O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber [1, 1 ed.] 9788573262780

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O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber [1, 1 ed.]
 9788573262780

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Antônio Flávio Pierucci

O DESENCANTAMENTO DO MUNDO Todos os passos do conceito em Max Weber

editorai1 3 4

Para felicidade dos seus leitores Antônio Flávio Pierucci conseguiu produzir um p a ra ­ doxo: um livro encantador que trata do desencantam ento. Eu ia escrevendo: do irrepa­ rável desencantam ento do m undo. M as contive-me em tem po. H á surpresas dem ais no texto de Pierucci para permitir form ulações tão chapadas. Este é um livro p ara ser lido com gosto, acom panhando-se p asso a p asso o itinerário concebido pelo autor para propiciar nada me­ nos do que “ tod os os p a sso s” da reconstru­ ção de um conceito que ocupa p osição de re­ levo na obra de um dos gigantes do pen sa­ mento do século X X , M a x Weber. J á aqui despontam duas teses fortes. Pri­ meiro, que o termo “ desencantam ento” , apli­ cado a toda uma condição do m undo em que se movem os hom ens, vai m uito m ais fundo do que um a vaga noção alusiva a algum a per­ da, carência ou mal-estar subjetivo: desencan­ tam ento não é desencanto. Estam os — e esta é a prim eira afirm ação forte — diante de um conceito, construído p ara aju d ar a explicar o m undo, n ão p ara lam entá-lo. Um concei­ to não se entende sozinho; só ganha sentido quando encontra seu lugar na estrutura an a­ lítica que, no conjunto, form a uma teoria. É, pois, toda a arm ação da teoria sociológica de M a x W eber que está em jogo. É ela que tem que ser percorrida quando a tarefa consiste em reconstruir, p asso a p asso, o m odo com o nela se vai fazendo presente um a peça sem a qual o resto não avança, que é precisam ente o conceito de desencantam ento do mundo. Reconstruir p asso a p asso não quer dizer pouco. Significa — e aqui encontram os a se­ gunda afirm ação forte — que o conceito não se encontra inteiriço em todos os pontos e em todos os m om entos da obra de W eber. M as também não quer dizer que um simples acom ­ panham ento linear da cronologia dos textos de W eber resolva o problem a. A coisa não é

O DESENCANTAMENTO DO MUNDO T o d o s o s p a s s o s d o c o n c e ito em M a x W eb er

Antonio Flávio Pierucci O DESENCANTAMENTO DO MUNDO T o d o s o s p a s s o s d o co n ce ito em M a x W eber

FFLCH-USP Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hum anas Programa de Pós-Graduação em Sociologia

editoraH34

C A P E S

ED IT O R A 34 Editora 34 Ltda. R ua H ungria, 5 92 Jard im Europa CEP 01 4 5 5 -0 0 0 São Paulo - SP Brasil T el/Fax (11) 3 8 1 1 -6 7 7 7 w w w .editora34.com .br Universidade de São Paulo Faculdade de F ilosofia, Letras e Ciências H um anas Program a de Pós-G raduação em Sociologia Av. Prof. Luciano G ualberto, 315 Cid. Universitária C EP 05 5 0 8 -9 0 0 São P a u lo - S P Brasil Tel. (11) 3 0 9 1 -3 7 2 4 F ax (11) 30 9 1 -4 5 0 5 Copyright © Editora 34 L td a., 2003 O desencantamento do mundo © A ntônio Flávio Pierucci, 2 0 0 3 A FOTOCÓPIA DE Q UALQ UER FOLHA D ESTE LIVRO É ILEGAL E CONFIGURA UMA APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Edição conform e o A cordo O rtográfico da Língua Portuguesa. C ap a, projeto gráfico e editoração eletrônica:

Bracher & Malta Produção Gráfica Revisão:

Cássio Arantes Leite Nina Schipper r Edição - 2 0 0 3 , T Edição - 2 0 0 5 , 3 a Edição - 2 0 1 3 C atalo gação na Fonte do D epartam ento N acion al do Livro (Fundação Biblioteca N acion al, R J, Brasil) Pierucci, A n tôn io F láv io , 1 9 4 5 -2 0 1 2 P 624d

O d esen can tam en to d o m u n d o : to d o s o s p asso s d o con ceito em M a x W eber / A n tôn io F láv io Pierucci. — S ã o P au lo : U SP, P ro gram a de P ó s-G rad u ação em S o cio lo gia d a FF L C H -U S P /E d ito ra 3 4 , 2 0 1 3 (3 a E dição). 2 4 0 p. IS B N 9 7 8 -8 5 -7 3 2 6 -2 7 8 -0 Inclui b ib lio grafia. 1. W eber, M a x , 1 8 6 4 -1 9 2 0 . 2. C iên cias so ciais - A lem anh a. I. U n iv ersidade de S ã o Paulo. P ro gram a de P ó s-G rad u ação em S o cio lo g ia. II. T ítu lo. C D D - 300

O D E SE N C A N T A M E N T O DO M UNDO T od os os passos do conceito em M a x W eber

A p resen tação ....................................................................... Siglas das obras citadas de M ax W e b e r .....................

11

In tro d u ção ...........................................................................

15

T

o d o s o s p a sso s d o c o n c e it o

1. Passando por Sch iller........................................................

27

2. M eu p o n to ...........................................................................

32

3. Contando os p a s s o s ..........................................................

47

4. Fazendo as c o n ta s..............................................................

58

5. Com entando os p a s s o s ....................................................

61

6. Passo 1: Sobre algum as categorias da sociologia co m p reen siv a......................................

62

7. Passo 2: “ Introdução” à Ética econôm ica das religiões m u n d iais..................................................

89

8. Passo 3: Econom ia e so c ie d a d e .....................................

100

9. Passo 4: A religião da C h in a ..........................................

114

10. Passos 5 e 6: Consideração interm ediária .................

135

11. Passos 7 a 12: A ciência com o v o c a ç ã o ......................

150

12. Passo 13: H istória geral da e c o n o m ia .........................

167

13. Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do cap italism o .........................................

186

14. M eu ponto final e uma chave de ouro ........................

215

B ibliografia..........................................................................

223

A PR ESEN T A Ç Ã O

Um dos m aiores sociólogos até hoje, além de historiador e econom ista, autor de A ética protestante e o espírito do capitalis­ m o, um dos livros mais lidos do século X X , o alem ão M ax W eber1 (Erfurt, 1864-M unique, 1920) é tam bém autor de alguns concei­ tos e categorias analíticas que entraram definitivamente para o jargão básico dos cientistas sociais do mundo inteiro. Eles fazem parte da caixa de ferramentas mais elementar dos sociólogos, cien­ tistas políticos, econom istas e historiadores da econom ia, histo­ riadores sociais, historiadores das religiões, das m entalidades, da cultura, da m úsica, do direito e assim por diante. Alguns dos term os e com binados vocabulares de sua auto­ ria — desencantam ento do m undo é um deles — p assaram até m esm o para o linguajar corrente, a língua geral não especializa­ da, sem que no entanto saísse ofuscada a aura de sua potência lexical. É que desencantam ento em sentido estrito se refere ao m undo da m agia e quer dizer literalmente: tirar o feitiço, desfa­ zer um sortilégio, escapar de praga rogada, derrubar um tabu, em sum a, quebrar o encantam ento. O resto é figuração, sentidos fi­ gurados que nem sempre ajudam na hora das definições que uma linguagem científica requer. “ D esencantam ento” , em alem ão Entzauberung, significa literalmente “ desm agificação” . Z auber quer dizer m agia, sortilé­ gio, feitiço, encantam ento e por extensão encanto, enlevo, fascí-

1 Seu nome completo era Karl Emil Maximilian Weber.

Apresentação

7

nio, charme, atração, sedução... Der Z auberer nomeia o m ágico, o m ago, o feiticeiro, o bruxo, o encantador. Enfeitiçar, em bruxar ou encantar pode ser zaubern, verzaubern, bezaubern, anzaubern, e encantamento se traduz o mais das vezes por Verzauberung, Bezauberung e Zauberei, que com o Z auber tam bém quer dizer m a­ gia, feitiçaria, bruxaria, encantaria e assim por diante. Entre estudiosos e estudantes, M ax Weber costum a ser lem­ brado com o “ o homem que fez da ideia de desencantam ento não meramente um tema importante para pensar a vida m oderna, mas talvez o m ais essencial aspecto da m odernidade” .2 Um autêntico desencantador.^ Este livro pretende acom panhar, pacientemente e na m inú­ cia, o percurso que faz por toda a obra de W eber o conceito de desencantamento do m undo. O trabalho foi originalmente defen­ dido em 13 de junho de 2 0 0 1 , dia de Santo Antônio, com o tese de livre-docência em Sociologia, no D epartam ento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências H um anas da Univer­ sidade de São Paulo (FFLCH /USP). Aproveito para agradecer aos cinco m em bros da banca exam inadora pela instigante e profícua arguição. M eu muito obrigado aos professores Guita Grin Debert (Unicamp), Vilm a Figueiredo (UnB), Sedi H irano (USP), Ruben George Oliven (UFRGS) e Gabriel Cohn (USP) por aqueles dias mem oráveis de discussão e brilho intelectual. Sou m uito grato tam bém ao C N Pq e à CAPES. Ao CN Pq, pela bolsa de produtividade em pesquisa que possibilitou a reali­ zação deste estudo. E à CAPES, pelo apoio financeiro que alavancou sua edição em livro. Antônio Flávio Pierucci São Paulo, verão de 2003

2 Goldman, 1988: 1. 3 Um Entzauberer (cf. Goldman: ibidem).

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O desencantamento do mundo

O DESENCANTAMENTO DO MUNDO T o d o s o s p a s s o s d o co n ce ito em M a x W eb er

SIGLAS DAS O BRA S CITA D A S DE M A X W EBER

AIntro

“ Vorbemerkung” / “ A uthor’s Introduction” (prólogo geral aos Ensaios reunidos de Sociologia da Religião). In: GARS I: 1-16; PEeng: 13-31; EPbras: 1-15; EPLus: 11-24; ESSR I: 11-24 [1920].

AJ

Ancient Judaism. Glencoe, Illinois, Free Press, 1952 [1917, 1921].

Anti

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Cat

“ Sobre algunas categorias de la sociologia com prensiva” . In-. Ensayos sobre metodologia sociológica. Buenos Aires, Amorrortu: 175-221, 1958 [1913],

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“ O caráter geral das religiões asiáticas” . In: C O H N , Gabriel (org.). Weber: sociologia. São Paulo, Ática: 142-151, 1979b.

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The Religion o f China: Confucianism and Taoism. Glencoe, Free Press, 1951 [1915, 1920],

CP

“ Confucionismo e puritanismo” . In: C O H N , Gabriel (org.). We­ ber: sociologia. São Paulo, Ática: 151-159, 1979b.

CP2V

Ciência e política: duas vocações. São Paulo, Cultrix, 1972.

DigitB

Digitale Bibliothek Band 58. M ax Weber: Gesammelte Werke. Berlim, Directmedia, 2001.

E& S

Economy and Society: An Outline o f Interpretive Sociology (org. Guenther Roth e Claus Wittich). 3 vols. N ova York, Bedminster Press, 1968.

EeS

Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensi­ va, 2 vols. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1991-99 [1922],

Siglas das obras citadas de M ax Weber

11

Einleit

“ Einleitung”/“ Introdução” à “ Ética econômica das religiões mun­ diais” . In: GARS I: 237-275 [1915, 1920].

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A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Pio­ neira, 1967 [1920].

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Uéthique protestante et 1’esprit du capitalisme. Paris, Plon, 1964 [1920].

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A ética protestante e o espírito do capitalismo. Lisboa, Editorial Presença, 1996 [1920],

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Ensayos sobre sociologia de la religion, 3 vols. M adrid, Taurus, 1984.

EyS

Economia y sociedad: esbozo de sociologia comprensiva, 2 vols. M éxico, Fondo de Cultura Económica, 1964 [1922].

FMus

Os fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo, Edusp, 1995.

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GARS I

Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie I. Tübingen, Mohr, 1988 [1920].

GARS II

Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie II. Tübingen, Mohr, 1988 [1921],

GARS III Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie III. Tübingen, Mohr, 1988 [1921]. HEG

Historia económica general. M éxico, Fondo de Cultura Econó­ mica, 1942 [1923],

HGE

História geral da economia. São Paulo, Mestre Jou, 1968 [1923].

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The Religion o f India: Hinduism and Buddhism. Glencoe, Free Press, 1958 [1916, 1921],

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Kat

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O desencantamento do mundo

KS

“ Kritische Studien auf dem Gebiet der kulturwissenschafltlichen Logik” . In: WL: 215-290, 1988 [1906, 1922],

MSS

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MWG

Max Weber Gesamtausgabe. Tübingen, M ohr. Série de edições críticas da obra completíssima de Weber, iniciada em 1984.

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Objekt

“ Die ‘Objektivität’ sozialwissenschaftlicher und sozialpolitischer Erkenntnis” , ln: WL: 146-214 [1904, 1922J.

PE

“ Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalism us” . In: GARS I: 17-206 [1920],

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Die protestantische Ethik II. Kritischen und Antikritischen (org. Johannes Winckelmann). Guterloh, Siebenstern, 1968.

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Die protestantische Ethik und der “ G eist” des Kapitalismus (edi­ ção crítica da edição original de 1904-05, a cargo de Karl Licht­ blau e Johannes Weiss). Bodenheim, Athenäum Hain Hanstein Verlagsgesellschaft, 1993 [1904-05].

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“ Die protestantischen Sekten und der Geist des Kapitalism us” . In: GARS I: 207-236 [1920],

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“ Politics as a Vocation” . In: FMW: 77-128, 1948 [1919].

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RSt

“ R. Stammlers ‘Überwindung’ der materialistischen Geschichts­ auffassung” . In: WL: 291-359 [1907, 1922],

SPro

“ As seitas protestantes e o espírito do capitalism o” . In: EnSoc: 347-370, 1974 [1920].

Siglas das obras citadas de M ax Weber

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SR

The Sociology o f Religion. Boston, Beacon Press, 1963.

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“ Der Sinn der ‘Wertfreiheit’ der soziologischen und ökonomis­ chen Wissenschaften” . In: WL: 489-540 [1917, 1922].

WaB

“ Wissenschaft als Beruf” . In: WL: 582-613 [1917, 1922],

Wg

Wirtschaftsgeschichte: Abriss der universalen Sozial- und Wirtschafts-geschichte. Berlim, Duncker & Humblot, 1981 [1923].

WL

Gesammelte Aufsätze zur 'Wissenschaftslehre. Tübingen, Mohr, 1988 [1922[.

WuG

Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der verstehenden Sozio­ logie. Tübingen, Mohr, 1985 [1922].

ZB

“ Zwischenbetrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen re­ ligiöser Weltablehnung” . In: GARS I: 536-573 [ 1920[.

ZPWk

Zur Politik im Weltkrieg. Schriften und Reden 1914-1918 (orgs. Wolfgang J. Mommsen e Gangolf Hübinger), MW G I, vol. 15. Tübingen, Mohr, 1984.

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O desencantamento do mundo

IN T R O D U Ç Ã O

Um mal-entendido ronda a imagem de W eber e toca direta­ mente o tema deste livro. Desde agosto de 1992, quando passei a oferecer a disciplina “ Leituras de M ax W eber” no curso de pós-graduação em Sociologia da USP, todo ano se repete em linhas gerais o m esmo diálogo com os alunos, provocado pelo m esmo mal-entendido. É quando vou indicar a bibliografia básica a ser esm iuçada no semestre e nela então dou destaque aos principais ensaios teórico-reflexivos de Weber. Aí acontece que alguns es­ tudantes, ao descobrir entre surpresos e confusos que vários m o­ mentos altos da mais avançada e consistente reflexão teórica de Weber caem sob a rubrica Sociologia da R eligião, partes que são de um a obra m aior em três volumes intitulada En saios reunidos de Sociologia da R eligião, deduzem que minha disciplina sobre W eber vai resultar num curso de Sociologia da Religião. Eis o mal-entendido: supor que a estratégica posição de que gozam os três grandes ensaios teórico-reflexivos intitulados “ In­ trodução do au tor” [Vorbemerkung], “ Introdução” [Einleitung] e “ C on sideração interm ediária” [Zw ischenbetracbtung] com o pontos nodais de sua teoria m acrossociológica do processo de racionalização ocidental possa se reduzir a uma especialidade de área denom inada Sociologia da Religião. M ax W eber não era um “ sociólogo da religião” . Pelo m e­ nos não com o eu, que já comecei fazendo sociologia numa seção institucionalizada de Sociologia da R eligião, o Setor de Sociolo­ gia da Religião do C ebrap, uma sociologia especializada, portan­ to. Weber não foi um “ sociólogo da religião” , e contudo ninguém

Introdução

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poderá dizer que é conhecedor da sociologia de W eber se não passar por sua Sociologia da Religião, ou frequentar ao menos seus picos mais altos. Reinhard Bendix entendeu isso precocem ente.4 Seu M ax Weber: An Intellectual Portrait de 1960 (ver Bendix, 1986) dedi­ ca vasto volume de texto, nada menos que seis capítulos, numa atenção simplesmente descom unal para a época, à sociologia das religiões de Weber. Que é m esm o vastíssim a, diversificada, avan­ tajad a, de encher a boca e as prateleiras. W eber tem de fato uma grande Sociologia da Religião, m as não é, repito, um “ sociólogo da religião” com o os que hoje conhecemos ou som os. Weber deu-se ao luxo até m esm o de com por passo a passo um a sociologia sistem ática da religião, publicada na edição convencional de E co­ nom ia e sociedade à guisa de capítulo.5 Entretanto, frequentar a Sociologia da Religião de Weber não pode se resumir, note bem, em revisitar esse com pêndio sistemáti­ co de Sociologia da Religião publicado em Econom ia e sociedade, sobre o qual Bourdieu se debruçou com esm ero, e burilou e es­ quem atizou e sistem atizou ainda m ais, dando-lhe um plus ines­ perado de operacionalidade sociológica (Bourdieu, 1971; 1974b). É m uito m ais que isso. G rande parte da sociologia histórica e com parada de W eber, sua sociologia substantiva, é tam bém ela Religionssoziologie — eis aí a melhor parte do mal-entendido. A “ obra reunida” que ele estava preparando para editar em 1920, ano em que m orreu, não era outra senão os E nsaios reunidos de Sociologia da R eligião, os fam osos G A RS [Gesam m elte Aufsätze

4 N ão dá para esquecer que também por essa época as curiosas “ lem­ branças de M ax Weber” , publicadas em 1963 por Paul Honigsheim, mem­ bro do círculo de amigos do casal Weber, dedicavam muitas páginas a falar de sua tensa relação pessoal com as religiões — as religiões dos seus e as dos outros (Honigsheim, 1963; cf. Roth, 1995). 5 E o capítulo V da parte II do volume I, da versão brasileira publicada pela Editora da Universidade de Brasília [EeS], intitulado “ Sociologia da Religião (tipos de relações comunitárias religiosas)” .

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O desencantamento do mundo

zur R eligionssoziologie]. O s capítulos iniciais do volum e I dos G A RS são os dois conhecidíssim os estudos sociológicos sobre o protestantism o ascético, “ A ética protestante e o espírito do ca ­ pitalism o” e “ As seitas protestantes e o espírito do capitalism o” . T irando os dois, todo o restante dos três volumes dos G A R S é tom ado por uma vasta e diversificada obra de sociologia histórico-com parada das religiões, a que W eber deu o título de Ética econôm ica das religiões m undiais [W irtscbaftsethik der Weltreligionen], Ela compreende: as m onografias sobre a China \Konfuzianism us und Taoism us] e sobre a índia [Hinduism us und Buddhismus], o estudo inacabado sobre o judaísm o antigo \D as antike Ju dentu m ], além de dois dos três grandes ensaios teórico-reflexivos supracitados: a longa “ Introdução” [Einleitung], m ais conhe­ cida em português pelo estranho título que herdou da tradução am ericana, “ A psicologia social das religiões m undiais” , e a pre­ ciosa e celebradíssim a “ Consideração interm ediária” [Zwiscbenbetrachtung\, mais conhecida no Brasil por um título que na ver­ dade é o subtítulo de sua segunda edição alemã, “ Rejeições religio­ sas do m undo e suas direções” , subtítulo m utilado já na versão em inglês da coletânea From M ax Weber [FMW ]. Dentre os ensaios teórico-reflexivos de W eber, se existe um que de m odo algum pode ser lido com o peça apenas de Sociolo­ gia da Religião, dado que o próprio Weber nos desautoriza a tanto de form a explícita, é a “ Consideração interm ediária” [Zwiscbenbetracbtung]. Os term os lançados por W eber são inequívocos: Antes de m ais n ada, um a busca com o esta em Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­ po uma contribuição à tipologia e sociologia do pró­ prio racionalism o.6 (ZB /G A R S I: 537; ESSR I: 528; R R M : 2 4 0 ; EnSoc: 372)

6 Todos os textos de M ax Weber em português foram traduzidos por mim, exceto quando indicado.

Introdução

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É uma autoexigência de W eber que me soa tam bém com o um caveat, uma cham ada de atenção ao leitor. Vejo nos verbos “ deve e quer ser” uma pretensão e, ao mesmo tem po, um alerta a que nunca se leiam seus ensaios de Sociologia da Religião co ­ mo se o autor os tivesse escrito na condição de especialista em Sociologia da Religião e pronto. Ao contrário, W eber se preten­ de o sociólogo que, ao eleger as religiões com o objeto, produz uma dupla m acrossociologia: uma sociologia geral da m udança social com o inevitável racionalização da vida, e uma sociologia específica da m odernização ocidental.7 A popularização de al­ guns de seus trabalhos que tratam enfaticamente de religião, sen­ do A ética protestante e o espírito do capitalism o [PE; EPbras] o m ais conhecido e o m ais lido, leva inevitavelmente a associar o nome de Weber a esse cam po especializado de investigação, a So­ ciologia da Religião, que hoje goza de autonom ia muito m aior com o área de pesquisa e subárea (setorial, fraccionai) do conhe­ cimento do que cem anos atrás. N o s idos de W eber a Religionssoziologie já se fazia pensável, porém impensáveis eram ainda os sociólogos da religião.8 Foi desse m odo, nessa chave, que imediatamente traduzi o caveat assim que o li. Antes de m ais nada, um a busca com o esta em Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­ po um a contribuição à tipologia e sociologia do p ró ­ prio racionalism o.

7 M odernização social cum modernização cultural (cf. H aberm as, 1987). 8 Também no nascedouro da escola sociológica francesa o interesse por estudar o “ fato religioso” do ponto de vista “ sociológico” se manifes­ tou desde logo sem considerações por especialização ou coisa que o valha (cf. Durkheim, 1998 [1912]).

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O desencantamento do mundo

E assim que li saí a pendurar im aginariam ente o aviso, que dum outro ponto de vista mais parece um reclame, no frontispício imaginário de minhas salas de aula e no alto do ponto mesmo onde instalei meu observatório sociológico, que, a conselho de Weber, é o lugar onde exercito asceticamente minha capacidade de con­ tinuar acom panhando, mediante a análise em pírico-substantiva das religiões e das religiosidades no Brasil e na América Latina, a evolução da sociedade ocidental com o algo de particular em seu acontecer e universal em seu alcance cultural. Antes de m ais nada, um a busca com o esta em Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­ po uma contribuição à tipologia e sociologia do pró­ prio racionalism o. E por isso, por essa visada am biciosa, que considero muito educativo para um sociólogo da religião ler, com a reflexividade duplicada dos olhos de hoje, a sociologia histórico-com parada das religiões feita por W eber. Tenho com igo que um dos princi­ pais efeitos subjetivos da leitura desinteressada dessa sociologia historicamente empírica a que W eber se dedicou durante anos está justam ente em fazer sair de seu regionalism o fraccionai o especialista em religião para reinscrevê-lo no quadro de uma teo­ ria sociológica duplam ente m acro m as tam bém genérica o ne­ cessário para ser capaz de ir alcançar o m icro, fortemente histó­ rica e m etodologicam ente bem travejada para exercitar-se nos moldes categoriais de um a sociologia cada vez mais histórica e com parativa. N o decorrer do século X X M ax W eber não foi sempre, m as foi sim cada vez m ais lem brado, solicitado e revisitado por sua Sociologia da R eligião. A partir da década de 70, alguns anos de­ pois da com em oração do centenário de seu nascimento em 1964, quanto m aior ficava o interesse pelas “ grandes teses” (alegadamente) weberianas, quase ia dizendo “ grandes n arrativas” — a do “ desenvolvimento peculiar do racionalism o ocidental de do­

Introdução

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mínio do mundo [Weltbeherrschung]” 9 ou a do “ desenvolvimento de um racionalism o prático sui generis tornado conduta de vida [rationale Lebensfiihrung]” 10 — , tanto m aior foi ficando o inte­ resse em conhecer sua sociologia substantiva das religiões. Em se tratando de docum entar empiricamente processos de racionalização de variada extensão, nada melhor que a história com parada das religiões em chave sociológica para nos fornecer os exem plos mais salientemente heterogêneos de racionalização da vida em sua dupla vertente básica, a racionalização teórica e a racionalização prática (Einleit/GARS I: 265-6; EnSoc: 337). É por isso que na segunda metade da década de 80 W olfgang J. M ommsen já podia anotar que “ os estudos de Weber em Sociologia da Religião passaram a atrair renovada atenção. Por um período, sua Sociologia da R eligião tinha sido con siderada desatu alizada e irrelevante [...]. A gora vai se tornando evidente um novo e vivo interesse por este aspecto da obra de W eber, precisamente na me­ dida em que sua Sociologia da Religião está relacionada às fon­ tes de racionalização no O cidente” (M om m sen, 1989: 5 ).11 Antes de m ais nada, um a busca com o esta em Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­ po uma contribuição à tipologia e sociologia do p ró ­ prio racionalism o. A pesquisa sobre M ax Weber nos últimos vinte ou trinta anos cresceu tanto que tom ou uma série de direções dispersas,

9 Tese defendida por Schluchter, Tenbruck e Habermas. 10 Tese defendida por Wilhelm Hennis (1993; 1996). 11 Quando, por exemplo, Leopoldo Waizbort faz a apresentação de sua tradução de Os fundamentos racionais e sociológicos da música (Weber, 1995), a parte da obra weberiana que ele com toda razão considera “ como mais próxima ao seu exame da racionalização da m úsica” é a Sociologia da Religião (cf. Cohn, 1995: 15-16).

