O Estado [1 ed.]
 9786599919268, 9786599919275

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O ESTADO

O Estado Sua História e Desenvolvimento Vistos Sociologicamente

Franz Oppenheimer

1ª Edição

O Estado: Sua História e Desenvolvimento Vistos Sociologicamente Franz Oppenheimer Editora Konkin, 1ª Edição Email: [email protected] Título Original: The State: Its History and Development Viewed Sociologically

Coordenação Editorial Alex Pereira de Souza

Tradução e Revisão Alex Pereira de Souza, Gabriel Camargo, Hiel Estevão, José Aldemar, Vitor Gomes

Capa Gabriel Teixeira Pereira

Diagramação Alex Pereira de Souza

Licença Domínio Público. Esse livro está livre de restrições de autor e de direitos conexos.

ISBN 978-65-999192-6-8 (versão impressa) | 978-65-999192-7-5 (versão digital)

Sumário O Homem (1864—1943) ............................................................ 7 O Livro (1908/1929) ................................................................... 7 Prefácio do Autor à Segunda Edição Americana .......................11 Prefácio do Autor à Segunda Edição Alemã ............................. 21 Introdução ................................................................................. 25 (a) As Teorias do Estado ....................................................... 25 (b) A Ideia Sociológica do Estado......................................... 29 I. A Gênese do Estado ............................................................... 33 (a) Meios Políticos e Econômicos ........................................ 34 (b) Povos sem Estado: Caçadores e Agricultores ................. 36 (c) Povos precedendo o Estado: Pastores e Vikings ............. 39 (d) A Gênese do Estado ......................................................... 49 II. O Estado Feudal Primitivo ................................................... 67 (a) A Forma de Domínio ....................................................... 67 (b) A Integração .................................................................... 70 (c) A Diferenciação: Teorias de Grupo e Psicologia de Grupo .............................................................................................. 72 (d) O Estado Feudal Primitivo de Grau Superior ................. 79 III. O Estado Marítimo.............................................................. 89 (a) Comércio nos Tempos Pré-Históricos ............................. 89 (b) O Comércio e o Estado Primitivo ................................... 97 (c) A Gênese do Estado Marítimo ....................................... 100 (d) A Essência e o Desfecho dos Estados Marítimos .......... 109 IV. O Desenvolvimento do Estado Feudal ...............................119

(a) A Gênese da Propriedade Fundiária ............................... 119 (b) O Poder Central no Estado Feudal Primitivo ................ 123 (c) A Desintegração Política e Social do Estado Feudal Primitivo .............................................................................. 128 (d) A Amalgamação Étnica .................................................. 141 (e) O Estado Feudal Desenvolvido...................................... 145 V. O Desenvolvimento do Estado Constitucional ................... 149 (a) A Emancipação do Campesinato.................................... 150 (b) A Gênese do Estado Industrial ....................................... 152 (c) As Influências da Economia Monetária ......................... 156 (d) O Estado Constitucional Moderno ................................ 163 VI. A Tendência do Desenvolvimento do Estado .................... 173

O Homem (1864—1943) Franz Oppenheimer, um dos tantos médicos britânicos, franceses e alemães que abandonaram suas atividades médicas e ascenderam à fama como economistas políticos, nasceu em Berlim. Estudou e praticou medicina, tornou-se professor particular de Economia na Universidade de Berlim em 1909, e Professor de Sociologia na Universidade de Frankfurt em 1919. Sua visão libertária o fez, por muitos anos, alvo de perseguições acadêmicas, até que a fama crescente de sua obra-prima, O Estado, efetivamente silenciou seus detratores.

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O Livro (1908/1929) A história orgânica do estado* é uma longa e fascinante aventura, geralmente tornada monótona em exposições eruditas. Não é assim em O Estado, de Oppenheimer, que extrai essa história de uma maneira estimulante, das necessidades agudas e conflitos homicidas de todos os tipos e condições dos homens, da Idade da Pedra até a Era de Henry Ford. O suave fluxo de informações importantes derivadas deste volume alemão tornou-o altamente receptível aos leitores.

* [NT] Optamos pela grafia da palavra estado no sentido de "nação politicamente organizada" sempre em letra minúscula, ao contrário do que a maioria dos dicionaristas da língua portuguesa recomendam. Com maiúscula, estado simboliza uma visão de mundo distorcida, de dependência do poder central, de fé cega e irracional na força superior de um ente capaz de conduzir os destinos de cada uma das pessoas. Grafar estado com minúscula é uma pequena contribuição para a demolição da noção disfuncional de que se pode esperar tudo de um centralismo provedor. Esta grafia se aplica a todas as obras da Editora Konkin.

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Prefácio do Autor à Segunda Edição Americana Este pequeno livro encontrou o seu caminho. Além da presente tradução para o inglês, existem edições autorizadas em francês, húngaro e sérvio. Também fui informado de que há traduções publicadas em japonês, russo, hebraico e iídiche; mas estas, é claro, são piratas. O livro resistiu ao teste da crítica e foi julgado favoravelmente e desfavoravelmente. Reacendeu, inquestionavelmente, a discussão sobre a origem e a essência do estado. Vários etnólogos proeminentes, particularmente Holsti, o atual Ministro das Relações Exteriores do Estado Livre Finlandês, atacaram o princípio básico formulado e demonstrado nesta Obra, mas falharam, porque sua definição de estado assumiu a própria matéria que deveria ser comprovada. Eles reuniram uma grande variedade de fatos para provar a existência de algumas formas de Governo e Liderança, mesmo onde não havia classes, e à substância dessas formas deram o nome de “O Estado”. Não é minha intenção contestar esses fatos. É evidente que em qualquer grupo de seres humanos, por menor que seja, deve existir uma autoridade que determina conflitos e, em situações extraordinárias, assume a liderança. Mas essa autoridade não é “O Estado”, no sentido em que uso a palavra. O estado pode ser definido como uma organização de uma classe dominando as outras classes. Tal organização de classe só pode acontecer de uma maneira, a saber, através da conquista e da sujeição de grupos étnicos pelo grupo dominante. Isso pode ser demonstrado com quase certeza matemática. Nenhum dos meus críticos trouxe provas para invalidar esta tese. A maioria dos sociólogos modernos, entre os quais podemos citar Albion Small, Alfred Vierkandt e Wilhelm Wundt, aceita essa tese. Wilhelm Wundt, em particular, afirma em linguagem inequívoca que “a sociedade política (termo idêntico ao estado no sentido empregado 11

neste livro) surgiu pela primeira vez e só poderia se originar no período de migração e conquista”, segundo o qual a subjugação de um povo por outro foi efetuada. Mas mesmo alguns de meus oponentes se inclinam favoravelmente a meus argumentos, como no caso do venerável Adolf Wagner, cujas palavras tenho orgulho de citar. Em seu artigo sobre “O Estado” no Handwörterbuch der Staatswissenschaften, ele escreve: “O conceito sociológico do estado, ao qual me referi, particularmente no amplo escopo e tratamento dado por Oppenheimer, merece consideração cuidadosa, especialmente de economistas políticos e historiadores políticos. A visão que se abre, deste ponto de vista, do desenvolvimento econômico dos povos e do estado em tempos históricos deveria ser atraente até mesmo para os opositores do próprio conceito.” O “conceito sociológico do estado”, como Ludwig Gumplowicz o denominou, tem aceitação geral garantida. Seus oponentes são árduos e perseverantes, e certa vez os chamei de “a raiz sociológica de todo mal”; mas o conceito, não obstante, é o princípio básico da sociologia “burguesa”, e será considerado valioso no estudo, não apenas da economia e da história, mas também do Direito e da História Constitucional. Permito-me fazer algumas observações sobre este ponto. A evidência mais antiga do reconhecimento da ideia subjacente à lei da acumulação prévia pode ser rastreada, o mais tardar, até o período de decadência da civilização clássica, na época em que a economia capitalista escravista levou as cidades-estado à ruína, bem como embora seus povos tivessem sofrido de um consumo galopante. Como em nossa era capitalista moderna, que se assemelha a esse período em muitos aspectos, ocorreu uma ruptura em todas as relações naturalmente desenvolvidas nas quais o indivíduo encontrou proteção. O que Ferdinand Toennies chama de “laços comunitários” foi afrouxado. O indivíduo se viu desprotegido, compelido a confiar em seus próprios esforços e em sua própria razão no mar fervilhante de 12

competição que se seguiu. A razão coletiva, produto da sabedoria de milhares de anos de experiência, não poderia mais guiá-lo ou protegêlo. Ficou espalhado. Dessa necessidade de uma razão individual, surgiu a ideia do nacionalismo. Essa ideia teve sua justificativa a princípio, como uma linha de desenvolvimento e um método na nascente ciência do governo social; mas quando mais tarde se tornou o que Rubenstein (em sua obra Romantic Socialism) chama de uma “tendência”, não se justificou. A comunidade, para usar o termo de Toennies, transformou-se em uma “sociedade”. O “contrato” parecia ser o único vínculo que mantinha os homens unidos — o contrato baseado na relação puramente racionalista de serviço por serviço, o do ut des, o “Contrat Social” de Rousseau. Uma “sociedade” pareceria, assim, ser uma união de indivíduos autocentrados que esperavam, por meio da combinação, obter suas satisfações pessoais. Aristóteles havia ensinado que o estado havia se desenvolvido, por crescimento gradual, a partir do grupo familiar. Os estoicos e os epicuristas sustentavam que os indivíduos formaram o estado — com a diferença de que os primeiros viam o indivíduo como sendo socialmente inclinado por natureza, e o segundo, que ele era naturalmente antissocial. Para os estoicos, portanto, o “Estado de Natureza” era uma união pacífica; para os epicuristas era uma guerra de um contra o outro, com a Sociedade como um meio obrigatório para um modus vivendi decente. Com o primeiro, uma Sociedade estava condicionada “physei” (por natureza); com o outro era “nomo” (por decreto). Apesar, porém, dessa diferença fundamental entre essas escolas, ambas assumiram a premissa de que, no início, os indivíduos eram livres, iguais política e economicamente, e que foi a partir dessa ordem social original que se desenvolveram, por diferenciação gradual, o estado plenamente desenvolvido com sua hierarquia de classes. Esta é a lei da acumulação prévia.

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Mas estaríamos errados se acreditássemos que esta tese foi originalmente concebida como um relato histórico. O racionalismo é essencialmente a-histórico, até mesmo anti-histórico. Pelo contrário, a tese foi originalmente apresentada como uma “ficção”, uma teoria, uma suposição conscientemente a-histórica. Nesta forma, adquiriu o nome de lei natural. Foi sob esse nome que surgiu no pensamento moderno, tingido estoicamente em Grotius e Puffendorf, e de maneira epicurista em Hobbes. Tornou-se a arma operativa do pensamento entre o crescente terceiro estado dos capitalistas. Os capitalistas usaram a arma, primeiro contra o estado feudal com sua classe privilegiada e, mais tarde, contra o quarto estado, com sua teoria de classe do socialismo. Contra a dominação feudal argumentou que uma “Lei da Natureza” não conhece e não permite privilégios. Após suas vitórias na Revolução Inglesa de 1648 e na grande Revolução Francesa de 1789, justificou, pelo mesmo raciocínio, sua própria preeminência de facto, sua própria superioridade social e econômica de classe, contra as reivindicações das classes trabalhadoras. Segundo Adam Smith, as classes em uma sociedade são o resultado do desenvolvimento “natural”. De um estado original de igualdade, estes não surgiram por outra causa senão o exercício das virtudes econômicas da diligência, frugalidade e providência. Uma vez que essas virtudes são predominantemente as de uma sociedade burguesa, o domínio capitalista, assim sancionado pela lei natural, é justo e inatacável. Como corolário deste teorema, as reivindicações do socialismo não podem ser admitidas. Assim, o que originalmente foi apresentado como uma “ficção”, tornou-se primeiro uma hipótese e, finalmente, o axioma de toda a sociologia burguesa. Aqueles que o apoiam aceitam o axioma como autoevidente, como não requerendo prova. Para eles, a dominação de classe, nesta teoria, é o resultado de uma diferenciação gradual de um estado original de igualdade e liberdade geral, sem implicação de qualquer poder extraeconômico. 14

Robert Malthus aplicou essa suposta lei ao futuro, em sua tentativa de demonstrar que qualquer tipo de socialismo é puramente utópico. Sua célebre Lei da População nada mais é do que a lei da acumulação original projetada no futuro. Ele afirma que se qualquer tentativa fosse feita para restaurar o estado de igualdade econômica, o funcionamento da lei teria o efeito — por causa da diferença na eficiência econômica — de restaurar as condições de classe modernas. Toda sociologia ortodoxa começa com a luta contra essa suposta lei das formações de classes. No entanto, cada passo de progresso feito nos vários campos da ciência da sociologia foi feito rasgando, um por um, as raízes inumeráveis e extensas que procederam desse suposto axioma. Uma sociologia sólida deve lembrar o fato de que a formação de classes em tempos históricos não ocorreu por meio de diferenciação gradual na competição econômica pacífica, mas foi o resultado de conquista e subjugação violentas. Como tanto o capitalismo quanto o socialismo tiveram suas origens na Inglaterra, essas novas ideias certamente encontrariam sua primeira expressão naquele país. De modo que encontramos Gerrard Winstanley, o líder dos “verdadeiros niveladores” da época de Cromwell, colocando os fatos da história contra essa suposição teórica anti-histórica. Ele mostrou que a classe dominante inglesa (a fidalguia rural) era composta essencialmente pelos conquistadores vitoriosos, os normandos, e que a classe sujeita eram os saxões ingleses conquistados. Mas sua demonstração teve pouca influência. Foi somente quando a grande Revolução Francesa evidenciou o contraste nitidamente que o pensamento veio à tona. Ninguém menos que o Conde St. Simon, reconhecido como o fundador da ciência da sociologia moderna, e o não menos científico socialismo, descoberto na classe dominante de seu país os conquistadores francos e burgúndios, e em sua população sujeita, os descendentes dos celtas romanizados. Foi a publicação dessa descoberta que originou a sociologia da Europa Ocidental. 15

As conclusões tiradas dela foram levadas adiante pelo discípulo de St. Simon, Auguste Comte, em seu Philosophy of History, e pelos saint-simonistas, Enfantin e Bazard. Esses pensadores tiveram grande influência no desenvolvimento econômico do século seguinte; mas sua principal contribuição foi a elaboração da ideia sociológica do estado. Entre os povos da Europa Ocidental, a nova sociologia encontrou uma aceitação mais imediata do que entre os da Europa Oriental. A razão para isso pode ser facilmente percebida quando lembramos que no Oriente o contraste entre o “Estado” e a “Sociedade” não havia sido tão definitivamente percebido como no Ocidente. Mesmo no Ocidente, esse contraste só foi plenamente apreciado, como um fato social, na Inglaterra, na França, nos Países Baixos e na Itália, porque nesses países apenas a classe de riqueza móvel que havia se desenvolvido como terceiro estado havia sucedido na deposição do “estado” feudal. Na França, a aliança dos capitalistas com a Coroa contra a então nobreza armada e ativa conseguiu submeter os Frondeurs ao poder absoluto do Rei. A partir de então, esse novo estamento passou a se representar como a Nação, e o termo “Economia Nacional” substituiu o antigo termo “Economia Política”. Os membros desse terceiro estado sentiam-se aqueles súditos do estado cujos direitos e liberdades haviam sido cerceados pelos privilégios dos dois estamentos dominantes da nobreza e do clero. Doravante, o Terceiro Estado proclama os direitos da “Sociedade” e contra o “Estado”, opõe a eterna Lei da Natureza — a da igualdade e liberdade originais — contra os direitos teóricohistóricos dos Estamentos. O conceito de Sociedade em contraste com o conceito de Estado aparece pela primeira vez em Locke e, a partir de então, esse contraste foi cada vez mais definido, especialmente nos escritos da escola fisiocrata de economistas. Nessa luta entre classes e ideias, nem a Europa Central nem a Oriental desempenharam um papel importante. Na Alemanha, uma vez se desenvolveu uma classe capitalista (no período dos Fuggers de Augsburg) que atingiu quase a magnitude americana. Mas foi esmagado pelas Guerras Religiosas e pelas várias invasões francesas dos séculos XVI e XVII, que deixaram a Alemanha um deserto devastado e 16

despovoado. Ao final do período restavam algumas cidades e pequenos estados sob o domínio absoluto dos príncipes. Dentro das cidades, os artesãos estavam unidos em suas ligas de artesanato, e o restante consistia em atividades educacionais e oficiais acadêmicos. Em grande medida, todos eles dependiam do estado — os membros das corporações de ofício porque aceitavam uma condição privilegiada, os funcionários porque eram servidores do estado e os profissionais porque pertenciam ao estamento superior da sociedade. Por esta razão não houve nenhum movimento econômico ou social do terceiro estado na Alemanha; houve apenas um movimento literário influenciado pelo fluxo de ideias do Ocidente. Isso explica o motivo do contraste entre as duas ideias de Estado e de Sociedade não estarem presentes na mente do povo alemão. Pelo contrário, os dois termos foram usados como sinônimos, ambos conotando uma conformidade essencialmente necessária à natureza. Mas há ainda outra causa para essa diferença na atitude mental entre a Europa Ocidental e a Europa Oriental. Na Inglaterra e na França, desde a época de Descartes, os problemas e investigações da ciência foram formulados por homens treinados em matemática e ciências naturais. Especialmente no novo estudo da filosofia da história, o início de nossa sociologia moderna, esses homens atuaram como guias. Na Alemanha, ao contrário, foram os teólogos e especialmente os teólogos protestantes os líderes do pensamento. Em suas mãos, o estado passou a ser considerado um instrumento da modelagem divina e, na verdade, da divindade imanente. Esse pensamento resultou em um culto ao estado, que atingiu seu auge no conhecido sistema hegeliano. Assim aconteceu que dois rios de pensamento fluíram lado a lado por um tempo — a Sociologia da Europa Ocidental e a filosofia da História da Alemanha — com correntes intercomunicantes ocasionais, como Althusios e Puffendorf no ensino francês, inglês e holandês do direito natural, e a de Rousseau em Hegel. Em 1840, no entanto, uma junção direta foi feita por meio de Lorenz Stein, um dos alunos mais talentosos de Hegel que, mais tarde, se tornou o principal professor alemão de direito administrativo 17

e influenciou gerações de pensadores. Veio para Paris, ainda jovem, com o propósito de estudar o Socialismo na nascente. Ele conheceu os homens célebres daquela época heróica — com Enfintin e Bazard, com Louis Blanc, Reybaud e Proudhon. Lorenz Stein absorveu o novo pensamento com entusiasmo, e em sua mente fértil precipitou-se a síntese criativa entre o pensamento sociológico científico da Europa Ocidental e a filosofia da história metafísica alemã. O produto foi chamado por ele de Ciência da Sociedade (Gesellschaftswissenschaft). Foi dos escritos de Stein que quase todos os desenvolvimentos importantes do pensamento sociológico alemão receberam seus primeiros impulsos. Karl Marx, especialmente (como Struve mostrou), bem como Schaeffle, Othmar Spann e Gumplowicz, devem muito a ele. Não é meu propósito desenvolver este tema histórico. Preocupome apenas em traçar o desenvolvimento da ideia sociológica do estado. O primeiro efeito desse encontro das duas correntes de pensamento foi uma confusão prejudicial de terminologia. Os escritores da Europa Ocidental há muito perderam o controle da unificação das expressões no pensamento. Como dito acima, o Terceiro Estado começou por se pensar como “Sociedade”, em oposição ao estado. Mas quando o Quarto Estado cresceu para a consciência de classe e tornou-se consciente de sua própria existência teórica, arrogou-se o termo “Sociedade” (como pode ser visto pela seleção da palavra socialismo), e tratou a Burguesia como uma forma do “Estado”, do estado de classe. Havia, portanto, dois conceitos amplamente diferentes de “Sociedade”. No entanto, aqui estava uma ideia subjacente comum à burguesia e ao socialista, uma vez que concebiam o estado como uma coleção de privilégios surgidos e mantidos em violação da lei natural, enquanto a Sociedade era pensada como a forma prescrita de união humana em conformidade com a lei natural. Eles diferiam apenas em um ponto essencial, a saber, que enquanto o Terceiro Estado declarava que sua sociedade capitalista era o resultado dos processos da lei natural, os socialistas consideravam seus objetivos ainda não alcançados e proclamavam que a sociedade ideal do futuro que iria realmente ser o 18

produto dos processos da lei natural, só poderia ser realizado pela eliminação de toda “mais-valia”. Embora ambos estivessem em conflito com relação aos fundamentos, ambos concordavam em ver o “Estado” como civitas diaboli e a “Sociedade” como civitas dei. Stein, no entanto, inverteu os objetivos dos dois conceitos. Como um hegeliano e preeminentemente adorador do estado, ele concebeu o estado como civitas coelestis. A Sociedade, que ele entendia significar apenas a Sociedade burguesa dominante, ele a via através dos olhos de seus amigos e professores Socialistas, e a concebia como civitas terrena. O que no sentido de Platão é a “ideia pura”, a “ordem natural” dos primeiros fisiocratas e denominada pelos franceses e ingleses de “Sociedade”, era para Stein, o “Estado”. O que havia sido contaminado e tornado impuro pela mistura de matéria grosseira, eles chamavam de “Estado”, enquanto os alemães o chamavam de “Sociedade”. Na realidade, porém, há pouca diferença entre os dois. Stein percebeu com pesar que o conceito puro de Hegel de um estado baseado no direito e na liberdade estava fadado a permanecer apenas uma “ideia”. Eternamente acorrentado, como ele supôs que deveria estar, pelas forças da propriedade e da cultura que delas procede, nunca poderia ser um fato. Esta é sua conclusão a respeito da “Sociedade”, de modo que seu desenvolvimento efetivo é obstruído pela associação beneficente dos seres humanos, como Stein concebeu essa associação. Assim foi atingido o auge do pensamento confuso. Todos os sociólogos alemães, com a única exceção de Carl Dietzel, logo perceberam que o conceito hegeliano de estado era impotente, existindo apenas na “Ideia”. Em nenhum ponto ele tocava a realidade do crescimento histórico e em nenhum sentido poderia representar o que sempre foi considerado como o estado. Há muito tempo, tanto Marx quanto Bakunin — respectivamente os fundadores do coletivismo científico e do anarquismo prático — e especialmente Ludwig Gumplowicz, abandonaram a terminologia hegeliana e aceitaram a da Europa Ocidental e isso foi geralmente aceito em todos os lugares. 19

Neste pequeno livro, segui a terminologia da Europa Ocidental. Por “Estado”, não quero dizer a agregação humana que porventura venha a ser, ou, como deve ser propriamente. Quero dizer com isso aquela soma de privilégios e posições dominantes que são criadas pelo poder extraeconômico. E, em contraste com isso, entendo por Sociedade a totalidade dos conceitos de todas as relações e instituições puramente naturais entre homem e homem, que não serão plenamente realizadas até que o último remanescente das criações das bárbaras “eras de conquista e migração”, tenha sido eliminado da vida em comunidade. Outros podem chamar qualquer forma de liderança e governo ou algum outro ideal de “Estado”. Isso é uma questão de escolha pessoal. É inútil discutir sobre definições. Mas seria bom que esses outros pensadores entendessem que não contestaram a ideia sociológica de “Estado”, se um conceito de “Estado” fundamentado em uma base diferente não correspondesse àquele que eles desenvolveram. E eles devem se precaver particularmente contra o perigo de aplicar qualquer definição diferente da usada neste livro aos produtos históricos reais que até agora foram chamados de “Estados”, cuja essência, desenvolvimento, curso e futuro devem ser explicados por qualquer verdadeiro ensino ou filosofia do estado.

Franz Oppenheimer Frankfurt-am-Main, abril de 1922

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Prefácio do Autor à Segunda Edição Alemã Este pequeno livro apareceu pela primeira vez em 1909 como uma versão expandida de um ensaio previamente publicado na “Neuen Rundschau”. Fez um tanto de sucesso, e não somente em alemão, mas também apareceu em traduções autorizadas em língua inglesa, francesa e sérvia. A edição inglesa de 1914 que foi impressa nos EUA teve sua segunda edição em 1922. O livro foi publicado em húngaro sem minha autorização, e, até onde sei, foi publicado integralmente ou somente em partes no japonês, russo, hebraico e iídiche. Somente o editor da versão em húngaro se prontificou a me enviar um exemplar físico. Com exceção de uma mudança pequena, todavia fundamentalmente significativa, na qual foi expressa a minha atitude totalmente transformada em relação à assim chamada visão econômica da história, a última edição alemã de 1923 permanece praticamente inalterada. Posteriormente não achei motivo algum para realizar quaisquer alterações no texto anterior enquanto eu estava trabalhando em meu System der Soziologie, na maior parte conservado letra por letra, especialmente em sua segunda parte: a versão publicada em 1926 de der Staat. Minha visão fundamental não permanece somente inabalada, mas, na última conferência em setembro da Sociedade Alemã de Sociologia em Zurique, ela recebeu quase que completa confirmação dos principais etnólogos da Alemanha: uma nova prova da assertividade do método dedutivo. Pois minha bagagem em etnologia era extremamente rasa na época em que pela primeira vez expressei meu pensamento fundamental em meu livro de 1898, Großgrundeigentum und soziale Frage. Até onde me lembro, com exceção do Kulturgeschichte der Menschheit de Julius Lippert, em geral não aprendi coisa alguma sobre etnologia e etnografia. Nem sequer os escritos de Ludwig Gumplowicz, de quem eu posteriormente optei por me tornar seguidor, eram-me conhecidos, algo que não agradou esse 21

velho professor quando com ele me encontrei. Eu fui um completo autodidata na produção de grande parte de minha obra tardia! Desse modo, como já foi dito, a maior parte dessa pequena edição foi colocada na edição ampliada de der Staat, com a última edição chegando a seu fim, considerei seriamente a questão sobre se deveria sequer publicar o livro em sua antiga forma novamente. Decidi fazer isso por uma série de motivos: porque a versão maior, com suas 860 páginas, é de um calibre muito pesado para o grande público leitor, e porque infelizmente é muito cara, pelo menos para muitos leitores alemães de hoje. Além do mais, também porque algumas partes desta edição menor de der Staat entraram não na outra edição, mas sim na primeira parte de meu System, na sociologia geral. E, finalmente, pela mesma razão pela qual eu leio quase todas as minhas antigas obras (com exceção somente da terceira parte do System der Soziologie, que é distribuída como um manual chamado Theorie der Reinen und politischen Ökonomie, e a terceira edição do livreto Wert und Kapitalprofit, que foi completamente revisado): elas têm aparecido sempre de novo com seus textos totalmente inalterados; pois tais leitores que se voltam a essas obras mais antigas, algumas das quais foram substituídas por obras mais recentes minhas, regularmente desejam possuir o texto original para poderem seguir a linha de desenvolvimento do autor. Desse modo, o texto agora aparece quase sem alteração alguma. Somente o primeiro parágrafo do capítulo introdutório sobre as teorias do estado foram reformulados seguindo a edição ampliada. O leitor que desejar ir mais a fundo no objeto referido, que é vasto, não terá escolha senão se aprofundar na edição ampliada de der Staat. O leitor encontra aqui uma história intelectual das teorias do estado desde a Antiguidade Grega até os tempos presentes, que resultam no montante de um quarto de quatrocentas páginas. Ele também encontra uma detalhada descrição do percurso da epidemia que devastara as cidades-estado da Antiguidade, encontra uma descrição precisa das formas de governo que se seguem do estado feudal 22

desenvolvido: estado servil (Lehenstaat), estado estamental (Ständenstaat), estado constitucional absoluto e moderno; e, finalmente, encontra um retrato muito mais detalhado da futura “sociedade sem classes”, rumo a qual, se minha visão estiver correta, a tendência social está se impulsionando: todas as coisas as quais somente neste esboço poderiam ser implicadas. Que este pequeno livro saia novamente e procure fazer, caso possa, novos amigos para si e para este autor entre os outros mais antigos. Franz Oppenheimer Frankfurt-am-Main, 1º de novembro de 1928

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Introdução (a)

As Teorias do Estado

Este tratado diz respeito somente ao estado histórico. Não fala dos estados animais, que recaem sob a zoologia e psicologia animal, tampouco dos assim chamados “estados” do tempo pré-histórico, com os quais a historiografia pré-histórica e a etnologia têm de lidar. Sobre essa “organização tribal”, falou Wilhelm Wundt: “Não é nem sequer uma ordem de estado com desenvolvimento incompleto, mas sim algo completamente diferente.”1 Este tratado, além do mais, não fala sobre “os” estados — eles são objeto da história —, mas sim “do” estado: perpassa-o enquanto um fenômeno social geral em seu surgimento e desenvolvimento até sua forma de Estado Constitucional Moderno; e visa tentar alcançar, com isso, uma previsão razoável de seu desenvolvimento futuro. Isso quer dizer: olhar para o estado do ponto de vista do sociólogo. Não do ponto de vista do filósofo: pois ele só está interessado em como deveria ser o estado. Sobre o estado como ele foi e como ele é, o Estado Histórico, diz, por exemplo, B. Fichte: “Não interessa aos esclarecidos.” Também não do ponto de vista do jurista: pois ele só está interessado em sua forma externa, enquanto o sociólogo anseia por entender o conteúdo e a vida da sociedade de estado. Por esta razão, toda doutrina de direito público está excluída de nossa consideração logo de início. Todavia, uma rápida visão geral das teorias de estado propriamente ditas nos mostra que não deveríamos esperar esclarecimento algum delas acerca da origem, natureza e propósito do estado. Elas representam todas as sombras concebíveis entre os extremos. Se, para Rousseau, o estado se origina de um contrato social, mas, para Carey, surge de um bando de ladrões; se Platão e os 1

Wilh. Wundt, Elemente der Völkerpsychologie, Leipzig 1912. p. 301.

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O Estado marxistas imputam onipotência ao estado, querendo elevá-lo a um absoluto Senhor dos Habitantes em tudo quanto é político e econômico, para Platão até em questões sexuais, enquanto o liberalismo o condena à impotência do “Estado Guarda-Noturno” e o anarquismo quer erradicá-lo totalmente, então uma tentativa de se chegar a uma visão apropriada de estado que esteja no meio termo entre tais doutrinas tão excludentes entre si é estéril. Essa dicotomia insolúvel nas teorias do estado é explicada pelo fato de que nenhuma delas emergiu a partir de um ponto de vista sociológico. O estado é um objeto da história universal e sua essência pode ser conhecida somente através de uma perspectiva universal histórica ampla. Precisamos perguntar quais propriedades são essenciais ao conceito de estado enquanto tal. Pode-se achar a resposta a essa questão somente se levarmos em consideração possivelmente todos os estados, do passado e do presente, e, consequentemente, ver quais as propriedades que todos eles possuem. Visto que há estados grandes e pequenos, firmemente centralizados e frouxamente coordenados, monárquicos, aristocráticos, plutocráticos e democráticos; visto que seus habitantes pertencem a todas raças e cores, são pouco ou altamente civilizados, e vivem principalmente da agricultura ou de comércio e trocas, está claro que a essência do estado não pode residir nem na extensão nem no grau de poder coercitivo sobre seu território e sobre seus habitantes, nem em sua constituição, nem em seu nível de cultura e técnica. Os antigos sistemas de filosofia do estado tentaram alcançar tal abstração compreensiva e chegaram a uma conclusão, que ainda é amplamente ensinada hoje, de que a essência do estado é a mesma da de uma área de proteção: proteção externa de fronteiras e proteção interna legal são seu ratio fiendi et essendi (razão de operar e de ser). Grotius diz: “O estado é uma associação completa de pessoas livres, as quais se reuniram em prol de proteção legal e utilidade.” E de fato essa visão está correta em um cerne: mas não é completa. Ela negligencia uma característica comum a todos os estados: todo estado do passado na história que inquestionavelmente é digno de seu nome, especialmente todo estado que se tornou significativo na 26

Introdução história humana no que toca a seu desenvolvimento para maiores níveis de poder, tamanho e riqueza ou de outro modo é um estado de classes, isto é, uma hierarquia de estratos ou de classes acima e abaixo uma da outra com diferentes direitos e diferentes rendas. Nossa discussão mostrará que essa característica é a mais importante, a mais decisiva, é o caráter primário do estado, a partir do qual sozinho sua origem e essência podem ser reconhecidas; deixará claro que a função protetora do estado, tanto interna quanto externamente, deve ser compreendida como um dever secundário assumido pelas classes superiores no interesse de seus direitos de governo e renda. O estado não surge no interesse da função protetora, mas, inversamente, a função protetora surge no interesse do estado já permanecente. Com isso já obtivemos a explicação para o fato impressionante de que as teorias anteriores do estado são tão diferentes umas das outras. São todas teorias de classe! Mas tal coisa não é o resultado de uma compreensão investigativa, mas sim da vontade que deseja; não precisa de argumentos para penetrar a verdade, mas sim de uma arma na luta pelos interesses materiais; não é ciência, mas mimetismo da ciência. E é por isso que, a partir da compreensão do estado, podemos chegar a uma compreensão das teorias do estado, todavia nunca podemos chegar a uma compreensão da essência do estado a partir da compreensão das teorias do estado. O estado não surgiu da “necessidade de associação”, como pensa Platão; ele não é uma “construção da natureza”, como lhe responde Aristóteles; e, em espécie, não tem, como explica Ancillon, “a mesma origem que as línguas”. Está inteiramente errado quando ele assume que “assim como as línguas se desenvolveram e se formaram a partir da necessidade e da capacidade do homem de comunicar seus pensamentos e sentimentos, assim os estados também se desenvolveram por necessidade e por instinto de sociabilidade”; o estado também não é “un droit gouvernement de plusieurs ménages et de ce qui leur est commun avec puissance souveraine (um governo justo de diversos lares e do que é comum a eles com poder soberano)” (Bodin); o estado tampouco surgiu para pôr fim à “bellum omnium 27

O Estado contra omnes (guerra de todos contra todos)”, como acreditava Hobbes e muitos outros depois dele; o estado é tampouco o resultado de um “contrat social” que – muito antes de Rousseau – Grotius, Spinoza e Locke queriam nos fazer acreditar; o estado é talvez “o meio para o fim superior do desenvolvimento sempre contínuo daquilo que é puramente humano em uma nação”, como Fichte afirmou; mas certamente o estado não tem esse propósito; não foi criado e não é mantido para esse fim; o estado também não é “o Absoluto”, como diz Schelling, e muito menos “a realidade da ideia moral, o espírito moral como a vontade manifesta, evidente em si mesma e substancial que pensa, sabe e realiza o que sabe”, como também afirma Hegel de forma tão bela quanto clara. Também não podemos concordar com Stahl quando ele chama o estado de “reino moral da comunidade humana” e “considerado em forma mais profunda, uma instituição divina”. E tampouco Marco Túlio Cícero quando pergunta: “quid est enim civitas nisi juris societas? (pois, que é uma cidade senão uma sociedade de lei?)” E menos ainda seu seguidor, von Savigny, ao ver na “origem do estado uma espécie de geração de lei, o mais alto grau de geração de leis em geral” e o estado se definiu como “a manifestação corpórea do povo”. De forma similar, Bluntschli declara que o estado é uma “pessoa do povo” e, assim, começa a série daqueles teóricos que declaram o estado, ou a sociedade, ou qualquer mistura dos dois, como um “superorganismo”, uma visão que é tão insustentável quanto a afirmação de Sir Henry Maine de que o estado se desenvolveu a partir da família através dos elos intermediários: sexo, casa e tribo. O estado também não é uma “unidade federal”, como supõe o jurista Jellinek. O antigo Böhmer chegou muito perto da verdade quando disse que “denique regnorum praecipuorum ortus et incrementa perlustrans vir et latrocinia potentiae initia fuisse apparebit (a origem do crescimento dos principais reinos parece coincidir com o início do poder do homem de roubar e matar)”; e, ainda assim, Carey está no caminho errado quando considera o estado como sendo fundado por uma gangue de ladrões que se levantaram para dominar seus compatriotas. Há uma partícula maior ou menor de verdade em algumas dessas explicações, mas elas não são esgotantes, e a maioria está totalmente errada. 28

Introdução

(b) A Ideia Sociológica do Estado Então, o que é o estado em conceitos sociológicos? A própria história dessa palavra nos diz isso. Vem do italiano do período renascentista. Lá a palavra se referia ao príncipe que havia chegado ao poder através da violência, juntamente com seus seguidores: “Os governantes e seus seguidores são chamados de lo stato, e este nome foi então autorizado a usurpar o significado de toda a existência de um território”, disse Jakob Burckhardt. Assim, Luís XIV estava certo em um sentido mais profundo do que ele mesmo suspeitava com seu altivo ditado: “L’Etat c’est moi”. Em nossa palavra “Hofstaat”, o antigo significado ainda permanece. Essa é “a lei segundo a qual ele empossou”, e é isso que o estado permaneceu. É inteiramente, em sua origem e quase inteiramente em sua essência em seus primeiros estágios de existência, uma instituição social imposta por um grupo vitorioso de homens a um grupo vencido de homens, com o único propósito de regular o domínio do primeiro sobre o último e se proteger contra insurreições internas e ataques externos. E o domínio não tinha outra intenção final senão a exploração econômica dos vencidos pelos vencedores. Nenhum “estado” primitivo na história mundial se desenvolveu de qualquer outra forma;2 se uma tradição confiável relata o contrário, é meramente uma questão de fusão de dois estados primitivos já totalmente desenvolvidos em uma organização mais complexa; ou é no máximo uma variante humana da fábula das ovelhas que fizeram do urso seu rei para protegê-las do lobo; mas, mesmo neste caso, a forma 2

“A história é incapaz de nos mostrar um povo em que os primeiros traços da divisão do trabalho e da agricultura não coincidissem também com tal exploração econômica, na qual o fardo do trabalho não recaísse sobre alguns e o fruto do mesmo recaísse sobre outros, na qual, em outras palavras, a divisão do trabalho não teria assumido a forma de um se submeter ao outro.” (Rodbertus-Jagetzow, Beleucht. der soz. Frage. 2ª ed. Berlim 1890, p. 124).

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O Estado e o conteúdo do estado tornaram-se exatamente os mesmos que nos “estados lobos” da cultura inocente e imediata. Até a pequena lição de história dada aos nossos jovens é suficiente para provar essa afirmação geral. Em todos os lugares, uma tribo selvagem guerreira rompe as fronteiras de um povo menos guerreiro, estabelece-se como uma nobreza e funda seu estado. Na Mesopotâmia, onda após onda e estado após estado: babilônios, amorreus, assírios, árabes, medos, persas, macedônios, partos, mongóis, seljúcidas, tártaros, turcos; no Nilo, hicsos, núbios, persas, gregos, romanos, árabes, turcos; em Hellas, os estados dóricos, sinais típicos; na Itália, romanos, ostrogodos, lombardos, francos, normandos, alemães; na Espanha, cartagineses, romanos, visigodos, árabes; na Gália, romanos, francos, burgúndios; na Grã-Bretanha, saxões, normandos. Onda após onda de tribos guerreiras selvagens também varreram a Índia até a Malásia, também sobre a China; e o mesmo tipo por toda parte nas colônias europeias, onde só se encontrava alguns núcleos populacionais sedentários: na América do Sul e México. Mas onde isso falta, onde só se encontram caçadores nômades que só podem ser mortos, mas não subjugados, ajuda-se a si mesmo importando de longe as massas de homens explorados e recrutados: o tráfico de escravos! As únicas aparentes exceções são aquelas colônias europeias nas quais não é mais possível, através da importação escravos, compensar a falta de uma população nativa sedentária. Uma dessas colônias, os Estados Unidos, é um dos estados mais poderosos da história do mundo. Aqui a exceção é explicada pelas massas de pessoas que serão exploradas e submetidas ao trabalho compulsório importarem a si mesmas através da emigração em massa de tais estados primitivos ou de seus estágios superiores de desenvolvimento, nos quais a exploração atingiu um grau muito extremo, ao mesmo tempo em que a liberdade de movimento já foi alcançada. Aqui, então, há, por assim dizer, uma infecção remota com a “posição de estado” advinda de surtos estrangeiros. No entanto, onde a imigração é muito baixa nessas colônias, seja pelas distâncias excessivas que resultam em elevados custos de 30

Introdução deslocamento, seja pelas restrições de imigração, já nos aproximamos do derradeiro objetivo do desenvolvimento do estado, que já vemos como necessário para um estágio final para o qual ainda não temos o termo científico. Aqui, mais uma vez, na dialética do desenvolvimento, uma mudança na quantidade se transformou em uma mudança na qualidade: a velha forma foi preenchida com nova matéria. Ainda temos um “estado” na medida em que representa a regulação estrita da convivência social de uma grande massa de pessoas, assegurada por meios externos de poder: mas não é mais um “estado” no antigo sentido, não é mais um instrumento de dominação política e exploração econômica de um grupo social por meio de outro, não é mais um “estado de classes”, mas uma condição que parece realmente pactuada por um “contrato social”. As colônias australianas estão muito próximas desse estágio; e isso está quase chegando à Nova Zelândia. Enquanto não se chegar a um consenso comum sobre a origem e a natureza dos estados históricos ou, o que é a mesma coisa, do “estado” no sentido sociológico, será vã uma tentativa de estabelecer um novo nome para essas comunidades mais avançadas. Apesar de todos os protestos, elas ainda seriam chamadas de “estados”, senão pela benéfica confusão dos termos. Vamos chamá-las de “cidadanias de homens livres” nesta discussão, a fim de captarmos um novo conceito. A visão geral sumarizada sobre os estados do passado e do presente teria de ser suplementada, se houvesse espaço, pelo exame dos fatos que nos são apresentados pela etnologia sobre aqueles estados que não recaem sobre o campo de visão de nossa erroneamente assim chamada “história do mundo”. Aqui só pode ser assegurado que também aqui nossa regra geral não admite exceção. Também no arquipélago malaio, no “grande laboratório sociológico da África”, em suma, em todos os lugares deste planeta onde o desenvolvimento das tribos já atingiu uma forma superior, o “estado” surgiu através da subjugação de um grupo de homens por outro, e a exploração econômica dos subjugados era e é sua raison d’être, sua “razão suficiente”.

