os africanos; e os da região equatorial, onde está a bacia do Congo, em geral ostentavam as maiores presas. Stanley já tinha notado que o marfim era tão abundante que chegava a ser usado como batente de porta nas casas africanas. Mas, no momento, essas riquezas ainda estavam no mínimo a muitos anos de distância para Leopoldo, porque Stanley teria primeiro de cons­ truir sua estrada. E para tanto não deixou escapar um detalhe sequer do or­ çamento apresentado ao rei: barcos pequenos, madeira para cabanas, cor­ da, ferramentas», carregadores africanos e capatazes europeus. Entre esses últimos havia dois jovens ingleses que, seguindo a tradição de subordina­ dos ineptos, nuneá tinham saído do país. Tendo contratado neófitos, ele podia depois reclamar à vontade da inexperiência deles}tí‘Eu nunca tive um amigo em expedição nenhuma, ninguém que pudesse vir a ser meu companheiro, em pé de igualdade, exceto Livingstone. [...] Como pode aquele que testemunhou tantas guerras nutrir qualquer esperança de ser compreendido por alguém cuja visão mais chocante vem a ser um nariz sangrando?”. Stanley foi esperto o bastante para exigir de Leopoldo seu pagamen­ to adiantado, porque, apesar da fartura de contratos, ainda não estava cla­ ro para quem ele estaria trabalhando: se para o rei em pessoa, se para a As­ sociação Internacional Africana, que dava a impressão de estar minguando, ou se para um novo órgão um tanto secreto chamado Comitê de Estudos do Alto Congo. Os acionistas do comitê eram, oficialmente, um pequeno 74

grupo de empresários holandeses e britânicos e um banqueiro belga — que na verdade detinha um enorme bloco de ações em nome de Leopoldo. Um fiel capanga do rei, o coronel Maximüien Strauch, era o presidente do comitê. Por mais ambiciosos que fossem os planos seus e de Stanley, Leopol­ do fez questão de que tudo fosse visto como filantropia e nada mais. Os contratos de Stanley com o pessoal de apoio não permitiam a divulgação de qualquer informação a respeito do objetivo real do trabalho. “Só temos intenção de fazer explorações científicas”*Leopoldo garantiu a um jorna­ lista. A qualquer um que o questionasse mais a fundo, ele apontava para uma cláusula da carta de autorização de funcionamento do comitê, que proibia expressamente qualquer objetivo político. O rei queria se proteger contra a impressão generalizada na Bélgica de que, para um país pequeno, uma colônia seria uma extravagância desastrosa em termos financeiros. Também não queria fazer nada que alertasse qualquer rival em potencial para aquela apetitosa fatia do bolo africano, sobretudo a França, que co­ meçava a manifestar interesse. '' Em fevereiro de 1879, subindo a bordo de um vapor sob o nome de M. Henri, Stanley partiu novamente para a África. Nesse meio tempo, sur­ giam alguns novos desdobramentos na Europa. Uma das companhias ho­ landesas detentoras de ações do Comitê para Estudos do Alto Congo faliu è, segundo os boatos da época, o dono fugiu para Nova York, onde passou íjf trabalhar como condutor de coche de aluguel. Para Leopoldo, isso veio a calhar; aproveitando o abalo causado pela falência da empresa holandesa, ofereceu-se para comprar todas as demais ações do comitê. Agradecidos, os acionistas aceitaram mais que depressa e, até o final do ano, legalmente o comitê já não existia mais. Mas como cortina de fumaça ainda era útil e o rei continuou se referindo ao comitê como se estivesse em pleno funcio­ namento e como se os ex-acionistas, e não ele sozinho, estivessem custean­ do as despesas de Stanley e tomando as decisões. O próprio Stanley só foi descobrir que o comitê deixara de existir mais de um ano depois do fato. Para confundir ainda mais as coisas e dar a suas operações africanas um nome que pudesse servir como entidade política, o exímio empresário criou uma outra organização de fachada, a Associação Internacional do Congo, com o intuito expresso de causar confusão entre esse nome e o da agonizante e “filantrópica” Associação Internacional Africana, constituída por príncipes herdeiros e exploradores. “É preciso todo o cuidado para não deixar óbvio que a Associação do Congo e a Associação Africana são duas coisas diferentes”, Leopoldo avisou a um de seus asseclas. “O público não entende essas coisas.” ^Para aumentar ainda mais a confusão, a nova Asso75

ciação Internacional do Congo, assim como o extinto Comitê para Estudos do Alto Congo, usava a bandeira da Associação Internacional Africana, que fora adotada com muito alarde durante o primeiro e último encontro do grupo — uma estrela dourada sobre fundo azul, que pretendia simbo­ lizar um facho de esperança no proverbial negrume africano. Antes mesmo de entrar em acordo com Stanley, Leopoldo já tinha posto em marcha outras tentativas de obter sua fatia do bolo africano e fi­ nanciou uma expedição que visava chegar à bacia do Congo pela costa oriental. Houve mais três dessas expedições, todas amplamente divulga­ das pela imprensa e todas elas inúteis. Uma chegou inclusive a levar qua­ tro elefantes indianos, com nomes exóticos como Sundergrund, Naderbux, Sosankalli e Pulmalla, para transportar a carga. Acontece que esses elefan­ tes, para passar pelas trilhas com a carga, tinham de ser precedidos por um batalhão de cinqüenta operários, que iam na frente, derrubando árvores e mato com machados e machetes.* Mas, antes de caírem mortos, prematu­ ramente exauridos por várias doenças, os elefantes foram um sucesso jor­ nalístico. Só que os leitores europeus que seguiram cada um dos estágios da infeliz jornada dos animais não perceberam que a história verdadeira estava se desenrolando do outro lado da África, onde Stanley trabalhava em silêncio na estrada que contornaria as corredeiras do rio Congo. De modo quase imperceptível, o nome “Congo” começou a ser apli­ cado não apenas ao rio, mas a todo o território. Quando o público come­ çou finalmente a prestar atenção na nova colônia que surgia, o rei já tinha atingido novos patamares como insigne prestidigitador. Ele ou algum dii;etor de cena seu sempre davam um jeito de abrir as cortinas e mostrar um cenário diferente por vez, segundo as inclinações da platéia. Henry Shelton Sanford, como integrante do conselho da Associação Internacional Africana, fazia com que a aventura de Leopoldo parecesse uma espécie de entidade de auxílio aos viajantes. Estando em Nova York, em 1879, para cuidar de seus desastrosos investimentos, Sanford fez um discurso dizen­ do que o objetivo do rei era “fundar uma rede de postos ou abrigos hospi­ taleiros bem como científicos, que serviriam como meio de informação e ajuda aos viajantes [...] e por suas influências humanitárias acabariam pondo um fim ao tráfico de escravos”. A nova Associação Internacional do Congo, Leopoldo insistiu num artigo que ele próprio escreveu e conseguiu publicar no Umes de Londres assinado apenas “por um correspondente bel(*) O s desastres com eçaram j á na h ora do desem barque. O navio que levou os ele­ fantes d a ín d ia p ara a Á frica uso u lingas para arriá-los n o m ar, só que em vez de n adar obe­ dientem ente até a praia, os anim ais tentaram subir a bordo de novo. Q uando os botes p rocu­ raram rebocá-los até a praia, o s elefantes se puseram a puxá-los para o m ar aberto.

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ga”, era uma espécie de “Sociedade da Cruz Vermelha; ela foi fundada com o nobre objetivo de prestar serviços duradouros e desinteressados à causa do progresso”. Quando falava com um público de mentalidade mais beli­ cosa, como os alemães, Leopoldo mudava habilmente de cena e comparava seus homens no Congo a cavaleiros das Cruzadas. Quase todos se deixa­ ram enganar. A baronesa Burdett-Coutts, patrona britânica dos missioná­ rios, deu uma doação de 50 mil francos a esse serviço humanitário. Nos Estados Unidos, um escritor declarou que a grande obra de Leopoldo era “suficiente para fazer os americanos acreditarem para sempre nos reis”. Enquanto isso, Leopoldo mandou que Stanley estabelecesse os ali­ cerces para uma “confederação de repúblicas negras livres” no Congo, ou seja, tribos negras cujo presidente, vivendo na Europa, governaria sob a direção do rei belga. Essa era uma fantasia destinada sobretudo à platéia norte-americana. Para os europeus, por outro lado, o rei falava em cidades livres. “Bremen, Lübeck e Hamburgo foram cidades livres durante muito tempo”, escreveu um de seus assistentes. “Por que não podemos ter algu­ mas no Congo?” Nos bastidores, entretanto, sabia-se que essa liberdade era apenas um acessório cênico, a ser retirado assim que o pano descesse. Como escreveu sem rodeios um dos subordinados de Leopoldo a Stanley: “Nem pensar em conferir o menor poder político aos pretos. Isso seria ab­ surdo. Os brancos, chefes dos postos, detêm todos os poderes”.

Por cinco anos, Stanley foi o homem de confiança de Leopoldo no Congo. A grande energia combativa do explorador concentrou-se em ven­ cer os acidentes do terreno. As equipes de operários abriram um caminho tosco, mais trilha do que estrada, em volta das grandes corredeiras. Para isso, usaram alguns trechos já abertos, derrubaram florestas, taparam va­ letas e ergueram pontes. Depois transportaram mais de cinqüenta tonela­ das de suprimentos e equipamento por essa trilha. Animais de tração, como cavalos e bois, não conseguiriam sobreviver ao clima do Congo e às doenças, de modo que quase tudo foi levado no lombo dos carregadores. Depois de dois anos construindo, demolindo e arrastando, dois pe­ quenos vapores foram remontados no topo das corredeiras e saíram rio acima, desembarcando grupos que estabeleceram mais postos em suas margens. Os nomes não deixavam qualquer dúvida sobre de quem seria a colônia. O posto montado no topo das grandes corredeiras, a pouca distân­ cia do rugido das águas, dotado de uma construção fortificada e de uma horta, foi batizado de Léopoldville. Logo acima, ficava a colina Leopoldo. Em pouco tempo, os mapas estariam mostrando o lago Leopoldo n e o rio 77

Leopoldo. Um dos barcos a vapor que vieram depois e que, por uns tem­ pos, foi pilotado pelo mais famoso comandante do Congo, chamava-se Roi des Belges (Rei dos Belgas). Stanley era um capataz impiedoso. “A melhor punição é pôr alguém em ferros”, explicou numa de suas cartas a Bruxelas, “porque sem ferir, desfigurar ou torturar o corpo, inflige vergonha e desconforto.” (Os bran­ cos, claro, não eram acorrentados; apenas os negros.) Mas as doenças e outros perigos foram ainda mais letais que a ira de Stanley. Só no primei­ ro ano, seis europeus e 22 africanos sob seu comando morreram, inclusi­ ve um que foi comido por um crocodilo. Pela primeira vez, podemos enfim enxergar Stanley na África através de olhos que não são os dele. Um mecânico de um barco a vapor, chama­ do Paul Nève, adoeceu e escreveu à família: O senhor Stanley cuidou m uito bem de m im durante os piores dias [...] o tipo de cuidado que um ferreiro dispensa ao conserto de um implemento es­ sencial, que se quebrou por uso indevido [...] dentes cerrados de raiva, ele bate um a e outra vez na bigorna, a se perguntar se terá de jogar o instrumen­ to no lixo ou se ainda poderá voltar a usá-lo da m esm a form a que antes.

Nève morreu algumas semanas depois. Stanley talvez não se incomodasse com a comparação com o ferrei­ ro. “Vejo todo aborígine de fisionomia cordial que encontro [...]”, escre­ veu ele, “mais ou menos sob a mesma luz com que um agricultor vê um filho saudável; ele é um futuro recruta para as fileiras dos soldados operá­ rios.” Foi durante esse período, em que exigiu o máximo de seus homens, que Stanley tomou-se conhecido entre os africanos que trabalhavam para ele cómo Bula Matadi ou Bula Matari, “Quebra-Pedras”. Verdade que Stanley preferia a tradução mais pomposa de “Quebrador de Rochas”, e dizia que õ apelido lhe fora conferido quando ensinou alguns atônitos afri­ canos a usar a marreta e quando eles viram rochas imensas sendo dinami­ tadas, no& montes de Cristal. Nos relatos de Stanley sobre os trabalhos, ele queixa-se dos africa­ nos, que são preguiçosos por definição, e dos brancos, que são “pusilâni­ mes”. Ele prega “o evangelho do empreendimento”, declarando que “o co­ merciante europeu, que tem sua casa na Europa mas o coração na África, é o homem de quem precisamos. [...] Eles são os missionários do comér­ cio; adaptados como a nenhuma outra parte para a bacia do Congo, onde há tanta gente ociosa”. E em momento nenhum mostra-se mais veemente do que quando seus instintos de lucro e sua pudicícia vitoriana se cruzam. Conseguir tirar os africanos “desnudos e tatuados” de sua “desavergonha­ da nudezfje colocá-los em roupas européias é sua obsessão contínua: 78

Prevejo um futuro brilhante para África se, por algum milagre da boa sorte, conseguir convencer os milhões de negros do interior a abandonarem seus trajes feitos de capim e a envergar [...] ternos de segunda mão. [...] Vejam o grande mercado que já existe aqui para roupas velhas! A indumentária en­ costada pelos heróis militares da Europa, pelos lacaios dos clubes, pelos ser­ vos engalanados dos modernos faraós, a casaca do advogado, do comerciante, ou de um Rothschild; ou, quem sabe, o trajo sisudo de meus editores talvez encontre algum chefe tribal para usá-lo. Mesmo em sua movimentação constante pelo terreno acidentado e úmido do interior africano, supervisionando a construção da estrada, Stan­ ley sempre teve grande cuidado com a aparência pessoal, barbeando-se e escurecendo o bigode todos os dias. Durante essa temporada, assim como durante todo o tempo que passou na África, sua constituição robusta e compacta sobreviveu a doenças que acabaram antes do tempo com a vida de tantos outros europeus. Muitas vezes delirou de febre e, em duas oca­ siões, esteve à beira da morte. Um ataque de malária, segundo seus escri­ tos, reduziu-lhe o peso para menos de cinqüenta quilos e a fraqueza era tanta que não conseguia erguer os braços nem falar. Durante duas sema­ nas, permaneceu deitado na barraca, convencido de que o fim estava per­ to, depois convocou os oficiais europeus e trabalhadores africanos para as últimas instruções, o último adeus e também para fazer-— pelo menos foi o que disse — um último voto de lealdade: “Digam ao rei [...] que eu la­ mento não ter podido levar a cabo a missão que me foi confiada”. Recuperado, alguns meses depois caiu doente outra vez e, levado rio abaixo, foi carregado inconsciente para Léopoldville. Em 1882, mal po­ dendo andar, voltou à Europa para se recuperar, viajando num lento vapor português. Numa crítica fulminante, diz que, no navio, passageiros “vul­ gares” da segunda classe tinham permissão para subir ao convés da pri­ meira classe, onde “expectoravam, fumavam e esparramavam-se da ma­ neira a mais socialista possível”. Pior ainda era a invasão de “mulheres da terceira classe e bandos de crianças brancas seminuas”. Finalmente, foi resgatado dessas indignidades pela chegada do navio à Europa. Os médicos avisaram então que poderia ser fatal voltar ao Con­ go, mas Leopoldo insistiu: havia ainda muito a fazer. O rei não queria ape­ nas assegurar sua colônia; queria também manter o explorador afastado da Europa por mais alguns anos, porque Stanley, sempre muito explícito em público, continuava defendendo abertamente suas esperanças de um Con­ go britânico. Leopoldo usou todo seu charme real. “Com efeito, senhor Stanley”, disse o rei, “não pode estar pensando em me deixar justamente agora, quando mais preciso do senhor?” Lutando contra uma recaída pe79

nosa da doença e, ao mesmo tempo, disparando ordens para encomendar um sem-número de novos equipamentos e suprimentos, Stanley retomou ao Congo dois meses depois. Com o grande prêmio já quase nas mãos, Leopoldo queria garantir o máximo de terra possível no Congo e queria isso imediatamente. As ins­ truções e cartas enviadas a Stanley, durante esses anos todos, deixam bem claro seu desejo de possuir uma colônia. Aproveito as vantagens de um a oportunidade segura para lhe enviar umas poucas linhas em meu péssimo inglês. [...] É indispensável que o senhor ad­ quira [...] o m áxim o de terras que puder obter e que coloque sucessivamen­ te sob [...] suserania [...] tão logo seja possível e sem perder um m inuto to­ dos os chefes tribais, da em bocadura do Congo até as Stanley Falis. [...] Se o senhor me disser que irá executar essas instruções sem demora, eu lhe en­ viarei mais gente e mais material. Talvez cules chineses.

Embora garantisse o tempo todo ao embaixador britânico em Bruxe­ las que suas explorações africanas “não tinham caráter comercial, não fo­ ram organizadas com esse intuito”, Leopoldo já escrevera o seguinte a Stanley: “Quero vê-lo adquirir todo o marfim que puder ser encontrado no Congo; comunique ao coronel Strauch quais mercadorias ele terá de enviarlhe para pagar por isso e quando. Também recomendo que erga barreiras e postos de pedágio na estrada que abriu. É apenas justo e está em conso­ nância com os costumes de todos os países”. ^Leopoldo e Stanley sabiam que já havia outros europeus bisbilhotan­ do por lá^Quem mais preocupava era o conde Pierre Savorgnan de Brazza, explorador e oficial da marinha francesa que desembarcara ao norte do rio Congo e se embrenhara pelo interior. Um dia, enquanto ainda abria a estrada em volta das corredeiras, Stanley teve um choque ao ver o refina­ do francês, de capacete branco e dólmã azul-marinho, na entrada de sua barraca. Choque maior ainda o aguardava em Stanley Pool, onde desco­ briu que De Brazza assinara um tratado com um chefe tribal que cedia à França uma faixa da margem norte do pego. De Brazza deixou um sargen­ to no comando do posto avançado, onde tremulava a bandeira francesa. Stanley não era homem de admitir rivais e, durante os anos seguin­ tes, os dois viveram publicamente às turras. Stanley dizia que o tratado do explorador francês baseava-se em engodo; De Brazza dizia que Stanley era um guerreiro inimigo da África. A imprensa em Paris adorou. Já Leo­ poldo, que maquinava com Stanley a melhor maneira de passar a pema em De Brazza, resolveu, ao mesmo tempo, e pelas costas de Stanley, convidar o francês a visitar Bruxelas. Lá, o rei condecorou-o com a Ordem de Leo­ poldo e tentou em vão contratá-lo. 80

O entrevero entre Stanley e De Brazza acabou por despertar o inte­ resse de outros países. Portugal, já muito enfraquecido, voltou a reivindi­ car as terras em volta da embocadura do Congo. A Grã-Bretanha, preocu­ pada com o interesse francês no Congo, apoiou os portugueses. Leopoldo percebeu que não havia tempo a perder. Pressionado pelo rei, Stanley tomou-se ainda mais inflexível com seus homens. Perdia a paciência com os subordinados brancos que bebiam demais ou que deixavam o mato crescer em volta dos postos ribeirinhos. “Essa gente já me deu mais trabalho do que todas as tribos africanas jun­ tas. Inspiram-me tamanho asco que prefiro mil vezes me ver condenado a ser um engraxate pelo resto da vida do que bancar a ama-seca para seres que não têm [...] o direito de se dizerem homens.” Apesar de sua breve e inglória carreira lutando dos dois lados da Guerra Civil americana, Stan­ ley era, no fundo, um militar. Gostava de ordem e disciplina e era um co­ mandante temível mas eficiente. Já nessa época tinha reunido um podero­ so exército privado, equipado com mil rifles de tiro rápido, uma dúzia de pequenos canhões Krupp e quatro metralhadoras. Entre seus soldados zanzibaritas, havia um ditado suaíle que dizia: Bunduki sultani ya bara bara (A arma de fogo é o sultão do interior). Nesse meio tempo, Leopoldo contratou um estudioso de Oxford, Sir Travers Twiss, para lhe fornecer um parecer jurídico que sustentasse o di­ reito de companhias privadas agirem como países soberanos na assinatu­ ra de tratados com os chefes nativos. Stanley fora instruído a subir e des­ cer o rio fazendo justamente isso. “Os tratados devem ser o mais breves possíveis”, Leopoldo ordenou, “e em alguns poucos artigos têm de nos conceder tudo.” E assim foi. Quando Stanley e seus oficiais terminaram o trabalho, a bandeira azul com a estrela dourada tremulava sobre aldeias e territórios de mais de 450 chefes tribais da bacia do Congo, segundo o próprio Stan­ ley. Os textos variavam um pouco, mas a maioria dava a Leopoldo mono­ pólio exclusivo sobre o comércio, isso apesar das garantias constantes, cujo intuito era aplacar inquietações européias e norte-americanas de que o rei estava abrindo a África ao livre comércio. Mais importante ainda, os chefes entregaram suas terras a Leopoldo, e o fizeram por uma ninharia. Em Isangila, perto das grandes corredeiras, diz Stanley, ele comprou a ter­ ra necessária à construção de um posto pagando aos chefes “uma quanti­ dade razoável de tecidos finos, paletós de librés, fardas com alamares vis­ tosos [...] sem esquecer algumas garrafas de gim”. Os conquistadores da África, assim como os do Oeste americano, estavam descobrindo que o ál­ cool era quase tão eficiente quanto a metralhadora. 81

A própria palavra tratado é um eufemismo, já que muitos chefes não faziam idéia do que estavam assinando. Poucos conheciam a palavra es­ crita e estavam sendo convocados a marcar com um xis documentos redi­ gidos numa língua estranha e, ainda por cima, em jargão jurídico. A idéia de um tratado de amizade entre dois clãs ou aldeias lhes era familiar; mas a idéia de ceder as próprias terras para alguém do outro lado do oceano era inconcebível. Será que os chefes de Ngombi e Mafela, por exemplo, sabiam com o que estavam concordando, a Ia de abril de 1884? Em troca de “uma peça de tecido por mês para cada um dos chefes que assinam o presente documento, além do tecido? entregue ora em mãos”, eles prometiam “por livre e espontânea vontade, em nome próprio; de seus herdeiros e suces­ sores [...•] ceder, para sempre, à Supracitada Associação, a soberania e to­ dos os direitos soberanas e governantes sobre todos os seus territórios [...] e a contribuir, com trabalho ou similar, com quaisquer obras, melhorias ou expedições que a dita Associaçãro haja por bem executar a qualquer mo­ mento e em qualquer parte dos ditos territórios. [...] Todas as estradas e vias fluviais que cortam este país, o direito de cobrar pedágio nas mesmas, e todo direito a caça, peso»; minérios; e produtos florestais passam à abso­ luta posse e propriedade da supracitada Associação”.^ ; “Contribuir com trabalho ou sim ilar.?.^ peças de tecido de Stanley compraram mais do que terras, compraram mão-de-obra. Foi um negócio bem pior do que fizeram os índios de Manhattan.

Que tipos de sociedades existiam nessa terra que, sem que a maioria de seus habitantes soubesse, Stanley ia demarcando com tanta diligência, em nome do Rei dos Belgas? Não há uma resposta simples. Caso as linhas daquilo que viria a ser a fronteira do Congo fossem sobrepostas ao mapa da Europa, abarcariam de Zurique a Moscou, passando pelo centro da Tur­ quia. Era um território tão grande quanto a região americana a leste do Mississippi. Embora coberta de florestas tropicais e savanas, a região tam­ bém contava com morros vulcânicos e montanhas cobertas de neve e ge­ leiras, de picos muitas vezes mais altos que os Alpes. Os povos desse vastíssimo território eram tão diversos quanto suas terras. Variavam de cidadãos de grandes reinos de organização sofisticada aos pigmeus da floresta de Ituri, que viviam em pequenos bandos, sem chefe ou qualquer estrutura formal de governo. Os reinos, que tinham ci­ dades de grande porte como capital, ficavam em geral na savana, onde via­ gens de longa distância eram mais fáceis. Na floresta, onde as trilhas tinham de ser abertas através da densa folhagem que em pouco tempo cobria de 82

novo o caminho, as comunidades eram normalmente menores. Os habitantes das florestas eram às vezes seminômades: caso um grupo de pigmeus, por exemplo, matasse um elefante, o lugar virava uma aldeia temporária, para uma ou duas semanas de festas, já que era mais fácil transportar uma aldeia do que um elefante morto. Embora alguns povos do Congo, como os pigmeus, fossem admira­ velmente pacíficos, seria um erro vê-los todos como modelos de inocên­ cia primeva. Muitos tinham escravos, praticavam o canibalismo ritual e guerreavam com outros clãs ou grupos étnicos, assim como qualquer ou­ tro povo. E a guerra tradicional nessa região da África, onde uma cabeça ou a mão decepada serviam às vezes como prova de que o inimigo fora morto em combate, era tão implacável quanto em qualquer outro lugar do mundo. Em algumas regiões do Congo todas as mulheres eram mutiladas, como aliás acontece ainda hoje, e tinham de ser submetidas à remoção for­ çada do clitóris, costume de extrema brutalidade, mesmo fazendo parte de um rito de iniciação. Assim como quase todos os povos indígenas, os habitantês da bacia do Congo tinham aprendido a viver em equilíbrio com seu meio ambien­ te. Alguns grupos, por exemplo, exerciam o que vem a ser, na prática, o controle da natalidade, proibindo os casais de manter relações sexuais às vésperas da partida do homem numa expedição de caça, ou enquanto a mulher estivesse amamentando o bebê. Substâncias encontradas em certas folhas e cascas de árvore induziam o aborto ou tinham propriedades anti­ concepcionais. Todos esses meios de controle populacional, aliás, eram surpreendentemente parecidos àqueles desenvolvidos numa outra grande floresta tropical, do outro lado do oceano Atlântico, na bacia amazônica. O mais surpreendente entre as sociedades tradicionais do Congo era a extraordinária qualidade de seus trabalhos artísticos: cestos, esteiras, ce­ râmicas, trabalhos em cobre e ferro e, sobretudo, as esculturas em madeira. Ainda seria preciso esperar outras duas décadas até que os europeus repa­ rassem de fato nessa arte. Sua descoberta teve então uma forte influência sobre Braque, Matisse e Picasso — que depois manteve objetos africanos em seu ateliê até a morte. O cubismo era novo apenas para os europeus, porque foi inspirado, em parte, por certas peças da arte africana, algumas delas produzidas pelos povos pende e songo, que vivem na bacia do rio Kasai, um dos maiores afluentes do Congo. Não é difícil entender o que tanto encantou Picasso e seus colegas em 1907, quando viram pela primeira vez esse tipo de arte numa exposição em Paris. Nas esculturas da África central, algumas partes do corpo apa­ recem volumosas, outras mirradas; os olhos saltam, os maçãs do rosto 83

afundam, a boca some, os torsos alongam-se; o globo ocular aumenta e toma conta quase que do rosto todo; cabeça e corpo são fragmentados e reunidos de uma forma nova, com proporções que sempre estiveram além do realismo europeu tradicional. Essa é uma arte nascida de culturas que, entre outras coisas, se com­ paradas ao islamismo ou ao cristianismo, tinham uma percepção mais flui­ da das fronteiras entre este e o outro mundo, bem como das que existem entre o mundo humano e o mundo animal. Por exemplo, entre o povo bolia, do Congo, o rei era escolhido por um conselho de anciãos; por ances­ trais que apareciam a ele em sonhos; e, por fim, por animais selvagens, que demonstfàvam seu assentimento rugindo durante a noite em que o candidato a rei era deixado num determinado lugar da floresta. Talvez te­ nha sido a fluidez entre essas fronteiras o que concedeu aos artistas afri­ canos uma liberdade que na Europa ainda não tinha sido descoberta.

Em junho de 1884, terminado o trabalho que fizera para Leopoldo e com um maço de tratados na bagagem, Stanley voltou à Europa. E até res­ mungou um pouco da voracidade de seu empregador: o rei, queixou-se ele, tinha um “enorme apetite para engolir 1 milhão de milhas quadradas com uma goela que não comporta nem um arenque”. Mas foi Stanley quem lhe facilitou engolir o enorme bocado., . : Ao se instalar na JngJaterra,||ara^ÇíiM er seu costumeiro relato de viagens em dois grossos volumes. Stanley viu a sua volta uma Europa que despertava para as possibilidades da África. A Partilha tinha começado. O tratado que De Brazza assinara em Stanley Pool levaria em hreve ao esta­ belecimento de uma colônia francesa na margem norte do rio .Congo. Na Alemanha, o chanceler Otto von Bismarck também queriq colônias na África. Os britânicos, os estrangeiros de presença mais forte no continen­ te, estavam começando a seipreocupar çom a competiçãftrrr Leopoldo tinha certeza de que nenhuma dessas grandes potências se prontificaria a reconhegeíâ.çfiônia“de um homem g|K| que, Stanley de­ marcara para ele. Mas o reconhecimento diplomático é* e»h parte, uma questão de precedentes. Uma ypz.que um grande país reconheça a existên­ cia de um outro, os outros fatalmente vão atrás. Se não havia nenhum país europeu disposto a dar esse primeiro passo crucial, decidiu Leopoldo,-ele procuraria em outra parte. Sem que ninguém percebesse em seu próprio continente, o rei já tinha começado a mexer os, pauzinhos para driblar completamente a Europa.

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5 DA FLÓRIDA PARA BERLIM

Uma camada espessa de neve, fruto de uma última tempestade no co­ meço da primavera, ainda cobria os gramados da Casa Branca quando o presidente Chester A. Arthur, usando uma cartola de seda, embarcou no vagão particular cedido pela Pennsylvania Railroad e rumou para umas férias no Sul do país. Sofrendo de pressão alta e achaques diversos, que­ ria dar uma boa descansada na Flórida, conforme disse a sua equipe. Par­ tiram também de Washington, naquele 5 de abril de 1883, o secretário da Marinha, o criado pessoal de Arthur, o secretário particular e o chef fran­ cês do presidente, descrito por um jornalista que acompanhava a comitiva presidencial como “um cavalheiro de cintura bem fornida [...] obviamen­ te um bom garfo”. A bordo do mesmo vagão, além de um amigo íntimo, viajavam ainda vários primos de sua falecida esposa, embarcados no ca­ minho. Depois de Petersburg, Virgínia, quando o vagão privado passou para os trilhos de uma outra ferrovia, um condutor de barbas grisalhas provocou muitas risadas ao passar pelo corredor, contando os passageiros e tentando recolher os 47,50 dólares das passagens. O telegrama com or­ dens para deixar a comitiva presidencial viajar de graça estava esperando na parada seguinte. Em Jacksonville, Flórida, o presidente foi recebido com uma salva de 21 tiros de canhão. Em seguida, embarcaram num vapor de roda e subi­ ram o rio St. Johns por uma verdadeira alameda de ciprestes, entre bandos de garças e cegonhas. Novos amigos e parentes se uniram ao sociável pre­ sidente no caminho, enquanto fogos de artifício espocavam das margens. No dia seguinte, o vapor atracou a cerca de cinqüenta quilômetros de onde é hoje o Disney World e, de lá, o grupo embarcou em carruagens para vi­ sitar a elegante sede da fazenda Belair, grande produtora de laranjas. O grupo experimentou vários tipos das melhores frutas, e o secretário da Ma­ rinha chegou mesmo a trepar numa laranjeira, para apanhar algumas que lhe chamaram a atenção. A noite, a comitiva presidencial assistiu a um es85

petáculo de canto e dança, com música de banjo, apresentado por uma trupe de seis rapazes negros da região. Um dos mais olvidáveis presidentes norte-americanos, Chester A. Arthur era um homem simpático, cujo mais alto cargo, poucos anos antes, fora o de coletor de impostos no porto de Nova York cargo que fora for­ çado a abandonar em meio a acusações de corrupção e má administração. Logo depois disso, as ligações de Chester Arthur com a poderosa máqui­ na republicana do estado de Nova York lhe valeram a nomeação para can­ didato a vice-presidente. Para espanto quase que universal, Chester Arthur entrou na Casa Branca quando o presidente James A. Garfield morreu as­ sassinado. Bom contador de casos e homem mundano, amigo de uísque, charutos e roupas caras, esse janota de costeletas fartas talvez seja mais lembrado como o autor da frase: “Posso ser presidente dos Estados Uni­ dos, mas minha vida privada não é da conta de ninguém”. Nessa viagem à Flórida, contudo, sua vida privada encaixava-se às mil maravilhas com as contas de alguém. O proprietário da fazenda Belair era o general Henry Shelton Sanford, o homem que ajudara Leopoldo a recrutar Stanley. Sanford não se deu ao trabalho de sair de sua casa na Bélgica para re­ ceber o presidente na Flórida. Com a presunção típica dos muito ricos, foi anfitrião in absentia. Providenciou para que o presidente e sua comitiva fossem recebidos por um agente de confiança e que tivessem as melhores acomodações: no hotel Sanford House, situado à beira de um lago franja­ do de palmeiras,'na cidade de Sanford. Quando não estavam passeando, pescando bass, truta ou bagre, matando crocodilo ou explorando a região de barco, o presidente e seus convidados descansavam no Sanford House, onde ficaram por volta de uma semana. Não há registros que nos possibi­ litem dizer quem pagou a conta do hotel, mas o mais provável é que, as­ sim como a viagem de trem, não tenha sido o presidente. . Ironicamente, a vasta plantação de laranjas de Sanford, que os visitan­ tes de Washington tanto admiraram, estava se mostrando um desastre, assim como tantos outros de seus investimentos. Alguns trabalhadores suecos con­ tratados para o serviço acharam as condições insuportáveis e tentaram aban­ donar a fazenda viajando clandestinamente num vapor. Sanford mandou construir um matadouro cinqüenta vezes maior do que a capacidade de con­ sumo do mercado local; a empreitada faliu. Um ancoradouro de 165 metros e o armazém que fizera erguer nas proximidades foram varridos pelas enchentes. O gerente de um dos hotéis de Sanford fugiu lhe devendo dinheiro. Os capatazes esqueciam de fazer cercas e o gado entrava e comia as laran­ jas. Era como se tudo em que Sanford tocava como empresário virasse pó; por outro lado, como cúmplice de Leopoldo o homem era um sucesso. 86

Sanford era fiel partidário do Partido Republicano. Havia dois anos„vinha se correspondendo com Chester Arthur e outros altos funcionários do governo dos Estados Unidos a respeito, sobretudo, dos planòs de Leopoldo para o Congo. Finalmente, chegara o momento certo de aumentar a pressão. Sete meses depois da viagem do presidente ao estado da Flórida, Sanford partiu para os Estados Unidos com recomendações expressas da parte de Leopoldo para que fizesse uso integral de suas convenientes conexões com a Casa Branca. O homem que já fora um dia embaixador norte-americano na Bélgica era agora o enviado pessoal do rei belga a Washington. Sanford levou consigo um código especial para telegrafar as novida­ des a Bruxelas: Constance significava “negociações caminhando satisfa­ toriamente; sucesso esperado”; Achille referia-se a Stanley, Eugénie à França, Alice aos Estados Unidos, Joseph aos “direitos soberanos” e Émile ao alvo principal, o próprio presidente. Bonheur (felicidade) significa­ va “acordo assinado hoje”. E por esse acordo, conforme os desejos de Leo­ poldo, os Estados Unidos dariam pleno reconhecimento diplomático a suas reivindicações ao Congo. Na bagagem, Sanford tinha também uma carta do rei para o presiden­ te, que ele próprio editara e traduzira com todo o cuidado. “Territórios in­ teiros, cedidos por chefes soberanos, foram por nós transformados em Es­ tados independentes”, dizia Leopoldo, uma afirmação que teria espantado Stanley, então terminando seu trabalho no rio Congo. De Chester Arthur, Leopoldo pedia apenas “o anúncio oficial de que o governo dos Estados Unidos [...] tratar[á] como bandeira amiga [...] o estandarte azul com a es­ trela dourada que agora tremula sobre dezessete postos, vários territórios, sete barcos a vapor envolvidos na obra civilizadora da Associação e sobre uma população de vários milhões”. A 29 de novembro de 1883, apenas dois dias depois de ter desembar­ cado em Nova York e tomado o trem noturno para Washington, Sanford foi recebido pelo presidente Arthur na Casa Branca. A grande obra civili­ zadora de Leopoldo, disse ele ao presidente e a todos com quem se encon­ trou na capital americana, era muito semelhante ao generoso trabalho que os próprios Estados Unidos haviam feito na Libéria, para onde, a partir de 1820, partiram muitos escravos libertos americanos e que em pouco tem­ po se tomara país independente. A escolha do exemplo não poderia ter sido mais astuciosa, uma vez que não fora o governo dos Estados Unidos que assentara os ex-escravos na Libéria e sim uma sociedade privada, se­ melhante à Associação Internacional do Congo. Como todos os demais atores do elenco altamente profissional de Leo­ poldo, Sanford tinha os acessórios cênicos corretos. Dizia, por exemplo, 87

que os tratados feitos pelo rei belga com os chefes tribais eram seme­ lhantes aos que o clérigo puritano Roger Williams, famoso por acreditar nos direitos dos índios, fizera no estado de Rhode Island, por volta de 1600 — e Sanford calhava de ter cópias desses tratados consigo. Mais ainda, na carta que enviara ao presidente Arthur, Leopoldo prometia que os cidadãos americanos seriam livres para adquirir terras no Congo e que os, produtos americanos ficariam livres de impostos aduaneiros na região. Em apoio a essas promessas, Sanford exibiu uma cópia dos acor­ dos que Leopoldo estava assinando com os chefes tribais. Só que essa cópia fora alterada em Bruxelas, omitindo toda e qualquer menção ao monopólio comercial concedido a Leopoldo, uma mudança que enganou não só o presidente como o próprio Sanford, fervoroso defensor do livre comércio e da abertura do Congo a empresários como ele. Em Washington, Sanford dizia que as influências civilizadoras de Leo­ poldo coibiriam a prática dos tenebrosos traficantes “árabes” de escravos. Além disso, não seriam esses “Estados independentes”, sob a generosa proteção da associação, na verdade uma espécie de Estados Unidos do Congo? Sem falar que, como Sanford escreveu ao secretário de Estado Frederick Frelinghuysen, o Congo “foi descoberto por um americano” (Stanley continuava se fazendo passar por cidadão nascido e crescido nos Estados Unidos). Uma semana apenas depois de sua chegada a Washing­ ton, o presidente incorporou em seu pronunciamento anual ao Congresso, com ligeiras modificações apenas, um texto que Sanford lhe entregara, fa­ lando do trabalho altruistico de Leopoldo no Congo. O rico e populoso vale do Kongo está sendo desbravado por um a sociedade cham ada Associação Internacional Africana, da qual o Rei dos Belgas é pre­ sidente. [...] Grandes porções de território foram cedidas à Associação pe­ los chefes nativos, abriram -se estradas, os barcos a vapor já navegam pelo rio e estabeleceram -se os núcleos desses Estados [...] sob um a bandeira que oferece liberdade ao comércio e proíbe o tráfico de escravos. Os objetivos da sociedade são filantrópicos. Ela não visa um controle político permanente e sim a neutralidade do vale.