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algum as bem produtivas em novos achados e estudos de fôlego. Houve, a partir da década de 70 e m ais perceptivelmente ainda nos anos 80, um a espécie de renascim ento do interesse pelos es­ critos de W eber, que produziu verdadeira enchente de literatura secundária sobre todos os aspectos de sua obra e, por força, de sua Sociologia da Religião. Stephen Kalberg (1994: 16) deu a esse caudal o nome de “ international Weber renascence” . Em m até­ ria de racionalização, o velho ângulo de observação à la M ann­ heim (1962), que favorecia a atenção ao processo de racionali­ zação funcional e portanto de burocratização da sociedade m o­ derna, foi cedendo espaço a um ponto de vista m ais abrangente em term os históricos, que valoriza o observar-se a sociedade oci­ dental do ponto de vista de um vasto processo de racionalização de longuíssim a duração. Antes de m ais n ad a, um a busca com o esta em Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­ po uma contribuição à tipologia e sociologia do pró­ prio racionalism o. D ois autores em especial lideraram a grande inflexão nos estudos da obra de Weber que se desenhou na segunda metade dos anos 70; juntos, eles personificam o turning point do interes­ se acadêm ico por sua Sociologia da R eligião: Friedrich H. Tenbruck, com seu artigo de 1975 sobre “ a obra de M a x W eber” (1975), m ais conhecido pelo título em inglês “ O problem a da unidade tem ática nas obras de M ax W eber” (1980), e W olfgang Schluchter, com seu livro seminal e inexaurível, O desenvolvimen­ to do racionalism o ocidental (1979b), antecipado em alguns anos pelo artigo não menos descortinador, “ O paradoxo da racionaliza­ ç ã o ” (1976; 1979a). Para Tenbruck, um processo de racionali­ zação religiosa que opera segundo sua própria lógica interna pode ser considerado o núcleo principal e o tema unificador dos escri­ tos de M ax W eber, principalm ente dos trabalhos de sua m aturi­ dade, m uitos dos quais dedicados a com parar tipologicam ente as

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grandes religiões. Crítico de Tenbruck, Schluchter também se viu às voltas com as várias sociologias da religião deixadas por Weber, e tam bém ele procurou acom panhar passo a passo o fio de Ariadne do processo de racionalização religiosa em sua peculiar vertente ocidental. Escreveu sucessivos estudos de explanação sempre m ais apurada e sistem ática dos ângulos de visão weberianos sobre o desenvolvimento do racionalism o característico do Ocidente, tendo por referência empírica as diferentes religiões e seus contrastes (Schluchter, 1989; 1991; 1996). Antes de m ais nada, um a busca com o esta em Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem­ po uma contribuição à tipologia e sociologia do p ró­ prio racionalism o. De m odo que a valorização da Sociologia da Religião de W eber iniciada nos anos 70 prosseguiu pelas décadas seguintes, na razão direta da escalada do interesse pós-m oderno pelos pro­ blemas e dilem as da racionalização do social, da racionalização de todas as esferas culturais m esm o as mais irracionais, da ra ­ cionalização sistêmica do agir e seu crescente im pacto no m un­ do da vida. N ão dá para m enosprezar de m odo algum o im pul­ so que H aberm as aduziu a essa anim ada corrida à Sociologia da Religião de W eber, a qual não só se acelerou com o se avolum ou ainda mais ao sabor do crescente interesse intelectual desperta­ do pela análise haberm asiana do discurso filosófico da m oderni­ dade. Com seu prestígio de grande filósofo alem ão contem porâ­ neo e, para com pletar, de pensador “ do bem ” , parece que H a­ berm as transferiu um pouco de sua influência acadêm ica para a tendência emergente entre os estudiosos de Weber de problem atizar o estatuto universal da racionalização, m antendo sempre afiado o gume da crítica à am biguidade ím par do racionalism o ocidental enquanto “ racionalism o de dom ínio do m undo” [ Weltbeberrschung\ tal com o o caracteriza Weber, designação que nos remete diretamente ao desencantam ento esclarecido da nature-

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za, com todas as contradições e irracionalidades que esse m odo de relação com o mundo implica e acarreta. De m odo que chego ao conceito de desencantam ento em W eber sendo principalmente eu o sociólogo da religião e ele o sociólogo da racionalização. N ad a há nisso de acidental. Antes de m ais nada, um a busca com o esta em Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­ po um a contribuição à tipologia e sociologia do p ró ­ prio racionalism o. * s:-

M inha intenção no exercício de scholarsbip que apresentei com o tese de livre-docência à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências H um an as da USP e que agora se transform a em meu primeiro livro sobre W eber é percorrer de ponta a ponta a escrita weberiana, fazendo através de toda a sua extensão um rastreamento com pleto, exaustivo, dos usos do termo “ desencantam en­ to ” [Entzauberung] e de seus derivados e flexões. Inicio o trab a­ lho com uma rápida colheita das passagens relativas ao desencan­ tam ento do mundo localizadas nos escritos de W eber. A coleta foi feita a princípio artesanalmente, na base da leitura atenta e p a­ cientemente repetida, metodicamente assinalando em código pági­ nas de livro com m arcadores coloridos — foi assim que concluí a tese em fevereiro de 2001 e a defendi publicamente no dia 13 de junho de 20 0 1 . A gora, dois anos depois de concluída a primeira versão, vejo que toda a trabalheira im plicada num rastream ento como esse se tornou, pelo avanço da tecnologia informacional, não só muito mais rápida, mais com prim ida no tem po, m as também e principalm ente m ais segura, garan tida que está hoje a plena certeza de que nada ficou de fora da contagem e do registro dos ach ados. G raças, p ois, a essa nova tecnologia editorial que já chegou à obra de W eber, com pleteza e arredondam ento em rastreamentos vocabulares com o este, em obra tão vasta quanto a dele, hoje estão assegurados a todo pesquisador que tiver acesso

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a um procedimento de busca informatizada de palavras numa obra (completa) digitalizada. Pois já existe um “ W eber digital” , viva! O C D -R O M n° 58 da D igitale Bibliotbek (cf. DigitB) saiu em 2001 trazendo sua obra reunida, precedida da fam osa Lebensbild [biografia] escri­ ta por sua viúva, M arianne Weber. C om o uma grata surpresa e gentile pensiero de Leopoldo W aizbort, meu colega no D eparta­ mento de Sociologia da USP, esse C D -R O M chegou às minhas m ãos na hora exata, bem a tem po de subsidiar-me com sua bem-vinda exatidão tecnológica no m om ento em que eu devia con­ ferir, p asso a p asso, antes de entregar os originais ao editor, a localização e a contagem das ocorrências vocabulares que eu fi­ zera para a livre-docência. Penso que devo inform ar aos leitores, sobretudo aos meus alunos, que para chegar aos bons resultados que atingi no primeiro rastream ento foram necessários quase três anos de buscas, releituras para conferir, revisões constantes e rea­ justes infindáveis. H oje estou ciente de que os meios e m odos artesanais de que dispunha, de longe mais m odestos e dem orados que os recursos atualmente disponíveis no m ercado, no fundo, no fundo, não conseguiam , apesar de todo o meu zelo e discipli­ nada atenção, se safar da dúvida instalada na porosidade dos re­ sultados prom etidos: será que não deixei p assar nada? Com o “ Weber digital” , o trabalho de investigação ficou mais fácil, mais rápido e até m ais divertido, e o resultado da coleta e da con ta­ gem, cem por cento seguro. As passagens colecionadas serão, num prim eiro momento (capítulo 3), dispostas em ordem cronológica, m as sem grandes contextualizações sistem áticas, pois é intenção deste meu exercí­ cio de pesquisa textual, num segundo momento que será seu cor­ po propriam ente dito (capítulos 5 a 13), contextualizar cada p a s­ sagem nas dobras da estrutura e do movimento interno da pró­ pria teorização sociológica de M ax Weber.

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TODOS OS PASSOS DO CONCEITO Ich bin zwar religiös absolut unmusikalisch... [Não tenho absolutamente nenhum ouvido musical para religião...] M ax Weber, carta a Friedrich Naumann, 1909

1. PA SSA N D O PO R SC H ILLE R

À primeira vista parece fácil, extremamente fácil, atinar com o significado da expressão desencantam ento do m undo. Assim com o parece fácil localizá-la nos textos de M ax W eber, sintag­ ma de presença tão densa e tão forte que se im agina onipresente. M as não. Se o desencantam ento ressoa por trás de cada página de W eber, se ele se insinua em cada entrelinha com o se percorresse a obra toda, travejando-a de ponta a ponta e perpassando cada um de seus estudos, ficando sempre ali em sua escrita, assim , o tem po inteiro, isso se deve antes à força da ideia do que à pre­ sença física da palavra. D o term o em si, da expressão vocabular, é só aparência de onipresença, efeito ilusório. M uito m ais do que pelo em prego supostam ente frequentíssim o do term o,12 muito m ais do que pela ocorrência m aterial do significante no fluxo caudaloso da pena weberiana, a im pressão de onipresença é cau ­ sada pela im portância e significação estratégicas que esse concei­ to, conform e veremos logo m ais, vai assum ir, inclusive retroati­ vamente, na tem ática substantiva da sociologia co m parada de M ax W eber — a emergência do racionalism o ocidental em meio a um processo de racionalização generalizado m as heterogêneo. M as tem outra. Tem algo m ais. Entra aí tam bém , e contan­ do pontos, a beleza da expressão em si, com sua capacidade de

12 Frequência realmente all-pervasive na obra de Weber quem tem são as palavras “ racionalização” , “ racionalidade” e “ racionalismo” .

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reverberar e sugerir efeitos de sentido que ultrapassam largamente seus pontos de aplicação autorais. Basta dizê-la em francês para logo percebermos seu poder de aludir: désensorcelement du m on­ de... (cf. Ladrière, 1986: 107; Isam bert, 1986). A bela frase que fala em alem ão desse desenfeitiçamento do mundo, Entzauberung der Welt, remetendo-o sim ultaneam ente a seus efeitos cosm ológicos e etéreos, Weber foi buscá-la nas reflexões estéticas do filó­ sofo e poeta Friedrich von Schiller (1750-1805). Ou, pelo menos, para chegar a ela, em Schiller foi se inspirar. Fora da Alem anha, os prim eiros a divulgar essa filiação li­ terária do termo foram H ans Gerth e Charles W right M ills, au ­ tores da difundidíssim a coletânea de textos de W eber traduzidos para o inglês: From M ax Weber [FMW ]. U sadíssim a em todo o m undo, o m undo todo veio a ter m aior acesso à diversidade da obra de W eber com essa publicação no im ediato pós-Segunda Guerra, em 1946. A certa altura da longa introdução dos organ i­ zadores pode-se ler o seguinte: “ Ao refletir sobre a m udança nas atitudes e mentalidades humanas ocasionada por esse processo [de racionalização], Weber gostava de citar a frase de Friedrich Schil­ ler, o ‘desencantam ento do m un do’.13 A extensão e a direção da ‘racionalização’ podem ser m ensuradas, ou negativam ente, em term os do grau em que os elementos m ágicos do pensam ento são desalojados, ou positivam ente, à proporção que as ideias vão g a ­ nhando em coerência sistem ática e consistência n atu ralística” (FM W : 51, grifos meus). Trinta anos depois, em 1976, Daniel Bell voltaria à mesma referência, em seu livro The Cultural Contradictions o f Capitalism. N um contexto em que está tratando da racionalização de todos os ram os da vida cultural e da estrutura social, inclusive dos m odos e m odalidades da arte, tem ática aliás francam ente weberiana, Bell comenta que “ para W eber isso era verdadeiro num

13 “ "Weber liked to quote Friedrich Schiller’s phrase, the ‘disenchant­ ment o f the world’” (FMW: 51).

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duplo sentido: os aspectos cosm ológicos do pensam ento e da cul­ tura ocidentais foram caracterizados pela eliminação da m agia (se­ gundo a frase de Schiller, ‘o desencantam ento do m un do’)-, e a estrutura e a organização form al, a estilística das artes, são ra­ cionais. O exem plo particular de W eber era a m úsica harm ônica ocidental de acordes, baseada numa escala que permite o m áxi­ mo de relações ordenadas, diferentemente da m úsica primitiva e não ocidental” (Bell, 1976: 36, grifos meus). M ais tarde um pouco, em 1988, os brasileiros iam poder ler num livro de resumo do pensamento weberiano escrito por Donald M acR ae a alegação de que W eber “ tom ou do poeta Schiller uma frase que é usualmente traduzida com o ‘o desencanto do m undo’ ” (M acRae, 1988: 90, grifo meu). É assim mesmo que aparece tradu­ zido o componente verbal do conceito: “ desencanto do m undo” , já incorporando em português um certo deslizamento de sentido. Bem mais recentemente, em 1993, ainda pude encontrar a mesm a atribuição de filiação term inológica, dessa vez na pena de Andrew M . Koch, em artigo a respeito do “ m odernism o” de We­ ber publicado no Canadian Jo u rn al o f Political Science, no qual fica dito que desencantamento “ é um termo em prestado de Fried­ rich Schiller” (Koch, 1993: 138, grifo meu). E m ais recentemente ainda, pude ler em Peter Ghosh mais uma referência a tal empréstim o. D epois de com entar que, quan ­ do em prega a expressão “ afinidades eletivas” [W ahlverwandt­ schaften] para caracterizar a relação de “ causalidade ad eq u ad a” e de “ m útua atra çã o ” entre a ética puritana e o espírito capitalis­ ta, Weber está na verdade “ usando uma frase tornada fam osa por G oethe” , Peter Ghosh se refere de passagem , em nota de rodapé, a “ um outro im portante empréstim o literário, tom ado de Schil­ ler, usualmente traduzido com o ‘o desencantamento do m undo’ ” (Ghosh, 1994: 106, nota 8, grifo meu). Estam os perante um caso claro de “ ideia recebida” . Pes­ soalm ente, nunca vi nenhum desses autores citando exatam ente o lugar da obra de Schiller em que se encontra a expressão. Ain­ da estou à espera de provas, pois apesar da aparente unanim ida­

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de há, é bom que se diga, controvérsias em torno da alegada fi­ liação ou, quando menos, em torno do grau de uma filiação dada com o certa. Segundo alguns, consta que W eber não estaria citan­ do Schiller, com o estão a dizer por escrito Gerth & M ills, Bell, M acR ae, Koch, Ghosh e provavelmente m uitos outros, pois já vi muito aluno meu afirm ando isso em trabalhos de fim de curso, isto para não falar naqueles que o têm pronunciado m as não es­ crito — o próprio Weber seria o autor do sintagma Entzauberung der Welt, expressão por isso m esm o tão weberianamente m arcan­ te quanto de fato ela tem soado a todos os que apaixonadam ente estudam a vida e a obra deste... desencantador.14 E se W eber tivesse apenas se inspirado numa expressão do grande poeta, numa locução análoga m as não idêntica? Para con­ densar numa única expressão os im pactos da modernidade sobre a mãe natureza, Schiller teria pensado num efeito de “ desdiviniz a çã o ” , ou, dizendo-a aqui sob um a outra form a tam bém p ossí­ vel em português, um efeito de “ desendeusam ento da natureza” — Entgòtterung der N atur. Esta terceira posição, que pessoal­ mente tendo a abraçar, segundo a qual o termo não foi cunhado pelo próprio Weber, nem adotad o ipsis litteris de Schiller e sim por ele ad ap tado a partir de um sintagm a sim ilar, eu a aprendi verbatim do professor W olfgang Schluchter, atual ocupante da cátedra que foi de M ax Weber na Universidade de Heidelberg, quando esteve no Brasil em 1997. Parece m esm o que Weber era dado a tom ar em préstim os vocabulares da alta literatura alemã. Uma vez pelo menos, e assim m esm o em tempo de verbo com função adjetiva, Weber usa a ideia de “ desdivinização” para se referir precisamente ao “ m ecanism o desdivinizado do m undo” . É quando, na “ Introdução” [Einleitung] à Ética econôm ica das religiões m undiais, ele discute a diferença entre, de um lado, o conhecimento e a dom inação racional do mundo natural e, do outro, as experiências m ísticas individuais, inexprim íveis, inco­

14 Entzauberer (cf. Goldman, 1988: 1).

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municáveis, inefáveis, cujo conteúdo indizível permanece “ com o o único Além ainda possível junto ao m ecanism o desdivinizado do m undo” [neben dem entgotteten M echanismus der Welt] (Einleit/GARS I: 2 5 4 ; grifos m eus).15 Pelo sim , pelo não, o fato é que M ax Weber construiu um conceito, m uito m ais que um sim ples termo. E um a vez elabora­ do o conceito e fixado o significante com toda essa poética lexicalidade, tão insinuante que muita gente pensa se tratar tão só de um a m etáfora — Paul Ricoeur é um deles (1995) — , W eber p as­ sou a m obilizá-lo com tal centralidade e tam anha proeminência em seus escritos, falas e reescritos da m aturidade — e por “ m a­ turidade” entenda-se aqui algo apenas cronológico, um atalho vocabular para designar os últimos oito ou dez anos de sua vida — , que o significante Entzauberung der Welt, inusitado m as in­ discutivelmente um m arcador, intenso com o referência m aterial pela carga de efeitos de sentido, alusões e ressonâncias que abri­ ga e emite, viria a se tornar um a das m arcas registradas, não só das teses substantivas de Weber sobre o desenvolvimento do racionalism o ocidental, mas também da própria escritura weberiana. Entzauberung der Welt — eis aí um m arcador da diferença. D a diferença do pensam ento, m as tam bém da escrita de M ax Weber. Em qualquer língua do m undo a ideia de encantam ento se diz gostosam ente, gozosam ente, em form as belas, arrebatado­ ras, fascinantes: encanto, encantam ento, encantado, encantador, encantaria... Desencantam ento, seu negativo, quem sabe também por isso não term inou se im pondo com o um dos melhores identi­ ficadores pessoais de um pensam ento, senão o melhor.

15 A tradução espanhola é ruim neste pormenor, assim como a brasi­ leira. Nelas se lê “ mecanismo de un mundo sin dioses” , “ mecanismo de um mundo sem deuses” , o que, convenhamos, é muito diferente da noção pro­ cessual de “ mecanismo desdivinizado do mundo” (cf. Weber, 1987: 248; 1974: 325). N ota “ 10 com louvor” para a tradução italiana: “ mecanismo sdivinizzato dei m ondo" (Introltal: 168).

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2. M EU PO N TO

A explicação desta racionalização (da vida ocidental) e a form ação dos conceitos correspondentes constituem uma das princi­ pais tarefas de nossas disciplinas. M ax Weber, Neutr: 169

Claro que um conceito não pode ser tão proteiforme; algum núcleo duro de significa­ do ele certamente terá. Gabriel Cohn, 1995: 15

Desencantam ento do m undo é um significante de fraseado lírico, hipersuscetível de m anipulação m etafórica. Às vezes, é co­ mo se fosse um verso. E verso de tão forte apelo à im aginação do leitor, que na travessia dessa destinação termina por funcionar à guisa de um mote. E feito um m ote, ele efetivamente desata a fantasia glosadora das pessoas que, intempestivamente, começam por livre associação de ideias a lhe atribuir uma infinidade de sig­ nificados alusivos e fluidos, frouxos, a partir da pura similitude vocabular. O termo é realmente bom , é rico o vocábulo “ desencanta­ m ento” . Seu feixe básico de significados lembra tudo que é m á­ gico e encantador, tudo que seduz e atrai, tudo que enfeitiça e arrebata, tudo que tem charme e fascina. Charm e. Fascinação. Feitiço. Em bm jo. Sedução. Encanto. Incantesimo. A tração. M ag­ netismo. T udo enfim que encanta — este é o núcleo — pode de repente sair dessa palavra. E é isto, acho eu, que permite a Weber, por exem plo, usar e abusar da m etáfora do “ jardim encantado” , em alem ão Zaubergarten, m esmo quando está no meio do m aior esforço intelectual para traçar com clareza e distinção os limites

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lógicos do conteúdo que ele entende dar ao novo conceito. Em plena assepsia do trabalho de construir um conceito logicamente consistente, insinua-se na fraseologia de Weber, incontida, a m e­ táfora do “ jardim m ágico” .16 Às vezes na mesm a página, quan ­ do não no m esmo parágrafo (cf. G A RS I: 513), aflora a m etáfora no afã de ilustrar empiricamente a form ulação abstrata a duras penas alcançada, e então o pensar de W eber transita pra lá e pra cá, do lógico ao figurativo. Figurativo, sim, pois o que mais p o ­ deria ser “ jardim encantado” no texto weberiano se não uma fi­ gura de linguagem ? Certamente não um conceito científico. N o decorrer deste trabalho teremos chance de p assar várias vezes pela im agem do “ jardim encantado” , essa m etáfora escan­ caradam ente m etafórica que W eber insere em seus escritos de Sociologia da Religião nada menos que seis vezes (cf. DigitB) no intuito de condensar numa figura im aginária e com um radical evocativo — Z auber — a visão algo etnocêntrica que em suas pesquisas históricas fora elaborando das grandes civilizações asiá­ ticas: encantadas, porquanto dom inadas pela m agia, p aralisadas pelo tabu. Isso quer dizer que o significante encantam ento tem força expressiva própria, quase uma lógica própria, tantas são as on­ dulações e deslizam entos de que seu uso é capaz, viáveis em di­ versos idiom as, e em todos eles carregando o m esm o poder de enlevo lexical. Im possível não lem brar o cum prim ento francês encbanté, impossível esquecer que em italiano incantesimo é uma beleza de palavra, e assim vai. Destino tam bém de todos os seus contrários. Desencanto, por exem plo, é um a palavra tam bém ela muito sugestiva, e não são tão raros assim os tradutores que subs­ tituem desencantam ento por desencanto, criando com isso a ex ­

16 As traduções de Weber para o inglês, em vez de jardim encantado, preferem jardim mágico, magic gardett. O que também fica bom em portu­ guês. N ós não chamamos a ópera de Mozart, Die Zauberflõte, de “ A flauta mágica” e não “ A flauta encantada” ? Dá no mesmo?

Meu ponto

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pressão “ desencanto do m undo” (cf. M acR ae, 1988: 90; Hawthorn, 1982: 161), ultra-am bígua em português, onde desencanto diz desaponto, desilusão e decepção, m as corretíssim a e precisa em italiano, língua na qual desencantam ento se diz sim plesm en­ te disincanto — disincanto dei m ondo (cf. Treiber, 1993: passim ; W eiss, 1993). N a tradução brasileira de um livro que trata da genealogia da secularização, escrito pelo italiano G iacom o M arram ao ,17 em um título de capítulo o tradutor trouxe para o por­ tuguês o disincanto do italiano. E o capítulo ficou se cham ando “ Racionalidade e desencanto” (cf. M arram ao, 1997: 5; 47). M as nesse rol dos propensos a tratar o desencantam ento na chave do desencanto há um nome ainda m ais fam oso que os já citados, Arthur M itzm an, que em seu livro The Iron Cage, de 1971, pretende descobrir em W eber, “ sob a superfície de sua So­ ciologia da R eligião” , uma síndrome psicológica que ele define e adjetiva com o “ person al disenchantm ent", e descreve com o “ o profundo senso de desilusão e desencanto do scholar convalescen­ te com a sociedade e a política alem ãs” de seu tem po, síndrome cujas raízes M itzm an não dem onstra a menor dificuldade em lo­ calizar “ nos próprios sentimentos de cu lp a” de um M ax Weber pós-colapso psíquico (cf. M itzm an, 1971: 204-205). O desencantam ento do m undo, quando traduzido por de­ sencanto e, com isso, re-duzido, psicologizado nos term os de um estado mental de desilusão pessoal com o m undo (moderno) ou com os rum os da sociedade (nacional), não leva necessariamente a lugar teórico nenhum. N ão tem, ou melhor, nem chega a tocar em sentido cognitivo algum . N ão p assa de um mísero nóm ade desfigurado nas variações do nome. Pode ser sintom a da pobre­ za mental do com entarista, quando não de preguiça intelectual. T od a essa dispersão interpretativa leva a crer que o significante em si m esmo (fazer o quê?) talvez seja encantador o sufi­

17 Céu e terra: genealogia da secularização, São Paulo, Ed. da Unesp, 1997.

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ciente para impelir sua aplicação a agasalhar carga semântica sem­ pre m ais expandida e alusiva, um feixe sempre elástico de signi­ ficados de uso corrente, definitivamente proteiform e (cf. Cohn, 1995: 15). D evagar com o andor, porém. São tantas na verdade as excitações cabíveis na elasticidade desse feixe, que sua am plia­ ção pode dar em dissipação. H á este risco. Com palavra assim tão provocante, de aura tão carregada de m agnetism o e m agia, é mui­ to grande m esm o o risco da volatilização sem ântica e do disp a­ rate, da tolice. É assim , por exem plo, que vam os ler na tradução brasileira do livro A m áquina de fazer deuses, de Serge M oscovici (1990), algo com o: “ M as aquilo que W eber cham a de ‘desilusão do m undo’ [...]” (p. 153); “ Assim sendo, ‘desiludir com o m un­ d o ’ significa [...]” (p. 154); “ O m undo aqui de baixo tendo sido desiludido, observa Weber a propósito das seitas batistas [...]” (p. 155); “ Por outro lado, a desilusão do m undo representa a des­ coberta de um cam inho estrito [...]” (p. 155). A leitura de frases com o essas — e exarad as além do mais num léxico atribuído ex ­ plicitamente a W eber — chega a ser uma experiência irritante de desnecessário nonsense. N ão haveria nada de errado em procurar inconsistências e até mesmo contradições no próprio Weber, assim com o, tenho cer­ teza, não haveria nada de errado se o uso da voz “ desencantamento do m undo” por Weber fosse variegado, m ulticolorido ou m es­ mo furta-cor. Apenas teria sido outro o rum o tom ado pela an áli­ se e pelo esforço de exegese que tenho feito. Acontece, porém, que não é. A o contrário do que m uita gente pensa, inclusive assim pensava eu tem pos atrás, as coisas não vão por aí. O uso do ter­ mo em W eber de fato não é unívoco, lá isso é verdade. Ele m uda: dependendo da questão em tela — e não do transcurso dos anos do autor, atenção! — ele se expande e se retrai, fica m ais forte ou m ais fraco, m as nem por isso chega a se pôr com o desbragadamente polissêm ico. E é isto que eu pretendo deixar bem dem ons­ trado aqui: não é hiperpolissêm ico e muito menos contraditório. E deveras surpreendente sua consistência lógica e sua fixa­ ção num p ar de sentidos ao longo das sucessivas utilizações.

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Talvez isso se deva ao fato de serem quantitativam ente re­ duzidos seus em pregos diretos no texto weberiano, o que já não acontece com a frase “ processo de racionalização” e menos ain­ da com os substantivos simples “ racionalização” , “ racionalidade” e “ racionalism o” , de incontáveis possibilidades de uso e uso efe­ tivamente variegado (cf. Vogel, 1973; N elson, 1974; Eisen, 1978; Kalberg, 1980; Brubaker, 1984; Gonzales, 1988; Sica, 1988). Es­ sas são term inologias polissêm icas no sentido generoso da p ala­ vra, não estando, por isso m esm o, isentas de contradições no pró­ prio pensam ento weberiano (cf. Treiber, 1993: 2 ).18 T ão polissê­ m icas, que o próprio W eber por diversas vezes nos alertou quan­ to a isso: “ Nun kann unter diesem Wort [Rationalism us] bòchst Verscbiedenes verstanden werden" , ou seja, “ com esta palavra [ra­ cionalism o] podem-se entender as coisas mais diversas” (GARS I: 11; ESSR I: 21 ; EPbras: 11). Semelhante alerta não se vai en­ contrar em seus textos visando à palavra desencantamento. T am ­ bém, pudera, são de fato poucos os em pregos textuais que faz do termo “ desencantam ento” . 19 Pode-se contá-los com os dedos das m ãos. Ele é, sem dúvida algum a, uma exclusividade conceituai da sua sociologia, uma espécie de m arcador da “ individualidade his­ tó rica” do seu pensam ento — o que, convenham os, está longe de ocorrer com os termos racionalism o, racionalidade e racionaliza­ ção, apropriados pelas mais variadas correntes de pensamento. Talvez por isso os usos dele não tenham se beneficiado do sem-

18 “ É o processo de racionalização que estimula cada vez mais os in­ térpretes com respeito às suas premissas, às suas formas, às suas contradi­ ções e consequências. E em boa medida isto também se deve ao fato de que as relativas elaborações de Weber não estão totalmente isentas de contradi­ ções [non sono dei tutto prive di contraddizioni], mesmo porque os modelos explicativos e as partes teóricas empregadas estão de sua parte vinculados a tradições de pensamento extremamente diversas” (Treiber, 1993: 2). 19 Às vezes me acomete a curiosidade de saber: além de Weber, quem mais naquele tempo teria passado a usar o termo assim teorizado? Marianne Weber certamente, mas quem mais?

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pre alegado (e ademais muito real) “ caráter fragm entário” da obra w eberiana para disparar o significante num a spiraling diversity de significados eivada de inconsistências e contradições. N ão encontrei nada de escorregadio aí. O terreno que piso ao rastrear o desencantamento em W eber é surpreendentemente limpo, é terra firme. Além do quê, há um lado ético do pensam ento de M ax We­ ber que sustenta a tese segundo a qual o interesse último da ciên­ cia social para um ser hum ano reside em sua contribuição para a luta do indivíduo com um em busca de clareza. T al busca é em Weber parte integrante de uma verdadeira obsessão com a hones­ tidade intelectual. D aí seu com prom isso pessoal, uma espécie de dever profissional do cientista vocacional que ele era, dever autoim posto em nome da “ c a u sa ” , com o de resto exigido de todo cientista no sentido m oderno do termo: o dever de empregar, e se for necessário construir ele m esm o, conceitos claros, conceitos que sejam internamente consistentes e externam ente bem deli­ m itados, recortados com nitidez. Tam bém pretendo dem onstrar aqui, relativamente ao con­ ceito de desencantamento do m undo, que esse cuidado de Weber com a clareza do conteúdo sem ântico deste significante em p ar­ ticular se patenteia não raro na própria aparência do texto: pela adoção de determ inados recursos estilístico-form ais de caráter explicativo, m ais do que apenas enfático, com o por exem plo o aposto simples, o aposto com dois pontos, a adjetivação especificante aduzida ao sintagm a original e até m esm o o fraseado conectivo-explicativo explícito do gênero “ isto significa” . Luta por clareza. Este meu trabalho sobre M ax Weber tem a ver com essa luta, que era dele m as que tam bém é minha, e eu sinceramente acho, tal com o ele achava, que ela deve ser de to ­ dos os que se ocupam profissionalm ente de uma ciência. De con­ fusa e em baralhada, basta a vida real, basta a Wirklichkeit, a rea­ lidade em fluxo permanente. O s conceitos, as categorias, as defi­ nições são nossas ferram entas de trabalho, e ferram entas têm de ser boas e adequadas para o que delas se espera, e no caso das

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teorizações científicas sistem áticas, das sistem atizações teóricas, esperam-se instrumentos de precisão, conceitos portanto de alta definição. N ão é sempre que se consegue, m as é nosso dever con­ tinuar tentando chegar lá, à clareza, à nitidez. De confusos, repi­ to, bastam os Vorgänge der Welt, diria W eber (WuG: 308), os “ processos/sucessos do m undo” , que continuam caóticos, nebu­ losos, indom áveis, m esm o quando já tenham sido “ desencanta­ d o s” pela ciência, ela mesma. N ão há momento melhor para fla­ grar nosso autor às voltas com esses seus cuidados que também são meus — “ ai meus cu id ad os!” — do que nas longas e meticulo­ sas respostas que deu aos críticos da tese do “ espírito” do capita­ lism o, anticríticas publicadas no Archiv em 1910, uma das quais leva no título a taxativa palavra Schlusswort, “ última palavra” (texto parcialmente traduzido para o inglês em 1978, Anticritical last w ord...20). Em 1910, cinco anos depois da primeira publicação d ’/\ éti­ ca protestante e o “espírito” do capitalism o21 nos fascículos do Archiv für Sozialw issenschaft und Sozialpolitik, Weber resolveu publicar no m esmo veículo dois longos textos de resposta a seus críticos: Antikritischen zum “ G e ist” des Kapitalism us (vol. 30, fase. 1) e Antikritisches Schlussw ort zum “ G eist des K apitalis­ m u s” (vol. 31, fase. 2). De m odo geral, os pesquisadores dão pouca atenção a esse conjunto de artigos, fruto da apaixonada polêmica a que W eber se viu arrastado em razão do im pacto en­ tre os contem porâneos da sua obra mais conhecida. Nem mesmo a reedição das Kritischen und Antikritischen zur Protestantischen

20 Fora da Alemanha, os interessados que não leem alemão podem ter acesso apenas a uma parte do segundo texto das anticríticas, na tradução de Wallace M. Davis para o inglês, Anticritical L ast Word on The Spirit o f Capitalism, publicada em 1978 em uma revista científica de sociologia de grande circulação, o American Journal o f Sociology, vol. 83 (ver: Anti). 21 N o título da primeira versão desta obra (1904-05) a palavra “ espí­ rito” vem entre aspas. A partir da segunda versão (1920), caíram as aspas.