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O Estado Nesta consideração, no entanto, a visão geral que acabamos de fazer pode nos servir não apenas como prova da proposição fundamental, que devemos acima de tudo, para nomear o pioneiro, a Ludwig Gumplowicz, o constitucionalista e sociólogo de Graz, mas pode também nos iluminar imediatamente, em um breve lampejo, do caminho percorrido pelo “estado” no sofrimento da humanidade e no qual agora o seguiremos: do primitivo estado conquistador para, através de mil passagens, a cidadania de homens livres.

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I A Gênese do Estado Uma única força impulsiona toda a vida; uma força a desenvolveu, desde a única célula, a partícula de albumina flutuando no oceano quente do tempo pré-histórico, até os vertebrados e depois ao homem. Essa única força, de acordo com Lippert, é a tendência de prover a vida, bifurcada em “fome e amor”. Com o homem, no entanto, a filosofia também entra no jogo dessas forças, a fim de, doravante, junto com “a fome e o amor, manter unida a estrutura do mundo dos homens”. Certamente, esta filosofia, esta “ideia” de Schopenhauer, é em sua origem nada mais do que uma criatura da provisão para a vida chamada por ele de “vontade”. É um órgão de orientação no mundo, um braço na luta pela existência. No entanto, apesar disso, chegaremos a conhecer o desejo de causalidade como uma força autoatuante e de fatos sociais como cooperadores no processo sociológico de desenvolvimento. No início da sociedade humana, e à medida que ela se desenvolve gradualmente, essa tendência avança em várias ideias bizarras chamadas de “superstição”. Elas são baseadas em conclusões puramente lógicas de observações incompletas sobre ar e água, terra e fogo, animais e plantas, que parecem dotados de uma multidão de espíritos bondosos e malévolos. Pode-se dizer que nos tempos modernos mais recentes, em estágio alcançado apenas por pouquíssimas raças, surge também a filha mais nova do desejo de causalidade, a saber, a ciência, como resultado lógico da observação completa dos fatos; ciência, agora necessária para exterminar a superstição amplamente ramificada, que, com inúmeros fios, se enraizou na própria alma da humanidade.

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O Estado Mas, por mais poderosa que seja, especialmente no momento do “êxtase”,3 a superstição pode ter influenciado a história, por mais poderosa que seja, mesmo em tempos comuns, ela pode ter cooperado no desenvolvimento da vida comunitária humana, a principal força do desenvolvimento ainda encontra-se nas necessidades da vida, que obrigam o homem a adquirir para si e para a sua família o alimento, o vestuário e a habitação. Este continua sendo, portanto, o impulso “econômico”. Uma investigação sociológica — e isso significa sociopsicológica — do desenvolvimento da história não pode, portanto, progredir senão seguindo os métodos pelos quais as necessidades econômicas foram satisfeitas em seu desdobramento gradual e prestando atenção às influências do impulso causal em seu devido lugar.

(a) Meios Políticos e Econômicos Existem dois meios fundamentalmente opostos pelos quais o homem, necessitando de sustento, é impelido a obter os meios necessários para satisfazer seus desejos. São o trabalho e o roubo, o seu próprio trabalho e a apropriação forçada do trabalho alheio. Roubo! Apropriação forçada! Essas palavras nos transmitem ideias de crime e penitenciária, pois somos contemporâneos de uma civilização desenvolvida, especificamente baseada na inviolabilidade da propriedade. E essa forte impressão não se perde quando estamos convencidos de que o roubo por terra e mar é a relação primitiva da vida, assim como o ofício dos guerreiros — que também por muito tempo é apenas roubo organizado em massa — constitui a mais respeitada das ocupações. Tanto por causa disso quanto pela necessidade de ter, no desenvolvimento posterior deste estudo, termos concisos, claros e nitidamente opostos para esses contrastes tão importantes, proponho na discussão a seguir chamar o próprio trabalho de um indivíduo e a troca 3

Achelis, Die Ekstase in ihrer kulturellen Bedeutung, vol. 1 de Kulturprobleme der Gegenwart, Berlim, 1902.

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A Gênese do Estado equivalente do seu próprio trabalho pelo trabalho alheio, o “meio econômico” para a satisfação das necessidades, enquanto a apropriação não recíproca do trabalho alheio será chamada de “meio político”. A ideia não é totalmente nova; os filósofos da história sempre encontraram essa contradição e tentaram formulá-la. Mas nenhuma dessas fórmulas levou a premissa ao seu fim lógico completo. Em nenhum lugar é mostrado claramente que a contradição consiste apenas nos meios pelos quais o propósito idêntico, a aquisição de objetos econômicos de consumo, deve ser obtido. No entanto, este é o ponto crítico do raciocínio. No caso de um pensador do nível de Karl Marx, pode-se observar que confusão é produzida quando o propósito econômico e os meios econômicos não são estritamente diferenciados. Todos esses erros, que acabaram levando a esplêndida teoria de Marx para tão longe da verdade, basearam-se na falta de diferenciação clara entre os meios de satisfação econômica das necessidades e seu fim. Isso o levou a designar a escravidão como “categoria econômica” e a força como “força econômica” — meias verdades que são muito mais perigosas do que inverdades totais, pois sua descoberta é mais difícil e as falsas conclusões a partir delas são inevitáveis. Por outro lado, nossa própria diferenciação nítida entre os dois meios para o mesmo fim nos ajudará a evitar tal confusão. Esta será nossa chave para compreender o desenvolvimento, a essência e o propósito do estado; e como toda a história universal até agora foi apenas a história de estados, para uma compreensão da história universal também. Toda a história do mundo, desde os tempos primitivos até a nossa própria civilização, apresenta uma única fase, uma disputa entre os meios econômicos e os meios políticos; e pode apresentar apenas esta fase até que tenhamos alcançado a cidadania de homens livres.

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O Estado

(b) Povos sem Estado: Caçadores e Agricultores O estado é uma organização dos meios políticos. Nenhum estado, portanto, pode surgir até que os meios econômicos tenham criado um número definido de objetos para a satisfação de necessidades, objetos esses que podem ser levados embora ou apropriados por roubo bélico. Por isso, os caçadores primitivos não têm estado; e mesmo os caçadores mais desenvolvidos tornam-se partes de uma estrutura estatal apenas quando encontram em sua vizinhança uma organização econômica evoluída que podem subjugar. Mas caçadores primitivos vivem em anarquia prática. Grosse diz a respeito dos caçadores primitivos em geral: Não há diferenças essenciais de fortuna entre eles e, portanto, falta uma fonte principal para a origem das diferenças de posição. Geralmente, todos os homens adultos dentro da tribo desfrutam de direitos iguais. Os mais velhos, graças à sua maior experiência, têm certa autoridade; mas ninguém se sente obrigado a prestar-lhes obediência. Onde, em alguns casos, os chefes são reconhecidos — como os botokude, os centrocalifornianos, os wedda e os mincopie — seus poderes são extremamente limitados. O chefe não tem meios de impor seus desejos contra a vontade dos demais. A maioria das tribos de caçadores, no entanto, não tem chefe. Toda a sociedade dos homens ainda forma uma massa homogênea e indiferenciada, na qual só alcançam proeminência aqueles indivíduos que se acredita possuírem poderes mágicos.4

Aqui, então, quase não existe uma centelha de “posição de estado”, mesmo no sentido das teorias comuns do estado, menos ainda no sentido da correta “ideia sociológica do estado”. 4

Grosse, Formen der Familie. Freiburg e Leipzig, 1896, p. 39.

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A Gênese do Estado A estrutura social dos camponeses primitivos não tem mais semelhança com um estado do que tem a horda de caçadores. Onde o camponês, trabalhando a terra com uma enxada, vive em liberdade, ainda não há “estado”. O arado é sempre a marca de uma condição econômica superior que ocorre apenas em um estado; isto é, em um sistema de trabalho de plantação realizado por servos subjugados.5 Os agricultores vivem isolados uns dos outros, espalhados pelo país em áreas rurais separadas, talvez em aldeias, separados por causa de brigas sobre distritos ou limites de fazendas. Na melhor das hipóteses, eles vivem em associações fracamente organizadas, unidos por juramento, ligados apenas frouxamente pelo laço que a consciência da mesma descendência, fala e a mesma crença lhes impõe. Eles se unem talvez uma vez por ano na celebração comum de ancestrais renomados ou do deus tribal. Não há autoridade governante sobre toda a massa; os vários chefes de uma aldeia, ou possivelmente de um distrito, podem ter mais ou menos influência em suas esferas circunscritas, dependendo geralmente de suas qualidades pessoais e, especialmente, dos poderes mágicos que lhes são atribuídos. Cunow descreve os camponeses peruanos antes da incursão dos incas da seguinte forma: “Uma vida não regulamentada lado a lado de muitas tribos independentes e em guerra mútua, que novamente foram divididas em uniões territoriais mais ou menos autônomas, mantidas juntas por laços de parentesco.”6 Pode-se dizer que todos os camponeses primitivos do velho e do novo mundo eram desse tipo. Em tal estado da sociedade, dificilmente é concebível que uma organização guerreira pudesse surgir com propósitos de ataque. É bastante difícil mobilizar o clã, ou mais ainda a tribo, para defesa comum. O camponês está sempre carente de mobilidade. Ele é tão apegado ao solo quanto as plantas que cultiva. De fato, o trabalho de seu campo o torna “vinculado ao solo” (glebae adscriptus), embora, na ausência de lei, ele tenha liberdade de movimento. Além disso, que finalidade teria uma expedição de pilhagem em um país que, em toda a 5 6

Ratzel, Völkerkunde. 2ª Edition. Leipzig e Viena, 1894-5, II, p. 372. Die Soziale Verfassung des Inkareichs. Stuttgart, 1896, p. 51.

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O Estado sua extensão, é ocupado apenas por comunidades camponesas? O camponês não pode tirar do camponês nada que ele já não possua. Numa condição de sociedade marcada pela superfluidade das terras agrícolas, cada indivíduo contribui apenas com um pouco de trabalho para o seu cultivo extensivo. Cada um ocupa tanto território quanto necessita. Mais seria supérfluo. Sua aquisição seria trabalho perdido, mesmo que seu proprietário pudesse conservar por qualquer período de tempo os produtos de grãos assim garantidos. Sob condições primitivas, no entanto, isso se deteriora rapidamente devido à mudança de atmosfera, formigas ou outros agentes. Segundo Ratzel, o camponês centro-africano deve converter o mais rápido possível a porção em excesso de sua colheita em cerveja para não perdê-la totalmente! Por todas essas razões, falta totalmente aos camponeses primitivos aquele desejo bélico de tomar a ofensiva que é a marca distintiva dos caçadores e dos pastores: a guerra não pode melhorar sua condição. E essa atitude pacífica é fortalecida pelo fato de que a ocupação do camponês não o torna um guerreiro eficiente. É verdade que seus músculos são fortes e ele tem poderes de resistência, mas ele é lento de movimento e lento para chegar a uma determinação, enquanto caçadores e nômades, por seus métodos de vida, desenvolvem velocidade de movimento e rapidez de ação. Por esta razão, o camponês primitivo costuma ter uma disposição mais gentil do que eles.7 Resumindo: nas condições econômicas e sociais dos distritos camponeses não se encontra nenhuma diferenciação a serviço das 7

Essa contradição psicológica, embora muitas vezes expressamente declarada, não é a regra absoluta, Grosse, Forms of the Family, diz (p. 137): “Alguns historiadores da civilização colocam o camponês em oposição aos nômades guerreiros, alegando que os camponeses são pessoas amantes da paz. De fato, não se pode afirmar que sua vida econômica os leve às guerras, ou os eduque para ela, como se pode dizer dos criadores de gado. No entanto, encontra-se no âmbito desta forma de cultivo uma massa dos povos mais guerreiros e cruéis que se encontram em qualquer lugar. Os canibais selvagens do arquipélago de Bismarck, os vitianos sedentos de sangue, os açougueiros de homens de Daóme e dos axantes — todos eles cultivam os acres "pacíficos"; e se outros camponeses não são tão ruins, parece que a disposição gentil da vasta massa parece ser, no mínimo, questionável.”

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A Gênese do Estado formas superiores de integração. Não existe nem o impulso nem a possibilidade de sujeição bélica dos vizinhos. Nenhum “Estado” pode, portanto, surgir; e, de fato, nenhum jamais surgiu de tais condições sociais. Se não houvesse um impulso de fora, de grupos de homens alimentados de maneira diferente, o agricultor primitivo nunca teria descoberto o estado.

(c) Povos precedendo o Estado: Pastores e Vikings Os pastores, ao contrário, embora isolados, desenvolveram toda uma série de elementos de posição de estado; e nas tribos que progrediram mais, desenvolveram essa série de elementos em sua totalidade, com a única exceção do último ponto de identificação que completa o estado em seu sentido moderno, ou seja, com exceção apenas da ocupação definitiva de um território circunscrito. Um desses elementos é econômico. Mesmo sem a intervenção de força extraeconômica, ainda pode desenvolver-se entre os pastores uma diferenciação suficientemente acentuada de propriedade e renda. Supondo que, no início, houvesse total igualdade no número de cabeças de gado, dentro de pouco tempo, um homem pode ser mais rico e o outro mais pobre. Um criador especialmente inteligente verá seu rebanho aumentar rapidamente, enquanto um vigia especialmente cuidadoso e um caçador ousado o preservarão da dizimação por animais de rapina. O elemento sorte também afeta o resultado. Um desses pastores encontra um pasto especialmente bom e locais saudáveis para beber água; o outro perde todo o seu estoque por causa de uma pestilência, ou por causa de uma nevasca ou tempestade de areia. Distinções na fortuna rapidamente trazem distinções de classe. O pastor que perdeu tudo deve contratar-se ao homem rico; e submetendose assim sob o outro, torna-se dependente dele. Onde quer que vivam pastores, de todas as três partes do mundo antigo, encontramos a mesma história. Meitzen relata sobre os lapões, nômades na Noruega: “Trezentas renas bastavam para uma família; quem possuía apenas cem 39

O Estado deveria entrar ao serviço do mais rico, cujos rebanhos chegavam a mil cabeças.”8 O mesmo escritor, falando dos nômades da Ásia Central, diz: “Uma família exigia trezentas cabeças de gado para conforto; cem cabeças é pobreza, seguida por uma vida de dívidas. O servo deve cultivar as terras do senhor.”9 Ratzel relata a respeito dos hotentotes da África uma forma de “commendatio”: “O homem pobre se esforça para se contratar para o homem rico, seu único objetivo é obter gado.”10

Laveleye, que relata as mesmas circunstâncias da Irlanda, atribui a origem e o nome do sistema feudal (système féodal) ao empréstimo de gado pelos ricos aos membros pobres da tribo; consequentemente, um “fee-od” (ser dono de gado) foi a primeira rixa pela qual, enquanto a dívida existisse, o magnata vinculava o pequeno proprietário a si mesmo como “seu homem”. Podemos apenas sugerir os métodos pelos quais, mesmo em associações pacíficas de pastores, essa diferenciação econômica e social consequente pode ter sido promovida pela conexão do patriarcado com os ofícios do sacerdócio supremo e sacrificial, se os velhos sábios usaram habilmente a superstição de seus associados de clã. Mas essa diferenciação, desde que não seja afetada pelos meios políticos, opera dentro de limites muito modestos. Inteligência e eficiência não são hereditárias com nenhum grau de certeza. O maior rebanho será dividido se muitos herdeiros crescerem em uma tenda, e a sorte é complicada. Em nossos dias, o homem mais rico entre os lapões da Suécia, no menor tempo possível, foi reduzido a uma pobreza tão completa que o governo teve que sustentá-lo. Todas essas causas fazem

8 9 10

Siedlung und Agrarwesen der Westgermanen, etc. Berlim, 1895, I, p. 273. l. c. I, p. 138. Ratzel, l. c. I, p. 702.

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A Gênese do Estado com que a condição original de igualdade econômica e social seja sempre aproximadamente restaurada.11 “Quanto mais pacífico, aborígine e genuíno for o nômade, menores serão as diferenças tangíveis de posse. É comovente notar o prazer com que um velho príncipe dos mongóis de Tsaidam aceita seu tributo ou presente, que consiste em um punhado de tabaco, um pedaço de açúcar e vinte e cinco copeques.”12

Essa igualdade é destruída permanentemente e em maior grau pelos meios políticos. “Onde a guerra é travada e o espólio obtido, surgem diferenças maiores, que encontram sua expressão na propriedade de escravos, mulheres, armas e montarias espirituosas.”13 A propriedade de escravos! O nômade é o inventor da escravidão e, assim, criou a muda do estado, a primeira exploração econômica do homem pelo homem. O caçador faz guerras e faz cativos. Mas ele não os torna escravos; ou ele os mata, ou então os adota na tribo. Escravos seriam inúteis para ele. O espólio da caçada pode ser guardado ainda menos do que o grão pode ser “capitalizado”. A ideia de usar um ser humano como motor de trabalho só poderia surgir em um plano econômico no qual um corpo de riqueza se desenvolveu, chamemos de capital, que pode ser aumentado apenas com a ajuda de forças de trabalho dependentes. Este estágio é alcançado pela primeira vez pelos pastores. As forças de uma família, sem ajuda externa, são suficientes para manter unido um rebanho de tamanho muito limitado e protegê-lo de ataques de animais de rapina ou inimigos humanos. Até que os meios políticos sejam postos em jogo, as forças auxiliares são encontradas com muita parcimônia; como os membros mais pobres do clã já mencionado, juntamente com fugitivos de tribos estrangeiras, que se encontram em 11

12 13

Além disso, é crucial que em toda parte nessas sociedades os ricos sejam forçados pela pressão da opinião pública a doar generosamente, e muitas vezes excessivamente, até a ruína. Ratzel, l. c. II, p. 555. Ratzel, l. c. II, p. 555.

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O Estado todo o mundo como dependentes protegidos na companhia dos maiores donos de rebanhos.14 Em alguns casos, todo um pobre clã de pastores entra, meio livremente, a serviço de alguma tribo rica. “Povos inteiros ocupam posições correspondentes à sua riqueza relativa. Assim, os tungusen, que são muito pobres, tentam viver perto dos assentamentos dos tschuktsches, porque encontram ocupação como pastores de renas pertencentes aos ricos tschuktsches; eles são pagos em renas. E a sujeição dos ural-samojedes pelos pirjaenes ocorreu através da ocupação gradual de seus pastos.”15

Exceto, porém, o último caso citado, que já é bastante estatal, as poucas forças de trabalho existentes, sem capital, não são suficientes para permitir que o clã mantenha rebanhos muito grandes. Além disso, os próprios métodos de pastoreio obrigam à divisão. Pois um pasto não pode, como dizem nos Alpes Suíços, ser “exagerado”, ou seja, ter gado demais. O perigo de perder todo o rebanho é reduzido à medida que ele é distribuído em vários pastos. Pois pragas de gado, tempestades, etc., podem afetar apenas uma parte; enquanto mesmo o inimigo do exterior não consegue afugentar todos de uma vez. Por isso, os hereros, por exemplo, “encontram todo proprietário abastado obrigado a manter, além do rebanho principal, vários outros rebanhos subsidiários. Irmãos mais novos ou outros parentes próximos, ou na falta deles, servos antigos testados, observam-nos.”16 Por isso, o nômade desenvolvido poupa seu inimigo capturado; ele pode usá-lo como escravo em seu pasto. Podemos notar essa transição de matar para escravizar em um rito costumeiro dos citas: eles ofereciam em seus locais de sacrifício um em cada cem inimigos capturados. Lippert, que relata isso, vê nisso “o começo de uma

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15 16

Por exemplo, com os ovambo segundo Ratzel, l. c. II, p. 214, que em parte “parecem ser encontrados na condição de escravos”, e de acordo com Laveleye entre os antigos irlandeses (Fuidhirs). Ratzel, l. c. I, p. 648. Ratzel, l. c. II, p. 99.

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A Gênese do Estado limitação, e a razão disso é evidentemente encontrada no valor que um inimigo capturado adquiriu ao se tornar o servo de um pastor tribal”.17 Com a introdução dos escravos na economia tribal dos pastores, o estado, em seus elementos essenciais, está completo, exceto que ainda não adquiriu um limite territorial definitivamente circunscrito. O estado tem, portanto, a forma de domínio, e sua base econômica é a exploração do trabalho humano. Daí em diante, a diferenciação econômica e a formação de classes sociais avançam rapidamente. Os rebanhos dos grandes, sabiamente divididos e mais bem guardados por numerosos servos armados do que os dos simples homens livres, em regra, mantêm-se em seu número original: eles também aumentam mais rapidamente do que os dos homens livres, pois são aumentados pela maior parte no espólio que os ricos recebem, correspondente ao número de guerreiros (escravos) que estes colocam no campo. Da mesma forma, o cargo de sacerdote supremo cria uma fenda cada vez maior que divide os números do clã, todos anteriormente iguais; até que finalmente uma nobreza genuína, os ricos descendentes dos ricos patriarcas, é colocada em justaposição aos homens livres comuns. “Os peles-vermelhas também não desenvolveram em sua organização progressiva nenhuma nobreza e nenhuma escravidão,18 e nisso sua organização se distingue essencialmente daquelas do velho mundo. Ambos surgem do desenvolvimento do patriarcado dos povos criadores de gado.”19

Assim, encontramos, com todas as tribos desenvolvidas de pastores, uma separação social em três classes distintas: nobreza (“chefe da casa de seus pais” na frase bíblica), homens livres comuns e escravos. De acordo com Mommsen, “todos os povos indo-germânicos 17 18

19

Lippert, Kulturgeschichte der Menschheit. Stuttgart, 1886, II, p. 302. Esta afirmação de Lippert não é totalmente correta. Os caçadores e pescadores domiciliados mais desenvolvidos do noroeste da América têm nobres e escravos. Lippert, l. c. II, p. 522.

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O Estado têm a escravidão como uma instituição jurídica”.20 Isso se aplica aos arianos e semitas da Ásia e da África, bem como aos hamitas. Entre todos os fulbe do Saara, “a sociedade é dividida em príncipes, chefes, plebeus e escravos”.21 E encontramos os mesmos fatos em todos os lugares, é claro, onde quer que a escravidão seja legalmente estabelecida, como entre os hova22 e seus parentes polinésios, os “Nômades do Mar”. A psicologia humana em circunstâncias semelhantes produz condições semelhantes, independentemente de cor ou raça. Assim, o pastor gradualmente se acostuma a ganhar a vida por meio da guerra e da exploração dos homens como motores de trabalho servil. E é preciso admitir que todo o seu modo de vida o impele a usar cada vez mais os “meios políticos”. Ele é fisicamente mais forte e tão hábil e determinado quanto o caçador primitivo, cujo suprimento de comida é muito irregular para permitir que ele atinja seu maior desenvolvimento físico natural. O pastor pode, em todos os casos, crescer até sua estatura completa, desde que tenha nutrição ininterrupta no leite de seus rebanhos e um suprimento infalível de carne. Isso é mostrado no nômade de cavalos ariano, não menos do que no pastor da Ásia e da África, por exemplo, o zulu. Em segundo lugar, as tribos de pastores aumentam mais rapidamente do que as hordas de caçadores. Isto é assim, não só porque os adultos podem obter muito mais alimento de um determinado território, mas ainda mais porque a posse do leite dos animais encurta o período de amamentação das mães e, consequentemente, permite que nasçam um maior número de crianças e cresçam até à maturidade. Como consequência, os pastos e as estepes do velho mundo tornaramse fontes inesgotáveis, que periodicamente irrompiam de seus confins deixando escapar inundações de humanidade, de modo que passaram a ser chamadas de “vaginae gentium”.

20 21 22

Römische Geschichte. 6ª edição. Berlim, 1874, I, p. 17. Ratzel, l. c. II, p. 518. Ratzel, l. c. I, p. 425.

44

A Gênese do Estado Além disso, encontramos um número muito maior de guerreiros armados entre os pastores do que entre os caçadores. Cada um desses pastores é mais forte individualmente e, no entanto, todos juntos são pelo menos tão móveis quanto uma horda de caçadores; enquanto os cavaleiros de camelo e cavalo entre eles são incomparavelmente mais móveis. Essa massa maior dos melhores elementos individuais é mantida unida por uma organização somente possível sob a égide de um patriarcado detentor de escravos acostumado a governar, uma organização preparada e desenvolvida por sua ocupação e, portanto, superior à dos jovens guerreiros dos caçadores jurados ao serviço de um chefe. Os caçadores, pode-se observar, trabalham melhor sozinhos ou em pequenos grupos. Os pastores, por outro lado, movem-se da melhor maneira em um grande comboio, no qual cada indivíduo está mais protegido; e que é em todos os sentidos uma expedição armada, onde cada ponto de parada se torna um acampamento armado. Assim, desenvolve-se uma ciência de manobras táticas, subordinação estrita e disciplina firme. “Não se engane”, como diz Ratzel, “se se considerar como forças disciplinares na vida dos nômades a ordem das tendas que, da mesma forma, existem desde os tempos mais remotos. Cada um e tudo aqui tem um lugar tradicional definido; daí a rapidez e a ordem na montagem e desmontagem do acampamento, no estabelecimento e na reorganização. É inédito que alguém sem ordens, ou sem o motivo mais premente, deva mudar de lugar. Graças a esta disciplina rigorosa, as tendas podem ser embaladas e carregadas no espaço de uma hora.”23

A mesma ordem experimentada, transmitida por eras incontáveis, regula a marcha guerreira da tribo dos pastores durante a caça, na guerra e na peregrinação pacífica. Assim, eles se tornam lutadores profissionais, irresistíveis até que o estado desenvolva organizações mais elevadas e poderosas. Pastor e guerreiro tornam-se conceitos

23

Ratzel, l. c. II, p. 545.

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O Estado idênticos. A afirmação de Ratzel sobre os nômades da Ásia Central se aplica a todos eles: “O nômade é, como pastor, um conceito econômico, como guerreiro, um conceito político. É fácil para ele passar de qualquer atividade para a do guerreiro e ladrão. Tudo na vida tem para ele um lado pacífico e bélico, um lado honesto e ladrão; de acordo com as circunstâncias, uma ou outra dessas fases aparece em primeiro lugar. Mesmo a pesca e a navegação, nas mãos dos turcomanos do Cáspio Oriental, transformaram-se em pirataria. [...] As atividades da existência aparentemente pacífica como pastor determinam as do guerreiro; o cajado pastoral torna-se um instrumento de luta. No outono, quando os cavalos retornam fortalecidos do pasto e a segunda colheita das ovelhas é concluída, as mentes dos nômades voltam-se para algum feudo ou expedição de roubo (Baranta, literalmente, fazer gado, levantar gado), adiada para aquele tempo. Esta é uma expressão do direito de autoajuda, que em disputas sobre questões de direito, ou em disputas que afetam a dignidade, ou em rixas de sangue, busca tanto retribuição quanto garantia nas coisas mais valiosas que o inimigo possui, ou seja, os animais de seu rebanho. Os jovens que não estiveram em uma baranta devem primeiro adquirir o nome de batir, herói, e assim ganhar o direito de honra e respeito. O prazer da donidade unido ao desejo de aventura desenvolve a tríplice gradação descendente de vingador, herói e ladrão.”24

Um desenvolvimento idêntico ocorre com os nômades do mar, os “vikings”, como com os nômades da terra. Isso é bastante natural, pois nos casos mais importantes observados na história da humanidade, os nômades do mar são simplesmente nômades da terra que se dirigem ao mar. Observamos acima um dos inúmeros exemplos que indicam que o pastor não hesita muito em usar para expedições saqueadoras, em vez do cavalo ou do “navio do deserto”, os “cavalos do mar”. Este caso é 24

Ratzel, l. c. II, pp. 390-1.

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A Gênese do Estado exemplificado pelos turcomanos do Cáspio Oriental.25 Outro exemplo é fornecido pelos citas: “A partir do momento em que aprendem com seus vizinhos a arte de navegar nos mares, esses pastores errantes, a quem Homero (Ilíada, XIII, 3) chama de 'cavaleiros respeitados, comedores de leite e pobres, os mais justos dos homens', transformam-se em ousados navegadores como seus irmãos bálticos e escandinavos. Estrabão (Cas., 301) reclama: ‘Desde que se aventuraram no mar, praticando pirataria e assassinando estrangeiros, eles se tornaram piores; e associando-se com muitos povos, eles adotam seus hábitos mesquinhos de comércio e esbanjamento.'”26

Se os fenícios realmente eram “semitas”, eles fornecem um exemplo adicional de importância incomparável da transformação de “beduínos” da terra em do mar, i.e., ladrões guerreiros; e o mesmo é provavelmente verdade para a maioria dos numerosos povos que saquearam os países ricos ao redor do Mediterrâneo, seja da costa da Ásia Menor, Dalmácia ou da costa norte-africana. Estes começam desde os primeiros tempos, como vemos nos monumentos egípcios (os gregos não foram admitidos no Egito),27 e continuam até os dias atuais: e.g., os piratas do Rife. Os “mouros” norte-africanos, uma fusão de árabes e berberes, ambos originalmente nômades da terra, são talvez o exemplo mais célebre dessa mudança. Há casos em que os nômades do mar — ou seja, os ladrões do mar — surgem imediatamente dos pescadores, sem estágio intermediário de pastor. Já examinamos as causas que dão aos pastores sua superioridade sobre o campesinato: a população relativamente numerosa da horda, combinada com uma atividade que desenvolve 25 26 27

Ratzel, l. c. II, pp. 390-1. Lippert, l. c. I, p. 471. Kulischer, “Zur Entwicklungsgeschichte des Kapitelzinses.” Jahrbücher für National Ökonomie. parte III, vol. 18, p. 318, Jena, 1899: (Diz Estrabão: “Saqueadores e ansiosos por ir para terras estrangeiras devido à pobreza de sua terra natal.”)

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O Estado coragem e resolução rápida no indivíduo, e educa a massa como um todo para uma disciplina tensa. Tudo isso se aplica também aos pescadores que vivem no mar. Áreas de pesca ricas permitem uma densidade populacional considerável, como é demonstrado no caso dos índios do Noroeste (tlingit, etc.); estes permitem também a custódia de escravos, uma vez que o escravo ganha mais com a pesca do que seu sustento. Assim encontramos, somente aqui entre os peles-vermelhas, a escravidão desenvolvida como uma instituição; e encontramos, portanto, junto com ela, diferenças econômicas permanentes entre os homens livres, que resultam em uma espécie de plutocracia semelhante à observada entre os pastores. Aqui, como ali, o hábito de comandar os escravos produz o hábito de governar e o gosto pelos “meios políticos”. Isso é favorecido pela tensa disciplina desenvolvida na navegação. “Nenhuma vantagem da pesca em comum encontra-se na disciplina das tripulações. Eles devem prestar obediência implícita a um líder escolhido em cada um dos maiores barcos de pesca, pois todo sucesso depende da obediência. O comando de um navio depois facilita o comando do estado. Estamos acostumados a considerar os habitantes das Ilhas Salomão como completos selvagens, e ainda assim sua vida está sujeita a um elemento solitário, que combina suas forças, a saber, a navegação.”28

Se os índios do Noroeste não se tornaram tão famosos ladrões do mar no velho mundo, isso se deve ao fato de que as vizinhanças ao seu alcance não desenvolveram nenhuma civilização rica; mas todos os pescadores mais desenvolvidos praticam a pirataria. Por isso, os vikings têm a mesma capacidade de escolher os meios políticos como base de sua existência econômica que os ladrões de gado; e da mesma forma eles foram fundadores de estados em grande escala. Daqui em diante, distinguiremos os estados fundados por eles como “estados do mar”, enquanto os estados fundados por pastores — 28

Ratzel, l. c. I, p. 123.

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A Gênese do Estado e no novo mundo por caçadores — serão chamados de “estados terrestres”. Os estados do mar serão tratados extensivamente quando discutirmos as consequências do estado feudal desenvolvido. Enquanto, porém, estivermos discutindo o desenvolvimento do estado e do estado feudal primitivo, devemos nos limitar a considerar o estado da terra e deixar de lado o estado do mar. Este tratamento é conveniente, pois em todas as coisas essenciais o estado do mar tem as mesmas características, mas seu desenvolvimento não pode ser seguido através dos vários estágios típicos como pode o desenvolvimento do estado terrestre.

(d) A Gênese do Estado As hordas de caçadores são incomparavelmente mais fracas, tanto em número quanto na força dos lutadores individuais, do que os pastores com quem ocasionalmente esbarram. Naturalmente, eles não podem suportar o impacto. Eles fogem para as terras altas e montanhas, onde os pastores não têm vontade de segui-los, não apenas por causa das dificuldades físicas envolvidas, mas também porque seu gado não encontra pastagem lá; ou então entram em uma forma de relação clientelista, como acontecia com frequência na África, especialmente em tempos muito antigos. Quando os hicsos invadiram o Egito, tais caçadores dependentes os seguiram. Os caçadores costumam pagar pela proteção um tributo insignificante na forma de despojos da caça e são usados para reconhecimento e vigilância. Mas o caçador, sendo um “anarquista prático”, muitas vezes convida a sua própria destruição em vez de se submeter ao trabalho regular. Por essas razões, nenhum “estado” jamais surgiu de tal contato. Os camponeses lutam como recrutas indisciplinados e com seus combatentes individuais indisciplinados; de modo que, a longo prazo, embora sejam numerosos, não são mais capazes do que os caçadores de resistir ao ataque dos pastores fortemente armados. Mas o campesinato não foge. O camponês está apegado à sua terra e está acostumado ao trabalho regular. Ele permanece, cede à sujeição e presta homenagem 49

O Estado ao seu conquistador; essa é a gênese dos estados terrestres no velho mundo. No novo mundo, onde os animais de pastoreio maiores, gado, cavalos, camelos, não eram nativos, descobrimos que, em vez do pastor, o caçador é o conquistador do camponês, por causa de sua habilidade infinitamente superior no uso de armas e em disciplina militar. “No velho mundo descobrimos que o contraste entre pastores e camponeses desenvolvia a civilização; no novo mundo, o contraste é entre as tribos sedentárias e as errantes. Os toltecas, dedicados à agricultura, lutaram contra as tribos selvagens (com uma organização militar altamente desenvolvida) invadindo do norte, tão incansavelmente quanto o Irã com Turan.”29

Isso vale não apenas para o Peru e o México, mas para toda a América, um forte fundamento para a opinião de que a base fundamental da civilização é a mesma em todo o mundo, sendo seu desenvolvimento consistente e regular nas mais variadas condições econômicas e geográficas. Onde quer que a oportunidade se apresente e o homem possua o poder, ele prefere os meios políticos aos econômicos para a preservação de sua vida. E talvez isso não seja verdade apenas para o homem, pois, de acordo com Life of the Bees de Maeterlinck, um enxame que uma vez fez a experiência de obter mel de uma colmeia estrangeira, por roubo em vez de construção tediosa, está a partir de então arruinado para os “meios econômicos”. Das abelhas trabalhadoras, surgiram as abelhas ladras. Deixando de lado as formações de estado do novo mundo, que não têm grande significado na história universal, a causa da gênese de todos os estados é o contraste entre camponeses e pastores, entre trabalhadores e ladrões, entre terras baixas e pradarias. Ratzel, considerando a sociologia do ponto de vista geográfico, expressa isso inteligentemente:

29

Ratzel, l. c. I, p. 591.

50

A Gênese do Estado “Deve ser lembrado que os nômades nem sempre destroem a civilização oposta dos povos assentados. Isso se aplica não apenas a tribos, mas também a estados, mesmo aqueles de algum poder. O caráter guerreiro dos nômades é um grande fator na criação de estados. Encontra expressão nas imensas nações da Ásia controladas por dinastias nômades e exércitos nômades, como a Pérsia, governada pelos turcos; a China, conquistada e governada pelos mongóis e manchus; e nos estados mongóis e radjaputa da Índia, bem como nos estados na fronteira do Sudão, onde a amalgamação dos elementos anteriormente hostis ainda não se desenvolveu até agora, embora eles estejam unidos por benefício mútuo. Em nenhum lugar é tão claro como aqui na fronteira dos povos nômades e camponeses, que as grandes obras do impulso promovedor de civilização dos nômades não são resultado da atividade civilizadora, mas de façanhas bélicas a princípio prejudiciais ao trabalho pacífico. Sua importância reside na capacidade dos nômades de manter unidas as raças sedentárias que de outra forma facilmente se desintegrariam. Isso, no entanto, não exclui seu grande aprendizado com seus súditos. [...] No entanto, todo esse povo trabalhador e inteligente não tinha e não podia ter a vontade e o poder de governar, o espírito militar e o senso de ordem e subordinação que beneficia um estado. Por esta razão, os senhores nascidos no deserto do Sudão governam seu povo negro, assim como os manchus governam seus súditos chineses. Isso ocorre de acordo com uma lei, válida de Timbuctu a Pequim, segundo a qual formações estatais vantajosas surgem em ricas terras camponesas adjacentes a uma vasta pradaria; onde uma alta cultura material de povos sedentários é violentamente subjugada ao serviço dos habitantes das pradarias com energia, capacidade bélica e desejo de governar.”30

Na gênese do estado, da sujeição de um povo camponês a uma tribo de pastores ou a nômades do mar, podem ser distinguidas seis etapas. Na discussão a seguir, não se deve presumir que o 30

Ratzel, l. c. II, p. 370.

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O Estado desenvolvimento histórico real deva, em cada caso particular, galgar toda a escala etapa após etapa. Embora, mesmo aqui, o argumento não dependa de uma mera construção teórica, uma vez que cada estágio particular é encontrado em numerosos exemplos, tanto na história do mundo quanto na etnologia, e há estados que aparentemente progrediram em todos eles. Mas há muitos mais que pularam um ou mais desses estágios. A primeira fase compreende roubos e mortes em lutas de fronteira, combates intermináveis interrompidos nem pela paz nem pelo armistício. É marcado pela matança de homens, rapto de crianças e mulheres, pilhagem de rebanhos e queima de residências. Mesmo que os infratores sejam derrotados no início, eles retornam em corpos cada vez mais fortes, impelidos pelo dever da rixa de sangue. Às vezes, o grupo de camponeses pode se reunir, organizar sua milícia e talvez derrotar temporariamente o ágil inimigo; mas a mobilização é muito lenta e os suprimentos a serem trazidos para o deserto são muito caros para os camponeses. A milícia camponesa não carrega, como o inimigo, seu estoque de alimentos — seus rebanhos — para o campo. No sudoeste da África, os alemães experimentaram recentemente as dificuldades que uma força bem disciplinada e superior, equipada com um trem de abastecimento, com uma ferrovia voltando para sua base de abastecimento e com os milhões do Império Alemão atrás dela, pode ter com um punhado de guerreiros pastores, que foram capazes de dar aos alemães um revés decisivo. No caso dos impostos primitivos, essa dificuldade é aumentada pelo espírito tacanho do camponês, que considera apenas sua própria vizinhança, e pelo fato de que, enquanto a guerra continua, as terras não são cultivadas. Portanto, nesses casos, a longo prazo, o corpo pequeno, mas compacto e facilmente mobilizável derrota constantemente a massa maior e desarticulada, como a pantera triunfa sobre o búfalo. Este é o primeiro estágio na formação dos estados. O estado pode permanecer estacionário neste ponto por séculos, por mil anos. O seguinte é um exemplo completamente característico: Cada extensão de uma tribo turcomana anteriormente delimitada por um amplo cinturão que pode ser designado

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A Gênese do Estado como seu 'distrito de pilhagem'. Tudo ao norte e leste de Chorassan, embora nominalmente sob domínio persa, por décadas pertenceu mais aos turcomanos, jomudes, goklenes, e outras tribos das planícies fronteiriças, do que aos persas. Os tekinzes, de maneira semelhante, saquearam todos os trechos de Kiwa a Bokhara, até que outras tribos turcomanas foram reunidas com sucesso pela força ou pela corrupção para atuar como um tampão. Inúmeros outros exemplos podem ser encontrados na história da cadeia de oásis que se estende entre a Ásia Oriental e Ocidental diretamente através das estepes de sua parte central, onde desde os tempos antigos os chineses exerceram uma influência predominante através da posse de todos os centros estratégicos importantes, como o Oásis de Chami. Os nômades, partindo do norte e do sul, tentavam constantemente desembarcar nessas ilhas de solo fértil, que para eles devem ter parecido as Ilhas dos Abençoados. E toda horda, carregada de pilhagem ou fugindo após a derrota, era protegida pelas planícies. Embora as ameaças mais imediatas tenham sido evitadas pelo enfraquecimento contínuo dos mongóis e pelo domínio real do Tibete, a última insurreição dos dunganes mostrou com que facilidade as ondas de uma tribo móvel penetram essas ilhas de civilização. Somente após a destruição dos nômades, impossível enquanto houver planícies abertas na Ásia Central, sua existência pode ser definitivamente assegurada.31

Toda a história do velho mundo está repleta de casos bem conhecidos de expedições em massa, que devem ser atribuídas ao primeiro estágio de desenvolvimento do estado, na medida em que não visavam a conquista, mas diretamente o saque. A Europa Ocidental sofreu com essas expedições nas mãos dos celtas, germânicos, hunos, avares, árabes, magiares, tártaros, mongóis e turcos por terra; enquanto os vikings e os sarracenos o assediavam nas vias navegáveis. Essas hordas inundaram continentes inteiros muito além dos limites de seu território de pilhagem habitual. Eles desapareceram, voltaram, foram 31

Ratzel, l. c. II, pp. 390-1.