Leopoldo ficou felicíssimo de ver sua própria propaganda ecoar tão facilmente nos lábios do presidente. Seu assessor, o coronel Maximilien Strauch, telegrafou a Sanford: e n c a n t a d o c o m é m i l e . Em seguida, Sanford ocupou-se do Congresso. Alugou uma casa na rua G, número 1925, a alguns quarteirões da Casa Branca, telegrafou à mulher e a seu chef paia que fossem ter com ele e começou a oferecer grandes jantares a senadores, deputados e membros do gabinete. Foi seu melhor momento: a personalidade afável, que fazia dele tanto um bon vi88

vant quanto um péssimo homem de negócios, serviu como uma luva ao pa­ pel de lobista. Ele tinha uma excelente adega e era chamado de “o diplo­ mata gastronômico”, empreendedor de uma verdadeira “campanha gastro­ nômica”. “Que jantar mais adorável tivemos em sua casa, e em companhia tão majestosa”, escreveu um visitante. O secretário de Estado Frelinghuysen era convidado habitual; o presidente Arthur, deputados e ministros pas­ saram a receber remessas regulares de caixas de laranja da Flórida. Enquanto angariava o apoio do Congresso à reivindicação de Leopol­ do, Sanford descobriu um aliado inesperado. O senador John Tyler Mor­ gan, do Alabama, antigo general-de-brigada do exército confederado, era presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado. Assim como boa parte dos políticos sulistas da época, ele tinha pavor de pensar que milhões de escravos libertos e seus descendentes pudessem alimentar sonhos amea­ çadores de igualdade. O senador, homem de aparência feroz, pequeno de corpo mas sonoro nas vituperações, trovejava sinistramente contra os peri­ gos da “influência dos pretos5?, da sub-reptícia entrada dos negros “no seio de [...] famílias brancas”, onde podiam infligir “um destino pior que a mor­ te numa mulher branca inocente”. Morgan preocupou-se durante anos com o “problema” dessa crescente população negra. Sua solução, endossada por muitos, era simples; mandar todos de volta para a África! Sempre pronto a defender um “êxodo geral” dos negros sulistas;5em vários momentos de sua longa carreira, Morgan também propôs que fos­ sem enviados para o Havaí, Cuba e Filipinas — dizendo, talvez porque es­ sas ilhas ficassem tão distantes,; que eram “lares nativos dós pretos”. A África, porém, sempre foi a preferida. Para Morgan, o novo Estado de Leo­ poldo parecia um presente dos céus. Pois então esse território não iria pre­ cisar de mão-de-obra para se desenvolver? Os congoleses não ficariam an­ siosos em comerciar com os Estados Unidos se conhecessem americanos com a mesma cor de pele? E o Congo não poderia se transformar num mercado para o superávit de algodão do Sul? A África, como ele disse mais tarde em plenário; “estava tão preparada para os pretos quanto o Jar­ dim do Éden estava preparado para Adão e Eva. [...] Na bacia do Congo, temos o melhor tipo da raça negra, e o preto americano [...] poderá encon­ trar ah grandes oportunidades”.* Sanford concordava com Morgan em gênero, número e grau. Embo(*) M organ fez esse discurso em apoio a u m a lei que previa a concessão de fundos federais para o transporte de negros sulistas interessados em em igrar. E m resposta, um a convenção afro-am ericana realizada em C hicago aprovou um a resolução em que eram soli­ citadas verbas federais para custear a em igração de brancos sulistas, sobretudo do senador M organ.

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ra nascido em Connecticut, logo que fez alguns investimentos no Sul ado­ tou a filosofia vigente entre o empresariado branco: mandar os negros de volta para a Afiica. O Congo poderia servir, segundo ele, como “um escoa­ douro [...] para os empreendimentos e ambições de nossa gente de cor em terrenos mais propícios do que a política”. Até o fim da vida, Sanford pro­ moveria essa nova “Canaã de nossos modernos israelitas”, que talvez pudes­ se vir a ser “o elemento que há de neutralizar a eletricidade daquela nuvem negra que se espalha pelos estados sulistas”. Sanford e Morgan deram-se às mil maravilhas e também Morgan começou a receber caixas de laranja da Flórida. No início de 1884, Morgan apresentou no Senado uma moção de apoio à reivindicação do rei belga, não sem antes mandar a minuta do docu­ mento para que fosse examinada por Sanford. Como todo bom lobista, Sanford não perdeu a oportunidade de tentar conseguir ainda mais. Onde Morgan dizia “terras banhadas pelo rio Congo”, Sanford acrescentou “seus afluentes e rios adjacentes”, frase que poderia ser interpretada como uma menção á toda a África central. O Senado reduziu essas pretensões e acabou aprovando uma versão modificada da moção de Morgan. Ao mes­ mo tempo, distribuiu também mil cópias de um longo relatório sobre o Congo, assinado por Morgan, mas escrito quase todo por Sanford. “Podese dizer com absoluta segurança”, declarava o documento, “que nunca an­ tes povos bárbaros acataram tão prontamente os cuidados benéficos de um empreendimento quanto o fizeram as tribos do Congo e nunca antes hou­ ve uma tentativa tão honesta e prática de [...] garantir o bem-estar desses povos.” I Ciente de que os partidários republicanos do presidente ouviam aten­ tamente o empresariado, Sanford apresentou à Câmara de Comércio de Nova York uma moção de endosso ao reconhecimento norte-americano da associação de Leopoldo. Descrições favoráveis ao trabalho filantrópico do rei começaram a aparecer nos principais jornais americanos, estimuladas, como era costume na época, por sigilosos depósitos em dinheiro feitos por Sanford. A múltipla campanha de Sanford foi talvez o exemplo mais so­ fisticado de lobby em favor de um governante estrangeiro de todo o século xix, e, a 22 de abril de 1884, frutificou. O secretário de Estado declarou que os Estados Unidos reconheciam a reivindicação do rei Leopoldo n pelo Congo. Era o primeiro país a fazê-lo. Leopoldo sabia que devia esse golpe fantástico a Sanford e sabia também que, muito mais que dinheiro, o que importava ao “general” era o louvor real. Convidou a esposa de Sanford, Gertrude, que havia voltado para a Bélgica, para o café da manhã. “Não sei nem como começar a lhe 90

contar”, escreveu ela depois ao marido, “todas as coisas elogiosas que o rei disse a seu respeito. [...] Meu caro, ninguém poderia ter sido mais elo­ gioso a você e mais temo comigo do que foram o rei e a rainha.” Durante o hábil lobby que fez em Washington, Sanford distribuíra do­ cumentos que confundiam totalmente o nome da Associação Internacional do Congo, controlada por Leopoldo sozinho, com o da Associação Interna­ cional Africana, já extinta mas lembrada, ainda que de modo vago, como uma sociedade filantrópica de exploradores famosos, príncipes herdeiros e grão-duques. Todos se deixaram confundir sem o menor problema. Em seu pronunciamento oficial de reconhecimento, o secretário de Estado Frelinghuysen na verdade conseguiu usar os dois nomes na mesma sentença: O governo dos Estados Unidos anuncia sua simpatia e aprovação pelos ob­ jetivos humanitários e benevolentes da Associação Internacional do Congo, que administra os interesses dos Estados Livres ali fundados e ordena a to­ dos os funcionários dos Estados Unidos, tanto em terra quanto no mar, a re­ conhecer a bandeira da Associação Internacional Africana como a bandeira de um governo amigo. Assim como a maioria dos documentos oficiais, esse desapareceu ra­ pidamente nos arquivos dos burocratas. Mas foi mais tarde transformado, sem que pelo visto as pessoas tenham notado. Quando essa mesma decla­ ração foi reproduzida, no ano seguinte, no livro de Stanley, The Congo and the Founding o flts Free State: A Story ofWork and Exploration [O Con­ go e a fundação de seu Estado livre: uma história de trabalho e explora­ ção], um campeão de vendas traduzido em várias línguas e lido no mun­ do todo, as palavras eram diferentes. O texto passou a se referir apenas à Associação Internacional do Congo, de propriedade exclusiva de Leopol­ do. O editor que fez a mudança foi, sem dúvida, o próprio rei, que corrigiu minuciosamente o manuscrito de Stanley, capítulo por capítulo. Muito an­ tes de Stalin, que também editava ele próprio o manuscrito de escritores, Leopoldo conhecia as vantagens de se reescrever a história.

“O reconhecimento dos Estados Unidos deu nova vida à Associação”, escreveu Stanley. E ele tinha razão. Mas enquanto seu principal arquiteto se preparava para voltar triunfante à Bélgica, Leopoldo fechava um trato muito parecido com a França. Assim como em Washington, o rei tinha seu homem de confiança em Paris, um marchand muito bem relacionado, cha­ mado Arthur Stevens, que negociou diretamente com o primeiro-ministro Jules Ferry. Leopoldo também pagava mensalmente um polpudo estipên­ dio a um jornalista do influente jornal Le TempS, garantindo com isso uma série de artigos favoráveis a suas atividades no Congo. 91

Os franceses não se sentiam ameaçados pela minúscula Bélgica ou pela imensidão das pretensões de Leopoldo. Temiam, isso sim, que o rei acabasse vendendo o território todo ao principal rival da França, a Inglater­ ra, tão logo ficasse sem dinheiro -«co m o estavam certos de que ocorreria — por causa do custoso projeto de construir uma ferrovia em tomo das cor­ redeiras. Afinal, Stanley não vivia defendendo um Congo britânico? ' Leopoldo já percebera que a anglofilia impulsiva de Stanley podia na verdade ajudá-lo em seu intuito. “Tenho cá comigo”, confidenciara ele ao coronel Strauch alguns meses antes, depois de uma dessas tiradas de Stan­ ley, “que não devíamos tentar corrigi-lo. Não nos prejudica em nada que Paris tema o estabelecimento de um protetorado britânico no Congo.” Para minorar os temores franceses, Leopoldo ofereceu um remédio. Se a Fran­ ça respeitasse sua reivindicação, daria ao país o droit de préférence sobre o CongoHrvale dizer, o privilégio ou direito de aceitar ou recusar alguma coisa antes de ela ser oferecida a outros. Os franceses, aliviados, concor­ daram prontamente. Certos de que a planejada ferrovia levaria Leopoldo à falência e que o rei teria então de vender-lhes a terra, acharam que esta­ vam fechando um excelente negócio. Os americanos, fascinados com a fleuma de Sanford, nem se deram ao trabalho de especificar as fronteiras daquele distante território que im­ plicitamente haviam reconhecido como sendo de Leopoldo. A França, ao contrário, estava disposta a colocar essas fronteiras no mapa, e nelas esta­ ria incluída grande parte da bacia do rio Congo. Leopoldo tinha usado as palavras “Estados independentes” ao escre­ ver para o presidente Chester Arthur. Mas em seus prommciamentos?áeguintes, o plural sumiu e ò rei passou a dizer “Estado”. Quanto à .associa­ ção, “era um órgão puramente temporário que desapareceria quando seu trabalho estivesse terminado”', disse um jornalista belga em 1884, expli­ cando o pensamento real. Com tal estratagema, a entidade que acabou sen­ do reconhecida por uma sucessão de países durante o ano seguinte foi | f transformando aos poucos de uma federação de Estados, sob a tutela be­ névola de uma sqçiedade car idosa, numa única colônia, regida por um só homem. O maior obstáculo encontrado por Leopoldo foi o chanceler Bismarck, da Alemanha. Dc início, fofmia cobiça que o deixou em apuros. Além da bacia do Congo, escrevera o rei numa carta a Bismarck, ele rei­ vindicava também áreas sem grande definição que haviam sido “abando­ nadas pelo Egito.; onde o tráfico de esçraVjOS jÇontinua impune. Permitir que essas [províncias] sejam incorporadas e administradas por um novo Estado seria a melhor forma de atingir;# raiz do problema e erradicá-lo”. 92

Bismarck, que não era tolo, rabiscou seu comentário à margem desse tre­ cho: “Falcatrua”. Ao lado do trecho que falava numa confederação de Es­ tados livres, escreveu: “Fantasias”. Quando Leopoldo escreveu que as fronteiras exatas do novo Estado ou Estados seriam definidas mais tarde, Bismarck disse a um assessor: “Sua Majestade demonstra as mesmas pre­ tensões e egoísmo ingênuo de um italiano, que julga seus encantos e boa aparência suficientes para fazer como bem lhe apetece”. Mas, no fim, Leopoldo dobrou até o chanceler de ferro e, de novo, conseguiu-o trabalhando com o intermediário perfeito. Gerson Bleichrõder, banqueiro de Bismarck, que financiou a construção do túnel São Gotardo, sob os Alpes, e vários outros projetos, era um homem de muita influência nos bastidores de Berlim. O rei o conhecera alguns anos antes, no famoso balneário marítimo de Ostende, e logo percebeu que ali estava um homem que poderia ser usado no futuro. Bleichrõder angariou simpatias para o rei ao transferir uma doação real de 40 mil francos à Sociedade Africana de Berlim. Mantinha Bruxelas a pardos assuntos da corte e acabou convencen­ do seu amigo chanceler a aceitar a reivindicação do Congo por Leopoldo.' Em troca, Bleichrõder ganhou alguns novos clientes, assessores de Leopol­ do, além da oportunidade de investir no Congo. Uma pianista, com quem ti­ nha um envolvimento romântico, segundo consta, foi convidada a dar um re­ cital na corte belga, onde recebeu das mãos de Leopoldo uma medalha. As negociações entre o rei e Bismarck atingiram o auge logo depois que Stanley voltou à Europa, no verão de 1884. Durante cinco dias, o ex­ plorador foi hóspede de Leopoldo, então de férias no Chalé Real de Os­ tende, uma vasta mansão à beira-mar, rodeada de torres e torreões. Os dois conversavam até altas horas da madrugada e o rei chamou até um cozi­ nheiro especial para preparar o tradicional desjejum inglês para Stanley, todas as manhãs. Quando Stanley se aprontava para ir embora, chegou uma mensagem de Bismarck, com perguntas sobre as fronteiras do novo Estado do Congo, de modo que o explorador ficou algumas horas mais, desenhando esses limites num grande mapa na parede do gabinete de Leopoldo.'Bismarck acabou se deixando convencer de que era melhor que o Congo fosse parar nas mãos do rei da pequena e fraca Bélgica, e permane­ cesse aberto aos comerciantes alemães, do que passar à tutela protecionis­ ta da França ou de Portugal, ou da poderosa Inglaterra. Em troca de garan­ tias de livre comércio no Congo (assim como todos os demais, Bismarck não conhecia o texto integral dos tratados de Leopoldo com os chefes tri­ bais), concordou em reconhecer o novo Estado.

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Na Europa, a sede por terras na África já era quase palpável. Havia algumas reivindicações conflitantes que precisavam ser resolvidas, e, ob­ viamente, urgia impor algumas regras básicas para a divisão final do bolo africano. Bismarck ofereceu-se para ser o anfitrião de uma conferência di­ plomática, a ser realizada em Berlim, que discutiria algumas dessas ques­ tões. Para Leopoldo, a conferência era uma oportunidade a mais de refor­ çar sua posição no Congo. A 15 de novembro de 1884, representantes das potências européias reuniram-se em volta de uma grande mesa, em forma de ferradura, com vista para os jardins da residência oficial de Bismarck, uma construção de tijolos amarelos na Wilhelmstrasse. Entre os ministros e plenipotenciários em trajes oficiais que tomaram assento sob o candelabro faiscante do salão de teto abobadado havia condes, barões, coronéis e um vizir do Império Otomano. Bismarck, vestido com a indumentária escarlate da corte, deu as boas-vindas a todos em francês, língua diplomática da época, e, sentados diante de um enorme mapa da África, os delegados puseram mãos à obra.'' Mais do que qualquer outro, fora Stanley quem acendera a cobiça por terras africanas, mas até ele sentia um certo desconforto com a avidez que pairava no ar. Lembrava-o, disse certa vez, de “meus companheiros negros [que] costumavam avançar com suas facas cintilantes em cima da caça abatida, durante as viagens”. A Conferência de Berlim foi a expressão mais completa de uma era em que o recém-descoberto entusiasmo pela de­ mocracia possuía limites muito claros e a caça abatida não tinha direito a voto. Até John Stuart Mill, o grande filósofo da liberdade humana, escre­ vera em A Liberdade: “O despotismo é uma forma legítima de governo no trato com os bárbaros, desde que se tenha como objfetivo seu progresso”. Não havia um único africano na mesa de negociações em Berlim. Com seu Estado embrionário já reconhecido pelos Estados Unidos e Alemanha e tendo assinado um acordo que concedia “direito de preferên­ cia” à França, a posição de Leopoldo era confortável. A Associação Inter­ nacional do Congo não era um governo — na verdade, os delegados pre­ sentes à conferência pareciam confusos sobre o que viria a ser, de fato, essa associação — de modo que não foi representada oficialmente em Berlim. Mas Leopoldo não teve o menor problema para se manter a par do que estava ocorrendo. Para começar, havia seu amigo Bleichrõder, que re­ cebeu os delegados para um elegante jantar e manteve os ouvidos bem atentos a tudo que se passava na capital alemã. Além disso, o rei tinha elos de ligação, de uma espécie ou outra, com três delegações nacionais. Em primeiro lugar, havia os representantes da Bélgica, que eram seus lacaios fiéis; um deles foi inclusive nomeado secretário do encontro. Em se94

gundo lugar, Leopoldo mantinha-se muitíssimo bem informado dos assun­ tos confidenciais do Ministério do Exterior da Grã-Bretanha, porque o assis­ tente pessoal do ministro devia uma grande quantia a um empresário amigo seu, um dos co-investidores da primeira expedição de Stanley. Sem contar que um dos assessores jurídicos da delegação britânica era Sir Travers Twiss, que pouco antes prestara consultoria a Leopoldo, em razão dos trata­ dos com os chefes tribais. Em terceiro lugar, adivinhem quem integrava a delegação norte-americana em Berlim? Henry Shelton Sanford, que envia­ va quase que diariamente boletins informando Leopoldo de tudo o que se passava. E quem era o “conselheiro técnico” da delegação norte-americana, mesmo estando ainda na folha de pagamentos de Leopoldo? Henry Morton Stanley. Entre uma sessão e outra da conferência, Leopoldo despachou San­ ford para Paris e Stanley para Londres, em missões de lobby diplomático. Embora seu papel em Berlim fosse sobretudo o de figura de proa para as ambições do rei belga, Stanley acabou bajulado de todos os lados e di­ vertiu-se muito. “Esta noite tive a honra de jantar com o príncipe Bismarck e sua família”, escreveu ele em seu diário. “O príncipe é um gran­ de homem, pai extremoso e simplíssimo com a família. [...] O príncipe fez muitas perguntas sobre a África e me provou que, em grande medida, compreende muito bem as condições daquele continente.” Bismarck, que estava a caminho de adquirir um substancial império africano para a Ale­ manha, alegrava-se de ver Stanley estimulando o interesse do público pelo continente. E providenciou uma série de banquetes e palestras para o ex­ plorador, nas cidades de Colônia, Frankfurt e Wiesbaden. Em Berlim, já coberta pelas primeiras neves do inverno, nenhum dos participantes da conferência, à exceção de Stanley, conhecia qualquer coi­ sa da África, além das paisagens que figuravam nos cardápios dos banque­ tes de Bismarck. Portanto, quando alguém se declarava inseguro quanto à magnitude das pretensões de Leopoldo, Stanley podia falar com a autori­ dade de uma péssoa que acabara de passar cinco anos no Congo, traba­ lhando para o rei. Logo no começo, relatou um diplomata, Stanley foi até o grande mapa da África “e no mesmo instante captou o interesse de to­ dos os delegados com uma descrição muito vívida da bacia do Congo; e por fim do país [adjacente] que seria necessário instituir, sob o mesmo régime, para assegurar a liberdade total de comunicação”. Havia um fluxo constante de telegramas entre Berlim e Bruxelas, de onde Leopoldo seguia cada passo da conferência. Ao contrário do que diz o mito, a Conferência de Berlim não dividiu a África; os despojos eram muito grandes e seriam precisos ainda muitos outros tratados para dividir tudo aquilo^Mas ao resolver algumas demandas conflitantes, a conferên95

cia (e um pacto separado que o rei negociou com a França) ajudou e mui­ to a Leopoldo: as terras nas proximidades da embocadura do rio Congo fi­ caram com ele, França e Portugal, mas o rei obteve também o que mais queria, o porto marítimo de Matadi, na parte baixa do rio, e as terras de que precisava para construir a ferrovia dali até o pego de Stanley, contor­ nando as corredeiras. Mais importante, para o rei belga, foi a rede de acordos bilaterais fei­ tos com os outros países, durante e depois da conferência, reconhecendo sua futura colônia e demarcando as fronteiras. Quando falou com os bri­ tânicos, por exemplo, deu a entender que, caso não obtivesse todo o terri­ tório que tinha em mente, sairia da África por completo. E isso significa­ va, pelos termos do acordo de “direito de preferência”, que venderia o Congo para a França. O blefe deu certo e a Inglaterra cedeu. Os europeus ainda estavam acostumados a pensar na riqueza da Áfri­ ca em termos de sua linha costeira e houve muito pouco conflito na hora de ceder a Leopoldo os imensos espaços que ele queria no interior do con­ tinente. Um dos principais motivos que lhe permitiram pôr as mãos em ta­ manha vastidão foi o fato de os outros países acharem que estavam dando sua aprovação a uma espécie de colônia internacional — sob os auspícios do Rei dos Belgas, sem dúvida, mas aberta a comerciantes de toda a Eu­ ropa. Além de um aceno superficial de aprovação à livre navegação, à ar­ bitragem das diferenças, aos missionários cristãos e coisas do gênero, o principal resultado da Conferência de Berlim foi ter declarado uma exten­ sa faixa da África central, inclusive o território de Leopoldo na bacia do Congo, como zona de livre comércio. A conferência terminou em fevereiro de 1885, com a assinatura do acordo e uma rodada final de discursos. Ninguém se beneficiou mais do que o homem que nunca esteve presente, o rei Leopoldo H, À menção de seu nome, durante a cerimônia de assinatura, a platéia levantou-se e aplau­ diu. Em seu discurso de encerramento, o chanceler Bismarck disse: “O novo Estado do Congo está destinado a ser um dos principais executantes do trabalho que pretendemos fazer, e eu aproveito para manifestar meus votos de que haja um desenvolvimento rápido e a plena realização das no­ bres aspirações de seu ilustre criador”. Dois meses depois, como se fosse um ponto de exclamação tardio para o final do discurso de Bismarck, um vaso da Marinha norte-americana, o Lancaster, surgiu na embocadura do rio Congo e disparou uma salva de 21 tiros de canhão, em honra da ban­ deira azul com a estrela dourada.

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Grande parte da Bélgica não deu muita atenção às atividades diplo­ máticas do rei, mas aos poucos algumas pessoas começaram a perceber, com grande surpresa, que aquela nova colônia era maior do que a Ingla­ terra, França, Alemanha, Espanha e Itália juntas. Representava 1/13 avos do continente africano, mais de 76 vezes o tamanho da própria Bélgica. Para tomar bem clara a distinção entre seus dois papéis, o Rei dos Belgas pensou de início em adotar o título de “Imperador do Congo”; tam­ bém brincou com a idéia de vestir os chefes que lhe fossem leais com uni­ formes inspirados nas famosas fardas escarlates dós guardas da Torre de Londres, os Beefeaters. Acabou decidindo ser apenas o “Rei-Soberano” do Congo. Nos últimos anos, referia-se a si mesmo — aliás com maior precisão, já que seu intuito sempre foi o de extrair até o último centavo das riquezas da região— como o “proprietário” do Congo. Seus poderes en­ quanto rei-soberano da colônia não eram partilhados de forma alguma pelo governo belga, cujo gabinete ministerial ficava tão surpreso quanto qualquer mortal ao abrir os jornais e descobrir que o Congo promulgara uma nova lei ou assinara um novo tratado internacional. Ainda que as entidades oficialmente reconhecidas pela Conferência de Berlim e por vários governos tenham sido a Associação Internacional Africana ou a Associação Internacional do Congo (ou ambas, como foi o caso do atordoado Departamento de Estado norte-americano), Leopoldo decidiu mais uma vez mudar o nome. A pretensão de que havia uma “As­ sociação” filantrópica envolvida no Congo desapareceu. Só o que perma­ neceu igual foi a bandeira azul com a estrela dourada/Por decreto real, a 29 de maio de 1885 o rei deu a seu novo país o nome de État Indépendant du Congo, Estado Independente do Congo. Logo haveria um hino nacio­ nal, “Rumo ao Futuro”. Por fim, aos cinqüenta anos, Leopoldo tinha a co­ lônia com que tanto sonhara.

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6 SOB A BANDEIRA DO IATE CLUBE

Enquanto crescia o poder de Leopoldo no estrangeiro, em casa as coisas estavam malparadas. Cada vez mais, o rei buscava consolo na cama de amantes diversas, uma das quais foi prontamente apelidada de “Rainha do Congo”. Em abril de 1885, apenas seis semanas após o triunfo diplo­ mático em Berlim, o rei foi citado num tribunal britânico como um dos clientes de uma “casa de tolerância” processados a pedido do Comitê Lon­ drino para a Supressão do Tráfico Continental de Moças Inglesas. Leopol­ do pagava oitocentas libras mensais, conforme testemunho de um antigo criado da casa, para que houvesse um suprimento constante de moças comprovadamente virgens, algumas delas entre dez e quinze anos de idade. Um jornal de Paris noticiou boatos de que Leopoldo atravessara secreta­ mente o canal da Mancha, em seu iate, e pagara uma régia soma à cafetina da casa para que seu nome não voltasse a ser mencionado. O caso encerrou-se com uma rapidez inusitada, mas é mais provável que a causa tenha sido o príncipe de Gales, que, segundo os mexericos, era outro assíduo freqüentador do estabelecimento. O ministro do Interior britânico enviou um observador especial à corte, aparentemente para servir de mensagem vela­ da a todos os envolvidos de que quanto menos se dissesse, melhor. Depois de se declarar culpada, a cafetina saiu ilesa do processo, tendo sido con­ denada a pagar apenas uma multa irrisória. Quando estava com dezessete anos apenas, Louise, a primogênita de Leopoldo, foi dada em casamento a um príncipe austro-húngaro bem mais velho do que ela. Depois das festas ocorridas em toda a cidade, a noite de núpcias, passada em Laeken, foi tão traumatizante que Louise fugiu para os jardins do castelo de camisola e teve que ser tirada de lá por um criado, após o que a mãe foi obrigada a lhe dar uma aula sobre seus deveres matri­ moniais. Alguns anos mais tarde, Louise envolveu-se numa série de dívi­ das e num romance adúltero com um oficial da cavalaria. Depois do duelo entre o militar e o marido, as autoridades austríacas puseram o rapaz na pri98

são e deram duas opções à moça: ou voltava para o marido ou ia para um asilo de loucos. Ela escolheu o asilo e Leopoldo não quis mais falar com a filha. Receoso de novos constrangimentos, pediu que fosse vigiada de per­ to. Por fim o oficial da cavalaria foi libertado e, num gesto dramático, sal­ vou sua amada do cativeiro, para morrer logo em seguida. Pelo resto de sua vida infeliz, Louise comprou roupas com a mesma obsessão com que o pai tentava comprar países, uma compulsão que dissipou seu quinhão da fortu­ na real e muito mais. Os credores, exasperados, conseguiram por fim lei­ loar uma parte de seu guarda-roupa: 68 véus, noventa chapéus, 27 vestidos de noite, 21 capas de seda ou veludo e 58 guarda-chuvas e sombrinhas. Também para a filha do meio, Stephanie, Leopoldo não foi um bom pai. Quando ela tinha apenas dezesseis anos, prometeu a moça em casa­ mento ao príncipe herdeiro Rudolph, para que um dia se tomasse impera­ triz do Império Austro-Húngaro. Leopoldo tinha muita inveja dos Habsburgo porque, ao côntrário dele, não sofriam as restrições de parlamentos e constituições. Quando o príncipe Rudolph apareceu em Bruxelas para conhecer a noiva, num claro sinal de como seriam as coisas no futuro, le­ vou consigo uma amante. O principal refrigério de Leopoldo para as tristezas domésticas era sua nova colônia. O Congo, como Louise recordaria mais tarde, “era o úni­ co assunto de conversa a minha volta”. E não era para menos, já que as coi­ sas iam bem melhores para Leopoldo no Congo do que em casa. Assim como descobrira o momento político ideal para adquirir seu novo territó­ rio, Leopoldo viu-se no momento tecnológico perfeito para consolidar a posse. Ao se preparar para desenvolver a vasta colônia, encontrou à dispo­ sição uma série de ferramentas que não existiam em períodos anteriores de colonização. Ferramentas que foram cruciais porque permitiriam, em pouco tempo, que uns poucos milhares de homens brancos, a serviço do rei, dominassem cerca de 20 milhões de africanos. Para começar, haviá novos armamentos. As primitivas armas de car­ regar pela boca, a melhor coisa que grande parte dos congoleses conseguia obter, eram pouco melhores que os mosquetes do exército de George Wash­ ington. Mas por volta de 1860 os europeus já podiam se valer de rifles de retrocarga, que tinham acabado de demonstrar seu poder mortal nos cam­ pos de batalha da Guerra Civil americana. Eram rifles com alcance muito maior, mira mais precisa e que, em vez de usar pólvora solta, inútil na chu­ va, usavam cartuchos de latão impermeáveis, rápidos de carregar. Um avanço ainda mais decisivo viria logo depois: o rifle de repeti­ ção, capaz de disparar doze ou mais tiros sem ter que ser carregado. Na seqüência, surgiu a metralhadora. Como escreveu o poeta Hilaire Belloc: 99

W h atever happens, w e have g o t The M axim Gun, an d they have not.

O conhecimento médico foi outro instrumento capital para que òs eu­ ropeus pudessem tomar conta de virtualmente toda a África tropical nas duas décadas seguintes ã Conferência de Berlim. Exploradores de meados do século atribuíam as causas da malária a pratiçamente tudo, desde “vapo­ res dos pântanos” a dormir ao luar, mas quaisquer que fossem elas, apren­ deram que o quinino era uma defesa útil. Por volta da virada do século, já se tinha um bom conhecimento sobre malária e hematúria; os pesquisado­ res também dominaram a febre amarela e outras enfermidades, e o índice de mortalidade dos europeus nos trópicos africanos começou a diminuir. Maí, acima de tudo, e em virtude da geografia inusitada do Congo, havia uma ferramenta que viria a ser muito mais importante para Leopoldo dõ que para os outros imperialistas, ê que já tivemos a oportunidade de ver em ação: o barco a vapor. Entre os africanos do Congo, era conhecido como “a casa que anda na água” oü, onomatopaicamente, como kutu-kutu. O barco a vapor foi um instrumento de colonização durante todo o século xix,,'servindo a todos, dos britânicos no rio Ganges, na índia, aos russos nos,rids Ob e Irtyche, na Sibéria. No Congo, os barcos a vapor eram tan­ to do tipo com rodas propulsoras laterais quanto com roda à popa; todos possuíam toldos, para proteger do sol tropical. Em geral eram compridos e estteitÓp|com a quilha mais chata, permitindo assim que passassem pe­ los inúmeros bancos de areia do rio principal e seus afluentes. Às vezes ti­ nham uma rede de arame pendurada do toldo, para proteger das flechas o capitão c o timoneiro. Por volta dessa época, o vapor já tinha substituído também quase to­ dos os veleiros em alto-mar, tomando a viagem da Europa até a África mui­ to mais rápida, com datas mais precisas. Foi num desses vapores que em­ barcou a leva seguinte de agentes de Leopoldo na África. Até o final de 1889, havia 430 brancos trabalhando no Congo: mercadores, soldados, missionários e administradores do Estado embrionário. Menos da metade desses agentes era belga, pois a terra natal de Leopoldo ainda mostrava pouco interesse pela nova possessão. Significativamente, quase todos eles eram oficiais da reserva, afastados temporariamente de seus respectivos ex ército s.^ Com as equipes já colocadas e os instrumentos a postos, Leopoldo còmeçou a éóàstruir a infra-estrutura necessária à exploração de sua colô­ nia/ Um sistema rudimentar de transporte foi o primeiro item da agenda; 'i‘itijsk) A conteça o que acontecer, ternos/ a m etralhadora de M axim , e eles não. (N. T.)

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WWICAMP V l U i o t s C-í!

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sem ele, as riquezas daquele território, fossem quais fossem, não poderiam ser levadas até os portos de saída, exceto a pé. Em 1887, uma equipe de topógrafos começou a mapear a rota de uma ferrovia que contornaria os famosos 354 quilômetros de corredeiras. Mosquitos, calor, febres e o ter­ reno rochoso pontilhado de barrancos profundos cobraram um alto preço, e foram precisos três anos para que os operários pudessem começar a as­ sentar os trilhos. Iniciados os trabalhos, tanto na Bélgica quanto no próprio Congo cresceu uma burocracia estatal. Henry Shelton Sanford tentou conseguir um posto como alto executivo colonial em Bruxelas e até escreveu à mu­ lher, cheio de esperanças: “Este é bem o tipo de trabalho que eu gostaria de fazer, que me traria tanto uma boa reputação quanto um bom dinheiro, além da satisfação de fazer o bem. [...] Acho que vou [...] propor um pla­ no de operações e oferecer meus serviços”. As esperanças foram em vão, pois Leopoldo sabia que, embora perito em oferecer jantares suntuosos em Washington, Sanford não tinha queda para administrador nem crueldade suficiente para o cargo. Em vez disso, o rei lhe deu permissão para coletar marfim e outros produtos africanos e prometeu ajudá-lo (coisa que acabou não se concretizando) com carregadores, edificações e transporte fluvial. Mas a Expedição Exploratória Sanford, como foi chamada eufemisticamente a aventura, logo seguiu pelo mesmo caminho de seus outros inves­ timentos. Como de hábito, o “general” tentou administrar tudo sem sair da Bélgica, onde dívidas crescentes o forçaram a vender parte de sua coleção de objetos de arte e mudar-se para um castelo menor. Enquanto isso, seu capataz no Congo deu de beber e deixou as caldeiras dos barcos enferru­ jarem num canto. Leopoldo era um homem de negócios bem melhor do que Sanford, mas também ele começou a sentir pressões financeiras. Herdara uma for­ tuna considerável; no entanto, lá pelo final de 1880, exploradores, barcos, mercenários, armamentos e outras despesas relacionadas com o Congo ti­ nham consumido quase tudo. Todas essas despesas, contudo, teriam de continuar — até mesmo aumentar — caso quisesse de fato lucrar com a exploração do território. De onde viria o dinheiro?* Obtê-lo do governo belga seria difícil, porque uma cláusula na Constituição do país exigia aprovação parlamentar a fim de que Leopoldo se tomasse monarca de um outro Estado. Para tanto, teve de prometer que o Congo jamais viria a ser um peso financeiro à Bélgica. Ele dera sua palavra aos céticos legislado­ res de que possuía fundos suficientes para fomentar o desenvolvimento do território, mesmo que isso não fosse verdade. De 1885 a 1890, o rei gastou grande parte de seu tempo à procura de 101

dinheiro. No início, ainda tinha crédito com os banqueiros, mas a partir de um determinado momento até mesmo seus credores principais, os Roths­ child, passaram a lhe recusar qualquer novo empréstimo. Há centenas de cartas suas, desse período, que mostram a preocupação obsessiva com di­ nheiro. Ele emagreceu e começou a dormir muito mal; aos olhos de seus ministros, o rei estava definhando. Leopoldo era famoso por seu enorme apetite (muitas vezes repetia o primeiro prato, depois de terminar uma lau­ ta refeição; uma vez, num restaurante parisiense, comeu dois faisões assa­ dos inteiros), mas a certa altura, numa tentativa de obter simpatia e verbas públicas, divulgou que, para economizar, estava comendo um prato a me­ nos por dia, no almoço. A rainha Marie-Henriette chegou inclusive a se queixar com ele: ‘‘Leopoldo, você está nos arruinando com o seu Congo!”. O rei recorreu à venda de títulos, mas arrecadou muito menos do que esperava. Chegou a escrever ao papa, pedindo à Igreja Católica que com­ prasse títulos do Congo a fim de incentivar a divulgação da palavra de Cristo. Para a ferrovia e alguns outros projetos, conseguiu atrair investido­ res privados, mas sob condições que diminuíam sua própria fatia do que, sem sombra de dúvida, seriam lucros imensos. Por fim, chegou à conclu­ são de que a única solução para sua crise financeira era um grande emprés­ timo. Tendo-se em vista sua dívida já bastante alta, a fonte mais provável pára esse empréstimo era o parlamento belga. Com o correr do tempo, os legisladores esqueceriam das promessas anteriores. Era essa a esperança de Leopoldõ^de modo que esperou um pouco, antes de abordar o parla­ mento. E, enquanto esperava, trabalhou uma vez mais para polir sua repu­ tação eomo> filantropo e humanitário.

