O direito da Guerra e Paz [1]
 8574293458, 8574294039, 8574294047

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l

Coleção Clássicos do Direito Internacional Coleção coordenada por Amo Dal Ri Júnior

Hugo

GROTIUS Volume 1

O DIREITO

DA GUERRAE DAPAZ (De Jure Belli ac Pacis)

l\'adução de Cito Mioranza SBD-FFLCH-USP

llllllllllllllll 262331

e

Edltorq an!](il

ljuÍ 2004

Ü

,/3x'44a.z Título original: .DeJwe .BeiZ acPacü(publicado

em 1625)

'h'ês volumes nos quais se explicam

'+. ''\

O Direito de Natureza e das Gentes

e \anbém As CoisasPrincipais do Direito Público ©' 2004, Editora Unijuí Rua do Comércio, 1364 Caixa Postal 560 98700-000 - ljuí - RS

-- Brasil -Fone: (0 55) 3332-0217 Fax: (0 5) 3332-0343 e'mail: é[email protected]

http://www.unijui.tche.br/unijui/editora/ .EZ#far.' Gilmar .Edita/'.4cÜunfo.'

Antonio

Bedin

Joel Corso

Responsabilidade Editorial e Administrativa: Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; ljuí, RS, Brasil) Será'ços Gzãl#cos.'Sedigraf (capa: Vilson

Maurio

Mattos

.i)Darem odefeana. DAOLIVEIRA Catalogação na Publicação:

Biblioteca Universitária Mano Osorio Marquei -- Uni h881d

Grotius, Hugo

O direito da guerrae da paz / Huno Grotius ; trad. Ciro Mioranza --

]juí : Ed. Unijuí,

2004. - VI.

- (Coleção clássicos do

direito intemacional/ coord. Amo Dal Ri Júnior) ISBN Obra completa 85-7429-345-8 ISBN V. 1: 85-7429-403-9

ISBN V. 11:85-7429-404-7 l .Direito

internacional

2.Filosofia-direito

4.Soberania l.Mioranza, Côro ll.Título

3.Guerras

lll.Série

CDU : 340.12 341.1 Editora.Unijuí afiliada

Associação

B rasileira

das Edito ras Universitárias

V

Sumário

VOLUMEI APRESENTAÇÃO....... por Arn oDaIRiJúnior

TN'TRnnTTnAn

'15

porAntónioManueIHespanha

DEDICATÓRIA

29

PROLEGOMENOS r

LIVRO l..

67

1. 0 que é a guerra? O que é a paz?

69

11. Se às vezes a guerra pode ser justa .........

97

111.Divisão da guerra em pública

e privada. Explicação da soberania ....l.....................

157

IV. Da guerra dos súditos contra os detentores do poder

231

V Quem faz a guerra de modo legítimo

271

LIVRO ll

277

1.Das causasda guerra eprimeiramente da defesa de si mesmo e dos bens ............................

279

11.Das coisas que pertencem aos homens em comum

307

111.Da aquisição original das coisas, onde se trata do mar e dos rios .....

339

IV. Do abandono presumido e da ocupação subsequente que diferem do usucapião e da prescrição V Da aquisição original do direito sobre as pessoas.'l.bata-se do direito dos pais, do matrimonio, das comunidades, clodireito sobre os súditos e sobre os escravos ...... ...

363

383

VI. Da aquisição derivada daquilo que é feito pelo homem, onde

setrata da alienação da soberania e dosbens da soberania

429

VII. Da aquisição derivada que se define pela lei;

trata também das sucessões"ab intestato"

441

VIII. Das aquisiçõespopularmente ditas do /us rendam (direito das gentes)

487

IX. Quando cessa a soberania ou a propriedade

513

X. Da obrigação que decorre da propriedade

531

XI. Das promessas

545

)(ll. Dos contratos

569

xm. Dojuramento ......

599

XIV. Das promessas, dós contratos e dosjuramentos daqueles que detêm a soberania

631

XV. Dos tratados (das alianças) e das garantias

647

XVI. Da interpretação ......

677

XVII. Do dano causadoinjustamente e da obrigação que disso decorre

711

XVIII. Do direito dasembaixadas

725

XIX. Do direito de sepultura

747

VOLUMEll T

XX. Das penas .....

777

XXI. Da comunicaçãodaspenas

881

XXII. Das causas injustas ....

921

XXIII. Das causas duvidosas ......-.''''''.

941

\

XXIV Admoestaçõespara não empreendertemerariamente uma guerra,

mesmo porjustas

causas ........

XXV. Das causas de empreender uma guerra em favor dosoutros

959 979

XXV]. Das causas justas pelas quais a guerra pode ser feita por aqueles que estão sob o domínio de outrem .......... 995

LIVRO lll

1011

1. Regras gerais do que é permitido na guerra, segundo

o direito de natureza. 'l.bata-setambém do doloe da mentira

1013

11.Como, segundo o direito das gentes, os bens dos súditos são requeridos para cobrir a dívida dos soberanos

'lYata-setambém dasrepresálias... 111.Da guerra justa ou solene, segundo OJusgenüum (direito das gentes). trata-se também da declaração de guerra ..... ...

1053

1067

IV Do direito de matar osinimigos na guerra solene e de outras violências sobre o corpo

1085

V Da devastação e do saque ........................

1115

VI. Do direito de adquirir ascoisastomadas na guerra

1125

VII. Do direito sobre osprisioneiros ......

1171

VIII. Da soberania sobre os vencidos .. . . .

1185

1193

IX. Do postlimínio X. Advertências a respeito das coisas

1217

que sefazem numa guerra injusta XI. Consideraçõesarespeito do direito de matar numa guerra justa

1227

XII. Consideraçõessobre a devastação e outras coisas similares

1267

XIII. Consideraçõessobreas coisasapreendidas...

1287

XIIV. Consideraçõessobre os prisioneiros ............

1295

XV. Considerações sobre a conquista da soberania

1313

XVI. Consideraçõessobre ascoisasque, segundoo direito das gentes, sãodesprovidas de postlimínio

1327

XVII. Considerações sobreaqueles que são neutros na guerra

1337

XVIII. Das coisas que, numa guerra pública, são feitas de modo privado

1347

XIX. Da manutenção da palavra entre inimigos

1355

XX. Das convençõespúblicas pelas quais termina

a guerra, onde se trata

do tratado

de paz,

da sorte, do combatecombinado,da arbitragem, da capitulação,

dos reféns,

dos penhores

.. . ..

1375

XXI. Das convençõesdurante a guerra, em que se trata

da trégua, do livre trânsito, do resgate dosprisioneiros

1421

XXII. Das convenções dos poderes subalternos na guerra

1443

XXIII. Da palavra dada por cidadãos privados na guerra

1455

XXIV. Da palavra dadatacitamente ...

1465

XXV. Conclusão com exortações à boa-fé e à Daz

1471

APRESENIAÇAO l O estudo do Direito Internacional no Brasil, desde a sua 'lnJse' em-scêne': sempre so6'eu de um déÊlcit no seu componente histórico6ilosófico. Afalta

de obras nacionais dedicadas à análise da disciplina

sob este prisma e as poucas traduções existentes, como a dos grandes

clássicos,colaboraram para um verdadeiro distanciamento entre a comunidade cientí6ca e as grandes obras que, no decorrer dos séculos, foram compondoo grande e exuberante mosaicoao qual fazem íntima referência as atuais correntes de pensamentoque seembatemno inte-

riorda disciplina. Nomescomoos deAlberico Gentili, FranciscodeVitória, FranciscoSuarez, Hugo Grotius, Emmerich deVattel, Samuel von Pufendorf,

Friedrich C. von Savigny, Pasquale S. Mancini e outros não menos relevantes, fazem parte de uma constelação de autores quase que desconhecida pelos alunos da Graduação e pouco analisada no âmbito da Pós-

Graduação. Ao mesmo tempo, são raros os pesquisadores consolidados que se dispõem a fazer uma releitura dos escritos desses importantes nomes, propondo uma reatualização de conceitos e princípios que estão

na base desta grande construção teórica. Sem dúvida alguma tal abor-

dagempoderia dar novofôlego à disciplina na tentativa de resoluçãode velhos problemas que, com trajes novos, constantemente se recolocam ante a comunidadeinternacional. 11

A tradução para a língua portuguesa e publicação no Brasil da obra 'Z2ú'e/fodn Gue/ra e da Paz'l de Hugo Grotius -- um dos maiores nomes da história do Direito Internacional --, apresenta-se à comunida-

ARMO DAL RI JÚNIOR

de acadêmicabrasileira comum duplo objetivo.Em primeiro lugar, busca o resgate de um importante momento histórico na evolução das

teorias que compõemo moderno Direito Internacional. Em segundo, procura dar subsídios para o desenvolvimento de uma leitura atualizada deste mesmo momento histórico, colocando-o em confronto cdm os

fatos e as teorias que anualmenteregemo Direito Internacional. Como será possível observar na Introdução escrita pelo professor

António Manuel Hespanha,Hugo Grotius dedicou-sepredominantemente à análise de temas ligados ao/usgenúum. No período em que escreveu as suas obras os vestígios do poder

supranacional que tanto marcaram a Europa na época medieval tinham desaparecido quase que por completo:. O Velho Continente encontrava-se no processo de conclusão de um longo período de guerras que lentamente o foi transformando em um grande mosaico de peque' nos e "micro" Estados'. Um processoque conduziria, posteriormente, a sua reorganização e à constituição dos grandes Estados nacionais europeusa. Como é possível constatar por meio da História, estes movimen-

tos políticos de dissolução, constituição e integração entre pequenos Estados ü'eqüentemente tocavam a suscetibilidade de outros, que man-

tinham vivo o interesse no equilíbrio político regional e continental. Com base nesse contexto, torna-se importante salientar que as guerras

l Faz-se referência ao poder temporal exercido pelo Sacro Império RomanoGermânico e pela Igreja Católica em relação aos potentados medievais.

2 T00KE, Joan D. ZZe Jusf Mal' zb .4qu2basand Gradas. London: SPCK, 1965, P. 139 ; Tal processo inicia-se em 1139, quando o conde portucalense Afonso Henriques,

jurando vassalagemao Papa Inocência 11,torna-se o primeiro rei de Portugal. Conclui-se somente na segunda metade do século XIX, com a unificação do Reino da ltália (1866) e do Império Alemão (1871).

RPRESENTA@O

eram uma constante no período em que viveu Grotius: as potências da época demonstravam estar sempre prontas a se utilizarem dos motivos

mais fúteis para desencadearas mais terríveis carnificinas. Nesta perspectiva histórica, um dos principais traços que caracterizou a obra de Grotius e de toda a Escola do Direito Natural, da qual

o autor holandês é um dos fundadores, foi a tentativa de conduzir o contexto internacional a um equilíbrio não conflituoso, resgatando a paz e sobre esta organizando as relações entre os Estados. Pode'se afir-

mar, então, que estes autores concentraram grande parte dos seus es-

forços em um objetivo quíntuplo', ou seja, a) na instituição de um ordenamento e na amplificação de um instrumento técnico essencialmente jurídico: OI'usgenüum; b) na elaboração de uma teoria que apoiasse o desenvolvimento progressivo da sociedade internacional como enti-

dade composta por Estados e não mais por indivíduos, uma idéia já precedentementelançada, masrelativamente desconhecidana época; c) na dessacralizaçãoe na condenaçãodo princípio da guerra, mesmo

sendoestaainda admitida dentro de certoslimites, ena sacralização dos tratados; d) na busca e no desenvolvimento de meios próprios para,

em caso de necessidade, mantem ou mesmo restabelecer a paz; e) na limitação da guerra às partes diretamente em conflito, mediante o desenvolvimento da noção de neutralidade.

P,.abra Direito da Guerra e da Paz(,Delure Belli acPacisLibré nes9incorpora com perfeição esseobjetivo múltiplo, situando-se como um marco na história do Direito Internacional. Possui o mérito, tam-

4 TRUYOL Y SERRA, Antonio et FORIER, Paul. 1987,P. 277.

TforTaef Groáíus. Paria: Vrin

ARCO DAI RI JÚNIOR

bém, de ter fornecido uma exposiçãosistemática aoyusgenÉlüm, em que fosse possível encontrar elementos teóricos que conduzissem a uma

doutrina que valorizasse a paz comobem fundamental da sociedade internacional, deixando de seguir os antigos esquemas que, desdeAgos-

tinho de Hipona, se concentravam na regulamentação da guerra GusJh

óeZZoàõ . É significativo, neste âmbito, o fato de tal sistemática apresen' tar-se como claramente influenciada pela concepçãohumanista do Di-

reito', surgida na ltália nosséculosXV e XVI eem boa parte introduzida no Direito Internacional por Alberico Gentili. 111

A publicação de ':OykeJfo da Guez7aí?dn Paz"de Hugo Grotius, insere-se em um universo mais amplo, que engloba também a tradução

e publicação de outras obras clássicasdo Direito Internacional. Um elenco em que despertam obras de grande relevo, como ':DyPe/foda Gue/ra '; de Alberico Gentili; de H'ancisco de Vitória; PufendorÊ

'íSoZ)reos Znd/os e o Dlúevfo da Gue/za ';

'Z2ü'evfoNafura/e

'Z2ü'evfo /nfernacuona/':

volume da monumental

das Gentes': de Samuel von

de Pasquale S. Mancini;

obra ':Süfema,4fua/

o oitavo

de DyPe/Éo.Romano'; es-

crita por Friedrich C.von Savigny e dedicadointeiramente aoDireito Internacional Privado. No âmbito do mesmoprojeto pretende-se, posteriormente, realizar a tradução das obras de outros importantes juristas que contribuíram

para o desenvolvimento do Direito Internacional,

como

Emmerich de Vattel, Richard Zouch, Cornelius van Bynkershoek, Christian F. Wolff e Georges F. de Martens. HAGGENMACHER, Peter. Grof7usef ]a docÉr2hede /a Guerra Jusfe. Paria: PUF. 1983, P. 14 ss.

6 DAL RI JUNIOR, Amo. Humanismo Latino e cultura jurídica. In: PAVIANI, Jayme et DAL RI JtJNIOR, Amo(Org.s). J7umanismo Zaé2boe /oóa/lzaçâo.Porto Ale-

gre: EDIPIJCRS, 2000, p. 121 ss. Veja-se,ainda, MAFFEI, Domenico. GZ]inJzz da/T'Z:anal?esimogfurl'(#co. Milano: Giuffrê, 1972.

APRESENTAÇÃO

Concluindo esta apresentação, desponta a necessidade de fazer

uma justa referênciaeum sinceroagradecimento. Ainiciativa editorial que prevê a publicação da coleção "Clássicos do Direito Internacional" tornou-se possível somente graças à sensibilidade do presidente da Fondazione Cassamarca,Aw. On. DanoDe Poli, que, ao compreender a

importância científica do prometo, concedeuao mesmoum significativo apoio por intermédio da Cátedra Aberta mantida pela Fondazione na Universidade Federal de Santa Catarina.

Arn o .DaiRilúnior

INTRODUÇÃO Hugo Grócio (1597 1645)i, foi durante muito tempo geralmente considerado como o pai do direito internacional público. Arazão para tal é hoje menos evidente do que há cem anos, uma vez que o próprio Grócio,

sobretudo nos Pzo/egomenaao 7}afado soara a gue/:ra e a paz, dá conta do que deve à literatura jurídica anterior, não apenas às fontes

romanas e medievais, mas ainda e mais directamente, a S. Tomas de Aquino e à literatura ibérica da Segunda Escolástica (nomeadamente Vásquez de Menchaca, m. 1559; Francisco de Vitória, 1483-1546; Domingo de Sito, 1495-1560;e, mais encapotadamente, Francisco Suarez, 1548-1617)2,3.Mas

apesar dos exageros, por vezes ideologicamente

orientados, dos que negaram a originalidade

de Grócio'--, Grócio tem a

seu crédito o facto de ter, pela primeira vez, formulado, cautelosamente, a "hipótese impiíssima"

de prescindir

do papel constituinte

de Deus

na formaçãodeum direito do génerohumano'; o qual, portanto, teria vigência "etiamsi daremus Deum non esse" (mesfiio que admitíssemos que Deus não existisse). l Nasceu em De#t. em 1583; aos ll anos, matriculou-se na recém fundada universidade de Leiden, onde estudou direito e línguas clássicas; em 1597, recebe um

grau de doutor .bonorlkcausaem ufruizsque Jure(direito civil e canónico)em Orléans; depois de uma vida aventurosa (v. abaixo), morre em Rostock em 1645.

2 Sobre as fontes jurídicas de Grócio, v., com desenvolvimento,Peter Boschber, Huna Groüus 'ZbmmenfarJ'us in 7yzesesm'l

Na early Treatise on Sovereignty,

the Just War, and the Legtimacy of the Dutch Repubbc, Berne, Peter Lang, 1994, 47 ss 3 Luís de Molha tão pouco aparece citada; e, todavia, no seu 2}acfaf zsde /us#úa ef de Jui'e (Cuenca, 1593-1609), este famoso professor da Universidade de Evora, ocupa'se longamente da problemática da guerra; cf. A. M. Hespanha, "Luís de Molha e a escravização dos negros", .4náZüe SocTa4157(2001), 937-990. 4 Cf. Acrítica acertada de A. Dufour, "Grotius et le droit naturel du 17e siecle",ih gZe

world ofHugo Grotius(!583-1645). Proceedngsof the Internatíona! Colioquium OIgzzzzãed Zy íüe Gradas Cbmm fóee,APA.-Holland University Press,Amsterdam & Maarsen, 1984, 15-43 5 Cf.

"Prolegomena",

$ XI

ANTÓN

10

MAIUEL

H ESPAN

HA

Esta conclusãoé tudo menos irrelevante. A partir dos finais do século XV a Europa defrontava-se com problemas jurídicos novos, decorrentes dos contactos com povos não cristãos, estranhos à experiência histórica

do Velho Continente,

em relação aos quais, porém, já não po-

dia ser considerada comoválida a velha ideia da preeminência natural das instituições

cristãs e da consequente legitimidade de destruição das

instituições políticas ejurídicas nativas. De facto, esta velha ideia da legitimidade da imposição pela força das instituições cristãs fundava-se na ideia de Cruzada, ou seja, na ideia da legitimidade da guerra com o objectivo da conversão. Aideia de Cruzada, no entanto, não tinha bases

teológicas seguras, pois sempre prevalecerá, na doutrina mais estabelecida, a ideia de que a fé resultava de uma adesão pessoal e livre.

Enquanto que, no plano do direito, a ideia de guerra justa esteve sem-

pre ligada à ideia de guerra defensiva, ou seja,de guerra que respondesse a uma ofensa anterior e que, portanto, pudesse ser tida como uma

forma de legítima de defesa,ou comoum actojurídico tendente à reposição do santas que ante, eventualmente ainda, à obtenção de uma ade-

quada reparação. Finalmente, o Concílio de Constança (1414-1418) fixara a doutrina da ilegitimidade da conversão forçada. As novas situa-

çõestinham que ser, portanto, enquadradas em regras de convivência

que, por prescindirem do recurso aos dados de uma religião concreta (neste caso,o Cristianismo), pudessem ser oponíveis a quaisquer povos ou a quaisquerculturas.

Tudo isto combinado explica que, mesmona teoria pré-grociana do direito, tenha existido a preocupaçãode construir um direito baseado em dados evidentes para todas as culturas -- que só podiam ser os dados

(de uma certa leitura) da natureza humana. E neste campo que se movem os grandes tratadistas ibéricos do direito da Segunda escolástica,

sobretudo a partir de Francisco Vitória. Para eles, as instituições nativas são legítimas e incanceláveis pela força, desdeque respeitem a na-

INTRODUÇÃO

tureza humana, tal comoera lida na época.A máxima concessãoque se fazia a uma preeminência da parte dos Europeus andava envolta numa roupagem naturalista. De facto, mesmo quando se punha como exigência aos nativos, que estes autorizassem a difusão da palavra de Cristo, esta pretensão era justiâcada com o facto de que a comunicação (o diá-

logo, diríamos hoje) entre os homens (entre as culturas, nos termos actuais) era um traço distintivo doshomens. Pelo que, qualquer obstáculo que Ihe fosse imposto, seria contra a natureza e, logo, daria direito

a retaliação. Este era ainda o fundamento para que alguns estendessem o mesmo regime jurídico ao comércio, o qual também faria parte desse mesmo afecto humano pela comunicação, um dos aspectos da tradicional

aá%ecÉz o soc:zbíaÉz#

No entanto, este papel pioneiro atribuído o Gróciona criaçãode um direito internacional laicizado explica-se,não apenaspelo carácter mais claramente naturalista do seu pensamentojurídico, mas também

pelo facto de Grócio ter escrito num meio mais cosmopolita, evocando questõesjurídicas que surgiam num contexto europeu conturbado, onde a guerra estava presente' e, com ela, os problemas da legitimidade

dos

meios a utilizar'; onde se punha com acuidade a questão do livre acesso

6A extensão ao comércio desta liberdade de comunicação não era aceite por todos os

juristas; Molha, por exemplo, não a aceita, sendoainda certo que impõe restrições de modo e de grau ao direito à pregação;cf. A. M. Hespanha, "Luas de Molha e a escravização dos negros", .4náZüe SocÜZ157(2001),



Nomeadamente,as guerras de religião em F'rança;as tensõesentre a Espinha dos Habsburgos, a Inglatrra e a França; os primórdios da Guerra dos 'l.cinta Anos (1618-1648).Sobre a crueza da guerra na Europa, "perante a qual os povos bárbaros corariam",

v. "Prolegomena",

$ XIX.

8 Por exemplo, o direito de botim, sobre o qual Grócio escreve,propósito da tomada pela Companhia Holandesa das Índias Orientais ( Hereen/kde OosffndlscÃe

aompagnJ'e,VC)C)da nau (ou carraça) portuguesa Santa Catarina (.DeJzzl'e praedae, 1603). A intervenção jurídica de Grócio é suscitada Pelos escrúpulos de accionistas evangélicos,que vendem as acçõesque tinham na VOC e dão o produto aos pobres. Grócio defende(não em tribunal) o pontos de vista da legitimidade da presa.

A HTÓN 10

MAH

UEL

H ESPAN

HA

aos mares9; onde o direito de rebelião tocava questões concretas:'; onde

as relações entre o poder temporal e o poder espiritual, com as suas

projecçõespolíticas e jurídicas na esferainternacional, estava na ordem do dia::. Onde, portanto, não se tratava já apenas da relação com

povosexóticos,ou dasrelações entre europeus,mas em espaçosexóticosl mas, justamente, do sistema de convivência dentro da própria Eu-

ropa. Para além disso, Grócio foi um personagempoliticamente notório, tanto no seu país, como no estrangeiro, nomeadamente em Fiança

- onde estanciou duas vezes,em importantes missões político-diplomá-

ticas, na Suécia, de cuja rainha (Cristina) foi embaixador em Paras,e na Alemanha do Norte, onde viveu, exilado, até à sua morte. Os cargos

9A questão já surgira na Idade Média, com as pretensões das repúblicas italianas de fechamento de mares regionais(como o Adriático, por Veneza) ou o Terreno (por

Génova).Mais tarde, a Suécia pretendera um direito exclusivo ao Báltico Mas tornara-se crucial quando, com a ascensão ao trono de Inglaterra, em 1603, de

Jaime VI da Escória(sob o título de Jaime 1), este pretende fazer valer, contra outras nações europeias, nomeadamenteas Províncias Unidas, a extensão de um

princípio tradicional do direito escocêsde reserva das pescasa todo o Mar do Norte. A questão suscita uma enorme tensão entre a Holanda e a Inglaterra, dando origem a uma polémica, em que Grócio participa(Z)e ma/e /lbev'um, 1609), sobre a liberdade dos mares. O campeãodo fechamento dos mares(princípio do

ma/cí c/ausum) era, neste caso, John Se]den,]Uare c/ausum, 1635). A questão interessava também, os reinos ibéricos, como se verá, dando origem a uma res'

posta portuguesa, a obra de Serafim de Freitas (1570-1633),Z)e i'usfo impera'0 !usitanorum

asiático, 'L6aSà.

10Nomeadamente,o direito de rebelião das Províncias IJnidas contra a Monarquia dos Habsburgos. Jaime l tinha exigido, pouco antes(1606; justiHlcadono -BasiZfcam Z)a'on, 1598), o juramento de fidelidade, suscitando forte reacçãodoutrinal católica, a que Francisco Suarez dá expressão no seu Deão sl'o #deí caíüo#cae ac/versus ang/lbanae

secfae errares, 1613) directamente encomendadopelo Cardeal Bellarmino. Os calvinistas -- com forte presença nas Províncias Unidas e em França -- apoiavam a criação de Igrejas nacionais, ou mesmo de repúblicas teocráticas; õ princípio cufus regí$ e/us /eilb b estava a impar-se nos Estados alemães, católicos e reformados, tal comojá se impuzera na Península Ibérica com a expulsão de mouros e judeus e, mais tarde, com a criação de tribunais reais para matérias religiosas(a Inquisição) -- aqui, no entanto, com a fundamental diferença de que a cabeça da

Igreja estava fora do reino, em Romã.

INTRODUÇÃO

que desempenhou, a vivacidade do seu espírito:', a sua enorme capacidade de trabalho e de escrita:;, a sua própria vida aventurosa: ' explicarão

o impacto da sua obra de internacionalista Este realce dado a Grócio no plano do direito internacional pode, no entanto, fazer esquecer o que Ihe é devido no plano da ãlosofia ou da teoria do direitoiõ

Neste plano, Grócio ofereceum interesse manifesto, na medida em que, de forma muito prática e convidativa, procura buscar um fundamento comummente partilhável para o direito natural. Essefunda' LZO rei Henrique IV. de F'lança, considerou Grócio, então apenas com 15 anos, como o "milagre

da Holanda'

i3 Muita da obra de Grócio -- incluindo a sua vastíssima correspondência, ficou inédita, tendo vindo a ser publicada ao longo do tempo, sobretudo no séc.XIX(por exemplo, o .Delure praedne, escrito entre 1603 e 1608, só foi publicado em !868).

Mas ainda existemmuitos escritos seusnão publicados(v. Peter Boschberg, Ruga Grotius "Commentariusin ThesesXl", cít., L9 ssl). 14Grócio atravessou períodos de fortuna precoce, devido à protecção de Johan van Oldenbernevelt(1547-1619), um dos mais importantes políticos da República das Províncias Unidas: foi conselheiro de Maurício de Nassau, Procurador-Geral dos

tribunais da Holanda, Zelândia e Frísias Orientais, Governador de Roterdão, Procurador Geral dos Estados da Holanda, membro do Comité de Conselheiros (Gec;ommiffeerde.Raden,um conselho com algumas atribuições legislativas du-

rante os intervalos da reunião dos Estadosda Holanda, sob o partido arminiano; no entanto. esta amizade, também Ihe criou desventuras duradouras. Condenado à prisão perpétua como cúmplice do seu protector, alegado traidor da Repúbli-

ca a favor dos espanhóis, na sequência de um golpe de estado de orientação calvinista(anta-arminiano,

1618), Grócio é encerrado na fortaleza de Loevensteyn,

de onde foge, rocambolescamnte,. em 1621, escondidonum baú de livros, que a sua mulher trazia à cabeça(!11).É caso para se dizer que, por detrás (neste caso, mais rigorosamente, por debaixo) de um grande homem, está sempre uma gran-

de mulher

15Não se pode também esquecer que Grócio foi um apreciado historiador, cronista oficial latino das Províncias Unidas(1601-1604:-Dea/2ügu fale.ReXpuózbae Bâíav7ae ]2ber slhgizJarl), 1610); um poeta latinista de mérito; e um importante teorizador de uma teologia natural (v. Bewys Ha] den mare/] Godsdienst, [Comprovaçãoda verdadeira religião, 1622; ed. latina: Z)e ve/:ífafe I'e&gfonis Cbr7küanae, 1627;

trad. inglesa, New York, DaCapo, 1971) obra que teve enorme ressonânciana Europa da época).Foi, além dissojurista, advogado,autor de uma introdução ao direito holandês, com grande impacto na Holanda e nas suas colónias: Zn/eidlhgóe tot de lioliandsche

Rechtsgeleerdheid,

'L62B.

AHTÓNIO

MANUEt

H ESPAN

HA

mento não seria a revelação como queria a tradição católica (nomea-

damente, a de raiz agostiniana) ealguma da doutrina protestante, nomeadamente a calvinista, mastambém a luteranai'; nem seria a autoridade, como agradaria ao pensamento jurídico mais técnico, quer esta

autoridade se concretizasse numa op/hlb communlb praticamente laicizada, na esteira da doutrina dosjuristas do mos /íaJ]'cus,quer ela decorrersse da e/eFznZ7bdos textos jurídicos romanos, na esteira das correntes do humanismo jurídico. Seria a natureza, tal como sepodia observar na vida quotidiana, ou, com panoramas mais vastos, na história:7. Grócio adopta, assim, um ponto de vista quase experimental acer-

ca do fundamento do direito natural: estedireito observa-se,sendo a sua naturalidade medida pela permanência no tempo e no espaço. E, uma vez observado, destila-se em princípios universais, conformes aos comportamentos e sentimentos que se mostram ser independentes da história e da geografia. SÓentão tem lugar unÍtarefa de dedução, que

faça com que os primeiros princípios produzam princípios de âmbito mais restrito, segundo uma cadeia dedutiva que vinha a ser proposta, como organização dos saberes, desde meados do séc. XVI, de acordo com

as novas ideias sobreo método,desenvolvidas por Petrus Ramus(Pierre de la Ramée):', e que Grócio explicita logo nos "Prolegomena" à obra

($ XL, LMll e LXI). Este ponto de partida metodológico tem sido classiãcado no âmbi-

to de um movimento bastante vasto de recepçãode Tácito, em desenvolvimento na Europa rosé"humanista, que levava a uma valorização da história como campo de observação para a política e para o direito:o. 6 Cf. Valentin

Alberti(1635-1697),

aompendl'um./u/:ü

ilafurae

orfüodoxae

ÉüeaZoWae

conJbz'mafum, 1678 11

Cf. "Prolegomena, $ Vlll, XL; sobre o papel da história, }ó/d, $ Xl;Vll.

i8 Cf. Walter Ong, S.J., -RamasilZe.boca ancaíüe deaaya/düJoFae, Cambridge, Mass./

London, 1983. '90 principal representante destetacitismo neo-humanista é Justus Lipsius(/)b#ílba, 1589). Cf. A. Dufour, "Grotius et le droit naturel du 17e siecle", cu'f.,25 ss.(com

bibliografia suplementar sobre o impacto do tacitismo em Grócio).

[FITRODUÇAO

A sua posição -- do ponto de vista das ortodoxias religiosas

não

era, ho entanto, confortável. Pois, ao contrário do que era defendido por muitos filósofos ou juristas",

tanto do lado católico, como do lado protes-

tante, distinguia rigorosamenteentre direito natural e direito divino positivo. Ou seja,entre estesprincípios que decorremde uma observa-

çãolaicizada do homem e do seu mundo e os princípios da verdade revelada. Não é que Grócio não reconhecesseum valor vinculativo aos mandamentos de Deus(i.e., ao direito divino positivo), aceites no seio de uma específica comunidade religiosa, estando até disposto a conceder que eles poderiam ser impostos aos membros de tal comunidade, como

factor e conservaçãoda paz pública': ; porém, atribuía-lhes um valor local(embora cogente e positivo). Ao invés, o direito natural, era positi-

vo de uma outra forma: não como produto de uma vontade, mas como imanente à ordem das coisas, aosequilíbrios universalmente observados. Neste plano, as diferenças entre Grócio e o realismo da üilosoÊiado direito de Tomas deAquino não sãograndes. Para ambos,por detrás da grande máquina do mundo está seguramente uma racionalidade divi-

na. Não era possívelconhecê-ladirecta e integralmente (na sua causa p/:ilha); mas podia-se ler tal racionalidade na ordem das coisas (nas

c;ausae secundne,comodiria Aquino).E por isso que a "hipótese impiíssima" não passa dissomesmo,de uma hipótese a de que as causas segundas se podiam mover por si só,uma vez postas em marcha pela causa primeira. zoPor exemplo, John Selden e Jean Domat (que fundavam o direito natural nos mandamentos) ou, mais tarde, J.-G. Leibniz, que identifica o direito natural com

a vontade de um Deus racional(cf. A. Dufour, "Grotius et le droit natural du 17e siecle", cuf., 28).

zi Grócio entende, porém, que esta imposição -- que tem uma intenção quase pura' mente política çleyç.g!!gl g:Sargo de umê gDtidade jjlgpublicana" e não de uma !grej4, Cf. .De -Zmpez:ó summal'um pofesfatum cú'ca sacra, ibmbo;i8"êiíE;il6i% e 1617. (publ. 1632; ed. moderna, Huno Grotius, Z)ei nperT'osummaJ"umpofesfafum

cú'ca sacra, série "Studies in the History of Ch'istian Thought", n' 102, ed. Crítica com introdução,

Leiden, Bril1, 2001)

A ItTÕNIO

M ANDEI

H ESPAH

HA

=jJOdireito natural é, por isso mesmo, uma ruízó não uma vaatmías.

Porem, isto não quer dizer que, na construção jurídica de Grócio, um direito meramentevoluntário careçade legitimidade ede vigência. Pelo contrário, Grócio abre um grande espaçoao direito produzido pela von-

tade. Desde logo, pela vontade de Deus, que instituiu mandamentos particulares, próprios de um lugar, de um tempo, de uma confissão (o tal direito divino positivo)2z.Depois,o direito voluntário humano, base-

ado na validade dospactos,uma das tais normas que a história e a observação documentavam serem de direito natural comum a todos os homens2a

Interessantes são,também, os pontos de vista de Grócio sobre aquilo a que hoje chamaríamos direito constitucional, ou seja, sobrea forma jurídica do político. Nomeadamente, as suas ideias sobre os requisitos de uma comunidade soberana".

Que interesse tem, ademais de tudo, Grócio para a história do império colonial português, em que o Brasil se incluía'; ?

zzCf., sobre este direito estabelecidopela "vontade livre de Deus", a fim de tornar concretas e claras as suas determinações, cf. $ XII.

zaA análise mais actualizada e equilibrada desta questãoparece'me ser a de A. Dufour, "Grotius et le droit naturel du 17e siecle", cit., 25 ss-). 24Questão que ele equaciona no âmbito de uma discussãosobre a natureza política das Províncias Unidas, tendente a justiãlcar tanto o seu direito de rebelião(de guerra) em relação à Monarquia Católica, comoo facto de a soberania(as "mar-

cas da soberania"poderemestar repartidas entre vários órgãosdo Estado).

zõPara a história brasileira,especificamente, tem ainda interesseo tratado de Grócio sobre a origem

e entidade

dos povos das Américas(Dusserfaúa

de (2z:rkzhe

Genüum .4me/Tcana/'um,1642; D.usei«afiaa/óe/a ..., 1643); trad. Inglesa, E. Goldsmid(trad.), On tüe Ol:Üína/ ZüeNaúve faces o/,4mez7ba, Edinburgh, 1884; sobre a posição(digni6icadora dos índios, cujo carácter racional é reconhcido), v.,

por último, Martin van Gelderen,"Vitoria, Grotius, Locke und die Indianer: Die Kulturhistorische Einordnung der Neuen Welt in Spanien, Holland und England ",

in http://cf.uba.uva.nl/goudeneeuw/archief/2001/colloquium-lfeb2001.rtf

(2003.09);ou Joan-PauRubiés,"muge Grotius's Dissertation on the Origin of the American Peop[esand the Use of ComparativoMethods",Journa/ a/ íüe ]j]bfory a/Zdeas, vo1. 52.2, 1991, p. 221-244.

INTRODUÇÃO

Foram vários os momentos em que Grócio se cruza com questões relativas ao império português.

O primeira deles refere-se ao apresamento da barraca Santa Catarina, a que já nos referimos. A questão - muito e dramaticamente discutida nos meios políticos e financeiros da Holanda -- acaboupor não ter uma grande repercussão externa, já que o escuto de Grócio(.De/ui«e

praedae, 1603-1608)2a acaboupor não ser impresso na época,embora pareçater circulado na forma manuscrita, pelo menosentre os grupos mais directamente interessados. O segundomomento refere-seà publicaçãodo curto tratado sobre a liberdade dos mares (.Demal'e Züa'um, 1609) -- de facto, uma parte (cap. IX) da anterior obra .De./tz/'epraedae; tratado que, não se dirigin-

do directamente à questão levantada pela pretensão de domínio exclusivo dos mares pelas coroasibéricas -- mas sim, como disse, às pretensões inglesas de direitos exclusivos de pesca no Mar do Nome -- acaba por ter

uma resposta portuguesa, da mão de Seraâim de Freitas"

:' Edição actual: com uma introd. de Robert J. Fruin,(.4n Z:ã2puóZísüed Wo/É af ÉruycpGroóusB), The Hague: Apud Martinum NijhofT, 1868, xvi, 359 pp. Reprint, 2003) 0

Serafim de Freitas: Marcello Caetano, [ãn Gmnde ./!z/:ísfa /%zrÉugu(âs -- JU SeraZZmde .Fye/fas,Lisboa, 1925; "Introdução" à ed. bilingue (latina-portuguesa) de Z)o Justo Impéi:fo, Lisboa, 1983, pp. 7 a 86; Paulo Merêa, "Os jurisconsultos portugueses e a doutrina do Mare Clausum", in .M)Pos.Estudos da JZlkfárubdo Dure/fo, Coimbrã, 1937, pp. 19 a 45; id., "Um aspecto da questão jugo Grócio-

27 Sobre

SeraHlmde Freitas(condição jurídica do mar no direito romano)" in .Bo/eÉahda Faculdade de Direito de Coimbrã. val. IL \ü.i Suárez, Grócia. Hobbes. Cdlrnbra,

1941; CamiãoBarda 'l.}elles,"Fray Seraíínde Freitas e el problemade la libertad oceânica",

in .Bo/ef/m

da .f'aau/Jade

de .D]'reffo,

vol.

XXll,

Coimbrã,

1946;

Gumerzindo Placer Lopez, /iluy gera/ih de .Fbeifas,.a/ercedar70, Jtll:zsconsu/fo Portugués.

Estudio Bio-Bíbliográgico(1577-1633),

«Laàx\õ., L956.

AHTÓN 10

M AN UEI

H ESPAH HA

Finalmente, este tratado acerca da paz e da guerra. Que, de novo,

levanta questõesque continuavam a interessar ao mundo colonial português, nomeadamentenas relações entre Portugal e a Holanda que, neste preciso momento, passam por uma situação crítica. Considerados

como materialmente idênticos aos do rei de Espanha, os interesses por' tugueses, quer na navegação,quer nas conquistas, começam a ser dis-

putados pelosholandeses.Primeiro nas Índias Orientais, para onde os holandeses navegam a partir dos finais do séc. XVI (1595-1596), e para

as quais se constitui, em 1602, a Companhia [holandesa] das Índias

Orientais (VOC); depois,naAmérica, para a qual osholandesesconstituem uma outra Companhia, a Companhia das Índias Ocidentais(WIC), em 1621, e na qual se estabelecem, com a conquista da Baía (1624) e, depois (1630), de vasta zona de Pernambuco. Atrégua dos 12 anos (1609-

1621), entre a Espanha e as Províncias Unidas, não abrangerá as con' quietas ultramarinas portuguesas. Durante ela, os holandeses progn' dem no Oriente. Depois da trégua, a situação agrava-se, tanto no Oriente como no Ocidente, com sucessivas conquistas de praças portuguesas. Depois da Restauração da dinastia portuguesa dos Bragança,

em 1640, as tratativas de paz com a Holanda prolongam-se durante mais de 20 anos, até 1668, dado o interesse das duas companhias comerciais em manter as mãos livres para ocuparem o espaçoque os portugueses dominavam no ultramar. E impossível que, nessas extenuantes nego-ciações, Grócio não tenha sido largamente usado, como

ponto de apoio, por um ou por outro dos dois contendores. A recepção do gyafado sopre a .gue/:m e a paz foi enorme. De 1625 a 1725, conheceu quarenta edições, em latim e em várias línguas

vulgares. Foi comentado porjuristas e politólogos insignes, desde Jean

INTRODUÇÃO

Barbeyrac (1674-1744), que prefaciou a edição francesa") a Samuel Pufendorf (1632- 1694), que comentou a obra e que ocupou a primeira

cátedra, criada em Heidelberg,em 1661,para a nova disciplina, estabelecida por Grócio -- o "Direito natural e das gentes").

Para o pensamentojurídico, ficou a ser uma obra fundadora de um estilo novo de pensar o direito, embora ainda não tão radicalmente

racionalista como acontecerá com o .Lep7bÉüan(1660), de Thomas \l(iübes, ou a Nova methodus docendae(hscendaequejurisprudentiae (1684), de G.-W. von Leibniz.

AntõnioManueIHespanha Professor Catedrático de História do Direito na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Portugal

BibliografiaBásica E enorme a bibliografia sobre Huno Grócio. Indico, a seguir, a mais interessante e mais moderna. B[EiRÜPi.AK, M.. ]] diritto natura]e e i] suo rapporto con ]a diünità in Zl@oGroz/o. Romã: Università

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2bInteressante, pelo longo prefácio do tradutor (ed actual Caen: Prestes de I'Université

de Caen, 1984).

AHTÓHIO

MAHUEI

H ESPAH

HA

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/

DEDICATORH

ALuísXlll cristianíssimoRei dosFrancose deNavarra Hugo Grotius Este livro ousa, eminentíssimo dentre os Reis, inscrever em seu frontispício teu augusto nome, não por um sentimento de vaidade, nem porque seu autor tem confiança em si mesmo, mas em prol da justiça

peloque precipuamente foi escrito. Esta virtude está de tal modo presente em ti que, por teus méritos e pelo sufrágio do gênero humano, recebeste o apelativo mais digno de um tão grande Rei e que já és conhe-

cido em todo lugar pela denominação de Justo, não menos que aquele de

Luís. Os títulos tirados de Creia, da Numídia, da trica,

da Agia e de

outras naçõesvencidas pareciam belos aos generais romanos. O teu, porém, é bem mais ilustre, porquanto ele te representa como o inimigo em toda parte e o vencedor sempre, não de um povo, não do homem, mas daquilo que é injustos Osreis do Egito pensavam que era glorioso ser renomado por ter amado, um seu pai, outro sua mãe e outro ainda

seusirmãos. Estas são,no entanto, as facetasmenos signiÊlcativasde teu nome que abrange em sua amplitude não somente estas qualidades,mas tudo o que pode ser imaginado de belo e de honesto. Tu ésjusto quando honras, imitando-o, a memória de teu pai, que foi grande acima de tudo o que pode ser assim classificado. Tu ésjusto quando dás formação a teu irmão de todas as maneiras, mas certamente estas não ultra-

passam o ensinamento que Ihe ministras com teu exemplo. Tu és justo

quandoderramas sobretuasirmãs obrilho deilustres casamentos.Tu és justo quando fazes reviver leis sepultadas há pouco e que, dentro dos

limites deteu poder,te colocascomoum obstáculoperante um século

H UGO

GROTI

US

que selança em direção de sua própria ruínas Tu ésjusto, mas éstambém ao mesmo tempo demente, quando a ignorância de tua bondade afastou súditos do caminho do dever,tu não lhes tiras nada, a não ser a liberdade de tornar-se culpados; e quando não fazes nenhuma violência

às consciências que pensam de modo diverso do teu em questões de

religião. Tu és justo e ao mesmo tempo misericordioso quando fazes cessar por teu poder as dores dos povos oprimidos, dos príncipes abati-

dos e quando não toleras nada que seja por demais permitido à sorte. Esta benevolência

que te é peculiar e que é semelhante

à de Deus, en-

quanto a natureza humana o tolera, me leva a render'te ações de graças em meu nome pmticular, nesta dedicatória pública. Do mesmo modo que os corpos celestes não só penetram as grandes partes do universo,

mas deixam baixar sua influência sobre cada um dos seres animados, de igual modo tu, astro benfazejo sobre a terra, não contente de exaltar

os príncipes, de aliviar os povos, tu quiseste ser também para mim,

maltratado em minha pátria, uma segurançae um consolo..Para completar o encadeamento de todas as virtudes que a Justiça compreende,

é preciso acrescentar às açõesde tua vida pública a inocência e a pureza

detua vida privada, dignasde admiração,não somentepor parte dos homens, mas também pelos espíritos etéreos.)Quantosdentre eles,

realmente, que se separaram do mundo se puseram ao abrigo de todo erro, como tu o fizeste, tu que foste exposto a uma situação em que és assediado de todo lado por inumeráveis seduçõeslQual a grandeza que sepoderia atingir em meio aos afazeres, na multidão, na Corte, em meio a tantos exemplos dos mais diferentes homens que cometem erros, esta perfeição que a solidão a concede a caro custo e muitas vezes

não a concede a outros? Merecer desdeesta vida não somente o nome de

Justo, mas também o de Santo, que o consentimento das pessoaspiedo-

sasconferiu a Carlos Mlagnoe a Luís, teus ancestrais, depoisda morte deles, é ser cristianíssimo, não somente por um título ligado à raça, mas por um direito que realmente te pertence. Nenhum dos aspectos da Justiça te é estranho; entretanto, o que diz respeito a este livro, ou

DEDICHÓRIA

seja, o que se refere a questõesde guerra e de paz se liga de modo especial a ti, porquanto tu és Rei e Rei dos Francos. E realmente imen-

so este reino que te pertence e que se estende de um mar a outro, através de vastíssimos espaçosde regiões prósperas; mas tu tens um império ainda maior que este reino porque não cobiçasos reinos dos outrosl E digno de tua piedade, é digno de tua elevada sorte não precisar lançar

mãos das armas para atingir o direito de ninguém, de não perturbar

antigas fronteiras, mas, no âmbito da guerra, poder fazer negóciosda paz e de não começar as hostilidades, senão com o desejo de as terminar imediatamente. Como é belo, como é glorioso, como é suave para tua própria consciência poder dizer com conâança, quando um belo dia Deus

te chamar em seu reino, o único superior ao teu: "Esta espadaque recebi de ti para a defesa da Justiça eu a entrego isenta de todo sangue

temerariamente derramado, pura e inocentes"Asregras exauridas por

nósagoranoslivros ecoarãono futuro de tuas açõescomoum modelo mais que perfeito. Será a maior das obras e, apesar disso, os povos cristãos ousam exigir de ti mais ainda. Eles esperam que, eliminando as armas em toda parte, a paz retorne por tua iniciativa, não somente

nos impérios, mas também nas Igrejas e que nossoséculo aprenda a

tolerar a disciplina desta épocarealmente comuma fé verdadeira e sincera que nós cristãos reconhecemos ter sido cristã. Exaustos pelas discórdias, nossos espíritos são levados para esta esperança pela recen-

te amizade que surgiu entre ti e o Rei da Grã-Bretanha, este rei tão pleno de sabedoria e tão apaixonado por esta santa paz: amizade selada pelocasamentode ótimos auspíciosde tua irmã. Aempresa é di6icil por causa das paixões que, nos dois partidos, se envenenam dia'a-dia por rancores. Mas nada há digno de tão grandes reis, senão o que é difícil, o

que seria desesperopara todos os demais. Que o Deus da paz, que o Deus da Justiça, ó Rei Justo, ó Rei Pacífico, cumule Tua Majestade que se aproxima da dele de todos os bens e ao mesmo tempo desta glórias

1625

PROLEGÕMENOS 1. Numerosos autores tentaram ilustrar com comentários ou reduzir para um sumário o direito civil, tanto no tocante às leis dos romanos quanto à legislação particular de cada nação. Esta parte do direito, porém, que intervém nas relações de muitos povos ou de chefes

de Estado, cujos preceitos são fundados sobre a própria natureza ou

estabelecidospor leis divinas ou ainda introduzidos pelos costumese por uma convenção tácita, poucos escritores tentaram entrar nesse cam-

po, ninguém tentou até o presente fazer disso o objeto de um tratado completo e metódico. Semelhante trabalho interessaria, contudo, à humanidade.

2. Cícero [1], na verdade, classificou como notável esseconhecimento das alianças, dos tratados, das convençõesentre os povos, os reis e as nações estrangeiras, essa ciência que abrange todo o direito da guerra e da paz. Eurípides]2] antepõe essa ciência ao conhecimento das

coisas divinas e humanas. Ele leva, de fato, .Teoclimenes a fazer a se-

guinte interpelação: 'Vergonhoso seria para ti, se soubesses Óque é e o qu e vai ser com relaçãoaos homens e aos deuses, mas ignorassem o que éjusto."

3. Semelhante obra tanto mais é necessária quanto não falta, mesmo em nosso século, como não faltou outrora, quem desprezasse

estaparte do direito como algo que não passava de um vão arranjo de

11] Marcus Tullius [2] Eurípides,

Cicero, Pro Z,uclb Ba/óo OraÉ70(6,15)

Hb/ena (versos 922-3).

H u Ge

GR o T l u s

palavras. Na bocade quasetodos se encontram essaspalavras de Eufêmio, citadas em Tucídides [3], de que nada que é úti] é injusto para os reis e para os Estados soberanos. 'h'ata-se de proposição semelhante

à que considera os homens, postos no topo da fortuna, que a maior ou menor equidade dependeda maior ou menor força e que não é possível governar um Estado sem injustiça [4] . Acrescente-se a isso que as divergências surgidas entre os povos ou entre os reis têm sempre o deus Malte como árbitro. Não é opinião difundida somente em âmbito popu-

lar que a guerra é de todo incompatível com todo tipo de direito, ma! ainda fogem de homens cultos e sensatos palawas que tendem a fomen-

tar essaopinião. Nada, de fato, é mais freqüente do que ouvir colocar em oposição o direito e as armas. Enio disse: "Não é no âmbito do direito que se combate

mas antes pela espadaé que se reivindica a propriedade Horácio [5] assim descreve a irascibi]idade

de Aqui]es:

"Nega que as leis tenham sido feitas para ele e nada pergunta a não ser a suas armas.

[3] Tucídides,

J?]bóóu#as da Guerra

limo VI(85): "Avõpt õe zupawo

do /)e#oponeso. Essas palavras

se encontram

no

tl noÀet ocpXHVE)(ODaT)ouõev oüayov o, u 6op@ePov". O

mesmo sentido se encontra no livro V(89), onde os atenienses que tinham a preponderância nessa época, assim falam aos habitantes de Meios: "Oxt ÕIKalCt Hevev Tm(wOpomtv Àaytocenazqa ta(pa cwo=ytqÇKptvezcEt,Õuvazct & ot ÕuvaTo17q)claaoua,

KcttOI CEaOevet(auveupooat": Segundo a razão humana, as coisas justas se medem

pela necessidade iguala quanto ao resto, os mais fortes fazem todas as coisas que

podem, enquanto os mais fracos as toleram.

[4] Ver Caius Cornelius Tacitus, .4nnaJesQW, ]). [5] Quintus

Horatius

Flaccus, De .4rfe PneZlca(122)

r

PROLEGÕMENOS

Um outro poeta]6] leva a falar nessestermos outro conquistador no começo de uma guerras

"Aqui deixo para trás a paz e asleis violadas O ve]hoAntígono17] se enfureceu contra um sujeito que Ihe apre-

sentava um tratado sobre a justiça, no momentoem que ele sitiava cidades que não ]he pertenciam. Mário [8] dizia que o estrépito das armas o impedia de ouvir a voz das ]eis [9]. O próprio Pompeu, que ostentava tanta modéstia, ousou dizer: "Quando estou armado, como poderia pensar em ]eis?" [lO]

4. Encontram-se nos escritores cristãos diversos pensamentos

análogos.Ao invés de citar uma grande quantidade deles, basta Tertuliano [11], com esta passagem: "0 do]o, o rigor, a injustiça são o apanágio dos combates."Aos que assim pensam, a eles lhes opomos sem

dúvida este verso extraído de uma comédia [12] :

[6] Marcus Annaeus Lucanus, PZarsa#a(1,225). [7] Plutarco, .De .fbz'f. .4/exand. .aangn.(330 E) em Lidas ParaJe/as. [8] Plutarco, HpopÃZüegmafa(202 D) e .4Zarl'us(421 E) em idas

Para/e/as.

[9] Plutarco (HpopÃÉüegmaóa, 190 E) conta que Lisandra, mostrando um sabre, dizia: 'HgueJeque o fem de ]he mel%oros Züni'óesda ferra." No mesmo autor (Chegar, 725 B), César diz: '0 feinpo das a/'mas não ó o mesmo das ]ezi. "Sêneca, em Z)e .Beneál'cí&(livro

IY cap. XXXVIII)

escreve: 't)u reh concedem par vezes

muitas coisas fechando os olhos, sobretudo na guerra, quando um só homem justo não tem como contentar tantas paixões armadas. Não se pode ser ao mesmo tempo homem bom e bom Bebera!.' [lO] Plutarco, Po/npeuus(623 D) em idas ParaJe/as.Plutarco assim enuncia esta frase de rompeu aos mamertinos: '?\Uo deszbÉúellsde nos rec/fal' as /els, a n(ás que estamos c] Jpdos da espada?" Quintus

Curtius

Rufus(livro

IX) diz: '?Messe

ponto é que a guerra inverte até mesmoas !eís da natureza. [11] Quintus

Septimius

[12] Publius

Terentius

Florens Tertullianus, Afer,

.Dunucüus

(61-63).

4drersus Judaeos (7).

H UGO Gxoílus

"Se pretendesessascoisasincertas com a ajuda da razão ülxar, nada mais fazes, por mais que te apliques, a unir a sabedoria à insanidade." 5. Como toda discussão sobre o direito seria inútil, se o própria

direito não subsistisse,importaria, para recomendar nossaobra epre'

vem-la contra ataques,refutar em poucaspalavras essegrave erro Para não ter que lidar com uma multidão de adversários, demos a essa opinião en6nea um advogado.Que filósofo se deveria preferir a Carneades que tinha atingido esse grau de perfeição sonhado por sua escola, o de

poder aplicar a força de sua eloqüência a serviço da mentira de igual modo que à defesa da verdade? Esse filósofo, empenhado em combater a

justiça [13], especia]mente esta de que nos ocupamos agora, não encon-

trou argumento melhor para tanto que este:os homens seimpuseram, em vista de seu interesse, leis que variam de acordo com os costumes e

que, entre os mesmos povos,muitas vezes mudam de acordo com as circunstâncias.

Quanto ao direito natural,

esse não existe; todos os se-

res, homens e outros animais, se deixam arrastar pela natureza em função de suas próprias utilidades. Deduz-se, pois, que não há justiça ou, se houvesse uma, não passaria de suprema loucura, porquanto pre-

judica ointeresse do indivíduo, preocupando-seem proporcionarvantagem a outrem. 6. O que essefi]ósofo diz, porém, e o que um poeta [14] sustenta

depolsdele:

[13]

Caecilius

Firmianus

Lactantius,

.Dít'ú2arum

[14] Quintus Horatius Flaccus, Saüme (1, 3,113)

InsúfuÉ]'amam(X

16,3)

PROLEGÕMENOS

"A natureza não pode distinguir o que é iníquo do que éjusto", não deve ser admitido de forma alguma. De fato, o homem é um animal, masum animal de uma natureza superior eque se distancia muito mais de todas as demais espécies de seres animados que possam entre elas sedistanciar. E o que testemunham muitas açõespróprias do gênero humano. Entre essas,que são próprias ao homem, encontra'se a necessidade de sociedade, isto é, de comunidade, não uma qualquer, mas pacífica e organizada de acordo com os dados de sua inteligência e que os estóicos chamavam de %soado domásZzco' [15]. Entendida

assim de

uma maneira geral, a afirmação de que a natureza impele todo animal somente para suas próprias utilidades, não procede.

7. Entre os outros animais, de fato, alguns moderam em certa medida seusinstintos egoístas, parte em favor de sua prole, parte em proveito dos outros da própria espécie]16]. Esta disposição neles prole' [15] João Crisóstomo(.4d

omanos J7omiZzb,XXX]) diz: 'Pa/a natureza áo/manos

uma espécie de sociedade de seres humanos com outros iguais, como se nota

óamóémentre os anl)naus."Considero-seainda do mesmo autor, no capítulo primeiro da homilia .4d Ed)áes/os,onde nos ensina que a natureza nos deu sementes de virtude. O imperador Marco Antonino, que era grande filósofo, àãz\a. "Desde muito tempo se sabe que nascemos para a sociedade. Não é evidente que as coisas menosperfeitas são para as mais perfeitas e que as mais perfeitas existem umas para as outras?' [16] Um ve]ho provérbio diz: 'Z;ão não come carne de cáo. " Segundo Juvena](Sátiras XVI 163 e 159): '0 Élgre áurJbsowl'e em paz com o Éilgree o anima/ Jêroz

poizpa o dÉsua espáae."Há uma notável passagemde Fílon sobre o quinto preceito do decálogo(De Decalogo,:23) que aquele que o preferir poderá lê-la

em grego. Por ser muito extensa, a citarei uma só vez e em latim: ':Homens, sede ao menos imitadores dos animais mudos. Eles sabem responder aos bene-

Hcios que receberam. Os cães defendem a casa e chegam a morrer por seus donos expostosa perigo iminente. Diz-se que os cães que guardam os rebanhos precedemas reses e combatem até a morte para que os pastores nada percam.

Entre as coisasvergonhosas,não seria a mais vergonhosaque, em matéria de reconhecimento, o homem fosse veiacidopelo cão, o anima! mais meigo pelo mais feroz? Se os animais que vivem sobre a terra não bastam para nos ensinar, passemos às espécies de aves que percorrem os ares e aprendemos delas nosso dever. As cegonhas, impossibilitadas de voar quando velhas, permanecem em seus ninhos. As jovens que delas receberam a üda voam, por assim dizer, por todos os mares e terras, procurando por toda parte alimento para

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GROTIUS

de, assim ocremos, de algum princípio inteligente exterior, porquanto com relação a outros atou que não estejam muito acima de seu alcance, igual soma de inteligência não aparece neles. Pode-se dizer a mesma

coisa das crianças, nas quais, mesmoantes de qualquer instrução, se pode veri6lcar o aparecimento de certa inclinação para a benevolência, como Plutarco [17] o observou com sagacidade. Assim também, nessa

idade, a compaixãobrota espontaneamente.Quanto ao homem feito, capaz de reproduzir os mesmos atou a respeito de coisas que tenham relações entre elas, convém reconhecer que possui nele mesmo um pen'

dor dominante que o cevaao social [18], para cuja satisfação, somente ele, entre todos os animais, é dotado de um instrumento peculiar, a

elas.Aquelas, em vista de sua idade, gozam do repouso, da abundância e até das que elas retribuem, cada uma a seu tempo, o que receberam. Tão pouco, na

verdade, poderiam ser alimentadas quando ainda filhotes em começo de üdadelícias, enquanto essasse consolamdas diâculdades da vagem peia satisfação de ter cumprido um dever de piedade e pela esperança de tratamento similar da parte de sua prole, quando tiverem se tornado velhas por sua vez. Assim énem quando velhas, chegandoao íÍm da vida. Por isso, só a natureza !hes ensinou a alimentar em sua velhice aqueles que as nutriram

quando eram

ainda bem pequenas. Ouvindo isso, não teriam de se esconder de vergonha

aqueles que não tomam cuidado de seus pais e que negligenciar assim as pessoas que deveriam socorrer especialmenteou antes de todas as outras, sobretudo sabendo que, ao cumprir essedever, não dariam jamais o su6lciente para retribuir como deveriam? De fato, nada pertence realmente aos alhos que antes não seja dos pais, seja porque seus pais !hes deram de seu próprio bem, seja porque !hes forneceram os meios de adquiri-!os:' Sobre o cuida.ào que os pombostêm por seusnllhotes,veja-se Poríírio, em Z)enon .Ebu.Anima/lum (livro 111,10 e 23); com relação aos sáurios e certos tipos de peixes, ver Cassiodoro, em Ua/:üe (XI, 40)

[17] Plutarco, Canso/. ad Z:Érorem(608 D) [18]

Marco

Antonino(livro

IX,

42)

diz:

"0 comem

?ascea

para

/azar

o óem

aos

ouros." E também(livro IX, 9): ':Enconüa-se mais /aci/mentealgo fen'estro que não seja impelido para o chão do que um homem separado da espécie humana."E ainda(livro X, 2): "0 gue óprow'do de J'anãofende necessanbmenóe â wda em comtzn.ãâo."Nicetas Chomates(Z)e lsaacuo./Ing 111,8) afirma: 'H natureza gravou e plantou em nós uma simpatia interior para com aqueles que

nos sâo práxl.mos."Acrescente'se a isso o que diz Agostinho (Aurelius Augustinus) em -DeZ)ocr:ha (Zrlküana, livro ill, cap. 14

PROLEGÕMENOS

linguagem: E dotado também da faculdade de conhecere de ágil segundo princípios gerais, faculdade cujos atributos não são comuns a todos os seres animados, mas são a essência da natureza humana.

8. Este cuidado pe]a vida socia] [19], de que fa]amos de modo muito superficial, e que é de todo conforme ao entendimento humano, é o fundamento

do direito

propriamente

dito, ao qua] se referem [20] o

dever de se abster do bem de outrem, de restituir aquilo que, sem ser nosso, está em nossas mãos ou o lucro que disso tiramos, a obrigação de cumprir

as promessas, a de reparar o dano causado por própria culpa e

a aplicação dos castigos merecidos entre os homens. 9. Dessa noção do direito decorreu outra mais ampla. De fato, o

homem tem a mais que os demais seres animados, não somente as disposiçõespara a sociabilidade de que falamos, masum juízo que Ihe [19] Sêneca, na obra ,De Z?ene/zcíz)(livro IV cap. XVIII), diz: "Para saber que a

sentimento do reconhecimento é uma coisa que merece ser procurada par eia mesma é que se deve fugir de per si da ingratidão, porquanto nada perturba e

destrói tanto a união do génerohumano quanto essevício. De fato, de onde vem nossa segurança, senão dos serüças mútuos que nos prestamos? Não há senão esse comércio de bene8cios que torna a vida camada e que a previne contra ataques imprevistos. Se nos isolamos, o que somos?Presa dos animais, vítimas, sangue de pouquíssimo valor e muíh fácil de ser derramado. Os outros animais têm forças suõlcientes.para se defenderem. 'lodos os que nascem pagando e para viver uma vida segregada estão armados. A fraqueza, porém,

cerca o homem: nem a força dás unhas, nem aquela dos dentes o tornam berrívelperante os outros. A natureza, porém, Ihe deu duas coisas que, de fraco

comoera. o tornaram o mais forte de todosos seres: a razão e a vida sacia!. Assim é que aquele que, $ó, não pdderáaresistir a nenhum outro, se tornou o

dono de tudo. A vida em sociedadeé que ihe deu o domínio sobre todos os animais, domínio que exerce naturalmente sobre a terra, domínio que é a vida em sociedade que transformou em seu proveito sobre outros elementos, 4glpl' nio que se estende qÇé.mggmQ.$Qbrg.g.Bar. Foi ela que conteve a invasão das liõénças, que pio\ridenciou para que a velhice fosse socorrida, que deu alívio contra as dores, é ela que nos torna corajosos,permitindo-nos de apelar centra o acaso. Tenta supümí'!a e romperás a unidade da gênero humano que é o apoio da vida. Na verdade, é suprima-la, se não se fizer com que a ingratidão

não se torne uma coisaa ser e'atadapor si mesma. [20] Porfírio, em .De non Esu .4niman&íum(livro 111,26), escreve: 'y Justlba consísfe

em se abster dos bens alheíoge de não prejudicar a quem não nos prejudicou.

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permite apreciar as coisas,presentesefuturas, capazesde agradar ou de ser prejudiciais e também aquelas coisasque podem levar a isso. Concebe-se que é conveniente à natureza do homem observar, dentro dos limites da inteligência humana, na busca dessas coisas, a confor-

mação de um juízo sadio, o fato de não se deixar vencer pelo temor nem pelas seduçõesdos prazeres presentes, de não se deixar levar por um ímpeto temerário. O que está em.oposiçãoa um tal juízo deve ser consi-

deradocomocontrário também ao direito da natureza, isto é, da natureza humana.

10. A isso se refere ainda o que diz respeito a uma sábia econo' mia, falando individualmente, na distribuição gratuita das coisas que são próprias a cada homem ou a cada sociedade, como a partilha segundo a qual a preferência dada ora ao sábio sobre o que tem menos sabedo-

ria, ora ao parente sobre o estranho, ora ao pobre sobre o rico, segundo os atos de cada um e segundo a natureza que o objeto comporta [21]. Desde longo tempo já muitos autores fazem dessa economia uma parte

do direito, tomado em sentido próprio e estrito, embora essedireito propriamente assim denominado tenha uma natureza bem diferente, porquanto consiste em deixar aosoutros o que já lhes pertence ou em cumprir para com eles as obrigações que nos podem ligar a eles.

11. 0 que acabamos de dizer teria lugar de certo modo, mesmo

que se concordassecom isso, o que não pode ser concedido sem um grande crime, isto é, que não existiria Deus ou que osnegócioshumanos não são objeto de seus cuidados. O contrário nos tem sido inculcado em parte por nossa razão, em parte por uma tradição perpétua, e nos

tem sido confirmado por numerosasprovas e milagres atestados através dos séculos; disso se segue que devemos obedecer a Deus, sem exce-

[21] Ambrósio trata desse assunto em seu livro Z)e (2/iiciís(1, 30)

PROLEGõMENOS

ção, como ao Criador e ao qual nós somos devedores daquilo que somos

e de tudo o que possuímos,tanto mais que de muitas maneiras ele se tem mostrado extremamente bom epoderoso.Disso devemosconcluir que ele pode conceder aos que Ihe obedecem recompensas generosas, mesmo eternas, sendo ele mesmo eterno, e ele certamente quis que nele

se acreditasse, sobretudo se ele o prometeu de modo expresso. Nisso nós, cristãos, acreditamos, convencidos de que somostestemunhas por nossa fé indubitável.

12. Essa já é outra fonte do direito, além daquela que emana da natureza, a saber, aquela que provém da livre vontade de Deus [22], à

qual nossarazão nosprescrevede nossubmetermosde modoirrefutável. Esse direito natural de que tratamos, tanto o que serefere à sociabilidade do homem, como aquele assim chamado num sensomais lato, ainda que decorra de princípios inerentes ao ser humano, pode no entanto ser

atribuído com razão a Deus [23] porque foi e]e que assim dispôs para

que tais princípios existissem em nós.Nessesentido é que Crisipo e os estóicosdiziam que a origem do direito não deveria ser procurada em parte alguma a não ser no próprio Júpiter. E é deste nome de Júpiter que vem provavelmente a palavra empregadapeloslatinos para designar o direito [24] .

[22] De onde, segundo o pensamento de Marco Antonino(livro IX), 'bqueJe que age de modo injusto é ímpio

[23] Crisóstomo, nos comentários à l Epístola aos Coríntios (.fZomiZaXXVI, 3), escreve."Quandofalo da natureza, falo de Deus, pois é ele que é o autor da natureza. "Crisipo, em -De22ízhlll(em

Plutarco, Z)e Sfaic. Repugn., 1035 c), diz;

Não se pode encoiatrar outro princípio ou outra origem da justiça, a não ser

remontando a Júpiter e à natureza universal, onde de fato se deve começar, quando se quiser tratar dos bens e dos males. [24] A menos que não seja mais verdadeiro dizer, procedendo por dissecção, que como de osstzm se chegou a os, assim como de J'ussum se chegou a ./tzs,/usas e depois JEul), como de Pap/sízk se obteve /)aplzíz: A respeito, ver Cícero, livro IX

epístola XXI

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GROTIUS

13. Deve-se acrescentar a isso que Deus, pelas leis que deu, tornou essesprincípios mais sensíveis, mesmopara aqueles cujo espírito é menos apto ao raciocínio, e que proibiu de abandonar a si mesmos os movimentos impetuosos que nos arrastam por caminhos contrários, no sentido de nosso próprio interesse ou do interesse de outrem, adminis-

trando de maneira mais rígida aquelesque se manifestam com mais veemência e encerrando-os dentro de limites e de uma justa medida. 14.Além disso, a História Sagrada, independentemente do que

está contido em seus preceitos, não estimula de modo medíocre esta inclinação para a vida social, ensinando-nos que todos os homens nasceram dos mesmos primeiros pais. E assim que se pode, nesse sentido, alarmar com razão aquilo que, sob outro ponto devista, disse Florentino,

que a natureza estabeleceuentre nósum laço de parentesco.Disso decorre que é um crime para um homem armar ciladas para seu semelhante.

Entre os homens, os pais são como deuses [25] a quem é devida

uma honra, senão ilimitada, pelo menos de uma natureza especial.

15.A seguir, como é uma regra do direito natural ser fiel a seus compromissos (era necessário, com efeito, que existisse entre os ho-

mens algum meio de se obrigar mutuamente e não se pode imaginar outro modo mais conforme à natureza), dessa fonte surgiu o direito civil. De fato, aqueles que se haviam congregadoem alguma associação

de indivíduos ou que sehaviam submetidoao domínio de um sóhomem ou de vários, esseshaviam prometido expressamente ou, de acordo com

[25] Hiérocles, nos versos dourados, os chama '2/gasesferreséres" (vede Estobeu 79,53). Fílon, no Decálogo(23), os designa de 'iíetzses }usJ'reisgue imJ'fam o Z)eus efamo dando a w'da': Segundo Jerânimo(.Z@lsfoJa XCll), a união dos pais

com seus filhos é a segunda em linha, depois daquela que existe entre os homens e Deus. Platão chama os pais de 'imagens de Z)eus"(Z)e .Legfóu8 XI) Uma honra é devida aospais como aos deuses", à\z Àr\stbteXes tÉtica a Nicõmaco,

limo IX, cap. ll).

PROLEGÕMENOS

a natureza da coisa,presume-seque setivessem enganadotacitamente, de se conformar ao que tivesse estabelecido a maioria dos membros da

associação ou aqueles a quem o poder houvesse sido delegado. 16. O que, portanto, se diz, não somente por meio de Carnéades

mas também de outros, que "a utilidade é como a mãe da justiça e da eqüidade" [26] , não é verdade, se fa]armos com exatidão. Anatureza do homem que nos impele a buscar o comércio recíproco com nossos seme-

lhantes, mesmo quando não nos faltasse absolutamente nada, é ela própria a mãe do direito natural. A mãe do direito civil, no entanto, é a obrigação que a gente se impõe pelo próprio consentimento e, como esta obrigação extrai sua força do direito natural, a natureza pode ser considerada como a bisavó também do direito civil. Autilidade, contudo, vem

sejuntar ao direito natural. O autor da natureza quis, de fato, que, tomados um por um, nós sejamos fracos e que careçamos de muitas coisasnecessárias para viver comodamente, a âm de que sejamos impelidos mais ainda a cultivar a vida social. Quanto à utilidade, ela foi a causa ocasional do direito civil, pois a associação de que falamos, ou a

sujeição a uma autoridade, começaram a se estabelecer em vista de

alguma vantagem. Aqueles, enfim, que baixam leis para os outros se propõem, de modo geral, uma utilidade qualquer ao fazê-lo ou devem propâ'la, como mínimo. 17.Assim como as leis de cada Estado dizem respeito à sua utili-

dade própria, assim também certas leis podem ter surgido entre todos

os Estados ou entre parte deles, em virtude de seu consenso.Parece mesmoque regras semelhantes surgiram tendendo à utilidade não de [26] Acron ou mesmo qua]quer outro antigo intérprete de Horário faz a seguinte observação sobre essa passagem (Horácio, SaZü'ae1, 3,98): 'Zbfá em conÉradl-

ção com os preceitos dos estóicos. Querprovar que a justiça não é natural, mas

su/g 'u da uÉÍ/lande. " Contra essaopinião, ver o que escreveAgostinhoem -Z)e Z)ocÉrlba CZr2kíabna(livro

111, cap. XIV)

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cada associaçãode homens em particular, mas do vasto conjunto de todas essas associações.Esse é o direito chamado de direito das gentes,

porquanto distinguimos estetermo do direito natural. Esta parte do direito natural foi totalmente omitida por Carnéadesque distribui todo o direito em direito natural e em direito civil próprio de cada povo. E, no entanto, devendo tratar do direito que existe entre as nações(fala, com efeito, sobre as guerras e sobre as coisas conquistadas na guena), deve-

ria certamente ter feito mençãodessedireito. 18. Carneades se expressa muito mal ao classiâcar a justiça como

loucura. De fato, mesmo que ele o aüume, não é louco o cidadão que em seu país se conforma às leis civis, mesmo que para respeitar essas leis

tivesse que deixar de lado certas coisas que Ihe seriam vantajosas. De igual modo, não é louco o povo que não preza tanto seu interesse parti-

cular a ponto de negligenciar os direitos comunsa todas as nações.A razão é, de fato, a mesma nos dois casos.Assim como o cidadão que infringe o direito civi]]27] em vista de sua utilidade presente,destrói o germe que contém seu interesse futuro e o de toda a sua posteridade, assim também o povo violador do direito da natureza e das gentes dez'ruba

para sempre os anteparos que protegiam sua própria tranquilidade . Mesmo que não se obtivesse nenhuma utilidade com a observação do

direito, seria da mesma forma obra de sabedoria, e não de loucura, deixar-se levar para onde sentimos que nossaprópria natureza nos conduz.

[27] MarcoAntonino, a propósito, usa essamesmacomparação(livro IX, 23): '7bda ação de tua parte que não se refira, de perto ou de longe ao propósito da comunidade, !anca a discórdia na vida e impede que seja uniforme. Não é menos sedlcüsa que o ó agua/e que causa dywbões120pomo." E continua(livro X1, 8à="0 homem que se separou de um só homem não pode ser considerado 30mo se não se tivesse separado de todo o género humano." Be lato, como Q mesmo Antonino diz(livro VI, 54), o que é útil ao enxame o é também à abelha

PROLEGÕMENOS

19. Por isso, não é.verdadeiro dizer "que é necessário proclamar que as ]eis foram criadas por medo da injustiça" [28] , pensamento que, em Platão [29] , se encontra exp]icado assim: as leis foram inventadas pelo temor de ser vítima de uma injúria e que os homens se sentem impelidos por uma espéciede força para cultivar a justiça. Esta propo' lição diz respeito somente às instituições e às leis que foram estabelecidas

para facilitar a colocaçãoem prática do direito. E assim que muitos homens, de per si fracos, não querendo se deixar oprimir pelos mais fortes, se uniram para estabelecer e manter por meio de forças comuns os tribunais,

a fim de que todos juntos predominassem sobre aqueles

aos quais cada um deles não seria capaz de resistir sozinho. E precisa-

mente nessesentido que se pode admitir o que se diz, ou seja, que o direito é a vontade do mais forte. Isto quer dizer que o direito carecede seu efeito exterior se não tiver a força que Ihe dê sustentação.Assim Só[on rea]izou grandes coisas, como e]epróprio [30] o dec]arava, 'juntando sob o mesmo jugo a força e o direito" [31] . 20. Ainda que desprovido, contudo, do apoio da força, o direito não üca privado de todo efeito, pois a justiça traz segurança à consciên-

cia, a injustiça produz torturas e estragosno peito dostiranos, seme[hantes aos que P]atão descreve [32]. O consensodas pessoas de bem aprova a justiça e condena a injustiça. O que há de mais importante, porém, é que esta encontra um inimigo e aquela um protetor em Deus que reserva seus julgamentos para depois desta vida, embora muitas vezes, já nesta vida, nos faça sentir seus efeitos, como a história nos

ensina através de numerosos exemplos. [28] Quintus Horatius Flaccus, Sa&üze (1, 3,111). [29] Platão, ..4.RepzíÉdl'ca(11, 2); G(írglbs(38) [30] Plutarco, idas Pal'a7e/as(.Sb/am,86 c). [31] Assim diz Ovídio, em Mefamo/:doses(V]11, 59): '%a/efcausa, cuusamque fuenl7bas

a/mJb"(Tem razão e sua razão é defendida pelas armas). [32] Platão, G(írg7as (80).

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'kiA'.f 21. Se muitos homens exigem a prática da justiça por parte dos cidadãos, mas fazem pouco caso se a mesma é praticada num povo ou pelo chefe de uma nação, a causa desse erro provém em primeiro lugar do fato de que não consideram outra coisa no direito senão a utilidade

que dele decorre; utilidade evidente no que diz respeito aos cidadãos,

porquanto, isolados, sãoimpotentes para se defender a si mesmos.Os grandes Estados, ao contrário, que parecem encerrar em si tudo o que é necessário para viver em segurança, não parecem ter necessidade des-

ta virtude que diz respeito ao que está fora e que leva o nome de justiça. 22. Para não repetir o que eu disse, que o direito não foi estabele-

cido em vista da utilidade, não há nação tão forte que, às vezes, não possa ter necessidade do auxílio das outras, seja com relação ao comér-

cio, seja até para rechaçar os esforços de várias naçõesestrangeiras unidas contra ela. Por isso, vemos que os povose os reis mais poderosos buscam alianças que não possuem qualquer eficácia, segundo a opinião daqueles que encerram a justiça dentro dos limites de cada Estado. Tanto isso é verdade que todas as coisas se tornam incertas a partir do L momento em que se bane o direito.

23. Se não existe qualquer sociedade que possa se manter sem o

direito(o queAristóteles provava com o memorável exemplo dos bandidos [33]), é certo que a associação que une o gênero humano ou diversos 133]Em Esfoóeu(l0,50). Crisóstomo, em seus comentários ao capítulo IV da Epís-

tola aos Efésios(/ibmJjl'a IX,3), escreve: 'Z/ruam pode/á cíízezporém, como pode ocorrer que os bandidos vivam em paz? Quandopode acontecer isso? Responde,por favor. E quando não agem como bandidos. Se não observarem as !eis da justiça na partilha que entre sífazem e se a distribuição não for igual, Fere k chega/ão âs was de bafo famóám enü'e eles."Plutarco(em /}zzüus, 388 A), depois de relatar o que dizia Pirro, a saber, que deixaria seu reino a seu filho

que, dentre todos, tivesse a espada mais afiada, aproxima essas palavras do verso que Eurípides traz em .4s HenicTas(68): "Que cííwdam o paÉz:ímóz2ib c'om uma espada ensanguentada." Depois acrescenta essabela exclamação: '7bnfo o desejo de se engrandecer éinsociáve! e ferínd." Ctcexa,em Epistolae (XX,'t6à, üz. "'Iluda éincerto,

quando a gente se afasta do direito."

YcÀÜ)\o (.histórias,

!V,

29b escxese'."De fato, o que contribui para desbaratar as sociedadesde malfeitores e bandidos é o fato de não observarem entre eles as regras da justiça, em suma, quando não respeitam a palavra dada uns aos outros.

PROLEGÕMENOS

povos entre si tem necessidade do direito. Foi o que reconheceu aquele [34] que disse que não se deve cometer nada de vergonhoso, nem mesmo

no interesse da própria pátria. Aristóte]es]35] censura com severidade

os homens que não aceitam ser comandados,a menos que subsista algum direito para tanto, e que, comrelação aosestrangeiros, não se importam do que é justo e do que não o é. 24. Esse mesmo Pompeu que citamos há pouco, num sentido oposto, tomou estas palawas de um certo rei de Espanta que dizia que

"a república mais feliz seria aquela cujas fronteiras seriam demarcadas pela lança e pela espada" e as corrigiu dizendo que "o Estado verdadei-

ramente feliz seria aquele que tivesse ajustiça por fronteiras". A esse respeito ele pede invocar a autoridade de um antigo rei de Espanta que antepâs a justiça à coragem militar [36], pe]a simp]es razão que a força deve ser dirigida por uma certa justiça e que, se todos os homens fossemjustos, não teriam necessidadedessamesma força. Os estóicos [37]

definiam a força como"uma virtude que combate pela eqüidade" Temístio, em seu discurso para Va]etite]38], diz de modo eloqüente que

[34] Marcus Tüllius Cicero, .De Omc2)h(1, 45,159). [35] Aristóteles, em Po/fUGa (V]1, 2). P]uearco, em Uda de .4gesl7au (617 D), escrevem

Os lacedemõilios, fazendo consígtir a parte principa! da honestidade no interesse de sua pátria, não colillecem e não aprendem outro direito senão o que JZespaJ«eceengrandecer Zsparfa. "A respeito dos mesmos lacedemõnios, assim

falam os atenienses, em Tucídides(livro V. 105): 'Z/es oóseruam com r2kor as regras da virtude entre eles e o que se refere às leis de seu país. Para com os estrangeiros, porém, como se comportam?A respeito disso, muitas coisaspoderiam ser mencionadas.Resumindo brevemente, há quem diga que consideram como honestas somente as coisas que são agradáveis e justas, aquelas que lhes

são úteis.

[36] Agesilau, ouvindo chamar de Grande o rei dos persas, diz: "Olmo pode se/' maior do que eu, se nâo áor ma s ./usfo?"Essas palavras se encontram em Plutarco(ÁpopáÉüegmaóa,

213 C)

[37] Em Cícero,na obra De Oz7}aüs (1, 19,62). [38] Em 22ísaursos (X, 132)

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osreis, comoo exige a norma da sabedoria, não têm responsabilidade somente sobre a nação que lhes é confiada, mas sobre todo o gênero humano e que, segundo seus próprios termos, não são somente amigos

dos macedónios ou dos romanos, mas amigos da humanidade [39]. O nome de Manos [40] não se tornou odioso para a posteridade por outra razão senão porque ele conferia como fronteiras para sua equidade, os limites de seu império.

25. Muito menos deve-se admitir, o que alguns imaginam, que

na guerra todos os direitos sãosuspensos,que a própria guerra não deve ser encetada a não ser para obter justiça e que, quando iniciada,

deve ser conduzida unicamente nos termos do direito e da boa-fé. Demóstenes [41] diz com razão que a guerra é dü'igida contra aque]es que não podem ser dominados pelas vias judiciais. As formas da justiça

são eficazes contra aqueles que se sentem impotentes para resistir. Quanto aos que podem lutar ou que julgam podê-lo fazer, emprega'se as

armas contra eles. Para que a guerra seja justa, no entanto, não se deve movê-la com menos sensibilidade como se costuma usar na distri-

buiçãodajustiça. 26. Que as leis se caiem, portanto, no meio das armas, mas somente as leis civis, aquelas que dizem respeito aos tribunais, aquelas que são próprias somente para a paz e não as outras que são perpétuas

139]Marco Antonino(VI, 44) dizia de uma maneira excelente que tinha '"por c2dnde e por pátria, comoAntonino, Romã, e comohomem, o mundo'. l?axtix\a, em De

non ESU.4nilmanÉ2'um(111, 27) dizia que 'blue/e que se deixa conduza'pe/a razão presta serviço de boa vontade a seus concidadãos,mais ainda aos estrangeiros e aos homens em geral; e quanto mais se mostra submisso à razão, mas se aproxima da divindade". [40] Sobre isso, há um verso de um antigo poeta: 'nada a iZóa gnm/a, cyz:ím da soó

o Jugo de ]l/lhos. "A respeito desse assunto ver Cirilo de Alexandria, Goníra Juúbnum

(livro VI).