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O Estado absorvidos e deixaram para trás apenas terras devastadas. Em muitos casos, porém, avançaram em alguma parte do distrito inundado diretamente para o sexto e último estágio de formação de estado, nos casos em que estabeleceram um domínio permanente sobre a população camponesa. Ratzel descreve essas migrações em massa de forma excelente no seguinte: As expedições das grandes hordas de nômades contrastam com esse movimento, gota a gota e passo a passo, pois transbordam de um poder tremendo, especialmente a Ásia Central e todos os países vizinhos. Os nômades deste distrito, como da Arábia e do Norte da África, unem a mobilidade em seu modo de vida com uma organização que reúne toda a sua massa para um único objeto. Parece ser uma característica dos nômades que eles facilmente desenvolvem poder despótico e poder de longo alcance a partir da coesão patriarcal da tribo. Assim, surgem governos de massa, que se comparam a outros movimentos entre os homens da mesma forma que os riachos inchados se comparam ao fluxo constante, mas difuso, de um afluente. A história da China, Índia e Pérsia, não menos que a da Europa, mostra sua importância histórica. Assim como eles se moviam em seus campos com suas esposas e filhos, escravos e carroças, rebanhos e toda a sua parafernália, eles inundaram as terras fronteiriças. Embora esse lastro possa tê-los privado de velocidade, ele aumentou seu ímpeto. Os habitantes assustados foram levados diante deles e, como uma onda, rolaram sobre os países conquistados, absorvendo suas riquezas. Como carregavam tudo consigo, suas novas moradas foram equipadas com todos os seus bens e, portanto, seus assentamentos finais tiveram uma importância etnográfica. Dessa maneira, os magiares inundaram a Hungria, os manchus invadiram a China, os turcos, os países da Pérsia ao Adriático.32

O que foi dito aqui de hamitas, semitas e mongóis, pode ser dito também, pelo menos em parte, das tribos arianas de pastores. Aplica-se 32

Ratzel, l. c. II, pp. 388-9.

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A Gênese do Estado também aos verdadeiros negros, pelo menos àqueles que vivem inteiramente de seus rebanhos: “As tribos móveis e beligerantes dos kafirs possuem um poder de expansão que precisa apenas de um objeto sedutor para atingir efeitos violentos e derrubar as relações etinológicas de vastos distritos. A África Oriental oferece tal objeto. Aqui o clima não proibiu a criação de gado, como nos países do interior, e não paralisou desde o início o poder de impacto dos nômades, embora numerosos pacíficos povos agrícolas encontrassem espaço para seu desenvolvimento. Tribos errantes de kafirs se derramaram como riachos devastadores nas terras frutíferas do Zambeze, e até as terras altas entre o Tanganica e a costa. Aqui eles encontraram a guarda avançada do watusi, uma onda de erupção hamita, vinda do norte. Os antigos habitantes desses distritos foram exterminados ou, como servos, cultivaram as terras que anteriormente possuíam; ou ainda continuaram a lutar; ou ainda, permaneceram imperturbáveis em assentamentos deixados de lado pelo fluxo da conquista.”33

Tudo isso aconteceu diante de nossos olhos. Parte disso ainda está acontecendo. Durante muitos milhares de anos, “abalou toda a África Oriental, desde o Zambeze até o Mediterrâneo”. A incursão dos hicsos, por meio da qual por mais de quinhentos anos o Egito esteve sujeito às tribos de pastores dos desertos do leste e do norte — “parentes dos povos que até os dias atuais pastoreiam seus rebanhos entre o Nilo e o Mar Vermelho”34 — é a primeira fundação autenticada de um estado. Esses estados foram seguidos por muitos outros, tanto no próprio país do Nilo, quanto mais ao sul, até o Império de Muata Jamvo, na orla sul do distrito central do Congo, que os comerciantes portugueses em Angola relataram já no final de o século XVI, e até o Império de Uganda, que só em nossos dias finalmente sucumbiu à organização militar superior da Europa. “A terra deserta e a civilização nunca se 33 34

Ratzel, l. c. II, pp. 103-04. Thurnwald, Staat und Wirtschaft im altem Ägypten. Zeitschrift für Soz. Wissenchaft, vol. 4, 1901, pp. 700-01.

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O Estado encontram pacificamente lado a lado; mas suas batalhas são todas semelhantes e cheias de repetições.”35 “Semelhantes e cheias de repetições”! Isso pode ser dito da história universal em suas linhas básicas. O ego humano em seu aspecto fundamental é praticamente o mesmo em todo o mundo. Atua uniformemente, obedecendo às mesmas influências de seu meio, com raças de todas as cores, em todas as partes da terra, tanto nos trópicos quanto nas zonas temperadas. É preciso recuar o suficiente e escolher um ponto de vista tão alto que o aspecto variegado dos detalhes não esconda os grandes movimentos da massa. Em tal caso, nossos olhos perdem o “modo” da luta, da errância, da humanidade trabalhadora, enquanto sua “substância”, sempre semelhante, sempre nova, sempre duradoura através da mudança, revela-se sob leis uniformes. Gradualmente, desta primeira fase, desenvolve-se a segunda, na qual o camponês, através de milhares de tentativas frustradas de revolta, aceitou seu destino e cessou toda resistência. Por volta dessa época, começa a surgir na consciência do pastor selvagem que um camponês assassinado não pode mais arar e que uma árvore frutífera derrubada não mais produzirá. Em seu próprio interesse, então, sempre que possível, ele deixa o camponês viver e a árvore crescer. A expedição dos pastores vem como antes, cada membro eriçado com armas, mas não mais pretendendo nem esperando guerra e apropriação violenta. Os invasores queimam e matam apenas na medida do necessário para impor um respeito saudável ou para quebrar uma resistência isolada. Mas, em geral, principalmente de acordo com um direito consuetudinário em desenvolvimento — o primeiro germe do desenvolvimento de todo o direito público — o pastor agora se apropria apenas do excedente do camponês. Ou seja, ele deixa ao camponês sua 35

Ratzel, l. c. II, pp. 404-05. (Gumplowicz, Rassenkampf, p. 264: “O Egito, rico e autossuficiente, diz Ranke, convidou a avareza das tribos vizinhas, que serviam a outros deuses. Sob o nome de povos pastores, dinastias estrangeiras e tribos estrangeiras governaram o Egito por séculos. “Verdadeiramente, o resumo da história universal não poderia ser iniciado com palavras mais características do que as de Ranke. Pois nas palavras aplicadas ao Egito está resumida a quintessência de toda a história da humanidade.” — Tradutor da Edição em Inglês.)

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A Gênese do Estado casa, seus apetrechos e provisões até a próxima safra.36 O pastor no primeiro estágio é como o urso, que com o propósito de roubar a colmeia, a destrói. No segundo estágio, ele é como o apicultor, que deixa às abelhas mel suficiente para carregá-las durante o inverno. Grande é o progresso entre o primeiro estágio e o segundo. Longo é o passo adiante, tanto econômica quanto politicamente. No início, como vimos, a aquisição pela tribo dos pastores era puramente ocupacional. Independentemente das consequências, eles destruíram a fonte de riqueza futura para aproveitar o momento. Doravante a aquisição torna-se econômica, porque toda economia se baseia em uma sábia administração doméstica, ou seja, em restringir o gozo do momento em vista das necessidades do futuro. O pastor aprendeu a “capitalizar”. É um grande avanço na política quando um ser humano totalmente estranho, até então presa como os animais selvagens, obtém um valor e é reconhecido como uma fonte de riqueza. Embora este seja o início de toda escravidão, subjugação e exploração, é ao mesmo tempo a gênese de uma forma superior de sociedade, que vai além da família baseada na relação consanguínea. Vimos como, entre ladrões e roubados, os primeiros fios de uma relação jurídica foram tecidos através da fenda que separava aqueles que até então eram apenas “inimigos mortais”. O camponês obtém assim uma aparência de direito às necessidades básicas da vida; de modo que é considerado errado matar um homem sem resistência ou despojá-lo de tudo. E melhor do que isso, fios gradualmente mais delicados e macios são tecidos em uma rede ainda muito fina, mas que, no entanto, traz mais relações humanas do que o arranjo habitual da divisão de espólios. Uma vez que os pastores não mais enfrentam os camponeses apenas em combate, é provável que agora atendam a um pedido respeitoso ou solucionassem uma queixa bem fundamentada. “O imperativo 36

Ratzel, l. c. II, p. 393, falando dos árabes diz: “A dificuldade de alimentar os escravos torna impossível mantê-los. Vastas populações são mantidas em sujeição e privadas de tudo além do necessário para manter a vida. Transformam oásis inteiros em terras dominiais, visitados na época da colheita para roubar os habitantes; uma dominação característica do deserto.”

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O Estado categórico” da equidade, “faça aos outros o que você gostaria que fizessem a você”, até então havia regido os pastores apenas em suas relações com seus próprios membros da tribo e sua espécie. Agora, pela primeira vez, começa a falar, sussurrando timidamente em nome daqueles que são estranhos à relação consanguínea. Nisto encontramos o germe daquele magnífico processo de fusão externa que, a partir de pequenas hordas, formou nações e uniões de nações; e que, no futuro, dará vida ao conceito de “humanidade”. Encontramos também o germe da unificação interna das tribos uma vez separadas, da qual, no lugar do ódio aos “bárbaros”, surgirá o amor abrangente pela humanidade, do cristianismo e do budismo. O momento em que o conquistador primeiro poupou sua vítima para explorá-la permanentemente em um trabalho produtivo, teve uma importância histórica incomparável. Deu origem à nação e ao estado, ao direito e à economia superior, com todos os desenvolvimentos e ramificações que surgiram e que surgirão a partir deles. A raiz de tudo o que é humano desce até o solo escuro do animal — amor e arte, não menos que estado, justiça e economia. Ainda outra tendência amarra ainda mais estreitamente essas relações psíquicas. Voltando à comparação do pastor e do urso, há no deserto, ao lado do urso que guarda as abelhas, outros ursos que também desejam o mel. Mas nossa tribo de pastores bloqueia seu caminho e protege suas colmeias pela força das armas. Os camponeses se acostumam, quando o perigo ameaça, a chamar os pastores, que eles não consideram mais como ladrões e assassinos, mas como protetores e salvadores. Imagine a alegria dos camponeses quando o bando de vingadores que retorna traz de volta à aldeia as mulheres e crianças saqueadas, com as cabeças ou escalpos dos inimigos. Esses laços não são mais fios, mas faixas fortes e com nós. Aqui está uma das principais forças dessa “integração”, pela qual, no desenvolvimento posterior, aqueles originalmente não do mesmo sangue, e muitas vezes de grupos diferentes que falam línguas diferentes, serão no final fundidos em um povo, com uma linguagem, um costume e um sentimento de nacionalidade. Essa unidade cresce

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A Gênese do Estado gradativamente a partir de sofrimento e necessidade comuns, vitórias e derrotas comuns, regozijo comum e tristeza comum. Um novo e vasto domínio se abre quando senhor e escravo servem aos mesmos interesses; então surge uma corrente de simpatia, um senso de serviço comum. Ambos os lados apreendem e gradualmente reconhecem a humanidade comum um do outro. Gradualmente, os pontos de semelhança são percebidos, no lugar das diferenças de constituição e vestimenta, de linguagem e religião, que até então haviam causado apenas antipatia e ódio. Gradualmente, eles aprendem a se entender, primeiro por meio de um discurso comum e depois por meio de um hábito mental comum. A rede das inter-relações psíquicas torna-se mais forte. Nesta segunda etapa da formação dos estados, o trabalho de base, no essencial, está traçado. Nenhum outro passo pode ser comparado em importância à transição pela qual o urso se torna um apicultor. Por esta razão, referências curtas devem ser suficientes. A terceira fase chega quando o “excedente” obtido pelo campesinato é levado por eles regularmente às tendas dos pastores como “tributo”, uma regulamentação que oferece a ambas as partes vantagens autoevidentes e consideráveis. Por este meio, o campesinato fica totalmente isento das pequenas irregularidades ligadas ao antigo método de tributação, como alguns homens espancados na cabeça, mulheres violentadas ou casas de fazenda incendiadas. Os pastores, por outro lado, não precisam mais aplicar a esse “negócio” nenhuma “despesa” e trabalho, para usar uma expressão mercantil; e eles dedicam o tempo e a energia assim liberados para uma “extensão dos trabalhos”, em outras palavras, para subjugar outros camponeses. Esta forma de tributo é encontrada em muitos exemplos bem conhecidos da história: hunos, magiares, tártaros, turcos obtiveram sua maior renda de seus tributos europeus. Às vezes, o caráter do tributo pago pelos súditos ao seu senhor é mais ou menos vago, e o ato assume a forma de pagamento por proteção, ou mesmo de subvenção. É bem conhecida a história segundo a qual Átila foi retratado pelo fraco imperador de Constantinopla como um príncipe vassalo; enquanto o tributo que ele pagou ao Huno apareceu como uma taxa. 59

O Estado A quarta etapa, mais uma vez, é de suma importância, pois agrega o fator decisivo no desenvolvimento do estado, como estamos acostumados a ver, a saber, a união em uma faixa de terra de ambos os grupos étnicos.37 (Sabe-se que nenhuma definição jurídica de estado pode ser alcançada sem o conceito de território estatal.) A partir de então, a relação dos dois grupos, originalmente internacional, gradualmente se torna cada vez mais intranacional. Esta união territorial pode ser causada por influências estrangeiras. Pode ser que hordas mais fortes tenham empurrado os pastores para a frente, ou que seu aumento populacional tenha atingido o limite estabelecido pela capacidade nutritiva das estepes ou pradarias; pode ser que uma grande praga do gado tenha forçado os vaqueiros a trocar a extensão ilimitada das pradarias pelos estreitos de algum vale fluvial. Em geral, porém, bastam as causas internas para que os pastores permaneçam na vizinhança de seus camponeses. O dever de proteger seus afluentes contra outros “ursos” os obriga a manter um contingente de jovens guerreiros na vizinhança de seus súditos; e isso é ao mesmo tempo uma excelente medida de defesa, pois impede que os camponeses cedam ao desejo de romper suas amarras ou deixar que outros pastores se tornem seus senhores. Esta última ocorrência não é rara, pois, se a tradição estiver correta, é o meio pelo qual os filhos de Rurik vieram para a Rússia. 37

Há, aparentemente no caso dos fulbe, um estágio de transição entre os três primeiros estágios e o quarto, em que o domínio é exercido metade internacionalmente e metade intranacionalmente. Segundo Ratzel (l. c. II, p. 419): “Como uma sépia, a raça conquistadora estende numerosos braços aqui e ali entre os aborígines apavorados, cuja falta de coesão proporciona muitas lacunas. Assim, os fulbe estão fluindo lentamente para os países de Benue e gradualmente os permeando. Observadores posteriores abstiveram-se, portanto, com razão, de atribuir limites definidos. Existem muitas localidades dispersas de fulbe que consideram um determinado local como seu centro e como o centro de seu poder. Assim, Muri é a capital dos numerosos assentamentos fulbe espalhados pelo Médio Benue, e a posição de Gola é semelhante no distrito de Adamawa. Ainda não há reinos próprios com fronteiras definidas uns contra os outros e contra tribos independentes. Mesmo essas capitais estão, em outros aspectos, ainda longe de serem firmemente estabelecidas.”

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A Gênese do Estado Até agora, a justaposição local não significa uma comunidade estatal em seu sentido mais estrito; isto é, uma organização unitária. Caso os pastores estejam lidando com súditos totalmente não bélicos, eles continuam sua vida nômade, vagando pacificamente para cima e para baixo e pastoreando seu gado entre seus periecos e hilotas. É o caso dos wahuma de cor clara,38 “os homens mais belos do mundo” (Kandt), na África Central, ou do clã tuaregue dos hadanara da tribo asgar, “que tomaram assento entre os imrad e tornaram-se piratas errantes. Esses imrad são a classe servidora dos asgars, que vivem neles, embora os imrad pudessem colocar em campo dez vezes mais guerreiros; a situação é análoga à dos espartanos em relação aos seus hilotas.”39

O mesmo pode ser dito dos teda entre a próxima Borku: “Assim como a terra é dividida em um semi-deserto que sustenta os nômades, e jardins com pomares de tâmaras, então a população é dividida entre nômades e povos estabelecidos. Embora aproximadamente igual em número, dez a doze mil no total, nem é preciso dizer que estes últimos estão sujeitos aos outros.”40

E o mesmo se aplica a todo o grupo de pastores conhecidos como galla masi e wahuma. “Embora as diferenças de posse sejam consideráveis, eles têm poucos escravos, como classe servidora. Estes são representados por povos de casta inferior, que vivem separados e afastados deles. É o pastoreio que está na base da família, do estado e, com eles, do princípio da evolução política. Neste vasto território, entre Scehoa e seus limites mais ao sul, por um lado, e Zanzibar, por outro, não se

38 39 40

Ratzel, l. c. II, p. 165. Ratzel, l. c. II, p. 485. Ratzel, l. c. II, p. 480.

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O Estado encontra um poder político forte, apesar da articulação social altamente desenvolvida.”41

Caso o país não esteja adaptado para pastorear gado em grande escala — como era universalmente o caso na Europa Ocidental — ou onde uma população menos não-bélica possa fazer tentativas de insurreição, a multidão de senhores torna-se mais ou menos permanentemente estabelecida, lugares ou pontos estrategicamente importantes para seus acampamentos, castelos ou cidades. A partir desses centros, eles controlam seus “súditos”, principalmente com o objetivo de arrecadar seus tributos, não lhes dando atenção em outros aspectos. Eles os deixam administrar seus negócios, exercer sua adoração religiosa, resolver suas disputas e ajustar seus métodos de economia interna. Sua constituição autóctone, seus funcionários locais, de fato, não sofrem interferência. Se Frants Buhl relata corretamente, esse foi o início do governo dos israelitas em Canaã.42 A Abissínia, essa grande força militar, embora à primeira vista possa parecer um estado totalmente desenvolvido, não parece, no entanto, ter avançado além do quarto estágio. Pelo menos Ratzel afirma: “O principal cuidado dos abissínios consiste no tributo, no qual seguem o método dos monarcas orientais nos tempos antigos e modernos, que é não interferir na gestão interna e na administração da justiça de seus povos súditos.”43

O melhor exemplo do quarto estágio é encontrado na situação do antigo México antes da conquista espanhola: A confederação sob a liderança dos mexicanos tinha ideias de conquista um tanto mais progressistas. Apenas as tribos que ofereceram resistência foram exterminadas. Em outros casos, os vencidos eram meramente saqueados e depois obrigados a pagar tributos. A tribo derrotada governava a si mesma como antes, por meio de seus próprios oficiais. 41 42 43

Ratzel, l. c. II, p. 165. Buhl, Soziale Verhältnisse der Israeliten, p. 13. Ratzel, l. c. II, p. 455.

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A Gênese do Estado Foi diferente no Peru, onde a formação de um império compacto se seguiu ao primeiro ataque. No México, a intimidação e a exploração foram os únicos objetivos da conquista. E assim aconteceu que o chamado Império do México na época da conquista representava apenas um grupo de tribos indígenas intimidadas, cuja federação umas com as outras era impedida pelo medo de expedições de saque de algum forte inexpugnável em seu meio.44

Deve-se observar que não se pode falar disso como um estado em nenhum sentido próprio. Ratzel mostra isso na nota seguinte: É certo que os vários pontos mantidos em sujeição pelos Guerreiros de Montezuma estavam separados uns dos outros por extensões de território ainda não conquistadas. Uma condição muito parecida com o governo dos hova em Madagascar. Não se diria que espalhar algumas guarnições, ou melhor ainda, colônias militares, sobre a terra, é uma marca de domínio absoluto, uma vez que essas colônias, com grande dificuldade, mantêm uma faixa de algumas milhas em sujeição.45

A lógica dos eventos avança rapidamente do quarto para o quinto estágio e molda quase completamente o estado completo. Surgem brigas entre aldeias ou clãs vizinhos, que os senhores não permitem mais que se desdobrem, pois assim a capacidade de serviço dos camponeses seria prejudicada. Os senhores assumem o direito de arbitrar e, em caso de necessidade, de executar seu julgamento. No final, acontece que em cada “corte” do rei da aldeia ou chefe do clã há um deputado oficial que exerce o poder, enquanto aos chefes é permitido manter a aparência de autoridade. O estado dos Incas mostra, em estado primitivo, um exemplo típico desse arranjo. Aqui encontramos os Incas unidos em Cuzco, onde tinham suas terras e moradias patrimoniais.46 Um representante dos incas, o 44 45 46

Ratzel, l. c. I, p. 628. Ratzel, l. c. I, p. 625. Cieza de Leon, “Seg. parte de la crónica del Peru.” P. 75, cit. por Cunow, Inkareich (p. 62, nota 1).

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O Estado Tucricuc, entretanto, residia em todos os distritos da corte do chefe nativo. Ele “supervisionava todos os assuntos de seu distrito; levantava as tropas, superintendia a entrega do tributo, ordenava o trabalho forçado em estradas e pontes, superintendia a administração da justiça e, em suma, supervisionava tudo em seu distrito”.47 As mesmas instituições que foram desenvolvidas pelos caçadores americanos e pelos pastores semitas também são encontradas entre os pastores africanos. Em Ashanti, o sistema dos tucricuc foi desenvolvido de maneira típica;48 e os Dualla estabeleceram para seus súditos que vivem em aldeias segregadas “uma instituição baseada na conquista a meio caminho entre um sistema feudal e a escravidão”.49 O mesmo autor relata que os barotse têm uma constituição correspondente ao estágio mais antigo da organização feudal medieval: “Suas aldeias são [...] por via de regra cercadas por um círculo de aldeias onde vivem seus servos. Estes cultivam os campos de seus senhores na vizinhança imediata, cultivam grãos ou pastoreiam o gado.”50 A única coisa que não é típica aqui consiste nisso, que os senhores não vivem em castelos ou salões isolados, mas estão estabelecidos em aldeias entre seus súditos. É apenas um pequeno passo dos incas aos dórios na Lacedemônia, Messênia ou Creta; e nenhuma distância maior separa os fulbe, dualla e barotse dos estados feudais relativamente rigidamente organizados dos impérios negros africanos de Uganda, Unyoro, etc.; e os impérios feudais correspondentes da Europa Oriental e Ocidental e de toda a Ásia. Em todos os lugares, os mesmos resultados são produzidos pela força das mesmas causas sócio-psicológicas. A necessidade de manter os súditos em ordem e ao mesmo tempo mantê-los em plena capacidade de trabalho conduz passo a passo do quinto ao sexto estágio, no qual o estado, adquirindo plena intranacionalidade e pela evolução de “Nacionalidade” é desenvolvido em todos os sentidos. Torna-se cada vez mais frequente a necessidade de interferir, aliviar as dificuldades, 47 48 49 50

Cunow, l. c. p. 61. Ratzel, l. c. II, p. 346. Ratzel, l. c. II, pp. 36-7. Ratzel, l. c. II, p. 221.

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A Gênese do Estado punir ou coagir a obediência; e assim desenvolver o hábito de governar e os usos do governo. Os dois grupos, inicialmente separados e depois reunidos em um território, a princípio apenas se colocam um ao lado do outro, depois se espalham um no outro como uma mistura mecânica, como se usa o termo em química, até que gradualmente se tornam mais e mais uma “combinação química”. Eles se misturam, se unem, se amalgamam em unidade, nos costumes e hábitos, na fala e na adoração. Logo os laços de relacionamento unem os estratos superiores e inferiores. Em quase todos os casos, a classe mestra escolhe as virgens mais bonitas das raças subjugadas para suas concubinas. Assim se desenvolve uma raça de bastardos, às vezes levados para a classe dominante, às vezes rejeitados, e então por causa do sangue dos mestres em suas veias, tornando-se os líderes natos da raça subjugada. Na forma e no conteúdo o estado primitivo está completo.

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II O Estado Feudal Primitivo (a) A Forma de Domínio Sua forma é a dominação; o domínio de uma pequena minoria guerreira, inter-relacionada e estreitamente aliada, sobre um território definitivamente delimitado e seus cultivadores. Gradualmente, o costume desenvolve alguma forma de lei de acordo com a qual esse domínio é exercido. Esta lei regula os direitos de primazia e as reivindicações dos senhores, e o dever de obediência e de serviço por parte dos súditos, de modo que não seja prejudicada a capacidade de prestar serviços dos camponeses. Esta palavra, Präsentationsfähigkeit, data das reformas de Frederico, o Grande. A “apicultoridade”, portanto, é regida pela lei dos costumes. O dever de pagar e trabalhar por parte dos camponeses corresponde ao dever de proteção por parte dos senhores, que evitam as extorsões de seus próprios companheiros, bem como defendem os camponeses dos ataques de inimigos estrangeiros. Embora esta seja uma parte do conteúdo do conceito de estado, há outra, que no início é de magnitude muito maior; a ideia de exploração econômica, o meio político para a satisfação das necessidades. O camponês entrega uma parte do produto de seu trabalho, sem nenhum serviço equivalente em troca. “No princípio era o aluguel de terra.” As formas sob as quais o aluguel de terra é cobrado ou consumido variam. Em alguns casos, os senhores, como união ou comunidade fechada, se instalam em algum acampamento fortificado e consomem como comunistas o tributo de seu campesinato. Esta é a situação no estado do Inca. Em alguns casos, cada nobre-guerreiro individual tem uma faixa definida de terra atribuída a ele: mas geralmente o produto disso ainda é, como em Esparta, consumido na “sissítia”, por associados de classe e companheiros de armas. Em alguns casos, a nobreza 67

O Estado fundiária se espalha por todo o território, cada homem alojado com seus seguidores em seu castelo fortificado e consumindo, cada um por si, o produto de seu domínio ou terras. Até agora, esses nobres não se tornaram senhores de terras, no sentido de administrarem suas propriedades. Cada um deles recebe tributo pelo trabalho de seus dependentes, os quais ele não orienta nem supervisiona. Este é o tipo de domínio medieval nas terras da nobreza germânica. Finalmente, o cavaleiro se torna dono de propriedade de nobres ou cavaleiros.51 Seus ex-servos se transformam em trabalhadores de sua plantação, e o tributo agora aparece como o lucro do empreendedor. Este é o tipo do primeiro empreendimento capitalista dos tempos modernos, a exploração de grandes territórios nas terras a leste do Elba, anteriormente ocupadas por eslavos e depois colonizadas por alemães. Numerosas transições conduzem de um estágio ao outro. Mas sempre, em sua essência, o “Estado” é o mesmo. Seu propósito, em todos os casos, encontra-se sendo o meio político para a satisfação das necessidades. A princípio, seu método consiste em cobrar um aluguel sobre a terra, desde que não exista atividade comercial cujos produtos possam ser apropriados. Sua forma, em todos os casos, é a do domínio, pela qual a exploração é considerada como “justiça”, mantida como uma “constituição”, insistida estritamente e, em caso de necessidade, aplicada com crueldade. E, no entanto, dessa forma, o direito absoluto do conquistador torna-se restrito dentro dos limites da lei, a fim de permitir a aquisição contínua de aluguéis de terra. O dever de fornecimento por parte dos súditos é limitado pelo seu direito de se manterem em boas condições. O direito de tributar dos senhores é complementado por seu dever de proteção dentro e fora do estado — segurança sob a lei e defesa da fronteira. Neste ponto, o estado primitivo está completamente desenvolvido em todos os seus aspectos essenciais. Já passou da condição 51

N.T.: Em alemão Rittergutsbesitzer, Besitzer se refere a proprietário ou dono, e Rittergut ou praedium nobilium sive equestrium a uma propriedade à qual, através da lei ou do direito consuetudinário, os privilégios do proprietário, em particular isenções fiscais, capacidade de chancelaria e capacidade parlamentar, estavam ligados.

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O Estado Feudal Primitivo embrionária; tudo o que se segue pode ser apenas fenômenos de crescimento. Em comparação com as uniões de famílias, o estado representa, sem dúvida, uma espécie muito superior; já que o estado abarca uma massa maior de homens, em articulação mais estreita, mais capazes de conquistar a natureza e de repelir os inimigos. Ele transforma as ocupações meio lúdicas dos homens em trabalho estrito e metódico e, assim, traz miséria indizível para inúmeras gerações ainda não nascidas. Doravante, estes devem comer o pão com o suor de seu rosto, já que a era de ouro da livre comunidade de relações consanguíneas foi seguida pela regra de ferro do domínio do estado. Mas o estado, ao descobrir o trabalho em seu sentido próprio, inicia neste mundo aquela força que sozinha pode trazer a era de ouro em um plano muito mais elevado de relação ética e de felicidade para todos. O estado, para usar as palavras de Schiller, destrói a felicidade não instruída das pessoas enquanto elas eram crianças, para conduzi-las por um triste caminho de sofrimento até a felicidade consciente da maturidade. Uma espécie superior! Paul von Lilienfeld, um dos principais defensores da visão de que a sociedade é um organismo de um tipo superior, apontou que, a esse respeito, um paralelo especialmente notável pode ser traçado entre os organismos comuns e esse superorganismo. Todos os seres superiores se propagam sexualmente; seres inferiores assexuadamente, por divisão, por brotamento e às vezes por conjugação. Mostramos que a divisão simples corresponde exatamente ao crescimento e ao desenvolvimento posterior da associação baseada na relação consanguínea, que existia antes do estado. Isso cresce até se tornar grande demais para a coesão; ela então perde sua unidade, divide-se, e as hordas separadas, se é que se associam, permanecem em uma conexão muito frouxa, sem qualquer tipo de articulação mais próxima. A fusão de grupos exogâmicos é comparável à conjugação. O estado, no entanto, vem a ser através da propagação sexual. Toda propagação bissexual é realizada pelo seguinte processo: o elemento masculino, uma célula pequena, muito ativa, móvel e vibrante — o espermatozóide — procura uma grande célula inativa sem 69

O Estado mobilidade própria — o óvulo, ou princípio feminino — entra e se funde com isso. Deste processo resulta um imenso crescimento; ou seja, uma diferenciação maravilhosa com integração simultânea. O campesinato inativo, preso por natureza aos seus campos, é o óvulo, a tribo móvel dos pastores, o espermatozoide, desse ato sociológico de fecundação; e sua resultante é o amadurecimento de um organismo social superior mais totalmente diferenciado em seus órgãos e muito mais completo em suas integrações. É fácil encontrar outros paralelos. Pode-se comparar as rixas fronteiriças à maneira pela qual inúmeros espermatozóides enxameiam em torno do óvulo até que finalmente um, o mais forte ou o mais afortunado, descobre e conquista o micrópilo. Pode-se comparar a atração quase mágica que o óvulo exerce sobre o espermatozóide com o poder não menos mágico com que os pastores das estepes são atraídos para as planícies cultivadas. Mas tudo isso não é prova para o “organismo”. O problema, no entanto, foi apontado.

(b) A Integração Acompanhamos a gênese do estado, desde a sua segunda fase em diante, no seu crescimento objetivo enquanto forma política e jurídica com conteúdo econômico. Mas é muito mais importante examinar seu crescimento subjetivo, sua “diferenciação e integração” sociopsicológica, uma vez que toda sociologia é quase sempre psicologia social. Primeiro, então, vamos discutir a integração. Vimos no segundo estágio, conforme exposto acima, como a rede de relações psíquicas se torna cada vez mais estreita e emaranhada, à medida que avança o amálgama econômico. Os dois dialetos se tornam uma língua; ou um dos dois, muitas vezes de origem totalmente diferente do outro, extingue-se. Esta, em alguns casos, é a linguagem dos vencedores, mas mais frequentemente a dos vencidos. Ambos os cultos se fundem em uma religião, na qual o deus tribal dos 70

O Estado Feudal Primitivo conquistadores é adorado como a divindade principal, enquanto os antigos deuses dos vencidos se tornam seus servos ou, como demônios ou diabos, seus adversários. O tipo corporal tende a assimilar, por influência do mesmo clima e modo de vida semelhante. Onde existiu ou se mantém uma forte diferença entre os tipos,52 os bastardos, em certa medida, preenchem a lacuna — de modo que, apesar do contraste étnico ainda existente, todos, cada vez mais, começam a sentir que o tipo dos inimigos além da fronteira é mais estranho, mais “estrangeiro” do que o novo tipo co-nacional. Senhores e súditos vêem uns aos outros como “nós”, pelo menos no que diz respeito ao inimigo além da fronteira; e finalmente a memória da origem diferente desaparece completamente. Os conquistadores são considerados filhos dos antigos deuses. Isso, em muitos casos, eles são literalmente, já que esses deuses nada mais são do que as almas de seus ancestrais elevados à divindade por apoteose. Como os novos “estados” são muito mais agressivos do que as antigas comunidades unidas por meras relações consanguíneas, o sentimento de ser diferente do estrangeiro além-fronteiras, crescendo em frequentes rixas e guerras, torna-se cada vez mais forte entre os que estão dentro do “reino da paz”. E na mesma medida cresce entre eles o sentimento de pertencer ao outro; de modo que o espírito de fraternidade e de equidade, que antes existia apenas dentro da horda e que nunca deixou de dominar a associação dos nobres, se enraíza em todos os lugares e encontra cada vez mais seu lugar nas relações entre os senhores e seus súditos. A princípio, essas relações se manifestam apenas em casos raros: a equidade e a fraternidade são permitidas apenas tal jogo enquanto é 52

“Entre os wahuma, as mulheres ocupam uma posição mais elevada do que entre os negros, e são cuidadosamente vigiadas por seus homens. Isso dificulta os casamentos mistos. A massa dos waganda ainda hoje não teria permanecido uma genuína tribo negra 'de pele cor de chocolate escuro e cabelo curto de lã', não fosse pelo fato de os dois povos serem estritamente opostos um ao outro como camponeses e pastores, governantes e súditos, como desprezados e honrados, apesar das relações mantidas entre as classes superiores. Nessa posição peculiar, eles representam um fenômeno típico, que se repete em muitos outros pontos.” — Ratzel, l. c. II, p. 177.

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O Estado consistente com o direito de usar os meios políticos; mas isso é concedido. Um vínculo muito mais forte de comunidade psíquica entre alto e baixo, mais potente do que qualquer sucesso contra a invasão estrangeira, é tecido pela proteção legal contra a agressão dos poderosos. “Justitia fundamentum regnorum.” Quando, de acordo com seus próprios ideais de justiça, os aristocratas como um grupo social executam alguém de sua própria classe por assassinato ou roubo, por ter ultrapassado os limites da exploração permitida, o agradecimento e a alegria dos súditos são ainda mais sinceros do que após a vitória sobre inimigos estrangeiros. Estas, então, são as principais linhas de desenvolvimento da integração psíquica. O interesse comum em manter a ordem, a lei e a paz produzem um forte sentimento de solidariedade, que pode ser chamado de “uma consciência de pertencer ao mesmo estado”.

(c) A Diferenciação: Teorias de Grupo e Psicologia de Grupo Por outro lado, como em todo crescimento orgânico, desenvolvese pari passu uma diferenciação psíquica igualmente poderosa. Os interesses do grupo produzem fortes sentimentos grupais; os estratos superiores e inferiores desenvolvem uma “consciência de classe” correspondente aos seus interesses peculiares. O interesse separado do grupo principal é atendido ao manter intacta a lei imposta dos meios políticos; tal interesse leva ao “conservadorismo”. O interesse do grupo de súditos, ao contrário, aponta para a remoção da regra vigente, para sua substituição por uma nova regra, a lei da igualdade para todos os habitantes do estado, e leva ao “liberalismo” e à revolução. Aqui reside a raiz principal de toda psicologia de classe e partido. Portanto, desenvolvem-se, de acordo com leis psicológicas definidas, aquelas formas de pensamento incomparavelmente poderosas que, 72

O Estado Feudal Primitivo como “teorias de classe”, através de milhares de anos de luta guiam e justificam todas as disputas sociais na consciência dos contemporâneos. “Quando a vontade fala, a razão tem que ficar em silêncio”, diz Schopenhauer, ou como Ludwig Gumplowicz afirma a mesma ideia, “o homem age de acordo com as leis da natureza, como uma reflexão tardia que ele pensa humanamente”. Sendo a vontade do homem estritamente “determinada”, ele precisa agir de acordo com a pressão que o mundo circundante exerce sobre ele; e a mesma lei vale para toda comunidade de homens: grupos, classes e o próprio estado. Eles “fluem do plano de maior pressão econômica e social para o de menor pressão, ao longo da linha de menor resistência”. Mas cada indivíduo e cada comunidade de homens acreditam ser agentes livres; e, portanto, por uma lei psíquica inescapável, eles são forçados a considerar o caminho que estão percorrendo como um meio livremente escolhido e o ponto para o qual são conduzidos como um fim livremente escolhido. E sendo o homem um ser racional e ético, isto é, uma entidade social, ele é obrigado a justificar perante a razão e a moral o método e o ponto objetivo de seu movimento, e a levar em conta a consciência social de seu tempo. Enquanto as relações de ambos os grupos fossem simplesmente as de inimigos fronteiriços opostos internacionalmente, o exercício dos meios políticos não exigia justificativa, porque um homem de sangue estrangeiro não tinha direitos. Assim, porém, que a integração psíquica desenvolve, em qualquer grau, o sentimento de comunidade da consciência do estado, assim que o servo adquire “direitos” e a consciência da igualdade essencial se infiltra na massa, os meios políticos requerem um sistema de justificação; e surge na classe dominante a teoria de grupo da “legitimidade”. Em todos os lugares, os defensores da legitimidade justificam o domínio e a exploração com raciocínio antropológico e teológico semelhante. O grupo mestre, já que reconhece a bravura e a eficiência guerreira como as únicas virtudes de um homem, declara-se, o vencedor, — e do seu ponto de vista com bastante razão — como a mais eficiente, a melhor "raça". Esse ponto de vista é tanto mais intensificado quanto mais baixa a raça sujeita é reduzida pelo trabalho duro e pela 73

O Estado pouca comida. E uma vez que o deus tribal do grupo dominante se tornou o deus supremo na nova religião estatal amalgamada, esta religião declara — e novamente de seu ponto de vista de forma bastante correta — que a constituição do estado foi decretada pelo céu, que é “tabu”, e que a interferência é um sacrilégio. Em consequência, portanto, de uma simples inversão lógica, o grupo explorado ou subjugado é considerado como uma raça essencialmente inferior, como indisciplinado, ardiloso, preguiçoso, covarde e totalmente incapaz de autogoverno ou autodefesa, de modo que qualquer revolta contra o domínio imposto deve necessariamente aparecer como uma revolta contra o próprio Deus e contra Suas ordenanças morais. Por essas razões, o grupo dominante está sempre em união mais estreita com o sacerdócio, que, pelo menos em seus cargos mais altos, quase sempre se recruta entre seus filhos, compartilhando seus direitos políticos e privilégios econômicos. Esta foi, e é até hoje, a teoria de classe do grupo dominante; nada foi tirado dela, nenhum item foi adicionado a ela. Mesmo o argumento muito moderno pelo qual, por exemplo, a nobreza fundiária da velha França e da Prússia moderna tentou colocar fora do tribunal as reivindicações do campesinato à donidade de terras, sob a alegação de que eles eram donos delas desde tempos imemoriais, enquanto seus camponeses receberam apenas um mandato vitalício, — é reproduzido entre os wahuma, da África,53 e provavelmente poderia ser mostrado em muitos outros casos. Como sua teoria de classe, sua psicologia de classe foi e é sempre a mesma. Sua característica mais importante, o “orgulho do aristocrata”, mostra-se no desprezo pelas camadas trabalhadoras mais baixas. Isso é tão inerente que os pastores, mesmo depois de terem perdido seus rebanhos e se tornado economicamente dependentes, ainda mantêm seu orgulho como antigos senhores: “Mesmo os galla, que foram espoliados de sua riqueza de rebanhos pelos somalis ao norte do Tana, e que assim se tornaram vigias dos rebanhos de outros homens, e mesmo 53

Ratzel, l. c. II, p. 178.