As pessoas na Europa continuavam indignadas com o tráfico “árabe” de escravos em Zanzibar e na costa oriental da Africa. De fato, os trafican­ tes de escravos andavam espalhando uma nuvem de terror em boa parte do Leste e do centro da África e os escravos que capturavam continuavam sendo vendidos ào longo de todo o litoral nordeste do oceano índico e do gólfo Pérsico. Entretanto a retidão européia em relação à questão estava entremeada como nunca ao crescente desejo de se apoderar de colônias africanas. Convenientemente, os traficantes de escravos eram quase todos muçulmanos, o que permitia aos europeus sentirem-se mais virtuosos em relação a suas ambições. Leopoldo obteve muitos elogios por ter patroci­ nado o trabalho de missionários cristãos em sua nova colônia; na verdade, causou tamanha impressão com suas veementes denúncias do tráfico de escravos que acabou sendo eleito presidente honorário da Sociedade de 102

Proteção aos Aborígines, uma respeitável organização de direitos huma­ nos da Grã-Bretanha. Para enorme satisfação do rei, Bruxelas foi o local escolhido para a realização da Conferência Antiescravocrata das grandes potências, uma série de encontros intermitentes, durante oito meses, a começar em no­ vembro de 1889. O rei “humanitário” não mediu despesas para receber os delegados, em cuja sala de reuniões, no Ministério do Exterior da Bélgi­ ca, ficava exposta uma gargalheira, uma espécie de canga para prender es­ cravos. “É trabalho árduo”, escreveu um alto representante britânico ao Ministério do Exterior, “comparecer a todos os jantares, recepções e bai­ les.” Por razões diplomáticas, a Turquia teve de ser incluída na Conferên­ cia Antiescravocrata, ainda que a escravidão fosse legal no país. Seus de­ legados deram boas gargalhadas quando oradores denunciaram o harém islâmico como elemento de estímulo ao tráfico de escravos. Para os diplomatas, a conferência foi uma longa festa. O salão onde se reuniam dava para uma das ruas de comércio mais chiques de Bruxe­ las, e um dos presentes, lembrando-se do conde Von Kevenhuller, repre­ sentante austro-húngaro, comentou: “A cada vez que surgia um chapéu fe­ minino, ele se levantava e corria à janela, como se impelido por uma mola. E, a cada vez, a visão causava-lhe imensa alegria. Por fim, receosos de que o conde perdesse alguma chance de praticar seu esporte predileto, as pes­ soas de uma ponta a outra da mesa passaram a alertá-lo quando da apro­ ximação de uma nova mulher bonita”. A Conferência Antiescravocrata foi uma dádiva dos céus para Leo­ poldo, já que os delegados, entre uma bela moça e um bonito chapéu, en­ contraram tempo suficiente para aprovar alguns dos planos que o rei apre­ sentou para combater o tráfico de escravos — planos que, curiosamente, tinham uma semelhança extraordinária com a custosa infra-estrutura de transporte que pretendia construir no Congo. O rei enfatizou a necessidade de postos fortificados, estradas, ferrovias e barcos a vapor para fornecer apoio aos soldados que fossem perseguir os traficantes. Num gesto mag­ nânimo, ofereceu os serviços do novo Estado do Congo para a consecução de tão nobre fim e pediu em troca apenas que a conferência o autorizasse a lançar impostos de importação, para financiar o combate à escravidão. As potências acabaram concordando, na verdade acabaram emendando em fa­ vor de Leopoldo o acordo de Berlim, que havia garantido o exercício do livre comércio. Henry Shelton Sanford, que participou da Conferência Antiescravo­ crata na qualidade de delegado norte-americano, ficou horrorizado. Seis anos antes, obtivera o reconhecimento dos Estados Unidos para o Congo 103

de Leopoldo; ele mesmo apusera sua assinatura num acordo que prometia o livre comércio e, em troca, lá estava Leopoldo, pedindo impostos adua­ neiros. A admiração ingênua que sentia pelo rei foi por água abaixo; Leo­ poldo o traíra. Sofrendo de gota e de insônia, a barba começando a bran­ quear e o rosto a mostrar os efeitos da idade e das preocupações financeiras, Sanford era um homem muito diferente do charmoso emissário de seis anos antes. Morreu um ano depois de encerrada a conferência, desiludido com Leopoldo e endividado até a raiz dos cabelos. Seus investimentos no Congo não deram em nada e o único sinal que restou dele foi o barco a va­ por de seis toneladas chamado Général Sanford. Com a conferência ainda em andamento, Leopoldo convidou Stanley a passar uma semana na Bélgica. Além de pedir-lhe que falasse aos delegadoif Leopoldo condecorou-o com a Grã-Cruz do Congo, providenciou um banquete, uma apresentação de gala da ópera e hospedou-o nos apo­ sentos escarlates e dourados do Palácio Real, em geral reservados às visi­ tas reais. Em troca, Stanley louvou seu anfitrião num discurso aos belgas: E m que consiste a grandeza de um m onarca? Se consistir na extensão de seus territórios, então o im perador da R ússia é o m aior deles. Se for o es­ plendor e o poder da organização militar, então Guilherm e n [da Alemanha] ocupa o primeiro lugar. M as se a grandeza real consiste na sabedoria e bon­ dade de um soberano que conduz seu povo com a solicitude de um pastor vi­ giando seu rebanho, então o m aior de todos os soberanos é o vosso.

Leopoldo estava usando Stanley como um presidente norte-america­ no em nossos tempos usaria uma grande estrela de cinema para sua cam­ panha publicitária. A visita do explorador era parte integrante de uma campanha de relações públicas cuidadosamente arquitetada para marcar o vigésimo quinto ano de seu reinado. Leopoldo deu também uma festa ao ar livre, para 2500 convidados da elite belga, nos jardins de Laeken, e abriu à contemplação extasiada dos convivas as portas das enormes novas estufas do castelo, cujos exóticos arranjos de plantas e árvores constituíam a maior coleção botânica particular do planeta. Até mesmo a Bolsa de Va­ lores de Bruxelas, até então relutante em bancar os projetos africanos do rei, ofereceu uma grande recepção em sua honra, decorando o saguão da Bolsa com lanças africanas e um dos mais inusitados arranjos florais ja­ mais registrados, uma enorme massa de folhagem, de onde brotavam qua­ trocentas presas de elefante. A campanha de Leopoldo tinha um único objetivo: dinheiro. No auge de seus esforços, conseguiu fechar um trato com importantes integrantes de seu gabinete, que começavam a perceber que a possessão africana do rei talvez viesse a valer um bocado de dinheiro no futuro. Se o parlamen­ 104

to lhe concedesse, o empréstimo pretendido, Leopoldo declarou, ele deixa­ ria o Congo para a Bélgica, em seu testamento. E foi assim que, quando esse generoso monarca, famoso por sua cruzada antiescravista, elogiado pelo famoso explorador Stanley, festejado por seus fiéis súditos, pediu fi­ nalmente ao parlamento um empréstimo de 25 milhões de francos (cerca de 125 milhões de dólares em moeda atual) para apoiar o trabalho filan­ trópico que estava realizando no Congo, ele o conseguiu. Sem juros. Talvez em nenhuma outra parte fique mais clara a tremenda arrogân­ cia de Leopoldo do que nesse curioso documento, em que ele jovialmen­ te lega um de seus países ao outro. Nós, Leopoldo n, Rei dos Belgas) Soberano do Estado Independente do Gongo, desejosds de assegurar para N ossa am ada pátria os frutos do traba­ lho que, por m uitos e m uitos anos, estivemos executando no continente afri­ cano [...] declaram os, pelo presente, legar e transm itir à Bélgica, após Nos­ sa m orte, todos Nossos direitos soberanos sobre o Estado Independente do Congo.

Mas tem mais. Quando o rei tomou público o testamento, o docu­ mento saiu com data anterior, de modo a fazer parecer que seu legado fora um ato de generosidade, e não parte de uma barganha financeira.

Para Henry Morton Stanley, os cinco anos que antecederam sua gran­ diosa recepção em Bruxelas, em 1890, não tinham sido nada fáceis. Desde o encerramento da Conferência de Berlim, em 1885, Leopoldo se pergun­ tava o que fazer com o explorador. Para garantir que não fosse trabalhar para os britânicos, manteve-o em sua folha de pagamentos, como consul­ tor. Mas o rei estava precisando era de topógrafos,! engenheiros de mine­ ração, construtores de ferrovias, capitães de barcos a vapor, soldados e ad­ ministradores. Anos antes, Leopoldo prometera nomear Stanley diretor geral do futuro Estado do Congo. Mas, em troca do reconhecimento dos franceses (que se ressentiam do fato de Stanley ter levado a melhor e hu­ milhado seu homem, De Brazza), o rei belga prometera, em surdina, que nunca mais empregaria Stanley no Congo. Portanto, sob todos os aspec­ tos, exceto em termos de relações públicas, o irrequieto Stanley era agora de pouca serventia. Leopoldo; como comentou certa feita um primeiro-mi­ nistro belga, “trata os homens como fazemos com limões: depois que os espremeu até a última gota, atira fora o bagaço”. Stanley suspeitava que Leopoldo tivesse feito um trato secreto com os franceses e, como tantas outras vezes na vida, ficou magoado. Seus equipamentos e tralhas para explorar a África estavam arrumados e pron­ 105

tos para partir, mas não havia missão alguma. Ele não precisava do dinhei­ ro que recebia de Leopoldo; ganhava muito mais com suas palestras e li­ vros. Entretanto, manteve-se fiel ao rei, mesmo quando Leopoldo come­ çou a adiar as missões, dizendo, como o próprio explorador se queixou, em carta de 1886: “Não sabemos com certeza quando vamos precisar de seus serviços, mas nós o faremos saber, meu caro senhor Stanley, com tempo de sobra para se preparar”. Como sempre, quando na expectativa de partir para a Áfiica, Stanley pensou em casamento, ainda que, como ele próprio confessou, melancóli­ co, “o fato é que não consigo falar com as mulheres”. Durante um ano e pouco, esteve envolvido em mais um de seus tímidos namoros, dessa vez com uma pintora da alta sociedade londrina chamada Dorothy Tennant. Dorothy pintava ninfas gregas, moleques urbanos e o retrato de Stanley. A primeira vista seria uma união perfeita, já que ela era tão desajeitada e aca­ nhada com os homens quanto Stanley com as mulheres. Aos 34 anos, Do­ rothy ainda dormia no mesmo quarto que a mãe e falava em seu diário com o pai morto havia muito. Stanley confidenciou a ela a história infeliz do abandono de Alice Pike e depois pediu-a em casamento. Mas ela não aceitou. Vendo-se uma vez mais rejeitado, convenceu-se de que a moça não o quisera por causa de suas origens humildes. “Aquela mulher me fis­ gou com suas manifestações efusivas”, escreveu ele a um amigo, “com ba­ julações e quinquilharias gravadas com ‘Não se esqueça de mim’, com seus bilhetes perfumados.” Nesse meio tempo, enquanto Stanley amargava mais uma recusa, as ambições de Leopoldo foram crescendo. Sequioso de outras colônias, co­ meçou a sonhar com o vale do Nilo. “Meu caro ministro”, disse cie certa feita ao primeiro-ministro belga, que tentava dissuadi-lo dessa fantasia, “quer dizer então que acha que não vale a pena a glória de ser um faraó?|; O Congo, em comparação, era “prosaico”, insistiu ele. Sobre o Nilo, diria Leopoldo: “E meu galardão e não hei de desistir dele!’»E m 1886^ surgiu uma oportunidade que prometia, numa tacada só, a possibilidade de .avan­ çar com o sonho do Nilo, colocar Stanley trabalhando de novo e consólij dar seu domínio do Congo. O Sudão, por onde correm as ramificações superiores do Nilo, esta­ va sob administração anglo-^egípcia. As distâncias, porém, eram imensas e o controle, fraco. Integrantes de um movimento fundamentalista muçul­ mano, chamado mahdismo, rebelaram-se em meados de 1880, matando o governador-geral britânico e rechaçando as forças britânicas enviadas para combatê-los. A Inglaterra ficou chocada, mas o país tinha muitas outras guerras coloniais em andamento e decidiu, por uns tempos, não entrar na­ 106

quela. Os rebeldes avançaram para o sul, onde o governador da província mais meridional do Sudão ainda resistia. Para grande conveniência de Leo­ poldo, a província fazia fronteira com o Congo. Esse governador, chamado de Emin Pasha, pediu ajuda à Europa; uma das cartas foi publicada no Times, desencadeando uma c a m p a n h a que pretendia enviar uma expedição privada em seu socorro. O Times declarou que seria uma “tarefa misericordiosa e perigosa — resgatar Emin Pasha [...] que se encontra rodeado por tribos selvagens e hostis e isolado dos recursos da civilização”. O fervor antiislâmico ajudou a tirar o plano do papel. Os britânicos ficaram ainda mais indignados quando o chefe dos mahdistas exigiu que a rainha Vitória fosse ao Sudão, se submetesse a seu regime e se convertesse ao islã. Ou seja, quando Emin Pasha entrou em cena, além dos vilões muçul­ manos os britânicos ganharam um herói branco. Sim, porque apesar de seu título (emin significa “aquele que é fiel”), o paxá era um judeu alemão chamado Eduard Schnitzer. Nas fotografias, o rosto decididamente euro­ peu de Emin aparece enfeitado com óculos de lentes grossas e encimado por um fez vermelho. Médico por formação, era um lingüista brilhante e também um excêntrico; além de tentar governar sua província, curar os doentes e resistir aos rebeldes mahdistas, também recolhia religiosamente todos os espécimes de plantas e animais que conseguia encontrar e estava formando uma coleção de pássaros empalhados para o Museu Britânico. A Expedição de Auxílio a Emin Pasha começou a tomar forma e cho­ veram doações. Os comerciantes de alimentos Fortnum e Mason contribuí­ ram com caixotes de finas iguarias; o inventor Hiram Maxim mandou seu mais recente modelo de metralhadora; houve até o envio de um novo mo­ delo de farda para Emin. Quanto ao líder da expedição, quem mais indi­ cado do que Henry Morton Stanley? O explorador aceitou avidamente o convite. E sentiu-se especialmente encantado com a nova arma de Maxim, que experimentou na própria casa do inventor, satisfazendo-se com sua ca­ pacidade de disparar os propalados seiscentos tiros por minuto. A nova metralhadora, disse Stanley, seria “de grande utilidade para que a civiliza­ ção superasse a barbárie”. Quando Stanley pediu a Leopoldo para liberá-lo do contrato de con­ sultoria, permitindo-lhe liderar a expedição, o rei concordou — sob duas condições. Primeiro, que em vez de ir ter com Emin pela rota mais curta e fácil, viajando do Leste da África através dos territórios montanhosos em mãos de alemães e britânicos, a expedição atravessasse o Congo, o que exigia cruzar a inexplorada floresta de Ituri. Em segundo lugar, assim que Stanley encontrasse Emin Pasha, pediria a ele que continuasse goveman107

do sua província — só que ela se tomaria uma das províncias do Estado do Congo. Dessa forma, além de conseguir explorar mais um pedaço desconhe­ cido de seus territórios, e quem sabe até expandi-lo, Leopoldo o faria à custa de terceiros. As despesas da expedição foram custeadas pelas mais diversas pessoas, desde a Royal Geographical Society até negociantes in­ teressados no suposto estoque de marfim em poder de Emin, calculado em 60 mil libras, passando pelos barões da imprensa, que sabiam que uma ex­ pedição comandada por Stanley era venda garantida de jornais. Ao partir, no início de 1887, o explorador teve de fazer muito malabarismo para con­ ciliar as exigências de seus inúmeros patrocinadores. Uma testemunha, que cmzou com Stanley e sua imensa força nas corredeiras inferiores do rio Congo, reparou espantada que o porta-estandarte encabeçando a colu­ na levava — a pedido do dono do New York Herald, James Gordon Bennett — a bandeira do Iate Clube de Nova York. O best-seller em dois volumes de milhares de páginas que Stanley sempre produzia após uma viagem acabou sendo a p e n a s um dos muitos relatos sobre a Expedição de Auxílio a Emin Pasha. (Ao recrutar seus ofi­ ciais, Stanley fez cada um deles assinar um contrato, prometendo que livro nenhum seria publicado antes de seis meses do lançamento de sua histó­ ria “oficial”.) Mas embora tenha beneficiado a imprensa e a indústria li­ vreira, a expedição foi um verdadeiro desastre para quase todos os envol­ vidos, exceto, talvez, para o Iate Clube de Nova York, que pelo menos viu seu estandarte ser transportado por todo um continente. Stanley teve seus ataques de hábito. Despediu quatro vezes seu cria­ do pessoal e contratou-o de volta quatro vezes. Tinha acessos de raiva e gritava com os oficiais brancos — vários dos quais mais tarde pintariam um retrato pouco charmoso do explorador. “A coisa mais ínfima”, escre­ veu um deles, “é suficiente para lhe provocar a ira.” Stanley contribuiu para a derrocada dos investimentos de Henry Sanford no Congo ao requi­ sitar seu barco a vapor para servir de barcaça aos soldados e devolvê-lo, alguns meses depois, completamente danificado. Mais importante ainda, cometeu o erro estratégico de dividir seus oitocentos soldados, carregado­ res e pessoal de apoio em duas colunas, para que pudesse, com uma força menor e mais veloz, chegar até Emin Pasha e executar o dramático e es­ perado resgate mais rapidamente. Como de hábito, Stanley escolheu muito mal seus subordinados. O oficial encarregado da coluna de retaguarda, o major Edmund Barttelot, enlouqueceu prontamente. Atirou a bagagem pessoal de Stanley no rio. Despachou um outro oficial numa bizarra viagem de ida e volta, de três 108

meses de duração e quase 5 mil quilômetros de extensão, até a estação de telégrafo mais próxima, para enviar um telegrama absurdo à Inglaterra. Em seguida resolveu que estava sendo envenenado e começou a ver trai­ dores em todos os cantos. Ordenou que um deles recebesse trezentas chi­ batadas (que foram fatais). Cutucava os africanos com uma bengala com ponta de aço, ordenou que várias dúzias de pessoas fossem agrilhoadas e mordeu uma aldeã. Um africano matou Barttelot a tiros, antes que ele aprontasse mais alguma coisa. Por seu lado, encabeçando a vanguarda, Stanley avançou a duras pe­ nas pela floresta tropical, condenou um desertor à forca e sentenciou vá­ rios outros a receberem chicotadas, algumas das quais administradas por ele mesmo. Falhas e confusões no sistema de abastecimento fizeram com que durante boa parte do tempo os carregadores e soldados ficassem à míngua. Para os que tinham o azar de estar em seu caminho, a expedição deve ter parecido um exército invasor, já que muitas vezes Stanley manti­ nha mulheres e crianças como reféns, até que algum chefe tribal lhes for­ necesse comida. Um dos oficiais da expedição escreveu em seu diário: “Acabamos hoje com nossa última banana-da-terra [...] os nativos não co­ merciam, nem ao menos se oferecem para fazê-lo. Como último recurso, temos de pegar mais algumas mulheres”. Quando pareceu que iam ser ata­ cados, segundo um outro oficial, “Stanley deu ordens para queimar todas as aldeias em volta”. Um terceiro descreveu o morticínio com a maior tranqüilidade, como se fosse uma caçada: Foi m uito interessante estar ali escondido no m ato, observando em silêncio OS nativos ocupados cofti seus afazeres diários. Algumas mulheres [...] faziam farinha de banana batendo bananas secas. Vimos hom ens construindo caba­ nas ou ocupados com outros trabalhos, m eninos e m eninas correndo, cantan­ do. [...] Eu rom pi o silêncio atirando bem no m eio do peito de um sujeito. Ele caiu feito um a pedra. [...] Im ediatam ente, um a saraivada de balas cho­ veu sobre a aldeia.

Um dos integrantes da expedição empacotou a cabeça decepada de um africano num caixote de sal e enviou-a § Londres, para ser empalhada e montada por seu taxidermista de Piccadilly. Dos 389 homens da vanguarda de Stanley, mais da metade morreu abrindo caminho a machete através da floresta de Ituri. Houve dias em que i coluna conseguiu percorrer menos de quatrocentos metros: Quando fica­ ram sem comida, assaram formigas. Tiveram de transpor raízes gigantescas de árvores e acampar em terreno pantanoso, em meio a tempestades tropi­ cais, uma delas de dezessete horas ininterruptas. Houve quem desertasse, alguns se perderam na floresta, outros morreram afogados ou sucumbiram 109

de tétano, disenteria e úlceras gangrenadas. Vários morreram das flechas e estacas envenenadas dos moradores da floresta, aterrorizados com aque­ le bando de estranhos armados e famintos que invadiram seu território. Quando finalmente conseguiram chegar até Emin, Stanley e os sobre­ viventes estavam exaustos, quase mortos de fome. Como grande parte dos suprimentos estivesse a centenas de quilômetros de distância, em mãos da retaguarda e de seu comandante ensandecido, o explorador só tinha a ofe­ recer ao pequeno paxá um pouco de munição, cartas de fãs, várias garra­ fas de champanhe e o novo uniforme — que acabou sendo grande demais para o homenzinho. Na verdade Stanley foi obrigado a pedir suprimentos a Emin. O paxá os recebeu, segundo escreveu Stanley, num “temo impe­ cável de algodão branquíssimo, bem passado e de corte perfeito”, com uma expressão no rosto “sem o menor vestígio [...] de saúde precária ou ansiedade; na verdade indicativa de boas condições físicas e paz de espí­ rito”. Emin, ainda recolhendo seus espécimes para o Museu Britânico, re­ cusou .educadamente a proposta do rei Leopoldo de unir sua província ao novo Estado do Congo. Porém o mais constrangedor de tudo, para a esfar­ rapada vanguarda da Expedição de Auxílio a Emin Pasha, foi verificar que a ameaça rebelde cessara, desde as cartas de Emin, de vários anos antes, e que ele não estava precisando de auxílio. Stanley tinha um grande receio de voltar sem Emin. O paxá escreveu em seu diário: “Para ele, tudo depende de conseguir ou não me levar jun­ to, porque só então [...] sua expedição será considerada um sucesso total. [...] Ele prefere morrer a partir sem mim!”. Stanley por fim conseguiu convencer o relutante paxá a voltar para a Europa com ele, em parte por­ que a chegada das forças da Expedição de Auxílio, sempre prontas a dis­ parar e matar, tinham agitado de novo os rebeldes mahdistas. E foi assim que Stanley e Emin, mais seus seguidores, atravessaram a África durante vários meses, até chegarem a um pequeno posto alemão da costa oriental, na Tanzânia de hoje. Uma bateria alemã disparou uma salva de artilharia em homenagem ao grupo e os oficiais ofereceram um banquete no rancho militar para os dois. A banda naval executou algumas músicas; Stanley, Emin e um ma­ jor alemão fizeram discursos. “Os vinhos eram bons, bem escolhidos e ge­ lados”, escreve Stanley. Então o míope Emin, que na hora do banquete an­ dava de um lado a outro da mesa, tomando champanhe e conversando com os convidados, resolveu sair até uma varanda, no segundo andar do pré­ dio. Só que não havia varanda e sim uma janela; Emin esborrachou-se na rua e lá ficou, inconsciente. Teve de permanecer num hospital alemão por dois meses e Stanley não pôde levá-lo triunfante de volta à Europa. Para 110

completar o constrangimento, depois de recuperado, Emin Pasha não foi trabalhar nem para os britânicos que o haviam resgatado, nem para o rei Leopoldo, e sim para os alemães. Durante alguns meses, após o regresso de Stanley, em 1890, houve muita polêmica, na Inglaterra, em tomo da perda de mais da metade dos expedicionários e das atrocidades cometidas sob seu comando. Como di­ zia um versinho satírico, publicado num semanário inglês: E quando a soalh eira abrasadora F icava p o r dem ais irritante, Um m orticín io à m etralhadora M axim era o m ais relaxante!

A Expedição de Auxílio a Emin Pasha fora deveras cruel. Mas nada que pudesse se comparar ao banho de sangue que tinha acabado de come­ çar na África central.

7 O PRIMEIRO HEREGE

O testamento de Leopoldo tratava o Congo tão-somente como mais uma grande propriedade imobiliária sua, totalmente despovoada e à dispo­ sição dos caprichos do dono. Nisso o rei não diferiu dos outros europeus da época — exploradores, jornalistas ou colonialistas —, que falavam da África como se no continente não houvesse africanos; como se ele fosse uma imensidão vazia, à espera das cidades e ferrovias que seriam erguidas pelo condão mágico da indústria européia. Para ver a África como um continente de sociedades coerentes, cada qual com sua própria cultura e história, seria preciso um salto de empatia, salto esse que os primeiros visitantes europeus e norte-americanos não es­ tavam preparados para dar. Fazê-lo seria ver o regime de Leopoldo não como um progresso, não como um processo civilizador, e sim como um roubo de terra e liberdade. Pela primeira vez, no entanto, chega um visi-f tante ao Congo que vê a colônia com tais olhos. Vamos alcançá-lo numa estação às margens do rio Congo, num abafado dia em meados de julho de 1890, quando põe pela primeira vez seus sentimentos no papel. O rei Leopoldo tem agora inúmeras estações ao longo da rede fluvial, todas elas um misto de base militar e entreposto para recebimento do mar­ fim. Em geral há algumas casas com cobertura de sapé e varandas som­ breadas, protegidas por palmeiras, que servem de acomodação para Os ofi­ ciais brancos. No mastro, tremula a bandeira azul coin a estrela dourada. A comida vem de algumas bananeiras, de uma horta onde crescem legu­ mes e mandioca e também dos galinheiros, chiqueiros ou cercados de ca­ bra. Um fortim de madeira encàrapitado sobre uma pequena colina artifi­ cial, com seteiras nas paredes para o cano dos fuzis|iòm ecêã defesa; em geral há também uma paliçada em volta. As presas de elefante estão num barracão, ou ao ar livre, guardadas pór sentinelas armados, à espera de transporte para a costa. Há algumas canoas africanas paradas nas margens, ao lado de pilhas de lenha cortada em pedaços curtos, para as caldeiras dos 112

barcos. Uma das estações mais importantes fica mais de 1500 quilômetros acima de Léopoldville, nas Stanley Falis [cataratas de Stanley], limite su­ perior do principal trecho navegável do Congo. Ali, naquele dia de julho, um homem com seus quarenta anos de ida­ de vê-se tomado de indignação e fúria. Com um gesto gracioso e enérgi­ co, começa a escrever. Talvez esteja sentado ao ar livre, as costas apoiadas num tronco de palmeira; talvez tenha usado a escrivaninha do funcionário encarregado da administração. Como se pode ver pelo punhado de retra­ tos formais e rígidos que tirou, usa o cabelo bem curto, os bigodes afina­ dos em pontas compridas, gravata-borboleta e colarinho alto engomado. Talvez o dia esteja quente demais para colarinho e gravata; talvez não: al­ gumas pessoas vestem-se formalmente o tempo todo no Congo. O documento que sai da pena desse homem, durante os próximos dias, é um marco na literatura dos direitos humanos e do jornalismo inves­ tigativo. O título é “Uma carta aberta a Sua Serena Majestade, Leopoldo ii, Rei dos Belgas e soberano do Estado Independente do Congo, escrita pelo coronel Geo. W. Williams, dos Estados Unidos da América?!- ,

George Washington Williams era de fato americano. Mas não era co­ ronel e essa declaração lhe causaria problemas mais tarde. Além disso era negro. Em grande parte por isso, foi quase que completamente ignorado. Entre os muitos visitantes sequiosos de ver as novidades do Congo, Wil­ liams foi o primeiro grande dissidente. E, como tantos outros viajantes que se vêem de repente em meio a um inferno moral, ele começara buscando alguma coisa mais parecida com o paraíso.

Williams chegou ao Congo por uma rota tortuosa que o levaria, por assim dizer, a atravessar várias vidas diferentes. Nascido na Pensilvânia, em 1849, tinha escolaridade mínima e„ em 1864, alistou-se — semi-anal­ fabeto, menor de idade e com nome falso — no 41a Batalhão de Cor do Exército da União. Lutou várias batalhas durante os ataques a Richmond e Petersburg nos últimos meses da guerra e foi ferido em combate. Depois, assim como tantos outros veteranos da Guerra Civil em bus­ ca de trabalho, alistou-se no exército da República do México, que lutava para derrubar o ambicioso mas infeliz cunhado do rei Leopoldo n, o im­ perador Maximiliano. Ao voltar para os Estados Unidos, sem nenhuma outra capacitação a não ser para a guerra, Williams realistou-se no exérci­ to norte-americano e passou boa parte do ano com um regimento de cava­ 113

laria, lutando contra os índios rebelados. Em algum momento, durante o segundo semestre de 1867, o caminho de Williams pode ter cruzado com o de um jovem repórter chamado Henry Morton Stanley, num dos vários postos militares do Kansas em que ambos estiveram. Depois de deixar o exército, no ano seguinte, Williams fez um curso rápido na universidade de Howard; mais tarde, ao mencioná-lo, o nome da escola muitas vezes saía estranhamente parecido com Harvard. Ele tam­ bém fazia menção a um doutorado que jamais fizera. Mas foi um aluno brilhante e, entrando para o Instituto Teológico Newton, nos arredores de Boston, conseguiu fazer um curso de teologia de três anos em apenas dois. Nas cartas que escreveu logo depois de sair do exército, não há uma pala­ vra que esteja grafada corretamente e as sentenças são dolorosamente con­ fusas. Mas alguns anos depois, já era capaz de se expressar de modo fluen­ te nas cadências empoladas do século xix. Num discurso pronunciado quando se formou em Newton, em 1874, podemos discernir o tema que o levaria ao Congo dezesseis anos depois: D urante quase três séculos, a África foi roubada de seus filhos [...] O s ne­ gros deste país já podem dizer a seus irmãos saxões, como José disse aos seus, que o venderam sem piedade, “[...] nós, depois de aprenderm os vos|'| íS | ls- arteSKe ciências, talvez possam os retom ar ao Egito e libertar nossos ou­ tros irmãos, que ainda vivem em cativeiro”. E sse dia chegará!

Williams já tinha começado a escrever e falar sobre a servidão que via ao seu redor — sobre a situação dos negros norte-americanos que vi­ viam, naquele momento, os revezes da Guerra Civil, os linchamentos e violências da Ku Klux Klan é a volta da supremacia branca em todo o Sul. Como veterano, sentia-se especialmente indignado de que tão poucas das esperanças nascidas durante a guerra que acabou com a escravidão tives­ sem se concretizado. No ano em que se formou no seminário, Williams casou-se e tomouse pastor da Igreja Batista de Boston, a principal congregação negra da ci­ dade. Mas não por muito tempo. A inquietude era parte integrante de sua vida e por mais bem-sucedido que fosse numa ocupação, nunca ficava mui­ to tempo nela. Um ano apenas depois de subir ao púlpito, mudou-se para a cidade de Washington e fundou um jornal negro, o Commoner. O primeiro núme­ ro exibiu com orgulho cartas de congratulações dos famosos abolicionis­ tas Frederick Douglass e William Lloyd Garrison, mas em pouco tempo o jornal estava falido. Williams voltou então à pregação, dessa vez em Cincinnati. Tomou-se colunista de um jornal da cidade e, de novo, começou um jornal próprio. Em seguida, numa guinada repentina, renunciou ao 114

púlpito, estudou direito e começou a praticar advocacia. Em 1879, aos trinta anos, foi o primeiro negro a ser eleito para o legislativo estadual, por Ohio, e deixou todo mundo de cabelo em pé ao tentar repelir uma lei que proibia o casamento inter-racial. Abandonou a legislatura após um ano apenas. Em sua carreira seguinte, Williams deixou uma marca bem maior e, quando mudou de rumo outra vez, já conseguira legar algo de substancial à posteridade, um livro volumoso chamado História da raça negra na América, de 1619 a 1880. Negros como escravos, soldados e cidadãos, juntamente com uma consideração preliminar da unidade da família hu­ mana, um esboço histórico da África e um relato dos governos negros de Serra Leoa e Libéria. Publicado em dois volume lie m 1882 e 1883, o li­ vro conduzia os leitores por um período que abrangia desde os reinos afri­ canos até a Guerra Civil e a Reconstrução. Ao ampliar suas fontes, Williams tomou-se um pioneiro entre os his­ toriadores norte-americanos. Pressentiu aquilo que a maioria dos acadêmi­ cos só começaria a reconhecer quase cem anos depois: que ao escrever a história de um povo sem poder, as fontes convencionais e publicadas não bastam. Viajando por todo o país, Williams de fato pesquisou em inúme­ ras bibliotecas, mas fez muito mais. Escreveu uma carta para um jornal ne­ gro nacional, pedindo aos leitores que lhe enviassem “resumos de qual­ quer organização religiosa negra” e documentos semelhantes. Escreveu ao general William Tecumseh Sherman, pedindo que opinasse sobre seus sol­ dados negros. Entrevistou companheiros veteranos da Guerra Civil. E quando seu livro de 1092 páginas foi publicado, recebeu resenhas favorá­ veis em todo o país. Várias décadas antes, escreveu o New York Times, de uma forma meio condescendente mas ainda assim bem impressionado* “teria sido altamente duvidoso que alguém dessa raça pudesse ser o autor de uma obra que exige tamanha habilidade”. W. E. B. Du Bois mais tarde diria que Williams foi “o maior historiador da raça’| H Williams começou então a dar palestras a grupos de veteranos, fra­ ternidades e congregações religiosas, de brancos e negros. O homem pa­ recia ter um discurso especial para cada ocasião, das comemorações do Quatro de Julho a um encontro da Sociedade Filomática Literária de Wash­ ington, e em pouco tempo já estava trabalhando com o grande agente de palestras da época, James B. Pond, que tinha entre seus clientes o próprio Stanley. Williams conseguiu conhecer todo mundo, do poeta Henry Wadsworth Longfellow aos presidentes Grover Cleveland e Rutherford B. Hayes; e muitos dos que tiveram contato com ele saíram com uma impressão po­ sitiva daquele jovem. Bem menos impressionados! estavam muitos negros 115

norte-americanos, que se ressentiam da rapidez com que Williams lhes dava as costas para comungar com os famosos e poderosos. Mas, em que pesem os sucessos, o dinheiro não parava nas mãos de Williams e ele tinha atrás de si uma fila de credores irados. Porém conti­ nuou empregando sua energia incansável numa variedade de projetos. Es­ creveu um segundo livro, sobre as experiências dos soldados negros na Guerra Civil. Foi ao Novo México, à procura de terras para um possível assentamento de agricultores negros. Redigiu uma enxurrada de artigos para a imprensa. Advogou para a companhia Cape Cod Canal. Escreveu uma peça sobre o tráfico de escravos. Dedicou-se com afinco a trabalhar para organizações de veteranos do exército da União, recebendo o título honorário de coronel de uma das mais importantes, a do Grande Exército da República. Depôs no Congresso em favor de um monumento aos vete­ ranos negros da guerra. Foi nomeado ministro para o Haiti pelo presidente Chester A. Arthur, para quem fizera campanha. Mas o mandato de Arthur terminou e inimigos políticos fizeram circular rumores sobre as dívidas de Williams, de modo que a nomeação nunca saiu do papel. Num dos encontros que Williams teve com Arthur, na Casa Branca, havia uma outra pessoa visitando o presidente naquele mesmo momento: Henry Shelton Sanford, na época fazendo lobby para que Washington re­ conhecesse o Congo de Leopoldo. O presidente apresentou-os um ao ou­ tro. Naquele Estado embrionário que Sanford lhe descreveu, Williams viu uma oportunidade de prosseguir com o sonho mencionado pela primeira vez em seu discurso de formatura no seminário. Escreveu a um dos assis­ tentes de Leopoldo, propondo recrutar negros norte-americanos para tra­ balhar no Congo. Com certeza, a Áfric^ fomeeeria as chançes de progresso que nos Estados Unidos eram negadas aos negros^ Ele também entregou uma declaração ao Comitê de Relações Estrangeiras do Senado, pedindo o reconhecimento da Associação Internacional do Congo e acrescentou o Congo na lista de temas para suas palestras. Em 1889, Williams foi à Europa para ese®^er uma série de artigçg que seriam publicados em jornais associados. Também tentou mas não conseguiu ser nomeado delegado pelos Estados Unidos na (Conferência Antiescravocrata de Bruxelas; mesmo assim, quando visitou Londres fezse passar por delegado norte-americano. Bruxelas, naquele momento, era uma cidade cheia de europeus que se digladiavam para parecer,:cada qual, um crítico mais encarniçado e veemente da escravidão do que seu vizinho; nesse clima, o jovem norte-americano, filho de escravos libertos, causou boa impressão. Entretanto, apesar da lista razoável de conquistas, não con­ seguia resistir aos retoques embelezadores: 116

O coronel Williams [relatou o jornal U In dépen dan ce B elge ], que obteve seu posto durante a Guerra Civil [...] escreveu pelo menos uns cinco ou seis tra­ balhos sobre os negros. [...] Foi a primeira pessoa a propor p reconhecimen­ to oficial do Estado do Congo pelos Estados Unidos e teve permissão, para esse fim, de fazer um importante discurso ao Comitê de Relações Estrangei­ ras do Senado, em Washington, que foi coroado de sucesso absoluto.

O primeiro artigo que Williams mandou para os Estados Unidos foi uma entrevista com Leopoldo feita nâ Bélgica, a quem ele descreveu como um “homem de conversa interessante e agradável, cabelos e barba cuidadosamente aparados e já bem salpicados de grisalho. Suas feições são fortes, bem marcadas e alertas; os olhos, brilhantes e rápidos, faíscam com interesse inteligente por trás dos óculos”. Quando Williams perguntou ao rei o que esperava em troca de todo o dinheiro gasto para desenvolver o Congo, Leopoldo respondeu: “O que eu faço ali é feito como um dever cristão aos pobres africanos; e não te­ nho a intenção de ver devolvido um franco que seja de todo o dinheiro que gastei”. Nesse primeiro encontro, Williams, córno tantos outros, ficou fas­ cinado pelo homem a quem chamou de “um dos mais nobres soberanos do mundo; um imperador cuja ambição mais alta e servir a capsá da civiliza­ ção cristã e promover os melhores interesses de seus súditos, governando com sabedoria, misericórdia e justiça’” Obviamente, Leopoldo percebeu que o melhor jeito de encantar esse visitante era oferecer um ouvido simpático a seus projetos, já que nesse mesmo artigo Williams relata que o rèi “provou ser um bom ouvinte”. E o que ele ouviu, pelo visto, foi o tão sonhado plano de Williams de pôr os ne­ gros americanos trabalhando na Áfricà. Williams fechou um acordo com uma companhia belga para contratar quarenta artesãos especializados e levá-los para trabalhar no Congo; neâía mesma época, resolveu escrever um livro sobre o território. Quando regressou aos Estados Unidos, todavia, e foi recrutar voluntários numa faculdade negra da Virgínia, deparou-se com uma audiência cética e cheia de perguntas sobre a vida na África, per­ guntas que ele não sabia responder. Foi aí que adiou os plafiòs de recruta­ mento e decidiu ir primeiro ao Congo e coletar material para seu livro. Isso implicava levantar os fundos necessários parà as passagens de navio, comida, suprimentos e carregadores para a extensa caminhada ao longo das corredeiras. Seu principal alvo foi o magnata das ferrovias Collis P. Huntington, ele próprio um pequeno investidor na planejada ferrovia do Congo. Williams o procurou e, depois da visita, mandou inúmeras car­ tas elogiosas que acabaram levando a um patrocínio modesto de suas via­ gens pela África. 117

Em dezembro de 1889, Williams encontrou-se com o presidente Benjamin Harrison, na Casa Branca. Não se sabe se Harrison teria feito mais do que lhe desejar uma boa viagem pela África, mas, como em tantas ou­ tras ocasiões, mais tarde Williams usou esse encontro para sugerir que se achava encarregado de uma importante missão confidencial. Enquanto Williams se preparava para a viagem, sempre a insinuar o bom relacionamento que tinha com o presidente e com Huntington, o rei belga e seus assessores começaram a desconfiar que talvez ele estivesse secretamen­ te a serviço de empresários norte-americanos desejosos de entrar no territó­ rio. Depois de passar por Bruxelas, a caminho do Congo, Williams diria: todo o possível foi feito para m e dissuadir da viagem. Um funcionário da corte foi enviado com o propósito de m e fazer desistir de visitar o Congo. Falou horas sobre o caráter assassino do clima, durante a estação das chu­ vas, sobre os perigos e dificuldades de se viajar em caravanas e das altas des­ pesas da empreitada. [...] Depois disso, o rei m andou m e cham ar [e] disse [...] que era difícil viajar pelo país, e m ais difícil ainda de obter boa comida para o hom em branco; que ele esperava que eu adiasse m inha visita ao Con­ go por pelo menos cinco anos; e que todas as informações necessárias me seriam fornecidas em B ruxelas. Em resposta, eu disse a Sua M ajestade que iria ao Congo im ediatam ente e que partiria nos próxim os dias.