[41] Demóstenes,

.De CZersoneso

(29)

PROLEGÕMENOS

')

e válidas para todos os tempos. Foi dito, de fato, com muita propriedade

por Dion Crisóstomoou Dion de Prousa]42] que, entre inimigos, asleis escritas, isto é, as leis civis, não têm nenhum poder, mas que existem

entre e]es]eis não.escritas [43], ou seja, aque]as que a natureza pres' greve ou que foram estabelecidas pelo consenso dos povos. E o que nos ensina essa antiga fórmula dos romanos: "Acho que devemos recuperar

estas coisas por uma guerra sem mácu]a e justa" [44]. Os mesmos antigos romanos, como Varrão [45] notava, não empreendiam a guerra

senãotardiamente e nela não cometiam nenhum abusoporque pensa' vam que nenhuma guerra devia ser feita senão fosselegítima. Camilo [46] dizia que se deve fazer a guerra com não menosjustiça que intrepidez. Segundo Cipião, oAú'icano, o povo romano empreendia suas guer-

ras com justiça e as terminava da mesma maneira [47]. Nesseautor [48] se pode ]er que a guerra tem suas ]eis, bem como as tem a paz.

Outro [49] admira Fabrício comoum grandehomemporque o que é muito difícil, conduzia a guerra comhonestidade e acreditava que há coisas ilícitas, mesmo com relação a um inimigo.

[42] Dion Crisóstomo, Oraúones(76) [43] Foi perguntado ao rei A]fonso se devia maia aos livros ou às armas. Respondeu

que nos livros havia aprendidoa profissãoda guerra e o direito da guerra. Plutarco((hmiZo,

134 B)

diz

que

'bnÉre

aspessoas

de óem

.üá /els

da Faena

e

quenão se deveria !evar c desejode vencera ponto de não estar uma vantagem proveniente de anão má e ímpia [44] Tito Lívio, ..4ó Z:4óe Cona'fa(1, 32,12).

[45] Marcus Terentius Vero Reatinus, Manias(XID. [46] Tiro Lívio, ..4ó Z:4.óeaondlía(v.

27,6).

[47] Tito Lítio, ibidem(XXX, 16,9).

[48] Tiro Lívio, ibidem(V. 27,6). [49] Lucius Annaeus Seneca, Ed)JsfuJae(120, 6)

H u oo

GROTI

US

27. Os historiadores nos mostram em toda parte quanta influência tem na guerra a consciência que se tem da justiça [50] .Atribuem

muitas vezesa vitória principalmente a esta causa. Daí estesditos populares: as forças do soldado são abatidas ou renovadas pela própria

guerra; aquele que optou pelas armas injustas raras vezesretorna são e salvo; a esperança é a companheira

de uma boa causa; e outros ditos

concebidos no mesmo sentido. Os êxitos felizes de empreendimentos injustos não devem abater ninguém. Basta que a justiça da causa tenha uma certa e mesmo uma grande influência sobre as ações,embora o efeito dessa influência, como ocorre nas coisas humanas, seja muitas [50] Apiano(C#wZ

11, 51) ceva Pompeu a dizer com razão: '2)amamos ca/ocas' nossa

conâlança nos deuses e nas causas da guerra que honesta e justamente empreendemos para defender com empenho a$ instituições

autor((lIdA

da pátria."No

mosTRo

IV, 97), Cássio diz: '?Uaquer:m, a me/Zor esperança é a que repotzsa

no dEreifa." Josefo, em sua J7hfá:fa ..ánÉzka(XVI5,3), escreve: 'Z)agua/e em que o düeuZonãa óem ue4 Z)eus se aÉasZa,"Sobreisso, se encontram muitos pensa' mentor em Procópio, como o discurso de Behsário, a caminho da Africa, onde se depara com essas palavras(.De .Be/7aUandaJorum,1, 12), entre outras: 'H coragem não nos dará a ütória, se não tiver gamocompanheira a justiça." Bm outro discurso do mesmo general, antes de um combate nas proximidades de

Cartago (ibidem, 19), e no discurso dos lombardos aos hérulos (Z)e .Be/7o Go6íüartzm,11,14), em que se encontram essaspalavras, mas que em parte as

moà:inca.mos: 'Tomamos por testemunha esseDeus, cujo poder em mínima parte marcha junto com toda a força humana. No tocante às causas da guerra, pode'se crer que eie dará à batalha um êxito proporcional ao que é detido a uns e oaÉros." Essas palavras foram logo comprovadas por um acontecimento maravilhoso. O mesmo escritor coloca essas palavras na boca de Totila aos godos

(ibidem, 111,8): ':?\Uopode aconfec'eEnão pode ocarrez; eu o dlêo, gue agueJes que usam da violência e da injustiça conquistem a glória combatendo,mas a s02'fena guerra se conho/rz2a â maneírn como se WHe."Logo após a tomada de Romã, Totila faz outro discurso(ibidem, 111,21) sobre o mesmo tema. Agatias (livro 11, 1) escreve: '% ]}2/[zsÉlba e o esquecímenfa dÉ Z)eus domem ser enfados

sempre, pois são coisasprejudiciais, sobretudo quandohouver um confronto a nado com o ]hím4go." Prova isso(ibidem, 10) com notáveis exemplos extraídos da história de Daria, de Xerxes e dos atenienses na Sicília. Veja-se também em Herodiano(Vl11, 37), o discurso de Crispino aos habitantes de Aquiléia. Em

Tucídides (Hzsfóüas da Guerra no Pe/oponeso,Vl1, 18) pode-se ler que os lacedemõniosatribuem as derrotas sofridas por eles em Pêlos e em outros lugares porque haviam recusadouma arbitragem que lhes havia sido oferecida. Como porém, a seguir, os atenienses, depois de muitas empreitadas desas tragas e injustas, haviam recusado a mesma arbitragem, a esperança de resultados melhores retornou para os lacedemânios.

PROLEGÕMENOS

vezes impedido pela interposição de outras causas. A opinião de que a

guerra não foi movida com temeridade nem com injustiça e que é conduzida de uma maneira legítima tem até uma grande eficácia para

conciliar amizades que ospovos,comoosindivíduos, têm necessidade

para muitas coisas.Ninguém, de fato, sealia facilmente aosque têm reputação de fazer pouco caso do direito, da justiça e da boa-fé.

28. Estou convencido, pelas considerações que acabo de expor, que existe um direito comum a todos os povos e que serve para a guerra

e na guerra. Por isso tive numerosas e graves razões para me determinar a escrever sobre o assunto. Via no universo cristão uma leviandade com relação à guerra que teria deixado envergonhadas as próprias na-

çõesbárbaras. Por causasfúteis ou mesmosemmotivo se corria às armas e, quando já com elas às mãos, não se observava mais respeita

algum para com o direito divino nem para como direito humano, como se,pela força de um edita, o furor tivesse sido desencadeadosobre todos os crimes.

29. Ante essa ferocidade muitos homens em nada cruéis chegaram ao ponto de proibir qualquer espéciede guerra ao cristão151], para quem a regra consiste sobretudo no dever de amar a todos os homens. Nesse modo de pensar parece que Éeper6ilavam às vezes Jean Férus e

nossoErasmo, eminentes amantes da paz eclesiástica e da paz civil. Assim não agiam, porém, como chegoa pensar, a não ser no intuito de deixar de lado, como temos o costume de fazer, as coisas que são rejeita-

daspelo outro, para que retornem em suajusta medida. Esseexagero nos esforços em sentido contrário é, muitas vezes, de tal modo pouco

proveitoso, que ele próprio se torna prejudicial, porque o excessoque aí

[õil Íà iÚii iÓ(De .Restzrrecéüne aarnh, XV]) diz: 'y espada a'uenóa serve mu/fo bem para a guerra, melhor ainda para o homicida.

H UGO

GROTIUS

se encontra, deixando-sefacilmente surpreender, tira sua autoridade sobre outras coisasque podemser ditas noslimites do verdadeiro. Foi necessário, pois, remediar estesdois extremos, para que não se chegas-

sea acreditar que tudo éproibido ou que tudo épermitido. 30. Quis também, ao mesmo tempo

a única coisa que ora me

restava, expulso indignamente de uma pátria ornada por tantos de meus

trabalhos --, me tornar útil pelo estudo ao qual me apliquei em minha vida particular, a esta jurisprudência que antes pratiquei nos empre' gospúblicos com a maior integridade de que era capaz. Vários se propu'

seram até o momento a Ihe conferir a forma de uma arte. Ninguém conseguiu. Isso não pode ser conseguido, salvo -- sobre isso não há ainda

suficiente preocupação-- se forem separadasde modo conveniente as coisas que procedem do direito positivo daquelas que decorrem da natureza. Os preceitos do direito natural, sendo sempre os mesmos, podem

facilmente ser reunidos em regras de arte, mas as disposições que pro'

cedem do direito positivo, mudandomuitas vezese variando de acordo com os lugares, estão acima de todo sistema metódico, como as outras noções das coisas privadas. ( P cv(À l (.A.rQc\r (.b")

31. Se aqueles que se consagraram ao culto da verdadeira justiça procurassem tratar separadamente as partes dessajurisprudência natural e perpétua, depois de ter afastado o que pede sua origem da vontade arbitrária

dos homens; se alguém, por exemplo, tratasse as leis,

outro ostributos, outro o ofíciode juiz, outro a interpretação das vonta-

des,outro a prova dosfatos, se poderia fazer depois,de todas essas partes, um corpo completo.

32, Quanto a nós,certamente demonstramos qual via deveser seguida, muito mais pelos efeitos do que com palavras, nesta obra que contém de longe a parte mais nobre da jurisprudência.

PROLEGÕMENOS

33. De fato, no primeiro

livro, depois de falar da origem do direi-

to, examinámos a questão geral para saber se há alguma guerra que sejajusta. Depois, para conheceras diferenças que existem entre uma

guerra pública e uma guerra privada, tivemos de explicar qual é a natureza da soberania, quais sãoos povos que dela gozam, quais os reis que a possuem em sua integridade, quais os que a exercem somente em

parte, que a usam com o direito de alienação ou que a detêm sob outra forma. Em seguida, tivemos de falar do dever dos súditos para com seus chefes.

34. O segundo livro, tendo por objeto a exposição de todas as causas das quais a guerra possa surgir, explica de modo amplo quais coisas sãocomuns, quais são susceptíveis de apropriação, qual direito pertence às pessoas sobre as pessoas, qual obrigação decorre de sua propriedade, qual é a regra das sucessões ao trono, qual ligação procede do pacto

ou do contrato, qual a força das alianças, do juramento privado ou público, e como é preciso interpreta-los, qual deve ser a reparação de um dano causado, qual a inviolabilidade dos embaixadores, qual direito pre-

side a sepultura dosmortos, qual a natureza das penas. 35. O terceiro livro, cujo tema principal é delinear o que é permitido na guerra -- depois de ter ressaltado a distinção do que é feito com impunidade ou mesmo do que é sustentado como legítimo entre os po' vos estrangeiros, do que nada encerra de viciado em si -- descreve as

diversas espécies de paz e todas as convençõesusadas nas guerras.

36.Aimportância desta obra parecetanto maior porquanto ninguém, como já o disse [52] , tratou toda esta matéria e os que trataram

parte dela deixaram muito trabalho a outros. Dentre osantigos filóso-

[52] Prolegâmenos, l

H UGO

GROTIUS

fos nada se encontra dessetipo, nem entre os gregos,em nome Ão! quais Aristóteles

escreveu um livro intitulado

(1)sDTFe/fos dn Gtzel:rz,

nem -- o que teria sido muito desejável -- entre aqueles que seguiram o cristianismo nascente. Mesmo os livros dos antigos romanos sobre o direito fecial não nos transmitiram nada, a não ser seu título. Aqueles que escreveram resumidamente sobre casosespecíficos,chamados por eles de casos de consciência, não trataram, como ocorreu com outras matérias, a respeito da guerra, das promessas, do juramento, das represálias, a não ser em capítulos. 37.Vi também livros específicossobre o direito da guerra, alguns escritos por teólogos como Francisco Vitoria, Henrique de Gorckum, Guilherme Mattheus]53] e outros escritos por doutores de direito, como

Jogo Lupus, François Arius, Jogo de Lignano, Martinus Laudensis. Todosessesautores pouco disseram sobre assunto tão fértil e a maioria o fez mesclando ou confundindo sem ordem alguma o que é relativo ao

direito natural, ao direito divino, ao direito das gentes, ao direito civil, que decorrem de cânones. 38. O que a todos eles faltou, sobretudo foi a luz da história que o

eruditíssimo Fabertentou suprir em alguns capítulosde seusSemestres, mas seguindo o plano que ele se havia proposto e citando somente autoridades. A mesma coisa foi tentada com mais detalhes, anexando a algumas regras gerais grande quantidade de exemplos, por Balthazar Abala e, mais do que ele, porAlberico Gentile. Como sei que a exatidão deste último pode ajudar outros autores e reconheço que dele tirei proveito, deixo ao julgamento dos leitores o cuidado de apreciar o que repro'

var nele, no que se refere à natureza de seu ensinamento, o método e a

[53] Acrescente-se a essesteó]ogos J3ão de Cartagena, cujo ]ivro foi pub]icado em Romã no ano de 1609

PROLEGÕMENOS

distinção das questões, bem como das diversas espécies de direito. Diria

somenteque ele costuma muitas vezes,na soluçãodas controvérsias, fundamentar-se em pequeno número de exemplos que nem sempre são

aceitáveis ou seguir a opinião dejuristas modernos, exposta em consultas, das quais grande número foi redigido em vista do interesse particular dosconsulentes e não segundo as regras naturais do justo e honesto.

Nas causasque levam a proferir se uma guerra é justa ou injusta, Abala sequer tocou. Gentile esboçou, segundo seu modo de ver, alguns tipos gerais, mas muitos pontos relativos a célebres e frequentes questões, sequer os abordou. 39. Nós, para que nada de similar nos escapasse, tomamos espe'

cial cuidado e indicamos as fontes de apreciação,pelas quais se tornaria fácil explicar, mesmo no caso em que algum detalhe fosse por nós omitido. Resta expor brevemente com que auxílio e com que cuidado eu me propus a escrever esta obra. Em primeiro lugar, me preocupei em ligar as provas às coisas que dizem respeito ao direito da natureza junto com noçõestão seguras que ninguém as possa negar, a menos que se violente. De fato, os princípios desse direito, se for dada atenção, são claros e

evidentes de per si, quase tão claros como as coisasque percebemos pelos sentidos externos, os quais não enganam se os órgãos da sensação estiverem bem conformados e se não carecem de tudo o que é necessário

para a percepção. Por isso é que, em .4s Ren.fazes,Eurípides [54] leva Polínice a falar desse modo, porquanto quer que a causa tenha sido manUestamentejusta:

[54] Eurípides, .4s -FbnJ'aias(494-6)

H U GO GKOttUS

'As palavras que te dirigi, minha mãe, em subterfúgios não estão envoltas, mas que, apoiadas najustiça e na honestidade, são

igua[mente evidentes para os ignorantes e para os sábios."]55] O poeta faz seguir de imediato uma decisão do coro (composto de

mulheres, e mesmo de mulheres bárbaras) que aprova essaspalavras.

40. Fiz uso também, para provar a existência dessedireito, do testemunho dos filósofos, dos historiadores, dospoetas e por fim dos oradores [56] . Não porque se deva confiar neles indistintamente, pois eles têm o hábito de servir aos interesses de sua seita, de seu assunto ou

de sua causa, mas porque, do momento em que diversos indivíduos em

tempos e lugares diferentes, afirmam a mesma coisa como certa, deve-se conectar esta coisa a uma causa universal. Essa causa, nas ques-

tões que nos ocupam, só pode ser uma justa conseqüência procedente

dosprincípios da natureza ou'um consensocomum.A primeira nos revela o direito da natureza, o segundo, o direito das gentes. Adiferença

que existe entre ambos deve ser distinguida não através dos próprios termos(pois os autores confundem os termos referentes ao direito natural e ao direito das gentes), lhas deve ser entendida através da qualida-

de da matéria. De fato, quando através de princípios certos uma coisa não pode ser deduzida por um raciocínio correto e, contudo, parece ser observada em todos os lugares, segue-se que ela deve ter sua origem na vontade lide dos homens.

[55] O próprio Eurípides (.4ndrànaca,243), fazendoHermiona dizer 'Ago se wl'e nesga cidade segundo as ]el's dos óáz'óai'os';coloca essa resposta na boca de

õaxlàxõmaça. "0 qué é vergonhosopara eles,aqui também não está isento de culpa

[561 Por àue não servir-se deles, quando Alexandre Severo relia sem cessar os livros de Cícero, a -Repzíó/]cae o tratado Z)os.Deveres?

PROLEGOMENOS

41. Por isso sempre tive o particular cuidado de separar esses dois direitos, tanto um do outro, como do direito civil. Mais, no direito das gentes, distingui entre o que é verdadeiramente e sobtodos os aspectos da essência desse direito e o que produz somente um efeito exter-

no, à maneira desse direito primitivo. A proibição, por exemplo, de re-

sistir pela força ou mesmo o dever de sedefender em qualquer lugar que seja pela força pública, em vista de alguma vantagem, ou para evitar graves inconvenientes. Veremos no corpo desta obra como esta observação é necessária para muitas coisas. Não separamos com menos cuidado o que é de direito estrito e propriamente dito, de onde surge

a obrigação da restituição, e o que é dito ser de direito, porque, agindo

de outra forma, é ferir algum outro princípio da justa razão. Já dissemos anteriormente algo sobre esta distinção [57] .

42. Entre os filósofos,Aristóteles ocupasemdúvida o lugar mais destacado, considerando tanto a ordem que ele confere às matérias, a fineza de suas distinções ou o peso de suas razões. Graças a Deus essa

superioridade não foi transformada em tirania depois de algum tempo, a ponto de a verdade à quaIAristóteles

consagrou 6elmente

seus cuida-

dosnão encontra maior opressorque no próprio Aristóteles. Quanto a mim, sigo aqui e em outros lugares a liberdade dos antigos cristãos que não se haviam comprometido com a escola de nenhum dos filósofos, não

porque eles concordassem com aqueles que diziam que nada pode ser percebido pelo conhecimento -- o que é o cúmulo da loucura --, mas porque eles pensavam que não existia escolaalguma que tivesse contemplado a verdade por inteiro, nenhuma que tivesse percebido senão alguns segmentos da verdade. Por isso, eles julgavam que reunir num

[57] Prolegâmenos, 9, 10

H UGO

GROTIUS

conjunto as verdades esparsas de cada fi]ósofo [58] e disseminadas

no

seio de escolas, nada mais era que fundar um ensinamento verdadeira-

mente cristão. 43. Entre outras coisas, para dizer de passagem o que não é estranho a nosso assunto, não é sem razão que alguns platónicos e antigos cristãos [59] parecem ter-se afastado de Aristóteles, no ponto em que este filósofo colocou a própria natureza da virtude num justo meio de paixões e de ações.Uma vez posto este princípio, levou-o a fazer uma

sóvirtude de duasvirtudes distintas, tais comoa liberalidade e a economia; a opor à veracidadeextremosentre os quais não há oposiçãoalguma, como a jactância e a dissimulação; e a impor a classificação de

vícios a certas coisas que não existem ou que não são propriamente vícios, como o desprezo dosprazeres e das honras e a impotência em se irritar contra os homens.

44. Afalsidade desse princípio posto de uma maneira geral provém do exemplo da justiça. Como não pudesse encontrar o oposto dessa

virtude, que é o muito e o muito pouco, nas paixões e nas ações que Ihe

[58] Essas palavras são de Lactâncio(-Dfwharu/n Insfifuüonum,

Vl1, 7). O apologeta

Justino(Hpo.lcigzbs,11?13) escreve: ':AUoé que os açagmasde .l?8íão seybmde

;odo diferentes dos dogmasde Crista, mas não concordamem todos os seus aspectos, o mesmo ocorrendo com aqueles de outros f\lósofos, como os estói:osl dos poetas. e dos historiadores. Cada um deles, com relação à razão natural

própria de todos os homens, viu em parte o que Ihe é conforme e o descreveu bem afó esseponto. " Tertuliano(.Z)á .Anima,' 20) diz 'iSHnecasemp2'enosso

mas ressalta também (.4dversusJudaeos, 9i que ninguém dentre os homens pede oferecer um conjunto completo de verdades espirituais, senão em Cristo. Agostinho(.EbJbftz/a

202) escreve:

't2s costumes

que Oybero e cHaTos /i/cásoáo

recomendam são os mesmos que são ensinados e aprendidos nas igrejas e que

se dlHundemem lodo o unlFerso."Veja-se o que diz a respeito disso o mesmo

:l?lBãlET e;,ü'!h=:%,::.rTZ.!=m;' mm [59] Trata disso longamente Lactâncio, na obra 22íl'ínarum InsúfuéJbnum(livro VI,

cap. XVI XVI, XVll). Cassiodoro escreve: "Àbn aHecflbus mo},erT'.sed secundam

eos mol,ez uÍÜe ve/ no;duJ#'Indo deixar-se leva! pelas paixões, mas segundo elas ser impelido para o útil ou para o prejudiciall

PROLEGõMENOS

são a consequência, ele procurou a ambos nas próprias coisas em que a

justiça se exerce.Isto seria, em primeiro lugar, saltar de um gêneroa outro, defeito que o próprio Aristóteles censura com razão em outros.

Em segundolugar, aceitar menosdaquilo que é próprio, na verdade, pode até constituir um fato censurável, uma vez que, de acordo com as

circunstâncias, somosdevedorespara conoscomesmose para com os nossos. Isto, porém, não pode ser contrário à justiça que toda ela consis-

te na abstenção do bem de outrem. Chega mesmo a se iludir, quando não acha que um adultério cometido em momento de paixão, que um assassinato inspirado pela cólera sejam considerados propriamente uma

injustiça, enquanto a injustiça não tem outra característica senãoa de ser uma usurpação do bem dos outros, pouco importando se provém da avareza, da sensualidade, da cólera, de uma compaixão imprudente ou

de um desejo desenfreado de se exaltar, fontes habituais das maiores injustiças. Desprezar, contudo, todos essesincitamentos, quaisquer que

sejam, na única visão de que não atentam contra a sociedadehumana, é a própria

injustiça.

45. Para retornar ao ponto onde estava, é verdade que ocorre a algumas virtudes buscar algum tempero nas paixões, mas não é por'

que tal sejao caráter próprio eperpétuo de toda virtude. E porquea Teta razão, que a virtude segue em tudo, nos prescreve em certos casos observar uma medida e nos incita, em outros, a nos levar tão longe quanto possível. De fato, nós não podemos servir excessivamente a Deus; a superstição não peca porque serve demais a Deus, mas porque o serve mal. Não podemos desejar demasiadamente os bens, nem temer por demais os males eternos, nem odiar demais o pecado. Bem verdade é,

portanto, o queAulus Ge]]ius [60] sub]inha, ao dizer que há certas coi-

[60] Aulus Gellius (IV, 9,14)

H UGO

GROTIUS

sas, cuja amplitude é restringida por alguns limites; quanto maiores e

amplos forem, mais sub]imes também e]asserão. Lactâncio [61], depois de ter dissertado longamente sobre as paixões, diz: "A regra da sabedoria consiste não em moderar as próprias paixões, mas em agir sobre as causas que as produzem, porquanto são excitadas pelos objetos

externos. Não são particularmente os movimentos das paixões que devem ser reprimidos, pois eles podem ser fracos no maior dos crimes e violentos sem levar a crime algum". Nossa intenção é dar destaque a

Aristóteles, mas comaquela liberdade que ele mesmo sepermitiu com seus mestres, por amor da verdade.

46. A história tem uma dupla utilidade para nossotema. Ela fornece exemplos e apreciações.Os exemplos têm tanto mais autoridade porque são extraídos dos melhores tempos e dosmelhores povos. Por isso preferimos os antigos exemplos dos gregos e dos romanos aos outros. As apreciações não devem ser desdenhadas, sobretudo aquelas que estão de acordo entre elas, pois o direito natura], como já dissemos [62],

se prova de algum modopor meio delas e, para o direito das gentes, não há outro meio de estabelecê-lo. 47. Os pensamentos dos poetas e dos oradores não têm tanto peso.

Fazemos muitas vezes uso deles não tanto para apoiar neles nossas palavras, mas porque dascitações dessesautores setira algum ornamento em proveito do que queremos dizer. 48. Sirvo-me com freqüência da autoridade dos livros que os homens inspirados por Deus escreveram ou aprovaram, mas sublinhando

a distinção entre a lei antiga e a lei nova. Há quem sustente que a lei

antiga é o próprio direito de natureza, mas é indubitavelmente uma [61] Caecilius Firmianus Lactantius, Duwharum Insüfuf/onu/n (VI, 16,7) [62] Prolegõmenos, 40.

PROLEGÕMENOS

opinião errónea. Muitas regras dessalei vêm, de fato, da lide vontade de Deus que jamais está em oposiçãocom o verdadeiro direito da natureza. Nesse sentido pode-se considera-las como princípios extraídos da

própria natureza, contando que distingamos com cuidado o direito de Deus, que ele por vezes exerce pelo ministério dos homens, e os direitos

dos homens, uns para com os outros. Evitamos, pois, tanto quanto possível, esse erro e outro que Ihe é oposto, segundo o qual, desde os tempos

da nova aliança, a antiga aliança não teria mais qualquer serventia. Pensamoso contrário, tanto pelas razõesjá expostasquanto porquetal é a natureza da nova aliança que ela ordena, com relação às virtudes que dizem respeito aos costumes, as mesmas coisas ou coisas mais per-

feitas que a antiga. Por isso é que vemos os antigos escritores cristãos se utilizarem do testemunho doAntigo Testamento.

49. Os escritores hebreus, sobretudo aqueles que conheceram perfeitamente a língua e oscostumesde sua nação,têm uma contribuição que não pode ser considerada medíocre para nos fazer compreender

opensamento doslivros que serelacionam com a antiga aliança. 50. Sirvo-me do Novo Testamento para ensinar

o que não pode

ser aprendido em outro local aquilo que é permitido aos cristãos. Mesmo isso, contrariamente

ao que fqz a maioria, eu o distingui

do direito

da natureza, tendo certeza que uma lei tão santa nos impõe uma pure' za superior à que o direito natural, reduzido a si mesmo, nos exige. Não emiti, contudo, de destacar as coisas que nos são recomendadas mais que prescritas, a fim de que possamos saber que afastar-se do que é prescrito é tornar-se culpado e se expor a uma pena; que ainda, tender à perfeição é o efeito de um generoso desígnio que não deixará de ter sua

recompensa.

51. Os cânones dos Sínodos, que estão conformes à regra, são

raciocínios extraídos dosprincípios gerais da lei divina, adaptadosaos casos que se apresentam. Mostram também o que a lei de Deus prescre-

H UGO

GROTIBS

ve ou exortam ao que Deus aconselha. Esta é a verdadeira missão da

Igreja cristã, ensinar o que ela aprendeu de Deus e transmiti-lo da maneira como ela o recebeu. Os costumes seguidos ou aprovados pelos antigos cristãos e aqueles que preenchiam a medida de tão grande nome

têm de per si a mesma força que os cânones.A autoridade pertence, em segundo lugar, a esses homens que, cada um em seu tempo, foram renovados entre os cristãos por sua piedade e por sua ciência e jamais incorreram num erro grave qualquer. As coisas que eles aíhmam com grande segurança e como se fossem demonstradas não devem ter uma importância medíocre para a interpretação das passagens que parecem obscuras nos textos sagrados. Sua autoridade é tanto maior porquanto o maior número deles está de acordo sobre os mesmos pontos e porque

eles se aproximam mais dos tempos da pureza primeira, quando nem o

desejode dominar, nem qualquer intriga haviam ainda adulterado a verdade primitiva. 52. Os escolásticosque lhes sucederam mostram muitas vezes a grandeza de sua inteligência, mas eles viveram em séculos infelizes e ignorantes das artes liberais, o que faz com que não devamos nos admirar se, entre muitas coisas dignas de elogio, se encontre algumas que

sejam dignas de indulgência para com seus autores. Quando eles con-

cordam, no entanto, em questões de moral, raramente se enganam, sendo realmente muito perspicazes em perceber o que pode ser tomado

dos escritos dos outros. Nesse mesmo ardor em coibir as opiniões con-

trárias, oferecemum louvável exemplode moderação,lutando entre eles com argumentos e não como o costume que começourecentemente

a ser introduzido para a desonradas letras, cominjúrias, fruto vergo' nhoso de um espírito impotente em se conter. 53. Há três classes de jurisconsultos que fizeram profissão da ciência do direito romano. Aprimeira se compõe daqueles cujos trabalhos são colocados em evidência nos Panaceias, nos (l;tia@osde Teodósio

PROLEGÕMENOS

e de Justiniano e nas Mol'e/ns. A segunda compreende aqueles que sucederam a Irnerius, Accursio, Bartolo e tantos outros nomes que reinaram por longo tempo no banco dos advogados.A terceira abraça aqueles que unem as letras ao estudo das leis. Concordo bastante com os primeiros porque eles fornecem excelentesrazões para demonstrar o que é do direito natural e conferem muitas vezes a autoridade de seu suÊ'ágio

a esse direito, bem como ao direito das gentes, embora eles mesmos, como outros, confundam por vezes estas duas palavras. Muitas vezes,

contudo, chamam deltas genÉlum(direito das gentes) o direito que se pratica somente em alguns povos e que é observado por essasnações não em virtude de um acordo mútuo, mas como imitação recíproca ou por efeito do acaso. Quanto às regras que realmente pertencem ao/us genützm, eles as tratam muitas vezes superficialmente e de modo indistinto com a(ruelas do direito romano, como nos títulos que tratam dos prisioneiros de guerra e do direito de post]imínio]63]

. Nós nos esfor-

çamos,portanto, para que essascoisasse tornassem bem distintas umas das outras. 54. A segunda classe, indiferente com relação ao direito divino e à

história antiga, quis resolver todas ascontrovérsiasdosreis edospovos segundo as leis romanas, acrescentando .de quando em vez o direito

canónico.Para elestambém, contudo, a infelicidade de seutempo tem sido um obstáculo que os impediu de compreender de modo sadio essas

leis, ainda que fossem muito cuidadososem sondar a natureza do justo e do honesto. Disso resulta que freqüentemente são excelentesautores de novas leis, mesmo sendo maus intérpretes da lei já existente. Deve-

mos ouvi-los, porém, sobretudo quando dão testemunho da existência de tal costume que constitui OJusgenóum de nossa época.

[63] Vede Livro 111,cap. V]] e ]X

H UGO

GROTIUS

55. Os mestres da terceira classe, que se encerram dentro dos

limites do direito romano e dele não se afastam jamais para entrar nesse direito comum ou não o fazem senão superficialmente, não são de

quase nenhuma utilidade em nossotema. Eles uniram a sutilidade escolástica ao conhecimento das leis e dos cânones, a tal ponto mesmo que dois espanhóis,Covarruvias eVasquez,não seabstiveram assim mesmo de tratar das controvérsias dos povos e dos reis: o primeiro

com

uma grande liberdade e o segundo com mais reserva e com um julgamento mais exato. Os franceses tentaram de algum modo introduzir a

história no estudo dasleis. Entre eles, Bodin e Hotman 6caram famosos: o primeiro por uma obra sobre o tema; o segundo por questões relevantes. Suas decisões e seus argumentos nos fornecerão muitas vezes

o modo de descobrir a verdade. 56. Em toda esta obra me propus sobretudo três coisas: apresen' l

tar minhas razões de decidir, apresentando-as tão evidentes quanto pos-

sível, dispor em boa ordem as matérias que tinha a tratar, distinguir claramente as coisas que poderiam parecer as mesmas, se comparadas

entre si, mas que na realidade não o são. 57. Eu me abstive de tocar em questões que pertencem a outro assunto, tais como as que ensinam o que pode ser vantajoso fazer, pois estas questões constituem uma arte especial, a política, queAristóteles

trata comrazão igualmente à parte, nada misturando de estranho.Em Bodin, ao contrário, a l)olítica se confunde com o direito de que nos

ocupamosaqui. Em algumas partes, no entanto, eu mencionei o útil, .masbrevemente, mais para distingui-lo claramente da questão do justo. 58. Seria injurioso para mim pensar que não me preocupei de nenhuma das controvérsias de nossoséculo, seja das que surgiram, como daquelas que se pode prever que possam surgir. De fato, aÊllm9

PROLEGÕMENOS

que, assim como os matemáticos consideram as figuras, abstração feita de corpos, de igual modo, tratando do direito, eu afastei meu pensamen-

to de todo fato particular. 59. Com relação ao estilo, não quis, acrescentando uma multidão

de palavras à grande quantidade de coisasa tratar, causar fastio ao leitor, de cujo interesse necessito. Por isso empreguei o mais possível o estilo conciso e que convém ao ensino, a fim de que aqueles que dirigem os negócios públicos possam como que captar num só relance as diver-

sasespéciesde intrigas que ocorremhabitualmente e osprincípios por meio dos quais podem tomar decisões. Sendo conhecidos essespontos,

ficará fácil apropriar o discursoà matéria em questãoe de o estenderde acordo com as necessidades. 60. Procurei por reiteradas

vezes citar as próprias palavras dos

escritores antigos, sempre que mostrassem ter uma autoridade ou uma beleza particular. Agi assim, por vezes, com os autores gregos, mas sobretudo quando a passagem era breve ou quando não conseguia cap-

tar a graça do texto latino que, no entanto, colocava sempre logo a seguir, como comodidade para aqueles que não aprenderam o grego. 61. A liberdade que tomei em minhas apreciaçõessobre as opiniões e os escritos dosoutros, que seja tomada contra mim; peçoisto, suplico mesmo a todos aqueles que tiverem cantata com esta obra. Os que me advertirem de algum erro não o farão com tanta presteza como

a que terei em seguir sua opinião. E desdejá, se eu tiver dito aqui algo contra a piedade, os bons costumes, as Escrituras Sagradas, o cosendo

da igreja cristã, contra toda qualquer outra verdade, que esta palavra seja considerada como jamais dita.

l

/ OQUEEAGUERRAP QUE E A IUZ?

Sumário 1. Ordem da obra 1}. Definição da guerra e origem da palavra 111. 0 direito é descrito como atributo

de ação e é diüdido

em

direito de superioridadee direito de igual para igual. ]lV O direito, ao designar uma qualidade pessoal, se divide em faculdade e em aptidão. P' Du'v7bão da faculdade

ou direito

estritamente

dito empoí=leB

propriedade, crédito. EZ OuÉru (#u7bâoda faculdade, em popular e eminente HZZ O que ó a aptidão

VTll. Da justiça expletiva e atributiva. Elas não se distinguem, realmente, em proporção geométrica e aritmética, nem no que tratam, isto é, a primeira de coisas coJnuns e a segunda de coisas próprias aos privados.

IX. O direito é de$1nidocoinoregra e se divide em ã\lera

nalu

ral e em direito voluntário. X. Definição do àhexta naXuxal, diüsão e distinção das coisas a que se dá esse nome impropriamente.

XL Oinstinto comuma fadosos outrosanimais e o queépecu !iar ao homem não constituem dois tipos de direito.

XII. Goma seproua o direito natural

xiil. 22ílcísâodo direito voluntário

em direito humano e direito

divino.

.À7y O direito humano se dfwde em direito civil, em direito menosamplo que o civil, em direito mais amplo que o civil ou jus gentium. .ZõbrpZfcaç;âo desse dü'e/fo e como se

prova. .Xr O cera/fo c#r7ho se cííwde em direito universal e em direito

específico paJ«aum sópovo.

XVI. Os estrangeiros nunca foram submetidos ao direito dos hebreus.

XVII. Queprovas os cristãospodem extrair da lei dos hebreus e de que maneira?

CAPÍTULO 1-

0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

1. Ordem da obra Todas as controvérsias dos indivíduos que não formam juntos nenhuma comunidade de direito civil, tais como aqueles que não estão ainda agrupados numa nação e aqueles que perante os outros formam naçõesdiversas, sejam eles simples cidadãos ou os próprios reis ou que

gozem de um direito semelhante ao dos reis, como os principais cidadãos de uma aristocracia ou os povos livres, todas essas controvérsias

dizem respeito aos tempos de guerra ou aos períodos de paz. Como, porém, a guerra é empreendida

em prol da paz e como não há nenhuma

contenda da qual não possa decorrer uma guerra, não será fora de propósito, no âmbito do direito da guerra, tratar de todas essas espécies de

debates que surgem habitualmente. A própria guerra nos levará em seguida à paz como a seu último fim.

11.Definição da guerra e origem da palavra 1. Ao tratar do direito da guerra devemos ver o que é a guerra e de que direito se trata. Cícero]]] definiu a guerra como "um debate que se resolve pela força". O uso, porém, acabou por designar por esta palavra não uma ação, mas um estado [2]. Assim, a guerra é o estado de

[1] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], .De (2#?cízk(1, 11,34). [2] Na obra Z)e .LegÍÓusSpecJb/ló zs(11, 15), Fí]on escreve: 't%mo iním&os não sâo

consideradossomente os que combatem atuaimente em terra e mar, mas também aqueles que movimentam máquinas de guerra contra portos e muralhas, embora nãa esfc!/bm em combate eáeílvo." Sérvio faz essa observação sobre

esseverso do livro l da E12ez'da(1, 545): '7\remPe/n gue/ra proprlbmenfe alta, nem pelas az'mas,notando-se que a pa.lavra guerra encerra a ideia de FIlaDos arquítetados contra o inimigo, enquanto armas se refere somente às hoste.cidades em a6o." O mesmo Sérvio(Vl11, 547) acrescenta: 'Guerra á fado o tempo

durante o qual se faz os preparativos para entrar em combate ou durante o qual se leva a efeito a !uta. Combate é termo que se refere ao próprio enfrentamento

de armas.

H U GO

GROTIUS

indivíduos, considerados como tais, que resolvem suas controvérsias pela força. Esta definição geral compreende todos os tipos de guerra, dos

quais se falará a seguir. Não excluo sequer a guerra privada que, sendo mais antiga que a guerra pública e tendo incontestavelmente a mesma natureza, deve ser designada, por esta razão, por este único e mesmo nome que Ihe é próprio.

2.A origem deste termo não oferecedificuldades. Apalavra óeaEzm [guerra] remonta a uma expressão antiga, dual/um, como de duanusse tem óonus e de dulls, óJb.Apalawa

dize/7um se origina de duoóus, no

mesmo sentido que chamamos a paz de união. Foi assim que os gregos extraíram deum termo que designava multidão a palavra noÀ,epoalguer-

ra] . Entre os antigos também a palavra Xuv proveio da idéia de desunião, como a dissolução das partes de um corpotinha originado o termo 8uv

3. Também o uso deste termo não destoa com esta significação mais ampla. Se por vezes a denominação de guerra é unicamente reservada à guerra pública, isto não constitui um obstáculo. De fato, é coisa certa que o nome do gênero é muitas vezes afetado de maneira particu-

lar quanto à espécie,especialmente quando esta é de categoria superior. Não incluo a justiça em minha definição porque o objetivo específico desta discussão é pesquisar se há guerra que seja justa e que guerra seria justa. Deve-se, pois, distinguir o que está em questão do próprio objeto que a questão propõe.

111.0 direito é descrito como atributo de ação e é dividido

em.direito de superioridadee direito de igualpara igual 1.Ao dar a este tratado o título 0.22ü'Bufo da Gue/ra, entendemos

pesquisar primeiramente, comojá foi dito, sehá algum tipo de guerra justa e, a seguir, o que há de justo na guerra. A palavra dl)e/fo nada

signi6lcamais aqui do que aquilo que é justo. Isto, num sentido mais

CAPÍTULO 1- 0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

negativo que aÊumativo, de modo que o direito transparece como aquilo que não é injusto. Ora, é injusto o que repugna à natureza da sociedade

dos seres dotados de razão. Por isso Cícero [3] a6uma que despojar o

outro em vista de proveito próprio é agir contra a natureza. Prova isso argumentando que, agindo dessa forma, a sociedadedos homens, a comunidade necessariamente desmoronaria. F]orentino]4] demonstra que

é crime tramar armadilhas a seu semelhante, porquanto a natureza estabeleceu entre nós uma espécie de parente]a. Sêneca [5] diz: "Como existe uma harmonia entre todos os membros, porquanto é do interesse

do todo que cada um em particular seja conservado, assim também os homens se poupam uns aos outros porque nascemos para a vida co-

mum. De fato, a sociedadenão pode subsistir senão pelo amor e pela proteção recíprocos das partes de que se constitui."16] 2. Como a sociedade pode subsistir sem desigua]dade

[7], ta] se-

ria a que existe entre irmãos, cidadãos, amigos, aliados, ou com desigualdade (a sociedade por excelência deAristóteles), como a que existe

entrepaiefilhos,senhoreescravo, rlj:gl1lditos,111?l!!!.glJlgneln18] ,

[3] Marcus Tullius Cicero [106-43a.C.], De (2HclJS(111,5,21). [4] Florentinus, jurisconsu]to do século111d.C. (Dygesfa,lll, l,l). ISI Lucius Annaeus Seneca [01 a.C.-- 65 d.C.), Z)e Ira (11, 31)

[6] Sêneca. na mesma carta(EJzísfuJae, XLV111,3), diz: 'Zçfa soc/idade deve ser cultivada com diligência e religiosamente, porquanto nos mescla a todos, em

contadouns com os outros, e nos ensina quehá um direito comum do género humano. "A respeito disso, pode-se ver os comentários de Jogo Crisóstomo 1344-407]à ] Epísto]a aos Coríntios 11,1(]7omiha XXV. 4).

[7] Como os gramáticas distinguem uma construção de cona'enJénc/a e outra de z'eglme.

[8] Sobre esse tipo de sociedade, ver Fílon de Alexandria [20? a.C. -- 50 d.C.) em Z)e

Soór2efafe(lO) Plutarco [50? 125] também diz alguma coisa a respeito em Vidas Paralelas, Vida de Numa qS2à.

H UGO

Gxoti

us

assim, um éo direito daquelesque vivem entre si na igualdade, outro o daquele que governa e daquele que é governado, considerados ambos como tais. Por esta razão chamaremos, salvo engano meu, a este de direito de superioridade e àquele,direito de igual para igual.

IV O direito, ao designar uma qualidade pessoal, se divide em /aczz7küzde e em apí/digo Há um significado de direito diferente do anterior, mas que dele decorre e que se refere à pessoa.Tomado neste sentido o direito é uma qualidade moral ligada ao indivíduo para possuir ou fazer de modojusto alguma coisa. Este direito está ligado à pessoa, mesmo que às vezes siga a coisa, como ocorre com a posse de imóveis que são chamados direitos reais, comparados com outros direitos puramente pessoais; não

que os primeiros não sejam igualmente ligados à pessoa, mas porque

não pertencem a ninguém mais que àquele que possui determinada coisa. Quando a faculdade moral é peMeita eu a designo faculdade; quando não o é, aptidão. No plano real aquela corresponde ao que se designa por ato, e esta ao que se denomina de poder.

V. Dl=vl,sãoda. faculdade ou dh'eito estritamente í#fa em poder, propriedade, crédito Os juristas

designam a faculdade pela expressão ,SuJ [seu, prÓ-

prio] . Nós, porém, a chamaremos doravante de direito próprio ou estritamente dito. Sob esse título é abrangido o poder tanto sobre si mesmos,

chamado liberdade [9], quanto sobre os outros, como o poder paterno, o

[9] Disso se depreende porque os jurisconsu]tos romanos definem /lberdade pe]a palavra Eacu/ande.

CAPÍTULO 1-

0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

poder senhoril, o domínio]10] pleno e total ou o domínio menos perfeito,

como o usufruto, o direito de penhor, o direito de crédito, ao qual corresponde o débito.

VI. Outra divisão da /aczz/dado,

em populare eminente Esta faculdade se apresenta ainda de dois modos:um, popular, subsistindo face ao uso privado, e o outro, superior, porquanto superior ao direito popular e que pertence à comunidade,

acima das pessoas e

dosbens dos indivíduos que dela fazem parte, em vista do interesse E assim que o poder real tem sob sua tutela os poderes do pai e os do mestre, que o monarca tem, para o bem comum, um direito de propriedade [11] mais amp]o sobre os bens dos privados que essesmes-

mos possuem, que cada cidadão se sente mais obrigado para com o Estado, no tocante às necessidades públicas, do que possa estar obrigado a seu credor.

VII. O que é a apí/dão Quanto à aptidão, Aristóte]es]12] a chama de axzb,isto é, dignidade [13] . Migue] de Efeso traduz a idéia de igualdade que deve existir segundo esta justiça, dizendo que "é aquilo que é conveniente"

[10] Escoliasta Jd J7oraÉ['um(.qp])fujam 11, 2,174; SaÉzbae11, 3,217): a palavra /us [direito] é tomada para designar a propriedade de uma coisa. [11] Fílon de Alexandria [20? a.C. 50 d.C.) em De /ZZanfaf. (13) escreve: 'Zhrfa'

mente a prata, o ouro e outras coisaspreciosas que os súditos guardam, per: tendem com maior razão aos que reinam do que aos própüos possuidores.:'. Caius Plinius Caecilius Secundus [62-114], no ]ivro .f)aneMlbus (27,4), diz: "0

que é de um é de todos, tanto ele próprio quanto todos o possuem."'Ê a seWlx .50b\ "Será que César não o considera seu?"

[12] Veja .Éílca a .Mcómaco(6) [13] Marcus

Tullius

Cicero [106-43 a.C.] em Z)e O#iculi (1, 17,58) diz:

'Se ápreczbo

discutir e comparar a quais deles se deve prestar mais serviços, em primeiro lugar comparecem os pais, cujos benefícios nos tornam sobremodo devedores

76 H UGO

GROTIUS

VIII. Da justiça expletiva ou comutativa e atributiva 1. A faculdade é o objeto da justiça expletiva, assim própria e estritamente denominada, e que Aristóteles a designa de justiça dos contratos, expressão,aliás, muito limitada. Realmente, que o possuidor

de uma coisa que me pertence a devolva, não é por força de algum contrato que assim age e, no entanto, sua ação se relaciona a essa mes-

ma justiça. Por isso, o mesmo filósofo a designou com maior propriedade de corretiva. A aptidão é o objeto da justiça atributiva que Aristóteles

chama dejustiça distributiva e que é a companheira dasvirtudes, cujo objeto é de fazer o bem aos outros, como a liberalidade, a clemência, a sábia condução do governo do Estado.

2. No tocante ao que dizAristóteles, isto é, que a justiça expletiva

siga uma proporção simples, que ele chama de aritmética, e a justiça atributiva uma proporção comparativa, que ele designa de proporção geométrica, só tem o designativo de proporçãonos matemáticos [14] . São questões que se apresentam seguidamente, mas nem sempre. A justiça expletiva, de fato, não se diferencia da atributiva pelo uso dessas

a eles; depois os8lihos e toda nossa família que voltam os olhos para nós e que só em nós encontram apoio. A seguir, os parentes com quem mantemos boas

relações e que, no mais das vezes,compartilham de nossasorte. Assim, país, devemos nos enganarcom as coisas necessáriasà vida e sobretudo com as pessoasde quefrei há pouco.Por aquilo quese refere a tiver e conviver,a dar conselhos, a conversar, a exortar, a prestar consolo e mesmo por vezes admo-

estar, tudo isso ocorre sobretudo no âmbito da amizade."'gex ta.mbémQ ({ue se diz mais adiante, no livro 11,capítulo Vll, $ 1X e X. Lucius Annaeus Senecal01? a.C-- 65 d.C.], em Z)e.Beneálaízk(livroIV. cap. 11),falando dos testamentos, diz: Procuramos, para dar nossos bens, os que mais merecem." Êucrescenie-seo que diz Agostinho]354-430], em Z)eZ)oaÉr7haCór7kfzbna(limo 1, cap. XXVlll e

XXlx) T

[14] Cassiodoro [490-580] a chama de "comparação do modo de ser" (Z)e Z)fa/ecí2ba).

Dessa proporção, de que a justiça atributiva geralmente faz uso, é que encontra a completa definição seguinte em Homero(.[Jlüda, X]V.382): 'Z)avz as me' chores coisas às pessoasde valor e as piores para aquelas de menor mérito.

CAPITULO 1- 0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

diferentes proporções, mas pela matéria de que trata, como já dissemos.Assim é que o contrato de sociedadese cumpre numa proporção de comparação e que, se não houver um só indivíduo capaz de um emprego

público, basta uma simples proporção para que Ihe seja conferido.

3. Não há fundamento no que dizem alguns, que a justiça atributiva tem por objeto as coisascomuns e ajustiça expletiva as que pertencem aos indivíduos em particular. Ao contrário, se alguém quiser

dispor como legado de algo incluído em seusbens, faz uso da justiça atributiva. O Estado que reembolsa comverbas públicas o que um cidadão despendeu no interesse comum, faz uso da justiça expletiva. Foi com razão que essa distinção foi observada pelo mestre de Giro [15] . Este, ao entregar a um menino menor que os demais a túnica que era proporcional a seu físico, mas que não Ihe pertencia, e uma túnica maior ao que tinha estatura mais elevada, seu mestre Ihe disse, para Ihe dar uma lição: "Deveria usá-la no caso em que fosse estabelecido como árbi-

tro para julgar o que melhor convinha a cadaum, mas a partir do momento em que devesse definir a qual dos dois pertencia a túnica, deveria considerar somente um ponto: de que lado estava a posse mais legítima, a quem deveria pertencer o objeto, ao que a tinha subtraído de modo violento ou ao que a tinha confeccionado ou com-prado."]16]

[151Xeàofonte[430-365?a.C.] em CI opód7a(1, 3,17) [16] Ver o mesmoXenofonte em Chopéíd7a, livro 11;Convémlembrar aqui essalei latia

yol 'bJLotsês. "Não deverás ter compaixão

do pobre no tribunal"

ÇÉxodo

XXl11' 3; Z,ew'tubo XIX. 15). Convém, no entanto, como diz Fílon de Alexandria

tDe Judice, 4à, "separar a causa em si mesmade toda consideraçãodos con ten dores

H UGO

GROTA

US

IX. O direito é definido como regra e se divide

em direito naturale direito voluntário

1.Há um terceiro significado da palavra direito, segundoo qual otermo ésinónimo da pa]avra ]ei]17], tomadono sentido mais amplo e que indica uma regra das ações morais que obrigam a quem é honesto. Achamos que haja obrigação, pois os conselhos e todos os demais precei-

tos, tendo por objeto o honesto, mas não impondo nenhuma obrigação, não são compreendidos sob o nome de lei ou de direito. Quanto à permis-

são,não é, propriamente falando, uma ação da lei, mas uma negação da açãó, a não ser enquanto não impuser aos outros interferir com qualquer impedimento em relação ao que recebeu a permissão. Dissemos que deveria haver obrigação ao que é honesto e não simplesmente ao que é justo, porque o direito, segundo a idéia que apresentamos aqui, não se limita somente aos deveres da justiça, tal como acabamos de exp[icá-]a, mas abrange ainda o que é objeto das outras virtudes [18] . O que é honesto, contudo, segundo esse direito, é chamado justo, tomando

esta palavra em sentido mais amplo. :à. 2. A melhor divisão do direito assim entendido é a que se encontra em Aristóte]es [19], segundo a qua] há um direito natura] e um

direito voluntário, que ele chama direito legítimo, conferindo à palavra lei um sentido mais estrito. Às vezes o designa também de direito estabelecido. Encontramos a mesma distinção entre os hebreus que, ao se

[17] Nesse sentido é que Horácio(SnÉímé 1, 3,211)diz: 'Z)eve-sefez'presente que as !eis foram criadas pelo temor da injustiça." B em autua aLTa (J)e Arte Poetisa, 122): 'mega que as /els fenáam s/do amadaspau' e/e..." Sobre isso o escoliasta comenta. "Parece ser menosprezador das leis.

[18] Encontra-seum exemp]odisconuma ]ei de Za]eucusque inf]igia uma pena a quem tivesse bebido vinho contra a ordem do médico [19] .ética a .Aüc(inato(V,

lO)

CAPÍTULO 1- 0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

exprimirem com exatidão, chamam o direito natura] de MÉsvoÉü]20] , o direito estabelecido de ./ilhuÁd=ím, termos que os helenistas costumam traduzir como deveres, o primeiro, e mandamentos, o segundo.

X. Definição do dlírleífa.nzzfzz/la4 divisão e distinção das coisas a que se dá esse nome impropriamente 1. 0 direito natural nos é ditado pe]a reta razão [21] que nos ]eva a conhecéii qüé uma ação, dependendo se é ou não conforme à natureza

raciQpal, é afetada por deformidade moral ou por necessidade moral e que, em decorrência, Deus, o autor da natureza, a proíbe ou a ordena. 2. Os fitos, a propósito dos quais se manifesta essa regra, são, por

si mesmos, obrigatórios ou ilícitos e, como tais, são considerados necessariamente ordenados ou proibidos por Deus. Observando-se isso,

nota-seque essedireito difere do direito humano e também do direito divino voluntário que não prescreve nem proíbe coisas obrigatórias ou lícitas por si mesmas e por sua própria natureza; ao contrário, torna as coisas ilícitas ao veta-las e obrigatórias

ao ordena-las.

[20] Moisés Maimânides(1135-1204) assim o designa na obra Gaja dos /)erp/aros (livro 111, cap. XXVI).

[21] Fílon de Alexandria [20? a.C. 20 d.C.] escreve em seu ]ivro: '7bdo comem bom élivre."Ê contlbuã. ':A neta razão é uma !ei que não sabe mentir. Não foi escuta

para os mortais por esseou aquelemortal. Não foi desenhada,lei sem vida,

sobrefolhas ou colunasinanimados.Eia não teria comose corromper,por' quanto foi gravada pela natureza Septimius

Florens

Tertu[[ianus

aseàn\ se exDt\p(te'. "Perguntas

imortal

[155-220],

]ium intelecto em seu livro

imol'tal."

QuxbLus

.De Gorada ]ZiZzíl)

(6)

onde está a lei de Deus? Não tens aqui uma lei

comum, exposta aos olhos do mundo sobre as tábuas da natureza?" Segundo Marco Antonino(livro 11), 'b Zm que dadoanima/ rucfc,na/ de e se praça' á de seguir a lei e as normas mais antigas da cidade e da república". hcrescenle-se

ainda uma passagemde Ma3'cusTullius Cicero [106-43 a.C.) da obra Z)e J?e Puó/lca(livro 111),reproduzidapor CaeciliusFirmianus Lactantius [séc.]V d.C.) na obra Du'çdzzarum InsüfuÉI'amam(VI, 8). João Crisóstomo(344-407) tem belas

coisas a respeito em Sobre as Esfáfuas (Xll e Xlll). Não se deve também menosprezar o que diz Tomas de Aquino (Secunda Sbcundae, LV11,2) e Scot (lll, Dusf. 37).

H UGO GROTI us

3. E necessário notar, para entender o direito natural, que há certas coisas que atribuímos a essedireito de uma maneira imprópria, mas, segundo a expressão predileta dos escolásticos, por redução, às quais o direito natural não é formalmente contrário. Por isso dissemos

há pouco que se tem comojustas coisasisentas de injustiça. Âs vezes relacionamos também como abuso ao direito natural coisas que a razão pode entender como honestas ou como melhores daquelas que Ihe são opostas, muito embora não sejam obrigatórias.

4. Deve-se saber ainda que o direito natural não diz respeito somente às coisas que estão além da vontade dos homens, mas que tem

por objeto também muitas coisasque sãouma conseqüênciade algum ato dessavontade. Assim é que a propriedade, tal como évista no momento atual, foi introduzida pela vontade humana. Apartar do momento em que foi introduzida, porém, é o próprio direito natural que me diz

que é um crime para mim me apoderar, contra tua vontade, daquilo que é o objeto de tua propriedade. Por isso, o jurisconsulto Paulo diz que

oroubo é proibido pe]odireito natura]. U]piano122] diz que é uma ação natura[mente desonesta. Eurípides, nestes versos de He]ena [23], que é

um ato que desagrada a Deus: "Deus não pode tolerar a violência, nem quer

que nos tornemos ricos através do roubo, mas por aquisiçõeshonestas.

[22] O imperador Ju[iano[331-363] diz: ';Segundo a ]ez' que se /adere ao conáec7' mento e ao culto de Deus, há uma !eísagrada e divina por natureza que ordena

a se abster sempre e em toda parte do bem de outrem e de não atentar contra ele nem por palavras, por ações,nem por pensamentos secretos." Cqcexaà\z, em ,De O/HauJs(livro llí), lembrando Crisipo, que 'haja um poab sem Inuusílba,

procurar sua própria vantagem, mas que é contra o direito tirar dos outros os bens gue /Zes pez'lancem'{U]piano: L 16, Probrum, Dig., ])e verbo signifiéat. [23] Eurípides,

.He/ena(903-908).

CAPÍTULO 1-

0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

E preciso desprezar a fortuna, se não tiver origem legítima O ar é comum a todos os homens, bem como a terra. A todos é permitido estabelecer nela sua morada, evitando de se apoderar do que pertence a outrem." 5. O direito natural é tão imutável que não pode ser mudado nem pelo próprio Deus. Por mais imenso que seja o poder de Deus, podemos dizer que há coisas que ele não abrange porque aquelas de que fazemos

alusão não podem ser senão enunciadas, mas não possuemnenhum sentido que exprima uma realidade e são contraditórias entre si. Da mesmo modo, portanto, que Deus não poderia fazer com que dois mais dois não fossem quatro, de igual modo ele não pode impedir que aquilo

que é essencialmente mau não seja mau. E é exatamente isto que Aristóte[es[24] dá a entender quando diz que há certas coisas cujo nome

sequer é pronunciado, porquanto já se sabe que são viciadas. Como a essência das coisas, desde que existam e da maneira que existem, não

depende de mais nada, assim também as qualidades que são a conseqüência necessária dessa essência. Tal é, pois, a maldade de certas ações

comparadas com uma natureza dotada de uma razão sadia. Por isso o

próprio Deus não suportaria que o julgássemos segundo esta regra, como podemos veriÊlcar em Génese(XVl11, 25), Zsalhs(V. 3), ZzequJb/ (XVl11, 25), úeremJas (11,9),M'guézbs(VI, 2), .Romanos(111,6) . 6. As vezesocorre, contudo, nos atou a respeito dos quais o direito natural prescreveu algo, uma espécie de mudança que engana os desa-

tentos, pois que na realidade não é o direito natural que muda, sendo imutável, mas é a coisa, a respeito da qual o direito natural estatuiu,

que sofre a mudança. Por exemplo, se meu credor me dá quitação do que Ihe devo, nada mais sou obrigado a Ihe pagar, não porque o direito

[24] Aristóteles,

.ÓÉlba a JVlbtâmaco(11,

6)

H U GO

Gxoítus

natural se eximisse de me prescrever de pagar o que devo, mas porque o objeto de minha dívida deixou de existir. Assim é que Arriano diz com

razão em Epitecto [25]: "Não basta, para que uma soma em dinheiro seja devida, que tenha sido dada como empréstimo, mas é necessário que a dívida ainda subsista, que não tenha sido extinta." De igual modo, se Deus prescreve imolar alguém, despojá-lo de seus bens, não somente

não subsistiria aí homicídio ou roubo lícitos -- termos que implicam a

idéia de crime --, mas sequer subsistiria homicídio ou roubo, porque esses ates teriam sido praticados por uma ordem de Deus, mestre supremo da vida e dos bens.

7.Há também coisasque sãodo direito natural, não pura e simplesmente, mas em razão de uma determinada situação. Assim é que, enquanto a propriedade não havia sido ainda introduzida, o uso das coisas em comum era de direito natural e que passamos a ter o direito de adquirir um bem próprio pela força, antes que as leis tivessem sido promulgadas.

XI. O instinto comum a todos os outros animais e o que é peculiar ao homem não constituem dois tipos de direito 1. A distinção que existe nos livros de direito romano, entre um

direito imutável comumaosanimais e ao homem(que num sentido mais estrito osjurisconsultos de Romã chamam de direito de natureza)

e um direito próprio da humanidade (que os mesmos jurisconsultos designam muitas vezespelo nome de ./[rs genúum) não tem pratica-

[25] F[avius Arrianus [95?-175]em &pi'fecíus(1, 7)

CAPÍTULO 1-

0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

mente qualquer uso, pois não há ser, propriamente falando, suscetível de direito, a não ser aquele que se regula por princípios gerais. E o que assinala perfeitamente Hesíodo]26] :

"A lei foi dada pelo grande Júpiter ao gênero humano. Os animais selvagens, os peixes, as aves de altos vãos se

tornam pasto uns dosoutros. O direito não tem lugar entre eles. Ajustiça,

porém, que é a melhor coisa que existe, é nossa

herança."127]

"Não falamos da existência de uma justiça para oscavalos,para os leões",

escreve

Cícero

no primeiro

livro

de sua

obra

-Dos -Devem''es

[28] . P]utarco, na biografia de Calão o Ve]ho129] , diz também que "não nos servimos naturalmente

das leis e da justiça a não ser com relação

aoshomens". Lactâncio [30] escreve:'Vemos, de fato, que em todos os seres animados desprovidos de razão há uma natureza que cuida de si

mesma. Eles prejudicam os outros para se beneficiarem. Não sabem

queprejudicar seconstitui num mal. O homem,porém, que possuia ciência do bem e do mal, se abstém de prejudicar

a outrem, mesmo que

[26] Hesíodo [séc V[[[ a.C.] em Os H'aóa/Zos e os Duas (276-79) [27] Decimus Junius Juvena[is [60? -140?], escreve na Sytzra XV (142-150): 'Por

isso é que só nós recebemosdo céu essainteligência que deve ser respeitada, essa razão capaz de se elevar até as coisas dignas, de compreender e de prati-

car as artes.'esse instinto sublime que nos vem do alto e que falta aos brutos

curvadospara a terra, onde se íha seu olhar. Nos primeiros dias do mundo, nosso criador. concedeuaos animais somente a vida, ao homem deu uma alma para que uma afeição mútua levasse os homens a se prestarem ajuda, a Êlm de inicialmente dispersos, viessem se reunir em sociedade-." 3oão Cüs6s\nmo [344 407]. comentando o capítulo da Epístola aos Romanos(,IZomlZ)aXIV. 5), diz

que não se deve jamais afastar'se das regras do justo e do injusto, mesmo quando se tratar de seres sem alma e que não têm juízo.

[281Marcus Tullius Cicero [106-43a.C.], De (2#c] ) (1, 16,50) [29] Plutarco

[50? -125?), em idas

[30] Caecilius Firmianus

(V. 17,30)

.f'ara/e/as

Lactantius]séc.

((hfo

Jl#aybr, 339 A).

]V d.C.] , no limo .22ftdnarum ZnsÉzfuÉlonum

H U GO

GROTIUS

isso reverta em prejuízo próprio." Po]íbio [31], depois de narrar a origem das primeiras associaçõeshumanas, acrescenta que, se alguém tiver cometido alguma injustiça contra seuspais [32] ou seus benfeitores, não poderia ocorrer que os demais não ficassem indignados, dando

a razão para tanto: "0 gênerohumano, diferenciando-se dos outros animais, uma vez que dotado de espírito e de razão, é pouco provável que

um ato tão distante da natureza do homempassassedespercebidopor este, como aconteceria entre os brutos. Tal ação deveria, sem falta, impressionar seu espírito, tomando o sentido de uma ofensa." [33] 2. Se, por vezes, atribuímos

alguma noção de justiça aos brutos

[34], o fazemos de modo impróprio e também porque notamos neles alguma sombra e a]gum vestígio de razão]35] . Por outro lado, que uma ação sobre a qual o direito natural se pronunciou nos seja comum com

[31] Po[íbio [200 -- 125?a.C.], J7Jkfábs (VI, 6,4). [32] Pode-se observar um exemplo disso em Cam (Génese) X), onde a pena segue a

crime.

[33]

João

Crisóstomo,

na

.IZomi/lb

Xlll(Sobre

as EsfáÉuas)

observa:

'iSomos

lodos

levados natuz'aumente a assumir os mesmos sentimentos de indignação em

]ue estão imersos aqueles que foram maltratados. Sentimos logo que nos tornamos inimigos dos ofensores, embora não tenhamos sido atingidos de áonna a/gama roja J}Z/Úna."0 escoliasta de Horácio(SãÉíra lll, livro 1) diz que

"nossos sentimentos e nosso espírito se indignam de modo diverso quando 6lcamossabendo de um homicídio e quando tomamos conhecimento'de um roubo

134]Caius P[inius Secundus [23-79],em AbfuraJlh HJ)farta (Vlll, cap. V) diz que foi notada nos elefantes uma espéciede pressentimento de justiça. Conta (no livro X) que uma áspide havia matado seu üllhote porque esse havia matado o 6llho

de um homem que o nutria

[35] Lucius Annaeus Seneca[01 a.C.?-- 65 d.C.], no limo De Ira (VI 3) diz que os animais não estão sujeitos à ira, mas que possuem somente uma impetuosidade cega que se assemelha a essa paixão. Orígenes [185? -- 254?), na obra Cbn/ra

(%/sum (IV. 92), observa que os animais não são suscetíveis de vício. mas

somente de alguma sombra de vício. Os peripatéticos diziam 'bs ]e(ãesparecem estar Imdos'; segundo consta em PorHirio(De non Esu .4nJhanfz'um, 111,22)

CAPÍTULO 1-

0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

os outros animais, como a educação dos filhos, ou que nos seja própria a

nós,como o culto da divindade, isto nada importa à própria natureza do dh'eito.

XII. Como se prova o dlírleffo .nafzz/vz/

1. Costuma-se provar de duas maneiras que algo é de direito natural: a priori e a posteriori. Desses dois modos de argumentar, o primeiro é mais abstrato e o segundo, mais popular. Prova-se a priori demonstrando a conveniência ou a inconveniência necessária de uma coisacom a natureza racional e social. Prova-se a posteriori concluindo, se não com uma certeza infalível, ao menos com bastante probabilidade, que uma coisa é de direito natural porque é tida como tal em todas

as naçõesóu entre as que são mais civilizadas. De fato, um efeito universal exige uma causa universal e a causa de semelhante opinião não pode ser outra que o próprio senso que chamamos de senso comum.

2. Há uma frase em Hesíodo [36], e]ogiada por muitos: "Não é

uma opinião inteiramente vã aquela que muitos povos consagram." Hei'ác]ito [37] , que achava que a opinião comum é o me]hor critério da verdade, dizia: "0 que comumente parece ta] é assegurado." [38] SegundoAristóteles, "a maior das provas é quando todos concordam com Oque Íãê] Hisíodo [séc.V]]] a.C.] em Os gyaóaJ%os e os 22fas(763-64). [37]

Herác[ito

[550?

-- 480?

a.C.]

em

Sexfus

.©mp]n

adT'ersus

.4/afüemaÉI'cos

(V]],

[38] Aristóteles, em .éÉlbaa Jücómaco(X, n), diz: "0 que pároco a todos de um

mesmo modo é verdadeiramente a que parece e que quem quiser derrubar essa a'onça nada acrescenfar7ade ma s crT're/." Lucius Annaeus SenecaÍ01 a.C. -- 65 d.C.], em Ed)]bftz/nead.Luc77)'um(81, 31), assim se exprime: 'Wo meio

de tão grande diversidade de opiniões,os homenssão unânimes em afirmar

que se deve se/' reconáecJ'cfo para com um óen/eifor " Marcus Fabius Quinti[ianus

[30? -- 100], em De Znsf/fuÉlone

Orafor]'a

(1, 6,45),

afirma;

"0

consenso dos sábios cria o ca$tume em questão de linguagem, do mesmo modo

que a conformidade de conduta dos homens de bem deve ser considerada como a práÉlba comum ero maÉáub de moral. " F]ávio Josefo137?--100], em ..{nÓJ#Üi-

Huoo GROTIUS

dizemos" [39] . Segundo Cícero [40], "o consenso de todas as nações sobre

um assunto deve ser consideradocomo uma lei de natureza". Sêneca [41] diz: "A prova da verdade se encontra no fato que todos tenham sobre a mesma coisa a mesma opinião." Quinti]iano [42] diz: "Devemos ter como certo o que é aceito pela opinião comum de todos." Não é sem

razão que eu disse "as naçõesmais civilizadas", pois o mesmo é sublinhado com exatidão por Porfírio [431:"Há povos se]vagens e mesmo desumanos, a respeito dosquais juízes sensatosnão devem tirar conseqüências para se indispor contra a natureza humana." [44] Andrânico de Rodei diz que "para os homens dotados de um espírito justo e sadio, dades Judaicas {XV1-,6,8à,esclewC."Não há nação que tenha os mesmos costumes em toda a extensão de seu território. Cada cidade pode ter muitas vezes costumes diferentes das outras. A justiça, porém, convém a todos os homens igualmente e é úti! tanto aos bárbaros quanto aos gregos. Nossas !eis seguem exatamente as normas dessajustiça, de modo que, se as observarmos reli@osamente, podem nos inspirar sentimentos de benevolência e de abeto para com

todos os homens. E tudo o que se pode pedir. Os outros povos não devem considera-ias como se fossem contrárias a eles, por causa da diversidade que existe entre seus cclstumese nossas !eis. Ao contrário, seria conveniente veri-

ficar se essas leis preservam a virtude e a probidade, pois a isso todos os homens estão interessados, sendo que só isso é também su8cÍente para proteger a w2íados áomems."Quintus Septimius F]orens Tertu]]ianus]155-220?], na ohxa.De Praescriptiolle Haereticorum qaüà,àiz qüe "quando uma coisa é água!

mente acatadapor grande número de pessoas,não é um erro, mas uma tra

lição

[39] Aristóteles, .mudem.(1,6) [40] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], 7bscuJanae DuspufaÉI'anos(13, 30) [41] Lucius Annaeus Seneca [01 a.C. [42] Marcus Fabius Quintilianus]30?

65 d.C.], em .qgJsftzJnead .Lucí#um (117, 6) -- 1001,em Z)e Insüfuóone

Orafaz:zb(V.lO,12)

[43] PorHirio, -De non Esu .4nimanÉa'um(]V, 21) [44] Justino]100?

-- 165],

na obra

l:b//oqu/um

cum

7}:ypÃone,

escreve:

'2üc'erram

-se

aqueles que, possuídos por esp&itos impuros e corrompidos por má educação, ma us costumes e leis injustas, sufocaram as idéias na rurais."Füon deêAexabàúa,

em Omnem Bonum esseLibertam ql\, à\z. "Pode-seâlcar com razão maravilhado que tais pessoassejam de ta! modo cegas que não percebem certas proprie' Jades dns coasasde fão grande a/a/eza." Jogo Crisóstomo1344-407], em seu

discurso sobre a divindade de Crista, recomendanão recorrer ao julgamento daqueles que têm o espírito pervertido.

CAPÍTULO 1-

0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

odireito quechamamosde direito danatureza é imutável. Se indivíduosde espírito doentio ou esquisito pensam de outra forma, isto não importa. Com efeito, aquele que afirma que o mel é doce não mente só porque os doentios não acreditam que o seja." Esta passagem de Plutarco

[45] em Hda de P0/71peunão se afasta dessesprincípios: "Nenhum homem é ou foi por sua natureza um animal selvagemou insaciável, mas ele se torna cruel a partir do momento em que adquiriu maus hábitos contra as regras da natureza. Através de hábitos contrários, por uma mudança de vida e de lugar, ele retorna novamente à mansidão."Aristóteles faz a seguinte descriçãodo homem, partindo das qualidades que Ihe são próprias: "0 homem é um animal manso por sua própria natureza." [46] O mesmo íi]ósofo diz em outra passagem: "Para julgar o que é natural, é necessário examinar as coisas que se compor'

tam convenientemente segundo a natureza e não aquelas que são cor-

rompidas.'

XIII.

Divisão

do íZíne.ífo }.adzzníázío

em direito humano e direito divino Dissemos que a outra espécie de direito é o direito voluntário

que

tem sua origem na vontade. Ele é humano ou divino.

[45] P[utarco150-125?]

, em ]>Tdas /)ara/e/as(

H'Éa -f)ompel}, 633 D)

[46] João Crisóstomo, na JZom]ZÜX7(4 -- .De Sfaflzls), diz a mesma coisa. Fílon de

Alexandria(De .Dec-aJZ)FoÜ explica isso mais detalhadamente: 'H natureza, ao produzir o homem, o mais manso de todos os animais, o tornou apto e dispos' to a viver com seus semelhantes. Ela a enviou à concórdia e à sociedade,dando-lhe também a linguagem que serve para formar a união dos espíritos e a

harmonia doscostumes.;0 mesmoRXbsata IDe MundoImmortahtate, 1) diz. "0

homem é o mais manso dos animais porque a natureza }he deu graciosamente a faculdade de falar, com a qual os impulsos mais desenfreados são apaziguados

como que por encanto.

H u oo

GROTI

us

XIN. (.) direito humano se üi;v\üeenrl direito civil. ünndireito menosamplo que o civil, em direito mais amplo que o civil ou jus gentium. Eixo\lcaçãn desse direito e como se prova. 1. Começaremospelo direito humano porque foi o mais conhecido

pela maioria doshomens. Este direito é, pois, civil ou mais amplo que civil ou mais restrito que o civil. O direito civil é aquele que emana do podercivil. O podercivil é o que estáà frente do Estado. O Estadoéuma uiüãi)perfeita de homens livres associadospara gozar da proteção das

leis e para sua utilidade comum.O direito mais restrito que o civil e que não emana do poder civil, ainda que Ihe seja submisso, é de diferen-

tes espécies.Compreende as ordens de um pai, aquelas de um mestre e

outras similares. O direito mais amplo é o./usgenÉ7tzm, isto é, aquele que recebeu sua força obrigatória da vontade de todas as nações ou de

grande número de]as [47]. Acrescentei "de grande número" porque, à

exceçãodo direito natural, que costumamos chama-lo também ./us genÉ7tzm(direito das gentes), não encontramos praticamente direito que

seja comum a todas as nações.Mais ainda, muitas vezes num ponto do

universo, há um tipo de ./us genÉlumque não existe em outro lugar, como o da catividade e o de rosé/llná210, como o descrevemos oportu-

namente.

2. Este direito das gentes se prova da mesmamaneira que o direito civil não escrito, por um uso continuado e pelo testemunho da-

queles que se conhecem.De fato, ele é, comobem o faz notar Dion Crisóstomo [48], "obra do tempo e do uso". Por isso, de grande préstimo nos foram outros ilustres estudiosos que compilaram anais a respeito.

[47] Vasquez, ]],

C]onírore/x,

IV. 4

[48] Dion Crisóstomoou Dion de Prousa (30-117),Ornf. (76)

CAPITULO 1- 0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

XV O direito

divino

se divide

em (2111rleífo zzn.íl'pesa/

e em (Zllre/fo espec:loco para um só povo 1. Compreendemos de modo suficiente, através dos próprios termosque o definem, o que seja o direito voluntário divino.,E aquele que

tem sua origem na vontade de Deus. Isso é que o distingue do direito

natural, que podemoschamartambém direito divino, comojá dissemos,Apropósitodessedireito podemoscolocaro queAnaxarco]49] dizia de uma maneira por demais gera] quem)eusnão ordena tal coisa porque é justa, mas é justa, ou seja, obrigatória, porque Deus a quis.

2. Esse direito foi dado ao gênerohumano ou a um só povo. Encontramos três momentos em que foi dado por Deus ao gênero humano: primeiramente, após a criação do homem; uma segunda vez, quando da

renovaçãoda espéciehumana apóso dilúvio; em último lugar, no momento da mais grandiosa reparação que foi realizada por Crista. Esses três tipos de leis divinas obrigam, sem dúvida alguma, a todos os homens, a partir do momento em que delas tenham tomado conhecimento de modo suÊlciente.

XVI. Os estrangeiros nunca foram submetidos ao direito dos hebreus 1.Dentre todos ospovos,há um somenteao qual Deus se dignou conceder leis em particular, ou seja, o povo hebreu, ao qual Moisés se dirige nesses termos (-Desfez'onóm/olV. 7): "Existe nação tão poderosa que tenha tido deuses tão favoráveis, quanto tem sido o Senhor, nosso

Deus, a todos os votos que a ele elevámos? Existe nação tão poderosa que possua instituições e leis justas como o é, em seu conjunto, esta lei que hoje promulgo diante devós?" O salmista diz(SnZmoCXI.Mll): "Deus

[49] P[utarco[50-125?],

Lidas /)arame/as( Hda de 4/exandre, 695 A)

H uoo GROTIUS

dá a conhecer sua palavra a Jacó, suas instituições e suas leis a lsrael Não agiu assim com nenhuma outra nação; por isso, elas não conhece-

ram estas leis." 2. Não se deve duvidar do erro em que se encontram aqueles dentre os judeus]entre os quais TW'ãoem sua disputa com Justino] que pensam que mesmo os estrangeiros, se quisessemser salvos, deveriam submeter-se aojugo da lei hebraica. De fato, uma lei não obriga aqueles aos quais não foi dada. Ora, esta lei afirma claramente a quem ela foi dada, dizendo: "Escuta, lsraell" Em toda parte se afirma que a aliança foi celebrada com os hebreus, que Deus os escolheu para se tor-

nar o povo dele. A verdade deste ponto é reconhecida por Moisés Maimânides [50] que o prova, através de uma passagem do .Deufe-

ronómJO(XXXl11, 4). 3. Mais ainda, sempre houve entre os hebreus homens de origem estrangeira, "piedosose tementes a Deus", comoos designa a giro-fenícia (Mafeus XVI 22), como Cornélio (HfosX, 2) "que era incluído entre os gregos religiosos", ou segundo escritos hebraicos, eram incluídos entre os que costumavam designar de "os virtuosos das nações", como se lê no livro -De-Regedo Ta]mud [51]. São esses que são chamados na lei de 'anhosdo estrangeiro"(Zew't7boXXl1, 25), "estrangeiros incircuncisos'

(-Z;eta'Z7bo XXVI 47), onde o caldeu é chamado"habitante incircunciso" [52]. E]es eram obrigados, comoo narram os próprios doutores hebreus, [50] Moisés Maimânides (1135-1204)é dessa opinião e usa o texto do Deuteronõmia (XXXl11, 4) para comprova-la [51] Com o títu]o de Z)eSp7]ea2b(cap. XI). [52] Deles trata também Eirado (Xl1, 45). Esse estrangeiro é distinto do prosélito,

isto é, do.estrangeiroque foi circuncidado,comoo assinalaa passagem de N ímeros (IX, 14). Moisés Maimânides fala muito desses piedosos incircuncisos

no livro sobre a Jdo/aÉr2'a (cap. X, 6). Assinala também em outros escritos (Cbmmenfar[um

ad .4/]snaiofá)

que essas pessoas piedosas,

embora pagãs,

terão parte nos bens do século futuro. João Crisóstomo, nos comentários ao

CAPÍTULO 1-

0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

a observar as leis dadas aAdão e a Noé. Deviam se abster dos ídolos, do

sangue e de outras coisas que relembraremos mais adiante em outro item, embora seus deveres não fossem os mesmos previstos pelas leis específicaspara os israelitas. Por isso, embora fosseproibido aoshebreus comer carne de animal morto de morte natural, isso era lícito para os estrangeiros que viviam no meio dos hebreus(-DeuferonómloXIV.

21).

Havia exceçãosomente para alguns casosem que certas leis previam de modo específico que os habitantes estrangeiros as observassem como

os autóctones

4. Foi permitido também aosestrangeiros que vinham de fora e que não eram submissos às instituições hebraicas adorar a Deus e Ihe oferecer vítimas no templo de Jerusalém, mantendo-se, contudo, num

local específico [53] e separado do recinto consagrado aosisraelitas (a7

ReJ'SVl11, 41, 11; 27MacaÕé?us 111,35; Jogo Xl1, 20; -4fos Vl11, 27). Eliseu [54] jamais deu a entender a Naaman da Síria, nem Jonas aos

capítulo ll da Epístola aos Romanos, diz a respeitos 'Z)e que J'udeu e de que

regas se trata aqui? Daquelesque viviam antes da vinda de Crista, pois o discurso do apóstolo não chegou ainda ao tempo d& graça." 'E-acxeswnkã. "Os

gregos de que fala o apóstolo não são idólatras, mas pessoasque temiam a Deus, pessoas que seguiam a razão natural, mesmo que não observassemas cer:imóz2Jas /uda ba& praúcaKam

fada o que a pi'idade

emke. " Como exemplos,

relembra Melquisedec, JÓ, os ninivitas e Cornélio e logo continua(JZoml#a VI,

4à''"Por grego, deve-seentender não um idólatra, mas um homem piedoso, viúuoso e que somentenão se submete aos rituais da lei." Segueas mesmas idéias, explicando: 'Zbm /e/nçâo aos que estão sem /ez, agl como se eu mesmo estivesse sem ]ef. "No discurso Xll, .Z)eS6afulk(.IZomdlb Xl1, 5), diz: "0 aPÓslojo

não entende pela palavra grego um idólatra, mas um homem que adora. um só Deus. sem contudo estar sujeito aos ritos judaicos, como o sábado, a circuncisão, os diversos tipos de purificação, mas que, por outro lado, se mostra em sua conduta apegado ao estudo da sabedoria e da piedade.

[53] Ver Flávio Josefo,no ]ocal em que trata da história do templo de Salomão (.4nflkzlldades JudaJ'CaS,Vl11, 4,3).

[54] Encontj'a-se reflexão semelhante em Hilário, sobre i!/ateus XII.