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Ethik organizada por Johannes W inckelman em 1968 (ver PE II) conseguiu interessar de m aneira abrangente os com entadores. É compreensível. N esses escritos anticríticos (ver tam bém Fischoff, 1944), Weber se concede toda a oportunidade (não sem um certo ar blasé) não só de esclarecer de novo conceitos seus que, segundo ele, já estavam claros em diferentes capítulos d ’A ética protestante de 1904-05 — por exem plo, os conceitos de “ ascese intramundan a” , “ espírito do capitalism o” , “ vo cação” , m as tam bém de fazê-lo com alto grau de reflexividade, na medida em que, aqui e ali, nomeia explicitamente a regra de ouro da “ clareza conceituai” com vistas ao “ aguçam ento da evidência” .22 Quer me parecer que essa atitude de Weber (de alta reflexividade científica, repito) por si só deixa estabelecido ou pelo menos sugerido que o inte­ resse m aior de todo debate intelectual que se pretenda científico apesar de apaixon ado reside no objetivo subjetivamente valori­ zado de desfazer a confusão conceituai, dissipar a nebulosidade que dilui o(s) significado(s) m entado(s) pelo pesquisador ao em ­ pregar esta ou aquela term inologia, através de uma operação de recortar com nitidez os seus contornos e distinguir exatam ente seus com ponentes parciais. Em ciência não é possível deixar o significante solto por aí, proteicamente, dionisiacamente, heraclitianamente significando a seu bel-prazer, em polissem ias “ se agi­ gantando pela própria n atureza” , dizendo coisas novas a cada nova leitura m algrado o sujeito-autor-cientista que o empregue. M as, devemos reconhecer, W eber tam bém é — e isto sem dúvida é menos importante nele com o homem do intelecto do que a capacidade de produzir conceitos, m as nem por isso menos real nem menos elogioso — um autor de grandes m etáforas, m etáfo­ ras que ficaram fam osas. E m etáfora, a gente sabe, é coisa que tem

22 Como no momento não tenho acesso à reedição em alemão (PE II), cito a partir do inglês: “ conceptual clarity [...] in sharpening the evidence” (Anti-. 1111-1112).

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baixa definição, ainda que intensa comunicabilidade. Quem já não ouviu falar da “ jaula de ferro” , m etáfora fortíssim a, que mesmo em inglês é completamente im pactante, ou talvez principalmente em inglês — iron cage — , onde a im agem sonora fica perfeita, ou m esm o em francês, cage d ’acier, para não pensar na gab bia d ’acciaio em italiano, e que em alem ão queria dizer ao pé da letra algo com o “ carapaça dura feito a ço ” , “ cápsula dura qual a ço ” {Stahl­ hartes G ehäuse]? Eis aí uma bela m etáfora, feita para soar opres­ siva, claustrofóbica, e que em inglês acabou funcionando à per­ feição — iron cage,23 Com que, então, W eber é um bom autor até de m etáforas! Tanto assim que Paul Ricoeur não perdoa. Paul Ricoeur, o intér­ prete. Para ele, o desencantamento do mundo também é m etáfora, uma grande m etáfora. Tendo a oportunidade de falar em desen­ cantam ento do m undo, vai logo partindo para evocar a questão da “ plurivocidade de interpretação” do processo de racionaliza­ ção, sugerindo a recusa da univocidade da leitura que recorrente­ mente se faz desse m esmo processo que, segundo ele, sempre esta­ ciona no registro protoniilista do feitiço que vira contra o feiticeiro. Diz ele: “ A questão [do processo de racionalização] permanece aberta: até onde seria preciso rem ontar para reabrir a plurivoci­ dade? Esta questão me parece essencial, se o que se quer é resistir ao efeito de ofuscam ento criado pelas grandes m etáforas weberianas: ‘jaula de ferro’, ‘luta dos deuses’, ‘último hom em ’, ‘encan­ tam ento’ e ‘desencantam ento’ ” (Ricoeur, 1995: 15). N ão é preciso ser muito sagaz para reparar que Ricoeur dei­ xou de fora de sua lista a im portantíssim a m etáfora das “ afini-

23 Lawrence Scaff considera a expressão iron cage “ his most telling figure o f speech” (cf. Scaff, 1989: 5). Convém comentar que todas as tradu­ ções que pretendem fugir da inspiradíssima versão parsoniana da iron cage e procuram traduzir ao pé da letra a expressão alemã usada por Weber aca­ bam sufocando a sufocante metáfora. A tradução portuguesa, em vez de fa­ lar em jaula ou prisão, põe no lugar a analgésica circunlocução “ pesada es­ trutura de aço” (EPLus: 139).

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dades eletivas” que W eber sorveu diretamente de Goethe e, atra­ vés de Goethe, da jovem química da m odernidade clássica com sua attractio electiva, ou attractio electrix, e que W eber emprega numa discussão para ele absolutam ente central, a da causalidade histórica das ideias religiosas n’A ética protestante (cf. PE/GARS I: 83; EPLus: 6 4 24) ou, para dizer de m odo mais geral e em ter­ mos seus, na “ análise das conexões causais da realidade empíri­ c a ” (WL: 398). M etáforas, com o se vê no caso das “ afinidades eletivas” , podem ser de crucial valia, m esm o para as discussões puramente lógicas e teórico-sistem áticas. E o que dizer daquela passagem da “ Introdu ção” à Etica econômica das religiões m undiais (GARS I: 252), na qual W eber, ao com parar a diferencial eficácia histórico-empírica dos interes­ ses e das ideias, lança m ão da m etáfora dos “ m anobreiros de des­ vio” de linha de trem de ferro, os switchmen, em alem ão Weichensteller, para descrever o poder das ideias na definição dos trilhos por onde se movem os nossos interesses? N ão tenho neste m om ento espaço nem disposição para co ­ mentar a cism a exagerada que Paul Ricoeur dem onstra nutrir em relação ao que ele fantasia ser (cito:) “ o desafio ‘nihilista’ conti­ do no diagnóstico cético que M ax Weber faz sobre o curso da m o­ dernidade” (Ibid.: 14). Kulturpessimismus tem hora. Rapidamente retruco com uma pergunta, que segue por sua vez outra pergun­ ta levantada na mesma linha por Jean Séguy (1996): e quem foi que disse que o ceticismo de Weber deve necessariamente ser q ua­ lificado de “ niilism o” ? W eber, afinal, sabia m uito bem o que sig­ nifica um ponto de vista, gosta de dizer Schluchter.

24 Lamentavelmente, a edição brasileira d’A ética protestante e o espí­ rito do capitalismo [EPbras] segue a tradução americana e, em lugar de “ afi­ nidades eletivas” , traz para esse contexto metodológico a sensaborona pa­ lavra “ correlações” , totalmente imprecisa e desorientadora do leitor. Vê-se por aí a influência que teve no Brasil, influência neste caso específico deletéria, da tradução feita por Talcott Parsons em 1930.

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M eu ponto neste trabalho é simples e ao final me agrad a­ ria enormemente tê-lo deixado bem dem onstrado: parti para esta pesquisa tendo plena consciência de que o uso que M ax Weber faz do conceito de desencantam ento do m undo não é com plica­ do, nem hesitante, nem muito menos obscuro. Àquela altura de sua vida, m ergulhado até o pescoço em diversas investigações — teórico-sistem áticas e histórico-com parativas — , ele sabia m ui­ to bem o que queria com a term inologia escolhida para m ate­ rializar os mais centrais de seus conceitos substantivos. Desen­ cantam ento do m undo tornou-se um deles. Em vista disso, d a­ qui do meio desta minha paciente em preitada, m ergulhado até o pescoço em textos originais e traduções em diversas línguas, só p osso augurar para mim m esmo que ao final eu haja conseguido deixar claro que W eber, pelo menos neste preciso ponto, não foi nada obscuro. Para conseguir isso, finco o pé nalgum as vias de dem ons­ tração: (1) A meu ver é possível, por exem plo, dem onstrar que em boa parte dos em pregos que W eber faz da expressão term inoló­ gica desencantamento do m undo, e são dezessete empregos ao to­ do, há uma p reocu pação clara em definir o significado que na­ quele preciso contexto ele entende dar ao significante; (2) Proponho prestar atenção a cada um desses empregos, perscrutando pacientem ente a escrita w eberiana para que seja possível, ao final deste longo, tortuoso e às vezes hesitante per­ curso por entre citações o mais possível literais de seu pensam en­ to, deixar dem onstrado que o sintagm a em tela tem apenas dois conteúdos sem ânticos, e que esses conteúdos, adem ais, são niti­ damente dem arcados; (3) D escubro no meio dessa travessia, e dem onstro, que os dois significados encontrados são concom itantes na biografia de Weber. Eles se acom panham um ao outro sabendo-se entretan­ to distintos, na m edida em que dizem ora o desencantam ento do mundo pela religião (sentido “ a ” ), ora o desencantamento do mun­ do pela ciência (sentido “ b ” ).

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Leituras recentes segundo as quais o conceito de desencantam ento do m undo no pensam ento de W eber foi m udando de sentido com o transcorrer dos anos de sua vida, p assan d o do sig­ nificado “ a ” para o “ b ” , estão portanto desatualizadas em rela­ ção ao estado das artes hoje vigente em m atéria de “ biografia da o b ra ” [W erkgescbichte]. São leituras que trabalham com uma hipótese aparentemente óbvia, hoje facilmente refutável com d a­ dos de evidência. Trata-se de uma tese que de repente se viu cabal­ mente refutada pelos próprios avanços cum ulativos da scholar­ ship em torno da obra de W eber, propiciados pelas pesquisas do­ cumentais de caráter biográfico, com seus novos aportes para a cham ada “ biografia da o b ra ” . Meu pon to: neste trabalho eu uso bastante as águas desse novo m oinho para m ostrar por a + b que W eber na verdade tra­ balhou com os dois significados ao m esmo tempo e o tempo todo, desde sua primeira form ulação pouco antes de 1913 até os últi­ mos meses de sua vida, que expirou prem aturam ente em junho de 1920. N em todos sabem , mas está em curso desde m eados da dé­ cada de 1970 uma em preitada coletiva de m onta: a edição crítica das obras de M ax W eber, com plexo projeto que leva o nome de M ax Weber Gesam m tausgabe [MW G, M ax Weber: Edição C om ­ pleta], com sede em M unique. O grupo inicial dos editores res­ ponsáveis existe desde 1976, form ado por M . Rainer Lepsius (de Heidelberg), H orst Baier (de K onstanz), Johannes W inckelmann (de Rottach-Egern, já falecido), W olfgang J. M om m sen (de D üs­ seldorf) e W olfgang Schluchter (de Heidelberg). O projeto tem o patrocínio da Kom m ission fúr Sozial- und W irtschaftsgeschichte da Academ ia de Ciências da Baviera, M unique. O editor é J.C .B . M ohr (Paul Siebeck), de Tübingen. Um primeiro apanhado do pro­ jeto com o um todo foi publicado em 1981, num prospecto expli­ cando seus objetivos e procedim entos e apresentando o estado da preparação da M ax W eber G esam m tausgabe naquele momento. N a Biblioteca Central da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên­ cias H um anas da USP nós podem os ter acesso a diversos dos vo-

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lumes já publicados, alguns dos quais, por sinal, me interessaram de perto já no presente estudo. G raças a essas aquisições de nos­ sa biblioteca, meu conhecimento das fontes originais disponíveis atualmente ganhou substancial incremento. Sabem os que os ori­ ginais de M ax Weber, no sentido técnico da palavra, não existem mais. T od avia, dispersos em diversas localidades e propriedades, havia m uitos “ restos literários” guardados em arquivos privados, em coleções pessoais e em outras form as de conservação, con­ tendo m anuscritos, versões prelim inares, palestras e preleções de que não se tinha notícia etc.; e as cartas, m uitas cartas, nos mais diversos paradeiros (cf. Roth, 1991). A ideia que desde o início preside ao projeto M ax W eber G esam m tausgabe é a de recolher o m aior número possível de inform ações adicionais ao que já se conhecia dos escritos de W eber e colocar tudo isso junto à dispo­ sição dos estudiosos, interessados e curiosos de m odo geral, numa vasta edição crítica que quer ser o m ais com pleta possível quan­ to às inform ações existentes sobre cada ensaio, cada estudo, cada palestra, cada aula, cada carta dele. Em 1984 foi publicada uma revisão do primeiro prospecto aparecido em 1981, indicando en­ tão as três grandes subséries da série com pleta: (1) escritos e p a ­ lestras; (2) cartas; (3) aulas. Só para a primeira subsérie, que con­ tem pla sua oeuvre propriam ente acadêm ica, foram previstos 22 volumes (cf. K àsler, 1988: 2 7 5 ; Roth, 1988: I3 6 s; Kim ball & Ulmen, 1991).25 Esse é realmente um dado novo. Um fato auspicioso e de extrema relevância para quem estuda ou quer estudar a obra de Weber. Sua im portância transcende largam ente o fato, já em si m uito significativo, de passarm os a contar com uma edição críti­ ca com pleta, que abre o acesso a uma quantidade inestimável de fontes até agora desconhecidas, a novos dados e a lances insus-

25 Parece-me que o primeiro volume que saiu foi um da subsérie “ es­ critos e palestras” , organizado por Wolfgang J. Mommsen em colaboração com Gangolf Hübinger, intitulado Zur Politik im Weltkrieg. Schriften und Reden 1914-1918, MWG I, vol. 15, Tübingen, Mohr, 1984.

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peitados em torno da produção intelectual desse m onstro sagra­ do da sociologia. Lá onde chegam os volum es já editados da sé­ rie, a M ax Weber G esam m tausgabe vai silenciosamente suscitan­ do um tipo novo de interesse, o interesse pelo “ texto em si” , até bem pouco tem po inusitado ou pelo menos raríssim o entre os es­ tudiosos de W eber, o interesse em ir além do conteúdo e muito além das “ ideias recebidas” e interpretações correntes, eis que o próprio texto em sua m aterialidade se oferece agora com o objeto de questionam ento (cf. Séguy, 1996). A pesar da nitidez das definições de desencantam ento do m undo, uma certa polissem ia, em bora mínima, persiste e segue seduzindo a im aginação dos intérpretes. N ão obstante o fato de que toda essa clareza conceituai no uso dos termos tenha sido algo metodicamente buscado pelo Weber da m aturidade no que toca ao fenômeno do desencantam ento, tem os de convir que o sintag­ ma, o nome, o termo “ desencantamento do m undo” continua com sua carga nada negligenciável de sugestividade, continua a aco­ lher e nutrir possibilidades inúmeras de m etaforização, continua propenso à diluição dos seus contornos lógicos, convite, por ou ­ tro lado, ao adensam ento filosófico de seus conteúdos no traba­ lho de reflexão sobre os grandes dilem as existenciais postos pelo processo de racionalização especificamente ocidental. Ocorre que entre filósofos e dem ais am antes do filosofar prospera a leitura m elancólica do conceito de desencantam ento basicam ente com o perda de sentido [Sinnverlust]. A o contrário do conhecim ento científico, que assum e com realism o e galhardia sua incapacida­ de constitutiva de “ provar cientificamente” (WaB/WL: 600; FMW: 145) que o m undo e a vida trazem em si sentido e valor, e abraça com coragem e senso de dever a tarefa de pesquisar metodicamen­ te, manipulando e experimentando para modificar e explorar, sem culpa nem pejo, sem limite nem resto, todo esse m undo natural que, uma vez desencantado, se oferece à aventura científica feito zona de caça liberada mercê de sua objetiva falta de sentido \Sinnlosigkeit], ao contrário das ciências, repito, as visões de mundo — na verdade todas as visões de m undo, sejam elas religiosas ou

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filosóficas — insistem em dotá-lo de um sentido que, lam enta­ velmente do ponto de vista desses pensadores, vai-se perdendo sempre m ais, e irreparavelmente, quanto m ais se difundem e se dispersam os diferentes processos rivais de racionalização dos m undos da vida. Isso, porém , não nos autoriza a fazer do conceito de desencantamento um uso sempre flexível, pouco apertado, alusivo, falto de rigor e nitidez. Weber aqui é tão explícito nos seus próprios term os, que qualquer eventual tentativa de, por aí, dem onstrar textualmente que ele concebeu o desencantamento do m undo em term os am plos e fluidos teria de se haver com um bom número de definições explicativas do conceito que ele não se poupa em dar, nas quais enquadra o processo em limites muito estritos e claros, sem m argem para toda a m aleabilidade interpretativa dos amantes da polissemia. O excesso de am or à polissemia corre neste caso um sério risco — o de fazer a plurivocidade virar-se contra si m esm a, vindo então a esfum ar os fortes contrastes da lim itadís­ sima policrom ia (dicrôm ica!) originalmente conferida pelo autor ao conceito. Por isso m esm o, ultimamente, alguns autores têm preferi­ do adotar uma nova tradução técnica para Entzauberung. Em vez de “ desencantam ento” , termo que, com o estam os vendo, se pres­ ta a deslizamentos sem ânticos incontroláveis, dadas as suas co ­ notações rom ânticas (cf. Sayre & Lòw y, 1984) e seus pendores psicologizantes (veja-se a propósito a falsa proxim idade que há entre os sintagmas “ desencantamento do m undo” e “ universo em desencanto” ), respeitáveis estudiosos hoje propõem o uso da p a­ lavra “ desm agificação” . O recurso a esse outro vocábulo, menos charm oso, de fei­ tio mais técnico e lexicalidade m ais óbvia — desm agificação (mas há tam bém quem diga desm agicalização) — , é decerto uma ten­ tativa cientificamente bem-intencionada, para o caso do desencan­ tam ento do m undo, de “ chegar ju n to” daquele “ núcleo duro de significado (que) um conceito certamente terá” , conforme Gabriel Cohn costum a nos ensinar e cobrar (Cohn, 1995: 15).

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3. C O N T A N D O OS PASSOS

Apresento a seguir em ordem cronológica, sublinhadas, as passagens de Weber em que são m encionados o substantivo “ desencantam ento” e o verbo “ desencantar” com suas flexões. C ada passagem é transcrita em tradução para o português seguida do original alem ão.

PASSO 1 “ A ação orientada segundo representações m ágicas, por exem plo, tem m uitas vezes um caráter subjetivamente muito mais racional com relação a fins do que qualquer com portam ento ‘reli­ gioso’ não m ágico, posto que a religiosidade, à m edida que avan­ ça o desencantamento do m undo, se vê obrigada a aceitar referên­ cias de sentido cada vez mais subjetivamente irracionais com rela­ ção a fins (referências ‘de convicção’ ou m ísticas, por exem plo).” (Sobre algum as categorias da sociologia compreensiva. Cat: 181) O RIGIN AL [pouco antes de 1913]: “ An magischen Vorstellungen orientiertes Handeln beispielsweise ist subjektiv oft weit zweckratio­ naleren Charakters als irgendein nicht magisches ‘religiöses’ Sichver­ halten, da die Religiosität ja gerade mit zunehmender Entzauberung der Welt zunehmend (subjektiv) zweckirrationalere Sinnbezogenheiten (‘gesinnungshafte’ oder mystische z. B.) anzunehmen genötig ist.” (Kat/WL: 433)

Em sum a: desencantam ento = perda de sentido.

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PASSO 2 “ E além do m ais, a religiosidade devia ser o m ais possível despojada do caráter puramente m ágico ou sacramental dos meios da graça. Pois estes sempre desvalorizam a ação no m undo como tendo um significado religioso na melhor das hipóteses relativo e ligam a decisão sobre a salvação ao êxito de processos racionais não cotidianos. As duas condições, desencantam ento do mundo e deslocam ento da via de salvação, da ‘fuga do m undo’ contem ­ plativa para a ‘transform ação do m undo’ ascético-ativa, só foram plenamente alcançadas — à exceção de algum as pequenas seitas racionalistas encontradiças mundo afora — nas grandes form a­ ções de igreja e seita do protestantism o ascético no O cidente.” (“ Introdução” , ver ESSR I: 2 5 7 , grifos do original) ORIGINAL [1913, 1915): “ Und ferner musste die Religiosität den rein magischen oder Sakramentalen Charakter der Gnadenm/ife/ möglichst abgestreift haben. Denn auch diese entwerten stets das Handeln in der Welt als religiös höchstens relativ bedeutsam und knüpfen die Ent­ scheidung über das Heil an der Erfolg nicht alltags-rationaler V or­ gänge. Voll erreicht wurde beides: Entzauberung der Welt und Ver­ legung des Weges zum Heil von der kontemplativen ‘Weltflucht’ hin­ weg in die aktiv asketische ‘Weltbearbeitung’, — wenn man von ein­ igen kleinen rationalistischen Sekten, wie sie sich in aller Welt fanden, absieht, — nur in den grossen Kirchen- und Sektenbildungen des as­ ketischen Protestantismus im Okzident.” (Einleit/GARS I: 262-263, grifos do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

PASSO 3 “ Q uanto mais o intelectualismo repele a crença na m agia, e com isso os processos do m undo ficam ‘desencantados’, perdem seu sentido m ágico e doravante apenas ‘sã o ’ e ‘acontecem ’ mas não ‘significam ’ m ais nada, tanto m ais urgente resulta a exigên­ cia, em relação ao m undo e à ‘conduta de vida’ com o um todo,

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de que sejam postos em um a ordem significativa e ‘plena de sen­ tido’.” 26 (Sociologia da Religião/EeS I: 344) ORIGINAL [1913, 1914...]: “Je mehr der Intellektualismus den Glau­ ben an die M agie zurückdrängt, und so die Vorgänge der Welt ‘ent­ zaubert’ werden, ihren magischen Sinngehalt verlieren, nur noch ‘sind’ und ‘geschehen’, aber nichts mehr ‘bedeuten’, desto dringlicher erwächst die Forderung an die Welt und ‘Lebensführung’ je als Gan­ zes, dass sie bedeutungshaft und ‘sinnvoll’ geordnet seien.” (WuG: 308)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação + perda de sentido.

PASSO 4 “ N o tocante ao primeiro ponto o protestantismo ascético nas suas várias m anifestações representa um grau extrem o. As suas m anifestações mais características elim inaram a m agia do m odo mais completo. [,..| O pleno desencantam ento do m undo foi le­ vado, apenas aí, às suas últimas consequências.” (“ Confucionismo e puritanism o” : 151-152, trad. Cohn, grifos do original) ORIGINAL [1913, 1915]: “ In der ersten Hinsicht stellt der asketische Protestantismus in seinen verschiedenen Ausprägungen eine letzte Stufe dar. Seine am meisten charakteristischen Ausprägungen haben der M agie am vollständigsten den G araus gemacht. [...] Die gänzliche Entzauberung der Welt27 war nur hier in alle Konsequenzen durch­ geführt.” (GARS I: 513, grifos do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

26 Há uma redundância estilística no texto alemão para a qual as lín­ guas latinas apresentam uma dificuldade léxica. Com intenção enfática, We­ ber usa adverbialmente dois adjetivos bedeutungshaft und sinvoll, que en­ contram seus correspondentes neolatinos em um adjetivo: significativo. Já no inglês foi possível dizer significant and meaningful (E& S: 506). 27 O próprio Weber grifou o sintagma na segunda edição.

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PASSO 5 “ M as ali onde o conhecimento racional empírico realizou de maneira consequente o desencantamento do mundo e sua trans­ form ação num m ecanism o causal, instala-se de um a vez por to ­ das a tensão contra a pretensão do postulado ético: que o mundo seja um cosm os ordenado por Deus e, portanto, orientado etica­ mente de m odo significativo, em caráter definitivo daí para fren­ te.” (Consideração interm ediária; ver ESSR I: 553; R R M : 261, grifo do original) O RIGINAL 11913, 1915]: “ Wo immer aber rational empirisches Er­ kennen die Entzauberung der Welt und deren Verwandlung in einem kausalen Mechanismus konsequent vollzogen hat, tritt die Spannung gegen die Ansprüche des ethischen Postulates: dass die Welt ein gott­ geordneter, also irgendwie ethisch sinnvoll orientierter Kosm os sei, endgültig hervor.” (ZB/GARS I: 564, grifo do original)

Em sum a: desencantam ento = perda de sentido.

PASSO 6 “ E não foi só o pensamento teórico que desencantou o mun­ do. m as foi precisamente a tentativa da ética religiosa de racio­ nalizá-lo no aspecto prático-ético que levou a este cu rso .” (C on­ sideração interm ediária, ver ESSR I: 560; R R M : 266) ORIGINAL (1913, 1915]: “ Und nicht etwa nur das theoretische Den­ ken, welches die Welt entzauberte, sondern gerade der Versuch der religiösen Ethik, sie praktisch ethisch zu rationalisieren, fürhte in diese Bahn.” (ZB/GARS I: 571)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

PASSO 7 “ Intelectualização e racionalização crescentes, portanto, não significam um crescente conhecim ento geral das condições de

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vida sob as quais alguém se encontra. Significam , ao contrário, uma outra coisa: o saber ou a crença de que basta alguém que­ rer para poder provar, a qualquer hora, que em princípio não há forças m isteriosas e incalculáveis interferindo; que, em vez dis­ so, um a pessoa pode — em princípio — dom inar pelo cálculo todas as coisas. Isto significa: o desencantam ento do m undo. Ninguém m ais precisa lançar m ão de meios m ágicos para coagir os espíritos ou suplicar-lhes, feito o selvagem , p ara quem tais forças existiam . Ao contrário, meios técnicos e cálculo se encar­ regam disso. Isto, antes de m ais nada, significa a intelectualização propriamente dita.” (A ciência como vocação, ver FMW: 139; CP2V: 30, grifos do original) ORIGINAL [1917]: “ Die zunehmende Intellektualisierung und Ratio­ nalisierung bedeutet also nicht eine zunehmende allgemeine Kenntnis der Lebensbedingungen, unter denen man steht. Sondern sie bedeu­ tet etwas anderes: das Wissen davon oder den Glauben daran: dass man, wenn man nur wollte, es jederzeit erfahren könnte, dass es also prinzipiell keine geheimnisvollen unberechenbaren Mächte gebe, die da hineinspielen, dass man viel mehr alle Dinge — im Prinzip — durch Berechnen berrerschen könne. D as aber bedeutet: die Entzauberung der Welt. Nicht mehr, wie der Wilde, für den es solche Mächte gab, muss man zu magischen Mitteln greifen, um die Geister zu beherrschen oder zu erbitten. Sondern technische Mittel und Berechnung leisten das. Dies vor allem bedeutet die Intellektualisierung als solche.” (WaB/ WL: 594, grifos do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação + perda de sentido.

PASSO 8 “ O ra, esse processo de desencantam ento. que vem se dando na cultura ocidental ininterruptamente através de milênios e, em term os m ais gerais, esse ‘p rogresso’, do qual faz parte a ciência com o um elo e força motriz, têm eles um sentido que vá além do puram ente prático e técnico? Vocês vão encontrar esta questão,

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posta em sua mais elevada form a, na obra de Lev T o lstó i.” (A ciência com o vocação, ver FM W : 139; CP2V: 31) ORIGINAL [1917]: “ H at denn aber nun dieser in der okzidentalen Kultur durch Jahrtausende fortgesetzte Entzauberungsprozess und überhaupt: dieser ‘Fortschritt’, dem die Wissenschaft als Glied und Triebkraft mit angehört, irgendeinen über dies rein Praktische und Technische hinausgehenden Sinn? Aufgeworfen finden Sie diese Fra­ ge am prinzipiellsten in den Werken Leo T olstojs.” (WaB/WL: 594)

Em sum a: desencantam ento = perda de sentido.

PASSO 9 “ Pois aqui tam bém diferentes deuses lutam entre si, agora e para sempre. Tudo se p assa com o se [vivêssemos] no m undo antigo, mundo ainda não desencantado de seus deuses e dem ô­ nios, só que em outro sentido [...].” (A ciência com o vocação, ver FM W : 148; CP2V: 42) O RIG IN A L [1917]: “ Hier streiten eben auch verschiedene Götter miteinander, und zwar für alle Zeit. Es ist wie in der alten, noch nicht von ihren Göttern und Dämonen entzauberten Welt, nur in anderem Sinne [...].” (WaB/WL: 604)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação + perda de sentido.

PASSO 10 “ Com o o homem helénico sacrificava ora para Afrodite, ora para A poio e, antes de mais nada, p ara cada um dos deuses de sua cidade, assim é ainda hoje, só que aquele procedim ento foi desencantado e despido de sua plasticidade mítica, m as interior­ mente genuína. Impera sobre esses deuses e sua luta o destino, não a ‘ciência’, com toda a certeza.” (A ciência com o vocação, ver FM W : 148; CP2V: 42)

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ORIGINAL [1917]: “ Wie der Hellene einmal der Aphrodite opferte und dann dem Apollon und vor allem jeder den Göttern seiner Stadt, so ist es, entzaubert und entkleidet der mythischen, aber innerlich wah­ ren Plastik jenes Verhaltens, noch heute. Und über diesen Göttern und in ihrem Kam pf waltet das Schicksal, aber ganz gewiss keine ‘Wissen­ schaft’.” (WaB/WL: 604)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação + perda de sentido.

PASSO 11 “ M uitos dos antigos deuses, desencantados e doravante sob a form a de potências im pessoais, emergem de seus túm ulos, esforçam -se por ganhar poder sobre nossas vidas e novamente re­ com eçam sua eterna luta uns contra os outros. M as o que se tor­ na assim tão duro para o homem moderno, e mais duro ainda para as jovens gerações, é o estar à altura desse dia a dia. T oda busca de ‘experiência’ provém dessa fraqueza. Pois fraqueza é: não ser capaz de olhar de frente, em seu severo sem blante, o destino do [nosso] tem po.” (A ciência como vocação, ver FM W : 149; CP2V: 43, grifo do original) ORIGINAL [1917]: “ Die alten vielen Götter, entzaubert und daher in Gestalt unpersönlicher Mächte, entsteigen ihren Gräbern, streben nach Gewalt über unser Leben und beginnen untereinander wieder ihren ewigen Kampf. D as aber, was gerade dem modernen Menschen so schwer wird, und der jungen Generation am schwersten, ist: einem solchen Alltag gewachsen zu sein. Alles Jagen nach dem ‘Erlebnis’ stammt aus dieser Schwäche. Denn Schwäche ist es: dem Schicksal der Zeit nicht in sein ernstes Antlitz blicken zu können.” (WaB/WL: 605, grifo do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação + perda de sentido.