Entre janeiro de 1890 e o início do ano seguinte, Williams viajou por todo o continente africano, periodicamente enviando mensagens urgentes a Huntington e pedindo mais dinheiro. Conseguiu avistar-se com todo mundo, desde o vice-presidente da República bôer do Transvaal e o sultão de Zanzibar até o quediva do Egito. Foi eleito membro honorário do Clu­ be Inglês de Zanzibar e fez uma palestra na Sociedade Geográfica do Cai­ ro. Mas sua visita mais importante foi ao Congo, onde passou seis meses contornando a pé as corredeiras e subindo de vapor pelo grande rio, com várias paradas, até as Stanley Falis.

Viajar pelo rio de vapor, nessa época, significava avançar quiçá cinqüenta quilômetros por dia, às vezes menos, quando se ia contra a corren­ te. Toda tarde, o barco parava, atracando num posto missionário, num en­ treposto ou, com maior ffeqüência, num ponto qualquer da margem, para passar a noite. O capitão distribuía os sentinelas e mandava um grupo de lenhadores negros cortar algumas árvores, para alimentar a caldeira no dia seguinte. Um viajante descreveu assim essa cena típica; A o entardecer, acendiam -se imensas fogueiras e, à luz dessas cham as, os ho­ m ens cortavam os troncos em pedaços m enores, de uns noventa centímetros

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cada. [... ] Era um panoram a acom panhado pelo [... ] bater constante dos m a­ chados, pelo baque das árvores que caíam, em seguida pela cena ao pé do fogo, com o rilhar do serrote [...] depois as achas eram [ ...] passadas de mão em mão, até serem embarcadas todas no vapor.

Passageiros europeus ou norte-americanos dormiam em cabinas a bordo, em geral no convés superior; os lenhadores dormiam em terra, no chão. De madrugada, um apito levava a tripulação de volta ao barco, às ca­ noas ou à barcaça que ia a reboque e o vapor retomava seu lento avanço rio acima. Subindo o rio nesse passo demorado, Williams teve amplas chances de absorver a África com que tanto sonhara. Observador arguto e entrevis­ tador experiente, ele tinha a capacidade — rara tanto entre jornalistas quanto historiadores — de não se deixar influenciar pelo que outros já ha­ viam escrito. E nas aldeias, estações e postos missionários espalhados pelas margens do rio, descobriu não a colônia de governo benévolo que Stanley e outros haviam descrito, mas sim o que chamou de “a Sibéria do conti­ nente africano”. Suas impressões ficaram registradas para sempre no ex­ traordinário documento que escreveu nas Stanley Falis, quando não foi mais capaz de conter sua ira. No começo de sua “Carta aberta” ao rei, Williams se mostra respei­ toso: “Bom e Grande Amigo, tenho a honra de apresentar para a conside­ ração de vossa majestade algumas reflexões referentes ao Estado Indepen­ dente do Congo, baseadas num estudo cuidadoso”. Já no segundo parágrafo, contudo, ele remete Leopoldo a uma autoridade mais alta, o “Rei dos Reis”. E Deus, é mais do que óbvio, não está gostando do que vem acon­ tecendo no Congo. A “Carta aberta” é obra de um homem que parece duplamente horro­ rizado: primeiro pelo que viu e segundo pelo “desencanto, decepção e de­ sânimo totais que senti”, depois de “todas as coisas elogiosas que falei e escrevi sobre o país dó Congo, Estado e soberano”. Sem perda de tempo, Williams assume então a voz de uma de suas muitas profissões, a do ad­ vogado: “Cada uma das acusações que apresento contra o governo pessoal de vossa majestade no Congo foi cuidadosamente investigada; uma lista de testemunhas competentes e verídicas, de documentos, cartas, registros e dados oficiais foi fielmente preparada.” Os documentos seriam guardados “até o momento em que uma Comissão Internacional possa ser criada, com competência para enviar pessoas e papéis, acatar juramentos e ates­ tar a veracidade ou falsidade dessas acusações”. Não é difícil imaginar a fúria de Leopoldo ao ver um estrangeiro, alguém que ele tentara dissuadir 119

de ir ao Congo, e um negro, ainda por cima, dirigir-se a ele com essa voz acusatória. Se tivesse sido impressa, da mesma forma que este livro, a “Carta aberta” teria umas doze páginas no máximo. No entanto, nessas poucas páginas Williams antecipou quase todas as principais acusações que seriam feitas mais de uma década depois pelo movimento internacional de protes­ to contra as atrocidades no Congo. Ainda que por volta de 1890 já tives­ sem surgido na imprensa européia algumas críticas esparsas ao Estado de Leopoldo, quase todas concentravam-se na discriminação ao comércio ex­ terior. A preocupação de Williams era com os direitos humanos e a sua foi a primeira denúncia por escrito ao regime colonialista do rei belga. Eis aqui as principais acusações: • Para conseguir que os chefes do Congo transferissem suas terras para Leopoldo, Stanley e seus auxiliares brancos usaram uma série de truques, tais como levar os africanos a pensar que os brancos ti­ nham poderes sobrenaturais. Por exemplo: “Uma série de baterias elétricas foram adquiridas em Londres e colocadas no braço, sob o paletó, ligadas por uma fita que passava pela palma da mão do irmão branco; quando dava um aperto de mão cordial no irmão negro, este ficava muito surpreso de ver que o irmão branco era tão forte que quase o derrubava. [.. .] Quando o nativo perguntou o motivo de tan­ ta disparidade entre e le e seu irmão branco, disseram-lhe que o ho­ mem branco podia arrancar árvores e executar as mais prodigiosas façanhas’(j|Outro truque era usar uma lente de aumento para acender um charuto, depois do que “o homem branco explicavaseu relacionamen­ to íntimo com o sol e dizia que se por acaso ele lhe pedisse para quei­ mar a aldeia do irmão negro, isso seria feito”. Outra artimanha era car­ regar abertamente o fuzil, mas, às escondidas, ocultar a bala na man­ ga do paletó. Em seguida o branco entregava o fuzil a um chefe tribal, afastava-se um pouco e pedia-lhe para mirar e atirar; depois, ileso, o homem brancq abaixava e pegava a bala, caída no sapato. “Com estra­ tagemas assim 1...] e algumas garrafas de gim, aldeias inteiras foram entregues&fcÉa majestade.” Terras compradas dessa forma, escreveu Williams; eram “territórios aos quais vossa majestade tem tanto direi­ to, legal quanto eu de ser comandante-em-chefe do exército belga”. • Longe de ser um grande herói, Stanley fora um tirano. “A simples menção de seu nome provoca arrepios; as pessoas se lembram das promessas .quebradas, dos inúmeros sacrilégios, dos acessos de raiva, das medidas severas e impiedosas, dos golpes pesados pelos quais fo­ 120

ram esbulhados de suas terras.” (Note-se a pressuposição de Williams, inimaginável entre seus contemporâneos brancos, de que os africanos tinham direito às terras africanas.) Das centenas de norte-americanos e europeus que viajaram pelo Congo nos primeiros anos do novo Es­ tado, Williams foi o único, até onde se sabe, que interrogou os africa­ nos a respeito de suas experiências pessoais com Stanley. • O surgimento de bases militares ao longo do rio provocou uma onda de mortes e destruição, porque os encarregados africanos tinham de ser auto-suficientes- “Esses postos piratas, de bucaneiros, obrigam os nativos a lhes fornecer peixes, cabras, aves e verduras sob a mira dos mosquetes; e sempre que os nativos se recusam [...] os oficiais bran­ cos aparecem com uma força expedicionária e queimam tudo.* ' • “O governo de vossa majestade é excessivamente cruel com os pri­ sioneiros, condenando-os, mesmo os que cometeram delitos ínfimos, às correntes. [...] Muitas vezes essas correntes de boi roem o pesco­ ço dos presos, produzindo feridas que ficam infestadas de moscas, o que agrava ainda mais a chaga supurada.” • As declarações feitas por Leopoldo, de que o novo Estado estaria fornecendo um bom governo ê serviços públicos à população, eram uma fraude. Não havia hospitais nem escolas, exceto uns poucos bar­ racões “impróprios até para um cavalo”. Praticamente nenhum funcio­ nário da colônia conhecia qualquer das línguas africanas. “Os tribunais do governo de vossa majestade são monstruosos, injustos, parciais e delinqüentes.” (Aqui, como em quase todos os outros itens, Williams fornece um exemplo vívido: um criado branco do govemador-geral não foi punido por ter roubado vinho, ao passo que os criados negros foram falsamente acusados e espancados.) • Mercadores e funcionários do governo estavam raptando mulheres africanas e usando-as como concubinas. • Oficiais brancos estavam matando aldeões, às vezes para pegar suas mulheres, às vezes para forçar os sobreviventes a trabalhar em regi­ me escravo, às vezes por esporte. “Dois oficiais do exército belga vi­ ram, do convés do barco, um nativo numa canoa, a uma certa distân­ cia. [...] Os oficiais fizeram uma aposta, no valor de cinco libras, de que poderiam átingi-lo com seus fuzis. Três tiros foram disparados e o nativo caiu morto, com uma bala na cabeça.” • Em vez de ser o nobre cruzado em luta incessante contra a escravi­ dão, como Leopoldo dizia ser, “o governo de vossa majestade está envolvido com armas e bagagem no tráfico de escravos. Compramse, vendem-se e roubam-se escravos. O governo de vossa majestade 121

dá três libras por cabeça para escravos aptos ao serviço militar. [...] A força de trabalho nas estações do governo de vossa majestade na parte alta do rio é composta por escravos de todas as idades e de am­ bos os sexos.” Mas Williams ainda não tinha terminado. Três meses após escrever a “Carta aberta”, produziu “Um relatório sobre o Estado e país do Congo ao presidente da República dos Estados Unidos da América”. O presidente Harrison provavelmente ficou tão surpreso quanto Leopoldo, ao ter notí­ cias suas. Ao escrever para o presidente norte-americano, Williams repetiu as acusações, acrescentando que os Estados Unidos tinham uma responsa­ bilidade especial perante o Congo, porque foram eles que “introduziram esse governo africano à irmandade de Estados”. Assim como na “Carta aberta”, sustentou as acusações com exemplos pessoais. “Nas Stanley Falis, houve quem me oferecesse escravos em plena luz do dia; e, à noite, descobri canoas repletas de escravos, amarrados todos muito juntos.” Wil­ liams pedia que esse “governo opressor e cruel” fosse substituído por um novo regime que seria “local, e, não europeu;pintemacional, e não nacio­ nal; justo, e não cruel”. Se Williams estava defendendo o autogoverno ou uma administração internacional do território, não se sabe, mas seriam precisos ainda muitos anos até; que alguém mais, europeu ou norte-americano, fizesse o mesmo. ||u m a p^rta que Williams escreveu ao secretário de Estado norte-americanoj,, ele usou uma frase que parece tirada dos julgamentos de Nuremberg, realizados mais de meio século depois. O Estado do Congo do rei Leopoldo, escreyeu ele. era culpado de “crimes contra a humanidade”.

A “Carta aberta” foi publicada em forma de panfleto e, até o final de 1890, enquanto o autor ainda completava seu circuito da África, foi distri­ buída amplamente tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Não se co­ nhece ao certo o nome de quem providenciou essa distribuição, mas prova­ velmente foi uma companhia holandesa, a Nieuwe Afrikaansche Handels Vennootschap, que tinha entrepostos no Congo e era dona de um barco a va­ por, o Holland, no qual Williams viajara. A companhia estava insatisfeita com Leopoldo, que vinha fechando agressivamente a nova colônia ao co­ mércio externo e guardando a lucrativa carga de marfim para si próprio e seus parceiros comerciais. Ainda assim, Williams não permitiu que a empre­ sa ditasse o conteúdo da mensagem: a “Carta aberta” menciona a questão do livre comércio apenas de passagem e bem no fim da lista de acusações. 122

Depois que a “Carta aberta” foi publicada, o New York Herald, que tinha enviado Stanley à África, dedicou-lhe uma coluna inteira, sob a man­ chete: a m e r i c a n o DENUNCIA GOVERNO DE ESTADO AFRICANO COMO BÁR­ BARO — HÁ q u e s e i n v e s t i g a r . O artigo citava Stanley, que chamava a “Carta aberta” de “uma tentativa deliberada de chantagem”, O mais sinis­ tro, para Williams, é que Collis P. Huntington, seu benfeitor, o considerou muito injusto para com o rei, que era uma criatura “preocupada com o bemestar dos nativos do país”. Leopoldo, furioso, disse ao embaixador britânico em Bruxelas para não acreditar em Williams. “O coronel Williams pode ser tudo que o rei diz que ele é”, relatou depois o diplomata a seu ministério, “mas suspeito que haja um bocado de verdades bem desagradáveis em seu panfleto.” Em suas memórias, um dos assessores de Leopoldo lembra-se de uma reunião ur­ gente, convocada para discutir o que fazer sobre “le pamphlet Williams”, sobre o qual a imprensa parisiense estava fazendo “un vrai scandale”. Mais que depressa, o rei e seus assessores orquestraram um contraataque. O Journal de Bruxelles perguntava: “Em primeiro lugar, quem é o senhor Williams? Este homem não é um coronel dos Estados Unidos”. Em artigos subseqüentes, o jornal se referia a ele como “o suposto ‘coronel’”, § o pseudocoronel”, “um preto desequilibrado” e “o senhor Williams, que não é coronel”. (A imprensa belga, é claro, jamais questionara o posto do “general” Henry Shelton Sanford.) Le Mouvement Géographique, um jor­ nal ligado ílaventura de Leopoldo no Congo, também atacou Williams, sa­ lientando que, embora os nativos do Congo nem sempre se beneficiassem de justiça plena, os índios norte-americanos também não se beneficiavam. Outros jornais belgas, no entanto, levaram as acusações de Williams Í sério. “Com a especulação comercial dominante no Congo, um regime pessoal, absoluto e sem controle, cujo principal autocrata nunca pôs os pés no país que está governando, fatalmente há de produzir boa parte dos gra­ ves.acontecimentos apontados pelo viajante americano”, escreveu o libe­ ral La Reforme. “Nós não estamos inclinados a aceitar como verdade ab­ soluta tudo que a administração congolesa quer nos oferecer em defesa própria”, declarou Le Courrier de Bruxelles. Jornais de outros países tam­ bém seguiram a história de perto, reproduzindo as alegações de Williams e, às vezes, imprimindo longos trechos. Por volta de junho de 1891, o escândalo chegou ao parlamento bel­ ga, onde vários deputados e o primeiro-ministro falaram em defesa do rei. Algumas semanas mais tarde, o État Indépendant du Congo divulgou um relatório de 45 páginas, assinado pelos seus mais altos administradores. O documento, segundo informe enviado pela embaixada britânica em Bru123

xelas para Londres, tinha por objetivo “refutar as acusações levantadas pelo coronel Williams e outros”. Nesse meio tempo, Williams completara seu circuito da África e encòntrava-se no Egito, onde caiu gravemente enfermo, acometido por tu­ berculose. Como sempre, estava sem dinheiro. Com seu ar habitual de quem se achava em missão importantíssima, conseguiu convencer o em­ baixador britânico no Cairo, Sir Evelyn Baring, a mandar um médico para tomar conta dele. Reduzido a míseras catorze übras, enviou apelos deses­ perados para que Huntington lhe mandasse dinheiro. Quando recuperou parte das forças, arrumou uma passagem gratuita para a Inglaterra, num vapor britânico. A bordo, conheceu uma jovem inglesa que fora governan­ te de uma família britânica na índia e, até chegarem ao porto de destino, os dois já estavam noivos. Williams instalou-se em Londres, apesar dos problemas relacionados com dívidas deixadas em viagem anterior. Mas a tuberculose piorou. A noiva e a futura sogra levaram-no para Blackpool, onde esperavam que o ar marinho o curasse e ele pudesse terminar seu li­ vro sobre o Congo de Leopoldo. Mas as esperanças foram baldadas. No começo da manhã do dia 2 de agosto de 1891, cercado pela noiva, sua mãe, um pastor e um médico, Geor­ ge Washington Williams morreu. Estava com 41 anos de idade. Na Bélgi­ ca, Le Mouvement Géographique noticiou a morte com satisfação, com­ parandolo com aqueles que tinham queimado o templo de Delfos. “Sua morte prematura”, escreve o moderno historiador diplomático S. J. S. Cookey, salvou © governo do Congo de alguém que poderia ter sido um adversário constrangedoramente forte.” Ele foi enterrado em Blackpool, numa cova simples. Somente em 1975 é que a sepultura ganhou uma lápi­ de graças a seu biógrafo, o historiador John Hope Franklin. Só depois de realizado o enterro, aparentemente,síf que a noiva britâ­ nica ficou sabendo que Williams abandonara mulher e um filho de quinze anos nos Estados Unidos. Por esse e outros engodas, pelo descaso com as dívidas, por ter alardeado um doutorado que nunca existiu, pode-se dizer que havia algo de desonesto nele. Mas, de certo modo, esse era o outro lado de uma personalidade extraordinariamente ousada, que lhe permitiu desafiar uni rei, seus funcionários e toda a ordem racial de seu tempo. Em contrapartida, por exemplo, havia George Grenfell. um missionário britâ­ nico veterano a quem Williams visitou no rio Congo. Também ele vira em primeira mão todo o horror dos maus-tratos sendo cometidos,- inclusive a compra de escravos acorrentados, feita pelos próprios funcionários de Leo­ poldo, mas, como escreveu poucos diásapós ter sc avistado com Williamsj; ele não achava que pudesse4!questionar publicamente as ações do Esta124

do”. E, seja o que for que Williams tenha inventado de seu próprio currí­ culo, praticamente tudo que escreveu sobre o Congo mais tarde viria a ser corroborado — e como — por outras pessoas. A “Carta aberta” de Williams foi um grito de indignação saído do fundo do coração. Não lhe serviu para nada. Fez com que perdesse seu pa­ trocinador. Impediu-o de levar, como esperava fazer, negros norte-ameri­ canos para o Congo. Não lhe deu o dinheiro de que tanto precisava. E, nos poucos meses que teve de vida antes de morrer num balneário estrangei­ ro, só lhe valeu calúnias. Quando visitou o Congo, em 1890, perto de mil europeus e norte-americanos já tinham estado ou trabalhado no território. Williams foi o único a falar abertamente, com paixão e sem descanso, so­ bre tudo que os outros negavam ou ignoravam. Os anos seguintes tomariam suas palavras ainda mais proféticas.

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8 ONDE OS DEZ MANDAMENTOS NÃO VIGORAM

Leopoldo decidiu que a capital de seu novo Estado seria a cidade por­ tuária de Boma, localizada no estuário do Congo, quase à beira do Atlân­ tico; nesse mesmo local, Stanley encerrara sua épica travessia da África, em 1877. Por volta de 1890, Boma já tinha até um bonde de bitola estrei­ ta — uma locomotiva a vapor atrelada a alguns vagões — que ligava o bu­ lício das docas a um platô de temperatura mais amena. Nessa parte alta da cidade ficavam os escritórios do governo e as casas dos funcionários eu­ ropeus. A capital também contava com uma igreja católica, feita de ferro, um hospital para europeus, um correio, uma base militar cujos canhões •costumavam disparar uma salva de tiros sempre que atracava algum v i p e um hotel de dois andares. Três vezes ao dia — às 6h00, às 1lh45 e às 18h30 — , cerca de 75 brancos tomavam o bonde, desciam o morro e atravessavam uma plantação de bananas para fazer suas refeições no restau­ rante do hotel. A única exceção era o govemador-geral, que fazia as refei­ ções em sua majestosa mansão vitoriana, com telhado abobadado, janelas francesas e varandas cobertas. Todo ano, o aniversário do rei era comemo­ rado com revista cerimonial das tropas, uma competição de tiro ao alvo e um concerto dado pelas crianças negras do coro católico. Apesar do palacete imponente, protegido por sentinelas africanas de farda azul e fez vermelho, o govemador-geral do Congo tinha muito me­ nos poder do que seus colegas britânicos, franceses ou alemães. Mais do que em qualquer outra colônia da África, o Congo era administrado dire­ tamente da Europa. O verdadeiro quartel-general do Etat Indépendant du Congo não ficava em Boma, e sim nos gabinetes de Bruxelas, um deles no térreo do Palácio Real, os demais nos prédios contíguos ou do outro lado da ma. Todos os altos e médios funcionários administrativos do Congo eram escolhidos e promovidos pelo próprio rei, e um minigabinete, com três ou quatro belgas na cúpula, prestava contas diretamente a ele. ' Esse poder absoluto sobre um território tão imenso contrastava com 126

os poderes cada vez mais limitados de Leopoldo dentro da própria Bélgi­ ca. Certa vez, já no fim da vida, enquanto conversava em seu gabinete com vários ministros, seu sobrinho e herdeiro, o príncipe Alberto, abriu uma ja­ nela e a corrente de vento atirou alguns papéis no chão. Leopoldo mandou que Alberto os apanhasse. “Deixem-no fazê-lo”, o rei disse a um dos mi­ nistros, que mais que depressa se prontificara a recolhê-los. “Um futuro monarca constitucional deve aprender a se curvar.” Mas não no Congo; lá, os poderes de Leopoldo eram absolutos. Nos escalões inferiores, esse domínio era exercido através dos bran­ cos que administravam os distritos e as estações ribeirinhas espalhadas por todo o vasto território; alguns passavam meses sem receber a visita de um único barco a vapor. Verdade que a prática muitas vezes ficava bem aquém da teoria, mas, pelo menos no papel, até mesmo o mais humilde chefe de entreposto, embrenhado no interior do continente, tinha direito a uma gar­ rafa de vinho tinto por dia, a um belo suprimento de geléia inglesa, man­ teiga dinamarquesa, carnes enlatadas, sopas, temperos, foie gras e outros patês da Fischer’s de Estrasburgo. Para esses funcionários, havia uma superabundância de medalhas, cuja graduação refletia a crescente hierarquia do regime imperial. Para os possuidores da Ordem da Estrela Africana, por exemplo, existiam seis classes, desde os grands-croix e commandeurs até os meros médaillés. A Ordem Real do Leão, criada por Leopoldo para “recompensar o mérito e reconhecer os serviços prestados a Nós”, também possuía seis classes. Para os chefes africanos que colaboravam com o regime, havia uma me­ dalha especial — de bronze, prata ou folheada a ouro, dependendo do grau do “serviço” prestado. As medalhas traziam o perfil de Leopoldo de um lado e, do outro, o brasão do Estado do Congo e as palavras l e a l d a d e e devoção.

Os funcionários brancos trabalhando no Congo eram em geral ho­ mens solteiros, e muitos tomaram concubinas negras. Já na virada do sé­ culo, houve quem começasse a levar junto a mulher, e aqueles que não o fizeram recorreram a uma empreendedora agência britânica de matrimô­ nios, que fornecia noivas sob encomenda, diretamente da Europa. As fotografias de postos remotos no Congo, a partir de 1890, têm quase todas um mesmo padrão. Pelas sombras alongadas, presume-se que seja final de tarde. Os dois ou três homens no retrato usam temo, gravata, capacete pontudo para se proteger do sol, semelhante ao dos policiais lon­ drinos, só que branco. Estão sempre sentados em cadeiras de vime, com um cão a seus pés, diante de uma barraca ou de uma casa simples com te­ lhado de palha, sorrindo. Por trás deles, vêem-se seus criados negros, sem 127

um sorriso no rosto, segurando algum emblema de sua condição: uma bandeja,; uma toalha pendurada no braço, uma garrafa. Taças de vinho ou xícaras de chá descansam sobre uma mesa, símbolos do conforto do lar. Os brancos estão sempre vestidos de branco.

Para que essas cenas fossem possíveis, houve primeiro uma série de decretos reais. O mais importante deles foi baixado no mesmo dia de 1885 em que se faz a declaração formal da existência do Congo; dizia que toda “terra desocupada” era propriedade do Estado. Não havia qualquer defini­ ção do que fosse terra desocupada. No mundo todo, claro, terras que pa­ recem desocupadas em geral estão descansando, são terras de pousio j | l sobretudo aos trópicos, onde as chuvas fortes roubam os nutrientes do solo. *" Leopoldo estava atrás de qualquer coisa que pudesse ser colhida ra­ pidamente. Nesse sentido, tratou tanto as terras desocupadas quanto as ocupadas como propriedade sua, reivindicando tudo o que produziam. O rei hão fazia distinção entre as presas de um elefante rondando livre pela floresta c a horta de um aldeão que pudesse alimentar seus soldados; era tudo seu. Só que não tinha recursos para explorar o território inteiro, de modo que apelou para uma outra série de decretos e retalhou algumas partes do Congo em vários lotes gigantes, cujas “terras desocupadas” foram arren­ dadas durante longos períodos por companhias privadas, por meio de con­ cessão especial. Entre os acionistas e a diretoria dessas companhias — em grande parte, mas não de todo, belga — incluíam-se muitos altos funcio­ nários do Estado do Congo. Em todas as empresas, o Estado — que na verdade significava apenas o rei Leopoldo -H detinha cerca de 50% das ações. Ao instituir essa estrutura, Leopoldo agiu como um empresário mo­ derno, gerenciando um sindicato de capitalistas. Na verdade, o rei desco­ brira a fórmula para atrair capital para seus próprios investimentos e de re­ ter metade dos lucros para si próprio. No fim, com os vários impostos e taxas que as companhias tinham de pagar ao Estado, os lucros acabavam sendo bem mais do que a metade. Mas em vez de agir como um mero capitalista atuando no mercado, além dos fundos de investimentos Leopoldo utilizou também soldados e funcionários públicos. E usou-os sem dó nem piedade para fechar o territó­ rio a quase todo o comércio que não tivesse participação sua. A companhia holandesa em cujo barco Williams viajou viu-se de repente enfrentando uma competição cerrada pelo marfim. Os funcionários do rei começaram 128

a deter os barcos da companhia e, numa ocasião, chegaram até a empregar armas de fogo. Certa vez, segundo um histórico da empresa, “foi decreta­ do estado de sítio numa determinada região, tomando-a território proibi­ do para os comerciantes. Quando o estado de sítio foi suspenso, todo o marfim desaparecera”. Por seu lado, o rei continuava a afirmar que a obtenção de lucros era a última coisa que lhe passava pela cabeça. “Agradeço-lhe por ter feito jus­ tiça, ontem, diante das calúnias espalhadas pelos inimigos do Estado do Congo referentes a acusações de sigilo e intuito de ganhos”, escreveu ele ao primeiro-ministro, após um debate parlamentar, em 1891. “O Estado do Congo certamente não é um negócio. Se recolhe algum marfim em deter­ minadas terras, é apenas para reduzir seus déficits.” E se por acaso os africanos eram forçados a ajudar na coleta do mar­ fim, tampouco isso, por Deus do céu, visava a obtenção de lucros; tudo que se queria era resgatar aquele povo inculto de sua indolência. Essa his­ tória do nativo preguiçoso acompanhou todo o avanço europeu pelas ter­ ras africanas, assim como também fora usada para justificar a conquista das Américas. A um repórter norte-americano, Leopoldo declarou certa vez: “Ao tratarmos com uma raça formada por canibais há milhares de anos, faz-se necessário usar métodos que sacudam, da melhor forma pos­ sível, sua indolência e façam com que percebam a santidade do trabalho”. Por volta de 1890, o trabalho cuja santidade Leopoldo mais prezava era a coleta de todo o marfim que pudesse ser encontrado. Funcionários do Estado do Congo e seus auxiliares africanos vasculhavam a região em busca de marfim, matando elefantes, comprando as presas dos aldeões por' uma ninharia ou simplesmente confiscando a mercadoria. Os povos do Congo vinham caçando elefantes havia séculos, mas passaram a ser proi­ bidos de vender ou entregar o marfim para qualquer outro que não fosse um agente do rei Leopoldo. Um dos aperfeiçoamentos mais eficientes da lei foi o que instituiu, a partir de 1890, uma comissão sobre o valor de mercado do marfim para os agentes em campo: os agentes recebiam 6% do valor de todo o marfim comprado a oito francos o quilo. Só que, esper­ tamente, e p a comissão aumentava gradualmente para 1 0 % , caso o m a r f i m pudesse ser comprado a quatro francos o quilo. Os agentes europeus, portanjtp, tinham um incentivo poderoso para forçar os africanos — se neces­ sário sob a mira de um fuzil — a aceitar preços extremamente baixos. Muito poucos desses francos chegaram às mãos dos caçadores de ele­ fante. Eles recebiam apenas pequenas quantidades de tecido, contas e coi­ sas do gênero, ou então as barrinhas de latão decretadas pelo Estado como a moeda principal do território. Para os africanos, estavam proibidas quais­ 129

quer transações em dinheiro. Dinheiro-em circulação poderia minar o que vinha a ser, essencialmente, uma,economia de confisco.) E confiscava-se sobretudo o trabalho. No começo, o Estado precisa­ va de carregadores. Assim como Stanley, qualquer funcionário que se aventurasse mato afora, longe do sistema fluvial m* para coletar marfim, estabelecer novos entrepostos, controlar uma rebelião — , precisava de longas colunas de carregadores para transportar desde a munição para as metralhadoras até o vinho tinto e o patê. Essas dezenas de milhares de car­ regadores em geral recebiam uma paga pelo seu trabalho, ainda que fosse às vezes apenas a comida para mantê-los vivos, mas a maioria deles era recrutada à força. Até as crianças trabalhavam: um observador notou me­ ninos de sete a nove anos de idade levando fardos de até onze quilos. “Uma fila de pobres-diabos, acorrentados pelo pescoço, carregaram meus baús e caixas até o cais”, anotou pragmaticamente um funcionário do Congo em suas memórias. Na parada seguinte da viagem houve neces­ sidade de mais carregadores para fazer o trajeto por terra: “Havia cerca de cem deles, trêmulos e assustados diante do feitor, que passeava de um lado a outro com o chicote zumbindo. Para cada sujeito robusto e de costas lar­ gas, quantos não havia que eram meros esqueletos raquíticos, feito múmias, a pele gasta [...] crivada de escaras profundas, cobertas de feridas supuradas. [...] Mesmo assim, estavam todos ali para o trabalho”. Havia uma necessidade ainda maior de carregadores nos trechos onde as corredeiras impediam a navegação, sobretudo — até que a ferrovia fos­ se construída fl- durante a caminhada de três semanas da cidade portuária de Matadi st Stanley Pool. Era através dessa via de acesso que todos os su­ primentos chegavam ao interior e que o marfim e outras riquezas alcança­ vam o mar. Transportar barcos a vapor desmontados até a parte de cima do rio era o trabalho mâis intenso de todos: um barco a vapor podia significar mil fardos. Ei|§bomo o senador belga Edmond Picard descreveu uma caravána de carregadores que transpunha as grandes corredeiras, em 1896: T o p a m o s c o m e s s e s c a r r e g a d o re s o te m p o to d o [ . . . ] p r e to s , tr is te s , c o b e rto s a p e n a s p o r u m a ta n g a im u n d a , a c a r a p in h a n u à s u p o r ta n d o a c a r g a — c a ix o j j g ^ S i e p i b r u l h o s , p r e s a s d e m a rfim [ ...] b a r ris ; q u a s e to d o s a d o e n ta d o s , e n c u r3 f |v a d o s so b u m fa rd o a in d a m a is p e s a d o e m v ir tu d e d o c a n s a ç o e d a c o m id a in s u fic ie n te " — u m p u n h a d o d e a rro z e u m p o u c o d e p e ix e f rito fe d o re n to ; d e p lo r á v c tl c a riá tid e s a m b u la n te s , b e s ta s d e c a rg a COm c a m b ito s d e m a c a c o , d e fe iç õ e s ríg id S s,' o lh o s fix o s e a rre g a la d o s , ta n to d e p re o c u p a ç ã o p a r a m a n tc r o e q u ilíb rio q u a n to d e e x a u s tã o . Eleá® SH S# v ê m d e s s e j e i t o :a o s m ilh a re s [ ...] r e q u is ita d o s p e lo E s ta d o a rm a d o c o m S u a q x id e ro s a m ilíc ia .-e n tre g u e s p e lo s c h e f e s d e q u e m s ã o e s c ra v o s e q u c l l c a m c o m s e u s s a lá rio s , tro ta n d o c o m jo e lh o s b a m b o s , b a r rig a p a r a a fre n te , u m b r a ç o e rg u id o p a r a a m p a ra r

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a c a rg a , o o u tr o a p o ia d o n u m b a s tã o c o m p r id o , e m p o e ir a d o s e s u a re n to s , in ­ s e to s e s p a lh a n d o p o r m o n ta n h a s e v a le s s u a s m u ita s f ie ira s e s u a ta r e f a d e S ís ifo , m o r re n d o p e lo c a m in h o o u , te r m in a d a a v ia g e m , v o lta n d o p a r a m o r ­ r e r d e ta n to tr a b a lh a r e m s u a s a ld e ia s .

► ' A taxa de mortalidade era especialmente alta entre os carregadores forçados a transportar carga por longas distâncias. Dos trezentos carrega­ dores recrutados em 1891 pelo comissário distrital Paul Lemarinel para executar uma marcha forçada de quase mil quilômetros até um novo en­ treposto, não voltou nenhum.

Stanislas Leffanc, católico e monarquista convicto, era um promotor belga que fora ao Congo trabalhar como magistrado. Um domingo de ma­ nhã, ainda bem cedo, em Léopoldville, ele ouviu o som de muitas crian­ ças gritando desesperadas. Quando localizou a fonte dos berros, Lefranc encontrou “uns trinta moleques, dos quais vários com sete ou oito anos de idade, enfileirados à espera de sua vez, assistindo, aterrados, às chicotadas que os companhei­ ros recebiam. A maioria dos meninos, num paroxismo de dor [...] chuta­ va de modo tão terrível que os soldados que tinham ordens de segurá-los pelos braços e pernas precisavam erguê-los do chão. [...] 25 vezes o chi­ cote vergastou cada uma das crianças”. Na noite anterior, como Lefranc foi informado, várias crianças tinham dado risada na presença de um branco, que ordenou então que todos os meninos que trabalhavam como cria­ dos na cidade recebessem cinqüenta chibatadas. A segunda etapa do castigo âeria aplicada no dia seguinte, às seis da manhã. Lefranc conseguiu suspender as outras 25 chicotadas, mas recebeu ordens para não fazer mais nenhum protesto que interferisse com a disciplina. Lefranc estava, vendo em ação uma das principais ferramentas do Congo de Leopoldo e que, na imaginação do povo nativo, logo passaria a s®s#sociada ao regime branco, tanto quanto o barco a vapor ou o rifle. O chicote era feito com couro de hipopótamo seco ao sol, cortado em tiras compridas e afiadas, em forma de saca-rolhas. Em geral era apücado às nádegas nuas da vítima. Seus golpes deixavam cicatrizes permanentes; mais dé W chibatadas podiam levar à perda da consciência; cem ou mais — evque não era raro — muitas vezes matavam. Lefranc veria ainda muitas outras punições com o chicote, embora suas descrições desses castigos, publicadas em panfletos e artigos de jor­ nal na própria Bélgica, provocassem poucas reações.

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O chefe do posto escolhe as vítimas. Trêmulos, abatidos, eles se deitam de cara para o chão dois companheiros, às vezes quatro, pegam-nos pe­ los pés e mãos e retiram os calções de algodão. [...] Cada vez que o torturador ergue o chicote, surge uma tira avermelhada na pele das infelizes víti­ mas, que, por mais bem seguras que estejam, se contorcem de modo horrendo. [...] Aos primeiros golpes, as tristes vítimas soltam gritos pavorosos, que logo se tomam gemidos quase inaudíveis. [...] Num requinte diabólico, al­ guns oficiais, e eu testemunhei isso, exigem que, ao se levantar, o castigado, ofegante, faça graciosamente uma continência militar. O horror que Leffanc demonstrou com tudo isso valeu-lhe apenas a reputação de ser um esquisitão, um encrenqueiro. Ele “revela uma igno­ rância surpreendente das coisas que deveria conhecer, por causa de seu trabalho. Um agente medíocre”, foi o que escreveu o govemador-geral em exercício, numa avaliação pessoal. Para tentar reduzir as queixas feitas por Leffanc, os funcionários deram ordens para que as penalidades fossem executadas num novo local, e não mais ao lado de sua casa. A exceção de Leffanc, poucos europeus servindo o regime de Leopol­ do deixaram registros de sua indignação diante do terror vigente e sancio­ nado oficialmente. Os brancos que passaram pelo território como militares, capitães de barco ou funcionários de companhias estatais ou concessioná­ rias em geral aceitavam o uso do chicote de forma tão impensada quanto, meio século depois, milhares de outros homens fardados aceitariam traba­ lhar nos campos de concentração soviéticos e nazistas. “Os monstros exis­ tem”, escreveu Primo Levi, a respeito de sua experiência em Auschwitz. “Mas em número muito pequeno para serem perigosos de fato. Mais perigo­ sos são [...] os funcionários prontos a acreditar e agir sem fazer perguntas.” O que teria possibilitado que funcionários trabalhando no Congo aceitassem tão jovialmente o chicote e, como ainda veremos neste livro, também outras formas de castigo e morte? Para começar, havià, claro, a questão da raça. Para os europeus, os africanos eram seres inferiores: pre­ guiçosos, incivilizados, pouco melhores que animais; aliás, a forma mais comum de trabalho, para eles, era o de besta de carga. Em qualquer siste­ ma de terror, os que nele trabalham têm, primeiro, de ver as vítimas como sendo menos que humanas, e as idéias vitorianas sobre raça forneceram os alicerces para isso. Depois, claro, havia o fato de o terror no Congo ser sancionado pelas autoridades. Para o homem branco, rebelar-se significava desafiar o sis­ tema que lhes fornecia o sustento. Todos em volta estavam participando. Ao fechar com o sistema, você recebia um salário, era promovido, conde­ corado com medalhas. E foi assim que homens que teriam ficado atônitos de ver um chicote em ação nas ruas de Bruxelas, Paris ou Estocolmo, acei­ 132

taram-no como coisa normal. naqueíe cenário diferente. Podemos ouvir o eco desse pensamento, num outro contexto, meio século depois: ‘‘Para ser franco”, disse Franz Stangl, sobre os assassinatos em massa que ocorre­ ram quando era comandante dos campos de extermínio nazistas de Sobibor e Treblinka,-“você se acostuma com aquilo V Em tais regimes, uma das coisas que muitas vezes contribui para que os funcionários “se acostumem com aquilo” é uma certa distância simbó­ lica — irrelevante para a vítima j|§pntre o funcionário encarregado e o ato físico do terror. Essa distância simbólica foi muitas vezes citada em defe­ sa própria pelos nazistas julgados após a Segunda Guerra Mundial. O dr. Johann Paul ffem er, por exemplo, médico da ss que gostava de fazer suas pesquisas de patologia em tecido humano ainda fresco; explicou: O paciente era colocado n a m esa de dissecáção ainda vivo. E u então m e aproxim ava da m esa e lhe fãzia várias perguntas pertinentes aos assuntos de m inhas pesquisas. [...] D epois de recolhidas m inhas inform ações, o orde­ nança aproxim ava-se e m atava o paciente com um a injeção nas proxim ida­ des do coração. [...] Eu m esm o nunca apliquei nenhum a injeção letal.