H UGO

GROTI

US

ninivitas, nem Daniel a Nabucodonosor,nem osoutros profetas ao se dirigirem aos habitantes de Tiro, aos moabitas, aos egípcios, que era necessário acatar a lei de Moisés para se salvar. 5. O que eu disse sobre a legislação de Moisés em geral, digo-o

também da circuncisão que servia como introdução à lei. Há uma só diferença, isto é, somente os israelitas estavam submetidos à lei de Moisés, enquanto que a obrigação da circuncisão havia sido imposta a toda a posteridade deAbraão. E por isso que lemos na história dos hebreus

e dos gregos que os idumeus haviam sido coagidos pelos judeus a se

circuncidar. Por isso éverossímil que os povos,fora dosisraelitas, que se circuncidavamle houve vários, mencionadospor Heródoto, Estrabão, Fílon, Justino, Orígenes,Clemente deAlexandria, Epifânio, Jerânimo

[55]) eram descendentesde lsmael, de Esaú ou da posteridade de Cetura [56] .

6. Quanto a todos os outros, esta passagemde SãoPaulo (Rama nos 11,14) se aplicaria a eles: "Quando as nações que não têm lei seguem a própria natureza [57] (isto é, os costumes que remontam a essa fonte original, a não ser que se prefira relacionar esta palawa nafta'eza ao que precede, a fim de opor os gentios aos judeus, a quem desde seu

[55] Pode-se acrescentar

Teodoreto

[56] Aqueles etíopes que Heródoto enumera entre os povos circuncisos parecem ter

sua origem em alguns dos descendentesde Cetura. Epifânio os chama de homeritas

[57] Jogo Crisóstomo [344-407], comentando a Epístola aos Romanos (Hbmi7la V. 5), diz:

':Pbr racTbczh/os nafuraJk. " Logo depois acrescenta:

;:4cZml :áre/ á que

não necessitam da ]ei, pois a consciência e o uso da razão lhes bastam." qp\x\tns

Septimius Florens Tertullianus [144-220?],na obra .4dversusJudaeos(2). es:Teve: ':Antes da lei de Moisés, gravada nas tábuas de pedra, havia uma lei não escrita que se podia conhecer naturalmente e que os patriarcas observavam. Pode'se referir aqui o pensamento de lsócrates [436-338 a.C.): 24gue/es que

ilmejam ter uma boa república não devem encheros pórticos de leis escritas. nas devem antes gravar as máximas da justiça nos espíritos" (Aeropag. X6à.

CAPÍTULO 1- 0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

nascimento se transmitia uma noção da lei), quando fazem naturalmente as coisas que a lei manda, os membros dessas nações, por não terem lei, eles mesmos são a lei. Desse modo, mostram que o objeto da

lei está escrito em seu espírito, enquanto sua consciêncialhes dá ao mesmotempo testemunho e seus pensamentos os acusam ou os defendem de acordo com as circunstâncias."

E esta outra passagem do mes-

mo apóstolo (-Romanos11, 26): "Se o prepúcio, isto é, o homem incircunciso, observa o que a lei manda, seu prepúcio não poderia ser considerado como uma circuncisão?" E com razão, portanto, que na história de Josefo [58] , o judeuAnanias

ensinava a ]zateAdiabeno

(cha-

mado Ezate por Tácito [59]) que, mesmo sem circuncisão se podia servir dignamente a Deus e torna-]o propício [60] . Muitos estrangeiros

se

submeteram à circuncisão, submetendo-se através dela à leilcomo o explica São Pau[o aos (];áZaÉasV. 3], e o ülzeram, em parte para adquirir

odireito de cidadania, pois os prosélitos que os hebreuschamavam de "os hóspedes da justiça" gozavam de direitos iguais aos dos israelitas

[61] (.NiímerosXV), em parte para participar das promessas [62] que não eram comuns ao gênero humano, mas específicaspara o povo hebraico. Não nego, contudo, que no decorrer dos séculosseguintes alguns tivessem sido convencidos pela falsa opinião que fora do judaísmo

nãohaviasalvação.

[58] F[ávio Josefo137?-100?] , em ,4nÉiÉ'z)idades JudaJbas(]ivroXX, cap. 11,4). [59] Caius Corne[ius

Tacitus

[55-120],

em

4nnaJes (X]1, 14)

[60] Tritão, abrandando seu rigor, assim se dirige a Justino: ']Setivesses persevera-

do nessa 81oso6a,poderias conservar um resto de esperançade um estado melhor.". tCoiloquíum [61] Justino]100?-165?] do-se

igual

cum 'llryphone, S3 diz.'

ao israelita"

'0 proséí/lfo (.Colioquium

c]raunc2dado cum

'l)yphone,

se agzeegou

ao povo.

'LaSà.

[62] Por isso é que eram admitidos a participar das cerimónias da Páscoa.

óarnan

'

H UGO Gxotius

7. Disso concluímos que nenhuma parte da !ei hebraica, uma vez que é propriamente uma lei, nos obriga, porquanto toda obrigação, fora a que impõe o direito natural, emana da vontade daquele que faz a lei. Não há indício, através do qual se possa depreender, que Deus quisesse

que outros, à exceçãodosisraelitas, fossem submetidos a essa lei. Não

há nada a provar, no que nos diz respeito, que jamais tenha sido abrogada, pois não subsistia com relação a indivíduos que ela jamais tinha obrigado. Com relação aos israelitas, não ficaram mais submetidos

a ela, quanto ao rito na verdade,logoapósa promulgaçãoda lei do Evangelho, o que foi claramente revelado ao pláncipe dos apóstolos(.4Éos

X, 15). Ela â)i ab-rogada para o resto depois que o povojudeu, pela ruína

e destruição completa de sua cidade, cessoude formar um povo, sem esperança de se reconstituir

como nação.

8. Quanto a nós, estranhos à naçãojudia, o que ganhamos com a vinda de Cristo não foi o fato de nos termos livrado da lei de Moisés, mas

de nos apoiar numa aliança formal, uma vez que não tínhamos antes senãouma esperançaconfusa na bondadede Deus, por um lado e,por outro, formar uma mesma Igreja com os hebreus, filhos dos patriarcas,

desde que sua lei que nos separava delescomo por uma barreira, foi abolida (.E7ãs7bs11, 14).

XVII. Que provas os cristãos podem extrair da lei dos hebreus e de que maneira? 1. Uma vez que a lei de Moisés não pode criar para nós uma obrigação dh'eta, como já demonstramos, vejamos se ela não tem algu-

ma utilidade tanto comrelaçãoa estetratado do direito da guerra como por outras questõessimilares. De fato, é muito importante tomar conhecimento disso.

CAPÍTULO 1-

0 QUE É A GUERRA? O QUE É A PAZ?

2. Alei hebraica nos faz ver primeiramente que o que é prescrito

não é contrário ao direito natural. De fato, o direito de natureza, comoo dissemos anteriormente, sendoperpétuo e imutável, não é possível que Deus, que nunca é injusto, tenha podido ordenar alguma coisa contrária a esse direito. Acrescente-se a isso que a lei de Moisés é chamada sem mancha e reta (Sa/moXIX; na Hu/gala, XVl11, 8) e que o apóstolo Paulo a classifica de santa, justa, boa (-EomanosVl1, 12) . Falo dos preceitos, pois a respeito do que ela permite é necessário fazer distinções mais aprofundadas. Apermissão que a lei concede (não

se trata aqui daquela que é puramente de fato e que implica somente numa remoção de impedimento) é, de fato, plena, quando confere o direito de fazer qualquer coisa com total liberdade; é menos plena quando

concedesimplesmente a impunidade perante os homens e a faculdade

de agir sem que seja permitido a ninguém colocar impedimento. Depreende-se da primeira espécie de permissão, bem como de disposi-

çõesimperativas, que a lei não é contrária ao direito natural naquilo sobreque se pronuncia. Não é diverso no que concerne à permissão da segunda espécie [63]. Acontece raramente, porém, que se possa tirar

esta conseqüência,pois os termos que exprimem a permissão sendo equívocos,é mais conveniente recorrer aos princípios do direito natural

para descobrir de que tipo de permissão se trata, do que tentar argumentar sobre a qualidade da permissão relacionada aosprincípios do direito de natureza. 3. Outra observaçãomuito próxima à primeira trata, seé permitido agora aos que possuem o soberano poder entre os cristãos, de pro-

mulgar leis de mesmo teor daquelas dadas por Moisés. Excetuando-se naturalmente as leis cujo objeto se relacionada aos tempos em que Cristo era esperadoe quando o Evangelho não havia ainda sido revelado ou aquelas sobre as quais o próprio Jesus Cristo teria ordenado o con[63i Ver Jogo Crisóstomo [344-407],no final do capítulo Vll do comentárioà Epís tola aos Romanos(.IZomJ7lb Xl11, 4).

H UGO

GROTIUS

Erário, seja em geral, seja em casosespecíficos. Fora dessestrês casos, não podemos imaginar outra causa pela qual não fosse mais permitido

agora prescrever o que outrora a lei deMoisés havia estabelecido. 4. Um terceira observação é que todas as disposições da lei de Moisés relativas às virtudes que Cristo exige de seus discípulos são também aplicáveis anualmente aos cristãos, e mesmopodendo ser sub-

metidos a a]go mais [64]. Esta observaçãorepousa sobre o fato de as virtudes exigidas doscristãos, como a humildade, a paciência, a caridade, lhes são impostas num grau mais elevado do que na época da lei hebraica [65]. E isso com razão, pois as promessas ce]estiais são bem

mais claras no Evangelho. Por esta razão é que se diz, com relação à antiga lei, comparada com o Evangelho, que era imperfeita, que não era isenta de defeito (HeóreusVl1, 19; Vl11, 7). Por esta razão se diz de Cristo que ele é o fim da lei(.RomanosX, 4) e da lei que é um guia que conduz pela mão a Jesus Cristo ((;á/nías111, 24). Assim, a antiga lei do sábado e aque]as referentes ao dízimo [66] mostram que os cristãos são

obrigados a dedicar ao menos a sétima parte de seu tempo ao culto divino enada menosque a décimaparte de seusautos para a manutenção daqueles que se ocupam das coisas sagradas ou para outros usos piedosos similares. [64] Quintus Septimius F[orens Tertu[[ianus [155-220?],na obra .DePudlcvflb (6), ài.$ "A liberdade cristã não investiu contra a inocência.A ]ei da piedade, da verdade, da ãldeiidade, da castidade, da justiça, da misericórdia, da benevolên-

cia, do pudor permanece intacta." [65] João Crisóstomo, em De 14lg7hifafe(XC]V), escreve: 'Det'e'se mosíral' agarn mais vü'rude, porquanto houve agora uma grande efusão da graça do espírito e também porque a vinda de Crista é uma üca fonte de dons." O mesmoautor reproduz pensamentos similares no discurso em que trata dos vícios que pro' vêm da negligência, quando discursa sobre o jejum(111), sobre a Epístola aos Romanos(VI, 14 e Vl1, 5), na .HbmJbbZZ7(4)e na .l?bmJZÍaXZ7(4). Acrescente-se a isso o que diz ]rineu [130?-202?], na obra (]onéra #beJ'ases (]ivro ]V. cap.

XXVD. O autor de SFnopsuk Saa'ae,Sk:rvbfzzzae, que se encontraentre as obras de Atanásio]295?-373], ao falar do cap. V de Mateus, diz que "Cz:üfofama maia enérgicos os mandamentos da ]ei 166] Essa lei é aplicada de igual modo aos cristãos por Irineu C4c/versus Haereses.

livro IV. cap. XXXIV) e por Jogo Crisóstomo, no final do comentário da primeira Epístola aos Coríntios(Homl#a X/ZZ

Epístola aos Efésios(Homo/lb /K 3).

4) e do comentário da passagem 11,10 da

11

SEASVEZESAGUERRA PODE SER JUSTA

Sumário

1. Prova-se por diversas razões que o direito de natureza não é

contrário à guerra. 11.Pela história lil. Pelo consenso. /V'.I'Fora

'se que ojus

gentium

(2íü'e/fo dasgenfesJ

não se opób

a guerra

VDemonstra-se queo direito divino voluntário, antes da época do Evangelho, não se opõe à guerra e resolvem-se objeções

feitas a respeito. VI. Observaçõespreliminarespara definirsea guerra écontrá-

ria à lei doEvangelho. VII. Argumentos para a negação, tirados das sagradas escrituras.

VIII. Solução dos argumentos tirados das sagradas escrituras

para sustentar a aíÍrmaçãa. IX. Exa!!!ina-se o consensodos antigos cristãos a respeito X. A opinião contrária é conârmada pela a utoridadepública da sereia, o consenso geral e o costume das épocas.

CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZESA GUERRA PODE SER JUSTA

1. Prova-se por diversas razões que o direito de natureza não é contrário à guerra 1. Após ter visto as fontes do direito, vamos à primeira e mais genérica das questões, a de saber se há alguma guerra que seja justa ou

seàs vezesé lícito fazer guerra. Esta mesma questão, como as outras que se seguirem, deveser examinada, primeiramente, sob o ponto de vista do direito natural. Marcus Tullius Cicero,tanto no terceiro livro de seu tratado .De ãhJbus [1], quanto em outras passagens, diz com erudição, seguindo as obras dos estóicos, que há alguns princípios natu-

rais primitivos (primeiros por natureza, segundoos gregos)e alguns outros secundários, mas que devem ser preferidos aosprincípios primitivos. Ele chama prillcípios primitivos aqueles pelos quais todo animal, desde o momento

de seu nascimento,

se torna caro a si mesmo, é levado

a se conservar, a amar seu estado e tudo o que tende a mantê-lo, têm

horror à destruição e a todas as coisasque parecemcapazesde elimina-lo. Disso decorre, diz ele, que não há ninguém que não gostaria de ter à disposição a possibilidade de escolha,de ter todas as partes de seu corpobem dispostas e inteiras, antes de tê-las mutiladas ou disformes. O primeiro dever é, pois, o de se conservar nó estado em que a natureza nos colocou, de reter o que é conforme

à natureza

e de repudiar

as coisas

que Ihe são contrárias. 2. Cícero coloca em segundo lugar a noção da conveniência das

coifas com a razão [2] que é de uma natureza superior à do corpo. Esta conveniência, cujo propósito é o que é honesto, deve ser preferida às

11] Marcas Tu[hus Cicero [106-43 a.C.], Z)e

h/ózzs (111,5,17)

[2] Lucius Annaeus Seneca[Ol? a.C.--65 d.C.), em Ed)ikfu/aead Zucí#um (CXX]V, \l) d\ü "Do mesmo modo que toda natureza não mostra o que faz seu bem a não ser quando chegouao ponto de perfeição que Ihe convém, assim também o bem do homem não se encontra no homem, a não ser quando a razão nele é pere

H

UGO GROTIUS

coisas em que se privilegia o único desejodo apetite natural, porquanto ainda que as primeiras

impressões nos reconduzam à reta razão, a rega

razão deve ser mais cara a nós do que as coisas pelas quais aspiramos [3]. Essa verdade, sendo constante e tendo em favor de]a o consensode todos aqueles que tem o juízo são, sem que haja necessidade de qualquer outra demonstração, segue-se que sempre que se trate de exami-

nar o que é de direito natural é preciso primeiramente ver o que convém a essasprimeiras impressões da natureza e passar,em seguida, ao que, embora tenha nascido depois, é contudo melhor e deve ser não somente abraçado, se o tivermos, mas ainda ser procurado de todas as maneiras. 3. Em vista da diversidade da matéria, o que chamamos de honesto consiste, algumas vezes, num ponto por assim dizer indivisível, de modo que por pouco que alguém se afaste dele, se inclina para o vício.

Outras vezesabrange um raio mais amplo, de maneira que se nosconformarmos com ele, fazemos algo de louvável, mas que podemos, sem risco de cometer algo de desonesto,não nos conformar com ele ou mesmo agir de outro modo totalmente diverso. E aproximadamente a mesma coisa que subsiste entre o ser e o não-ser que comporta uma brusca

transição, enquanto que entre as coisasque seopõementre si de outra maneira, como o branco e o preto, encontramos um meio que pende

para os dois extremos ou que delesse afasta de modo idêntico. E este último ponto de vista do honesto que é sobretudo o objeto de preocupa' ção das leis tanto divinas quanto humanas, cuja finalidade é a de tor-

l?À Soneca ÇEpistula LXXVb escxewe:"0 que há de melhor em cada ser é aquíio para que foi destinado peia natureza e que determina sua própria excelência.

Quehaveria de ta! monta no homem?Ea razão."'aer \arnbêm Epistula CXX\ e Ed)Jbfu/aCXX]V. Decimus Junius Juvena]is [60-140?],em Sa€7rue(XV. 106-08), ààz. "Zenon nos dá preceitos melhores. Não nos permite empregar sem distinção todos os meios para conservar a vida.

101 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

nar até obrigatórias as coisasque, por sua natureza, não eram senão louváveis. Já dissemos, porém, que ao examinarmos o que é de direito natural procuramos saber se tal ou qual coisa pode ser feita sem injus-

tiça. E ainda, que por injustiça entendemoso que está em oposição absoluta com a natureza racional e social.

4. Entre osprincípios naturais primitivos não há um sequerque seja contrário à guerra. Mais ainda, eles são antes favoráveis, pois que

sendo o objetivo da guerra assegurar a conservação da vida e do corpo, conservar ou adquirir as coisas úteis à existência, este objetivo está em

perfeita harmonia com osprincípios primeiros da natureza. Sefor necessário empregar a violência em vista desses resultados, nada há que

se oponha a esses princípios primitivos, porquanto a natureza dotou cada animal de forças físicas que possam Ihe bastar para se defender e

para providenciar o de que tenha necessidade.Xenofonte]4] diz: 'Todas as espéciesde animais conhecem algum modo de combater que apren' deram da própria natureza." Num â'agmento de Ha-#euÉüa [5] se pode

ler: "Todos os animais pressentem seu inimigo e os recursos de que

dispõempara resistir. Eles conhecema força e a maneira de se servir das armas de que estão munidos." Horácio havia dito16] : "0 lobo ataca comos dentes, o touro com os chia'es. Quem lhes ensinou isso, senão o

instinto?" Lucrécio]7] vai mais longe: "Tudoanimal tem um pressentimento dos meios de combate dos quais pode se servir. O bezerro sente seuschifres antes que tenham surgido em sua testa, encolerizado bate

[4] Xenofonte [430-355?], em Gwopaedlb (11, 3,9) [5] Pub[ius Ovidius Nabo [43 a.C.-18 d.C.], .]Za#euüca (7-9) [6] Quintus Horatius F[accus [65-08 a.C.], em SaÉíme (11, 1,52). [7] Tu[[ius Lucretius Carus [98-55 a.C.], De Natura ,Rerum (V. 1033-35)

102

H uoo GROTIUS

com eles e se ]ança para a frente quando irritado." [8] O mesmo pensa' mento é assim expresso por Galeno: 'Vemos todo animal usar o que tem de mais forte para se defender. O bezerro ameaça com sua cabeça, mes-

mo que os chifres não tenham ainda crescido;o potro, que ainda não tem os cascos cumes, dá coices e o filhote de cachorro tenta morder com

seus dentes que ainda não têm firmeza." O homem, diz ainda Galeno

(.Deusura.rãum, 1), é um animal nascido para a paz e para a guerra.

Não está munido de armas naturais, mas possui mãos aptas para prepara-las e manuseá-las. Vemos que, de modo espontâneo e sem ter aprendido de ninguém, as crianças se servem de suas mãos à guisa de armas [9] . Aristóte]es

(.De ParÉlbus.4n.íma.#um,

livro ]V. cap. ]O) diz

que a mão do homem Ihe serve de maça, espada, de qualquer tipo de

arma, porque tudo pode agarrar e segurar com a mão. 5. Quanto à reta razão e à natureza da sociedade,que devem ser estudadas em segundo lugar sem lhes diminuir a preferência, não vetam todo o emprego da força, mas somente as vias de fato que se opõem

[8] Marcus Va[erius Martia[is [40-104], em seus epigramas (111,58,11), diz: 'OJbvem ceado sente p3'unidospara o combate com sua conte inofensiva." Yadiúa \234-

305?], em Z)e non Esa .4nJha#um(111, 9), escreve: 'l:hda anJlma/conhecenojo mesmo a parte fraca cu forte, toma precauções com a primeira e se sebe da segunda.A pantera usa os dentes, o leão as garras e os dentes, o cavalo o casco e o óou'os cüiúes. " Jogo Crisóstomo1344-407], em De SZafuzb(ãbmJ7)b.XZI4),

à\z\ "Os animais privados de razão carregam com eles suas armas em $eu próprio corpo.O boi tem seuschia'es,cjavali seusdentes,o leão suasgarras.A mim, porém, Deus me deu armas que colocoufora de meu corpo, mostrando com isso que o homem é um anima! soda! e que não deva fazer uso dessas armas Q tempo todo. Ora tomo meu dardo, ora o !algo. Para que seja mais livre,

mais desimpedidae quenão seja obrigadoa carregarminhas armas comigo,fez de modo que e/as esf(:/amseparadas de meu corpo." Estas últimas palavras concordam perfeitamente com a passagem de Galeno, citada no texto. 19]Cassiodoro [F[avius Magnus Aure[ius Cassiodorus, 490-580?], em De .4nlha (9), Nxü "0 corpo do homem, sendo feito de ta} modo que não possui chifres para se defender e que não o pode fazer com seus dentes, nem se subtrai' pela fuga, como os outros animais, a natureza !he deu um peito robusto e braços, a âm de que pudesse rechaçar com a mão o ataque de que fosse alvo e opor seu corpo como um escudo.

IQ3 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZESA GUERRA PODE SER JUSTA

àvida social,ou seja, que atentam contra o direito de outrem. De fato, o objetivo da sociedadeé que cada um se mantenha naquilo que Ihe pertence, como efeito de um concurso comum e da reunião das forças de

todos. E fácil entender que não seria assim, mesmo que o direito que ora chamamos "propriedade" não tivesse sido criado, pois a vida, o corpo, a liberdade teriam sido sempre bens próprios de cada um, contra os

ais não se poderia atentar seminjustiça. Assim é que o primeiro ocupante teria tido o direito de se servir das coisas comuns no limite de

suas necessidades e aquele que o tivesse despojado desse direito se teria

tornado culpado de injustiça com relação a ele. Hoje, porém, que a pro'

priedade recebeu da lei ou de um costume uma existência própria e distinta, isso se tornou bem mais fácil de entender. Eu expressada essa idéia servindo-me das palavras de Cícero [10]: "Assim, se cada um de nossos membros tivesse a faculdade de pensar, se ele julgasse estar agindo corretamente ao tirar a saúde do membro vizinho, todo o corpo

se en6'aqueceria e necessariamente pereceria. Assim também, se cada um de nós se apoderasse do bem dos outros e tirasse de cada um o que poderia resultar em proveito próprio, a sociedade dos homens, a vida em comum necessariamente se subverteriam. É certamente permitido

aspirar em ter para si mesmoas coisasque serelacionam como entretenimento da vida, do que vê-las serem adquiridas por outros, uma vez que a natureza não se opõe a isso. O que, porém, ela não pode tolerar é

que aumentemos nossosmeios de vida, nosso património, nossasriquezas, despojando delas os outros.'

6. Não é, portanto, agir contra a natureza da sociedade zelar e prover para os próprios interesses, sob a condição de que o direito do

outro não seja atingido. Ey.çlçcglrêncla* o emprego da força, quando não viola o direito dosoutros, não é injusto. Cícero[11] formulou assim

[10] Marcus Tullius Cicero [106-43 a.C.], Z)e C2#ícbk(111,5,22) [11] Marcus 'rU]]ius Cicero [106-43 a.C.], De (2zZíclls(1, 2,34).

104 H UGO

GROTIUS

este pensamento: "Como há duas maneiras de resolver uma controvérsia, uma pela troca de argumentação e outra pelo emprego da força, e como a primeira é própria dos homens e a segunda dos brutos, convém recorrer à segunda somente quando não se pode fazer uso da primeira."

Em outro ]oca] [12], o mesmo autor diz: "0 que se podefazer contra a força sem a força?" Em U]piano [13] se pode ]er: "Cassius escreveu que

é permitido repelir a violência pela violência, pois é a natureza que

concedeessedireito e que por isso é lícito repelir armas com armas." Ovídio [14] havia dito que "as ]eis permitem tomar em armas contra os que estão armados'

11. Prova-se

pela história

1.Ao dizermos que toda guerra não é contrária ao direito natural, isso pode ser provado melhor ainda por meio da história sagrada. De fatoAbraão, tomou em armas com seus servos e aliados e conseguiu vencer os quatro reis que haviam saqueadoSodoma; essa conduta foi aprovada por Deus, por meio de seu sacerdoteMelquisedec que se dirigiu aAbraão nessestermos: "Louvado seja o Deus Altíssimo que entre-

gou teus inimigos em tuas mãos" (Génes7bXI'K 20).Abraão tinha tomado em armas, como se depreende da história, semuma ordem espe'

cífica de Deus. Ele sejulgava autorizado a agir dessaforma de acordo com o direito natural, essemesmo homem que não era somente extraor-

dinariamente santo, masainda muito esclarecido,segundoo próprio testemunho dos estrangeiros Berosus [15] e Orfeu [16] . Eu não invoca-

[12] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], .qlJkÉu/ae (X]11, 3). llS] Domitius U[pianus [? --228], Dlgesfa (XL]11, 16) [14] Publius Ovidius Nabo [43 a.C.-18 d.C.], ,4rs.4mafana (111,492)

[15] F[ávio Josefo [37-100?],.4nflküldadesJudaicas(1, 7,2). [16] C[emente

de A[exandria

[150-215?],

em SÉromafa (V. lO,124)

105 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

ria a história dos sete povos que Deus entregou aos israelitas para os

destruir, pois havia uma ordem especialque vinha de Deus para exterminar os povos que se haviam tornado culpados dos maiores crimes. Por isso essasguerras são chamadas, nas Sagradas Escrituras, de guer-

ras de Deus, tendo sido empreendidas sob a ordem de Deus e não por vontade dos homens. A guerra que os hebreus empreenderam sob o comando de Moisés e de Josué para rechaçar as violências cometidas contra eles pelos amalecitas(ÉxodoXVll)

se relaciona melhor com nos-

sotema. Deus não a havia ordenado antes que tivesse começado,mas uma vez em curso, ele a aprovou-

2. Cumpre salientar ainda que Deus ditou a seupovoregras gerais e perpétuas sobre o modo de fazer guerra(Z)eufezonÓmJoXX, lO,15), mostrando com isso que uma guerra pode ser justa, sem ter sido espe-

cialmente ordenada por ele. De fato, ele distingue de modo transparen' te, nessas passagens, a causa da guerra dos sete povos daquela das outras nações. Como não se formula nenhum princípio sobre as causas

legítimas da guerra, indica por isso mesmo que elas são naturalmente bastante conhecidas. Podemos citar como exemplos de motivos legítimos, a defesa das fronteiras,

como ocorreu na guerra de Jefté contra os

amonitas (Julaes XI), a violação dos embaixadores, na guerra de Davi contra o mesmo povo (/7Snmue/X). Cumpre observar também o que

diz oautor divino da EplafoZnaos.Hbõreus,que Gedeão,Barac, mansão, Jefté, Davi, Samuel e outros, pela fé destruíram reinos, brilharam na

guerra e puseram em fuga os exércitos das naçõesestrangeiras (XI 33,34). Ele dá a entender aqui, sob o designativo de fé, como parece claro na seqüência do texto, a persuasão que se tem de estar fazendo o que é agradável a Deus. Assim é que uma mulher sábia dizia de Dava que ele combatia os combates de Deus (/Sâmue#XXV. 28), ou seja, que suas guerras eram piedosas e justas.

106 H UGO

GKOiiUS

111.Prova-se pelo consenso 1. 0 que dissemos é provado pelo consensounânime de todas as nações e principalmente pelo de todos os sábios. Clonhecemos essa pas'

sagemde Cícero]17] onde,tratando do direito de empregar a força para

defender sua vida, dá testemunho à própria natureza: "Não é uma lei escrita, mas que nasceu conosco,que não aprendemos, nem recebemos,

nem lemos, mas que tiramos, haurimos, extraímos da própria natureza, pela qual não fomos instruídos, mas formados, pela qual não fomos educados, mas da qual fomos embutidos. Se alguém atenta contra nossa vida seja por traição, seja pela força, se caímos nas mãos de ladrões

ou de inimigos, todo meio de sa]vação é honesto." [18] Diz ainda o mesmo autor [19] : "E uma ]ei que a razão ditou aos espíritos esc]arecidos, que a necessidade'jii:escreveu

às pessoas incultas,

o costume às nações,

a própria natureza aos animais selvagens de rechaçar sempre de.seu corpo, de sua cabeça,de sua vida, e por qualquer meio disponível, toda vio[ência que os ameace." O jurisconsu]to Gaius [20] dizia que "a razão

natural permite sedefendercontra operigo." Ojurisconsulto Florentino [21] diz que "é uma regra de direito que tudo o que fizermos em defesa

[17] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], Pro 7bJZa .4nnJb .4/iZone(4, 10)

[18] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], em Ed kfuJae ad ],ucí/I'um (121,18),

Nxz."0 meio mais seguro de se defender está bem próximo e a cada um é pe/mifido focal' sua prcbryb defesa." SegundoMarcus Fabius Quintilianus [30?-100?], em -Z)e]nsfz'fuflone

Orafar7b(Vl1,

2,21),

'b defesa deve ocupar sem-

pre o primeb'c !usar porque nossa salvação é naturalmente mais importante gue a ralha do adversário': Com razão, portanto, Sófoc]es [494-406 a.C.], em lkachinai QalS-lqb, escxex6 "Se Hércuies não tivesse pensado em se defender abertamente, Júpiter o teria perdoado por ter combatido legitimamente." 'Vex também as leis dos visigodos(livro VI, título 1, cap. VI). [19] Marcus

Tu[bus

Cicero [106-43 a.C.], /boo 7bZZlb .4nnJO i]ã7one (11, 30).

[20] Gaius [séc. ]] d.C.], /nsíJfu/cones (4) e .D/êesfa (]X, 2). [21] F[orentinus [séc. ]]] d.C.], Z)lkesfa (1, 1).

107 CAPITULO II - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

de nosso corpo seja considerado como feito de modo legítimo". Josefo]22]

diz que "é, de fato, uma lei da natureza que todos queiram viver, lei que

reina no íntimo de todos os seres animados. Este é o motivo pelo qual consideramos como inimigos aqueles que procuram abertamente despojar-nos de nossa vida'

2. Este princípio se manifesta de maneira tão eqüitativa que, entre os próprios animais a que não se aplica o direito, comojá dissemos, mas do qual possuem um certo tipo como a aparência, distinguimos entre a via de fato que ataca e aquela que rechaça. De fato Ulpiano, após dizer que o animal, desprovido de senso, ou seja, do uso da razão

[23], não pode se tornar culpado de nenhuma falta contra o direito; acrescenta, contudo, que entre carneiros ou bois, após luta, se um ti-

vesse matado o outro, é precisover a distinção que Q. Mutius fazia a esserespeito. Se o que havia morrido era o agressor, não haveria como, segundo ele, imputar qualquer ação; se tivesse morrido aquele que não

havia atacado, a ação, nesse caso, deveria ser imputada. Essa passa' gem de Plínio]24]

serve para explicar o que acaba de ser dito: "A feroci-

dade dos leões não se exerce em combates entre eles, as picadas das serpentes não se dirigem a outras serpentes, mas não há animal, se atacado, que seja propenso à ira, sem paciência pela injúria e, se for ferido, que não esteja pronto a defender-se com todo o vigor."

[22] F[ávio Josefo [37-100?],,4 Gue/zn/uda ca (111,25) [23] Sêneca diz o mesmo a respeito dos animais selvagens: 'Zlnóorn não saJóamo lue é um beneHcioe qual o valor dele, são contudo sensíveis ao bem que lhes á feito, uma vez que o tenham recebido com assiduidade." Ver \nda a passagem no livro De .Bene#cJ)k(limo1, cap. 111)e compara-la com a citação de Fílon que reproduzimos

no prefácio(item

7, nota 16)

[24] Caius P[inius Secundus]23-79], NaóuraZs JZlkforJa(VID.

!08

H UGO

GROTIOS

IV Prova-se que o /us .gezz#zzm (direito das gentes) não se opõe à guerra 1. Consta de modo suficiente que o direito natural, que pode ser

chamado também de ./us genÉ7um(direito das gentes), não desaprova

todaespéciedeguerra 2. Com relação, porém, ao/usgenãum voluntário, a história, as leis e os costumes de todos os povos nos ensinam que também ele não condena a guerra. Ao contrário, Hermogeniano [25] disse que a guerra teria sido introduzida [26] pelo/usgenüum. Eu acredito, porém, que esta proposição deve ser interpretada num sentido um pouco diferente daquele que Ihe confere a fala popular e que é necessário, por isso, en-

tender que o ./usgenúum estabeleceu certas formalidades para colocar em ação a via das armas que atribuem às guerras aceitas como tais efeitos particulares em virtude doJ'tzsgendum.Disso surge a distinção

de que nos serviremosmais adiante, entre a guerra solene do ./us genÉ71zm, que é dita também guerra legitima, isto é, completa, e a guer-

ra não solene,que nem por isso deixa de ser uma guerra legitima, isto é, de conformidade com o direito. Isto porque, para as demais guerras, mesmo que a causa seja justa, o Jusgenf7um não as apóia, mas tam-

bém não é contra, como será posteriormente explicado com maiores detalhes. 'cito Lívio]27] diz que "é uma máxima do./us:gez7É7um rechaçar

as armas pelas armas". F]orentino [27a] acrescenta que este mesmo

Jtzsgenúum autoriza a rechaçar a violência, a agressão,para proteger seu corpo. [25] Claudius Hermogenianus [séc. ]V d.C.], Dlkesfa (1, 1). [26] O autor das idas

dos .IZomens 17usÉres[Corne[ius Nepos -- 99?-24? a.C.], ao

escrever sobre Temístocles (Vl1, 4), diz o seguinte: 'Dec/arda que áol por seu

conselhoque os atenienses haviam cercadode muralhas seus templos dos deusespátrios e dos penates para estar em condiçõesde rechaçar mais facilmente o inimigo, comoo poderiam fazer pelo comumjus gentium. [27] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z:/róeCbndla (XLl1. 41,11).

J2:1ah L. Ex hoc jure, Dig., De Justitia et Jure.

109 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

V Demonstra-se que o direito divino voluntário,antes da época do Evangelho, não se opõe à guerra 1.A dificuldade é maior no tocante ao direito divino voluntário. Que ninguém objete aqui que o direito natural é imutável e que, em decorrência, Deus nada poderia estabelecer que Ihe fosse contrário. Isto

só é verdadeiro para as coisas que o direito de natureza proíbe ou ordena, mas não para aquelas que são somente permitidas em virtude desse

direito. As coisas dessetipo, não sendo parte propriamente falando do direito de natureza, mas sendoalheias a essedireito, podem ser vetadas ouordenadas.

2. Algumas pessoascostumam alegar contra a guerra, em pri' meiro lugar, a lei dada a Noé e à sua posteridade, quando Deus assim fala (GézzesüIX, 5-6): "Eu vou pedir contas de vosso sangue, isto é, o sangue de vossas vidas. Vou pedir contas dele de todo animal. Vou pedir

contastambém da vida do homem pela mão de outro homem, mesmo sendo seu irmão. Quem derramar o sangue do homem, que está no homem, seu sangue também será derramado porque Deus fez o homem

à sua imagem." Alguns entendem de uma maneira muito geral o pri-

meiro membro da â'ase, no qual se diz que o sangue será exigido e querem que o segundo membro que fala do sangue a ser derramado como que reciprocamente não passe de uma ameaça e não de uma apro'

vação.Nenhuma dessasduas maneiras de ver me convence.A proibição de derramar o sangue não tem amplidão maior do que se diz na própria lei: "Não matarás." E de todo sabido que esta norma jamais impediu as penas capitais, nem as guerras. As duasleis não tiveram, portanto, por objeto, estabelecer alguma prescrição nova, mas apenas

proclamar e relembrar os princípios do direito de natureza apagados

H UGO

GROTIUS

por uma prática viciada. Disso resulta que o primeiro membro da â'ase

deve ser entendido no sentido que comporta a idéia de crime. O que entendemos com a qualificação do homicídio não é todo tipo de assassi-

nato, mas aquele que foi premeditado e cuja vítima é um inocente. Quanto ao que se segue,que o sangue será reciprocamente derramado, isso me parece não simplesmente a declaração de um fato puro e simples, mas o reconhecimento de um direito.

3. Vou explicar isto. Não é naturalmente injusto que cada um sofra tanto mal quanto ele praticou, seguindo o princípio que chamamos de o direito de Radamanto [28] : "Se cada um so6'er o que fez so6'er aos outros, isso seria obra de justiça e de eqüidade." Sêneca, o pai]29], reproduz essa6'ase dessemodo:"E considerada retribuição muito justa que cada um pague com seu suplício o mal que fez a outrem." Do ponto de vista dessa eqüidade natural é que Caim, tendo consciência do que fosse o parricídio,

havia dito (Génes7b iX 14): "Quem me encontrar, vai

me matar." Deus, porém, nesses primeiros tempos, seja por causa da

escassezde homens, seja porque o número de criminosos era ainda restrito, não sentia necessidade de dar exemplos; por isso, reprimiu por um mandamento expresso o que, segundo o direito de natureza, parecia

lícito. Ele quis, na verdade, que fosseevitado o contato e o comércio com

o homicida, mas não que ]he tirassem a vida. P]atão [30] transcreveu essa norma em suas ]eis e Eurípides [31] nos ensina, nos versos seguin-

tes, que tal havia sido outrora o uso na Grécia: [28] Encontra-se em Apo]odoro(livro

]]) a ]ei de Radamanto: 'iSe a/yuém se wbgou

daquele que por primeiro !he fez violência, que seja impune. [29] Marcus Annaeus Seneca [58 a.C.-32? D.C.], GonÉrorers/ae (]ivro X).

[30] P[atão [427-347?a.C.], .4s .Lelk(]X, 8). [31] Eurípides

[480-406

a.C.], Oresfes (512-15)

CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

"Com quanta propriedade o previdente século de nossos ances-

trais havia estabelecido que aquele que se tivesse tornado

culpado de assassinato fosseforçado a evitar o encontro e o olhar dos demais homens e expiar seu crime por um triste exílio, mas não pela mortes"

A respeito disso refere-se também a seguinte passagemde Tücídides [32] : "É prováve] que na antiguidade as penas tenham sido leves [33], mesmo para os grandes crimes. Com o decorrer dos tempos sepassou a fazer pouco caso desses castigos mínimos e se chegou à pena

de morte." Lactâncio134] diz: "Ainda parecia criminoso infligir a pena capital a seres que, embora perversos, sãocontudo homens.' 4. De um fato único chegamos assim à conclusão que essa era a vontade divina. Essa conjectura sefixou de tal modo como lei que Lamec,

culpado de crime semelhante ao de Caim, conseguiu ülcar impune, baseando-se nesse exemp]o (Génesh]V

24). [35]

5. Como, porém, antes do dilúvio, no tempo dos gigantes, tivesse havido grande permissividade com relação a assassinatos, quando o gênero humano foi restabelecido após o dilúvio, Deus achou que era [32] Tucídides[465?-395a.C.], J?isóódasda Guelra do Peloponeso(livro 111,45). [33] Servius [séc. ]V d.C.], em seu comentário sobre o primeiro livro da E] e 'da .xa6à,d\z. "As palavras luetis, persolvetis [quítar, pagarJprovêm da idéia de d.nÀe#o. 7bdasas penas antzÉaseram rechinar:fas. "No livro segundo(229), diz que a palawa "expendereremonta igualmente à noção de dinheiro, porquanto á certo que entre os antigos as penas ez'ampecunláz'ias,numa época em que os costumes eram ainda bastante grosseiros e o dinheiro fosse pesado.A seguíB chega'se a ap/zoar o lenho â pena capa'éa]. "Em suas considerações sobre o sexto [ivro(21), afirma que a palavra 'banda'e ]bz exÉmi2/nda condenaçãopoaunJãrlb

Caius P[inius Secundus]23-79 d.C.], na obra Natura/ís /]lbfaz:ü(livro Vll, cap.

INI) relembra que a primeira pena capital foi levada a efeito no Areópago. [34]

Caecilius

Firmianus

Lactantius

[séc.

]V

d.C.],

D/vlbal'um

]nsÉífufi'onum

(ll

9,23) [35] Ou me]hor, se viesse a cometer a]gum crime seme]hante, pois esseé o sentido que trazem as palavras em Moisés.

112

H UGO

GROTIUS

necessário prover de uma maneira mais severa com a finalidade de que

assassinatos não ocorressemcom tanta freqüência. Reprimindo o descaso do século precedente, ele mesmo permitiu, o que a natureza já demonstrava como não sendo injusto, que fosse considerado inocente quem matasse um assassino [36] .A seguir, essa permissão, quando os

tribunais já haviam sido instalados, foi reservada, por razões muito importantes, exclusivamenteaosjuízes. Ficou ainda, contudo,um vestígio do antigo costume no direito atribuído ao parente mais próximo da vítima. Isso foi constatado mesmo após a lei de Moisés, do que trataremos mais detalhadamente a seguir.

6. Temos,em favor de nossainterpretação, uma grande autoridade na pessoa de Abraço que, apesar de não ignorar a lei dada a Noé,

tomou as armas contra os quatro reis e certamente acreditava nada estar fazendo que fossecontrário a essalei. Foi assim que Moisés ordenou que fosse feita resistência armada contra os amalecitas que atacavam seu povo. A esserespeito usava o direito de natureza, pois nada indica que Deus tenha sido especialmente consultado sobre o assunto (Êxodo XVl1, 9). Deve-se acrescentar a isso que a pena capital parece ter-se tornado de uso comum, não apenas contra os assassinos, mas contra os demais criminosos, não somente entre os povos estrangeiros,

mas também entre os que haviam sido instruídos nos princípios de uma doutrina

piedosa (Gêzles/bXXXVl11,

24).

7. Inevitavelmente, essaconjectura da vontade divina sehavia estendido, com a ajuda da razão natural, dos casossemelhantes aos casos análogos, de modo que aquilo que havia sido estabelecido contra o

assassino havia parecido não se constituir em algo injusto contra os

[36] F[ávio Josefo137-100?], em .4nÉlküidades anda/cas(1, 3,8), diz: "Quem'0que as mãos se conservem !ímpar do assassinato de um homem, porquanto se alguém

comete um assassinato, que carregue a pena.

113 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

outros grandes criminosos. De fato, há coisasque caminham juntas com a vida, como a consideração, a honra das virgens, a fidelidade

do

casamento. Sem essas,a vida não teria segurança, nem haveria o respeito pela autoridade que mantém o liame social.Aqueles que as violam não podem ser considerados menos culpados que os assassinos.

8. Cabe relembrar aqui a antiga tradição existente entre os hebreus e, segundo a qual Deus teria dado aosfilhos de Noé várias leis que Moisés não tomou todas porque bastava, para seu prometo,que fos-

semposteriormente incluídas na legislação peculiar dosisraelitas. Assim é que aparece no -Lew'lobo(XVlll) que teria existido uma antiga lei contra as uniões incestuosas, embora Moisés, por sua vez, não a tenha mencionado.Diz-se também que entre os mandamentos ditados por Deus aos filhos de Noé se encontraria aquele que determinava punir com a morte não somente o homicida, mas também o adultério, o inces-

to, o roubo comviolência. Este ponto é conârmado pelas palawas de ú3

(xxXI,ll). 9. Alei dada por Moisés justifica, além disso, as penas capitais por razões que não têm menos peso entre os outros povos quanto entre o povo hebreu. Encontram-se exemplos disso no -Let'ítüo (XVl11, 24, 25, 27, 28), no Salino CI, 5, no livro dos Pzoí,é?üüs (XX, 8). De modo espe-

cífico é dito no livro de Números(XXXV. 31,33), com relação ao homicídio, que a terra não pode ser purificada senão pela efusão do sangue do

homicida. Seria absurdo pensar que teria sido permitido ao povo hebreu

proteger por suplícios sua moralidade, sua segurança pública e privada e se defender pela guerra, enquanto que a mesma permissão teria sido negada aos outros reis e às outras nações. Seria absurdo pensar que esses reis e essas nações jamais tenham sido advertidos pelos profetas que Deus desaprovava o uso de penas capitais e todo tipo de guerra, da

mesmamaneira que foram muitas vezesadvertidos por outras faltas.

!14

H U GO GROTIUS

IO.Ao contrário, quem não haveria de acreditar que a lei de Moisés

concernente aosjulgamentos, enquanto expressãofiel da vontade divina, não tenha sido adotada como modelo por nações que agiam de modo

sábio e piedoso?Parece verossímil que isso tenha ocorrido com os gregos, sobretudo com os atenienses, como pode ser deduzido pelo quanta há no antigo direito da ética e nas disposiçõesreproduzidas pelo direito

romano das Doze Tábuas, demonstrando a semelhança com as leis hebraicas. O que foi dito parece suficiente para demonstrar que a lei dada a Noé não tem o significado que querem Ihe conferir aqueles que se servem desse argumento para condenar todas as guerras.

VI. Observações preliminares para definir se a guerra é contrária à lei do Evangelho 1.As razõescontra a guerra, extraídas do Evangelho, têm mais prestígio. Eu não me prevaleceria, ao examina-las, da opinião daqueles que supõem que, fora das verdades propostas à nossa fé e do que se relaciona com os sacramentos, não há nada no Evangelho que não seja do direito natural. Não considero, de fato, esta proposição verdadeira no

sentido que a maior parte a toma. 2. Reconheço de boa vontade que nada nos é prescrito no Evange-

lho que não tenha o caráter da honestidade natural. Não vejo, porém,

razão alguma para concederque as leis de Cristo não nos obrigam senão ao que o próprio direito de natureza nos obriga. Chega a ser espan' teso ver como aqueles que pensam de outra forma se esgotam em esforços para provar que aquilo que é proibido pelo Evangelho

é ilícito segun-

do opróprio direito natura], comoo concubinato,o divórcio]37], o casa-

[37] Jerânimo

[Sophronius

Eusebius

Hieronymus

/331-420],

em EpJsf zJae (LXXV]],

3), tem essa passagem que se refere a isso: "Canas sâo as ]eü de (;ésa4 ouíms as de Crista; uJls são os preceitos de Papiniano, outros os de Paulo.

115 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

mento comvárias mulheres. Estas coisas,na verdade, sãode tal natureza que a própria razão nos ensina que é mais honesto se abster delas.

Elas não seriam abstração da lei divina, mas constituiriam um ato criminoso. Quanto ao preceito da lei cristã de nos expormos ao perigo de morte uns pelos outros (Jogo 111,16), quem pretenderia auferir que seríamosobrigados a isso pelo direito de natureza? Justino diz o seguinte[38] : "Viver segundo a natureza é próprio daquele que não tem ainda

afé." 3. Eu não seguiria tampouco a ideia daqueles que, fazendo outra suposiçãode alcance não desprezível, pretendem entender que Cristo, ao formular os preceitos contidos em Mafeus (V e seguintes), não fez outra coisa senão o de se tornar o intérprete da lei dada por Moisés. O contrário é expresso, na verdade, nessas palavras tantas vezes repeti-

das.'Vós ouvintes o que foi dito aos antigos, mas eu vos digo..."Êsse oposiçãode termos, clara na versão siríaca e em outras versões, leva a admitir que as palavras "aos antigos" devem ser traduzidas assim e não "pelos antigos"; de igual modo,"vos" é entendido "a vós" e não "por

vós". Ora, essesantigos não foram outros senão aqueles que viviam no tempo de Moisés, pois as coisas que são anexas como tendo sido ditas aosantigos, não são de doutores da lei, mas do próprio Moisés, palawa por palavra ou em sua substância. Esses preceitos são: "Não matarás"

(.aradoXX, 30);"Quem matar será culpadoperante a justiça"(ZeldZüa XX[, 21; JVUmerosXXXV. 16,].7,30); "Não cometerás adultério" (Êxodo XX, 30); "Quem repudiar sua esposa, deve Ihe conceder o libelo de repú-

dio" (.Deuferom(imJbXXIV.l); "Não jurarás falso, mas prestarás contas ao Senhor do que tiveres dito sob juramento"

(Êxodo XX, 7; .ZVUme/os

XXX, 2); "Olho por olho, dente por dente" (completa esta frase pelas [38] A passagem de Justino [100?-165?] é extraída de uma carta a Zenam. O mesma

pensamento se encontra em Orígenes [185?-254?],na co]etânea intitulada Phlocaiia (9ü.

116 H UGO

palavras:

"que seja permitido

GROTIUS

exigi-los perante a justiça"

-- .LelüZÜo

XXiVI 20; .Z)euferonóm.zb XIX, 21);"Amarás teu próximo" -- isto é, o israelita(-Z;etdZüoXIX,

18) e "Odiarás teu inimigo" -- isto é os sete povos

[39] com os quais é vetado manter amizade e com os quais não se deveria ter compaixão (Êxodo XXXIV. ll;

.Deusa'onÓmJO Vll,

1). A esses

povos é preciso acrescentar os amalecitas, contra os quais existe a or-

dem para os hebreus de lhes mover guerra implacável (êxodo XXVll,

19;-Deufev'onÓml o XXV 19). 4. Para entender as palawas de Cristo, porém, devemos observar que a lei dada por Moisés pode ser considerada sob dois aspectos. Primeiro, considerando-a segundo o que ela tem de comum com as ou-

tras leis estabelecidaspeloshomens,enquanto ela reprime os maiores crimes pelo terror dos castigos sensíveis (Hebreus 11,2) e enquanto mantém por este meio o povo hebreu em estado de sociedade civil. Sob

este ponto de vista é designada com a qualiÊlcação de Lei dos Manda-

mentos Carnais (Hebreus11,16) e Lei dasObras (.Romanos111,27). Em segundolugar, considerando-asegundoo que é específicoda lei divina, enquanto ela exige também a pureza da alma e certas ações que podem ser omitidas sem incorrer em penas temporais. Sob este ponto de vista é chamada de Lei Espiritual

(-RomanosVl1, 14), Lei que alegra

a alma (Sn/moXIX, segundo os latinos Salmo XVl11, 9). Os doutores da lei e os fariseus se contentavam

com o primeiro

aspecto, negligencia-

vam o segundo que é mais importante e não instruíam o povo a respeito. A verdade dessa alegação pode ser demonstrada não somente por

nossospróprios livros, mas também pelo testemunho de Josefo e de mestres dos hebreus.

[39] O ilustríssimo Abarbanel, em seu comentário sobre o .Z)euferonÓmJb m:X .g] diz que a lei permitia odiar essespovos

117 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZESA GUERRA PODE SER JUSTA

5. No tocante ao segundo aspecto, é preciso saber que as virtudes exigidas dos cristãos são também recomendadas e prescritas aos hebreus,

mas não no mesmo grau e com a mesma amp]idão [40] . Ora, é a esses dois aspectos que Crista contrapõe seus preceitos aos antigos; disso se

deduz claramente que suas palavras não contêm uma simples interpõe' tação. Convém que isso se torne conhecido não somente por causa do assunto de que estamos tratando agora, mas por muitas outras razões, a ülm de que não façamos uso da autoridade da lei hebraica além do que convém.

VII. Argumentos para a negação, tirados das sagradas escrituras 1. Deixando de lado, portanto, os argumentos que não nos satisfazem, o primeiro e principal testemunho que pode nos servir para pro'

var que o direito de guerra não foi absolutamente abolido pela lei de Cristo se encontra nessapassagemde Paulo a Timóteo (/ 7}hófeo, ll, 1-3): "Eu vos exorta, portanto, para que sejam feitas súplicas, orações, pedidos, ações de graças por todos os homens; para os reis e para todos

aqueles que são revestidos de dignidade, a fim de que tenhamos uma

[40] A respeito disso, ver as observaçõesfeitas anteriormente, ao final do.primeiro

capítulo. Há uma ótima passagemde Jogo Crisóstomo [344-407],em Z)e 7írginitate QcaD.WW)t

"OuUora Deus não exigia de nós um tão elevado grau

de virtude. Era permitido se vingar de quemse havia recebidoalguma injúria, deretHbuir uitrajepor ultraje, deprocuraracumuiar dinheiro, depurar,contento que fosse de maneira justa, de vazar a olho de quem tivesse vazado um, de )dias o inimigo. Não era tão pouco proibido viver em delícias, nem de se enco-

lerázar,nem de repudiar sua mulher para casar com outra. Mlaís ainda, a !ei permitia ter duas mulheres ao mesmo tempo. Sob esses aspectos e muitos outros, a indulgência era grande. Desde a vinda de Crista, porém, o caminho se

fartou óem mais esse/fo."No mesmolivro(cap. LXXXlID, o autor acrescenta: Não se exige a mesma medida de virtude para os antigos judeus que é exigida

de nós." O mesma autor ainda, no discurso Pl7l'umPafrl aequa/em(De /nconlpre/zens7Z)ÍÜ VI, X,4) aüuma que no Evangelhohá um maior número de preceitos,levadosa um mais alto grau de perfeição

118 H UGO

GROTIUS

vida tranqüila e pacífica com toda espécie de piedade e de dignidade [41], pois isso é bom e agradáve] diante de Deus, nosso salvador, que quer que todos os homens sejam salvos e que cheguem ao conhecimento da verdade." Nessas palavras aprendemos três coisas: que é agradável

a Deus que os reis se tornem cristãos; que, tornando-se cristãos, permaneçam como reis. Este pensamento foi assim expresso por Justino mártir

[42] : "Pedimos a Deus que os reis e os príncipes tenham a saúde

da alma unida ao poder real." E no limo intitulado

aonsüfuZzones

(1;7emenzEZs [43], a ]greja pede "fins cristãos", ou seja, magistrados cris-

tãos [44]. A seguir se diz que é agradável a Deus que os reis cristãos proporcionem aos demais cristãos uma vida tranqüila. 2. Como proporciona-la

a eles? Em outra passagem, Paulo expli-

ca (-RomanosXl11, 4): "Ele é ministro de Deus para teu bem. Se dizeres

o que é mau, ele fica receoso.Não é em vão que ele traz a espada, pois é

ministro de Deus para executar sua vingança contra aquele que fez o mal." Entende-se de modo figurado por direito de espada toda espécie de

repressão e é assim que esta expressão é tomada, vez por outra, pelos

jurisconsultos, mas de maneira a não excluir a função principal do direito de punir, ou seja, o verdadeiro uso da espada. O Sa/moZ7serve

para esclarecer esta passagem. Este salmo, ainda que se realize na

[41] Lucius Annaeus Seneca[O[? a.C.-65 d.C.], em Ed)kfu/ae ad ZucTZum(LXX]]]), diz que de modo falso se considera aqueles que se dedicam com sinceridade à filosofia como contendoresdos magistrados e dos reis. Acrescenta: 'Zo cona?á' rio, não há gente mais Sle! do que eles e não sem razão, pois não há ninguém a quem devam mais do que para aqueles que !hes garantem uma vida tranquila."

A carta onde se encontra também essapassagem merece ser lida: "0 beneábz'o

da paz, queinteressa a todos,toca mais deperto ainda os quedele fazem bom uso

[42] Justino [100?-165?], Hpo/qg7as(1, 17) [43]

Oons&ffuílones

.4posfo/orum(Vl11,

36)

[44]A não ser que se prefira interpretar comoum Êlmcristão na vida

119 CAPITULO II - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

pessoade Davi, é contudo aplicável a Cristo de uma maneira mais perfeita, como se pode depreender dos .4fos dosdp(ásfa/os(IV. 25; Xl11, 33)

e da Zp#faZa aosHebreus (V. 5). Este salmo exorta a todos os reis a receber o filho de Deus com respeito, isto é, a se mostrar seus ministros

enquanto reis, como bem o explica Agostinho [45], do qua] citarei os termos que se relacionam a este assunto: "Os reis servem a Deus na qualidade de reis se, seguindo os mandamentos de Deus, ordenam o bem em seu reino e proíbem o mal, não somente no que se relaciona

coma sociedadehumana, mas também no que diz respeito à religião divina." E em outra passagem [46] : "Como, pois, os reis servem ao Se-

nhor com temor, se não for proibindo e punindo comuma severidade religiosa as coisas que se praticam contra os mandamentos do Senhor? Uma é a maneira de servir a Deus como homem e outra a maneira de

servi-lo comorei." Diz ainda: "Os reis servem, pois, a Deus cornoreis, quando fazem para servi-lo coisas que não podem fazer senão enquanto l reis. '

))

3. Um segundo argumento nosé fornecido por esta passagem de

Paulo, da qual já citamos uma parte (Ep&faZaaos.Romanos,XIII), onde se diz que o poder superior, tal como é o poder real, vem de Deus e onde uma ordenação de Deus é exigida. Infere-se disso que é necessário -- e isso, em consciência -- obedecê-lo, ter respeito com ele e que aquele

que Ihe resiste, resiste a Deus. Se pela expressão"ordenação de ])eus" se entendesse uma coisa que Deus se limitaria a não querer impedir,

comoele costuma fazer com relação a açõesviciadas, não decorreria nenhuma obrigação de respeito, de obediência e sobretudo nenhum de-

ver de consciência. O apóstolo, ao exaltar e elevar tão categoricamente estepoder, nada teria dito que não se relacionasse a latrocínios e furtos. [45] Aurelius Augustihus [354-430], GonÉra Crescon 'um (lll, LI,56) [46] Idem, Gon&ra duas EpJS umasPe/agünorum ad Bon16aEÍEzm(50)

120 H UGO

GROTIOS

A conseqüência disso é, portanto, que a ordenação de uma autoridade soberana deve ser considerada como procedente da vontade expressa de

Deus. Daí a decorrência que Deus, não querendo o que é contrário a ele este poder não está em oposiçãocom a vontade divina que nos foi revelada pelo Evangelho e que obriga a todos os homens a não combater. 4. Este argumento não é derrubado pela objeção de que aqueles

que exerciam o poder na épocaem que Paulo escrevia eram estranhos à

religião cristã. O fato alegadonão é, em primeiro lugar, de todo verdadeiro, pois Sergius Paulus, pretor de Chipre, havia abraçado o cristianismo havia muito tempo (dfosXl11, 12),para não citar a antiga tradição relativa ao rei de Edessa [47], tradição que, embora contaminada por inverdades, parece remontar a um fato verdadeiro. Não se trata. em segundolugar, de saber se as pessoasforam ímpias, mas se a função da qual estavam revestidas foi maculada pela impiedade. Nós, porém, sustentamos que isso é negado pelo apóstolo, porquanto ele diz que

o poder é estabelecido por Deus, mesmoreferindo-se ao tempo em que ele falava, e que, por esta razão, o respeito que Ihe é devido é um dever imposto pela consciência que, propriamente falando, só Deus impera. Nero e aquele reiAgripa que Paulo convida tão insistentemente a abraçar a religião de Cristo (,4fosXXVI), poderiam ter-se submetido a Jesus Cristo e conservar o poder real este último e o poder imperial o primeiro, poderes que não podem ser concebidos sem o direito da espada e o das armas. Assim como outrora os sacrifícios não deixavam de ser santos, segundo a lei, mesmo tendo sido celebrados por sacerdotes ímpios,

assim também o soberano poder é uma coisa santa, embora seja um ímpio que o detenha

em suas mãos. [48]

[47] Edessa é uma cidade de Osroene. O nome Abgare é comum nesses lugares, como se pode veriHlcar em efígies de moedas, em Tácito, Apiano, Dion, tanto em

coisas publicadas antigamente, quanto em novos excertos (tais como políbio. Diodoro da Sicília) e em Capitolino [48] Jogo Crisóstomo [344-407] mostra isso perfeitamente, comentando essa pas' sabem da Epístola aos Reinados ÇlÍomilia X)(ill, aà.

!21 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZESA GUERRA PODE SER JUSTA

5.Um terceiro argumento seextrai daspalavras de JoãoBatista que,seriamente interrogado por soldadosjudeus(havia milhares deles no exército romano, como o provam claramente Josefo e outros escritores) sobre o que deveriam fazer para evitar a ira de Deus, ele não mandou abandonar o serviço militar -- o que devia lhes prescrever, se essa fossea vontade de Deus -- mas se abster de extorsões,de ü'audes e de se contentar com seu soldo (.Luc;as111,14).Arespeito dessas palavras de João Batista, que contêm uma aprovação bastante clara do exercício

das armas, muitos respondem que o que Jogo Batista prescreveu difere de tal modo dos preceitos de Cristo que ele pode muito bem ter ensinado

uma coisa e Jesus Cristo, outra. Aqui vão as razõesque me impedem de admitir tal opinião. João e Jesus Cristo indicaram, por início idêntico, o programa da doutrina que traziam ao mundo: "Fazei penitência, pois o reino dos céus está próximo" (/Mafeus111, 2; 1V.17). O próprio Cristo diz

que o reino dos céus (isto é, a nova Lei, pois era costume dos hebreus designar a lei com o termo reino) começou a ser implantado

a partir

dos

tempos de João Batista (/üa feusXI,.12). Jogo é apresentado como o que

pregava o batismo da penitência para a remissão dos pecados(itZal'cos 1, 4). Está expresso também que os apóstolos-fizeram o mesmo em nome

de Jesus Cristo (.4fos 11,38). João exige frutos dignos de penitência e ameaça de perdição aqueles que não produzem tais frutos (Mâ feraslll, 8 e 10). Ele pede obras de caridade que superem a lei(-Lacas lll, ll). Está expresso que a lei durou até Jogo, ou seja, que a partir dele começou uma doutrina mais perfeita(MafeusXI, 13). O início do Evangelho

remonta a João (.aZarcos, l,

l; .Lacas 1, 77). O próprio Jogo é considera-

do, sob esta perspectiva, maior que os profetas (Mnfetzs XI, 9; -Ltzcas Vl1, 26), pois ele foi enviado para transmitir ao povo o conhecimento da salvação (.LucasXI, ?7), para anunciar o Evangelho (,Lucas111,18). Em parte alguma Jogo se diferencia de Jesus pela divergência de preceitos, embora as mesmas coisas que indicou de uma maneira mais geral e

!22

H UGO

GROTIOS

mais vaga, em forma de simples elementos, tenham sido ensinadas mais claramente por Crista, que era a verdadeira luz. Não há diferença entre eles, a não ser em que Jesus era o Messias prometido (.4fosXIX, 4; Jogo 1, 29), isto é, o rei do reino celestial, comprometendo-se

a dar a

força do Espírito Santo aos que nele haveriam de confiar (Mafeuslll. 11; MaJ«cos 1, 8; .Lacas 111, 16).

6. Mais um quarto argumento que não me parece ser de pouco peso.Seforem suprimidas as penas capitais e o direito de proteger pelas armas oscidadãoscontra osataques dosladrões e salteadores,seguir-se-á uma imensa onda de crimes e um dilúvio de males. Hoje mesmo em que os tribunais estão constituídos, tem-se diÊculdade em reprimir a perversidade]49] . Assim, pois, se a intenção de Cristo tivesse sido a de introduzir um tal estado de coisas, do qual jamais se havia ouvido falar, ele deveria sem dúvida expressar nos termos mais claros e explícitos possíveis que ninguém deveria pronunciar sentença de morte, nem

tomar em armas. Não se lê, contudo, em lugar algum que ele tenha feito isso, pois o que se alega a respeito desse assunto é muito geral ou muito obscuro.Aprópria eqüidade e o sensocomum nos ensinam que é preciso não somente restringir os termos gerais e interpretar favoravel-

mente as expressõesambíguas, mas que devemos saber distanciar-nos

do próprio significado e uso das palavras para evitar um sentido que poderia trazer os maiores inconvenientes.

7. Um quinto argumentoé que não se pôdedemonstrar por ne' nhuma prova que a lei de Moisés,concernenteaosjulgamentos, tivesse sido abolida antes que Jerusalém fosse destruída e, com ela, a forma

[49] João Crisóstomo, no sermão .4d Pa&rem .fode/em(lO) diz que foi 'ba/'a /eprlhú' os maus que foram estabelecidos os tribunais, as leis, os suplícios e tantos outros tipos de pena

123 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZESA GUERRA PODE SER JUSTA

desse Estado e a esperança de seu restabelecimento. Na lei de Moisés

não há nenhum termo prescrito com relaçãoa essalei e Crista ou os apóstolos não falam em parte alguma de sua ab-rogação, a não ser en' quanto isto pode ser compreendido na destruição desseEstado, comojá o dissemos. Mais ainda e bem ao contrário, Paulo diz que o sumo pontí-

fice era estabelecido para julgar, segundo a lei de Moisés

(dfosXXlll,

3). O próprio Cristo declara, no início de seus preceitos, que não veio

para abolir a lei, maspara cumpri-la (MnfeusV. 17).O sentidodessas palavras não é obscuro para o que se relaciona com os ritos da lei, pois

ostraços gerais dos mesmos se aperfeiçoame se cumprem, quando a figura que se quer representar é completa. Comoisso pode ser verdadei-

ro em relação às leis que dizem respeito aos tribunais de justiça, se Jesus Cristo, como alguns pensam, as aboliu com sua vinda? Se a lei persistiu como obrigatória enquanto subsistiu a nação dos hebreus, segue-se que os judeus, mesmo convertidos ao cristianismo, não puderam

se subtrair à magistratura no caso em que fossem intimados e que ela não devia julgar senão o que havia sido prescrito por Moisés.

8. Considerando bem, não encontro a mais leve razão que seja

capazde inspirar um sentimento contrário em qualquerpessoapiedosa ao ouvir essas palavras de Jesus Cristo. Reconheço que, antes do tempo

de Cristo, havia certas coisaspermitidas, seja quanto à impunidade exterior, seja também quanto à pureza do coração(questão sobre a qual não temos neste momento necessidade nem premência de insistir) e que Cristo não quis permitir aos seguidores de sua doutrina, como, por

exemplo, repudiar a esposapor qualquer falta, vingar-se do mal causado. Entre os preceitos de Jesus Cristo e essestipos de permissão há, porém, apenas uma certa diversidade e não uma oposição. Com efeito,

aquele que conserva junto dele sua esposa,aquele que renuncia ao direito de se vingar não age contra a lei; ao contrário, ele age sobretudo de

124

H UGO

GROtiUS

acordo com as intenções da lei. O caso é bem diferente para o juiz, ao qual a lei não permite, mas ordena punir com a morte o homicida, sob pena de se tornar responsável de sua omissão perante Deus. Se Crista proibisse essejuiz de punir com a morte o assassino, estaria mandando

fazer uma coisacompletamentecontrária à lei. Estaria abolindo a lei. 9. Um sexto argumento decorre do exemplo do centurião Cornélio que recebeu o Espírito Santo de Jesus Cristo, sinal infalível dejustiíicação, e que foi batizado em nome de Crista pelo apóstolo Pedro. Ora, não se lê em lugar algum que ele se tenha retirado do serviço militar ou que

Pedro o tenha obrigado a renunciar ao mesmo. Poderiam me responder que, após ter sido instruído por Pedro na religião cristã, teria sido advertido, ao mesmo tempo, de seu dever de deixar a procissão das armas. Esta observação teria algum alcance, se fosse certo e fora de dúvida que a proibição de fazer guerra estivesse contida nos preceitos de Jesus Cristo. Como, porém, nada de preciso foi formulado em lugar algum sobre este

ponto, teria sido necessário ao menos dizer alguma coisa, de modo par-

ticular nesseepisódio em que o assunto o requeria tão claramente, a fim de que os tempos futuros não ficassem no desconhecimentodas regras de seu dever.Até o próprio Lulas não tem o costume, quando a qualidade das pessoasexige alguma mudança particular de vida, de passar isso sobsilêncio, como se pode observar em .4fos (XIX, 19) e em

outras passagens. 10. Um sétimo argumento,

semelhante ao anterior, se extrai do

exemplo de Sérgio Paulo, de quem já falamos. Ahistória de sua conver-

são não contém qualquer indício de que ele tenha renunciado a seu emprego ou que tenha sido exortado para que dele se demitisse. Ora, o

que não se diz quandoé de todo importante que se o diga, comojá observamos, deve ser considerado como não tendo existido.

125 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

11. Como oitavo argumento pode-se citar o que Paulo fez ao ter compreendido que os judeus urdiam armadi]has contra e]e [50] . infor-

mou sobre isso ao tribuno que Ihe ofereceu soldadospara protegê-lo contra toda violência em seu trajeto e Paulo não se opas a isso. Ele sequer advertiu o tribuno ou os guardas que Deus não gostava que se rechaçasse a força pela força. 'h'atava-se, contudo, desse Paulo que ja-

mais desprezava qualquer ocasião para ensinar a outrem seu dever e que não tolerava que os outros negligenciassem um só de seus deveres

ÇlITimóteo\.'{, 2). 12. O nono argumento consiste nesta consideração:toda 6malidade própria de qualquer coisa honesta e de obrigação não pode ser senão

honestae obrigatória. Pagar osimpostos éuma coisahonesta, um pre' centoque obriga a consciência, como o explica o apóstolo Paulo. AÊlnalidade dos impostos é de dar às autoridades públicas os meios de providenciar pelas despesasnecessárias para a proteção das pessoasde bem e repressão dos maus (Romanos Xl11, 3,4,6). Bem a propósito disso, Tácito [51] diz que "a paz das nações não pode ser mantida sem armas, nem as armas subsistir sem soldo, nem o soldo ser pago sem impostos'

De modosimi]ar dizAgostinho]52] : 'Pagamos ostributos para providenciar o dinheiro destinado aos que fazem a guerra, que sãonecessários.: [5(HPara essapassagem,convémusar da autoridade do Concílioda Africa (cânon àSb (lme dlB "Podemos invocar,

contra

o furor

dos facciosos, auxílios

que não são

insólitos. nem contrários às Escrituras, porquanto o apóstoloPau2o,comoos réis são informados pelos Aros dos Apóstolos, impediu a conspiraçãode faccíosos medlanfe o auxilio de uma áorfa al'nada."Agostinho [354-430] se serve também desse exemplo, como em sua carta L a Bonifácio e naquela que dirige

a Publícola(CLIV), em que afirma que 'be esseshomenspera'ursosílvessem Lombada sob os golpes dos soldados, Paulo não seria considerado como cúmplice de um c/:íme cometi'do par essa efusão de sangue': Na carta CLXIV, observa que "Pauis agiu de modo que }he fosse concedida uma escolta, mesmo sendo de

gente armada

[51] Caius Corne[ius Tacitus [155-220?] , J71sfar7be (]V] 74). [52] Aure[ius Augustinus [354-430] , t:bnÍra .f'ausfum .]Zanicüaeum (livro XX]1, 74).

126

H u oo GROTIUS

13. Um décimo argumento é oferecido pela seguinte passagem dos .4fos dosHp(ísfo/os (XXV. 11), na qual Paulo se exprime nesses termos: "Se prejudiquei alguém, se cometi algo que mereça a morte, não

me furto de morrer." [53] Disso deduzo que, segundo Pau]o, mesmo depois da promulgação da lei evangélica, há certos crimes que a justiça

tolera ou mesmo exige que sejam punidos com a morte. E o que Pedra nos ensina também (/Epúfa/a decedro, 11,19-20). Se tal tivesse sido a vontade de Deus, a de se abster das penas capitais, Paulo teria podido na verdade justificar-se, mas não deveria ter legado à mente dos homens essa opinião, de que não é permitido atualmente o que o era outro-

ra, de punir com a morte os criminosos. Apartir do momento em que se demonstra que as penas capitais podem ser, desde a vinda de Crista, legitimamente infligidas, acredito que bica ao mesmo tempo estabeleci-

do que certa espéciede guerra é lícita, aquela por exemplo que é empreendida contra culpados reunidos em grande número e armados, o que não pode ser traduzido em justiça senão após tê-los vencido no campo de

batalha. Que as forças dos criminosos e que sua resistência sejam de natureza a seremlevadas em consideraçãonuma deliberação prudente, isso não diminui em nada a fundamentação do direito . 14. Um décimo primeiro argumento encontra-se na profecia do Apocalipse, na qual certas guerras de pessoas piedosas são preditas em

termos manifestamente aprobatórios (XVl11, 6 e em outras passagens). 15. Pode-se extrair um décimo segundo argumento pelo fato que

a lei de Cristo não destruiu naquela de Moisés, senão o que separava os pagãos dos hebreus (chãs/os11, 14). Quanto às coisas que são naturalmente honestas e reconhecidas como tais pelo consenso das nações bem

disciplinadas, longe de tê-las abolido, ela as incluiu no preceito geral da

[53] Assim também, nos .4éosdas Hpásfo/os(XXV]11, 18): 'Nada á] que mereça a morte. " Justino, em Hpo/OBbs(11), escreve: 'Z)esclÜmosguo agua/es que nãa vivem em conformidade com osprincípios do Evangelho e que não são cristãos seladode nome sejam punidos e exatamente por vós.

127 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

prática da honestidade e da virtude(n7lbenses IV. 8; 1 (1;b/:zhÉós XI, 13.14). Ora, as penas infligidas aos criminosos e as armas que rechaçam

a injúria estão entre as coisas naturalmente louváveis. Estão ligadas a

duasvirtudes: a justiça e a beneficência.Convémassinalar aqui, rapidamente, o erro daqueles que explicam o direito de os israelitas moverem guerra pela única razão de que Deus lhes havia dado a terra de Canaã. Sem dúvida, é uma causa justa, mas não única, pois mesmo antes dessa época, houve pessoas tementes a ])eus que 6zeram guerra

sob a inspiração de sua razão e os próprios israelitas, a seguir, a fize-

ram por outros motivos, como Davapara vingar a afronta feita a seus embaixadores. Por outro lado, o que cada um possui em virtude do direito humano não Ihe pertenceria se Deus não o tivesse dado: este direito não é abolido pelo Evangelho.

VIH Soluçãodos argumentos tirados das sagradas Escrituras para sustentar a afirmação 1.Vejamos também agora em que argumentos se apoia a opinião contrária, a fim de que um apreciador piedoso possa julgar mais facilmente qual das duas leva vantagem. Em primeiro lugar alega-se a profecia de ]saíasE54] que anuncia que, no futuro, os povos farão enxadas de suas espadas e foices de suas

lanças, que não usarão mais a espada uns contra os outros e que não

[54] irão Crisóstomo]344-407] exp]ica o que se refere à paz universal que reinou

no mundo. beneficiando o estabelecimento do império romano, em Orai/o Chüstum esseDeum (ià, à\lendo. "Não íoi predito somente que essareligião seria firme e inabalável, mas ainda que traria grande tranqüiiidade sobre a berra, que os governosaristocráticos e monárquicos existentes em cada Estado seriam destruídos e a grande maioria deles gozaria da paz, contrariamente ao que subsistia antes. De fato, outrora os artesãos e os oradores tomavam as

armas e marchavam para a guerra. Depois da vinda de Crista, essecostume cessou e os fatos de armas foram reservados somente a uma certa categoria de

índl'v7'duos." Encontra-se exatamente a mesma explicação em Eusébio de Cesaréia [265?-340?],na obra Z)e / dera/aÉI'one(livro 1, cap. X)

128

H u GO

Gnoiius

mais aprenderão a fazer guerra (11,4). Essa profecia pode ser entendi-

da, como muitas outras, num sentido condicional. Podeter por objeto indicar que esse seria o estado de coisas, se todos os povos abraçassem a

[ei do cristianismo

e de]e estivessem imbuídos [55] . Em ta] caso Deus

não tolerada que nada do que dele dependesse em vista desse resultado ficasse em sofrimento. Com efeito é certo que, se todos os povos fossem

cristãos e vivessem de modo cristão, não haveria mais guerra alguma. Arnóbio [56] exprime esta idéia nesses termos: "Se todos os homens que

se julgam tais, não pela forma do corpo, mas pela razão, quisessem prestar um mínimo de atenção às regras salutares e pacíÊlcasdessa razão e não se deixar levar por seu orgulho e sua arrogância para acredi-

tar preferentemente em suas paixõesque nessesconselhosinteriores, há muito tempo todo o universo empregaria o ferro para usos mais amenos e viveria na mais agradável tranqüilidade e que, sob a fé de alianças invioláveis, se uniria numa concórdia sa]utar." Lactâncio157] diz também: "0 que aconteceria se todos os homens estivessem de acordo para viver em paz? Isso certamente poderia acontecer se, deixando

de lado seu furor perniciosoe ímpio, consentissemem serjustos e inofensivos." Esta profecia podetambém ser entendida literalmente e, neste caso,o próprio estado das coisas nos ensina que ainda não foi atingida, mas que seu cumprimento, como aquele da conversão dos judeus,

[55] Justino

[100?-165?],

em Hpo,&)H'as (1, 39), diz dos cristãos:

'7\©o comóafemos

c;amara la }nlgos." E precisamenteo que dizia Fílon de Alexandrial20? a.C.-50? d.C.]

dos essênios

(Orava

Omnem

.Bonum

esse .Lfóerum):

'Wão se encontra

entre eles nenhum artesão que fabrique dardos, lanças, espadas,elmos, couro ças ou escudos,ninguém que fabrique armas ou máquinas." 3aãa Cl\s6s\nulo diz o mesmo, no comentário à /.Bblbfa/a aos Cbr:züÉ2bs mZZ 8(HbmJ7ub Ü: "Se os homens se amassem como devem, não haveria penas capitais."

mZ

[56]Arnobius [séc.]]-]]] d.C.], Duspuéaüones adversasNaÉ2bnes (1, 6). [57] Caeci[ius

18.16)

Firmianus

Lactantius

[séc. ]V d.C.],

22ív2ba/'um

]nsíl'fuüanum

(],

129 CAPITULO ll - SE AS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

está ainda em expectativa. Seja qual for a maneira de interpreta-la, nada existe a inferir dela contra a justiça da guerra, tanto que existem homens que não permitem aos amantes da paz de usufruir dela, mas Ihe fazem violência.

2. O capítulo V de Mafeusfornece ainda vários argumentos para cuja apreciação é necessário lembrar o que dissemos pouco antes. Se

Cristo tivesse tido a intenção de suprimir as penas capitais e o direito de guerra, ele se teria explicado em termos absolutamente claros e pre' cimos,tendo em vista a importância e a novidade da coisa. Com maior razão o teria feito, porquanto não havia judeu que não acreditasse que as leis de Moisés, relativas aos julgamentos

e aos negócios públicos, não

devessemconservar seu vigor com relação aosjudeus, tanto tempo quanto

sua nação tivesse de subsistir. Depois desta primeh'a observação examinemos por ordem o valor de cada passagem.

3.A opinião contrária se entrincheira, pois, em segundolugar, por trás das palavras seguintes: "Ouvistes o que foi dito: olho por olho, dente por dente. Eu vos digo de não resistir ao que vos trata mal (ao mau, segundo o hebraico e, segundo a tradução grega, ao que vos faz injustiça [58] - Êxodo 11, 13), mas se a]guém vos bate na face direita,

oferecem-lhetambém a outra" (MnfeusV. 38). Disso, de fato, concluem alguns que não se deve rechaçar nenhuma injúria e que não se deve procurar vingança, tanto pública quanto privada. Este, contudo, não é o sentido dessas palavras. Jesus Cristo não se dirigiu aqui aos magistrados, mas aos que a ofensa os atingiu. Não fala de toda e qualquer injúria, mas do ultraje que seria da natureza de uma bofetada. Os últi-

mostermos de sua proposiçãorestringem a generalidade daqueles precedentes.

[581 Como diz Lucas(.4fos dos Hpásóo/os Vl1, 27): 'HqueJe que causa anho ao prá

xiino

130

Huoo GROTIUS

4.Assim é que no preceito seguinte, "Se alguém apresentar quei-

xa contra ti para levar tua túnica, deixa-o levar também teu manto" (MafeusV 40), não há uma proibição absoluta de recorrer ao juiz ou ao

árbitro [59]. Ta] é a interpretação de Pau]o que não proíbe todos os processos(/ Go/:zhÉ7bs VI, 4), mas proíbe aos cristãos de apresentar queixas contra seus irmãos nos tribunais profanos. Isto a exemplo dos

judeus, entre os quais era máxima estabelecidaque "aquele que leva negóciosrelativos a israelitas ao conhecimento dos estrangeiros desonra o nome de Deus".Avontade de Jesus Cristo, no entanto, é, a fim de exercer nossa paciência, que não apresentemos causa à justiça por objetos facilmente recuperáveis, como uma túnica ou, com a túnica se hou-

ver necessidade,um manto. E também, por quanto fundado seja nosso direito, que desistamos de recupera-]a. Apo]ânio de Tiana [60] negava que fosse digno de um filósofo apresentar queixa por uma soma diminu-

ta. U]piano diz [60a] : "0 pretor não desaprova o fato do indivíduo que

preferiu ficar privado de uma coisapara não ter que defendê-lapor demasiadas vezes na justiça. Esse modo de ver de um homem inimigo

dos processosnão é, com efeito, condenável." O que Ulpiano apresenta aqui como devendo ser aprovado pelos homens de bem, Cristo o manda,

[59] Thascius

Caeci[ius

Cyprianus]200?-258],

no ]ivro

.De .Dono Paul'enílbe(cap.

16),

assim exp]ica isso: '?\gopefas de uo/ía o que fe áozÉ#ado."]rineu]130?-202?] diz

a respeito(livro IV cap. XXVII): 'no que 6ú'afua fzízuca,dã famóám feu manto,

mas não Hques triste como aqueles que se resignam em ser despojados. Alegremo-nos, como se tivéssemos dado de boa vontade. Se alguém te obriga a acompanha-io por mi! passos, vaí com ele dois mii, não o seguindo como um esa'auo. mas p/acedendo-o como tzm domem /I'vre. " Libânio]314?-393?], que

havia lido os Evangelhos,num de seusdiscursos(De Ousfoc#a.Reorum,de HbcÉ&, 18), louva aqueles que não entram em litígio por um manto ou por uma

túnica. Sophronius Eusebius Hieronymus [331-420], em .Dzb/obusadí'ersus Pelagianos (là, esc=ex6 "0 Evangelho nos ensina que se uma pessoa quer no$ levar à justiça e, através de intrigas e ardis, nos despojar de nossa túnica, convém deixar que .leve também o manto. [60] Apo[ânio de Tiana [?-97]

u6DaÀ h item si, $ !, Dig. De alien. jud. mut. causafalta.