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PASSO 12 “ O destino do nosso tem po, com suas características de ra­ cionalização e intelectualização, e, antes de tudo, desencantamento do m undo, está no fato de que precisamente os valores últimos e os m ais sublimes hajam recuado da esfera pública para o reino transcendente da vida m ística, ou então para a fraternidade das relações diretas dos indivíduos uns com os ou tros.” (A ciência co­ mo vocação, ver FM W : 155; CP2V: 51) ORIGINAL [1917]: “ Es ist das Schicksal unserer Zeit, mit der ihr ei­ genen Rationalisierung und Intellektualisierung, vor allem: Entzau­ berung der Welt, dass gerade die letzten und sublimsten Werte zurück­ getreten sind aus der Öffentlichkeit, entweder in das hinterweltliche Reich mystischen Lebens oder in die Brüderlichkeit unmittelbarer Beziehungen der Einzelnen zueinander.” (WaB/WL: 612)

Em sum a: desencantam ento = perda de sentido.

PASSO 13 “ Para quebrar a m agia e disseminar a racionalização da con­ duta de vida, só houve em todos os tem pos um único meio: gran ­ des profecias racionais. N em toda profecia, contudo, destrói o poder da m agia: m as é possível que um profeta que se legitima a si m esmo mediante o milagre e outros meios quebre as regras sa ­ gradas tradicionais.28 As profecias trouxeram o desencantamento do m undo e, com isso, criaram o fundam ento para a nossa ciên­ cia m oderna, para a técnica e o capitalism o. N a China falta uma profecia n ativa.” (H istória geral da econom ia, H G E: 316, grifos do original)

28 Aqui seria possível inverter os adjetivos e fazer espertamente a se­ guinte tradução, que ganharia um outro sentido, que por sinal permaneceria sendo totalmente weberiano quanto ao papel inovador do profeta fora do campo religioso: “ derrubar as sagradas regras tradicionais” .

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ORIGINAL [1919-20]: “ Die Magie zu brechen und Rationalisierung der Lebensführung durchsetzen, hat es zu allen Zeiten nur ein Mittel gegeben: grosse rationale Prophetien. Nicht jede Prophetie allerdings zerstörst ihre Macht: aber es ist möglich, dass ein Prophet, der sich durch Wunder und andere Mittel legitimiert, die überkommenen heiligen Ordnungen durchbricht. Prophetien haben die Entzauberung der Welt herbeigeführt und dam it auch die Grundlage für unsere moderne W issenschaft, die Technik und den Kapitalism us geschaf­ fen. In China fehlt eine eingeborene Prophetie.” (Wg: 308-309, grifos do original)

Em sum a: desencantamento = desm agifica^äo.

PASSO 14 “ Isso: a supressão absoluta da salvação eclesiástico-sacm mental (que no luteranism o de m odo algum se havia consum ado em todas as suas consequências) era o absolutam ente decisivo em face do catolicismo. Aquele grande processo histórico-religioso de desencantamento do m undo.29 que se iniciou com a profecia do judaísm o antigo e, em associação com o pensam ento científico helénico, repudiava todos os meios m ágicos de busca da salvação com o superstição e sacrilégio, encontrou aqui sua conclusão. O genuíno puritano ia ao ponto de condenar todo vestígio de ceri­ m ônias religiosas fúnebres e enterrava os seus sem canto nem m úsica, só para não dar trela ao aparecim ento da superstition,30 isto é, da confiança em efeitos salvíficos à maneira m ágico-sacramental. N ão havia nenhum meio mágico, melhor dizendo, nenhum meio, que proporcionasse a graça divina a quem Deus houvesse decidido n egá-la.” (A ética protestante, ver ESSR I: 98-99, grifos do original)

29 Apenas a palavra desencantamento está grifada por Weber, não a expressão toda. 30 Em inglês no texto weberiano.

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O RIGINAL [1920]: “ Dies: der absolute (im Luthertum noch keines­ wegs in allen Konsequenzen vollzogene) Fortfall kirchlich-sa&ramentalen Heils, war gegenüber dem Katholizism us das absolut Ent­ scheidende. lener grosse religionsgeschichtliche Prozess der Entzau­ berung der Welt.31 welcher mit der altjüdischen Prophetie einsetzte und, im Verein mit dem hellenischen wissenschaftlichen Denken, alle magischen Mittel der Heilssuche als Aberglaube und Frevel verwarf, fand hier seinen Abschluss. Der echte Puritaner verwarf ja sogar je­ de Spur von religiösen Zeremonien am Grabe und begrub die ihm Nächststehenden sang- und klanglos, um nur ja keinerlei ‘superstition’ : kein Vertrauen auf Heilswirkungen magisch-sakram entaler Art, aufkommen zu lassen. Es gab nicht nur kein magisches, sondern überhaupt kein Mittel, die Gnade Gottes dem zuzuwenden, dem Gott sie zu versagen sich entschlossen hatte.” (PE/GARS I: 94-95, grifos do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificagäo.

PASSO 15 “ O ‘desencantam ento’ do m undo: a elim inação da m agia com o meio de salvação, não foi realizado na piedade católica com as m esm as consequências que na religiosidade puritana (e, antes dela, somente na ju d aica).” (A ética protestante, ver ESSR I: 116117, grifo do original) ORIGINAL [1920]: “ Die ‘Entzauberung’ der Welt: die Ausschaltung der Magie als Heilsmittel, war in der katholischen Frömmigkeit nicht zu den Konsequenzen durchgeführt, wie in der puritanischen (und vor ihr nur in der jüdischen) Religiosität.” (PE/GARS I: 114, grifo do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

31 Ver nota 29.

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PASSO 16 “ As denominações anabadstas, ao lado dos predestinacionistas, sobretudo dos calvinistas estritos, executaram a m ais radical desvalorização de todos os sacram entos com o meios de salvação, e assim levaram o ‘desencantam ento’ religioso do mundo às suas últimas consequências.” (A ética protestante, ver ESSR I: 155) ORIGINAL [1920]: “ Die täuferischen Denominationen vollzogen, ne­ ben den Prädestinatianern, vor allem den strengen Calvinisten, die radikalste Entwertung aller Sakramente als Heilsmittel und führten so die religiöse ‘Entzauberung’ der Welt in ihren letzten Konsequenzen durch.” (PE/GARS I: 156)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

PASSO 17 “ Este caráter tranquilo, sóbrio e sobretudo consciencioso foi adotado tam bém pela práxis vital das com unidades anabatistas tardias, muito especificamente pelos quakers. O radical desencan­ tam ento do m undo não deixava interiormente outro cam inho a seguir a não ser a ascese intram undana.” (A ética protestante, ver ESSR I: 157-158, grifo do original) ORIGINAL |1920|: “ Diesen ruhigen, nüchternen, hervorragend ge­ wissenhaften Charakter hat denn auch die Lebenspraxis der späteren täuferischen Gemeinschaften, in ganz spezifischem M asse die der Quä­ ker, sich zu eigen gemacht. Die radikale Entzauberung der Welt liess einen anderen Weg als die innerweltliche Askese innerlich nicht zu.” (PE/GARS I: 158, grifo do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

Contando os passos

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4. FA Z E N D O AS C O N T A S

Desencantam ento do mundo em Weber tem tudo a ver com cálculo. Ou melhor, com o ato de calcular — R ech n un g— , que em inglês se pode traduzir por calculation, m as não em portu­ guês, não sei por quê. N o ssa língua! Tendo em vista, pois, desentortar ao menos parcialm ente o rumo da discussão hoje corren­ te sobre o tema, desem baraçá-la com argum entos concretos e, na medida do possível, pô-la novam ente sobre seus próprios pés, feito a Bela Adorm ecida foi desencantada por um simples beijo do mais puro amor, reconto agora os passos dados e, antes de me lançar aos com entários técnicos e substantivos em torno de cada p a sso , apresento meu registro contábil de ocorrên cias term i­ nológicas com o frugal contraponto à opulenta literatura que viaja em torno desse tema. Eis, pois, o resumo quantitativo das acepções dadas ao ter­ mo por seu autor: das dezessete incidências do significante, em nove ele vem usado para significar “ desm agificação” ; em quatro, com o significado de “ perda de sentido” ; e nas quatro restantes ele vem com as duas acepções. Basta, pois, contar para ver de que lado a balança pende, em bora por si só isso signifique muito pou­ co. M ais significativo para a biografia do conceito me parece o fato de que, das nove com o significado técnico de desm agifica­ ção, nada menos que cinco datem de 1919-20, ou seja, dos meses finais de seu autor. Além disso, o conceito aparece doze vezes com o substanti­ vo [Entzauberung] e cinco vezes com o verbo. Com o verbo: q u a­ tro vezes no particípio p assado \entzaubert = desencantado], com

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as devidas flexões de caso, e uma vez no perfeito simples (entzau­ berte = desencantou]. Por duas vezes W eber nom eia o desencantam ento com o “ p rocesso” : Entzauberungsprozess (passo 8), Prozess der Ent­ zauberung der Welt (passo 14). E por um a vez (passo 1) o de­ sencantam ento do m undo se faz acom panhar do adjetivo verbal zunehmend = crescente, algo que está no crescente, crescendo, aum entando. Isso quer dizer, antes de m ais nada, que o desen­ cantam ento do m undo, na medida em que vem definido tecnica­ mente com o desm agificação da atitude ou m entalidade religio­ sa, é para W eber um resultado, porquanto produto da profecia, e é também fator explicativo do desenvolvimento sui generis do racionalism o ocidental, ao m esm o tem po que é, ele mesm o, um processo histórico de desenvolvimento. N esse sentido e na me­ dida em que pode aum entar e crescer, o desencantamento pode se concretizar historicam ente com solidez variável e diferentes intensidades. D aí W eber em pregar por duas vezes adjetivos de intensidade m áxim a para caracterizar o momento singularíssimo de desm agificação religiosa alcançado nos séculos XVI e XVII pela conduta de vida m etódica-e-intram undana do protestan ­ tism o ascético: aqui a d esm agificação aparece qualificada de gänzliche = plena, total, com pleta (passo 4) e radikale = radical, extrem a (passo 17), quando não die radikalste = a mais radical (passo 16).

Fazendo as contas

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5. C O M E N T A N D O OS PASSOS

Bastou a mera ordenação cronológica da listagem com ple­ ta das vezes em que W eber usou o sintagm a para deixar dem ons­ trado que esse uso é um fato da última década de sua vida, seu período mais fecundo de produção intelectual, estendendo-se de 1912 a 1920. Com ecem os, pois, do começo. Tardio começo, está-se vendo pela datação. Surpreendente começo, ver-se-á logo mais por quê, quando nos detiverm os em seu conteúdo inaugural. C ad a passo será com entado isoladam ente ou em bloco, de­ pendendo de ser passagem única num a obra ou mais de um a na mesm a obra. Isso será feito em dois mom entos. N um prim eiro m om ento, procurarei situar a obra em tela em sua própria história, com base nas inform ações historiográficas m ais atualizadas a que pude ter acesso, com pondo um a bre­ ve seção de “ biografia da o b ra ” m odestam ente intitulada “ Breve notícia da o b ra ” . N um segundo m om ento, a seção m ais extensa intitulada “ C om entário” trará minhas considerações a respeito do conteú­ do e, quando valer a pena, da form a textual das passagens em exame. Com ecem os, então, por onde W eber com eçou, pela menção inaugural do sintagm a. Com ecem os conferindo com o foi o pri­ meiro uso, a primeira vez.

Comentando os passos

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6. PASSO 1: S O B R E A L G U M A S C A T E G O R IA S D A S O C IO L O G IA C O M P R E E N SIV A (pouco antes de 1913)

Sou mais materialista do que Delbrück pensa. M ax Weber, a respeito de si mesmo32

BREVE N O T ÍC IA DA OBRA A primeira vez que a expressão Entzauberung der Welt a p a ­ receu publicada nalgum trabalho de Weber foi numa revista de filosofia, Logos n° 4 , ^ em setembro de 1913, no artigo intitulado Über einigen K ategorien der Verstehenden Soziologie (“ Sobre algum as categorias da sociologia com preensiva” 34), o qual havia sido escrito para fazer parte de um livro que daria origem a E co­ nom ia e sociedade (cf. p asso 3). N algun s círculos esse artigo é

32 Apud Cohn (1979: 78), referindo testemunho de um ex-aluno e ami­ go de Weber, Paul Honigsheim (1963). 33 A revista acadêmica Logos se tornou, naquela época, o fórum mais importante do debate em torno da teoria do valor na filosofia da cultura. 34 Prefiro manter o adjetivo “ compreensiva” , em vez de “ interpre­ ta tiva” , tradução esta preferida já por diversos tradutores em diferentes lín­ guas, decerto contaminados pela dificuldade de dizer “ sociologia compreen­ siva” em inglês, comprehensive sociology (!), sem incorrer em sérias ambi­ guidades. Em português, sociologia compreensiva diz perfeitamente bem, assim como em espanhol (cf. Cat), a ideia do Verstehen, dispensando-nos de apelar para o adjetivo “ interpretativa” : a tradução inglesa que apareceu na revista The Sociological Quarterly n° 2 2 ,1 9 8 1 , leva o título de Some Catégo­ ries o f Interpretive Sociology. Em francês, já há quem queira dizer sociologie de compréhension, em vez de compréhensive (cf. Brossein, 1996: 80).

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conhecido pelo nicknam e “ o ensaio da L o g o s” ; aqui, vou me re­ ferir a ele pelo nickname “ K ategorien” [Kat|. Hoje já se sabe com toda a certeza que foi aí que o conceito circulou im presso pela primeira vez (cf. W inckelmann, 1980). Está fora de dúvida, em ­ bora não tenham os ainda notícia do primeiro uso não público, ou público só na voz, não escrito. W eber havia escrito o Kategorien com o parte de um grande livro de sociologia, mais am plo e de caráter sistem ático, que por uma série de percalços começou a dem orar a ficar pronto. Por isso ele tem esse form ato de um verdadeiro dispositivo de conceitos e conceituações, alguns totalmente novos — excelente lugar, por­ tanto, para aí inscrever a primeira m enção ao desencantamento do m undo. Em 1921, m uitos anos depois da primeira publicação do ensaio com o artigo de periódico, o grande livro sairia publi­ cado com o título de Econom ia e sociedade, lamentavelmente sem incluir o Kategorien, que entretanto seria republicado no ano se­ guinte, na coletânea de textos de Weber sobre ciência e m etodolo­ gia científica, cham ada Gesam m elte Aufsàtzse zur Wissenschaftslehre [WL, 1922J. Logo na abertura do Kategorien, Weber puxa uma nota de rodapé, bem longa por sinal, na qual termina por fornecer uma referência cronológica im portantíssim a para a presente pesquisa. Entre outras coisas, ele atesta que já havia escrito um pedaço do ensaio algum tem po antes de 1913: A segunda parte do ensaio é um fragmento de uma apresentação que escrevi algum tem po a trá s,35 e que, numa coletânea que deverá aparecer em breve, iria ser-

35 A tradução brasileira desse ensaio, feita por Augustin Wernet, é cheia de erros grosseiros, um verdadeiro descalabro. Aqui neste testemunho cro­ nológico, por exemplo, Weber acaba dizendo em português o contrário do que disse em alemão: a tradução de Wernet desloca a redação do fragmento que nos interessa para uma distância maior no tempo: afirma que ele “ foi redigido já há muito tem po” (Weber, 1992b: 313). É de amargar!

Passo 1: Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva

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vir com o fundam entação m etodológica para pesquisas substantivas (incluindo Econom ia e sociedade), da qual outras partes vão ser publicadas noutro lugar à m edi­ da que a ocasião permitir. O caráter pedantemente me­ ticuloso das form ulações corresponde ao desejo de dis­ tinguir com nitidez o sentido subjetivamente intentado do sentido objetivam ente válido (com isso afastando-nos em parte do m étodo de Simmel). (Kat: 42 7 , nota 1, grifos meus; Cat: 175, nota 1) O Kategorien está dividido em sete partes. Weber diz aí que a segunda parte, precisamente aquela em que menciona o “ cres­ cente desencantam ento do m undo” , consiste de um fragmento reaproveitado de um paper que ele escreveu não m uito tempo antes. Isso significa que já em data anterior a 1913 a ideia de de­ sencantam ento do m undo encontrara em W eber sua form a lite­ rária. M as não muito tem po antes: som e time ago, diz a tradu­ ção de Neil Solom on. W olfgang Schluchter vem desenvolvendo trabalho m inucioso no sentido de precisar o mais possível essa data (1989: 416-419 e 441-442); conseguiu reunir até agora uma série de novos indícios docum entais e textuais, todos apontando para o ano de 1912, não antes. 1912: por enquanto isso é ape­ nas uma hipótese.

C O M E N T Á R IO Para comentar o conteúdo do passo 1, vou tentar situá-lo em contextos concêntricos. Considerarei, prim eiro, o conteúdo mesmo da passagem , procurando em seguida m apear seu contexto conceituai imediato, que é o ensaio com o um todo, para finalmen­ te, com o não poderia deixar de ser por exigência do próprio con­ teúdo substantivo da form ulação em exam e, remetê-la ao contexto m aior da teorização sistem ática e histórica de Weber sobre m a­ gia e religião, contida nas três primeiras seções do ensaio sistem á­

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tico de Sociologia da Religião publicado com o capítulo de E co ­ nom ia e sociedade, levando em conta que o Kategorien também estava pensado para ser parte dessa obra. Kategorien é um ensaio de m etodologia sociológica. Nele, W eber lança alguns fundam entos m etodológicos e, im portante frisar neste m om ento, algum as unidades conceituais da sociolo­ gia com preensiva, tendo os olhos nos outros capítulos (àquela altura já prontos, sem iprontos ou apenas planejados), que esta­ vam destinados a integrar o volume assinado por ele, o qual com ­ poria uma coletânea de livros encom endados a vários autores, livros esses que os editores pretendiam tivessem caráter sistem á­ tico, quase didático. Livros de alto nível, m as didáticos. Pode-se perceber, só por essas ligeiras referências, que o contexto do pri­ meiro uso do sintagm a “ desencantam ento do m undo” não pode­ ria ser m ais digno (ou condigno) em se tratando de um conceito que estava apenas em seus prim eiros traços. Gabriel Cohn consi­ dera o Kategorien “ um texto da m aior im portância” , justamente porque nele “ é desenvolvido pela primeira vez o inovador q u a­ dro conceituai destinado a servir às análises daquilo que mais tar­ de seria publicado sob o título de Econom ia e sociedade” (Cohn, 1991: x iv ). N o próprio período gram atical em que o desencantamento se encontra inserido, cercam-no de imediato conceitos centrais (eu quase ia dizendo, anacronicam ente, clássicos) da epistem ologia sociológica w eberiana, a qual, todos sabem os, concebe a socio­ logia com o ciência do sentido subjetivo da ação social (cf. Burger, 1987; M om m sen, 1981: 2 4 5 ss; Cohn, 1979a: 89ss; 1979b: 26ss; 1991, xiv; 1995). Só nessa frase do passo 1, a palavra subjektiv aparece duas vezes. Aliás, é a palavra que mais aparece em todo o ensaio. O K ategorien é um a verdadeira p rofusão de usos do significante subjektiv, seja com o adjetivo ou com o advérbio, e Weber chega m esm o a se desculpar nesse rodapé por parecer pe­ dante em querer explicitar tanto o que intenciona com as p ala­ vras. E ainda estão aí, na mesm a frase do desencantam ento, os weberianíssim os conceitos de ação racional com relação a fins,

Passo 1: Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva

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ação subjetivamente racional com relação a fins, ação com senti­ do, referência de sentido e sobretudo este, sentido subjetivo.36 T ão logo vem à luz, desencantam ento do mundo já está arrodeado de consanguíneos de D N A incontestável. De fato, não podia ter-me calhado um m odo mais weberiano de dar início à discussão do que este. Refiro-me ao fato de encon­ trar o sintagm a “ desencantamento do m undo” cercado de noções w eberianas que eu cham aria de m etodológicas, m arcadores refle­ xivos da sociologia com preensiva, próprios de sua peculiar em­ bocadura na concepção do objeto e do m odus operandi de uma sociologia compreensiva — a sociologia com o ciência do sentido subjetivo da ação social. Essas noções refletem tom adas de posi­ ção que, segundo Gabriel Cohn, W eber assum ira já “ na fase de­ cisiva do am adurecim ento” de suas concepções m etodológicas, a saber, “ entre 1903 e 1 9 0 6 ” (Cohn, 1979a: 77). Insisto neste a s­ pecto: é relevante para os objetivos de meu trabalho que o sin­ tagm a tenha feito sua primeira aparição em público (vale dizer, publicada) num texto de m etodologia científica, uma vez que nes­ sa espécie de trabalho costum a, ou melhor, precisa ser fortíssim a a reflexividade no uso do vocabulário e, m ais forte ainda, a preo­ cupação subjetiva em “ distinguir com nitidez” . T anto m ais em se tratando de W eber. N ão por acaso a nota de rodapé citada atrás registra explicitamente essa sua preocupação em “ distinguir com nitidez” \sh arf zu scheiden], M as há mais. Se considerarm os o ensaio inteiro do ponto de vista de sua novidade conceituai — pois afinal de contas Entzauberung der Welt figura aí novinho em folha e já com o um con­ ceito “ desenvolvim ental” — , cresce consideravelm ente a lista de novos conceitos aí elaborados e trabalhados por Weber, alguns deles cruciais, fundacionais, m uitos deles vindo à luz pela primei­ ra vez, exatamente com o Entzauberung der Welt está vendo aí seu

36 Sobre o conceito de sentido enquanto “ sentido subjetivo” , ver prin­ cipalmente Cohn, 1979a, e Oakes, 1982.

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primeiro sol. T udo se p assa com o se W eber quisesse, com todo esse dispositivo de conceitos novos, m arcar posição num momen­ to im portante do debate m etodológico na Alemanha, com a ques­ tão do juízo de valor na berlinda. R elação com os valores nas ciências da cultura e nas culturas vividas, na ação social [soziales Handeln]. A qual, não custa lem brar, em 1913 ainda era designa­ da por W eber de ação em com unidade [Gem einscbatfshandeln] (cf. Turner, 1983). Exem plos de novos conceitos desenvolvidos no ensaio de 1913: G em einschaftshandeln (ação em com un idade), G esell­ schaftshandeln (ação associativa), M assenhandeln (ação de m as­ sa), Einverständnishandeln (ação por acordo), Verbandshandeln (ação organizada), Am staltshandeln (ação institucional), Verge­ m einschaftung (“ com un itarização” , relação com unitária), Ver­ gesellschaftung (“ societarização” , socialização, relação associa­ tiva), Einverständnisvergem einschaftung (relação com unitária por acordo), estes dois últimos pensados tam bém enquanto au ­ xiliares conceituais do conceito-chave de Rationalisierung (ra­ cionalização) da ação social, do m esm o m odo com o já vem pen­ sado o conceito de Entzauberung, a saber, determinando a R atio­ nalisierung. É curioso, por outro lado, ao m esm o tem po que revelador da sim ultaneidade dos diferentes interesses de conhecimento efe­ tivamente tocados por M ax W eber nos anos 1912-14, o fato de que, ao lado e no meio do esforço de elaboração sistem ática de todo um conjunto de conceitos gerais e categorias form ais, ao re­ digir o ensaio da L ogos Weber se lance a certos desenvolvimentos bem interessantes, ainda que passageiros, sobre tem as religiosos: a irracionalidade do êxtase e da experiência m ística, a contem pla­ ção budista, a ascese cristã da disposição íntima, o “ acosm ism o” do am or m ístico, os procedim entos m ágicos, o com portam ento religioso, a perda de racionalidade da religião contem porânea, a lógica psicológica da ação religiosa e, de repente... o desencantamento do mundo. Que, é bom que se anote m ais uma vez, apare­ ce com o um conceito “ desenvolvim ental” , quer na escolha do

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adjetivo para qualificá-lo (zunehmend, crescente), quer na forma lexical de um substantivo form ado com a desinência -ung denotativa de movimento, dinam ism o, processo, algo em expansão ou crescimento [Entzauberung], e não um estado fixo. Um con­ ceito, portanto, que remete a um determ inado processo históri­ co, um conceito idiográfico, singularizante, não nom otético, não geral; não universal, nem m esm o histórico-universal.37 Indo agora ao m iolo m esm o do conteúdo da passagem : é com o se eu tivesse sorteado o ponto m ais difícil para com eçar a falar de desencantamento do m undo em M ax Weber. Confesso que com eçar por aí me desconcerta um pouco. É com o com eçar a puxar o fio pelo avesso do avesso. Um enunciado que contras­ ta m agia e religião é normal em Weber. A gora, um enunciado que contrasta as duas a fim de ressaltar na religião o que esta apre­ senta de (cada vez m ais) irracional, e realçar na irracionalidade da m agia o que ela tem de racional, é deveras insólito em Weber. Um a joia rara, preciosidade inestimável. C om eçar por aí, sem ser por um ato de escolha m as obedecendo ao acaso de uma ordena­ ção cronológica cujo ponto de partida não se sabia de antem ão qual seria, significa de fato com eçar por um Weber surpreenden­ te, quase estonteante, não só diante das interpretações correntes, m as em face tam bém da m aior parte de suas análises do fenôm e­ no do m agism o. E que, no esquem a “ desenvolvim ental” com que Weber trata a religiosidade, a m agia normalmente representa o polo (mais) irracional e a religião, o polo (mais) racionalizado.

37 “ Desencantamento do mundo” não é um conceito de alcance uni­ versal em hipótese alguma, nem mesmo se se quisesse limitar sua pretensa universalidade tão somente à história das religiões, como equivocadamente pretendeu a primeira tradução francesa d’A ética protestante: “ Ainsi, dans l’histoire des religions, trouvait son point final ce vaste processus de ‘désen­ chantement’ du monde [...]” (EPfran: 121). Weber nunca estendeu o desen­ cantamento do mundo à história das religiões! Dá para adivinhar por aí as armadilhas que espreitam o leitor da tradução francesa d 'A ética protestan­ te (cf. Grossein, 1999).