“Eu mesmo nunca apliquei nenhuma injeção letal.” Ainda que alguns brancos gostassem de empunhar o chicote, a maioria do.s que trabalharam no Congo interpunha essa mesma distância simbólica entre si e o temível instrumento. “De início [...] eu me encarregava de aplicar o castigo àque­ les cuja conduta no dia anterior parecia justificar tal tratamento”, regis­ trou Raoul de Premorel, que trabalhava para uma companhia operante na bácia do rio Kasai. “Mas logo depois [...] achei conveniente transferir a igxecução das sentenças a subordinados meus. Pareceu-me melhor fazer Cóm que cada capita [feitor africano] administrasse os castigos em sua própria turma.” Assim foi que grande parte dos golpes de chicote foram dados por africanos em africanos. Isso, para os conquistadores, servia a um outro propóàito. Criava uma classe de capatazes entre os próprios conquistados, 'Como àè kapos nos campos de concentração nazistas e os predurki nos guIctgÊsViBÚMm, O terror faz parte integrante da conquista, assim como obrigarhf-Conquistado a participar desse terror.* Pa cida­ de fervilhava de histórias sobre o fim da expedição de Stanley, que fora 150

resgatar Emin Pasha, e ele se pegou pensando de novo naquelaJerra exó­ tica de suas fantasias infantis. Foi a Bruxelas, candidatou-se a um empre­ go no rio Congo e voltou à Bélgica no exato momento em que Stanley en­ cerrava sua visita de gala à capital belga. * Em conversas tidas antes de assumir o novo emprego, Korzeniowski, então com 32 anos, mostrou, a exemplo de quase todo mundo na Europa, acreditar na missão nobre e “civilizadora” que Leopoldo pretendia em­ preender na África. Despediu-se assim dos parentes e zarpou para o Con­ go, no mesmo navio que levou a primeira batelada de trilhos e dormentes para a nova ferrovia. Como os outros brancos com destino ao interior do país, primeiro teve de fazer a longa caminhada contornando as corredei­ ras, juntamente com uma caravana de carregadores negros. Assim que conseguiu chegar ao rio, encheu seu diário com anotações de marujo de­ dicado: longas explanações sobre bancos de areia, postos de reabasteci­ mento e outros itens que não estavam incluídos nas cartas de navegação então disponíveis. Seriam necessários mais quase dez anos até que o aspi­ rante a capitão fluvial pusesse no papel as outras características do Congo que não apareciam nos mapas e, até lá, claro, o mundo já o conhecia pelo nome de Joseph Conrad. Ele passou cerca de seis meses no Congo, levando consigo o manus­ crito parcialmente completo de seu primeiro romance, Almayer’s Folly [A loucura de Almayer]. A viagem de aprendizado, de 1500 quilômetros, de Stanley Pool a Stanley Falis, levou apenas quatro semanas, uma viagem rápida para a época. Bancos de areia, pedras e trechos rasos prejudicavam a navegação, sobretudo na parte mais alta do rio e principalmente porque era tempo de seca. “O abafado resmungo trovejante das Stanley Falis pai­ rava no pesado ar noturno do último trecho navegável do alto Congo [...]”, escreveria ele mais tarde, “e eu disse a mim mesmo, cheio de espanto, ‘Este é o local exato de minha bravata infantil’. [...] Que fim para as rea­ lidades idealizadas de um menino sonhador!” Nas Stanley Falis, tanto Conrad quanto o capitão do barco caíram doentes. Conrad recuperou-se mais rápido e, durante a primeira parte da viagem de volta — a jusante o barco viajava quase duas vezes mais de­ pressa que a montante — , foi ele quem comandou o Roi des Beiges. Mas, poucas semanas depois de terminada a viagem, Conrad cancelou seu con­ trato e se pôs de novo a caminho da Europa. Várias decepções penosas destruíram os sonhos de Conrad. Já de iní­ cio, não se deu bem com um dos funcionários da companhia para a qual estava trabalhando, o que significava que não conseguiria obter o coman­ do de um barco. Depois, logo que voltou a Stanley Pool, adoeceu outra 151

vez, vítima de malária e disenteria, tendo que convalescer num posto de missionários batistas norte-americanos, onde trabalhava um médico esco­ cês. Continuou tão fraco que teve de ser carregado de volta à costa, e nun­ ca mais recuperou por inteiro a saúde. Por fim, sentiu-se tão horrorizado com a cobiça e brutalidade reinantes entre os brancos que sua opinião da natureza humana mudou para sempre. Até passar esses seis meses na África, disse ele certa vez a um amigo, o crítico Edward Garnett, não ti­ nha “sequer um pensamento dentro da cabeça”. * Depois de ruminar por oito anos a experiência vivida no Congo, Conrad transformou-a em O coração das trevas, talvez o mais reimpresso de todos os pequenos romances em língua inglesa de todos os tempos. As ano­ tações cotidianas que fez no diário do barco — “Passagem de Lulonga. [...] N a L para NNL. A bombordo: troncos submersos. Sondagens em bra­ ças: 2, 2, 2, 1, 1, 2, 2, 2, 2” — iriam se transformar numa prosa soberba, que até hoje não encontrou nada equiparável na literatura sobre o Congo. Subir aquele rio foi com o viajar de volta ao com eço dos tem pos, quando a vegetação espalhava-se desregrada pela terra e as grandes árvores eram so­ beranas. U m caudal vazio, um enorm e silêncio, um a selva im penetrável. O ar ^ m om o, denso, pesado, apático. N ão havia alegria no brilho da luz. L o n g o s trechos desertos de água corriam para o desalento das distâncias obscuras. ;{ fo a r e ia p r a te a d a d o s b a n c o s , hipopótam os e crocodilos tom avam sol lado a la d o , A la rg a n d o ^ s è íg è r io f lu ía p o r u m a c h u s m a de ilhas cobertas de m ata. p e r d i a n a q u e le r io c o m o p e r d e r ia n u m deserto, a c u tu c a r troncos s u b u i p í s o s o d ia i n te ir o ,.te n ta n d p a c h a r p a s s a g e m , a té que se im agi­ nava e n f e itiç a d o p a r a s e m p r e e A l a d o d e t u d o o q u e 0 , c o p h e c e r a antes.

4 Marlow, o narrador ‘de O coração das trevas e altenego de Conrad, é contratado por uma companhia que comercializa marfim para subir um rio sem nome, cujo formato rio mapa lembfcti “uma imensa dobra, com a ca­ beça no mar, o corpo repousado em curvas-siinuõsás por um vasto territó­ rio e a cauda perdida nas profundezas dá terrãS. Sêü destino é um posto: dirigido pelo brilhante érambicioso agente Kurtz, uma das estrelas da em­ presa. Kurtz já recolhera quantidades1 lendárias de marfim, masO'eomo Marlow fica sabendo;no eaminho|pehâvãisê imerso numa selvagcria hão especificada. O barco de Marlow sobrevive à um ataque de negro^f reco­ lhe uma carga de marfim e apanha Kurtz: já muito doente; Kurtz. falando de seus planos grandiosos, morre a bordo, enquanto descem o rio. * Apenas esboçado com alguns poucos traços' audaciosos, ainda assim a imagem de Kurtz permanece gravada na memória de milhões de (leitó;res: o agente solitário num rio loágínquoV com seusrionhos de grandeza,f seu precioso estoque' gigantesco de marfim e seu feudo talhado enr-plena 152

selva africana. Mas talvez, acima de qualquer outra coisa, nos fique a lem­ brança de Marlow ainda a bordo, olhando pelo binóculo para o que julga serem globos ornamentais espetados na cerca da frente da casa de Kurtz — e descobrindo, em seguida, que cada um deles é “negra, seca, afunda­ da, de pálpebras fechadas — uma cabeça que parecia dormir no topo da­ quele pau, com os lábios ressequidos e murchos a mostrar uma linha fina e branca de dentes”. No colegial e na faculdade, os professores que discutiram esse livro em milhares de salas de aula, nesses anos todos, fizeram-no em termos de Freud, Jung e Nietzsche; do mito clássico, da inocência vitoriana e do pecado original; do pós-modemismo, pós-colonialismo e pós-estruturalismo. Para os leitores europeus e americanos, era incômodo aceitar a matan­ ça em massa, o genocídio ocorrido na África na virada do século, de modo que colocaram O coração das trevas muito distante de seu ancoradouro histórico. Lemós o livro como uma parábola para todos os tempos e luga­ res, não como um romance sobre um tempo e lugar específicos. Duas das três vezes em que foi filmada, mais notadamente em Apocalipse, de Francis Ford Coppola, a história nem sequer se passa na África. Mas o próprio Conrad escreveu: “O coração das trevas é a experiência [...] levada um pouco (e muito pouco) para além dos fatos reais referentes ao caso”. Quaisquer que sejam os níveis de significado que tenha o livro, como li­ teratura, para nossos propósitos o notável é a precisão e a descrição deta­ lhada “dos fatos reais referentes ao caso”: o Congo do rei Leopoldo, em 1890, assim como a, exploração do território, tinha começado para valer. No romance, Marlow, assim cômo Conrad, começa sua viagem com a longa caminhada em tomo das corredeiras. “Um leve tilintar atrás de mim me fez virar a cabeça. Seis negros avançavam em fila indiana pela tri­ lha. Andavam eretos e lentos, equilibrando pequenos cestos cheios de terfji na cabeça, e o tilintar acompanhava o ritmo dos passos. [...] Vi-lhes costela por costela, juntas que eram como nós numa corda, um colar de ferro no pescoço, todos jungidos por uma corrente que pendia em arco en­ tre um negro e outro, sacudindo na mesma cadência.” Eram os operários que começavam a construir a ferrovia de Leopoldo. Algumas páginas depois, Marlow descreve um lugar para onde al­ guns operários famintos tinham se arrastado para morrer. Mais adiante no caminho, percebe “vez por outra um carregador morto de tanto trabalhar| largado no capim alto da trilha, com uma cabaça vazia e o cajado comprido do lado”, e repara no misterioso “corpo de um negro de meia-idade, com um buraco de bala na testa” JEsses relatos são meros registros do que Con­ rad viu em pessoa, durante a caminhada até Stanley Pool. Em seu diário, 153

há a seguinte anotação para o dia 3 de julho de 1890: “Encontrei um ofi­ cial do Estado fazendo inspeção; alguns minutos depois vi num acampa­ mento o corpo de um bacongo morto. Fuzilado? Cheiro horrível”. No dia seguinte: “Vi mais um corpo largado na trilha, numa atitude de repouso meditativo”. E a 29 de julho: “Passei hoje por um esqueleto amarrado a um poste”. Durante a caminhada em torno das corredeiras, Marlow também des­ creve a debandada da população, que foge para não ser recrutada como animal de carga. “O povo já fugiu há muito tempo. Bem, se um bando de pretos misteriosos, armados com todo o tipo de armas temíveis, de repen­ te se pusesse a viajar pela estrada [na Inglaterra] entre Deal e Gravesend, agarrando os campónios a torto e a direito para obrigá-los a transportar sua carga, desconfio que todas as fazendas e casas das vizinhanças esvaziariam bem rápido. [...] Passei por várias aldeias abandonadas ” Isso também foi visto pelo próprio Conrad. Os carregadores da caravana em que viajava o romancista quase se amotinaram durante a viagem. Três anos e meio depoipuflfl levante feroz irromperia ao longo dessa mesma rota, ocasião em que. o.chefe Nzansu e seus homens travaram uma longa e malfadada bata­ lha contra a Force Publique. Ao descrever as caravanas de carregadores que faziam esse caminho, Marlow nos dá um resumo preciso da economia leopoldiana: “uma torrente [...] de algodões vagabundos, contas e arame era levada para as profunde­ zas das trevas e, em troca, pingava o precioso marfim” pAi palavra ‘mar­ fim’ ressoava no ar, em sussurros, nos suspiros. Era de se imaginar que es­ tivessem rezando para ela”, diz Marlow. O narrador menciona inclusive o sistema de comissões instituído por Leopoldo: “O único sentimento ver­ dadeiro era a ânsia de serem nomeados para um entreposto onde houves­ se marfim, para que pudessem ganhar uma porcentagem’^ ^ * Conrad se manteve fiel à vida real ao criar a figura carismática e as-; sassina que preside o romance, talvez o mais famoso dos vilões literários do século xx. Kurtz foi decididamente inspirado em várias pessoas de car­ ne e osso, entre elas Georges Antoine Klein, agente francês de uma firma de marfim que atuava em Stanley Falis. Klein, muito doente, morreu a bordo, como acontece com Kurtz no romance, quando Conrad pilotava o Roi des Belges rio abaixo. Outro que se aproxima muito do caráter de Kurtz é o major Edmund Barttelot, o homem a quem Stanley deixou no comando da retaguarda durante a expedição para resgatar Emin Pasha. Foi Barttelot, lembrem-se, que enlouqueceu e começou a morder, chicotear e matar as pessoas e que, por fim, acabou sendo assassinado. Um outro pro­ tótipo de Kurtz foi o belga Arthur Hodister, famoso por seu harém de afri154

canas e por coletar quantidades fabulosas de marfim. Hodister entrou com muita agressividade em território affo-árabe, controlado por guerreiros e mercadores de marfim, foi capturado e decapitado. Entretanto, a legião de biógrafos e críticos de Conrad ignorou quases que por completo o homem que mais se parece com Kurtz. E trata-se de alguém com quem já travamos conhecimento: o capitão fanfarrão da For­ ce Publique, Léon Rom. É de Rom que Conrad tirou, talvez, a caracterís­ tica mais memorável de seu vilão: a coleção de cabeças africanas que cer­ cam a casa de Kurtz. A “Estação do Interior” de O coração das trevas, o lugar que Marlow espia pelo binóculo e que de repente revela uma coleção de cabeças de “rebelde^?!africanos, baseia-se, vagamente, em Stanley Falis. Em 1895, cinco anos depois da visita de Conrad, a estação era comandada por Léon Rom. Um jornalista e explorador britânico que passou pelas Stanley Falis em 1895 descreveu os resultados de uma expedição militar punitiva orga­ nizada contra alguns rebeldes africanos: “Prenderam muitas mulheres e crianças e 21 cabeças foram levadas até as cataratas, cabeças que têm sido usadas pelo capitão Rom como ornamento, rodeando um canteiro de flo­ res na frente de sua casa!”. Se Conrad por acaso perdeu esse artigo, publi­ cado na Century Magazine, revista muito lida na época, com certeza não deixou de notá-lo quando The Saturday Review, uma revista que ele admi­ rava e lia com assiduidade, reproduziu a história em seu número de 17 de dezembro de 1898. A data é muito próxima da época em que Conrad co­ meçou a escrever (? coração das trevas. Além do mais, R om e Conrad talvez tenham se encontrado no Congo. No dia 2 de agosto de 1890, Conrad, acompanhado por um outro branco e uma caravana de carregadores, chegou ao fim de sua caminhada de um mês. Uns oito quilômetros antes de chegar à vila de Kinshasa, em Stanley Pool, onde q Roi des Belges aguardava, a caravana teve de passar pelo posto de Léopoldville, que era vizinho. E s s || dois aglomerados de casas cobertas de palha fiçavam a menos de uma hora e meia de caminha­ da um do outro. (Logo mais, cresceriam e se fundiriam numa só cidade, a que os belgas chamariam de Léopoldville, e que é hojé Kinshasa.) Quan­ do a caravana de Conrad passou por Léopoldville, por uma trilha às mar­ gens do rio, o chefe daquela estação era Léon Rom. Não há anotação ne­ nhuma para 2 de agosto no diário de Conrad e os cadernos de Rom, que registravam com caligrafia impecável todos os reides ou campanhas que pudessem lhe valer alguma medalha, não mencionam nenhuma expedição passando por Léopoldville por volta dessa época. Se por acaso Rom esti­ vesse no posto, com certeza teria recebido a caravana que levava os euro155

peus recém-chegados, já que eram muito poucos os brancos residentes em Léopoldville e Kinshasa e não era todo dia que chegava alguém novo. O que foi dito ou ficou por dizer, se é que houve realmente o encontro entre os dois* jamais saberemos. A coleção de Rom com 21 cabeças africanas pertence a um tempo e lugar diferentes, meia década depois, mas quando Conrad leu sobre Rom, em dezembro de 1898, é possível que tenha se lembrado de um jovem oficial que conhecera no Congo.

* O coração das trevas é uma das críticas mais acerbas ao imperia­ lismo de toda a literatura, mas seu autor, curiosamente, tinha-se na con­ ta de imperialista fervoroso, no que dizia respeito à Inglaterra. Conrad viu com toda clareza a devastação que Leopoldo estava provocando no Congo: “O horror! O horror!”, diz a personagem Kurtz, em seu leito de morte. E o substituto de Conrad, Marlow, se põe a pensar que “a con­ quista da terra, em grande medida um ato que significa tomá-la de quem tem uma cor de pele meio diferente ou um nariz um pouco mais chato que o nosso, não é uma coisa muito bonita de se ver, quando se olha de perto”. Mas, quase em seguida, Marlow acrescenta que os territórios bri­ tânicos coloridos de rosa no mapa-múndi são “bons de se ver a qualquer hora porque sabemos que ali se faz algum trabalho verdadeiro”; os co­ lonialistas britânicos são “portadores de uma centelha do fogo sagrado”. Marlow fala por Conrad, cujo amor por seu país adotivo não conhecia li­ mites: Conrad achava que a “liberdade [...] seja onde for, só pode ser en­ contrada sob a bandeira britânica”. E, ao mesmo tempo em que denun­ cia em seu romance a cobiça européia pelas riquezas da África, investe numa mina de ouro perto de Johannesburgo. Também sob outros aspectos Conrad foi um homem de seu tempo e lugar. Era, em parte, um prisioneiro do que Mark Twain, num contex­ to diferente, chamou de “a noção do homem branco de que ele é menos selvagem do que os outros selvagens”. O coração das trevas sofreu crí­ ticas, e com razão, pelo retrato que faz das personagens negras, que nun­ ca dizem mais que umas poucas palavras. Na verdade nem falam: gru­ nhem, cantam, produzem um “zumbido de encantamentos estranhos” e “um alarido selvagem e apaixonado”; despejam “uma enfiada de pala­ vras espantosas, que não se assemelham a nenhum som de língua huma­ na [...] como se fossem respostas a alguma litania satânica”. A verdadei­ ra mensagem do livro, sustenta o romancista nigeriano Chinua Achebe é: “Mantenham distância da África, ou verão só! Kurtz [...] devia ter es­ cutado esse aviso, assim o horror que lhe rondava o coração teria se man156

tido no devido lugar, acorrentado a seu covil. Mas ele cometeu a sandi­ ce de se expor ao fascínio irrefreável da selva, e vejam!, as trevas o en­ contraram”. • Em que pese a carga de racismo vitoriano, O coração das trevas con­ tinua sendo o maior retrato ficcional dos europeus sobre a Partilha da África. Quando Marlow vai se despedir da tia, antes de partir para o novo emprego, “ela falou sobre iivrar aqueles milhões de ignorantes de seus hábitos horrendos’ até que, palavra de honra, me veio um grande descon­ forto. Ousei insinuar que a Companhia tinha fins lucrativos”.* Os brancos de Conrad entregam-se à devastação do continente crentes de que estão melhorando a condição dos nativos, levando-lhes a civilização, servindo “a nobre causa”. Todas essas ilusões manifestam-se na personagem de Kurtz. Ele é ao mesmo tempo um assassino colecionador de cabeças e um intelectual, “um emissário da [...] ciência e do progresso”. É pintor, criador de “um pequeno estudo a óleo” de uma mulher levando uma tocha, que Marlow encontra na Estação Central. E é também poeta e jornalista, autor, entre outros trabalhos, de um relatório de dezessete páginas — “vibrante de eloqüência [...] um belo documento” — para a Sociedade Internacional em prol da Supressão dos Costumes Selvagens. Ao fim do relatório, cheio de nobres sentimentos, Kurtz rabisca, com mão trêmula: “Exterminem todos os boçais!”. Nas pretensões intelectuais de Kurtz, Conrad captou uma caracterís­ tica fundamental da penetração branca do Congo, onde tantas vezes a con­ quista pela pena e o nanquim confirmou a conquista feita pelo rifle e a me­ tralhadora. A partir do momento em que Stanley abriu caminho a bala pelo rio Congo e, em seguida, escreveu seu best-seller de dois volumes, cole­ tores de marfim, soldados e exploradores tentaram imitá-lo — em livros e em milhares de artigos para as revistas e publicações das sociedades geo­ gráficas, que eram tão populares no final do século xix quanto é hoje a Na­ tional Geographic nos Estados Unidos. Colocar a África no papel era algo assim como uma prova definitiva da superioridade da civilização européia. (*) A p esso a que m ais lucrou, o rei L eopoldo II, não aparece em O coração das trevas, em bora o faça em The Inheritors [Os h erdeiros], rom ance m en o r que C onrad m ais tarde coescreveu co m F ord M adox Ford. U m a das personagens centrais é o barbudo duque de M ersch, que controla o Protetorado da G roenlândia. A Sociedade para a R egeneração das R egiões Á rticas, fundada pelo duque, objetiva levar aos infelizes esquim ós um a ferrovia, roupas decentes e outros benefícios d a civilização. O duque investe num jo rn al inglês, para poder ter u m a cobertura favorável d e suas atividades “filantrópicas” . “N ós protegem os os nativos”, diz ele, “e m antem os seus m ais altos interesses sem pre em m ente.” A G roenlândia do rom ance é rica em petróleo e ouro.

157

• Esse aspecto de Kurtz é mais um motivo para se suspeitar que, ao criá-lo, Conrad tenha se inspirado-parcialmente em Léon Rom. Como vimos, Rom era um entomologista em potencial. Era também pintor; quando não estava colecionando borboletas ou cabeças humanas, fazia retratos e pai­ sagens, das quais cinco sobreviveram até hoje e estão num museu belga. Mais interessante ainda, Rom era escritor. Em 1899, já de volta à Bélgica, publicou um livro. Le Nègre du Con­ go é um livrinho estranho — arrogante, apressado e tremendamente super­ ficial. Capítulos curtos cobrem “Le Nègre en général”, a mulher negra, co­ mida, animais de estimação, medicina nativa e por aí afora. Rom era um caçador ardoroso, que posou cheio de júbilo em cima de um elefante mor­ to, e seu capítulo sobre caça é tão longo quanto os que falam das crenças religiosas congolesas, rituais de morte e sucessão tribal tomados em con­ junto. A voz usada por Léon Rom em seu livro é muito semelhante à voz em que podemos imaginar Kurtz escrevendo seu relatório para a Socieda­ de em Prol da Supressão dos Costumes Selvagens. Da race noire, Rom diz: “Produto de um estado irracional, seus sentimentos são grosseiros, suas paixões rudes, seus instintos brutais e, além disso, é orgulhosa e vã. A principal ocupação do homem preto, e aquela a qual dedica a maior par­ te da existência, consiste em estender uma esteira sob os raios quentes do sol, como um crocodilo na areia. [...] O preto não tem idéia do tempo e se um europeu lhe pergunta sobre o assunto em geral responde com alguma besteira”. E há muito mais, nessa mesma veia. Quando descreve, por exemplo, os congoleses recrutados para trabalhar como carregadores, diz que eles se divertiam muito. Quando uma caravana parte de manhã, todos os carrega­ dores se põem a trabalhar ruidosamente, todos eles esperando ansiosa­ mente “conseguir encontrar um lugar de sua escolha na fila, por exemplo ao lado de um amigo com quem possa falar sobre os sonhos da noite an­ terior ou elaborar o cardápio, mais ou menos variado e delicioso, da refei­ ção que terão na próxima parada”. Em algum momento ainda no Congo, Rom deve ter começado a pla­ nejar seu livro. Será possível que ele, ao descobrir que Conrad falava fran­ cês perfeitamente, tivesse lhe confiado seus sonhos literários? Teria Con­ rad visto uma de suas pinturas em alguma parede de Léopoldville, assim como Marlow vê uma tela de Kurtz? Ou teria sido pura coincidência que o verdadeiro colecionador de cabeças Rom e o imaginário colecionador de cabeças Kurtz fossem ambos pintores e escritores? Jamais saberemos. Existem outros paralelos perturbadores entre Léon Rom e Kurtz. No 158

L eo p o ld o quando jo vem .

H en ry M orton Stanley, com o “quepe S ta n ley”, que ele m esm o pro jeto u p a ra explorações nos trópicos.

H enry Shelton Sanford, rico aristocrata de Connecticut que conseguiu, por meio de lobby, fa ze r com que os Estados Unidos reconhecessem a reivindicação do Congo pelo rei Leopoldo.

Telegrama cifrado enviado de Bruxelas, cumprimentando o lobista Sanford. O texto do telegrama diz: “Encantado com Emile. Antes começo negociações por fa vo r tele­ grafe o que sabe sobre intenções do Senado. William”. “Em ile” era o presidente Chester A. Arthur, que acabara de elogiar Leopoldo num pronunciamento ao Congresso. “W illiam ” era o principal assessor de Leopoldo no Congo, o coronel M aximilien Strauch.

O rei Leopoldo IL

Twa Mwe, um chefe kwango. Os líderes africanos em geral tinham três opções: fornecer escravos aos brancos, morrer ou ir para a prisão.

O barco a vapor G oodw ill [Boa vontadeJ, de propriedade de missionários britânicos,.jera uma das embarcações típicas que navegavam pelo Congo.por volta de 1890.

George Washington Williams, advogado, jornalista, pastor e historiador que escreveu a primeira denúncia do reino de terror vigente no Congo de Leopoldo.

Um entreposto de marfim no C ongo,újfkl890. As presas de elefante, compradas por uma ninharia ou confiscadas sob a mira dos fuzis, alcançavam altos preços na Europa. O m arfttn servia para fabricar uma série de coisas, de dmtáduraSsa teclasrdê~pumb.

Um possível protótipo para o K urtzde Conrad: Léon Rom. Grandefanfarrão, Rom era notório por ter mandado cercar o jardim de sua casa com uma fileira de cabeças africanas decepadas. Também escreveu um livro sobre os costumes africanos, pintou retratos e paisagens e fo i colecionador dè borboletas. '■

Rom (com o rifle) após uma caçada.

Joseph Gonrad.

Um outro protótipo para Kurtz: Guillaume Van Kerckhoven. Segundo contou feliz, da vida a um companheiro de viagens, ele pagava a seus soldados negros “cinco barretas de latão [2,5 dó­ lares] por cabeça decepada que lhe levassem durante qualquer operação m ilitar que estivesse comandando. D isse que servia para estim ular-lhes a bravura diante do inim igo”.

E. D. Morei

As docas de Antuérpia, que despertaram as suspeitas do jovem E. D. M orei sobre o trabalho escravo no Congo.

Sir Roger Casement, cônsul britânico, ativista, testemunha das atrocidades co­ metidas no Congo e patriota irlandês.

Hez.ekiah Andrew Shanu. Embora condecora­ do com medalhas por seus serviços ao regime, secretamente passou-se para o outro lado e forneceu provas importantes aos refomadores no exterior; fo i levado ao suicídio por funcioná­ rios de Leopoldo que descobriram a verdade.

O reverendo William H. Sheppard, missionário presbiteriano, explorador e o primeiro estrangeiro a visitar a capital do reino cuba. Os escritos de Sheppard, documentando a brutalidade do Estado do Congo, lhe valeram um processo.

Nsala, do distrito de Wala, olhando para as mãos e pés decepados de sua filha de cinco anos de idade, Boali, vítima da milícia pertencente à Anglo-Belgian índia Rubber and Exploration Company, aABIR.

M issio n á rio s b ritâ n ico s co m h om en s segu ran do m ã o s d e c e p a d a s p e la A B IR , em 1904. A í vítim a s a q u em e ssa s m ã o s p e rte n c ia m ch a m a va m -se B o len g e e L in gom o.

D o is jo v e n s d o d istrito d o E qu ador: a s m ã o s d e M ola. Sentado, fo ra m d estru íd a s p e la gangrena, d e p o is d e terem sid o a m a rra d a s co m m u ita f o r ç a p e lo s so ld a d o s. A m ã o d ire ita d e Yoka, d e p é , f o i c o r ta d a p o r s o ld a d o s q u e qu eria m g a n h a r q co m issã o p o r su a m orte.

O chicote em ação. N o ta r a p ilh a d e correntes no canto in ferio r esquerdo.

Mulheres reféns, mantidas sob vigilância para forçar os maridos a entrar na floresta e recolher borracha nativa.

A aldeia de Baringa. O chefe está sentado num banquinho, no centro; sua casa está à direita. Do telhado das outras, vê-se a fumaça dos fogões.

Baringa depois de ser destruída para abrir caminho para uma plantação de seringueiras. Quando a seiva nativa rareou, o governo deu ordens para que novas árvores fossem planta­ das. Em geralficava mais barato usar uma clareira já existente, como a dessa aldeia, do que derrubar a mata.

. . GREAT..

CONCO

D emonstration. THE

protest of ffhriotian Snglmtb .A T T H E . .

ROYAL ALBERT HALL . . ON..

Friday, November 19, 1909, AT 7.30 I’.M.

C hairm an :

H IS GRACE

THE ARCHBISHOP OF CANTERBURY. SPEA K ER S:

The Right Rev. THE LORD BISHOP OF LONDON» Rev. D p . JOHN CLIFFORD, M.A. The Right Rev. THE LORD BISHOP OF OXFORD, Rev. J. SCOTT LIDGETT, M.A., D.D. Rev. C. SILVESTER HORNE, M.A. S u p p o rte d by

The Lord Bishops o f Rochester, Birmingham, Manchester, Carlisle, Ely, Newcastle,

St.

Asaph, Truro, Wakefield, Exeter, Gloucester,

Lichfield, Liverpool, Durham;

Dr. CAMPBELL MORGAN, Rev. J. E. RATTENBURY, Dr. MONRO GIBSON, Rev. D. J. HILEY, Rev. SILAS K. HOCKING, Rev. J. H. SHAKESPEARE, Rev. J. D. JONES, _ Rev. GEO. HOOPER, Rev. THOMAS YATES, PrOf. A. E. GARVIE, Dr. HORTON, Rev. F. B. MEYER.

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B U S E S f r o m a ll p a r t s o f L o n d o n p a s s t h e D oom

Cartaz convocando para um ato de protesto contra as atrocidades do Congo, a ser realizado noR óyal Albert Hall, em-Londres, sexta-feira, 19 de novem­ bro de 1909, presidida pelo arcebispo da Cantuária, com a participação de vários oradores.

Charge publicada na Alemanha, acompanhada por alguns versinhos sobre o zelo demonstrado p o r Leopoldo em cortar tanto cabeças negras quanto o valor de suas promissórias.

Os reform istas lembraram muitas vezes o acordo de Berlim de 1885, uma das muitas prom essas não cumpridas que foram feita s aos africanos: “O APELO. ‘EM NOME D E DEUS TODO-PODEROSO. Todas as potências r exercendo seus direitos soberanos, ou \ tendo alguma influência sobre os ditos territórios, comprometem-se a cuidar da preservação das raças nativas e a m elhorar as condições morais e m ateriais de sua existência.’Artigo VI. Acordo de Berlim. 1885.”

J

\

the

appeal

.

“ M* TH E N A M E O F ALM IG H TY G O D . All t h e P o w e r s exo rcisin g so ve r eig n r ig h ts , o p h a vin g Influence in t h e M id t e r r ito r ie s u n d e r ta k e t o w a t c h o v e r t h e p re s e r v a tio n o f th e n a tiv e r a c e s , and t h e a m e lio r a tio n o f t h e m o ral a n d m a te r ia l c o n d itio n s o f th e ir e x is t e n c e ”

Article VI, The A c t o f Berlin. 1885.

Punch, 1905: Uma das inúmeras piadas em que Leopoldo troca idéias com o sultão da Turquia, também condenado pôr Seus massacres (de armênios). “OPINIÃO ABALIZADA. Leopoldo: ‘Que rebuliço mais tolo estão fazendo sobre essas supostas atrocidades em minha propriedades ho Congo’. Abdul: ‘É só conversa, meu caro. Eles não farão coisa alguma. Nunca incomodaram a mim/ HK f

IN THE JttUBBEE COILS. Sasz—Tke Congo " Fm" Stou.

Punch, 1906. A legenda seria, grosso modo, algo como. “NAS MALHAS DA BORRACHA.”

Punch, 1909. “A CULPA DO ATRASO. Feitor do Congo: ‘Semproblemas. Eles ainda estão discutindo’.”

romance, Kurtz consegue “ser adorado” pelos africanos da Estação do In­ terior: os chefes se arrastam no chão diante dele, o povo o obedece com devoção de escravo e uma linda negra é, aparentemente, sua concubina. Em 1895, um tenente da Force Publique registra de modo desabonador em seu diário uma situação extraordinariamente semelhante envolvendo um colega oficial: Ele deixa seus agentes morrerem de fom e e dá comida à vontade para as mu­ lheres negras de seu harém (pois que deseja agir como um grande chefe ára­ be) [...] Por fim, envergou a farda, reuniu suas mulheres, apanhou alguns pa­ p á s e, para todas elas, fingiu ler que o rei o havia nomeado o grande chefe e que os outros brancos da estação eram arraia-miúda apenas. [...] Mandou aplicar cinquenta chibatadas numa pobre negra que não quis ser sua aman-!■' te, depois í/ew a mulher a um dos soldados.

O que é significativo é como o tenente inicia seu relato sobre esse ofi­ cial: “Esse homem quer fazer o papel de um segundo Rom”. Por fim, o instinto assassino de Kurtz parece ecoar um outro detalhe a respeito de Rom. Quando Rom era chefe da estação de Stanley Falis, o govemador-geral enviou um relatório a Bruxelas falando de alguns agen­ tes “cuja reputação é a de ter assassinado grande número de pessoas por razões insignificantes”. Ele menciona o notório canteiro de flores de Rom, adornado com cabeças humanas, e depois acrescenta: “Ele mantém um patíbulo permanentemente erguido em frente à estação!”. Não sabemos se Rom já estava pondo em prática alguns desses seus sonhos de poder, homicídio e glória quando Conrad passou por Léopoldville, em 1890, ou se apenas falou sobre eles. Seja qual for o caso, a pai­ sagem moral de O coração das trevas e sua figura central, nebulosa, não são apenas criações de um romancista; são registros de um observador atento, que capturou o espírito do tempo e lugar com uma exatidão pene­ trante.

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10 A MADEIRA QUE CHORA

Chovia no dia 12 de julho de 1890, na cidade de Londres, mas ape­ sar do aguaceiro uma verdadeira multidão aglomerou-se em frente à aba­ dia de Westminster. Milhares de pessoas acotoveladas nas calçadas escor­ regadias tentavam dar uma espiada que fosse nos dignitários que saltavam das carruagens e entravam na igreja através de um corredor de policiais: o primeiro-ministro Gladstone, o presidente da Câmara dos Comuns, o lor­ de chanceler, duques e príncipes vários, mulheres cobertas de jóias e ge­ nerais repletos de medalhas. Os ricos e famosos lotaram a abadia, muitos de pé, nas naves. Por fim, o homçm a quem todos aguardavam saltou de uma carrua­ gem, doente, pálido, apoiado numa bengala. Henry Morton Stanley esta­ va prestes a embarcar erq algo que, para ele, era muito mais intimidador do que todas as suas aventuras africanas. Ele ia se casar. A noiva, Dorothy Tennant, era a excêntrica retratista da alta socieda­ de que o tinha rejeitado num outro momento. Mas enquanto o explorador labutava na selva, em busca de Emin Pasha, Dorothy mudara de idéia. De volta a Londres, Stanley começou a receber cartas apaixonadas dela. “Imagine uma terra selvagem, sem qualquer cultivo, e imagine que um dia essa terra seja arada e semeada de trigo. Se a terra pudesse falar, ela diria: ‘Eu nunca produzi nenhum grão, eu não produzo grãos, nunca hei de pro­ duzir grãos'. Entretanto, nesse tempo todo o grão estava oculto em seu seio. [...] Meu amor é uma chama que não morrerá jamais, uma chama que começou tão pequena que não se via süa luz e que agora queima como a chama do altar.” E lá se foi Stanley para o altar. As notícias espalharam-se, o preço das telas de Dorothy Tennant subiu da noite para o dia e choveram votos de congratulações do mundo inteiro. A rainha Vitória deu a Dorothy uni me­ dalhão com 38 brilhantes e Thomas Edison mandou ao casal um de seus novos aparelhos fonográficos. De Bruxelas, Leopoldo enviou seu repre­ sentante, o conde D ’Aarche, para ser o padrinho. 160

No dia do casamento, Stanley achava-se muito doente, sofrendo de gastrite e de uma inflamação da parede do estômago. Ele já sofrera de gas­ trite antes, mas aquela nova crise devia ter seus motivos. O noivo cami­ nhou até o altar principal, mas teve de se sentar numa poltrona durante parte da cerimônia. Depois do casamento, foi preciso ajudá-lo a subir na carruagem do casal. Protegido por uma escolta da polícia montada, os noi­ vos seguiram em meio aos aplausos de uma multidão que quase bloquea­ va a passagem do veículo. Durante a recepção, Stanley permaneceu deita­ do num aposento separado, às escuras, em agonia. A doença não cedeu na lua-de-mel. Durante toda sua vida, Stanley travou uma guerra entre dois senti­ mentos poderosos: o anseio de ser aceito e o medo da intimidade. Esse medo era tão grande, acredita o mais completo biógrafo do explorador, Frank McLynn, que o casamento nunca foi consumado. As provas são so­ bretudo circunstanciais. Dorothy Stanley não teve filhos e, obviamente, apesar de suas cartas, sofria também de fortes neuroses. Numa decisão muito pouco romântica, Stanley insistiu para que seu jovem assistente acompanhasse o casal na lua-de-mel, passada na Suíça. E há também o diário de Stanley desse período, com várias passagens riscadas, aparente­ mente pela mulher após sua morte. O final de uma delas no entanto con­ tinua legível: “Não considero comportamento de uma boa esposa buscar esses prazeres e me fazer sentir como um macaco na jaula”. O medo que tinha das mulheres era tão grande, conclui McLynn, que “quando Stanley foi finalmente chamado a satisfazer a esposa, teve um colapso nervoso e confessou que considerava o sexo coisa de animais”. Se essa conclusão é certa ou errada, não se sabe. O fato é que essas ini­ bições que tanta dor provocaram em Stanley são um lembrete de que os ex­ ploradores e soldados que tomaram a África em nome da Europa não foram sempre os homens fortes, ousados e despachados de que fala a lenda, mas sim criaturas inquietas, infelizes, encurraladas, fugindo de alguma coisa no passado ou em si mesmas. As explicações econômicas da expansão impe­ rial — busca de matérias-primas, mão-de-obra e mercados — são todas cor­ retas, mas houve também um combustível psicológico a impulsioná-la. O casamento de Stanley marcou o fim de suas explorações; dali em diante, dedicou-se a ser famoso. Tendo chegado finalmente à alta socieda­ de, tomou-se algo assim como uma caricatura de suas atitudes. Viajava pelo mundo dando palestras e discursos em jantares de gala, recebendo di­ plomas honorários, inaugurando ferrovias e concedendo entrevistas. Ele criticou sem dó nem piedade a preguiça, o socialismo, a imoralidade, “a mediocridade geral”, os sindicatos de operários, o nacionalismo irlandês, 161

a jornada de trabalho de oito horas, jornalistas do sexo feminino e criados de hotel americanos (“destreinados, indisciplinados, preguiçosos e malcria­ dos”). Foi sagrado cavaleiro e eleito para o parlamento. Ao fazer uma via­ gem de palestras pelos Estados Unidos e Canadá, uma vez mais levou seu jovem assistente; sua mulher levou a mãe. Duplamente acompanhados, os Stanley viajaram pelo continente em grande estilo, num vagão de trem particular que tinha até piano. O vagão foi batizado de Henry M. Stanley.