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O Estado Feudal Primitivo em alguns casos ao longo do Sabaki se tornaram camponeses, ainda olham com desprezo para o camponês watokomo, que está sujeito a eles e se parece com os suaheli. Mas a atitude deles é bem diferente em relação aos povos caçadores tributários, a saber, os waboni, os wassanai e os walangulo (ariangulo) que se assemelham aos galla.”54

A seguinte descrição dos tibbu aplica-se, como se tivesse sido originalmente contada sobre eles, a Walter Havenaught e ao resto dos pobres cavaleiros que, nas cruzadas, procuravam saque e domínio senhorial. Aplica-se não menos a muitos nobres líderes lutadores da Alemanha a leste do Elba, e a muitos cavalheiros poloneses esfarrapados. “Eles são homens cheios de autoconsciência. Eles podem ser mendigos, mas não são párias. Muitas pessoas nessas circunstâncias seriam completamente miseráveis e deprimidas; os tibbu têm aço em sua natureza. Eles são esplendidamente adequados para serem ladrões, guerreiros e governantes. Até o seu sistema de roubo é imponente, embora seja vil como o de um chacal. Esses tibbus esfarrapados, lutando contra a pobreza extrema e constantemente à beira da fome, levantam as reivindicações mais insolentes com crença aparente ou real em sua validade. O direito do chacal, que considera as posses de um estranho como propriedade comum, é a proteção dos gananciosos contra a necessidade. A insegurança de um estado de guerra quase perpétuo faz com que a vida se torne um desafio insistente e, ao mesmo tempo, a recompensa da extorsão!”55

Este fenômeno não se limita de forma alguma à África Oriental, pois é dito do soldado abissínio: “Assim equipado ele vem. Orgulhosamente, ele despreza todos: sua é a terra, e para ele o camponês deve trabalhar."56 54 55 56

Ratzel, l. c. II, p. 198. Ratzel, l. c. II, p. 476. Ratzel, l. c. II, p. 453.

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O Estado Profundamente como o aristocrata sempre despreza os meios econômicos e os camponeses que os empregam, ele admite francamente sua confiança nos meios políticos. Guerra honesta e “roubo honesto”57 são sua ocupação como um senhor, são seu bom direito. Seu direito — exceto sobre aqueles que pertencem à mesma camarilha — se estende tanto quanto seu poder. Em nenhum outro lugar esse grande elogio aos meios políticos é tão bem expresso quanto na conhecida canção dórica para beber: Tenho grandes tesouros; a lança e a espada; Com que proteger meu corpo, o escudo de couro de touro bem testado. Com estes eu posso arar e colher minha colheita, Com estes posso colher o doce vinho de uva, Por eles eu carrego o nome de 'Senhor' com meus servos. Mas estes nunca ousam empunhar lança e espada, Ainda menos a guarda do corpo, o escudo de couro de touro bem testado. Eles jazem aos meus pés estendidos no chão, Minha mão é lambida por eles como por cães, Eu sou o rei persa deles — aterrorizando-os com meu nome.58

Nessas linhas arbitrárias está expresso o orgulho dos senhores guerreiros. Os versos seguintes, tirados de uma fase completamente diferente da civilização, mostram que o ladrão ainda tem parte no guerreiro, apesar do cristianismo, da Paz de Deus e do Sacro Império Romano da Nação Germânica. Essas linhas também elogiam os meios políticos, mas em sua forma mais grosseira, simples roubo: Você gastaria sua vida, meu jovem nobre escudeiro, Siga então meu ensinamento, monte seu cavalo e junte-se à gangue! Vá para a floresta, quando o camponês aparecer, Atropele-o rapidamente, agarre-o pelo colarinho, 57 58

Compare isso com a justificativa predominante de “honest graft” em contratos municipais ou políticos. — Tradutor da Edição em Inglês. Kopp, Griechische Staatsaltertümer, 2, Aufl. Berlin, 1893, p. 23.

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O Estado Feudal Primitivo Alegre-se em seu coração, tirando dele tudo o que ele tem, Desatrele os cavalos dele e leve você embora!59

“A menos”, acrescenta Sombart, “que ele preferisse caçar animais mais nobres e aliviar os mercadores de suas valiosas remessas”. Os nobres praticavam o roubo como forma natural de complementar os seus rendimentos, estendendo-os cada vez mais à medida que os rendimentos das suas propriedades já não bastavam para pagar as exigências crescentes do consumo quotidiano e do luxo. O sistema de pirataria era considerado uma ocupação totalmente honrosa, pois atendia à exigência da essência da cavalaria, de que cada um deveria se apropriar de tudo o que estivesse ao alcance da ponta de sua lança ou da lâmina de sua espada. Os nobres aprenderam a pirataria enquanto o sapateiro foi educado em seu ofício. A balada colocou isso de forma alegre: Pilhar, roubar, isso não é vergonha, Os melhores da terra fazem exatamente o mesmo.

Além deste ponto principal da psicologia “escudeiro-árquica”, uma segunda marca distintiva dificilmente menos característica é encontrada na piedade dessas pessoas, seja ela de convicção ou meramente acentuada em público. Parece que as mesmas ideias sociais sempre impõem características idênticas à classe dominante. Isso é ilustrado pela forma sob a qual Deus, na visão deles, aparece como seu Deus Nacional especial e preponderantemente como um Deus da Guerra. Embora professem Deus como o criador de todos os homens, mesmo de seus inimigos, e desde o cristianismo, como o Deus do Amor, isso não neutraliza a força com que os interesses de classe formulam sua ideologia apropriada. Para completar o esboço da psicologia da classe dominante, não devemos esquecer a tendência ao esbanjamento, facilmente compreendida naqueles “ignorantes do gosto de labuta”, que às vezes 59

Uhland, Alte hoch und niederdeutsche Volkslieder I (1844), p. 339 citado por Sombart: Der moderne Kapitalismus, Leipzig, 1902, I, pp. 384-5.

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O Estado aparece em uma forma superior como generosidade; nem devemos esquecer, como seu traço supremo, aquela bravura que despreza a morte, que é provocada pela coerção imposta a uma minoria, sua necessidade de defender seus direitos a qualquer momento com armas, e que é favorecida por uma liberdade de todo trabalho que permite o desenvolvimento do corpo na caça, esporte e disputas. Sua caricatura é a combatividade e uma supersensibilidade à honra pessoal, que degenera em loucura. Neste ponto, uma pequena digressão: César encontrou os celtas exatamente naquele estágio de seu desenvolvimento, no qual os nobres obtiveram domínio sobre seus companheiros de clã. Desde aquela época, sua narrativa clássica permaneceu como norma — a psicologia de classe deles aparece como a psicologia racial de todos os celtas. Nem mesmo Mommsen escapou desse erro. O resultado é que agora, em cada livro de história universal ou sociologia, pode-se ler o erro palpável, repetido até que a contradição seja inútil, embora um mero relance fosse suficiente para mostrar que todos os povos de todas as raças, no mesmo estágio de seu desenvolvimento, apresentaram as mesmas características; na Europa, tessálios, apulianos, campanianos, germânicos, poloneses, etc. Enquanto isso, os celtas, e especificamente os franceses, em diferentes estágios de seu desenvolvimento, mostraram traços de caráter bastante diferentes. A psicologia pertence ao estágio de desenvolvimento, não à raça! Sempre que, por outro lado, as sanções religiosas do “estado” são fracas, ou se tornam fracas, desenvolve-se como uma teoria de grupo por parte dos súditos, o conceito, claro ou borrado, de Direito Natural. A classe baixa considera o orgulho racial e a suposta superioridade dos nobres como presunçosos, afirma ser de raça e sangue tão bons quanto a classe dominante60 — e de seu ponto de vista, novamente, com bastante razão, pois, de acordo com seus pontos de vista, diligência e ordem são considerados as únicas virtudes. Eles também são céticos quanto à religião que ajuda seus adversários; e estão tão firmemente convencidos quanto os nobres da opinião diretamente oposta, a saber, 60

“Quando Adão cavou e Eva teceu, onde estava o nobre? [Als Adam grub, und Eva spann, wo war da der Edelmann?”, cataram os lolardos ingleses.

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O Estado Feudal Primitivo que os privilégios do grupo mestre violam a lei tanto quanto a razão. O desenvolvimento posterior não é capaz de acrescentar nenhum ponto essencial aos fatores originalmente dados. Sob a influência dessas ideias, ora claramente, ora obscuramente expostas, os dois grupos passam a travar suas batalhas, cada um por seus próprios interesses. O jovem estado se despedaçaria sob a pressão de tais forças centrífugas, não fosse a atração centrípeta dos interesses comuns, da ainda mais poderosa consciência estatal. A pressão de estrangeiros de fora, de inimigos comuns, supera a tensão interna de interesses de classe conflitantes. Um exemplo pode ser encontrado na história da secessão dos “Plebs” e na missão bem-sucedida de Menenius Agrippa. E assim o jovem estado, como um planeta, oscilaria por toda a eternidade em sua órbita predeterminada, de acordo com o paralelogramo de forças, se ele e seu mundo circundante não fossem mudados e desenvolvidos até produzir novas energias externas e internas.

(d) O Estado Feudal Primitivo de Grau Superior O próprio crescimento condiciona mudanças importantes; e o jovem estado deve crescer. As mesmas forças que o trouxeram à ser, incitam sua extensão, exigem que ele alcance mais poder. Mesmo que um estado tão jovem estivesse “saturado”, como muitos estados modernos afirmam estar, ele ainda seria forçado a se expandir e crescer sob pena de extinção. Sob condições sociais primitivas, as linhas de Goethe se aplicam com absoluta verdade: “Você deve subir ou cair, conquistar ou ceder, ser martelo ou bigorna”. Os estados são mantidos de acordo com os mesmos princípios que os chamaram a ser. O estado primitivo é a criação do roubo bélico; e somente por roubo bélico pode ser preservado. A carência econômica do grupo mestre não tem limites; nenhum homem é suficientemente rico para satisfazer seus desejos. Os meios políticos são direcionados a novos grupos de camponeses ainda não 79

O Estado subjugados, ou novas costas ainda não saqueadas são buscadas. O estado primitivo se expande, até que ocorre uma colisão na borda da “esfera de interesses” de outro estado primitivo, que se originou exatamente da mesma maneira. Então temos, pela primeira vez, no lugar do roubo bélico até então realizado, a verdadeira guerra em seu sentido mais estrito, desde então massas igualmente organizadas e disciplinadas são arremessadas umas contra as outras. O objeto da disputa permanece sempre o mesmo, a produção dos meios econômicos das classes trabalhadoras, como pilhagem, tributo, impostos e aluguel de terra; mas a disputa não se dá mais entre um grupo que pretende explorar e outra massa a ser explorada, mas entre dois grupos senhores pela posse de todo o espólio. O resultado final do conflito, em quase todos os casos, é a fusão de ambos os estados primitivos em um maior. Este, por sua vez, naturalmente e pela força das mesmas causas, ultrapassa suas fronteiras, devora seus vizinhos menores e talvez seja por sua vez devorado por algum estado maior. O grupo de trabalhadores subjugados pode não ter muito interesse na questão final desses concursos para o domínio; é indiferente que pague tributo a um ou outro grupo de senhores. Seu principal interesse reside no curso da luta particular, que é, em todo caso, paga com suas próprias peles. Portanto, exceto em casos de maus-tratos grosseiros e exploração,61 as classes baixas são corretamente governadas por sua “consciência estatal” quando, com todas as suas forças, ajudam seu grupo mestre hereditário em tempos de guerra. Pois se seu grupo principal for derrotado, os súditos sofrerão mais severamente com a devastação total da guerra. Eles lutam literalmente por esposa e filhos, pelo lar, quando lutam para impedir o governo de mestres estrangeiros. O grupo mestre está completamente envolvido na questão dessa luta pelo domínio. Em casos extremos, pode ser completamente exterminado, como foi a nobreza local das tribos germânicas no Império 61

Assim, por exemplo, nos estados gregos e no Império Romano, os escravos afluíam em grande número aos invasores germânicos e árabes, e os colonos aparentemente livres mantinham-se no máximo neutras.

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O Estado Feudal Primitivo Franco. Quase tão ruim, se não pior, é a perspectiva de ser empurrado para o grupo dos servos. Às vezes, um tratado de paz oportuno preserva sua posição social como grupos mestres de hierarquia subordinada: por exemplo, a nobreza saxônica na Inglaterra normanda, ou os suppans em território alemão tomado dos eslavos. Em outros casos, onde as forças são quase iguais, os dois grupos se fundem em um grupo mestre com direitos iguais, que forma uma nobreza cujos membros se casam. Essa, por exemplo, era a situação nos territórios eslavos, onde chefes vendos isolados eram tratados como iguais aos germânicos, ou na Roma medieval, no caso de famílias proeminentes das colinas de Alban e da Toscana. Neste novo “estado feudal primitivo de grau superior”, como o chamaremos, o grupo dominante pode, portanto, desintegrar-se em vários estratos mais ou menos poderosos e privilegiados. A organização pode apresentar muitas variedades pelo fato bem conhecido de que muitas vezes o grupo senhorial se separa em duas camadas econômicas e sociais subordinadas, desenvolvidas como vimos na fase dos pastores: os donos de grandes rebanhos e de muitos escravos, e os homens livres comuns. Possivelmente, a diferenciação menos completa em níveis sociais nos estados criados pelos caçadores no novo mundo deve ser atribuída à circunstância de que, na ausência de rebanhos, os concomitantes dessa forma de propriedade e a separação original em classes não foram introduzidos no estado. Veremos, mais tarde, que força foi exercida sobre o desenvolvimento político e econômico dos estados do velho mundo pelas diferenças de posição e propriedade dos dois estratos de governantes. Da mesma forma, como no caso do grupo dominante, um correspondente processo de diferenciação divide o grupo sujeito no “estado feudal primitivo de grau superior” em vários estratos mais ou menos desprezados e compelidos a prestar serviço. É necessário apenas recordar a diferença muito marcante na posição social e jurídica ocupada pelo campesinato nos estados dóricos, Lacedemônio e Creta, e entre os tessálios, onde os perioiki tinham claros direitos de posse e direitos políticos razoavelmente bem protegidos, enquanto os hilotas, neste último caso os penestai, estavam quase desprotegidos na vida e na propriedade. Entre os antigos saxões também encontramos uma 81

O Estado classe, os liti, intermediária entre os homens livres comuns e os servos.62 Esses exemplos poderiam ser multiplicados; aparentemente são causadas pelas mesmas tendências que provocaram a diferenciação entre a nobreza mencionada acima. Quando dois estados feudais primitivos se fundem, suas camadas sociais se estratificam de várias maneiras, que em certa medida são comparáveis às combinações resultantes da mistura de dois baralhos. É certo que essa mistura mecânica provocada pelas forças políticas influencia no desenvolvimento das castas, ou seja, das profissões hereditárias, que ao mesmo tempo formam uma hierarquia de classes sociais. “As castas são geralmente, se não sempre, consequências da conquista e subjugação por estrangeiros.”63 Embora este problema não tenha sido completamente resolvido, pode-se dizer que a formação de castas foi fortemente influenciada por fatores econômicos e religiosos. É provável que as castas tenham surgido da seguinte forma: as forças formadoras de estado penetraram nas organizações econômicas existentes, e as vocações sofreram adaptações e depois se petrificaram sob a influência de conceitos religiosos, que, no entanto, também podem ter influenciado sua formação original. Isso parece decorrer do fato de que também entre o homem e a mulher existem certas separações de vocação, que, por assim dizer, são tabus e intransponíveis. Assim, entre todos os caçadores, o cultivo da terra é trabalho da mulher, enquanto entre muitos pastores africanos, assim que o arado de bois é usado, a agricultura se torna trabalho do homem, e então as mulheres não podem, sob pena de sacrilégio, usar o gado doméstico.64 É provável que tais conceitos religiosos possam ter feito com que uma vocação se tornasse hereditária e depois compulsoriamente hereditária, especialmente quando uma tribo ou aldeia praticava um 62 63 64

Inama-Sternegg, Deutsche Wirtsch.-Gesch. I, Leipzig, 1879, p. 59. Westermarck, History of Human Marriage, Londres, 1891, p. 368. Similarmente, há tribos de caçadores do norte da Ásia, onde as mulheres são definitivamente proibidas de tocar no equipamento de caça ou de cruzar uma trilha de caça. — Ratzel I, página 650.

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O Estado Feudal Primitivo determinado ofício. Isso acontece com todas as tribos em estado de natureza, onde o intercurso é facilmente possível, especialmente no caso dos ilhéus. Quando algum desses grupos é conquistado por outra tribo, os súditos, com suas vocações hereditárias desenvolvidas, tendem a formar dentro da nova entidade estatal uma “casta” pura. Sua posição de casta depende, em parte, da estima que antes desfrutavam entre seu próprio povo e, em parte, da vantagem que sua vocação oferece a seus novos senhores. Se, como frequentemente acontecia, ondas de conquista se sucedessem em série, a formação de castas poderia ser multiplicada, especialmente se, entretanto, o desenvolvimento econômico tivesse gerado muitas classes vocacionais. Este desenvolvimento é provavelmente melhor observado no grupo de ferreiros, que, em quase todos os casos, ocuparam uma posição peculiar, meio temido e meio desprezado. Especialmente na África, desde o início dos tempos, encontramos tribos de ferreiros experientes, como seguidores e dependentes de tribos de pastores. Os hicsos trouxeram essas tribos com eles para o país do Nilo e talvez devessem sua vitória decisiva às armas feitas por eles; e até tempos recentes os dinka mantiveram o djur que trabalha com ferro em uma espécie de relação de súdito. O mesmo se aplicava também aos nômades do Saara; enquanto nossas sagas do norte são preenchidas com o contraste tribal com os “anões” e o medo de seus poderes mágicos. Todos os elementos estavam à mão em um estado desenvolvido para a formação de castas nitidamente diferenciadas.65 Como a cooperação de conceitos religiosos afeta o início dessas formações pode ser bem ilustrado por um exemplo da Polinésia. Aqui, “embora muitos nativos tenham a habilidade de construir navios, apenas uma classe privilegiada pode exercer o ofício, tão intimamente ligado a esta arte está o interesse dos estados e das sociedades. Em todo o arquipélago antigamente, e até hoje em Fiji, os carpinteiros, que são quase exclusivamente construtores de navios, formam uma casta especial, ostentam o título altivo de 'trabalhadores do rei' e desfrutam da prerrogativa de ter 65

Cf. Ratzel, l. c. I, p. 81.

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O Estado seus próprios chefes. [...] Tudo é feito de acordo com a tradição antiga; a colocação da quilha, a conclusão do navio e o lançamento, tudo ocorre em meio a cerimônias e festas religiosas.”66

Onde a superstição foi fortemente desenvolvida, pode surgir um verdadeiro sistema de castas, baseado em parte em fundamentos econômicos e em parte étnicos. Na Polinésia, por exemplo, a articulação das classes, através da operação do tabu, trouxe um estado de coisas muito parecido com um sistema de castas completo.67 Resultados semelhantes podem ser vistos no sul da Arábia.68 É desnecessário neste ponto ampliar o lugar importante que a religião teve na origem e manutenção de castas separadas no antigo Egito e na Índia moderna.69 Estes são os elementos do estado feudal primitivo de grau superior. Eles são mais múltiplos e mais numerosos do que no estado primitivo inferior; mas em ambos, a constituição legal e a distribuição político-econômica são fundamentalmente as mesmas. Os produtos dos meios econômicos ainda são objeto da luta de grupos. Este permanece agora como sempre o impulso motor da política interna do estado, enquanto os meios políticos continuam agora como sempre a constituir o impulso motor de sua política externa no ataque ou na defesa. Teorias de grupos idênticos continuam a justificar, tanto para as classes altas quanto para as baixas, os objetos e meios das lutas externas e domésticas. Mas o desenvolvimento não pode permanecer estacionário. O crescimento difere do mero aumento de volume; crescimento significa uma diferenciação e integração cada vez maiores. Quanto mais o estado feudal primitivo estende seu domínio, quanto mais numerosos são seus súditos e mais densa sua população, mais se desenvolve uma divisão do trabalho político-econômica, que 66 67 68 69

Ratzel, l. c. I, p. 156. Ratzel, l. c. I, pp. 259-60. Ratzel, l. c. II, p. 434. Além disso, parece que a rigidez do sistema de castas indiano não é tão severa na prática. A guilda parece romper com tanta frequência as barreiras das castas quanto o contrário. — Ratzel II, página 596.

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O Estado Feudal Primitivo suscita novas necessidades e novos meios de supri-las; e tanto mais nítidas são as distinções dos estratos de classe econômicos e, consequentemente, sociais, de acordo com o que chamei de “lei da aglomeração ao redor de núcleos existentes de riqueza”. Essa diferenciação crescente torna-se decisiva para o desenvolvimento posterior do estado feudal primitivo e, mais ainda, para sua conclusão. Esta conclusão não pretende ser, em nenhum sentido, o fim físico de tal estado. Não queremos dizer a morte de um estado, pelo qual tal estado feudal de tipo superior desaparece, em conseqüência do conflito com um estado mais poderoso, no mesmo ou em um plano superior de desenvolvimento, como foi o caso dos estados mogul da Índia ou de Uganda em seus conflitos com a Grã-Bretanha. Tampouco significa uma estagnação como aquela em que caíram a Pérsia e a Turquia,70 que representa por um tempo apenas uma pausa no desenvolvimento, uma vez que esses países, por suas próprias forças ou por conquista estrangeira, logo devem ser empurrados no caminho de seu destino. Tampouco nos referimos à rigidez do gigantesco Império Chinês, que só pode durar enquanto as potências estrangeiras se abstiverem de forçar seus misteriosos portões.71 O resultado aqui mencionado significa o desenvolvimento posterior do estado feudal primitivo, uma questão de importância para nossa compreensão da história universal como um processo. As principais linhas de desenvolvimento nas quais esta questão se ramifica são duplas e de caráter fundamentalmente diferente. Mas essa oposição 70 71

Deixo estas palavras, escritas em 1907, que já se revelaram uma profecia cumprida, pelo menos no que diz respeito à Turquia. (Dezembro de 1928.) Se tivéssemos espaço, uma exposição detalhada desse desenvolvimento excepcional de um estado feudal seria tentadora. A China mereceria uma discussão mais detalhada, pois, em muitos aspectos, ela se aproximou mais da condição de “cidadania de homens livres” do que qualquer povo da Europa Ocidental. A China superou as consequências do sistema feudal de forma mais completa do que nós, europeus; e tornou, no início de seu desenvolvimento, os grandes interesses de propriedade na terra inofensivos, de modo que seu filho bastardo, o capitalismo, dificilmente surgiu; enquanto, além disso, resolveu em grau considerável os problemas da produção cooperativa e da distribuição cooperativa.

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O Estado polar é condicionada por um contraste semelhante entre dois tipos de riqueza econômica, cada um dos quais aumenta de acordo com a “lei de aglomeração ao redor de núcleos existentes”. No primeiro caso, trata-se de propriedade móvel; no outro, a propriedade fundiária. Aqui é a capital do comércio, ali a propriedade da terra, acumulando-se nas mãos de um número cada vez menor, e assim subvertendo radicalmente a articulação das classes, e com ela todo o estado. O estado marítimo é palco do desenvolvimento das riquezas móveis; o estado territorial é a personificação do desenvolvimento da propriedade fundiária. A questão final do primeiro é a exploração capitalista pela escravidão, o resultado do último é, antes de tudo, o estado feudal desenvolvido. A exploração capitalista pela escravatura, resultado típico do desenvolvimento dos chamados “estados antigos” do Mediterrâneo, não termina na morte de estados, o que não tem importância, mas na morte de povos, por causa do consumo de população. Na genealogia do desenvolvimento histórico do estado, forma um ramo secundário, do qual não pode ocorrer nenhum crescimento imediato. O estado feudal desenvolvido, porém, representa o ramo principal, a continuação do tronco; e é, portanto, a origem para o crescimento posterior do estado. Daí desenvolveu-se no estado estamental; no absolutismo e no estado constitucional moderno; e se estivermos certos em nosso prognóstico, ele se tornará uma “cidadania de homens livres”. Contanto que o tronco crescesse apenas em uma direção, i. e., para incluir o estado feudal primitivo de grau superior, nosso esboço de seu crescimento e desenvolvimento poderia incluir ambas as formas. Doravante, após a bifurcação, nossa história se bifurca e segue cada ramo até seu último galho. Começamos, então, com os estados marítimos, embora não sejam a forma mais antiga. Pelo contrário, desde que a aurora da história dissipa a névoa da existência pré-histórica, os primeiros estados fortes foram formados como estados territoriais, que então, por seus próprios poderes, atingiram a escala de estados feudais desenvolvidos. Mas além 86

O Estado Feudal Primitivo desse estágio, pelo menos no que diz respeito aos estados mais interessantes para nossa cultura, a maioria deles permaneceu estacionária ou caiu no poder dos estados marítimos; e então, infectados com o veneno mortal da exploração capitalista através da escravidão, foram destruídos pela mesma praga. O progresso posterior dos estados feudais expandidos de grau superior só poderia ocorrer depois que os estados marítimos tivessem percorrido seu curso: formas poderosas de dominação e estadismo eles se tornaram, e subsequentemente influenciaram e promoveram a conformação dos estados territoriais que cresceram de suas ruínas. Por essa razão, a história do destino dos estados marítimos deve ser traçada primeiro, pois eles são a introdução às formas superiores de vida do estado. Depois de traçar primeiro o ramo lateral, retornaremos ao ponto de partida, o estado feudal primitivo, seguiremos o tronco principal até o desenvolvimento do estado constitucional moderno e, antecipando a história atual, esboçaremos a “cidadania de homens livres” do futuro.

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III O Estado Marítimo O curso da vida e o caminho do sofrimento do estado fundado pelos nômades do mar, como já foi dito, é determinado pelo capital comercial; assim como a do estado territorial é determinada pelo capital investido em bens imóveis; e, podemos acrescentar, a do estado constitucional moderno pelo capital produtivo. O nômade do mar, porém, não inventou o comércio ou a comunidade mercantil, feiras ou mercados ou cidades; estes preexistiam e, uma vez que serviam a seu propósito, agora eram desenvolvidos para atender a seus interesses. Todas essas instituições, servindo aos meios econômicos, à troca por equivalentes, há muito foram descobertas. Aqui, pela primeira vez em nossa pesquisa, encontramos o meio econômico não como objeto de exploração pelos meios políticos, mas como um agente cooperante na origem do estado, pode-se chamá-lo de “cadeia” que passa para o “elevador” criado pelo estado feudal para criar uma estrutura mais elaborada. A gênese do estado marítimo não seria completamente inteligível, se não tivéssemos como premissa uma afirmação sobre o tráfego e intercâmbio de mercadorias em tempos préhistóricos. Além disso, nenhum prognóstico do estado moderno é completo, o que não leva em conta os meios econômicos formados independentemente da troca aborígine.

(a) Comércio nos Tempos Pré-Históricos A explicação psicológica da troca trouxe à tona a teoria da utilidade marginal, seu maior mérito. De acordo com essa teoria, a valoração subjetiva de qualquer bem econômico diminui proporcionalmente ao número de objetos do mesmo tipo possuídos pelo 89

O Estado mesmo proprietário. Quando até dois proprietários se encontram, cada um com um número de artigos semelhantes, eles trocarão com prazer, desde que os meios políticos sejam impedidos, por exemplo, se ambas as partes são aparentemente igualmente fortes e bem armadas, ou no estágio inicial, estão dentro do círculo sagrado de relacionamento. Pela troca, cada um recebe bens de altíssimo valor subjetivo, no lugar de bens de baixíssimo valor subjetivo, de forma que ambas as partes saem ganhando na transação. O desejo dos povos primitivos pela troca deve ser mais forte do que o dos cultos. Pois neste estágio o homem não valoriza seus próprios bens, mas cobiça as coisas pertencentes a estranhos e dificilmente é afetado por considerações econômicas calculadas. Por outro lado, não devemos esquecer que existem povos primitivos para os quais a troca não tem qualquer atração. “Cook fala de tribos na Polinésia, com quem nenhuma relação era possível, uma vez que os presentes não causavam absolutamente nenhuma impressão neles e depois eram jogados fora; tudo o que lhes era mostrado, eles consideravam com indiferença e sem desejo de possuí-lo, enquanto com suas próprias coisas eles não se separavam; na verdade, eles não tinham nenhuma concepção de comércio ou escambo.”72

Portanto, Westermarck é da opinião de que “troca e comércio são invenções comparativamente tardias”. Nisso ele se opõe a Peschel, que teria considerado que o homem no estágio mais antigo de desenvolvimento conhecido se envolveu em trocas. Westermarck afirma que não há prova “de que os habitantes das cavernas do Périgord do período das renas obtivessem seus cristais de rocha, suas conchas do Atlântico e os chifres do antílope Saiga da Polônia (moderna) por meio de escambo”.73

72 73

I. Kulischer, I. c., p. 317, onde outros exemplos podem ser encontrados. Westermarck, History of Human Marriage, p. 400, que contém uma série de exemplos etnográficos.

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O Estado Marítimo Apesar dessas exceções, que admitem outras explicações — talvez os nativos temessem a feitiçaria — a história dos povos primitivos mostra que o desejo de negociar e trocar é uma característica humana universal. Só pode, entretanto, ter efeito quando esses homens primitivos, ao se encontrarem com estranhos, recebem novos objetos atraentes, uma vez que no círculo imediato de seus parentes de sangue todos têm os mesmos tipos de propriedade e, em seu comunismo natural, em média aproximadamente a mesma quantidade.74 No entanto, mesmo assim, a troca, o início de todo comércio regular, só pode ocorrer quando o encontro com estrangeiros é pacífico. Mas existe alguma possibilidade de encontro pacífico com estrangeiros? Não está o homem primitivo, durante toda a sua vida, e especialmente no período em que começa a troca, ainda sob a apreensão: homo homini lupus? Depois que o comércio é desenvolvido, ele é, via de regra, fortemente influenciado pelos “meios políticos”, “o comércio geralmente segue o roubo”.75 Mas seus primórdios são principalmente o resultado dos meios econômicos, o resultado de relações pacíficas, não belicosas. As relações internacionais dos caçadores primitivos entre si não devem ser confundidas com as existentes entre os caçadores ou pastores e seus camponeses, ou entre os próprios pastores. Há, sem dúvida, rixas de sangue, ou rixas por causa de mulheres saqueadas, ou possivelmente por violação dos distritos destinados à caça; mas a estes falta aquele forte incentivo, que é consequência apenas da avareza, do desejo de espoliar outros homens dos produtos de seu trabalho. Portanto, as “guerras” dos caçadores primitivos dificilmente são guerras reais, mas sim escaramuças e combates individuais, travados frequentemente — como são os duelos estudantis alemães — de acordo com um cerimonial 74

75

Aliás, existem associações centrais (australianas) cujos grupos individuais vivem em locais diferentes (por exemplo, costa e floresta) e, portanto, têm produtos diferentes. Aqui a troca é natural. Mas também estamos lidando aqui com níveis relativamente altos de cultura. Os australianos são caçadores superiores! Westermarck, l. c., p. 546.

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O Estado estabelecido, e prolongados apenas até o ponto da incapacidade de lutar, como se poderia dizer, “até o primeiro sangue”.76 Essas tribos, numericamente muito fracas, sabiamente limitam o derramamento de sangue à quantidade indispensável — isto é, no caso de uma rixa de vingança de sangue — e assim evitar iniciar novas rixas de vingança de sangue. Por esta razão, as relações pacíficas com seus vizinhos em igual escala econômica são muito mais fortes, e também mais livres do incentivo ao uso de meios políticos, tanto entre caçadores quanto entre camponeses primitivos, do que entre pastores. São inúmeros os exemplos em que os primeiros se encontram pacificamente para explorar os recursos naturais em comum. “Enquanto ainda nos estágios primitivos da civilização, grandes massas de pessoas se reúnem, de tempos em tempos, em lugares onde objetos úteis podem ser encontrados. Os índios de grande parte da América faziam peregrinações regulares aos campos de pederneira; outros se reuniam anualmente na época da colheita nos pântanos de Zizania dos lagos do Noroeste. Os australianos, vivendo dispersos no distrito de Barku, reúnem-se de todas as direções para os festivais da colheita nos pântanos do milho que produz Marsiliacae. Quando as árvores bongabonga em Queensland produzem uma colheita superabundante, e há um estoque maior disponível do que a tribo pode consumir, as tribos estrangeiras têm permissão para compartilhar disso.”77

“Várias tribos concordam com a donidade comum de faixas definidas de território, e também das pedreiras de fonolito para machadinhas.”78 Numerosas tribos australianas têm consultas comuns e sessões dos anciãos para julgamento. Nestes, o restante da população

76 77 78

Cf. Ratzel, l. c. I, pp. 318, 540. Ratzel, l. c. I, p. 335. Ratzel, l. c. I, p. 346.

92

O Estado Marítimo forma os espectadores, um costume semelhante ao germânico “Umstand” no folkmoot primitivo.79 É natural que tais reuniões gerem trocas. Talvez isso explique a origem daquelas “feiras semanais realizadas pelos negros da África Central no meio da floresta primitiva sob acordos especiais pela paz”80 e também as grandes feiras, ditas muito antigas, dos caçadores de peles do extremo norte do Tschuktsche. Todas essas coisas pressupõem o desenvolvimento de formas pacíficas de intercâmbio entre grupos vizinhos. Essas formas podem ser encontradas quase universalmente. Elas poderiam ser facilmente desenvolvidas neste período, uma vez que ainda não havia sido descoberto que os homens podem ser utilizados como motores de trabalho. Nesta fase, o estranho é tratado como inimigo apenas em casos duvidosos. Se ele vier com intenções aparentemente pacíficas, será tratado como amigo. Assim, desenvolveu-se todo um código de cerimônias de direito público, destinado a demonstrar a intenção pacífica do recém-chegado.81 Afasta-se o braço e mostra-se a mão desarmada, ou envia-se de antemão arautos, que são sempre invioláveis.82 É claro que essas formas representam algum tipo de reivindicação de hospitalidade e, de fato, é por meio desse direito de hóspede que o comércio pacífico se torna possível. A troca de presentes de convidados precede e parece introduzir o escambo propriamente dito. Torna-se, portanto, importante investigar a origem da hospitalidade. 79 80 81

82

Ratzel, l. c. I, p. 347. Bücher, Entstehung der Volkswirtschaft, segunda edição, Tübingen, 1898, p. 301. Nesta categoria deve ser considerada a saudação, ainda em uso em algumas partes, “A paz esteja convosco”. É expressivo da perversidade dos últimos anos de Tolstoi que ele interprete erroneamente essa marca característica de uma época em que a guerra era o estado normal das coisas, como o remanescente de uma era de ouro de paz. The Importance of the Russian Revolution (tradução alemã de A. Hess, p. 17). Veja Ratzel, l. c. I, p. 271, sobre os oceânicos: “A comunicação de tribo para tribo é confiada a arautos invioláveis, de preferência mulheres idosas. Estes também medeiam o comércio de escambo.” Cf. p. 317 para os australianos.

93

O Estado Westermarck, em sua recente obra monumental (1907), Origin and Development of Moral Concepts,83 afirma que o costume da hospitalidade resulta de duas causas, curiosidade por notícias do estrangeiro de longe e, mais ainda, do medo de que o estrangeiro pode ser dotado de poderes de feitiçaria, imputados a ele apenas porque ele é um estranho.84 Na Bíblia, a hospitalidade é recomendada porque não se pode saber que o estranho pode não ser um anjo. A raça supersticiosa teme sua maldição (a Erínia dos gregos) e se apressa em apaziguar o estranho. Tendo sido aceito como hóspede, ele é inviolável e goza do direito sagrado do grupo consanguíneo, sendo considerado como pertencente a ele durante sua estada. Portanto, ele participa dos benefícios do comunismo aborígine reinante no grupo e compartilha sua propriedade. O anfitrião exige e recebe tudo o que reivindica, o estranho obtém em troca o que pede. Quando a relação pacífica se torna mais frequente, a troca mútua de presentes para convidados pode se transformar em um acordo comercial, porque o comerciante retorna com prazer ao local onde encontrou um bom entretenimento, uma troca lucrativa e onde está protegido pelas leis da hospitalidade, em vez de procurar novos lugares, onde, muitas vezes com perigo de vida, teria que primeiro adquirir o direito à hospitalidade. A existência de uma divisão “internacional” do trabalho é, obviamente, pressuposta antes que o desenvolvimento de uma relação comercial regular possa começar. Essa divisão do trabalho existe muito antes e em maior extensão do que geralmente se acredita. “É bastante errôneo supor que a divisão do trabalho ocorre apenas em uma alta escala de desenvolvimento econômico. Existem no interior da África aldeias de ferreiros, ou melhor, daqueles que apenas fabricam facas 83 84

Tradução para o alemão por L. Katscher. Leipzig, 1907. Isso pode explicar o uso de mulheres idosas como arautos. Elas estão duplamente disponíveis para esse fim, pois são inúteis para a guerra e supostamente dotados de poderes específicos de feitiçaria (Westermarck), ainda mais do que os velhos, que também são tratados com cautela, pois podem se tornar “fantasmas” em breve.

94

O Estado Marítimo de arremesso; A Nova Guiné tem suas aldeias de oleiros, a América do Norte seus fabricantes de pontas de flechas.”85

De tais especialidades desenvolve-se o comércio, seja por meio de mercadores itinerantes, ou por presentes para os anfitriões, ou por presentes de paz de tribo para tribo. Na América do Norte, os kaddu comercializam arcos. “A obsidiana era universalmente empregada para pontas de flechas e facas; no Yellowstone, no rio Snake, no Novo México, mas especialmente no México. Daí o precioso artigo foi distribuído por todo o país até Ohio e Tennessee, uma distância de quase duas mil milhas.”86

De acordo com Vierkandt: “Dos produtos puramente caseiros dos povos primitivos, resulta um sistema de comércio totalmente distinto daquele que prevalece nas condições modernas. [...] Cada tribo separada desenvolveu aptidões especiais, levando ao intercâmbio. Mesmo entre as tribos indígenas relativamente incivilizadas da América do Sul, encontramos tais diferenciações. [...] Por meio desse comércio, os produtos podem ser distribuídos por distâncias extraordinárias, não de maneira direta por meio de comerciantes profissionais, mas por meio de uma passagem gradual de tribo para tribo. A origem de tal comércio, como Buecher mostrou, remonta à troca de presentes de convidados.”87

Além dessa troca de presentes de convidados, um comércio pode crescer a partir das ofertas de paz que os adversários trocam após uma luta como sinal de reconciliação.88 Sartorius relata sobre a Polinésia:

85 86 87 88

Ratzel, l. c. I, p. 81. Ratzel, l. c. I, pp. 478-9. A. Vierkandt, Die wirtschaftlichen Verhältnisse der Naturvölker. Zeitschrift für Sozialwissenschaft, II, pp. 177-8. A espada de Breno frequentemente cai na balança. A troca aparente mascara “reparações” sensíveis.

95

O Estado “Depois de uma guerra entre diferentes ilhas, as ofertas de paz para cada grupo eram algo novo; e se o presente e o presente de retorno agradassem a ambas as partes, uma repetição ocorria e, assim, abria-se novamente o caminho para a troca de produtos. Mas, estes, em contraste com os presentes de convidados, eram as bases da relação contínua. Aqui, no lugar do contato de indivíduos, tribos e povos se encontraram. As mulheres são o primeiro objeto de troca; elas formam o elo de ligação entre tribos estranhas e, de acordo com evidências de muitas fontes, as mulheres são trocadas por gado.”89

Encontramos aqui um objeto de comércio, trocável mesmo sem “divisão internacional do trabalho”. E parece que a troca de mulheres, em muitos aspectos, facilitou o caminho para a troca de mercadorias, como se tivesse sido o primeiro passo para a integração pacífica das tribos, que acompanhou a integração belicosa da formação do estado. Lippert, no entanto, acredita que a pacífica troca de fogo antecede esta troca.90 Admitindo que esse costume seja muito antigo, ele pode, no entanto, rastreá-lo apenas a partir de rudimentos de observância e de lei; e como a prova não está mais acessível, não prosseguiremos com a questão neste local. Por outro lado, a troca de mulheres é observada universalmente e, sem dúvida, exerce uma influência extraordinariamente forte no desenvolvimento de relações pacíficas entre tribos vizinhas e na preparação para troca de mercadorias. A história das mulheres sabinas, que se jogaram entre seus irmãos e seus maridos, quando estes estavam prestes a entrar em batalha, deve ter sido uma realidade em mil instâncias no curso do desenvolvimento da raça humana. Em todo o mundo, o casamento de parentes próximos é considerado um ultraje, como “incesto”, por motivos que fogem ao escopo deste livro.91 Isso direciona o desejo sexual para as mulheres das tribos vizinhas e, assim, torna o saque das mulheres uma parte das relações intertribais primárias; e em quase todos os casos, a menos que fortes sentimentos 89 90 91

Kulischer, l. c. pp. 320-1. Lippert, l. c. I, p. 266, et seq. Cf. Westermarck, History of Human Marriage.

96

O Estado Marítimo raciais o neutralizem, o rapto violento de mulheres é gradualmente comutado para troca e compra, o costume resultante da relativa indesejabilidade das mulheres do próprio sangue em comparação com as esposas a serem conseguidas de outras tribos.92 Onde a divisão do trabalho tornasse possível a troca de bens, as relações entre as várias tribos se tornariam úteis a ela; os grupos exogâmicos gradualmente se acostumam regularmente a se encontrarem de forma pacífica. A paz, originalmente protegendo a horda de parentes de sangue, a partir de então se estende a um círculo mais amplo. Um exemplo de inúmeras instâncias: “Cada uma das duas tribos de Camarões tem seus próprios ‘países do mato’, lugares onde seus próprios membros da tribo comercializam e onde, por meio de casamentos, eles têm parentes. Aqui também a exogamia mostra seu poder de ligação entre tribos.”