131 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

fazendo objeto de seus preceitos as coisas mais honestas e mais aprova'

das. Seria, contudo, concluir mal ao decidir que seria vetado mesmo a um pai, a um tutor, de defender, se houvesse necessidade, diante do

juiz, o pão de seus filhos ou de seus pupilos. Uma coisa, com efeito, é uma túnica e um manto, outra coisa é todo o património de onde se tira o sustento. Nas GonsüfuÉlbnes de Clemente se diz do cristão que, se teia um processo, "deve comportar-se de modo a transigir, mesmo quando

isso resultasse para ele algum prejuízo". O que sediz ordinariamente dascoisasmorais encontra igualmente sua aplicação aqui: saber que elas não consistem um ponto de intransigência, mas que a seu modo têm alguma elasticidade. 5. No preceito que se segue,"Se alguém te solicita caminhar com ele uma milha, acompanha-o por duas" (MnfeusV. 41), o Senhor não falou de cem milhas, o que afastaria alguém por demais de seus afazeres, mas somente de uma milha ou duas, se necessário, passeio que é considerado insignificante. O sentido dessas palavras é, pois, que nas coisasque não nos devem importunar muito, não devemos instar com

rigor em defesa de nosso direito, mas cedem', mesmo um pouco além daquilo que nos é pedido, para que nossa paciência e nossa benevolência setornem conhecidas de todos. [61] 6. Segue-se ainda: 'l)á ao que te pede [62] e não afastei aque]e

que vem te pedir" (MnfeusV. 42) Se isto for estendido ao infinito, nada de mais duro que isso. Paulo diz: "Aquele que não cuida das pessoasde

Íêi[ iÚéiino [i00?-165?], em HpoJ2jBlbs(11),diz: ':EstaspaJawas fém pa' oóybfonos ?ncorajar a ser pacientes com todos, a prestar serviço e a estar toda ira [62] Justino, em Hpo/CZglas(1,15), diz que 'bssaspaJavrasabram dlfas sopre o dever

defazer compartilhar de seusbens aquelesque estãona pobreza e não para a própria ostentação. Por isso foi dito 'daí a quem vos pede...' e em outro local, 7é:vemosa par&ft;#)aJ-de nossosbens os que nada fém{ " Cipriano]200?-258?] , em ,4d é?uír7num 7bsÉahonJb(111,1), observa que não se deve recusar a esmola

a ninguém. Em outra passagem diz: 'H quem fepedÜ deves dar e náo recüaces aquele que te pede emprestado.

132

H u oo GROTIUS

sua casa é pior que um infiel" (/7})nófeoV 8). Vamos seguir este excelente intérprete da lei de seumestre. Procurando sensibilizar os coríntios a se mostrar solidários com os habitantes de Jerusalém,

diz: "Não que-

ro que os outros sejam aliviados e vós sobrecarregados,mas em favor de uma partilha igual, que vossa abundância supra a pobreza deles" (/7

([Jbz:zh/zosV]11, 13). [63] Isto significa, servindo-sedas palavras de Tiro Lívio [64] sobre um assunto bastante simi]ar: pretendo que, do supérfluo de vossas riquezas, ajudeis às necessidades dos outros. Tal é o sentido dessa õ'ase de Giro em Xenofontel651: "0 que encontro de supérfluo

em meus bens, com ele alivio a indigência de meus amigos." Ê do ponto de vista da própria eqüidade que nos devemos colocar para interpretar

o preceito que acabamos de citar.

7. Como a lei hebraica concedia a liberdade do divórcio para pâr

um entrave aos maus tratos dos maridos para com suas mulheres, de igual modo, para impedir vinganças particulares, às quais a nação israelita era facilmente levada, essalei tinha dadoo direito à pessoa lesada de exigir daquele que o havia prejudicado a pena do talhão, não exercida pelas próprias mãos, mas solicitando-a aojuiz. Este exemplo foi seguido pela lei das Xll Tábuas: "Se rompeu um membro, deve-se aplicar o talhão." Jesus Cristo, que ensinava o dever de uma paciência mais perfeita, longe de aprovar que a vítima de uma ofensa realmente cometida exija vingança, não quer nem mesmo que certas injúrias se-

jam resolvidas pela força ou pela via da justiça. Quais essasinjúrias?

[63] Lucius Annaeus Seneca[O[?a.C.-65d.C.], no ]ivro .DeBeneá7bíís (11,15,1),diz: Eu daria ao que tem necessidade, uma vez que eu não estivesse em necessida-

de."Jogo Crisóstomo, na passagemda EpÉfo/a aos ao/:zÚÜos(MomJZÜ mZ l), citada. xln \efta, ài.ü "Deus pede a cada um de acordo com os meios que possui e não segundo o gue Irão fem."Para melhor entender esse pensamento, devese acrescentar as palavras seguintes: 'Z) ap(ásfo/oos eJog]apor derem]bzfo mais

do quepodiam (trata'se dcs tessaionÍcenses), mas não força os outros {ouseja, os habitantes da Acata) a fazer o mesmo." [64] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], em .,4ó Z:Zz.óe Oondl'fa (V], 3,5) [65] Xenofonte [430?-355? a.C.], (]roWódla (V]11, 2,22).

133 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

Aquelas que podemosto[erar. [66] Não que sejatambém ]ouvável su-

portar ultrajes mais graves,mas para que Cristo se contentede um mínimo grau de paciência. Por isso, ele tomou o exemplo da bofetada, injúria que não compromete a vida, que não mutila o corpo, mas que é somente sinal de um desprezo, cujo efeito em nada diminui nosso mérito. Sêneca [67], escrevendo sobre a frieza do sábio, distingue a injúria

da afronta. Diz: "A primeira é naturalmente mais grave.A segundaé mais leve e só é sensível às pessoasdelicadas, que não se sentem lesadas, mas se ofendem. Há tanta fraqueza e vaidade no espírito dos homens que, para certas pessoas, nada lhes parece mais insuportável. E

assim que se encontram escravosque preferem ser açoitadosque esbofeteados." O mesmo filósofo escreve em outra passagem [681:"A afronta é uma injúria restrita; lamenta-se sobretudo que não se tenha razão. As leis não ajulgaram

digna de qualquer vingança." Em Pacúvio,

alguém diz: "Suporto facilmente uma injúria se não for acompanhada

de afronta." Em Cecílio,outro diz: 'Posso suportar a miséria, se for isenta de injúria. Suporto até a injúria, se não acarretar desonra." Segundo Demóstenes

[68a] : "Não é tão penoso para os homens livres se-

rem açoitados, por quanto cruel que o seja, que de o serem por desprezo." O mesmo Sêneca, de que falei, acrescenta que a dor causada por uma aü'onta é uma seqüela produzida pela fraqueza do coração que se fecha, sentindo-se atingido por uma ação ou por uma palavra injuriosa. 8. E em vista de uma circunstância semelhante que Cristo ordena a paciência; e para que não se objete esta banalidade, que suportar

uma antiga injúria é convidar a fazer uma nova, ele acrescenta que é

[66] Ver Jogo Crisóstomo, na passagemjá citada [67] Sêneca, .De Gonsfanüa Sapientes(V. ]). [68] Sêneca, [68a]

.adversas

De OonsfanÉlb .ã6dbm

(72).

Sap:'enóís(X,

])

134 H

UGO Gnorius

me[hor so6'er novo u]traje que rechaçar o primeiro]69]

porque não nos

traz outro mal, a não ser aqueleque desatinadamentecolocamosem nossa imaginação [70]. Apresentar

a face, na ]inguagem dos hebreus, é

suportar pacientemente, como se pode ver em lsa.fbs (XXX, 6) e em Jeremüs(111, 3); "apresentar o rosto às apontas", disse Tácito, no livro [[[ de suas ./Zlkfór7bs. [71]

9. Um terceiro argumento é extraído da seguinte passagemde Mnfeus (V. 43): "Ouvisseso que foi dito: Amarás teu próximo e odiarás teu inimigo. Eu vos digo: Amai vossosinimigos, bendizei aqueles que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos são hostis e vos perseguem.' Há, de fato, pessoas que pensam que as condenações capitais e que as

guerras sãoinconciliáveis comessacaridade, essabenevolênciapara com os inimigos e com aqueles que nos odeiam. Esta objeção é facilmen-

te refutada, se considerarmos os próprios termos da lei hebraica. Ordenava-se aos hebreus amar seu próximo, isto é, o israe]ita [72], pois é assim que o versículo 17 do capítulo XIX do Zet,:íZzbo,comparado com o

versículo 18, nosensina como é precisoentender aqui a palavra próximo. Existe também a ordem, contudo, dirigida aos magistrados, de punir

com a morte os homicidas e os outros grandes criminosos. As onze tribos não deixaram de mover uma guerra justa contra a tribo de Benjamim

para vingar um crime atroz (JuJÜesXXI).Davi, que combatia os combates de Deus, não deixou de reclamar, de armas em punho, o reino que lsboset Ihe havia prometido. [69] JoãoCrisóstomo, no comentário à Epl8Za/a aos.Romanos W7(.1?bmí/lb mZ 8), à\$ "E uma bela vitória dar ac ofenscr mais do que quer e transcender peia grandeza da própria paciência a extensão dos maus desejosde tai homem."

[70] Jogo Crisóstomo,em De SfatuJS,diz que "uma aÉronfaabreou se esuai]nâo segundo a intenção de quem é o autor, mas segundo os sentimentos daqueles que a sofrem [71] Caius Corne[ius

Tacitus

[55-120],

J7Jkfor7be (111, 31). "0/brocar

o rosto" é ex

pressãousada também por Pub]ius Terentius Ater [185?-159a.C.] em ,4de/pape (215)

[72] Os prosélitos eram co]ocadosno mesmo níve] dos hebreus e as ]eis que proibiam de prejudicar a outrem se estendiam a esseshabitantes incircuncisos, de que falamos anteriormente(cap. 1, 16). Esta é a interpretação dos talmudistas.

135 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZESA GUERRA PODE SER JUSTA

10. 0 signiÊlcado de próximo passa agora a ser estendido a todos

os homens, pois todos eles foram admitidos a uma graça comum e não há mais povos votados por Deus à destruição. Disso decorre que seria permitido fazer contra todos o que então foi feito contra os israelitas que se devia amar naquele tempo, como se deve hoje amar a todos os homens. Que se pretenda mesmo deduzir que a lei evangélica tenha ordenado um grau mais elevado de amor, concordotambém, uma vez que se reconheça que todos os indivíduos não devem ser igualmente amados, mas que devemoster mais afeição pelo pai do que por um estranho.[73] Assim, a utilidade do inocente deve anteceder a do culpado, o interesse comum deve ser preferido ao interesse privado, segundo a norma de uma caridade bem ordenada. Foi deste amor pelos inocentes que surgiram as penas capitais e as guerras piedosas.A respeito disso pode-se verificar a sentença moral que se encontra no livro dos Pzo},éz:Zzüs Q(XIV. 11).0 dever que Cristã nos impõe de amar e socorrer cada homem em particular deve ser entendido, pois, com esta reserva, que não haja amor maior e mais justo que se oponha. Conhecemoseste antigo axioma: "E tão cruel perdoar a todos como não perdoar a ninguém." [74]

[73] Quintus Septimius Florens Tertu[[ianus [155:220?],em 4dversusMm'c]onem \tN, -L6à, e$cxeve: "0 segundo grau de bondade se refere aos estrangeiros, enquanto o pr7)nezPoó pa/'a seu práx7)no." Sophronius Eusebius Hieronymus [331-420], em DI'aJogus adversas Pe/agfanos(1, 30), diz; '2bi ordenada que det'o

amar meus inimigos e orar por meus perseguidores.E justo que eu o$ ame comomeu próximo e como consangüíneose que não haja nenhuma diferença entre um üva] e um parente? [74] Estas palavras são de Sêneca (De C7emenÉaa, 11). Jogo Crisóstomo, tratando dos castigos humanos, no comentário à / Obr:úfios zrz .7.ge seguintes(.IZomdlb

IX, aà,à\z. "Os homens os iníligem não num espírito de crueldade, mas por um p/:üclhlb de bondade."Agostinho(@pisfuJae, CLl11, 17) escreve: 'l:hmo áá pov' vezes uma compaixão que pune, há também uma crueldade que perdoa.".Os imperadores Valentiniano, Teodósio e Arcádio se exprimem desse modo na lei 3 do Código de Teodósio, sobre os defensores das cidades: '2)eT'e-seaXasfar foda

proteção que, favorecendo os culpados e dando segurança aos.criminosos, permitiria o aumentoda criminalidade."b\a História dos Godos(]là de ? oc6p\a

[?-562?],Toti]a diz o seguinte: 'Zb/ocono mesmon/t,e/ os gue cometemum arl)ne e os que impedem que o crl)ne s(:/b punido."Ver o que se diz no livro ll, cap. XXI, 11, mais adiante.

136

H UGO GROílUS

11.Acrescente-se a isso que nós devemos amar nossos inimigos, a exemplo de Deus que faz surgir o sol para os maus. Este mesmo Deus, porém, pune alguns deles ainda nesta vida e lhes iníligirá um dia penas mais severas. Este argumento destrói com o mesmo golpe as razões que

se tira da doçura prescrita aos cristãos. Deus é chamado demente, misericordioso, paciente(JamaslV. 2; êxodo XXXtV 6) e apesar disso as Sagradas Escrituras descrevem em muitos ]ugares sua ira [75] contra aqueles que o ofendem, isto é, sua vontade de pum-los (.A/}ímerosXIV. 18; -Romanos11,8). O magistrado foi estabelecido ministro desta ira

(romanos Xl11, 4). Moisés é citado por sua notável doçura, mas não deixou de punir criminosos, mesmo com penas capitais. Somos convidados continuamente

a imitar

a doçura e a paciência de Cristo e, contu-

do, foi o próprio Cristo que ameaçoucom as mais pesadaspalavras os judeus rebe]des (7MafeusXX]1,7). [76] Será e]e que, no dia doju]gamento, vai condenar os ímpios, segundo seus méritos. Os apóstolos imitaram a doçura de seu mestre e apesar disso ülzeram uso da autoridade que Deus [hes havia conferido [77] para punir os maus (/(]oz:zhÉüslV

21; V. 5; / 7)1mófeo1, 20).

[75] A respeito disso, ver Ciri]o ]lnpez'aíorem

(livro

de A]exandria

[376?-444?], Oonfra JuJlanum

V)

[76] Acrescentem-se as passagens de .4/ateus (XXI, 44) e de .Lacas (XIX, 12,14,27). João Crisóstomo]344-407], no comentário à .gpzbfo/aaos J?amamos.X7r(.IZom/1la .ZX% 5), depois de narrar as desgraças de Jerusalém, exclama: '7b] C?ukfoque

kz tudo isso. Observa bem como ele próprio o predisse seja por parábolas, seja aóerfamenfe e sem /ode/os, " Idéias semelhantes desenvolve no segundo discurso contra os judeus. [77] Jogo Crisóstomo,

no comentário

à /.EbJbfo/a

aos Co/:zhÉlbs /V

.2](JZom/]lb

.X=rX

à, õàz."Eu mataria, mutilada?Há, de fato, um espírito de severidade, comohá famóóm um espá7fo de doeu/a."Ver também o que diz Agostinho sobre as palavras do Senhor na montanha(livro 1) e outros escritores citadospor Graciano

Q(Xlll, Ouaesí. Vlll).

CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

12.A quarta passagem que é posta como objeção é da Eplbfo/a aos.Romanos (Xl1, 17): "Não pagueis a ninguém mal por mal. Cuidam de fazer o bem perante todos os homens. Seíor possível, no que depende

de vós, vivei em paz com todo tipo de pessoa.Não façais justiça com vossas próprias mãos [78], meus amados, mas refreai vossa ira, pois está escrito:

a mim é reservada

a vingança,

eu mesmo a levarei

adian-

te. diz o Senhor. Se, portanto, vosso inimigo tiver fome, dai-lhe de comer; setiver sede, dai-lhe de beber, pois agindo dessaforma, amontoareis

carvão ardente sobre sua cabeça.Não vos deixeis vencer pelo mal, mas procurai vencer o mal pelo bem." Temos aqui a mesma resposta a dar, como na passagem precedente. De fato, ao mesmo tempo que era dito por Deus "Compete a mim exercer a vingança, sou eu que faço justiça:

na mesma épocaeram pronunciadas penas capitais e leis eram escritas para regulamentar as guerras. Na verdade, existe também a ordem de se mostrar benevolente para com os inimigos, aqueles,bem entendido, que são da mesma nação (ExodoXXl11, 4, 5). Este dever, como já vimos,

não punha obstáculos às penas capitais, nem às guerras justas, mesmo contra os israelitas. Este é o motivo por que não se deve levar agora ao extremo rigor essas mesmas palavras ou preceitos similares, embora

de maior amplitude. Tanto menosisso sedevefazer, porquanto as divisõesdoscapítulos não foram feitas pelosapóstolosou na épocadeles, mas bem mais tarde, para dividir a leitura e tornar mais fácil a citação das passagens. Por esta razão é que o texto que começo agora no capítu-

lo Xlll "Que todos sejam submissos aos poderes superiores" e os para' grafos seguintes se encontram ligados com os preceitos que proíbem

exercera vingança.

[78] A l ll/gala reproduz aqui a palavra deáendenfes.Essapalavra é tomada muitas vezes pelos autores cristãos para exprimir a idéia de vingança. Tertuliano em

De Monogamia ç4àescreve' "Outras iniqüidades provocaram o dilúvio..." A. passagem de Paulo, de que se trata aqui, não a explica mal Agostinho na Epístula CLIV(iil)\ "Sobre isso é que foi dito: Não registamos ao mau, paJ= que não encontremosprazer na vingança que se paga com o ma] de outrem."'Vet q que será dito mais adiante, no livro 11,cap. XX, 5 e lO

Í38 H

UGO Gxoiius

13. Paulo diz nessa passagemque as autoridades públicas são ministros de Deus, encarregadosde demonstrar sua ira contra os maus. isto é, de pum-los. Por isso mesmo, ele distingue do modo mais evidente

possível entre a vingança em vista do interesse público, que é exercida cumprindo o ofício da divindade, e que deve se relacionar com aquela que Deus se reservou; e ainda, que a vingança não tem outra finalidade senão a de satisfazer o ressentimento do ofendido e que o apóstolo a havia proibido pouco antes. Se for incluída nesta proibição mesmo a vingança exercida em vista do bem público, que haveria de mais absurdo, depois de ter dito que é preciso se abster das penas capitais, acrescentar em seguida que as autoridades públicas foram constituídas por Deus para punir em seunome?

14. Uma quinta passagemque alguns usam se encontra na segunda Zplbfo/n aos (l;kzr:zhÉ7bs(X, 3): "Embora vivendo na carne, não combatemos segundo a carne. As armas de nossa milícia não são carnais, [79] mas poderosas em Deus para destruir as trincheiras", e assim por diante. Esta passagem,porém, nada diz sobrenosso assunto. O que precede e o que a ela se segue mostram, com efeito, que pela palavra carne, Paulo entende o exterior débil de sua pessoa,tal como pare' cia aos olhos de todos e que Ihe atraía desprezo. A esta Paulo opõe suas

armas, isto é, o poder que Ihe havia sido dado para castigar os recalci-

trantes e do qual faz uso contra Elimas, o coríntio incestuoso,contra Himeneu eAlexandre. Ele nega que estepoder seja carnal, isto é, doentio. Ao contrário, declara que é o mais enérgico possível. Que relação tem isso com o direito de infligir a pena de morte ou de mover guerra? Ao contrário, é porque a Igreja estava então privada do auxílio dospode-

res temporais que Deus suscitou para sua defesa essepoder de fazer [79] João Crisóstomo (.IZoml7lhmZ 2), a respeito dessapassagemdiz que o apóstolo entende por armas carnais 'b r7g lega, a gJóv:zb, o podar; a e/ogúéncub,a desÉre za, as int!'idas, as bajulações, as armadilhas".

139 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZES A GUERRA PODE SER JUSTA

milagres que começou a cessar a partir do momento em que a Igreja foi

protegida por imperadores cristãos, do mesmo modoque o maná cessou de cair quando o povo dos hebreus chegou em suas terras férteis. 15. A passagem da ZpuüéaZaaos .Ê7êsüs (VI, 12) é a que apresen'

tamos em sexto lugar: "Revesti-vos de todas as armas de Deus para poder resistir aos artifícios do demónio, pois não tereis de combater (subentendido somente, segundo o uso dos hebreus) contra o sangue e a

carne, mas contra os poderes...", e assim por diante. Esta passagem trata dos combates que os cristãos devem sustentar como cristãos e não aqueles que lhes podem ser comuns com os outros homens em certas circunstâncias. 16.Apassagem de 7}bgo (IV. 1), que invocamos em sétimo lugar, não contém nada de universal: "De onde vêm as guerras e os combates

entre vós?Não é de vossas paixões que combatem em vossa carne? Estais cheios de desejos e não tendes o que desejais. Sois invejosos e ciumentas e não conseguiaobter o que quereis. Combateis e entrais em guerra uns contra os outros e não tendes o que gostaríeis de ter porque não o pedis. Pedis e não recebeis porque pe.dismal, pedindo somente o que possa satisfazer vossos prazeres." Esse texto nos ensina somente que as guerras e os combates com qüe os hebreus dispersos se dilacera-

vam miseravelmente uns contra osoutros e dosquais podemosver em Josefo [80] uma parte da história, tiveram comoorigem causasdesonestas. Sabemos disso e o deploramos, mas acontece ainda em nossos

dias. Os versos seguintes de Tibu]o [81] não se afastam do pensamento de Tiago:

[80] F[ávio

Josefo

[37?-100?],

.4nÉzkz]Jdades

Judaicas

(]iwo

[81]A[biusTibu[[us[54-19?a.C.],.E/eglbs (], ]0,7-8).

XVlll,

cap.

12)

!40 H UGO

GROTIOS

"Essa é a influência nefasta do ouro; não houve guerra em que um tronco de faia não fossepreferido aos festins Estrabão nota em diversas passagensque as naçõescom o modo de vida mais simp]es têm os costumes mais inocentes [82] . Aqui uma passagem aná]oga de Lucano [83] : "0 luxo pródigo de todas as coisas

que não se contenta jamais de aparatos simples. Ambiciosa avidez de manjares pedidos à terra e ao mar, glória que se apõe a lautas mesasl Aprendemquão pouco é necessário para viver e quão pouco a natureza exige. Não é um vinho refinado, derramado aos pés do cônsul Baco,

que o tempo faz esquecer o nome que dá cura aos doentes Eles não bebem no ouro, nem sorvem mirra,

mas com a água límpida sua vida retorna.

O rio e Ceresbastam aospovos. Infelizesl Por que fazem a guerras"

182] Fílon de Alexandria faz a mesma observação em Z)e Hfa Conte np/a6r2ce(2),

citando esseverso de Homero(]]íada X]11, 6): "H'vem de ]e/fq sáo pobres, mas

de lande proózdade." Justino(11, 2,7 e 10) diz dos citas.' '7\Uoamó/c2bnamo ou/'o e a prata como os outros morfai's." Depois acrescenta: ';Seus costumes severos !hes inspiraram o amor da justiça, a esses homens que não ambicio-

nam o bem dos outros, pois a paixão das riquezas se encontra onde delas se faz uso." Em Gregoras (livro 11,cap. 4, 11) se encontra uma passagem semelhante

sobre os citas e que merece ser lida. Taxile fala assim a Alexandre(Plutarco. Vida de AJexandre, 698 êÕ\ "Qual a necessidade,Alexandre, de guerras e combates entre nós, quandonão vieste para nos tirar a água e o alimento índispen

sáve!, as únicas coisas pelas quais devem guerrear os homens dotados de razão.p"Aspalavras de Diógenes(Porfírio, Z)enon .Bdendlk..{nJ]na])óus1, 47) caembem aclal. "Não é entre os que comempolenta que se encontram os /adrões ou os /autores

de guen'as. " Porfírio,

na mesma obra(11,

13) diz:

'Tudo

) que é fácil de preparar e custa pouco contribui a afb'mar a piedade e a difunde-!a entre todos os homens.

183] Marcus Annaeus Lucanus [38-65], .1)ZarsaJlb(IV. 373-382)

!41 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZESA GUERRA PODE SER JUSTA

Pode-se acrescentar a isso o que diz Plutarco em -DeSfolcorum Cbz?ÉmdlbÉ7tz/z/btzs: "Não há guerra entre os homens que não proceda de algum princípio viciado. Uma provém do desejodesenfreado dos praze' res, outra da avareza, outra pela demasiada avidez por honras ou pelo poder." [84] Justino, depois de ter louvado os costumes dos citas, excla-

Íã.i] Por que não confirmar por muitas outras excelentespassagenstiradas de autores antigos e por citações não menos expressivas esse pensamento tão verdadeiro, mas tão pouco meditado pelos homens? Em Diógenes Laércio [séc. 111d.C.]. o filósofo Ateneu exclama.' 'Znáe/ües.r.Pbzei) de furto por colas más.r Zlrmaaudaz hsac/3ve/ vos .preclbJfa em /alas e guerras. " Fabianus Papirius

assim se exprime em ConÉroversae (ll, 1,10) de Marcus Annaeus Seneca: Aqui estão exércitos em ordem de batalha, nos quais muitas vezes concidadãos

e parentes se digladiam no combate.As colinas estãocobertas de cavaleiros por ;oda parte. Todoo país está juncado de cadáveresou de pessoas que os despe-

jam. Poder-se-iaperguntar qual a causa queleva o homema essefuror criminoso contra o homem? Os próprios animais selvagensnão guerreiam entre si. Quandoisso ocorre, não deveria se aplicar ao homem, esseanimal pacífico que

tanto se aproxima da divindade! Para que vos deixar levar a tão grande ira, porquanto sois da mesma estirpe e do mesmosangue?Por qual acaso, qual fatalidade, um tão funesto flagelo foi introduzido no génerohumano?Será que foi para enfeitar osfestins de taças,para fazer brilhar o ouro dasabóbadasque o parricida se tornou tão em voga? Certamente deve haver algo de grande e de belo que faça com que se preâna admirar uma mesa suntuosa e ricas decorações do que ver, conservando sua inocência, a luz do sol. Será preciso.tornar escravo o universo para nada recusar a seu ventre e a suas paixões?A que serve procurar essasriquezas perniciosas, se não é para deixa-las a seus fi/Zos/" Fílon de Alexandria, em Z)e DecaJngo(28), escreve: "0 amor do dlhácú'o

ou das mulheres ou da glória ou qualquer outra coisa que traga prazer não foi a causa de tantos males de pouca importância e vulgares?Não é isso que divide osparentes e que muda em ódio irreconci]iáve] o abetonatural que tinham uns pelos outros? Não é isso que faz com que países vastos e populosos sejam

devastadospor dissensõesinternas?Não foi isso queencheua terra e o mar de catástrofes renovadas sem cessar,por meio de batalhas terrestres e navais?As guerras dos gregos e dos bárbaros, seja entre eles, seja desses povos contra eles próprios, essas guerras que foram cantadas pelos trágicos, todas provie- . ram de uma só fonte: a paixão pelas riquezas, pela glória ou pelos prazeres

CaiusPlinius Secundus,em Nafta/all) Hikfor=b(livro 11,cap. 111)diz: '7bzemos ta! uso dessa terra domada que todos os resultados dessa opulência ncs condu-

zem aos crimes. aos assassinatos, aos combates. Nós a regamos cam nosso sangue e a coór])nos com nossos ossossem sopa/fuJ'a." Sophronius Eusebius Hieronymus, no livro Hduersus Jowanfanum(11, 11), relata que Diógenes dizia que "os tiranos e os destruidores de cidades, que as guerras públicas e civis não

eram suscitados pela necessidade de encontrar do que viver com legumes e frutas simplesmen te, mas pela a oração das carnes e dosfestins". 3oãa Cl\s6stnmo,

!42

H UGO

GROTI

US

ma: "Deus queira que os outros mortais imitassem sua moderaçãoe seu respeito pelo bem dos outrosl Não se veria, sem dúvida, em todos os séculos e em todo o universo tantas guerras se sucedendo, nem o ferro e

as armas levar mais homens do que a condição natural do destino o faz." Encontra-se em Cícero, no capítulo primeiro de sua obra .DeMbus (1, 13,44), o seguinte: "Os rancores, as controvérsias,

as discórdias, as

sedições, as guerras nascem das paixões." Máximo de Tiro (XXIX, 6) diz: "Atualmente tudo está cheio de guerras. As paixões circulam de todos os lados e elas espalham pelo mundo a ambição pelas coisas dos outros." Jâmb]ico [85] escreve: "0 corpo e as paixões do corpo é que geram as guerras, os combates, as sedições, pois as guerras têm por causa eficiente a posse das coisas úteis.: 17. Foi dito a Pedro: "Aquele que fere com a espada perecera pela

espada." Esta passagem não se refere à guerra considerada em geral,

mas serelaciona propriamente à guerra privada. O próprio Cristã explica porque ele impediu que alguém viesse em seu socorro ou porque não se preocupou em se defender, dizendo que seu reino não era desse mundo (JoãoXVl11, 36). Arespeito disso, se falará com maior precisão

em outro local.

na camentâx\o à IEpístola aos Coríntios Xii1, 3(.Homilia XXXli, Sà,ààz."Se cs homens se amassem mutuamente, ninguém cometeria izÜúria a outrem. Para bem !cinge seriam lançados os assassinatos, os combates, as guerras, as sedições, os roubos acompanhados de üolência, as fraudes e todos os ílageios." O mesmo autor, em Hd Paü'em Jade/em(cap. 9), falando dos ricos, escreve: ':NUo é deles que provêm as sedições,as guerras, as batalhas, o saque das cidades, o rapto, a escravidão, a captívidade, os assassinatose os inumeráveis flagelos da

w'da7"C]audius C]audianus [370?-404?],na obra in RuÉlbum(1, 217-19),diz: Se isso fosse conhecido,gozaríamos de um tipo de vida simples, o clarim não retiniüa, o dardo pontiagudo leãocortaria o ar, o vento não bateria na popa dos navios e as máquinas não ínvestíüam contra as muralhas." êLgaEXas Çliistor. IÜ escleNe'. "Os espíritos

dos homens, !evados espontaneamente

às paixões

exces-

sivas e à injustiça, enchem o mundo de guerras e de desordens."'texln\nada estas numerosas e excelentescitações com uma frase de Políbio: "Cün espá7ü

que se contenta do que é necessário à vida não tem necessidadede outro mestre para chegar à sabedora. [85]

Jâmb[ico

[250?-330]

, ProÉrepó.

(13)

CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZESA GUERRA PODE SER JUSTA

!43

IX. Examina-se o consenso dos antigos cristãos arespeito 1. Todas as vezes que é preciso interpretar um escrito, geralmen-

te têm grande peso o uso dele recebido e a autoridade de pessoas esclarecidas. E uma regra que se deve seguir, mesmo quando se trata

do sentido das Sagradas Escrituras. Não é provável, de fato, que as igrejas estabelecidaspelos apóstolosse tenham subitamente ou todas afastado das máximas que lhes tinham sido explicadas por escrito em poucas palavras, mais longamente de viva voz ou mesmo que tivessem

introduzido a prática. Aqueles que condenam as guerras costumam citar certas palavras dos antigos cristãos, sobre as quais tenho três coisasa dizer. 2. Observo primeiramente que tudo o que se podeconcluir dessas passagens é que elas exprimiam a opinião particular de alguns cidadãos e não o sentimento público das igrejas. Acrescente'se a isso que os autores que escreveram isso estão entre o número daqueles que gostam

de seguir um caminho diferente dos outros e transmitir um ensinamento mais pomposo.Tais são Orígenes e Tertuliano que não concordam muito entre si. Orígenes [86] , com efeito, diz que as abe]has foram dadas por Deus como modelo para que não haja entre os homens senão guer-

ras justas e regulares, nos casosem que a necessidade o exige. Quanto a Tertuliano que, em outro local, parecia não concordar muito com as penas capitais, dec]arou]87] que "ninguém nega a vantagem das punições iní[igidas

aos criminosos"188].

E]e hesita sobre a questão do servi-

[86] Orígenes [185?-254?], Contra GeJsum (]V. 82).

187]Quintus Septimius F[orens Tertu[[ianus [155-220?],-DeSpec'faca/]k(19). [88] O mesmo Tertu]iano, na obra .De .Anima(33), diz: "Quem não pre/bre a JusÉ@a

do século que, segundo o apóstolo, não está em vão cingida da espada e que é gania ao ma/Érafal' a serwço do achem?' E assim fala ao procânsul Scapula:

Nãa te amedrontaremos,nós quenão te tememos.Gostaria de salvar a todos, exortando-os a não combater contra Deus. Podes cumprir os deveres de teu cargo sem esquecer a bondade, mesmo porque tu também estás sob a espada.

144 H 0G0

GROTlyS

ço militar, pois, em seu]iwo sobre a ido]atria [89], diz: "Questiona-se se os fiéis podem ser dirigidos para a carreira das armas e se as pessoas

afeitas à guerra podem ser admitidas à fé." Para ele, parece pender nesta passagempara a opinião contrária à arte militar. No livro .4 Coroa do So7dndo[90], porém, depoisde ter formulado algumas reflexões contra o serviço das armas, logofaz distinção entre aqueles que haviam entrado para o serviço antes do batismo e aqueles que sãorecrutados depois de terem sido balizados. Diz: "De fato, a condição daqueles que

recebem a fé durante seu engajamento na milícia é de todo diversa daquela dos outros, pois eles são como aqueles que João admitia ao batismo. Eles se assemelhama essescenturiões fiéis, um louvado por Jesus Cristo e outro catequizado por Pedro, uma vez que, após terem recebido a fé e de terem sido ne]a con6rmados [91] , abandonam ]ogo o serviço da guerra, como alguns o fizeram, ou se guardam de todos os modos de não cometer ação alguma que ofenda a Deus." Reconhece-se, pois, que essescidadãos continuaram na profissão das armas após seu batismo, o que, certamente, não teriam feito de modo algum se tivessem compreendido que o serviço militar era proibido por Cristo. Não teriam sido mais que os arúspices, os magos e todos os demais pratican-

tes de serviços proibidos [92], autorizados a permanecer em sua pro6is'

[89] Tertu[iano, .De ]do/a&rlb(19) [90] Tertuliano, De Oorona .a417láü(11)

[91] A distinção que e]e faz aqui a respeito do serviço militar a aplica também em outro local ao casamento,seja no tratado sobre a monogamia, seja no da exortação à castidade. [92] Tertu[iano, em -De ]do/azr7a(5), escreve. "Que não se7bm receó/dos na /gz'eyh aqueles que exercem proâssões condenadas pelas leis dignas." êugostàxü\o,em De Fede et Operibus (XJlll, aaà, à\z'. "Asprostítutas e os comediantes e todos os

outros que exercemprofissão de vergonha pública não podem se aproximar ]os sacramentos de Custo, se não tiverem rompido e dissolvido tais vínculos. Tem,se um exemplo de um comediante em Cipriano(.MpJkóujaz..rD. A respeito

de gladiadores,mercadoresde mulheres, traficantes de vítimas, há exemplos em Tertuliano (Z)e ]ao/aÉrlb, 11). Sobre um cocheiro de circo, em Agostinho (Z)e

Rebus in Arelatensi Coilcilio Gestisà.

145 CAPÍTULO ll - SE ÀS VEZESA GUERRA PODE SER JUSTA

sãoapós terem recebido o batismo. No mesmo ]ivro [93], querendo ]ou-

var um soldadocristão, Tertuliano exclama:"0 soldadogloriosoperan' te Deusa

)

3. Minha segunda observação consiste em dizer que muitas vezes os cristãos desaprovaram ou evitaram a procissãodas armas, por

causa das circunstâncias da época que permitiam exercer a arte da guerra, mas que arriscavam setornar culpados de certos atou que se opunham à lei cristã. Vemos nas cartas de Dolabella aos eíésios, conser-

vadas por Josefo [94] , que os judeus tinham pedido para ficar isentos das expedições militares porque, misturados com os estrangeiros, eles

não podiam observar direito os ritos de sua lei e porque eram forçados a tomar em armas e fazer longas etapas nos dias de sábado.O próprio Josefo [95] nos informa que os judeus obtiveram de Lentulus sua dis-

pensa pelas mesmas razões. Em outro ]oca] [96] conta que, quando os

judeus receberama ordem de sair de Romã,alguns dentre eles foram recrutados e que, desses,alguns foram punidos porque se haviam recusado a servir por respeito às leis de sua pátria, isto é, pelos motivos que

acabamosde indicar. Uma terceira razão se acrescentavaàs vezes às duas primeiras: eles tinham que combater contra seus compatriotas. Para e]es era um crime [97] empunhar âs armas contra os membros de sua nação,sobretudo quando seus compatriotas estavam em perigo por querer observar a lei de sua pátria. Todas as vezes, porém, que os judeus podiam contornar esses incovenientes,

eles se inscreviam

viço, mesmo sob reis estrangeiros, "persistindo,

contudo, nos costumes

[93] Tertuliano, Z)e Cbrona .4/iZl6ís(1). [94] F[ávio Josefo]37?-100?], .4nÉzküfdndes Judaic;as(X]V, ]O,12) [95] Idem, .4nÉzkü'dados Judaicas(X]V]

]O,13).

[96]Idem,,4nfiÉ'üldades JudaicasQtimius Florens Tertu[[ianus [155-220?], Hpo/ogeúcus (35).

[44] Xiphilinus(LXVl1, 15) diz sobre Domiciano: '%gae/esqtzetramaram a morte foram Partênio, chefe dos escravasencarregadosde seu quarto de dormir, e SÜ'á70 que era um desses escravos."Marcial(livro IV, 78,8) escreve: '7b nâa Chás senão dos SigéHos e dos Partênios." Q nome üe SigeHus (S\golf\nÕes\axa

alterado não somente em Tertuliano, mas ainda em Suetânio(Z)omiffanus, 17). onde se lê Safa/ius, e em Aurelius Vector Afer (chamado usualmente IZ]'ctoà,onde consta CaspeHus(.qüfame Xl1, 8).

244

H u oo GROTIUS

tentado matar em seupalácio Setímio Severo,imperador sanguinário. Pescennius Niger na Síria, ClaudiusAlbinus na Gália e na Bretanha se haviam armado contra o mesmo Setímio Severo, sob pretexto de devotamento para o bem do Estado. Sua ação, no entanto, desagradou aos cristãos; por isso, Tertu]iano]45]

se gloria em seu tratado a Scapula.

Ele diz: "Nós somosacusadosde lesa-majestadee,contudo, nunca pu' deram encontrar cristãos entre os partidários deAlbino, de Niger ou de Cássio." Esses últimos eram aqueles que haviam seguido Avidius Cassius, homem de méritos, que dava por motivo a sua sublevação armada na Síria, o desejo de restabelecer os negócios públicos arruina-

dospela negligênciade MarcoAntonino. 2. Ambrósio, embora persuadido que não somente ele, mas também seu rebanho e Cristo teriam de suportar maus tratos da parte do

filho de Valentiniano, não quis aproveitar, para resistir, de um movimento do povo em revo]ta. E]e disse]46] : "Oprimido, não aprendi a opor resistência. Poderei sofrer, chorar, gemer. Contra as armas, os soldados, os próprios godos, minhas lágrimas são minhas armas. Essa é a única defesa dos sacerdotes. Não devo, nem posso resistir de outra for-

ma." E acrescenta [47] : "Exigiam de mim que apaziguasse o povo. Respondia que me tocava não sublevá-lo, mas que estava nas mãos de Deus

acalma-lo." O mesmoAmbrósio recusou a empregar as tropas de Mláxi-

mo contra o imperador que, no entanto, era ariano e perseguidor da [greja [48]. Foi assim que Ju]iano o apóstata, tramando perniciosos

[45]

Quintus

Septimius

F[orens

Tertu[[ianus

[155-220?],

,4d Scaptz/am

(2).

[46] Graciano inseriu essas pa]avras no direito canónico, (:ousa mZZ guaesÉz'oWZ7 (cânon 21). O próprio Ambrósio(.8»üfu/a XXXIII) diz: "Quereis co/ocas--mesoó

grilhões? Eu o quero. Não esconderia por detrás da multidão que me cerca. Gregório o Grande o imitou(livro VI, -qp8fa/a 1): 'Se Éíressoquerido paréíazbm'

da morte dos lombardos,essanaçãonão teria hoje nem rei, nem duques,nem condes e estaria dispersa em total desordem.

[47] Ambrósio [340?-397],@?Jsfu/ae(XX, lO). [48] Teodoreto1393?-466]

, .1í&faz:ía .8bcyeslbsÉüa(livro

V cap. 4).

CAPITULO IV- DA GUERRA DOS SÚDiTOS CONTRA OS DETENTORESDO PODER

245

desígnios contra os cristãos, foi retido pelas lágrimas destes, segundo o

testemunho de GregórioNazianzeno]49] que acrescenta:"Era oúnico remédio de que dispunham contra esseperseguidor." Seu exército, no entanto, era quase totalmente composto de cristãos. Acrescente-se a isso, segundo a observação do mesmo Gregório Nazianzeno [50] , essa

crueldade de Juliano não se exercia somente contra os cristãos, mas havia até exposto o Estado aos maiores perigos. Aqui está uma passa' gem de Agostinho [51], onde esse Padre exp]ica assim as pa]avras do apóstolo aos romanos: "E necessário para o bem desta vida que sejamos

submissos e que não registamos, se aqueles que nos governam querem nos despojar de alguma coisa.

VI. A opinião que sustenta que é permitido ao poder inferior mover guerra ao poder soberano é refutada por argumentos e pela autoridade das sagradas Escrituras 1. Houve em nossoséculo homens seguramente eruditos, mas que, demasiadamente influenciados pelo tempo e lugares, persuadiram-se a si mesmos em primeiro lugar (assim o creio, efetivamente) e depois persuadiram os outros a respeito do que acaboude ser dito, aüumando não se relacionar senão a pessoas privadas, mas não diziam

respeitoàs autoridadesinferiores]52] que,segundoeles,teriam direito de resistir às injúrias daquele que tem em suas mãos o poder soberano.

[49] Gregário

Nazianzeno

[330?-390?],

(2ruÉz'o/ in Ju#anum

(cap. 96).

[50] Idem, ibidem (cap. 75).

[51]Aure[ius Augustinus]354-430], arposu'Élbqual'tzmdamn'opas/úontzm in .Z»zkfuja ad Romanos

Qn4ü.

[52] Pedro Mártir, sobre o cap. ]]] do livro dos Julües; Paraeus, sobre o cap. X]]] da .qaúéo/a aos Xoloanos; Junius Brutus( no livro VI de /)oZÍÉüortzm, e outros.

Ulndlcube contra 737'aMBas); Danaeus,

246

H U GO

Gxoilus

Chegam a pensar que essaspessoasse tornariam culpadas, se se abstivessem de resistir. Esta opinião não deve ser aceita, pois, do mesmo modo que em questão de ]ógica, uma espécie intermediária]53],

se con-

siderado o gênero, é uma espécie;se levada em consideração a espécie que Ihe é inferior, é um gênero; da mesma maneira, os magistrados subalternos são pessoaspúblicas, em relação a seussubordinados, mas não passam de pessoas privadas, se considerados seus superiores. leda

faculdade de comando que pertence aos magistrados é de tal modo dependente do poder soberano que aquilo que fizerem contra a vontade do

soberano está privado de autoridade e, em decorrência, deve ser considerado comoum ato privado. Aqui é igualmente o lugar para citar o que dizem os 6Uósofos[54], ou seja, que não há ordem que não encerre uma relação a alguma coisa de um primeiro. 2.Aqueles que pensam de outra forma parecem querer colocar as coisas desse mundo num estado semelhante ao que, segundo a fábula

dosantigos, havia existido no céu antes que a majestade soberana fosse

nele introduzida. Nessetempo, diziam, os deusesinferiores não o cediam a Júpiter. Essaordem, porém, de que fa]ei, essasubordinação]55] não se descobre somente pelo senso comum que inspirou esse pensa'

mento [56]: "Todo reino manifesta um reino mais poderoso."Veja-se esseverso de Papínio [57] : "Todo governante é por sua vez governado." E este cé]ebre dito [58] de Agostinho [59] : "Considerai os graus das coi-

153] 'Géneroespecz'a]no dizer de Soneca(.8yJsfuJa Z,UZZ] [54] Averróis,

V. .44efapá., com. 6.

[55] Assim é que, numa família, o pai é o primeiro; a seguir, a mãe, depois os 6i]hos;

depois desses, os servos comuns e finalmente os servos auxiliares. Ver Crisóstomo, comentários da / @)Jbfa/aaos ao/:ÜÉÜ8 cap. mZZ 3. [56] Lucius

Annaeus

Seneca [O[? a.C.-65

d.C.],

g:byesfes (612).

[57] Pub[ius Papinius Statius [45-96],SUzae(111,3,49) t5%ÀCausa qui resistit., XI, quaestio 3.

159]Agostinho diz mais ou menos as mesmascoisasno sermãoVI, Zn l,brio .Z)omlzlil

B

CAPÍTULO IV-

DA GUERRA DOS SÚDITOS CONTRA OS DETENTORESDO PODER

sashumanas. Seo intendente deu alguma ordem, é precisocumpri-la, a menos que o procânsul ordene o contrário. E a mesma coisa quando

um cônsul manda uma coisae o imperador outra. Não desprezesa autoridade que desobedeces,pois escolhesobedecerà autoridade superior; nem por isso, a autoridade inferior deve ficar irritada, se aquela que está acima foi preferida." O mesmo diz de Pi]atos]60] : "0 poder que Deus Ihe havia dado não o impedia de ser submisso ao poder de César."

3. Esta subordinaçãoéprovada ainda pela autoridade divina. O príncipe dos apóstolos (/Petiz'o 11,13) quer que sejamos submissos de

uma forma ad rei e de outra aos magistrados. Ao rei, como ao poder supremo, isto é, sem reserva alguma, à exceçãodas coisas ordenadas diretamente por Deus que aprova a paciência em suportar as agressões

e não o interdiz. Aos magistrados, comoenviados do rei, isto é, a homens que recebem do rei seu poder. Quando Paulo (.EomanosXlll, l) quer que todas as almas sejam submissas aospoderes superiores, compreendeu em seu preceito também os magistrados subalternos. No meio do povo hebreu, onde tantos reis se colocaram acima do direito divino e

humano, nunca foram encontrados magistrados inferiores -- entre os quais houve grande número de homens piedosos e corajosos -- que se tenham arrogado o direito de resistir aos reis pela força, a menos que tivessem recebido a ordem especial de Deus, cujo poder supremo se estende sobre os reis. Ao contrário, Samuel (/Saque/XV. 30) ensinou qual deve ser o dever dos grandes, quando em presença desses e do povo

prestava .sua homenagem habitual a paul, que já havia começado a governar anal. 4. Os negócios da religião pública sempre dependeram da vontade do rei e do sinédrio. Se, depois do rei, os magistrados e o povo prome'

tiam ser réis a Deus, isso deve se entender enquanto dependia do poder

[60] Idem, .4d JoÃannem án Joáanizís .Bzang. (;;XI/Z SJ.

248

H u oo GROTIUS

de cada um. Nunca lemos que as estátuas dos falsos deuses,que eram expostas em público, tenham sido demolidas de outra forma, senão por ordem do povo, quando se regia por uma república ou por ordem de um

rei, quando havia. Se algumas vezes foi usada a violência contra os reis, isso é contado como um testemunho da providência de Deus que assim o permitia e não para aprovar a ação dos homens. 5. Os autores que sustentam a opinião contrária citam habitualmente a palavra de 'l.'rajano, no momento em que colocava um punhal

nas mãos do prefeito do pretório: "Usa-o em meu favor se eu governar bem, contra mim se governar ma]." [61] É preciso saber que Trajano,

comoresu]ta do panegírico de P]ínio]62], procurava antes de qualquer coisa não deixar transparecer nada que relembl'asse o poder real e se empenhava em agir como simp]es chefe de Estado [63], submisso em decorrência ao julgamento do senado e do povo; as sentenças deviam ser

executadas contra o próprio príncipe pelo prefeito do pretório. Lemos

qualquer coisa similar sobreMarco Antonino, que não quis tocar no tesouro público antes de consultar o senado.

WI. Que partido tomar em caso de necessidade extrema e inevitável? 1. Questão mais grave é aquela de saber se a obrigação de não

resistir nos liga a um grande e evidente perigo. Certas leis, mesmo entre aquelas de Deus, embora concebidasem termos gerais, encerram em si mesmas uma exceçãotácita para os casosde extrema necessida-

[61] Xiphilinus, LXV]11, 16 [62] Caius P[inius Caeci[ius Secundus [62-114], /)anel:wJbus 7}:aybno(67, 8). [63] O mesmo fizeram depois, imitando-o, Pertinax e Macrino, cujos belos discursos

podem ser lidos em Herodiano(11, 3 e IV. 14).

CAPÍTULO IV- DA GUERRA DOS SÚDITOS CONTRA OS DETENTORESDO PODER

249

de. Foi isso que foi decidido pelos doutores judeus a respeito da lei do sábado, na época dos hasmoneus e que deu lugar a esta célebre expres' são: "0 perigo de vida põe um obstáculo ao sábado." Por isso um judeu, em Sinésio [64], motiva a vio]ação da ]ei do sábado, dizendo: "Nós nos

encontramos expostos a um perigo de morte iminente"(/MacaóeuslX, 10, 43 e 44). Esta exceçãofoi aprovada pelo próprio Crista, a propósito

igualmente de outra lei que proibia de comer ospãesde proposição.Os mestres dos hebreus, seguindo nisso uma velha tradição, colocama mesma reserva às leis sobreas comidas proibidas epara outras coisas similares. Nisso agem certamente com ponderação, não porque Deus não tenha o direito de nos obrigar a sofrer uma morte certa, mas por'

que há leis de tal natureza que não é de acreditar que não tenham sido impostas comesserigor. Isso devemospresumir commaior razão com relação a leis humanas. 2. Não nego que certos ates de coragem podem estar prescritos,

mesmo pela lei humana, face ao perigo de morte certa. O dever, por exemp[o, de não abandonar seu posto165]. Não devemos,porém, presu' mir temerariamente que essa tenha sido a vontade do autor da lei e parece que os homens não entenderam tomar direitos sobre si mesmos

e sobre os outros, a não ser que a extrema necessidade o exija. As leis

humanas não são e não devem ser formuladas senão em função da â'aqueza da humanidade. Alei de que se trata parece depender da vontade daqueles que se associàni'originalmente para formar uma sociedaddiivil e il:B quais emana o poder que passa a seguir aos governantes. Süiiõndõ;se (jue fosseperguntado a eles se pretendiam impor a tocos os

[64] Sinésio, EpubflzZa /}' [65] Ver Josefo, no ]oca] em que faia dos guardas de Sau](.4nÉlküzdades Judaicas V],

13,9). Políbio(1, 17,11) diz que 'êníre os /amados, eram punidos de maple os que abandonavam seu posto".

250

H U GO GiOTIUS

cidadãos a dura necessidade de morrer, antes de tomar em armas, em alguma ocasião, para se defender contra o poder. Não sei se responde-

riam ah'mativamente. A menos que se admitisse essecomportamento, o que poderia tornar a resistência impossível sem trazer as maiores desordens no Estado ou a perda de uma multidão de inocentes. Numa

circunstância semelhante a caridade recomendada e, eu não duvido, que não se pudessefazer a respeito uma lei humana.

3. Pode-sedizer que esta rigorosa obrigação de sofrer a morte antes que rechaçar alguma agressão de poderes superiores é um preceito que não decorre da lei dos homens, mas da lei divina. Deve-se notar, e-

contudo, que na origem os homens não se encontram reunidos em sociedade civil para obedecer a um mandamento de Deus, mas o fizeram espontaneamente, levados a essa associaçãopela experiência da õ'aque-

za das famílias isoladas e desarmadas contra a violência por seu isolamento. Essa tem sido a fonte da sociedade civil que Pedro (/cedro ll, 13) chama, por isso, de ordenação humana, embora seja em outro local

chamada de ordenação divina porque Deus aprovou essainstituição favorável à humanidade. Deus, ao aprovar a lei humana, se dispõe a aprova-la somentecomohumana e do ponto de vista humano. 4. Barc]ay [66] , esse corajoso defensor da autoridade real, chega ao ponto de conferir ao povo e a uma notável parte do povo o direito de se

defender contra uma crueldade atroz, apesar de confessar que o povo inteiro é submisso ao rei. Compreendofacilmente que quanto mais preciosa é a coisa que se quer conservar, maior é a eqüidade que estende a exceçãocontra os termos da lei. Apesar disso, ousaria apenas condenar indistintamente os privados e uma parte do povo que recorressem ao último recurso que lhes deixa a necessidade, sem contudo perder de vista o bem público. Davi(/Snmue7XXl1, 2 e XXl11, 13) que, à exceção de reduzido número de fatos, é representado comoalguém que viveu na

[66] .4dwersus .4Zona/cúomacüos,]ivro 111,cap. Vlll e livro VI, cap. XXlll e XXIV

251 CAPÍTULO IV- DA GUERRA DOS SÚDITOS CONTRAOS DETENTORESDO PODER

observância das leis, se fazia escoltar no início por 400 homens e de um número bem maior a seguir. Qual seria seu objetivo, senãoo de rechaçar as violências que poderiam ocorrer contra ele?Notemos, ao mesmotempo, que Davi não tomou esta precaução, antes de ter sido prevenido por Jânatas e antes de ter sido advertido por vários outros indícios que sua vida estava ameaçada por paul. Além do mais, ele não invadiu cidades, não buscou ocasião para combater, mas procura esconderijos, ocultando-se em locais retirados ou vivendo no meio de povos estrangeiros e sempre com o piedoso escrúpulo de não causar dano a seus concidadãos. 5. Aconduta

dos Macabeus pode ser comparada à de Davi. A des-

culpa invocada por alguns em favor de sua decisão de tomar em armas se baseada no fato de queAntíoco não seria um rei, mas um usurpador,

deveser consideradasemfundamento. Em parte alguma, em toda sua história, osMacabeus e seuspartidários conferemoutra qualificação a Antíoco, senão a de rei. Era certamente a justo título, uma vez que desde muito tempo os hebreus haviam reconhecido a dominação dos macedónios, cujos direitos tinham passado aAntíoco por sucessão.Quan-

to à proibição formulada pela lei de colocarum estrangeiro à frente do povo, deve ser entendida como eleição voluntária e não como algo que o

povo era obrigado a acatar, levado a esseextremo pela necessidadedos tempos. Outros julgam que os Macabeus exerceram os direitos do povo,

a quem a autonomia era devida, mas essaopinião não tem fundamento sólido. Osjudeus, primeiramente submetidos por Nabucodonosor em

virtude do direito da guerra, haviam obedecidopor efeito do próprio direito aos sucessores dos caldeus, aos medos e persas, cujo império inteiro paêqou aos macedónios [67] . Por isso, os judeus são chamados

[67]

Justino(livro

XXXVI,

3, 8-9)

diz:

'Xêrxes,

/eí

da .Z;E?ls/a, áo/ o p/:ímeíro

que

domou es judeus. Estes, mais tarde, caíram com os persas sob a dominação de Aiexandre e âlcaram vários anos sob o jugo dos macedónios. Tendo conseguido se separar de Demétrio, obtiveram a amizade dos romanos que, pródigos para com o bem dos outros, os puseram em liberdade antes de qualquer outra nação

do oriente.

252

H UGO

GROTIUS

por Tácito [68] "os mais vis dos povos submetidos, enquanto o oriente estava sob a dominação dos assírios, dos medos e dos persas". Não exigiram absolutamente nada de Alexandre e de seus sucessores, mas se

submeteram a seu poder sem nenhuma condição,como antes estavam sob a dominação de Dado. Seos judeus, de tempos em tempos, recebe-

ram a permissão de exercerpublicamente seusritos eseguir suas leis, deveram isso à benevolência dos reis, a título precário, e não a alguma cláusula expressa relativa a seu governo. Nada põe a coberto os Macabeus, a não ser a iminência de um perigo extremo e evidente, tanto que se congregaramdentro doslimites a defender,retirando-se a exemplo de Davi a lugares afastados para buscar segurança, e que não se serviram de armas senão quando atacados. 6. Há, contudo, essa precaução a tomar que, mesmo num seme-

lhante perigo, deve-sepoupar a vida do rei. Enganam-se aquelesque pensam que Davi assim agiu também não para satisfazer um dever indispensável, mas por um propósito mais sublime. O próprio Davi declara abertamente(/Samue7XXVI,

9) que ninguém pode se considerar

inocente, quando levantou as mãos contra seu rei. Sabia que na lei estava escrito (Deusa'omómlbXXl1,

28): "Não amaldiçoarás

os deuses,

isto é, osjuízes supremos, nem amaldiçoarás os príncipes de teu povo." [69] Amenção especial de poderes eminentes, nesta passagem, mostra

que haveria algum preceito particular a respeito. Por isso, Optatus de

Mileva diz a respeito dessaaçãode Davi que "ele era instado pela lembrança dos mandamentos de Deus"]70] e atribui a Davi essaspalavras: "Queria vencer meu inimigo, mas é preciso antes observar os mandamentos divinos.

[68] CaiusCorne[iusTacitus[55-120],J]]bfar7be (V 8). [69] Em Josefo(.4nÉzkü]dadesJudaicas V]1, 11,2), Joab diz a Semei: '7\Ho cave/:üs

de morrer, tu que ousastefalar ma! de um rei estabelecidopor Deus?" [70] Josefo(.4nÉagu/andes

Judaicas

V], 13,4) diz de Dava: '7bcado .lago pejo arredam

alimento, exclamou que é uma ação injusta, a de matar seu senhor." Ê acres-

centa; "E uma coisa horrível matar um rei, por pior que seja. Aquele que comete ta! crime será punido por aquele que deu o rei. "

CAPÍTULO IV-

253

DA GUERRA DOS SÚDITOS CONTRAOS DETENTORESDO PODER

7. Quanto às calúnias, não é permitido espalha-las, mesmo a um

privado, como se deveabster-se das maledicênciascontra um rei porque, como diz o autor dos problemas que leva o nome de Aristóteles (Self. XXIX): "Aquele que fala mal do chefe de Estado, ultraja o Estado." [71] Se não se deve ofendê-]o peia boca, muito menos levantar as mãos contra ele. Por isso lemos que Davi(/ganhe/XXIV. 6) se arrependeu por ter atentado contra as vestes do rei, porquanto entendia que a pessoa do rei deve ser inviolável. Não sem razão, pois o exercício do poder supremo, exposto que está ao rancor de muitos [72], deve ser protegido de um modo particular em favor da segurança do soberano. Foi o que os romanos decidiram também comrelação aostribunos do povo;elesqueriamque fossemclaMA,ot, isto é,invioláveis.Ainviolabilidade dos reis era compreendida entre as proposições dos essênios. Conhecemos esse verso notáve] de Homero [73] : "Temia que acontecesse a]gum

acidente ao pastor do povo." [74] Não é semrazão, segundo a expressão [71] Juliana(MJlsopogon 342 B) escreve: ':4s /els sáo severas no bferesse dos pdncipes, de modo que aquele que cometealgum ultraje contra um príncipe calca aas pés as leis com o coração feliz. [72]

Quintiliano,

em -Dec/ama#lbnes(CCCXINlll),

diz:

'Za/

ó a sarZe

baque/es

que

cuidam da administração do Estado, de modo que ao fazer as coisas que são mais vantajosas para o bem comum, se expõeidforçosamente ã inveja." Vex a que dizia a esserespeito Tiro Lívio a Augusto, no resumo de Dion, transmitido

por Xiphilinus. [73] Homero [séc. ]X a.C.], 17üda (V. 566)

[74] Com razão, Crisóstomo diz, nos comentários à / E8)úfo/a a hó6eo /(J?bmúya b: "Se alguém mata uma ovelha, nada mais faz que diminuir o número dos animais. Quando, porém, se mata o pastor, o rebanho é dispersado."Sênecü.àXz o seguinte no livro l da obra .De 07emenüa, cap. 111: 'iSanéúleJasvlbí/antes, protegeiii: seu sono durante a noite, vigiam cuidadosos por todos os lados, cercam o laca! para defendê-!o, enâ'entam os perigos que o ameaçam. Não é sem razão que existe entre os povos e nas cidades esseconcerto de amor e de proteção pelo chefe e que cada um põe â disposição sua pessoa e seus bens sempre que a salvação do soberano o exigir. Não é desprezopor si próprio ou

!oucura se tantas milhares de cabeçasconsentemem tombar por uma só, se tantos mortos resgatam uma só vida, por vezesa de um velho enfermo. Do mesmo modo, de fato, que o corpo por inteiro está a serüço da alma(o que o 6}ósofo o demonstra aqui com detalhes), assim também essaimensa multidão, unida numa só alma, é governada por seu espírito, dominada por sua sabedo-

254

H u oo GROTIUS

de Quinto Cúrcio]75], que "as nações que são governadas por reis vene-

ram o nome real comoo da divindade". O persa Artaban [76] dizia: "Entre as numerosas e excelentes leis que nos regem, há uma, a melhor de todas, que nos prescreve respeitar nosso rei, adora-lo como sendo a imagem do Deus que conserva todas as coisas." P]utarco

[77] , na

vida deAgis, diz: "E ímpio, é ilícito pâr as mãos sobre o corpo de um rei.'

8. A questão mais grave é saber se o que foi permitido a Davi e aos Macabeus o é também aos cristãos, cujo mestre, que tantas vezes

ordenou de carregar sua cruz, parece exigir um grau mais eminente de paciência. E um fato que, no caso em que os poderes superiores ameaçam de morte os cristãos por sua religião, Cristo lhes concedeo direito

de fugir. Ele o concedeaos que as exigências de um emprego não os prendem a um local determinado. Além da fuga, não concede mais nada.

Pedro (/Ped-o IV 12-16)nos diz que Cristo, ao soâ'er por nós, nos deixou um exemplo a seguir. Ele que não havia cometido nenhum peca' do e de cuja boca jamais saiu palavra enganosa, quando foi coberto de

injúrias a elas não respondeu. Quando o maltrataram, não fez ameaças, mas remeteu sua causa às mãos daquele que julga segundo a justiça. O mesmo apóstolo acrescenta que os cristãos devem render ações

de graças a Deus e se alegrar se sofrerem torturas como cristãos. Lemos que foi esta constância em soõ'er que mais contribuiu para o desenvolvimento da religião cristã.

ria, uma vez que está ameaçada de perecer esmagada sob suas próprias forças,

a partir do momento em que uma poderosarazão não mais a sustenta. De sua prc r78 canse/'pagãoó que os pot'os gostam, eü. "Acrescente-se o que será dito mais abaixo, livro 11,cap. 1, $ IX.

[75] Quintus Curtius Rufus [séc.] d.C.], X, 3,3. [76] Em Plutarco [50?-125?], gbmJ8fodes (125 C). [77] Idem, .4g7s(804 A).

CAPÍTULO IV-

255

DA GUERRA DOS SÚDITOS CONTRA OS DETENTORESDO PODER

9. Por isso os antigos cristãos, apenas egressos da escola dos após-

tolos e doshomens apostólicas, entendiam e observavam seus preceitos

de uma maneira mais completa e perfeita, peloqual, segundomeu pa' recer, foram injuriosamente

acusados por aqueles que atribuíam sua

abstenção de se defender face a um perigo certo de morte por uma falta

de força e não por uma ausência de intenção. Imprudente e impudente teria sido certamente Tertu]iano [78] se, diante dosimperadores, que não podiam desconhecer o fato, tivesse ousado mentir com tanta segurança: "Se tivéssemos a vontade de agir como inimigos declarados e não somente como vingadores secretos, nos faltariam o poder do número e

das tropas? Os mauros, os marcomanos, mesmo os partas ou outras nações, por mais extensas que sejam estão sempre circunscritas num

espaçodeterminado como país e por fronteiras que lhes são próprias, são mais numerosos que nós que nos espalhámos pelo mundo inteiro?

Somosestrangeiros e, no entanto, enchemostodos oslugares de vosso império, vossas cidades, vossas ilhas, vossosvilarejos, vossos municípios, vossas assembléias, vossos próprios campos, vossas tribos, vossas

decúrias, vosso palácio, vosso senado, vossostribunais de justiça. Nós vos deixamos apenas os templos. Que guerra não seríamos capazes de

empreender e com que vigor não nos lançaríamos, mesmo com tropas inferiores, nós que nos deixamos trucidar sem resistência, se não fosse,

segundonossadoutrina, mais lícito sedeixar matar do que matar os outros?" Cipriano [79] segue também, neste ponto, o ensinamento de seu mestre«p se declara abertamente nesses termos: "E por isso que

nenhum de nós resiste, quando preso, nem se vinga de vossasviolênciasinjustas, embora nosso povo sqa extremamente numeroso e provido do que Ihe é necessário. A conülança que temos numa vingança futu-

[78] Quintus Septimius Florens Tertu[Jianus [155-220?], Jpo&)FeÉüus (37). [79] Thascius

Caeci[ius

Cyprianus

[200?-258],

4d Z)emeÉl:ünum

(cap.

XVID

256

H UGO

GROTIUS

ra nos torna pacientes. Por ela, os inocentes se dobram aos culpados. [80] Lactâncio [81] diz: "Nós conülamos na majestade daque]e que pode

se vingar não somente do desprezo que se possa ter dele mesmo, mas dos sofrimentos e injúrias que são impostos a seus servos. Por isso, mesmo em meio a tratamentos tão abomináveis que suportamos, não

resistimos sequer com a boca, mas remetemos a Deus o cuidado da vingança." Nem de modo diverso pensavaAgostinho [82] que escreve: "0 justo, nessas ocasiões, pensa antes de tudo que deve fazer a guerra

quem tem permissão de fazê-la, pois isso não é permitido a todos." O mesmo autor [83] diz ainda: "Todas as vezes que os imperadores estão

em erro fazem, para defender o erro contra a verdade, leis pelas quais os justos são provados e coroados." Em outro ]oca] [84] diz: "Os príncipes devem ser tolerados por seus povos, os patrões por seus escravos, de

tal maneira que a prática da paciência na dor ajuda a suportar os males temporais e leva a esperar nos bens eternos." Assim explica isso em outro local]85], invocando o exemplo dosantigos cristãos: "Mesmo quando a cidade de Cristo, embora esparsa pela terra inteira e que tivesse

tantos exércitos de grandespovospara seopor a seusímpios persegui-

[80] Essas palavras constam no escrito 4dDemeÉnanum.

O mesmo diz na E4)lbfuJa

Ido pümeüo Ilha. "0 inimigo compreendeu que os soldados de Cristo vigiam sóbHos, armas em punho e sempre prontos para o combate, que não podem ser

vencidos, mas que podem morrer, que o que os torna invencíveis é que não gemema morte e que não sabem o que é se defender contra os que os atacam,

pois não lhes é permitido, ainda queinocentes,matar um culpado,mas tendo presente que são obügados a dar alegremente sua vida e seu sangue.

[81]CaeciliusFirmianusLactantius[séc.]V d.C.],Dl},]llarum]nsúfuíünum (V 20, 9-10) [82] Aurelius Augustinus [354-430],QuaesÉlbnesh J?epfafeucüum(livro VI, quem tão 10, in Josuam). [83] Idem, .ZÜ)]kfuJa C:Z,X]Z [84] Idem,

in -])sa/mum

(]=XX7% 8.

[85] Idem, .De(2wfafe Z)eu(XX]1, 6, 1).

257

CAPÍTULO IV- DA GUERRA DOS SÚDITOS CONTRA OS DETENTORESDO PODER

dores, jamais combateu pela salvação temporal, melhor, jamais resistiu, a íim de conquistar a salvação eterna. Eles foram amarrados, feitos

prisioneiros, açoitados, torturados, queimados, dilacerados, degolados e

se multiplicavam. Combater para a salvação não era outra coisa para eles que desprezar a salvação dessa vida pela salvação eterna."

[O. O que Ciri]o [86] diz no mesmo sentido sobre a passagem de João, a propósito da espada de Pedro, não é menos notável. A legião

tebana, como nos informam os atos de seu martírio, era composta de 6.666 soldados,todos cristãos. O imperador Maximiano, estando em Octodurum e querendo obrigar seuexército a sacrificar aosfalsos deuses,os soldados dessa legião tomaram o caminho para Agaunum. O imperador lhes enviou um mensageiropara convencê-losa vir sacrificar, o que recusaram. Maximiano ordenou então que de cada dez solda-

dos,um fossemorto por executoresque cumpriram facilmente a tarefa, uma vez que nenhum dos membros da legião resistiu. [[. Maurício [87], o chefe dessa ]egião e que depois deu seu nome

ao bairro deAgaunum, dirigiu-se nessemomentoa seuscompanheiros de armas nesses termos, segundo o relato de Eucher, bispo de Lyon:

"Temi muito que algum dentre vós, coisa fácil para homens armados, sobo pretexto de se defender, tentasse rechaçar essesfelizes funerais. Para me opor, estava a ponto de seguir o exemplo de nosso Crista que,

[86] Cirilo dR A[exandriat376?-444],

ivro XI

CbmmenÉar2'us]h Epang. JoáannJb mZZZ lO,

[87] Sobre as honras prestadas a esse mártir pelos suíços, ver Guilleman(De

Xeóus

.Hb/reZlbrum 1, 15; 11,8). Num antigo relatório sobre o translado das relíquias

de São Justino para nova Corbéia(#a'um Ge/man/ca/pum), se pode ler:' ':Segundo o testemunho das crónicas, essecristão sokeu o martírio nessa atroz e incomparável décima perseguição que ocorj'eu depois de Nero. Essa persegui;ão foi mais crue! que as precedentes. havia enviado ao céu uma multidão enorme de mártires, entre os quais sobretudo os companheiros de são Mlaurí-

cio, e esse/bo da Inocência." Ver Crantzius(Saxon/c., Vl1, 16) sobre alguns mártires da legião tebana, cujos corpos foram transladados para Brunswick.

258

H U GO GROTIUS

por ordem expressa, fez voltar à bainha a espada que o apóstolo havia

puxado, ensinando-nos com isso que a virtude da confiança cristã é superior a todas as armas, que ninguém deve se opor com mãos mortais a uma empresa imortal, mas que, ao contrário, é necessáriocumprir a obra começada, dando perpetuamente testemunho de sua fé." Consumado o suplício, o imperador renovou o convite aos sobreviventes que Ihe responderam nessestermos: "Como soldados,César, te pertencemos e tomamos as armas pela defesa da república romana. Jamais

fugimos da guerra ou traímos os deveresmilitares ou merecemoso estigma de relaxados. Obedeceríamos a tuas ordens se, instruídos na

religião cristã, não devêssemosevitar o culto aosdemóniose seusaltares sempre sujos de sangue. Sabemos que resolveste desonrar os cristãos como sacrílegos ou de nos assustar, ao nos dizimar. Não nos procu' res por mais tempo, como se nos escondêssemos.Fica sabendo que todos nós somos cristãos. Nossos corpos estão sob teu poder, mas não

terás poder algum sobre nossas almas que esperam por Cristo, seu criador. 12. Segundo o mesmo escritor Exupério, porta-bandeira da legião, se dirigiu a ela nessestermos: "Vós me vedes, bravos companhei-

ro.sde armas, levar o estandarte das guerras do século, mas não é a essescombates que vos incita, não é para essasguerras que estimulo vossos espíritos e vossa coragem. Deveis escolher outro tipo de combate, pois não podeis com essas espadas abrir vosso caminho para o reino dos

céus." Depois ordena levar essamensagem ao imperador: "0 desespero,

recurso mais e6lcaznos perigos, não nos armou contra ti, imperador. Temos, tu o vês, armas à mão e não resistimos [88] porque preferimos

[88] Os judeus de Alexandria disseram a]go seme]hante a Flaccus(Fílon, .Z)e.Legal. ad Caiam, Saà: "Estamos sem armas, como vês, e contudo há quem nos acuse aqui de sermos inimigos públicos. As próprias mãos que a natureza deu a cada de nó$ para se defender,as mantemos às costas,onde não podem ser de utili-

dade alguma. Apresentamos nossos corpos totalmente descobertosa quem quiser nos matar.

CAPÍTULO IV - DA GUERRA DOS SÚDITOS CONTRA OS DETENTORESDO PODER

259

morrer a vencer, perecer inocentes a viver como culpados." E acrescentou: "Nós rejeitamos nossas armas. Teus carrascos encontrarão nossas

mãos desarmadas, mas nosso coração armado pela fé católica." 13. Essas palavras são seguidas pelo massacre desses homens indefesos. Eucher, que relata o fato, faz a seguinte reflexão a respeito: "Seu grande número não impediu que essesinocentes fossem punidos. Isso, contra o costume de subtrair à repressão o crime que a multidão

cometeu." O mesmo fato se encontra assim narrado num antigo martirológio: "Eram degolados sem distinção e sem que dessem o menor grito. Ao contrário, tendo deposto as armas, eles mesmos se apre' sentavam a seus carrascos com a garganta e o corpo descobertos. Não se prevaleceram de seu grande número, nem de suas armas para defender a justiça de sua causa, mas se lembravam que confessavam o nome

daqueleque foi levado à morte semter dito uma palavra para se defender e, como um cordeiro, sem abrir a boca. Eles também, como rebanho de ovelhas do Senhor, se deixaram dilaceram como que por lobos que se lançavam sobre eles.'

14.Va]ente [89] seviciou de modo ímpio e crue] aqueles que, seguindo as Sagradas Escrituras

e a tradição dós Padres da Igreja, pro-

fessavam a consubstancialidade. E, embora muito numerosos, jamais tomaram das armas para se defender.

15. (+rtamente, quando a paciência nos é recomendada é para

propor para nossa imitação, como acabamos de ver o que faziam os soldados tebanos, o exemplo de Cristo (/Peó-o 11,21; Mafetzs X, 39; .Z)ocasXVl1, 33) que levou esta virtude até a morte. O próprio Crista, [89] Ver os excertos de João de Antioquia, publicados num manuscrito fornecido

por Nicolas Peiresc,homem digno de eterna memória.

260

H UGO

Gxotius

porém, diz que aquele que perde assim a vida, a recupera verdadeiramente. Dissemos que não se pode legitimamente opor resistência aos que possuem o poder superior. Cumpre agora advertir o leitor a respeito de certas exceções,a üm de que não pense que sepode pecar contra essa lei, quando na realidade não se comete contravenção.

VIII. O direito de guerra pode ocorrer contra o governante de um povo livre Em primeiro lugar, se os príncipes que são subordinados ao povo, seja porque receberam desde o início o poder em tais condições, seja porque essefoi o resultado de uma convenção posterior, como ocorreu em Lacedemânia

[90] , se esses príncipes chegam a violar as leis e tor-

nar-se culpados perante o Estado, não só se pode resistir a eles pela força, mas, sendo necessário,pum-los coma morte. Foi o que aconteceu a Pausânias, rei da Lecedemõnia. Como tal era também a natureza dos

governos mais antigos da ltália, não é de estranhar que, após narrar os

crimes atrozes de Mezêncio, Virgí]io191] acrescenta: "Toda a Etrúria se sublevou, movida por justa cólera. Exigiram que o rei fosse imediatamente entregue ao sup]ício da morte." [92]

[90] Plutarco diz na wda de .LEsandTO(450 E): 'Z)sesparÉanosmo eram um processo

:riminai contra seu rei, mas ele se daria subtraído, fugindo para 'regeu" O mesmo historiador, na w'da de Sl7a(476 C), diz que 'bs empa/'Íamosíímram o poder de alguns de seus reis, comoincapazes de reinar, homens sem caráter e

de nen.bum va/al-': Ver o mesmo Plutarco, a respeita de Agia que havia sido condenado, malgrado injustamente. Os mosinécios punham seu rei fazendo'o

morrer de fome(J14bZa, livro 1, 19). [91] Pub[ius Vergi[ius Mare [71-19a.C.], Ea7elda (V]11,494). [92] O arúspice etrusco diz, ao se diügir aos que se sub]evam contra Mezêncio: 'VZs.

que um descontentamentolegítimo vos arrasta contra um inimigo!"

261 CAPÍTULO IV- DA GUERRA DOS SÚBITOS CONTRA OS DETENTORESDOPODER

IX. Contra um rei que abdicou do poder Em segundo lugar, se um rei ou qualquer príncipe abdicou do poder ou o abandonou de modo manifesto, tudo o que é permitido contra

um privado o é também, a partir dessemomento, contra ele. Deve-se evitar de considerar como tendo renunciado a alguma coisa aquele que a trata apenas com negligência.

X. Contra um rei que aliena seu Estado, mas somente para impedir a alienação Em terceiro lugar, como pensa Barclay (livro 111,cap. XVI), se um rei aliena seureino ou o submetea outro, deveser destituído do poder. De minha parte não iria tão longe. Seo poder é deferido pela eleição ou por outra lei de sucessão,um ato semelhante é nulo. Ora, o que é nulo não tem nenhum efeito de direito. Por isso, a opinião dos jurisconsultos[93]

me parece mais verdadeira, quando dizem a propósi-

to de alguém que tem usufruto, ao qual comparamos um tal rei, que se ceder seu direito a outro, não faria nada de vá]ido. Por isso se diz [94]

que o usuâ'uto retorna ao dono da propriedade e com isso é preciso entender que, ao expirar o tempo, o usufruto também deve se extinguir legitimamente. Se o rei, contudo, pretende efetivamente entregar seu reino ou torna-lo dependente de outro, não duvido que a respeito desse

ponto não se possa Ihe oferecer resistência. Uma coisa é, com efeito, como já dissemos, a soberania, outra coisa a maneira de possuí-la. O povo pode.peopor ao que modifica essa maneira, mas o poder fazer tal mudança não está compreendido no direito da soberania. Aesse respeito pode-se citam esta passagem de Sêneca [95], re]ativa a assunto aná]ogo:

193]1nsÍI'fuf. Detzsuõ:, / #ujfuz t94À l.ei: Usus&uctus,

Dig., de jure dotium.

[95] Marcus Annaeus Soneca[58 a.C.-32?d.C.], OonÉrouez:s/ae (11,9)

262

H UGO

Gxottus

"Mesmo que se deva obedecer em tudo a um pai, não se deve obedecer-lhe quando o que ele manda é de tal teor que, ao manda-lo, cessapor isso mesmo de ser pai."

XI. Contra um rei que se declara abertamente inimigo de todo o seu povo Em quarto lugar, segundoainda Barclay,há a quedado reino, quando o rei, cedendo a sentimentos

hostis, age para a ruína de todo o

seu povo [96] . Nesse ponto, concordo. Avontade de governar e a de des-

truir não podem, de fato, seguir juntas. Por isso, o rei que se declara inimigo da totalidade de seu povo abdica por isso mesmo de seu poder. Parece-nos difícil, no entanto, que isso possa ocorrer no espírito de um

soberano dotado de razão e que governa um só povo. Se ele comanda vários povos, pode acontecer que ele queira, no interesse de um, arrui-

nar o outro para aí estabelecer colónias.

XII. Contra um rei que perdeu seu reino em virtude de cláusula comissória Em quinto lugar, quando um reino cai em comisso, por causa da

felonia como senhor que é um feudatário ou em virtude de uma cláusula aposta ao ato que deferia a soberania e que dispunha sobre os próprios atou do rei]97], os súditos estão então desligados dos laços de obediência. Nesse caso, o rei retorna à condição de pessoa privada.

[96] Sobre esseprincípio é que Grado sustentava engenhosamenteque um tribuno

do povo cessa de sê-lo e é destituído de pleno direito de seu poder. Essas palavras são dignas de ser lidas e se encontram em Plutarco(7}óérl'o Grado, 831 D). Jogo Maior, no livro rv de suas Sentenças, diz que um povo não pode se

despojar do poder de destituir o príncipe, quando essetrabalha para destrua-lo. Princípio que deve ser explicado seguindo o que é dito aqui.

[97] Ver Mariana(livro VIII), a respeitodo reino deAragão.

263 CAPÍTULO IV- DA GUERRA DOS SÚDITOS CONTRAOS DETENTORESDO PODER

XIII. Contra um rei que só tem parte da soberania, pela parte que náo possui Em sextolugar, seo rei só tem uma parte da autoridade soberana e a outra parte pertence ao povo ou a um senado198], pode-se resistir

legitimamente ao rei se ele quiser usurpar a parte que não Ihe pertence, porque seu poder não vai senão até aí. Acho que isso teria lugar da mesma forma que se diz que o poder de mover guerra seria reservado ao

rei, entendendo'se, contudo, tratar-se de uma guerra externa. Quem possui uma parte da autoridade soberana não pode ser privado do direi-

to de defendê-la.Assim sendo,o rei podetambém perder pelo direito da guerra a porção de poder que Ihe pertence.

XIV Se é prevista a liberdade de resistência em certos casos Em sétimo lugar, se no momento em que o poder soberano é defe-

rido, foi estipulado que em certas eventualidades é possível resistir ao rei[99] .Ainda que seme]hante convenção não possa ser considerada

comouma reserva de uma porção da soberania,constitui ao menos uma reserva de uma espéciede liberdade natural, subtraída aos efeitos do poder real. Aquele, de fato, que aliena seu direito, pode restringir por pactos sua alienação.

198]Encontra-seum exemplona república de Gênova,segundoBisar (livro XVlll). Com relação à Boêmia, da épocade Venceslau,ver JÍJkfaz:fa(livro X). Acrescen-

te-seAzar,:lnsfzfuf. .adora/.(livro X, cap. VIII) e Lambert de Schafnaburg,a respeito de Henrique

IV.

[99] Ver exemp]os na história de ])e Thou no ]ivro CXXXI do ano de 1604, e no livro

CXXXlll, do ano de 1605, ambos sobre a Hungria. Em Meyer, narrando fatos

de 1339, a respeito de Brabante e dos Flandres; do ano de 1468,referente ao tratado feito entre o rei da trança e o duque de Borgonha. Acrescente-seo que Chytraeus(SnxonJC.,livro XXIV) diz a respeito da Polânia e Bonüinius(.Z)ecací iVI livro IX) a respeito da Hungria.

264

H UGO

GROTIUS

XV Em que limites é preciso obedecer ao usurpadordasoberania de outro 1. Falamos daquele que possui o direito de governar ou que o possuiu. Resta tratar daquele que usurpou o poder, considerando não depois que conquistou um título por longa posseou por uma transação, mas enquanto dura a causa ilegítima de sua posse. Os atos de sobera-

nia que um tal usurpador exerce, enquanto o poder estiver em suas mãos, podem certamente ter força obrigatória, não em virtude de seu direito que não existe, mas porque é de todo provável que aquele ao qual

pertence a soberania, seja povo, rei ou senado, deverá preferir que se obedeça provisoriamente

às ordens desse usurpador

[100] a ver o Esta-

do mergulhado numa confusão extrema pelo efeito do aniquilamento das leis e da supressão dos tribunais. Cícero condena as leis de fila

comocruéis para com osfilhos dos proscritos, aosquais elas proibiam de solicitar cargos públicos. Era da opinião, contudo, que se devia obser-

va-]as, afirmando, como nos informa Quinti]iano [lOl], que essas]eis eram tão essencial à salvação da República que, se fossem supressas, não poderia subsistir. F]orus [102] diz a respeito das instituições do mesmo fila: "Lépido se dispôs a anular os atou desse grande homem; teria tido razão se tivesse conseguido fazê-lo sem expor a república a

uma terrível catástrofe." E mais adiante acrescenta:"0 interesse da república doente e como que ferida era de repousar de algum modo com medo que o próprio remédio aplicado a suas chagas não tivesse como

efeitos dereabri-las."