Dois anos apenas depois do casamento de Stanley, um outro homem conseguiu realizar um feito de exploração extraordinário no Congo. Ao contrário das viagens de Stanley, a dele foi respeitosa e sem violência. Mas William Sheppard raramente aparece nos anais da exploração da África porque não se encaixa na imagem convencional do explorador branco. Para começar, ele não era branco. Paradoxalmente, o que permitiu a Sheppard, um negro norte-ameri­ cano, ir ao Congo, foi o trabalho do senador pelo Alabama, John Tyler Morgan, defensor ferrenho da supremacia branca, que ajudara a arquitetar o reconhecimento do Congo pelos Estados Unidos na esperança de que os negros norte-americanos emigrassem. Morgan e outros entusiastas do “mandem-nos de volta para a África” previam, de início, um estágio em que missionários negros norte-americanos seriam enviados para o conti­ nente. Morgan esperava que servissem de cabeça-de-ponte para os milhões de negros norte-americanos que partiriam em seguida, e o quanto antes melhor. Já em 1865 — o ano em que os sulistas perderam as últimas es­ peranças de manter os negros em seus devidos lugares como escravos — a assembléia geral da Igreja Presbiteriana Sulista votou a favor do início do recrutamento de “missionários de raça africana vivendo neste continen­ te, que possam levar os Evangelhos da graça de Deus até os lares de seus ancestrais”. Foram necessários alguns anos, depois de terminada a Guerra Civil, para que esses planos pudessem deslanchar. Entre outras coisas, os pres­ biterianos sulistas, cujo entusiasmo pela escravidão havia levado a uma se­ paração dos presbiterianos do Norte, contavam com muito poucos negros em suas congregações, o que não é de surpreender. Mesmo assim, os pro­ jetos de conservadores intransigentes como Morgan numa certa altura coincidiram com os interesses de alguns afro-americanos. George Wash­ ington Williams não foi o único negro a querer trabalhar lá, na época, em­ bora poucos tivessem a intenção de se mudar definitivamente para a África. O reverendo William Sheppard tinha essa mesma ambição, e tal­ 162

vez pelo mesmo motivo, ainda que jamais tenha ventilado o assunto: es­ capar das humilhantes barreiras da segregação. Nascido na Virgínia, em 1865- Sheppard formou-se no Instituto Hampton, uma das poucas instituições de ensino superior para negros existentes na època, no Sul. Depois de estudar mais um pouco no Colored Theologieal Seminary [Seminário Teológico para Pessoas de Cor], em Tuscaloosa, Alabama, trabalhou como ministro presbiteriano em Montgomery e Atlanta, onde acabou conhecido pela energia, zelo e coragem física. A certa al­ tura, salvou alguém que estava sê afogando; numa outra ocasião, subiu três lances de escada de uma casa* que pegava fogo para salvar uma mu­ lher e acabou ele mesmo se queimando. Por volta de 1888, Sheppard co­ meçou a pleitear, junto à Igreja Presbiteriana Sulista; uma vaga de missio­ nário na África. Os presbiterianos deixaram Sheppard na gáspera durante dois anos: as autoridades da Igreja não permitiriam que partisse até haver alguém bran­ co disponível para ser seu Süperior;#or fim, com incentivo do próprio senador Morgan, surgiu um missionário branco disposto — o reverendo Sa­ muel Lapsley, um ano mais novo que Sheppard e filho do antigo sócio de Morgan num escritório de advocacia. Embora um fosse descendente de es­ cravos e o outro, de donos de escravos, os dois se deram bem e partiram juntos para o Congo. A caminho, com apresentações de Morgan e Henry Shelton Sanford, Lapsley encontrou-se com o presidente Benjamin Harrison em Washington e com o rei Leopoldo n em Bruxelas. Sheppard, sendo negro, não foi incluído nas audiências. Sanford insistiu para que Lapsley comprasse uma cartola de seda para a visita ao Palácio Real e o rei encan­ tou o missionário; assim como o fizera com tantos outros visitantes. Em maio de 1890, Sheppard e Lapsley chegaram ao Congo e duran­ te algumas semanas permaneceram num posto missionário nos arredores de Matadi. Enquanto os dois reuniam carregadores e suprimentos para a caminhada em torno das corredeiras, havia alguém mais fazendo a mesma coisa nas ruas dessa pequena cidade montanhosa: Joseph Conrad. Ele e sua caravana começaram a caminhada até Stanley Pool onze dias depois dos missionários americanos. Tendo trocado idéias com missionários experientes de Stanley Pool e missões mais acima, Lapsley e Sheppard decidiram estabelecer a primei­ ra missão presbiteriana sulista bem no meio da bacia do Kasai. Sheppard saiu mato afora é:. ficouiyárias semanas recrutando ajudantes africanos; Lapsley permaneceu numa missão norte-americana em Léopoldville, onde de novo cruzaria com Joseph Conrad. (O romancista talv#M tenha tido que enfrentar não só malária e disenteria como também um poucõ de catecis163

mo. Conrad, escreveu Lapsley, numa carta para casas “está doente num quarto na outra ponta do pátio. Aqui sentado [...] olho através dos galhos de árvores frutíferas e palmeiras para sua janela. É um sujeito cavalheires­ co. Um Novo Testamento sobre sua mesa de cabeceira me dá uma alavan­ ca que espero poder usar nele”.) Assim que terminaram os preparativos, os dois jovens missionários tomaram o caminho do Kasai. As cartas que Lapsley enviou para casa du­ rante esses meses ressoam com Uma admiração pelo companheiro que se­ ria quase impossível a um homem branco expressar, nos Estados Unidos. “No Bateke, todos acham que não há ninguém igual a ‘Mundéle NdonT, o negro branco, como chamam Sheppard. [...] Tem um temperamento ale­ gre e constante — na verdade um homem de virtudes incomuns e caráter forte. De modo que sou grato a Deus por Sheppard.” Lapsley chama Shep­ pard de “comerciante nato. [...] Deixo a ele a incumbência de fazer qua­ se todas as compras", e fala com admiração de sua resistência física, de suas habilidades na caça, de sua capacidade de lidar com tempestades que ameaçaram derrubar as barracas e de um dia em que Sheppard mergulhou a quatro metros e meio de profundidade no rio para soltar a âncora que fi­ cara presa num tronco submerso. Certa feita Sheppard matou um hipopó­ tamo, saltou no rio para amarrar uma corda no animal morto e escapou por um triz de, um crocodilo que também estava de olho no bicho. Aquele ne­ gro, pelas regras, deveria ocupar o segundo lugar na missão, mas, ao ler­ mos as cartas de Lapsley, o que nos vem à mente é a peça The Admirable Crichton, de James Barrie,* na qual um iate lotado de aristocratas britâni­ cos naufraga perto de uma ilha e o habilidoso mordomo toma-se o líder. William Sheppard foi o primeiro missionário negro norte-americano no Congo. Suas palavras, em livros, cartas e artigos de revista escritos nas duas décadas seguintes, e nas palestras fascinantes proferidas em Hampton e outras cidades durante os períodos de folga, são completamente di­ ferentes de quase tudo que havia sido dito ou escrito por americanos e eu­ ropeus que passaram pela África antes dele. Sheppard é, sem dúvida, um evangélico cristão, e não deixou de sê-lo um segundo, durante os 21 anos em que trabalhou na África. De vez em quando expressa a condescendên­ cia costumeira em relação às “densas trevas do ateísmo” e aos “selvagens nus e incultos curvando-se para ídolos, cheios de superstições e pecados”. Mas o tom empregado em geral é outro. “Eu sempre quis viver na África”, Sheppard escreve a um amigo nos Estados Unidos; “achava que seria fe­ liz, e sou.” E com sofreguidão que ele absorve tudo que encontra pela ba(*) N a ad ap tação p a ra o cin em a, ch am o u -se O mordomo e a dama. (N. T.)

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cia do rio Kasai: “Nós começamos imediatamente a estudar a língua de­ les, apontando para objetos e anotando o nome que nos davam”. Adquire papagaios e um pequeno macaco preto, a quem, por brincadeira, dá o nome de Tippu Tip, o traficante de escravos afro-árabe. Sua voz, mais forte e confiante, transforma-se na voz de um homem que sente, de uma forma que talvez seja política e religiosamente muito arriscada para ser explora­ da por inteiro, ter voltado à verdadeira pátria. Ele exulta por estar entre “meu povo”, no “país de meus avós”. No início de 1892, Lapsley teve de ir a Boma, a capital, cuidar de as­ suntos da missão, e deixou Sheppard sozinho alguns meses, no Kasai. Quando Sheppard foi, todo alegre, receber o barco que deveria estar tra­ zendo Lapsley de volta, encontrou, no lugar do missionário, uma carta: Caro Irmão Sheppard: Ficará surpreso e magoado em saber que seu amigo e companheiro, o re­ verendo S. N. Lapsley, enquanto estava de passagem aqui pela costa, foi aco­ metido de febre hematúrica biliosa e, a 26 de março, morreu.

Os presbiterianos sulistas, constrangidos por terem um negro no co­ mando de sua nova missão no Congo, despacharam mais alguns presbiteria­ nos brancos para lá. Até que chegassem,.Sheppard já tinha vários anos de experiência no território e tornara-se, segundo um mercador belga, muito popular “entre os bacubas, cuja língua só ele fala, entre todos os europeus”. f Sheppard continuou tendo sucesso. Adorava caçar e era famoso pela oratória carismática e por sua força. Circulava no que, segundo dizia todo alegre, vinha á ser á primeira bicicleta da África central. Sua jo ie de vivre Pgrece tê-lo tornado uma pessoa amada por todos, brancos e negros. Para sè ter urna idéia de sua popularidade, bastaria dizer talvez que mais adian­ te, desviando-se dos laçós matrimoniais, teve um filho com uma mulher nativa, e que tal transgressão não pôs fim a sua carreira na Igreja. O me­ nino, chamado Shapit. que era como os africanos chamavam seu pai, aca­ baria dirigindo a tipografia dá missão. Ao contrãrib de outros missionários, em geral um bando de aspecto bem sombrio,’has fotografias Sheppard sempre parece estar se divertindo, seja posando corri alguma caça que abateu, seja ao lado de uma cobra mor­ ta ou tocándo banjo. Alto e robusto, mistura-se a um grupo de guerreiros negros,‘"munidos de lanças e escudos, segurando ele próprio uma lança. Ou, de rifle em punho, sorri largamente em meio a uma fileira de homens armados de arcos e 5flechas. Em quase todas elas, Sheppard destaca-se. Está usando um capacete branco, camisa branca, gravata branca, temo de linho branco, até mesmo sapatos brancos de lona. O peito enfunado, as mãos confiantes nos quadris, entre um grupo de africanos, exibe um sor­ 165

riso caloroso* orgulhoso, quase de dono. Tem aquele olhar de um técnico de futebol exibindo o time vencedor, , A região onde Sheppard trabalhava era vizinha à terra do povo cuba. Os cubas estão entre os maiores artistas da África, com suas máscaras, es­ culturas, tecidos e ferramentas entalhadas com grande sofisticação; a co­ leção de arte cuba de Sheppard, que açabou indo para sua alma mater, no estado da Virgínia, foi a primeira coleção de arte africana de peso a ser ad­ quirida por um estrangeiro. Sheppard fez ainda observações etnográficas sobre os cubas e outros povos da região do Kasai e registrou mitos ances­ trais, rituais e resultados de colheitas, Embora franco diante de alguma prática que o horrorize — tal como sacrifício humano ou assassinato de mulheres sob suspeita de bruxaria seus textos mostram uma curiosida­ de respeitosa e empática a respeito dos costumes africanos*; radicalmente diversa dos julgamentos apressados e inflexíveis de alguém como Stanley. Sheppard impressionou-jfl sobretudo corn os cubas, que “nos fazem sen­ tir que entramos de novo no terreno da civilização, [...] Talvez tenham re­ cebido a sua dos egípcios — ou os egípcios obtiveram a deles dos bacubas!”. Ele ficou fascinado ao ver uma taça cerimonial dos cubas para beber vinho de palmeira; entalhado nela estava um rosto com feições extrema­ mente parecidas às dos antigos artefatos egípcios. “A taça é de mogno”, escreveu Sheppard, “e o rosto que há nela parece provar a tradição de que teria vindo, muitos e muitos anos atrás, de uma terra longínqua.” Por sua localização quase inacessível, nas profundezas do interior do Congo, o reino cuba fora poupado em grande medida das incursões de tra­ ficantes de escravos provenientes tanto da costa oriental quanto da ociden­ tal. Òs cubas gostavam desse isolamento e faziam todo o possível para manter os forasteiros à distância. Sua terra natal achava-se dentro das fronteiras do território que a Europa reconhecera como sendo de Leopol­ do, mas nessa fase inicial da construção da colônia a soberania do rei bel­ ga sobre as áreas mais remotas existia apenas no papel. Havia quase uma década que os mercadores belgas vinham tentando obter acesso ao reino cuba e eram sempre rechaçados; os presentes que mandavam a seu monar­ ca eram devolvidos. Alcançando algo que seria o sonho de qualquer antropólogo, em 1892 Sheppard tomou-se o primeiro estrangeiro a entrar na cidade de Ifuca, sede da corte do rei cuba, Kot aMbweeky n. O rei avisara inúmeras ve­ zes que deceparia a cabeça de qualquer um que ajudasse um forasteiro a entrar na cidade, de modo que ninguém ousou explicar o caminho a Shep­ pard. Foram precisos três meses para que ele e um pequeno grupo de afri­ canos descobrissem como chegar à capital, coisa que conseguiram por 166

fim, clandestinamente, seguindo os rastros de uma caravana de marfim. Sheppard ainda estava vestido todo de branco, inclusive calçado com seus sapatos de lona branca e “o que já fora”, escreve ele pesaroso, seu temo de linho branco. O rei, muito irado, deu ordens para que Sheppard, seus seguidores e todos aqueles que o tinham ajudado fossem levados à corte para terem a cabeça decepada. Mas aí descobriu que o intruso tinha pele escura e fala­ va um pouco de cuba. O que significava, segundo a decisão do conselho de anciãos, que era um espírito reencamado. E ainda por cima, como pro­ clamaram, sabiam exatamente quem era ele: Bope Mekabe, um antigo rei. Segundo Sheppard, nada do que pudesse dizer a respeito de um rei maior no céu conseguiu convencê-los do contrário.* A visita foi um dos pontos altos da vida de Sheppard e uma mina de irtfòrmações para estudiosos posteriores, já que os cubas tinham um dos sistemas políticos mais sofisticados da África central. Sheppard permane­ ceu na corte cuba durante quatro meses e, interessado em tudo que via, anotou cada detalhe, desde rituais palacianos até trabalhos da força poli­ cial do rei, que cuidava de roubos e outros crimes. Os servos espalhavam peles de leopardo para ele pisar quando nas proximidades do soberano, que ocupava um trono de marfim e usava uma coroa de contas e penas. “Acabei gostando muito dos bacubas [...]”, ele escreve. “De todos que vi na África, eram os mais bonitos, dignos, graciosos, corajosos, ho­ nestos, sempre sorridentes e realmente hospitaleiros. O conhecimento que têm de tecelagem, bordado, entalhe em madeira e fundição de metal é o mais apurado de toda a África equatorial.” Sheppard assistiu a uma reu­ nião anual de chefes e líderes de outras cidades do reino, onde cada um deles relatou nascimentos, mortes, colheitas e outros acontecimentos em seus domínios e executou uma dança cerimonial. O hvro que mais tarde escreveu sobre suas experiências na África intitula-se Presbyterian Pio­ neers in Congo [Pioneiros presbiterianos no Congo], mas são os cubas que roubam a história. Sheppard nos dá um apanhado valioso, em primeira mão, de um dos últimos grandes reinos africanos que ainda não fora trans­ formado pela influência européia. O mito cuba da criação, Sheppard rela­ ta, “diz que as primeiras pessoas, homem e mulher, desceram do céu amarrados numa corda, da qual se desvencilharam, e a corda foi suspensa de novo”. (*) O fam oso antropólogo Jan Vansina tem interpretação diversa. C om o o nom e B ope M ekabe não consta da genealogia real dos cubas, ele sugere que os cubas sabiam quem era Sheppard e qu e estavam apenas tentando lisonjeá-lo p ara que lhes revelasse os planos dos europeus desejosos de penetrar n o reino.

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Logo depois de sua primeira visita aos cubas, Sheppard voltou aos Estados Unidos, de férias. A caminho de casa, foi convidado a dar uma pa­ lestra no Exeter Hall, em Londres. Por sua viagem ao reino cuba e sua des­ coberta de um lago que os europeus não conheciam, foi eleito membro da Royal Geographical Society, o único missionário presbiteriano a receber a honraria. A sociedade também batizou sua descoberta de lago Sheppard. Em Washington, Sheppard presenteou o presidente Grover Cleveland com uma esteira cuba, feita de bambu; numa visita posterior, deu a Theodore Roosevelt um cachimbo e uma colcha de fibra de palmeira. Nessas via­ gens aos Estados Unidos, Sheppard fez inúmeras palestras em faculdades e igrejas de todo o país, e seus discursos fervorosos sobre a África contri­ buíram para que surgissem muitos outros missionários e missionárias presbiterianos da raça negra. Uma delas, Lucy Gantt, professora e canto­ ra de talento, que ele conhecera enquanto era ainda estudante de teologia, tomou-se sua esposa. Para ajudar a completar os quadros dos vários pos­ tos missionários que apareceriam aos poucos, foram despachados mais presbiterianos brancos, e em momento algum deixou de haver um branco no controle desses postos. Nos catálogos oficiais da sociedade presbiteria­ na sulista, publicados nos Estados Unidos, Sheppard e seus novos recru­ tas tinham sempre um “(de cor)” ou um “(c.)” depois do nome. Mas, na África, ele não se sentia relegado à condição de cidadão de segunda clas­ se: batizou um de seus filhos com o nome de Maxamalinge, nome de um dos filhos do rei cuba. Os cubas, claro, estavam muito satisfeitos com seu modo de vida e apesar da gentileza que demonstraram com Sheppard não manifestaram grande interesse pelo cristianismo. O posto missionário que Sheppard ins­ talou entre eles fez poucos adeptos. Mas Sheppard tinha se tomado tão co­ nhecido nos Estados Unidos, por suas descobertas, que os presbiterianos temiam uma reação adversa por parte do público se fechassem a missão e o transferissem para um outro posto. Toda a região do Kasai, assim como o restante do Congo, acabou su­ cumbindo às garras do Estado de Leopoldo. Cerca de oito anos depois da histórica visita de Sheppard, as forças do rei belga finalmente chegaram e saquearam a capital cuba.

A investida contra a capital do reino, assim como muitos outros acon­ tecimentos no Congo, foi provocada por uma descoberta feita'a milhares de quilômetros dali. Um belo dia, alguns anos antes de William Sheppard embarcar para a África, um cirurgião veterinário, com uma majestosa bar­ 168

ba branca, mexia no triciclo do filho, em sua casa em Belfast, Irlanda. John Dunlop estava tentando resolver um problema que vinha atazanando os ci­ clistas havia anos: como conseguir rodar de modo mais confortável sem molas? Dunlop finalmente descobriu um jeito prático de solucionar o anti­ go problema, um aro inflável de borracha. Em 1890, a companhia Dunlop começou a produzir pneumáticos — desencadeando uma verdadeira febre de bicicletas e dando início a uma nova indústria que se ajustaria como uma luva ao advento do automóvel, como se veria pouco depois. Os europeus conheciam a borracha desde que Cristóvão Colombo re­ parara na substância, nas então índias Ocidentais. Em língua inglesa, o nome rubber surgiu no final do século xvni, quando um cientista britâni­ co observou que a substância conseguia apagar, “rub”, marcas de lápis. O escocês Charles Macintosh acrescentou o próprio nome ao léxico inglês, em 1823, quando descobriu como fabricar em massa algo que os índios das Américas já conheciam havia muito tempo: a borracha aplicada em te­ cido, para tomá-lo impermeável. E assim surgiu o termo macintosh ou mackintosh, usado até hoje para designar capa de chuva. Dezesseis anos depois, o inventor norte-americano Charles Goodyear deixou cair, aciden­ talmente, um pouco de enxofre sobre borracha quente. Descobriu então que a mistura resultante não endurecia depois de fria, nem ficava malchei­ rosa ou grudenta quando quente — resolvendo um grande problema para quem estava tentando fabricar botas ou capas de borracha. Mas foi apenas por volta de 1890, meia década depois, quando Dunlop adaptou aros pneu­ máticos nas rodas do triciclo do filho, que teve início, mundialmente, o boom da borracha. O mundo industrializado desenvolveu então um gran­ de apetite não só por pneus de borracha mas também por mangueiras, tu­ bos, equipamentos de vedação e por aí afora, sem contar os isolantes de borracha para a fiação dos telégrafos, telefones e eletricidade que inva­ diam rapidamente o globo. De repente, as fábricas estavam correndo atrás da substância mágica, e o preço da borracha subiu sem parar durante toda a última década do século xix. Em nenhum lugar esse boom teve um im­ pacto mais desastroso na vida das pessoas do que na floresta equatorial, onde as plantas nativas produtoras de látex enroscavam-se pelas árvores de quase metade das florestas do Congo do rei Leopoldo. Para o rei belga, o boom da borracha foi uma dádiva divina. Ele esta­ va perigosamente endividado, por causa de seus investimentos na colônia, mas percebeu então que o retomo seria ainda mais lucrativo do que havia imaginado. O mundo não perdera o interesse pelo marfim, mas, por volta do final do século xix, a borracha nativa já superara — e muito — a pre­ sa do elefante como fonte principal de dividendos para o Congo. Com sua 169

fortuna garantida, o rei sabatinava ansiosamente os funcionários que vol­ tavam da colônia, querendo obter minúcias a respeito das colheitas de bor­ racha; devorava um fluxo ininterrupto de telegramas e relatórios, fazia anotações nas margens e em seguida entregava a papelada a seus auxilia­ res, para que fossem tomadas as devidas providências. As cartas desse pe­ ríodo estão cheias de números: preços da borracha nos mercados do mun­ do inteiro, taxas de juros sobre empréstimos, quantidades de rifles a serem enviados ao Congo, toneladas de borracha a serem embarcadas para a Eu­ ropa, e as dimensões exatas do arco triunfal a ser construído em Bmxelas, com dinheiro proveniente das riquezas do Congo. Ler a correspondência do rei nesse período é como ler as cartas do presidente de uma corporação que acaba de desenvolver um novo produto lucrativo e que precisa correr para tirar o máximo proveito antes que os competidores ponham para fun­ cionar suas próprias linhas de montagem. A competição que Leopoldo temia vinha da borracha cultivada, ex­ traída de uma árvore, e não de uma trepadeira, como a borracha nativa africana. Só que as árvores produtoras de borracha requerem muitos cui­ dados e alguns anos de espera, antes que estejam grandes o bastante para produzir o látex. O rei passou então a exigir com voracidade cada vez maior quantidades sempre mais amplas de borracha nativa, porque sabia que o preço iria cair assim que as plantações da América Latina e da Ásia atin­ gissem a maturidade. Isso de fato aconteceu, mas até lá o Congo já tinha tido um boom de borracha nativa por quase duas décadas. E, durante esse período, a extração não teve limites. Assim como ocorria com os homens que coletavam marfim, os que forneciam borracha para o Estado do Congo e empresas privadas eram re­ compensados de acordo com a quantidade entregue. Em 1903, um agente especialmente “produtivo” recebeu uma comissão oito vezes maior que seu salário anual. Mas o dinheiro grosso fluía diretamente de volta para Antuérpia e Bruxelas. Sobretudo para uma pequena rua da capital, a rue Bréderode, que separava os fundos do Palácio Real de vários prédios onde funcionavam os escritórios do Estado do Congo. Ainda que obtivesse metade dos lucros das empresas concessionárias, o rei Leopoldo n ganhava bem mais explorando diretamente as terras do seu Estado particular. Mas como as concessionárias não eram administra­ das debaixo de tanto sigilo, suas estatísticas do período são mais confiá­ veis. Em 1897, por exemplo, uma dessas empresas, a Anglo-Belgian índia Rubber and Exploration Company [Companhia Anglo-Belga de Explora­ ção de Borracha das índias],; a abir, gastou 1,35 franco por quilo para co­ lher borracha no Congo e transportá-la para a sede da companhia em An­ 170

tuérpia — onde era vendida por preços que chegavam às vezes a 10 fran­ cos por quilo, um lucro de mais de 700%. Por volta de 1898, o preço do estoque da ABiR era quase trinta vezes maior do que o de seis anos antes. Entre 1890 e 1904, o total dos lucros obtidos com a borracha do Congo au­ mentou 96 vezes. Na virada do século, o État Indépendant du Congo tinha se tomado, de longe, a colônia mais lucrativa da África. Os lucros vinham rápido porque, exceto pelos custos do transporte, a colheita da borracha não requeria cultivo, não precisava de fertilizantes e não havia nenhum in­ vestimento de capital em equipamentos caros. Exigia apenas braços. E como seriam encontrados esse braços? Para os dirigentes do Con­ go, era mais um problema a ser resolvido. Eles não podiam, pura e sim­ plesmente, arrebanhar os homens, acorrentá-los e obrigá-los a trabalhar sob a supervisão de um capataz de chicote em punho, como faziam com os carregadores. Para recolher borracha nativa^ as pessoas têm de se dis­ persar por uma ampla área da floresta e muitas vezes trepar em árvores. A borracha é seiva coagulada; a palavra francesa, caoutchouc, vem de um termo dos índios sul-americanos que significa “a madeira que cho­ ra”. A madeira que chorava no Congo era uma trepadeira comprida e es­ ponjosa, do gênero Landolphia. Com mais de trinta centímetros na base, uma trepadeira dessas enroscava-se em volta de árvores com trinta metros ou mais de altura, em busca da luz do sol. Lá no alto, ramificando-se, ela podia continuar se espalhando por muitas dezenas de metros, em tomo dos galhos mais altos de outras árvores. Para extrair a borracha, era preciso fa­ zer um talho no tronco da trepadeira, com uma faca, e colocar uma tigela ou pote de barro embaixo, para coletar a seiva grossa e leitosa. Você podia fazer uma pequena incisão para extrair o látex ou então — oficialmente proibido mas praticado em grande escala — cortar por completo a trepa­ deira, o que produzia mais borracha, mas, por outro lado, matava a plan­ ta. Quando as trepadeiras próximas das aldeias se esgotaram, os trabalha­ dores tiveram de penetrar cada vez mais no interior da mata, até que, em pouco tempo, quase todos eram obrigados a viajar pelo menos um ou dois dias para encontrar novas trepadeiras. À medida que as partes mais baixas da planta iam se esgotando, os trabalhadores iam subindo mais alto para alcançar a seiva. “Nós [...] passamos por um homem na estrada que tinha quebrado a espinha, por ter caído de uma árvore enquanto [...] extraía o látex”, escreveu um missionário. Além disso, havia as fortes chuvas tropi­ cais, que durante bòa parte do ano transformavam grandes trechos de sel­ va em brejos constantes. Não havia pagamentos em bugiganga e arame que bastasse para fa­ zer com que as pessoas permanecessem nesses charcos dias a fio, execu­ 171

tando um trabalho tão árduo — e fisicamente tio penoso. O coletor tinha de secar a goma xaroposa para que ela coagulasse e, muitas vezes, a úni­ ca forma de fazê-lo cra espalhando a substância nos braços, coxas e peito. “Nas primeiras vezes, não é sem uma certa dor que o homem tira a borra­ cha das partes peludas do corpo”, Louis Chaltin, um oficial da Force Pu­ blique, anotou em seu diário, em 1892. “Os nativos não gostam de fazer borracha. Têm de ser forçados a isso.’* '1 E como fazer para forçá-los? Aos poucos, os boatos e as notícias fo­ ram chegando à Europa; “Um exemplo do que é feito me foi contado no [rio] Ubangi”, relatou o vice-cônsul britânico, em 1899; “O método desse oficial [...] era chegar de canoa numa aldeia, cujos habitantes em geral fu­ giam na hora; os soldados eram então desembarcados c começavam a pi­ lhagem, tirando todas as galinhas, milho etc. das casas; depois, atacavam os nativos até conseguirem prender as mulheres; essas mulheres eram mantidas como reféns até que o chefe do distrito trouxesse o número exi­ gido de quilos de borracha. Levada a borracha, as mulheres eram então vendidas de volta a seus donos por um par de cabras cada, e assim ele con­ tinuava, de aldeia em aldeia, até que a quantidade requisitada de borracha tivesse «ido coletada.” As vezes os reféns eram mulheres, às vezes crianças, às vezes eram os anciãos ou os chefes. Todos os postos da região da borracha, comerciais ou do Estado, tinham um barracão preparado para os reféns. Se você fosse homem, resistir às ordens de recolher borracha podia significar a morte de sua mulher. Ela talvez morresse de todo modo, urna vez que a comida nos barracões era escassa e as condições deploráveis. “As mulheres capturadas durante o último reide em Engwettra estão causando um problema sério”, escreveu o oficial Georges Bricusse em seu diário, a 22 de novembro de 1895. ‘Todos os soldados querem uma. As sentinelas que deveriam vigiálas tiram as correntes das mais bonitas, que são então violentadas.” Leopoldo, é claro, jamais admitiu que fizesse parte da política oficial capturar reféns; se alguém levantasse tal acusação, as autoridades em Bru­ xelas, cheias de indignação, negariam tudo. Mas em campo, longe de olhares xeretas, o fingimento era deixado de lado. Até mesmo o livro semi-oficial de instruções, o revelador M anuel du Voyageur et du Résident au Congo, distribuído pela administração a todos os agentes e postos es­ tatais, énsinava o que fazer no caso. Os cinco volumes do manual cobriam quase tudo que dizia respeito ao Congo, desde como obter a obediência dos criados até o modo de disparar corretamente as salvas de tiros da arti­ lharia. Fazer reféns era apenas mais uma tarefa rotineira:

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Â

Na África, fazer prisioneiros é [...] muito fácil, porque mesmo que os nati­ vos se escondam, nunca se afastam muito de suas aldeias e têm de voltar para pegar comida nas hortas que cercam a vila. Vigiando essas hortas com cuidado, com certeza será possível capturá-los em pouco tempo. [...] Quan­ do achar que já tem cativos suficientes, deve escolher entre eles uma pessoa velha, preferivelmente uma mulher velha. Dê-lhe um presente e mande-a de volta a seu chefe, para começar as negociações. O chefe, querendo ver seu povo livre, em geral decide enviar representantes. Poucas vezes a história nos oferece uma chance como essa de ver ins­ truções detalhadas de como executar um regime de terror. As sugestões para a tomada de reféns encontra-se no volume do manual chamado Ques­ tões práticas, compilado por uma comissão editorial de cerca de trinta pessoas. Uma delas — ele trabalhou no livro durante um período de dois anos, depois de sua fase como chefe coletor de cabeças da estação de Stan­ ley Falis — era Léon Rom.

A prática de fazer reféns separou o Congo de quase todos os outros regimes que empregaram trabalho forçado. Mas, sob outros aspectos, são todos muito semelhantes. Assim como aconteceria no gulag soviético al­ gumas décadas depois, que também empregou trabalho escravo para reco­ lher matéria-prima, o Congo operava com um sistema de cotas. Na Sibé­ ria, as cotas eram de metros cúbicos de madeira cortada ou de toneladas de ouro retirado pelos prisioneiros, a cada dia; no Congo, a cota era ex­ pressa em quilos de borracha. No rico território da companhia concessio­ nária ABIR, logo abaixo da grande curva em semicírculo do rio Congo, a cota normal de cada aldeia era de três a quatro quilos de borracha seca por homem adulto a cada quinze dias — o que significava, na prática, traba­ lho em tempo integral para esses homens. Em outras localidades, as cotas eram ainda m ais,altas e podiam ser aumentadas com o passar do tempo. Um funcionário na bacia do rio Mongala, no extremo norte, controlada por outra concessionária, a Société Anversoise du Commerce au Congo, calculava que, para preencher suas cotas, os coletores de borracha tinham de passar 24 dias por mês na floresta, onde construíam jaulas toscas para se protegerem — nem sempre com sucesso — dos leopardos. Para alcançar as partes da trepadeira mais afastadas do chão, e deses­ perados para tirar até a última gota de goma, os homens às vezes derruba­ vam toda a planta, cortavam-na em pedaços e espremiam a seiva. Embora o Estado do Congo tivesse divulgado ordens severas proibindo essa práti­ ca, o Estado também usava o chicote contra os homens que não trouxes­ sem borracha suficiente. Venceu o chicote. Uma testemunha viu africanos 173

tendo dé arrancar raízès das plantas para poder levar sua cota de borracha de volta. O sistema todo era militarizado. Guarnições da Force Publique foram espalhadas por toda parte, muitas vezes trabalhando a serviço de compa­ nhias privadas. Além disso, toda companhia tinha sua própria milícia, cha­ mada eufemisticamente de “sentinela”. Em questões militares, como em quase tudo mais, as companhias operavam como extensões do Estado do Congo, e quando era preciso fazer reféns ou subjugar aldeias rebeldes, as sentinelas privadas e os soldados da Force Publique em geral saíam juntos em campo. Onde houvesse trepadeiras produtoras de borracha, a população era controlada de perto. Em geral, havia necessidade de se ter uma permissão oficial para poder visitar amigòs ou parentes em outra aldeia. Em algumas regiões* foi imposto o uso obrigatório de um disco de metal numerado, amarrado numa corda em volta do pescoço, para que os agentes das com­ panhias extratoras pudessem controlar melhor o preenchimento das cotas de borracha. Números colossais de africanos foram recrutados para esse exército de escravos: em 1906, só os livros da a b i r , responsável por ape­ nas uma pequena fração da produção de borracha no Congo, registravam 47 mil coletores de borracha. Ao longo dos rios, colunas de homens exaustos, levando cestos cheios de pelotas de borracha cinzenta na cabeça, caminhavam às vezes trinta qui­ lômetros, ou mais, para se reunirem perto das casas dos agentes europeus, que ficavam sentados em suas varandas, pesando os carregamentos. Num desses postos coletores, um missionário contou quatrocentos homens com cestos na cabeça. Depois de entregue, a borracha era compactada em qua­ drados, mais ou menos do tamanho de uma pequena valise, e deixada ao sol para secar. Em seguida era enviada rio abaixo, numa barcaça ou chata puxa­ da por um barco a vapor, primeira fase da longa viagem até a Europa. O Estado e as empresas concessionárias em geral pagavam a borra­ cha com peças dè tecido, contas, algumas colheres de sal ou uma faca. Esta última não custava quase nada e era essencial para colher mais bor­ racha. Em pelo menos uma ocasião, um chefe que obrigou seu povo a re­ colher borracha foi pago com serés humanos. Uma disputa legal entre dois funcionários brancos, destacados para as vizinhanças de Stanley Falis, re­ gistra o seguinte diálogo, em 1901. A testemunha sendo interrogada era liam ba, chefe de uma aldeia chamada Malinda: Pergunta: O senhor Hottiaux [funcionário de uma companhia | lhe deu algum dia muihereà‘£ crianças vivas? Resposta: Sim. ele me deu seis mulheres e dois homens. Pergunta: Por quê? ,:i 174

Resposta: Em pagamento pela borracha que eu levei à estação, dizendome que eu podia comê-los, matá-los ou usá-los como escravos — como eu quisesse.