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N o Kategorien as coisas vêm invertidas, e não só aparentemente, há uma am biciosa teorização por trás. Com ecem os, portanto, do com eço do começo. Para Weber, a Sociologia da Religião se ocupa de duas form as de religiosida­ de, que no jargão durkheim iano seriam duas form as de relação com o “ sag rad o ” : m agia e religião. D uas estratégias que o sujei­ to tem para acessar o “ suprassensível” (cf. Pierucci, 2001). D uas espécies de um m esm o gênero. A elas W eber se apressa em dar o tratam ento conceituai de tipos ideais, porquan to na realidade vivida m agia e religião andam m isturadas, não havendo assim m a­ gia em estado puro, apenas enquanto conceito-limite (Isambert, 1986: 84), ao m esm o tem po que ele as presenteia com sua visada “ desenvolvimental” , tratando-as com o dois momentos de um pro­ cesso de desenvolvimento cultural, que não é único nem unívoco, a racionalização religiosa. N este sentido, a m agia representa para Weber o m om ento anterior da religião, com nítida afinidade ele­ tiva com o estágio “ anim ista” de um a hum anidade imersa num mundo cheio de espíritos, não essencialmente bons nem essen­ cialmente m aus, apenas capazes de influir “ favorável” ou “ preju­ dicialm ente” nos affaires hum anos, povoando invisivelmente um universo concebido de form a não dual (pois dual é o m undo pen­ sado pela religião). Uma visão de m undo m onista — e só neste sentido a m agia constitui um a “ imagem de m undo” em catego­ rias w eberianas [ein m agisches Weltbild] (GA RS I: 564; FMW : 350) — para a qual o m undo dos espíritos faz parte do mundo dos hum anos tanto quanto os anim ais e vegetais, e onde inanima­ dos não há, uma vez que tudo quanto existe tem “ alm a” , ânim a, anim ação. Um mundo anim ado, em sum a. Um jardim encanta­ do, dirá Weber. Que, por definição, é um m undo indiferenciado, “ m assivo” . Estágio “ prim itivo” da hum anidade e da religiosida­ de, segundo W eber, ou, p ara m elhor usar de seu vocabulário, prim ordial, recortado típico-idealmente da religião, m as não só idealmente, às vezes tam bém efetivamente, às vezes até mesmo violentamente com o nos episódios de “ caça às b ru x as” , uma vez que a religião no Ocidente tenderá a se dem arcar por ativa von­

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tade de diferença em relação à m agia, assim com o por razões práticas e interesses específicos o sacerdote tenderá a se diferen­ ciar, dem arcando-se ativamente, do m ago, bruxo ou feiticeiro. M agia é coerção do sagrado, com pulsão do divino, conju­ ração dos espíritos; religião é respeito, prece, culto e sobretudo doutrina. Sendo principalmente doutrina, a religião representa em relação à m agia um momento cultural de racionalização teórica, de intelectualização, com nítidas pretensões de controle sobre a vida prática dos leigos, querendo a constância e a fidelidade à co­ m unidade de culto. A norm atividade que corresponde à m agia é o tabu; a norm atividade que vai resultar da religião é a ética reli­ giosa. Por isso, a passagem da m agia à religião corresponde ter­ mo a termo à travessia do império do tabu ao dom ínio do peca­ do, no qual o conceito do “ m al” se separa da noção de “ desfavo­ rável” , “ nocivo” ou “ prejudicial” . Em term os fielmente weberianos extraídos da Sociologia da Religião sistem atizada em E co ­ nom ia e sociedade, a transição da m agia para a religião pode ser diversamente especificada: transição do tabu para o pecado; da coerção divina para o serviço divino; da chantagem e do conjuro para a súplica e a oração; de uma fratellanza m al e m al garantida por tabus para o am or fraterno garantido pela “ consciência” do indivíduo orientada por convicção nos princípios. M as o que me­ lhor define, e a meu ver decide, a transição da imagem m ágica do mundo para a visão ético-religiosa do mundo é a rejeição da equa­ ção “ favorável x prejudicial = bem x m al” (cf. H aberm as, 1987: 64ss), é a aceitação da heterogeneidade crucial dessas esferas de valor, acrescida de autonom ização e estranhamento recíprocos dos dois pares de oposição. Deleta-se o sinal de igual. Eis um típico processo de racionalização das “ imagens de m undo religiosas” , processo “ desenvolvim ental” nos term os de W eber, m as nem por isso unidirecional. M ultidirecional que é, um a das direções historicamente possíveis foi o desencantamento religioso do m undo. O processo de sistem atização teórica e, p ortanto, de intelectualização que conduz do tabu ao pecado, noutras palavras, da m agia à religião, pode vir a se tornar, co­

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mo ocorreu com os m onoteísm os ocidentais, um processo de racionalização religiosa que radicaliza o registro da “ eticização” , tornando-se assim , nos term os fortes de Bourdieu, um “ proces­ so de m oralização” (cf. Bourdieu, 1974a: 85). Em outros passos analisados adiante, W eber vai designar o outro lado da m oeda da m oralização religiosa com o sendo o desencantamento religio­ so do m undo, ou seja, a desm agificação da religiosidade. É co­ mo se a religiosidade, de gênero que é com duas espécies, se re­ duzisse paulatinam ente a uma espécie só, a uma espécie genéri­ ca: a m oral religiosa. Sem lugar para a m agia — von M agie freie (GA RS III: 6). Em diversos escritos W olfgang Schluchter se dedica a elucubrar per longum et latum em torno dessa transição de uma im a­ gem m ágica do m undo, m onista, p ara um a im agem de m undo metafísico-religiosa, que é dualista (cf. sobretudo 1996: 69ss). Para a m etafísica religiosa existem “ este m undo” e o “ outro m undo” , dois m undos, portanto. Já a m agia concebe o mundo com o sen­ do “ um só com duas b an d as” [the “ tw o-sided” w orld o fm agic], um m undo visível que traz consigo, imanente e pouco diferente, uma espécie de Hinterwelt de deuses e dem ônios povoando invi­ sivelmente o m undo visível. São espíritos que gozam de ligeira su­ perioridade sobre os hum anos, uma superioridade muito relati­ va, tão precária que não consegue isentá-los de serem subjugados pela potência oculta das fórm ulas m ágicas estereotipadas quan­ do corretamente m anipuladas pelo feiticeiro em transe. N o magism o, os espíritos podem ser conjurados, e isso significa: coagi­ dos pelo carisma do feiticeiro, poder extraordinário que entretanto só é eficaz se so m ad o ao carism a p róp rio de um ritual mítico-mágico cristalizado, estereotipado, inalterável, tradicionalisticamente respeitado e iniciaticamente transmitido, na medida do pos­ sível sem adulterações, perigosíssim as estas se vierem a ocorrer. T abu é isso, afinal. Já a religião, ela tem lá os seus intelectuais. N ão existiria re­ ligião se não existissem os intelectuais — esse é um dos ensina­ m entos m ais caracteristicam ente sociológicos da Sociologia da

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Religião assinada por Weber. Certos intelectuais, segundo ele, são dotados de um “ ouvido m usical” religioso [religiös m usikalisch\ que as m assas estão longe de possuir — assim com o nosotros, re­ les m ortais, também não, y compris o próprio Weber, seu pai, sua mulher e tantos e tantos outros m em bros do grande círculo de am igos e am igas do ilustre casal M ax e M arianne Weber (Roth, 1995) — e é esse tal de “ ouvido m usical para religião” um a espé­ cie de carism a reservado a alguns, que de saída os capacita a se tornarem verdadeiros virtuoses em matéria de religião. E eles de fato assim se tornam . H istoricam ente é a eles que devem os as elucubrações m etafísico-religiosas, e é destas que vai resultar a visão de mundo dualista, e, porque dualista, suscetível de racio­ nalização ética e intelectualização sublimante. N o dualism o cons­ truído e proposto pelos profissionais da religião, a superioridade e a autonom ia do “ m undo superior” são progressivam ente exponenciadas em sua própria lógica até se tornarem absolutizadas — com o se pode verificar, por exem plo, na ideia da relação entre o Deus único e o m undo posta em term os de “ Providência Divi­ n a” , crença religiosa que, segundo W eber, outra coisa não é se­ não “ a racionalização consistente da adivinhação m ágica” e, por isso m esm o, “ antagonista de toda m ag ia” , tendo-se constituído em passo estratégico na direção do desencantamento do mundo: A “ crença na Providência” é a racionalização con­ sistente da adivinhação mágica e dela provém, m as que pela m esm a razão ela desvaloriza o m ais com pleta­ mente possível [am vollständigsten entwertet], com o uma questão de princípio. N enhum a outra concepção da relação religiosa poderia ser tão radicalm ente con­ trária a toda m agia [so radikal aller M agie entgegen­ gesetzt], teórica e praticam ente, quanto essa crença na Providência que foi dom inante nas grandes religiões teístas da Ásia M enor e do Ocidente. [...] N ão há ne­ nhuma outra concepção da relação religiosa que sus­ tente tão firmemente [...] a condenabilidade da “ divi-

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nização das criatu ras” com o atentado à m ajestade de Deus. (WuG: 317; E & S : 523; EeS I: 353-354) O dualism o religiosamente intelectualizado produzido pelo intelectualismo religiosamente interessado primeiro se põe a sepa­ rar “ este m undo” do “ outro m undo” , a afastar o “ além ” do “ aqui em b aixo” , a descentrar (piagetianam ente falando) o “ sobrenatu­ ra l” do “ n atural” , e vice-versa. Conheço uma passagem bíblica que parece feita de encom enda para ilustrar o descentram ento operado pela religião de Israel entre o divino e o natural, entre o C riador e as criaturas. É a passagem do prim eiro Livro dos Reis, em que se relata a subida do profeta Elias ao monte H oreb — ah, esses profetas de Israel desencantadores do m undo! — , sítio no qual vai se dar seu grande encontro com Javé: E Deus disse: “ Sai e fica na m ontanha diante de Ja v é ” . E eis que Javé passou. Um grande e im petuoso furacão fendia as m ontanhas e quebrava os rochedos diante de Javé, m as Ja v é não estava no fu racão; e de­ pois do fu racão houve um terrem oto, m as Ja v é não estava no terrem oto; e depois do terrem oto um fogo, m as Ja v é não estava no fo g o ; e depois do fogo o m ur­ múrio de uma brisa suave. Q uando Elias o ouviu, co ­ briu o rosto com o m anto, saiu e se pôs à entrada da gruta. Veio-lhe então uma voz, que disse: “ Que fazes aqui, E lias?” . (I Reis 19, 11-13, grifos meus) D esencantam ento = descentram ento. A intelectualização também se pode abrir numa direção eticizante de tornar cada vez mais nítido o desenho da diferença entre a ação e a norm a. N os term os da “ Introdução” à Ética econôm ica das religiões m un­ diais: rum o à “ diferenciação entre o norm ativamente ‘válido’ e o empiricamente d a d o ” (Einleit/GARS I: 266; ESSR I: 260). N o u ­ tras palavras, entre o que “ deve ser” e o que simplesmente “ é ” e “ acontece” (WuG: 308; EeS I: 344). E, em se tratando de éticas

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religiosas m onoteístas, heteronôm icas por definição, o “ dever ser” decerto que coincide cem por cento com a vontade divina, com tudo aquilo que o Deus único e pessoal deseja, quer e orde­ na (cf. Schluchter, 1979; 1984, cap. IV/B; 1996, cap. I/n° 2). Fica muito difícil, por isso mesm o, acom panhar M ax Weber no uso um tanto quanto insólito da term inologia “ ética m ágica” — expressão encontradiça em vários textos seus — uma vez que no principal de sua teorização a “ ética m ágica” não pode ser uma ética no sentido estrito da palavra, porque simplesmente lhe fal­ ta, lembra Schluchter, a clareza da distinção entre uma regra téc­ nica e uma regra norm ativa, além de faltar-lhe, de quebra, a dife­ renciação entre a utilidade e o dever, incapaz que é de separar lo­ gicamente o mau do prejudicial, aquilo que “ é m au ” daquilo que “ faz m al” . Falta, pois, à m agia abrir m ão da eficácia em nome do abandono e da entrega de si a um poder superior que salva por am or. Falta-lhe, enfim, a concepção de que a benevolência divi­ na pode ser ganha, não pelo conjuro dos deuses, pela execução à risca da fórm ula ritual que funciona fatidicam ente ex opere operato, m as tão somente pela devoção obsequiosa. Que, no fundo, no fundo, é pietas, piedade filial, obediência, subm issão. M agia, ao contrário, im plica a vontade de subordinar os deuses, o oposto do proposto pela religião eticizada, a qual re­ quer a vontade de obedecer aos m andados de um Deus que pre­ mia e castiga. Subm issão dos deuses e dem ônios, na prim eira; subm issão aos deuses, na última. H á que se adm itir, claro, que a m aior parte das éticas religiosas permanecem eivadas de tabus e práticas m ágicas. W eber vai à minúcia ao descrever os casos da ín dia e da C hina, m as até m esm o no caso do ju d aísm o, típico-idealmente definido por ele com o religião “ hostil à m agia” , as práticas m ágicas resistiam e persistiam não só entre as m assas, mas recorrentemente nos círculos palacianos e sacerdotais (cf. W eber, 1952). É que a m agia em determ inados ambientes é m esmo per­ tinaz, inextirpável, inerradicável \unausrottbar\. Q uando alguém apela para a intervenção m ágica, a ideia já é a de garantir o resultado que se quer com aquela ação extraor-

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dinária — eis um outro aspecto im portante da racionalidade da m agia. N o gesto de coagir os espíritos com uma fórm ula m ágica, e não de lhes fazer um pedido, está em butida a certeza de obter deles uma intervenção que vá no sentido desejado pelo cliente e ordenado carism aticam ente pelo feiticeiro. Em bora possa parecer que o ato de m agia, por não corresponder aos term os da lógica do nosso conhecimento, não seja exatam ente o que costum am os cham ar de racional, Weber aqui o classifica com o uma ação su b ­ jetivam ente racional com relação a fins, ou seja, subjetivamente racional também em sua preocupação com os efeitos im ediatos que o ritual m ágico diz ter sobre as coisas e os eventos, os quais por sua vez são percebidos unicamente em term os de sua mera facticidade (cf. Tenbruck, 1980: 337). Um m undo m ágico assim tão pragm ático com o de fato é, só pode aparecer (paradoxalm en­ te?) com o pobre em significação, pois afinal os bens que as pessoas procuram obter com a m agia preenchem realmente a definição do que sejam fins indiscutivelmente racionais: dinheiro, com ida, saú ­ de, longevidade e descendência. A m agia tem a seu favor essa ra ­ cionalidade dos fins. Ela tem fins racionais — fins “ econôm icos” , dirá W eber no início de sua Sociologia da Religião em EeS. E, no entanto, são incontáveis as vezes em que W eber a sso ­ cia m agia ao irracional. Ele realmente encarava o m undo da m a­ gia com o o reino do irracional e do tradicional. H á uma p assa­ gem curta e grossa das considerações finais do estudo sobre a índia que merece ser citada. Ele está falando da Ásia, das velhas cultu­ ras do Oriente. O s antigos impérios orientais, com o se sabe, eram uma das pontas de sua tipologia triangular de estruturas do mun­ do pré-capitalista, sendo as outras duas pontas a antiguidade me­ diterrânea e a Europa medieval. Três grandes contextos culturais-civilizacionais, três autênticos “ jardins encan tados” . Pois muito bem. Em duas frases, não m ais que isso, ao procurar resumir sua visão geral da religiosidade asiática, ele enuncia o ponto de p ar­ tida contrastivo e a pergunta que percorre toda a sua sociologia com parada da religião:

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A este mundo altíssimamente antirracional do fei­ tiço universal pertencia tam bém o dia a dia econôm i­ co, e dali nenhum cam inho partia para uma conduta de vida intram undana racional | D ieser höchst antira­ tionalen Welt des universellen Z auber...]. (G A R S II: 370, ver ESSR II: 353) N ão é preciso conhecer muito da sociologia de W eber para daí deduzir, seguindo as regras básicas de seu pensam ento, que não há racionalização possível da conduta de vida — e é isto que no fundo interessa a ele com o indagação sociológica significati­ va — sem que se quebre não só o feitiço, m as o poder do feitiço sobre a mente das pessoas. “ As m assas por si m esm as” — diz ele na “ Introdução” — “ perm aneceram em toda parte m ergulhadas no crescimento m aciço e arcaico da m agia, a menos que uma pro­ fecia que apresente prom essas específicas as tenha arrastado para um m ovim ento religioso de caráter ético” (Psico: 320). O magism o, para W eber, é um a “ form a irracional de busca da salva­ ç ã o ” . Isso ele faz questão de escrever ali no comecinho do estudo sobre o judaísm o antigo, que se tornou, pela ação dos profetas, uma religiosidade “ livre da m agia” [von M agie freie], uma “ éti­ ca religiosa altam ente racional” (AJ: 4; G A RS III: 6). A essa altura, cabe então olhar a m agia de um outro ponto de vista ainda ao lado de W eber, olhando-a junto com ele. N a “ Introdução” , assim com o em Econom ia e sociedade (E & S: 4684 6 9 ; EeS: 321-322), W eber tende a jogar a m agia antes de mais nada para a vida no cam po. Para a “ natureza” , noutras palavras. E para o p assado. Em am bos os ensaios, ele faz dos cam poneses os p ortad ores p or an ton om ásia dessa “ form a de religiosidade prim ordial” que é a m agia. E que, segundo ele, o contato cons­ tante com a natureza a que se veem obrigados os cam poneses por sua atividade econômica específica, a qual os submerge nos “ p ro­ cessos orgânicos e fenôm enos n aturais” , puxa irresistivelmente pela m agia. Pesa ainda o fato de ser uma vida econôm ica “ muito pouco suscetível de uma sistem atização racional” .

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Os cam poneses, cuja vida econômica por inteiro esteve especificamente ligada à natureza e foi sempre dependente das forças elementares, deixaram -se ficar tão perto da m agia — a saber, o encantam ento coerci­ vo [der zivingende Z au b er] contra os espíritos que re­ giam por sobre e por trás das forças naturais, ou m es­ mo a sim ples com pra da benevolência divina — que somente transform ações trem endas na orientação da vida, vindas de outros estratos ou de profetas podero­ sos legitim ados com o feiticeiros pelo poder dos seus prodígios, conseguiram arrancá-los [herausreissen] de seu apego a essa form a de religiosidade que é por toda parte prim ordial. (GA RS I: 255; ESSR I: 250) Tem os aí nessa passagem relativa ao estrato social dos cam ­ poneses, na qual eles são descritos com o im ersos num m undo homogeneamente encantado, habitado por espíritos que dom ina­ vam as forças elementares e, por trás delas, interferiam constan­ temente em sua existência econôm ica já de si pouco sistem atiza­ da racionalm ente, tem os aí, repito, um a m odalidade a m ais de visualizar com os olhos de W eber o significado do desencantamento: serem os indivíduos arrancados do dom ínio de seu p a ssa ­ do m ágico, e, consequentemente, da dom inância de uma imagem de m undo inteiramente colada aos acontecim entos naturais, a qual, prodigamente capaz de “ pragm atism o religioso” , é totalmen­ te incapaz de racionalização do agir. N ão é apenas resistente ou refratária: é incapaz. Por ser m onista. Porque não concebe a dife­ rença entre o “ ser “ e o “ dever ser” , distinção que abre a possibi­ lidade para toda e qualquer pretensão de m oralização duradoura da conduta diária (cf. Schluchter, 1996: 62-73). N a “ Introdução” Weber se refere de maneira muito expressiva ao m onism o do pen­ sam ento m ágico quando fala da “ hom ogeneidade da imagem de mundo prim itiva, na qual tudo era m agia concreta [...]” \die Einbeitlichkeit des primitiven Weltbildes, in welcbem alies konkrete M agie war] (Einleit/GARS I: 254; ESSR I: 248). E “ só raramente

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o cam pesinato serviu de portador de uma outra sorte de religio­ sidade que não fosse a [suaj m agia original” [ursprünglich] (EeS I: 322; E & S: 4 70), a qual lhes propiciava a experiência da irra­ cionalidade extracotidiana dos “ estados orgiásticos e extáticos de p o ssessão ” , provocados “ pelo uso de meios tóxicos, ou pela dan­ ç a ” , estados que, diga-se de passagem , a nobreza guerreira con­ siderava destituídos de dignidade e que, ironiza Weber, ocupavam entre os cam poneses o lugar que a experiência m ística sói ocupar entre os intelectuais — o sagrado extracotidiano (Einleit/GARS I: 254; ESSR 1: 2 4 8 ).38 M as não é somente junto aos cam poneses que a m agia tem (e mantém) seu império — ela o tem, e o preserva, junto às m as­ sas de m odo geral: “ As m assas deixadas a si m esm as, com o vere­ m os, perm aneceram por toda parte em baraçadas na sólida prim ordialidade da m agia, a menos que uma profecia com prom es­ sas específicas as tenha capturado num m ovim ento religioso de caráter ético” (Einleit/GARS 1: 2 48-249; ESSR I: 243-244). Por isso meu espanto inicial diante de uma afirm ação com o a do pas­ so 1, que ressalta a racionalidade prática da m agia e m ostra a religião tom ando o rumo do irracional. E que o significado com que o significante desencantamento do mundo aí aparece — e desencantam ento “ crescente” , é bom frisar — não parece tão sim ­ ples. Desencantam ento do m undo não se apresenta aí carregan­ do um significado de definição clara e direta, nem rum ando nu­ ma direção unívoca, que seria — com o veremos m ais tarde — o da racionalização religiosa especificamente ocidental desmagificando a religiosidade por incremento de sua racionalidade axio-

38 Percebe-se, por esse último ângulo classificatório sugerido por We­ ber, a maior afinidade interna que o misticismo mantém com a magia e sua distância em relação à pretensão ética de regulamentar a vida cotidiana, su­ gestão que me parece deveras interessante e apropriada para ajudar a embasar um diagnóstico crítico da atual configuração do cam po religioso no Brasil dinamizado pelo crescimento dos pentecostalismos místicos.

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lógica, m as algo m ais com plicado, um processo m ais com plexo no qual é a m agia que de repente aparece em sua indiscutível ra­ cionalidade teleológica de curto prazo, em sua racionalidade prático-técnica só que teoricamente irracional, tosca, bem pobre em significação, contrastando com a abundância de sentido de que são portadoras as m etafísicas religiosas. A religião, agora, apare­ ce com o sem saída racional, desgarrada de sua velha orientação em direção a uma racionalização teórico-doutrinária sempre mais sofisticada e um a prática religiosa sem pre m ais sublim ada ra ­ cionalmente em term os éticos. A gora, a religião afunda no irra­ cional, “ à medida que avança o desencantam ento do m undo” . Eis-nos assistindo à religião abrir m ão de suas pretensões racionalistas, inclusive da pretensão ético-prática de regulam entar racionalmente a vida cotidiana dos fiéis e de im plantar o religio­ samente válido nas ações do dia a dia. Ei-la que se vê, ao contrá­ rio, “ obrigada a aceitar referências de sentido cada vez mais sub­ jetivamente irracionais com relação a fin s” (Kat: 181; WL: 433), “ à medida que avança o desencantamento do m undo” . Referências de sentido cada vez mais “ fora do com um ” , extracotidianas, ex ­ traordin árias, m ísticas, deslocando-se da ascese intram undana para o misticismo extático extram undano, paradoxalm ente fazen­ do, “ à medida que avança o desencantamento do m undo” , o ca­ minho inverso ao percorrido pelo desencantam ento ético-religioso do m undo. E isso tudo sem conseguir reverter, por sua conta, por sua própria capacidade m otivacional agora desorientada, o processo de desencantam ento, que continua “ avan çan do” , adje­ tiva Weber: zunebm end, m ontante e sem destino. Com o ficam os, então, se o processo de racionalização ético-religiosa de algum a forma se faz em detrimento da m agia, mais precisamente, em con­ traste com a irracionalidade da m agia? Já que W eber nessa nossa listagem de passos acaba nos presenteando com um novo ângulo de onde olhar para o m undo da m agia, aceito a provocação que adivinho aí contida e passo agora a considerar o fato por ele apon­ tado: a ação m ágica tem, do ponto de vista (subjetivo) de quem a executa e pratica, uma forte característica (intram undana) de ra-

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cionalidade com relação a fins (intram undanos), vinculados por­ tanto a interesses (intram undanos), não a ideias. O s interesses m ágicos são totalm ente deste m undo. T oda ação m ágica tem sempre um objetivo pragm ático muito claro e bem definido, e seus resultados são esperados para o aqui e ago­ ra. N ad a aí é m etafísico, nada é para o outro m undo, nada é para o lado de lá. Nem mesmo para um futuro longínquo à m oda milenarista ou m essiânica: simplesmente agora (Wilson, 1973: 484ss). E por isso que em term os tipológicos “ um a ética deve ser conceitualmente distinguida em sentido estrito não só das tecnologias científicas, m as tam bém da m agia, a qual pode ser considerada como uma técnica baseada numa relação meios-fins subjetivamen­ te avaliada” (Schluchter, 1996: 70). Essa observação de Schluchter me ajuda a retom ar o fio inicial p uxad o pelo prim eiro uso weberiano da expressão desencantam ento do m undo, que me fez des­ cobrir em W eber a adm issão destem ida de que a m agia, ao lado de toda a sua acachapante irracionalidade, tam bém é dotada de racionalidade. M agia não porta racionalidade teórica, nem sistê­ mica, m as sim prática. N ão prático-ética, mas prático-técnica. Uma racionalidade subjetivam ente significativa apenas se encarada e avaliada de m odo avulso, desconexo, desconjuntado. Uma racio­ nalidade elementar, não sistêmica. O s atos m ágicos não se perfi­ lam numa sequência significativa, não se ordenam num plexo homogêneo de sentido, não são capazes de travejar coerentemente uma conduta de vida. N ão “ fazem sentido” , um sentido que arre­ gimente a vida de sua dispersão constitutiva. Porque o m agism o tem vista curta. “ O s interesses m ágicos” , sublinha Bourdieu co­ m entando W eber, “ distinguem-se dos interesses propriam ente re­ ligiosos pelo seu caráter parcial e imediato [...]” (Bourdieu, 1974a: 84-85, grifo do original).39

39 “ [...] e cada vez mais frequentes quando se passa aos pontos mais baixos na hierarquia social, fazendo-se presentes sobretudo nas classes po­ pulares e, mais particularmente, entre os camponeses [...]. O campesinato,

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Este mundo, este lado — Diesseits, é com o se diz em alem ão, e curiosam ente o som dessa palavra é quase com o no inglês this side — o lado de cá, o Aquém. É neste m undo, afinal, é nesta vida que, segundo W eber, estam os todos “ religiosam ente” interessa­ dos, se é que se pode apropriadam ente aditar essa conotação ao conceito de religioso para abarcar os interesses apontados em seta não para o Além, o além -túmulo, o outro m undo, a vida após a morte, o “ andar de cim a” , com o hoje se ouve dizer no Brasil tele­ visivo — jen seits, se diz em alem ão. O ponto de vista de W eber, que é m uito atual para a sociologia contem porânea da religião, é este: a demanda “ religiosa” sempre foi, é e segue sendo constituída essencialmente de interesses voltados antes de mais nada para o ici bas, com o dizem os franceses, seja este aqui em baixo o aqui e agora, seja ele um aqui futuro, futuro m essiânico ou m ilenarista, um aqui posto lá na frente, um futuro, mas aqui, futuro desde que aqui, não no outro m undo, não lá em cima. Em diversos m om entos, em vez de qualificar essa dem anda com o religiosa, Weber vai preferir dizê-la m ágica. Religiosa pro­ priamente dita é a oferta que vem da parte dos profissionais reli­ giosos, via de regra intelectuais, literati, que respondem à demanda pragm ática com prom essas m etafísicas. Este mundo: só assim faz sentido falar-se empiricam ente, e não norm ativam ente com o o fazem alguns, em hom o religiosus. Porque o homem não nasce religioso, ele se torna. N o nace, se bace. Tal qual a mulher da fa ­ m osa frase que Simone de Beauvoir cunhou lá no fim dos anos 1940, frase prenúncio (depois tornada ícone) da segunda onda do feminismo, sua expressão idiomática, sua frase feita, passo eu aqui a cunhar a minha, inspirado em Weber: ninguém nasce religioso — torna-se religioso. O hom o religiosus é algo que se produz,

comumente circunscrito ao ritualismo meteorológico ou animista, tende a reduzir a religiosidade ética a uma relação estritamente formalista do do ut des (tanto em relação ao deus quanto em relação ao sacerdote)” (Bourdieu, 1974b: 84-85).

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aprendemos com Weber e reaprendemos com Bourdieu. Ele é pro­ duzido por profissionais da religião, por especialistas em religião, pelos peritos do discurso mítico, pelos experts da m etafísica, pe­ los virtuoses de ouvido musicalmente religioso. N o capítulo de Sociologia da Religião em Econom ia e so ­ ciedade, o ser hum ano que comete um ato m ágico ou “ religioso” não está imediatamente interessado no outro mundo. Esta, sem som bra de dúvida, é uma das boas ideias que W eber crava no p a­ rágrafo de abertura de sua sociologia sistemática da religião, ideia que hoje, nos meios sociológicos e afins em que se estudam as re­ ligiões, muita gente se esquece de registrar com a devida ênfase. N osso pretendido bom o religiosus tem os olhos fitos antes de mais nada na “ vida real” e não na “ vida após a m orte” . T anto assim , que talvez fosse melhor que, na qualidade de sociólogos científi­ cos, nós evitássem os conceber, supor, pressupor, take for granted que o ser hum ano pode ser pensado com o bom o religiosus. Evi­ tar “ dar de barato” que o ser humano é um animal essencialmente religioso, um ser que busca espontaneam ente o Além, um animal metafísico que de per si tem necessidade do Eterno, busca o A bso­ luto, alm eja abandonar-se em oblação ao Absolutam ente Outro. Evitar, com o um princípio de m étodo — m étodo científico e tam ­ bém m étodo anticoncepcional — conceber o cham ado “ interesse religioso” com o sendo especificamente religioso já no ponto de partida, com o sendo prim a facie religioso. Evitar proceder como se o interesse religioso não fosse um produto do trabalbo religio­ so, que, com o todo trabalho, está sem pre-já constitutivamente cindido por uma divisão do trabalho religioso que opõe de um lado os produtores de religião e, da outra banda, os consum ido­ res religiosos. Antes de tudo, este mundo. N o princípio, este m undo. De saída, este m undo. A ação dita religiosa é m undana nos bens que ela visa, intram undana no fim subjetivamente visado. Eu quero saúde, tu queres dinheiro, ele e ela querem reconhecim ento. E quase todos nós, com o os chineses, querem os vida longa. Q ue­ remos viver bem e m uito, neste mundo. “ This ivorld... then the

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firew orks” , diz o nome daquele filme. “ Para que tudo te corra bem e tenhas vida longa sobre a T erra” , diz o Antigo Testamento (WuG I: 317). Isso sim , isso é W eber. Isso é básico na Sociologia da Religião weberiana. O ser hum ano, quando age religiosamente, age com o objetivo de permanecer o m aior tem po possível sobre a face da Terra. T od o m undo quer sempre adiar a hora da m or­ te, em purrar para depois a despedida deste m undo. Pede, supli­ ca, conjura, sacrifica, chantageia e até se submete “ para que tudo lhe corra bem e ele viva m uitos anos de vida sobre a T erra” , se­ gundo os generosos term os da prom essa bíblica aos patriarcas de Israel (e a todos os que honram seus pais e antepassados). Pierre Bourdieu estava muito atento a essa boa ideia de M ax Weber quando escreveu seu fam oso ensaio sobre a gênese e estru­ tura do cam po religioso.40 Bourdieu cham a a atenção para o fato de que Weber, no texto sobre Sociologia da Religião de Econom ia e sociedade, “ coloca de chofre que as ações m ágicas ou religiosas são m undanas [diesseitig]41 em seu princípio e devem ser realiza­ das ‘p ara se ter um a vida lon ga’ ” (Bourdieu, 1974b: 32). “ De chofre” , diz Bourdieu, e é assim m esm o; Bourdieu notou correta­ mente esse gesto de Weber, que logo de cara introduz esse seu p o ­ deroso insight sociológico, quase tão m aterialista-histórico quan­ to um enunciado m arxiano tirado do núcleo d ’A ideologia ale­ mã, e que o editor põe em destaque no frontispício: Ursprüngliche D iesseitigkeit religiös und m agisch motivierten G em einschafts­ handelns. Em português: “ A prim ordial m undanidade42 da ação com unitária m otivada religiosa ou m agicam ente” (WuG: 245).