[100] Vitoria, Z)epofesf. cfwZ, n.' 23; Suarez, De Z;eF]'ó.,livro 111,cap. 10, n.' 9 Lessius,

.De /usÉíí. ef/ure,

livro

11, cap. XXIX;

Dub. 5, n.' 73.

[lOl] Marcus Fabius Quinti[ianus[30?-100?], .De Znsüfuáüne Orafoz:fa(]], cap. ]).

[102] Lucius Annaeus F[orusEséc.]-]] d. C.], E4)iÉome de GesáúRomana'zzm(]]] 23)

CAPlíutO

265

IV- DA GUERRA DOS SÚDITOS CONTRA OS DETENTORESDO PODER

2. Quanto aos ates de poder que não são tão essenciais e que não têm outro resultado senão o de fortalecer o usurpador em sua posseiníqua, se fosse possível, sem se expor a um grave perigo, não Ihe obedecer,

precisaria exatamente não Ihe obedecer.Seria permitido derrubar violentamente um tal usurpador do poder ou mesmomata-lo, eis a questão.

XVI. Pode-sel'existir pela força ao usurpador, enquanto o estado de guerra subsistir Antes de mais nada, sefoi numa guerra injusta e não conforme às condições exigidas pelo direito das nações que ele se apoderou do poder, se alguma transação não interveio, se alguma fidelidade não foi empenhada a ele, se retém o poder apenas pelo efeito da força, o direito

da guerra parecesubsistir e disso resulta que épermitido contra ele o que é permitido contra um inimigo. Por isso, pode ser legitimamente condenadoà morte por qualquer um, mesmo por um cidadãoprivado. Tertu[iano

[103] diz: "Contra os criminosos de ]esa-majestade e contra

os inimigos púb]icos, todo homem é so]dado." ]i] assim que cada um podia, em vista da tranqüilidade

comum, exercer a vindita pública con-

tra os desertores [104] .

XVII. Pode-se, desde que uma lei anterior o autorize Concordo com Plutarco que exprime a opinião em seu livro .Z)e

Bafo adP7'somem de que seria necessáriodecidir a mesmacoisa,se existisse ani;es da usurpação uma lei pública que concedessea todos o poder de matar, qualquer um tentaria cometer esseou aquele atentado

[103]

Quintus

Septimius

F[orens

Tertu[[ianus

[155-220?],

[104]Cód., é?Dando Zceaf unibul'gue,]ivro ]], cap. 111,27.

Hpo/OFeÉabus

(2)

266 H UGO

GROTIUS

visível. O privado, por exemplo, secercada de auxiliares subalternos que se apoderariam da cidadela, que condenaria à morte um cidadão sem ter sido condenado ou sem tê-lo submetido a um processo regular,

que criaria magistrados sem que tivessem sido eleitos por sufrágios legítimos. Havia muitas leis semelhantesnas cidadesda Grécia e, em decorrência, o assassinato de semelhantes tiranos devia ser aí considerado como justo. Ta] era emAtenas a ]ei de Só]on [105], renovada após o retorno de Pirro, contra aqueles que atentavam contra o governo po' pular ou que, tendo-o supresso, se revestiam da dignidade pública. Em Romã, também, a ]ei Va]éria [106] atingia aque]e que, sem a ordem do

povo,havia constituído uma magistratura. A lei consular, emanada após o governo dos decênviros, proibia de criar magistrados, cujas deci-

sõesfossem sem apelação. Era legítimo e permitido matar aquele que as tivesse criado.

xvm. Quandofor recebida ordem do soberano legítimo Não menos lícito seria condenar à morte um usurpador, sempre que houvessea esserespeito uma ordem formal daquele a quem perten-

ce verdadeiramentea soberania,fosseum rei, um senadoou o povo. Acrescente-se a eles os tutores dos reis menores de idade, como Jogada o

era de Joás(27CzdzzüasXXlll), quando destronouAtalia.

[105] Andócides [440?-390? a.C.], Oraúones (1, 81). [106] P[utarco

[50?-125?],

na

Hda

de /'uó/)roja

(103 B), diz:

':.. para

que fosse

permitido condenar à morte, sem julgamento, aquele que ambicionasseo pocíer.." E mais adiante acrescenta: 'iSã/on quer gue se /aça c'ocupa/'ecerante a justiça aquele que foi surpreendido proctlrando usurpar o poder soberano,

mas Pubiícoia permite matar ta! homem, antes mesmo de qualquer julgae to men

267

CAPÍTULO IV- DA GUERRA DOS SÚDITOS CONTRA OS DETENTORESDO PODER

XIX. Por que a resistência não é permitida fora desses casos? 1. Fora desse caso não posso aprovar que seja permitido a um privado derrubar pela força ou matar o usurpador da autoridade soberana, porque pode acontecer que aquele que é o soberano legitimo prefira deixar o usurpador de posse de seu poder, do que proporcionar assim

uma ocasiãoaosmovimentos perigosos e sangrentos que, na maioria das vezes, são a consequência dos atentados e dos assassinatos cometi-

dos contra a pessoa de indivíduos apoiados por uma forte facção do povo

ou mesmo por aliados estrangeiros. Por outro lado, não se tem certeza que o rei ou que o povo tenham a intenção de levar as coisas até esse extremo perigoso. Como não se conhecesua vontade a esserespeito, o emprego da força não pode serjusto. Favânio]107] dizia: "A guerra civil

éum mal pior que uma dominaçãoilegítima." Cícero[108] dizia: "Toda paz entre concidadãos me parece mais vantajoso que uma guena civil." Tullius Quinctius achava que era melhor deixar à Lecedemõnia o tirano Naves [109] , porquanto não era possível desfazer-se dele sem levar à ruína completa essa cidade que haveria de perecer buscando vingar sua

liberdade[110]. Convémre]atar a respeito estepensamentodeAristófanes [111]que não se deve criar um leão numa cidade, mas se nela for criado, é preciso

atura-lo.

[107] P[utarco [50?-125?], Ba:ufus (989 A) [108] Marcus Tu[[ius

Cicero [106-43 a.C.], .Zn .4/a/cum .4nóon/um

Orai/cães

PüJZÜopüae (11,15,37). [109] Plutarêo assim explica o fato na Uda de 7 z/bus quincllus(376 E): "Hb que aão era~~possíve! destruir o tirano sem causar um grave prejuízo aos outros

Êzcec/eiúónlos." Não é fora de propósito relatar aqui as palavras de um lacedemõhioao ler essesversos,palavras que Plutarco registra na Hda de Licurgo (52 Xà: "Aqueles que o cruel Malte fez perecer diante das muralhas 3e Selinonte, no momento em que se preparavam para estender por meia de Morte a tirania..." Esse comentou: "Esses homens mereciam mesmo perecer,

pois deviam esperar que a tirai3ia se consumassede todo por si mesma." ItlO] Titus Livius (59 a.C.-17 d.C.), .4ó apõe Cbndfa (XXXIV, 49, 2). [111] Aristófanes [445?-386? a.C.], .4s .RâÉ(1431 e seguintes)

268

H u oo GROtlUS

2. Como é uma questão grave a de decidir o que é preciso preferir,

segundo a expressão de Tácito [112], com re]ação à dependência ou à paz e como é um problema político muito difícil de resolver, segundo Cícero [113] , "o de pronunciar se a pátria está prostrada sob um poder

ilegítimo, torna-se necessáriocolocarem açãotudo para derrubar esse poder, uma vez que o Estado poderia ser levado por essas lutas aos mais

graves extremos," os simples privados não devem erigir-se em juízes de

uma questão semelhante que interessa a todo o povo.As palavras seguintes são, pois, de todo iníquas [114]: "Nós derrubamos os donos de um Estado disposto a ]hes obedecer."[115] O próprio Si]a [116], a quem perguntavam porque se arma contra sua pátria, respondeu: "A fím de

livra-la de seustiranos." 3. Platão dá um conselho melhor em sua carta a Perdicas. Cícero [117] o reproduz dessa forma em ]atim: "Não é preciso empreender

na

República senão o que podeis ver aprovado por vossos concidadãos. Não

se devefazer violência nem a seu pai, nem a sua pátria." Este pensa' mento se encontra também em Salústiol1181: "Obter pela força o governo de sua pátria ou dos súditos da república, tornando-se todo-poderoso

[112] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], JZlhfaz:üe(]V, 67). [113] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], Ed)Jkfu/ae ad 4f&z'cum(]X, 4) [114] Marcas Annaeus Lucanus [38-65], /)ZarsaZfa (1, 351). [115] P[utarco [50?-125?], na 1,7dade Cbfâo o ÀnlJko (342 F), diz de Antíoco o (ixanà6 ''1bmava como pretexto para a guerra a !ibertação dos gregos que não

estavam privados de liberdade.

[116]Apiano [95?-160?],]?isfar2b-Romana(1, 351). [117]Marcus Tu[hus Cicero[106-43a.C.], Eplsfu/ae (1, 9,18). [118] Caius Sa[[ustius Crispus [186-36a.C.], Z)eBe#í Jugurfü ho (111,2)

269 CAPÍTULO IV- DA GUERRA DOS SÚDITOS CONTRA OS DETENTORES DO PODER

e corrigir os abusos, é sempre um extremo deplorável, tanto mais que as revoluções trazem como seqüela massacres, a fuga dos cidadãos e

mil outras medidas de rigor." Stallius, segundoPlutarco, na vida de Brutus [119], não se afasta muito dessamaneira de ver, quando diz: "Não é justo que um homem prudente e sábio mergulhe em perigos e

em problemas, em proveito de gente sem probidade e semjuízo". Pode'se citar aqui e com razão, essas palavras de Ambrósio [120] : "É um

meio de alcançar bom renome o fato de desembaraçar um homem pobre

das mãos de um credor poderoso,de arrancar um condenadoà morte, contanto que isso possa ser feito sem acarretar problemas, com medo de

parecer ter agido por vaidade, antes que por compaixão, e para não abrir maiores feridas, uma vez que se deseja curar as menores." 'bmás

[121] afirma quea destruiçãodeum governo,emboratirânico, muitas vezes é um ato de sedição.

4. A ação de Aod (Julües 111,15; NeemJas IX, 27) contra Eglon,

rei dos moabitas, não nos deve inclinar para a opinião contrária. O texto sagrado testemunha claramente que Aod havia sido suscitado pela próprio Deus como um vingador e que ele havia agido em virtude de um mandato especial. Não é certo também que esse rei dos mobatias não tenha recebido em virtude de alguma convenção um direito de sobera-

nia. Deus se servia, por outro lado, mesmo contra outros reis, de tais ministros para executar seus julgamentos, como, por exemplo, as empregar Jeú\contra Jogam(27-RelêIX) .

[119] P[utarco [50?-125?], Brufus (989 A),

[120] Ambrósio]340?-397], De OzHcÍÜMb2JbÉrarum(]ivro ]], cap. 21)

[121] Seaund Secund, Quaesí.X/Z ai'f. 2.

270

H UGO

GROTIUS

XX. Em caso de controvérsia sobre o direito da soberania, os privados náo devem se estabelecer como juízes E sobretudo quando a coisa é duvidosa que um privado não deve se atribuir

o direito

de decidir. Seu dever é de seguir o partido

daquele

que o possui. E assim que Cristo mandava pagar o tributo a César (.4ZnféusXX]1,20) porque a moeda trazia sua efígie]122], isto é, porque estavadepossedopoder.

Íi:ã

E o indício mais seguro de posse. Ver Bazar, .lílhZor7a Genuensls(livro

243 da edição de 1579).

XVlll,

p

V

QUEMlüZAGUERRA DE MODO LEGITIMO

Sumário 1. Entre as ca usas eHlcientes da guerra, algumas são principais e agem por seu próprio interesse.

ll. Oupeiointeresse de outrem

lll. Outras são instrumentais, comoas relacionadascom es cra vos e súditos.

IVI O direito de natureza não exclui ninguém da guerra

r

CAPÍTULO V-

QUEM FAZ A GUERRA DE MODO LEGÍTIMO

1. Ente'e as causas eficientes da guerra, algumas sáo principais e agem

porseu própriointeresse Nas açõesda vontade, como em outras coisas, há geralmente três tipos de causas eficientes: os agentes principais, aqueles que auxi-

liam e aqueles que servem de instrumentos. Acausa eficiente principal numa guerra é geralmente

a pessoa cujos interesses estão em jogo. Na

guerra privada, o privado; na guerra pública, o poder público, sobretudo o poder soberano. Veremos, além disso, se se poderia tomar em armas pelos interesses de outras partes que 6lcam inativas. Por enquanto ficaremos com esseprincípio de que cada um é naturalmente o defensor

de seu direito. ]i a razão pela qual as mãosnosforam dadas.

ll. Ou pelo interesse de outi'em 1. Prestar serviço a outrem, dentro dos limites de nosso poder, não é somente um fato lícito, é ainda um ato honesto. Os que escreveram sobre os deveres [1] dizem com razão que nada é mais útil ao homem que outro homem. Os homens são, com efeito, unidos entre eles por diversos laços que os empenham a prestar-se auxílio recíproco. Os

membros de uma mesma família se aproximam para se auxiliar; são chamados para ajudar os vizinhos e os cidadãos que fazem parte da mesma cidade. É daí que surge essa exclamação "A mim, romanosl" e "quiritari". .4ristóte]es [2] diz que todo homem deve tomar em armas,

para elemesJho,sefoi vítima de alguma agressão,ou por seuspais ou por seus benfeitores e que deve prestar socorro aosque ele se associou,

[1] Z. ser.p-zz8 .22Ü de sertab empa'Z., ]iwo V]]; Cícero, Z)e Oz?faí& ]l#nhüaru«,(ll, 5,16) ex Panaetzd 22@:limo Vll, sí qulh ih semfufem, de fiuÉlb,' Código, limo y.

]e $urefisci.

[2] Aristóteles, aóefan adAex.(cap.

3).

273

274

H UGO

Gxoilus

quando e]essão vítimas de uma injustiça. Só]on]3] havia ensinado que felizes seriam as repúblicas nas quais cada um considerava como per' petrados contra ele mesmo os ataques feitos aos outros. 2. Sempre que não houvesse nenhum desseslaços, a comunhão da natureza humana bastaria. Com efeito, não há nada de humano que seja estranho ao homem [4] .AMenandro [5] foi dito: "Se ]igados uns aos outros, reunindo nossas forças e considerando o que é feito a outrem como pessoal nosso, cada um de nós sevingaria daqueles que se tornam

culpados de injustiças, a audácia dos maus não prevaleceria sobre a inocência. Vigiados por todos os lados, obrigados a sofrer um castigo merecido, eles desapareceriam completamente ou seunúmero diminuiria em muito." Uma frase de Demócrito]6] é incisiva: "E preciso defender na medida das próprias forças aqueles que a injustiça oprime e que

não se deve negligenciar esse dever, pois é uma obra justa e boa" Lactâncio[7] exp]ica assim esta máxima: "Deus, que não deu a sabedo-

ria aosoutros animais, oscriou comdefesasnaturais que ospreservam do ataque e do perigo. O homem que ele criou nu e frágil, preferindo dota-lo de sabedoria, Ihe deu entre outras coisasessesentimento afetuoso que leva o homem a defender o homem, a amá-lo, a protegê-lo, a receber dele e a Ihe oferecer socorro contra todos os perigos." [3] P[utarco150?-125?] refere essas palavras(So/am, 88 C): 'Hque/a á a mala áe]]k

das cidades, onde os que não foram vítimas de uma izljúda se levantam contra e/a, nâo menos que os que a sofreram e punem os autores. " Pode-serelembrar aqui também esse verso de Plauto, em .Rudens(626): 'Deveua i VusíÜa, antes que ela chegue até vós." [4] Bart. ]n ]..' uf l,ím, 22Ü: delbsÉI'f. ef/ure, n.' 7 e 8; Jason., ibid. n.' 29; Cast., ad].

$jus gene.eodem;Bart. ad. ]. hostes,Dig. de Capa.,n' 9\ lxtnoc.,ad c. sicut. De /ureyzzref ih c. o.lím de J'esf.spoZ n.' 16; Panorm., n.' 18; Sylvest., llz verbo BeHum, quaest. 8. [5] Estobeu, 43,30. 16] Idem, 46, 43. [7]

Caeci[ius

l0,3)

Firmianus

Lactantius

[séc.

]V

d.C.],

.Díl,íz2ai«um

Znsüfuüomum

(V],

[.

CAPÍTULO V-QUEM

275

FAZ A GUERRA DE MODO LEGÍTIMO

lll. Outras sáo instrumentais, como as relacionadas com escravos e súditos Ao falar de instrumentos, não entendemos as armas e todas as outras coisas similares, mas os indivíduos que agem voluntariamente,

de tal modo,porém, que sua vontade dependeda vontade de outrem. Um filho é um instrumento dessa natureza comrelação a seu pai, como fazendo naturalmente

parte de si mesmo [81; um escravo o é com re]a-

ção a seu dono, do qual ele faz como que parte por efeito da lei. Como uma parte é não somente a parte de um todo, em virtude da mesma relação que faz com que essetodo é o todo dessa parte, mas ainda que ela depende do todo, do mesmo modo que a coisa possuída de algum modo faz parte do possuidor. Demócrito [9] diz: "Serve-te de teus escra-

vos, como a gente se serve das partes do corpo, alguns para uma coisa, outros para outra." Isso, pois, é um escravo na família, um súdito no Estado. Ele é, por conseguinte, o instrumento daquele que governa.

IV O direito de natureza não exclui ninguém da guerra Não resta dúvida que todos os súditos não podem naturalmente ser empregados na guerra, mas uma ]ei especia] defende a]guns [10], como outrora em Romã ocorria com os escravos [11] e agora, em toda

parte, com os membros do c]ero [12]. Uma ]ei seme]hante, contudo,

18] .L: cum somas,

(]bd. de.4gz:üo/lb,

livro

Xl; Arist.

Livro

V. de maúóus,

cap. /

(Ética ã,,Nicâmaco); Z,. Graccüus, CZd de adu/f., Sêneca, aonüoK, l [9] Estobeu,'62,

45.

[10] Tomas, seçund. seaunci, 40, art. 2; Sy]v. de Z?e/ãa.p. 3.

[11] Ver Sérvio, em seus comentários sobre o ]ivro ]X da Ea7euda]547]. [12] Os levitas também eram isentos das funçõesda guerra, como assinala Josefo (.4nÉlgul'dadasdada bas, 111,12,4). A respeito dos membros do clero, ver Nicetas

Choniate(livro VI, Ca/o/I' Ca/w cap.h SparnacoXXXVII) e o direito canónico (Can. c/eHcum dlkf. V. causa XXlll,

guaesf. vnD. É o que trazem os cânones.

Ver, contudo, na história de Ana Comnena(X, 8), como os gregos os observaram com maior diligência que os latinos

276

H UGO

GROíiUS

como todas aquelas dessa natureza, deve ser entendida com a reserva dos casosde extrema necessidade.l.ámitemo-nos a essasgeneralidades sobre os auxiliares

e os súditos. As questões particulares

cionam a eles serão tratadas em seu devido lugar.

que se rela-

+

l

IHS CAUSAS DA GUERRA

E PRiMEimENTE DA DEFESA DE SI MESMO

EDOSBENS

Sumário 1. 0 que se entende por causasjusti6cativas

da guerra.

il. Elas provêm da defesa,da exaçãodo que énosso ou do que nos é detido ou aixzdada pena.

ill. A guerra épermítida para defendera vida. IVA guerra épermítida somente contra o agressor.

KA guerra épermitída num perigopresente e certo,não num pressuposto perigo.

VI.A guerra épermítída para a defesadosmembros. Vila\Aguerra épermitida sobretudopara a defesadopudor. VIII. Épermitido

não se defender.

iX. A defesa éàs vezesiiícíta, quando contra umapessoa que é

de grande utilidade para o Estado, por causa da lei da caridade.

X. O ato dematarnão épermitido aoscristãospara evitar um tapa ou ultraje semelhante au para não ter de fugir.

XI. O ato de matar não é ilícito, de acordo com o direito de natureza, para a defesa de seus bens. XII. Em que medida é permitido o ato de matar pela lei de Moisés.

XIII. Se e em quemedidaépermitido pato dematarpela lei do Evangelho. XIV. Se a lei civil que permite matar em legítima defesa dá o

direito de matar ou somente a impunidade? Explicação e distinção. XV: Quando o combate pessoal éJícito.

XVI. Da defesa,numa guerra pública.

XVII. A defesanão épermitida somentequandopretendediminuiropoder

de um vizinho.

XV[[[. Não é tambémao que deu motivo justo para ]he seja meada guerra.

281

CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESA DE SI MESMO E DOS BENS

l 1. 0 que se entende por causas

justificativas da guerra 1. Vamos às causas das guerras. Refiro-me às causas justificati-

vas. Há outras que nos impelem por um motivo de interesse e que diferem daquelas que nos levam a isso por um princípio de justiça. Políbio [1] distingue com cuidado essas diversas causas entre si e as separa de acordo com os inícios da guerra]2], comofoi o nervona guerra de Turnus e Enéias [3]. Ainda que a diferença entre essas coisas seja

manifesta, tem'se no entanto o costume de confundir ostermos que as definem. O que chamamos de causas justificativas, Tito Lívio]4] o chama de inícios, exórdios, no discurso doshabitantes de Rodei: "Certamente sois romanos [5], pois que vossas guerras são felizes porque são justas e porque não vos gloriais tanto pela vitória que conseguia quanto

de seus inícios ou de que não as empreendeis sem motivo." E no mesmo sentido que Eliano as designa de os princípios da guerra e que Diodoro da Sicília]6], falando da guerra dos lacedemânios contra os eleanos em seu livro XIV. os designa de pretextos]7]

e de princípios.

[1] Políbio [200?:120?a.C.], HJkfór:üs(111,6,7) [2] Na expressãode Virgílio(.Ebeuda,Vl1, 40): ':Urordb pugnam': [31 Publius [4] Tltus

Vergilius

Livius

Mano [71-19 a.C.], Ea?buda (Vl1, 483).

[59 a.C.-17

d.C.], .4ó Z:4.óe Gonc#Éa (Xl;VI 22.5).

[5] Certamente não há praticamente nação que tenha sido durante tanto tempo tão escrupulosa em examinar as causas da guerra que empreendia. Políbio, numa passagem mencionada por Suadas, na palavra eHl3atvelv, diz que 'bs romanos

eram muito cuidadosospara não atacar porprimeb'o seus vizinhos é fazer de ta]

nodo a .qão tomar em armas senão premidos pela necessidadede rechaçar

SR'%'U=.==::u=='.::.'Tll.Si::liÉ#llE ill:Ê

dor há a seguintepassagemem .EkcerpfaüFaÉJbnum:'í2s anÉzkos náo taháam que prezassem tanto como de não empreender nenhuma guerra que não fosse /usóa. " Encontra-se

ainda

a mesma

ideia

em

rcerfa

/)eiFescz'nna:

't)s

:omanos têm todo cuidado para somente empreender guerras justas e nada incidir a respeito sem causa e de modo temerário." [6] Diodoro

da Sicí[ia[séc.

] a.C.],

Bló]yofeca

.iZikfódca(XIV.

17).

[7] AtzatopaTa, disse Procópio(GafÉülc., livro 111,34). Acrescente-seo que será dito mais adiante, neste livro, no começodo capítulo XXll

282

H ueo GROTlus

2. Essas causasjusti6lcativas pertencem propriamente a nosso tema. Aelas se referem as seguintes palavras de Coriolano, em Dionísio de Halicarnassol8l:

"A primeira coisa, ao que parece, que deveis cuidar

é de fazer com que a causa de vossa guerra seja honesta e justa." E também esta passagem de Demóstenes [9]: "Do mesmo modo que nos edifícios, nos navios e em outras construções similares, as peças que servem de base devem ser extremamente sólidas, assim também deve

ser com re]ação às açõesempreendidas, cujas causas [lO] devem se conformar com a justiça e a verdade." Dion Cássio [11] se refere ao mesmo tema ao dizer: "E preciso ter em vista sobretudo a justiça. Com

ela, nossosesforçosde guerra nos permitem ter uma boa esperança; sem ela, nada há de seguro, mesmo quando os inícios tiverem respondido a nossos desejos." E ainda esta pa]avra de Cícero [12] : 'injustas

são

as guerras empreendidas sem motivo." Por isso, em outro ]oca] [13] , repreende Crassus por ter decidido atravessar o Eu6'ates sem ter motivo algum de guerra [14] .

3. Estesprincípios sãoverdadeiros tanto para as guerras públi cas quanto para as guerras privadas. Daí essaqueixa de Sêneca [15] "Reprimimos os homicídios, o assassinato de um homem, mas as quer

[8] Dionísio de Ha[icarnasso[séc. ] a.C.], ,4nÉzkü/Jades.Romanas(V]11, 8).

[9] Demóstenes [384-322a.C.],OZzhÉI'aas (]], lO). [10] Assim é que Juliana se serviu da pa]avra

no0eata(ll, De Zaudlbus (%nsfantzD.

[11] Dion Cássio [155?-235?], .1?lbóóe7b -RomanaQ(L], 32). [12] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], .DeRe PÜÓ/Jca (111,23,34). [13] Idem, Z)e.Fb?JÓus (111,22,75). [14] Apiano(aa'},ü, 11,18) diz que os tribunos proibiram ao próprio Crasso 'tíe mover

guerra aos partas, dos quais não se regístrava nenhuma afronta". ?\utaxco (alHssus, 552 B), a respeito do mesmoconta: 'B/u/fos esfaHamúzdlknados ao ver um homem ir atacar gente de que não se havia recebido qualquer afronta e, além do mais, era protegida por uma aliança.

[15] Lucius Annaeus Seneca[01?a.C.-65 d.C.], @)]kfuJaead .LuciZlum(XCVI30).

CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESADE SI MESMO E DOS BENS

283

ras, os massacres das nações se transformam em crime coroado de glóriasA ambição, a crueldade não conhecemmais 6'eio. E por ordem do senado, em nome do povo, que se praticam os mesmos horrores e ordenámos aos cidadãos em massa o que proibimos aos privados." [16] ];1 verdade que as guerras empreendidas pela autoridade pública têm cer-

tos efeitos de direito, como as sentenças;disso,se falará mais adiante (cap. 111e IV). Não são, porém, menos criminosas, se empreendidas sem motivo. Por isso é com razão queAlexandre, ao empreender sem motivos a guerra contra os persas e outras nações, é chamado pelos citas, em Quinto Cúrcio [17] , e por Sêneca [18], de ]adrão, por Lucano [19] , de sa]teador, pe]os sábios das ]ndias [20], de ce]erado, e um pirata

o chamouum dia de companheirode crimes [21]. Seupai Fi]ipe tinha agido da mesma forma, quando havia despojado,como narra Justino [22], de seu reino dois reis da ']\'ácia, usando com e]es de má-fé e da

perversidade de um ladrão. Aqui cabem estas palavras de Agostinho [23] : "Suprimi

a justiça, pois que são os impérios, senão grandes ]atro-

cínios?"Lactâncio [24] concorda com isto, ao dizer: "Dominados pe]o engodo da vangloria, eles dão a seus crimes o nome de virtude."

[16] O mesmo Sêneca(.De J}'a, 11, 8) diz: 'y g7á:fa prosüfui21n poz' alas quq soó o reízzo das 7els, são czímes..."Acrescente-se

as passagens de Sêneca e de Cipriano

que serão citadas mais adiante, no !iwo 111,cap. IV. $ 5, no final.

[17] Quintus Curtius Rufus]séc. ] d.C.], ,fiisfóz:fadeAexzndre(V]1, 8, 19). [18] A passagem consta na obra .De .Bebe/}bíís(livro ], cap. X]]]). Justino mártir (dpo.laFeüaus,11)diz com razão que 'bspz:úczbesque pre/irem sua manelm de

ver a verdade têm um poder análogo ao que têm os bandidos num deserto". Segundo Fílon, são homens que 'bomefem grandes /oaóos e, soó o nome honroso,de governo, dissimulam coisas que, pelo próprio fato, não são senão banditismo [19] Marcus Ahnaeus Lucanus [38-65], .1)Zarpa/lb (X, 21). [20] F[avius Arrianus]95?-165], Exp. .4/ex.(livro V]], ]). [21] Aure[ius Augustinus]954-430], Z)e C#wfafe .Dev(]ivro ]V] cap. ]V) [22] Justino, V]11, 3,15. [23] Aure[ius Augustinus]354-430],

Z)e Ca'wfafe Deu (]X 4).

[24] Caeci[ius Firmianus Lactantius]séc. ]V d.C.], Duçahar zm .ZnsÉ]'fuüanum(]ivro

ç.,De falsa relígione, t8b.

284

H U GO GxoTius

4. Não pode haver outra causa ]egitima da guerra [25], a não ser uma afronta recebida. O mesmoAgostinho [26] escreve:"Ainiqüidade

da parte contrária produz guerras justas." Ele se serviu do termo iniqüidade por injúria, como se tivesse dito injustiça, querendo exprimir

uma açãoinjusta. Esseseram osdizeresque o arauto romano carregava: "Eu vos tenho por testemunhas que este povo é injusto e que não L cumpre o que deve." [27]

11

Elas provêm da defesa, da exaçáo do que é nosso ou do que nos é devido ou ainda da pena 1. Quantas forem as fontes de processo,tantas serão as causas

de guerra, pois onde as vias da justiça fazem falta, a guerra começa.As ações na justiça se dão por causa de injúria não feita ou por causa de

injúria feita. Por causa de injúria não feita, quando, por exemplo, a açãotem por objeto pedir cauçãopara que não haja ofensa efetiva, garantia que haverá reparação do dano iminente ou outros interditos que

se opõem à violência que poderia ser feita. Por causa de uma injúria feita, seja para obter reparação,sejapara levar a infligir ocastigo. São duas fontes de obrigações que P]atão [28] distingue com exatidão, no livro IX de seu tratado das Leis [29] . A reparação refere-se ao que nos

[25] Sylvest., De Be]lo, p. 1, n.' 2. [26] Aure[ius Augustinus

[354-430], Z)e C wfafe Z)ez(XIX, 7)

[27] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4ó CüóeCbnd)Éa (1, 32,10).

[28] Antes dele, Homerohavia feito essadistinção. Comoos perseguidoresde Penélopeofereciam uma compensação,Ulisses lhes respondeu (Odíssézb,XXII.

3\): "Mesmo se me restituísseis todos os bens paternos que me tirantes e lcrescentásseis outros a eles, eu me abateria de sujar minhas mãos com vosso

ringue? antes que tivésseis expiado todos os vossoscrimes, pretendentesl' Segundo Cassiodoro(livro V .qpúfo/a XXXV), 'be /enuncümos ao dü.dfo de punir, devemos pelo menos não levar qualquer prejuízo". }ürescenXe-sea qÀxe será dito mais adiante, neste livro, no começodos capítulos XVI e XX

[29] P[atão [427?-347?a.C.], .4s Zeuk(]X, 6)

T

285

CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESA DE SI MESMO E DOS BENS

pertence ou nos pertenceu, de onde decorrem as açõesreais e certas ações pessoais. Refere'se também ao que nos é devido em virtude de um

contrato, de um delito ou da lei, ao qual é necessáriorelacionar as obrigações que nascem de um quase contrato e de um quase delito. Estes diversos tipos principais são a fonte das outras ações pessoais. O fato de

que se pede punição produz a acusaçãoe os julgamentos públicos. 2. A maioria

dos autores [30] assina]a três causas ]egítimas às

guerras: a defesa, recuperação do que nos pertence e a punição. Essas

três causasse encontram na denúncia da guerra feita por mamilo aos gauleses: "Todas as coisas que é permitido defender, recuperar e punir"

[3 1].A menos que se dê ao termo recuperar um significado mais amplo, omite-se nesta enumeração a busca do que nos é devido. P]atão132] não a esqueceu, quando disse que se faz a guerra não somente quando se está oprimido pela força ou despojadode seus bens, mas também quando a gente foi enganado. Esta passagem de Sêneca]33] tem relaçãocom este Pensamento:"E uma palawa cheia de equidade e fundada no direito das nações: devolve o que deves." Havia estas palavras na fórmula dos sacerdotes feciais: "As coisas que não deram, que não pagaram, que

não fizeram e que deviam dal, fazer,pagar"]34] . Nas histórias de Salústio [35], pode-se ]er: "Em virtude do direito das nações, eu peço de volta o

que me pertence." QuandoAgostinho [36] diz "Costuma-se chamarjus-

[30] Baldus, Hd Á:& 2, C]bd.de serrlf. et agua, n.' 71; Wilh. Matth., Z)e.Be#oJ'usfoef #c7'fo (início)

[31] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z14.üe(bnc#fa (VI 49,3).

[32] Alcib., 1, 5. [33] Lucius Annaeus

Seneca [O[? a.C.-65

d.C.], .De Z?ene/icúi(livro

]]],

cap. X]V).

134] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z:&.óeOondléa (1, 32,10). [S5] Caius Sallustius

Crispus

[86-36 a.C.], Hzkfoz:rarum,

[36] Livro V[, quaesÉz'o ]0, Super Jogue.

(2míab .]/acre (17).

286

H UGO Gxotlus

tas[37] as guerras que vingam as injúrias", e]e tomou a pa]avra vingar

num sentido geral e o empregou para expressar a idéia defazer reparar. E o que demonstra a seqüência da passagem, onde não se encontra uma

enumeração das partes, mas uma citação de exemplos: "E assim que se deve pressionar uma nação ou um Estado que negligenciou em punir as más ações de seus membros ou de restituir mado.

o que foi injustamente

to-

3. Segundo este princípio de equidade natural, um rei das Índias, segundo narra Diodoro]38], acusava Semíramis de "ter movido a guerra sem ter recebido nenhuma injúria". De igual modo agem os romanos

[39], quando pedem aos senones de não atacar aque]es dos quais não tivessem recebido nenhuma ofensa.Aristóte]es]40] diz que "sefaz habi-

tualmente a guerra contra aquelesque por primeiro cometeram uma injúria". Quinto Cúrcio]41] diz o seguinte dos citas deAbia: "Pareciam ser os mais justos dentre osbárbaros. Não tomavam em armas, a nãa ser quando provocados" [42] . Aprimeira causa de uma guerra justa é, pois, uma injúria que não foi ainda feita, mas que ameaça o corpo ou os bens

[37] Sérvio, em seus comentários ao livro ]X da EJleuda,diz dos romanos: "6?fiando queNam declarar guerra, o chefe dos arautos, isto é, o primeiro dos faciais, se dirigia para as #onteb'as dos inimigos e, depois de algumas fórmulas solenes, dizia em alta voz que declarava guerra por causas determinadas: porque ha-

viam causadoprejuízos aos aliados ou porque não hajam devolvidoanimais que tinham roubado ou criminososrefugiados entre eles.

[38] Diodoro

da Sicí[ia[séc.

] a.C.],

-BÍÓ#ofec-a

.]:i&fárJba(11,

18).

[39] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], ,4ó Cüóe(;bn(Êfa(V] 35,5). [40] Aristóte[es

[384-322

a.C.], Hpodlcücan

(]], cap. XD.

[41] Quintus Curtius Rufus]séc. ] d.C.], J7üfáub daAexandre(V]1, 6,11). [42]

P[utarco,

em

])Tda de ]\galas(539

E),

diz:

':HãrcuJes,

não

fazendo

ouíru

caída

senão se defender, venceu todos aqueles que teve de combater." B.tn .4nükdJdadesJudaicas(XVl11, 9,6) de Josefo se lê: 'Hque/esque chegam ao ponto de cometer aros de violência contra aqueles que não pensavam nada de hostil !evam esses últimos, a contragosto, a recorrer às armas que podem defendê-los."

287

CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESA DE SI MESMO E DOS BENS

111.A guerra é permitida para defender a vida Se nosso corpo é atacado por um ato presente de violência, acarretando perigo de vida, e que não possa ser evitado, nessecasoa guerra é [ícita [43], mesmo até matar aque]e que nos expõe a esseperigo. E o que já dissemos, quando mencionamos essecaso, como o que melhor serve para provar que pode haver guerras privadas que podem ser consideradas justas. Deve-se notar que esse direito de se defender provém,

imediatamente e,em primeiro lugar, da natureza que conülaacadaum de nós o cuidado de nós mesmos, e não da injustiça

ou do crime daquele

que nos expõeao perigo]44] . Mesmo que não fosse de caráter criminoso como, por exemplo, se alguém fizessea guerra de boa-fé, se me tomasse por outro ou se ele fosse presa de algum acesso de loucura ou de agita-

ção moral, como se tem notícia que tenha ocorrido com alguns, essas

circunstâncias não anulariam o direito de se defender,pois basta que eu não aceite suportar o mal com o qual me ameaça, como não o seria se

o perigo viesse de um animal pertencente a outrem.

IV A guerra é permitida somente contra o agressor 1. Discute-se a questão de saber se se pode trespassar ou esmagar pessoasinofensivas que, encontrando-se em nosso caminho, atrapalham nossa defesa ou impedem a fuga, sem a qual não poderíamos evitar a morte]45] . Há autores e até teólogosque acham que é permiti-

[43] Sylvest.,

]z7 verbo .Be/7lzm, pare. ], n.' 3, p. 2.

E44]Bart., adJeg: uf w]n, 22zk:dêlusÉíf. eflu2'e; Ba]d., in /'ep. .C], a ande ld Bann., 2, 2, quaesf. /O, a/í. .ZQduó. u/ó.,'goto, livro ly DllspuÉaf.V aró. l(Z Valent., 2, Z, Disp. 5, quaest. !0, p. 'i. [45]

Card.,

quaesf,

quaest. 2.

J3,

]ivro

];

Petr.

Nav.,

]ivro

]],

cap.

]i],

n.'

147;

Caiem.,

2, 2,

aJ'í.

68

288 H

u60 Gxotlus

do. Certamente, se considerarmos somente a natureza, a atenção devida à sociedade é nela de um interesse bem menor que o cuidado da conservação pessoal. Alei da caridade, sobretudo a lei do Evangelho que coloca o outro no mesmo grau que nós próprios, porém, não o permite de

modo algum.

2. Foi dito com razão por Tomas [46], se bem interpretamos seu pensamento, que numa verdadeira defesa de si mesmo não damos a morte com intenção. Não é que não seja permitido às vezes, se não

houver outro meio de salvação,fazer com propósito deliberado certas coisas que podem acarretar a morte do agressor. Aqui a moi'te, porém, não é escolhida como um meio aditado à primeira vista, desde que isso ocorra numa punição judicial. Recorte-se a ela como num recurso único que se oferece no momento. Aquele que é atacado deveria preíeru:, mesmo no instante do ataque, agir de modo a intimidar ou enfraquecer seu agressor do que Ihe provocar

a morte.

V A guerra é permitida num perigo presente e certo, náo num pressuposto perigo 1.Aqui se requer um perigo presente [47] , como que compreendido num ponto. Confesso, contudo, que se o agressor toma em armas, parecendo ter a intenção de matar, seu crime pode ser prevenido, pois em questões de coisas morais, bem como no âmbito de coisas naturais, não se encontra nenhum ponto que não tenha alguma extensão. Enganam-se muito e enganam os outros aqueles que admitem todo temor, de

[46] .Seaund.

sec'und,

guaesÜo

64, a/f.

].

[47] Ver em Agatias(]V. 2), o primoroso uso dessa distinção. Frínicos, em Tucídides m11, 5aÜ,üz. "Arriscando sua vida pelos lacedemõnios;era bem melhor regar

rer aos últimos expedientesdo que cair sob os golpes de seusinimigos della Fados

289 CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESA DE SI MESMO E DOS BENS

que tipo for, ao direito de prevenir assim um assassinato. Cícero disse com toda a verdade, no primeiro livro de seu 7}a fado dos-Deveres (1, 7,

24), que a maior parte das injúrias têm por origem o temor, como aquele que teme arquitetar um ato prejudicial contra seu semelhante pensando que, se não o puser em execução, ele próprio setornaria vítima de

a[gum dano. C]earco diz em Xenofonte [48] : "Conheci muitos homens que, por uma calúnia ou uma desconfiança, têm medo uns dosoutros e que, preferindo prevenir o mal do que sohê-lo, sobrecarregaram de males

cruéis aqueles que jamais lhes teriam causado semelhantes e que mes-

mo nunca haviam pensado nisso." Catão exclama em seu discurso aos habitantes

de Redes [49] : "Será que nós próprios faríamos antes o que

dizemos que e]es quiseram fazer?" Au]]us Ge]]ius [50] tem essebe]o pensamento: "Quando um gladiador está sob as armas, a condição da luta é a seguinte: ele matará seu adversário, se lutar; sucumbira, se

deixar de lutar. A existência dos homens, porém, não é geralmente ameaçada por uma necessidade tão fatal e tão iminente que seja neces-

sário dar o primeiro golpe, se a gente não quiser ser derrotado logo." Cícero expressa em outro ]oca] [51] e não com menor propriedade a mesma idéia: "Quem jamais estabeleceu este princípio ou a quem pode

ser atribuído, sem expor todos os homens ao maior perigo, que se possa matar legitimamente uma pessoade medoque algum dia a gente possa também ser morto?" Aqui é o lugar para citar essesversos de Eurípides [52] : "Se teu marido, como pensas, devesse te matar, precisaria esperar

para golpe.á-loo momento em que ele atentasse contra teus dias." Esta [48] Xenofonte': [430?-355? a.C.], .4naóasuk (11, 5,3). [49] Au[us Ge[hus [130?-180?], Mocóes.4fÉlcue (V], 3,26). [50] Idem, Abates .4fZz'cue(V], 3,31-32).

[51] Citado por Quintiliano no livro V. -Dereáufaflone,da obra -Z)e]nsüfuüone Orago/:fa (V. 13,21).

[52] Eurípides, fragm. 459, citado por Au]us Ge]]ius, Nocfes .4fÉüae(V], 3,28)

290 H

UGO GROtlOS

passagem de Tucídides [53] é seme]hante: "0 futuro é ainda incerto e

não é preciso se alarmar por isso, de modo a envolver-se em inimizades não futuras, mas presentes." O mesmo Tucídides [54], na passagem em que descreve de modo eloqüente os males que haviam produzido as sedições nas cidades gregas, conta entre o número dos vícios que enumera

"o elogio que se fazia ao que por primeiro tivesse feito o mal que temia que um outro o fizesse". Tito Lívio [55] diz: "Co]ocando-se em guarda

contra o temor, os homens são osprimeiros a setornar temidos [56] e nós próprios fazemos aos outros a Injúria que queríamos rechaçar, como se estivéssemos sido reduzidos à necessidade de fazê-la ou de recebê-la."

Pode-seaplicar aos que assim agem esta palavra de Vibius Crispus, citadopor Quinti]iano]57] : "Quemvospermitiu de ter tal temor'P'Livra, em Dion [58], também diz que esses não podem evitar a infâmia de serem os primeiros

a fazer o mal que temem.

2. Se alguém te ameaça com uma violência que não é presente, mas se foi convencido a tramar alguma coisa contra ti ou de ter armado laços contra ti, se quis te envenenar, dirigir contra ti uma falsa acusação, subornar falsas testemunhas, preparar uma sentença iníqua, não nego que seja possível mata-lo de modo legítimo, se esse perigo não

puder ser evitado de outra maneira ou mesmo se não se tem muita certeza de poder escapar ileso. No mais dasvezes, uma demora oferece

vários recursose causamuitos acidentes,segundoo provérbio que diz: [53] Tucídides [465?-395? a.C.], .]?hfó?:üs da Gue/va do Pe/oponeso (1, 42). [54] Idem, ibidem (111,82)

[55] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], Hb Z]/róeOondJÉa (111,65,11). [56] Assim é que César, quando se apoderou da República, dizia que era coagido pelo

temor que tinha de seusinimigos, A respeito disso, há uma bela passagemem Apiano (.Be#. aa'td., livro ll)

157]Marcus Fabius Quinti[ianus [30?-100?],Z)e]nsZ]'fuúoneOrafoz:ü (V]11,5, 15). [58] Dion Cássio [155?-235?],Hzkóór7b -Romana(IVI 16).

291 CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESADE SI MESMO E DOS BENS

"Entre

a boca e o bolo." Não faltam, porém, teólogos e juristas

que es-

tendem muito mais sua indulgência. A outra opinião, que tem melhor fundamentação e é mais segura, não está desprovida de partidários]59]

.

VI. A guerra é permitida para a defesados membros Que dizer do perigo de mutilação de algum membro? Como a perda de um membro, sobretudo se um dos principais, é certamente [60] um ma] muito grande e que quase igua]a a perda da vida, a]ém do que não se tem segurança se não acarreta a seguir um perigo de morte, acho que, se é impossível evita-lo de outra forma, é permitido matar aquele que ameaça com este perigo

VII. A guerra é permitida sobretudo parda defesadopudor Não há quase discussão sobre a questão de saber se a mesma coisa é permitida para a defesa do pudor, porquanto não somente a opinião comum, mas também a ]ei divina, igua]am o pudor à vida [61].

[59] Bann., quaesf.

64, aJ'í- Z .Z)uó. 4 Ba]dus,

]zz]eg. mu/&íS Cbd de /zberaJI' causa, e

in ieg. 1, Cód, nade vi, Leis., !iwo li, cap IX, Dub. 8, So\n, livro V quaest. l,

art. r 8. [60] Cardin.,

]h C7emení. Su áu/:üsus,

Sy\west,, in verbo liomicidium,

de áom/afd;

Covarruv.,

ibid., pari.

â / .7, n. '2,'

3, quaest. 4.

[61] Soneca\no livro Z)e.BeneHcJ]i(], cap. X]), diz: 'fogo a seFuú' vém essascol)as sem as duais a vida éna verdade possível,mas uma vida pior que a morte, como a iyZerdade, o puúCaqa óoa camsdênaü." SegundoPaulo(Senóent., livro V. tít. XXiXtb: 'julgou-se que não se devia punir quem tivesse matado um bandido

que queria te matar ou cometer qualquer atentado contra teu pudor. Uma coisa é defender a vida e outra o pudor por um ato de interesse público. Agostinho(.De Zü'beroAóiÉz:ó, livro 1, cap. V) escreve: 'H /e/per'm fe fanfo a um

viajante matar um salteador, para ele próprio não ser mano, quanto qualquer

homem ou qualquer mulher de matar, se possível, aquele que quer atentar üolentamente ao pudor, antes ou depois do atentado.

292

H UGO

GROTIUS

Por isso, o jurisconsu]to Pau]o [62] diz que o pudor é legitimamente defendido por um tal ato. Temos um exemplono tribuno de Mário, morto por um so]dado, e que Cícero [63] e Quinti]iano

[64] mencionam. Há

também na história exemplos de homens mortos por mulheres. Caricléia,

em Heliodoro]65], designa semelhante homicídio de "uma defesalegítima para rechaçar a injúria feita à castidade'

VIII. E permitido não se defender Quanto ao que dissemos anteriormente,ou

seja, que é permitido

matar aquele que se prepara para nos tirar a vida, age porém de manei-

ra mais louvável aquele que prefere ser morto do que matar; alguns autores concordam com esseprincípio, embora façam uma reserva em favor da pessoa,cuja vida seria úti] a muitos outros [66]. Acho pouco seguro generalizar para todos aqueles, de cuja vida depende o interesse

de outros, porquanto norma tão contrária à paciência. Por isso, acredito que deva se restringir somente aos que têm o encargo da defesa dos outros, como aqueles destinados a escoltar os viajantes, os chefes de Estado, aos quais podem ser ap]icados essesversos de LucanoE67] : "Porquanto a existência e a salvação de tantos povos dependem desta vida [68] e que um tão vasto universo o aceitou por seu chefe, é uma cruelda-

de querer morrer." [62] -Recepf. Senfemt., Zwo K é#. 2.%& [63] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], .fba .]Z27one(]V. 9). Ver P]utarco (]laar7'us.

413 B, C). Diz-se também que Marte foi absolvido pelo julgamento dos deuses

por ter matado aquele que havia tentado usar de violência com sua filha. Apolodoro (Bló/)'ofega,111,14,2). Acrescente-seuma notável história que se encontra em Gregário de Tours(HJkóol:za.l;hancorum,hwo XI, cap. 27). [64] Marcus Fabius Quinti[ianus[30?-100?],

.Z)ecJamaZlbnes ]]daUaresef .46nares(3).

16õ]He[iodoro[séc.]]]-]V D.C.], Os .EZi;Jpes (1, 3). 166] goto, Zwo V quaesf. /; Sylv., íiz ueróo Be/7um, p..Z n.'á [67] Marcus

Annaeus

Lucanus

[38-65], .1)farsa/lb

(V. 685-7).

[68] Quinto Cúrcio([X, 6,8) diz: 'Quandofe dançascom fanfa ardor ante os pel:Üos mais evidentes, esquecendo que expõemtantas vidas de cidadãos."

r

293 CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESA DE SI MESMO E DOS BENS

IX. A defesa é às vezes ilícita, quando contra uma pessoa que é de grande utilidade para o Estado, por causa da lei da caridade 1. Pode acontecer,ao contrário, que a vida do agressor,sendo útil

a grande número, não seja possível mata-lo sem crime. Isso, não somente em virtude da lei divina, antiga ou nova, leis de que falamos (livro 1, cap. IV. $ 7, 7) quando demonstramos que a pessoa do rei é sagrada, mas em virtude do próprio direito de natureza [69] . O direito natural, considerado como lei, não se refere somente às coisas que orde-

na a justiça, por nós designada de exp]etora [de compensação],mas encerra nele os atou das outras virtudes, comoa temperança, a coragem, a prudência, porquanto o exercício dessasvirtudes, em certas circunstâncias, não é somente honesto, mas obrigatório. A caridade nos impõe, além disso, o que acabamos de dizer. 2. Nem Vasquez [70] me demove desse parecer, quando diz que

um príncipe que ultra] a um inocentecessapelofato mesmode ser príncipe. Nada se poderia dizer de menos verdadeiro ou de mais perigoso, pois o direito de soberania, não mais que o de propriedade, não se perde por um crime, a menos que a lei assim ordene. Não encontramos em parte alguma e acredito que jamais possa ser encontrada uma lei que

declare a perda do poder por parte de um príncipe culpado de haver maltratado um privado, pois isso daria lugar a grande confusão.Para aquilo que Vasquez alega como fundamento de sua teoria e de várias outras cbnseqüênciasdecorrentes, que toda autoridade tem por objetivo a vantagem, não daqueles que comandam, mas daqueles que obedecem, mesmo se isso fosse geralmente verdadeiro, nada acrescentaria à

questão.Uma coisa não vem a faltar, logo que um bem que dela se [69] goto, d]cfo coco(ver nota 66) [70]

Livro

l,

(bnÉrou

.Z#usÉz:, .28.

294

H UGO

Gxotlus

espera venha a faltar sob algum aspecto. Quanto ao que ele acrescenta,

que a salvação da República só é desejada pelos privados no que atinge seus interesses e que, em decorrência, cada um deve preferir sua conservação pessoal à salvação do Estado, este raciocínio não apresenta

muita solidez. Com efeito, se quisermos a salvaçãoda República em nosso próprio interesse, não o queremos somente para nós, mas também para os outros.

3. Por isso é uma opinião falsa e rejeitada pelos mais sensatos filósofos a de crer que a amizade não tem sua origem na necessidade que temos dos outros [71], uma vez que nós nos comportamos assim pelo pendor de nossa natureza. A caridade seguidamente me admoesta e, às vezes, me ordena preferir o bem de muitos ao que seria vantajoso só para mim. Aisso se relaciona essa passagem de Sênecal721: "Se os

príncipes e os reis [73], se os tutores dos Estados, qualquer que seja o título que ostentam, se tornam objeto da mais profunda afeição, mais mesmoque a existente entre privados, não há que se surpreender. Se os bons cidadãos preferem o interesse público a seu particular, essa prece'

rência naturalmente abrange aquele que é o Estado personificado.:

[71] Sênecarefuta essaperniciosa opinião em De BeneHiciis(]ivro ], cap. ], e livro IVI

cap.XVD.

[72] Lucius Annaeus Seneca[01? a.C.-65 d.C.], Z)e(;7emené7b (limo 1, cap. IV).

[73] Plutarco, na Hda de Pe/ lhas(278 D, no início), consideracomoprincipal ato de virtude o de trabalhar para a conservaçãodaquele que conserva todo o resto. Cassiodoro,no livro Z)e.4mJcu'É=b, diz: ':9e a mâq adrerZ]'dapelas o/ZoX percebe que uma espada está para penetrar em qualquer um de nossos mem)ros, ela se expõe aos golpes dessa espada, sem pensar no perigo que corre e ;emenda mais pelo outro membro que por si própria." Depois awescenka: "As-

sim, aqueles que resgatam a vida de seus amospor sua própria morte agem bem, tendo em vista antes a salvação de sua alma que a conservaçãodo corpo íe outrem. A consciência lhes dita que devem ser fiéis a seus amos, por isso parece também razoável que prefiram a vida de seus amos que sua üda corpo' ra]." B dlz mais: "Pode'se,pois, expor salutarmente seu corpo à morte por um princípio de caridade e sobretudo pela salvação de muita gente.

295 CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESADE SI MESMO E DOS BENS

Ambrósio [74] diz também que "todos sentem a mais profunda a]egria

por ter afastado a ruína de sua pátria do que de ter evitado a própria" O mesmoSêneca]75], do qual mal falei, lembra que Calístrato e Rutílio, aquele emAtenas e este em Romã, "recusaram receber seuspenates ao preço do desastre público porque uma injustiça soâ'ida por duas pessoas é preferível ao mal de todos"

X. O ato de matar não é permitido aos cristãos para evitam'um tapa ou ultraje semelhante ou para não ter de fugir 1. Há outros que pensam que aquele que se encontra ameaçado de levar um tapa ou um insulto similar tem também o direito derechaçar esseultraje, matando seu inimigo [76] . Para mim, se for considerada a purajustiça exp]etora [de compensação],não discordo. De fato, embora subsista desigualdade entre a morte e um tabefe, aquele que se dispõe a

me ultramar me dá por isso mesmo um direito ilimitado ou um poder moral [77] de agir contra e]e ao infinito, desde que, contudo, me seja impossível de afastar de outra maneira o mal que quer me infligir. A caridade também não parece nos impor', por si mesma, obrigação em favor do ofensor.Alei evangélica, contudo, torna esseato completamente ilícito. Cristo nos ordena, de fato, receber antes um tabefe que prejudicar nosso adversário. Com maior razão, como não haveria de proibir ÍiÜ[ ÀÚt[;[iéiÕ Íãiio?-397],De O/Hcu M] [75] Lucius Aitnaeus

Seneca [Ol? a.C.-65

üorum (m, 3, za). d.C.], Z)e .Bene#c2is (]ivro V], cap. 37).

[76] Soro,ver nota]66] neste capítulo; Navarr., cap XV. n.' 3; Sylvest., izz verbo Hbmic2dlum, ], guaesÉ.5; Lud. Lopez, cap. 62 [77] Apolodoro(livro

11, 4, 9), ao fa]ar de Lho, escreve: ']:negando a Zeóas e fornan '

do-se cidadão tebano, foi morto por Hércules que o golpeou com uma lira. Como Lho tivesse agredido íiércules, essese irHtou, matando-o. Perseguido

por causa dessa morte, invocou diante dos juízes a }ei de Radamante que declara inocente aquele que causou dano a um agressor.

296 H UGO

GROTIUS

de mata-lo para evitar essetabefe? Este exemplo nos admoesta a nos colocarmos de sobreaviso contra o princípio posto por Covarruvias]78] ,

ao sustentar que o conhecimento humano, não ignorando o direito natural, não tolera que a razão permita alguma coisa que Deus, que é a

própria natureza, não permitiria. Deus, autor também da natureza, mas que pode agir livremente de uma maneira extranatural, tem o direito de nos prescrever leis, mesmo para as coisasque são por sua natureza livres e indeterminadas. Com maior razão ainda, ele tem o direito de nosimpor o dever de fazer coisasnaturalmente honestas, ainda que nãoobrigatórias. 2. E certamente surpreendente que, apesar da manifestação tão evidente da vontade de Deus no Evange]ho, se encontre teó]ogos]79], e teólogos cristãos, que acreditam que o assassinato pode ser não somen-

te cometido de modo legítimo para evitar uma bofetada, mas que depois de ter recebido este ultraje, se aquele que é o autor foge, pode'se mata-lo

para recuperar, como se diz, a própria honra. Esse modo de ver me parece de todo contrário

à razão e à piedade, pois a honra é a opinião da

superioridade de alguém. Aquele que suporta uma semelhante injúria

se mostra paciente ao extremo e, em decorrência, aumenta sua honra ao invés de diminui-la.

Pouco importa que certas pessoas de juízo cor-

rupto traduzam em nomes fabricados por eles esta virtude em desonra. Esses falsos juízos não mudam a coisa em si mesma, nem o valor que reveste. Esta verdade foi notada não somente pelos primeiros cristãos, mas ainda pelos filósofos que disseram que é próprio de espírito tacanho não poder suportar um ultraje, comojá o demonstramos em outro local. 3. Isso mostra ainda quanto é preciso desaprovar o que a maioria[80] assevera, que a defesaacompanhada de morte é lícita em virtude do direito divino(não discordo que o seja pelo simples direito de nature[78] Covarruvias, ver nota]60]

neste capítulo.

[79] Navarr., cap XV. 4; Henr., -DeIrreguZ, cap. 11;Vigor., Z)eJu/e BeZZlln.' 5. .8QÊSo\o, art. 8, quaest. 5, dieta loco, in leg. ut üm, Dig., Dejustit. ],

C]od., ande

}'Ê Vasquez,

Belium, p. 2, n.' 4.

cífafo loco, cap. /8

n.' ]J,

/4

etjure, e in leg.

Sylvest.,

ih reróo

CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA'GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESA DE SI MESMO E DOS BENS

297

za), mesmo quando se pode fugir sem se expor ao perigo e isso porque a fuga é ignominiosa, quando se trata sobretudo de um homem que des-

cende de família distinta. Não há nisso, porém, nenhuma ignomínia. Há somente uma fHsa opinião de desonra, digna do desprezo de todos os

que aspiram à virtude e à sabedoria. Sinto-me honrado de ter a respeito disso, entre os juristas, o assentimento de Char]es Du Mou]in [81]. O que falei da bofetada e da fuga eu o aplico às outras ofensas que não

atingem a verdadeira honra. Quedecidir, no entanto, sealguém diz a nosso respeito coisas que, se lhes dermos fé, devem alterar nossa repu' ração junto à opinião dos honestos? Há autores que ensinam [82] que

essecaluniador também pode ser morto. Está completamente errado e

contrário igualmente ao direito de natureza, porque este assassinato não é um meio próprio para proteger nossaprópria estima.

XI. O ato de matar náo é ilícito, de acordo como direito de natureza. paraadefesa de seus bens Vamos tratar das injúrias que sãofeitas contra nossos bens. Se consideramos a justiça expletiva ou comutativa, não negaria que em vista da conservação de nossos bens, o raptor, se necessário, não possa ser morto. A desigualdade que se observa entre um bem e a vida é, como já o dissemos, compensada pela condição favorável do inocente e o papel

odioso dadyele que o despoja. Segue-seque, se considerarmos apenas essedireito)f) ladrão que foge levando nosso bem pode ser abatido por nosso dardo, se é impossível recuperar de outro modo os objetos rouba-

[81] in addT . adAex. canis. l/g [82] Petr. Navarr., ]ivro X], cap. 111,n.' 376

298

H

u60 Gxotius

dos. Demóstenes [83], em seu discurso contraAristocrates, exc]ama: "])elos deuses, não é coisa dura e injusta, não somente contrária às leis

escritas, mas ainda à lei comum de todos os homens, que não me seja permitido usar violência contra aquele que rouba meus bens, como inimigo?" Apropria caúdade, considerada puramente como preceito, todas

asleis humanas e divinas colocadasà parte, não seopõede forma alguma, a menos que se trate de uma coisa de valor mínimo e, por conseguinte, que mereça ser desdenhada. ]lsta distinção é, com razão, acres-

centadaporalguns.

XII. Em que medida é permitido o ato de matar pela lei de Moisés 1. Vejamos qual é o sentido da lei hebraica (Êxodo XXl1, 2), com a qual concorda a antiga lei de cólon (ver anteriormente, livro 1, cap. 111,$ 11,2) que Demóstenesmenciona em seudiscurso contra 'llmocrates e que foi a fonte da ]ei das Tábuas [84], bem como uma máxima de Platão, do livro IX de seu tratado das Leis. Todas as leis concordam sobre esse ponto, em que se distingue o ladrão de noite com o ladrão de

dia. Há dúvida, porém, sobre a razão da ]ei. A]guns acham [85] que não se teve em vista senão uma coisa: é que, de noite, é impossível discernir se o que aparece é um ladrão ou um assassino,

de onde a permissão

de

mata-]o como se fosse um assassino. Outros [86] co]ocam a razão da

[83]

Demóstenes

[384-322

a.C.],

(2raüo

in MTbfmrafem

(61).

[84] Pode'se acrescentar uma ]ei dos visigodos(]ivro V]], tít. ]], cap. XV]) e a capitu lar de CardosMagna(livro V. cap. 191). Em virtude de uma lei dos lombardos,

aquele que entra de noite no terreno de outro pode ser morto, salvo que se deixe prender. [85] goto, dicto ]oco, ver nota]66] deste capítu]o; Mathesi]anus, nofaól7. .7Jâ Jas. e

Gom., ]nsÉa'ftzf, de acf. ín pn, ]l'w'o .rV 6 Covarruvias, (Züfo.]mo,ver nota]60] deste capítulo, [86] Covarruv.,

/ .Z, n. 'ibl'

decylno, Leis.,

dlbfo ]mo; August.,

dica., cap. iX, Dub. Xi, n,' 66.

.Z)uó. .XZI n. ' 68.

c2'faó. ]zl cap. SI'pez #odlems, .De Homiddlo;

Lessius,

T.

CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESA DE SI MESMO E DOS BENS

299

diferença em que, durante a noite, o ladrão passa despercebido e as coisasroubadas parecem poder ser menos facilmente recuperadas. Quan-

to a mim, os autores dessasleis parecem não ter em vista nem um nem outro desses motivos. Ao contrário, eles quiseram dizer que não se pode

matar ninguém exatamente por causadosbens. Isso teria acontecido, por exemplo, se eu tivesse atacado com minha arma o ladrão em fuga, a fim de recuperar, depois de tê-lo matado, aquilo que me pertence. Se

eu mesmo, porém, estou exposto ao perigo de perder a vida, esseslegis-

ladores pensaram que, em tal caso, me seja permitido afastar de mim esseperigo, mesmo se eu comprometesse a vida de outros, além de não encontrar obstáculo algum na circunstância em que eu mesmo me te-

ria exposto a esseperigo, procurando conservar meu bem ou a retoma-lo ou, ainda, a agarrar o ladrão. Em todos essescasosnão sepode imputar nada, tendo agido de uma maneira lícita, e não me torno culpado de nenhuma injustiça, porquanto faço uso de meu direito.

2. A diferença que existe, portanto, entre o ladrão noturno e o

ladrão diurno consisteem que, de noite, é difícil encontrar testemunhas e, em decorrência, seo ladrão é encontrado mortalmente ferido, dá-secrédito mais facilmente ao que afirma tê-lo matado para defender sua vida, sobretudo se o ladrão for encontrado munido de algum instrumento que podia Ihe servir para atacar. Ê o que entende a lei hebraica

que fala de um ladrão surpreendido no ato "de abrir uma brecha no muco", seguindo a tradução de alguns, ou surpreendido "com um ins-

trumento »róprio para perfurar", segundooutra versão,talvez mais exata. Essa.é o sentido que os mais sábios dentre os hebreus dão ao termo empregado no capítulo 11,versículo 34 de Jeremias. Somoslevados a essa interpretação pela lei das Doze Tábuas que proíbe matar o

ladrão diurno, soba reserva de que não estivessese defendendocom uma arma. Contra o ladrão noturno existe portanto a presunção de que

se tenha defendido com uma arma. Sob a designaçãode arma enten-

300

H

UGO Gxotlus

de-seum ferro, um bastão,uma pedra, comoo fez notar Gaio [87] a respeito dessa mesma ]ei. U]piano]88] sustenta, ao contrário, que aquilo que se afirma, ao matar o ladrão noturno, que se age com impunidade; isso deve ser entendido exclusivamente no caso em que não se pudesse pou'pá-lo, sem se expor a si mesmo ao perigo, isto é, na tentativa de salvar seu bem.

3. Existe, portanto, como já falei, uma presunção em favor daquele que matou um ladrão durante a noite. Se,por acaso, houver tes-

temunhas presentese sefor con6rmadoque aquele que matou oladrão não estava expostoao perigo de perder sua vida, esta presunção cessará e, em decorrência, aquele que matou será acusado de homicídio. Acres-

cente-seainda que, valendo tanto para os ladrões noturnos comopara os diurnos, a ]ei das DozeTábuas, como afirma Gaio]89], exige daquele que os surpreendeu que dê conhecimento por meio de gritos, a ãm de que, se possível, os magistrados ou os vizinhos acorram para prestar socorro ou para servir de testemunhas. Como tal concurso ocorre mais facilmente de dia que de noite, como o observa Ulpiano na passagem de

Demóstenes que acabamosde citar, resulta que damos mais crédito ao

que afirma ter corrido perigo de vida durante a noite. 4. Há alguma coisa de análogo nesta disposição da lei hebraica (Deuteronâmio XXl1, 23) que pretende que se dê crédito a uma jovem, se e]a se queixar de ter sido vio]entada no campo [90] e não na cidade,

t81\ I'. si pignore, $ ãlrem. Dig. de fiutis. B8« L ferem, Dig., adleg. Carne!. de sicariis. t89ÃL ataque, Dig., ad Leg. Aquiliam. [90] Fílon faz notar com razão que o ]ugar é a]egado somente comoo exemp]o mais comum e não como se fosse preciso ter sempre relação com essa única circunstância. Podeocorrer, de fato, comoo diz em seu livro .DeSpeafa/obus.Leg7b,que

no meio de uma cidade, uma jovem sofra uma violência porque Ihe teriam tapado a boca e que, num campo, uma jovem possa consentir em ser desonrada.

301 CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESA DE SI MESMO E DOS BENS

onde ela poderia e deveria fazer acorrer gente por seus gritos. Acrescente-se ao que acabou de ser dito que, todas as coisas iguais, os aconteci-

mentos que se passam à noite, podem ser menos facilmente constatados,apreciados com menos precisão em sua natureza e extensão e que são mais terríveis. O que a caridade aconselha, sendo que as leis hebraica

e romana o ordenam aos cidadãos que regem, é saber que não se deve matar um ladrão só porque subtraiu algum bem e que não é permitido fazê-lo a não ser quando aquele que quer conservar seu bem se encontrou ele próprio em perigo de sucumbir. Moisés Maimânides observou

que o assassinato de outrem não é permitido a um privado, a não ser quando setrata de conservar aquilo cuja perda é irreparável; por exem-

plo,avidaeopudor. XIII. Se e em que medida é permitido

o ato de matar pela lei do Evangelho 1. 0 que vamos dizer agora da lei evangélica? Que ela permite o

Ü (,0

que a lei de Moisés permitia ou que, lendo mais perfeita que a lei de Moisés sob vários aspectos, exige nesse ponto mais de nós que não a

.=

outra lei? Para mim, não duvido que exija mais. Com efeito, se Crista nos ordena abandonar nossa túnica e nossomanto, sePaulo quer que

(:.)

aturemos algum dano injusto antes de entrar com processo, quando o sanguenão for derramado, quanto mais não pretenderia que se renunciasse a coisas mesmo de maior valor, antes de matar alguém que é a

imagem de Deus, que nasceu do mesmo sangue que o nosso?Assim pois, se se puder salvar o próprio bem semse expor ao perigo de cometer

um assassinato,certamente é permitido fazê-lo,do contrário se deveria renunciar a tudo o que nos pertence; a menos que, todavia, se trate de uma coisa de que depende nossa existência e a de nossa família, que seja impossível recupera-la senão através da justiça porque, por exemplo, o ladrão seria desconhecidoe que haveria alguma esperança que a coisa se resolveria sem morte.

J E.L

302

H UGO GROTlus

2. Em nossosdias quase todos os autores, juristas e teólogos [91] ,

ensinam que é permitido, em defesa dospróprios bens, matar um homem, mesmo fora dos casosqu'e a lei de Moisés e a lei romana autorizam, quando, por exemplo, o ladrão fugiu depois de se ter apoderado do bem. Não duvidamos, contudo, que a opinião que emitimos é aquela dos antigos cristãos. Agostinho [92] tampouco duvidava disso, segundo se pode botar nessas palavras: "Como podem estar isentos de pecados dian-

te da divina Providência aqueles que, por coisas que devemos desprezar, se sujam de sangue humano?" Não é de estranhar que nesta matéria, como em muitas outras, a discip]ina]93] decaiu com o tempo e que, pouco a pouco, a interpretação da lei evangélica tenha começado a se

adaptar aoscostumesdo sécu]o[94]. Outrora, no que dizia respeito aos clérigos, tinha-se o costume de observar o rigor da antiga regra, mas,

enfim, se preferiu relaxar a censura a respeito.

XIV Se a lei civil que permite matar em legítima defesa dá o direito de matar ou somente a impunidade? Alguns seperguntam sea lei, ao menosa lei civil, comrelação ao direito de vida e de morte que Ihe pertence, permite em algum caso o cidadão privado matar um ladrão, se esta lei tem, ao mesmo tempo, o poder de isentar de toda culpa o assassino. Acredito que isso não possa ser

de todo concedido,porquanto, em primeiro lugar, a lei não tem o direito

[91] foto,

J

draft .üro, a/f.

8; Lessius,

Z)uó. .XZI n.' 74 Sylvest.,

ih verbo .Be#um, .g n. '

[92] Aure[ius Augustinus [354-430], Z)e Zzbero4róiír2b (1, 5,13). [93] Jerõnimo,

em

Wfa .ã/a/cá:'(1),

escreve:

'Z)esse que a lgrqb

começou

a fer

magistrados cristãos, se tornou mais !ica e mais poderosa,mas menos vírtuo sa." Vex Can. Suscepimus, De Homicídio Voluntário e Can. de his, Disthct. l. [94] Panorm.,

cap. ]], Z)e .fZomfa7d]]k] Lessius,

(ücáp coco.

CAPÍTULO 1 - DAS CAUSAS DA GUERRA E PRIMEIRAMENTE DA DEFESA DE SI MESMO E DOS BENS

303

de morte sobre todos os cidadãos para qualquer delito, mas somente

para um crime de tal modo grave que mereçaa pena de morte. A opinião de Scot é bastante verossímil, quando sustenta que não é permitido condenar alguém à morte a não ser por delitos que a lei de Moisés puniu com essa pena [95] . Pode-se acrescentar somente que é vá]ida para os que sãoiguais, ajulgar corretamente. Parece,comefeito, que num assunto de tal gravidade, não se saberia conhecer melhor a vontade de Deus, a única capaz de deixar a consciência em paz, a não ser por

essa lei que, certamente, não estabeleceu a pena de morte contra o ladrão. Alei, além de mais, não pode dar e não tem o hábito de conceder aos cidadãos privados o direito de matar mesmo aqueles que merecem

morrer, a menos que se trate de crimes realmente atrozes. Casocontrá-

rio teria sido inútil criar a autoridade dostribunais. Assim pois, se algumas vezes a lei diz que se pode matar impunemente um ladrão, deve-se considerar que ela suprime a aplicação de uma pena, mas não que conceda um direito.

XV Quando o combate pessoal é lícito Do que dissemos resulta que há duas maneiras pelas quais os cidadãos privados podem entrar em luta particular sem cometer crime.

Primeiro, quando o agressor permite ao que ele ataca de lutar, estando resolvido a mata-lo sem luta, se esse não se defender. Em segundo lugar, se o rei ou o magistrado põem na prisão dois condenados à morte;

neste caso, lhes será permitido agarrar-se a essa esperança de salvação.Aquela., porém, que deu essaordem pareceria que se desincumbiu de modo imperfeito de seu dever, uma vez que teria sido preferível, no caso em que o suplício de um só dos condenados parecesse bastar, esco-

lher pela sorte aquele que deveria morrer. [95] Contra as ]eis que liunem os camponesesque caçam,ver: Gregário de Touro (.H/sforubn'ancorum, livro X, cap. 10), João de Salisbury (/lbiybraéü.,livro l, cap. IV), Pierre de Blois(Ed)i8foJa

(2;(XZ;D.

304 H UGO

GROTIOS

XVI. Da defesa, numa guerra pública O que dissemos até aqui sobre o direito de defender a própria pessoa e os próprios bens diz respeito sobretudo, na verdade, à guerra privada. Deve-se,contudo, aplica-]o também à guerra púb]ica [96], ]evando em consideração a diferença do assunto. Na guerra privada, de fato, o direito é como que momentâneo. Cessa no mesmo instante em

que a circunstância permite de se dirigir ao juiz. A guerra pública, porém, que surge somente quando os tribunais são supressos ou ces-

samde ter autoridade, seprolonga e serealimenta continuamentepela sucessão de novas culpas e novas injúrias. Além disso, na guerra priva-

da setem geralmente em vista a simples defesa,enquanto ospoderes públicos possuem, com o direito de se defender, também aquele de se vingar. Por isso lhes é permitido prevenir um ataque que não é anual, mas que parece uma ameaça, mesmo distante; não diretamente, pois já

falamos anteriormente que isso seria um ato injusto, mas indiretamen-

te, punindo um crime que apenascomeçou,masnão seconsumou ainda. Disso trataremos mais adiante.

XVH A defesa náo é permitida somente quando se pl'etende diminuir o poder de um vizinho Não se pode tolerar o que a]guns disseram [97], que em virtude do direito das naçõespode-setomar livremente em armas para reâ'ear uma potência que se desenvolve e que, depois de se estender demasiado,

[96] Amiano(livro

XXl11, 1, 7) diz que 'g uma /e/ gera/ eperpóóua penal'&ü' deáencür

sua vida de qualquer maneira, quando se é atacado por um inimigo estrangei/'o. sem que o costumepossa nos áü'al' esse (ü.eu'óo"O imperador Alexandre se exprime assim, segundo Herodiano(livro VI, 3, 4), em seu discurso aos soldaüos="Aquele que por primeiro ataca os outros não pode sejustinlcar, mas aquele

lue rechaça os ataques do outro haure confiança em sua boa consciência e se convence com boa esperança de que não comete injustiça, mas que se limita a

se preservar. [97] Alberico

Gentile,

-De Jw'e .Be//I'(livro

1, cap. 14).

T

305 CAPÍTULO1 - DASCAUSAS DA GUERRAE PRIMEIRAMENTEDA DEFESADE SI MESMO E DOS BENS

poderia tornar-se prejudicial. Confesso que, quando se delibera sobre a

1,

guerra, pode-se tomar essefato em consideração, não como uma razão dejustiça, mas como uma razão de interesse, de modo que se a guerra

é justa por outro motivo, esta segundarazão faz ver que é também prudente empreendê-]a. Os autores [98] que a respeito citamos concordam com isso. Que a possibilidade, porém, de sermos atacados nos transforme em agressores é contrário a todo princípio de equidade. A existên-

cia humana é tal que jamais haveremos de conquistar uma segurança completa. E à divina Providência, a precauçõesinofensivas e não à força que se deve pedir uma proteção contra os temores incertos.

XVUI. Não é também ao que deu motivo justo para que Ihe seja movida guerra 1. Não desaprovo o que esses autores difundem [99] , isto é, que a

defesa é justa da parte daqueles mesmos que provocaram a guerra,

uma vez que poucaspessoas se contentam em limitar a vingança à extensão da injúria recebida. Esse temor de uma coisa incerta não pode

dar direito a executar atou de violência. Assim, o criminoso não tem o direito de resistir pela força aos agentes da autoridade que querem agarra-lo, sobo pretexto de recear que venha a ser punido mais do que seu cume merece.

2. Aquele, porém, que se tornou culpado de algum crime contra o outro dêle, antes de mais nada, dar satisfação ao que ele lesou. Então suas ancas serão puras. E assim que Ezequias (27-RelêXVl11, 14 e XIX), depois de ter violado a aliança que seus antepassados tinham celebrado com o rei da Assíria, vendo-se atacado, confessa sua falta e

[98] Ba[d., .Zz? ]ep: J, .De J?eram 22íws2ame.

[99]Alberico Gentile, De Jure Beib'(]iwo ], cap. 13); Casta.,livro V] De JusZI'üa

306

H

UGO Giottus

deixa a critério do rei a fixação da reparação que Ihe deve. Depois de ter agido dessa forma e sentindo-se premido pela guerra, com a consciência

em paz sustentou o ataque de seus inimigos e teve Deus de seu lado. O

samnita Pontius [100] , depois de ter feito a restituição devida aosromanos e de lhes ter entregue o autor da guerra, lhes diz: "Expiamos

tudo o que a violação de nossaaliança tinha atraído sobre nós com relação à ira por parte dos deuses. Sei perfeitamente

que esses mesmos

deuses, que nos reduziam à necessidade de proceder à restituição, não

se agradam em ver que os romanos desprezaram tão orgulhosamente a satisfação oferecida pela violação do tratado." Logo acrescenta: "Que mais devo, ó romano? Que devo à aliança, que devo aos deuses, árbitros

do tratado? Que farei de tua ira e de meus suplícios? Não desprezo ninguém, povo ou cidadão privado!" De igual modo, quando os tebanos

haviam oferecido toda espéciede satisfação razoável aoshabitantes de Lacedemânia, estes não se contentaram

[lOl[; entãoAristides

[102] de-

clara que a boa causa tinha passado deles aos tebanos.

[100] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4b [i}.óe Gondlfa(]X, 1,3). [lOl] Ver Zonaras, a respeito do príncipe Chalep que havia oferecido ao imperador romano Argyropolus a paz e o pagamento dos atrasados dos tributos que devia.

Encontra-se algo de semelhante em Cromer(limo XVII), a respeito dos cruzados.A propósito dos suíços que haviam oferecido satisfação a Carlos de Borgonha

por uma carroça de peles de ovelha subtraída a mercadores,ver Philippe de Commynes (livro VID. [102] Aristides,

.[eucáz:üa .[

11

DASCOISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

Sumário 1. Divisão do que énosso.

ll. Origem e histórico da propriedade. 111.Certas coisasnãopodem se tornarnossa propriedade, como

o mar tomado em sua totalidade ou em suas principais partes e por qualrazão. IV Os territórios

não ocupadospertencem a quem deles se apo'

deram,salvo se um povo não tenha tomadoposse de sua totalidade. V Os animais selvagens, os peixes, as aves pertencem ao pn' qieiro ocupante, salvo lei que se oponha a isso.

Vlx'Os homens têm direito, em caso de necessidade,de usar )oiças que se tornaram propriedade de outrem. De onde vem esse direito?

VII. Esse direito existe, a menos que a necessidade possa ser

estada de outra forma. VIII. Esse direito existe, a menos que a necessidade seja igual, do !ado daquele que tem a posse.

IX. Deve-se acrescentar o dever de restituir, se houver a posei'

bilidade derestituir. X. Exemplo dessedireito nas guerras. XI. Oshomens têm direito, para seu uso, sobre as coisas que se

tornaram propriedade de outrem, se o proprietário não so-

frer nenhumdano. XII. Disso provém o direito sobre a água corrente.

XIII. i)isso provém o direito de passagempor terra e por água; explicações.

XIV Pode ser aplicado um pedágio sobre as mercadorias em

trânsito? X\( Direito de residência por tempo limitado. XVI. Direito de residência aos que foram expulsos de sua pátria, contento que se submetem às leis do país. XV.[l. Direito de se apoderar de locais desejos; como se deve en ten der isso.

XVIII. Direito aosates que a vida humana exige.

XIX. Como comprmas coisasnecessárias. XX. Comonão sepode vendersuaspróprias mercadorias. XXI. Direito

de procurar

casamento;

explica ções.

XXII. Direito defazer o queépermitido a todososestrangeiros, sem dist;unção.

XXlil. Isso deve ser entendida a respeito das coisas permitidas

em virtude do direito natura! e não daquelas que o são

porpurofavor. XXIV: Se um contratofeito com um povo, para obriga-io a ven

dersuas mercadorias a um povo indicado enão a outro, é lícito.

r

309 CAPITULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

]'

1. Divisão do que é nosso Consideraremos em segundo lugar, entre as causas da guerra, a aõ'onta recebida, e em primeiro lugar a cometida contra o que é nosso. Certas coisas são nossas por um direito comum a todos os homens e

outras por um direito que nos é particular. Comecemospelo direito que é comum a todos os homens. Essedireito tem por objeto diretamente uma coisa corporal ou certas ações.As coisas corporais não sãopropriedade de ninguém ou já pertencem a alguns. As coisas que não são pro-

priedade de ninguém não são suscetíveis de apropriação ou podem sê-lo. Para melhor compreender isso deve-seconhecerqual a origem da propriedade, o que os juristas chamam de domínio.

ll. Origem e histórico da propriedade 1. Logo após a criação do mundo, Deus (GénesJb1, 29-30; IX, 2) conferiu ao gênero humano um direito geral sobre as coisas dessa natu-

reza inferior e renovou essa concessãoapós a regeneração do mundo pelo dilúvio. Como diz Justino

[1], "todas as coisas ficavam em comum

e pertenciam de modo indiviso a todos [2], comoum património comum". Disso decorria que cadaum podia se apropriar para suasnecessidades do que quisesse e consumir o que podia ser consumido. O uso desse direito universal tinha então a função de direito de propriedade, pois do Üue alguém sehavia apropriado outro não podia tira-lo dele sem

injustiça! .Pode-sefazer uma idéia a respeito pela comparaçãoque se

[1] Justino, XL]11, 1, 3. [2] Há vestígios a respeito nas saturná]ias

310

H UGO

GROTIUS

encontra em Cícero,na obra .DeãhJbus [3]: "Ainda que o teatro seja comum [4], pode-se contudo dizer, com razão, que cada bocal é daquele

queoocupa. Esse estado poderia ter durado se os homens se tivessem conser-

vado numa grande simplicidade de costumesou setivessem vivido na prática de mútua e perfeita caridade. Pode-sever um exemplo de uma dessas duas condições, a comunidade de bens proveniente de uma sim-

plicidade extrema de costumes [5], em certos povos da América que, durante vários séculos,persistiram seminconvenientesnessaforma de viver. Quanto à segunda condição, a comunidade que surge da carida-

de, osessênios[6] de outrora oferecemum exemp]o,comoos primeiros cristãos que viveram em Jerusalém e, em nossos dias, um bom número de pessoas que vivem a vida ascética. Anudez dos primeiros homens]7]

seconstitui num argumento de apoio ao estadode simplicidade no qual

[a[ Marcus ']-u]]ius Cicero [106-43a.C.], .De.Zib2ibus (111,20, 67). [4] Sêneca, em .De .Beneál'cíís(]ivro

V]], cap. X]]), diz: 'Os postos de cauaJnl:ü perfez '

cem a todos os cavaleiros romanos e nessespostos, contudo, o !usar que tomei se

torna meu.