A mata tropical vizinha ao rio Kasai era rica em borracha e, de repen­ te, William Sheppard e outros presbiterianos americanos se viram em meio a um cataclismo. O Kasai foi também palco de alguns dos principais focos de resistência ao regime de Leopoldo. Homens armados, pertencen­ tes a um chefe aliado do regime, invadiram a região onde Sheppard atua­ va, pilhando e incendiando mais de uma dúzia de aldeias. Levas e mais le­ vas de refugiados desesperados buscaram refúgio no posto missionário de Sheppard. Em 1899, um tanto relutante e correndo um certo risco, Sheppard partiu a mando de seus superiores para o interior da mata, a fim de inves­ tigar a origem das lutas. Na selva, encontrou a terra manchada de sangue, aldeias destruídas e muitos cadáveres; o ar em volta cheirava a carne po­ dre. No dia em que chegou ao acampamento dos saqueadores, chamou-lhe a atenção um grande número de objetos sendo defumados. O chefe “nos levou até uma estrutura de paus, sob a qual queimava um fogo lento, e lá estavam elas, as mãos direitas, contei-as todas, 81”. O chefe disse a Shep­ pard: “Veja! Aqui está nossa prova. Eu sempre tenho que cortar a mão di­ reita das pessoas que matamos, para poder mostrar ao Estado quantas fo­ ram”. Com muito orgulho, mostrou a Sheppard alguns dos corpos de onde as mãos tinham saído. A fumaça era para preservar as mãos no calor e umidade, já que podia levar dias, ou semanas, até o chefe poder exibi-las ao oficial encarregado e receber os créditos por suas matanças. Sheppard estava diante de um dos aspectos mais escabrosos do siste­ ma de coleta de borracha imposto por Leopoldo. Assim como os reféns, as mãos decepadas faziam parte de uma política deliberada, como até mes­ mo altos funcionários admitiriam mais tarde. “Durante minha estada no Congo, fui primeiro comissário do distrito do Equador”, afirmou Charles Lemaire, depois de aposentado. “Assim que surgiu a questão da borracha, escrevi ao governo: ‘Para coletar borracha no distrito [...] é preciso cortar fora mãos, narizes e orelhas’.” Quando uma aldeia se recusava a coletar borracha, era costume os soldados do Estado ou de companhias privadas, ou às vezes seus aliados, matar todos os habitantes para que as aldeias vizinhas entendessem logo o recado. Só que alguns oficiais europeus começaram a ficar desconfiados e resolveram tomar precauções. Para cada cartucho entregue a um soldado, 175

passaram a exigir provas de que a bala fora usada para matar alguém, e não “desperdiçada” com caça ou, pior ainda, economizada para algum possível motim. E a prova mais comum era a mão direita de um cadáver. De vez em quando ela não vinha de um cadáver. “As vezes”, contou um oficial a um missionário, os soldados “usavam o cartucho caçando um animal; depois cortavam a mão de um homem vivo.” Em algumas unidades militares, ha­ via inclusive o “guardador de mãos”; seu trabalho era a defumação. Sheppard não foi o primeiro estrangeiro a ver as mãos decepadas do Congo, nem seria o último. Mas os artigos que escreveu para revistas mis­ sionárias, a respeito de suas descobertas medonhas, foram muito reprodu­ zidos e citados pela Europa e pelos Estados Unidos inteiros e, em parte, foi graças a ele que as pessoas no estrangeiro começaram a associar o Congo com mãos decepadas. Cerca de seis anos depois da triste descoberta de Sheppard, ao atacar as dispendiosas obras públicas que Leopoldo construía com os lucros auferidos no Congo, o líder socialista Emile Vandervelde fa­ laria ao parlamento belga de “arcos monumentais que um dia ainda hão de ser chamados de Arcos das Mãos Decepadas”. A franqueza de William Sheppard acabaria, finalmente, por provocar a ira das autoridades e, um dia, Vandervelde, que era advogado, se veria defendendo Sheppard num tri­ bunal do Congo. Mas isso é colocar o carro na frente dos bois. Ao espalhar-se por toda a mata tropical, o terror da borracha imprimiu na memória das pessoas lembranças terríveis, que nunca mais se apagaram. Um padre católico que, meio século depois, registrou algumas histórias orais, cita um homem, Tswambe, falando a respeito de um funcionário es­ tatal especialmente odiado, chamado Léon Fiévez, que aterrorizou um dis­ trito ribeirinho a uns quinhentos quilômetros ao norte de Stanley Pool. Todos os negros viam esse homem como o Demônio do Equador. [...] De todos os corpos mortos, era preciso cortar fora as mãos. Ele queria ver pes­ soalmente o número de mãos que cada soldado tinha cortado e levado de volta dentro de cestos. {,...] Qualquer aldeia que se recusasse a fornecer bor­ racha era completamente varrida do mapa. Quando jovem, eu vi o soldado Molili [que servia no posto de Fiévez], na época tomando conta da aldeia de Boyeka, pegar uma grande rede, colocar dez nativos presos dentro, amarrar pedras bem grandes na rede e jogá-la no rio. [...] A borracha provocava es­ ses tormentos; é por isso que não queremos nem ouvir falar nesse nome. Os soldados obrigavam os jovens a matar ou violentar as próprias mães e irmãs. Um oficial da Force Publique que passou pelo posto de Fiévez, em 1894, cita o próprio Fiévez contando o que fazia quando as aldeias vizi­ nhas não conseguiam fornecer a seus soldados o peixe e a mandioca exi­ gidos: “Eu fazia guerra contra eles. Um exemplo bastava: cem cabeças 176

cortadas fora e a estação voltava a ser abastecida com fartura. Meu obje­ tivo final é humanitário. Eu mato cem pessoas [...] mas isso permite que outras quinhentas vivam”. Com regulamentos “humanitários” que incluíam decepar mãos e ca­ beças, sádicos do tipo de Fiévez fizeram a festa. O chefe da estação de M ’Bima usava o revólver para abrir buracos nos lóbulos das orelhas dos africanos. Raoul de Premorel, agente que trabalhava no rio Kasai, gostava de dar grandes doses de óleo de rícino a todo aquele que, no seu entender, estivesse se fingindo de doente para não prestar o serviço militar. Quando alguns homens, numa tentativa desesperada de preencher sua cota, entrega­ ram borracha misturada com terra ou pedras ao agente Albéric Detiège, ele os obrigou a comê-la. Dois carregadores que não usaram a latrina designa­ da foram obrigados a desfilar diante dos soldados, por ordem do comissá­ rio do distrito, Jean Verdussen, com os rostos cobertos de excremento. A medida que as notícias sobre os soldados brancos e seus cestos cheios de mãos decepadas espalharam-se pelo Congo, um novo mito foi ganhando crédito entre os africanos, mito que era um curioso contraponto à obsessão dos brancos com o canibalismo dos negros. As latas de carne salgada que havia na casa dos brancos, dizia-se, não continham carne de nenhum dos animais mostrados no rótulo; elas continham mãos decepadas.

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UMA SOCIEDADE SECRETA DE ASSASSINOS

Certa vez, durante um desfile militar em Berlim, desgostoso com a erosão da autoridade real, Leopoldo comentou com o cáiser Guilherme n da Alemanha: “Na verdade não nos resta mais nada, a nós reis, além do di­ nheiro!”. Logo mais, a borracha lhe daria quantidades inimagináveis de dinheiro, mas o Congo só não bastava aos anseios do rei. Fantasiando um império que englobasse os dois cursos lendários da África, o Congo e o Ni­ lo, pensou em ligá-los por uma grande ferrovia e, no início da última déca­ da do século xix, despachou novas expedições para explorar o Nordeste de seus territórios, na direção do vale do Nilo. Uma delas reivindicou as anti­ gas minas de cobre do Bahr el-Ghazal, tomando o cuidado especial de fazêlo em nome de Leopoldo, pessoalmente, ao mesmo tempo em que atribuía ao Estado do Congo a tarefa de fornecer a devida proteção militar. No final, os franceses acabariam barrando quaisquer outras investi­ das do rei na direção do Nilo, mas àquela altura ele já estava sonhando com novas colônias. “Eu gostaria de fazer de nossa pequena Bélgica, com seus 6 milhões de habitantes, a capital de um imenso impérioH declarou Leopoldo. “Holanda, Espanha e Portugal estão em decadência e suas co­ lônias mais cedo ou mais tarde serão postas no mercado.” O rei chegou in­ clusive a perguntar ao primeiro-ministro William Gladstone, da Grã-Bre­ tanha, sobre a possibiüdade de lhe arrendar Uganda. Leopoldo não hesitava um segundo em embelezar seus planos impe­ rialistas com o primeiro sentimento humanitário que surgisse no ar. Em 1896, propôs a um outro atônito primeiro-ministro britânico, lorde Salisbury, usar um exército sudanês, comandado por oficiais do Congo, “para invadir e ocupar a Armênia, e, dessa forma, pôr um fim aos massacres [dos armênios pelos turcos] que tanto comoviam a Europa”. (A rainha Vitória chegou a pensar que seu primo Leopoldo estivesse perdendo o juízo.) Quando houve uma crise em Creta, sugeriu que soldados congoleses aju­ dassem a restaurar a ordem. Depois que os Estados Unidos venceram a 178

guerra hispano-americana, aventou a hipótese de uma corporação arrendar parte dos territórios remanescentes da Espanha, tais como as ilhas Caná­ rias no Atlântico, ou as Carolinas, no Pacífico Sul. A corporação, sugeriu o rei, poderia ser registrada num Estado “neutro”, como por exemplo o Etat Indépendant du Congo. Mas nenhum desses sonhos desviou as atenções de Leopoldo da ad­ ministração de sua principal fonte de rendas. Ele mantinha a crescente lu­ cratividade do Congo cercada do maior segredo, para o caso de alguém re­ querer o pagamento dos polpudos empréstimos que tomara do governo belga. Até onde Leopoldo conseguiu, o Estado do Congo não publicou seu orçamento. Quando finalmente o fez, os números divulgados estavam mui­ to abaixo dos lucros reais. Uma das vantagens de se controlar o próprio país é que você pode emitir títulos. Isso acabaria por se tornar uma fonte de lucros quase tão far­ ta para Leopoldo quanto a borracha. Tudo somado, o rei emitiu títulos no valor de mais de 100 milhões de francos, mais ou menos meio bilhão de dólares em dinheiro atual. Alguns títulos ele vendeu; alguns, deu a favori­ tos seus; outros manteve em sua carteira pessoal; e outros ainda usou para pagar as obras públicas que mandou executar na Bélgica. Uma vez que os títulos tinham prazos de até 99 anos, Leopoldo sabia que pagar o princi­ pal não seria problema seu. Supostamente, o dinheiro dos títulos destinava-se ao desenvolvimento do Congo, mas muito pouco foi gasto ali. Leopoldo preferia gastar esse dinheiro, assim como os dividendos da borracha, na Europa. Mas tinha um gosto bem pouco criativo, para um ho­ mem tão esperto e ambicioso, e usou sua imensa nova fortuna de formas que o levaram a figurar não nos livros de história, e sim nos guias turísti­ cos. Uma enfiada de monumentos, novas alas palacianas, museus e pavi­ lhões começaram a ser construídos por toda a Bélgica. Em Ostende, seu balneário marítimo preferido, Leopoldo despejou milhões de francos num passeio público, em vários parques e num sofisticado anexo torreado para o hipódromo que freqüentava (e que recebeu 85 mil gerânios para enfeitálo, no dia da inauguração). A borracha também financiou um campo de golfe em Klemskerke, um chalé real em Raversijde e intermináveis refor­ mas e ampliações no castelo de Laeken. Muitas dessas riquezas foram o Presente Real que Leopoldo ofereceu com grande alarde ao país, embora continuasse morando nos castelos e palácios, como sempre fizera. Seu verdadeiro objetivo ao conceder o Presente Real era fazer com que a na­ ção pagasse pela manutenção dessas propriedades e, ao mesmo tempo, mantê-las longe das mãos de suas três filhas, as legítimas herdeiras de sua fortuna pessoal, segundo as leis belgas. 179

Em 1895, Leopoldo completou sessenta anos, e, à medida que foi en­ velhecendo, tornou-se um hipocondríaco. Todo e qualquer auxiliar que tossisse em sua presença arriscava-se a ser banido por vários dias. Sempre temeroso de pegar um resfriado, usava um saco impermeável em volta da barba quando saía com tempo chuvoso ou quando nadava no mar. Exigia que as toalhas de mesa do palácio fossem fervidas diariamente, para ma­ tar os germes. Quando não estava viajando, morava a maior parte do tempo em Laeken. Levantava-se cedo, tomava um chuveiro frio, aparava sua enorme barba, recebia uma massagem, lia a correspondência da manhã e fazia um lauto desjejum — meia dúzia de ovos pochés, uma pilha de torradas e um vidro inteiro de geléia. Depois passava o restante da manhã andando por seus amados jardins e estufas, muitas vezes lendo a correspondência e di­ tando respostas: seus secretários tiveram de aprender a escrever e andar ao mesmo tempo. O almoço durava exatamente meia hora; o rei lia jornais e cartas enquanto almoçava e às vezes rabiscava instruções nas margens das cartas numa letra quase ilegível, que obrigava seus funcionários a pas­ sar horas ansiosas debruçados em cima delas, tentando decifrar os garran­ chos. Os outros integrantes da família que participavam do almoço deviam permanecer em silêncio. A tarde, era conduzido ao Palácio Real, no centro de Bruxelas, para reuniões com funcionários e visitantes, em seguida voltava a Laeken pa­ ra o jantar. O ponto alto de seu dia era a chegada do Times ofLondon. Toda tarde, um exemplar cuidadosamente embrulhado do jornal do dia era jo ­ gado do expresso Ostende—Basiléia na plataforma da estação ferroviária particular de Laeken. Um criado passava o jornal a ferro — de novo, os germes — e o rei o lia na cama, à noite. (Quando o Times mais tarde jun­ tou-se ao coro de críticos de seu regime no Congo, Leopoldo anunciou, ira­ do, que suspenderia a assinatura. Mas, em segredo, mandava seu criado pessoal até a estação ferroviária de Bruxelas, para comprar um exemplar.) Talvez Leopoldo gostasse do Times porque não era um jornal escrito para um pequeno país, e sim para uma nação poderosa. Seja como for, o rei não parava de lançar olhares cobiçosos para todos os cantos do mun­ do. Em 1897, começou a investir parte dos lucros auferidos no Congo numa ferrovia na China e, por fim, acabou ganhando muito dinheiro com ela. Leopoldo via a China como vira o “magnífico bolo africano”, um fes­ tim a ser devorado, e, como sempre, estava mais do que disposto a se con­ vidar para o banquete. Sobre a rota que esperava obter para sua linha fér­ rea, disse certa vez: “Esta é a espinha dorsal da China; se eles me derem, pego também algumas costeletas”. Tentou inclusive uma troca — operários 180

chineses para o Congo; soldados congoleses para a China — , o que lhe permitiria firmar um pé militar na porta do Extremo Oriente, a exemplo de outras potências ocidentais que também manobravam na região. Leopoldo comprou vários pequenos lotes de terras na China, em nome do État Indépendant du Congo. Quando enviou uma delegação do Estado do Congo — todos eles belgas, é claro — para as negociações, o vice-rei chinês, Li Hung-Chang, fingindo-se surpreso, comentou: “Estou certo em pensar que os africanos são negros?”.

Enquanto isso, no Congo, o boom da borracha deu um caráter de maior urgência à principal obra do território: a ferrovia de bitola estreita ligando Matadi a Stanley Pool, em tomo das corredeiras. Esse projeto che­ gou a usar até 60 mil operários, numa certa fase. Embora a linha tivesse apenas 388 quilômetros, e pouco mais da metade da largura dos trilhos de bitola padrão usados nos Estados Unidos, o clima, as doenças e o próprio terreno fizeram desse projeto um dos mais difíceis de todos os tempos. Fo­ ram precisos três anos só para construir os primeiros 22 quilômetros. Um dos topógrafos que fizeram o mapeamento inicial desse trecho ameaçador de terreno descreveu-o como “um aglomerado de pedras imensas que, em certos lugares, parecem ter sido atiradas umas sobre as outras pelas mãos de gigantes”. Ao todo, o trajeto exigiu 99 pontes de metal, que, juntas, da­ vam mais de dezenove quilômetros de extensão. Operários vindos de Hong Kong, de Macau, dos territórios britânicos e franceses da África ocidental e também das possessões britânicas nas Antilhas participaram da construção da ferrovia. Mas Leopoldo continua­ va fascinado pela idéia de usar trabalhadores chineses no Congo. “Quanto custaria”, escreveu a um assistente, “estabelecer cinco grandes aldeias chi­ nesas no Congo? Uma no Norte, outra no Nordeste, uma no Leste, outra no Sul e uma entre Matadi e Léopoldville? Dois mil chineses para marcar nossas fronteiras, quanto custaria?” A idéia das cinco aldeias evaporou-se, mas o sonho de Leopoldo custou a vida de muitos dos 540 chineses leva­ dos para trabalhar na ferrovia, em 1892. Trezentos morreram trabalhando ou fugiram para o mato. A maioria dos que fugiram nunca mais foi vista, embora vários acabassem sendo encontrados mais tarde, mais de oitocen­ tos quilômetros interior adentro. Estavam andando na direção do sol nas­ cente, tentando chegar à costa oriental, de onde voltariam para casa. Várias centenas de operários da ilha de Barbados, nas Antilhas, evi­ dentemente pensaram estar sendo recrutados para ir a um outro lugar; quando o navio deles atracou em Boma, em setembro de 1892, e percebe181

ram que estavam no Congo, rebelaram-se enfurecidos. Os soldados dispa­ raram, matando dois e ferindo muitos outros; os sobreviventes foram en­ viados para a ponta dos trilhos, em Matadi, e começaram a trabalhar no mesmo dia. A ferrovia foi um modesto sucesso de engenharia e um grande desas­ tre humano. Os homens morriam de acidentes, disenteria, varíola, beribé­ ri e malária, doenças exacerbadas pela má alimentação e pelas chibatadas incessantes da força policial da ferrovia, composta por uns duzentos ho­ mens. As locomotivas descarrilavam; vagões de carga cheios de dinamite explodiam, despedaçando operários brancos e negros. As vezes não havia abrigos onde dormir e trabalhadores recalcitrantes eram levados ao traba­ lho acorrentados. Os capatazes e engenheiros europeus podiam cancelar os contratos e voltar para casa, e muitos fizeram exatamente isso. Os tra­ balhadores negros e asiáticos, não. Quando soavam os clarins, de manhã cedo, multidões de operários irados depunham aos pés de seus superviso­ res europeus os corpos dos companheiros que haviam morrido durante a noite. Numa metáfora que encontra eco em outra região da África, diz a lenda local que cada dormente custou a vida de um africano e cada poste telegráfico a de um europeu. Mesmo nos números oficiais, sempre mais róseos, houve 132 mortes entre os brancos e 1800 entre os não-brancos. Entretanto há quem calcule ter havido 1800 mortos por ano, entre os que não eram brancos, nos dois primeiros anos de construção, os piores. Os ce­ mitérios pontilhavam a linha férrea. Muitas e muitas vezes, os operários tentaram escapar; trezentos homens de Serra Leoa, brandindo martelos, enxadas e picaretas, invadiram o porto de Matadi e tentaram fazer com que um navio ancorado os levasse de volta. Guardas munidos de porretes — recrutados em Zanzibar — forçaram o recuo. Outros fizeram greve ou fu­ giram para o território vizinho, pertencente a Portugal. Em 1898, oito anos após o início das obras, a primeira locomotiva a vapor partiu toda embandeirada de Matadi, puxando dois vagões, com des­ tino a Stanley Podl. Uma enorme tenda decorada com muitas flores aguar­ dava sua chegada; representantes do Estado do Congo, militares, funcioná­ rios graduados da ferrovia e um bispo banquetearam-se e brindaram com champanhe à saúde do rei. Num gesto cerimonial, os v i p s presentes para­ fusaram o último trilho, houve uma salva de 21 tiros de canhão e todos os barcos a vapor ancorados em Stanley Pool apitaram. Também foi erigido um monumento na antiga rota das caravanas que a ferrovia vinha substi­ tuir: três figuras em tamanho natural, feitas de metal, de carregadores — um levando um grande caixote na cabeça, dois caídos exaustos a seu lado. 182

A inscrição dizia: a f e r r o v i a l i b e r t o u - o s d o f a r d o . Mas não dizia nada sobre quem os obrigara a servir como carregadores. Embora cheia de curvas fechadíssimas e trechos tão íngremes que só a viagem de ida levava dois dias, a ferrovia contribuiu grandemente para aumentar a riqueza e o poderio do Estado. Os mais de 5 milhões de qui­ los de borracha anuais que o Congo produzia, lá pela virada do século, po­ diam agora chegar ao mar direto das docas de Stanley Pool, sem a neces­ sidade de viajar por terra, durante três semanas, em cima da cabeça dos negros. No sentido contrário, os vagões de carga que iam para Stanley Pool transportavam os barcos a vapor desmontados em peças bem maio­ res do que as que os carregadores conseguiam levar. Léopoldville transformou-se rapidamente no porto fluvial mais movimentado da África central, com capacidade para vapores de até quinhentas toneladas. Um deles, o Ville de Paris, de sessenta toneladas, começara a vida como barco de excur­ são, subindo e descendo o trecho parisiense do Sena.

À exceção daqueles que trabalhavam para o Estado ou em projetos como a ferrovia, Leopoldo não gostava da presença de estrangeiros no Congo. Mas não havia modo de se livrar das várias centenas de missioná­ rios protestantes que, como William Sheppard e seus colegas, trabalhavam ali. Quase todos eram provenientes de Inglaterra, Estados Unidos ou Sué­ cia, países onde Leopoldo esperava angariar favores. Os missionários ha­ viam chegado ao Congo ansiosos para catequizar, combater a poligamia e transmitir aos africanos um sentido vitoriano de pecado.* Mas, em pouco tempo, o terror da borracha reduziria drasticamente os corpos e almas que os missionários tinham intenção de vestir ou salvar. Aterrorizados, os mo­ radores das aldeias ficavam sumidos semanas a fio no meio da mata toda vez que viam a fymaça de um barco a vapor no horizonte. Um missioná­ rio britânico ouviu inúmeras vezes a mesma pergunta dos africanos: “Esse Salvador de quem o senhor tanto fala tem algum poder para nos salvar desse problema da borracha?”. De repente, com certeza sem intenção de desempenhar tal papel, os missionários viram-se na posição de observado­ res num campo de batalha, e Sheppard não foi de modo algum o único a testemunhar. Em 1894, um missionário sueco registrou uma canção congolesa desesperada: (*) U m alto funcionário público, em visita à cidade de U poto, no alto C ongo, re­ gistrou em seu diário, m uito espantado, que um m issionário britânico queria que ele bai­ xasse “u m decreto obrigando os nativos a usar roupas (!?)” .

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E stam os can sados d e v iv e r so b essa tirania. N ão aguentam os m ais v e r no ssa s m ulheres e filh o s rou bados E m a ltra ta d o s p e lo s selvagen s brancos. N ó s va m o s guerrear. [...] S abem os q u e vam os morrer, m as querem os morrer. Q u erem os morrer.

Graças aos missionários, a partir de meados da década de 1890 co­ meçaram a surgir protestos isolados, como os artigos de Sheppard sobre o decepamento de mãos e o massacre que estava ocorrendo. Mas de início quase ninguém prestou atenção às críticas porque, no terreno das relações públicas, os detratores do rei não eram tão habilidosos quanto Leopoldo, que empregava seus formidáveis encantos para neutralizar qualquer acu­ sação. No começo, o rei encorajava os funcionários das sociedades missio­ nárias a ir falar diretamente com ele, conclamando pessoalmente um cléri­ go francês a fazê-lo, “em vez de recorrer à imprensa, que é sempre desa­ gradável (toujours désagréable)”. Depois, com grande destreza, usou tanto promessas quanto ameaças. Ao mesmo tempo em que cultivava a amiza­ de dos líderes missionários, deixava bem claro que o Estado do Congo ti­ nha meios de impor taxas ou negar a permissão para a construção de no­ vas missões. A missão Presbiteriana Sulista, onde Sheppard trabalhava, teve infinitos problemas para conseguir novas terras e construir outras missões. O sueco E. V. Sjõblom foi talvez o crítico mais veemente de Leopol­ do no final da década; o missionário batista falou com todos aqueles que estavam dispostos a escutar e em 1896 publicou na imprensa sueca um ataque fulminante ao terror instituído no Congo, artigo reproduzido por jornais de outros países* Num encontro público realizado em Londres, no ano seguinte, Sjõblom contou como os soldados da Force Publique eram recompensados segundo o número de mãos que recolhiam. “[Um] agente me contou ter visto ele próprio um oficial em um dos entrepostos pagan­ do uma quantidade determinada de barrinhas de latão (a moeda local), se­ gundo o número de mãos apresentadas pelos soldados. Um del§s me disse [...] ‘O comissário nos prometeu que se trouxermos muitas mãos ele re­ duz nosso serviço militar. Eu já trouxe muitas mãos e espero que meu tem­ po de serviço acabe logo’.” Por suas declarações, Sjõblom foi ameaçado quando ainda se achava no Congo; rapidamente, os funcionários de Leo­ poldo contra-atacaram através da imprensa belga e britânica. Outro adversário bem informado do rei belga foi H. R. Fox Boume, secretário da Sociedade de Proteçãcf aos Aborígines, um grupo que ama­ 184

durecera um bocado desde a eleição de Leopoldo como seu presidente ho­ norário, uma década antes. O próprio rei, segundo consta, fez uma visita aos escritórios do Umes, em Londres, para tentar persuadir o jornal a não publicar os artigos de Fox Boume. Publicamente, entretanto, Leopoldo pegou o caminho mais fácil, declarando-se profundamente chocado com as notícias de maus-tratos em seus domínios. Conseguiu sobreviver quase ileso à maioria das acusações, já que as atrocidades eram cometidas contra africanos. Mas em 1895 en­ frentou sua primeira dor de cabeça de fato na Europa quando um funcio­ nário especialmente brutal, nas palavras de um jornalista britânico muito chocado, “ousou matar um inglês”. A vítima era na verdade irlandesa: Charles Stokes, uma figura pito­ resca, comerciante de marfim, que, como os ingleses gostam de dizer, ti­ nha “virado nativo”, casando-se com uma mulher africana. O comércio de Stokes competia com o lucrativo monopólio que Leopoldo estava tentan­ do estabelecer no Leste do Congo. Além disso, era também acusado de vender armas para os afro-árabes. Uma expedição da Force Publique saiu à procura de Stokes, nas proximidades da fronteira oriental do Estado, en­ controu-o e enforcou-o ali mesmo. A imprensa londrina rugiu, indignada. Houve também uma onda de protestos na Alemanha, já que a base de Sto­ kes era na África Oriental Alemã, e o Estado do Congo, supostamente, es­ tava aberto aos mercadores alemães. Numa tentativa vã de sossegar os âni­ mos, o governo do Congo admitiu seu erro e pagou uma grande indenização aos governos britânico e alemão. Mas o assunto não estava encerrado. Um jornal alemão declarou que se o Congo tinha executado com tamanha ar­ rogância um homem branco, imagine o que não devia fazer com os nati­ vos. A imprensa européia passou a prestar mais atenção às notícias sobre atrocidades no Congo. Leopoldo tinha que agir. Em 1896, nomeou uma Comissão para a Proteção dos Nativos, composta por seis eminentes missionários, sendo que três eram católicos belgas e três protestantes estrangeiros. A comissão foi saudada como um passo importante em toda a Europa, sobretudo na Inglaterra, onde a preocupação de Leopoldo com as críticas era maior. “É mérito inteiramente do rei Leopoldo ter enfrentado de frente os fatos”, dis­ se o Manchester Guardian. Poucas pessoas repararam que nenhum dos integrantes da comissão trabalhava em qualquer das zonas da borracha, de onde vinham os relatos de atrocidades; que estayam espalhados por um território de mais de 1500 quilômetros; que o rei não lhes fornecera nem meios nem dinheiro para que pudessem viajar e se reunir; que um dos integrantes britânicos já tinha 185

aconselhado seus colegas missionários a não publicar qualquer notícia de atrocidades; que um outro membro trabalhara como topógrafo de Leopol­ do, estabelecendo as fronteiras com Angola; e que a comissão não tinha quaisquer poderes, exceto o de “informar” as autoridades do Estado do Congo a respeito de abusos. A comissão reuniu-se apenas duas vezes e, mesmo assim, devido às distâncias e despesas, apenas três dos integrantes conseguiram compare­ cer. Mas para Leopoldo a medida fora um belo golpe de relações públicas e ele cimentou seu triunfo com visitas à Inglaterra, Alemanha e Suécia no verão de 1897. Nos anos seguintes, os britânicos estariam distraídos com a Guerra dos Bôeres e as críticas a Leopoldo foram sumindo das páginas dos jornais europeus. Os críticos do rei continuaram atacando, esporadi­ camente, mas ninguém parecia se importar. Eles perderam a esperança de conseguir atrair as atenções outra vez. Caso houvesse algum instituto de pesquisa de opinião, na época, te­ ria constatado que, nos últimos anos do século, Leopoldo achava-se no auge de sua popularidade, tanto no exterior quanto na Bélgica, onde o chauvinismo colonialista começou a surgir em versos: S u r les p ìa g e s oú les entrarne L a v o ix d ’um sa g e Souverain, N o s s o ld a ts v o n t V âm e sereinè, A ffron tan t um c lir m t d ’airain, D e 1’A frica in b ris e r la chatne En d o m p ta n t VA ra b e inhum ain.*

No entanto, a voz do soberano mais empurrava do que chamava seus soldados; embora o Congo tenha sido a paixão dominante de sua vida, Leo­ poldo nunca pôs os pés aü. E por que haveria de pôr? O Congo, na imaginação do rei, não era um território de carregadores famintos, mulheres violentadas, de escravos da borracha, de mãos decepadas. O Congo era um império de sonhos, com árvores gigantescas, animais exóticos e habitantes agradecidos por terem um sábio governo. Em vez de ir até lá, Leopoldo trouxe para si esse Congo — o fruto da produção teatral de suas fantasias. Mogno vermelho vindo das florestas revestia as paredes do quarto de dormir de seu vagão ferroviá­ rio particular, animais das savanas enfeitavam os zoológicos belgas, e às inúmeras estufas monumentais do castelo de Laeken o rei acrescentou (*) N as p raias p ara o n d e os c h am a/ A v o z d e u m sáb io S oberano,/ N ossos soldados, de alm a se ren a ,/ E n fren tam u m c ü m a in clem en te/ P ara ro m p er as cad eias dos africa nos/ E su b ju g a r o árab e d esu m an o . (N . T.)

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uma outra, a Estufa do Congo (até hoje cheia de palmeiras), encimada por quatro cúpulas de vidro e um domo octogonal, ostentando a estrela que era o emblema de seu Estado particular. Do cenário sereno e pitoresco de suas fantasias, Leopoldo importou até mesmo algumas pessoas. Em 1897, durante uma feira mundial realiza­ da em Bruxelas, o estande mais falado foi o de Tervuren, nos arredores da cidade. Mais de 1 milhão de visitantes foram ver a celebração do Congo. Os itens em exibição variavam muito. Havia desde aquele grande instru­ mento civilizador, tão elogiado por Stanley (que visitou duas vezes a fei­ ra), a metralhadora Maxim, até um conjunto de tapeçarias de linho, mostran­ do o Barbarismo e a Civilização, o Fetichismo e o Cristianismo, Poligamia e Família, Escravidão e Liberdade. Mas não havia nada que superasse o grande sucesso da mostra, um quadro vivo: 267 negros, homens, mulhe­ res e crianças, importados do Congo.* Debaixo de muita festa, os africanos foram levados de trem até a Gare du Nord de Bruxelas, atravessaram a pé o centro da cidade e toma­ ram o bonde até Tervuren. Ali, no meio de um parque, foram instalados em três aldeias especialmente construídas para recebê-los: uma aldeia ri­ beirinha, uma aldeia de floresta e uma aldeia “civilizada”. Um casal de pigmeus completava o espetáculo. Os africanos “incivilizados” das duas primeiras aldeias usavam ferramentas, tambores e utensílios de cozinha trazidos da África. Eles dançavam e remavam suas canoas para baixo e para cima de um pequeno lago. Durante o dia, ficavam em exibição em “autênticas” cabanas de bambu, cobertas de palha. Os homens europeus, que tinham esperanças de ver as lendárias mulheres de seios à mostra da África, saíram decepcionados porque todas elas foram obrigadas a usar uma túnica de algodão, durante a feira. As roupas, como comentou uma revista belga, eram afinal de contas “o primeiro sinal de civilização”. O próprio Leopoldo visitou os congoleses, seu sonho feito carne, e (*) E les n ão fo ra m os ú n ico s nativos e x ib id o s e m feiras m undiais e outras localidades, n a v irad a d o século. T alvez o c a so m ais m ed o n h o se ja o d e O ta B enga, u m pig m eu do C o n ­ go, ex ib id o n a ja u la dos m acaco s do zo o ló g ico d o B ro n x , em N ova York, e m setem bro d e 1906. E le d iv id ia a ja u la co m u m o rangotango. O s visitan tes ficavam fascin ad o s diante de seus d en tes lim ados p ara, su g eriam os jo rn a is, dev o rar carn e hum ana. A fim de aum entar essa im p ressão , os tratad o res d o zo o ló g ico d eix av am alg u n s ossos espalh ad o s e m volta do h o m em . U m p o em a p u b licad o n o New York Times d eclarav a qu e O ta B e n g a tin h a sid o le­ v ad o “De sua terra de trevas/ Para o país dos libertados,/No interesse da ciência/e de toda

a humanidade”. O p ro m o to r de ssa m o stra j á fo ra m issio n ário p resb iterian o e aban d o n ara a carreira em favor d e em p reen d im en to s m ais lucrativos. U m a d eleg ação d e m inistros negros conseguiu resg atar O ta B en g a d o zooló g ico . E le p erm an eceu n o s E stad os U nidos e com eteu suicídio d ez anos depois.

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foi apresentado a um dos chefes. Informado de que alguns africanos esta­ vam sofrendo de indigestão, por causa das guloseimas que o público lhes dava, ordenou a colocação de placas equivalentes ao “não dê comida aos animais? dos zoológicos. O aviso dizia: os p r e t o s s ã o a l i m e n t a d o s p e l a c o m i s s ã o o r g a n i z a d o r a . Eles eram alimentados — e dormiam — nos es­ tábulos reais. A imprensa local incendiava a imaginação de seus leitores, perguntan­ do se os africanos “incivilizados” não seriam perigosos. Um repórter apro­ ximou-se de um grupo. “No meio, sentado num tronco, estava o chefe de­ les, imóvel e sacrossanto. Primeiro, ouviu-se a voz de um só cantor; depois, um coro repetiu o refrão, acompanhado de palmas, do martelar de paus em objetos de metal e do lento oscilar dos corpos acocorados. E sobre o que cantavam o solista e o coro? Sobre os feitos magníficos de Hubert Lothaire [capitão da Force Publique], o grande guerreiro.” Estava tudo em paz. Os africanos da aldeia “civilizada” incluíam noventa soldados da Force Publique, sendo que alguns deles formavam uma banda militar. Os soldados marchavam, a banda tocava e, perto do fim da exposição, foram cónvidados a participar de um banquete. Um sargento negro ergueu-se e propôs um brinde ao rei Leopoldo ii. Quando os africanos zarparam de volta pára a África, um jornal comentou, muito emocionado: “A alma dos belgas os segue e, como o escudo de Júpiter, os protege. Que sempre pos­ samos mostrar aô mundo exemplos assim de humanidade!”.

O navio que levou os congolesês de volta com toda certeza regressou à Bélgica carregado de borracha, porque as riquezas do Congo estavam mais do que nunca fluindo èm direção à Europa em bases regulares. Perio­ dicamente, um belo e novo vapor, equipado com luz elétrica e refrigera­ dores, chegava à Antuérpia carregado de borracha, marfim e outros produ­ tos. As embarcações pertenciam a uma subsidiária da Elder Dempster, uma linha marítima com sede em Liverpool, cujos barcos havia muitp co­ merciavam na costa ocidental da África. A firma detinha o monopólio do transporte de toda a carga que transitava pelo Congo. A qualquer um inte­ ressado naquele território, poucos empregós na Europa forneceriam uma chance melhor de observação do que uma colocação na Elder Dempster. Seria o equivalente a alguém que, em 1942 ou 1943, começando a se per­ guntar o que estaria acontecendo com os judeus, tivesse assumido um car­ go no quartel-general do sistema ferroviário nazista. A Elder Dempster precisava de alguém que fosse à Bélgica com freqüência, para supervisionar a chegada e a partida dos navios que faziam a 188

rota do Congo. A companhia deu essa tarefa a um jovem inteligente e tra­ balhador, chamado Edmund Dene Morei. Morei, então com vinte e pou­ cos anos, era convenientemente bilíngüe. A mãe era inglesa; o pai fora um pequeno funcionário público francês que morrera ainda jovem, sem deixar uma aposentadoria para a viúva e o filho pequeno. Após uma infância à beira da miséria, tanto na Inglaterra quanto na França, Morei largou os es­ tudos aos quinze anos para trabalhar em Paris e poder assim sustentar a mãe doente. Alguns anos depois, arrumou um emprego de escriturário em Liverpool, com a Elder Dempster. Incapaz, inicialmente, de sustentar a mãe e a si mesmo com seu ma­ gro salário de escriturário, o jovem Morei começou a dar aulas de francês por dois xelins e seis pence a hora. Depois achou um bico mais satisfató­ rio: escrever como free lance para publicações voltadas ao comércio afri­ cano, como o Shipping Telegraph e o Liverpool Journal o f Commerce. Os artigos refletiam o ponto de vista do empresariado: celebravam os aumen­ tos na produção de algodão e na tonelagem dos navios e raras vezes ques­ tionavam os dogmas então vigentes. Alguns elogiavam o regime de Leo­ poldo: “O Congo tem um grande futuro pela frente”, escreveu Morei num deles, “e [_] aqueles vastos territórios que o rei Leopoldo 11 tão sabiamen­ te garantiu a seu país um dia mostrar-se-ão um campo magnífico para os empreendimentos [belgas]”. Foi com esse entusiasmo que, no final da década de 90, Morei come­ çou a atravessar freqüentemente o canal da Mancha para fazer uma ponte com os funcionários do Estado do Congo. Eis aqui como ele descreveu, mais tarde, as cenas que presenciava uma ou duas vezes por mês: O porto de Antuérpia; um vapor atracado; as badaladas musicais soando na torre da velha catedral; o som da Brabançonne — o hino nacional belga. No cais e nos conveses do vapor, uma multidão atarefada e variada. Fardas mi­ litares, o esvoaçar dos vestidos femininos. Oficiais da marinha mercante an­ dando de um lado a outro. Escotilhas abrindo. Fumaça subindo. Rodeados por grupos de parentes ou amigos do peito, passageiros com destino ao Con­ go. Homens cuja aptidão para residir e governar na África tropical seria du­ vidosa até para um noviço. Na maioria jovens e, na maioria, de pouco porte, pequenos, pálidos, refugos. Alguns sacudidos por soluços; outros atordoa­ dos, semi-intoxicados. Muitos usando chapéus tropicais e largos, de feltro, e fuzis pendurados no ombro, orgulhosos por possuírem pela primeira vez na vida tanto um quanto outro. De vez em quando, um indivíduo mais velho e bronzeado — alguém que obviamente já passou por tudo isso antes. Para o rosto destes, o melhor é nem olhar; marcados de brutalidade, os olhos cruéis e cobiçosos; fisionomias das quais desviamos a vista com um arrepio invo­ luntário de repulsa. 189

Como representante da Elder Dempster na Bélgica, Morei lidava não só com os negócios no cais mas também com os altos executivos de Leo­ poldo encarregados dos assuntos do Congo. Mais tarde, lembrou-se de um episódio no escritório do mais graduado deles que despertou suas suspeitas. Uma sala cujas janelas dão para os fundos do Palácio Real, em Bruxelas. Uma sala sombria, de tapetes grossos, cortinas pesadas: uma sala de sombras opressoras. No meio há um homem, sentado a uma escrivaninha. Um ho­ mem macilento, de ombros estreitos e encurvados; testa achatada, nariz alto e adunco, orelhas grandes, bem recuadas: rosto comprido, olhos gelados. C m rosto em repouso indiferentemente desumano, exangue, pétreo, todo ele ossos protuberantes e cavidades lúgubres: o rosto do então “secretário de Es­ tado” do Estado Livre do Congo. [...] A fisionomia do secretário de Estado sofre uma transformação impressionante, desconcertante. E acometida por uma espécie de tique involuntário. [...] E o rosto de um outro homem que rios olha. Á máscara da oficialidade impecável desprega-se como uma luva empoada das mãos. Inclina-se para a frente e, num discurso rápido, secõ, em staccato, queixa-se de que informações confidenciais relativas à carga do úl­ timo vapor com destino ao Congo foram divulgadas à imprensa. [...] O pa­ rágrafo é mostrado. Parece inocente o bastante, tratando-se de uma lista dos principais artigos a bordo. Mas a lista dá o número de caixas de cartuchos: [para rifles], caixotes de rifles e espingardas de repetição. [...] Esse é o pro­ blema. Essa é a falha de sigilo profissional. À medida que a enormidade da indiscrição vai sendo denunciada, o orador levanta-se, as faces cadavéricas ruborizam-se, a voz treme [...] as mãos ossudas serram o ar. Ele não quer saber de ouvir desculpas]' não permite interrupções. Uma e outra vez repete as palavras Secret professionnel com uma ênfase apaixonada. Seus gestos são violentos. [...] O indivíduo mais jovem presente à reunião sai da sala perguntando-se para que serviria uma quantidade tão grande de material de guerra [...] por que sua saída deveria ser mantida em segredo e por que o go­ verno do Congo se preocupa tanto com a “indiscrição”. No cais do porto, em Antuérpia, Morei via o que os navios da Elder Dempster estavam transportando. Mas logo reparou que osjregistros que fazia com todo o esmero para seus empregadores não batia com as estatísticas comerciais que o État Indépendant du Congo divulgava ao público. Estudando as discrepâncias entre os dois conjuntos de números, começou a deslindar um elaborado novelo de fraudes. Três descobertas o deixaram chocado: A primeira foi que o carregamento de armas enviado ao Congo, cuja revelação tanto irritara o secretário de Estado, não fora uma exceção e sim a regra: “Os barcos da Elder Dempster empregados no comércio do Con­ go têm transportado regularmente,; nesses últimos anos, quantidades pro­ digiosas de cartuchos de bala e milhares de rifles e espingardas de repeti­ 190

ção destinados ao próprio Estado ou às várias companhias ‘comerciais?; belgas, j ..] qual o uso que será dado a essas armas?”. A segunda descoberta de Morei foi a de que alguém estava ficando com a nata dos lucros. Eram dezenas de milhões de dólares, em dinheiro de hoje. “A quantidade de borracha e marfim trazida de volta pelos navios da Elder Dempster [... j supera e muito as quantias indicadas nos balanços do governo do Congo. | .,.] Para o bolso de quem está indo o superávit não declarado?” A terceira descoberta estava ali mesmo nas docas, nua e crua, e foi confirmada pelos registros da Elder Dempster. Foi ali que Morei encon­ trou a mensagem mais agourenta de todas, enquanto observava os navios sendo carregados e descarregadosp Oitenta por cento das importações fei­ tas pelo Congo não tinham qualquer propósito comercial. No entanto, o Congo estava exportando quantidades cada vez maiores de borracha e marfim, pelas quais, a se julgar peias estatísticas de importação, os nati­ vos não estavam recebendo nada ou quase nada. De que forma, então, essa borracha e esse marfim estavam sendo adquiridos? Com certeza não era através de transações comerciais. Nada estava saindo da Bélgica para pa­ gar pelo que saía do Cong©,Í | | | Morei estava certo. Sabemos agora que o valor da borracha, marfim e outras riquezas que entravam na Europa anualmente nos navios da Elder Dempster correspondia a mais ou menos cinco vezes o valor das merca­ dorias enviadas ao Congo para os africanos. Morei sabia que os africanos do Congo não podiam estar recebendo dinheiro em troca da borracha e do marfim eles não tinham permissão de usá-lo — , muito menos merca­ dorias vindas de outras partes do mundo, uma vez que a Elder Dempster tinha o monopólio da carga. Portanto os africanos não estavam recebendo nada. Num período posterior da vida, E. D. Morei se tomaria um bom ami­ go de Sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes. Mas o jovem Morei fizera uma dedução de alcance muito mais amplo do que qualquer outra já feita por Sherlock. Do que observou no cais de Antuérpia, e pelo exame dos registros da empresa em Liverpool, deduziu a existência — num outro continente, a milhares de quilômetros de distância — de escravidão. “Esses números contavam uma história própria. [...] Somente o tra­ balho forçado, contínuo e do pior tipo possível poderia explicar lucros tão fantásticos. [...] trabalho forçado do qual o governo do Congo era o bene­ ficiário imediato; trabalho forçado conduzido pelos associados mais che­ gados do próprio rei. [...] Sentia-me zonzo e atônito com o significado de minhas descobertas. Topar com um assassinato já seria m im o bastante. 191

Eu topara com uma sociedade secreta de assassinos, tendo um rei como cabeça.” Com esse lampejo brilhante de reconhecimento por parte de um obs­ curo funcionário da marinha mercante, o rei Leopoldo n ganhou seu mais temível inimigo.