Estas são as principais linhas de crescimento da troca e do tráfico pacíficos; do direito à hospitalidade e à troca de mulheres, talvez também da troca de fogo, ao comércio de mercadorias. Além disso, mercados e feiras, e talvez também comerciantes, eram quase uniformemente considerados sob a proteção de um deus que preservava a paz e vingava sua violação. Assim, trouxemos os fundamentos desse importantíssimo fator sociológico a ponto dos meios políticos entrarem como causa para perturbar, reorganizar e depois desenvolver e afetar as criações dos meios econômicos.

(b) O Comércio e o Estado Primitivo Há duas razões muito importantes pelas quais o guerreiro ladrão não deve interferir indevidamente nos mercados e feiras que encontrar em seu domínio conquistado.

92

Ratzel, l. c. II, p. 27.

97

O Estado A primeira, que é extraeconômica, é o medo supersticioso de que a divindade vingará uma violação da paz. A segunda, que é econômica e provavelmente a mais importante — e acho que sou o primeiro a apontar essa conexão — é que os conquistadores não podem prosperar sem os mercados. O espólio dos vencedores primitivos consiste em muitas propriedades que não estão disponíveis para seu uso e consumo imediatos. Visto que artigos valiosos naquele período existem em poucas formas, enquanto estes poucos ocorrem em grande quantidade, a “utilidade marginal” de qualquer tipo é considerada muito baixa. Isso se aplica especialmente ao produto mais importante dos meios políticos, os escravos. Tomemos primeiro o caso do pastor: sua necessidade de escravos é limitada pelo tamanho de seus rebanhos; é muito provável que ele troque seu excedente por outros objetos de maior valor para ele: sal, ornamentos, armas, metais, tecidos, utensílios etc. Por isso, o pastor não só é sempre um ladrão, como também é sempre comerciante e negociante e protege o comércio.93 Ele protege o comércio vindo em sua direção para trocar seu saque com os produtos de outra civilização — desde os primeiros tempos, os nômades escoltam as caravanas que passam por suas estepes ou desertos em consideração ao dinheiro da proteção — mas ele também protege o comércio mesmo em lugares conquistados por ele em tempos pré-históricos. Exatamente o mesmo tipo de consideração que influenciou os pastores a mudar da fase de urso para a fase de apicultor, deve tê-los influenciado a manter e proteger os antigos mercados e feiras. Um único saque, nesse caso, significaria matar a galinha dos ovos de ouro. É mais lucrativo preservar o mercado e, em vez disso, estender a paz reinante sobre ele, uma vez que não há apenas o lucro a ser obtido na troca de mercadorias estrangeiras por pilhagem, mas também o dinheiro da proteção, o pedágio dos senhores, a ser coletado. Por essa razão, os príncipes dos estados feudais de todos os estágios de desenvolvimento estenderam sobre os mercados, estradas e 93

De acordo com Ed. Hahn, isso é menos verdadeiro para os pastores africanos do que para os asiáticos.

98

O Estado Marítimo comerciantes, sua proteção especial, a “paz do rei”, muitas vezes reservando para si mesmos o monopólio do comércio exterior. Em todos os lugares os vemos ocupados em criar novas feiras e cidades pela concessão de proteção e imunidade. Esse interesse no sistema de feiras e mercados torna completamente crível que as tribos de pastores respeitassem os mercados existentes em sua esfera de influência a tal ponto que suspenderam o esforço dos meios políticos tão completamente que nem mesmo exerceram “domínio” sobre eles. A história contada por Heródoto é inerentemente provável, embora ele tenha ficado surpreso que os argipeanos tivessem um mercado sagrado entre os pastores citas sem lei, e que seus habitantes desarmados fossem efetivamente protegidos pela paz sagrada de seu mercado. Muitos fenômenos semelhantes tornam isso mais facilmente crível. “Ninguém ousará feri-los, pois são considerados sagrados; e ainda assim eles não têm armas; mas são eles que acalmam as brigas de seus vizinhos, e quem quer que tenha escapado para eles como um fugitivo não pode ser tocado por nenhum outro homem.”94 Instâncias semelhantes são encontradas com frequência: “É sempre a mesma história dos argipeanos, a história da pequena tribo ‘sagrada’, 'desarmada', 'justa', que faz escambo e apaziguadora no meio de uma população nômade semelhante a beduínos.”95 Cere pode ser tomado como um exemplo de um tipo superior. Estrabão diz a respeito de seus habitantes: “Os gregos tinham grande consideração por sua bravura e justiça, porque, embora fossem bastante poderosos, abstinham-se de roubos.” Mommsen, que cita esta passagem, acrescenta: “Isso não exclui a pirataria, praticada pelos mercadores de Cere, bem como por todos os outros mercadores, mas sim que Cere era uma espécie de porto livre para os fenícios, assim como para os gregos.”96

94 95 96

Herodotus IV, 23, citado por Lippert, l. c. I, p. 459. Lippert, l. c. II, p. 170. Mommsen, l. c. I, p. 139.

99

O Estado Cere não é como a feira dos argipeanos, um mercado no interior de um distrito de nômades da terra, mas está no meio de um domínio de nômades do mar, um porto dotado de sua própria paz. Esta é uma daquelas formações típicas cuja importância, a meu ver, não foi apreciada pelo seu valor real. Eles têm, parece-me, exercido uma poderosa influência na gênese dos estados marítimos. As razões pelas quais vimos os nômades da terra forçados a preservar, se não a criar, mercados, devem com ainda mais intensidade ter coagido os nômades do mar a atitudes semelhantes. Pois o transporte de saques, especialmente de rebanhos e escravos, é difícil e perigoso nas trilhas do deserto ou das estepes: o avanço lento convida à perseguição. Mas com a canoa de guerra e o “navio-dragão” esse transporte é fácil e seguro. Por essa razão, o viking é ainda muito mais comerciante e mercador do que o pastor. Como é dito em Fausto, “Guerra, Comércio e Pirataria são inseparáveis”.

(c) A Gênese do Estado Marítimo Em muitos casos, creio eu, o comércio do saque da pirataria é a origem daquelas cidades em torno das quais, como centros políticos, cresceram as cidades-estados da civilização antiga ou mediterrânea; enquanto em muitos outros casos, o mesmo comércio cooperou para levá-los ao mesmo ponto de desenvolvimento político. Esses mercados portuários desenvolveram-se provavelmente a partir de dois tipos gerais: eles cresceram como fortalezas piratas direta e intencionalmente colocadas em território hostil, ou então como “colônias mercantes” baseadas em direitos de tratados nos portos de estados feudais estrangeiros primitivos ou desenvolvidos. Do primeiro tipo, temos vários exemplos importantes da história antiga que correspondem exatamente ao quarto estágio de nosso esquema, onde uma colônia armada de piratas se instala em um ponto comercial e estrategicamente defensável no litoral de um estado estrangeiro. O exemplo mais notável é Cartago; e, da mesma forma, os 100

O Estado Marítimo nômades gregos do mar, jônios, dórios e aqueus, estabeleceram-se em seus castelos marítimos nas costas do Adriático e do Tirreno no sul da Itália, nas ilhas desses mares e nos golfos do sul da Gália. Fenícios, etruscos,97 gregos e, de acordo com a investigação moderna, cários, todos ao redor do Mediterrâneo, fundaram seus “Estados” segundo o mesmo tipo, com idêntica divisão de classe em senhores e camponeses servis do território vizinho.98 Alguns desses estados da costa desenvolveram-se em estados feudais do tipo dos estados territoriais; e a classe senhorial tornou-se então uma aristocracia fundiária. Os fatores dessa mudança foram: primeiro, as condições geográficas, a falta de bons portos e uma grande extensão de hinterland cultivado por camponeses pacíficos; e em segundo lugar, muito provavelmente, a organização adquirida em classes trazidas com eles de seus lares originais. Em muitos casos, eram nobres fugitivos, derrotados em rixas domésticas, ou filhos mais novos, às vezes toda uma geração de jovens de ambos os sexos, que assim se iniciavam “no viking”, tendo em casa terras e servos, como pequenos senhores, eles novamente buscaram em terras estrangeiras o que consideravam devido. A ocupação da Inglaterra pelos anglo-saxões e do sul da Itália pelos normandos são 97

98

Se os etruscos eram imigrantes na Itália por territórios que começaram a pirataria depois de terem feito guerra com sucesso em terra, ou se como nômades do mar eles já haviam estabelecido o país ao longo do mar com o nome deles, não foi determinado. Se os etruscos eram um povo de guerra que imigraram para a Itália por terra e depois passaram para o nomadismo marítimo, ou se já haviam chegado como nômades do mar em seus assentos no mar com o nome deles, não foi estabelecido. Mas é muito provável que pelo menos uma imigração posterior tenha ocorrido por mar; os “tursa” de que falam os monumentos egípcios. Os filisteus também chegaram à Palestina por mar, talvez de Creta: "cereteus e feleteus". Condições semelhantes podem ser observadas entre os ilhéus próximos à Índia. Aqui os malaios são vikings. “A colonização é um fator importante, como conquista e colonização ultramarina [...] lembrando o grande papel desempenhado na antiga Hellas pelas tribos errantes. [...] Cada faixa de costa mostra elementos estrangeiros, que entram sem ser solicitados e, na maioria das vezes, espalhando danos entre os nativos. O direito de conquista foi concedido pelos governantes de Tornate a dinastias nobres, que mais tarde se tornaram vice-reis semi-soberanos nas ilhas de Buru, Serang, etc.”

101

O Estado exemplos desse método; também o são as colonizações espanhola e portuguesa do México e da América do Sul. As colônias aqueias da Grande Grécia no sul da Itália fornecem exemplos adicionais e muito importantes desse desenvolvimento de estados feudais territoriais por nômades do mar: “Esta Liga Aqueia de cidades foi uma verdadeira colonização. As cidades não tinham portos — Croton só tinha uma boa enseada — e estavam sem qualquer comércio próprio; o sibarita podia se gabar de estar ficando grisalho em sua cidade aquática entre as pontes de sua casa, enquanto a compra e venda era realizada por milésios e etruscos. Por outro lado, os gregos nesta região não apenas controlavam a orla da costa, mas governavam de mar a mar; [...] os habitantes agrícolas nativos foram forçados a uma relação de clientela ou servidão, e foram obrigados a trabalhar nas fazendas de seus senhores ou pagar tributo a eles.”99

É provável que a maioria das colônias dóricas em Creta fossem organizadas de forma semelhante. Mas, no curso da história universal, esses “estados territoriais”, quer tenham surgido com mais ou menos frequência, não adquiriram tanta importância quanto aquelas cidades marítimas que dedicaram suas principais energias ao comércio e ao corso. Mommsen contrasta em frases distintas e bem escolhidas o senhor de terras aqueu com os “comerciantes reais” das colônias gregas no sul da Itália: “De forma alguma eles desprezaram a agricultura ou o aumento do território; os gregos não se contentaram, pelo menos não depois de se tornarem poderosos, em permanecer no espaço confinado de uma fábrica comercial fortificada no meio do país dos bárbaros, como haviam feito os fenícios. Suas cidades foram fundadas principal e exclusivamente para fins comerciais e, ao contrário das

99

Mommsen, l. c. I, p. 132.

102

O Estado Marítimo colônias aqueias, estavam universalmente situadas nos melhores portos e locais de desembarque.”100

Estamos certos, no caso das colônias jônicas, e podemos muito bem assumir isso para os outros casos, que os fundadores dessas cidades não eram senhores de terras, mas mercadores marítimos. Mas tais estados ou cidades marítimas, em sentido estrito, vieram a existir não apenas por meio de conquistas bélicas, mas também por começos pacíficos, por uma pénétration pacifique mais ou menos mista. Onde, no entanto, os vikings não encontraram camponeses pacíficos, mas estados feudais no estágio primitivo, dispostos a lutar, eles ofereceram e aceitaram termos de paz e se estabeleceram como colônias de mercadores. Sabemos de tais casos em todas as partes do mundo, em portos e em mercados em terra. Para citar os exemplos com os quais os alemães estão mais familiarizados, há os assentamentos de comerciantes do norte da Alemanha em países ao longo do oceano alemão e do mar Báltico, o German Steel Yard em Londres, o Hansa na Suécia e a Noruega, na ilha de Schönen, e na Rússia, em Novgorod. Em Wilna, a capital dos Grão-Duques da Lituânia, havia tal colônia; e o Fondaco dei Tedeschi em Veneza é outro exemplo de instituição semelhante. Os estrangeiros em quase todos os casos se estabelecem como uma massa compacta, sujeita às suas próprias leis e à sua própria jurisdição. Frequentemente adquirem grande influência política, às vezes estendendo-se ao domínio sobre o estado. Alguém poderia pensar que o seguinte conto de Ratzel, sobre a costa e as ilhas do Oceano Índico, foi uma narrativa contemporânea da invasão fenícia ou grega do Mediterrâneo por volta de 1.000 a.C.: “Nações inteiras foram, por assim dizer, liquefeitas pelo comércio, especialmente os proverbialmente inteligentes, zelosos e onipresentes malaios de Sumatra; assim como o traiçoeiro bugi das Celebes. Estes podem ser encontrados 100

Mommsen, l. c. I, p. 134.

103

O Estado em qualquer lugar, de Cingapura à Nova Guiné. Ultimamente, especialmente em Bornéu, eles imigraram em massa a pedido dos chefes de Bornéu. Sua influência era tão forte que lhes foi permitido governar a si mesmos de acordo com suas próprias leis, e eles se sentiram tão fortes que repetidamente tentaram alcançar a independência. Os achineses anteriormente ocupavam uma posição semelhante. Malaca havia se tornado o principal mercado dos malaios de Sumatra e, após seu declínio, Achin tornou-se o porto mais frequentado desse leste distante, especialmente no primeiro quarto do século XVII, o período crucial do desenvolvimento daquele canto do mundo.”101

O seguinte, dentre inúmeros exemplos, demonstra a universalidade dessa forma de assentamento: “Em Urga, onde eles dominam politicamente, os mercadores estão amontoados em uma cidade chinesa separada.”102 Nos Estados Judeus havia “pequenas colônias de mercadores e mecânicos estrangeiros, separados em bairros distintos das cidades. Aqui, sob a proteção do rei, eles poderiam viver de acordo com seus próprios costumes religiosos.”103 Também podemos comparar com isso, I Reis, 20:34. “O rei Onri de Efraim foi forçado pelo sucesso militar de seu oponente, o rei de Damasco, a conceder aos mercadores aramaicos o uso de certas partes da cidade de Samaria, onde sob proteção real eles poderiam negociar. Mais tarde, quando o rumo da guerra favoreceu seu sucessor, Acabe, este último exigiu o mesmo privilégio para os mercadores efraimitas em Damasco.”104

101 102 103 104

Ratzel, l. c. I, p. 160. Ratzel, l. c. II, p. 558. Buhl, l. c., p. 48. Buhl, l. c., pp. 78-79.

104

O Estado Marítimo “Os habitantes da Itália, onde quer que estivessem, mantinham-se unidos como massas sólidas e organizadas, os soldados como legionários, os comerciantes de todas as grandes cidades como corporações; enquanto os cidadãos romanos domiciliados ou residentes nos vários ‘circulos’ (conventus civium Romanorum), eram organizados como uma 'convenção de cidadãos romanos' com seu próprio governo comunal.”105

Podemos lembrar os guetos medievais, que, antes da grande perseguição aos judeus na Idade Média, eram colônias mercantes semelhantes. Os assentamentos de europeus nos portos de fortes impérios estrangeiros na atualidade mostram organizações corporativas semelhantes, com constituição e jurisdição (consular) próprias. China, Turquia e Marrocos devem continuar a ostentar essa marca de inferioridade, enquanto recentemente o Japão conseguiu se livrar dessa insígnia. O ponto mais interessante sobre essas colônias, pelo menos para nosso estudo, consiste em sua tendência geral de estender sua influência política à dominação completa. E há uma boa razão para isso. Os comerciantes possuem uma massa de riqueza móvel, que provavelmente será usada como fator decisivo nas convulsões políticas que constantemente perturbam todos os estados feudais, seja em guerras internacionais entre dois estados vizinhos, seja em lutas intranacionais, como guerras de sucessão . Além disso, os colonos, em muitos casos, podem contar com o poder de seu estado natal, baseando suas reivindicações em laços de sangue e em interesses comerciais extraordinariamente fortes; ao passo que há, além disso, o fato de que em muitos casos eles têm em seus guerreiros marinheiros e seus numerosos escravos uma força efetiva e compacta própria, capaz de realizar muito em uma esfera limitada. A seguinte história do papel desempenhado pelos mercadores árabes na África Oriental parece-me mostrar um tipo histórico até então não suficientemente apreciado: 105

Mommsen, l. c. II, p. 406.

105

O Estado “Quando Speke, como o primeiro europeu, fez esta viagem em 1857, os árabes eram mercadores, vivendo como estrangeiros na terra. Quando em 1861 ele passou pelo mesmo caminho, os árabes pareciam grandes proprietários de terras com ricas propriedades de terra e estavam em guerra com o governante territorial nativo. Esse processo, recorrentemente encontrado em muitas outras regiões do interior da África, é a consequência necessária do equilíbrio de poder. Os mercadores estrangeiros, sejam eles árabes ou suaheli, pedem o privilégio do trânsito e pagam tributo por ele; eles estabelecem armazéns, que os chefes favorecem, pois parecem satisfazer sua vaidade e ampliar suas conexões; então, incorrendo na suspeita, opressão e perseguição dos chefes, os mercadores se recusam a pagar os pedágios e taxas, que cresceram com o aumento de sua prosperidade. Por fim, em uma das lutas inevitáveis pela sucessão, os árabes ficam do lado de um pretendente, se ele for flexível o suficiente, e assim são levados a brigas internas do país e participam das guerras muitas vezes intermináveis.”106

Essa atividade política dos habitantes mercadores (metoikoi) é um tipo constantemente recorrente. “Em Bornéu, desenvolveram-se estados separados a partir dos assentamentos de garimpeiros chineses.”107 Falando estritamente, toda a história da colonização pelos europeus é uma série de exemplos da lei que, com qualquer força superior, as fábricas e assentamentos maiores de estrangeiros tendem a crescer em dominação, a menos que se aproximem do tipo primitivo de pirataria simples, como as conquistas espanhola e portuguesa, ou as Companhias das Índias Orientais, tanto inglesas quanto holandesas. “Existe um estado ladrão ao lado do oceano, entre o Reno e o Scheldt”, são as palavras acusadoras do holandês Multatuli. Todas as colônias do leste asiático, americanas e africanas de todos os povos europeus surgiram como um ou outro desses dois tipos.

106 107

Ratzel, l. c. II, p. 191; cf. também pp. 207-8. Ratzel, l. c. I, p. 363.

106

O Estado Marítimo Mas os estrangeiros nem sempre obtêm domínio incondicional. Às vezes, o estado anfitrião é muito forte e os recém-chegados permanecem politicamente impotentes, mas estrangeiros protegidos; como, por exemplo, os alemães na Inglaterra. Às vezes, o estado anfitrião, embora subjugado, torna-se forte o suficiente para se livrar da dominação estrangeira; assim, por exemplo, a Suécia expulsou o Hansa que lhe havia imposto sua soberania. Em alguns casos, um conquistador supera tanto os mercadores quanto o estado hospedeiro, e subjuga ambos; como aconteceu com as repúblicas de Novgorod e Pskov, quando os russos as anexaram. Em muitos casos, no entanto, os estrangeiros ricos e a nobreza doméstica se amalgamam em um grupo de governantes, seguindo o tipo de formação de estados territoriais, nos quais vimos isso ocorrer sempre que dois grupos de governantes igualmente fortes entravam em conflito. Parece-me que esta última situação nomeada é o pressuposto mais provável para a gênese das mais importantes cidades-estado da antiguidade, para as cidades marítimas gregas e para Roma. Da história grega, para usar os termos de Kurt Breysig, conhecemos apenas a “Idade Média”, da história romana, apenas seus “Tempos Modernos”. Para os assuntos anteriores, devemos ser extremamente cuidadosos ao extrair deduções de analogias imaginárias. Mas parece-me que fatos suficientes são provados e admitidos para permitir a conclusão de que Atenas, Corinto, Micenas, Roma, etc., tornaram-se estados da maneira já apresentada. E isso se seguiria, mesmo que os dados de toda a demografia e história geral conhecidas não fossem de validade tão universal que permitissem a conclusão em si. Sabemos com precisão pelos nomes dos lugares (Salamis: Ilha da Paz, equivalente a Ilha do Mercado), pelos nomes dos heróis, pelos monumentos e pela tradição imediata, que em muitos portos gregos existiam fábricas fenícias, enquanto o hinterland era ocupado por pequenos estados feudais com a articulação típica de nobres, homens livres comuns e escravos. Não se pode contestar seriamente que o desenvolvimento das cidades-estados foi fortemente impulsionado por influências estrangeiras; e isso é verdade, embora nenhuma evidência 107

O Estado específica possa ser aduzida para mostrar que qualquer um dos mercadores fenícios ou ainda mais poderosos da Caria foi autorizado a se casar com as famílias da nobreza residente, ou se tornou cidadão pleno, ou finalmente até mesmo tornaram-se príncipes. O mesmo se aplica a Roma, sobre a qual Mommsen, um autor cauteloso, afirma: “Roma deve sua importância, senão sua origem, a essas relações comerciais e estratégicas. A evidência disso é encontrada em muitos vestígios de valor muito maior do que os contos de romances históricos que pretendem ser autênticos. Tomemos um exemplo das relações primitivas existentes entre Roma e Cere, que foi para a Etrúria o que Roma foi para o Lácio, e depois disso foi seu vizinho mais próximo e amigo comercial; ou a importância incomum atribuída à ponte sobre o Tibre e à construção da ponte (Pontifex Maximus) em todas as partes do Estado Romano; ou a galé no brasão municipal. A esta fonte podem ser atribuídas as primitivas taxas portuárias romanas às quais, desde tempos remotos, estavam sujeitas apenas as mercadorias destinadas à venda (promercale) e não o que entrava no porto de Ostia, para o uso adequado do afretador (usuarium), e que constituía, portanto, um imposto sobre o comércio. Por essa razão, encontramos o uso comparativamente precoce de dinheiro cunhado e os tratados comerciais de estados ultramarinos com Roma. Nesse sentido, então, Roma pode, como afirma a história de sua origem, ter sido mais uma cidade criada do que desenvolvida, e entre as cidades latinas a mais jovem em vez da mais antiga.”108

Seria necessário o trabalho de uma vida inteira de pesquisa histórica para investigar essas possibilidades, ou melhor, essas probabilidades; e então escrever a história constitucional dessas cidades-estados preeminentemente importantes e tirar daí as conclusões necessárias. Parece-me que neste caminho se encontrariam muitas informações sobre muitas questões obscuras, como o domínio etrusco 108

Mommsen, l. c., p. 46.

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O Estado Marítimo em Roma, ou a origem das famílias ricas dos plebeus, ou sobre os metoikoi atenienses, e muitos outros problemas. Aqui podemos apenas seguir o fio que nos oferece a esperança de nos conduzir através do labirinto da tradição histórica até a questão.

(d) A Essência e o Desfecho dos Estados Marítimos Todos esses são verdadeiros “Estados” no sentido sociológico, quer surjam de fortalezas de ladrões do mar, quer de portos de nômades terrestres originais como colônias mercantes que obtiveram domínio ou que se fundiram com o grupo dominante do povo anfitrião. Pois eles nada mais são do que a organização dos meios políticos, sua forma é a dominação, seu conteúdo é a exploração econômica do súdito pelo grupo mestre. No que diz respeito ao princípio, eles não devem ser diferenciados dos estados fundados por nômades terrestres; e, no entanto, eles assumiram uma forma diferente, tanto por razões internas quanto externas, e mostram uma psicologia diferente das classes. Não se deve acreditar que o sentimento de classe fosse diferente nestes e nos estados territoriais. Aqui como ali, a classe mestra olha com o mesmo desprezo para os súditos, para os “Rantuses”, para o “homem das unhas azuis”, como o patrício alemão da Idade Média olhava para um ser com quem, mesmo quando nascido livre, nenhum casamento ou intercurso social era permitido. De fato, a teoria de classes dos καλοκἀγαθοί (bem-nascidos) ou dos patrícios (filhos de ancestrais) pouco difere daquela dos senhores do campo. Mas outras circunstâncias aqui provocam diferenças, consoantes, naturalmente, com os interesses de classe. Em qualquer distrito governado por comerciantes, o roubo na estrada não pode ser tolerado e, portanto, é considerado, e.g., entre os gregos marítimos, um 109

O Estado crime vulgar. A história de Teseu não teria sido apontada contra os salteadores em um estado territorial. Por outro lado, “a pirataria era considerada por eles, nos tempos mais remotos, como um comércio nada desonroso [...] do qual ampla prova pode ser encontrada nos poemas homéricos; enquanto em um período muito posterior, Polícrates organizou um estado ladrão bem desenvolvido na ilha de Samos.” “No Corpus Juris, é feita menção a uma lei de Sólon na qual a associação de piratas (ἐπὶ λείαν οἰχόμενοι) é reconhecida como uma empresa admissível."109

Mas, independentemente desses detalhes, mencionados apenas porque servem para lançar uma luz clara sobre o crescimento da “superestrutura ideológica”,110 as condições básicas de existência dos estados marítimos, totalmente diferentes dos estados territoriais, criaram dois fenômenos extremamente importantes, que são de importância histórica universal, a saber, o crescimento de uma constituição democrática, por meio da qual a gigantesca disputa entre o sultanismo do Oriente e a liberdade cívica do Ocidente deveria ser travada (de acordo com Mommsen, o verdadeiro conteúdo da história universal); e, em segundo lugar, o desenvolvimento do trabalho escravo capitalista, que acabaria por aniquilar todos esses estados. Consideremos primeiro as causas internas ou sócio-psicológicas desse contraste entre o estado territorial e o estado marítimo. Estados são mantidos pelo mesmo princípio do qual surgem. A conquista de terras e populações é a ratio essendi de um estado territorial; e pela conquista repetida de terras e populações deve crescer, até que seu crescimento natural seja interrompido por cadeias de 109

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Ambos citados por Kulischer, l. c., p. 319, de: Buechsenschuetz, Besitz und Erwerb im grieschischen Altertum; e Goldschmidt, History of the Law of Commerce. Quão característico dessas relações é que a Grã-Bretanha, o único “estado marítimo” da Europa, mesmo nos dias de hoje, não abrirá mão do direito de armar corsários.

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O Estado Marítimo montanhas, deserto ou oceano, ou seus limites sociológicos sejam determinados pelo contato com outros estados de sua própria espécie, que não pode subjugar. O estado marítimo, por outro lado, nasceu da pirataria e do comércio; e por esses dois meios, deve se esforçar para estender seu poder. Para tanto, nenhum território extenso precisa estar absolutamente sujeito ao seu domínio. Não há necessidade de levar seu desenvolvimento além dos primeiros cinco estágios. Os estados marítimos raramente, e somente quando compelidos, passam do quinto estágio e atingem a completa intranacionalidade e amalgamação. Normalmente, basta que outros nômades e comerciantes do mar sejam mantidos afastados, que o monopólio do roubo e do comércio seja assegurado e que os “súditos” sejam mantidos em silêncio por fortes e guarnições. Lugares importantes de produção são, é claro, realmente “dominados”; e isso se aplica especialmente a minas, a alguns cinturões férteis de grãos, a bosques com boa madeira, a salinas e a importantes pescarias. Dominação aqui, portanto, significa administração permanente, fazendo com que os súditos trabalhem para a classe dominante. Só mais tarde no desenvolvimento, surge o gosto por “terras e servos” e grandes domínios para a classe dominante para além dos confins dos limites estreitos e originais do estado. Isso acontece quando o estado marítimo pela incorporação de territórios subjugados se tornou uma mistura das formas territoriais e marítimas. Mas mesmo nesse caso, e em contraste com os estados territoriais, as grandes propriedades fundiárias são apenas uma fonte de aluguéis monetários e, em quase todos os casos, são administradas como propriedade de ausentes. Isso encontramos em Cartago e no Império Romano posterior. Os interesses da classe mestra, que no estado marítimo, como em qualquer outro estado, governa de acordo com sua própria vantagem, são diferentes dos do estado territorial. Neste último, o magnata territorial feudal é poderoso por causa de sua propriedade de terras e pessoas; enquanto, inversamente, o patrício da cidade marítima é poderoso por causa de sua riqueza. O magnata territorial pode dominar seu “Estado” apenas pelo número de homens de armas que mantém e, para ter o maior número possível, deve aumentar seu território o 111

O Estado máximo possível. O patrício, por outro lado, pode controlar seu “estado” apenas pela riqueza móvel, com a qual ele pode alugar armas fortes ou subornar almas fracas; tal riqueza é conquistada mais rapidamente pela pirataria e pelo comércio do que pelas guerras de terras e pela posse de grandes propriedades em territórios distantes. Além disso, para usar plenamente tal propriedade, ele seria obrigado a deixar sua cidade para se estabelecer nela e se tornar um escudeiro regular; porque em um período em que o dinheiro ainda não se generalizou, em que ainda não se produziu uma divisão lucrativa do trabalho entre a cidade e o campo, a exploração das grandes propriedades de terra só pode ser exercida pelo consumo real de seus produtos, e a propriedade ausente como uma fonte de renda é inconcebível. Até agora, no entanto, não chegamos a essa parte do desenvolvimento. Ainda estamos examinando condições primitivas. Nenhum patrício de qualquer cidade-estado pensaria, neste momento, em deixar seu rico e animado lar para se enterrar entre os bárbaros e, assim, com um único movimento, isolar-se de qualquer papel político em seu estado. Todos os seus interesses econômicos, sociais e políticos o impelem unanimemente aos empreendimentos marítimos. Não a propriedade fundiária, mas o capital móvel, é o nervo de sua vida. Estas foram as causas motrizes das ações da classe mestra nas cidades marítimas; e mesmo onde as condições geográficas permitiram uma extensa expansão além do hinterland adjacente dessas cidades, eles voltaram o peso do esforço para o poder marítimo em vez do crescimento territorial. Mesmo no caso de Cartago, seu território colossal era muito menos importante para ela do que seus interesses marítimos. Principalmente, conquistou a Sicília e a Córsega mais para impedir a competição dos comerciantes gregos e etruscos do que para possuir essas ilhas; estendeu seus territórios em direção aos líbios em grande parte para garantir a segurança de suas outras possessões domésticas; e finalmente, quando conquistou a Espanha, seu motivo último foi a necessidade de possuir as minas. A história do Hansa mostra 112

O Estado Marítimo muitos pontos de semelhança com o acima. A maioria dessas cidades marítimas, além disso, não era capaz de subjugar um grande distrito. Mesmo que houvesse vontade de conquistar, havia condições geográficas estranhas que atrapalhavam. Ao longo de todo o Mediterrâneo, com exceção de alguns poucos lugares, a planície costeira é extremamente estreita, uma pequena faixa cercada por altas cadeias montanhosas. Essa foi uma das causas que impediu que a maioria dos estados agrupados em torno de algum porto comercial crescesse até algo parecido com o tamanho que naturalmente supomos ser provável; enquanto no campo aberto, governado por pastores, e isso muito cedo, imensos reinos vieram a existir. A segunda causa para o pequeno começo desses estados é encontrada nisso, que o hinterland, seja nas colinas ou nas poucas planícies do Mediterrâneo, foi ocupado por tribos guerreiras. Esses membros da tribo, caçadores ou pastores guerreiros, ou então estados feudais primitivos da mesma raça superior dos nômades do mar, provavelmente não seriam subjugados sem uma disputa severa. Assim, na Grécia, o interior foi salvo dos estados marítimos. Por estas razões o estado marítimo, mesmo quando mais desenvolvido, permanece sempre centralizado, somos tentados a dizer centrado, no seu porto mercantil; enquanto o estado territorial, fortemente descentralizado desde o início, por muito tempo continua a se desenvolver à medida que expande uma descentralização ainda mais pronunciada. Mais tarde, veremos como isso é afetado pela adoção daquelas formas de governo e realização econômica que foram aperfeiçoadas pela primeira vez na “cidade-estado” e que assim obtiveram força para neutralizar as forças centrífugas e construir a organização central que é característica de nossos estados modernos. Este é o primeiro grande contraste entre as duas formas de Estado. Não menos decisivo é o segundo ponto de contraste, segundo o qual o estado territorial permanece vinculado às economias naturais em oposição às economias monetárias, para as quais o estado marítimo rapidamente se volta. Esse contraste surge também das condições básicas de sua existência. 113

O Estado Onde quer que um estado viva em economia natural, o dinheiro é um luxo supérfluo — tão supérfluo que uma economia desenvolvida para o uso do dinheiro retrocede novamente em um sistema de pagamentos em espécie assim que a comunidade volta à forma primitiva. Assim, depois que Carlos Magno emitiu boas moedas, a situação econômica as expulsou. Neustria — para não mencionar a Austrásia — sob o estresse da migração dos povos reverteu ao pagamento em espécie. Tal sistema pode muito bem prescindir sem o dinheiro como padrão de valores, uma vez que não possui nenhuma relação e tráfego desenvolvidos. Os inquilinos do senhor fornecem como tributo as coisas que o senhor e seus seguidores consomem imediatamente; enquanto seus ornamentos, tecidos finos, armas adamascadas ou cavalos raros, sal etc., são adquiridos em troca de mercadores errantes por escravos, cera, peles e outros produtos de um sistema econômico belicoso de troca em espécie. Na vida citadina, em qualquer estágio avançado de desenvolvimento, é impossível existir sem uma medida comum de valores. O mecânico livre em uma cidade não pode, exceto em casos raros, encontrar algum outro artesão que necessite da coisa especial que produz, disposto a consumi-la imediatamente. Além disso, nas cidades, o inevitável comércio varejista de produtos alimentícios, onde todos devem comprar quase tudo o que é necessário, torna inevitável o uso de moedas cunhadas. É impossível conduzir o comércio em seu sentido mais limitado, não entre comerciante e clientes, mas entre comerciante e comerciante, sem ter uma medida comum de valor. Imagine o caso de um comerciante entrando em um porto com uma carga de escravos, desejando levar tecido como carga de retorno, e encontrando um comerciante de tecidos que na época pode não querer escravos, mas ferro, ou gado, ou peles. Para realizar essa troca, pelo menos uma dúzia de negócios intermediários teriam que ocorrer antes que o objetivo pudesse ser alcançado. Isso só pode ser evitado se existir alguma mercadoria desejada por todos. No sistema de pagamento em espécie dos estados territoriais este pode ser levado por gado ou cavalos, desde 114

O Estado Marítimo que possam ser utilizados por qualquer um em algum momento; mas o dono de navio não pode carregar gado como meio de pagamento, e assim o ouro e a prata passam a ser reconhecidos como “dinheiro”. Da centralização e do uso do dinheiro, que são propriedades necessárias do estado marítimo ou cidade-estado, como o chamaremos daqui em diante, segue-se por necessidade o seu destino. A psicologia do homem da cidade, e especialmente do morador da cidade marítima comercial, é radicalmente diferente da do camponês. Seu ponto de vista é mais livre e abrangente, ainda que mais superficial; ele é mais vivo, porque mais impressões o atingem em um dia do que um camponês em um ano. Ele se acostuma com mudanças e novidades constantes, e assim é sempre novarum rerum cupidus. Ele está mais distante da natureza e menos dependente dela do que o camponês e, portanto, tem menos medo de “fantasmas”. Uma consequência disso é que um subalterno em uma cidadeestado está menos apto a considerar os regulamentos “tabu” impostos a ele pelo primeiro e segundo estamentos dos governantes. E como ele é obrigado a viver em massas compactas com seus companheiros súditos, ele logo encontra sua força nos números, de modo que se torna mais indisciplinado e sedicioso do que o servo que vive em tal isolamento que nunca se torna consciente da massa à qual ele pertence e permanece sempre com a impressão de que seu suserano com seus seguidores teria a vantagem em todas as lutas. Isso em si mesmo acarreta uma dissolução sempre progressiva do rígido sistema de grupos subordinados criado pela primeira vez pelo estado feudal. Na Grécia, somente os estados territoriais foram capazes de manter seus súditos por muito tempo em um estado de sujeição: Esparta, seus hilotas, Tessália, seus penestes. Em todas as cidadesestado, ao contrário, encontramos cedo uma insurreição do proletariado contra a qual a classe dominante não conseguiu opor uma resistência efetiva. A situação econômica tende ao mesmo resultado que as condições de assentamento. A riqueza móvel tinha muito menos estabilidade do que a propriedade fundiária: o mar é traiçoeiro, e as fortunas da guerra 115

O Estado marítima e da pirataria não menos. O homem rico de hoje pode perder tudo em uma volta da roda da Fortuna; enquanto o homem mais pobre pode, pelo mesmo balanço, pousar no topo. Mas em uma comunidade baseada inteiramente em posses, a perda de fortuna traz consigo a perda de posição e de “classe”, assim como ocorre o inverso. O plebeu rico se torna o líder da massa do povo em sua luta constitucional por direitos iguais e coloca toda a sua fortuna em risco nessa luta. A posição dos patrícios torna-se insustentável; quando coagidos, eles sempre concederam as reivindicações da classe baixa. Assim que o primeiro plebeu rico foi incluído em suas fileiras, o direito de governo por nascimento, defendido como uma instituição sagrada, tornou-se para sempre impossível. Daí em diante, o que é justo para um é justo para o outro; e o governo aristocrático é seguido primeiro pelo plutocrático, depois pelo democrático, finalmente pelo regime oclocrático, até que a conquista estrangeira ou a “tirania” de algum “Salvador da Espada” resgate a comunidade do caos. Este fim afeta não só o estado, mas na maioria dos casos afeta seus habitantes tão profundamente que se pode falar de uma literal morte dos povos, causada pela exploração capitalista do trabalho escravo. Esta última é uma instituição social que inevitavelmente existirá em todos os estados fundado na pirataria e em empreendimentos marítimos e, portanto, usando o dinheiro como meio de troca. Nos estágios primitivos do feudalismo, de onde foi derivada, a escravidão era inofensiva, como é verdade em todos os sistemas econômicos baseados na troca e no uso em espécie, apenas para se tornar um câncer ulceroso, totalmente destrutivo de toda a vida do estado assim que é explorado pelo método “capitalista”, i.e., assim que o trabalho escravo for aplicado, não para ser usado em um sistema de pagamento feudal em espécie, mas para abastecer um mercado pagando em dinheiro. Inúmeros escravos são trazidos para o país pela pirataria, corsários ou pelas guerras comerciais. A riqueza de seus proprietários lhes permite trabalhar a terra com mais intensidade, e os proprietários de imóveis dentro dos limites da cidade obtêm receitas cada vez maiores de suas posses e tornam-se cada vez mais ávidos por terras. O pequeno 116

O Estado Marítimo proprietário rural do campo, sobrecarregado com os impostos e o serviço militar das guerras travadas no interesse dessa grande classe mercantil, afunda-se em dívidas, torna-se escravo por dívidas ou migra para a cidade como um mendigo. Mas ainda assim não há esperança para ele, pois a remoção dos camponeses prejudicou os artesãos e pequenos comerciantes, pois os camponeses costumavam comprar na cidade, enquanto as grandes propriedades de terra, aumentando constantemente com a remoção do campesinato, fornecem suas próprias necessidades por seus próprios produtos de escravos. O mal ataca outras partes do corpo político. Os ofícios restantes são gradualmente usurpados por senhores que exploram o trabalho escravo, que é mais barato que o trabalho livre. A classe média então se despedaça; e surge uma turba de indigentes e imprestáveis, um verdadeiro "lumpemproletariado" que, em razão da constituição democrática alcançada nesse ínterim, é o soberano da comunidade. O curso completo, tanto político quanto militar, é então uma mera questão de tempo. Pode ocorrer sem invasão estrangeira; que, no entanto, geralmente se instala quando, por causa do colapso físico causado pelo imenso despovoamento, pelo consumo do povo em seu sentido literal, o estágio final é alcançado. Este é o fim de todos esses estados. No âmbito deste tratado não podemos nos alongar sobre esta fase. Apenas uma cidade-estado conseguiu manter-se ao longo dos séculos, porque foi a conquistadora final de todas as outras e porque foi capaz de contrariar o consumo da população pelo único método de saneamento possível; por extensas recriações de populações de classe média, tanto nas cidades como nos distritos rurais, bem como por vastas colonizações de camponeses em terras tomadas dos vencidos. O Império Romano era esse estado. Mas mesmo esse gigantesco organismo finalmente sucumbiu ao consumo da população, causado pela exploração escravagista capitalista. No intervalo, porém, havia criado o primeiro imperium, isto é, o primeiro estado tensamente centralizado em grande escala, e superou e amalgamou todos os estados territoriais das costas do Mediterrâneo e de seus países vizinhos, e assim estabeleceu para sempre perante o mundo o modelo de tal domínio 117

O Estado organizado. Além disso, desenvolveu a organização das cidades e do sistema de economia monetária a tal ponto que nunca foram totalmente destruídas, mesmo no tumulto da migração bárbara. Em consequência disso, os estados territoriais feudais que ocuparam o território do antigo Império Romano, direta ou indiretamente, receberam aqueles novos impulsos que os levariam para além da condição do estado feudal primitivo normal.