[5] Horário, em Oda2'umseu Ca/minam Zfõlf(111, 29, 9-16), escreve:'71/aJS áe/Íz, nesses desertos, o cita que puxa sua casa errante numa carroça. ]Kais feliz, o gela selvagem. Seus campossem limites produzem uma seara livre e comum. SÓ

cultivam um ano o mesmosaio.A tarefa de um cumprida, outro ihe sucedee o faz usufruir deseus trabalhos." [6] E os pitagóricos que surgiram de]es.Ver Porauio( Hda de Plúlígarn8 20), Diógenes

Laércio (Vlll, 1,10),Aulus Gellius (1, 9).

[7] Adão era um tipo do gênero humano. Ver Orígenes, ]:;bnfra t:b/sum. Pode-se ainda referir aqui o que disse Tertuliano(Z)e .4nimd: 't) que é razoáve/ deve seu' considerado como natural e como produto em nossas almas desde o começo de

sua existência por um criador que eie próprio é razoável. O que Deus produziu por seu simples mando e, com maior razão, o que eie produz com seu próprio sopro, não seria razoáve!? Deve'se, pois, ver o que veio depois como um efeito das solicitações da serpente, de modo que o pecado, tendo depois fumado raízes

na alma, se tornou nela comonatura!, porque a transgressãosurgiu na próprio começo da natureza.'

T

311 CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

+

W

foram criados. Havia neles mais a ignorância dos vícios do que o conhecimento da virtude. E o que diz l\'ogo Pompeu [8] a respeito dos citas.

Tácito [9] diz: "Os primeiros homens,ainda isentosde paixões desordenadas [10], ]evavam uma vida pura, inocente e livre por isso mesmo de castigos e de constrangimentos."

Em Macróbio [11] se ]ê que

"no começoreinava entre oshomensuma simplicidade que não conhecia o mal e que era ainda alheia ao artifício". Esta simplicidade parece ser designada pelo sábio hebreu (Snóedanb 111,24) [12] com o nome de

incorruptibilidade.

O apóstolo Paulo (27(1;br:zhüosl1,3) a chama tam-

bém de simplicidade e a opõe à esperteza e à astúcia. Os primeiros homens não tinham outro cuidado do que o de servir a Deus, culto do qual a árvore da vida (P2'0uérólo 111,18) era o símbo]o [13], segundo a

explicação dos antigos hebreus [14], confirmada pe]oApocalipse (XXll,

2).Viviam facilmente dosfrutos que a terra produzia naturalmente, sem cu]tivo [15] .

[8] Marcus Junianus Justinus]séc. ]]] d.C.], /Zfsfá:iae .f:yMbpfcae(11, 2,15) de Ttogo

Pompeu. [9] Caius Cornelius Tacitus [55-120 d.C.], .4nnaJes (111,26). [lO] Sêneca, na .qpAfo/a X0(46),

diz: "Os p/:ímeúos .homens wla'am na ínméncu'a

por causa de seu estada de ikno/:ánc=b."A seguir, depois de ter falado da justiça,

da prudência, da temperança, da coragem,ele acrescenta: 'isca latia rústica Linha algo que se assemelhavaa essas virtudes." úoseta, em Antigüidades Judaicas(l, 'L,4à, àiü "Seu espírito não era perturbado por qualquer inquietude. [11] Aurelius

(#ceronJS

Ambrosius

Macrobius

Soma/um

S: Úpianih(ll,

Theodosius

[séc.

V d.C.],

(]ommenfarl/

ih

lO,15).

[12] A+0apatct Assim Paulo se exprime na Ed)]'sfo/aaos Z#Zsl'os(VI, 24); mas se serva também da palavra olõta@0opta, na úfo/a a Tifo(11, 7).

[13] Os Faxinaschamam isso de santidadesuperior; e Aretas, sobre o Apocalipse, uma sabedoria divina. Ver, a respeito do paraíso terrestre, .Eblesllás&üo(XI,17), e sobre os quatro rios do paraíso, o mesmo livro Q{XIV. 25 e seguintes). [14] Fí[on de A[exandria, .De ]Uundo CreaZo(54).

[15] Ver sobre este ponto uma bela passagemde Dicearca, citada por Varrão em De Ee RusÉüa(11, 1,2). Pode-se acrescentar o que PorHnio traz sobre o mesmo em

De non Esu Anima]ium (]V. aà.

3}2 H UGO

GxOTIUS

2. Os homens, porém, não perseveraram nessa vida simples e inocente. Aplicaram seu espírito a artes diversas, cujo símbolo era a árvore da ciência do bem e do ma]]16], isto é, coisas de que se pode fazer bom ou mau uso, ciência que Fí]on [17] chama de prudência média. A issofaz alusão Salomão(-áb/bs7bsÉesVl1, 30), quando diz: "Deus criou o homem reto, isto é, simples, mas ele se entregou a pensamentos múltiplos." Segundo a expressão de Fílon, na passagem citada, "eles degene-

raram em astúcia". Dion de Prousa [18] diz que "a astúcia e outros recursos imaginados pe]o uso da vida [19] não foram muito vantajosos para aqueles que vieram depois dos primeiros homens, pois não se ser-

viram tanto de seu espírito para se distinguir em fitos de valor e de justiça do que para seus prazeres". As antigas artes da agricultura

e da

criação de rebanhos foram praticadas pelosprimeiros irmãos, não sem alguma partilha dos bens. A diversidade de gostos produziu a rivalidade, até os assassinatos. Os bons, tendo-se corrompido em contato com os maus, viveram ao modo dos gigantes [20], ou seja, de modo violento, como esses indivíduos que os gregos chamam de "gente cuja justiça está em suas mãos". Quando o mundo foi purgado pelo dilúvio, a essa vida selvagem sucedeu a paixão do prazer]21] que foi servida pelo vinho

e setornou fonte dosamoresi]ícitos [22] . [16] Flávio Josefo, em .4n&lküz'Jades anda bas(1, 1,4), diz que era a árvore da sagacidade e da inteligência. Telêmaco, em Homero(Od)ksézb XX. 309). diz: "Gon.ba-

ço tudo, o que é bom, o que é mau e não sou mais criança como era: [17] Fílon de Alexandria, .Z)eJ/und' Op#(54). [18] Dion Crisóstomo ou de Prousa [30?-117], Omf. Ta

[19] Sênecaexplica isso no decorrer de sua .qpJbfa/aXa Podeser lido. bem coma Dicearca, nos autores indicados anteriormente. [20] Sêneca, em .Abfzz/ages é?uaesüones(111, 30,7), escreve:

'Z)epoz) de fer exfínfo

o

modo primitivo de üda e as feras, das quais o homem teria tomado seus háoitos [21] Na mesma passagem, Sêneca diz: '% ínocêncza dos homens não dura/:za senão

enquanto eram ainda novos." [22] No mesmo ]oca], Sênecadiz ainda: '0 grande á.ufo da emó/:üguez ó a monstruosa impureza e a voiúpía ilícita."'Ver tatahêmP\$xüo,Naturaiis Historia «IV, 22

313 CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

l

3. O que rompeu sobretudo a concórdia foi um vício mais nobre, a ambição, cujo símbolo foi a torre de Babel(aéneszà X e XI). Logo, uns e outros se dividiram em duas regiões diversas e delas se apropriaram.

Há ainda, entretanto, entre esseshomensque continuaram sendovizinhos, uma comunidade não de rebanhos, mas de pastagens, porque havia grande extensão de terras para número diminuto de homens que podia bastar para o uso de muitos sem incomodo [23] : "Não era permitido [24] então distinguir

os campos ou separa-]os por ]imites."

]sso

durou até que o número de homens comoo de rebanhos aumentou e as terras começaram a ser divididas não mais entre nações, como antes,

mas entre famí]ias (Génese,X]]]). Quanto aospoços[25] que, num país seco,são de grande necessidade,como não eram suficientes para o

uso de muitos, cada um se apropriou daqueles que pede tomar para si ((IHneszls,XXI). Isso aprendemos da história sagrada que é bastante de acordo com o que os 61ósofose os poetas, dos quais reproduzimos alguns

testemunhos (Ma'e .Züertzm,cap. XV), nos disseram sobre o estado primitivo da comunidade de bens e da partilha que se seguiu. 4. Pelo dito ülcamossabendopor qual causa nos fomos afastando dessa comunidade dos primeiros tempos, primeiramente com relação às coisas móveis e depois quanto aosbens imóveis. Os homens não se

contentaram mais de se alimentar de frutas silvestres, de habitar em cavernas, de viver nus ou com seus corpos cobertos de cascas de árvores

ou de pe[es de animais se]vagens]26] . Passaram a optar por um gênero

devida mais cómodoe tiveram derecorrer à indústria que alguns em-

[23] Marcus Tu[[ius Cicero]106-43 a.C.], .4rafus. [24] Pub[ius Vergi[ius Mare [71-19 a.C.], Geazgzba(1, 126).

[25] A respeito dos poços que, em oásis, eram comuns a muitos, ver O]impiodoro, em Fócio

(Cod.

80).

[26] Tal era a vida dos escritofínicos, como a descreve com cuidado Procópio(Gofíüic., livro 11). Acrescente-se Plínio, .Nbftz/a#s J:/}'sforya (Xll, 1) e Vitrúvio, Z)e AcÜ 'fecfEzra(limo 11, cap. l).

314

H

uoo Gxoiius

pregaram para uma coisa e outros para outra. O que impediu que os resultados não fossem colocados em comum foi primeiramente a distância dos locais em que os homens foram se estabelecer, além da ausência de justiça e amor que levava a não observar, como poderia ter ocorrido, a igualdade, nem no trabalho nem no consumo dos produtos. 5. Ficamos sabendo também como as coisas se transformaram

em propriedade. Não teve lugar por um simples ato de vontade, pois os demais não deveriam saber, a fim de se abster, do que cada um queria tornar seu e vários poderiam querer se apropriar do mesmo objeto. Foi,

no entanto, o resultado de uma convenção,seja expressa através de partilha,

seja tácita através, por exemp]o, de ocupação [27] . Deve-se

presumir que, a partir do momento em que a comunidade dos bens passou a desagradar, sem resultar em partilha, todos chegaram a um acordo pelo qual o que cada um ocupasseseria de sua propriedadet28] . Cícero [29] diz: "É permitido a cada um preferir angariar para si mesmo do que acumular também para os outros todas as coisas que são de uso na vida, quando a natureza não se oponha" [30] .Aeste pensamento pode-se acrescentar esta passagem de Quinti]iano

[31] : "Sendo esse o

[27] Ver as passagens do Ta]mud e do Cotão, citadas por Selden, a honra da GrãBretanÉa, em seu livro O ]mpéno do amar(1, 4). [28] Cícero, em .De Oínbíís(1, 7,21), diz: 'Desde que as caídas que eram nafzzrnJmenbecomuns começaram a pertencer a um ta! ou qua! em radicular, cada um tem

o díreffo de conservaro que forrou." Ele explicaisso(lll, l0,42) por uma comparação, extraída de Crisipo, que dizia que no estádio é permitido vencer seu

adversário correndo, mas não fazendo-ocair. O escoliasta do livro Z)e 4/fe Poeüca (128) de Horácio escreve: 'Do mesma moda que uma casa au um campo sem dono é uma coisa comum, mas desde que ocupadosse tornam próprios..."''qawão (.inAge modal àiz. "Outrora as terras foram destinadas a ta]

au qual para cultiva-!as e foi assim que a Etrúria ãcou com os etruscos, o

Sâmnio aos sabeiinos.

[29] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], .De OMaízk(111,5). [30] cólon(E7qg. ]V. 7) diz: "Gosóarzade er riquezas, mas que não fossem ma/ adqulúdas. " Cícero, em .De O#7cük(1, 8, 25), diz: "Que não se deve censo/ar alguém porque procura aumentar céus bens sem prejudicar a outrem, mas é preciso sempre tomar cuidado para não cometer nenhuma injustiça.

[31] Marcus Fabius Quinti[ianus[30?-100?], .Dec/nmatl'odesJ]d:! res ef -?]/ibores (13 8)

T

315

CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

F

estado de coisas, que tudo o que serve ao uso do homem se torne pro' priedade daquele que o possui e o que é legitimamente

próprio não possa

ser subtraído sem injustiça." Os antigos]32], quando chamaram deres de legisladora e que designavam com o nome de Tesmoforias os misté-

rios dessa deusa, queriam indicar com isso que, com a partilha das

terras, havia surgido um novo direito133] .

IH. Certas coisas náo podem se tornar nossa propriedade, como o mar tomado em sua totalidade ou em suas principais partes e por qual razão 1. Isso posto, dizemos que o mar, considerado em sua totalidade

ou em suas partes principais, não é suscetível de apropriação. Este princípio, que alguns autores concedem com relação a cidadãos priva-

dos e não a povos, o provámos em primeiro lugar por uma razão moral, pois neste caso a causa pela qual o homem renunciou à comunidade dos

bens não encontra aplicação. A extensão do mar é, com efeito, tal, que

basta a todos os povos e para qualquer uso: para extrair água, para a pesca,a navegação.Poderia ser dito outro tanto do ar, se fosse possível emprega:lo em algum uso diverso pelo qual não fosse necessário servir-se

da terra, como o homem se serve da terra, por exemplo, na caça dos pássaros [34] . Por isso esse tipo de caça depende daque]e que é dono do

terreno.

[32] Aurelius Ambrosius Macrobius Theodosius [séc. V d.C.], SafurnaJlarum Z,fór7

(111,12). [33] 'Z)esseque as leis su/g am com a parll7Za dns terras..."Assim é que fala Sérvio, comentando as palavras da .Ehefdn(livro IV, 58): '% acres, a /egos/adora.

134] E o direito de habitação. Pompânio(L. SI opus, Dugesl., guod w auf c/am) diz:

Z)eve-semedia fanfo o sola, quanto a cóu."Acrescente-se a penúltima lei KDigest., Pro Sociob.

316

H u oo Gxottus

2. Nem diversamentesedevedecidir a respeito dossinas(godos, promontórios) que são de todo inférteis e cujo único uso consiste em extrair areia de que é fonte inesgotável. Há também umq razão natural que se opõe a que o mar considerado, como vimos, seja tomado como propriedade pessoal por alguém; é que a ocupação só tem lugar em matéria de coisas ]imitadas [35] . Por isso, Tucídides [36] chama "sem limites" uma terra deserta e ]sócrates]37] fala de uma região que havia sido ocupada pelos atenienses: "Este tenitório que foi limitado por nós..."

Quanto às coisaslíquidas que, por si próprias, não sãosuscetíveis de

limites, comodiz Aristóte]es [38] que a água não é circunscrita por limites, elas não podem ser objeto de ocupação, a menos que estejam contidas em outra coisa, como por exemplo os lagos e os pântanos que são suscetíveis de serem ocupados; assim também os rios, porquanto

encerrados entre margens. O mar, porém, não é contido pela terra; é igua[ ou maior que e]a [39]. Por isso, os antigos diziam que a terra é contida pelo mar. Apo]ânio, em Fi]ostrato [40], diz essaspa]avras: "0 oceanocircunda a ten'a para Ihe servir comoque de um liame." Sulpício Apo[inário, emAu]us Ge]]ius]41], pergunta: "Que pode haver aquém do oceano, porquanto o oceano cerca e banha as terras?" E logo acrescenta:

"Como o oceanobanha a terra poF todos os lados, como suas ondas as cingem por todas as partes, nada há para além dele senão suas águas,

[35] Disso provém o que Horácio(Odarum seu Cal'mli7um ZIB/d 111.24.12) chama de te3'ras não possuídas como próprias: campos sem limites.

[36] Tucídides [465?-395? a.C.], ]]ikfóv=bsda Guerra do /)e/aponeso(1, 139) [37] 1sócrates[436-338a.C.], -f)anegú:üode,4Zenas(9, 36). [38] Aristóte[es [384-322a.C.], Z)e General. (11,2). [39] Essa foi a opinião de Jarcas sobre o oceano,comoo relata Filostrato(livro cap. XI) [40] Filostrato(livro [41] Au[us

Ge[[ius

Vll, cap. XII) [séc. ]] d.C.], Nmfes.4úÉlcne

(livro 11, cap. 13).

lll

CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

317

abraçando todas as terras, tudo o que ele encerra em suas extremidades está no meio dele." O cônsul Marcus Acilius, em seu discurso aos so[dados,reproduzido em Tiro Lívio [42], diz: 'Vamos nos dar por limites o oceanoque delimita o orbe da terra por aquilo que abraça." Nos conselhos de Sêneca]43] se diz que o oceano é o vínculo do universo e o

vigia da terra. Segundo Lucano [44] , "a onda retém o mundo". Não se deve supor que o mar tenha sido objeto de partilha. Quando, nos primeiros tempos, as terra foram divididas, a maior parte do mar não era ainda conhecido e, em decorrência, é impossível imaginar como as na-

çõestão separadasumas das outras pudessementrar em acordopara uma semelhante divisão. 3. Esta a razão por que as coisas que eram comuns a todos e que não foram divididas desde a primeira partilha não podem mais se tor-

nar propriedade de ninguém por uma partilha, mas pelo simples fato da ocupação e não são mais suscetíveis de partilha depois de se terem

tornadopróprias.

IV.Os territórios não ocupados pertencem a quem deles se apoderar, salvo se um povo não tenha tomado posse de sua totalidade Vamos às coisas que são suscetíveis de apropriação, mas que ain-

da não se tornaram propriedade de ninguém. Tais sãomuitos lugares ainda incu[tos [45], as i]has do mar [46] , os animais se]vagens, os pei-

[42] Titus Li+ius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z]i]üe Oam(üta(XXXV], 17,15). [43] Marcus Annaeus Seneca [58 a.C.-32? d.C.] .Suasoziae (1, 2). [44] Marcus

Annaeus

Lucanust38-65},

/farsa/lb(V.

61).

[45] Ver Bambus, J?]sfan(V], no início]. [46] Como as Equinades, das quais A]cmeon se apropriou como primeiro ocupante TUcídides,livro 11,no Hlnal(102)

318

H UGO GROllUS

xes, as aves. Há duas observações a fazer. A ocupação pode ocorrer de

duas maneiras. Uma que consiste em se apoderar da totalidade e a outra que se refere à tomada de posse por partes. A primeira é geralmente obra de um povo oü daquele que comanda um povo. A segunda é

obra de particulares, mastem lugar quasesemprepor via de atribuição do que pelo efeito de uma pura ocupação.Se alguma parte da coisa ocupadaem sua totalidade não foi distribuída entre particulares, não deve ser considerada por isso como sem dono. Ela fica, de fato, sendo propriedade do primeiro que a ocupou, isto é, do povo ou do rei. Assim

são geralmente os rios, os lagos, os pântanos, as florestas, as montanhas escarpadas.

V Os animais selvagens, os peixes, as aves pertencem ao primeiro ocupante, salvoleique se oponha disso No tocante aos animais se]vagens [47], aos peixes, às aves, deve-se observar que aquele a quem pertence a jurisdição das terras e das

águas pode à vontade proibir de apanhar animais selvagens, peixes, aves, como também de se apropriar deles depois de tê-los apanhado.

Esta proibição va]e também para os estrangeiros. A razão [48] é que subsiste a necessidade moral para o governo de um povo que aqueles que se misturam com essepovo, mesmo que temporariamente, caso que ocorre a partir do momento em que se põe pé num território, devem

se conformar às instituições dessepovo. Nisso não há contradição com o que se lê muitas vezes no direito romano que, em virtude do direito de

natureza ou do direito das nações,subsiste a liberdade de caçar esses animais. Isso é verdade, com efeito, tanto que nenhuma lei civil interveio a respeito. E assim que a lei romana deixava nesseestado primiti[47] Covarruvias,

(1 /)eccafzzm,pa/f. ZZ /&

[48] Ver doutores sobre ]. Cuncóos .f]apu/os, (]3d. .Oe .Suam. 7}:ü/f.,' ]nnocent. e

Paholm. in Can. A Nobis, 1, De sent. excom.

F.

319 CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

vo muitas coisas, sobre as quais outras naçõeshaviam disposto de outro modo [49] . Sempre que uma lei civil estabeleceu outras regras, o próprio direito de natureza nos prescreve a obedecer.Ainda que a lei civil não possa ordenar nada que seja proibido pelo direito natural ou vetar alguma coisa que o direito de natureza ordena, podecontudo limi-

tar a liberdade natural e proibir o que era naturalmente permitido. Pode, por conseguinte, reservar-se pela autoridade que Ihe pertence a propriedade que se teria podido adquirir naturalmente.

VI. Os homens têm direito, em caso de necessidade, de usar coisas que se tornaram propriedade de outrem. De onde vem esse direito? 1. Vamos ver agora se algum direito subsiste no que comumente é devido aos homens, com relação às coisas que já se tornaram

propõe'

dade de outrem. Esta questão pode surpreender algumas pessoas, por'

quanto a propriedade parece ter absorvido todo o direito que decorria da comunidade dos bens. Não é assim, porém. De fato, deve-se considerar

qual foi a intenção daquelesque, por primeiro, introduziram a apro' priação individual. Deve-se crer que sua intenção íoi a de se afastar o menos possível da equidade natural. Se as próprias leis escritas devem,

quanto possível, ser interpretadas nesse sentido, com maior razão devem ser os costumes que não sãorestritos por vínculos de uma redação

escrita. 2. Disso se deduz a primeira consequênciaque, numa necessidade prem\.nte, se deve retornar ao antigo direito de se servir das coisas como se tivessem permanecido comuns, porque em todas as leis huma-

nas e, em decorrência, também na lei de propriedade, a necessidade extrema parecer ter sido excetuada.

[49] Covarruvias,

dzcfo .Imo.

320

H UGO GROTlus

3. Disso resulta que, numa viagem por mar, se os víveres vierem a faltar, cada um deve colocar à disposição de todos os alimentos que

possuiÍ50]. E assim que, num caso de incêndio, para proteger meu edifício, posso destruir aquele do vizinhol51l; de igual modo, possocortar os cabos ou as cordas que arrastaram minha embarcação [52], se não há outra maneira de se ]ivrar [53]. Todos essespontos não foram introduzidos pela lei civil, masforam desenvolvidospor ela. 4. Entre

os próprios

teó]ogos [54] é admitido

esse princípio

que,

em caso de semelhante necessidade,se alguém se apodera de objeto necessário à sua vida, não comete roubo. A razão dessa decisão não é aquela que alguns alegam que o proprietário da coisa é obrigado, pela lei da caridade, de a cederao que Ihe falta o necessário,mas porque não parece que os bens tenham sido distribuídos a proprietários a não ser soba reserva de um eventual retorno ao direito primitivo. De fato, se os primeiros distribuidores tivessem sido interrogados sobre o que pensa'

vam a respeito, teriam respondido o que dizemos. Sêneca [55] diz: "A necessidade, que é a grande justificativa

da õ'aqueza humana, aniquila

toda [ei"156]. Entende-seobviamente, toda ]ei humana ou feita ao modo L5QAL 2, $cum in eadem; Digest. ad leg. Rhodiam. g)\À L. que naufragium, $ quod aitDigest.

de incendio, 1. 111,$ 7.

t52ÀL Quemadmodum,citem, Digest. adl. Aquiliam, 1. 29 $3. [53] Isso não ocorre senão em grande e urgente necessidade.Ver Ulpiano (/. s/ aZiA / 4, Dugpsf., quod w auó c/am), onde há um exemplo de casas destrTlídas para deter o avanço de um incêndio. [54] Tomas, seczznd. sacana,

( quaestío lli, [55] Marcus

õ6 Z Covarruvias,

C:ip. /)eccafum,

p. .2/ ], Bota, Zwo

art. 4.

Annaeus

Seneca [58 a.C.-32? d.C.]

Goníroverszbe

(27, 5).

[56] 'Tudo o que e;nk?'u,e/n defende"(livro IV, aonírovers/ae, XXVll). O própria Sêneca esclareceessa máxima com exemplos(Zxcerpf. aontroue/;#ae, livro N} e dlz'. "Ea necessidadeque exige aliviar o navio, lançando ao mar as merca' :iorias; éa necessidadeque abafa o incêndio sob as ruínas; a lei do tempo é uma necessidade.Segunda TeodoroPrisciano, antigo médico, pode ser muitas vezes útil para as mulheres que vão se tomai mães e que estão em perigo de morte

ie se salvarem, sacrificando o &iho; de igual modo, c fato de cortar novos

321 CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

dos homens. Cícero [57] diz: "Cássio partiu para a Síria, província que

teria pertencido a outro se os homens tivessem observado as leis escri-

tas, mas como essas leis foram esquecidas,se tornou sua pela lei de natureza." Pode-seler em Quinto Cúrcio [58] que "no meio de uma calamidade comum, cada um procura se salvar do modo que puder'

VII. Esse direito existe, a menos que a necessidadepossa ser evitada de outra forma Há, contudo, precauções a tomar para que essa permissão não saia dos justos limites [59] . A primeira é a de procurar antes de mais nada e de qualquer modo, se a necessidade não pode ser suprida de

outra maneira, dirigindo-se, por exemplo,ao magistrado ou mesmo, pedindo, para obter o uso da coisa junto ao dono da mesma. P]atão [60] não permitiu tirar água do poço do vizinho, se antes não se cavou até a

rocha no próprio terreno para encontrar água. cólon, por sua vez, só depois de cavar em seu terreno quarenta cavadosde profundidade. Plutarco [61] acrescenta esta observaçãoa este detalhe: "Pensava

que devia vir em auxílio à necessidadee não dar folga à preguiça."

rebentos pode ser salutar para as árvores e, quando os navios sobrecarregados de mercadorias são sacudidos por uma grande tempestade, não há remédio senãosaca:íãcara Galga."As primeiras palavras dessa passagemse referem ao uso de um instrumento chamado epBpoo0ÀcEaH! de que encontramos a descrição

em Galeno e em Celso; palavra que se deve, em decorrência, restabelecer numa&passagem de Tertuliano [57] Marcus:;Tu]hus

Cicero]106-43

(Z)e .4nJha). a.C.], Zn i]Znrcum,4nfonium

Oraüames /ülZÜsypzcue

(XI, 12,28)

[58] Quintus Curtius Rufus [séc. ] d.C.], .178fálb deHexande

(VI, 4,12).

[59] Lessius,.ürTO.ZZcap.mZ .Z)ub,-Z.gn. ' ZO. [60] P[atão [427?-347? a.C.], .4s Z,eís(V]11,9). [61] P[utarco

[50?-125?],

14das .f'araJeJas, S3Uon (91 C). [62] Xenofonte

a.C.}, Expert. CPT2'(V. 5,16).

[430?-355?

322

H uoo GROTIUS

Xenofonte [62] diz em sua resposta aos habitantes de Sinope: "Onde o direito de comprar não nos é concedido, seja no território dos bárbaros ou naquele da Grécia, podemos apanhar do que necessitamos, não devendo isso ser considerado ato de insolência, mas de necessidade."

Vllt. Esse direito existe, a menos que a necessidade seja igual, do lado daquele que tem a posse Em segundo lugar, não se deve conceder esse direito no caso em que o próprio dono está em igual necessidade, pois em tal caso a condi-

ção do possuidor deve ser preferida. Lactâncio [63] diz: "Não é ]ouco aquele que, mesmo em vista de sua própria salvação, não empurrou da

prancha o náufrago que se agarrava, não derrubou de seu cavalo um ferido, pois se absteve de prejudicar, o que teria sido um pecado; evitar o pecado é obra de sabedoria." No livro 111de seu 'lYatado dos Deveres,

Cícero [64] havia dito: "Será que um homem sábio,premido pela fome, vai tirar um alimento de outro, quando esseoutro não seria útil para nada? Certamente não. Minha vida não é mais útil, de fato, que uma disposição de espírito que me afastasse de atentar aos direitos de ou-

trem, em proveito de meu próprio interesse."Em Quinto Cúrcio]65] se diz que "a causa daquele que nada dá do que é seu é preferível àquela do

que pede o bem dos outros"

[62] Xenofonte [430?-355? a.C.], .E:rpe(ZC#wí (V. 5,16). [63]

Caecilius

Firmianus

Lactantius

[séc.

]V

d.C.],

.Díl4zzarum

Ins&ffuÜonizm

17,27) [64] Ma3'cus Tu]]ius Cicero [106-43 a.C.], De O#?cízk(111,6,29) [65] Quintus Curtius Rufus [séc. ] d.C.], .]?is/óv7bde Wexanóe (Vl1, 2,33).

(V.

323 CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

IX. Deve-seacrescentar o dever de restituir, se houver a possibilidade de restituir Em terceiro lugar, a restituição deveria ser feita logo que possível. Há autores [66] que pensam de modo diverso, pela razão de que aquele que fez uso de seu direito não é obrigado a restituir. E mais correto167], contudo, dizer que aqui o direito não se realizou por inteiro, mas que se restringiu pela obrigação de restituir, a partir do momento em que a necessidadeviesse a cessar.Um direito assim reduzido basta para manter a equidade natural contra o rigor da propriedade.

X. Exemplo desse direito nas guerras Pode-se inferir disso como é permitido ao que faz uma guerra

justa ocupar um território situado numa região fora dashostilidades. Isso pode ocorrer se houver perigo presumível, mas seguro, de que o inimigo invadida essa área, causando-lhe danos irreparáveis. Subsiste a condição de não se apoderar de nada que não sqa necessário à defesa,

de aproveitar, por exemplo, apenas das vantagens topográficas da região, deixando intactas a jurisdição e o uso por parte de seu proprietário; com a condição também de ter a intenção de restituir o local ocupado, à medida que a necessidade fosse cessando. rito Lívio168] diz: "Enna

foi tomada por uma ação culpada ou por necessidade?"Subsiste a falta, desde que se afaste o mínimo que seja do que é necessário. Os gregos que acompanhavam Xenofonte]69], tendo necessidadepremente de navios, se apoderaram, com a anuência do próprio Xenofonte, dos navios

[66] Adrian.,

@uo(#fó., Dw'o Z arf. .g ca/. 3.

[67] Covarruvias, [68] '1.\tus Livius [69] Xenofonte

dicfo .coco,ver nota]47]

deste capítulo.

[59 a.C.-17 d.C.], .4b Z]/róe Gondl'&a (XXIV. 39,7) [430?-355?

a.C.],

.B:rped. CZm7(V. 5,16).

324

H UGO Gnottus

que passavam. Eles encontraram, contudo, um modo de conservar

intactas as mercadoriasde seusproprietários, de alimentar os marinheiros e de pagar o preço por isso. Assim, pois, o primeiro

dos direitos

que resta dessa antiga comunidade de bens, depois do estabelecimento da propriedade, é, como acabamos de dizer, o direito de necessidade.

XI. Os homens têm direito, para seu uso, sobre as coisas que se tornaram propriedade de outrem, se o proprietário não sofrer nenhum dano O segundo é o direito de uso inocente. Cícero [70] diz: "Por que, quando se pode sem que issoresulte em dano próprio, não se faz parti-

cipar a outrem das coisasque sãoúteis ao que as recebee que não causam também nenhum dano ao que as doa?"Por isso Sêneca [71] nega que se possa mencionar como ato de beneíícência a permissão que damos a outro de acender sua tocha na nossa. Lemos em P]utarco [72] que "não nos é permitido deixar perder os alimentos quandojá nos fartámos, de obstruir ou escondera fonte após termos mitigado nossa sede, de destruir os sinais indicadores da navegação ou da estrada, depois de nos termos servido deles"

XII. Disso provém o direito sobre a água corrente E assim queum rio, enquantorio, pertenceao povodentro de cujos limites corre ou ao que sob o poder do qual se encontra essepovo. Pode fazer uma represa nele, tudo o que nele nasce Ihe pertence. Este rio, porém, considerado como água corrente, permanece comum]73] do [70] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], .De Oz77cízk (1, 16,51). [71] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], .De Bene#cúi(IVI [72] P[utarco [50?-125?], Swmposubcon(703 B). t13Ü L

quaedam, Digest., de rer. dÍüs.

29)

325

CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

ponto de vista do direito de retirar água potável ou para outros fins. Ovídio [74] diz: "Quem haveria de proibir de acender uma tocha na tocha vizinha? Quem conservaria no mar proftlndo suas imensas águas?"

O mesmo poeta [75] leva Latão a assim fa]ar aos lícios: "Por que não

permitis que nos sirvamos de vossas águas? O uso das águas é comum." Nessa passagem, Ovídio chama também as ondas de "um bem público", isto é, dando ao vocábulo púó/üoum significado menos próprio, "comum aos homens". Nesse sentido é que certas coisas são cha-

madas públicas pelo direito das gentes. De igual modo, Virgí]io [76] disse que a água está à disposição de todos os homens.

XIII. Disso provém o direito de passagem por terra e por água 1. Assim é que as terras, os rios e as partes de mar que poderiam

tornar-se propriedade de algum povodevemestar abertosaosque têm necessidade de uma passagem por causas legítimas; por exemplo [77] ,

porque expulsos de sua pátria, procuram terras desocupadasou porque querem fazer negócios com naçõesdistantes ou mesmo porque querem reivindicar numa guerra justa o que lhes pertence. O motivo é aqui o mesmo do já citado: é porque a propriedade pede ser introduzida sob a reserva de um semelhante uso, útil aos que dela se servem e não preju-

dicial aosque o permitem [78] . Por isso osfundadores da propriedade devem ser vistos como tendo preferido que assim fosse.

[74] publiub Ovidius Nasci[43 a.C.-18d.C.], .Ars,4maforJa(111,93) [75] Idem, Mefamarpáoseon(VI,

349).

[76] Publius Vergilius Mano [71-19 a.C.], E12eida(V]1, 230) [77] Bald. ZZZ cansa .g93, [78] A respeito

desse verso

da EJ7elda

(Vl1,

229),

Sérvio

diz:

':-

#ffusgue

r(Zgamus

lz2

nocuum.- ", em que ínnocuum indica o que pode ser reivindicado sem prejudicar a ninguem

326

HU

GO GROiiUS

2. Temos um exemplo notável desse direito na história de Moisés

(HumanosXX eXXI) que,devendoatravessarterritórios estrangeiros, propôs como condições primeiro aos idumeus e depois aos amorreus que

seguiria pela via principal e que não causaria danos às propriedades privadas; casotivesse necessidadede algumas propriedades pertencentes a privados, ele lhes pagaria justo preço. Essas condições foram rechaçadase isso foi motivo legítimo para ele declarar guerra aos amorreus [79]. De fato, dizAgostinho [80], "recusava-se a e]e a passa' gem inofensiva que devia ser livre, segundo o direito totalmente justo

da sociedadehumana" 3. Os gregos,companheirosde C]earco[81], diziam: 'Vo]taremos para casa,seninguém nosimportunar. Sealguém nosofender,tentaremos rechaçá-lo com o socorro dos deuses." A conduta deAgesi]au [82] não foi muito diferente [83]. De vo]ta da Agia, chegandoem 'l.»jades, perguntou se preferiam que passassecomoamigo ou comoinimigo. Lisandro [84] também perguntou aos beócios [85] se preferiam que pas' passe com as maças levantadas ou abaixadas. Os batavos, em Tácito [86] , anunciam aos habitantes de Bona que "se ninguém lhes resistir,

sua passagem será inofensiva, mas se forem enviadas contra eles armas, eles abrirão caminho com o ferro". Tendo que levar socorro aos Ci9\ "Guerras Justas eram têitas pelos filhos de ]srae] contra os amorreus". àiz Agostinho na passagemcitada. Assim é que Hércules matou Amintor, rei de Orcomenes, por Ihe ter recusado passagem, como o relata Apolodoro. Os gregos moveram guerra a Telefo porque não lhes havia permitido passar por seu território. O escoliasta de Horácio observa isso na ode contra Canídia. Acrescente-se

a ]ei dos ]ombardos(livro

11, tít. Lly

cap. 2).

180] Aure[ius Augustinus [354-430], Quaeszlbnes ih J?epfafeucüum (IV. 44)

[81] Xenofonte [430?-355?a.C.], .4naóas.(11,3,23). [82] Ver também a respeito o que P]utarco diz na Hda da Hgesl7au(604 C, D). [83] P[utarco

[50?-125?], JpopáÉüeFmaÉa

(211 C).

[84] Ver o mesmoP]utarco, H'da de .Lísandra(445D). [85] P[utarco

[50?-125?], !4popáfóegmaÉa

(229 C).

[86] CaiusCorne[iusTacitus[55-120d.C.],.fí&&ar2be (]V 20)

327

CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

habitantes de Lacedemânia,outrora, Cimon [87] fez suastropas atravessarem o território dos coríntios. Como esseso repreendessem por não se ter dirigido antes à sua república, pois o que bate à porta de outrem não entra sem a permissão do dono, ele lhes respondeu: "Vós, no entanto, não batentes às portas dos cleonianos e dos megarenses, antes

os suplantastes, imaginando que tudo devia ser aberto ao mais forte."A

opinião que privilegia o meio termo é a verdadeira. Consisteem dizer que a passagem deve ser primeiramente so]icitada [88], mas que, se recusada, po-de'se força-la. Assim é que Agesilau, de volta da Agia, tendo pedido passagem ao fei da Macedânia [89] e esserespondendo que iria deliberar a respeito, disse: "Que ele delibere; enquanto isso, nós vamos passar.

4. Poderia ser alegado o temor que pode inspirar uma grande multidão de homens usando uma passagem, alegação sem razão, porquanto meu direito não pode ser negado em razão do temor e muito menos por haver precauções possíveis, como fazer passar as tropas em destacamentos separados, desarma-]os]90], o que os habitantes da colâ-

[87] P[utarco [50?-125?], CI.mon (489 C).

[88] Aristófanes,em OsPassai«os(188), diz: 'Zbmon(i$ quandoqueremos]} a De/Ho8real)nos antes passagem aos óeócu'os. "A respeito, o escoliasta observa que só se pedia passagem para um exército. Os venezianos deixaram passar os

alemãese os franceses que disputavam a cidade de Marano (Paruta, HJkí. Henof.,XI). Os alemães, queixando-se que fora concedida passagem a seus inimigos, os venezianos disseram que não podiam tê-lo evitado senão tomando em armas e que isso não era costume deles, salvo se tivessem problemas com

inimigos declarados.O papa recorreu à mesmadesculpa(livro Xll, do mesmo

autàl)

[89] Ver também, sobre esse ponto, Plutarco, Wda dÉ .4gesl7au(604 E). [90] Encontra-se um exemplo em Ercerpfa .Z;egztlonum(livro XII) e em Bembus, J7isfoda .IZdlca(livro Vll). Ver também tratados notáveis sobre o trânsito entre

Frederico Barbarroxa e lsaac o Anjo, em Nicetas(livro

iD, sobre a vida do

mesmo lsaac. No império da Alemanha, aquele que pede livre trânsito assegu-

ra a reparação de danos que poderia causar. Ver Crantzius(Sâxon/c., X,21) e Mendoza, ú] -Beibzczs.César não quis concederpassagem aos suíços pela pro-

víncia romana porque pensava que esseshomens, com más intenções, não evitariam de cometer afrontas e danos(Z)e .BeZ/oGaZ#co,1, 7).

328

Huoo Gnoilus

nia de Agripina [91] propunham aos germânicos e esse era o antigo costume do país dos eleanos, segundo observação de EstrabãoE92] . Ainda, encarregar aquele que passa de proteger com guarnições aquele que

concedea passagem, tomar reféns [93], como ocorreu com Seleuco que pedia a Demétrio [94] permissão para permanecer por um tempo nos

limites de seu império. Assim, mesmo o temor que se poderia ter do príncipe contra o qual aquele que usar da passagem poderá Ihe mover justa guerra, não podebastar para recusar o direito de passar. Não se deve também admitir a aÊlrmação que a passagem poderia realizar-se

em outros lugares, ter lugar de outro lado, pois cada um poderia dizer a mesma coisa e, deste modo, o direito de passar seria anulado. Basta que

a passagem seja solicitada de boa-fé, pelo local mais próximo e mais

cómodo [95]. De resto, se aquele que quer passar é o autor de uma guerra injusta, se ele traz após si meus inimigos, poderia Ihe recusar a passagem, pois, mesmo em seu próprio território, me Séria permitido,

em tal caso,de marchar contra ele e de Ihe barrar o caminho. 5. A passagem não é devida somente aos indivíduos, mas tam-

bém às mercadorias. A ninguém é permitido impedir uma nação de exercer o comércio com qualquer outra nação distante. Com efeito, a sociedade humana está interessada em tudo o que é permitido. Isso não

causa dano a ninguém, pois não se deve olhar como um prejuízo a perda

de um ganho sobre o qual se contava, mas que não era devido. Aos testemunhos que apresentamos a]hures [96], acrescentamos este, tira[91] Caius Cornelius Tacitus [55-120d.C.], .f/hfo/'lae (IV 65). [92] Livro Vl11, 3,33. 193] Há um exemplo disso em Procópio, .f)ersü.(livro [94] P[utarco

[50?-125?],

ll).

Z)emóÉmb (912 E).

[95] Isso diziam os francos que estavam na região de Veneza a Narsés que tinha lombardos em seu exército(GafóÃÜ., livro IVI 26). Existem outros exemplos de trânsito recusado em Bembus (Zlfaàc.,limo VII), em Paruta(.12}bf. l>bneá.livros

VeVD.

[96] -4/are Zlóa'um

(cap. 8 e 12).

329 CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

t

do de Fílon]97] : 'Todos os mares são percorridos por navios mercantes

que navegam em segurança para exercer o comércio que as nações es-

tabe[ecementre si]98] pe]odesejonatura] de entreter uma sociedadee de fazer de tal modo que a abundância de umas venha em socorro da carestia de outras. Ainveja jamais invadiu o universo todo, nem alguma de suas grandes partes." Essaoutra passagem de P]utarcoE99] fHa

assim a respeito do mar: "Este elemento tornou se-ciável e tratável nossa existência; sem isso, seria selvagem e sem comércio para su' prir o que faltasse através de uma assistência mútua, dando origem, através da troca de bens, à sociedade e à amizade."A este pensamento está ligada a seguinte proposição de Libânio: 'l)eus não concedeu todas

[97] .De Z«egaÉóne ad aa/um(7). [98] Em Flora(livro

111, 6), se pode ]er: '$up/7mi

o comému'o e roinpernJb a aá nça do

gane/'ohumano."Sérvio,a respeitode um versoda .Eb/ogzIV. diz que '% nal'eBaçãofem por {2z:agem o neBzíc/a':A propósito de um verso das Ge(írgvcas (1, 137), o mesmo diz: 'ôsso s@nl#ca que ó a necessu'dadade pzowdencür par coisas úteis para a vida que levou os homens a descobrir a arte e o gosto da navegação e que épara o benefício comum que o comércio do mar está abez'to a todos." SegundoAmbrósio(.IZexaemez.,111,5,22), 'b óom mar ó como o así/o dos rios, é a fonte das chuvas, elimina as inundações, carrega os comboios de mercadorias e é por ele que estão ligados entre $i os povos distantes uns dos

outros': Esse pensamento é de Basílio (J?bxaemer.IV). Teodoreto (Z)e .ov7dênüâ,11)disse de modo elegante do mar que é 'b mercado do mundo"e

que as ilhas são 'êsfaçõésno mar" Acrescentaria as seguintes palavras de ;xl.s6stama

(.ad Stelechium,

De Compunctione,

Sà\ "Como poderíamos

expri'

mir de modo suÊciente a grande facilidade que temos de comerciar juntos? Para que a distância dos caminhos não fosse um obstáculo a essasrelações,

Deus colocouà nossa disposiçãouma rota mais curta, isto é, o mar, que está próiilno de todo país. Assim o mundo, sendo como uma só casa, podemosnos visitar muitas vezes e cada um de nós oferecendo a seu semelhante os produtos de seu solo, torna-se !ác2 providenciar coisas que são abundantes junto aos outros. Isso íaz com que cada habitante de um pequenorecanto da terra possa usufruir dos bens que crescem em toda parte, parecendo mesmo que somos donos de tudo. Como se estivéssemos todos juntos a uma mesma mesa de conüvas, só temos que estender a mão para dar do que temas diante de nós aos que estão no outro canto da mesa e receber deles, por sua vez, do que eles têm diante deles. [99] P[utarco150?-125?],

.4quane

an Jgnib syf uÉ#laP(957

A)

330

H UGO

GROTI

US

as coisas a todas as partes da terra, mas distribuiu seus dons para diferentes países, a fim de que os homens, necessitados uns dos outros, estreitassem entre si laços sociais. Por isso suscitou o negócio como um

meio fácil a todos para gozar em comum de todas as coisas, cresçam e[asem qua]quer parte da terra." Eurípides]100], através das pa]avras de Teceu em Sup.ücunfes, faz contar a navegação entre as coisas que a

razão humana inventou para o bem comum. Estes são seus termos: "Cada região supre ao que seu clima Ihe recusa pelas expedições marítimas de seus navios." Em F]oro [lOl] encontramos: "Suprimi o comér-

cio e rompereis a aliança do gênero humano."

XIV Pode ser aplicado um pedágio sobre as mercadorias em trânsito? 1. Pode-se perguntar

se, quando as mercadorias passam pelo ter-

ritório ou por um rio ou por uma porção do mar que pode ser considerada como uma dependência da costa, podem ser taxadas de impostos por

aquele que exerce a jurisdição sobre a região? É certo que todos os impostos que não têm nenhuma relação com essas mercadorias não podem ser cobrados de modo justo sobre essas.Assim é que a contribuição

pessoal, imposta aoscidadãos para subvencionar as despesasdo Estado, não pode ser exigida

dos estrangeiros

de passagem.

2. Há, contudo, encargos que devem ser assumidos para dar às

mercadorias a segurançada passagemou qualquer outra coisaque lhes diga respeito. Pode-seimpor sobre as mesmas algum direito de subvenção, uma vez que essedireito seja proporcional ao item sobre o qual deve incidir. De fato, é disso que depende a justiça do imposto e do

[100] Eurípides [480-406 a.C.], .4s SupZfcanfes (209).

[lOl] Lucius Annaeus F[orus (séc.]-]] d.C.], E#)ifomede GesZlkRomanorum(111,6)

331 CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

tributo [102]. Assim o rei Sa]omão (/.Reis, X, 28) recebeu um direito pela passagem dos cavalos e dos tecidos que atravessavam o istmo da Síria. P]ínio [103] dizia do incenso: "Não pode ser transportado

senão

através das terras dos gabaonitas; por isso se paga um direito ao rei desses povos" [104] Assim é que os habitantes

de Marse]ha se enrique-

ceram com o canal que Mário estabelecera do Ródano ao mar, "exigindo

um direito daqueles que subiam com suas barcaças ou que desciam o cana[" [105], como o narra Estrabão [106] . O mesmo autor nos informa,

no livro Vl11 (6,20), que os coríntios, desde os mais antigos tempos, recebiam um imposto sobreas mercadorias que, para evitar a volta do cabode Malea, eram transportadas por terra de um mar ao outro. Assim é que os romanos [107] recebiam um preço pe]a passagem do Rena.

Sêneca [108] diz: "b]esmo nas pontes, paga'se um direito de pedágio." Quanto às questões relativas aos impostos pela passagem dos rios, os [ivros dos jurisconsu[tos

estão rep]etos delas [109] .

3. Ocorre com ü'eqüência, porém, que o limite da equidade não é observado. Está'abão [110] acusa desse abuso os üi]arcas da Arábia e acrescenta: "Realmente é difícil, entre gente que tem a força nas mãos, que são violentos, deânir uma proporção que não seja por demais onerosa para o comerciante.: [102] Ver a lei lombarda(livro 11,tít. XXXI, cap. XXXIII) e a carta dos bispos ao rei

Luas que se encontra entre as capitulares de Carlos o Calvo(cap. XIV). [103] Caius P[inius Secundus]23-79], Natura.ü) .17lbfar:ü Q(11,14). [104] Há algo de semelhante em Leão o Africano(.Desce:zbf. mzTcae,1, perto do inlcloJ [105] Arigtófanes faz alusão a essestipos de imposição na comédia Os /Ussaros,

quando quer que se feche a passagem do ar, a 6im de que os deuses sejam obrigados a pagar algum imposto pela fumaça da gordura das vítimas. [106] Estrabão [58?-21?a.C.], Geogm/ia(]V, 1,8). [107] Caius Corne[ius Tacitus [55-120 d.C.], J7lhfazlbe(]V, 65).

[i08] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], De GonsÉanÉfa ,Skipuenéb(14). [109] tnilüpp\n., de Domar., limo 1, tít. IX, 'Pexe@n., livro 1, De jure âlsci, cap. i, n.' 22;ÊtngeX.,consí!. 199, tala\., consii. 38 Füm., ín tract. de gabeii.

[no]

Estrabão [58?-21? a.C.], GeogzaÉlb (XV], 1,27).

332

H U GO GROtilS

XV Direito de residência por tempo limitado 1. Deve-se também permitir, aos que transportam suas merca-

dorias ou que estão de passagem,de repousar algum tempo por sua saúde ou por qualquer outro justo motivo. Esta permanência é compre'

endida entre os usosinocentesou inofensivos [111].Em Virgí]io [112], lliânio[113] ousa ape]ar aos deuses, quando vê que não se queria permi-

tir aos troianos de fazer uma parada na terra da Africa. Assim, também os gregos acharam fundada a queixa dos megarenses contra os atenienses que os expulsavam de seusportos "contrariamente ao direito comum", seguindo a expressão de P]utarco [114]. Por isso, nenhuma

outra causa de guerra parecia mais justa aos habitantes de Lacedemânia[115]. 2. Segue-sea isso que é permitido levantar uma construção momentânea no litoral, mesmo que fosse sabido que esse litoral já estava

ocupadopor um povo. Pompânio diz que um decreto do pretos seria necessário para conceder a permissão de construir numa costa pública ou junto ao mar, mas isso se relaciona

aos edi6cios permanentes,

aos

quais a]ude este verso do poeta [116]: "Os peixes sentem o mar se contrair pelas grandes massas de pedra lançadas em suas profundezas."

[nl]

Wto-ia,

.De ]nd7b.

z'e/ecÉ.(]],

n.'

l).

[112] Pub[ius Vergi[ius Mano [71-19 a.C.], Ei2eu'da(1, 543). [113] Sérvio diz sobre essapassagem que 'b posse da margem do rlb ó pague/e que

a ocupa,de modo que é se mostrar cruel impedir aos outros de usufruir de coisas que são comuns': Sérvio conta, no mesmo local, que '2)aomedon áoí

moço por Hérculesporque o havia expulsodo porto de 'lkóia [114] P[utarco

[50?-125?], /)á7c]es

(168 B).

[115]Diodoro (livro Xl1, 39); Tucídides(1, 67). [116]Quintus Horatius F[accust65-08 a.C.], Odarum seu Calm]rztzmZJód(]]], l, 33)

333 CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

XVI. Direito de residência aos que foram expulsos de sua pátria, contento que se submetem às leis do país Não se deve mesmo recusar uma moradia fixa a estrangeiros que, expulsos de sua pátria, buscam um refúgio, desde que se submetam ao governo estabelecido e que observem todas as prescrições neces-

sárias para prevenir sedições. O divino poeta [117] observou acuradamente essa equidade, quando introduziu Enéias, propondo as seguintes condições: "Que Latino, meu sogro, conserve o poder soberano." Em Dionísio de Ha]icarnasso]118] o mesmo Latino diz que a causa

de Enéias é justa, tendo chegado a essesEstados uma vez que estava

reduzido à condição de falta de morada. Os bárbaros é que costumam rechaçar os estrangeiros, diz Estrabão [119] pela boca de Eratóstenes. Os espartanos foram criticados exatamente por isso. SegundoAmbrósio [120], aque]es que impedem os estrangeiros

de se estabelecer em sua

cidade não devem ser apoiados de forma alguma. Assim é que os eolianos [121] aco]heram os habitantes

de Co]ofon, os habitantes

de Redes de-

ram guarida a Forbas e seuscompanheiros,os habitantes de Canas aoshabitantes de Meios, os habitantes de Lacedemâniareceberamos de Mima, os habitantes de Cumea a outros povos que tinham buscado

refúgio junto a eles. Heródoto diz com razão, acerca dos mesmos habitantes de Minta que, após terem sido acolhidos, pediam participação no

governo: "Agiram de modo insolente e fizeram o que não é permitido

fazer."Retribuíram um benefício comum injúria, diz Valério Máximo 2 [122]

117] Publius Vergilius Mare [71-19 a.C.], .Er7eida(X]1, 192).

[118]Dionísio de Ha[icarnasso[séc.] a.C.], .4nf7küldadesRomanas(1, 58). [119] Estrabão

[58?-21? a.C.],

[120] Ambrósio1340?-397], [121] Heródoto, [122] Marcus

(IV, 6)

Geogzaá7a (XV]1, 1,19).

.Z)e Oá7?bás .ãaz?isü'orum(lll,

livro ]e ]V; Pausânias, Valerius

Maximus]séc.

]ivro Vll;

cap. 7).

Orou., livj'o Vll;

Diodoro,

livro V. 58.

] a.C.- séc. ] d.C.], -Fofos e .Dífos .4Zemo/gve k

334

H UGO GROíiUS

XVH. Direito de se apoderar de locais desertos; como se deve entender isso Se no território de um povo se encontra alguma região deserta e árida deve-se concedê-la aos estrangeiros que a pedem. Podem mesmo

ocupa-la de modo válido, uma vez que não se deve considerar como possuído o que não é cultivado. Há reserva apenas com relação à jurisdição que fica sob controle total do antigo povo. Setecentas jeiras de um terreno rochoso e escarpado foram dadas aos troianos pelos latinos abo-

rígenes, como Sérvio [123] informa. Lemos em Dion de Prousa [124] que "aqueles que cultivam uma terra inculta não ofendem ninguém" Os ansibarienses clamavam outrora que "a terra foi dada aos mortais,

como o céu aos deuses;os lugares vazios são de domínio público". "A seguir, olhando o sol, dirigindo-se aos astros, como se estivessem diante deles, lhes pediam que lhes indicassem um solo desabitado. Que jogassem as águas do oceano sobre õs raptores da terra"]125] . Eles, contudo, aplicavam mal essas máximas gerais ao que pretendiam,

porquanto as

terras de que falavam não estavam mais vagas, mas serviam às pastagens dos rebanhos e dos animais de tração empregados na guerra. Por

isso, foi-lhes causa legítima de recusa por parte dosromanos. Estes já haviam pedido outrora, com não menos razão, aos gauleses senonenses se "era justo exigir um território

daqueles que o possuem ou de amea-

ça-]os com a guerra" [126] .

[123] Sérvio, em comentários à valeu'da(X], 316). Segundo Cotão, Sisena, e outros autores antigos. [124] Dion Crisóstomo130-117], Omf. ZZZ [125] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], .4nnajes (X]11, 55).

[126]Titus Livius [59a.C.-17d.C.],HÓ[4.óeGondl'fa (Y 36,5)

335 CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

xvm. Direito aos fitos que a vida humana exige Depois do dü'eito comum sobre as coisas, segue-seo direito co-

mum relacionado com as ações.Este direito tem lugar simplesmente ou por suposição.Simplesmente, pelas açõescujo objetivo é o de nos proporcionar coisassem as quais não sepoderia viver comodamente. De fato, não se deve pensar que subsista aqui uma necessidade igual

àquela que autoriza a se apoderar do bem de outrem porque não se trata de fazer alguma coisa sem o consentimento do proprietário, mas é o caso de um modo de adquirir com o consentimento daqueles que têm

posse dos bens, ou seja, sem que possam impedi-lo por uma lei ou por uma conspiração. Tal impedimento é contrário à natureza da sociedade humana, nas coisas de que fa]amos. E o queAmbrósio

[127] chama de

"separar os homens do comércio de sua mãe comum [128], recusar os frutos que se espalham em seu seio para todos, romper a associaçãoda vida". Não falamos das coisas inúteis e de puro agrado, mas daquelas que a vida exige; por exemplo, dos alimentos, vestuário, remédios.

XIX. Como comprar as coisas necessárias Afirmamos, pois, que todos os homens têm o direito de buscar essas coisas a justo preço, exceto [129] se aque]es de quem as queremos

adquirir têm necessidade delas também. Assim é que, numa grande [127] Ambrósio1340?-397], Z)e OZZíczlb .a4inls6r'orum(111,7,45). [128] Plutarco, na 1,7dnde .]3dvfc]es(168B), diz dos megarenses: ':É7esse queÉmKzm

quÀáar2bm su'daJ'ecüaçado$confrarlbmenfe ao direito das gentes, de godo comércio e de todos as portos pertencentes aos atenienses." $êneça, de»aXs de citar na Ed)hfo/a LXXXVll esse verso de Virgílio(Ge(árHbai, 1, 53), ':-o que

cada legião produz e que recusa-.", actescenh6 "Essesprodutos foram distribuídos por diversas regiões para obr gar os mortais a comercializar entre si, se alguns quisessem receber de outros e dar a eles de modo recíproco." O mesmodiz em suas Natura/es é?uaesüones(V.18,4): 'Poh óem/NZo áo/dado

a todos os povos o comércio que os une e com isso não foram misturadas nações dísóanfes umas das ouü'ns;"'Ver as queixas dos ingleses com relação

aos espanhóis,em De Thou(livro LXX]), história do ano de 1580. [129] Covarruvias,

Uaz -Raso.[,erro .iZ?]cap. .X=rVJó{ fer6ü.

336

H u oo GROTIUS

carestia, é vetada a venda de trigo [130]. Mesmo num caso extremo similar, contudo, não se pode expulsar os estrangeiros, uma vez que tenham sido admitidos. Ambrósio nos ensina, na passagem já citada, que uma catástrofe comum deve ser suportada em comum.

XX. Como náo se pode vender suas próprias mercadorias Quanto à venda de suas próprias mercadorias, o direito não é igua[, pois cadaum é ]ivre de decidir o que quer comprar ou não [131]. Assim é que outrora os belgasnão recebiam o vinho eoutras mercadorias exóticas [132]. Estrabão [133] diz dos árabes nabateus que "entre eles, era permitido importar certas mercadorias, o que não ocorria com re[ação a outras" [134].

XXI. Direito de procurar casamento; explicações 1. Achamos também que é preciso compreender, nesse direito de

que acabamosde falar, a liberdade de solicitar e de contratar matrimónios entre as naçõesvizinhas. No caso,por exemplo, em que grande número de homens expulsosde um país se refugiam em outro. Mesmo que viver sem mulher não seja absolutamente contrário à natureza humana, isso não étampouco contrário ao temperamento da maioria dos homens. O celibato não convém senão aos espíritos superiores. Por isso, a faculdade de procurar mulher não pode ser vetada ao homem.

[130] Cassiodoro (Uarlbe, ]; .gpisfuJa XXXIV) afirma que o trigo deve servir em

primeiro lugar à região onde é cultivado. [131] Mo[ina, -Dzsp.]05; Aegid. Reg., de acf. supernaf., Dusp. J], Z)uó. Z n.'52.

[132] Caius Ju[ius Caesar[[O1-44a.C.], De .Be//oGaZ/lao(11,15). [133] Estrabão [58?-21?a.C.], Ge(uzaábQ(V], 4,26). [134] Ver Crantzius,

Saxonic.(X],

3).

337

CAPÍTULO ll - DAS COISAS QUE PERTENCEM AOS HOMENS EM COMUM

Tito Lívio [135] diz que Râmu]o intercede junto a seus vizinhos para que não considerem mau o fato de homens também, seus companheiros, se misturem com o sangue deles e com sua raça. No mesmo historiador, Canu]eius

[136] exc]ama: "Exigimos

o casamento, esse direito

que é concedido normalmente aos povos limítrofes e aos estrangeiros." Agostinho[137]

diz: "0 vencedor se atribuía ]egitimamente,

pe]o direito

da guerra, uniões que Ihe teriam sido injustamente recusadas." 2. Quanto àsleis civis de alguns povosque recusamcasamentos aos estrangeiros, elas se fundamentam no fato de, nos tempos em que

foram feitas, não havia nenhum povo desprovidode mulheres ou não tratavam essasleis de todo tipo de casamento,não estando relacionadas senão às uniões legítimas, isto é, que produzem certos efeitos de

direitocivil.

XXII. Direito de fazer o que é permitido a todos os estrangeiros, sem distinção O direito comum por suposiçãose re]aciona aos atou que [138] uma nação permite indiferentemente aosestrangeiros. Se,portanto, um povo é excluído deles, torna-se o fato uma injúria. Assim é que, se

num país é permitido aosestrangeiros caçar,pescar,apanhar aves, extrair pérolas, recolher por testamento, vender, contratar matrimó-

nios, mesmo sem carestia de mulheres, não é possível recusar esses

direitos a um povo só,a menosque anteriormente se tenha tornado [135] T[tus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó CÜ.üeC;omd7fa(1, 9,4).

[136] Idem, .4ó Z:&.Ée Cbndl6a(]V 3,4). [137] Aurehus

Augustinus]354-430],

[138]Vitoria, daf. re/ecf., ZZ n. '.g 3.

-De (Xw'safe .Deu'(]iwo ]], cap. 17)

338

H UGO

GROTIUS

culpado de algum crime. Este teria sido o motivo pelo qual os hebreus

retiraram o direito decasamentoaosmembrosda tribo de Benjamim (./izj2esXX).

XXIII. Isso deve ser entendido a respeito das coisas permitidas em virtude do direito natural e não daquelas que o são por puro favor O que acabamos de dizer a respeito das coisas permitidas deve

ser estendido também àquelas que o foram em virtude da liberdade natural e que nenhuma lei as tenha ainda suprimido. Não se trata daquelas que foram permitidas somente por um favor, em detrimento

da lei. Não há nenhuma injúria na recusa de um favor. Assim é que pensamos que pode se conciliar a observação feita por Molha (DTbp. 105),depois de François de Vitoria, como que para contradizê-lo.

XXIV Se um contrato feito com um povo, para obriga-lo a vender suas mercadorias a um povo indicado e náo a outro, é lícito Recordo-me que foi questionado se é permitido a um povo estabe-

lecer acordo com outro povo para que esse Ihe venda, somente a ele, tintos de determinada espécie que não existem em outros lugares. Acredito que isso seja permitido, se o povo comprador está disposto a vender

suas mercadorias aosoutros por um preçorazoável, pois pouco importa

às demais naçõesde quem compram aquilo que se relaciona com as necessidadesda natureza. Por outro lado, é permitido a uns prevenir aos outros sobre os ganhos, sobretudo se houver razão para tanto, como

no caso de um povo que estipulou esse direito tomou o outro sob sua proteção e que tenha com isso despesas a sustentar. Uma compra seme-

lhante, feita com a intenção deque falei, não contradiz o direito de natureza, embora as leis civis o proíbam às vezes em vista do bem público.

111

DA AQUSIÇAO ORIGINAL DAS COISAS,ONDE SE TRAJA LAMBEM

DOMAREDOSRIOS

Sumário [. A aquisição original tem ]ugarporpartilha

ou por ocupação.

11.Rejeitam-se os outros meios, como seria a concessãode um direito incorporam. 111.A especi&cação. n r IVA ocupação é de dois tipos: tem por objeto a soberania

ou a

propriedade. Explicação dessadistinção. UA ocupaçãodas coisasmobiliárías pode ser prevista pela lei. VI. Em qual direito se apoia a propHedade das crianças e dos

loucos. Vl!. Os rios podem ser ocupados.

VIII. O marpode ser ocupado?

IX. Outrora, nospaíses quefaziam parte do império romano, não era permitido. X. O direito de natureza, contudo, não se opõe quanto a um braço de mar que avança terra adentro.

XI. Como se processa uma ocupação dessas e quanto dura.

XII. Semelhante ocupaçãonão dá o direito de impedir o trânsito inofensivo. XIII. Pode-se adquirir a soberania porocupação sobre uma parte

do mar; de que maneira isso se dá.

XIV. Um tributopodeserimposto, em casosdeterminados, aos que na cegam por mar.

XV. 'l.Valados que proíbem a determinado povo de navegar além de limites amados.

XVI. Amudança de curso de um rio modiHJcao ter,ritório?Explica'se com uma distinção. XVII. Que épreciso decidir se o leito do rio mudou completamente? XV.ll!. Umrio é, às vezes, um acessório a um terütório. XIX. As coisas abandonadas pertencem ao primeiro ocupante, a menos que o povo não tezlha adquirido por ocupação um

certo direito geral depropriedade.

341 CAPÍTULO 111- DA AQUISIÇÃO ORIGINAL DAS COISAS, ONDE SE TRATA TAMBÉM DO MAR E DOS RIOS

1.A aquisiçãooriginal tem lugar porpartilhaou

porocupação

De direito privado uma coisa se torna nossapor uma aquisição original ou derivada. A aquisiçãooriginal outrora, quandoo gênerohumano podia se reunir, pode ter tido lugar por meio de uma partilha, como dissemos. Hde em dia, realiza'se somente pela ocupação.

11.Rejeitam-se os outros meios, como seria a concessãode um direito incorporal Alguém pode dizer, talvez, que mesmo pela concessãode uma servidão, pela constituição de um penhor se adquire uma espéciede direito original. Ao que prestar bem atenção deverá aparecer, porém, que esse direito é novo só na aparência, pois existia virtualmente na propriedade do dono.

111. A especificação O jurisconsulto Paulo [1] enumera, entre os modos de adquirir,

um que parece sobretudo natural e que ocorre quando somos causa que

um objeto que tenha entrado na natureza dascoisas.Comonada sefaz naturalmente semprovir de uma matéria pré-existente, seessamatéria é nossa,será a continuação de nossapropriedade apósa introdução de uma espécie nova. Se não pertencer a ninguém, essa aquisição se relaciona à ocupação.Se é um bem de outrem, não pode mais ser naturalmente adquirido somente por nós, como isso parece segundo o que se há de dizer mais adiante.

l\X L. possídez'i,$ Bebera, DÍgest., de acquir. pois.

342

Huoo GnoTius

IV A ocupação é de dois tipos: tem por objeto a soberaniaou a propriedade 1. 0 que temos a falar da ocupação, como único meio natural e original de adquil:ir, se refere somente aos tempos primitivos. Arespeito

do que não pertence propriamente a ninguém, há duas coisas suscetí-

veis de ocupação: a soberania e a propriedade, enquanto esta se distingue da soberania. Sênecaassim exprimiu essa distinção: "Aos reis per-

tence o poder sobre todas as coisase aos privados a propriedade" [2] . Dion de Prousa [3] o fez nesses termos: "A região pertence ao Estado, mas cada um não deixa de possuir nela o que é dele." A soberania se exerce ordinariamente

sobre dois objetos: um, o principal, as pessoas, e

esse objeto basta por si mesmo às vezes, quando se trata, por exemplo, de multidão de homens, mulheres, crianças à procura de novas moradas; o outro, secundário, o local que se chama de território. 2. Ainda

que, no mais das vezes a soberania

e a propriedade

se-

jam adquiridas por um só e mesmoato, elas são,contudo, duas coisas distintas[4] . Por isso ocorre que a propriedade pode ser adquirida não somente doscidadãos, mas também dos estrangeiros, enquanto a sobe-

rania permanecenas mãos de quem a possuía.Em sua obra .De [2] Esta passagem está no livro V]] do tratado -De .Bene#cíü, cap. ]V. No capítu]o V] z a seMnh6 "Iluda pertence ao rei como soberano e aos privados comoproprie' fazias. " No capítulo Vl: 'l:;sisal' posszz/ tudo, mas seu tesouro encez:m somente seus bens Jlzlóprubse pr7rzdos." Símaco(livro X, Epúfa/a LIV) escreve: 'Gorer-

nas tudo, mas deixas a cada um o que éseu."'Füan, em De Piantat., &Àü"Embala os reis sejam donos de todos os bens que se encontram em seus domínios, sem excetuar as posses dos privados, são contudo somente aqueles que eles entregam a cultivadores e a intendentes e dos quais tiram seus !urros que são considerados

como pertencendo

a eles em particular."

'P\$xlln, em Panegyríco

qSO,aà,

à\z. "0 impéüo do príncipe se estende muito mais que seu patümõnio." [3] Dion Crisóstomo [30-117], Oral, XXX]

[4] Por isso, se podever emApo]odoro(111,9, 1; 14, 6) que as terras, tanto da AI'cádia quanto da Anca haviam sido dista'ibuídas de tal maneira que.toda a jurisdição

ficava a encargode um só dos beneficiáriosda partilha.

343 CAPÍTULO 111- DA AQUISIÇÃO ORIGINAL DAS COISAS, ONDE SE TRATA TAMBÉM DO MAR E DOS RIOS

CbndlázazzJbtzs,4gzoruz22, Sícu]o]5] diz que "aqueles que eram encarregados de indicar e fazer a partilha das terras, vendo a insuãciência de

terras das colónias,tomavam parte dosterritórios vizinhos e os distribuíam aos cidadãos que vinham dessas colónias, mas a jurisdição sobre os campos assim distribuídos

ficou sob a tutela do território

daqueles de

quem se havia tomado essas partes". Demóstenes [6] chama as terras que pertencem aos donos do território de .pr(ãomedadeseaquelas que se possui no território

de outro de possessões.

V A ocupaçãodas coisas mobiliários pode serprevista pelalei Dissemos anteriormente que nos lugares já ocupados do ponto de vista da soberania o direito de adquirir por ocupação as coisas mobiliárias

pode ser previsto pela lei civil. Esse direito existe, de fato, em viüude de

uma permissãoda lei natural e não emvirtude de uma disposiçãoimperativa prescrevendo que seja sempre assim. A sociedade humana não o exige. Se alguém disser que parece que essa permissão é uma regra do

direito das gentes, respondo que, mesmo quando isso fosse ou tivesse

sido comumente admitido em algum ponto do universo, essaprática não constituiria um direito civil observadopor várias naçõesconsidera-

das em particular e que cadauma o poderia ab-roga-lo.Há muitas outras coisas que os juristas dizem ser do direito das gentes, quando tratam dq divisão das coisas e da aquisição da propriedade.

[5] Siculus F[accustséc. ] d.C.], Z)e Gond]Zfonióus&rorum(no [6] Demóstenes

[384-322

a.C.],

.De .Hb/anéso (42).

final)

344 H UGO

GROTIUS

VI. Em qual direito se apoia a propi'iedade das crianças e dos loucos E preciso notar também que, se considerarmos somente o direito

natural, a propriedade só pode pertencer ao que é dotado de razão. O

direito das gentes,em vista da utilidade comum,introduziu que as crianças e os loucos poderiam receber e conservar propriedades, tendo

por assim dizer o gênerohumano como seu representante enquanto perdurar esseestado. Seas leis humanas podem dispor muitas vezes além do que ordena a natureza, não deveriam estabelecernada contra a natureza. Por isso essa propriedade que foi introduzida em favor das crianças e daqueles que se assemelham a elas, pelo consentimento das nações civilizadas,

se classifica no ato primeiro

e não pode se estender

ao ato segundo, como fala a Escola. Em outras palavras, estende-se ao

direito de possuir, masnão ao direito de ter por si mesmoo uso daquilo que se possui. A alienação e qualquer outro ato semelhante supõem por

sua própria natureza a ação de uma vontade esclarecida pela razão.

Esta luz não pode existir em semelhantes pessoas.O apóstolo Paulo ((;áZaÉas.IV. 1) faz uma observaçãoque cabe, a propósito, aqui.Ade que a criança, mesmo sendo dona da fortuna paterna, enquanto for de me-

nor idade não difere dos escravos do ponto de vista, bem entendido, do exercício do direito de propriedade. Começamos a falar algo sobre o mar e convém completar agora o assunto.

VII. Os rios podem ser ocupados Os rios podem ser tomados por ocupação, desde que sua nascente

ou sua foz não se encontrem compreendidas num território e que se possua somente uma parte da água que vem de cima e da que corre

abaixo ou até o mar. Basta, de fato, que a maior parte do rio estando com seus lados fechados por margens para que, em comparação com as terras, o rio seja apenas um ponto pouco extenso.

345 CAPÍTULO 111- DA AQUISIÇÃO ORIGINAL DAS COISAS. ONDE SE TRATA TAMBÉM DO MAR E DOS RIOS

VIII. O mar pode ser ocupado? De acordo com esse exemplo, parece que o mar possa também ser ocupado por aquele que possui as terras situadas dos dois lados, mesmo

que essemar seja aberto pelo alto como um godo ou pelo alto e embaixo

em forma de estreito, uma vez que essa parte de mar não seja de tal extensão que, comparada à terra b'me, não possa ser considerada como

dela fazendo parte. O que é permitido, em tal caso,a um povoou a um rei pode, parece, ser também permitido

a dois ou a três, se quiserem se

tornar ao mesmo tempo donos de um mar assim encravado.Assim é que os rios que correm entre dois povos foram ocupados por um e outro e a seguir partilhados.

IX. Outrora, nos países que faziam parte do império romano, não era permitido 1. Deve-seter presente que, em todas as partes do universo conhecidas do império romano, desdeos primeiros tempos até Justiniano, era máxima do./usgenÉltzm que o mar não poderia jamais ser ocupado pelos povos, mesmo com relação ao direito de pesca. Não se deve seguir

a opinião daque]es que acreditam que, ao se dizer no direito romano17] que o mar é comum a todos, se deve entender que é comum a todos os

cidadãosromanos. Em primeiro lugar, comefeito, ostermos sãode tal modo gerais que não comportam essarestrição. De fato, TeóÊiloexplica a frase latina "que o mar é comum a todos", dizendo que "é comum a todos os homens". U]piano18] disse que o mar é naturalmente

aberto a

todo o mundo e assim pertence a todos, como o ar. Ce]so]9] escreveu que

[l\ L. Quaedam.Digest., derer. divãs.;lnstit., derer. divãs.$1

\i\ÃL Vendit.Comm.praed.(!. 13Digest. V111, 4). qÊL Líttore,

Digest., Nequid in !oco publico.

346 H UGO

GROTIUS

o uso do mar é comum a todos os homens. Mais, os jurisconsultos

dis-

tinguem de forma evidenteentre ascoisaspúblicas pertencendoa um povo, entre as quais estão os rios, e as coisas comuns. Assim é que lemos nas Znsüfu/danes [lOl: "Certas coisas são, pe]o direito natural,

comuns a todos os homens [11], enquanto outras são púb]icas. São co-

muns a todos pelo direito natural: o ar, a água corrente, o mar e, em 11

decorrência, o litoral do mar. Quanto a todos os rios e aosportos, são públicos." Em Teó6ilosepodeler: "As coisasque sãocomuns, de direita natural, a todos os homens, são as seguintes: o ar, a água que corre sempre, o mar." Logo a seguir acrescenta: 'Todos os rios e os portos são públicos, isto é, pertencem ao povo romano."

2.A respeito das margens [12], Neratius [13] disse que não são públicas do mesmo modo que as coisas que fazem parte do património de um povo, mas como aquelas que, sendo originalmente

um presente

da natureza, não se tornaram ainda propriedade de ninguém, isto é, de

l li

1]

nenhum povo. Esta posiçãoparece ser contrária àquela que descreveu Celso [14]: "Sou de opinião que as margens nas quais o povo romano possui o direito dejurisdição pertencem ao povo romano, mas que o uso do mar é comum a todos os homens." Essas duas opiniões podem se

conciliar sedissermosque Neratius fala da margem, enquanto seuusa é necessário aos que navegam ou a costeiam, e que Celso, enquanto se

pode retirar dela alguma utilidade, como construir, por exemplo, um

[lO] .Derer dt'És. / J. [11] Miguel Attaliates(SFnopsvs, tít. 2) diz: 'Zb'Éas caudassão de fodoX comoo aC a água corrente, o mar, a orla do mar." [12] Na co]etânea dos J?así/ecos(]ivro], tít. ], cap. 13) se diz: "As margens pertencem

a todos.Ver também livro Llll, tít. VI. ttaà h

Quodin

!ittore; Digest. de acquír. rer. domin.

t\4ÀL Littore; Dig. ne quidin !ocopublico.

347 CAPÍTULO 111- DA AQUISIÇÃO ORIGINAL DAS COISAS. ONDE SE TRATA TAMBÉM DO MAR E DOS RIOS

edifício duradouro. Pompâniot15] ensina que, nesse último caso,costu-

ma-se pedir uma autorização ao pretor, comotambém para construir no mar, ou seja, na parte mais próxima do litoral e que é considerada como fazendo parte dele.

X. O direito de natureza, contudo,náo se opõe em relação a um braço de mar que avança terra adentro 1. Embora tudo isso seja verdade, é contudo em virtude de instituição arbitrária]16]

e não por efeito da razão natural que o mar não é

ocupado ou não pede sê-lo legitimamente no sentido proposto anteriormente. Um rio é público, como sabemos, e contudo o direito de pesca pode ser adquirido por ocupaçãonum braço desserio]17], por um privado. O próprio Pau]o]18] disse a respeito do mar que, se alguém tem um

direito que Ihe pertence como próprio, o interdito uÉz'possfdeZ:ü Ihe compete porque se trata então de um negócio particular e não um negócio que diz respeito ao público. Trata-se, de fato, do direito de usu-

6'uir que nasce de uma causa pública. Nessa passagem, sem dúvida

pretendefalar de uma estreita porçãode mar que atinge uma propriedade particular [19], como ]emos que isso foi feito por [15]

.L

é?uamp=É

.Dzk

de acguÜ

domlh.

[16] Os ingleses a]egaram ta] instituição contra os dinamarqueses. Ver o excelente

Cambden,no reino de Elisabete, no ano de 1600. t\l\ h Si quisquam; Digest. de divers. temo. praescrípt. [18] .L Sabe, Dug. de J]q/zzzúb.

[19] Salústlo(.De ao/4/ura üne aatz7)hae, Xlll, 1) diz: '7br numerosos prl'Fados, montam.basáorzm arrasadas, mares duram cr2bdos."Horácio, no ll livro de seus poemas líricos, ode XVlll(Odarum 11,18, 20), diz: ':fl)Was o mar que rugeperfa

de .Baia pa/'a que ]'ache suas margens." No livro lll(ode 1, 33): "Os pe kes sentem o mar encen'adopov' tiques Imensos." releio Patérculo fala de 'bocüedos precipitados no mar e de mares que penetram em montanhas ocas".Soneca (E;rcerpf. aonÉroverslbe,livro V. controv. V) escreve: 'Os mares são racüaçados pelos rochedos que neles são lançados." T\ix\\o ÇNaturalis Historia, 11,SSàdiz àa

terra: '7%ra fazer en6ml' o mac se deixa carcomerpe/as zíyuas."Lampridas, na

348 H UGO

GROTIBS

Lucu[o [20] e por outros. Va]ério Máximo [21] diz de Caio Sérgio Orata que "havia feito mares particulares

para si, retendo as â'citas em ensea-

das". O imperador Leão estendeu depois esse direito, contrariamente às decisões dos antigos jurisconsu]tos

[22] , até ]ocais avançados [23], isto

é, até a entrada de Bósforo da Trácia, o que Ihe foi permitido fechar com barragens, chamadas eltoeaa e de conserva-los como próprios. 2. Se um certo espaço de mar pode ser acrescido aos terrenos de

particulares, desde que esteja encravado neles e seja de tão pequena extensão que possa ser considerado como parte do terreno; se, por outro

lado, nada há de contrário ao direito natural, por que uma porção de

vida de .4/exandre

fere/o

(26), menciona pantanais

imensos formados

pelo

mar que penetrava. Cassiodoro(IX, cap. VD diz: 'Zbm a acuda de que Densos rochedos, os mares não irromperam? Quanto não avançaram as terras pelas enÉran.bas do ma/.p'Tibulo(11,

3,45) escreve: '0 /.müedo pám o maJ- Indomado.

para que o peixe desleixada desdenhe as ameaças da tempestade." F\ttüo (ÀrafEZ/a/is .17Jkforub, XXXI, 6) trata de semelhantesviveiros construídos na mar. Columella também(.De -Re.Rusflba,livro Vlll, cap. XVI e XVII); entre outras coisas,üiz qüe "a delicadezados z'iceshavia aprisionado os próprios mares e Mefuno': Ambrósio tem passagens semelhantes(.17exaemer..livro V. cap X, e -De Naóufáe, cap- 111).Marcial também, em diversas passagens(por exemplo, X, 30,19 e seguintes) [20] Varrão(Res J?us&fcae,111, 17,9) diz dele: 'Z. Z,uau#us, lendo perto de NZpo/es

tarado a montanha e conduzido as águas do mar em reservatórios de peixes ]ue tinham uma espécie de fluxo e refluxo, se gloriava de não ceder a Netuno para a pesca. "Plutarco, na vida do mesmo(518 C), escreve: ':E7e.ãalaa rodeado

suas casas de campo com reservatórios de água do mar e canais cheios de peixes e que havia construído salas de jantar no próprio mar." P\iíüo, em Àbf zraZs /?Zsfoz:ra(livro IX, cap. LIV), escreve também: 'Zulu/7u$ lendo pelgb-

rado uma montanha perto de Nápoles com grandes despesas,fez entrar um ;ana! e as águas do mar. Por isso, o grande rompeu o chamava de um Xerxes

romano

[21] Marcus Valerius Maldmus]séc. ] a.C.-- séc. ] d.C.]. /béos e Pulos .14emo/gveJk X 1) :22À L. injuriarum,

arca minem; Dig. de injurias.