40 Publicado em 1971 na Revue Française de Sociologie (vol. 12, n° 3, jul.-set. 1971: 295-334), o alentado artigo Genèse et structure du cbamp religieux foi traduzido para o português por Sérgio Miceli e publicado na coletânea Bourdieu (1974), A economia das trocas simbólicas (São Paulo, Perspectiva: 27-78). 41 Ênfases de Bourdieu, tanto o grifo quanto o vocábulo em alemão. 42 Ou, quem sabe, não daria para dizer “ aquendidade” ? Ou “ terrena-

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Q uanto m ais velho vou ficando e m ais m aduro na profis­ são, mais me convenço de que nunca se é excessivamente m ate­ rialista quando o que se pretende honestamente fazer é, com to­ das as letras e todas as exigências epistem ológicas e implicações deontológicas, sociologia da religião. A ciência científica com o vocação, afinal. Já na fachada de sua sociologia sistemática da religião, M ax Weber deixou evidente seu ponto de vista sem -religião sobre a religião, seu ouvido unm usikalisb para as coisas da religião, sua perspectiva materialista e decididamente intramundana sobre aqui­ lo que outros autores teriam preferido cham ar de sentimento re­ ligioso, ou senso do sagrado, ou necessidade do absoluto, ou en­ tão, na esteira de R udolf O tto (1917), de busca do numinosum ac tremendum, m as que W eber preferiu cham ar, sempre com os pés no chão, de interesse religioso. Vejam os: A ação religiosa ou m agicam ente m otivada, em sua existência primordial, está orientada para este mun­ do \diesseitig ausgerichtet\. As ações religiosa ou m a­ gicamente exigidas devem ser realizadas “ para que vás muito bem e vivas m uitos e m uitos anos sobre a T er­ r a ” . M esm o rituais com o sacrifícios hum anos, extraor­ dinários sobretudo entre uma população urbana, eram realizados nas cidades m arítimas fenícias sem qualquer expectativa dirigida ao Além. A ação religiosa ou m a­ gicamente m otivada é, adem ais, precisamente em sua form a prim ordial, uma ação racional [...] orienta-se pelas regras da experiência, f...] A ação ou o pensamen­ to religioso ou “ m ágico” não pode ser apartado, p o r­ tanto, do círculo das ações cotidianas ligadas a um fim,

lidade” , “ terraquidade” ... Este último soa muito bem, que tal? A tradução brasileira supervisionada por Gabriel Cohn preferiu o sintagma “ caráter intramundano original” (EeS I: 279).

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uma vez que tam bém seus próprios fins são , em sua grande m aioria, econôm icos. (EeS I: 2 7 9 ; W uG: 245; grifo do original) M esm o reduzido às form as elementares mais irracionais da m agia, o com portam ento religioso apresenta em Weber um pon­ derável conteúdo de racionalidade. Primeiro, a racionalidade do interesse (alegadam ente) “ religioso” nos resultados visados para o aqui e agora pela ação m ágica ou religiosa, seus fins “ econôm i­ c o s” ; depois, a racionalidade que podem os situar um pouco além da mera ad ap tação tópica entre fins e m eios, uma vez que proce­ de pelo menos de um mínimo de regularidade da experiência com unitariamente acum ulada. “ A ação religiosa ou magicamente m otivada é, adem ais, precisamente em sua forma primordial, uma ação racional [...] orienta-se pelas regras da experiência” (EeS I: 279; W uG: 245). N a Consideração interm ediária, ao tratar da tensão que na modernidade ocidental se instala na relação entre o moderno cos­ m os econômico e a religião m oralizada pela ética do am or fraterno, W eber volta à carga e retom a essa ideia: em sua form a prim or­ dial, a ação religiosa ou magicamente m otivada tem fins racionais absolutam ente intram undanos, totalm ente condizentes e nada tensionados com os interesses econôm icos dos agentes; pelo con­ trário, os fins visados em primeira m ão, originalmente, são indis­ cutivelmente m ateriais e econôm icos. V am os lá: T od a form a originária, seja m ágica ou m istagógica, de influenciar os espíritos e deuses em favor de in­ teresses particulares visou com o objetivo autoevidente a riqueza, além de vida longa, saúde, honra, descen­ dência e, apenas eventualmente, m elhora do destino ultraterreno. Assim ocorreu com os m istérios de Elêusis, com a religião fenícia e védica, com a religião po­ pular chinesa, com o judaísm o antigo, com o antigo islã e com as prom essas feitas aos leigos piedosos hinduís-

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tas e budistas. Em contraste com isso, a religião subli­ mada de salvação [ou seja, a religião propriamente dita, AFP] e a economia racionalizada entraram em crescente tensão uma com a outra. (ZB/G A RS I: 544) N a “ Introdução” à Ética econômica das religiões m undiais, redigida na mesm a época que o Kategorien, Weber torna a insis­ tir nesse seu ponto de vista m aterialista a respeito do interesse re­ ligioso nos “ solidíssim os bens deste m undo” : Para o estudioso empírico, os bens de salvação, que são diferentes entre si, não devem ser interpreta­ dos apenas, e nem mesmo preferencialmente, como vol­ tados para o “ outro m undo” . Isso ocorre à parte o fato de que nem toda religião, e nem toda religião mundial, conhece o “ A lém ” com o um centro de prom essas de­ finidas. A princípio, os bens de salvação das religiões prim itivas, bem com o das cultas, proféticas ou não, com a única exceção parcial do cristianism o e de uns poucos credos especificamente ascéticos, eram os bens sólidos deste m undo [ganz m assiv diesseitige]: saúde, vida longa e riqueza. Eram essas as prom essas feitas pelas religiões chinesa, védica, zoroastriana, hebraica antiga e islâm ica; e da mesm a form a pelas religiões fe­ nícia, egípcia, babilónica e alem ã antiga, bem com o eram essas as prom essas do hinduísmo e do budism o aos devotos leigos. Somente o virtuose religioso — o asceta, o monge, o sufi, o dervixe — lutava por um bem de salvação extram undano, em com paração com aque­ les solidíssimos bens deste mundo [massivsten Diesseitsgutern], E nem m esmo esse tal bem de salvação extra­ mundano de m odo algum era apenas do Além. N ão era este o caso, nem m esm o quando ele era percebido co ­ mo tal. Psicologicamente considerado, quem busca a salvação está interessado prim ariam ente no habitus

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voltado para o aqui e agora. (Einleit/GARS I: 249; Psico: 320-321)

[...] N o p assad o , coube aos intelectuais sublim ar a posse de bens de salvação numa convicção de “ reden­ ç ã o ” . A concepção da ideia de redenção, com o tal, é muito antiga, se por ela entenderm os um a libertação da desgraça, da fome, da seca, da doença e, em últi­ ma análise, do sofrim ento e da morte. N ão obstante, a redenção só alcançou significação específica quan­ do expressou um a “ im agem de m un d o” sistem ático-racionalizada e representou uma tom ada de posição perante o m undo, pois o significado bem com o a q u a­ lidade pretendida e real da redenção dependeram dessa im agem e dessa posição. (Einleit/GARS I: 252; Psico: 323, grifos meus) Resum indo. W eber trata a distinção entre m agia e religião de uma perspectiva histórica fortemente travejada por uma visada evolutiva (evolucionista, dirão outros), que Schluchter sugere seja cham ada de developmental, palavra intraduzível para o português (Schluchter, 1979b). O processo de racionalização religiosa é tam ­ bém, de um outro ponto de vista, um processo de intelectualização da oferta religiosa. A religiosidade m ágica vem desde o princípio, deste tem pos im em oriais, literalmente primordiais-, a religiosida­ de ética, por sua vez, ainda não tem três milênios de existência. Essa emerge no período histórico que K arl Jasp e rs cham ou de Achsenzeit, “ era a x ia l” , quando surgem e se definem as cham a­ das religiões mundiais (cf. Eisenstadt, 1982; 1987; Gauchet, 1985), e desde então a religiosidade se intelectualiza e, de cima para bai­ xo na estratificação religiosa, m oraliza. O desenvolvim ento da ética religiosa no período axial implica uma guinada axiológica, an axio lo g ical turn, a saber: a distinção estrita entre o estado natural e o estado cultural, entre o ser e o valor. A Sociologia da R eligião de W eber fica inconcebível sem a con sideração argu-

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m entada dessa emergência gradual da ética religiosa para fora do universo do m agism o, sem a ideia — m esmo que avant la lettre, mesmo que antes do acham ento de sua m arcante nom inação — do desencantam ento do mundo com sua contraface, a eticização da religiosidade e a resultante m oralização da conduta. Um ato de magia é um ato de racionalidade prática subjetiva­ mente racional com relação a fins, ainda que irracional nos meios. O problema com a magia é que sua validade salvífica “ agu da” não instala no indivíduo a racionalidade “ crônica” de um a “ conduta de vid a” [Lebensführung]. Ela não fixa um “ estado du radou ro” [D auerzustand], não assenta um “ habitus sagrado perm anente” [beiliger Dauerhabitus\ (cf. ZB/G A R S I: 540; R R M : 242; ESSR I: 531). Por inconstante e avulsa, a m agia para W eber é incapaz de vida cotidiana,43 assim como ela é, para Durkheim, incapaz de igreja: “ z7 n existe pas d ’Église m agique” (Durkheim, 1998: 61). Insinuando-se de m odo perturbador ou, quando m enos, in­ trigante nessa co-incidência dos processos de desencantam ento e intelectualização religiosa, estam os com eçando a perceber um certo p arad o xo viajando na ideia de desencantam ento do m un­ do. É com o se o desencantam ento significasse justamente o con­ trário do que dele se esperava, a saber, a saída de um m undo in­ capaz de sentido e o ingresso num universo significativam ente ordenado pelas ideias religiosas e, com isso, tornado ele próprio pleno de sentido, sinnvoll, meaningful. Faz sentido isto, pensar com o desencantamento justamente o entrar para um mundo cheio de sentido? Para W eber, faz. Se não entendem os isto, é porque ainda não estam os entendendo o que quer dizer, para W eber, desencantamento do mundo.

43 Diferentemente da magia, o conteúdo da profecia “ era a orienta­ ção da conduta de vida para a busca de um bem sagrado. Neste sentido, portanto, ao menos relativamente: uma sistematização racional da conduta de vida. Seja sob certos aspectos, seja em sua totalidade” (ZB/GARS I: 540; RRM : 242; ESSR I: 531).

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PASSO 2: “ IN T R O D U Ç Ã O ” À É T IC A E C O N Ô M IC A D A S R E L IG IÕ E S M U N D IA IS (1913)

O asceta intramundano é um racionalista. M ax Weber, EeS I: 366

BREV E N O T ÍC IA DA O BRA A “ Introdução” [Einleitung] à Ética econômica das religiões m undiais foi escrita em 1913 e só foi publicada dois anos depois, em outubro de 1915, já em plena Grande Guerra, no vol. 41 (n° 1) do Archiv fiir Sozialw issenscbaft und Sozialpolitik. Tam bém aqui há um a nota de rodapé inserida já na abertura, na qual We­ ber atesta claramente a data da redação do ensaio, ao declarar que suas palavras ali aparecem “ inalteradas, tal com o foram escritas e lidas a am igos dois an os an tes” (Einleit/GARS I: 237; ESSR I: 233, nota 1, grifo meu). O tema da “ Introdução” é a própria Sociologia da Religião, agora definitivamente trazida para o centro do am bicioso esforço de análise com parativa das grandes culturas religiosas do Ociden­ te e do Oriente, intitulado Etica econômica das religiões m undiais, aventura intelectual de grande fôlego em que Weber se lançara pelo m enos desde 1911 (cf. Schluchter, 1989: 419). Em inglês, na co ­ letânea From M ax Weber publicada em 1946, esse ensaio intro­ dutório recebeu o inexplicável título de “ A psicologia social das religiões m undiais” e assim ficou conhecido tam bém em portu­ guês. Aqui eu vou citá-lo sempre sob a forma “ Introdução” (com aspas) para distingui-lo de outra introdução weberiana, tam bém m uito importante, o prólogo geral aos E nsaios reunidos de Socio­ logia da Religião, cham ado em alem ão Vorbemerkung e conhe-

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eido internacionalmente com o “ Introdução do au tor” [AIntro], herança de seu difundido uso em inglês com o A uthor’s Introduc­ tion (cf. N elson, 1974). Ao lado da Introdução do autor, da Con­ sideração interm ediária e d ’A ciência com o vocação, a “ Introdu­ ç ã o ” [Einleitung] com põe o quarteto de ouro da sociologia teórico-reflexiva de M ax Weber.

C O M E N T Á R IO N a “ Introdução” , Weber emprega o sintagm a desencantamento do mundo uma única e decisiva vez. Decisiva porque enun­ cia de form a explícita e sucinta a correlação direta entre o desencantam ento do mundo e o protestantism o ascético, isto é, a ascese intram undana com o via de salvação con traposta a outras vias possíveis. Decisiva, ainda, porque remete o processo de desencantam ento tam bém ao plano das ideias, fazendo dele o que H a ­ berm as cham ou de “ desencantam ento das imagens de m undo44 m etafísico-religiosas” , condição cognitiva sine qua non para a “ emergência das estruturas de consciência m odernas” (Haberm as, 1987: 200), enfoque este que põe em relevo, em W eber, a im por­ tância atribuída por ele às cam adas intelectuais e, com isso, à intelectualização da religiosidade. Decisiva, finalmente, porque m os­ tra o processo de desm agificação da experiência religiosa com o o outro lado da m oeda da escalada da m oralização religiosa, nou­ tras palavras, da “ eticização” [Ethisierung] da conduta religiosa e, por conseguinte, se é que se trata m esm o de m oralizar, com o o outro lado da moeda da arregimentação consciente e alerta da vida individual num todo unificável, referido a uma “ personalidade”

44 A expressão “ imagens de mundo” [ Weltbilder] é usada por Weber o mais das vezes para se referir às “visões de mundo” [Weltanschauungen] religiosas, às “ imagens de mundo metafísico-religiosas” ; mas ele chega a fa­ lar também em “ imagem de mundo m ágica” , como veremos.

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consciente de sua identidade única, equipada assim para fazer frente às dem andas de um m undo dom inado por crescente racio­ nalização... e desencantam ento (cf. PE/GARS I: 115-117; G old­ man, 1988: 42s, 118). O sintagm a desencantamento do m undo aparece aí em seu sentido estrito: um a operação religiosa (eu diria m esmo intrarreligiosa) pela qual uma determinada religiosidade é retrabalhada por seus intelectuais no sentido de “ se despojar ao m áxim o do caráter puramente m ágico ou sacram ental dos meios da g raça” , meios es­ ses que, segundo Weber, sempre desvalorizam [entwerten] o agir no m undo, impedindo com isso que se chegue à noção de que o trabalho cotidiano, com sua racionalidade técnico-econômica, po­ de ser o lugar por excelência da bênção divina, essa ideia puritana. O ponto culminante dessa teorização com pacta da evolu­ ção religiosa (Bellah, 1970) que W eber desenvolve na “ Introdu­ ç ã o ” é conhecido. É a fam osa fórmula sobre a eficácia histórica diferencial de “ ideias e interesses” . Essa fórmula é lembrada tam ­ bém por trazer em seu enunciado m ais uma boa m etáfora de We­ ber, a dos switcbmen, em alem ão Weichensteller, m anobristas de linha de trem (cf. Pierucci, 2002: 96), função determinante de de­ finir rum os que ele atribui às “ ideias” na história. Eis a fórm ula m em orável:45 N ão as ideias, mas os interesses (materiais e ideais) é que dom inam diretamente a ação dos hum anos. O m ais das vezes, as “ im agens do m un do” criadas pelas “ ideias” determinaram , feito m anobristas de linha de trem, os trilhos nos quais a ação se vê em purrada pela dinâmica dos interesses. (Psico: 323; FMW : 280; ESSR I: 2 4 7 )46

45 Fórmula que Bendix, não se sabe por que razão, considerou uma “ enigmática observação” , uma cryptic remark (Bendix, 1986: 65; 1960: 68). 46 “ Interessen (materielle und ideelle), nicht: Ideen, beherrschen un­

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Para o nosso específico objeto e objetivo de pesquisa, o que interessa ressaltar nessa passagem -chave é a im portância prio­ ritária que W eber confere aos interesses m ateriais e ideais, e nós já vimos o quão m ateriais e terra a terra podem ser para ele os interesses ditos “ religiosos” , ao m esmo tem po que ele não tira os olhos do papel de “ vetor” , “ direcionador” e “ inflector” que têm as ideias, no caso, o “ racionalism o teórico-religioso” , na condu­ ção dos interesses assim cham ados “ religio so s” , melhor dizen­ do, na conform ação “ religiosa” dos interesses salvíficos da m as­ sa, dos que não são, por qualquer razão, virtuoses em religião. “ N ão obstante o fato de que a ação hum ana é m otivada di­ retamente por interesses” , — comenta Tenbruck, e logo mais eu vou me permitir citá-lo extensivamente, com o tam bém o faz Haberm as (1987: 209-210) — “ ocorrem períodos na história cuja direção a longo prazo é determ inada pelas ideias de tal maneira que os homens podem se esfalfar até a morte na persecução dos seus interesses, m as no longo prazo a água da história é conduzi­ da pelo moinho das ideias, e as ações dos homens permanecem sob a influência das id eias.” E o que é que W eber cham a aqui de “ ideias” , ele m esm o pondo as asp as? Tenbruck explica: “ O uso de W eber é o do século X IX . Ideias são aqueles pontos de vista suprapessoais que articulam os aspectos fundam entais da relação do homem com o m undo. Em sentido am plo, elas são ‘imagens de m undo’, mais precisamente, elas devem sua existência à neces­ sidade, e à busca, intelectual de uma narrativa coerente do m un­ do e, com o tal, são criadas predom inantem ente por grupos reli­ giosos, profetas e intelectuais” (Tenbruck, 1980: 335-336). N o u ­ tras palavras, a evolução das im agens de m undo responderia a coações predom inantem ente racionais, obedeceria a uma “ lega­ lidade p róp ria” [Eigengesetzlichkeit], e a gênese da religião (pro­

mittelbar das Handeln der Menschen. Aber: die ‘ Weltbilder’, welche durch ‘Ideen’ geschaffen wurden, haben sehr oft als Weichensteller die Bahnen bestimmt, in denen die Dynamik der interessen das Handeln fortbewegte” (Einleit/GARS I: 252).

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priamente dita) teria portanto com o conteúdo um progresso an­ tes de tudo na racionalidade teórica, um avanço na consistência interna e na articulação sistêmica de sua imagem de mundo. E um verdadeiro processo de aprendizagem, que obedece primeiro a uma lógica interna que é própria de cada grande religião e que se des­ dobra sob pressão tam bém de fatores externos, dentre os quais sobressaem as dem andas do intelectualismo dos leigos, isto é, dos leigos intelectualizados. A linha ao longo da qual o pensam ento m ágico-m ítico das religiões tribais vai se racionalizando progressivamente até se trans­ formar numa ética religiosa universalista, trajeto que Weber ilustra porm enorizadam ente, Tenbruck a resume da seguinte m aneira: Q uando, a um certo m om ento, as potências mis­ teriosas contra as quais os hom ens se debatiam no meio ambiente não dom inado passam a ser olhadas não m ais com o forças imanentes nas próprias coisas, m as com o seres que se escondem por trás das coisas, para W eber, uma nova ideia apareceu no m undo, e se os homens fazem desses seres que agem por trás das coisas entidades pessoais, estam os diante de m ais uma nova ideia. D o m esm o m odo, para W eber, o concei­ to m onoteísta de um Deus supram un dan o era um a ideia que tinha de nascer num momento determinado, m as que, um a vez ad m itido, teve consequências de grande porte. Finalmente, um a ideia com pletamente nova forjou a representação dessa divindade com o um Deus que recom pensa e castiga, especialmente quan­ do daí se desdobrou esta representação suplem entar, a saber, a de que os destinos dos homens neste m un­ do e no Além dependem essencialmente da observân­ cia dos preceitos éticos. Uma nova ideia apareceu uma vez m ais com a profecia em issária, ou seja, precisa­ mente no judaísm o, pois desta vez o homem devia com ­ preender-se a si m esm o com o o instrumento de Deus

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agindo no mundo. E foi ainda uma nova ideia quando o protestantism o acrescentou a isso a predestinação. (Tenbruck, 1980: 336; 1975: 658) Algum as ideias, sob a com pulsão de sua própria lógica in­ terna \Eigengesetzlichkeit|, desenvolvem suas consequências ra ­ cionais a tal ponto, que chegam a inflectir empírica e decisivamen­ te a dinâmica dos interesses hum anos. Feito agujeros47 de estrada de ferro, switchmen da racionalização religiosa. A qual vem sem ­ pre de cim a, dos intelectuais. A linha de “ evolução religiosa” (Bellah, 1970) que vai da imagem m ágico-m ítica do m undo à imagem m etafísico-religiosa do m undo, Weber a descreve com o um processo de racionaliza­ ção e intelectualização que adquire, a partir de um determinado momento devidamente periodizado e num ponto perfeitamente localizado do m apa cultural da T erra, a inflexão singular de um processo de desencantamento do m undo. Pois bem, se olharm os a mesma evolução nos seguintes termos: de um mundo povoado de espíritos aos panteões politeístas e destes ao m onoteísm o ético-universalista, o desencantam ento vai se m ostrar aos nossos olhos com o uma verdadeira “política de despovoam ento” , como inspiradam ente notou o sociólogo François Isam bert. Pois “ o m undo da m agia” , escreve Isam bert, “ por prosaico que seja, por acanhadas que sejam suas finalidades, por pobre que seja sua sim ­ bólica, não deixa de ser essencialmente um m undo anim ado. E o aspecto m ais tangível do desencantam ento é precisam ente o despovoam ento [dépeuplem ent] que ele efetua” (Isambert, 1986: 86, grifos do original). As práticas m ágicas, além do m ais, não são de toda hora. Os etnólogos atestam isso à exaustão. Ninguém faz m agia o tem­

47 Também em português, e não só em espanhol, os carris de ferro móveis usados para facilitar a passagem dos trens de uma via para outra são chamados de agulhas.

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po todo e a todo m om ento, nem os povos que nós conhecemos com o os mais anim istas, nem os indivíduos que depreciam os co­ mo os m ais “ m acum beiros” . O s rituais m ágicos são atividades extraordinárias e, com o sabem os leitores de W eber, o que é ex­ traordinário é literalmente extracotidiano [ausseralltàglich], em que pese o pleonasm o embutido nesta ênfase. N o passo 2 em exa­ me, o desencantam ento do m undo é entendido com o desvalori­ zação dos meios m ágicos de salvação na medida em que, em sua extracotidianeidade constitutiva, essas práticas “ desvalorizam ” religiosamente o trabalho profissional cotidiano no mundo como locus das boas relações com o invisível. De m odo aparentem en­ te paradoxal, porém, a desm agificação puritana do mundo se faz acom panhar, também ela, de uma atitude de desvalorização do mundo: este mundo é inerentemente corrupto! Ou seja, o m un­ do não tem sentido em si mesm o. E que “ a fé na predestinação [...]” , explica W eber, “ [ess]a reconhecida im possibilidade de medir [s/c| os desígnios divinos com critérios hum anos, implica uma renúncia em fria clareza a um sentido do m undo acessível ao entendimento hum ano” (ZB/G A RS I: 573, ESSR I: 561). Em seu estado pecam inoso de criatura, se ele tem sentido é exclusiva­ mente com o objeto do cumprimento dos deveres em ações racio­ nais executadas segundo a vontade de um Deus absolutam ente supram undano e insondável (cf. EeS I: 373). O personagem do asceta intram undano — que Weber co­ meçou a descobrir e a descrever já na primeira versão d ’A ética protestante de 1904-05, no esforço por dem onstrar pela primeira vez sua tese pessoal acerca da relação entre o protestantism o ascé­ tico e o “ espírito” do capitalism o — equilibra-se por assim dizer num fio de navalha quando deposita toda a sua expectativa de estar salvo pelo Deus único no estreitíssim o intervalo que medeia entre sua concepção negativa do mundo d ’ici bas, visto como peca­ m inoso e sem valor, sem pre perigoso para os bons, e sua concep­ ção positiva da ação racional no mundo, vista como sinal ou prova de salvação. D ada a sutileza na com binação lógica dos seus com ­ ponentes, o conceito típico-ideal de ascese intram undana consti­

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tui assim um dos grandes tentos m arcados por Weber em sua pro­ lífera capacidade de construir conceitos sociológicos abstratos logicamente coerentes, empiricamente referidos, culturalmente sig­ nificativos, capazes ainda de evocar figurativamente uns persona­ gens de carne e osso. V am os conferir sem m uita pressa: O mundo como um todo permanece, do ponto de vista ascético, uma m assa perditionis [...] que, justamen­ te por ser o irremediável vaso natural do pecado, tor­ na-se, em vista do pecado e da luta contra ele, uma “ ta­ re fa” para a com provação da disposição ascética. O m undo permanece em seu desvalor de criatura: uma gozosa entrega a seus bens põe em perigo a concentra­ ção no bem de salvação. [...] Despreza-se, portanto, o desfrute da riqueza, considerando-se com o “ vo cação” a economia gerida de m odo ético-racional e levada sob rigorosa legalidade, cujo êxito, isto é, o lucro, torna visível a bênção de Deus ao trabalho do homem pie­ doso e, portanto, a benevolência para com sua condu­ ta de vida econômica. Despreza-se todo excesso de sen­ timento nos homens, com o expressão da divinização das criaturas que nega o valor único da dispensação divina da graça [...]. Despreza-se toda erótica divinizadora da criatura, considerando-se com o “ vocação” desejada por D eus a “ p rocriação d esap aix on ad a de filhos” (conforme expressão puritana) dentro do m a­ trimônio. Despreza-se a violência do indivíduo contra os outros, por paixão ou sede de vingança, em geral por m otivos pessoais [...]. O asceta intram undano é um racionalista, tanto no sentido de uma sistem atização racional de sua própria conduta de vida pessoal, quanto no sentido da rejeição de tudo o que é eticamente irra­ cional, seja artístico, seja pessoal-sentim ental, dentro do mundo e de suas ordens. Fica, porém, antes de tudo, a meta específica: o dom ínio m etódico “ vigilante” da

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própria conduta de vida. (W uG: 329-330; ver EeS I: 365-366; EyS I: 429-430) O asceta intram undano é um racionalista, sintetiza Weber. E, na medida em que esse seu racionalism o, cujo objetivo específi­ co é o “ dom ínio m etódico da conduta de vid a” , exige dele “ a re­ jeição de tudo o que é eticamente irracional” , fica dito que o con­ ceito de ascetism o intram undano implica necessariamente a rejei­ ção da m agia com o um de seus componentes básicos. A porm eno­ rizada descrição do asceta intram undano em Econom ia e socie­ dade assim resumida ilumina incisivamente o conteúdo do passo 2 encontrado na “ Introdução” , que nos remete ao desencantamento do m undo levado a cabo pelo protestantism o ascético. N o desenrolar de suas pesquisas em Sociologia da Religião, Weber volta várias vezes aos conceitos tipológicos de ascetism o e m isticism o, que pouco a pouco vão se tornando mais bem deli­ neados e vigorosos com o tipos ideais das possíveis “ vias de sal­ v ação ” historicamente experim entadas pelas diferentes culturas religiosas. A ascese intram undana torna-se com o tem po referên­ cia inescapável para a com preensão do processo de racionaliza­ ção religiosa tal com o ocorrido no Ocidente. Conform e exigên­ cia explícita de Weber, para poder ser classificada com o ascese intram undana uma religiosidade precisa ter-se despojado ao m á­ xim o do caráter m ágico ou sacram ental dos m eios da graça, uma vez que esses meios m ágico-sacram entais representam em si m es­ m os um a desvalorização [Entwertung\ da ação cotidiana neste mundo. Isto é, eles a põem com o algo de im portância apenas re­ lativa em sua significação religiosa, e isto na melhor das hipóte­ ses. O que, no limite, im plica condicionar “ a decisão sobre a sal­ v ação ” ao sabor de processos pertencentes à esfera do extraordi­ nário. Vida religiosa despojada [abgestreift] dos m eios m ágicos de salvação? Só no protestantism o ascético. Só então a atividade ético-ascética do trabalho vocacional se valoriza por si m esm a e se afirm a “ separada [abgeschnitten] de todos os meios m ágicos de salv ação ” , autoim pondo-se ali o crente a exigência de “ pro­

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var-se” com o salvo, santo, eleito “ instrumento de D eus” no m un­ do. O ra, agir com o instrumento de Deus outra coisa não é que pretender “ racionalizar eticam ente” o mundo segundo o m anda­ to divino, define Weber. E além do m ais, a religiosidade devia ser o mais possível despojada do caráter puramente m ágico ou sa ­ cram ental dos m eios da graça. Pois estes sempre des­ valorizam [entwerten] a ação no m undo com o tendo um significado religioso na melhor das hipóteses rela­ tivo e ligam a decisão a respeito da salvação ao êxito de processos racionais não cotidianos. As duas condi­ ções, desencantam ento do m undo e deslocam ento da via de salvação, da “ fuga do m un do” contem plativa para a “ transform ação do m undo” ascético-ativa, só foram plenamente alcançadas |...] nas grandes form a­ ções de igreja e seita do protestantism o ascético no Oci­ dente. (Einleit/GARS 1: 26 2 -2 6 3 ; ver Psico: 334) Q uando o puritano da m odernidade clássica mergulha de cabeça no trabalho profissional em meio ao m undo, ele o faz sob forte tensão. Porque o m undo simplesmente está podre: m assa perditionis é só o que este m undo é (WuG: 329). A eloquência m oralista dos pregadores puritanos não poupa esforços na busca de evidências da depravação hum ana e da indigna m iserabilidade da criatura (ver Delumeau, 1978; Greven, 1977; Hill, 1987; 1988; Thom as, 1985; Walzer, 1987). N ão por acaso a idolatria enquanto divinização da criatura [Kreaturvergòtterung] volta a ser, com o nos profetas do Antigo Testam ento, a pior das ofensas a Deus e o m aior de todos os riscos que um crente neste m undo pode cor­ rer. Incontáveis são os riscos de desandar na idolatria e assim per­ der a certitudo salutis. Desse ponto de vista, ser um asceta intram undano por m issão divina, experim entar o grande júbilo inte­ rior de ter recebido do “ A ltíssim o” a bênção desse cham am ento [calling], é na verdade um constante tormento, um constante es­

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tado de alerta. Constante vigília. Acresce a isto a im possibilidade de abandonar-se inteiramente à união m ística, pois no protestan­ tism o radical a unio m ystica não é possível, dado o “ golfo in­ transponível” que separa de nós a absoluta transcendência do “ Al­ tíssim o” , detonadas que foram todas as pontes “ sacram entais” , vale dizer, toda a m agia, já que em jargão calvinista sacram ento é m agia. Desm agificada assim a religião, não resta outra saída ao renascido santo a não ser a ascese intram undana, dirá W eber em 1920 a propósito dos an abatistas tardios, a ascese do trabalho profissional e nada mais. Ascese intram undana = dom ínio m etódico “ desperto” da própria conduta de vida (WuG: 330; EeS I: 366). O asceta intram undano é um racionalista prático todo dia, não de segunda a sáb ado, m as de segunda a segunda. D aí a im portância do binô­ mio cotidiano-extracotidiano na sociologia sistemática de Weber, im portância que eu diria acrescida em sua sociologia sistemática da religião, na medida em que a oposição “ ética x m agia” replica diretamente esta outra dicotom ia básica tam bém em sua socio­ logia da dom inação, “ cotidiano x extracotidian o” , “ ordinário x extraordin ário” , “ rotina x carism a” .