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IV O Desenvolvimento do Estado Feudal (a) A Gênese da Propriedade Fundiária Voltamos agora, como já dissemos, ao ponto em que o estado feudal primitivo deu origem à cidade-estado como desdobramento, para acompanhar o crescimento ascendente do ramo principal. Assim como o destino da cidade-estado era determinado pela aglomeração daquela forma de riqueza em torno da qual o estado girava em sua órbita, o destino do estado territorial é condicionado por aquela aglomeração de riqueza que por sua vez controla sua órbita, a donidade de propriedade fundiária. No anterior, acompanhamos a diferenciação econômica no caso das tribos pastoris, e mostramos que mesmo aqui a lei da aglomeração em torno de núcleos existentes de riqueza começa a fazer valer sua eficácia, desde que os meios políticos entrem em jogo, seja ele na forma de guerras por pilhagem ou ainda mais na forma de escravidão. Vimos que a tribo tinha nobres diferenciados e homens livres comuns, abaixo dos quais os escravos, sem quaisquer direitos políticos, são subordinados como uma terceira classe. Essa diferenciação de riqueza é introduzida no estado primitivo e acentua ainda mais notavelmente o contraste de posição social. Tornase ainda mais acentuado pelo assentamento, por meio do qual é criada a propriedade privada nas terras. Sem dúvida existiam, mesmo na época em que surgiu o estado feudal primitivo, grandes diferenças na quantidade de terras possuídas por indivíduos, especialmente se dentro da tribo de pastores a separação havia sido fortemente marcada entre os proprietários principescos de grandes rebanhos e muitos escravos e os homens livres comuns mais pobres. Esses príncipes ocupam mais terras do que os pequenos homens livres. 119

O Estado A princípio, isso acontece de forma bastante inofensiva e sem o menor vestígio de qualquer consciência do fato de que a posse prolongada da terra se tornará o meio de um aumento considerável do poder social e da riqueza. Sobre isso, não há dúvida neste momento, uma vez que, neste estágio, os homens livres comuns teriam sido poderosos o suficiente para impedir a formação de extensas propriedades fundiárias se soubessem que isso acabaria por prejudicálos. Mas ninguém poderia ter previsto essa possibilidade. As terras, no estado em que as observamos, não têm valor. Por essa razão, o objeto e o espólio da disputa não eram a posse de terras, mas da terra e seus camponeses, sendo estes últimos vinculados ao solo (glebae adscripti de nossa lei posterior) como substrato de trabalho e motores de trabalho, da conjunção da qual cresce o objeto dos meios políticos, a saber, o aluguel de terra. Cada um tem a liberdade de tomar tanto da terra não cultivada existente em massa quanto precisar e quiser ou puder cultivar. É tão improvável que alguém se preocupe em medir para outros as partes de uma oferta aparentemente ilimitada, quanto que alguém distribua a oferta de ar atmosférico. Os príncipes dos clãs nobres, provavelmente desde o início, de acordo com o uso da tribo dos pastores, recebem mais “terras e camponeses” do que os homens livres comuns. Esse é o direito deles como príncipes, por causa de sua posição como patriarcas, senhores da guerra e capitães, mantendo suas companhias guerreiras de pessoas meio livres, de criados, de clientes ou de refugiados. Isso provavelmente representa uma diferença considerável nas quantidades primitivas de propriedade da terra. Mas isto não é tudo. Os príncipes precisam de uma superfície maior da “terra sem camponeses” do que os homens livres comuns, porque trazem consigo seus servos e escravos. Estes, no entanto, não têm locus standi na lei e são incapazes, de acordo com os conceitos universais de direito popular, de adquirir o título de propriedade fundiária. Como, porém, eles devem ter terra para viver, seu senhor a toma para eles, a fim de nela os estabelecer. Em consequência disso, 120

O Desenvolvimento do Estado Feudal quanto mais rico o príncipe da tribo nômade, mais poderoso se torna o magnata territorial. Mas isso significa que a riqueza, e com ela a posição social, é consolidada de forma mais firme e duradoura do que no estágio de propriedade do pastor. Pois os maiores rebanhos podem ser perdidos, mas a propriedade fundiária é indestrutível; e os homens obrigados a trabalhar, gerando rendas, reproduzem sua espécie mesmo após o mais terrível massacre, mesmo que não possam ser obtidos adultos na caça de escravos. Em torno desse núcleo fixo de riqueza, a propriedade começa a se aglomerar com rapidez crescente. Inofensiva como foi a primeira ocupação, os homens devem logo reconhecer o fato de que o aluguel aumenta com o número de escravos que se pode estabelecer nas terras desocupadas. Doravante, a política externa do estado feudal não é mais dirigida para a aquisição de terras e camponeses, mas sim de camponeses sem terra, para serem levados para casa como servos e aí serem novamente colonizados. Quando todo o estado continua a guerra ou a expedição de roubo, os nobres obtêm a maior parte. Muitas vezes, porém, eles saem por conta própria, seguidos apenas por suas companhias de guerra, e então o homem livre comum, ficando em casa, não recebe parte do saque. Assim, o círculo vicioso tende constantemente a aumentar rapidamente com o aumento da riqueza das terras pertencentes aos nobres. Quanto mais escravos um nobre tiver, mais aluguel ele poderá obter. Com isso, por sua vez, ele pode manter um séquito guerreiro, composto de servos, de homens livres preguiçosos e de refugiados. Com a ajuda deles, ele pode, por sua vez, conduzir muitos outros escravos, para aumentar seus aluguéis. Este processo ocorre, mesmo onde existe algum poder central que, de acordo com a lei geral do povo, tem o direito de dispor das terras não cultivadas; embora seja, em muitos casos, não apenas por tolerância, mas frequentemente pela sanção expressa dessa autoridade. Enquanto o magnata feudal permanecer o vassalo submisso da coroa, é do interesse do rei torná-lo o mais forte possível. Com isso, sua comitiva militar, a ser colocada à disposição da coroa em tempos de 121

O Estado guerra, é correspondentemente aumentada. Apresentaremos apenas uma ilustração para mostrar que a consequência necessária na história universal não se limita ao efeito bem conhecido nos estados feudais da Europa Ocidental, mas decorre dessas premissas mesmo em ambientes totalmente diferentes: “O principal serviço em Fiji consistia em serviço de guerra; e se o resultado fosse bem-sucedido, significava novas concessões de terras, incluindo nelas os habitantes, como escravos, e assim levava à assunção de novas obrigações.”111

Essa acumulação de propriedade fundiária em quantidade cada vez maior nas mãos da nobreza fundiária leva o estado feudal primitivo de um estágio superior ao “estado feudal acabado” com uma escala completa de posições feudais. A referência a um trabalho anterior pelo autor, com base no estudo das fontes, mostrará a mesma conexão causal para as terras alemãs;112 e nessa publicação foi apontado que em todas as instâncias observadas ocorre um processo idêntico em suas principais linhas de desenvolvimento. É apenas nesta linha de raciocínio que se pode explicar o fato, para tomar o Japão como exemplo, de seu sistema feudal ter se desenvolvido nos detalhes precisos que são bem conhecidos dos estudiosos da história europeia, embora o Japão seja habitado por uma raça fundamentalmente diferente dos arianos; e além disso (um forte argumento contra dar muito peso à visão materialista da história) o processo de agricultura está em uma base técnica totalmente diferente, já que os japoneses não são cultivadores com o arado, mas com a enxada. Neste caso, como ao longo deste livro, não é a fortuna de um único povo que é investigada; é antes o objetivo do autor narrar o desenvolvimento típico, as consequências universais, dos mesmos traços básicos da humanidade onde quer que sejam colocados. 111 112

Ratzel, l. c. I, p. 263. F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum und soziale Frage. Livro 2, capítulo I. Berlim, 1898.

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O Desenvolvimento do Estado Feudal Pressupondo o conhecimento dos dois exemplos mais magníficos do estado feudal expandido, a Europa Ocidental e o Japão, limitar-nosemos, em geral, a casos menos conhecidos e, tanto quanto possível, daremos preferência a material retirado da etnografia, em vez de da história em seu sentido mais restrito. O processo a ser narrado agora é uma mudança, paulatinamente consumada, mas fundamentalmente revolucionária, da articulação política e social do estado feudal primitivo: a autoridade central perde o seu poder político para a nobreza territorial, o homem livre comum afunda de seu status, enquanto o "súdito" ascende.

(b) O Poder Central no Estado Feudal Primitivo O patriarca de uma tribo de pastores, embora dotado da autoridade que decorre de sua senhoria de guerra e funções sacerdotais, geralmente não tem poderes despóticos. O mesmo pode ser dito do “rei” de uma pequena comunidade estabelecida, onde, em geral, ele exerceria um comando muito limitado. Por outro lado, assim que algum gênio militar consegue fundir numerosas tribos de pastores em uma poderosa massa de guerreiros, o poder despótico centralizado é a consequência direta e inevitável.113 Assim que a guerra existe, a verdade do homérico οὐκ ἀγαθὴ πολυκοιρανιὴ εἶς κοίρανος ἔστω εἶς βασιλεύς,114

é admitido pelas tribos mais indisciplinadas e se torna um fato a ser praticado. Os caçadores primitivos livres prestam obediência incondicional a seu chefe eleito, enquanto estão no caminho da guerra; os cossacos livres da Ucrânia, não reconhecendo nenhuma autoridade 113

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O nomadismo caracteriza-se excepcionalmente pela facilidade com que, a partir de condições patriarcais, se desenvolvem funções despóticas com os mais amplos poderes. Ratzel, l. c. Vol. II, pp. 388-9. “O governo de muitos não é uma coisa boa, sobre muitos deve haver um rei.”

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O Estado em tempos de paz, se submetem ao poder de vida e morte de seu hetman em tempos de guerra. Essa obediência a seu senhor da guerra é um traço comum a toda genuína psicologia guerreira. Os líderes das grandes migrações de nômades são todos déspotas poderosos: Átila, Omar, Genghis Khan, Tamerlane, Mosilikatse, Ketchwayo. Da mesma forma, descobrimos que sempre que um poderoso estado territorial veio a ser como resultado da fusão de vários estados feudais primitivos, existia no início uma forte autoridade central. Exemplos disso podem ser vistos no caso de Sargão Ciro, Chlodowech, Carlos Magno, Boleslau, o Vermelho. Às vezes, especialmente enquanto o estado principal ainda não atingiu seus limites geográficos ou sociológicos, a autoridade centralizada é mantida intacta nas mãos de uma série de monarcas fortes, o que degenera, em alguns casos, no mais louco despotismo e insanidade de alguns dos Césares: especialmente encontramos exemplos flagrantes disso na Mesopotâmia e na África. Abordaremos apenas esta fase, tanto mais que ela tem pouco efeito geral sobre o desenvolvimento final das formas de governo. Este ponto deve, no entanto, ser afirmado, que o desenvolvimento da forma de governo de um despotismo depende principalmente de qual pode ser o status sacerdotal dos governantes, além de sua posição como senhores da guerra, e se eles detêm o monopólio do comércio como um direito real adicional. A combinação de César e Papa tende em todos os casos a desenvolver as formas extremas de despotismo; enquanto a divisão das funções espirituais e temporais faz com que seus expoentes se verifiquem e se contrabalancem mutuamente. Um exemplo característico pode ser encontrado nas condições prevalecentes entre os estados malaios do arquipélago das Índias Orientais, verdadeiros “estados marítimos”, cuja gênese é uma contrapartida exata da dos estados marítimos gregos. De um modo geral, o príncipe tem tão pouco poder entre eles quanto, digamos, o rei no início da história dos estados áticos. Os chefes dos clãs (em Sulu, o Dato, em Achin, o Panglima), como no caso de Atenas, têm o poder real. Mas onde, “como em Tobah, os motivos religiosos dotam os governantes da posição de um Papa em 124

O Desenvolvimento do Estado Feudal miniatura, uma fase totalmente diferente é encontrada. Os Panglima então dependem inteiramente do Rajah, e são meramente funcionários.”115 Para se referir a um fato bem conhecido, quando os aristocratas e chefes dos clãs em Atenas e em Roma aboliram o reino, eles preservaram pelo menos o antigo título, e concedeu seu uso a um dignitário politicamente impotente, a fim de que os deuses pudessem ter suas oferendas apresentadas da maneira habitual. Pela mesma razão, em muitos casos, o descendente do antigo rei tribal é preservado como um dignitário, de outro modo totalmente impotente, enquanto o poder real do governo há muito foi transferido para algum chefe de guerra; como no Império Merovíngio tardio, os prefeitos carolíngios do palácio (majordomus) governaram ao lado de um “rei há muito cingido”, rex crinitus, da raça de Merowech, assim, no Japão, o Shogun governou ao lado do Mikado e no Império dos Incas, o comandante dos Inca ao lado do Huillcauma, que gradualmente foi limitado a suas funções sacerdotais.116,117 Além do cargo de sumo pontífice, o poder do chefe de estado é frequentemente aumentado enormemente pelo monopólio comercial, função exercida pelos chefes primitivos como consequência natural do escambo pacífico de presentes de hóspedes. Tal monopólio comercial, por exemplo, foi exercido pelo rei Salomão; e posteriormente pelo imperador romano Frederico II.118,119

115 116

117 118 119

Ratzel, l. c. I, p. 408. No Egito encontramos situação semelhante, ao lado do preconceituoso Amenhotep IV., o majordomus do palácio de Haremheb, que “conseguiu reunir em suas mãos as mais altas funções militares e administrativas do império, até exercer os poderes de um regente do estado." Schneider, Civilization and Thought of the Ancient Egyptians. Leipzig, 1907, p. 22. Cunow, l. c. pp. 66-7. Da mesma forma, entre os habitantes das ilhas malaias, numerosos exemplos são encontrados em Radak (Ratzel, l. c. I, p. 267). Cf. Acta Imperii, ou Huillard-Breholles, H. D. Fred. II. — Tradutor da Edição em Inglês. Buhl, l. c., p. 17.

125

O Estado Como regra, os chefes negros são "monopolistas do comércio";120 assim como o Rei de Sulu.121 Entre os galla, onde quer que a supremacia de um chefe principal seja reconhecida, ele se torna “como de costume, o comerciante de sua tribo; já que nenhum de seus súditos têm permissão para negociar diretamente com estranhos”.122 Entre os barotse e mabunda, o rei é “de acordo com a estrita interpretação da lei, o único comerciante de seu país”.123 Ratzel observa, em linguagem contundente, a importância desse fator: “Além de sua feitiçaria, o chefe aumenta seu poder pelo monopólio do comércio. Como o chefe é o único intermediário no comércio, tudo o que seus súditos desejam passa por suas mãos, e ele se torna o doador de todos os presentes desejados, o realizador dos desejos mais afetuosos. Em tal sistema, certamente existem possibilidades de grande poder.”124

Se, nos distritos conquistados, onde o poder do governo pode ser exercido de forma mais tensa, é acrescentado o monopólio do comércio, o poder real pode tornar-se muito grande. Pode-se afirmar como regra geral que, mesmo nos casos aparentemente mais extremos de despotismo, não existe absolutismo monárquico. O governante pode, sem se deixar intimidar pelo medo de punição, enfurecer-se contra sua classe de súditos; mas ele é controlado em grande medida por seus seguidores feudais. Ratzel, ao falar do assunto em geral, observa: “A chamada 'reunião da corte' de africanos ou de antigos chefes americanos é provavelmente sempre um conselho. [...] Embora encontremos traços de absolutismo com todos os povos em uma escala baixa, mesmo onde a forma de 120 121 122 123 124

Ratzel, l. c. II, p. 66. Ratzel, l. c. II, p. 118. Ratzel, l. c. II, p. 167. Ratzel, l. c. II, p. 218. Ratzel, l. c. I, p. 125.

126

O Desenvolvimento do Estado Feudal governo é republicana, a causa do absolutismo não está na força nem do estado nem do chefe, mas na fraqueza moral do indivíduo, que sucumbe sem nenhuma resistência efetiva aos poderes exercidos sobre ele.”125

O reino dos zulu é um despotismo limitado, no qual ministros de estado muito poderosos (Induna) compartilham o poder; com outras tribos caffir é um conselho, às vezes dominando tanto o povo quanto os chefes.126 Apesar desse controle, “sob Tshaka, todo espirro ou falação na presença do tirano, bem como toda falta de lágrimas pela morte de algum parente real, era punido com a morte”.127 A mesma limitação se aplica aos reinos da África Ocidental de Dahomy e Ashanti, notórios por causa de suas terríveis barbaridades. “Apesar do desperdício de vidas humanas, na guerra, no comércio de escravos e nos sacrifícios humanos, não existiu em nenhum lugar o despotismo absoluto. [...] Bowditch observa a semelhança do sistema predominante em Ashanti, com suas fileiras e ordens, com o antigo sistema persa descrito por Heródoto.”128

Deve-se ter muito cuidado, e isso pode ser novamente insistido, para não confundir despotismo com absolutismo. Mesmo nos estados feudais da Europa Ocidental, os governantes exerciam, em muitos casos, o poder de vida e morte, livres das amarras da lei; mas, no entanto, tal governante era impotente contra seus "magnatas". Contanto que não interfira nos privilégios das classes, ele não precisa restringir sua crueldade e pode até ocasionalmente sacrificar um dos grandes homens; mas ai dele se ousasse tocar nos privilégios econômicos de seus magnatas. É possível estudar essa fase tão característica, completamente livre, do ponto de vista da lei, e ainda fortemente cerceada por freios políticos, nos grandes impérios da África Oriental: 125 126 127 128

Ratzel, l. c. I, p. 124. Ratzel, l. c. I, p. 118. Ratzel, l. c. I, p. 125. Ratzel, l. c. I, p. 346.

127

O Estado “O governo de Waganda e Wanyoro é, em teoria, baseado no governo do rei sobre todo o território; mas, na realidade, isso é apenas uma aparência de governo, pois, na verdade, as terras pertencem aos chefes supremos do império. Foram eles que representaram a oposição popular às influências estrangeiras, no tempo de Mtesa; e Muanga não ousava, por medo deles, fazer quaisquer inovações. Embora a realeza seja limitada na realidade, na aparência ela ocupa uma posição imponente no que não é essencial. O governante é o senhor absoluto sobre a vida e os membros de seus súditos, a massa do povo, e sente-se contido apenas no círculo mais estreito dos principais cortesãos”129

Exatamente a mesma afirmação se aplica aos habitantes da Oceania, para mencionar a última das grandes sociedades que criaram estados: “Em nenhum lugar se encontra a ausência total de uma mediação representativa entre o príncipe e o povo. [...] O princípio aristocrático corrige o patriarcal. Portanto, os extremos do despotismo dependem mais da pressão de classe e casta do que da vontade avassaladora de qualquer indivíduo.”130

(c) A Desintegração Política e Social do Estado Feudal Primitivo O espaço nos impede de detalhar os inúmeros matizes sob os quais a mistura patriarcal-aristocrática (em alguns casos plutocrática) de forma de governo no estado feudal primitivo é mostrada em um levantamento etnográfico, histórico ou jurídico. Isso também é da maior importância para o desenvolvimento subsequente. 129 130

Ratzel, l. c. II, p. 245. Ratzel, l. c. I. pp. 267-8.

128

O Desenvolvimento do Estado Feudal É indiferente quanto poder o governante pode ter tido no início, um destino inevitável quebra seu poder em pouco tempo; e faz isso, pode-se dizer, de forma mais rápida, quanto maior era o poder, isto é, quanto maior o território do estado feudal primitivo de grau superior. Tendo em conta o processo já enunciado, que, através da ocupação e povoamento de terras não utilizadas por meio de escravos recém-adquiridos, permitia o aumento do poder dos nobres separados, chegou-se a um resultado que poderá ser incômodo para o poder central. Mommsen, ao falar dos celtas, diz: “Quando em um clã com cerca de oitenta mil homens armados, um único chefe pode comparecer à convocação com dez mil seguidores, excluindo seus servos e devedores, fica claro que tal nobre era antes um príncipe independente do que um mero cidadão de seu clã.”131

E o mesmo pode se aplicar ao “Heiu” dos somalis, onde um grande proprietário de terras mantinha centenas de famílias na dependência de suas terras, “de modo que as condições na Somalilândia tendem a lembrar aquelas existentes na Europa medieval durante os tempos feudais.”132 Embora tal preponderância de magnatas territoriais isolados possa ocorrer no estado feudal de baixo desenvolvimento, ela atinge seu ápice no estado feudal de grau superior, o grande estado feudal; isso acontece em razão do aumento do poder conferido aos senhorios pela concessão de funções de funcionários públicos. Quanto mais o estado se expande, mais o poder oficial deve ser delegado pelo governo central a seus representantes nas fronteiras e nas marchas, constantemente ameaçados por guerras e surtos insurrecionais. A fim de preservar seu bailiado em segurança para o estado, tal funcionário deve ser dotado de poderes militares supremos, juntamente com as funções dos mais altos funcionários administrativos.

131 132

Mommsen, l. c. III, pp. 234-5. Ratzel, l. c. II, p. 167.

129

O Estado Mesmo que não exija um grande número de funcionários públicos, ainda assim deve ter uma força militar permanente. E como ele vai pagar a esses homens? Com uma possível exceção, a ser observada a seguir, não há impostos que fluam para o tesouro do governo central e depois sejam despejados novamente sobre a terra, uma vez que estes pressupõem um desenvolvimento econômico existente apenas onde o dinheiro é empregado. Mas nas comunidades que têm um sistema de pagamentos em espécie, como são todos esses “estados territoriais”, não há impostos pagáveis em dinheiro. Por essa razão, o governo central não tem outra alternativa senão entregar aos condes, ou guardas de fronteira, ou sátrapas, as rendas de sua jurisdição territorial. Tal funcionário, então, recebe as dívidas dos súditos, determina quando e onde o trabalho forçado deve ser prestado, recebe os deodands, taxas e penalidades pagáveis em gado, etc.; e em consideração a isso deve manter a força armada, colocar números definidos de homens armados à disposição do governo central, construir e manter estradas e pontes, alimentar e estabilizar o governante e seus seguidores, ou seus “missi domini” e, finalmente, fornecer um tributo definido, constituído por bens de alto valor, facilmente transportados para a corte, como cavalos, gado, escravos, metais preciosos, vinhos, etc. Em outras palavras, ele recebe um feudo imensamente grande por seus serviços. Se antes não era, ele agora se torna o maior homem de seu país, embora antes provavelmente fosse o senhorio mais poderoso de seu distrito oficial. Daqui em diante, ele fará exatamente o que seus iguais em posição estão fazendo, embora eles possam não ter sua posição oficial; isto é, ele continuará, apenas em escala maior, a assentar novas terras com servos sempre recém-recrutados. Com isso, ele aumenta sua força militar; e isso deve ser desejado e auxiliado pelo governo central. Pois é o destino desses estados, que eles devem engordar aqueles próprios poderes locais, que devem engolfá-los. Surgem condições que permitem ao chefe das marchas impor os termos de sua assistência militar, especialmente nas inevitáveis rixas que surgem sobre o direito de sucessão ao governo central. Obtém assim mais valiosas concessões, especialmente o reconhecimento formal da 130

O Desenvolvimento do Estado Feudal hereditariedade do seu feudo oficial, de modo que os cargos e as terras passam a ser exercidos por um mandato idêntico. Dessa forma, ele gradualmente se torna quase independente da autoridade central, e a reclamação do camponês russo, “o céu está alto e o czar está longe”, tende a se tornar de aplicação universal. Veja este exemplo característico da África: “O império da Lunda é um estado feudal absoluto. Aos chefes (Muata, Mona, Muene) é permitida uma ação independente em todos os assuntos internos, desde que isso agrade ao Muata Jamvo. Habitualmente, os grandes chefes, que vivem longe, enviam uma vez por ano as suas caravanas com o seu tributo à Mussumba; mas aqueles que vivem muito longe, às vezes, por longos períodos, omitem qualquer pagamento de seu tributo; enquanto chefes semelhantes nas vizinhanças da capital enviam tributos muitas vezes ao ano.”133

Nada pode mostrar mais claramente do que este relatório, como, por causa de meios de transporte inadequados, a extensão da distância torna-se politicamente eficaz nesses estados frouxamente mantidos juntos e em estado de pagamento em espécie. Somos tentados a dizer que a independência dos senhores feudais cresce proporcionalmente ao quadrado de sua distância da sede da autoridade central. A coroa deve pagar cada vez mais por seus serviços e deve confirmá-los gradualmente em todos os poderes soberanos do estado, ou então permitir que eles usurpem esses poderes depois que eles os tomaram um após o outro. Tais são a hereditariedade de feudos, pedágios em rodovias e comércio (em um estágio posterior, o direito de cunhagem), alta e baixa justiça, o direito de exigir para ganho privado os deveres públicos de reparar caminhos e pontes (o antigo trinodis necessitas inglês) e a disposição dos serviços militares dos homens livres do país. Por esses meios, os poderosos guardiões da fronteira gradualmente alcançam uma independência de fato cada vez maior e, finalmente, completa, mesmo que o vínculo formal da suserania feudal 133

Ratzel, l. c. II, p. 229.

131

O Estado possa aparentemente manter unidos por muito tempo os principados recém-desenvolvidos. O leitor, é claro, lembra-se de exemplos dessas transições típicas; toda a história medieval é uma cadeia delas; não apenas os impérios merovíngio e carolíngio, não apenas a Alemanha, mas também a França, a Itália, a Espanha, a Polônia, a Boêmia, a Hungria, assim como o Japão e a China,134 passaram por esse processo de decomposição, não apenas uma vez, mas repetidamente. E isso não é menos verdade para os estados feudais da Mesopotâmia: grandes impérios se sucedem, adquirem poder, rompemse vez após vez e novamente são reunidos. No caso da Pérsia, somos informados expressamente: “Estados e províncias separados, por meio de uma revolta bem-sucedida, obtiveram liberdade por um período mais longo ou mais curto, e o 'grande rei' em Susa nem sempre teve o poder de forçá-los a retornar à sua obediência; em outros estados, os sátrapas ou chefes guerreiros governavam arbitrariamente, exercendo o governo infiel e violentamente, seja como governantes independentes ou subreis tributários do rei dos reis. O império mundial persa caminhava para a sua desintegração uma aglomeração de estados e terras, sem qualquer lei geral, sem administração ordenada, sem sistema judicial uniforme, sem ordem e cumprimento da lei, e sem possibilidade de ajuda.”135 Um destino semelhante atingiu seu vizinho no vale do Nilo: “Príncipes vêm de famílias de usurpadores, senhorios livres, que pagam impostos sobre a terra a ninguém, exceto ao rei, e governam certas faixas de terra, ou distritos. Esses príncipes distritais governam um território especificamente separado como pertencente à sua posição oficial e separado de suas posses familiares.” “As operações bélicas bem-sucedidas posteriores, talvez preenchendo a lacuna entre o Império (Egípcio) Antigo e o Médio, juntamente com a reunião de cativos das guerras, que poderiam ser utilizados como motores de trabalho, trouxeram uma exploração mais rigorosa dos 134 135

Ratzel, l. c. I, p. 128. Weber, Weltgeschichte, III, p. 163.

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O Desenvolvimento do Estado Feudal súditos, uma determinação definitiva dos tributos. Durante o Império Médio, o poder dos príncipes dos clãs atingiu uma altura enorme, eles mantiveram grandes cortes, imitando o esplendor do estabelecimento real.”136 “Com o declínio da autoridade real durante um período de decadência, os funcionários superiores usam seu poder para fins pessoais, a fim de tornar seus cargos hereditários dentro de suas famílias.”137,138

Mas a operação dessa lei histórica não se restringe aos povos “históricos”. Ao falar dos estados feudais da Índia, Ratzel afirma: “Mesmo além do Radshistão, os nobres muitas vezes desfrutavam de uma grande independência, de modo que mesmo em Haiderabad, depois que os Nizam adquiriram o domínio exclusivo do país, os Umara ou Nabobs mantiveram tropas próprias, independentemente do exército do Nizam. Esses feudatários menores não atenderam às crescentes demandas dos tempos modernos no que diz respeito à administração dos estados indianos com tanta frequência quanto os príncipes maiores.”139

Finalmente, na África, grandes estados feudais surgem e desaparecem, assim como bolhas que surgem e explodem na corrente 136 137

138 139

Thurnwald, l. c., pp. 702-3. Maspero diz, New Light on Ancient Egypt, pp. 218-9: “Até então, de fato, o sumo sacerdote havia sido escolhido e nomeado pelo rei; desde a época de Ramsés III. foi sempre escolhido da mesma família, e o filho sucedeu ao pai no trono pontifício. A partir desse momento os eventos marcharam rapidamente. O mortmain tebano foi dobrado com um verdadeiro feudo senhorial, que seus mestres aumentaram por casamentos com os herdeiros de feudos vizinhos, por legados contínuos de um ramo da família para o outro, e pela colocação de cadetes de cada geração à frente do clero de certas cidades secundárias. O protocolo oficial dos cargos ocupados por suas esposas mostra que um século ou um século e meio depois de Ramsés III, quase toda a Tebaida, cerca de um terço do território egípcio estava nas mãos do Sumo Sacerdote de Amon e de sua família.” — Nota (e itálico) do Tradutor da Edição em Inglês. Thurnwald, l. c., p. 712; cf. Schneider, Kultur und Denken der alten Ägypter, Leipzig, 1907, p. 38. Ratzel, l. c. II, p. 599.

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O Estado de fenômenos eternamente semelhantes. O poderoso império Ashanti, dentro de um século e meio, encolheu para menos de um quinto de seu território;140 e muitos dos impérios que os portugueses encontraram desapareceram sem deixar vestígios de sua existência. E, no entanto, esses eram fortes poderes feudais: “Impérios negros majestosos e cruéis, como Benin, Dahomy ou Ashanti, assemelham-se em muitos aspectos ao antigo Peru ou México, tendo em suas vizinhanças tribos politicamente desorganizadas. A nobreza hereditária dos Mfumus, fortemente separada do resto do estado, tinha principalmente a administração dos distritos e, juntamente com a nobreza de serviço mais transitória, formava em Loango fortes pilares do governante e sua casa.”141

Mas sempre que tal estado, uma vez poderoso, se divide em vários estados territoriais independentes ou de fato ou juridicamente, o processo anterior recomeça. O grande estado engole os menores, até que um novo império surja. “Os maiores magnatas territoriais mais tarde se tornam imperadores”, diz Meitzen laconicamente sobre a Alemanha.142 Mas mesmo este grande domínio desaparece, dividido pela necessidade de equipar vassalos guerreiros com feudos. “Os reis logo descobriram que haviam doado todos os seus pertences; suas grandes possessões territoriais no Delta haviam se dissipado”, diz Schneider (l. c. p. 38) sobre os faraós da sexta dinastia. As mesmas causas produziram efeitos semelhantes no Império Franco entre merovíngios e carolíngios; e mais tarde na Alemanha no caso dos imperadores saxão e Hohenstaufen.143 Referências adicionais são desnecessárias, pois todos estão familiarizados com essas instâncias. Em uma parte subsequente deste tratado, examinaremos as causas que finalmente libertaram o estado feudal primitivo dessa maldição de bruxa, esse círculo da aglomeração à desintegração sem fim. Nossa tarefa atual é assumir o lado social do processo, como já abordamos sua 140 141 142 143

Ratzel, l. c. II, p. 362. Ratzel, l. c. II, p. 344. Meitzen, l. c. II, p. 633. Inama-Sternegg, l. c. I, pp. 140-1.

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O Desenvolvimento do Estado Feudal fase histórica. Ele muda a articulação das classes da maneira mais decisiva. Os homens livres comuns, os estratos inferiores do grupo dominante, são atingidos com uma força avassaladora. Eles afundam em servidão. Sua decadência deve acompanhar a do poder central; já que ambos, aliados pode-se dizer, por natureza, são ameaçados simultaneamente pelo poder crescente dos grandes senhores territoriais. A coroa controla o magnata fundiário enquanto o recrutamento dos homens livres comuns do distrito for uma força superior a seus guardas, a seus “seguidores”. Mas uma necessidade fatal, já exposta, impele a coroa a entregar os camponeses ao senhor de terras, e a partir do momento em que o imposto do condado se torna mais fraco do que seus guardas, os camponeses livres estão perdidos. Onde os poderes soberanos do estado são delegados ao magnata territorial, isto é, onde ele se tornou mais ou menos um senhor independente da região, a derrubada das liberdades dos camponeses é realizada, pelo menos em parte, sob a cor da lei, forçando serviços militares excessivos, que arruínam o camponeses, e que são exigidos tanto mais quanto os interesses dinásticos do senhor territorial exigem novas terras e novos camponeses, ou abusando do direito ao trabalho compulsório, ou transformando a administração da justiça pública em opressão militar. Os homens livres comuns, no entanto, recebem o golpe final, seja pela delegação formal ou pela usurpação dos poderes mais importantes da coroa, a disposição de terras desocupadas. Originalmente, esta terra pertencia a todo o “povo” em comum; isto é, aos homens livres para uso comum; mas de acordo com um costume original, provavelmente universal, o patriarca dispõe dele. Este direito de disposição passa para o magnata territorial com os privilégios reais restantes — e assim ele obteve o poder de estrangular alguns poucos homens livres restantes. Ele agora declara todas as terras desocupadas como sua propriedade e proíbe seu assentamento por camponeses livres, enquanto apenas aqueles que reconhecem sua supremacia têm acesso permitido; isto é, que se confiaram a ele ou são seus servos.

135

O Estado Esse é o último prego no caixão dos homens livres comuns. Até agora, sua igualdade de posses tem sido de alguma forma garantida. Mesmo que um camponês tivesse doze filhos, seu patrimônio não era repartido, porque onze deles abriram novos campos de terra comuns da comunidade, ou então nas terras gerais ainda não distribuídas para outras aldeias. Daqui em diante isso é impossível; as porções de terra tendem a se dividir onde crescem famílias grandes, outras se unem quando o herdeiro e a herdeira se casam: de agora em diante passam a existir “trabalhadores”, recrutados entre os donos de metade, um quarto ou mesmo um oitavo de terra que ajudam a trabalhar uma maior área. Assim, o campesinato livre se divide em ricos e pobres; isso começa a afrouxar o vínculo que até então tornava o feixe de flechas inquebrável. Quando, portanto, algum camarada é subjugado pelas extorsões do senhor e se torna seu vassalo, ou se camponeses escravos são estabelecidos entre os proprietários originais, seja para ocupar alguma porção vaga pela extinção da família ou caído nas mãos do senhor por causa do endividamento de seu ocupante, então toda coesão social é afrouxada; e o campesinato, dividido por classes e contrastes econômicos, é entregue sem poder de resistência ao magnata. Por outro lado, o resultado é o mesmo onde o magnata não usurpou os poderes de regalia do estado. Nesses casos, a força escancarada e a violação desavergonhada de direitos alcançam os mesmos fins. O governante, distante e impotente, obrigado a contar com a boa vontade e ajuda dos violadores da lei e da ordem, não tem nem o poder nem a oportunidade de interferência. Quase não há necessidade de aduzir exemplos. O campesinato livre da Alemanha foi submetido ao processo de expropriação e desclassificação pelo menos três vezes. Uma vez aconteceu nos tempos celtas.144 A segunda derrubada dos camponeses livres do antigo Império Alemão ocorreu nos séculos IX e X. A terceira tragédia da mesma forma começou no século XV, nos países ex-eslavos, que eles haviam conquistado e colonizado.145 Os camponeses viviam pior naquelas 144 145

Mommsen, l. c. V, p. 84. Cf. a exposição detalhada disso em F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum und die soziale Frager, Livro II, cap. 3.

136

O Desenvolvimento do Estado Feudal terras, nas “repúblicas dos nobres”, onde não havia autoridade monárquica central, cuja comunhão de interesses com seus súditos tendia a despojar a opressão de suas piores feições. Os celtas da época de César na Gália são um dos primeiros exemplos. Aqui “as grandes famílias exerceram uma preponderância econômica, militar e política. Eles monopolizaram os arrendamentos dos direitos lucrativos do estado. Eles forçaram os homens livres comuns, sobrecarregados com os impostos que eles mesmos haviam imposto, a tomar emprestado deles, e então, primeiro como seus devedores, depois legalmente como seus servos, a renunciar a sua liberdade. Para seu próprio benefício, eles desenvolveram o sistema de seguidores: isto é, o privilégio da nobreza de ter em torno de si uma massa de servos armados a seu soldo, chamados ambacti, com cuja ajuda formavam um estado dentro de um estado. Contando com estes, seus próprios homens de armas, eles desafiaram as autoridades legais e os impostos dos homens livres, e assim foram capazes de romper a comunidade. [...] A única proteção a ser encontrada era na relação de servidão, onde o dever e o interesse pessoal exigiam que o senhor protegesse seus clientes e vingasse qualquer dano a seus homens. Uma vez que o estado não tinha mais o poder de proteger os homens livres, estes em número crescente tornaram-se vassalos de algum nobre poderoso.”146

Encontramos essas condições idênticas mil e quinhentos anos depois em Curlândia, Livonia, na Pomerânia sueca, em Holstein Oriental, em Mecklenburg e especialmente na Polônia. Nos territórios alemães, os pequenos nobres subjugaram seu campesinato, enquanto na Polônia sua presa era o outrora livre e nobre Schlachziz. “A história universal é monótona”, diz Ratzel. O mesmo procedimento derrubou o campesinato do antigo Egito: “Depois de um intermezzo bélico, segue-se um período na história do Império Médio, que traz uma deterioração da posição do campesinato no Baixo Egito. O número de 146

Mommsen, l. c. III, pp. 234-5.

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O Estado senhorios diminui, enquanto seu crescimento territorial e poder aumentam. O tributo dos camponeses é doravante determinado por uma avaliação exata de suas propriedades e definitivamente fixado por uma espécie de Livro do Juízo Final. Devido a essa pressão, muitos camponeses logo entram na corte do senhor ou nas cidades dos governantes locais, e ali se empregam como servos, mecânicos ou mesmo como supervisores na organização econômica desses feudos ou cortes. Em comum com quaisquer cativos disponíveis, eles contribuem para a extensão das propriedades do príncipe e para promover a expulsão geral do campesinato de suas propriedades.”147

O exemplo do Império Romano mostra, como nada mais, como esse processo se torna inevitável. Quando encontramos Roma pela primeira vez na história, a concepção de servidão já havia sido esquecida. Quando se abre o “período moderno” de Roma, só se conhece a escravidão. E, no entanto, em quinze séculos, o campesinato livre novamente afunda na dependência econômica, depois que Roma se tornou um império excessivamente estendido e pesado, cujos distritos fronteiriços se dissolveram cada vez mais do controle central. Os grandes proprietários de terras, tendo sido dotados de justiça inferior e administração policial em suas próprias propriedades, “reduziram seus empregados, que originalmente poderiam ter sido proprietários livres do 'ager privatus vectigalis' a um estado de servidão, e assim desenvolveram um uma espécie de glebae adscriptus real, dentro dos limites de suas 'imunidades'”.148 Os germânicos invasores encontraram essa ordem feudal elaborada na Gália e em outras províncias. Nessa época, a imensa diferença antes existente entre escravos e colonos livres (coloni) havia sido completamente obliterada, primeiro em sua posição econômica e depois, naturalmente, em seus direitos constitucionais. Sempre que os homens livres comuns afundam na dependência política e econômica dos grandes magnatas territoriais, quando, em 147 148

Thurnwald, l. c., p. 771. Meitzen, l. c. I, pp. 362f.

138

O Desenvolvimento do Estado Feudal outras palavras, eles se tornam vinculados à corte ou às terras, o grupo social anteriormente sujeito a eles tende, em medida correspondente, a melhorar seu status. Ambas as camadas tendem a se encontrar no meio do caminho, para aproximar sua posição e, finalmente, para se amalgamar. As observações que acabamos de fazer sobre os colonos livres e os escravos agrícolas do final do Império Romano são verdadeiras em todos os lugares. Assim, na Alemanha, homens livres e servos formavam juntos, quando fundidos, o grupo econômico e legalmente unitário de Grundholde, ou homens ligados à terra.149 A elevação dos antigos “súditos”, daqui em diante, por uma questão de brevidade, serão chamados de “plebe”, flui da mesma fonte que a degradação do homem livre e surge pela mesma necessidade dos próprios fundamentos sobre os quais esses estados são eles mesmos erguidos, a saber, a aglomeração da propriedade fundiária em cada vez menos mãos. Os plebeus são os adversários naturais do governo central — já que este é seu conquistador e impositor de impostos; enquanto eles naturalmente se opõem aos homens livres comuns, que os desprezam e os oprimem politicamente, além de rebatê-los economicamente. O grande magnata também é o adversário natural do governo central — um impedimento em seu caminho para a independência completa, e é ao mesmo tempo também um inimigo natural dos homens livres comuns, que por sua vez não apenas apóiam o governo central; mas também bloqueiam com suas posses seu caminho para o domínio territorial, enquanto com suas reivindicações de igualdade de direitos políticos irritam seu orgulho principesco. Como os interesses políticos e sociais dos príncipes territoriais e da plebe coincidem, eles devem se tornar aliados; o príncipe só pode alcançar a independência completa se, em sua luta pelo poder contra a coroa e os homens livres comuns, controlar guerreiros confiáveis e pagadores de impostos condescendentes; a plebe só pode então ser libertada de sua desclassificação como pária, tanto econômica quanto

149

Inama-Sternegg, l. c. I, pp. 373, 386.