Parte II UM REI ENCURRALADO

12 DAVI E GOLIAS

Na época em que E. D. Morei fez suas descobertas, a maioria das pessoas na Europa e nos Estados Unidos sabia muito pouco sobre o apa­ rato empregado por Leopoldo para explorar a região. Os europeus que vol­ tavam do Congo não diziam grande coisa a respeito da carnificina da qual tinham participado. A exceção de George Washington Williams, quase dez anos antes, os jornalistas que iam ao Congo em geral não passavam de um arremedo de^Stanley, louvando o regime do rei. (Em 1898, por exemplo, 26 repórteres foram até lá para se embasbacar com a ferrovia.) Os missionários estrangeiros, que tinham assfttido a muitas atrocidades, não conheciam os meandros da mídia, nem tinham grande poder político. E os representantes de sociedades humanitárias, críticos de Leopoldo, eram prontamente des­ cartados como relíquias de antigas batalhas, como a luta abolicionista, e acusados de estar sempre contra alguma coisa em algum rincão obscuro do planeta. Morei mudaria tudo isso. Até então, nenhum dos adversários de Leo­ poldo tinha tido acesso aos fatos e números da administração do Congo ídescobertos por ele na qualidade de funcionário da Elder Dempster. E, até então, exceção feita a Williams, morto em idade prematura, nenhum outro demonstrara ter a qualidade que Morei logo mais exibiria: uma rara habi­ lidade para divulgar sua mensagem. Tendo feito suas descobertas dramáticas, Morei recusou-se a ficar ca­ lado. Em primeiro lugar, foi procurar seu patrão, Sir Alfred Jones, diretor da linha Elder Dempster, presidente da Câmara de Comércio de Liverpool — e cônsul honorário do Estado do Congo naquela cidade inglesa. “Ele não era das pessoas mais fáceis de se abordar. Não gostava que lhe apontassem fatos desagradáveis. [...] No dia seguinte, partiu para Bruxe­ las. Até seu retomo, manteve silêncio, no que me dizia respeito, e notei uma frieza acentuada em seus modos. [...] Disse-me que se avistara com o rei, que o rei lhe prometera reformas para breve, que os belgas estavam 195

fazendo coisas importantes e que precisavam de tempo para pôr a casa africana em ordem.” Os empregadores de Morei corriam sérios riscos. Se tomassem públi­ ca a informação e irritassem Leopoldo, a companhia poderia perder o lu­ crativo contrato de transporte de cargas. Mas lá estava aquele importuno funcionário júnior, em começo de carreira, lhes dizendo que tinha desco­ berto algo terrível a respeito do melhor cliente da empresa — e pior ain­ da, exigindo que algo fosse feito. Na Bélgica, Morei descobriu de repente “que a atmosfera mudara, e que, de centenas de maneiras sutis, estavam deixando bem claro que eu não era mais bem-vindo”. Passaram a ignorá-lo na sede da Elder Dempster em Liverpool; depois a companhia tentou silenciá-lo. Ofereceu-lhe um salário mais alto e uma promoção para um outro posto, num outro país. Quando isso não funcionou, Jones ofereceu-lhe duzentas libras anuais para ser con­ sultor da firma durante uma hora por dia, uma tentativa mal disfarçada de comprar seu silêncio. Morei recusou outra vez. Em 1901, deixou o emprego e dedicou-se em período integral a escrever com a “determinação de fazer todo o possível para expor e destruir o que então eu já sabia ser uma infâ­ mia legalizada I ...] acompanhada por barbáries inimagináveis e responsá­ vel pela destruição em grande escala de vidas humanas”. Morei sabia que tinha dado um passo enorme. “Eu tinha posto o bar­ co em movimento”, escreveu ele, “e não havia mais como voltar.” Estava com 28 anos de idade. Dq punho de Morei começou a jorrar um fluxo ininterrupto de ata­ ques a Leopoldo. De início trabalhou num jornal britânico que tratava de assuntos relacionados com a África, mas seu editor limitava o que podia ser dito gobre o Congo. Assim, em 1903, com recursos de várias fontes, inclusive de John Holt, um empresário de Liverpool conhecido pela inte­ gridade e que foi quase um mentor para Morei, começou sua própria pu­ blicação. O WestAfrican Mail, “um semanário fundado para atender o in­ teresse cada vez maior pelas questões da África central e ocidental”, seria um fórum onde ninguém o poderia censurar.

Morei era uma figura e tanto: o grosso bigode de pontas viradas e a estatura alta, de peito imponente, destilavam vigor; os olhos escuros quei­ mavam de indignação. Dali em diante, até a morte, escreveu milhões de palavras que escorriam pelo papel em linhas confiantes, numa letra incli­ nada para a frente e achatada pela pressa, como se não tivesse tempo a per­ der em chegar a seu destino. 196

Sob certos aspectos, Morei é mais difícil de entender do que os ou­ tros envolvidos na história do Congo. Por exemplo, é fácil compreender que a infância penosa de Stanley, passada num asilo, possa ter instilado no explorador uma certa crueldade e o impulso de deixar uma marca no mun­ do. A origem da paixão avassaladora de Morei por justiça é menos eviden­ te. Ele paSsou a juventude no mundo dos negócios, não num movimento socialista qualquer, dos muitos que inspiraram tantos cruzados da virada do Século. Quando jovem, não participou de nenhum partido político ou Causa social. Embora tivesse alguns ancestrais quacrés, talvez só tenha vin­ do a descobri-los bem mais tarde, já que não há registro de que tenha re­ cebido instrução quacrè, etft cnança. Formalmente, fazia parte da Igreja anglicana, mas no fundo, assim como um outro grande incendiário de des­ cendência qüacre, Thomas Paine, não via muito sentido na religião organizâda.- Não tinha nada a ganhar com sua campanha contra o rei Leopol­ do, tinha apenas uma promissora carreira na Elder Dempster a perder. Além disso, precisava sustentar a mãe doente, a mulher e o que logo mais viria a Ser uma grande família. Sob todos os aspectos, não parecia um can­ didato muito provável a líder de uma grande cruzada moral. Sua capaci­ dade prodigiosa de se indignar parece ter sido algo inato, assim como al­ gumas pessoas nascem com talento para música. Depois de descobrir os fatos em Bruxelas e Antuérpia, escreve Morei, “permanecer inativo [...] teria sido impossível, por questão de temperamento”. fer$Foi esse sentido abrasador de ultraje que o levou a se tomar, em pouco tempo, o maior jornalista investigátivo britânico da época. Tão logo deci­ diu'descobrir tudo o que fosse possível sobre como funcionavam as coisas no Congo e- revelá-las ao mundo, passou a produzir uma obra gigantesca, ainda qué;às vezes repetitiva, sobre o assunto: três livros inteiros e seções de dois outros, centenas de artigos para quase todos os principais jornais britânicos, além de muitos outros escritos em francês para jornais da Fran­ ça e da Bélgica, centenas de cartas ao editor e várias dúzias de panfletos (redigiu ÍÜ# deles num período de seis meses, um dos quais em francês). Fez tudo isso ao mesmo tempo em que continuava editando o West African Mail escrever boá-parte do semanário. Além dos artigos assinados por elet>müiÍÉ3 colunas éseritas por “Africanus” ou “Um Observador” pareceni ter saído da pena éò próprio editor. Logo mais, Morei estava tam­ bém editando um supldmento mensal especial do jornal, dedicado exclusivamentê a éxpor as injustiças do Congo. E, apesar do ritmo do trabalho, ainda encontrava tempo para colecionar diversas espécies de mariposas. Os 'trabalhos de Morei combinavam fúria controlada com precisão meticulosa. Cada detalhe de seus livros é fruto de uma pesquisa cuidado­ 197

sa, todas as provas foram reunidas com o mesmo esmero de um processo judicial. Em anos subseqüentes, tanto seus admiradores quanto seus inimi­ gos procuraram em vão por erros factuais, com raríssimos sucessos. Até hoje, em quase todos os relatos do sistema usado no Congo de Leopoldo para extrair a borracha, quando se vai procurar as fontes de estatísticas e citações, descobre-se que a maioria foi publicada em primeiro lugar por Morei. Morei não foi o único, na Inglaterra, a se pronunciar contra as atro­ cidades do Congo, embora logo tenha se tomado a voz mais enérgica a fazê-lo. Alguns parlamentares, sobretudo Sir Charles Dilke, um dos pro­ ponentes mais expressivos dos direitos humanos, na época, atacou várias vezes o sistema. E havia também grupos humanitários, como a Sociedade Antiescravocrata e a Sociedade de Proteção aos Aborígines; embora talvez soe um tanto paternalista aos ouvidos de hoje, essas organizações prega­ vam o humanitarismo cristão e usavam-no para denunciar brutalidades onde quer que ocorressem, fosse nas colônias britânicas, fosse em outras partes do mundo. Mas Morei era diferente deles não apenas na energia tor­ rencial, como também em sua crença ardorosa de que o Congo era um caso à parte, um Estado inteiro deliberada e sistematicamente fundamen­ tado sobre o trabalho escravo. Os humanitários, escreveu Morei, enfatiza­ vam “a natureza torpe dos atos cometidos, ao passo que meu empenho, desde o início, foi mostrar que, dadas certas premissas [Leopoldo havia to­ mado a terra para si e todos os seus produtos] [...] aqueles atos teriam ne­ cessariamente de acontecer’| | | | Uma influência importante sobre Morei foi a da escritora Mary Kingsley, que se tomou muito amiga sua, pouco antes de morrer, em 1900. O livro de Mary Kingsley de 1897, Traveis in West Afriça, é ao mesmo tempo um grande clássico da literatura de viagem e um dos primeiros li­ vros escritos por um europeu a tratar os afriçanos como seres humanos. Ela os viu não como “selvagens” necessitados de civilização e sim como povos vivendo em sociedades coerentes, que estavam sendo arrasados por colonialistas e missionários -sem o menor apreço pela vida africana. O decreto de Leopoldo, dizendo que as terras “desocupadas” perten­ ciam ao Estado, destruíra por completo o tradicional sistema da proprieda­ de comum da terra e de seus produto»-- Morei ficara sabendo, por intermédio de Mary Kingsley, que boa parte das terras, na África, pertencia tradicio­ nalmente a todo o clã, ou tribo, de uma aldeia. Se não estava sendo usada para plantar, era um campo de caça, ou, então, sérvia para fornecer madei­ ra para construção, ferro para ferramentas e armas e assim por diante. Além de ser um roubo, a apropriação das terras deixou os africanos 198

sem nada com o que comerciar, algo que para Morei, defensor apaixonado do livre comércio, era especialmente irritante. Assim como Mary Kingsley, ele estava convencido de que somente o livre comércio levaria a África a alcançar, de forma humana, a idade moderna. Até certo ponto era uma idéia tremendamente convencional para tamanho agitador, mas Mo­ rei presumia que o que era bom para os comerciantes de Liverpool era bom para a África. Sua crença é compreensível, já que vários de seus ami­ gos e empresários eram quacres que levavam a ética dos negócios a sério e que lhe davam apoio irrestrito. Morei mergulhou fundo em sua cruzada, escrevendo livros, discur­ sos, artigos e panfletos sobre o Congo. Verdade que não havia como viajar até lá, já que Leopoldo proibia a presença de jornalistas hostis em seu ter­ ritório. Mas isso não o abalava. Logo que estabeleceu a reputação de ser o crítico mais bem informado e franco do Estado do Congo, quem tinha al­ guma informação sigilosa para dar sabia a quem devia recorrer. E quanto mais Morei publicava, mais informações surgiam. Seu dom para obter in­ formações confidenciais enfurecia Leopoldo e seus assessores. Ao mesmo tempo em que a versão bem polida do Congo de Leopoldo era exibida em feiras mundiais, estufas e museus, um Congo muito diferente começava a emergir das páginas do West African Mail. Quando, por exemplo, os porta-vozes de Leopoldo negaram indigna­ dos que houvesse rapto de mulheres para forçar os maridos a colher bor­ racha, Morei reproduziu o formulário impresso em francês, onde cada agente da concessionária a b i r tinha de enumerar “os nativos sob detenção corporal durante o mês de..., 1903”. Ao lado, na mesma página, havia co­ lunas a serem preenchidas para cada refém: “Nome”, “Aldeia”, “Motivos da detenção”, “Data da detenção”, “Data final”, “Observações”. E não ha­ via a menor dúvida quanto aos motivos de as pessoas estarem “sob deten­ ção corporal”; ele também reproduziu uma ordem da diretoria da a b i r , instruindo seus agentes sobre a “manutenção e alimentação dos reféns”. Os dissidentes, fossem eles funcionários públicos ou agentes priva­ dos, não podiam escrever direto a Morei porque havia um cabinet noir, ou um gabinete de censura, em Boma, que controlava toda a correspondên­ cia. Durante anos, uma das fontes secretas de Morei foi Raymond De Grez, um veterano condecorado da Force Publique, ferido em ação várias vezes, que calmamente fomeceu-lhe uma quantidade enorme de informações si­ gilosas de seu posto em Bruxelas. Alguém na sede belga de uma grande companhia operante no Congo — a mesma pessoa que contratara Joseph Conrad como capitão de um barco a vapor — aparentemente passou a Mo­ rei uma coleção de cartas de agentes em campo. E toda vez que algum ve­ 199

terano do Gongo voltava; à Europa desiludido da vida e dava uma entrevis­ ta a algum jornal, fosse na Bélgica ou na Alemanha, na Suécia ou na Itá­ lia, os contatos de Morei lhe enviavam um recorte e ele providenciava para que a informação crítica acabasse indo parar na imprensa britânica. Ele che­ gou inclusive a provocar a administração do Congo, certa vez, publicando, no original, em francês, uma longa lista de memorandos, cartas e outros do­ cumentos confidenciais que alguém se oferecera para vender. Sua campanha incentivou o surgimento de uma oposição a Leopoldo dentro da própria Bélgica, sobretudo entre os parlamentares socialistas. E quando qualquer informação desabonadora vinha à tona nos debates par­ lamentares, Morei rapidamente reproduzia tudo para um público mais am­ plo na Inglaterra. Certa vez, por exemplo, publicou uma circular secreta, e bastante reveladora, a respeito dos bônus que os funcionários no Congo receberiam pelo número de homens recrutados para a Force Publique: “90 francos por cada homem saudável e robusto, considerado apto ao serviço militar, e cuja estatura esteja acima de 1,55 metro; 65 francos por cada jo­ vem cuja estatura seja de no mínimo 1,35 metro; 15 francos por criança do sexo masculino. Os meninos devem ter no mínimo 1,20 metro de altu­ ra e devem ser suficientemente fortes para suportar as fadigas da lida. [...] O bônus só será concedido após a entrega dos homens aos quartéis-gene­ rais dos vários distritos”. Na ocasião, o govemador-geral interino do Con­ go acrescentou uma advertência aos funcionários locais para que a instru­ ção não fosse “sob nenhum pretexto removida do arquivo. As explicações referentes a esta circular, conforme se fizerem necessárias, deverão ser trans­ mitidas aos subordinados verbalmente”. Morei fez questão de incluir tam­ bém a advertência. A partir de um outro material citado em debates parlamentares na Bélgica, Morei reproduziu uma carta que um oficial da Force Publique, o tenente Édouard Tilkens, enviara a seu comandante: “Estou esperando um levante geral. Acho que já o avisei disso antes, major. [...] O motivo é sempre o mesmo. Os nativos estão cansados de [...] trabalhar como carre­ gadores, coletar borracha, fornecer animais para nossos homens se ali­ mentarem. [...] Há três meses venho lutando, com dez dias de descanso. [...] Tenho 152 prisioneiros. Há dois anos venho guerreando neste país, sempre acompanhado de quarenta ou cinqüenta Albinis [soldados armados com rifles Albini, de retrocarga]. Entretanto não poderia dizer que subju­ guei o povo. [...] Eles preferem morrer. [...] Que remédio?”. Outra fonte vital de informação eram certos missionários britânicos, americanos e suecos. Os censores do Congo não podiam ler suas cartas porque eles tinham barcos próprios, além de colegas que podiam levar 200

pessoalmente a correspondência de volta à Europa. Durante anos, os mis­ sionários tinham sido testemunhas impotentes dos castigos de chicote, dos reides da Force Publique, do incêndio de aldeias e de muitos outros aspec­ tos da escravatura da borracha. De repente, ali estava alguém não só se­ quioso de publicar seus depoimentos como também de colocá-los nas mãos do parlamento britânico. Morei não se cansava de solicitar informações dos missionários. Eles, por seu lado, não perderam tempo e começaram também a enviar algo que veio a ser uma das ferramentas mais poderosas da campanha de Morei: fotografias — de aldeias devastadas, mãos dece­ padas, de crianças sem mãos nem pés. Foram os missionários que forneceram alguns dos relatos mais pavo­ rosos publicados por Morei. Um norte-americano contou ter visto solda­ dos do Estado do Congo cortando a mão de alguém “enquanto o pobre co­ ração batia tão forte a ponto de fazer o sangue jorrar das artérias cortadas a uma distância de mais de um metro”. Um batista britânico descreveu como um funcionário do Estado puniu alguns homens que haviam rouba­ do borracha: “Por esse motivo, fez com que os homens fossem amarrados em paus, debaixo do sol, onde passaram um dia e uma noite. [...] Estavam nus, sem comida nem água, o dia inteiro, e tamanha era a agonia deles que as línguas ficaram penduradas da boca”. h Às vezes, os missionários enviavam a Morei o nome dos mortos e, es­ ses também, ele publicava, como se fossem listas de baixas de guerra. Em nenhum outro lugar, é claro, esse nomes apareceram impressos: p B o k a n g u .......C h e fe ........M orto a coronhadas 2. M angundw a... 3. E k u n ja ........... 21. 22. 23. 24.

E k u m b a ......... Hom em ... Baleado M o n ja n g u ..... G i l i .......... 'M ulher ... Akaba........ M enino ...

Morei expôs também a teia de embustes, grandes e pequenos, conti­ nuamente tramada por Leopoldo e seus aliados. Pouca coisa lhe escapou. Por exemplo, o rei fez o possível para cultivar a amizade de Sir Hugh Gilzean Reid, um proeminente batista britânico, dono de jornal e ex-parlamentar. Leopoldo convidou Gilzean Reid ao Palácio Real várias vezes, condecorou-o com a Ordem de Leopoldo e sagrou-o cavaleiro comandan­ te da Ordem da Coroa. Em troca, Gilzean Reid liderou uma delegação da Sociedade Missionária Batista a Bruxelas, em 1903. Ali, durante um al­ moço com o rei e outros belgas importantes, a sociedade apresentou um 201

“memorial de agradecimento”, expressando a esperança de que “os povos do Congo possam ter sempre a vantagem de um governo justo e honesto”. Morei não perdeu tempo em salientar que quando Gilzean Reid transmitiu a notícia para o Moming Post de Londres, reescreveu a mensagem batis­ ta, manifestando ao rei a esperança de que “os povos do Estado do Congo possam se dar conta, cada vez mais, das vantagens de seu governo escla­ recido”.

Os ataques de Morei não demoraram a ser respondidos pelo Palácio Real. Certa tarde, em Londres, Sir Alfred Jones, o antigo patrão de Morei, convidou seu ex-funcionário para um jantar. As relações entre os dois eram no mínimo muito tensas, mas a ocasião transcorreu em meio a mui­ tos sorrisos e, como escreveu Morei, ‘*os vinhos foram da melhor cepa e muito fartos’*, Após o jantar, Jones e os outros convidados retiraram-se, deixando MoreLá sós com um executivo da marinha mercante belga, cha­ mado Aèits, que não fez Segredo de estar ali na qualidade de representan­ te do rei Leopoldo. Depois de uma última tentativa de convencer Morei de que as inten­ ções de Sua Majestade eram boas e de que as reformas estavam para sair, o visitante adotou uma tática diferente (a elipse é do original): O que eram os nativos do Congo para m im ? De que serviria essa busca de um ideal irrealizável? E u era moço. Tinha um a família, nâo tinha? Eu esta­ va correndo sérios riscos. E depois, um a sugestão delicadamente, m uito de­ licadam ente velada de que m eus interesses a longo prazo estariam m elhor servidos s e ... “Um suborno?” A h ! meu caro, não, nada assim tão vulgar, tão hum ilhante. M as sempre haveria m aneiras de se ajeitar as coisas. Tudo po­ deria ser resolvido com honra para todos. Foi um diálogo dos m ais diverti­ dos e durou até bem tarde da noite. “Q uer dizer então que nada o demoverá de seus desígnios?” “Receio que não.” Despedimo-nos com sorrisos mútuos. M as m eu companheiro pareceu-m e um tanto amuado. De m inha parte, diverti-m e muito.

Morei publicou também uma série de artigos escritos por um ameri­ cano contra o regime de Leopoldo. Seu depoimento, dado com grandes detalhes em um livro de 1903, foi devastador (ver páginas 142-3 para um exemplo já citado). Em sua última viagem a serviço, Edgar Canisius era, pro forma, um agente no Congo da Société Anversoise du Commerce, uma das grandes companhias concessionárias que exploravam a borracha na área, só que na verdade era um comandante antiguerrilha. Quando Ca­ nisius, então com 34 anos de idade, chegou a seu posto, próximo à frontei­ 202

ra noroeste do Congo, no início de 1900, a companhia já estava extraindo borracha havia vários anos e as trepadeiras começavam a escassear. Os co­ letores da tribo budja, escreveu ele, “tomaram-se meros escravos da com­ panhia, já que a produção da borracha ocupava todo o tempo disponível e a vítima tinha de buscar a grandes distâncias as parreiras gigantes das quais o látex é extraído. Não eram sequer alimentados pelo capataz, recebiam ape­ nas mercadorias ou mitakos [pedaços de arame] em quantidades ridicula­ mente pequenas. [...] Os nativos queixavam-se amargamente da escassez das lianas produtoras de borracha e pediam encarecidamente para executar outros serviços que não a extração da borracha”. Elementos rebelados da tribo dos budjas tinham matado trinta solda­ dos, e várias expedições punitivas foram organizadas contra eles. Canisius e dois outros oficiais brancos lideraram uma delas, acompanhados por uma força de cinqüenta soldados negros e trinta carregadores. A coluna atra­ vessou aldeias abandonadas pelos budjas e deixou uma trilha de terras de­ vastadas pelo fogo no caminho. “Nosso grupo ia de aldeia em aldeia. [...] Alguns homens foram destacados para incendiar todas as moradias. [...] Enquanto avançávamos, uma trilha de fumaça pairando sobre muitos qui­ lômetros de selva anunciava aos nativos de todas as redondezas a chegada da civilização.” Os carregadores levavam os suprimentos dos soldados. “Marchamos [...] por clareiras nativas, onde centenas de troncos de árvores imensas in­ terrompiam nosso caminho. Tínhamos de escalar essas pilhas e a trilha sempre parecia levar ao topo dos mais altos formigueiros à vista. Para os carregadores foi especialmente difícil, já que muitos deles estavam acor­ rentados pelo pescoço. [...] Eles levavam nossos caixotes pendurados em paus e quando um deles caía, em geral derrubava todos os outros da mes­ ma corrente. Muitos desses pobres infelizes estavam tão exaustos com esse tipo de marcha que só seguiam em frente à força de coronhadas. Al­ guns tinham os ombros tão ralados pelos paus que literalmente guincha­ vam de dor.” Instalados num posto militar bem no interior da região, os soldados de Canisius reviraram a selva atrás dos rebeldes e, quando capturavam al­ gum, faziam-no trabalhar até morrer. “Todos eram forçados a transportar fardos pesados que, anteriormente, exigiram duas pessoas para carregá-los [...] até que finalmente sucumbiam de fome e varíola.” Com a intensificação dos combates, os soldados começaram a matar os prisioneiros, fuzilando até trinta homens de cada vez. Ao final da mar­ cha, “tínhamos passado seis semanas em penosas caminhadas e matado mais de novecentos nativos, homens, mulheres e crianças”. O incentivo, e 203

a causa das mortes, era o potencial para “acrescentar mais vinte toneladas de borracha à safra mensal”.

Por volta de 1903, após vários anos de trabalho árduo, Morei e seus aliados no parlamento e nas sociedades humanitárias tinham conseguido colocar a “Questão do Congo” na agenda dos interesses do público britâ­ nico, e de uma forma muito mais proeminente do que jamais estivera. Em maio, depois de um importante debate, a Câmara dos Comuns aprovou por unanimidade uma moção pedindo que “os nativos do Congo fossem go­ vernados com humanidade”. A moção também denunciava a violação das promessas feitas por Leopoldo em relação ao livre comércio. Morei saiuse um ótimo lobista, fornecendo informações dos bastidores aos oradores que apoiavam a moção; algo que voltaria a fazer em muitos outros deba­ tes parlamentares sobre o Congo ainda por vir. Leopoldo estava alarmado. A Grã-Bretanha era a superpotência da época e o poder colonialista mais importante da África. Se aquele país vol­ tasse toda a força de sua influência contra o Estado do Congo, seus lucros correriam perigo. Será que um mero jornalista como Morei era capaz de iniciar uma coisa dessas? Morei fora capaz de lançar uma enxurrada de críticas pelos jornais e de inspirar uma moção parlamentar, mas conseguir com que um relutante governo britânico pressionasse um monarca amigo era muito diferente. Leopoldo e seu séquito estavam bem conscientes da diferença: um editor belga já observara certa vez, com muita argúcia, que lorde Salisbury, que havia tanto tempo ocupava o cargo de primeiro-mi­ nistro britânico, “não é homem de se importar grandemente com a sorte dos pretos, aliás nem com a dos armênios c búlgaros”, O regime de Leopoldo fora totalmente exposto e desmascarado, mas continuava imperando. Naquele momento, ele e Morei achavam-se empa­ tados. O que nenhum dos dois sabia é que esse impasse seria rompido por um homem que, um dia após o encerramento dos; debates, zarpou num vapor para subir o Congo.

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13 O COVIL DOS LADRÕES É INVADIDO

Assim que os parlamentares aliados de Morei aprovaram a moção de protesto, em maio de 1903, o Ministério do Exterior da Grã-Bretanha man­ dou um telegrama ao cônsul britânico no Congo, com ordens expressas para que fosse “ao interior o quanto antes e [enviasse] relatórios o mais rá­ pido possível”. Quem recebeu esse telegrama foi um diplomata irlandês chamado Roger Casement, um veterano da África, com vinte anos no continente. E a primeira oportunidade que temos de vê-lo ligado ao Congo é, de fato, ftuma fotografia de duas décadas antes. A foto mostra um grupo de quatro amigos que foram trabalhar na Áfricã bem no início do regime do rei Leo­ poldo. Estão de paletó, gravata e camisa de colarinho alto, engomado. Três deles têm a fisionomia cordial e robusta de tantos outros britânicos, rostos típicos que aparecem em milhares de outras fotos em grupo de cadetes do exército ou jogadores de rúgbi. Mas o quarto homem, que aparece com uma bela barba negra, cabelos negros, sobrancelhas fartas, a cabeça incli­ nada de lado, entre zombeteiro e pensativo, destaca-se dos demais. “Dfe caráter e rosto”, escreveu o escritor irlandês Stephen Gwynn, que! só co- \ nheceu Casement mais tardeíbele me pareceu uma das criaturas mais aprazíve|i do mundo; tinha uma postura encantadora, distinta, de grande bravura. Um cavaleiro errante, eis o que era.” Foi em 1883 que Roger Casement, então com dezenove anos, fez sua primeira viagem ao Congo, trabalhando justamente como comissário de um navio da Elder Dempster. No ano seguinte tomou a viajar para o Con­ go, onde ficou até o final daquela década. Foi ele quem administrou a base de suprimentos para a malfadada Expedição Exploratória Sanford, além de ter auxiliado os topógrafos que faziam o mapeamento do curso da fer­ rovia em volta das corredeiras. Tomou-se, segundo ele próprio dizia, o pri­ meiro homem branco a nadar pelo rio Inkisi, infestado de crocodilos. Ao servir como administrador leigo de uma missão batista, provocou algumas 205

críticas amenas de seu empregador, que achava que ele não pechinchava o suficiente na hora de comprar alimentos. “Ele é muito bom para os nati­ vos, bom demais, generoso demais, sempre pronto a dar. Ele jamais ga­ nhará dinheiro como comerciante.” Na época em que Stanley comandou a penosa expedição para resga­ tar Emin Pasha, Casement o acompanhou por uma semana. “Um bom es­ pécime do inglês capaz”, comentou o explorador em seu diário, sem repa­ rar que Casement era irlandês. Por seu lado, Casement foi um juiz mais preciso da personalidade de Stanley. Ainda que o explorador continuasse sendo uma espécie de herói para ele, reconheceu que havia ali uma veia sádica. Ao observar que o cachorro de Stanley não tinha rabo, ficou saben­ do, horrorizado, que o grande explorador cortara a cauda do animal, cozi­ nhara e dera para o próprio cachorro comer. Casement veria ainda muitas outras barbaridades cometidas pelos homens brancos na África. E difícil dizer se houve algum momento espe­ cial em que passou a rejeitar as atrocidades, como aconteceu com Morei ao fazer suas descobertas em Antuérpia e Bruxelas. Talvez esse momento, no caso de Casement, tenha sido em 1887, quando viajava pelo rio Congo num vapor que levava também um oficial da Force Publique chamado Guillaume Van Kerckhoven. Van Kerckhoven era um comandante enfeza­ do, notório pela agressividade, com um sorrisinho petulante e um bigode encerado, cuja, expedição até mesmo o governador-geral do Congo classi­ ficaria como “um furacão que passou pelo interior, sem deixar nada para trás além de uma devastação geral”. Casement ouviu, contrariado, Van Kerckhoven contar, alegremente, que-pagava a seus soldados negros “cin­ co barrinhas de latão por cabeça humana que fosse levada a ele no curso de qualquer operação militar que estivesse comandando. Disse que isso servia para estimular-lhes a bravura, diante do inimiga”. Em 1890, quando Joseph Conrad chegou a Matadi, anotou no diário: “Conheci Roger Casement^ o que devo considerar como tendo sido um grande prazer, em qualquer circunstância. {.Sist,ema vergonhoso, abominável. . , 31 de.t agosfo: À noitinha, houve um a dança em m inha honra: lodos os f .chéftS f suas m ulheres etc. com pareceram ô p b as ordens de L.). Pobres cria­ turas. Fpí um a pena, de todos*pis divertim entos forçados que já yi na vida,

, èíssè levou ó prêmio. ,f : Í d e setembro: Vi dezesseis mulherés'sendo apanhadas pefavsentinelas de Peeters èlevadàspara*® prisão. 9 de setembro: 1llilO passei por Bolongo de novo. Os pobres coitados ririsaíram nas canoas para implorar minha ajuda.

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•Tendo vivido em época posterior aos movimentos contrários à escra­ vidão e bem antes do aparecimento de organizações como a Anistia Inter­ nacional, o tom que Casement usou em seu diário foi o mesmo que usa­ ram os abolicionistas: “Abominável. Sistema vergonhoso e abominável”. Mas o relatório oficial que redigiu em seguida empregou a mesma lingua­ gem que a Anistia e grupos similares adotariam mais tarde: formal e só­ brio, avaliando a confiabilidade das várias testemunhas, cheio de referên­ cias a leis e estatísticas e acompanhado por apêndices e depoimentos. No final de 1903, Casement voltou à Europa para preparar seu rela­ tório. Passou algumas semanas em Londres, ditando e corrigindo, e fez a revisão final num trem, na volta de uma visita a Joseph Conrad e família, em sua casa de campo. As informações contidas no relatório de Casement jájeram do inteiro conhecimento de pessoas como E. D. Morei e seu peque­ no grupo, mas seria a primeira vez que levariam a chancela de um cônsul de Sua Majestade. Mais do que isso, levariam a chancela de um veterano da África, de alguém que não se cansava de comparar o Congo de antanho com o Congo regido pelo terror da borracha. Em várias ocasiões, Casement descreve como as mãos eram decepa­ das dos cadávereS4 Às vezes, não eram mãos. Em seu relatório, ele cita uma testemunha ocular: “O homem branco disse a seus soldados jsVóeês só conseguem ma­ tar mulher; vocês não são capazes de matar homem’. Então, os soldados, quando vieram para nos matar (nessa altura, P. R, que respondia às per­ guntas, parou, hesitou, depois apontou para as partes íntimas do meu buldogue — o cão estava deitado a meus pé»); eles cortaram aquilo e levaram para o homem branco, que disse: ‘E verdade, vocês mataram homens’.” Apesar do tom sóbrio e da documentação cuidadosa, as descrições contidas no relátório a respeito de mãos e pênis decepados foram bem mais vívidas e contundentes do que o governo britânico esperava. O Mi­ nistério do Exterior, que já não estava muito à vontade, começou a rece­ ber pedidos urgentes para adiar a publicação, vindos de Sir Constantine Phipps, embaixador britânico em Bruxelas e ardoroso defensor da políti­ ca do rei Leopoldo. Phipps, homem cheio de si, de inteligência limitada, não acreditava que “os belgas, integrantes de um povo culto, entre os quais tenho vivido, possam, mesmo sob um céu tropical, ter perpetrado atos de refinada crueldade”. O único motivo de as empresas usarem “sentinelas”, explicou ele ao ministro do Exterior britânico, era proteger os seringuei­ ros durante o trabalho. “Por obséquio, adie a publicação do relatório de 213

Casement até depois do 10 do corrente, data em que devo encontrar-me com o Rei dos Belgas”, Phipps telegrafou. “A publicação inevitavelmente me colocará numa posição desconfortável na corte.” E houve outras formas de pressão, de diferentes quadrantes. Incitado por Leopoldo, que estava muito apreensivo, Sir Alfred Jones, da Elder Dempster, visitou duas vezes o Ministério do Exterior na tentativa de sua­ vizar o relatório ou, pelo menos, obter uma cópia para o rei antes de sua publicação. Casement estava tão indignado com o que vira no Congo que o Mi­ nistério do Exterior não conseguiu controlá-lo; ele deu várias entrevistas à imprensa londrina. Com as publicações, ficou difícil censurar ou adiar o relatório, embora seu conteúdo tenha sido diluído, com a eliminação de to­ dos os nomes. Quando foi finalmente publicado, no início de 1904, os lei­ tores encontraram depoimentos de testemunhas que diziam: “Eu sou N. N. Meus dois companheiros são O. O. e R R”. Ou então: “O homem branco que disse isso era o comandante branco em F. F. [...] Seu nome era A. B ” . Com isso, o relatório adquiriu um tom curiosamente aéreo, como se coi­ sas horríveis tivessem sido cometidas, mas não contra nem po r pessoas de carne e osso. Também impossibilitou que Casement se defendesse mencio­ nando pessoas e lugares específicos, quando os funcionários de Leopoldo divulgaram uma extensa resposta. Jornais belgas ligados a empreendimen­ tos no Congo uniram-se ao ataque; um deles, La Tribune Congolaise, dis­ se que as pessoas que Casement encontrara sem mãos eram “indivíduos sem sorte, que sofriam de câncer nas mãos, e cujas mãos tiveram de ser cortadas como uma simples providência cirúrgica”. A ira e a frustração de Casement cresceram. Homem estourado (ele próprio, de início, quis proteger Suas testemunhas omitindo seus nomes; depois mudou de idéia), que sc ofendia com facilidade, enviou um a carta de protesto de dezoito páginas ao M inistério do Exterior e ameaçou renun­ ciar. Em seu diário, escreveu que os superiores eram “um bando de imbecis”;