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PASSO 3: E C O N O M IA E S O C IE D A D E (1913, 1914)

São incontáveis as coisas que “ acontecem” e que jamais entrarão na “ história” . Wilhelm Windelband, Prelúdios filosóficos: 111

BREVE N O TÍC IA DA O BRA N o dia 30 de dezembro de 1913, em carta a seu editor Paul Siebeck, M ax W eber informou-lhe que tinha term inado uma pri­ meira versão do capítulo de Econom ia e sociedade sobre a Socio­ logia da Religião. Pouco menos de quatro meses depois, em car­ ta de 21 de abril de 1914, tornaria a informar ao editor que o texto com pleto de Econom ia e sociedade — o qual, com o se sabe, era para ter outro título, algo com o Com pêndio de econom ia social, e do qual fazia parte um capítulo de Sociologia da Religião — iria dem orar ainda uns cinco meses para ficar pronto e poder ser en­ viado para a gráfica. “ M eu m anuscrito” , escreveu ele a Siebeck em abril, “ vai estar pronto em 15 de setem bro, para poder com e­ çar a com posição tipográfica.” Por essa razão, até hoje o ano de 1914 tem sido norm alm ente aceito com o a data final da com po­ sição da primeira versão de Econom ia e sociedade (cf. Schluchter, 1989: 392). A pesquisa para os ensaios que iam com por a Ética econô­ mica das religiões m undiais levara-o a m udar o esboço original que havia traçado anos antes, provavelmente já em 1909, confor­ me fica evidente quando se com para o prim eiro sum ário com o segundo, que ele finalmente redigiria em 1914. H oje já não res­ tam dúvidas quanto à estreitíssima relação, intelectual e tem poral, entre Econ om ia e sociedade e a É tica econôm ica d as religiões

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m undiais (cf. Schluchter, 1989: 4 3 3 ss; Schmidt-Glintzer, 1995), o que leva a zerar também as dúvidas quanto à íntima relação entre sua sociologia tipológico-sistem ática e sua sociologia histórico-com parativa. Que haja concom itância tem poral é um dado b á­ sico nessa relação entre as “ especialidades sociológicas” de M ax W eber nessa “ nova fase de sua p ro d u çã o ” (M arianne W eber, 1984: 3 1 8ss; 1995: 306ss). Que cientista ou acadêm ico já não experim entou isso? Pois não se há de esquecer, adem ais, que as duas “ especialidades” supracitadas constituem a base vital, a b a­ se sine qua non de sua sociologia teórico-reflexiva (form ada pe­ lo “ quarteto de o u ro ” elencado no passo 2. E isso é uma boa no­ tícia para quem trabalha com o sociólogo da religião e além disso quer saber “ qual é a ” da sociologia da religião de Weber: tanto sua vertente sistem ática (Econom ia e sociedade) quanto sua ver­ tente histórico-com parativa (Ética econôm ica das religiões m un­ diais) podem ser lidas com o mutuamente ilustrativas, e uma aju­ da muito a entender a outra, bem com o as reflexões que am bas provocaram . Q uando isso tudo pode ser lido do ponto de vista dos interesses intelectuais e tem áticos contem porâneos da socio­ logia “ científica” da religião, fica tudo muito interessante. Econom ia e sociedade teve uma história atribulada. M as não foi só sua redação que enfrentou problem as, tam bém sua edição foi cheia de idas e vindas, m uitas reconsiderações, alterações e adiam entos. T an to, que acabou virando obra póstum a. Em 1914 explodiria a Prim eira G uerra M un dial, e dois anos depois da guerra W eber viria a falecer. M orreu no verão de 1920, quando Econom ia e sociedade, finalmente depois de tanta espera, estava já a meio cam inho da com posição tipográfica. O volume que saiu publicado em 1921 estam pava na página de rosto: Com pêndio de econom ia social. D ivisão III — E conom ia e sociedade — A economia e as ordens e poderes sociais tratados p or M ax Weber.

48 I: xviii).

Ver a reprodução do original em alemão na edição brasileira (EeS

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Econ om ia e sociedade só foi traduzido para o português setenta anos depois: somente em 1991 saiu o prim eiro volume, publicado pela Editora da Universidade de Brasília, em boa tra­ dução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, com revisão téc­ nica de Gabriel Cohn. O volume dois saiu em 1999.49 A tradu­ ção foi feita com base na quinta edição revista da versão-padrão. V ersão-padrão de Wirtschaft und Gesellschaft é considerada a se­ gunda edição, de 1925, organizada por Johannes Winckelmann. A prim eira, de 1921, fora organizada pela viúva de M ax , M arianne Weber.

C O M E N T Á R IO Em Econom ia e sociedade aparece uma vez o termo, na for­ ma do particípio p assad o do verbo entzaubern, adjetivando o sintagm a “ os processos do m undo” no parágrafo 7 do capítulo dedicado à Sociologia da Religião (vol. I, parte II, cap. V ).50 O

49 A demora em vermos uma versão de Economia e sociedade em lín­ gua portuguesa não impediu que os estudantes universitários tivessem aces­ so a essa obra monumental, uma vez que desde 1944 existe a versão em es­ panhol de Economia y sociedad [EyS], editada pela Fondo de Cultura Eco­ nómica, do M éxico, aliás a primeira tradução integral dessa obra em todo o mundo. Se o Brasil esperou setenta anos, a França também esperou demais (pasme o leitor, cinquenta anos) para ter uma tradução francesa do primeiro volume de Economie et société, organizada sob a direção de Jacques Chavy e Eric de Dampierre, lançada em 1971. Até hoje, trinta anos depois da pu­ blicação do primeiro volume em francês, ainda não saiu o segundo (ver Willaime, 2000: 3). N o Brasil, já. 50 O título dado ao tratado sistemático de Sociologia da Religião varia: na edição brasileira de Economia e sociedade, com tradução supervisionada por Gabriel Cohn, é o capítulo V da parte II do volume I, e se chama “ So­ ciologia da Religião (tipos de relações comunitárias religiosas)” , que traduz ao pé da letra o título alemão que consta da 5a edição revista por Johannes Winckelmann de 1972, “ Religionssoziologie (Typen religiöser Vergemein-

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parágrafo 7 trata das afinidades eletivas entre as diferentes m o­ dalidades de religião e os estam entos e classes aos quais Weber atribui o papel de “ cam ad as p o rta d o ra s” [T ràg er] das diferen­ tes atitudes ou m entalidades religiosas, ideia que ele desenvolve em visada com parativa e de form a condensada na “ Introdução” da Ética econôm ica das religiões m undiais (cf. Pierucci, 2 0 0 2 : 87-92). E quando analisa a religiosidade dos estratos intelectuais que Weber introduz a noção de desencantamento do mundo. N o passo 3, o recuo da crença na m agia está diretam ente relacio­ nado ao avanço do intelectualismo no interior das com unidades religiosas. A sociologia sistemática da religião desenvolvida em Econo­ m ia e sociedade, em tese m ais preocupada com a definição típico-ideal de conceitos básicos que sirvam ao tratam ento socioló­ gico da religiosidade em geral, traz tam bém pronunciado pendor com parativo, remetendo sempre a fatos das m ais diversas cultu­ ras e épocas. M uitas questões cruciais para nossa temática aí es­ tão em jogo, e eu procurarei evitar tornar longo dem ais meu co­ mentário, abordando os tem as m ais diretamente im plicados no conteúdo do passo 3: a religiosidade ética, o m onoteísm o, o ju­ daísm o, a profecia em issária... em poucas palavras, o processo de m oralização religiosa, deixando para os passos seguintes o trata­ mento mais detido da questão do sentido. A propósito, nem bem com eçam os nossa cam inhada e W eber já está falando pela segun­ da vez de desencantamento e sentido. É que a questão do sentido

schaftung)” ; na versão americana em três volumes organizada por Guenther Roth e Claus Wittich (1968), é o capítulo VI do volume II, e se chama “ Reli­ gious groups (The Sociology o f Religion)” ; na versão em espanhol de Eco­ nomia y sociedad (1944) é o capítulo V da parte II do volume I, e se chama “ Sociologia de la comunidad religiosa (Sociologia de la religion)” . Em 1963, o compêndio ganhou uma tradução para o inglês feita por Ephraim Fischoff que mereceu uma edição como livro à parte, The Sociology o f Religion (We­ ber, 1963, abrev.: SR), que tem de quebra uma introdução assinada por Talcott Parsons. O que sempre valoriza uma publicação.

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está indissociavelmente ligada ao processo de racionalização ético-m etafísica da religiosidade, ou, para usar um termo que We­ ber pouco usa (ZB/G A RS I: 547) m as H aberm as destaca (1987: 20 9 ; 424), ao processo de “ eticização” [Etbisierung] das imagens de m undo religiosas. Vim os nos passos 1 e 2 que a Sociologia da Religião de W e­ ber é bem sensível ao fato sociológico de que os interesses “ religio­ s o s” se form am e se distribuem desigualmente numa população: as m assas costum am ter necessidades ou interesses “ religiosos” na verdade muito “ m ateriais” , ao p asso que letrados e intelec­ tualizados de m odo geral são capazes de interesses “ ideais” que podem ser traduzidos diretamente em linguagem religiosa subli­ m ada, quando não teológica. Linguagem apropriadam ente dita religiosa justamente porque intelectualizada. N essa linguagem in­ telectualmente sofisticada eles expressam não suas necessidades terrenas, m as sua “ ânsia de salvação nobre” , sua busca de salva­ ção da “ aflição interior” , sua “ necessidade (metafísica) de senti­ d o ” . Concepções holísticas, totalizantes, do sentido do mundo e da vida — vetores de novas orientações axiológicas — são pro­ duzidas seminalmente por figuras carism áticas, especialmente os profetas, e m esmo depois de desenvolvidas e sistem atizadas elas não falam , para W eber, de outra coisa senão da “ natural neces­ sidade racionalista do intelectualismo de compreender o mundo com o um cosm os pleno de sentido” (EeS I: 343; E & S II: 505): A salvação que o intelectual busca sempre é uma salvação da “ aflição interior” [Erlösung von “innerer N o t” ] e, por isso, por um lado, de caráter mais estra­ nho à vida, porém , por outro, de caráter mais profun­ do e sistem ático do que a salvação da miséria exterior [Erlösung von äusserer N ot] que é própria das cam a­ das não privilegiadas. O intelectual, por caminhos cuja casuística chega ao infinito, procura dar a seu m odo de viver um “ sentido” coerente, portanto, uma “ uni­ dade” consigo mesmo, com os homens, com o cosm os.

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Para ele, a concepção do “ m undo” é um problem a de “ sentido” . (EeS I: 343-344; E & S II: 5 0 6 ; W uG: 307308) É na sequência im ediata desse trecho que se engata nosso passo 3, que não custa reapresentar ao leitor: Q uanto m ais o intelectualismo repele a crença na m agia, e com isso os processos do m undo ficam “ de­ sencantados” , perdem seu sentido m ágico e doravante apenas “ s ã o ” e “ acontecem ” m as não “ significam ” mais nada, tanto mais urgente resulta a exigência, em relação ao m undo e à “ conduta de vid a” com o um to ­ do, de que sejam p ostos em uma ordem significativa e “ plena de sentido” . (EeS I: 344; E & S II: 506) D aí para a desvalorização das realidades do mundo e uma sedutora fuga do m undo, é um passo. W eber disseca: é a “ espe­ cífica fuga do m undo dos intelectuais” (EeS: 344). Com efeito, as dificuldades que encontra neste mundo um m odo de vida que se pretende em conform idade com uma ordem unificada do eu individual, da vida pessoal e do m undo natural, levam no mais das vezes os intelectuais religiosos à fuga m ística “ para fo ra ” do m undo, pelo mergulho na mais pura imanência divina. M as não é exatam ente disso que eu quero falar agora, e sim deste outro aspecto im portantíssim o que Weber não deixa de anotar nesse momento: a religiosidade intelectual que valoriza a contemplação mística e procura a ilum inação extática, na medida em que é uma religiosidade extracotidian a, é de si incapaz de desencantar o mundo, e aí, por este viés, se casa perfeitamente bem, no nível das m assas populares, no nível dos “ não intelectuais” [die Nichtintellektuellen], com esta outra form a de religiosidade e x tra­ cotidiana que é a m agia. W eber cita aqui exem plos concretos ti­ rados das religiões da China e da índia. São m etafísicas religio­ sas que não se conectam com a ação prática no dia a dia dos “ re­

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ligiosamente não m usicais” , no cotidiano das m assas. São reli­ giões universais que reproduzem éticas estamentais e aconchegam toda form a de m agia: Isso ocorre na ética estam ental confuciana da burocracia, totalmente estranha à salvação, ao lado da qual continuam existindo a m agia taoista e a graça sa ­ cram ental budista com o religiosidades populares pe­ trificadas [...]. O m esmo se dá com a ética de salvação budista do estam ento m onacal, ao lado da feitiçaria e da idolatria dos leigos, da persistência da m agia de tabu e do novo desenvolvim ento da religiosidade soteriológica hinduísta. (EeS I: 343; E & S II: 506) O m onoteísm o não é o único a poder reivindicar a qualifi­ cação ética da divindade. W eber reconhece que entre as divinda­ des do politeísm o existem alguns deuses que têm um caráter es­ pecificamente ético, nos lembra Paul Ladrière (1986: 105), coisa que a gente m uitas vezes esquece. Só que, enquanto no politeísmo o deus ético não passa de um entre vários deuses, no m onoteísm o o deus ético é o único Deus. Aqui não existe noção de divindade que não implique de saída sua qualificação ética. E é então que o elo entre religião e ética se torna decisivo — no m onoteísm o. E os m onoteísm os são três: o judaísm o, o cristianism o e o islã.51 O deus ético não suscita nem m aior nem menor religiosidade que um outro deus aético, m as, segundo W eber, aquele terá com o carac­ terística própria a capacidade de levar o sentido religioso “ para dentro” do dia a dia, fora do espaço e do tem po extracotidianos dos ritos religiosos, de suscitar — pelo m edo, nos contará Delumeau (1978) — um a verdadeira condução da vida [eine Lebensführung], ou seja, uma m aneira coerente, duradoura e previsível de agir na vida ordinária. E essa conduta de vida terá a peculiari­

51 Ver parágrafo 12 da “ Sociologia da Religião” (EeS: 404-418).

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dade de ser racional antes de m ais nada por referência a valores religiosos nem sempre racionais. Os traços especificamente éticos do Deus m onoteísta a p a ­ recem cada vez mais claramente à medida que se desenvolve a con­ cepção racional da econom ia (a m eteorologia na agricultura, por exemplo). Segundo essa concepção racionalizadora, o mundo obe­ dece às leis naturais e se constitui com o tal num cosm os, um uni­ verso ordenado no interior do qual o agir hum ano pode sistem a­ ticamente ter em conta fenôm enos racionalmente previsíveis (cf. Ladrière, 1986). A divindade se confirm a com o deus ético que pune e recom pensa à m edida que cresce a im portância dos laços éticos que ligam o indivíduo a um m undo ordenado de “ obriga­ çõ es” , tornando assim sua conduta regular e previsível, suscetí­ vel portanto de interação fundada na racionalidade norm ativa. Concebe-se a divindade com o um deus ético quando a ordem da natureza e a ordem das relações sociais deixam de estar situadas acim a dos deuses e se tornam um a criação — criatura — desse deus supram undano, concebido com o a fonte e a autoridade mes­ m a da conduta m oral (Roshw ald, 1991). T al concepção pressu­ põe que o deus protegerá de toda violação a ordem justa que ele criou. As relações com o deus passam a ser provadas na maneira justa de um agir ordinário que se conform a à ordem justa da qual o deus é o criador: “ Se de fato obedecerdes aos meus m andam en­ tos [...]” (Deuteronôm io 11, 13). N ão é mais uma questão de subm eter pela m agia as potên­ cias suprassensíveis da “ n atureza” ao s desígnios desconexos e inconstantes dos hom ens, nem de pacificá-las ritualm ente sem considerações minimamente universalizáveis de ordem ética. Trata-se agora de observar a lei de Deus. A observância da lei, consi­ derada com o expressão da vontade do Deus único e de sua divi­ na justiça, torna-se agora o meio específico de atrair para si e para todo o povo a bênção divina. N o m onoteísm o, ao contrário do politeísm o, há Uma Só Lei, que se aplica a todos igualmente. Um só Deus, uma só lei, uma ordem cósm ica e social. O Uno, em su­ ma. A metafísica propriamente dita. Eis, pois, como surge no mun­

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do, segundo W eber, a ética religiosa. Eis senão quando a religio­ sidade se eticiza. “ T u és justo dem ais, Javé, para que eu entre em processo contigo. M as falarei contigo sobre questões de direito” (Jerem ias 12, 1). Se a religião que assim se transform ou em ética religiosa ra ­ cional agora porta consigo o princípio de uma ruptura radical com a m agia, então o judaísm o antigo é a expressão definitiva dessa decisiva ruptura cultural que teve lugar no m undo antigo. E isso que faz dessa religião ético-profética, na term inologia weberiana, um a “ individualidade h istórica” (Burger, 1987; O akes, 1989). Senão, vejam os. A lei dada por M oisés ao povo de Israel si­ tua o judaísm o na origem de um processo de racionalização ética da religiosidade que só se com pletará com a emergência do que Weber chama o Ocidente moderno. O racionalism o ético de M oi­ sés, que consistentemente se oporá aos cultos agrários e aos ritos orgiásticos, vai se desenvolver no sentido de um a desvalorização crescente, na verdade um a repressão recorrente, dos m om entos efêmeros e extracotidianos de emoção e embriaguez religiosas, pro­ curando se internalizar nos indivíduos com o um habitus perm a­ nente de natureza ético-racional. Esse processo se radicaliza com o advento dos profetas pré-exílicos, os “ profetas da desgraça” , lembra Burger (1987), fenômeno que em Israel se inicia ainda no período pré-exílico, a partir do século VIII a.C . Só o protestan­ tism o ascético, dois mil anos depois dos profetas bíblicos, com ­ partilhará com o judaísm o ético-profético a m esm a repulsa à sacralização de toda e qualquer m ediação entre Deus e o homem, de toda graça m ágico-sacram ental. E essa atitude, radicalizada ao m áxim o no período heroico de constituição da m odernidade, vai se revelar capaz de exercer uma influência extraordinariam ente forte sobre a totalidade da vida de uma pessoa no decorrer não dos anos, m as dos dias, de cada dia, e favorecerá o desenvolvi­ mento de uma arregimentação ético-racional da estrutura de cons­ ciência, que passa a operar com o fator aglutinador e unificador da personalidade e da conduta de vida “ com o um to d o” . “ Condu­ ta de vida com o um to d o ” : são palavras do passo 3. A exigência

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(sistêmica) é dirigida não só ao m undo, m as “ à conduta de vida com o um to d o ” [ais G anzen), uma “ dem anda interior” de que o mundo e a vida sejam sistem atizados, tornados coerentes e preen­ chidos de sentido. V oltarem os a isto, pois W eber tam bém sem ­ pre volta. A profecia em issária do judaísm o antigo é praticam ente si­ nônimo de desencantamento do m undo com o projeto. E na se­ gunda versão d ’A ética protestan te, com o verem os, W eber vai agregar a ela o pensam ento científico grego na cadeia causal do processo de desencantamento. (Veja-se o passo 14, em bora aí se faça essa junção de form a elíptica.) A atenção de W eber parece m esm o estar toda voltada para a profecia em issária peculiar ao judaísm o pré-exílico com o o fator crucial de sistem atização ra­ cional da imagem de m undo ético-religiosa. N ão se trata apenas de postular que o m undo é ordenadam ente significativo, que ele é um cosm os, pois disso tam bém foram capazes as im agens de mundo religiosas da Á sia Oriental — trata-se, além disso, de exi­ gir que tam bém e principalmente a vida cotidiana seja em tudo e por tudo subm etida a um a ordem dotada de sentido, que ela seja essa ordem significativa. Trata-se de transform ar o “ acontecer” diário numa “ condução da vid a” no sentido forte da expressão [eine Lebensführung].52 E do ponto de vista dos profetas éticos bíblicos, a vida, o m undo vivido, os acontecim entos sociais e p o ­ líticos transfiguram-se em fatos da “ História da Salvação” (cf. Berger, 1963) e, enquanto tais, tom am a frente dos fenôm enos natu­ rais com o portadores de um sentido unificador que os articula, os engrandece e os ultrapassa. Ao conceber o “ m undo” com o um problem a de sentido ético-m etafísico, o intelectualismo repele — zuriickdràngt — , quer

52 Os tradutores brasileiros de Economia e sociedade, com o aval de Gabriel Cohn, revisor técnico da tradução, preferem dizer condução da vida em vez de conduta de vida. E não custa nada registrar que Thomas Burger traduz Lebensführung para o inglês como governance oflife (Burger, 1987: 190).

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dizer, afasta, faz recuar as práticas m ágicas, porquanto de saída ele já tornou teoricamente impossível a crença num “ sentido m á­ g ico ” , por desconexo e incongruente, dos processos e sucessos naturais e sociais, que, “ reen caixad os” num a outra ordenação inteiramente heterogênea ao m onism o m ágico indiferenciado, se tornaram agora religiosam ente desencantados. O s acontecimen­ tos da vida tiveram seu encanto quebrado pela exigência ético-metafísica de que sejam dispostos numa ordem significativa, que, ela sim, lhes confere um sentido agora unificado e totalizante; ela, sim, faz dos fenôm enos naturais e dos eventos sociais, antes to ­ m ados separadam ente com o coisas que aconteciam “ a favo r” ou “ con tra” e tinha cada qual um a explicação tópica suficiente, um K osm os; ela, sim, faz dos atos hum anos avulsos um a “ conduta de vid a” , um a vida governada. A estrutura dessa atribuição p rá­ tica de sentido implica sempre uma sistem atização e, portanto, a unificação congruente das ações antes pensadas isoladam ente, a concatenação coerente das “ boas o b ra s” antes avulsas e conta­ bilizadas um a por um a na m entalidade do catolicism o medieval (aliás fartam ente m agificado nos traços com que M ax W eber o pinta n’A ética protestante) ou, melhor dizendo, na m entalidade comum às religiões m ágico-rituais, ao ritualism o m ágico, numa palavra, à m agia. Essa preocupação em conferir à ação ordinária um sentido que a u ltrap assa, p reocu pação torn ada disposição permanente e vigilante, reflexiva e articulante, é identificada por Weber com o termo “ intelectualism o” . Diz W eber que os acontecim entos do m undo se tornaram entzaubert: desencantados, desenfeitiçados. O em prego da voz passiva se oferece com o uma oportunidade para alertar os mais açodados quanto ao fato de que não é o mundo (o mundo m oder­ no, hélas!) que “ nos desencanta” por algum a razão, m as é o mun­ do ele m esm o que “ se torna desencantado” . São os processos e sucessos deste m undo [die Vorgänge der Welt] que “ ficam desen­ can tad o s” , não nós, os sujeitos m odernos, tardom odernos, pós-m odernos, pós-m etafísicos, pós-históricos, en bref, pós-tradicionais, que teríam os nos desencantado “ co m ” a vida moderna

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e, ainda por cim a, assim “ desiludidos com o m undo” , talvez nos im aginássem os estar sendo retratados quando W eber fala em desencantam ento... do m undo. N a realidade estam os sim plesm en­ te confundindo desencantam ento “ d o ” m undo com “ sentimen­ to s” ou “ estados de espírito” de desencanto, decepção, desilusão, desengano, desapontam ento. D esolação ?, tam bém . E desam pa­ ro, disempowerment, desespero, depressão... nada a ver com We­ ber, para quem desencantam ento do m undo rim ava com ascetis­ mo intram undano, que por sua vez e ao contrário do ascetism o invectivado por N ietzsche, rim ava com muita coisa, menos com disem pow erm ent, conform e têm dem onstrado os trabalhos de Harvey Goldm an (1988 e 1995) com bons e fartos argum entos, inclusive textuais. Para terminar este passo: no brevíssim o ensaio com parati­ vo sobre “ As religiões m undiais e o ‘m undo’ ” inserido com o p a ­ rágrafo 12 no final do capítulo dedicado à Sociologia da Religião, há um a passagem extraordinariam ente densa e estilisticamente forte em que W eber se refere ao desencantam ento do m undo — sem usar o sintagm a — com o realização histórica única e exclu­ siva do protestantism o puritano. Ele usa o advérbio “ som ente” [nur\, abrindo com ele o período cujo predicado será a locução verbal idiom ática alemã “ den G araus m acben” + dativo, cujo sig­ nificado é fortíssim o: significa nada menos que “ an iquilar” .53 Somente o protestantism o ascético efetivamente aniquilou a m agia [Nur der asketische Protestantism us

53 É interessante notar que Weber emprega aqui a mesma expressão idiomática “ den Garaus macben" que usa na conclusão do estudo sobre a China (ver passo 4), quando diz lá que “ as manifestações mais característi­ cas (do protestantismo ascético) eliminaram a magia do modo mais comple­ to ” (GARS I: 513; CP: 151), frase que, na versão em espanhol, vem traduzi­ da também por uma outra expressão idiomática: “han dado el más completo golpe de gracia a la m agia” (ESSR I: 505), que em português seria o golpe, ou tiro, de misericórdia.

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machte der M agie... wirklich den G araus]. (EeS I: 416; W uG: 378) V ejam os a passagem toda para melhor saborear o contras­ te que W eber estabelece entre o protestantism o ascético com sua vontade de exterm ínio da m agia e a “ religiosidade popular asiá­ tica” , retratada com o um permanente “ jardim encantado” : Somente o protestantism o ascético efetivamente aniquilou a m agia, a extram undanidade da busca de salvação e a “ ilum inação” contemplativa intelectualista como sua forma mais elevada; somente ele, precisamen­ te em meio ao esforço dedicado ã “ p ro fissão ” intramundana — na verdade o oposto da concepção de pro­ fissão hinduísta, que era estritamente tradicionalista — criou os m otivos religiosos para buscar a salvação no desempenho profissional m etodicam ente racionaliza­ do. Para a religiosidade popular asiática de qualquer tipo, ao contrário, o m undo permaneceu um grande jardim encantado [blieb dagegen die Welt ein grosser Z aubergarten]: a veneração ou a coação dos “ espíri­ to s” , a busca de salvação ritualista, idolátrica, sacra­ mental, continuaram sendo o cam inho para se orien­ tar e se garantir na prática. (WuG: 379; ver EeS I: 416; grifo do original) Para que uma religião racionalizada desencante o m undo, ela precisa ser portadora de um senso de dever ser que vincule a vida cotidiana de form a duradoura, e não eventual, com o faz a m agia; é preciso que a racionalização religiosa tome o rum o da m oralização religiosa do cotidiano. E para que o desencantamento se cum pra plenamente com o racionalização religiosa, para que ele chegue a seu term o religioso, a tendência intelectualista do virtuose religioso a fugir do m undo deverá ser superada por uma ética intram undana que faça incidir o valor religioso diretam en­

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te sobre a organização racional do trabalho e da produção indus­ trial, acreditando-se que a í reside a bênção do Altíssim o sobre os que ele, por puro am or, escolheu e predestinou à salvação eterna. Segue-se disso, portanto, justamente o oposto do que podia esperar da ideia de desencantam ento o senso comum acadêm ico, e em especial o senso comum “ im puram ente acadêm ico” dos so ­ ciólogos “ religiosos” da religião (Pierucci, 1997a; 1997b; 1999): para Weber, dar um sentido unificado e unificador à totalidade da vida e do mundo é a melhor maneira de desencantá-los, de afir­ m ar sua inerente carência de sentido imanente. Parece descon­ certante, m as é isso aí. E que o desencantam ento da religiosidade abre-a para a exigência ética no meio do m undo e isso assum e, de im ediato, a form a de um conflito sem trégua entre essa “ ne­ cessidade m etafísica” e “ os processos do m undo” em seu estado presente e puram ente fáctico, puram ente existente. A eticização da conduta é um verdadeiro “ desencaixe” , com o hoje se diz na sociologia contem porânea, um disembedment.