139

O Estado socialmente, se os odiados e orgulhosos homens livres comuns forem rebaixados ao seu nível. Esta é a segunda vez que notamos a identidade de interesse entre os príncipes e seus súditos. Na primeira vez, encontramos uma solidariedade fracamente desenvolvida em nosso segundo estágio de formação do estado. Isso faz com que o príncipe semi-soberano trate seus inquilinos dependentes tão gentilmente quanto maltrata os camponeses livres de seu território; consequentemente, eles lutarão com mais boa vontade por ele e contribuirão com impostos, enquanto os mais prontamente os homens livres oprimidos sucumbirão à pressão, especialmente porque sua parcela de poder político no estado, coincidente com o declínio do poder central, tornou-se apenas uma frase sem significado. Em alguns casos, como na Alemanha no final do século X, isso foi feito com plena consciência de seus efeitos 150 — algum príncipe exerce um governo particularmente "suave", a fim de atrair os súditos de um potentado vizinho para sua terras e, assim, aumentar sua própria força na guerra e na tributação, e enfraquecer a de seu oponente. A plebe passa a possuir, tanto legal quanto efetivamente, direitos cada vez maiores, privilégios ampliados da lei de propriedade, talvez autogoverno em assuntos comuns e sua própria administração da justiça; assim, eles se elevam no mesmo grau que os homens livres comuns afundam, até que as duas classes se encontrem e sejam amalgamadas em um corpo aproximadamente no mesmo plano jurídico e econômico. Meio servos, meio súditos de um estado, eles representam uma formação característica do estado feudal, que ainda não reconhece nenhuma distinção clara entre direito público e direito privado; por sua vez, consequência imediata de sua própria gênese histórica, o domínio na forma de um estado em prol dos direitos econômicos privados.

150

Cf. F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum, p. 272.

140

O Desenvolvimento do Estado Feudal

(d) A Amalgamação Étnica A amalgamação jurídica e social dos homens livres degradados e da plebe exaltada tende inevitavelmente à interpenetração étnica. Embora a princípio não fosse permitido aos povos subjugados intercasar ou ter relações sociais com os homens livres, agora tais obstáculos não podem ser mantidos; em qualquer aldeia, a classe social não é mais determinada pela descendência da raça dominante, mas sim pela riqueza. E pode surgir frequentemente o caso em que o descendente puro-sangue do pastor guerreiro deve ganhar a vida como um trabalhador do campo contratado pelo descendente igualmente purosangue dos antigos servos. O grupo social dos súditos é agora composto por uma parte do antigo grupo étnico mestre e uma parte do antigo grupo súdito. Dizemos apenas de uma parte, porque a essa altura a outra parte foi amalgamada com a outra parte do antigo grupo mestre étnico em uma classe social unitária. Em outras palavras, uma parte da plebe não apenas atingiu a posição a que a massa dos homens livres comuns caiu, mas subiu muito além dela, na medida em que foi completamente recebida no grupo dominante, que, entretanto, não só aumentou enormemente, mas também diminuiu grandemente em número. E isso também é um processo universal encontrado em toda a história; porque em todos os lugares segue com força igualmente convincente das próprias premissas do domínio feudal. O primus inter pares, seja o detentor do poder central ou algum potentado local, assumindo o posto de príncipe, requer ferramentas mais flexíveis para seu domínio do que as encontradas entre seus “pares”. Estes últimos representam uma classe que ele deve rebaixar se quiser ascender — e esse é e deve ser o objetivo de todos, pois nesse estágio o desejo de poder é idêntico ao objetivo de autopreservação. Nesse esforço, ele enfrenta a oposição de seus primos detestáveis e obstinados e de seus pequenos nobres — e por essa razão, encontramos em todas as cortes, desde a do rei soberano de um poderoso império feudal até o senhor do que dificilmente é mais do que 141

O Estado uma grande propriedade, homens de descendência insignificante como funcionários confidenciais ao lado de representantes do grupo mestre, que em muitos casos sob a máscara de funcionários do príncipe, aliás, são “éforos”, participantes do poder do príncipe como os plenipotenciários de seu grupo. Lembremo-nos apenas do Induna na corte dos reis bantu. Não é de admirar, então, que o príncipe deposite mais confiança em seus próprios homens do que nesses conselheiros irritantes e pretensiosos, em homens cuja posição está indissoluvelmente ligada à sua e que seriam arruinados por sua queda.151 Também aqui as referências históricas são quase supérfluas. Todos estão familiarizados com o fato de que nas cortes dos reinos feudais da Europa Ocidental, além dos parentes do rei e alguns nobres vassalos, havia também elementos dos grupos inferiores, ocupando altos cargos, clérigos152 e grandes guerreiros da classe plebeia. Entre os seguidores imediatos de Carlos Magno, todas as raças e povos de seu império estavam representados. Também nos contos de Teodorico, o Gótico, na Saga de Dietrich do Niebelungen Lied, essa ascensão de bravos filhos das raças subjugadas encontra seu reflexo. Além destes, seguem-se alguns casos menos conhecidos. No Egito, já no Antigo Império, encontra-se ao lado dos oficiais régios da nobreza feudal, descendentes dos pastores conquistadores, administrando seus distritos como representantes da coroa, com plenos poderes como deputados, “uma massa de oficiais da corte confiados a determinadas funções do governo”. "Originou-se com os servos

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Um dos exemplos mais notáveis pode ser encontrado no caso de Markward de Annweiler, Marquês de Ancona e Duque de Ravenna, senescal de Henrique VI, que após a morte do imperador Henrique VI. disputou o poder da Regente Constança agindo por seu filho, Frederico II. (Veja Boehmer-Ficker, Regesta Imperii, V, vol. 1, N.º 511. v. ad. annum 1197.) — Tradutor da Edição em Inglês. É nessa conexão que os príncipes gostam de chamar religiões estrangeiras. O clero, pelo menos inicialmente, são seus aliados naturais e, graças ao medo dos espíritos, muito eficazes.

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O Desenvolvimento do Estado Feudal empregados nas cortes dos príncipes, como prisioneiros de guerra, refugiados, etc."153 A fábula de José mostra um estado de coisas conhecido na época como uma ocorrência comum, da ascensão de um escravo à posição de um ministro de estado todo poderoso. Nos dias de hoje tal carreira está dentro do reino da possibilidade em qualquer corte oriental, como Pérsia, Turquia ou Marrocos, etc. No caso do velho Marechal Derflinger, no tempo de Friedrich Wilhelm I, o Grande Eleitor, em uma data muito posterior, temos um exemplo da transição do estado feudal desenvolvido para o estado estamental, que pode ser multiplicado pelos exemplos de inúmeros outros bravos espadachins. Acrescentemos alguns exemplos dos povos “desconsiderados pela história”. Ratzel conta sobre o reino de Bornu: “Os homens livres não perderam a consciência de sua descendência livre, em contraste com os escravos do sheik; mas os governantes depositam mais confiança em seus escravos do que em seus próprios parentes e associados livres de sua tribo. Eles podem contar com a devoção dos primeiros. Não apenas os cargos na corte, mas a defesa do país foi desde os tempos antigos confiada preferencialmente aos escravos. Os irmãos do príncipe, assim como os filhos mais ambiciosos ou mais eficientes, são objetos de suspeita; e enquanto os lugares mais importantes da corte estão nas mãos dos escravos, os príncipes são colocados em postos distantes da sede do governo. Seus salários são pagos com as rendas dos escritórios e dos impostos das províncias.”154

Entre os fulbe “a sociedade é dividida em príncipes, chefes, plebeus e escravos. Os escravos do rei desempenham um grande papel como soldados e oficiais, e podem aspirar aos mais altos cargos do estado”.155

153 154 155

Thurnwald, l. c., p. 706. Ratzel, l. c. II, p. 503. Ratzel, l. c. II, p. 518.

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O Estado Esta nobreza de criação da corte pode, em certos casos, ser admitida nos grandes cargos imperiais, para que, segundo o método acima exposto, alcance a soberania sobre um território. No estado feudal desenvolvido, representa a alta nobreza; e geralmente consegue preservar sua posição, mesmo quando algum vizinho mais poderoso o mediatizou incorporando o estado. A alta nobreza franca certamente contém tais elementos do grupo inferior original;156 e uma vez que de seu sangue toda a alta nobreza dos estados civilizados europeus descende pelo menos em linha direta pelo casamento, encontramos uma amálgama étnica, tanto no atual grupo de súditos e na mais alta ordem da classe dominante. E o mesmo se aplica ao Egito: “Com o naufrágio da autoridade real no tempo da decadência, os altos funcionários abusam de seu poder para fins pessoais, para tornar seus cargos hereditários em suas famílias e, assim, criar uma nobreza oficial não diferenciada do resto da população.”157

E finalmente, o mesmo processo, pelas mesmas causas, se apodera da atual classe média, da camada inferior da classe senhorial, dos funcionários e oficiais dos grandes feudatários. A princípio ainda existe uma diferença social entre, por um lado, os vassalos livres, os subfeudatários do grande senhor de terras, parentes, filhos mais novos de outras famílias nobres, associados empobrecidos do mesmo distrito, em casos isolados filhos nascidos livres de camponeses, refugiados livres e rufiões profissionais de ascendência livre; e de outro, se o termo for permitido, os subalternos dos guardas de descendência plebeia. Mas a falta de liberdade avança, enquanto a liberdade afunda em valor social; e aqui também o governante deposita mais confiança em suas criaturas do que em seus pares. Aqui também, mais cedo ou mais tarde, o processo de amalgamação se completa. Na Alemanha, ainda em 1085, 156

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Meitzen, l. c. I, p. 579: “Na época da compilação da Lex Salica, a antiga nobreza racial havia sido reduzida a homens livres comuns ou então aniquilada. Os funcionários, por outro lado, são avaliados em triplo wergeld, 600 solidi, e se um for 'puer regis' 300 solidi. Thurnwald, l. c. p. 712.

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O Desenvolvimento do Estado Feudal a nobreza não-livre da corte classifica-se entre os “servi et litones”, enquanto um século depois é colocada entre os “liberi et nobiles”.158 No decurso do século XIII, foi completamente absorvido, juntamente com os vassalos livres, para dentro da nobreza pela cavalaria. As duas ordens, entretanto, tendem a igualar-se economicamente; ambos têm subinfeudações, feudos por obrigação de serviço na guerra e feudos de serviço dos cativos; enquanto todos os feudos dos “ministeriais” ou sargentos tornaram-se, entretanto, tão hereditários quanto os dos vassalos livres, tanto quanto os patrimônios dos poucos senhores territoriais menores sobreviventes pertencentes à nobreza original, que ainda podem ter escapado das garras dos grandes principados territoriais. De maneira bastante análoga a essa, o desenvolvimento ocorreu em todos os outros estados feudais da Europa Ocidental; enquanto sua contraparte exata é encontrada no extremo Oriente, na borda do continente eurasiano, no Japão. Os daimios são a alta nobreza; o samurai, o cavalheirismo, a nobreza da espada.

(e) O Estado Feudal Desenvolvido Com isso, o estado feudal atingiu seu auge. Forma, política e socialmente, uma hierarquia de numerosos estratos; dos quais, em todos os casos, o inferior é obrigado a prestar serviço ao próximo acima dele, e o superior é obrigado a proteger o inferior. A pirâmide repousa sobre a população trabalhadora, da qual a maior parte ainda é camponesa; o excedente de seu trabalho, o aluguel de terra, toda a “mais-valia” dos meios econômicos é usado para sustentar as camadas superiores da sociedade. Este aluguel de terra da maioria das propriedades é entregue aos pequenos proprietários de feudos, exceto quando essas propriedades ainda estão na posse imediata do príncipe ou da coroa e ainda não foram concedidas como feudos. Os titulares delas são

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Inama-Sterneegg, l. c. II, p. 61.

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O Estado obrigados em contrapartida a prestar o serviço militar estipulado, e também, em certos casos, a prestar trabalho de valor econômico. O vassalo maior, por sua vez, é obrigado a servir aos grandes inquilinos da coroa; que, por sua vez, estão, pelo menos por lei estrita, sob obrigação semelhante para com o titular do poder central; enquanto imperador, rei, sultão, xá ou faraó, por sua vez, são considerados vassalos do deus tribal. Assim, começa nos campos, cujo campesinato sustenta e nutre a todos, e sobe até o “rei do céu” uma ordem artificialmente graduada de hierarquias, que restringe tão absolutamente toda a vida do estado que, de acordo com o costume e a lei, nem um pedaço de terra nem um homem pode ser compreendido a menos que esteja dentro de sua dobra. Uma vez que todos os direitos originalmente criados para os homens livres comuns foram retomados pelo estado, ou então distorcidos pelos príncipes vitoriosos dos territórios, ocorre que uma pessoa que não mantém alguma relação feudal com algum superior deve de fato estar “sem a lei”, sem reinvidicação a proteção ou justiça, i.e., estar fora do escopo daquele poder que sozinho oferece justiça. Portanto, a regra, nulle terre sans seigneur, parecendo-nos à primeira vista como uma ebulição de arrogância feudal, é de fato a codificação de um novo estado legal existente, ou pelo menos a eliminação de alguns resquícios arcaicos, não mais tolerados, do estado feudal primitivo completamente descartado. Esses filósofos da história que pretendem explicar todo desenvolvimento histórico a partir da qualidade das “raças”, dão como centro de sua posição estratégica o alegado fato de que apenas os germânicos, graças à sua “capacidade política” superior, conseguiram elevar o edifício artístico do estado feudal desenvolvido. Parte do vigor desse argumento se foi, desde que começou a surgir neles a convicção de que no Japão a raça mongol havia alcançado esse resultado idêntico. Ninguém pode dizer o que as raças negras poderiam ter feito, se a irrupção de civilizações mais fortes não tivesse barrado seu caminho, e ainda assim Uganda não difere muito dos impérios dos carolíngios ou de Boleslaw, o Vermelho, exceto que os homens não tinham em Uganda quaisquer “valores de tradição” da cultura medieval: e esses valores não 146

O Desenvolvimento do Estado Feudal eram um mérito das raças germânicas, mas um presente com o qual a fortuna os dotou. Mudando a discussão do negro para os “semitas”, encontramos a acusação de que esta raça não tem absolutamente nenhuma capacidade para a formação de estados. E, no entanto, encontramos, há milhares de anos, esse mesmo sistema feudal desenvolvido pelos semitas, se os fundadores do reino egípcio fossem semitas. Alguém poderia pensar que a seguinte descrição de Thurnwald foi tirada do período dos imperadores Hohenstaufen: “Quem entrou no seguimento de algum poderoso, foi posteriormente protegido por ele como se fosse o chefe da família. Esta relação [...] indica uma relação fiduciária semelhante à vassalagem. Essa relação de proteção em troca de fidelidade tende a se tornar a base da organização de toda a sociedade egípcia. É a base das relações do senhor feudal com seus sargentos e camponeses, assim como do faraó com seus funcionários. A coesão dos indivíduos em grupos sujeitos a senhores protetores comuns, é fundada nesta visão, até o ápice da pirâmide, para o próprio rei considerado como 'o vigário de seus ancestrais', como o vassalo dos deuses na terra. [...] Quem quer que esteja fora desse alcance social, um 'homem sem mestre', está sem proteção e, portanto, sem a lei.”159

A hipótese da dotação de qualquer raça em particular não foi usada por nós e não precisamos dela. Como diz Herbert Spencer, é a mais estúpida de todas as tentativas imagináveis de construir uma filosofia da história. A primeira característica do estado feudal desenvolvido é a gradação múltipla de níveis construídos em uma pirâmide de dependência mútua. Sua segunda marca distintiva é a amalgamação dos grupos étnicos, originalmente separadas. A consciência anteriormente existente da diferença de raças desapareceu completamente. Resta apenas a diferença de classes. 159

Thurnwald, l. c., p. 705.

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O Estado Doravante trataremos apenas de classes sociais e não mais de grupos étnicos. O contraste social é o único fator dominante na vida do estado. Consistentemente com isso, a consciência do grupo étnico muda para uma consciência de classe, as teorias do grupo, para as teorias da classe. No entanto, eles não mudam nem um pouco sua essência. As novas classes dominantes estão tão cheias de seu direito divino quanto o antigo grupo mestre, e logo se vê que a nova nobreza da espada consegue esquecer, rápida e completamente, sua descendência do grupo vencido; enquanto os ex-homens livres agora desclassificados, ou os ex-pequenos nobres afundados na escala social, doravante juram tão firmemente pela “lei natural” como fizeram antes apenas as tribos subjugadas. O estado feudal desenvolvido é, em sua essência, exatamente a mesma coisa que era quando ainda estava no segundo estágio de formação do estado. Sua forma é a do domínio, sua razão de ser, a exploração política dos meios econômicos, limitada pelo direito público, que obriga a classe mestra a dar a proteção correlata, e que garante à classe baixa o direito de ser protegida, de na medida em que são mantidos trabalhando e pagando impostos, para que possam cumprir seu dever para com seus mestres. Em sua essência, o governo não mudou, apenas foi disposto em mais graus; e o mesmo se aplica à exploração, ou como diz a teoria econômica, “a distribuição” da riqueza. Assim como outrora, agora a política interna desses estados oscila naquela órbita prescrita pelo paralelogramo do impulso centrífugo das antigas disputas de grupos, agora guerras de classes, contrabalançadas pela atração centrípeta dos interesses comuns. Assim como antigamente, sua política externa é determinada pelo esforço de sua classe dominante por novas terras e servos, um impulso de expansão causado ao mesmo tempo pela necessidade ainda existente de autopreservação. Embora diferenciado muito mais minuciosamente e integrado muito mais poderosamente, o estado feudal desenvolvido nada mais é do que o estado primitivo chegado à sua maturidade.

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V O Desenvolvimento do Estado Constitucional Se entendermos o resultado do estado feudal, no sentido dado acima, como um desenvolvimento orgânico posterior, para frente ou para trás, condicionado pelo poder das forças internas, mas não como uma terminação física, provocada ou condicionada por forças externas, então podemos dizer que o resultado do estado feudal é determinado essencialmente pelo desenvolvimento independente das instituições sociais criadas pelos meios econômicos. Tais influências podem vir também de fora, de estados estrangeiros que, graças a um desenvolvimento econômico mais avançado, possuem um poder centralizado de forma mais tensa, uma melhor organização militar e um maior avanço. Tocamos em algumas dessas fases. O desenvolvimento independente dos estados feudais mediterrâneos foi abruptamente interrompido por sua colisão com os estados marítimos, que estavam em um plano muito mais alto de crescimento econômico e riqueza e mais centralizados, como Cartago e, mais especialmente, Roma. A destruição do Império Persa por Alexandre, o Grande, pode ser exemplificada neste contexto, uma vez que a Macedônia havia se apropriado dos avanços econômicos dos estados marítimos helênicos. O melhor exemplo nos tempos modernos é a influência estrangeira no caso do Japão, cujo desenvolvimento foi abreviado de maneira quase incrível pelos impulsos militares e pacíficos da civilização da Europa Ocidental. No espaço de apenas uma geração, percorreu o caminho de um estado feudal totalmente amadurecido para o estado constitucional moderno completamente desenvolvido. Parece-me que temos apenas que lidar com uma abreviação do processo de desenvolvimento. Tanto quanto podemos ver — embora doravante as evidências históricas se tornem escassas e quase não haja exemplos de etnografia — pode ser afirmada a regra que as forças de 149

O Estado dentro, mesmo sem fortes influências estrangeiras, conduzem o estado feudal amadurecido, com estrita consistência lógica, no mesmo caminho para a idêntica conclusão. Os criadores dos meios econômicos que controlam esse avanço são as cidades e seu sistema de economia monetária, que gradualmente substitui o sistema de economia natural e, assim, desloca o eixo em torno do qual gira toda a vida do estado; no lugar da propriedade fundiária, o capital móvel torna-se gradualmente preponderante.

(a) A Emancipação do Campesinato Tudo isso segue como uma consequência natural da premissa básica do estado feudal. Quanto mais os grandes proprietários privados se tornam uma nobreza fundiária, mais na mesma medida o sistema feudal da economia natural deve se despedaçar. Quanto mais amplos direitos de propriedade fundiária forem adquiridos e nutridos pelos príncipes dos estados territoriais, mais o sistema feudal baseado em pagamentos em bens e serviços estará fadado à desintegração; pode-se dizer que os dois acompanham esse desenvolvimento. Enquanto a donidade de grandes propriedades de terra for relativamente limitada, o princípio primitivo do apicultor, permitindo a seus camponeses apenas o suficiente para a subsistência, pode ser realizado. Quando, no entanto, estes se expandem para dimensões territoriais e incluem, como é regularmente o caso, acréscimos de terra resultantes de guerras bem-sucedidas, ou pela renúncia e subinfeudação por herança ou casamentos políticos de proprietários de terras menores, espalhados amplamente pelo país e longe dos domínios originais do mestre, então a política do apicultor não pode mais ser realizada. A menos que, portanto, o magnata territorial pretenda manter em seu salário uma imensa massa de capatazes, o que seria caro e politicamente imprudente, ele teria de impor a seus camponeses algum tributo fixo, em parte aluguel e em parte imposto. A necessidade 150

O Desenvolvimento do Estado Constitucional econômica de uma reforma administrativa une-se, portanto, à necessidade política, de elevar a “plebe”, na forma que já foi discutida. Quanto mais o magnata do território deixa de ser um proprietário privado, mais ele tende a se tornar exclusivamente um sujeito de direito público, isto é, príncipe de um território, mais cresce a solidariedade acima mencionada entre o príncipe e o povo. Vimos que alguns poucos magnatas, mesmo no período de transição de grandes latifúndios para principados, consideravam de seu maior interesse manter um governo “suave”. Isso alcançou o resultado, não apenas de educar sua plebe para uma consciência mais viril em relação ao estado, mas também teve o efeito de tornar mais fácil para os poucos homens livres comuns desistirem de seus direitos políticos em troca de proteção; embora fosse ainda mais importante, pois privava seus vizinhos e rivais de seu precioso material humano. Quando o príncipe territorial finalmente alcançou a completa independência de facto, seu interesse próprio deve incitá-lo firmemente a perseverar no caminho assim iniciado. Se ele, no entanto, investir novamente seus oficiais de justiça ou oficiais com terras e camponeses, ele ainda terá o mais premente interesse político em garantir que seus súditos não sejam entregues a eles sem restrições. Para manter seu controle, o príncipe limitará o direito dos “cavaleiros” aos rendimentos das terras a determinados pagamentos em bens e serviços e ao trabalho forçado limitado, reservando-se para si o exigido pelo interesse público, como o trabalho forçado nas estradas ou em pontes. Logo veremos que a circunstância de que em todos os estados feudais desenvolvidos os camponeses têm pelo menos dois senhores reclamando serviço é decisiva para sua posterior ascensão. Por todas essas razões, os serviços a serem exigidos dos camponeses em um estado feudal desenvolvido devem ser limitados de alguma forma. Doravante, todo excedente pertence a ele livre do controle do senhorio. Com essa mudança, o caráter da propriedade fundiária foi totalmente revolucionado. Até então, o senhor de terras, por direito, tinha direito a toda a renda, economizando apenas o absolutamente necessário para permitir que seus camponeses subsistissem e continuassem sua prole; daqui em diante, o produto total 151

O Estado de seu trabalho, por direito, pertence ao camponês, economizando apenas um encargo fixo para seu senhorio como aluguel de terra. A posse de vastas propriedades fundiárias desenvolveu-se em senhorialismo. Isso completa o segundo passo importante dado pela humanidade em direção ao seu objetivo. O primeiro passo foi dado quando o homem fez a transição da fase de urso para a de apicultor, descobrindo assim a escravidão; esta etapa abole a escravidão. A humanidade trabalhadora, até então apenas um objeto da lei, torna-se agora pela primeira vez uma entidade capaz de gozar de direitos. O motor de trabalho, sem direitos, pertencente ao seu senhor, e sem garantias efetivas de vida e integridade física, tornouse agora súdito contribuinte de algum príncipe. Doravante, os meios econômicos, agora pela primeira vez assegurados de seu sucesso, desenvolvem suas forças de maneira bem diferente. O camponês trabalha com incomparavelmente mais diligência e cuidado, obtém mais do que precisa e, assim, cria a “cidade” no sentido econômico do termo, isto é, a cidade industrial. O excedente produzido pelo campesinato gera uma demanda por objetos não produzidos na economia camponesa; ao mesmo tempo, a agricultura mais intensiva acarreta uma redução dos subprodutos industriais até então elaborados pela indústria doméstica camponesa. Como a agricultura e a pecuária absorvem cada vez mais as energias da família rural, torna-se possível e necessário dividir o trabalho entre produção original e manufatura; a aldeia tende a tornarse principalmente o lugar da primeira, a cidade industrial passa a ser a sede da segunda.

(b) A Gênese do Estado Industrial Que não haja mal-entendidos: não afirmamos que a cidade surge assim, mas apenas a cidade industrial. Tem existido a verdadeira cidade histórica, que pode ser encontrada em todos os estados feudais desenvolvidos. Tais cidades surgiram ou por um meio puramente 152

O Desenvolvimento do Estado Constitucional político, como uma fortaleza,160 ou pela cooperação dos meios políticos com os econômicos, como um mercado, ou por alguma necessidade religiosa, como os arredores de algum templo.161 Onde quer que tal cidade no sentido histórico exista na vizinhança, a cidade industrial recém-surgida tende a crescer em torno dela; caso contrário, desenvolve-se espontaneamente a partir da divisão de trabalho existente e amadurecida. Via de regra, ele, por sua vez, se tornará uma fortaleza e terá seus próprios locais de culto. Naturalmente, todo lugar para o qual se dirigem grandes peregrinações torna-se um extenso centro comercial. Podemos ver as lembranças disso no fato de que os grandes mercados atacadistas, realizados em determinados horários no norte da Europa, são chamados de Messen por causa da cerimônia religiosa. Estas são apenas misturas históricas acidentais. Em seu sentido econômico estrito, “cidade” significa o lugar dos meios econômicos, ou a troca e o intercâmbio por valores equivalentes entre a produção rural e a manufatura. Isso corresponde ao uso comum da linguagem, pelo qual uma fortaleza, por maior que seja, um aglomerado de templos, claustros e locais de peregrinação, por mais extensos, se concebíveis sem lugar para troca, seriam designados por suas características externas como “tipo uma cidade” ou “parecendo uma cidade”. Embora possa ter havido poucas mudanças no exterior da cidade histórica, ocorreu uma revolução interna em uma escala magnífica. A cidade industrial se opõe diretamente ao estado. Assim como o estado é o meio político desenvolvido, a cidade industrial é o meio econômico 160

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“Os acampamentos maiores do exército do Reno obtiveram seus anexos municipais em parte por meio de vivandeiros do exército e seguidores do acampamento, e particularmente por meio dos veteranos, que após a conclusão de seus serviços permaneceram em seus alojamentos habituais. Assim surgiu distinta dos quartéis militares propriamente ditos, uma cidade distinta de cabanas (Canabae). Em todas as partes do Império, e especialmente nas várias Germânias, surgiram com o passar do tempo, desses acampamentos dos legionários, e particularmente das estações centrais, cidades no sentido moderno.” — Mommsen, l. c. V, p. 153. “Todo local de culto reúne ao seu redor as residências dos sacerdotes, escolas e casas de repouso para os peregrinos.” — Ratzel, l. c. II., p. 575.

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O Estado desenvolvido. A grande disputa que preenche a história universal, ou melhor, seu próprio significado, passa a ocorrer entre a cidade e o estado. A cidade como um corpo econômico e político solapa o sistema feudal com armas políticas e econômicas. Com a primeira a cidade força, com a segunda ela atrai, seu poder para longe da classe dominante feudal. Esse processo se dá no campo da política pela interferência da cidade, agora centro de poderes próprios, no mecanismo político do estado feudal desenvolvido, entre o poder central e os magnatas territoriais locais e seus súditos. As cidades são fortalezas e moradas de homens guerreiros, bem como depósitos de material para a guerra (armas, etc.); e mais tarde eles se tornam reservatórios centrais de suprimento de dinheiro usado nas disputas entre o governo central e os crescentes príncipes territoriais, ou entre estes em suas guerras mortíferas. Assim, são pontos estratégicos importantes ou aliados valiosos; e pode, por meio de uma política previdente, adquirir direitos importantes. Como uma regra geral, as cidades tomam parte da coroa nas lutas contra os nobres feudais, por razões sociais, porque os senhores de terras recusam reconhecer a igualdade social, exigida de direito pelos seus cidadãos mais abastados; por razões políticas, porque o governo central, graças à solidariedade entre príncipe e povo, está mais apto a ser influenciado por interesses comuns do que o magnata territorial, que serve apenas a seus interesses privados; e, finalmente, por razões econômicas, porque a vida na cidade só pode prosperar em paz e segurança. As práticas da cavalaria, como a lei do clube e a guerra privada, e a prática dos cavaleiros de saquear as caravanas são inconciliáveis com os meios econômicos; e, portanto, as cidades são fiéis aliadas dos guardiões da paz e da justiça, primeiro ao imperador, depois, ao príncipe territorial soberano; e quando a cidadania armada desintegra e pilha um ninho de bandidos, a pequena gota reflete o mesmo processo acontecendo no oceano da história. Para desempenhar com sucesso esse papel político, a cidade deve atrair o maior número possível de cidadãos, um esforço também 154

O Desenvolvimento do Estado Constitucional imposto por considerações puramente econômicas, uma vez que tanto a divisão do trabalho quanto a da riqueza aumentam com o aumento da cidadania. Portanto, as cidades favorecem a imigração com todos os seus poderes; e mais uma vez mostram nisso o contraste polar de sua diferença essencial em relação aos senhores feudais. Os novos cidadãos assim atraídos para as cidades são retirados das propriedades feudais, que são assim enfraquecidas em poder de tributação e defesa militar na proporção em que as cidades são fortalecidas. A cidade torna-se uma poderosa competidora no leilão, em que o servo é derrubado para o maior lance, ou seja, para aquele que oferece mais direitos. A cidade oferece ao camponês total liberdade e, em alguns casos, tudo o que possui. O princípio “o ar da cidade liberta o camponês” é combatido com sucesso; e o governo central, satisfeito em fortalecer as cidades e enfraquecer os nobres turbulentos, geralmente confirma por documento os direitos recém-adquiridos. O terceiro grande movimento no progresso da história universal pode ser visto na descoberta da honra do trabalho livre; ou melhor, na sua redescoberta, perdida de vista desde aqueles tempos longínquos em que o caçador livre e o lavrador primitivo subjugado gozavam dos frutos do seu trabalho. Até agora o camponês carrega a marca do pária e seus direitos são pouco respeitados. Mas na cidade cercada por muros e bem defendida, o cidadão mantém a cabeça erguida. Ele é um homem livre em todos os sentidos da palavra, livre mesmo perante a lei, uma vez que encontramos nas concessões de direitos a muitas das primeiras cidades emancipadas (Ville-franche) a provisão de que um servo residindo nelas “um ano e um dia” sem ser perturbado pela reivindicação de seu mestre deve ser considerado livre. Dentro das muralhas da cidade ainda existem várias categorias e graus de status político. A princípio, os antigos colonos, os homens de posição igual aos nobres do país circundante, os antigos homens livres do burgo, recusam aos recém-chegados, geralmente pobres artesãos ou vendedores ambulantes, o direito de participar do governo. Mas, como vimos no caso das cidades marítimas, tais gradações de hierarquia não podem ser mantidas dentro de uma comunidade comercial. A maioria, inteligente, cética, estreitamente organizada e compacta, força a 155

O Estado concessão de direitos iguais. A única diferença é que a disputa é mais longa em um estado feudal desenvolvido, porque agora a luta não diz respeito apenas às partes interessadas. Os grandes magnatas territoriais da vizinhança e os príncipes impedem o pleno desenvolvimento das forças com sua interferência. Nos estados marítimos do mundo antigo, não havia tertius gaudens que pudesse derivar quaisquer lucros com as disputas dentro da cidade, já que fora das cidades não existia nenhum sistema de senhores feudais poderosos. Estes, então, são os braços políticos das cidades em sua disputa com o estado feudal: alianças com a coroa, ataque direto e sedução dos servos dos senhores feudais para o ar livre da cidade. As suas armas econômicas não são menos eficazes, a passagem do pagamento em bens e serviços para o sistema do dinheiro como meio de troca está inseparavelmente ligada aos métodos cívicos, é o meio pelo qual o método de pagamento em bens e serviços é totalmente destruído e com ele o estado feudal.

(c) As Influências da Economia Monetária O processo sociológico posto em movimento pelo sistema de economia monetária é tão bem conhecido e sua mecânica é tão amplamente reconhecida que algumas sugestões serão suficientes. Aqui, como no caso dos estados marítimos, a consequência da invasão do sistema monetário é que o governo central se torna quase onipotente, enquanto os poderes locais são reduzidos à completa impotência. O domínio não é um fim em si mesmo, mas apenas o meio dos governantes para seu objetivo essencial, o gozo sem trabalho de artigos de consumo tão numerosos e valiosos quanto possível. Durante a prevalência do sistema de economia natural, não há outra maneira de obtê-los, exceto pelo domínio; os guardas das fronteiras e os príncipes territoriais obtêm sua riqueza por meio de seu poder político. Quanto mais camponeses forem possuídos, maior será o poderio militar e maior 156

O Desenvolvimento do Estado Constitucional será o alcance do território submetido e, portanto, maiores serão as receitas. No entanto, assim que os produtos da agricultura são trocáveis por mercadorias atraentes, torna-se mais racional para cada um, principalmente um homem privado, isto é, para todo senhor feudal que não seja um príncipe territorial — e isso agora inclui os cavaleiros — diminuir tanto quanto possível o número de camponeses e deixar apenas um pequeno número que possa, com o máximo de trabalho, produzir o maior produto da terra, e desocupá-las o menos possível. O produto líquido da propriedade imobiliária, assim tremendamente aumentado, é agora levado aos mercados e vendido por mercadorias, e não é mais usado para manter um corpo de guardas bélico. Tendo dissolvido este seguinte, o cavaleiro torna-se simplesmente dono de propriedade de nobres ou cavaleiros.162 Com este acontecimento, como de um só golpe, o poder central, do rei ou príncipe territorial, fica sem rival para o domínio, e torna-se politicamente onipotente. Os vassalos indisciplinados, que antes faziam tremer os reis fracos, após uma breve tentativa de governo conjunto durante o tempo do estado estamental, transformaram-se em cortesãos flexíveis, implorando favores nas mãos de algum monarca absoluto, como Luís XIV. E, além disso, tornou-se seu último recurso, uma vez que o poder militar, agora exclusivamente exercido por ele como tesoureiro das forças, sozinho pode protegê-los da revolta sempre imanente de seus inquilinos, levados ao extremo. Enquanto no tempo da economia natural a coroa era quase sempre aliada dos camponeses e das cidades contra a nobreza, agora temos a união dos reis absolutos, nascidos do estado feudal, com sua nobreza, contra os representantes dos meios econômicos. Desde os dias de Adam Smith, tem sido costume declarar essa revolução fundamental de alguma forma, como se os tolos nobres tivessem vendido seu direito de nascença por um prato de lentilhas, quando trocaram seu domínio por tolos artigos de luxo. Nenhuma visão pode ser mais errônea. Os indivíduos frequentemente erram na 162

N.T.: Veja a referência quanto ao significado de Rittergutsbesitz, ante, página 39.

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O Estado salvaguarda de seus interesses: uma classe por um período prolongado nunca está em erro. O fato é que o sistema de pagamentos em dinheiro fortaleceu o poder central de forma tão poderosa e imediata que, mesmo sem a interposição da sublevação agrária, qualquer resistência da nobreza fundiária teria sido sem sentido. Como mostra a história da antiguidade, o exército de um governo central, financeiramente forte, é sempre superior aos recrutas feudais. O dinheiro permite o armamento de filhos de camponeses, e treiná-los em soldados profissionais, cuja organização sólida é sempre superior à frouxa confederação de uma massa armada de cavaleiros. Além disso, nessa fase, o governo central também podia contar com o auxílio dos batalhões bem armados das guildas urbanas. A pólvora fez o resto na Europa Ocidental. As armas de fogo, porém, são um produto que só pode ser produzido nos estabelecimentos industriais de uma cidade rica. Por causa dessas razões técnicas militares, mesmo aquele senhor feudal que não se importa com os novos luxos estabelecidos e que deseja apenas manter ou aumentar sua posição independente, deve submeter seus territórios à mesma revolução agrária; já que, para ser forte, ele agora precisa antes de tudo ter dinheiro, que na nova ordem das coisas tornou-se o nervus rerum, seja para comprar armas ou para contratar mercenários. Um segundo empreendimento capitalista atacadista, portanto, surgiu através do sistema de pagamentos em dinheiro; além da administração por atacado de latifúndios, a guerra é conduzida como um grande empreendimento comercial — os condottieri aparecem no palco. O mercado está cheio de material para exércitos de mercenários, guardas dispensados dos senhores feudais e jovens camponeses cujas terras foram tomadas pelos senhores. Há casos em que algum pequeno nobre pode subir ao trono de algum principado territorial, como aconteceu muitas vezes na Itália e como foi realizado por Albrecht Wallenstein, mesmo no período da Guerra dos Trinta Anos. Mas isso é uma questão de destino individual, não afetando o resultado final. Os poderes locais desaparecem da disputa de forças políticas como centros independentes de autoridade e retêm o remanescente de sua influência anterior apenas enquanto 158

O Desenvolvimento do Estado Constitucional servem aos príncipes como fonte de suprimentos; isto é, o estado estamental. O aumento infinito do poder da coroa é então reforçado por uma segunda criação do sistema de pagamento em dinheiro, pelo funcionalismo. Contamos em detalhes o círculo vicioso que obrigou o estado feudal a um beco sem saída entre a aglomeração e a dissolução, enquanto seus meirinhos tiveram que ser pagos com “terras e camponeses” e, assim, foram alimentados como rivais potenciais de seu criador. Com o advento dos pagamentos em dinheiro, o círculo vicioso é quebrado. Doravante, o governo central exerce suas funções por meio de empregados assalariados, permanentemente dependentes de seu pagador.163 Daí em diante, é possível um governo permanentemente estabelecido, tensamente centralizado, e surgem impérios, como não existiam desde os desenvolvidos estados marítimos da antiguidade, que também foram fundados nos pagamentos em dinheiro. Essa revolução do mecanismo político foi desencadeada em todos os lugares pelo desenvolvimento da economia monetária — com apenas uma exceção, tanto quanto posso ver, a saber, o Egito. Aqui, de acordo com a declaração de especialistas, nenhuma informação definitiva é obtida, e parece que o sistema de troca de dinheiro aparece como uma instituição amadurecida apenas nos tempos gregos. Até aquela época, o tributo dos camponeses era pago em bens e serviços;164 e ainda assim descobrimos, logo após a expulsão dos hicsos, durante o Novo Império (por volta do século XVI a.C.), que o absolutismo dos reis estava plenamente desenvolvido: “O poder militar é sustentado por mercenários estrangeiros, a administração é exercida

163

164

Eisenhardt, Gesch. der National Oekonomie, p. 9: “Auxiliado pelo novo e mais líquido meio de pagamento em dinheiro, tornou-se possível a constituição de um novo e mais independente estabelecimento de soldados e de oficiais. Como eram pagos apenas periodicamente, tornou-se impossível para eles se tornarem independentes (como os feudatários haviam feito) e depois se voltarem contra o seu pagador.” Thurnwald, l. c., p. 773.

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O Estado por um corpo centralizado de funcionários dependentes do favor real, enquanto a aristocracia feudal desapareceu.”165 Pode parecer que esta exceção confirma a regra. O Egito é um país de excepcional conformação geográfica. Encravado em um estreito compasso, entre as montanhas e o deserto, uma estrada natural, o rio Nilo, atravessa toda a sua extensão e permite o transporte de cargas volumosas com muito mais facilidade do que a estrada mais refinada. E esta estrada facilitou ao faraó reunir os impostos de todos os seus distritos em seus próprios armazéns, as chamadas “casas do rei” 166 e deles abastecer suas guarnições e funcionários públicos com os próprios produtos in naturalibus.167Por essa razão, o Egito, depois de ter se unificado em um império, permanece centralizado, até que as potências estrangeiras extingam sua vida como um “estado”. “Esta circunstância é a fonte do enorme e pleno poder exercido pelo faraó na qual os pagamentos ainda são feitos em bens e serviços; o controle exclusivo e imediato dos objetos de consumo cotidiano estão em suas mãos. O governante distribui a seus empregados apenas as quantidades de toda a massa de bens que lhe parecem boas e adequadas; e como os artigos de luxo estão quase todos exclusivamente em suas mãos, ele também goza por conta disso de uma extraordinária plenitude de poder.”168

Com esta única exceção, onde uma força poderosa executa a tarefa, o poder de circular dinheiro parece em todos os casos ter dissolvido o estado feudal. O custo da revolução recaiu sobre os camponeses e as cidades. Quando a paz é feita, a coroa e os pequenos nobres sacrificam mutuamente o campesinato, dividindo-o, por assim dizer, em duas metades ideais; a coroa concede à nobreza a maior parte das terras comuns dos camponeses e a maior parte de sua força de trabalho que ainda não foi expropriada; a nobreza concede à coroa o direito de 165 166 167 168

Thurnwald, l. c., p. 699. Thurnwald, l. c., p. 709. As instruções nos armazéns circulavam como uma forma de papel-dinheiro. Thurnwald, l. c., p. 711.