[23] Ver as '7UoPe//ns"(l;Vll,

Cll, Clll,

CIV) de Leon; Attaliates,

.l#agmatlb.,

tít. XCV;

Harmenopul, livro 11, tít. 1, $ 7tePInPo0oPov(54); ver também o grande Jacó Cujas (Oóservaü, XIV, l).

349 CAPÍTULO 111- DA AQUISIÇÃO ORIGINAL DAS COISAS, ONDE SE TRATA TAMBÉM DO MAR E DOS RIOS

mar encravada nas margens não pertence a um povo ou aos povos aos quais pertencem essas margens, uma vez que essaparte de mar, com-

parada ao território, não seja mais que o braço de mar comparado à extensão do terreno de um particular? Pode-se ver, pelo exemplo do rio

e por aquele de um braço de mar que atinge uma casa de campo, que a circunstância de o mar não estar encravado de todos os lados não seria um obstáculo.

3. Muitas coisas que a natureza permite, porém, o direito das gentes pode proibi-lo, em virtude de um certo consensogeral. Por isso,

nos lugares em que tal direito das gentes esteve em vigor, sem que tenha sido ab-rogadopor um consensogeral, uma porção de mar, por

mais exígua que seja, e ainda que encravadapor margens em sua maior parte, não poderá se tornar propriedade de nenhum povo.

XI. Como se processa uma ocupação dessase quanto dura Deve-se observar, contudo, nos lugares em que o direito das gen-

tes relativo ao mar não tiver subsistido ou tiver sido ab-rogado, não se poderia inferir que o mar tivesse sido adquix'idopor ocupaçãopelo simples fato de um povo ter ocupado as terras. Um fato intelectual não basta, mas é necessário um ato exterior, do qual possa claramente resultar a ocupação. Deve-se notar ainda que se a posse surgida com a ocupaçãoxforabandonada, o mar retorna a seu antigo estado, isto é, ao uso comum. Essa é a decisão de Papiniano [24] sobre uma margem na

qual não setivesse construído e da pescanum braço de rio.

t24À h Praescríptio,

Dig. de usura.

350

H UGO

GROTIUS

XII. Semelhante ocupação não dá o direito de impedir o trânsito inofensivo O que é certo é que aquele que se tivesse apoderado do mar por ocupação não poderia impedir uma navegação pacífica e inofensiva, por'

quanto tal passagem não pode ser vetada, mesmo por terra, embora sqa menos freqüente e menos perigosa

XHI. Pode-se adquirir a soberania por ocupação sobre uma parte do mar; de que maneira isso se dá 1. Mais fácil, contudo, tem sido apoderar-se por ocupaçãoapenas dajurisdição125] sobreuma parte do mar, semnenhum direito depmprie-

[25] Fílon(Z)e P7anfaf.Noe, 16) diz dos reis: '%crescenáaram âs fez:rasos mai'e$ cz /b nzímeru ó ínániáo e a exfensãa, imensa. " Lícofron(.4/exanóu, 1229) fala üe "cerros da terra e do mar e das riquezas dos reinos". 'VügEüo (.Geórgicas, l-,

à\) escxexe:"Ténis te receberia por genro ao preço de suas ondas." 3u3Sus Firmicus(ãZaíües., VI, 1) relembra aqueles que 'bâo danos do mar e da óe/za."

Nonnus(22fanys., XLl1, 474) escreve: 'Berre manZ2h,bao mar soó seu podem Segundo João Magna(H])fór:ü

dos .4rceóispos de [OsaJa, cap- XV), 'bs ]lh/]es

do reino da Suécia estão no meio do estreito de Oresund". QxiinM Cürcho(IV, 4,19) diz da cidade de Tiro: '7b/por mufb feillpo dona não somente do mar que estava próximo, mas de todos aqueles por onde suas â'citas vogavam." Da3.o

provérbio, mares da lira, citado por Festo. lsócrates(Panafáen., 18) diz dos lacedemânios e dos atenienses: 'Z)correu q zeas duas cidades conqul'sfazzm regiões adjacentes aos mares possuídos por elas e foram donas de numerosas idades que receóhm suasJeís. 'l)emóstenes(P%ilZÜJpüa 111)diz dos lacedemânios:

:Eles comandavam lodo o mar e todas as arras."0

autor da vida de Timóteo

(Corné[io Nepos, }Tfae, X]11, 2) escreve que, ']=?cpol'scZísso,os ]acedemóni'os

desistiram de suas antigas pretensõese cederam voluntariamente aos afenzenseso ín2péüodo mar': O autor do discurso sobre a ilha de Haloneso, que se encontra entre as obras de Demóstenes, ao falar de Filipe da Macedânia ÕSz."Não procura outra coisa senão o de ser colocado por nós de posse do mar

e de nos convencer que nós não poderíamossem ele conservar a guarda do maz " O imperador Juliano, falando de Alexandre, diz que ele conjeturava a guerra com a intenção de 'be fartar o dano da ferra e de foda o mar': Um de seus sucessores,Antíoco Epifanes, segundo o Hunode Gorion, se pergunta 'be a óen'a e o mar nãa ]Zeperfencem': Teócrito diz de Ptolomeu, outro sucessorde êüexanàr6 "Ele reina de longe sobre as terras e de longe sobre os mares." B\%

Lanbêm. "Toda a terra, o mar, os rios que rugem se curvam diante do rei PM/temeu. " Chegandoaos romanos,Aníbal fala assim a Cipião, em Tiro Líbio

351 CAPITULO 111- DA AQUISIÇÃO ORIGINAL DAS COISAS, ONDE SE TRATA TAMBÉM DO MAR E DOS RIOS

dade [26]. Não creio que o ./us genüum (direito das gentes), do qual falamos, se oponha a isso. Os habitantes

deArgos outrora se queixaram

aos atenienses que eles tinham permitido aos espartanos, inimigos de

(Ab Urbe Conduta,XXX, se.a6b: "Encerrados na orla da À6'ica, os cartagineses,

porquanto essa é a vontade dos deuses, consentem que comandei fora, na fel:ra e no mar " Claudiano diz do segundo Cipião: '%?fiando,whga(ãaz;e/e submetia, com suas mãos devotados à pátria, o oceano espanhol a nossas !eis." ?aR

isso os autores romanos, como Salústio, Floro, Meia e outros chamam em

muitas passagenso mar interior de 'bossamar" Dionísio de Halicarnasso, contudo, diz bem mais: 't)povo romano comanda tidos os mal'e8 não somemü aqueles que estão aquém das colunas de Hércules, mas ainda o oceano, tão /angu afó onde se possa nat'eBaz "Dion Cássio diz dos mesmos romanos: 'ZZes regam sobre quase foda a farta e fadas as farras."Apiano, descrevendo em seu

prefácio a extensão do império romano, colocasob sua dominação o Ponto Euxino, a Propântida, o Helesponto, o mar Egeu, o mar de Pan6ilio e o mar do Evito. Foi dado a Pompeu o poder de mandar sobre todo o mar que está aquém das colunas de Hércules, como o relatam Plutarco e Ariano. Fílon(in

,FZaccum,

taà à\z. "E desde então que a família dos Césares conquistou o império da terra e do mar"Ovídio(JIZeíamazpáosean, XV. 831) diz de Augusto: '0 mar famóém /Ze será submisso."Uma inscrição em honra de Augusto traz que ele fechou o templo de Jante,depois de ter restabelecido a paz sobre a terra e sobre o mar; disso trata Suetânio(4Lzgusftzs, 22) que diz, do mesmo imperador, que '8aZmou uma frota em Mlisena e outra em Ravena para guardar o mar superior e o mar

íníbrlor" ValérioMáximodiz a Tibério: 't) consenÉímenfo dosc/ousese dos homens te estabeleceucomo dono da terra e do mar." Pilhou(De Legatione ad Caiam), falando do mesmo imperador, diz que 'ê/a estes(#a seu poder sopre a ferra e sobre o mar': O mesmo autor diz de Calígula, sucessor de Tibério: C;aiíguia que, depois da morte de Tibério, recebeu o poder soberano sobre fe/:m e maz" Josefo chama Vespasiano 'b dono da ferra e do maJ'': Aristides concede o mesmo título a Antonino, em várias passagens. Procópio(Z)e.4e(#aaíís,

1, 2) conta que estátuas do imperador representavam'no segurando o mundo em suas mãos, >orguanb a fe/:m e o mar ]Ze eram suómJssos" Numa carta a Luas 11,o patrício Nicetas, que era donodo marAdriático, fala disso. Constantino Monâmaco é chamado na história de 'ínlperadar e dono da ferra e do mar': O

mar Egeu está colocadono nível das províncias do império romano. Procópio (Goffüjd. 111,33) relata que os francos comandavamno mar de Marselha e arredores'. Sobre o direito da República de Venera, ver Paruta(livro VII) e a história particular dos Uscoques. Pode-se acrescentar aos autores citados os juristas mais recentes, sobre as decretais(cap. VI, de E7ecíls); Bartolo, Angelus,

Felinus(livro Y tít. VI, .PeJudnezs); Baldus,tít. do .22@esÉ., Z)eren (üwb.,ca/..Z Affhctus, tít. Qual szhf reBaZü; Cacheranus,.Deck. .l)edemonâ,Clip. n.' 4, onde diz, segundo Balda, que esse direito é estabelecido por todo o mundo; Alberico

Gentil, .4dvocaf.Hispanl'c.,1,8. [26] Bossius, 71í. de aguas, n.'36

Cod. de classicis, limo XI.

acrescentando Ba]d., Cepo]]. e outros; ver .L unlcu,

352

H

uoo Gxoilus

Argos, de atravessar seu mar. Consideravam essatolerância como uma violação do tratado, pelo qual nenhum dos dois povos devia permitir

aos

.inimigos do outro a passagem através dos ]ocais de sua jurisdição]27]

.

Durante a trégua de um ano na guerra do Peloponeso,permite-se aos habitantes de Megaria navegar no mar que dependiade seuterritório ou daque[e de seus a]iados [28] . Assim é que Dion Cássio [29] falou de

"todo o mar que pertence ao império romano". Temísteo diz do imperador romano que "a terra e o mar ]he são submissos". Opiano [30] se

dirige nessestermos ao imperador: "Sobtuas leis, de fato, o mar regula suas ü'otan." Dion de Prousa [31], em seu segundodiscurso aoshabitantes de Tarso, relata que diversos privilégios foram concedidos a essa

cidade porAugusto, entre outros "a jurisdição sobre o rio Cidno e sobre a parte próxima

ao mar". Em Virgí]io

[32], se pode ]er: "São e]es que

deverão manter o mar e as terras sob seu império." Au]us Ge]]ius [33] fala "dos rios que se lançam no mar que pertence ao império ]'omano"

Estrabão [34] observa que oshabitantes de Marse]ha haviam tomado numerosos despojos em combates marítimos, vencendo aqueles que haviam injustamente disputado com eles o império dos mares. O mes-

mo autor [35] diz que Sinope tinha a jurisdição do mar entre as i]has Cianas.

[27] Tucídides]465?-395?a.C.], ]7hfóv:üs da Guerra do /]b]oponeso(V] 56)

[28]Idem,ibidem(]V 118). [29] Dion Cássio]155?-235?] , Jiiisfórvà .Romana (XL]1, 6). [30] Oppianus, .]?ãZfeuÉ.(111, 4). [31] Dion Crisóstomo [30-117], OmÉ. XXX]V

[32] Pub[ius Vergi[ius Mare [71-19 a.C.], E12euda (1, 236). [33] Au[us Ge[[ius [séc.]] d.C.], .M)ages .:4fó/cue (X, 7).

[34] Estrabão[58?-21? a.C.],Gebgzaáb (]Y 5). [35] Idem, GeogzaHa(X]1, 3,11).

353 CAPÍTULO 111- DA AQUISIÇÃO ORIGINAL DAS COISAS, ONDE SE TRATA TAMBÉM DO MAR E DOS RIOS

2. Ajurisdição sobre uma porção do mar parece poder ser adquirida da mesma maneira que outras jurisdições, ou seja, como dissemos

anteriormente, por meio de pessoase pelo mesmo direito sobre um ter-

ritório. Pelaspessoas,quandouma frota, queé um exércitomarítimo, estaciona em qualquer ponto do mar. Pelo território, quando do continente, se pode aplicar a lei aos que passam na parte vizinha do mar, como se eles se encontrassem

sobre a própria

terra.

XIV Um tributo pode ser imposto, em casos determinados, aos que navegam por mar Por isso não age contra o direito da natureza e das gentes aquele que, aceitando o encargo de proteger e de ajudar a navegação instalan-

do fogos noturnos ou balizas que indicam os escolhos, recolhe um im-

posto razoáve] [36] dos navegadores. Essa foi a contribuição que os romanos exigiam no mar da EritréiaE37] para cobrir as despesasdo exército naval que era necessário manter contra as incursões dos piratas.

[36] Os habitantes de Rodei exigiram um imposto das ilhas até o farol deAlexandria, segundo

testemunho

de Amiano

(livro

XXl1,

16,10). César (Z)e .BeZ/o (;albco,

111,8) diz dos vênetos que se encontravamna Gália que 'êmóam seu mar sc:ü muito impetuoso e totalmente aberto e que haja somente alguns poucospor' Eos,eles cobram tributo de quase todos aqueles que navegam por essemar

Floro diz dos romanos: 'Zbse noól'e povo corava aa I'er gue se ]Zes Ãavl'a invadido o mar, tomado as ilhas e imposto Êdbutos que ele costumava exigir dos outros. "Plínio(Nafurn.lís

.i71)fo/:fa,VI, cap. XXII), fala de Annius Poclamus que

havia comprado do fisco o pedágio do mar Vermelho. .O mesmo, no capítulo seguinte, falando do mar que se navega em direção à Índia, relata que 'haja

ano, essemar era percorrido por tropas de arqueiros,porquanto infestada de ínume/áT'els plPafas': Ver ótimas discussões sobre a medida de semelhante

imposto,na vida de Elisabete,por Cambden,entre os anos de 1582e 1602. [37] Caius P[inius

Secundus

[23-79],

a.C.], Geog7aÉlb Q{Vl1, 1, 13).

AbfuraZs

]7üfoz:fa

(X]X,4);

Estrabão

[58?-21?

354

H UGO

GROTI

US

Esse era o direito que os bizantinos exerciam]38] na entrada do Ponto

li

Euxino e que já outrora os atenienses, depois de se apoderarem de Crisópolis, tinham imposto no mesmo mar, segundorelato de Políbio [39], que fa]a de um e de outro. Esse era o direito que os próprios atenienses tinham antigamente exigido no Helesponto, segundo testemunha de Demóstenes [40] contra Leptino e que Procópio [41], em sua /71sfó?:za Seca'efa,diz que os imperadores romanostambém exerciam em seu tempo.

XV Tratados que proíbem a determinado povo de navegar além de limites fixados 1. Encontram-se exemplos de tratados pelos quais um povo se obriga para com outro de não navegar além de certo limite. Assim é que havia sido concordado outrora entre os reis vizinhos do mar Vermelho e

11

os egípcios; essesúltimos não podiam navegar nesse mar com nenhu-

ma galera nem com mais de um navio mercante [42]. Foi assim que, entre os atenienses e os persas da épocade Cimon [43], havia sido deci-

[381 Herodiano re]embra desseimposto exigido pe]osbizantinos, na vida de Set (111,1). Procópio,tanto em sua l?hfóüa /'úóúca quanto em sua Hl#fálb Sea'efa menciona o antigo pedágio cobrado no Helesponto, bem como do pedágio de Bizâncio, perto do templo de Blaquernes e daquele de Helesponto em Abidos. Agatias (V. 12) chama o imposto de Abidos de Ae a euTtlptov,isto é, ] llposfo do

dáa)no, que Irene diminuiu. O imperador Emanuel Comnenoconcedeua al duns mosteiros rendas marítimas, como nos informa Balsamon a respeito do Concílio de Calcedónia, cânon IV. e do Sínodo Vll, cânon Xll

[39] Po[íbio [200?-120?],H]kfór2bs(]V, 44). [40] Nessa mesmapassagemele diz que, depois de ter tomado posse de Bizâncio, os atenienses se tornaram donos do Helesponto. O escoliasta IJlpiano afirma que aí se paga um décimo [41] Procópio

[?-562],

J]lkóóuia

Secreta; ver nota [38].

[42] Philostr., De Hía HpoZZon.(livro 111, cap. XD.

[43] Esse é o célebre tratado, comoo chama Plutarco, pelo qual havia sido concordado que os persas não se aproximassem do mar mais do que a distância de uma corrida de cavalo, isto é, de quarenta estádios. lsócrates também relembra

essetratado em seu discurso Punaíüenaüo(20)

H

355 CAPÍTULO 111- DA AQUISIÇÃO ORIGINAL DAS COISAS, ONDE SE TRATA TAMBÉM DO MAR E DOS RIOS

dido que nenhum navio de guerra medo poderia navegar entre as ilhas Cianas e as i]has Ce]idonianas]44], após a batalha de Salamina, entre

os habitantes das Cianas e Fasé]idas. Na trégua de um ano [45] da

guerra do Peloponeso,havia sido estipulado que os habitantes de Lacedemânia não deveriam navegar com galeras, mas com outros tipos de naves, cuja carga não ultrapassasse cem talentos. No primeiro tratado que logo após a expu]são dos reis os romanos fizeram [46] com os cartagmeses[47] , concordaram que os romanos ou os a]iados dos roma-

nos não deveriam navegar além do Cabo Belo, a menos que fossem arrastados pela violência da tempestade ou pressionados por inimigos; se essesfossem violentamente jogados contra essepromontório não tomariam nada além do necessário e se afastariam num prazo de cinco dias. No segundo tratado]48] havia sido estipulado que os romanos não \

[44] Plutarco,

1,7dnde CDhon(487 A); Diodoro, ]ivro XI, 61; Aristides, em (2raóz'o

Panathen. [45] Tucídides]465?-395? a.C.], .]?]bfc#:fasda Gue/ra do /]b/aponeso(IV, 118)

[46] Po[íbio [200?-120?],.1?lbfó?:zbs (111,22) [47] Sérvio em seus comentários sobre esseverso (628) do livro IV da Zneida

]na/g'ensopostasa malFens'; que foi concordado no tratado que 'hem os romanos poderiam atracar nas costas dos cartagineses, nem os cartagineses baque/ns dos romanos': Os romanos celebraram semelhante tratado com os

tarantinos, pelo qual se comprometiamem não navegar além do cabo de Lacinium. Isso se encontra em Excerpía ad Zega&ionesde Apiano. Estrabão (XVl1, 1,9) relata que os estrangeiros que navegassempara a ilha da Sardenha ou para além das colunas de Hércules eram postos a pique.

[48] Havia também nessetratado que os romanosnão poderiam atracar na Aflija ou na Sardenta, salvo se fosse para providenciar víveres ou para reparar os navios. Depois da terceira guerra púnica, queixasforam dirigidas ao senado cartaginês porque, contrariamente ao tratado, estava preparando navios e um exército naval. T\to Lívio(,4ó c&.óeaondlfa, livro Xl;Vlll e LIX) conülrmao fato. Há algo de semelhante no direito que o sultão do Egito obteve dos gregos, em

viúude de um tratado de poderenviar, todosos anos,dois navios para além do Bósforo. Esse detalhe se encontra em Gregoras(livro IV). O tratado de paz concluído outrora com Antíoco continha a disposição que esse príncipe não

deveria possuir mais de dozenavios de guerra(Apiano, .DeBeZzo.Sm2aco, 38). Aentrada da golfeAdriático foi interditado aosnavios de guerra pelosvenezianos,

em virtude de tratados. Ver De Thou, livro XXX, ano de 1584.

356

H U GO GROTIUS

manteriam cursos e não iriam fazer comércio além do Cabo Belo, de

Mastia e de Tarséia. No tratado de paz comos ilírios, dizia'se que os ilírios não deveriam navegar além de Lassa com mais de duas barcaças

que deveriam estar semarmas [49]. Na paz comAntíoco, este sehavia comprometido a não passar além dos promontórios de Calicadne e Sarpedon, excetuando-sesomente os navios que levavam o tributo, embaixadores ou reféns [50] .

2. Isso não mostra, porém, que alguém seja dono do mar ou estabelece direitos de navegar. Os povos podem, de fato, como os privados, abrandar suas convenções, não somente no que tange ao direito do que

lhes pertence como propriedade, mas também no que lhes é comum com todos os homens, em favor daquele que nisso tem interesse. Quan-

do isso ocorrer deve'se dizer o que respondeu U]piano [51] sobre um terreno que havia sido vendido sob a condição de não pescar atum em

prejuízo do vendedor; é impossível submeter o mar a uma servidão, mas a boa-fé do contrato pede que a condição da venda seja observada.

Assim, pois, aqueles que têm a posse e os que lhes sucedem em seu

direitoestãoobrigados.

XVI. A mudança de curso de um rio modifica o território? 1. Há muitas vezes controvérsias entre povosvizinhos para sa' ber se todas as vezes que um rio muda seu curso muda também o limite

de sua jurisdição e se o que acrescenta a suas margens pertence ao território daqueles aos quais acrescenta. Essas divergências devem ser

[49] Apiano, .]ZOz (7). [50] Titus

Livius]59

[51] .Ü }êndT'foc

a.C.-17

d.C.],

-DÜ: commun.

.4ó CÜ.Be (;bzzdlfa

praed.

\zL2ç.xv i11, 38,9)

357

CAPÍTULO 111.- DA AQUISIÇÃO ORIGINAL DAS COISAS, ONDE SE TRATA TAMBÉM DO MAR E DOS RIOS

decididas pela natureza e pelo modo de aquisição. Os agrimensores nos

ensinam[52] que há três espéciesde herança:o terreno dividido e assina[ado que ojurisconsu]to F]orentino153] chama ]imitado porque tem por contorno os limites feitos pela mão do homem; o terreno assinalada por tota[idade, isto é, encerrado dentro de certa medida]54], numa centena de jeiras, por exemplo, ou contado em jeiras; as terras arcifínias, assim designadas, segundoVarrão [55], porque são contornadas por

limites próprios para rechaçar o inimigo, limites naturais, entende-se, comorios e montanhas [56] .Agennius Urbicus [57] chama essasú]timas de terras sujeitas a ocupação porque, no mais das vezes, são terras

das quais alguém se apodera porque estão vacantes ou mesmo pelo di-

reito da guerra. A respeito das duas primeiras espéciesde terrenos, mesmo quando o rio muda de curso, nada muda no território e o que o aluvião acrescenta pertence à jurisdição dos primeiros ocupantes. 2. Com relação às terras arcifínias, o rio, mudando aos poucos seu curso [58] , muda também os ]imites do território e tudo o que o rio

acrescentaa um lado cai soba jurisdição daquele de cujo lado o rio procedeu a esse acréscimo. Isso porque ambos os povos presumem ter tomado posse originalmente de sua jurisdição com a intenção de o rio, estando no meio de]es, separa-]os [59] como um ]imite natural.

[52] Jul. Frontin(de

..4gn qua/. ]hJÉ.).

t53ÀL in agris !imitatis, Dig., de acquir.rer. domin. 154]Ver um exemplo disso em Sérvio, comentário à .Et:/OBa IX(7 e 28). [55] Em .Aquedutos de Rama de Sextus Ju]ius Frontinus]30?-103?].

[56] Tácito diz da Germânia que 'êsZáseparada dos sá?'maiase das dácz'os pau' um temor recÚlroca ou pa' moníanÃas': Plínio(Nafü/:aZÜ /Züfaz.7a, XXXVI, cap. l), falando

dos Alpes,

diz:

'7}ansporfamos

o que .baça

sz21o esfaóe/ecTdoparu

sem:ü'

de limites entre as nações."

[57] Agennius Urbicus, em comentáriosa Frontinus(início). [58] Ver JohannesAndreas e os outros citados por Reinking(hwo ], C]asseV. cap. D. [59] Ver um exemplo disso em Mariana(livro

XX]X, 23), sobre o rio Vedado.

358

H uoo GROTIUS

Tácito160] disse: "0 Rena corre num leito bastante 6uo ainda para servir de [imite"

[61] . Diodoro de Sicí]ia [62], no ]oca] em que narra a con-

trovérsia levantada entre os habitantes de Egesta e os de Selinunte, fala do "rio que marcava as fronteiras". Xenofonte]63] chama simplesmente tal rio de "'rov opt(ov'ra", ou seja, aquele que traça os limites.

3. Os antigos contam que o rio Aquelous, cujo curso incerto se dividia às vezes em diversos braços, outras vezes voltava sobre si mesmo em desvios oblíquos, de onde a fábula de sua metamorfose em touro

e em serpente, por longo tempo foi causa de guerra entre os habitantes

de Etólia e os de Acárnia, por causa das terras adjacentes, até que Hércules o domou, definindo suas margens, benefício que Ihe mereceu o

casamento com a 6i]ha de Enéias, rei da Etó]ia [64].

It

XVII. Que é preciso decidir se o leito do rio mudou completamente? 1. Isso não ocorre se o rio não mudou seu leito. Um rio que separa

11

duas jurisdições não é considerado simplesmente como volume de águas,

mas como água corrente em determinado leito e encerrado em tais margens. Eis porque o acréscimo de pequenas partes, sua perda ou qualquer outra mudança que deixa ao todo sua antiga forma permite parecer que a coisa ficou a mesma [65] . Se a forma do todo muda tam[60] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], Z)e .44br7bus Ge/manonzm (32). [61] Ae[ius Spartianus]séc. ]V d.C.], em Had?:fanus(12), faia de 'tidos

/araras das

fronteiras do impéüo romano, ondenão havia rios, mas limites traçadospeia mâo do comem que o separavam dos báróal'os" Constantino Porfirogeneta (.De.4címlzz.Jlnpe/ÍÉ cap XLV) chama o rio Fasis de auvopov, isto é, que serve de

limite [62] Diodoro da Sicí[ia [séc. ] a.C.], .Bíó#oteca .Romana (X]1, 82). [63] Xenofonte [430?-355? a.C.], .8:rped Cm7 (]V. 8,1).

l

H

[64] Estrabão [58?-21? a.C.], Geograáa (X, 2,19). VSSÀ L.

proponebatur, Dig. de judiciis.

359 CAPÍTULO 111- DA AQUISIÇÃO ORIGINAL DAS COISAS. ONDE SE TRATA TAMBÉM DO MAR E DOS RIOS

bém ao mesmo tempo, isso já é outra coisa. Em decorrência,como um rio é interrompido se for feita uma barragem em seu alto curso e como

nasceum outro se sua água for desviada para um canal feito à mão, de igua[ modo se,abandonando seu antigo ]eito]66], um rio corre por outro lado, não é mais o que existia antes, mas um rio novo, tendo-se extinto o antigo. Como se o rio tivesse secado, o meio do leito que ocupava antes

6caria o limite da jurisdição porque se deve supor que a intenção dos povos tinha sido de o tomar como limite natural, o mesmo acontece no caso de mudança de ]eito [67] .

2. Na dúvida, deve-sepresumir que os Estadosque terminam num rio têm fronteiras arcifínias porque nada é mais próprio para a separaçãode jurisdições do que não se podelivremente transpor. De fato, raramente ocorre que os Estados sejam limitados por divisas ou compreendidos numa certa medida. Quando isso ocorre, não é tanto em

virtude de umá aquisição original, mas pelo efeito de uma concessão feita por outrem.

XVIII. Um rio é, às vezes, um acessório a um território Ainda que, na dúvida, como dissemos, as jurisdições de dois po-

vos se estendem dos dois lados até a metade do rio, pode acontecer, e veremos que isso ocorreu em alguns lugares, que o rio, em sua totalidade, pertence a um só lado, sda porque o outro Estado, por exemplo, não adquiriu a.jurisdição da margem oposta senãobem mais tarde, quando seu vizinh(há

estava de posse de todo o rio, seja porque as coisas assim

foram regulamentadas entre os dois mediante tratados.

[66] Como ocorreu com o rio Bardano, segundo narra Ana Comnena(]ivro unIA h hoc jure, $ Si amuam, Dig. de agua cotid. aestiva.

1, 7)

360

11

11

H UGO

GROTIUS

XIX. As coisas abandonadaspertencem ao primeiro ocupante, a menos que o povo não tenha adquirido por ocupaçãoum certo direito geral de propriedade 1. 0 que merece ser observado também é que se deve considerar como original a aquisição de coisas que tiveram um dono mas que ces-

saram de tê-lo, seja porque foram abandonadas, seja porque não há mais ninguém daqueles que poderia ter sobre elas um direito de propriedade. Teriam, pois, retornado ao estado em que as coisas se encontravam no inicio. l

2. Deve-se observar, porém, ao mesmo tempo, que às vezes as primeiras aquisições foram feitas por um povo ou pelo chefe desse povo,

de tal modo que não somente a soberania, que encerra essedireito emi-

nente como tratamos algures, mas também a propriedade privada e inteira eram primeiramente adquiridas geralmente do povoou de seu chefe. A seguir a distribuição era feita em parcelas aos privados, de tal modo,contudo, que sua propriedade ficava dependentedaquela propriedade primeira, como o direito de um vassalo depende do direito do senhor ou como o direito do enÊlteuta depende daquele do proprietário, excetuando-se outras maneiras menos consideradas, como são diversas

espécies de direito sobre a coisa, entre as quais se classi6lca aquele de l

uma pessoa que espera a execução de um 6ideicomisso estabelecido em seu proveito sob condição. Sêneca dizia que]68] "não poder vender uma

coisa, nem consumi-la, nem deteriora-la, nem melhora-la, isso não é prova de que ela não nos pertence. Uma coisa, de fato, que está a teu dispor sob certa condição, não deixa de ser tua". Segundo Dion de Prousa

[69], "há várias maneiras e mesmo muito diferentes de ter como pró[081 Esta passagem se encontra em .De Bene#aú)(Vl1, 12). O mesmo autor diz no livro Vlll, cap. 12, que 'há calhas que não peu'lancema aJguám a não ser soó

certas condições [69] ])ion

Crisóstomo

[30-117],

(2mÉ. XXX].

361 CAPITULO 111- DA AQUISIÇÃO ORIGINAL DAS COISAS. ONDE SE TRATA TAMBÉM DO MAR E DOS RIOS

proa alguma coisa, pois muitas vezes não é permitido vendê-la e usá-la

de acordo com a própria vontade". Encontro em Estrabão]70] o seguinte: "Era dono, mas não tinha o direito de vender." Tácitot71] oferece aos

germânicos um exemplo do que dissemos:"As terras são ocu-padas em massa, na proporção do número daqueles que podem cultiva-las. Depois são repartidas entre eles, de acordo com a qualidade de cada um."

3.Assim, pois, quando as propriedades distribuídas desse modo

dependem da propriedade geral, se algum bem vier a faltar ao dona

particular, não é devido ao primeiro ocupante,masretorna ao corpo inteiro ou ao dono superior]72] . Um direito semelhantea essepoderia ser, fora desse caso, introduzido pela lei civil, como já começamos a observar.

[70] Estrabãh [58?-21? a.C.], GeoWaáa (X]1, 3,34). [71]

Caius

Come[ius

[72] Pode-se inferir

Tacitus

[55-120],

Z)e ]14brJÓus

Ge/mamaram

(26)

do que é dito ao Hlna] do segundo livro da Odibsá'a (335 e

seguintes) que os bens de um homem moribundo sem filhos revertiam. em benefício do povo e é assim que Eustátio explica esseverso d& 17üda (V. 158) de RamaIS "Os chefes da cidade faziam a partilha das riquezas.-" De taça, eXe entende por etlpuazctt um magistrado que administrava os bens daqueles que

morriam sem filhos. A história nos informa que se praticava outrora algo de semelhante no reino do México.

l

11!

lv

DOABANDONO PRESUMIDO

EDAOCUIKÇAOSUBSEQUENTE QUE DIFERE DO USOCAPHQ

EDAPRESCRIÇAO

Sumário 1. Por que o usucapião ou a prescrição propriamente dita não têm lugar entre os diferentespovos ou entre seus governantes. 11.As antigas possessões são, contudo, invocadas entre eles.

111.A posse se veri6lcapelas conjecturas da vontade humana que são expressas não somente por pala vias.

iV Mas também por fatos. Expor

aquilo que não se faz.

Vl:XÇomoocorre que o tempojuntado à ausência de posse e ao

silêncio serve de conjectura para provar o abandono do direito.

VII. Um tempo ímemoria] basta geralmentepara formar ta] conjectura;

VlllSolução

que tempo é esse.

da objeção de que ninguém

a seus bens.

é obrigado a ren unciar

!X. Parece mesmo, deixando-se de lado qualquer conjectura,

que em virtude do Susgetl\\um a propriedade pode ser transfeüda por uma posseimemorial. X. Se aqueles que ainda não nasceram podem perder seu direi

to dessamaneja. Xi. Um povo ou um reipodem adquirir também o direito de soberania por longa posse. XII. Se as leis civis sobre o usucapião e a prescrição obrigam

aquele que possui o poder soberano. Explica-se por distinções.

Xll!. Osdireitos de soberania, quepodemserseparados ou que

são de natureza a poder ser transmitidos, podemser adquiridos ou perdidos por usucapião ou porprescrição.

XllV Refutação da opinião segundo a qual os súditos podem sempre retomar a posse de sua liberdade. XVAs coisas que são de mera faculdade não podem serperdi das por nenhum espaçode tempo; explicação.

365 CAPÍTULO IV- DO ABANDONO PRESUMIDO E DA OCUPAÇÃO SUBSEQÜENTE QUE DIFERE DO USOCAPIÃO E DA PRESCRIÇÃO

1. Por que o usucapião ou a prescrição. propriamente dita não têm lugar entre os diferentes povos ou entre seus governantes Surge aqui uma grave diÊlculdade concernente ao direito de usucapião. Como essedireito foi introduzido pela lei civil, pois por sua natureza o tempo não tem nenhuma força produtora e nada se faz pelo tempo, embora tudo se faça no tempo, não pode ter lugar, segundo a opinião de Vasquez [1] entre dois povos livres ou dois reis ou um povo

livre e um rei; nem mesmoentre um rei e um privado que não é seu súdito, nem entre dois indivíduos que são súditos de dois povos diferentes [2] . ]sso parece ser assim, exceto enquanto a coisa ou o ato depen-

dem das leis do território.

Se admitirmos, contudo, essa máxima, pare'

ce que um grande inconveniente ocorrerá como conseqüência. Jamais,

por nenhum lapso de tempo, as controvérsias sobre os Estados e seus limites poderão se estender, o que não somente é capaz de atormentar o

espírito de muitos e de suscitar guerras, mas é mesmo contrário ao sentimento comum das nações.

11.As antigas possessõessão, contudo,invocadas entre eles Com efeito, vemos nas sagradas Escrituras (JuzüesXI, 26) que ao rei dos amonitas que reivindicava as terras compreendidas entre

Arnon e 4aboc,desdeosdesertosdaArábia até oJordão,Jefté opõeuma possede gÇ)O anos e Ihe pergunta porque, ele e seus ancestrais, nada reclamaram durante tanto tempo. Os habitantes de Lacedemõnia,em

[1] Livro 11,cap. 51, n.' 28. [2] Na lei das Xll Tábuas havia: ':4e]erna aucóanfas cum .bosfeesmo';isto é, com o

estrangeiro.

366

H UGO

GROTluS

lsócrates [3] , co]ocam como uma das máximas mais certas e sanciona-

das [4] em todas as nações que as possessõespúb]icas, bem como as possessões privadas, podem persistir por longo espaço de tempo, de tal

modo que não podem mais ser anuladas. Aesse direito é que eles recor-

rem para rechaçar aquelesque reivindicam Messenas.Aqui estão as palavras do texto grego: "Foram declaradas próprias e como património

todas as possessões,tanto privadas como públicas, que se seguiram por [ongo espaço de tempo." O mesmo ]sócrates [5] diz a Fi]ipe: "Quando

um longo período de tempo tornou a possessãoülrme e estável..." Convencido desse direito, o segundo Filipe dizia a T. Quinctius que "ele deixaria limes as cidades de que se havia apoderado, mas que não sairia daquelas que havia recebido de seus antepassados como posse legíti-

ma e hereditária" [6]. Su]pício [7], discutindo comAntíoco, demonstra que seria injusto porque os povos da Grécia haviam sido outrora escra-

vizados na Agia e essefato constituía um título para os reduzir à escravidão após vários sécu]os. Os historiadores

[8] c]assiâicam como vã jac-

tância o fato de ressuscitar ve]has pretensões [9] . Diodoro [10] diz: "São

[3] Acém

(9).

[4] O duque de Nevers raciocina nessesentido em favor da Fiança, em De Thou (livro LIX, cap. 4), ano de 1574. [5] Melhor, Dionísio de Ha]icarnasso, sobre ]sócrates, cap. 9. [6] Titus

Livius

[59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z]xróe Gondlfa Q(XX]],

[7] Idem, .4ó Z:4.Üe CbndJfa(XXXV.

l0,4)

16,7).

[8] Caius Cornelius Tacitus155-1201, .4nnaJes(V],

37).

[9] E o que os gregos chamam, a]udindo a um fato da história de Atenas, procurar arara o que exüÉfa antes de Zucódes. Nicetas, entre outros autores, se serviu desseprovérbio na vida de Alexis, irmão de lsaac, falando do imperador Henrique, filho

de Frederico:

':B7e não Ézhúa ve/gon.ba

de procurar

assim

antes de Euclides" (]kxxo TÕ. [lO]

Diodoro

da Sicí[ia[séc.

] a.C.],

Bab]]'oíeca

.]]ikéádca(XV]

78).

o que exz'süa

367 CAPÍTULO IV-

DO ABANDONO PRESUMIDO E DA OCUPAÇÃO SUBSEQUENTE QUE DIFERE DO USOCApIÃO E DA PRESCRIÇÃO

íábu[as e ve]hos contos." Em Cícero [11] , em seu Tratado dos Deveres, se lê: "Que justiça seria essa que leva um homem a perder uma herança que possuía desde longos anos e mesmo desde sécu]os?" [12]

111.A posse se verifica pelas conjecturas da vontade humana que são expressas náo somente por palavras Que diremos? Os efeitos de direito que dependem da vontade não

podem, contudo, ser obtidos por um simples ato moral. E precisoque esseato seja manifestado por alguns sinais exteriores. Não é conforme à natureza humana, que não pode conhecer os ates senão por sinais exteriores, atribuir força de direito aos simples fitos interiores da vontade. Os atou puramente internos, pois, não são submetidos às leis huma-

nas. Os sinais que designam os atou da vontade não têm senão uma certeza provável, pois os homens podem falar de maneira diversa do

que querem e do que pensam e mesmo dissimular sua intenção por suas ações.A natureza da sociedade humana, contudo, não permite que os atou da alma suficientemente manifestos fiquem sem efeito. Por isso,

tudo o que foi dado a conhecer por sinais suficientes é tomado como verdadeiro contra aquele que empregou essessinais. Esta é a dificuldade, portanto, levantada no que diz respeito àspalavras.

IV Mas também por fatos 1. Nb que diz respeito aos fatos, considera-se como abandonado o que é rejeitado, a menos que não ocorra em circunstâncias tais que se deva considerar esse abandono como exigido pela necessidade do mo[11] Marcus ']h]]ius CiceroL106-43 a.C.], De (2ZZiculs(11, 22, 79).

[12] Flora(livro 111,cap. X]]]) escreve: 'Essas perras,contada. que áav7am su'do deixadas por seus ancestrais, eles aspossuíam desde distantes tempos que lhes

serviam comode título hereditário.

368

H uoo

GROTlus

mento e com a intenção de recuperar a coisa rejeitada]13]. Assim é que a renúncia à dívida [14] é presumida pe]a anu]ação do títu]o [15] . Uma

herança, diz Pau]o [16], pode ser recusada, não somente por palavras,

mais ainda por atos e por qualquer outro indício da vontade. Assim é que quando o proprietário de uma coisa contrata conscientemente com aquele que a possui, de maneira que supõe que este último é o verdadeiro dono, é considerado justamente como tendo abandonado seu direito.

Sendo assim, não há razão para que o mesmo fato não possa ocorrer entre reis e povos livres.

2. De igual modo, quando um superior permite a seu inferior ou Ihe ordena fazer o que Ihe é proibido, a menos que seja dispensado pela observaçãoda lei, ele o considerou livre de seu dever de obediência à lei [17] . Isso é um efeito, não do .direito civil, mas do direito natural, segun-

do o qual cada um pode renunciar ao que Ihe pertence. liso decorre de

uma presunçãonatural, em virtude da qual cadaum poderenunciar ao que Ihe pertence; e isso decorre de uma presunção natural, em virtude da qual cada um é considerado desejar o que deu a conhecer de modo suficiente. Nesse sentido, pode'se muito bem admitir o que disse Ulpiano [18] que a aceitação é do./t/sgenÉíum (direito das gentes).

V E por aquilo que não se faz 1. Sobo nome de fatos estão também moralmente compreendidas as abstenções,consideradas com as circunstâncias requeridas. Assim é que aquele que, com conhecimento de causa e estando presente, guarda \:taA1« 9, Qua ratione $ ult. Dig. de acquir.rer. domin.; L 8, Qui levandae,Dig. ad leg. Rhod.; L. 43, Falsas, $ 11, si jactum Dig., de funis. [14] 1zer.Z,. .g 22lb, .De Pactos.

[15] .ü g .Laóeq .aê:, -De PacÉals. t\6À L 95, Recusam,Dig., De acquir. ve! omitt. Hered. [\l\ 1,. 57, cuidam, Dig., De rer. jud.; L 3, Barbarius, Dig., De ofíic. l»aetoris. [18] .ü & .4n hutíi]s,

l

Dik,

accepÉÜ

»

369 l

CAPITULO IV

DO ABANDONO PRESUMIDO E DA OCUPAÇÃO SUBSEQUENTE 0UE DIFERE DO USOCAPIÃ0 E DA PRESCRIÇÃO

silêncio, parece consentir. A própria lei doshebreus o reconhece(.NiímerosXXX, 5 e 12). A menos que não resultem circunstâncias em que foi impedido de falar por temor ou por qualquer outro imprevisto. Assim é

que se consideracomoperdido o que não se tem mais esperançade resgatar, como seriam porcos que o ]obo teria devorado. U]piano]19] diz

também que o que perdemos num naus'agia cessade nos pertencer, não imediatamente, mas a partir do momento em que não podemos mais resgata-lo, isto é, a partir do momento em que não há mais razão para acreditar que conservamos o pensamento de ainda ser proprietário, a

partir do momento em que não há mais indício algum de semelhante intenção. Se tivéssemos enviado alguém para procurar o que foi perdido, se tivéssemos prometido alguma recompensa aos que o encontrassem, seria necessário decidir de outra forma. Assim, aquele que sabe que uma coisa Ihe pertence está de possede outro e que não apresenta nenhuma reclamação por longo espaço de tempo, aquele, a menos que surgisse outra razão de modo manifesto, é considerado como não tendo

agido dessemodo porque não queria mais contar esta coisa no número das coisas que ]he pertencem. Nesse sentido, U]piano [20] disse em certo momento que as casas são consideradas, pelo efeito de longo silêncio, como tendo sido abandonadas por seu dono. O imperadorAntonino

Pio [21] disse num rescrito: "E com pouca justiça que rec]amas interes-

sesdesdelongo tempo vencidos e dos quais renunciaste, como o indica o longo espaçode tempo que deixaste correr semreclamar, porquanto foi

para te tornar simpático a teu devedorque não julgaste oportuno exigi-losdele."

t\9Ü L. 44, Pomponius, Dig., de acquir. rerum domin. t2QÜL. 15, Si finita, $21 non autem statim, Dig., De damão ilúecto. LataL. 17, Cum quidam, $ 1 divãs, Dig., De usuais.

370

H UGO

GROTIUS

2. Uma coisa muito semelhante se vê no estabelecimento

de um

costume [22], pois, excetuando-se as ]eis civis que só o admitem após

certo tempo e de certa maneira, um povosúdito podeintroduzi-lo pelo fato mesmo que aquele que possui a soberania tolera. Quanto ao tempo necessário para que esse costume tenha algum efeito de direito, não é limitado, mas arbitrário e deve ser bastante longo para que se atinja um consenso [23] . 3. Para que o silêncio sirva para estabelecera presunção de abandono, duas condições são requeridas: que o silêncio ocorra com conheci-

mento de causa e que aquele que o guarda tenha vontade livre. A abstenção daquele que ignora do que se trata carece de efeito124] e quando

aparecequalquer outra razão que impediu de agir, toda conjectura da vontade não se realiza.

VI. Como ocorre que o tempo juntado à ausência de posse e ao silêncio serve de conjectura para provar o abandonodo direito Outras conjecturas servem ainda para verificar a realização dessas duas condições, mas a do tempo é de grande peso para provar a ambas. Primeiramente,

é quase impossível que uma coisa pertença a

alguém, diquepor muito tempo nas mãos de outro, sem que seu proprie-

tário tome conhecimento por alguma via, sendo que o tempo Ihe subministra diversas ocasiões. Entre presentes, no entanto, basta um lapso de tempo menos longo que entre ausentes para estabelecer essa

conjectura, mesmocolocandode lado a lei civil. Mais, uma vez instalado o temor, pode durar mais tempo, mas não perpetuamente, pois que [22] ']bmás,

.C Z guaesáfo P8 arf. .9.

[23] Suarez, livro V]], cap. 15, Z)e.leglbus. [24] Ver cap. XX] deste ]ivro, $ 2. Acrescente-se também Barthol. Socin., 4:bnsíZ. Ct 8; Meischner, -Decís.(bmeru/. .XZ n.' 113, tomo lll.

371 CAPÍTULO IV

DO ABANDONO PRESUMIDO E DA OCUPAÇÃO SUBSEQÜENTE QUE DIFERE DO USOCAPIÂO E DA PRESCRIÇÃO

um longo espaço de tempo fornece numerosas ocasiões de reagir contra

ele, tomando precauções por si próprio ou através dos outros, mesmo saindo do país daquele que se teme, a ülm de ao menos protestar por seu

direito ou, o que é preferível, para apelar a juízes ou árbitros.

Vlt. Um tempo imemorial basta geralmente para formar tal conjectura; que tempo é esse Um tempo imemoria]]25]

sendo moralmente considerado in6ni-

to[26], o si]êncio que se guardou durante essetempo pareceria sempre bastar para estabelecer a presunção de abandono, excetuando-se três fortes razões que provam o contrário]27]. Foi judiciosamente observado

pelos mais hábeis jurisconsultos que o tempo imemorial não é a mesma coisa [28] que um espaço de cem anos, embora muitas vezes

não haja grande diferença entre eles, pois o termo comum da vida humana [29] é de cem anos [30]. Este espaçode tempo forma geralmente três idades de homens ou três gerações [31] . E o que os roma-

[25 Andreas Knich, 7}ac]afus de Jure Zezv7'fanl;Reinking, livro 1, classe V. cap. ll. n.' 5; Oldendorp, classe 111,art. 2.

t26ÀL 3, Hocjure, $ 4 ductus,Dig., De agua quotid. et aest. [27] Menochius

1, bons. XL.

[28] Isso assinalou Ba]bus em .De Hzescz:zbÉlamibus e Covarruvias sobre o mesmo

assunto,bem comoReinking, no citado limo 1, classeV. cap. 11,n.' 40. Ver a respeito do tempo imemorial o eruditíssimo Faure, (bnsf/)um pro Z)ucafu Mlon tisferra tensa.

[29] É o Justiniano chama de Atuvoa FocÀÀov T]mpgpovouem seu V edita, publicado entre as notas da .IZlkfóa:üSecreta de Procópio. [S0] Eustathius,

em comentários à 17ybda(1, 250).

[31] Uma geraçãoé um espaçode trinta anos,comoobservaPorfírio em suas uesfões sopre .17omero.Herodiano explica a Severo que um século encerra

três gerações.Fílon observaque no Evito houve dez reis no espaçode 300 anos (Z)e Ze#züone, $ 20). Plutarco, na Hdá de ZJcuzBO(58A), conta que houve catorze reis em'Lacedemânia em 500 anos. Em sua .Nbua]/nC;t/:r (cap. 2), Justiniano proíbe apresentar um negóciona justiça porquejá haviam passado

quatro gerações.

372

H U GO GROTIUS

nos objetavam [32] a Antíoco, quando ]he demonstravam que e]e pedia cidades que nem ele, nem seu pai, nem seu avâ haviam jamais possuído.

VIII. Solução da objeção de que ninguém é obrigado arenunciaraseusbens 1. Pode-se objetar que os homens, amando a si mesmose ao que possuem, não se deve supor que sejam levados a abandonar seus bens e

que, em decorrência, os atos negativos, mesmo consagradospor um longo espaço de tempo, não seriam suficientes para estabelecer a pre'

sunção de que falamos. Por outro lado, devemos pensar que se deve esperar doshomens e não acreditar que tenham a intenção de deixar, por uma coisa perecível, outro homem num tal estado contínuo de peca-

do, o que seria muitas vezes impossível de evitar sem um semelhante abandono.

2. Com relação ao poder,ainda que geralmente se Ihe atribua um grande va]or, devemossaber que é um grande fardo]33] e que, uma vez mal exercido, torna o homem responsável perante a cólera divina. Como

seria duro, por exemplo,sedois indivíduos que pretendessemser tutores de uma criança litigassem para ver qual delesficaria coma tutela. Ou mesmo, como marinheiros, segundo a comparação de que se serve Platão [34], entrassem em disputa, pondo a perigo o navio, para ver quem assumiria com mais propriedade o leme. Do mesmo modo, não são sempre dignos de louvor aqueles que, com o risco de grandes catástrofes e muitas vezes ao preço do sangue de um povo inocente, são leva-

[32] Titus [33] Marcus

Livius

[59 a.C.-17 d.C.], ..4ó Z:ü.Ée Gon(üfa (XXX]V,

Tü[hus

Cicero]106-43

58,10).

a.C.], /ba .Bebe .D(:/bÉa/o(13,

[34] P[atão[427-347?a.C.], .4 .Repzíóaca (V], 4).

36)

373 CAPÍTULO IV - DO ABANDONO PRESUMIDO E DA OCUPAÇÃO SUBSEQUENTE QUE DIFERE DO USOCAPIÃO E DA PRESCRIÇÃO

dos a disputar o governo dos interesses desse povo. Os antigos elogiam

este comentário deAntíoco]35] que agradeceu ao povo romano pelo fato de, ]ivre dos cuidados de uma administração

por demais extensa [36] ,

estar de posse de fronteiras menos vastas. Entre os muitos sábios pen-

samentos de Lucano [37], este não ocupa o último ]ugar: "E preciso amontoar tão grande quantidade de novos crimes para saber quem dos dois vai comandar em Romã?A essepreço se deveria apenascomprar a felicidade de não ter nenhum dos dois como dono!"

3. Interessa, por outra parte, à sociedadehumana, que o poder seja estabelecido de umá maneira segura e colocado ao abrigo das riva-

lidades. 'Iluda o que se presume possa ser de utilidade a essa sociedade

deve ser visto como favorável. SeAratus de Sicion [38rachava que era difícil abalar possessõesprivadas de 50 anos, quanto mais não se deve adotar essamáxima deAugusto139] que, sendohomem de bem e verdadeiro cidadão que não quer mudar o estado anual da República e que, seguindo os termos deA]cibíades em Tücídides [40], "conserva a forma de governo tal como a encontra". Em seu discurso contra Calímaco, [sócrates [41] chama isso de "manter o governo presente". Em seu discurso aos romanos contra Ru]o, Cícero]42] diz também que convém ao

[35] Marcus Va[erius Maximus]séc.

] a.C.-- séc. ] d.C.], .Fofos e 22ffos]Memolánels

(livro Xly cap. l).

[36] Jânatas, anhode Sau],parece ter sido movidopor essessentimentos(/Saque? XXl11,.17).

[37] Marcus'AnnaeusLucanus [38-65],.1)Barba/ía (11,60-63). [38] Foi assim.que em Atenas, quando a paz foi se]ada,'h'asíbu]o deixou as posses como estavam constituídas.

[39] Aure[ius Ambrosius Macrobius Theodosius]séc.V d.C.], Safurna#arum Z.íbr2'

(11,4,18). [40] Tticídides]465?-395

a.C.], Jl]bfár=bs

da Guezza do .Pl3/aponeso(VI,

[41] .4drersus Ca/Zímacüum(23).

[42] Marcus T\i[[ius Cicero[106-43 a.C.], .De.ZzFe&rarJâ (111,2,4).

89).

374

H

protetor da tranqüilidade

uoo Gxotlus

e da concórdia defender o tempo todo o estado

da República, qualquer que seja. Segundo Tito Lívio]43] , todo homem de bem se contenta com o estado presente das coisas.

4. Mesmo que aquilo que acabamos de dizer não ocorresse, se

poderia, no entanto, opor à presunção que cada um pende a querer conservar o que ]he pertence]44] , essa outra presunção mais forte que não é de acreditar que alguém deixe correr um longo espaço de tempo

semapresentar nenhum indício suficiente de suavontade]45] .

IX. Parece mesmo, deixando-se de lado qualquer conjectura, que em virtude do /zzs guaí/zzm (direito das gentes) a propriedade pode ser transferida por uma posse imemorial Pode-se dizer talvez, não sem alguma probabilidade, que não se trata aqui de simples presunção, mas que é o direito das gentes voluntário que introduziu essa ]ei]46] que uma posse imemorial e ininterrupta, nem turbada por um apelo a árbitros, operaria translação plena e intei-

ra da propriedade. Deve-secrer, de fato, que as naçõesentraram em acordo nesse ponto, pois era uma coisa que interessava muitíssimo à paz comum. Foi com razão que falei de uma posseininterrupta, ou seja, segundo a expressão de Su]pício, em Tito Lívio]47]

: "De uma só e con-

tínua sequência de direito, da qual se teria sempre usufruído, sem ne-

[43] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó [ü.óe GondJfa Q(XXV. 34,3). [44] Aug. De C]avasio, in ,S zmma, ]zz verão Inuenfa. [45] Crantzius, Saxonic.(X], n.' 10 e 13).

[46] Gregoras narra(Hisf. .Byz., XI, 1) que os imperadores gregos haviam dado a cidade de Focéia aos ancestrais de Catanas, sob a condiçãode que cada sucessor declarassepor escrito que mantinha essa cidade somente a título de admi-

nistrador, com receio de que com o tempo uma longa possenão apagasse insensivelmente o direito do imperador. [47] Titus Livius]59

a.C.-17 d.C.], ..4ó [i}.óe (Zncízta Q{XXV. 16,8).

375 CAPÍTULO IV- DO ABANDONO PRESUMIDO E DA OCUPAÇÃO SUBSEQUENTE QUE DIFERE DO USOCAPIÃO E DA PRESCRIÇÃO

nhuma interrupção." O mesmo personagem fa]a em outro ]oca]]48] "de uma perpétua posseque ninguém revoga na dúvida". Uma posse de que se usufrui por intervalos não produz nenhum efeito. Essa era a que os numidas opunham aos cartagineses, quando lhes diziam que "segundo

as ocorrências, às vezes ela lhes pertencia, outras vezes tinha sido a parti[ha do mais forte" [49].

X. Se aqueles que ainda não nasceram podem perder seu direito dessa maneira 1. Surge aqui outra questão, bem mais diHicil. E aquela de saber

seo direito dascrianças ainda não nascidaspodetacitamente seperder por tal abandono. Se dissermos que não, a definição que demos há pouco

denada serve para proporcionar tranqüilidade aos impérios e às propriedades, porquanto a maioria dos reinos e dos bens privados são de tal natureza que devem passar aos descendentes.Se a6rmamos que isso é possível, pareceria surpreendente que o silêncio pudesse prejudicar aque-

les que não puderam falar, porquanto não existiam, ou que o fato de uns possatrazer prejuízo a outros. 2. Para dar solução a essa dificuldade, deve-se saber que aquele que não nasceu ainda não tem direito algum, como uma coisa que não existe não é dotada de propriedade alguma. Se o povo, da vontade do qual emana o direito de reinar, vier a mudar sua vontade, não faz ne-

nhuma injúria aos que não nasceram ainda, porquanto não adquiriram nenhum direito. Comoum povopode mudar sua vontade de maneira expressa, pode-setambém presumir que a mude tacitamente. Quando, pois, o povo mudou assim devontade, numa épocaem que não

[48] Idem, ..4ó CXFóe(;bndzfa Qo

C12elo P7anclo (4, 11)

715 CAPÍTULO XVll - DO DANO CAUSADO INJUSAMENTE

E DA OBRIGAÇÃO QUE DISSO DECORRE

no e o ]ilstado tem um direito próprio para exigir isso [5] . Por isso é que,

se a coisa pública sofre algum dano pela escolha de um indigno, será obrigado a repara-lo. Do mesmo modo,todo cidadão não indigno, ainda

quenão tenha direito próprio de obter um emprego,tem contudoum verdadeiro direito de pedi-lo como os outros. Se é impedido no exercício dessedireito por violência ou por dolo, poderá exigir a estimativa não da coisainteira que pedia, mas desse dano incerto. O mesmo ocorre com aquele a respeito do qual um testador teria sido impedido por violência ou por do[o de [he [egar a]guma coisa [6] , pois a capacidade de receber

um legado é uma espécie de direito e se segue que é agir contra seu direito perturbar a liberdade do testador no que Ihe diz respeito.

IV A estimativa do prejuízo se aplica também aos frutos Pode-se ter menos e por conseguinte ter sofrido um dano, não

somentena coisa,mas ainda nosü'utos que sãopropriamente os6'utos da coisa, sda que tenham sido recebidos ou não, contanto que se deves-

se percebê-los, dedução feita das despesas de melhoria ou que foram necessárias para perceber os frutos, em virtude da regra que nos proíbe

nosenriquecermos às expensasde outrem.

V. Comose aplica ao proveito do qual se está privado A esperança do proveito que se poderia retirar de uma coisa que é nossaserá estimada não segundo o que a coisa pode valer em si mesma,

massegundo a disposição próxima que tinha de produzir seu efeito [7] , comona semeadura, a esperança da colheita. l51Tomase Cajetan., ÍZ 2, quaesf. ag arf. Z Bato, ]lvro /V guaesf, 6 Lessius, #w'a

11,cap. 12, dub. !8 Cawamuvlas,ad cap-peccatum,parte 2, $ 7. t6ÀSolo, limo rv quaest. 7;Lessius, limo 11,cap. 12, dub. 16, n.' 3.

.l\ L. 73,in quantitate, $magno, Dig., adlegem Falcid.

716

H UGO GROTlus

VI. Daqueles que causam prejuízo, primeiro item Independentemente daquele que causa o dano por si mesmo e imediatamente

[8], outros também são obrigados, seja fazendo, seja não

fazendo. Entre esses que são obrigados por ter feito, uns estão antes de

qualquer outro, osoutros depois.Antes dosoutros, aquele que ordena. que dá o consentimento requerido, que ajuda, que concederefúgio ou que participa no crime de qualquer outra maneira.

VII. Segundo item Ao que vem depois, aquele que dá conse]ho, que e]ogla [9], que

aprova. Cícero, na segunda /a]Zzb/ca [10], diz: "Qua] a diferença, com efeito, que há entre aquele que aconselha um ato e aquele que o apro' va?" [11]

VIII. De igual modo, não fazendo o que devem, primeiro item Aqueles que são obrigados, mesmo não fazendo, estão igualmen-

te antes dos outros ou depois. Antes dos outros, aquele que, devendo,

segundoo direito propriamente dito, impedir o mal proibindo-oou pres'

[8] Tomas, ÍZ .2 guaesf. ÓZ arf, 4 goto, Zmo /V guaesf. € arf. 5. [9] Em seu discurso aos godos, que se encontra em Procópio (GofÉÜ/c.,111,25), Totila

àl$ ':Aquele que elogia o autor de uma ação deve ser considerado ele própHo o aufoz"

U]piano

diz

na

Zei

],

-De Servo

(bn'upfo:

'71/esmo

quando

o escoa'

vo estivesse de todo decidido a fugir ou a cometer um roubo, aquele que elogia essa determinação é responsável, país não se deve aul31entaro mal através do elogio. [10] Marcus

']\]]ius

(11,12,29)

Cicero]106-43

a.C.] , //? .4Za/aum .4nlon

u n Oraózones .F%Jjlloplbae

[11] Amiano (XXVl1, 11, 5) ap]ica essaspalavras a Probus, prefeito do pretório Segundo a lei lombarda (livro IY tít. viVI1, 4), mesmo aquele que aconselhoué chamado a depor. Ver a .E»lbfoJaaos .Romanos (l, no final) e sobre isso os

antigos escritores.

717 CAPiTUtO XVll - DO DANOCAUSADO iNJUSAMENTE E DA OBRIGAÇÃOQUEDISSO DECORRE

tar socorro a quem recebeu uma injúria, pelo parafrasta

não o faz [12] . Esse é chamado

caldeu (Zeç;:fZüo XX, 5): "11Jmhomem que conülrmou os

outros no mal'

IX. Segundo item Depois dos primeiros, aquele que não dissuade, quando o deve, ou

guarda silêncio sobre um fato que devia denunciar [13] . Em todas essas coisas, relacionamos esse "deve" ao direito próprio que é objeto da justi-

ça exp]etora]de compensação], que provenha da lei ou de alguma qualidade. Se se deve em virtude da regra da caridade, comete-se certamente

pecadoao emiti-lo e, contudo, não haverá obrigação de reparação, pois essaobrigação viria de um direito propriamente assim designado, como o dissemos antes.

X. Que influência se deve ter tido sobre o ato, a esse fim? Deve-se saber também que todos aqueles de que falamos são obrigados assim, se tiverem sido verdadeiramente se eles contribuíram

a causa do dano, isto é,

para e]e em todo ou em parte [14] . Ocorre seguidas

vezescom relação daqueles que agem ou que negligenciam, entre os que vêm depois, algumas vezes mesmo com relação aos primeiros que,

mesmosem um ato de sua parte ou sem sua negligência, aquele que causou o dano e$.tevedeterminado a cometê-lo. Nesse caso, aqueles de

[12] Nicetas Choniate diz que 'be considera como c z/Fadode um ihcéndl'o não somente aquele que pês fogo, mas taJnbém aquele que, podendo impede-ic, não 3 fez"

ávida

de

!üanue]

Comneno,

\,

Sb

[13] Lessius, ]luro ÍZ cap. ]J, dub. ]0. [14] Tomas,

/C .g quaesf.

6

arf.

6 goto,

Zwo

/K

quesf,

Z arf.

3.

718 H UGO

GROTIUS

que falei não são obrigados. O que, no entanto, não deve ser assim entendido [15] e que, se havia muitos outros indivíduos para aconselhar, por exemplo, ou para ajudar, aqueles que tivessem aconselhado ou

ajudado não seriam obrigados. Basta que pareça que, sem essa assistência ou esse conselho, aquele que causou esse dano não o teria causa-

do. Essestambém, se tivessem aconselhadoou ajudado, seriam Obrigados igualmente.

XI. Que ordem seguem Sãoobrigados em primeiro lugar aqueles que, por sua ordem ou

de outra maneira, levaram alguém a um fato; na fa]ta de]es [16], aque' le que realizou o ato culpado, e depois dele, os outros. Cada um daqueles que foram causa da ação, em sua totalidade, se a ação foi toda produzi-

da por eles, embora não estando sozinhos [17].

XII. A obrigação se estende também às seqüelas do prejuízo Quanto ao que é obrigado em razão de um ato, é obrigado ao mesmo tempo pelas conseqüências que dele derivaram por um efeito da natureza do ato [18] . ]sso é tratado numa controvérsia de Sêneca [19], a

propósito da espéciede um plátano incendiado, por ocasião do qual uma casa havia sido queimada. O autor põe esse princípio: ainda que não

[15] Cajetan., ad quaesf. õg arf, a Medin., quaesl, Z [16] Lessius, alma ]Z cap. /3, duÓ.J e dtzó.4. [17] Lei lombarda, livro 1, tít. IX, 5 [18] Ver Tomas,

.C .g quaesf.

.XX; a/f.

Dig., Ad ]egeln Aquiliam. [19] ExcerPÉa,

.auto

V centrou

5. e .Z,el'.gZ SI'serras

será,zzm

$SI quis insuiam:

5.

l

719 CAPITULOXVll - DODANO CAUSADO tNJUSAMENTE E DA OBRIGAÇÃOQUE DISSO DECORRE

tivessesquerido causar senão uma parte do dano, deverás ser obrigado pelotodo como se o tivesses causado de modo premeditado; para poder se defender alegando sua imprudência, é preciso não ter querido fazer

absolutamentemal algum. Ariarate, rei doscapadócios,tendofeito, para se divertir, obstruir a embocadura do rio Meias, o Euõ'ates subiu com a impetuosidade desseriacho que havia rompido seus diques, arrasando uma parte do território dos capadócios e causando grandes danos aos gaiatas e aos frígios; o debate foi levado diante dos romanos e Ariarate teve de pagar 300 talentos pelos prejuízos [20] .

xlll. Exemplo do homicida Que isso sirva de exemplo. Aquele que matou injustamente um homem é obrigado a pagar as despesas dos médicos, se houve a presen'

çadeles, e de dar aos que o morto sustentava por dever, a seus pais, por exemplo, a suas esposas, a seus filhos, tanto quanto pudesse valer essa

esperançade sustento, levando em consideração a idade do morto [21] . Assim é que se pode ler que Hércu]es [22] havia pago uma multa aos

filhos de 16ito que havia matado para obter mais facilmente a expiação de seu crime. Miguel de Efeso123], no quinto livro da .ÉZzcua .Mbânaco

deAristóteles, diz: "Aquele que foi morto de algum modo recebe.Com efeito, o que sua esposa, seus filhos e seus pais recebem, ele o recebe

em certo sentido." Partimos do homicida injusto, isto é, daquele que não teve o direito de fazer aquilo de que decorre a morte. Por isso é

que se alguém\l\teveo direito de matar, mas se pecou contra a

[20] Estrabão [58? a.C.'21? D.C.], GeoFraaa (Xl1, 2, 8) [21] Lessius,

]l'vro -ZZ c-ap. g duó. /g.

[22] Diodoro da Sicília, ]ivro IV. 31.

[23] Miguel de Éfeso, comentários à Éflca a NJcámaco(V. 2) de Aristóteles

720 H UGO

GROTIUS

caridade [24], como aque]e que não quis fugir, não será obrigado. De

resto, a vida de um homem livre não é suscetível de estimativa; a do escravo está sob outra medida, uma vez que pede ser vendido.

XIV Daquele que empregou a força contra outrem Aquele que mutilou será igualmente obrigado a pagar as despesas e a estimativa do que aquele a quem mutilou poderia ganhar, no mínimo [25] . Aqui, porém, as cicatrizes tampouco, como antes, a vida.

são suscetíveis de estimativa, quando se trata de homem lide [26] Deve-se dizer a mesma coisa do fato de terjogado alguém na prisão.

XV Daquele que cometeu um adultério ou atentou ao pudor Assim é que um homem e uma mulher adúlteros sãoobrigados não somente a tornar o marido indene do sustento do filho, mas a compensar também os 6llhos legítimos se soâ'em qualquer dano da concorrência de uma descendência, assim obtida, na herança [27] . Aque]e que

atentou contra uma virgem pela violência ou por fraude é obrigado a indenizar na proporção da esperança que ela perde de se casar. Ele é obrigado até a casar com ela, se conseguiu manter relações com ela sob essa promessa [28] .

[24] Lessius, duó. .2/. [25] A mesma coisa era observada entre os judeus (Baba Kama, cap. Vlll,

1) e entre

os ingleses e os dinamarqueses. Ver um tratado entre esses dois povos, na dissertação do sábio Pontanus sobre o mar(22Íscuss, ./ÍJkZ.,1, 21) a6À Waxaxn.,cap- 15, n.' 22, L. 7, ult., Dig., Dehis qui effud. vel def. [27] Lessius,

/]'v?vo ZZ] cap.

]0,

dlzó.

6.

[28] Lessius, Zzrc} ZZ cap. /q duó. .g e 3.

CAPÍTULO XVll - DO DANO CAUSADO INJUSAMENTE

E DA OBRIGAÇÃO QUE DISSO DECORRE

XVI. Do ladrão, do seqüestrador e outros O ladrão e o sequestrador são obrigados a devolver a coisa subtraída com seu acréscimo natural, a reparação do dano que foi a conse-

quência do roubo ou o equiva]ente do ]ucro cessante [29]. Se a coisa

tiver perecido,a estimativa não deveser muito elevada,nem muito baixa, mas média. Nessa classe, deve-se colocar também aqueles que fraudam os impostos ]egltimos [30] . São obrigados igua]mente aque]es que causaram um dano por uma frase injusta, por uma acusaçãoinjus-

ta, um testemunho injusto.

XVII. Daquele que provocou a promessa por dolo ou por temor injusto Aquele que por dolo, violência ou temor injusto deu origem ao contrato ou à promessa é obrigado a restituir por inteiro àquele com quem tratou porque esse último teve o direito de não ser enganado, comotambém de não ser coagido. O primeiro, por uma decorrência da

naturezado contrato; o segundo,em virtude da liberdade natural. Deve-secontar entre essesindivíduos aquelesque não quiseram fazer senãopor dinheiro o que estavam obrigados a fazer por dever [31] .

XVIII. Que decidir se foi por temor justo segundo o direito natural? Aquele que deu ocasião à violência que sofreu ou ao temor pelo qua[ foi coagido,pão deve cu]par-se senão a si mesmo [32], porquanto um ato involuntário que tem por princípio alguma coisa de voluntário é moralmente considerado como voluntário. [29] Lessius, limo .ZZcap. .Z.gduó. ]Z

[30] Lessius, /Juro .i21cap. J.Z duó. 8 Covarruvias, c. peccafum, parte 2. [31] Covarruvias,

c. peccaÉum, pa/'íe

[32] Lessius, /)w'o .it cap. /a

dub. 6.

.g f 3 e 5.

722 H UGO

GROÍI

US

XIX. Que decidir se se trata de um temor que o direito das gentes julga justo? Como foi introduzido pelo consenso das nações que todas as guer-

ras feitas e declaradas de parte a parte pela autoridade do poder sobera-

no sejam consideradas comojustas, quanto aosefeitos exteriores, do que falaremos a seguir, todos concordam também que o temor causado

numa tal guerra seja considerado justo, de modo que, ao menos, que

aquilo que foi obtido dessa maneira não possaser reclamado. Nesse sentido é que pode ser admitida a distinção de Cícero [33] entre um inimigo com o qual temos, segundo sua expressão, vários direitos comuns, isto é, em virtude do consensodas nações,sejam eles piratas ou [adrões[34]. Se esses ú]timos extorquiram a]guma coisa incutindo medo.

pode-se fazê-los devolver, a menos que um juramento tenha intervindo. mas o mesmo não ocorre os primeiros. E porque, segundo parece a Políbio

[35], a causa da segunda guerra púnica tinha sido justa para os cartagineses, porque os romanos, tendo declarado a guerra a eles quando estavam ocupados por uma sedição de mercenários, além de lhes terem tomado a ilha da Sardenta e dinheiro; essa opinião tem alguma

aparência de equidade natural, mas se afasta do direito das gentes, como será explicado algures.

XX. Até que ponto os poderes civis são responsáveis pelo prejuízo causado pelos súditos? 1. São obrigados por causa de sua negligência os reis e os magia' trados que não empregam os remédios que podem e devem empregar para impedir os latrocínios e a pirataria. Foi a essetítulo que os habi-

tantes de Scyrosforam condenadosoutrora pe]os"anHlctiões"[36]. Recordo-me que os chefes de nossa pátria concederam a grande número de [33] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], De (2#c2]s(111,29, 108) [34] Bodin,

Zwo

V .Z)e Repuó/)'ca,

cap.

6.

[35] Po[íbio [200?-120? a.C.], Jílifór2bs (111,13). 136] Plutarco,

(2h. (483 C).

723 CAPÍTULO XVll -

DO DANO CAUSADO INJUSAMENTE

E DA OBRIGAÇÃO QUE DISSO DECORRE

cidadãos,por comissão,o poder de fazer no mar capturas do inimigo. Alguns dessesarmadores se apoderaram das coisaspertencentes a amigos,abandonaram o país é se puseram a percorrer o mar, não tendo mais retornado embora fossem chamados. Por causa disso foi pergun' Lado se nossos chefes eram obrigados por se terem servido de gente de

má-fé ou por não ter exigido deles uma caução. Eu disse que não esta-

vam obrigados a nada mais que pum-los ou entregar os culpados se pudessemser encontrados. Além disso, a fazer justiça com relação aos bens dos saqueadores. Eles não tinham sido a causa dessa injusta pira'

taria e em nada haviam participado. Não estavam obrigados por ne' nhum direito a exigir uma caução, porquanto podiam conceder o poder a todos os súditos, mesmo sem comissão, de despojar o inimigo, o que havia sido feito outrora. Tal permissão não foi a causa do dano feito aos

aliados,porquanto os cidadãosprivados podiam mesmosemuma per' missãosimilar armar naviose aventurar-sepelosmares.Não tinham conseguidoprever, por outro lado, que essesarmadores fossem uns miseráveis e não é possível, ainda, evitar de empregar os serviços de deso-

nestos,casocontrário, não seconseguiria reunir nenhum exército.

2. Se os soldadosde terra ou de mar haviam prejudicado em alguma coisa seus amigos, contrariamente

às ordens dadas, os reis não

seriam responsáveis por isso, o que é provado pelo testemunho da Fran-

ça [37] e também da Inglaterra. Que alguém seja obrigado, sem que tenha culpa, pelos atou daqueles que empregar, não é uma regra do direito das gentes, segundo o qual essa questão deveria ter sido tratada, mas do direito civil. Não se trata de uma disposição geral, mas de uma

medida introduzida contra os donos de navios e alguns outros, por ra'

zõesparticulares. Foi também segundoessamáxima que foi pronun' dada a sentença pelos juízes da corte soberana contra certos pomeranos,

a exemplo do que havia sido julgado duzentos anos antes numa causa não diferente. [37] Vêr também o tomo ]ll das Ordenações da -lQunça,título 11, (ordenações do ano de 1543, cap. 44; (2z'denaçõesda -Z;bunça,tomo 111,título 3, Ordenações de 1583, a cap. 44

724 H UGO

GROTI

US

'1

XXI. Que naturalmente ninguém é obrigado a nada pelo fato de seu animal ou seu navio ter causado danos. sem que tenha sido por sua culpa Deve-se observar também que a faculdade de entregar como reparação o escravo ou o animal que causou uma perda ou um dano decorre do mesmo direito civil. O dono que não está em falta não é naturalmente obrigado a nada. Tampouco aquele cujo navio, sem que fosse

por sua culpa, danificou o navio de outro, embora, em virtude dasleis de muitos povos, como em virtude da nossa, um semelhante dano seja

ordinariamente dividido, por causada diÊlculdadede provar a culpa.

XXII. Um prejuízo pode ser causado contraareputação e ahonl'a e de que manei'a repara-lo O dano, porém, como dissemos, pode ser causado em detrimento

da honra e da reputação. Por exemplo, por golpes, ultrajes, maledicência, calúnias, zombarias e outros meios semelhantes. Aqui, não menos

que no roubo e outros crimes, deve-sedistinguir o caráter viciado da ação de seu efeito [38] . O castigo responde àquele; a reparação do dano,

a esse.Areparação sefaz pela confissãoda culpa, sinais expressosde consideração, testemunho comprovado de inocência [39] e outras satisfaçõessimilares. Tal dano poderá contudo ser reparado também por dinheiro, se o ofendido o quiser, porque o dinheiro é a medida comum dascoisasdotadasde uti]idade [40].

[38] Lessius, /]wo /Z cap. ].7, duó. /q .2â 2Z

139] Ver em Cassiodoro(IV. 41), o exemplo de Viviano que se arrependeu de ter acusado alguém injustamente

[40]

goto,

/Juro

/K

guaesÉ.

a arf.

J.

l

XVlll

DO DIREITO

DAS EMBAIXADAS

Sumário 1. Certas obrigações decorrem do direito das gentes, como o

direito de embaixada. 11.Entre quais pessoas tem lugar.

111.Se uma embaixada deve ser sempre admitida. IV Contra os embaixadores que tramam proyetosperigosos,a defesa épermitida, mas não a punição.

\daquele a quem o embaixador não é enviado não é obrigado pelo direito de embaixada.

V:l.Oinínjgo a quemfoi enviado um embaixador éobrigado. VII. O direito de talhãonão pode se opor. VIII. O direito dos embaixadores se estende também às pes soamde seu séquito, se os embaixadores o quiserem. IX. Também aos bens móveis.

X. ExeJnplos de obrigação, sem direito de coagir.

XI. Imoortância dessedireito de embaixada.

727 CAPÍTULOXVlll - DODIREITO DASEMBAIXADAS

1. Certas obrigações decorrem do direitos das gentes é7us.gPní/zlmJ,

como o direito de embaixada Até o presente falamos das coisas que nos são devidas segundo o direito de natureza, não tendo misturado com isso senão poucas obser-

vações sobre o direito das gentes voluntário, enquanto acrescealguma coisa ao direito de natureza. Resta descrever as obrigações introduzidas por esse/tzsgenúum que chamamos de voluntário. Entre as obrigações dessa espécie, o que há de mais considerável, é o que se refere ao direito

dasembaixadas. Em toda parte, com efeito, lemos: "o caráter sagrado das embaixadas",

"a inviolabilidade

dos embaixadores"

[1], "o direito

das gentes deve ser observado a seu respeito", "o direito divino e o direi-

m roniDonlo x.i.. 18, Si

quis, Dig., De Legationibusàà\z. "Se alguém bateu num

embaixador dos inimigos, esse ato é considerado como cometido.contra o jus gentium porque os embaixadores são considerados como invioláveis e é por ôsso

lue se, quando embaixadores de alguma nação se encontra no meio de nós, a guerra vem a ser declarada contra essa nação, eles ficam livres, Isso é, de fato, conforme o jus gentium. Por isso Quintus Nucius dizia geralmente que aquele lue tivesse ferido um embaixador deveria ser entregue aos inimigos a quem pertencia o embaixador." XJ\D\a a t.J.i.7, 1nge Juíza, IJig., Aa regem .luilam ae w

pt b/zcd a6uma que está sob o jugo da lei Ju/ü de w'puó/lba no que diz respeito aos embaixadores, os enviados encarregadosde trazer a palavra ou seu séquito

aquele que é acusadode ter ferido ou insultado algum dentre eles. Flávia

Josefo em .4nEigüidadesJudaicas(XV. 5, 3) recomenda muito o respeito devido aos embaixadores, cujo nome, diz, é comum com o dos anjos de Deus. Segundo Vax ãa ÇDeLíngua Latina, lllÜ. "Os corpos dos embaixadores são invioláveis Clcexo ( terrina \, zsà àlLZ."0 direito dos embaixadores é garantido .por uma proteção divina e humalla; o ]lome desse direito deve ser de tal modo santo e

venerável que deve estar ao abrigo de toda coação, não somente entre os aliados. masxtambém no meio das fileiras dos inimigos." ç) aa)kal da Vida de

EJ)amlnondas(Cornelius Nepos,5, 1) diz que esseúltimo,'be consfderarzcomo coberto por esse direito de embaixa.dor que é reconhecido como inüo]áve] em todas as nações': Diodoro da Sicília(Excerpf.

Pelresc., n.' 248) fala da 'bqguran'

ça gue decorre da halo/aóJ7jdadedos embaixadores'l Há em Papínio(livro llx que 'bs z19/iígjbsdo empa nadar são prufeg7dos"e que 'b narre do embaixador é sagrado entre as nações, aóravás düs sócu/os'l Jogo Crisóstomo diz: 27es se' quer respeitaram a' lei comum a todos os homens que quer que não se,faça

qua/qtZe/'ma7 aos empalxàdores."Sérvio, no comentário ao décimo canto da .Erlezda, diz que eles estão 'bo aórJ&ode podadoação,segundoo Jus genffum'l Para não mencionar todas as passagens,acrescente-seTiro Lívio(livro 1) sobre

728 HUGa GRoíius

to humano lhes é devido", "o direito das embaixadas é santo entre as nações", "os tratados são santos para as nações", "é a aliança do gênero

humano", "as pessoas dos embaixadores são santas", "esse nome foi santo para os povos através dos séculos", segundo Papínio [2]. Falando das respostas dos arúspices, Cícero [3] diz: "Para mim, sou dessa opinião, que o direito dos embaixadoresnão é somente fortalecido pela proteção dos homens, mas mesmo o direito divino Ihe serve de fortaleza.« Por isso é que viola-lo não é somente injusto, mas ainda ímpio [4], segundo o testemunho de todos, diz Filipe numa carta aos atenienses [5]

11.Entre quais pessoastem lugar 1. Deve-se saber primeiramente que essedireito das gentes, qual-

quer que seja e do qual falaremos trata dos embaixadores que enviam uns para os outros aqueles que estão de posse da soberania. Aqueles que, fora dos precedentes, são deputados de províncias, de cidades e

os deputados de Laurentum; Dion Crisóstomo(Z)e .lemeef consuefudyheÜ; Velleius

Paterculus (no início do livro 11);Menandro o Protetor; a carta de Félix a Zenon. no .4;)pendJk ao Código de Teodósio, publicado por Sirmond. Totila, em Procópio (GofZüJb., livro

111) diz:

'0 costume

de lodos os ÓárÓaJ'os, pa/'a /alar

de modo

gnruZ ó de respelfa/' os empa dadores."De Schafnaburg disse a mesma coisa dos

bárbaros. Aimoinus atribui essas palavras ao rei Clóvis: ':Ená7)n,é segundo as

eis divinas e humanas que devemestar ao abrigo de toda doaçãoaqueles que rém como mediadores no meio dos exércitos inimigos. Somente a embaixada.

10 meio dos exércitos, é a mediadora da paz. Aquele que se ocupa de uma

empacada despoyb-se do caráfer de In])nJko." Ver também Radevic.em seu HpéndlbelA respeito dospoloneses,ver Cromer,livro XX; a respeitodos turcos. Leunclavius, livro Vlll e livro XVll; sobreos mouros.Mariana. livro XII. [2] Publius Papinius Statius [45-96], ZZeóa/k(11,486) [3] Marcus

'lnulbus Cicero [106-43 a.C.], Z)e Jyb/'uspJbum -Respons/s (16, 34).