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O Desenvolvimento do Estado Constitucional recrutar e tributar tanto os camponeses quanto as cidades. O camponês, que enriqueceu na liberdade, afunda de volta na pobreza e, portanto, na inferioridade social. As antigas potências feudais agora se unem como aliadas para subjugar as cidades, exceto quando, como na Alta Itália, elas se tornam potências centrais feudais. (E mesmo nesse caso, na maior parte, todos caem no poder dos capitães dos mercenários, condottiere). O poder de ataque dos adversários tornou-se mais forte, o poder das cidades diminuiu. Pois com a decadência do campesinato, diminui seu poder de compra e com isso a prosperidade das cidades, baseada nele. As pequenas cidades do país estagnam e empobrecem, e sendo agora incapazes de se defender, caem presas do domínio absolutista dos príncipes territoriais; as cidades maiores, onde a demanda pelos luxos dos nobres criou um forte elemento comercial, dividem-se em grupos sociais e assim desperdiçam sua força política. A imigração que agora se derrama em suas paredes é composta de mercenários demitidos e alquebrados, camponeses despojados, mecânicos empobrecidos das cidades menores; é, em outras palavras, uma imigração proletária. Pela primeira vez aparece, na terminologia de Karl Marx, o “trabalhador livre”, em massa, competindo com sua própria classe nos mercados de trabalho das cidades. E, novamente, a “lei da aglomeração” entra para formar distinções efetivas de classe e propriedade e, assim, dilacerar a população cívica. Lutas selvagens acontecem nas cidades entre as classes; por meio do qual o príncipe territorial, em quase todos os casos, novamente consegue obter o controle. As únicas cidades que podem escapar permanentemente do abraço mortal do poder do príncipe são os poucos “estados marítimos” ou “cidades-estado” genuínos. Como no caso dos estados marítimos, o pivô da vida do estado foi novamente deslocado para outro lugar. Em vez de girar em torno da riqueza investida em propriedades fundiárias, agora gira em torno da riqueza capitalizada, porque, nesse ínterim, a própria propriedade imobiliária tornou-se “capital”. Por que é que o desenvolvimento não se abre, como no caso dos estados marítimos, para a expropriação capitalista do trabalho escravo? 161

O Estado Existem duas razões controladoras, uma interna e outra externa. A razão externa deve ser encontrada no seguinte: a caça de escravos em escala lucrativa é dificilmente possível neste momento em qualquer parte do mundo, uma vez que quase todos os países ao alcance também são organizados como estados fortes. Onde quer que seja possível, como por exemplo nas colônias americanas das potências da Europa Ocidental, ela se desenvolve imediatamente. A razão interna pode ser encontrada na circunstância de que o camponês dos países do interior, em contraste com as condições prevalecentes nos estados marítimos, está sujeito, não a um mestre, mas a pelo menos duas169 pessoas com direito a seu serviço, seu príncipe e seu senhorio. Ambos resistem a qualquer tentativa de diminuir a capacidade de serviço de seus camponeses, pois isso é essencial para seus interesses. Príncipes especialmente fortes fizeram muito por seus camponeses, e.g., aqueles de Brandemburgo-Prússia. Por esta razão, os camponeses, embora miseravelmente explorados, mantiveram sua liberdade pessoal e sua condição de súditos dotados de direitos pessoais em todos os estados onde o sistema feudal havia sido plenamente desenvolvido quando o sistema de pagamentos em dinheiro substituiu o de pagamentos em bens e serviços. A evidência de que esta explicação é correta pode ser encontrada nas relações daqueles estados que foram dominados pelo sistema de troca em dinheiro, antes que o sistema feudal fosse elaborado. Isso se aplica especialmente aos distritos da Alemanha anteriormente ocupados pelos eslavos, mas particularmente à Polônia. Nesses distritos, o sistema feudal ainda não havia sido elaborado de forma tão completa quanto nas regiões onde a demanda por produtos de grãos nos grandes centros industriais ocidentais havia transformado os nobres, sujeitos de direito público, em proprietários de um Rittergut, os sujeitos de interesses econômicos privados. Nesses distritos, os camponeses estavam sujeitos ao dever de prestar serviço apenas a um senhor, que era ao mesmo tempo seu suserano e senhorio; e por causa 169

Na Alemanha medieval, os camponeses pagam tributos, em muitos casos, não apenas ao senhor da terra e ao príncipe territorial, mas também ao prefeito e ao oficial de justiça.

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O Desenvolvimento do Estado Constitucional disso, surgiram as repúblicas de nobres acima mencionadas, que, na medida em que a pressão de seus vizinhos mais avançados permitia, tendiam a se aproximar do sistema capitalista de exploração do trabalho escravo.170 O seguinte é tão bem conhecido que pode ser declarado brevemente. O sistema de troca por meio de dinheiro amadurece no capitalismo, e faz nascer novas classes em justaposição aos proprietários de terra; o capitalista exige direitos iguais aos das ordens anteriormente privilegiadas e, finalmente, os obtém revolucionando a plebe inferior. Nesse ataque à ordem das coisas sagradamente estabelecida, os capitalistas se unem às classes inferiores, naturalmente sob a bandeira da “lei natural”. Mas assim que a vitória foi alcançada, a classe baseada na riqueza móvel, a chamada classe média, volta suas armas contra as classes baixas, faz as pazes com seus antigos oponentes e invoca em sua luta reacionária contra os proletários, sua aliados tardios, a teoria da legitimidade, ou faz uso de uma mistura maligna de argumentos baseados em parte na legitimidade e em parte no pseudoliberalismo. Desta forma, o estado gradualmente amadureceu do estado ladrão primitivo, através dos estágios do estado feudal desenvolvido, através do absolutismo, até o estado constitucional moderno.

(d) O Estado Constitucional Moderno Dediquemos um momento à mecânica e à cinética do estado moderno. Em princípio, é a mesma entidade que o estado ladrão primitivo ou o estado feudal desenvolvido. Acrescentou-se, no entanto, um novo elemento — o funcionalismo, que pelo menos terá esse objetivo: na disputa das várias classes, representará os interesses comuns do estado como um todo. Até que ponto esse propósito é atendido, investigaremos 170

Cf. com isto F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum etc., livro II, cap. 3.

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O Estado em outro lugar. Vamos agora estudar o estado em relação às características que ele trouxe de seus estágios juvenis. A sua forma continua a ser a dominação, o seu conteúdo continua a ser a exploração dos meios econômicos. Esta continua limitada pelo direito público, que por um lado protege a tradicional “distribuição” dos produtos totais da nação; por outro, procura manter em plena eficiência os pagadores de impostos e aqueles obrigados a prestar serviço. A política interna do estado continua a girar no caminho que lhe é prescrito pelo paralelogramo da força centrífuga das disputas de classe e pelo impulso centrípeto dos interesses comuns do estado; e sua política externa continua a ser determinada pelos interesses da classe dominante, agora compreendendo além dos interesses fundiários também os interesses endinheirados. Em princípio, existem agora, como antes, apenas duas classes a serem distinguidas: uma classe dominante, que adquire mais do produto total do trabalho do povo — os meios econômicos — do que contribuiu, e uma classe sujeita, que obtém menos da riqueza resultante do que contribuiu. Cada uma dessas classes, por sua vez, conforme o grau de desenvolvimento econômico, divide-se em mais ou menos subclasses ou estratos, que se graduam de acordo com a sorte ou má sorte de seus padrões econômicos. Entre os estados altamente desenvolvidos, encontra-se introduzida entre as duas classes principais uma classe de transição, que também pode ser subdividida em vários estratos. Seus membros são obrigados a prestar serviços à classe alta, enquanto têm direito a receber serviços das classes abaixo deles. Para ilustrar com um exemplo, encontramos na classe dominante na Alemanha moderna pelo menos três estratos. Primeiro vêm os grandes magnatas de terras, que são ao mesmo tempo os principais acionistas dos grandes empreendimentos industriais e empresas mineradoras; em seguida, os capitães da indústria e os “bancocratas”, que também em muitos casos se tornaram proprietários de grandes propriedades. Em consequência disso, eles se amalgamam rapidamente com a primeira camada. Tais são, por exemplo, os príncipes Fugger, ex164

O Desenvolvimento do Estado Constitucional banqueiros de Augsburg, e os condes de Donnersmarck, proprietários de extensas minas na Silésia. E, finalmente, há os pequenos nobres do campo, que doravante denominaremos junker ou “proprietário de terras”. A classe sujeita, em todo o caso, consiste em pequenos camponeses, trabalhadores agrícolas, operários de fábricas e minas, com pequenos artesãos e funcionários subordinados. As “classes médias” são as classes da transição: compostas pelos donos de grandes e médias fazendas, pelos pequenos fabricantes e pelos mecânicos mais bem pagos, além daqueles ricos “burgueses”, como os judeus, que não enriqueceram o suficiente para superar certas dificuldades tradicionais que se opõem à sua chegada ao estágio de casamentos mistos com a classe alta. Todos eles prestam serviço não correspondido à classe alta e recebem serviço não correspondido das classes mais baixas. Isso determina o resultado que ocorre ou para o estrato como um todo ou para os indivíduos nele; isto é, ou uma aceitação completa na classe alta, ou um afundamento absoluto na classe baixa. Das classes de transição (alemãs), os grandes agricultores e os fabricantes de riqueza média ascenderam, enquanto a maioria dos artesãos desceu para as classes mais baixas. Chegamos assim à cinética das classes. Os interesses de cada classe põem em movimento um corpo real de forças associadas, que os impulsionam com um momento definido para a consecução de um objetivo definido. Todas as classes têm o mesmo objetivo; a saber, o resultado total do trabalho produtivo de todos os habitantes de um determinado estado. Cada classe tenta obter a maior parte possível da produção nacional; e como todos lutam identicamente pelo mesmo objetivo, a disputa de classe resulta. Essa disputa de classes é o conteúdo de toda a história dos estados, exceto na medida em que o interesse do estado como um todo produz ações comuns. Podemos desconsiderá-los neste ponto, uma vez que receberam destaque indevido pelo método tradicional de estudo histórico e levam a visões unilaterais. Historicamente, esta disputa de classe é mostrada como uma luta de partido. Um partido é originariamente e em sua essência nada mais que uma representação organizada de uma classe. Sempre que uma classe, devido à 165

O Estado diferenciação social, se divide em numerosas subclasses com diversos interesses separados, o partido que pretende representá-la se desintegra na primeira oportunidade em uma massa de minúsculos partidos, e estes serão aliados ou inimigos mortais de acordo com o grau de divergência dos interesses de classe. Onde, por outro lado, um antigo contraste de classe desapareceu por diferenciação social, os dois antigos partidos amalgamam-se em pouco tempo em um novo partido. Como exemplo do primeiro caso, podemos recordar a separação dos partidos de artesãos e de antissemitas do partido do liberalismo alemão, como consequência do fato de que o primeiro representava grupos descendentes, enquanto o segundo representava os ascendentes. Um exemplo característico da segunda categoria pode ser encontrado no amálgama político que uniu no sindicato dos fazendeiros os pequenos proprietários de terra do interior do Elba Oriental com os camponeses ricos do Elba Ocidental em grandes plantações. Como o pequeno proprietário de terras afunda e o fazendeiro sobe, eles se encontram no meio do caminho. Toda política partidária pode ter apenas um significado, a saber, obter para a classe representada uma parcela tão grande quanto possível da produção nacional total. Em outras palavras, as classes privilegiadas pretendem manter sua parcela, pelo menos, na escala antiga e, se possível, aumentá-la até o máximo que permita às classes exploradas apenas uma mera existência, para mantê-las aptas a fazer o seu trabalho, tal como nas fases do apicultor. Seu objetivo é confiscar todo o produto excedente dos meios econômicos, um excedente que aumenta enormemente à medida que a população se torna mais densa e a divisão do trabalho mais especializada. Por outro lado, o grupo das classes exploradas gostaria de reduzir seu tributo ao ponto zero e consumir todo o produto por conta própria; e as classes de transição trabalham tanto quanto possível para reduzir seu tributo às classes superiores, enquanto ao mesmo tempo se esforçam para aumentar sua renda não correspondida das classes inferiores. Este é o objetivo e o conteúdo de todas as disputas partidárias. A classe dominante conduz esta luta com todos os meios que seu domínio 166

O Desenvolvimento do Estado Constitucional adquirido lhe deu. Em consequência disso, a classe dominante cuida para que a legislação seja moldada em seu interesse e para servir a seu propósito — legislação de classe. Essas leis são então aplicadas de tal maneira que o dorso embotado da espada da justiça é voltado para cima, enquanto seu fio afiado é voltado para baixo — justiça de classe. A classe governante em cada estado usa a administração do estado no interesse daqueles que pertencem a ela sob um duplo aspecto. Em primeiro lugar, reserva a seus partidários todos os cargos de destaque e todos os cargos de influência e lucro, no exército, nos ramos superiores do serviço governamental e nos cargos públicos; e em segundo lugar, por meio dessas mesmas agências, ela dirige toda a política do estado, faz com que sua política de classe gere guerras comerciais, políticas coloniais, tarifas protecionistas, legislação que melhora em algum grau as condições das classes trabalhadoras, políticas de reforma eleitoral, etc. Enquanto os nobres governaram o estado, eles o exploraram como se administrassem um latifúndio; quando a burguesia obtém o domínio, o estado é explorado como se fosse uma fábrica. E a religião de classe cobre todos os defeitos, desde que possam ser suportados, com o seu “não toque nos fundamentos da sociedade”. Ainda existem no direito público uma série de privilégios políticos e posições econômicas estratégicas que favorecem a classe dominante: tal como, na Prússia, um sistema de votação que dá aos plutocratas uma vantagem indevida sobre as classes menos favorecidas, uma limitação da direitos constitucionais de livre reunião, regulamentos para servidores, etc. Por isso, a luta constitucional, travada por milhares de anos e dominando a vida do estado, ainda está incompleta. A luta por melhores condições de vida, outra fase da luta partidária e de classes, geralmente ocorre nos corredores dos órgãos legislativos, mas muitas vezes é realizada por meio de manifestações nas ruas, greves gerais ou insurreições escancaradas. Mas a plebe final e definitivamente aprendeu que esses remanescentes de centros estratégicos feudais não constituem, exceto em instâncias tardias, a fortaleza final de seus oponentes. Não é nas condições políticas, mas nas econômicas que a causa deve ser buscada, 167

O Estado o que fez com que mesmo no estado constitucional moderno a “distribuição da riqueza” não tenha sido alterada em princípio. Assim como nos tempos feudais, a grande massa dos homens vive em amarga pobreza; mesmo sob as melhores condições, eles têm as escassas necessidades da vida, conquistadas pelo trabalho forçado árduo, esmagador e estupefato, não mais exigido pelo direito de exploração política, mas efetivamente arrancado dos trabalhadores por suas necessidades econômicas. E assim como antes nos dias não reformados, a estreita minoria, uma nova classe dominante, um conglomerado de detentores de antigos privilégios e de novos-ricos, reúne-se no tributo, agora crescido até a imensidão; e não apenas não presta nenhum serviço para isso, mas ostenta sua riqueza em face do trabalho por uma vida desenfreada. A disputa de classe doravante é dedicada cada vez mais a essas causas econômicas, baseadas em sistemas viciosos de distribuição; e toma forma numa luta corpo a corpo entre exploradores e proletariado, travada por greves, sociedades cooperativas e sindicatos. A organização econômica primeiro força o reconhecimento e depois a igualdade de direitos; então ele lidera e finalmente controla os destinos políticos do partido trabalhista. No final, portanto, o sindicato controla o partido. Até agora, o desenvolvimento do estado progrediu na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Se não tivesse sido acrescentado ao estado moderno um elemento inteiramente novo, seu funcionalismo, o estado constitucional, embora mais sutilmente diferenciado e mais poderosamente integrado, seria, no que diz respeito à forma e ao conteúdo, um pouco diferente de seus protótipos. Por uma questão de princípio, os funcionários do estado, pagos com fundos do estado, são afastados das lutas econômicas de interesses conflitantes; e, portanto, é justamente considerado impróprio para qualquer um a serviço do governo participar de qualquer empreendimento lucrativo, e em nenhuma burocracia bem ordenada é tolerada. Se fosse possível realizar completamente o princípio, e nem todo funcionário, mesmo o melhor deles, trouxesse consigo aquele conceito de estado mantido pela classe da qual ele se originou, 168

O Desenvolvimento do Estado Constitucional encontraríamos no funcionalismo, de fato, aquela força moderadora e criadora de ordem, afastada do conflito de interesses de classe, por meio da qual o estado pudesse ser conduzido em direção a seu novo objetivo. Ela se tornaria o fulcro de Arquimedes de onde o mundo do estado poderia ser movido. Mas o princípio, lamentamos dizer, não pode ser executado completamente; e além disso, os funcionários não deixam de ser homens reais, não se tornam meras abstrações sem consciência de classe. Isso pode ser bem diferente do fato de que, pelo menos na Europa, a participação em uma forma definida de empreendimentos — a saber, administrar grandes propriedades fundiárias — é considerada um meio favorável de progredir no serviço do estado, e continuar a sêlo enquanto a nobreza fundiária preponderar. Em consequência disso, muitos funcionários do Continente, e pode-se mesmo dizer os funcionários mais influentes, estão sujeitos à pressão de enormes interesses econômicos; e são inconscientemente, e muitas vezes contra sua vontade, trazidos para as disputas de classe. Existem fatores, como mesadas extras feitas por pais ou sogros, ou propriedades hereditárias, e afinidade com as pessoas que controlam os interesses fundiários e endinheirados ou aliados a eles, por meio dos quais a solidariedade de interesses entre a classe dominante é algo aumentado pelo fato de que esses funcionários, praticamente sem exceção, são tirados de uma classe com a qual desde a juventude eles mantêm relações de intimidade. Se não houvesse, entretanto, tal unidade de interesses econômicos, o comportamento dos funcionários seria inteiramente influenciado pelos puros interesses do estado. Por isso, via de regra, o quadro de funcionários mais eficiente, objetivo e imparcial encontra-se nos estados pobres. A Prússia, por exemplo, era anteriormente devedora de sua pobreza por aquele corpo incomparável de funcionários que a administravam em meio a todos os seus problemas. Esses funcionários do estado estavam, na verdade, em consonância com a regra acima enunciada, completamente dissociados de qualquer interesse em ganhar dinheiro, direta ou indiretamente. Esse corpo ideal de funcionários é uma ocorrência rara nos estados mais ricos. O desenvolvimento plutocrático atrai cada vez mais 169

O Estado o indivíduo para o seu vórtice, roubando-lhe a sua objetividade e a sua imparcialidade. E, no entanto, os funcionários continuam cumprindo o dever que o estado moderno exige deles, de preservar os interesses do estado em oposição aos interesses de qualquer classe. E esse interesse é preservado por eles, mesmo que contra sua vontade, ou pelo menos sem clara consciência do fato, de tal maneira que os meios econômicos, que deram origem à burocracia, acabam avançando em seu tedioso caminho de vitória, contra os meios políticos. Ninguém duvida que os funcionários fazem a política de classe que lhes é prescrita pela constelação de forças que operam no estado; e, nessa medida, eles certamente representam a classe mestra da qual surgiram. Mas eles amenizam a amargura da luta, opondo-se aos extremistas em ambos os campos e defendendo emendas às leis existentes, quando o desenvolvimento social se torna maduro para sua promulgação, sem esperar até que a disputa sobre elas se torne aguda. Onde governa uma raça eficiente de príncipes, cujo representante momentâneo adota a política do rei Frederico, que se considerava apenas como “o primeiro servidor do estado”, o que foi dito acima se aplica a ele em grau maior, ainda mais assim como seus interesses, como beneficiário permanente da existência continuada do estado, o levariam antes de tudo a fortalecer as forças centrípetas e a enfraquecer os poderes centrífugos. No decorrer do que precede, notamos em muitos casos a solidariedade natural entre o príncipe e o povo como uma força histórica de grande valor. No estado constitucional completo, no qual o monarca, embora num grau infinitesimal, é um súdito de interesses econômicos privados, ele tende a ser quase completamente “um funcionário”. Essa comunidade de interesses é enfatizada aqui com muito mais força do que no estado feudal ou no estado despoticamente governado, onde o domínio, pelo menos em metade de sua extensão, é baseado nos interesses econômicos privados do príncipe. Mesmo em um estado constitucional, a forma externa de governo não é o fator decisivo; a luta das classes continua e leva ao mesmo resultado na república e na monarquia. Apesar disso, deve-se admitir que há mais probabilidade de que, tudo o mais constante, a curva de 170

O Desenvolvimento do Estado Constitucional desenvolvimento do estado em uma monarquia seja mais generalizada, com menos incurvidade secundária, pela razão de que o príncipe é menos afetado por perdas de popularidade, não sendo tão sensível a rajadas momentâneas de desaprovação tal como um presidente eleito por um curto mandato de anos, e pode, portanto, moldar suas políticas por períodos de tempo mais longos. Não devemos deixar de mencionar uma forma especial de funcionalismo, as equipes científicas das universidades, cuja influência no desenvolvimento ascendente do estado não deve ser subestimada. Isso não é apenas uma criação dos meios econômicos, como o foram os próprios funcionários, mas ao mesmo tempo representa uma força histórica, a necessidade de causalidade, que encontramos até agora apenas como um aliado do estado conquistador. Vimos que essa necessidade criou superstição enquanto o estado estava em um estágio primitivo; seu bastardo, o tabu, descobrimos em todos os casos ser um meio eficaz de controle pela classe dominante. A partir dessas mesmas necessidades, então, a ciência foi desenvolvida, atacando e destruindo a superstição e, assim, auxiliando na preparação do caminho da evolução. Esse é o incalculável serviço histórico da ciência e principalmente das universidades.

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VI A Tendência do Desenvolvimento do Estado Nós nos esforçamos para descobrir o desenvolvimento do estado de seu passado mais remoto para os tempos presentes, seguindo seu curso como um explorador, de sua fonte para o fluxo de sua efluência nas planícies. Amplas e poderosas são suas ondas que passam até desaparecer na névoa do horizonte, em regiões inexploradas e, para o observador do dia presente, indetectáveis. Tão amplas e poderosas quanto, o fluxo da história — e até o dia presente toda a história tem sido a história de estados — vai além de nossa visão, e seu curso é encoberto pelas névoas do futuro. Será que devemos ousar levantar hipóteses acerca do rumo futuro, até que “com alegria desenfreada ele afunde nos braços de seu pai esperançoso e expectante”? (Prometheus de Goethe.) É possível estabelecer um prognóstico alicerçado cientificamente em relação ao futuro desenvolvimento do estado? Eu acredito nessa possibilidade. A tendência171 do desenvolvimento do estado inequivocamente leva a um ponto: visto que em seus aspectos essenciais, o estado irá deixar de ser os “meios políticos desenvolvidos” e irá se tornar “uma cidadania de homens livres”. Em outras palavras, sua casca exterior irá se manter, nos aspectos essenciais, na forma que foi desenvolvida no estado constitucional, no qual a administração será exercida por um funcionalismo. Mas o conteúdo dos estados até agora conhecidos terão mudado em seu elemento vital pelo desaparecimento da exploração econômica de uma classe por outra. E uma vez que o estado irá, por isso, existir sem o interesse das classes ou classe, a burocracia do futuro irá verdadeiramente ter alcançado o ideal de guardião imparcial do 171

“Tendência, i.e., uma lei que, cuja execução absoluta é controlada por circunstâncias compensatórias, ou por elas é retardada e enfraquecida.” Marx, Kapital, vol. III, p. 215.

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O Estado interesse comum, que hoje em dia tenta laboriosamente alcançar. O “estado” do futuro será guiado pela “sociedade” em auto-governo. Bibliotecas foram repletas de livros com escritos sobre a delimitação dos conceitos “estado” e “sociedade”. O problema, entretanto, do nosso ponto de vista, tem uma solução simples. O “estado” é o meio político completamente desenvolvido, e a sociedade é o meio econômico plenamente desenvolvido. Até agora o estado e a sociedade estavam indissoluvelmente interligados: na “cidadania de homens livres”, não haverá nenhum “estado” mas apenas “sociedade”. Esse prognóstico do futuro desenvolvimento do estado contém por inclusão todas essas fórmulas famosas, através das quais, os grandes historiadores filosóficos têm tentado determinar o “valor resultante” da história universal. Ela contém o “progresso de atividade bélica para trabalho pacífico” de St. Simon, e também o “desenvolvimento da escravidão para a liberdade” de Hegel; a “evolução da humanidade” de Herder, assim como “a penetração da razão através da natureza” de Schleiermacher. Nos últimos tempos se perdeu o feliz otimismo dos escritores clássicos e humanistas; o pessimismo sociológico governa o espírito dos dias recentes. O prognóstico aqui colocado ainda não pode alegar ter muitos adeptos. Não somente as pessoas que obtêm os lucros pelo domínio, graças à sua obsessão pelo espírito de sua classe o consideram um conceito incrível; aqueles pertencentes à classe subjugada também consideram-no com o máximo ceticismo. É verdade que a teoria proletária, em matéria de princípios, prediz identicamente o mesmo resultado. Mas os adeptos de tal teoria não acreditam que seja possível pelo caminho da evolução, mas apenas através da revolução. E então ela é pensada como uma imagem de uma “sociedade” variando em todos os aspectos daquela que evoluiu pelo progresso da história: em outras palavras, como uma organização dos meios econômicos, como um sistema de economia sem competição e mercado, como coletivismo. A teoria anarquista torna a forma e o conteúdo do “estado” tão inseparáveis como a cara e a coroa de uma moeda: não há “governo” 174

A Tendência do Desenvolvimento do Estado sem exploração! Ela iria, portanto, esmagar tanto a forma como o conteúdo do estado, e então trazer uma condição de anarquia, mesmo que deste modo todas as vantagens econômicas da divisão do trabalho devam ser sacrificadas. Mesmo um grande pensador como o falecido Ludwig Gumplowicz, que foi o primeiro a colocar a fundação na qual a presente teoria do estado se desenvolveu, é um pessimista sociológico; e pelas mesmas razões dos anarquistas, dos quais ele combatia tão violentamente. Ele também considera como eternamente inseparáveis a forma e o conteúdo, o governo e a exploração de classes; entretanto, dado que ele, e acho que está correto, não considera possível que muitas pessoas talvez vivam juntas sem uma força coercitiva investida em um algum governo, ele declara que a classe-estado é “imanente” e não apenas uma categoria histórica. Apenas uma pequena fração de liberais sociais, ou socialistas liberais, acredita na evolução da sociedade sem o domínio de classe e exploração de classe das quais devem garantir ao indivíduo, além de política, a liberdade econômica do movimento, dentro das óbvias limitações dos meios econômicos. Esse era o credo do velho liberalismo social, dos dias pré-Manchester, enunciados por Quesnay e especialmente por Adam Smith, e novamente levados para os tempos modernos por Henry George e Theodore Hertzka. Esse prognóstico pode ser fundamentado de duas maneiras, uma delas através da história e da filosofia, a outra pela economia política, como uma tendência do desenvolvimento do estado, e como uma tendência da evolução da economia, os dois apontam claramente para um mesmo ponto. A tendência do desenvolvimento do estado foi mostrado anteriormente como um vitorioso e firme combate entre os meios econômicos contra os meios políticos. Vimos que, no início, o direito aos meios econômicos, o direito à igualdade e à paz, era restringido à um pequeno círculo de uma horda unida pelos seus laços sanguíneos, um legado de condições pré-humanas da sociedade;172 enquanto fora 172

Cf. a excelente obra de Peter Kropotkin, Mutual Aid in its Development.

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O Estado dos limites dessa ilha da paz rugia o tufão dos meios políticos. Mas nós vimos a expansão cada vez maior dos círculos dos quais as leis de paz expulsavam seus adversários, e vimos em todos os lugares seu avanço conectado com o avanço dos meios econômicos, do escambo de grupos por equivalentes, entre si. A primeira troca talvez tenha sido a troca do fogo, após isso a troca de mulheres, e finalmente a troca de bens, o domínio da paz constantemente ampliando suas fronteiras. Ele protegia os mercados, e então as estradas que levavam a eles, e finalmente protegia os mercadores que viajavam por essas ruas. No curso dessa discussão foi mostrado como o “estado” absorveu e desenvolveu essas organizações para a paz, e como, em consequência, elas retrocedem cada vez mais o direito com base no mero poder. A lei dos mercadores se torna a lei da cidade; a cidade industrial, os meios econômicos desenvolvidos, minam o estado feudal, os meios políticos desenvolvidos; e finalmente a população cívica, em uma batalha aberta, aniquila os remanescentes políticos do estado feudal, e reconquista para toda a população do estado a liberdade e o direito à igualdade, a lei urbana se torna lei pública e finalmente lei internacional. Além disso, em nenhum horizonte pode ser avistada qualquer força capaz de resistir efetivamente a essa tendência até agora eficiente. Pelo contrário, a interferência do passado, que temporariamente bloqueou esse processo, está obviamente se tornando cada vez mais fraca. As relações internacionais de comércio e troca adquiriram entre as nações uma preponderante importância sobre a diminuição das relações bélicas e políticas; e na esfera intranacional, em razão do mesmo processo de desenvolvimento econômico, o capital móvel, a criação do direito à paz, prepondera cada vez mais sobre os direitos de propriedade fundiária, a criação do direito de guerra. Ao mesmo tempo, cada vez mais a superstição perde sua influência. E, portanto, justificase concluir que a tendência assim marcada irá levar ao seu fim lógico, a exclusão dos meios políticos e todas as suas obras, até que a completa vitória dos meios econômicos seja atingida. Mas pode-se objetar que no estado constitucional moderno todos os resquícios mais proeminentes da antiga lei de guerra já foram eliminados. 176

A Tendência do Desenvolvimento do Estado Pelo contrário, sobrevive uma quantidade considerável de remanescentes dessas instituições, disfarçadas, é verdade, em trajes econômicos, e aparentemente não mais um privilégio legal, mas apenas um direito econômico, a donidade de grandes propriedades — a primeira criação e o último refúgio dos meios políticos. Seu disfarce preservou-a do mesmo destino de todas as outras criações feudais. E ainda, esse último remanescente do direito de guerra é indubitavelmente o último obstáculo especial no caminho da humanidade; e sem dúvida o desenvolvimento da economia está a caminho de destruí-la. Para fundamentar essas observações eu tenho de referir o leitor a outros livros, onde eu dei detalhada evidência do que está acima e que não posso repeti-lo no espaço alocado aqui em extensão.173 Eu posso apenas reafirmar os principais pontos feitos nesses livros. Não há diferença em princípio entre a distribuição dos produtos totais dos meios econômicos entre as separadas classes de um estado constitucional, a chamada “distribuição capitalista", aquela predominante no estado feudal. Todas as escolas econômicas mais importantes coincidem em achar que a causa disso, que a oferta de trabalhadores “livres” (isto é, livre politicamente e economicamente sem capital, de acordo com Karl Marx) excede perpetuamente a demanda, e que, portanto, existe “a relação social do capital”. Há “constantemente dois trabalhadores buscando um mestre por trabalho, e diminuindo, uns pelos outros, os salários”; e, portanto, a “mais-valia” permanece com a classe capitalista, enquanto o trabalhador nunca recebe a chance de formar capital por si mesmo e se tornar um empregador. De onde vem essa oferta excedente de trabalhadores livres? A explicação da teoria “burguesa”, segundo a qual essa oferta excedente é causada pela superprodução de filhos de pais proletários, é

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Cf. F. Oppenheimer, Die Siedlungsgenossenschaft etc., Berlim, 1896, e seu Grossgrundeigentum und soziale Frage, Berlim, 1898.

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O Estado baseada em uma falácia lógica, e é contradita por todos os fatos conhecidos.174 A explicação da teoria proletária segundo a qual o processo capitalista de produção por si só produz “trabalhadores livres”, por configurar de novo e de novo novas máquinas de economia de mão de obra, também é baseada numa falácia lógica e da mesma forma é contradita por todos os fatos conhecidos.175 A evidência de todos os fatos mostra, e a conclusão pode ser deduzida sem o medo de contradição, que o excesso de oferta de “trabalhadores livres” é descendente do direito de possuir propriedades fundiárias em grandes propriedades; e que a emigração para as cidades e para o exterior a partir dessas propriedades fundiárias são as causas da distribuição capitalista. Sem dúvida, há uma tendência crescente no desenvolvimento econômico pela qual a ruína das vastas propriedades fundiárias será efetuada. O sistema é seu sangramento até a morte, sem esperança de salvação, causada pela liberdade dos ex-servos — a consequência necessária do desenvolvimento de cidades. Tão logo os camponeses obtiveram o direito de se deslocar sem o passaporte dos senhores de terra (Freizuegigkeit em alemão), desenvolveu-se a chance de escapar dos países que antes os oprimiam. O sistema de emigração criou “a competição do exterior” junto com a queda, no Continente, de preços para produtos da fazenda, e fez necessários salários perpetuamente crescentes. Por esses dois fatores o aluguel de terreno é reduzido por dois lados, e deve gradualmente descer até o ponto zero, já que aqui também não há força contrária a ser reconhecida por meio da qual o processo possa ser desviado.176 Portanto, o sistema de vastas

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Cf. F. Oppenheimer, Bevölkerungsgesetz des T. R. Malthus. Darstellung and Kritik, Berlim-Bern, 1901. Cf. F. Oppenheimer, Grundgesetz der Marxschen Gesellschaftslehre, Darstellung und Kritik, Berlim, 1903. Cf. F. Oppenheimer, Grundgesetz der Marxschen Gesellschaftslehre, Part IV., particularmente o capítulo doze: “Die Tendenz der kapitalistischen Entwicklung.”

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A Tendência do Desenvolvimento do Estado propriedades territoriais cai por terra.177 Quando, no entanto, ele desaparecer, não pode haver excesso de oferta de “trabalhadores livres”. No contrário, "dois mestres irão correr atrás de um trabalhador e eles devem aumentar o preço por si mesmos”. Não haverá “mais-valia” para a classe capitalista, pois o trabalhador ele mesmo pode formar capital e se tornar um empregador. Por este o último vestígio dos meios políticos terá sido destruído, e apenas os meios econômicos exercerão influência. O conteúdo de tal sociedade é a “economia pura”178 de troca equivalente de commodities com commodities, ou de força de trabalho com commodities, e a forma política dessa sociedade será a da “cidadania de homens livres”. Essa dedução teorética é, além disso, confirmada pela experiência da história. Onde quer que tenha havido uma sociedade em que vastas propriedades não existiam para que se obtivesse um aluguel crescente, a “economia pura” existiu, e a sociedade aproximou a forma do estado para aquela da “cidadania de homens livres”. Tal comunidade foi achada na Alemanha nos quatro séculos179 por volta de 1000 d.C., onde o sistema primitivo de propriedades vastas foi desenvolvido no domínio socialmente inofensivo de territórios vastos, até cerca o ano de 1400, quando as grandes propriedades recentemente surgidas, criadas pelos meios políticos, as guerras dos ladrões nos países anteriormente eslavos, expulsaram os colonos das terras a leste do Elba.180 Tal comunidade era o estado mórmon de Utah, que não mudou muito nesse aspecto, onde uma legislação sábia de terras permitia a posse apenas

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Hoje, ao ler a prova da nova edição de 1929, esta profecia, impressa pela primeira vez em 1896, é quase totalmente cumprida. A grande propriedade fundiária russa desapareceu completamente; na Romênia, na Polônia, no sul da Eslavinia e na Tchecoslováquia, ela foi massivamente reduzida; na Alemanha, instalou-se uma crise em que, desta vez, a empobrecida Prússia não poderia mais implorar, mesmo que quisesse. Cf. F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum und soziale Frage, Berlim, 1898. Livro I, capítulo 2, seção 3, “Physiologie des sozialen Körpers”, pp. 57 et seq. Cf. F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum, livro II, capítulo 2, seç. 3, p. 322. Cf. F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum, livro II, capítulo 3, seç. 4, especialmente pp. 423 et seq.

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O Estado fazendas de médio e pequeno porte.181 Tal comunidade seria encontrada na cidade e condado de Vinlândia, Iowa, EUA,182 desde que cada colono pudesse obter terra, sem o aumento do aluguel. Tal comunidade é, além de todas as outras, a Nova Zelândia, cujo governo favorece com todas as suas forças a posse de pequenas e médias propriedades de terra, enquanto ao mesmo tempo dissolve e estreita, por todos os meios ao seu alcance, as grandes propriedades fundiárias, que por sinal, por não haver trabalhadores em excesso, são quase incapazes de produzir aluguéis.183 Em todos esses casos há um surpreendente bem-estar equalizado, talvez não mecanicamente igual; mas não há riqueza, pois o bem-estar é o controle sobre os artigos de consumo, enquanto a riqueza é o domínio da raça humana. Em nenhum desses casos os meios de produção, “capital”, produzindo nenhuma mais-valia; não há trabalhadores “livres” e não há “relação de capital”,184 e a forma política dessas comunidades se aproxima muito de uma “cidadania de homens livres” e tende a se aproximar dela cada vez mais, na medida em que a pressão dos estados vizinhos, organizados e baseados nas leis da guerra, permite seu desenvolvimento. O “estado” se decompõe ou então gera países novos como Utah e a Nova Zelândia, retorna a um estágio rudimentar de desenvolvimento; enquanto a livre autodeterminação dos homens livres, adquirida com dificuldade com uma luta de classes que constantemente tende a penetrar mais fundo e mais profundamente. Portanto, no Império Alemão havia um desenvolvimento paralelo entre a ascensão política das uniões das cidades livres imperiais, o declínio dos estados feudais, a emancipação dos ofícios, então ainda compreendendo toda a “plebe” 181

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Cf. F. Oppenheimer, “Die Utopie als Tatsache”, Zeitschrift für SozialWissenschaft, 1899, vol. II, pp. 190 et seq. Reimpresso na coleção de meus discursos e ensaios: Wege zur Gemeinschaft, Jena 1924. Cf. F. Oppenheimer, Siedlungsgenossenschaft, pp. 477 et seq. Cf. André Siegfried, La démocratie en Nouvelle Zelande, Paris, 1904. Isso é dito por ninguém menos que o próprio Karl Marx, no último (25º) capítulo do primeiro volume de seu Kapital, cujo estudo cuidadoso não pode ser recomendado o suficiente a todos os marxistas, especialmente aos líderes dos sovietes russos.

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A Tendência do Desenvolvimento do Estado das cidades, e o declínio do controle patrício do governo da cidade. Esse desenvolvimento beneficente foi interrompido pelo surgimento de novos estados feudais primitivos na fronteira oriental do antigo Império Alemão, e, portanto, o florescimento econômico da cultura alemã foi arruinado. Quem quer que acredite em um propósito consciente na história pode dizer que a raça humana precisava passar por outro ensino de sofrimento antes que pudesse ser redimida. A Idade Média havia descoberto o sistema de trabalho livre, mas não havia o desenvolvido até sua capacidade ou eficiência máxima. Ela seria reservada para a nova escravidão do capitalismo para descobrir e desenvolver o incomparavelmente mais eficiente sistema de trabalho cooperativo, a divisão de trabalho nas oficinas, a fim de coroar o homem como o governante das forças naturais, como rei do planeta. A escravidão da antiguidade e do capitalismo moderno já foi necessária; agora se tornou supérflua. De acordo com a história, todo cidadão livre de Atena tinha cinco escravos humanos; mas nós temos oferecido aos nossos concidadãos da sociedade moderna uma vasta massa de poder escravizado, escravos de aço, que não sofrem na criação de valores. Desde então, amadurecemos em direção a uma civilização tão superior à civilização do tempo de Péricles, quanto a população, o poder e as riquezas de comunidades modernas excedem aquelas do pequeno estado de Ática. Atenas estava condenada à dissolução — pela razão de usar a escravidão como uma instituição econômica, por causa dos meios políticos. Tendo entrado uma vez nesse caminho, não havia outra saída a não ser a morte para a população. Nosso caminho levará à vida. A mesma conclusão foi encontrada pela visão histórico-filosófica, que levava em conta a tendência de desenvolvimento do estado, ou o estudo da economia política, que levam em conta a tendência do desenvolvimento econômico; isto é, que os meios econômicos vencem ao longo de todo o decurso, enquanto os meios políticos desaparecem da vida de sociedade, naquela de suas criações, que é a mais antiga e mais tenaz da vida; o capitalismo decai com grandes latifúndios e arrendamentos de terra. 181

O Estado Esse foi o caminho de sofrimento e salvação da humanidade, sua Golgotha e ressurreição ao reino eterno — da guerra à paz, da divisão hostil de hordas para a unidade pacífica da humanidade, da brutalidade à humanidade, do Estado Ladrão para a Cidadania de Homens Livres.

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