[4] "Hfo /zzpd', diz Plutarco, na Vida de Paulo Emílio, narrando o fato de Gentius. Flávio Josefo, em .4nÉl#ü/dadasJudalbas(15,3), diz: ':Essenome pode rc?co/]cí' .iar os inimigos entre eles; o que se pode então fazer de mais ímpio que conde lar à morte os embaixadores que falam pela justiças" [5] Demóstenes,

.eblk o/a P% ]bPP/ (4)

729 CAPÍTULO XVlll - DO DIREITO DAS EMBAIXADAS

outros são regidos não pelo direito das gentes que existe entre as diversas nações, mas pe]o direito civil. Um embaixador, em Tifo Lívio [6], se

classifica como mensageiro público do povo romano. Em outra passa' gem, no mesmo Tito Lívio [7], o senado romano diz que o direito dos embaixadores foi estabelecido para o estrangeiro, não para o cidadão. Cícero [8], para mostrar que embaixadores não devem ser enviados a

Antânio, diz: "De fato, não é comAníbal, inimigo da república que temos negócios,é com um cidadão." Virgí]io [9] exp]icou com tanta c]areza aqueles que devem ser considerados estrangeiros que ninguém entre

osjurisconsultos poderia fazê-lo de modo mais claro: 'Todo país que não é submisso a nosso cerro é, acredito, estrangeiro. 2. Aqueles que estão unidos por uma a]iança desigua] [10], não deixando de ser donos de si mesmos, têm o direito de embaixada. Mesmo aqueles que em parte são súditos e em parte não o são, pela parte

comrelação à qual não sãosúditos. Os reis que foram vencidos numa guerra solene e despojadosde seu reino perderam, com as outras vanta-

gensda soberania, o direito de enviar embaixadores. Por isso, Paulo Emílio reteve os arautos de Perdeu que ele havia vencido.

3. Nas guerras civis, a necessidade dá algumas vezes lugar a

essedireito, contra a regra. Quando,por exemplo,o povoestá dividido em partidos quase iguais [11] , de ta] modo que não se sabe de que ]ado

Íê[ ;iii;:] i:ii]ius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó HTZ]eGo/]dlfa(1, 32, 6). [7] Idem, ,4ó Z]&.Ée Oo ld'fa(V], [8] Marcus

Tullius

Cicero]106-43

17, 8) a.C.], Zn .4/nrcum .4nfomi'um Oraüolles

/]ü ZÜppfcae

(V. 10, 27) [91 Publius

Vergi[ius

Mano [71-19 a.C.], E17e/da (V]1, 369).

[10] Gramar, ]ivro XXX.

[11] Ver Mariana(livro

XXll, cap. V]]]) a respeito dos embaixadores da cidade de

Tbledo junto ao rei Jogo e sobre aqueles de F'landres, Crantzius, Saxonic. (Xll, 33)

'1

730 H U GO

GROTIUS

se encontra o poder soberano ou quando dois pretendentes disputam a sucessão ao trono com um direito plenamente controverso. Nessa ocor-

rência, uma só nação é considerada como que formando duas nações

por um tempo. Assim Tácito [12] acusaos partidários de Flávio de ter. no 6'agor das guerras civis, violado na pessoa dos partidários

de Vitélo a

direito dos embaixadores, sagrado mesmo entre as nações estrangeiras [13] . Os piratas e os salteadores que não formam um Estado não podem

se apoiar no direito das gentes.Tibério, vendo que Tacfarinas Ihe havia enviado embaixadores, se indignou com o fato de "um desertor e pirata

se erigindo como poder inimigo"; essassãoas palawas de Tácito [14]. Algumas vezes, porém, pessoas dessa condição obtêm o direito de em-

baixada em virtude de uma garantia que lhes é concedida, como outrora os fugitivos

dos Pireneus [15] .

111.Se uma embaixada deve ser sempre admitida 1.Há duas coisasque vemosem toda parte serelacionar ao direito das gentes, a propósito dos embaixadores. Em primeiro lugar, que sejam admitidos [16] , depois que não se use de violência alguma contra eles. Sobre a primeira, há uma passagem de Tito Lívio]17], onde Hannon,

senador cartaginês, se levanta assim contraAníbal: "Nosso digno general recusou receber em seu acampamento embaixadores que vinham [12] Caius Corne[ius Tacitus [55-120],HJkfol:üe (111,80). [13] E Magnentius,

Zósimo

(11, 47): ':1/agnenfzus

de/lóerava

consJÉ'o mesmo

se

mandava de volta Filípe sem ter-lhe feito nada ou se o retinha, calcandoaospés

os (#re fos dos empa/dadores. " EsseFilipe tinha vindo da parte de Constância. [14] Caius Come[ius Tacitus [55-120],..4nnaJes (111,3) [15] Caius Ju[ius Caesar[[O1-44a.C.], Z)e.Be//oCFw71 (111,19). [16] Donato, no pró]ogode J?éc7>a, diz que 'b oór7kaçãode ouvir um enwbdoencar' regado de cevar a palavra é uma regra do ius gel\\Àum.

[17] Títus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4b C/róe(hndfa (XXI, 10, 6).

CAPITULO XVlli - DO DIREITO Dn

EMBAIXADAS

em nome dos aliados e para os aliados; ele calcou aos pés o direito das gentes." Isso não deve, contudo, ser entendido de modo tão cru, pois o direito das gentes não prescreve que todos sejam admitidos [18], mas proíbe que sejam rejeitados sem causa. Acausa pode provir daquele que

envia, daquele que é enviado ou do negóciopelo qual foi enviado. 2. Melesippus, embaixador dos lacedemânios [19], foi, segundo

opinião de Péricles, mandado de volta fora das fronteiras do território ateniense porque vinha da parte de um inimigo que estava de armas em punho. Assim é que o senado romano [20] declarou não poder admi-

tir a embaixada dos cartagineses, cujo exército estaria na ]tá]ia [21]. Oshabitantes da Acaia não receberam os embaixadores da Pérsia que

tramava uma guerra contra os romanos [22] . Assim Justiniano rejeitou a embaixada de Totila e os godos que estavam em Urbino, enviados

de Be[isário]23] . Po]íbio124] relata que os embaixadores dos cinetenses

eram repelidos em todos os lugares porque formavam uma nação de celerados. Há um exemplo da segunda causa na pessoa de Teodoro que

era chamado ateu. Ele havia sido enviado por Ptolomeu a Lisímaco que não quis recebê-]o [25] . A mesma coisa aconteceu a outros que se ha-

viam tornado odiosospor alguma questão particular. A terceira causa de que falamos tem lugar quando o membro da embaixada é suspeito [26] , como o era com razão para Ezequias a embaixada do assírio Rabzaz [18] Ver Cambden ano de 1571, na quarta das questões propostas nesse local.

[19] Tucídides[465?-395?a.C.], Hllsfádas da Guerra do -Pe/oponeso (11,12). [20] Zonaras, ]X, 13.

[21] Sobre essecostume dos romanos, ver Sérvio, em seu comentário sobre o canta Vll da ElleiHn. [22] Titus

Livius

[59 a.C.-17 d.C.], .4b Z:/róe Gondlfa (XLI,

24, 20)

[23]Procópio,]ivro 11,19 e Gofíü/c.111,37 [24] Políbio

[200?-120?

a.C.], .l1lsfóüas

(IV. 21).

[25] Diógenes LaércioÍséc. 111 d.C.], UI'das, Z)ouÉúnas e Sentenças caos J HÓsoáos

17usÉres (11,8, 102).

[26]Assim é que André de Burgo, embaixador do imperador na Espinha, não foi ....l,;i. íll..i-., n.«.. 'XYTX) Encontra-sealgo de simi]ar em Cromer, limo receb

xx

732 H UGO GKOiiUS

(27-Re&XVl11,36), enviado para sublevar o povo; ou quando a embaixada não responde à dignidade daquele a quem é enviada ou que vem a contratempo. Assim é que os romanos deram a entender aos etolianos

para não lhes enviar embaixada, sem permissão do general romano [27] , como a Perseu para não envia-la a Romã mas a Licínio [28] e que

foi ordenado aos enviados deJugurta de sair em dez dias da ltá]ia [29] a menos que não tivessem vindo para entregar seu reino e seu rei]30].

Tudo está, de resto, fundado precisamente no direito para recusar admitir as missões permanentes que hoje são costumeiras e cuja pouca utilidade está demonstrada pela prática dos tempos antigos, aos quais eram desconhe-cidas.

IV Contra os embaixadores que tramam projetos perigosos, a defesa é permitida, mas náo a punição 1. Com relação ao fato de não cometer violências contra os embai-

xadores [31], a questão é mais difícil e foi tratada de modo diverso por ilustres mentes deste século. Falamos da pessoados embaixadores, depois das pessoas de seu séquito e de seus bens. No tocante à sua pessoa,

alguns são de opinião que, em virtude do direito das gentes, os corpos dos embaixadores não são colocados ao abrigo senão de uma violência

injusta. De fato, pensam que os privilégios devem ser interpretados de

[27] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z]/róeCbndlfa (XXXy11, 49, 8). [28] Idem, .4b C&.óeC;om(#fa(XLl1, 36, 5).

[29] O imperador CarlosV mandou levar para um lugar afastadotrinta milhas de sua corte os embaixadoresda França, de Venezae de Florença que haviam vindo para Ihe declarar guerra(Guichardin, ]ivro XV]]]; Du Be]]ay,livro lll). [30] Caius Sa[[ustius Crispus [86-36 a.C.], Z)e .l:e//o JugurZüiho (XXVl11, 2).

[31] Menandro, o Protetor, diz do imperador Justino 11: 'ZZandouacorrenfaz con' trariamente ao direito das embaixadas, os enviados de Avaros."'Ver EIB. Cothman, resp. XXXll, n.' 29 e seguintes, volume V

733

CAPÍTULO XVlll - DO DIREITO DAS EMBAIXADAS

acordo com o direito comum. Outros pensam que a violência não pode

ser praticada contra um embaixador por todo tipo de indivíduos, mas somente se o direito das gentes foi violado por ele, o que tem ampla abrangência , pois no direito das gentes está incluído o direito de natureza; desse modo, o embaixador poderia ser punido por toda espécie de

delito, à exceçãodaqueles que seoriginam do puro direito civil. Outros restringem isso às coisasque sãofeitas contra a instituição do Estado ou contra a dignidade daquele ao qual o embaixador é enviado. Há pessoas que pensam que esta última colocação é perigosa, que é preciso expor seusplanos àquele que enviou o embaixador e deixa-lo à sua discrição. Há também aqueles que pensam que se deve consultar os reis ou as nações que não estão interessados no assunto, o que pode ser uma questão de prudência, mas não de direito.

2. As razões que cada um alega não concluem nada de preciso porque esse direito não nasce, como o direito de natureza, de uma ma-

neira certa de princípios certos, mas recebesua regra da vontade das nações.As nações puderam garantir completamente os embaixadores ou fazê-lo com certas exceções,pois de um lado há a utilidade do castigo

reservado aos que cometem graves delitos e do outro, a utilidade das embaixadas, das quais se facilita com grande vantagem o envio, concedendo-lhes a maior sega.trança possível. Deve-se pois considerar até que

ponto as nações consentiram, o que não pode ser demonstrado só pelos

exemplos.De fato, existe um número bastante grande de prós e contras. Deve-sepois recorrer ao julgamento de pessoassábias ou a conjecturas. 3. Tenhoxduas autoridades ilustres com relação a isso: uma, Tito Lívio e a outra, Salústio. Aqui vai o que Tito Lívio]32]

diz a respeito dos

legadosde Tarquínio que haviam incitado uma conspiraçãocontra Romã: "Ainda que tenham parecido agir de !naneira a serem tratados como

[32] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], ,4ó CD.óe Oondlfa(11,4, 7)

734 H

UGO GROTIUS

inimigos, o direito das gentes contudo prevaleceu." Vemos nisso que o direito das gentes se estende até os que cometem ates de hostilidade. A passagem de Salústio se refere às pessoasdo séquito da embaixada, de que falaremos a seguir, e não dos próprios embaixadores. Pode-se con-

tudo argumentar justamente do mais, isto é, do menos crível, ao menos, isto é, ao mais críve]. Sa]ústio [33] fala assim: "Co]oca-se sob acu-

sação,mais por motivos de equidade e de justiça que em virtude do direito das gentes, Bomilcar que era do séquito de um príncipe vindo a

Romã sob a garantia da fé pública." Ajustiça e a equidade, isto é, o direito puro de natureza, so6'em quando se inílige um castigo, quando o

que se tornou culpado é encontrado, mas o direito das gentes excetua os embaixadores e aqueles que, como eles,vêm soba proteção da fé públi-

ca. Por isso é que é contrário ao direito das gentes, pelo qual muitas coisas são proibidas, mas que o direito de natureza permite que os embaixadores sejam objeto de acusação.

4. A conjectura tem igualmente seu lugar aqui. De fato, é mais segundo a verdade que os privilégios sejam considerados como que con-

ferido alguma coisa além do direito comum. Seos embaixadores não estavam ao abrigo senão de uma violência injusta, não haveria nisso nada de considerável, nada de especial. Acrescente-se a isso que a segu-

rança dos embaixadores tem a ver com a utilidade que provém da pena. O castigo pode ser infligido por aquele que enviou o embaixador, se o quiser; se não o quiser, pode-seexigi-lo dele pela guerra, como se tivesse aprovado o crime. Alguns objetam que seria mais condizente que um só

fosse castigado do que envolver muitos numa guerra. Se aquele que enviou o embaixador aprova seu ato, a pena do embaixador não nos livraria da guerra. De outro lado, a salvação dos embaixadores é coloca-

[33] Caius Sa[[ustius Crispus]86-36 a.C.], De .BeZ/o JugurÉüíno(XXXV.7)

735 CAPITULO

Will -

DO DiREiTO

DU EMBAIXADAS

da numa situação bem crítica, se devem prestar contas de seus atos a outro que não seja aquele por quem foram enviados. Como os conselhos daqueles que enviam os embaixadores e daqueles que os recebem são na

maioria das vezes de tempos diferentes e muitas vezes contrários, muito diÉcilmente se deixaria de encontrar sempre na conduta do embaixa-

dor alguma coisa a rever que tomaria a figura de um crime. Embora haja certos crimes que sãotão manifestos que não deixam dúvida algu-

ma, um perigo universal basta todavia para a equidadee a utilidade de uma lei universal. 5. Por isso, creio plenamente que é do agrado das nações que o costume comum que submete à lei do lugar qualquer um que se encon-

tre no território de outrem, seja alterado em função dosembaixadores. Como uma espécie de exceção, são tomados como pessoas daqueles que

osenviam. "Ele havia levado com ele a imagem do senado, a autoridade da república", diz Cícero [34] de certo embaixador. Do mesmo modo, por

uma suposição similar, deveriam ser considerados também como estando fora do território, decorrendo disso que não seriam regidos pelo

direito civil do povono meio do qual vivem. Por isso é que, seo delito seja de tal tipo que possa ser desprezado, se deve dissimular

xador deverá receber a ordem de sair das ü'inteiras

ou o embai-

[35]. ]sso Po]íbio

relata que ocorreu com aquele que em Romã preparou a reféns a oca-

siãopara fugir. Deve-seobservar a esserespeito,dizendo-orapidamen' te, que se em outro tempo o embaixador dos tarantinos, que havia cometido a mesma falta, foi açoitado com varas, isso ocorreu por que os ta-

rantinos vencidos haviam começadoa ser submetidos aosromanos]36] [34] Marcus

Tullius

Cicero [106-43 a.C.], /n Marcam.4nfonium

Oraüones

.F%JZ]oPjcae

(Vl11,8, 23). [35] Foi o que fez Estêvão, rei da Polânia, aos moscovitas(De Thou, livro LXXlll,

ano de 1581). Elisabete fez o mesmo com os embaixadores da Escócia e da Espanha. Ambos os exemplos podem ser encontrados em Cambden, anos de 1571e de 1584. [36] Assim é que Carlos V proibiu ao embaixador do duque de Milho, que ele considerava como seu súdito, de se afastar de sua corte(Ghichardin, lido XVlll).

'1

736 H UGO

GROTIUS

Se o crime é mais atroz e se transforma em prejuízo público, o embaixa-

dor deverá ser mandado de vo]ta ao que o enviou [37], com o pedido que seja punido ou seja entregue a eles, como lemos que os gauleses haviam

pedido que os Fabius lhes fossem entregues [38] . 6. O que dissemos anteriormente por reiteradas vezes, que todas as leis humanas são de tal natureza que não obrigam em caso de extre-

ma necessidade, isso deve ter lugar também com relação à regra que torna a pessoa dos embaixadores sagrada. Seguramente, o ponto dessa necessidade não consiste em que é preciso punir, pois há outros casos em que o direito das gentes isenta da punição, como se verá a seguir, quando trataremos dos efeitos da guerra solene. Consiste muito menos

em que as circunstâncias do lugar, do tempo e da maneira de punir exigem que se exerça a punição, do que na necessidade de se precaver contra um grande mal, sobretudo um mal público. Por isso é que, se não há outro meio su6lcientepara prevenir um perigo iminente, osembaixadores poderãoser retidos einterrogados.Assim é que oscônsules romanos tomaram conta dos embaixadores de Tarquínio [39], tomando cuidado sobretudo, como diz Tiro Lívio [40], que não fosseperdido nada de suas cartas [41].

7. Se o embaixador empreende alguma coisa à mão armada, poderá certamente ser condenadoà morte, não como pena, mas como defesa natural. Assim é que os gauleses puderam matar os Fabius que

[37] Dion

(Zrcerpfa

.Legaílb/?umJ

relata

que

'b/gz/ns

Jbrens

whdos

de C:arlago

para

Rama, na qualidade de embaixadores, e tendo aí cometido insolências. faltam mandados de volta a Cartago e entregues aos cartagineses, não os tendo maltratado, mas devolvidos sãos e salvos".

[38] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó [rróe Cona'fa (V. 36, 8).

[39] Pelópidas foi .]ançadona prisão por Alexandre, rei de Feres, porque, sendo embaixador, incitava os habitantes da Tessália à liberdade. PlutarcJ e o autor latino

da H'da de .f'e/cÜaudas.

[40] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4ó ZI//óeConcúfa(11,4, 7). [41] Ver De Series, em Hda de Hb u7gue /r

CAPITULO

XViil -

737 DO DIREITO DU EMBAIXADAS

Tito Lívio [42] chama de vio]adores do direito humano. Por isso, nas .17brác#das de Eurípides

[43] , Demófones se opas pe]a força ao arauto

enviado por Euristeu e que empregava a força para tirar os suplicantes.

Como esseúltimo Ihe dissesse"Ousadas açoitar um arauto enviado aqui?", ele responde: "Sim, se essearauto não detém sua mão pronta

para praticar violências." Filostrato, na Vida de Herodes, conta que esseherói se chamava Copreu [44] e que havia sido morto pe]o povo ateniense porque cometia aros de vio]ênciaE45]. Cícero]46] resolveu por uma distinção bem parecida a questão de saber seum filho deve acusar seu pai que seria traidor da pátria. Quer, de fato, que deve para evitar o perigo iminente, mas não, o perigo uma vez evitado, para a punição da crime

V Aquele a quem o embaixador não é enviado não é obrigado pelo direito de embaixada 1. Essa lei, aliás, de que falei, que proíbe praticar violência con-

tra os embaixadores, deve ser considerada como obrigando aquele a quem a embaixada foi enviada e somente se ele a recebeu,como se uma [42] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], Hb Z:/}.óeCondfa (V. 36, 8).

[43] Eurípides, ]?brac#des(271) [44] Ver 27üda (XV. 639) [45] Assim é que se deve interpretar

o que o godo Teodabato diz aos embaixadores

de Justiniano, em Procópio(Gotfá/c., 1, 7): "0 caráfer de embaixador é, na herdade, sagrado e respeitável para todos os homens, mas eles só conservam

seu direito enquanto revestem a dignidade de sua função por uma conduta sábia e regrada. De resto, é opinião comum que se pode até matar um embaixador, quandc?'eleultraja o príncipe, junto ao qual foi enviado ou que desrespeióa a mu/Zer de, aJguóm. " Os embaixadores, depois de ter verificado que nãa

havia o menor motivo de acusa-los de adultério, porquanto sequer haviam saído sem ter guardas, acrescentam sabiamente: "Quando um emóalxador só díz o que está encarregado de dizer por seu amo, se os discursos que profere não agradarem, não é culpa sua; o responsável é aquele que o enviou, pois

nada mais compete ao embaixador que desempenhara missão que Ihe foi co/z#ada."Ver também Camben, no local já citado acima, referente ao ano de 1571 [46] Marcus Tullius Cicero [106-43 a.C.], .De C2f8cízk(111,23, 90).

738

H U GO GROíiUS

convenção tácita tivesse ocorrido a respeito a partir desse momento. De resto, pode indicar, e isso se pratica assim, que embaixadores não sejam enviados, sob pena de serem tratados como inimigos, como isso foi

assina[ado pe]osromanos aos eto]ianos]47] e como outrora foi declarado pe[os romanos aos veienses [48] que, se não se afastassem da cidade, a eles se daria o que Lars Tolumius já havia dado. O mesmo ocorreu com os samnitas [49] que disseram aos romanos que se se apresentassem

numa assembléia pública qualquer do Samnium, não sairiam sãose salvos. Essa lei não diz respeito àqueles através de cujas terras os embaixadores passam sem ter recebido permissão, porquanto eles vão para

junto de seusinimigos [501;mas sepor acasovierem ou se tramarem algum ato de hostilidade,

poderão ser condenados à morte. Foi o que os

atenienses[51] fizeram aosembaixadoresentre ospersase os espartanos, e os i]írios [52] aos embaixadores entre os habitantes

de essa e os roma-

nos. Com maior razão, podem ser acorrentados, o que Xenofonte [53] ordena a respeito de alguns;A]exandre

[54] com re]ação aos que haviam

[47] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z:rróeGond7#a(XXXVl1, 49, 8)

[48] Idem, ..4b apõe aondTáa(]v. 58, 7). [49] Idem, ,4ó Z:&.óe(bndlÉz(X,

12, 2).

[50] Os sicilianos, a]iados dos atenienses, prenderam os embaixadores de Siracusa.

enviados às outras cidades (Tucídides, Vl1, 32). Assim é que os argienses se apoderaram dos embaixadores enviados de Ateias pela facção dos Quatrocen tos e os levaram a Arras(Tucídides, Vl11, 86). Os epirotas prenderam os embai xadores da Etólia para os romanos e exigiram um resgate; um só dentre eles foi isento, em decorrência

de cartas vindas de Romã(Políbio,

.#raerpfa -Z;egat7bnum,

n.' 27). Sobre os embaixadores dos francesesenviados à Turquia, dos quais se apoderaram os espanhóis junto ao rio PÓ e que os mataram, ver o julgamento de Paruta(livro

XI) e de Bizaro(livro XXI). Sobre os embaixadores das cidades

de Flandres enviadosaos francesese feitos prisioneiros por Maximiliano, ver Crantzius, SbxonJ'c.,Xl1, 33. A clemência de Belisário é elogiada, porquanto

poupouos embaixadoresque Gelimer havia enviado à Espanta e que retomavam da Espanta para Cartago, da qual eram donosentão os romanos (Procópio, Banda/, 1, 24). [51] Tucídides, /Z])fórTbs da Guen'a do Pe/aponeso(11, 67).

[52] Apiano, .De BeZ/oJZ/lzsÉr.(7). [53] Xenofonte, Z)e Expor

[54] Arriano, livro ]]

(Z}T7(V], 3, 11).

CAPÍTULOWlll - DODIREITO D6 EMBAIXADAS

sido enviados de bebas e Lacedemânia

739

a Dado; os romanos [55] a res-

peito dos embaixadores de Fi]ipe a Aníba] [56] e os ]atinos [57] com relação aos embaixadores dos volscos.

2. Senada disso ocorrer e seos embaixadoressão maltratados, não é o direito das gentes de que tratamos [58], mas é a amizade e a dignidade daquele que os enviou ou daquele para o qual se dirigem que

serão consideradasvio]adas. Justino [59] diz de Fi]ipe 11,rei dos macedónios:"Ele manda legados aAníbal, munidos de cartas, para Ihe propor uma aliança; o legado, preso pelos romanos e conduzido diante do senado romano, foi mandado de volta são e salvo, não por respeito a

seuamo, mas para não levar à guerra um príncipe cujos desígnios podiam ser ainda duvidosos.

VI. O inimigo a quem foi enviado um embaixador é obrigado De resto, uma embaixada recebida tem, mesmo entre inimigos públicos [60] e com maior razão entre inimigos privados, a sa]vaguarda do direito das gentes. Diodoro da Sicí]ia [61] disse que, para os arautos, a paz existe durante a guerra. Os lacedemânios que haviam condenado

[55] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4b C&.Ée(;anal' a (XX]11, 33). [56] Ver Apiano,

em Exrerpfa

Zc:gaÉlontzm,

n.'

19.

157]Dionísio de Ha[icarnasso[séc.] a.C.], .4aÉlküJdades Romanas(V], 25). [58] Outra coisa é ee a]guém trama emboscadas,fora das terras de sua jurisdição, aos embaixadores de outra nação, pois então é uma violação do ./'usgenúum Isso está expresso no discurso dos habitantes da Tessália contra Filipe, em Tiro

Lívio [59] Livro XXIX, 4, 2 e seguintes.

[60] Ver as passagenscitadas no parágrafo ]. Donato diz a respeito dessaspa]avras üo Eunuco ç461b," Conveíiire et colioqui'\ '?ode'se exprimir assim, como se se dissesse: Que seja permitido para ti, soldado-. Isso pode ser feito mesmo entre

mimlgos e na guerra." [61] Diodoro da Sicília, V. 75.

740 Huoo GRotius

à morte os arautos dos persas se diz deles que desrespeitaram por isso as [eis de todos os homens [62] . Pompânio [63] diz: "Se a]guém agrediu

o embaixador dos inimigos, esseato é reputado como cometido contra o direito das gentes porque os embaixadores são considerados como santos." Tácito [64] chama o direito de que falamos "o direito dos inimigos, a santidade das embaixadas, o direito das gentes". Cícero [65] diz em sua primeira I'êzz7ha.'"Osembaixadores não devem estar em segurança entre os inimigos púb]icos?" Sêneca [66] diz em seu ]:datado sobre a

Jlu.'"Desrespeitando o direito das gentes, ele violou as embaixadas." Tito Lívio [67] narra, na história dos embaixadores que os fidenates haviam matado, que era um assassinato que desrespeitava o direito

das gentes, um crime, uma causa abominável, um massacre ímpio. E em outra passagem [68] : "Os embaixadores colocadosem perigo, os próprios direitos da guerra não eram mais respeitados." Quinto Cúrcio]69] diz: "Ele enviou arautos para força-los à paz, mas os habitantes de Tiro, contra o direito das gentes, os mataram e os jogaram ao mar." De fato, há uma razão, pois acontecem diversas coisas na guerra que não podem

ser levadas a bom termo senão por embaixadores; a própria paz não pode ser feita geralmente de outro modo.

[62] Heródoto, .f:l2Z}'mn.(Vl1,36) u63ÀL. 18, ult., Dig., De legatis. [64] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], ,4nna/es (1, 42).

[65] Marcus 'hl]]ius Cicero [106-43a.C.], in marram.4cílb (1, 33, 85). [66] Lucius Annaeus Seneca[01? a.C.-65d.C.], Z)e.ü.a(111,3). [67] Titus

Livius

[59 a.C.-17

d.C.], .4ó Z:/róe Concó a (IV. 17 e 32).

[68] Idem, ,4b Z]&.üe aoncüfa(XXIV. [69] Quintus

Curtius

Rufus]séc.

33, 3). ] d.C.],

Hlbfcüub

de .4/exandre(IV,

2

15)

CAPhUtO Will - DO DIREITODU EMBAIXADAS

yll. O direito do talhão náo pode se opor Pergunta-se também geralmente se um embaixador pode ser condenado à morte ou maltratado

em virtude do direito do talião, quando

vem da parte daquele que cometeu algo de semelhante. Há, de fato, na história, exemplos bastante numerosos sobre tal vingança. Esses fatos recordam não somente as coisas que foram feitas comjustiça, mas também aquelas que o foram com iniquidade, cólera, arroubo. O direito das gentes predispõe não somente sobre a dignidade daquele que envia, mas

também a segurança daquele que é enviado. Por isso é que se contrata também com esse último de maneira tácita. Uma injúria é cometida contra ele, mesmo se não houver nenhuma cometida contra aquele que o enviou. Cipião [70] agiu, pois, não somente com magnanimidade, mas

também segundo o direito das gentes, quando os embaixadores dos romanos, tendo sido maltratados pelos cartagineses e os embaixadores cartagineses sendo conduzidos diante dele, interrogado sobre o que de-

veria ser feito, respondeu:"Nada de semelhanteaoque foi feito pelos cartagineses" [71] . Tito Lívio [72] acrescenta que e]e havia dito que não

faria nada de indigno contra os princípios do povo romano. Valério Máximo [73] atribui

essas pa]awas aos cônsules romanos num fato seme-

lhante, mas mais antigo: "Hannon, a boa-fé de nossa república te livra

dessetemor." Nesse mesmo momento, Cornélio Asma havia sido acorrentado pelos cartagineses, contra o direito dos embaixadores. [70] Apiano, Z)e.Be/7aPun co(35). [71] Diodoro da Sicília(.Ercerpf.

/)eú'esc.) diz que os romanos, embora soubessem o

que os cartagineses haviam feito, libertaram os embaixadores.Ver Apiano Constância mandou de volta Ticiano, embaixador de Magnentius, embora Magnentius retivesse ainda Filipe que Constância havia enviado(Zósimo, livro 11).Ver outras histórias semelhantes em Cromer, livros XIX e XXI, e Paruta, sobre os embaixadores venezianos, presos ao se dirigirem para a trança(livra

vn) [72] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z:/rbe(bndlÉa (XXX, 25, 10).

[73] Marcus Valerius Maximus]séc. ]. a.C.-- séc. ] d. C.], .fQzfose .22ífosMano/ávezs

(VI, 6, 2).

742 H

uoo Gxoíios

VIII. O direito dos embaixadores se estende também às pessoas de seu séquito, se os embaixadores o quiserem 1. As pessoas do séquito e as bagagens dos embaixadores são tam-

bém sagradas, a seu modo, como se pode ver nessas palavras da antiga fórmula dos sacerdotes feciais [74] : "Rei, me nomeais o mensageiro real

do povo romano dos Quirites? Minhas bagagens e as pessoas de meu séquito?" Não somente aqueles que insultaram os embaixadores, mas

ainda aquelesque Hlzeramum insulto às pessoasde seuséquito são declarados culpados segundo a lei Júlia sobre a violência pública [75] Essas pessoas e essas coisas são santas só acessoriamente

e por conse-

guinte enquanto forem do agrado do embaixador. Por isso é que se as pessoas do séquito cometeram algum grave delito, se poderá pedir ao

embaixador para entrega-]as [76]. De fato, não se poderá toma-las à força [77], o que, tendo sido feito pelos habitantes da Acaia contra alguns lacedemânios que se encontravam com os embaixadores romanos. os romanos protestaram dizendo que o direito das gentes fora violado [78] . Arespeito disso pode-se relembrar também o julgamento de Salústio

sobre Bomilcar, exemplo de que fizemos uso anteriormente ($ IV. 3). Se

o embaixador não quiser entrega-los, deverão ser tomadas as mesmas providências

de acabamos de falar a propósito do embaixador.

[74] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z:4'óeGondfa (1, 24, 5)

:lbÀ L. 7, Lege Juba, Dig. AdLegem Juliam de vipublica. [76] Ver as cartas de'Du Fresne La Canaye, pa. 75 e 279. [77]

De Serres,

Hda

de ]Ze ul'gue

/H

[78] Pausânias [séc. ]] d.C.], PeHegesJh(Vl1, 14).

743 CAPITULOXVlll - DO DIREITODAS EMBAIXADAS

2. Quanto ao ponto de saber se o próprio embaixador tem um

direito de jurisdição sobre sua família e um direito de asilo em sua morada [79] em favor de quem quer que aí se tenha refugiado, isso depende da boa vontade daquelejunto

a quem ele vive. Não é, de fato, do

direito das gentes.

IX. Também aos bens móveis A opinião melhor fundada é que os bens móveis do embaixador e aquelesque por conseguinte sãoconsideradoscomoligados à sua pessoa não podem ser tomados a título de penhor ou para o pagamento de uma

dívida, nem por ordem da justiça, nem como querem alguns pela mão do rei, pois toda coação deve ser afastada do embaixador, tanto com

relação às coisas que Ihe são necessárias, quanto com relação à sua pessoa, a fim de que a segurança seja completa para ele. Se, portanto,

ele contraiu alguma dívida e, como isso ocorre, se não possuir algum

imóvel no lugar em que seencontra, se deverá interpela-lo amigavelmente e, se ele recusar, interpelar aquele que o enviou. Após isso se empregarão os meios que ordinariamente

são utilizados contra os deve-

dores que estão fora do território.

X. Exemplos de obrigação, sem direito de coagir 1. Não se deve temer o que alguns pensam que, se íoi posto como

norma de direito, não se encontrará ninguém que queira fazer contratos com um embaixador. Os reis, que não podem ser coagidos, não deixam de ter credores, e Nicolau Damasceno [80] nos informa que era ['79]Distingue se aqui ordinariamente segundoa natureza dos crimes cometidos. Ver Paruta(livro X), onderelata comoo rei da França foi apaziguado,irritado que estava por assunto similar. Ver o mesmo historiador, livro XI. [80] Nicolau Damasceno, Ua/es.

744 H UGO

GROTI

US

usual, entre certos povos,não apresentar nenhuma açãojudicial fundada sobre contratos aos que se haviam tornado credores, bem coma não se tem ação contra ingratos, de modo que os cidadãos privados

eram obrigados a cumprir juntos o contrato ou se contentar somente com a palavra do devedor. Sêneca]81] deseja esse estado de coisas: "Quem

dera pudéssemos persuadir os homens a receber de seus devedores somente o reembolso voluntários Queiram os céus que nenhuma estipulação ligue o comprador ao vendedor, que os pactos e convenções não ti-

vessem necessidade, como garantia, do carimbo dos selos e que se prefe-

risse a eles como guardião da boa fé, o amor do justo, a consciências"

Apiano [82] diz que havia também desagradadoaospersas ter de "tomar dinheiro a título de empréstimo [83] comosendouma coisa sujeita a fraudes e a mentiras:

2. E]iano [84] re]ata a mesma coisa dos indianos. Estrabão [85] concorda com ele nessestermos: "Os tribunais não existem senão para o assassinato e a injúria porque não é do poder do homem não incidir neles, mas os contratos estão ao alcance de cada um. Por isso é que se

alguém falta à boa-fé, deve-sesuporta-lo antes de se fiar nele e não encaminhar o termo do processo."Foi também estabelecidopor Carondas [86] que aquele que se tivesse reportado à boa-fé para o pagamento do preço não deveria ser objeto de ação, o que Platão igualmente aprova [87]. Foi observado por Aristóte]es [88] que "em certos povos não há

[81] Lucius Annaeus Seneca[O[?a.C.-65 d.C.], Z)eJ?eneá7c7)k (111.15). [82] Apiano, Z)e Bebo C)nZ(1, [83] Heródoto

(Calo, 1, 138),

[84] Eliano,

Uaz /íisf.

[85] Estrabão [86] Estobeu [87] Platão,

54).

a respeito

do mesmo

[58? a.C.-21? D.C.],

GeoKra#a

(XV. 1, 53).

[séc. V d.C.], Z)e .ZnK]'óus (44, 40). .4s Z,efs(Vl11,

[88] Aristóteles,

assunto,

(IV. l)

14).

.éíJba a .Mbámaco(Vl11,

15).

diz:

'To

oq)eüctv

2cpKoa.

745 CAPITULOXVlli - DO DIREITODAS EMBAIXADAS

processo sobre essas coisas, pois estimam que os homens devem se contentar com a palavra em que se alaram". E alhures [89] : "Há países em

que as leis não apresentam ação jurídica por uma dívida, como se não se devesseagir senão em particular contra aquele com quem se contratou e em quem se depositou conülança."As coisasque são alegadas contra essaopinião, tiradas do direito romano, não dizem respeito aosembaixadores, mas aos enviados provinciais e municipais

XI. Importância desse direito de embaixada A história profana está cheia de guerras empreendidas por causa de maus tratos infligidos aos embaixadores [90] . Os ]iwos sagrados [91]

conservaram a memória da guerra que Davi moveu contra os amonitas

por causa disso (/7Snmue/X). Cícero [92] não encontra causa mais justa contra Mitridates.

ÍããÍ'idem,

.ética a N)cómico(IX,

l).

[90]

e LXXXVll)

e em Withikind(livro

ll).

[91] Ver Jogo Crisóstomo, 4d S aglrl'um(111). [92] Marcus Tullius Cicero [106-43a.C.], /)ro Z ge ]ldan7la (5, 11).

Xlx

DODIREITO DE SEPULTURA

Sumário 1. 0 direito de inumados mortos decorre do mesmo\us

gex\XX:\)Lm

(direito das gentes). 11. Qualésua

origem?

111.Direito devido mesmo aos inimigos públicos. IV Também o seria para os grandes criminosos? U Também aos suicidas?

VI. Outras coisas devidas em virtude do Susgelttxum (direito das gen tes).

749 CAPÍTULOXIX- DODIREITO DESEPUUURA

1.0 direito de inumar os mortos decorre do mesmo /us gene/zlm (direito das gentes) 1.A sepultura dos mortos é devida também em virtude do direito das gentes que extrai sua origem da vontade. Dion Crisóstomo [1] , depois de ter feito menção dos direitos dos embaixadores, lembra entre os

usos e costumes, que opõe ao que está escrito, isto é, ao direito escrito, aquele de não impedir de dar sepultura aos mortos. Sêneca [2] , co]oca

entre as leis não escritas, mas mais certas que todas as leis escritas, o dever dejogar terra sobre o cadáver. Os hebreus Fílon e Josefo [3] chamam issode "um direito de natureza", enquanto lsidoro de Pe]úsia]4] o chama de "uma lei de natureza", como dissemos alhures que se tem o hábito de compreender sob o nome de "natureza" costumes comuns, conformes à razão natural. Em E]iano [5] se ]ê: "Porquanto a natureza comum manda sepultar os mortos." O mesmo diz em outra passagem [6] que "a terra e a sepultura são comuns e igualmente devidas a todos os homens". Eurípides, em .4s Sup/lbanóes [7], diz que "é a ]ei dos homens" [8] , enquanto

Aristides

[9] diz que "é a ]ei comum";

Lucano

[10]

que "é o costume dos homens"; Papínio [11] que "são as ]eis de toda a

[1] Omí. (76) l21 Marcus Annaeus Seneca [58 a.C.-32? D.C.], Conüoversiae (1, 14) [3] Flávio Josefo [37?-100?], (;Harpas Judaicas (IV, 6, 3) [4] .Eplsf.

H7í. edit.

491.

[5] Eliano, UaÀ.H])f.(Xl1, 64). [6] Idem, Unr HJ)f. (Xl11, 30).

[7] Eurípides, 4s SupJlcanfes(378). [8] q)uaEoa O afoga, as Leis da natureza, Eusébio, .l?isf.(Vl11, 19). [9] Aristides,

.f)anaÉüen.

202.

[10] Marcus Annaeus Lucanus [38-65], .1)üarsa#a (Vl1, 801). Íll] Publius Papinius Statius [45-96] , 7beÓajs (Xl1, 642).

750 H UGO

GROTIUS

terra e o pacto do mundo"; Tácito [12] que "é o comércio da condição humana"; e o orador Lísias [13], que "é a esperança comum". Impedir a sepultura é despojar-se da natureza de homem, segundo Claudiano]14]

,

fazer desonra à natureza, segundo o imperador Leão [15], vio]ar o que

há dejusto, segundolsidoro de Pe]úsia [16]. 2. Como os antigos, para que essestipos de leis comuns aos homens disciplinados parecessemmais respeitáveis foram atribuídas aos deuses,vemos em toda parte que faziam também considerar os deuses como os autores do direito de sepultura, do mesmo modo que o direito de

embaixada. Por isso é que na citada tragédia .4sSupZz]mnfes[17] não se encontra a qualificação de ']ei dos deuses"Í18] e em Sófoc]es]19],Antígono

responde assim a Creonte que havia proibido de inumar Polinice: "Não

é, de fato, nem Júpiter que me tem revelado isso, nem a justiça que habita com as divindades infernais, osautores dessasleis que reinam sobre os homens. Não pensava que os decretos de um mortal como tu tivessem tanta força para prevalecer sobre as leis não escritas, obra imutável dos deuses. Essas não são nem de hoje, nem de ontem; sempre

vivas, ninguém sabe sua origem. Deveria eu, esquecendo-aspor temor das ameaças de um homem, incorrer na vingança dos deuses?" 3. ]sócrates [20] , fa]ando da guerra de Teceu contra Creonte, as-

sim se exprime: "Quem não sabe, quem não ficou sabendo mesmo pelos

autores das tragédias que são encenadas nas festas de Baço, os males

[12] Caius Cornehus Tacitus [55-120], .4nnaJes (y1, 25).

[13] Listas, Orai. (11,9). [14] Claudius Claudianus [séc. ]V d.C.], Z)e Be//o Gl7don bo (397).

[15] NoveZZa(Llll) [16] c#cíó coco -- ver nota 4. [17] Eurípides,

.4s SupDbanres (563)

[18] Sófocles, Hybx (1130). O mesmo disse, em Antígono: "Oeov vopoua. [19] Sófocles, Hn&@ono(450-60) [20] lsócrates

[436-338?

a.C.], /'anafada

ba (168).

CAPÍTULOXIX- DO DIREITODE SEPUHURA

que caíram sobre Adrasto, perto de Tebas, quando, querendo levar o

filho de Edipo, seu genro, perdeu um grande número de soldadosde Argos e viu todos os próprios chefes serem mortos. Ele, sobrevivendo

com desonra e não tendo podido obter uma trégua para enterrar os mortos, suplicando veio aAtenas, cidade que Teceu então governava e o

conjurou a não ver com indiferença que tais homens ficassem sem sepultura

e a não tolerar

que se calcasse aos pés o antigo costume e a lei

do país que todos os homens observam entre eles, não como estabelecido

pela natureza humana, mas como imposição do poder divino... Teseu, entendendo essascoisas,ordenou semdemora que uma embaixada partisse para Tebas."A mesma recriminação é feita aos tebanos por terem preferido os decretos de seu Estado às leis divinas [21]. Faz menção ainda da mesma história em outros locais, em seu Pané3gú:fco, em E7ogzode Melena, no discurso de P7nfea]22] . Heródoto123] fala disso também em (]a/tope. Diodoro da Sicília, no livro IV de suas HJbfór:zasE24].

Xenofonte no limo VI de sua HJbfána 61rlega]25]. Lísias, em seu discursoem honra daqueles para quem são feitos funerais]26]. EnÊm,Aristides

[27], em seu discurso panatenaico;essediz que essa guerra foi empreendida pela natureza comum doshomens.

[21] Plutarco lida de Zeseu(29), acredita que se tenha obtido dos tebanos o direito de dar a sepultura aos mortos, em virtude de um acordo e não como resultado

de um combate. Pausânias, porém, diz que isso ocorreu após um combate (,4fÜc.,1, 39). [22] lsócrates,

PanegÉ#co

a .4fenas

(15),

[23] Heródoto, ]X, 27 [24] Diodoro da Sicília, IV. 67. [25] Xenofonte, .]?:sf. Graec.(VI, 5, 46).

[26]Líbias,(2rzÉzo 11,7. [27] Aristides, /bnafàenaico(204).

.17e/ena

(15),

Pyafaica

(20).

752 HuGo

G R o Tl u s

4. Por isso vemos autores renomados atribuírem â'eqüentes vezes a esse dever nomes eminentes de virtudes. Cícero [28] e Lactâncio [29] o chamam de humanidade; Va]ério Máximo [30], de humanidade e bondade; Quinti]iano [31], de compaixão e religião; Sêneca[32], de compaixão e humanidade; Fí]on [33] , de compaixão pe]a natureza comum; Tácito [34] , de comércio da condição humana; U]piano [35], de compai-

xão e piedade; Modestino [36], de ]embrança da condiçãohumana; Capitolino [37], de c]emência;Eurípides [38] e Lactâncio [39], de "ÕtKq7j",

isto é,justiça; Prudêncio [40], de obra de caridade.Ao contrário, Optato de Mileve [41] acusa de impiedade os donatistas que proibiam enterrar os corpos dos cató]icos. Em Papínio [42], "Creonte deve ser pressionado pela guerra e pelas armas a adquirir sentimentos humanos". Spartianus [43] diz que "tais pessoasnão têm nenhum respeito pela humanidade'

[2S] Marcus 'rb]]ius Cicero [106-43 a.C.], J }o é?ulncílb. [29] Caecilius Firmianus Lactantius [séc. ]V d.C.], .Dz't,ú?atum]nsflfuÉlonum (VI. ll

e 22). A ele pel'vencetambém essapassagem (VI, 12): ':4 sopa/fu/a dos esírnngeiros e dos pobres é o último e o mais considerável dever da piedade. [30] Marcus Valerius Maximus]séc. ]. a.C.- séc. ] d. C.], .Z%fose 22fZosMemoráre/s

(vl i) [31] Marcus

Fabius

Quinti[ianus

[séc.

] d.C.],

Z)e ]nsf

fu/zona

OraforJa

(Xll,

Últ.).

[32] Lucius Annaeus Seneca[01? a.C.-65 d.C.], De Bene#aJ)k(V 20,5) [33] Philo, Z)e JosepÀo (5)

[34] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], .4nnaJes(V], 25). L35ÀL. 14,At si quis, $1nterdum, Dig., De fun. act. tB6ÀL 27, cuidam in suo, De cond. inst. 137] Capitolinus, [38] Eurípides, [39] Caecilius

12, 31)

[40] Marcus [41] Optatus [42] Pub[ius [43] Ae[ius

]h nfa .4Znrc. .4nfon n/ /)%l7osopáJ (13). .4s Sup]lbanfes Firmianus

Aurelius de Mi[eve Papinius Spartianus

(379 e outras

Lactantius

C[emens Prudentius [séc. ]V d.C.], Statius [séc.

[45-96], ]V

d.C.],

passagens).

[séc. ]V d.C.], Duu7harum [séc. ]V d.C.],

Gon ra Pa/menJbnum

CaÉüemerlhon

(hracaJyus

(VI,

(X, 63).

Z)onaZlkfam (VI, 7).

7yieóais (X]1, 165). .4nfonJnus

Insfl'fu&fonum

(4)

753

CAPÍTULOXIX - DODIREITO DE SEPUHURA

Títo Lívio [44] c]assiÊicaessadureza dizendo que u]trapassa tudo o que sepode esperar da có]era humana. Homero]45] havia dito que são ações indignas [46] . Lactâncio [47] chama de "sabedoria ímpia" o pensamento

daqueles que considerassem a sepultura como supérflua. Pela mesma razão, Eteoc]esé chamado ímpio por Papínio [48] .

11.Qual é sua origem? 1.Qual foi na origem a causapela qual seintroduziu essecostume de recobrar os corpos de terra, seja após tê-los embalsamado antes, como entre os egípcios [49], seja após tê-]os queimado, como entre a maioria dos gregos, seja como são, o que é, como observou Cícero [50] e

depois de[e P[ínio [51], um costume muito antigo. Sobre esseponto a mesma opinião não é adotada por todos. Moschion [52] acredita que a ferocidade dos gigantes que comiam os homens foi a causa e que a sepultura foi estabelecida como o sinal da abolição dessa prática. Ele, de

fato, assim se exprime: "Então, foi ordenado pelas leis de contar à terra

[44] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:ü.óe(]ondlÉa ÇV]11,24, 15)

[45] Homero, J=]üda(XX]1, 395; XX]11, 24)

[46] O mesmodiz, no ú]timo canto da ]=rz'ada, que Júpiter e os deusesficaram irritados contra Aquêlespor causa dos maus tratos que ele havia infligido ao corpo de Heitor. [47]

Caeci[ius

Firmianus

Lactantius

[séc.

]V

d.C.],

DTvínarum

Znsáífuóoilum

(V]

[48] Pub[ius Papinius Statius [45-96], TZeÓaJk (111,98). [49] Géz7eszb]];

Càius Corne]ius

Tacitus

[55-120],

.fZJkfarlbe (V. 5)

[50] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], ,De.Lqglbus(11,22, 57). 151]Caius Phnius Secundus]23-79], Naftzrall) HlbZaz:za(Vl1,54), onde se encontra também esta passagem: 'Z17óende-seque fenda recebido a sopa/fura agua/e cujo corpo foi posto a coberto, de qualquer maneira que seja; por enterrados

aquelequefoi recobertopor terra. [52] Estobeu,

.Erc. de /eram

nafuz,

üf. ]]

754

H UGO

GROTI

US

aqueles que a morte havia arrebatado e de lançar poeira sobre aqueles que não estavam ainda sepultados para que não se tivesse mais ocasião

de ver os traços abomináveis dessa refeição de outrora.: 2. Outros acreditam que oshomens quiseram dessamaneira pagar eles mesmos o tributo que a natureza exige deles, estejam dispostos a isso ou não. Que o corpo do homem saído da terra seja devido à terra

[53], não é somente Deus que o dec]arou a Adão, mas os gregose os latinos o reconhecem em toda parte. Cícero [54] cita essas pa]avras do

Hipsipilo de Eurípides: "A terra deve ser devolvida à terra." O que lemos em Salomão (Ec7esTbsfes Xl1, 7) é que o pó retorne à terra de onde veio e o espírito, a Deus que o havia dado. Eurípides, tratando do mes-

mo tema na pessoade Teseu,em .4s Sup.ircunfes[55], o exprime assim: ;Deixai agora a terra recobrar os mortos e cada um deles retorne aos lugares de onde havia vindo no corpo: o espírito ao seio do éter e o corpo

na terra, pois essecorpo, não o possuímos como próprio, mas para habi-

ta-lo durante nossavida e em seguidaa terra que o nutriu deveretoma-]o." Lucrécio [56], de igual modo, disse da terra: "E]a é ao mesmo

tempo a mãe comum das coisas e o túmu]o comum." Cícero [57] diz, [53] Fílon(lh .i;7accum,21) diz que "a natureza deu comopropóedade a cena aos homens para morar, não solneilte para os vivos, mas também para os mortos, a íim de que seja eia mesma que, depois de recebo-los em seu nascimento, os receba famóclm ao sa]» dessa uma '{ De resto, como há ação louvável no homem

que Deus não tenha colocadodela algum vestígio em qualquer outro tipo de animal, isso ocorre também nesseassunto. Plínio (livro XI, cap. 30) diz das {ormlgas (lue "são os únicos animais, à exceção do homem, que se enterram umas âs outras': Ele mesmo(livro IX, cap. 8) havia dito, contudo, dos golfinhos

que "haviam sido vistos dessesanimais levar um go16lnhomorto para impedir que fosse dl7aceradope/os outros monstros'l Virgílio diz também das abelhas: Levam para fora de suas colmeias os corpos daquelas que foram privadas da !uz e tristemente lhes fazem os funerais." Sêda aclescenhú "!sto é, com uma pompa própria de funerais.

[54] Marcus 'hi]]ius Cicero [106-43a.C.], 7bsctzJanae Duspufa odes(111,25, 59). [55] Eurípides, .4s Sup#canfes(531-36). [56] Tu[[ius

Lucretius

Carus

[98-55 a.C.], .De Àrafura

.Rerum (V. 259).

[57] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], Z)e-Leg7bus (11,22, 56).

755 CAPÍTULO XIX - DO DIREITO DE SEPUUURA

segundo Xenofonte, no livro ll de seu 7}aÉado dns.Z;eJS.'"Ocorpo é devolvido à terra e, assim colocado e deposto, é como coberto pelo véu de

sua mãe." P]ínio [58] escreveu também que "a terra nos recebe em nosso nascimento, pois uma vez nascidos nos nutre, uma vez crescidos nos sustenta sempre e que, em último lugar, quando o resto da natureza nos rejeita, ela nos abraça em seu seio e nos cobre como uma mãe.

3. ]lá quem pensa que a sepultura é comoum monumento pelo qual os primeiros pais do gênerohumano quiseram consagrar para a posteridade a esperança da ressurreição. Plínio atesta que Demócrito havia ensinado que se devia conservar os corpospor causa da promessa que ressuscitariam. Os cristãos referem seguidamente a essa esperan' ça o costume de enterrar os corpos de modo honroso. Prudência [59] diz: "A que servem essesrochedos cavados?A que, essesbelos monumentos?

Se não for porque conservam uma coisa que não está morta, mas que está entregue ao sono?'

4. E mais simples dizer que o homem, estando acima dos outros animais, pareceu indigno que seu corpo lhes servisse de pasto. Por isso é que se imaginou a sepultura, para garanti-los quanto possível. Quinti]iano [60] disse que é por um sentimen-

to de compaixão que os corpos dos homens são guardados contra o incurso das aves e dos animais ferozes [61]. Em Cíce58] Caius Plinius Secundus [23-79], Nnturn.]ü HJ]sfar7a(11,63)

[59] Marcus Aurelius Clemens Prudentius [séc.]V d.C.], Caíbeme/:hon(X, 53). [60] Marcus Fabius Quinti[ianus [séc. ] d.C.], Dec/amaÉ]ones .44aybres ef il/chores (VI

3)

[61] Ver a profecia re]ativa à posteridade de Jeroboão,em punição de seus pecados

(/J?eis XIV. 2) e Tertuliano, Z)eResun'ecÉlbne. Homero,em Od)sáa(111, 258), àiz de BÜ.s\n. "Não foi jogado sequer um pouco de terra sobre seu cadáver, a fim

da que os pássaJ'ase os cães o dEZacerassem."Falade Egisto que os argienses haviam deixado sem sepultura porque havia sido adúltero e havia usurpado a realeza. Orestes. contudo, mais humano, enterrou seus despojos,como é agir' made a seguir. Menelau diz de Ajax, em Sófocles: 'iZogadosopre a are b pá#da, se farda/g um bom pasto para os pzíssaros dos mares. " Ulisses, exemplo de

756 H UGO

ro [62] se pode ]er: "Di]acerado

GROTIUS

pe]os animais ferozes, foi privado

da

honra usua] prestada na morte." Em Virgí]io [63] se ]ê: 'IJma terna mãe não te dará a sepultura e não encerrará teu corpo no túmulo de teus pais. Tu te tomarás presa das aves de rapina." ])eus, nos profetas, ameaça os reis que o irritaram por darem sepultura de um asno, dizendo que os cães lamberão seu sangue (JezemJbsXX]1, 19). Lactâncio [64]

não considera outra coisana sepultura quandodiz: "Não toleraríamos que a figura e a imagem de Deus fossem jogadas como presa dos animais ferozes e das aves." Ambrósio [65] também, ao usar essestermos:

"Nada há de superior ao dever de fazer o bem a quem não está em condições de vos fazê-lo e salvar do pasto das aves e dos animais aquele que é da mesma natureza que a vossa.

5. Mesmo quando tais ultrajes não ocorressem, parece, com ra-

zão, ao ver um corpo humano calcado aos pés e dilacerado, que seja uma coisa contrária à dignidade de sua natureza. Dessa opinião não se afasta essepensamento que se encontra nas (bnZn)ç'éy:s=üsde Sopater: ;E coisa honesta inumai' os mortos e isso foi concedido aos corpos pela

própria natureza, a fim de que nãofossemde alguma maneira desonrados após a morte se se decompusessem a descoberto. Todos o ordenaram prudência, impede também isso. Sofocles diz de Antígona, no elogio que Ihe tece. "Eia não deixou $em sepultura o corpo ensangiientado de seu irmão e }lão

suportou que se tornassepasto das aves de rapina e dos cães de dentes alados."Apiano (.Bela.OIK, 1) diz a respeito daqueles que haviam sido mortos por Q üem üe b/Latia'."Não foipermítido a ninguém dar sepultura a nenhum daqueles que haviam sido manas, mas os pássaros e os cães dilaceravam guerreiras

úãocaril/lisos,"Amiano Marcelino, no começodo livro XVll, diz de Juliana: Preocupado com as aves de z'afina que haveriam de fazer seu pasto cam os corpos dos indivíduos mortos, mandou enterra-ios a todos, sem distinção.

[62] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], Z)e/nrenílbne (1, 55, 108) [63] Pub[ius [64] Caeci[ius

Vergi[ius

Mano [71-19 a.C.], E17elda (X, 557-59)

Firmianus

Lactantius

[séc. ]V d.C.], Duv7haJ-izm ZnsÉ7'fuílbnum

[340?-397],

.De 7bólb (1, 5)

12, 30) [65] Ambrósio

(V]

757 CAPhULO XIX- DODIREITODE SEPUnURA

de igual modo, seja deuses, seja gemi-deuses, e todos eles concederam

essahonra a corpos privados devida. Como, de fato, expor após a morte

de um homem os segredosda natureza humana aos olhos de todos é uma coisa que fere a razão, recebemos de toda a antigüidade o costume de dar sepultura aos corpos humanos, a fim de que encerrados no túmulo,

se consumam em segredo e longe dos olhares."Aisso se refere também

esta passagemde Gregório de Nissa, numa carta a Letoius: "Para que avergonha da natureza humana [66] não seja mostrada ao so]." 6. Por isso se diz que o dever da sepultura não é prestado ao homem, isto é, à pessoa, mas à humanidade, [67] . Por isso gêneca [68] e Quinti]iano

isto é, à natureza humana

[69] disseram que é da "huma-

nidade púb[ica" e Petrânio [70] que é "uma humanidade recebida por tradição". Disso resulta que a sepultura não deve ser recusada nem aos

inimigos privados, nem aosinimigos públicos.Arespeito dosinimigos privados, há em Sófoc]es [71] um exce]ente discurso de U]isses para a

sepultura a ser dada a Ajax, onde diz entre outras coisas: "Menelau, depois de ter feito relato de tão sábias máximas, não sejas tu mesmo

ultrajante com relação aos mortos." Eurípides dá a razão para tanto em Antígona [72] : "A morte é para os mortais o nlm de suas quere]as, pois

[66] Assim é que se costuma, diz Agatias, '%scondera uurgonáa do paria'i Assim, o pouco que somos naturalmente aparece em nosso nascimento e em nossa morte. Para dar isso a entender, os sábios hebreus proibiram que, recém-nasci dos ou mortos, aqueles que eram de classe humilde ou rica fossem envoltos em

faixas diferentes.

[67] Sérvio, comeütantoo canto X] da E12efda,diz que 'b bene# z'oda sopa/fura cí devido geralmente a todos os homens". [68] Lucius Annaeus

Seneca [01? a.C.-65 d.C.], De .Beneálaízk (V. 20, 5)

[69] Marcus Fabius Quinti[ianus[séc. ] d.C.], .Dec/amaüomes Maybres eó ]]Z]hores

(VI, 3)

[70] Tullius

Petronius

Arbiter

[séc. ] d.C.], Saéídaon (114)

[71] Sófmles, Hybx (1091). [72] Eurípides,

.4niz@ona(fragm.

176).

758 H UGO

GROTIUS

que pode haver mais que a morte?" O mesmo diz em .4s Supiycanfes [73] : "Se os habitantes

deArgos vos fizeram mal, eles pereceram. Essa

vingança é suficiente contra inimigos." Virgí]io [74] diz também: "Não

há mais combate com os vencidose os mortos." O autor do livro a Herennius,

citando essa frase, acrescenta: "0 último dos males já che-

gou a eles." Papínio [75] diz: "Nós combatemos, mas os ódios caíram e a

morte aniqui]ou as tristes có]eras."Optato de Mi]eve [76] dá a mesma razão: "Sevocêsestavam em luta com elesenquanto estavam com vida, que pelo menos sua morte abrande seus ódios. Aquele com quem antes tinham processo, agora não fala mais.

111.Direito devido mesmo aos inimigos públicos 1. Por isso é que todos são de opinião que a sepultura é devida também aos inimigos púb]icos [77] .Apiano [78] chama isso de o direito

comum da guerra, enquanto Fílon o chama de comércioda guerra. Tácito [79] diz: "b4esmona guerra, não se recusa a sepultura de um inimigo." Dion Crisóstomo [80] diz que essedireito é observado mesmo

[73] Eurípides, .4s Sup/üanfes(528). [74] Pub[ius Vergi[ius Mare [71-19 a.C.], E4?el'da(X], 104). [75] Pub[ius

Papinius

[76] Optatus

de Mi[eve

Statius

[45-96] , 7yzeóaz) (X]1, 573)

[séc. ]V d.C.], Contra /)armenJanum

Z)onaÉ])fam

(V], 7)

[77] Fílon(Jh .]?:/accum)diz que 'bs homens óémo costume de dar sopa/fura mesmo aos que sucumbiram na guerra; aqueles que são !evados pela bondade e pela humanidade o fazem a suas expensas; quanto aos que estendem sua animosidade até sobre os mortos, eles o fazem como execuçãode cláusulas concordatas para que as cadáveres,comoo uso o exige, não sejam privados das últimas honras. [78] Apiano,

.Be/y. Pun. (104)

[79] Caius Corne[ius Tacitus [55-120],,4nnaJes(1, 22). [80] ])ion Crisóstomo130-117],

Orai. 7Z.

759 CAPITULOXiX - DO DIREITODE SEPUUURA

nas guerras entre inimigos. E acrescenta: "Mesmo se os ódios tivessem chegado ao mais alto grau." Lucano [81] , tratando do mesmo assunto, disse que é preciso observar as leis da humanidade com relação ao inimigo. O mesmo Sopater, citado antes, diz: "Que guerra jamais privou o

gênerohumano dessa última honra? Que inimizade houve que levasse tão longe a lembrança das injúrias que tivesse ousado violar essalei?" Em seu discurso sobre a lei, o mesmo Dion Crisóstomo, que citei, diz que "ninguém, por causa dessa lei, considera os mortos como seusinimigos e que nem a ira nem o ultraje se descarregam contra seus corpos

2. Há exemplos disso em toda parte [82] . Assim é que Hércu]es

foi procurar seusinimigos [83] ;A]exandre, aque]esque havia vencido em lssus [84] ; é assim que Aníbal procurou os romanos C. Flaminius, P Emílio, Tibério Grado,Marmelo,para lhes dar sepu]tura [85] . Si]ius ltalicus[86] diz: 'Vocês achavam que tivesse sido um general cartaginês que havia perecido." A mesma coisa foi observada a respeito de Hannon

pelos romanos [87]; com relação a Mitridates, por Pompeu [881;por Demétrio a respeito de grande número [89] ; porAntânio [90] , com re]a-

[81] Marcus Annaeus Lucanus [38-65], .F%arsaJJa(V]1, 801).

[82] Josefo coloca entre o número das leis "que os mortos secamsepu/fados Agamemnondá sepultura aos troianos (Jlfüda,Vl1, 395);Antígona a Pirro, em Plutarco. Ver o mesmo historiador, em Hda de Zeseu [83] Eliano, Har J?isfor(Xl1, 5) [84] Diodoro da Sicília, XV]1, 40. [8õ] Titus Liviüs [59 a.C.-17 d.C.], 4ó [/róe Cona)fa (XX]1, 7, 5); P]utarco, Hda de /Ma/c;e/o(316 A) [86] Sibus ltalicus [séc. ] d.C.], Punjca (XV. 389)

[87] Valeüus Maximus, V. 1, 2. [88] Apiano, -4ZIÉr2dafes(113).

[89] Plutarco, .DemóÉz:ó(896 A) [90] Plutarco, .4nfónio(917

B)

760 H UGO

GROTIUS

ção ao rei Arquelau. Havia o seguinte no juramento dosgregosque tomavam em armas contra os persas: "Darei sepultura a todos os alia-

dos;vencedorna guerra, a darei mesmoaosbárbaros." Pode-seler em toda parte, na história, que se havia obtido a faculdade de retirar os mortos [91] . Há um exemp]o em Pausânias [92] : "Os atenienses dizem que deram sepultura aos medosporque a piedade obriga a enterrar todo

morto que se encontre. 3. Por isso é que, segundo a interpretação dos antigos hebreus, o

sumo sacerdote,ao qual aliás era vetado tomar parte em qualquer ato fúnebre, devia contudo intimar o homem que encontrasse sem sepultu-

ra [93] . Os cristãos deram tanta importância à sepultura que pensa' ram que, em vista dela, bem como para sustentar os pobres ou resgatar

os cativos, os vasos da igreja, mesmo consagrados, podiam ser licitamente fundidos ou vendidos [94] .

4. Na verdade, há exemplos do contrário, mas são condenados pe[o senso comum [95] . Virgi]io [96] diz: "Defende-me, te rogo, do furor de[es[" Em C]audiano [97] se ]ê: "Sujo de sangue, ele desposouo caráter

de homem e recusou aos que foram mortos um punhado de areia.: Diodoro da Sicília [98] disse que "é agir comoanimal selvagemmover guerra aos mortos que foram da mesma natureza que a nossa"

191] Ver livro 111, cap. XX, $ Xl;V. [92] Pausânias,

.4fí7b.(1,

32)

[93] Sérvio, comentando a EJlezda(VI, 176), observa a mesma coisa no direito dos pontífices romanos

[94] Ambrósio [340?-397] , .Z)e(2/#a2is.4Zzn/k/param (11,28, 142). [95] Sérvio dá essa exp]icação: 'H cd/era dos InJlnJlgoAdesqbsa c/e ma/ZrafaC mesma depois do cumprimento

dos destinos.

[96] Publius Vergi[ius Mapa [71-19 a.C.], Zbe/'da (X, 905). [97] Claudius

C[audianus

[98]LivroV 29.

[séc. ]V d.C.], Z)e .Be//o GÍ/dona'co (397).

CAPITULO XIX -

DO DIREITO DE SEPUnURA

IV. Também o seria para os grandes criminosos? 1. A respeito, contudo, dos grandes criminosos, vejo que há razõespara duvidar. A lei divina dada aos hebreus, que é uma escola de humanidade como de toda virtude, ordena que aqueles que fossem sus-

pendidos numa cruz, o que era reputado extremamente ignominioso, fossem sepultados no mesmo dia(NUmerosXXV. 4; .Deuferon(imJbXXI,

23;/7Snmue7XX], 6). Por isso, Josefo [99] diz que os judeus têm um tão grande cuidado com a sepultura que os tiram antes do pâr-do-sol e que confiam à terra mesmo aqueles cujos corpos foram condenados a um suplício público. Os outros intérpretes dos hebreus acrescentam que se prestava essahomenagem à imagem divina, segundo a qual o homem foi criado. Homero ]embra, em seu terceiro canto da O(ãss(;zb[100], que

Egisto, que havia acrescentadoao adultério o assassinato do rei, foi confiadoà terra por Orestes, filho do rei assassinado.Entre osromanos também, U]piano [lOl] diz que os corpos daque]es que são condenados a

uma pena capital não devem ser recusados a seusparentes e mesmo o jurisconsu[to Paulo [102] pensava que deveriam ser dados a quem os reclamasse. Os imperadores Dioc]eciano e Maximiano [103] deram a resposta seguinte: "Não proibimos que os culpados de crimes, que soâ'eram o suplício merecido, sejam entregues para a sepu]tura." [104] 2. Lemos na verdade na história que os exemplos daqueles que foram abandonados sem sepu]tura [105] são mais freqüentes nas guer-

ras civis que nas guerras externas. Em nossosdias, vemosque os cor[99] F[ávio Josçfo [37?-100?], Guen'a Judaica (]V. 5,2) [100] Homero, OdZssézb(111, 309). [101] Z. ], .Dzb, .Z)e cadaK /bn/f. [102] .L .ZiUJ'bz'd. [103] Z. ]], God. .De rcljbb

[104] Desse costume dos romanos é feita menção em Fí]on, (bnÉ7a 27accum [105] É "Diga/far lzm cadHveP',disse Josefono re]ato da morte de A]exandre, rei dos judeus. Acrescente-se Quintiliano, -DechmaÉlbIV, 9.

762

H UGO GKOiiOS

pos de certos condenados são deixados longo tempo na via pública. Não

somente os políticos, mas também os teólogos discutem, contudo, se esse costume é ]ouváve] [106] .

3. Por outro lado, vemos elogiados aqueles que ordenaram sepul-

tar os corpos daqueles que não haviam sequer permitido isso aos outros, como Pausânias, rei dos lacedemânios, que, cobrado pelos habitantes de Egina a vingar por um fato semelhante a ação dos persas na pessoa de Leânidas, rejeitou essa proposição como indigna dele e do

nome grego. Em Papínio [107], Teseu se dirige assim a Creonte: 'Vai,

tu, que cruéis suplícios te esperam, mas que podes no entanto estar seguro de ter um sepulcros" Os fariseus deram também sepultura ao reiAlexandre Janeu, que havia tratado de modo ignominioso os mortos de sua nação [108]. Se Deus a]gumas vezes puniu certos indivíduos, privando-os da sepultura, o fez em virtude de seu direito, ele que está

colocadoacima das leis. Se Davi conservou para mostrar a cabeçade Golias, é que se tratava de um estrangeiro, contendor de Deus e que o fato teve lugar sobo império de uma lei que estendia o nome de próximo exclusivamente aos hebreus.

V Também aos suicidas? 1. Há, contudo, um ponto que não é indigno de ser observado: é

que a regra sobre a sepultura a dar aosmortos havia tido, entre os próprios hebreus, uma exceção,isto é, para aqueles que se tinham dado eles próprios à morte. O que Josefo [109] nos ensina e isso não é de se

[106] Rock., Z)e (;bnsuefu(iene, áo/. /Z Abb., in can. errar verbo Sepultura,

quaestio

e de sopa/â; Silvestr., ih

!0.

[107] Pub[ius Papinius Statius [45-96], ZZeÓaJk (X]1, 780). [108] Flávio Josefo, 4nZl&zlldadesanda/cas(Xl11, 13) e Gorion [109] Josefo, -Z)e .BeZZoJudaico(111,

25); Hegesipo, livro

111, cap. 17.

763 CAPiTUtO XIX- DODIREITODE SEPUUURA

estranhar, porquanto não se pode estabelecer outro suplício contra os

indivíduos que não consideram a morte comoum suplício.Assim é que as jovens de Mileto foram dissuadidas

de se entregar à morte voluntá-

ria [110], como o foi outrora ao povo romano [111], ainda que P]ínio [112]

o desaprove. Assim é que Ptolomeu ordenou que o corpo de Cleomenes,

que se havia matado, fosse suspenso]113] . Por toda parte se diz]114], aHuma Aristóte[es

[115], que aqueles que se deram à morte sejam de-

sonrados por uma espécie de ignomínia. Andrânico de Redes, expondo essa passagem, diz que seus corpos são privados de sepultura. Dion Crisóstomo [116] louva essamedida entre outras regras de Demonassa, rainha de Chipre. O que Homero, Esquilo, Sófocles,Moschion e outros dizem, que os mortos não sentem nada e que não podem ser atingidos nem por um dano, nem pela honra, não há obstáculo para esse costume

[117]. Basta, de fato, que o que acontece aos mortos seja temido pelos vivos, para que estes sejam, por essa consideração, retirados do pecado.

[110]

Au[us

Ge[[ius,

]Voafes

..4fúcae

(XV.

]O);

P]utarco,

Z)e ]Wu#ere

H

f. (249 B-D).

[111] Sérvio, ao comentar o canto Xll da .Eheida, diz: 'Deve-se saber que e/e áa}.7a ordenado nos limos dos pontíBlces que aquele que tivesse posto fím à sua üda

por enforcamento seria jogado sem sepultura. De onde essa expresl;ão de

morte vergonhosa,pois era a morte mais desonrosa.Comonão há nada mais infame que essa morte, entendemos que o poeta se serviu dessa expressão para a opor à dignidade da rainha. Cássio díz que Tarquínio o Soberbo, forçan-

do o povo a trabalhar na construçãode cloacase que muitos se enforcaram a fugir dessa injúria, havia ordenado que os corpos daqueles que se haviam matado fossem pregados numa cruz. Foi então a primeira vez que se considerou como vergonhoso o ato de se dar a morte.

[112] Caius Plinius Secundus [23-79], Arafura/is HJiforJa (XXXVI, 15). Ins]

Plutarcoj\ C7eomenes (823 B).

[114] Em Atenas, na época de Esquino, as mãos daquele que se havia entregue à morte eram enterradas em separado do corpo (Esquina, in Ofesápáonfem). Acrescente-se Hegesipo, livro 111, cap. 17 [115] .éílba a ]ücómaco

[n6]

(V. 15)

arado ZX7y

[117] Ver Estobeu, tít. 126, e Sófocles, Hybx.

764 H UGO

GROTI

US

2. Com grande razão é que os platónicos defendem a opinião, contrariamente aos estóicos e a todos os outros, que admitiam como

legítimo o fato de se dar à morte voluntariamente para evitar a escravidão ou uma doença ou mesmo para adquirir glória, que a alma deve ser

retida na prisão do corpo que não deve deixar essa vida sem a ordem daquele por quem nos foi dada. Pode'se ver a respeito disso muitas coisas em Plotino, Olimpiodoro e em Macróbio sobre o sonho de Cipião.

Brutus, aditando essamaneira de ver, havia outrora condenado o ato

de Catão [118] que imitou a seguir, "pensando,de fato, que não era respeitoso para os deuses, nem viril, ceder à sorte e se subtrair aos infortúnios iminentes que deviam ser suportados com coragem" [119]. Megastenes [120] observava que a ação de Calanus havia sido censurada pelos sábios das Índias e que tal morte dos homens, impacientes com

a vida, não era aprovada por suas máximas [121].Amaneira de ver dos persas não era diferente, como isso parecia; seu rei Dado dizia em Quinto

Cúrcio [122]: "Prefiro morrer pelo crime de outrem do que pelo meu proprlo. 3. Por isso os hebreus designavam

morrercomo

fev'sua despe?c#'

da, isto é, ser enviado de volta, como se pode ver não somente em .Lacas

(11,29),mas ainda na versão grega do Géz7esü(XV. 2) e Números (XX,

[118] E alguns filósofos, excetuando'seos estóicos. Sêneca(&oJsfu/a LXX) diz: :Podereis encontrar homens que professam a sabedoria e que negam que se leva atentar culatra seus próprios dias, que se tenha em conta que o suicídio

é ímpio e. que se deve esperar o termo que a natureza nos prescreveu.

Procópio(GofÉüic., livro IV) diz: ':Saúda wda demodovTb/enfo ó umzzcoisa inútil, cheia de arroubo insensato; essaaudácia que leva ao suicídio é despro-

vida de reflexão e os sábios a consideram como usurpadora sem nenhum direito ao nome da coragem. Deve-se en6lmrefletir para não se tornar ingratos para com Deus." [n9]

Plutarco, .Brufus(1002

[120] Estrabão,

E).

Geogzn#a (XV. 1, 68)

[121] Os árabes eram da mesma opinião, bem comoos indianos e os persas; sabe-se

dissoatravésde J3 111,21

[122] Quintus Curtius Rufus [séc.] d.C.], Hlsóár7àde .4/exandTe(V, 12, 11).

765 CAPhULO XIX - DO DIREITODESEPUnURA

no final). Essa expressão foi também usada entre os gregos. Temístio

faz observar que "eles dizem que aquele que morre é enviado de volta e que chamam a morte de despedida". Lemos nesse sentido em Plutarco [123] : "Até que o próprio Deus nos mande de vo]ta." 4. A]guns hebreus [124] , contudo, excetuam da ]ei de não se ma-

tar um caso no qual o suicídio lhes parecia como que "uma saída razoável"; é quando se vê que não se pode mais viver senão de uma maneira que se vire em opróbrio para Deus mesmo. Como colocam em princí-

pio que não é a nós mas a Deus que pertence o direito sobre nossa vida, como Josefo [125] o ensina muito bem a seus compatriotas, estimam que a vontade presumida de Deus é a única capaz de legitimar

a resolu-

ção de mansãoque via que a verdadeira religião era voltada para a derisão em sua pessoa. O fato de paul que se lançou sobre sua espada para não se tornar o joguete daqueles que eram os inimigos de Deus e os

seus (/Snmue/

XXXI, 4). Acreditam que ele se tivesse arrependido

depoisque a sombra de Samuel Ihe havia predito que haveria de morrer e que, não obstante a certeza que tinha de sua morte, se entrasse em combate, não desistiu de empreender o combate por sua pátria e a lei de

Deus, merecendo por isso um louvor eterno, segundo juízo feito pelo próprio Dava;segundo ele, aqueles que haviam feito honrosos funerais a

[123] Plutarco, Canso/.adHpoi7on.(108 C) [124] Pode-sever por aqui]o que diz Josefo nas passagensem que fa]a da morte de Fasael (Guerra Judaüa, 1, 13, 10) e da deliberação de Herodes (.4nZlküidades

Judaicas XVl1, 6,5), que as opiniões dos hebreushaviam mudado quanto a essa questão. Segundoo relato de Fílon (De Legatione ad Caium, 32), os judeus disseram a Petrânio: 'Vamos misturar nosso gang ze e ramos nos matar a nós mesmos. Depois disso, podem nos dar ordens, quando estiver'

mos mortos! O próprio Deus não haverá de desaprovarnossa conduta, por' quanto teremos atendido a duas coisas: respeitam o imperador e guardar a obsewâncía de nossas !eis sagradas. Ser-nos-á concedido cumprir esse amplo

dever, partindo assim dessa vida insuportável que não merecemesmo sob essa forma

ser conservada.

[125] FlávioJosefo,Gue/ra JudnJba,111,8,5.

766 H UGO

GROTIUS

paul também testemunho de uma boa ação.O terceiro exemplo é de Razias, senador de Jerusalém, na história dosMacabeus (/7Mnc;adeus

XIV. 37).Lemostambémna história cristã exemplossemelhantesde indivíduos que se deram à morte para não ser pressionados pelas tortu-

ras a abjurar a re]igião de Cristo [126], comotambém exemp]osde virgens que, para não perder suavirgindade [127], sejogaram no rio e que a Igreja as classificou no número dos mártires. Vale, todavia, a pena ver o queAgostinho]128] pensaa respeito]129] .

[126] Ver Eusébio, J7&lo/:zb.EccZ, V]11, 12 [127] Cícero, em Orai, de Prov7bcízk aonsu/ar7bus(3, 6), relata que jovens de nobre

posição social se haviam jogado em poços, fugindo da desonra por meio de uma morte voluntária. Fato semelhante é narrado por Jerânimo, em .4dversus Jowhlanum(1, 41), a respeito das jovens de Mileto. Ver antiga epigrama da .4nfo/aFIa(livro 111),sob o título .De Juvenióus(Vl1, 492), que começa com ueopeÉ)u MtÀeTe.Os judeus contam que uma mulher que se encontrava num navio, prestes a ser violentada, perguntou ao marido se os corpos engolidos pelo mar haveriam de ressuscitar; ante a resposta afirmativa deste, jogou-se nas águas. Há grande número de exemplos sobre isso entre as mulheres nos

martirológios, em Zonaras(Xl1, 33) e em SextoAurélio, comoalgumas mulheres de Antioquia, sob Diocleciano, e Sofrânia, sob Maxêncio. Procópio (Persic.,11, 8) fala de outras mulheres de Antioquia que âlzeramo mesmo. Ambrósio, em .De H%rlh 'óus (111),elogia as jovens que haviam preservado sua honra entregando-se à morte. Jerânimo, em seus comentários sobre o capítulo l de Jonas, escreve: 'Z)isso decorre que nas pera guJbõêsnão ó peu"

miudo entregar-seà morte pelas próprias mãos,salvo no casoem que a castidade esteja em perigo.

[128] De OlrlfaÉe .Dali livro 1, cap. 26; Epistula 61, ad.Z)zz/c.,(bníra Seca 7dam Gaud.

gp&f., 1,3. [129] Pode-seacrescentar Jogo Crisóstomo(Galat. 1, 4) e o 3' Concílio de Orléans,

onde se àlz: "Julgamos que obiaçõespodem ser oferecidas aos mortos que foram condenadospor algum crime, desde que não se prove que tiraram sua rl'dâ por suaspr(broas mãos."Agostinho, em Z)eC#wfaZeZ)ei(1, 17), diz ainda: Quanto àquelas que se mataram para não sofrer semelhante ultraje, que

coraçãocom algum sentimento humano haveria de recusar o perdão?"Uma das capitulares dos francos(livro VI, cap. 70) dispõe que: 't%m reJaçáo agua/e que se matou ou que se enforcou, fai decidido, se alguém que 8lque compade

lido quiser dar uma esmola ou orar por eie, que o faça, mas que no entanto ãque privado de ofertas e missas, porquanto osjuízos de Deus são impenetráveis e ninguém pode sondar a profundeza de seus desígnios." Ver \an\bénl, nas mesmas, livro Vll, cap. 443.

767 CAPÍTULOXIX - DO DIREITODE SEPUnURA

5. Vejo que existiu também outra exceçãoentre os gregos.Os locrienses se opunham aos foceenses, quando lhes diziam que "segundo o costume comum a todos os gregos, os sacrílegos são abandonados

sem

sepu[tura". De igua] modo, ])ion de Prousa [130] diz que os sacrí]egos e

os ímpios são privados da sepu]tura. P]utarco [131] re]ata que a mesma coisaera estabelecidaemAtenas contra os traidores]132] . Para retornar a meu tema, porém, os antigos têm pensado de modo unânime que a guerra podia legitimamente ser empreendida por causa de recusa de sepultura, como isso resulta dessa história de Teceu, da qual fala Eurípides, na citada tragédia .4s SupZüanfes, e lsócrates na passagem

que citamos.

VI. Outras coisas devidas em virtude do /zis Pedi/zzm (direito das gentes) Há ainda outras coisasque sãodevidasem virtude do direito voluntário das gentes, como as coisas possuídas durante longo tempo,

as sucessõesab íz7fesfafoe aquelas que provêm de um contrato, por mais desigual que seja. Ainda que todas essas coisas tomem até certo ponto sua origem do direito de natureza, elas recebem, contudo, da lei humana, uma espécie de consistência, seja contra as incertezas da conjectura, seja contra certas exceçõesque a razão natural parece su-

gerir por outro lado; como isso foi demonstrado antes, com extrema brevidade, quando tratamos do direito de natureza.

[130}

OmÉÓ 31.

[131] ..4nÉÜá.,834A. [132] Nicetas, contudo, em sua Hda de .4/exlk(111, 6), irmão de ]saac, ao narrar a

morte de João Comneno,oGordo, que havia comandadouma sedição para se

apoderar do poder, assim escreve: 'Seu corpo áoi' f] ado de ]á e exposto a seguir como pasto para os cães e as aves, o que parecia a todos como algo contrário à humanidade e digno somente dos animais selvagens.