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9. PASSO 4: A R E L IG IÃ O DA CH IN A (1913, 1915)

Cada conto de fadas chinês revela o enraizamen­ to popular da magia irracional. Pululam pelo mundo fe­ rozes deuses ex machina que por capricho são capazes de tudo. A única ajuda é o contrafeitiço. M ax Weber, China: 200

BREVE N O TÍC IA DA OBRA Weber iniciou em 1915 a publicação da grande série de en­ saios de sociologia com parativa cham ada Ética econôm ica das religiões m undiais, e a m onografia sobre a China foi a prim eira a sair. K onfuzianism us, este era o título, saiu no volume 41 (n° 1 e 2) do Archiv für Sozialw issenschaft und Sozialpolitik de outubro e dezembro de 1915. Viu a luz bem acom panhado, é bom que se diga, na m edida em que vinha intercalado entre dois ensaios teórico-reflexivos de escopo geral, de um lado a “ Introdução” [Ein­ leitung] e do outro a Consideração interm ediária [Zwischenbe­ trachtung]. Segundo o próprio W eber, K onfuzianism us foi escri­ to em 1913 (Einleit/GARS I: 2 3 7 ; ESSR I: 233). O texto foi todo retrabalhado para um a segunda edição em 1920, passando a integrar o prim eiro dos três volumes dos E n ­ saios reunidos de Sociologia da Religião [G A R S|, que, com o sa ­ bem os, foi o único dos três que W eber teve tem po de apresentar com pleto ao editor, tendo falecido em seguida. N a segunda ver­ são, W eber introduziu adaptações, interpolações e adendos, am ­ pliou consideravelmente as partes dedicadas aos aspectos econô­

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m ico-estruturais da sociedade chinesa, basicam ente de estratifi­ cação social e organização política, remanejou certos trechos e, o que m ais cham a a atenção, aum entou muito o número de capí­ tulos, que de quatro na versão de 1915 p assaram a ser oito na de 1920. Até o título do ensaio foi m udado. Espichou, ficando a s­ sim mais com pleto: Konfuzianism us und Taoism us. Falar, pois, do estudo sobre a China é falar de uma obra com duas versões distintas, a de 1915, do Archiv, e a de 1920, dos En saios reuni­ dos de Sociologia da Religião. Se a versão definitiva é de 1920, e se aqui estam os procuran­ do seguir a ordem cronológica de redação dos textos de Weber, por que não jogar m ais para a frente o tratam ento da passagem sobre desencantam ento extraída do estudo sobre a China? A ra­ zão é uma só: porque o capítulo de conclusão em que se encon­ tra a referida passagem — texto fam oso por traçar antológico paralelo de duas condutas religiosas de vida, o confucionism o e o puritanism o, salientando sua abissal diferença cultural — per­ maneceu praticam ente intacto na segunda versão do ensaio. Os pequenos ajustes deixaram inalterado o conteúdo original. Baseio-me aqui em estudo de Schluchter,54 para afirm ar que não houve nenhuma alteração de m onta no R esultat, e que, por con­ seguinte, a passagem relativa ao desencantam ento do m undo foi escrita por Weber “ dois anos an tes” de 1915.

C O M E N T Á R IO N o estudo sobre as religiões originárias da China, conheci­ do mundialmente pelo título em inglês The Religion o f China, o sintagm a desencantam ento do m undo tam bém aparece uma vez só. E parece que vem com tudo: sua definição é esclarecedora,

54 “ Confucianism and Taoism: World Adjustment” (Schluchter, 1989: 85-116), publicado em alemão em 1985.

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didática mesm o, além de superlativamente enfática na explicita­ ção do sentido “ literal” que lhe foi conferido nessa aventura so­ ciológica em que W eber se lançou, tendo em vista a localização de nexos m ulticausais na relação entre econom ia e cultura; não um dos sentidos, não um sentido a m ais, dentre uma infinidade de significações e efeitos de sentido possíveis, m as o sentido es­ trito, tal com o construído logicamente por seu autor que assim o designou para funcionar com o ferram enta válida e útil em sua sociologia co m parada dos racionalism os das visões de m undo [W eltanschauungen] e das condutas de vida [Lebensführungen\. N ão custa nada relembrar neste m om ento a program ática afir­ m ação que W eber deixou expressa no início da C onsideração interm ediária, segundo a qual sua sociologia com parada das re­ ligiões m undiais queria e devia “ ser ao mesmo tem po uma con­ tribuição à tipologia e à sociologia do próprio racionalism o” (ZB/ G A RS I: 5 3 7 ; ESSR I: 528; R R M : 240; EnSoc: 372). Antes de adentrar a encantada Ásia weberiana a com eçar de “ su a ” encantadíssim a China, convém nos determ os no contexto textual no qual ocorre o p asso 4, e este contexto se encontra nos dois prim eiros p arágrafos alem ães da conclusão do ensaio, o Resultat, que vale a pena revisitar na tradução brasileira de Gabriel e Amélia Cohn: Para apreciar o nível de racionalização que uma religião representa podem os usar dois critérios bási­ cos, que se inter-relacionam de várias m aneiras. O pri­ meiro é o grau em que um a religião despojou-se da magia-, o outro é o grau de coerência sistem ática que imprime à relação entre Deus e o m undo e, em con­ sonância com isso, à sua própria relação ética com o mundo. N o tocante ao prim eiro ponto o protestantism o ascético nas suas várias m anifestações representa um grau extrem o. As suas m an ifestações m ais caracte­ rísticas elim inaram a m agia do m odo m ais com pleto

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[haben der M agie am vollständigsten den G arau s ge­ m acht].55 [...] O pleno desencantam ento do m undo foi levado, apenas aí, às suas últimas consequências. |...] A caça às feiticeiras tam bém floresceu na N ova Inglaterra. M as, enquanto o confucionism o deixava intacta a m agia em sua significação positiva de salva­ ção, aqui toda a m agia tornou-se dem oníaca e apenas tinha valor religioso o racionalmente ético: a ação con­ forme ao m andam ento divino, e m esmo isso, apenas a partir do sentimento piedoso. (G A R S I: 512-513, gri­ fos do original; CP: 151-152; China: 226-227) Eis-nos diante de um a definição explícita de desencanta­ mento do m undo, agora com o resultado, não com o processo: o grau em que um a religião se despojou da m agia. C aso o leitor ainda se sentisse relutante em acatar a conceituação estrita de desencantam ento do m undo, ao atentar para essa explicação (ex-plicatio = des-dobra) do sentido literal do ter­ m o, diante de form ulação tão enxuta e precisa, tão bem recorta­ da e aprum ada, não teria mais com o deixar de acolhê-la. N a luta encarniçada do puritanism o com o catolicism o que inaugura a m odernidade, Entzauberung der Welt perfila-se na teorização w eberiana nom eando exatam ente a “ rem oção da m agia sacra­ m e n ta r (atitude mais consequente nalgum as denom inações, co ­ mo os calvinistas e os anabatistas tardios, em especial os quakers, menos radical noutras). Isto em prim eiro lugar. Em prim eiro lu­ gar, insisto, essa atitude de varrer a m agia do exercício da reli­ gião, posicion am en to agon ístico em tudo e por tudo afim ao iconoclasm o, isto é, à destruição das im agens, essa outra m arca registrada da puritana rebelião anti-idolátrica “ no Big Bang da

55 N o passo 3 já comentamos sobre esta expressão alemã e suas tra­ duções (ver nota 53).

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m odernidade” .56 M as não só. O que no fundo im porta é que aqui se nega à m agia, qualquer que seja, todo valor salvífico p o ­ sitivo, toda vigência religiosa, toda eficácia e poder com o meio de salvação ou até m esm o apenas enquanto busca de salvação, valor religioso que se vê totalmente transferido para a boa con­ duta diária, uma vida de trabalho secular “ santificada” , o agir cotidiano em conform idade com princípios éticos exarados na form a de m andam entos divinos indiscutíveis. E internalizados, in trojetados, op erando com o acicates da ação religiosam ente norm atizada from within. É nessa chave que W eber vai poder olhar para a religiosidade ético-ascética do Ocidente, depreciadora [entwertend] e perseguidora implacável da m agia,57 só que agora de um ponto de vista com parativo com a religião dos m an­ darins chineses, que nesses precisos term os nunca peitou as práti­ cas m ágicas, nem na base da argum entação, nem violentamente. O passo 4 nos leva diretamente aos dois eixos possíveis de racionalização das imagens de m undo religiosas que Weber isola e enumera, distinguindo-os sem no entanto os desenlaçar com ­ pletamente: dois critérios básicos para se averiguar, num estudo com parativo das várias religiões, o grau de racionalização alcan­ çado por um a form a histórica de religiosidade: (1) o grau em que “ se despojou da m agia” ; (2) o grau de unidade sistem ática que imprime à relação entre Deus e o mundo e, em consonância com isso, à sua própria relação ética com o m undo. O enunciado sistem ático-formal dessa passagem -chave constitui verdadeira regra do m étodo sociológico para a análise com parada das imagens de m undo religiosas e seus correspondentes m odos de vida.

56 A ideia de aplicar a expressão “ Big Bang da modernidade” à con­ fluência histórica entre capitalismo no sentido moderno da palavra e protes­ tantismo ascético, tal como interpretada por Weber, é de Serge Moscovici (1990: 143). 57 Weber não deixa de mencionar os Hexenprozesse, os processos condenatórios das feiticeiras (cf. CP: 152; GARS I: 513).

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Despojar-se, despir-se, desembaraçar-se da magia [die M agie abstreifen\. a noção de desencantamento, está-se vendo, tem uma significação muito mais restrita e muito menos polissêmica do que a de racionalização. Sempre que possível eu tenho procurado cha­ m ar a atenção para o cam po de ação mais contido do conceito de desencantam ento do m undo, sua m enor circunferência, seu alcance menos indeterm inado, e cuidadosam ente delim itado pelo próprio W eber (adem ais de fortemente sinalizado pela própria etim ologia), que o restringe àquele específico espaço da esfera religiosa no qual desponta em antagonism os efetivos a sempre tensa relação da religião com a m agia, ou, se quiserem, da religio­ sidade ético-ascética com a religiosidade m ágico-ritualista. Um verdadeiro cam po de luta58 cultural se abre no Ocidente por ra ­ zões inteiramente históricas. É importante fazer essa delim itação, não só para que se possa ter m aior clareza quanto aos tortuosos caminhos percorridos pelo processo geral de racionalização cultu­ ral do Ocidente, m as é im portante tam bém — e eu diria, também e principalmente — para as teorizações que atualmente se produ-

58 Sobre a luta sem trégua “ religião versus m agia” , ver também Durkheim (1998) [1912] e M auss (1950). Quando Émile Durkheim chama a aten­ ção para “ a aversão profunda da religião pela magia e, consequentemente, [para] a hostilidade da segunda com a primeira” , embora esteja se referin­ do a fenômeno que ele considera universal, suas considerações na verdade se aplicam — tipicamente — ao caso particular da história ocidental. Acres­ cente-se aos arrazoados de Durkheim o complemento de lugar “ no Ociden­ te” , e eis que eles imediatamente entram nos eixos weberianos. Se não, ve­ jamos: “ A magia [no Ocidente] põe uma espécie de prazer profissional em profanar as coisas santas — por exemplo, na missa negra a hóstia é profa­ nada — e nos seus ritos ela assume posição oposta à das cerimônias reli­ giosas. A religião, por sua vez, embora não tenha sempre e em todo lugar condenado e reprimido os ritos mágicos, olha-os de modo desfavorável. [...] Há nos procedimentos do mago [ocidental] algo de profundamente antirreligioso. Ainda que possa haver alguns pontos de contato entre essas duas espécies de instituições, é, entretanto, difícil que [no Ocidente] elas não se oponham nalgum ponto, e é tanto mais necessário encontrar o ponto em que se distinguem” (Durkheim, 1998: 75, cf. Pierucci, 2001).

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zem, com louvável pretensão sistem atizadora, na área cada vez m ais especializada de Sociologia da Religião (cf. Stark & Bainbridge, 1985; 1996). É básico para um cientista social que pre­ tende se especializar no estudo das religiões entender, por exem ­ plo, que desencantam ento em sentido técnico não significa perda para a religião nem perda de religião, com o a secularização, do mesmo m odo que o eventual incremento da religiosidade não im­ plica autom aticam ente o conceito de reencantam ento, já que de­ sencantam ento em Weber significa um triunfo da racionalização religiosa: em term os puram ente tipológicos, a vitória do profeta e do sacerdote sobre o feiticeiro: um ganho em religião m oral, m oralizada, isto é, expandida em suas estruturas cognitivas e for­ talecida em sua capacidade de vincular por dentro os indivíduos. Weber dedica toda uma seção do estudo sobre a China a dis­ cutir a im portância e a enorme presença da m agia naquela cultu­ ra, im portância tam bém quantitativa. É m uita m agia na China, e m agia por todo canto, em todos os níveis sociais. O próprio impe­ rador é concebido com o um fazedor de chuva (China: 31 e 261, nota 60). Por isso, o prim eiro aspecto dessa sua pesquisa históri­ ca a interessar o sociólogo da religião que habita em mim, além, é claro, da cau d alosa e inerradicável presença da m agia numa cultura superior com o a chinesa, foi o destaque dado por Weber ao im pacto positivo e alentador que o surgimento de um a m etafí­ sica religiosa do porte do taoism o de Lao Tsé acabou tendo sobre as tradições m ágicas populares. Com o taoism o, estam os diante do exem plo m áxim o de uma racionalização metafísica de caráter holístico e unificador que, ao contrário do que ocorreu com a racionalização profético-metafísica do judaísm o, só fez aum entar o fôlego do m agism o, em vez de o afastar, ou pelo menos de o contradizer e depreciar. D esconfio que isso queira dizer que, em última análise, a m etafísica taoista não conseguiu trazer à tona em sua imagem de m undo a distinção entre o que é natural e o que é cultural. Isso se deve ao fato de não ter conseguido conce­ ber de m aneira forte, nem fundam entar consistentemente, a exis­ tência de um m undo transcendente que valesse a pena. Foi por­

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tanto por insuficiência de dualism o em seu arcabouço teórico que o taoism o colou sua “ imagem de m un do” ao m undo desde sem ­ pre existente, à pura imanência, o que o levou a se ajustar harm o­ niosamente ao velho pensam ento m ágico, y com pris o m agism o arcaico das cam adas populares, reabastecido agora e revalorizado por um racionalism o de tipo holístico-m etafísico de aceitação e afirm ação do mundo. Diferentemente do confucionism o dos literati, religião ofi­ cial e “ irreligiosa” que, se não perseguia a m agia popular, pelo m enos a discrim inava e desvalorizava, o taoism o a acolheu gene­ rosamente e, nutriz, nunca a deixou de retroalim entar. N a seção “ R acionalização sistem ática da m agia” do capítulo VII, Weber descreve a longa duração e permanência dessa amigável relação entre religião e m agia com o uma relação de recíproca polinização, que de fato se m ostra muito distante, na form a e na direção, do antagonism o que entre am bas se desenvolveu no Ocidente judaico-cristão. Reinhard Bendix, no com entário que dedicou a esse ensaio em seu livro pioneiro59 de 1960, M ax Weber: An Intellec­ tual Portrait, deu a devida atenção à referida seção, dela fazendo um resumo que vale a pena transcrever: Com essa expressão — racionalização sistem áti­ ca da m agia — W eber queria dizer que o conhecimen­ to em pírico e a habilidade dos artesãos [chineses] se desenvolveram no sentido das ideias e práticas m ági­ cas. Devido a seu suposto significado m ágico, o conhe­ cimento do calendário foi utilizado em prim eiro lugar na alocação do trabalho agrícola segundo as estações apropriadas, m as subsequentemente tornou-se a base para a alocação das tarefas e deveres rituais concer­ nentes ao Cosm os. A utilização m ágica do calendário

59 Pioneiro, pelo menos, no generoso tratamento que dava aos ensaios de Weber sobre o judaísmo antigo e as grandes religiões do Oriente.

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tornou-se fonte de lucro para os adivinhos oficiais. Em ­ bora a astronom ia fosse cultivada, a astrologia flores­ ceu na medida em que m agos e feiticeiros usavam fe­ nôm enos tais com o a visibilidade de Vênus, terrem o­ tos, nascimentos m onstruosos e m uitos outros como sinais reveladores em cima dos quais decifravam se os espíritos estavam ou não pacificados. Do mesmo modo, a medicina e a farm acologia chinesas desenvolveram-se no sentido mágico, caracterizado pela busca de plan­ tas que prolongavam a vida e pela crença de que o cor­ po humano estava relacionado com elementos naturais, com o o clima e as estações. Acreditava-se tam bém na possibilidade de obter curas por meio de ginásticas e de técnicas respiratórias destinadas a arm azenar o fô­ lego, considerado como o portador da vida. A geomancia, ou a prática de adivinhação por meio de desenhos aleatórios com postos por poeira, pontos ou pedregu­ lhos, era em pregada para determinar não só a época apropriada para a construção dos edifícios, m as tam ­ bém sua form a e localização. Isso, por sua vez, levou à ideia de que as form as das m ontanhas, das pedras, das árvores, das águas e de outros objetos tinham sig­ nificado prem onitório. [...] W eber acreditava que o taoism o, ao encorajar essas crenças populares, ajudou a criar uma imagem de m undo, um a cosm ovisão, se­ gundo a qual espíritos caprichosos eram capazes de, sem qualquer m otivação, praticar ações de todo tipo, e que a fortuna ou infortúnio das pessoas dependia da eficácia de encantam entos e desencantam entos. Esta imagem de um “ jardim encantado” tinha significado especial para a vida econôm ica: por questão de princí­ pio, o taoism o era contrário a quaisquer inovações, pois elas tendiam a provocar a ira dos espíritos. Com efei­ to, a crença nos espíritos levou à ideia de que todo ar­ tifício técnico e todo empreendimento do tipo constru-

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ção de estradas, canais ou pontes era perigoso e reque­ ria precauções m ágicas especiais. (Bendix, 1986: 124125, grifo meu) Cham ar de “ jardim encantado” a essa encantaria em pro­ fusão não me parece nenhum exagero literário-sensorial da p ar­ te de M ax Weber. É concisão. N ão bastasse a exuberância toda do m agism o ali, que é popular e de elite, as grandes doutrinas religiosas asiáticas (e quando diz asiáticas W eber está se referin­ do empiricamente apenas à China e à índia, se bem que às vezes ao Jap ão ) foram criação de intelectuais inseridos em estratos so ­ cial e politicam ente privilegiados, com a vantagem , portanto, de não se verem suas elucubrações intelectualistas expostas à com ­ petição da parte da profecia ética, cu jos p ortad ores, segundo Weber, são sempre os estratos plebeus das cidades, os estratos “ cid ad ão s” . O conhecimento que os intelectuais religiosos das cam adas privilegiadas asiáticas produziam era, antes de m ais n ada, cosm ológico-reflexivo e não teleológico-produtivo, para usar aqui antigas sugestões de H aberm as (1987a: 45s). Weber refere-se a eles com o “ intelectuais que encaram a vida e ponde­ ram seu sentido com o pensadores, m as não com partilham suas tarefas práticas com o fazedores” (índia: 177). Sua atitude perante o m undo está tipificada na figura do brâm ane indiano que se vê e se porta com o “ m ago ordenador do m undo” (E & S: 512). N a índia, a própria casta sacerdotal é com posta de m agos: sacerdo­ tes que pensam m agicamente, agem m agicamente, am eaçam m a­ gicamente, adm inistram m agicam ente os bens de salvação. Um pouco com o ocorria, mutatis m utandis, na Idade M édia católica, cultura na qual — lascou W eber sem rodeios n’A ética protes­ tante — “ o sacerdote era um m ago” [der Priester w ar ein Magier] (PE/GARS I: 114; EPbras: 81; ESSR I: 117).60

60 “ Com efeito” , comenta Paul Ladrière, “ para Weber a Idade Média europeia é a época do contraste entre uma religiosidade cristã genuinamente

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Tam bém no budism o popularizado ocorreu um processo de “ m agificação” do serviço divino, à sem elhança do catolicism o medieval. E, se prestarm os atenção, vam os ver que enquanto no judaísm o antigo e no m oderno cristianism o W eber identifica um processo de “ desm agificação” da relação religiosa, na índia, na China e na Europa medieval e até m esm o no Islã, ele identifica o processo inverso, de M agisierung [m agificação] da religiosidade (cf. W uG: 2 8 4 ; EeS I: 320). Exem plos m áxim os: o taoism o desde o princípio e o budism o tardio. A intelectualidade plebeia heterodoxa acabou secretando na China um a cam ada de m istagogos totalmente indulgentes com a m agia popular. R eligiosam ente am bíguos, eles eram sacerdotes-m agos que, por baixo do pan o de um a autoproclam ada hete­ rodoxia taoista, na verdade condescendiam largamente com o en­ tranhado apego das m assas aos expedientes da feitiçaria, cuja ca­ suística há milênios acolhia interesses “ religiosos” intraterrenos tipicamente representados em dem andas do tipo: “ com o alcan­ çar longevidade” , essa obsessão oriental quase tipo ideal. Dife­ rentemente dos profetas de Israel, o que os intelectuais taoistas fizeram em última análise foi sistem atizar a m agia popular, in­ corporando-a numa m etafísica religiosa inclusiva que na origem parecia caracteristicam ente “ intelectualista” , e por isso, lembra Weber, mística e escapista, tão incapaz quanto a m agia de racio­ nalizar a vida cotidiana (China: 199ss; cf. Sadri, 1992: 61-64).

ética (que tinha as cidades como sedes e os estratos cidadãos como portado­ res) e um cristianismo que assume os traços característicos de uma religião ritualista e formalista — mágica, numa palavra — moldado de acordo com os interesses materiais e ideais dos estratos feudais dominantes. A nobreza guerreira e as forças feudais não tinham nenhuma propensão a se tornar portadoras de uma ética religiosa ativa. E próprio do guerreiro afrontar com coragem e valentia a morte e a irracionalidade do destino. Ele não exige de sua religião senão que ela o proteja contra aquilo que a seus olhos são feiti­ ços maus, magia negra, e lhe assegure os ritos cerimoniais adequados à ideia que ele faz da dignidade de seu status social” (Ladrière, 1986: 111).

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N a China, tanto a ortodoxia (o confucionism o) quanto a heterodoxia (o taoism o) foram originalmente religiões de intelec­ tuais, não da m assa (cf. M olloy, 1980). O primeiro exem plificava a indiferença burocrática para com os sentimentos religiosos, e o segundo condensava a fuga do m undo individualista para a torre de m arfim (China: 143ss), assim com o, de sua parte, tam bém o fazia uma ala do budism o. A ortodoxia confuciana, de um lado, tolerava os traços mais arraigados da religiosidade popular, tais com o o culto dos an tepassados e a coação m ágica dos espíritos, e do outro, m enosprezava (e só em raríssim as ocasiões chegou a combater) o escapism o individualista prom ovido pelo budism o e pelo taoism o. Este últim o, por sua vez, procurou cevar form as bem -sucedidas de com prom isso risonho e franco com a religiosi­ dade m ágica do povo. O taoism o, anota W eber, procedeu a uma farta e radical incorporação da m agia em sua própria identidade religiosa (China: 152-153; 191-192). Entre taoism o e m agia ha­ via — e há todavia — mais que afinidade eletiva: há conivência, cum plicidade, colaboração e incentivo m útuo. O u mais que isso até: interpenetração, fusão, indiferenciação. Esse é o efeito de sen­ tido que me sugere, em relação ao taoism o por sua visão mágico-monista-simpática do universo, a m etáfora do jardim encantado. D o meu ponto de vista ocidental — e, portanto, contam i­ nado de “ orientalism o” (cf. Said, 1990; Turner, 1994) — o que m ais surpreende dentre os aspectos trazidos à baila pela análise que Weber faz da China, repito, é a descrição das boas relações da m agia com as duas grandes religiões chinesas, o confucionis­ mo e o taoism o. Relações diferenciais com uma e com outra, m as de todo m odo positivas, relações de boa vizinhança no mínimo, e quase sem pre. T an to a religião oficial quanto a h eterodoxa m anifestaram com placência, quando não benevolência, com o m agism o constitutivo da religiosidade das m assas. As racionali­ zações religiosas que tiveram lugar na China não chegaram a de­ senvolver, nem teórica nem praticam ente, m otivos de desvalori­ zação da m agia em sua significação positiva de salvação. E o medo dos inúmeros tabus que im peravam sobre a vida cotidiana das

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m assas continuou a em perrar de tradicionalism os irracionais a vida econômica. “ E perm aneceu com valor religioso apenas o racionalmente ético” é uma frase que diz tudo. É exatam ente esse o meu ponto neste ensaio, e a definição literal de desencantam ento me permi­ te desenvolvê-lo com muito menos subjetivism o interpretativo e uma dose bem m aior de objetividade intersubjetiva no trato com as form ulações de Weber. É disso m esm o que se trata quando Weber enuncia o conceito. A saber, que no processo de desmagificação do m undo está mais do que im bricado com o fator causal sine qua non o processo de eticização da religião; im plicados am ­ bos os processos, intricados e, até onde vai a ideia de Ocidente em Weber, inextricáveis. Em term os w eberianos, parece-me que tem todo cabim ento dizer que o processo de desencantamento do m undo está sobredeterm inado pela em preitada de m oralização religiosa em seu form ato judaico-cristão: em parte causa, em parte consequência. Pois que a religião só se m oraliza efetivamente, só se torna em seu cerne uma ética religiosa consequente, consistente e vinculante se se extirpa de seu seio não só a ação isolada orien­ tada m agicam ente, m as principalmente a m agia com o atitude e m entalidade. N ão é outro o sentido de fundo deste ensaio com o um todo, o prim eiro a aparecer na com posição deste vasto p ai­ nel tipológico-com parativo de sua grande obra substantiva da m aturidade, a Ética econôm ica das religiões m undiais. Q uando a religião se moraliza “ para valer” , ela desencanta o mundo; e vice-versa, quando uma religião se desm agifica “ até o fim ” , não res­ ta outro cam inho àqueles que a seguem a não ser o ativism o ético-ascético no trabalho profissional cotidiano. A China não co ­ nheceu isso, pois permaneceu encantada. Zaubergarten — jardim encantado — é a feérica imagem com que W eber se permite pintar m etaforicam ente a China pelo menos duas vezes (GA RS I: 4 8 4 6t e 513). N o estudo sobre a ín-

61 “ Essa filosofia e cosmogonia chinesa ‘universista’ transformava o

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dia há o m esmo número de menções, duas (GA RS II: 278 e 371). N um a delas, ao tratar da popularização do budism o em sua ver­ tente M ah ayan a, W eber parece tão em penhado em sublinhar retoricamente esse processo de “ m agificação” em escalada, que ele não resiste a um pleonasm o: alude a “ todo um m undo” que o excesso de ritualism o desse budism o popularizado transform ou “ num imenso jardim encantado m ágico” (grifo meu) \in einem ungebeuren magiscben Zaubergarten] (GARS II: 278). N a m ono­ grafia sobre o judaísm o antigo, ao contrastar a religião de Israel com a religião da índia, ele fala uma vez em jardim encantado: “ O mundo do indiano permaneceu um jardim encantado irracio­ n al” [ein irrationaler Zaubergarten]62 (GA RS III: 237). N a con­ clusão do estudo sobre a índia, é digno de nota o fato de Weber aplicar a im agem do jardim encantado a toda a “ religiosidade a siática” , e não apenas à da índia. N a cultura asiática em seu conjunto, generaliza ele, “ não havia nem um a ética prática nem uma m etódica de vida racionais que conduzissem para fora des­ se jardim encantado da vida toda, para dentro do ‘m undo’ ” [aus diesem Zaubergarten allen Lebens innerbalb der “ Welt” ] (GARS II: 371). Esse enunciado sobre o “ jardim encantado da vida to d a” que m ais afasta do que aproxim a as pessoas de sua tarefa intramundana, que m ais retira do que mergulha os indivíduos na “ dem an­ da do d ia ” , funciona com o o fechamento lógico-explicativo de todo um parágrafo de grande força estilística, no qual a palavra Z auber (encantamento, spell, feitiço) é insistentemente repetida.

mundo num jardim encantado [Zaubergarten]. Cada conto de fadas chinês revela o enraizamento popular da magia irracional. Pululam pelo mundo fe­ rozes deuses ex machina que por capricho são capazes de tudo. A única aju­ da é o contrafeitiço” (China: 200; GARS I: 484; ESSR I: 478). 62 A frase “ ein irrationaler Zaubergarten" adquiriu em inglês um no­ vo charme, na tradução de Hans Gerth e Don Martindale: “a garden o f irra­ tional charm” (AJ: 222). A polissemia é sempre uma charmosa tentação.

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É com o se W eber quisesse mimetizar, com a repetição e o espar­ rame obsessivo do vocábulo, a onipresença da m agia nas gran­ des culturas asiáticas, o “ encantam ento universal(izado)” para todos os setores da vida, invadindo tam bém “ a vida econômica cotidian a” . A repetição vocabular cria a im pressão im agética e encantatória do alastram ento geral, ubíquo e contum az, das cren­ ças e práticas de feitiçaria. A esse mundo sumamente antirracional do encan­ to mágico universal [des universellen Zaubers] pertencia tam bém a vida econômica cotidiana, e nenhum cam i­ nho daí partia rumo a uma conduta de vida intramundana racional. O encantam ento [Z au b er] não só era meio terapêutico, com o tam bém servia para produzir nascim entos, e particularm ente nascimentos m asculi­ nos, para p assar nos exam es ou para assegurar a con­ secução de todo tipo de bens terrenos im agináveis — encantam ento |Zauber] contra o inim igo, contra os com petidores eróticos ou econôm icos; encantam ento [Zauber] para o orador ganhar a causa jurídica, encan­ tamento [Zauber] do credor para pressionar a execução do devedor, encantamento [Zauber] para conseguir do Deus da riqueza o sucesso das em presas. T udo isso na form a grosseira da m agia de ataque [Zwangsmagie] ou na form a refinada da persuasão de um Deus ou dem ô­ nio funcional por meio de oferendas. Com tais m eios, a vasta m assa dos asiáticos iletrados e m esm o dos le­ trados procurava levar a vida de todo dia. N ão havia nem um a ética prática nem uma m etódica de vida ra ­ cionais que conduzissem p ara fora desse jardim en­ cantado [Zaubergarten] da vida toda, para dentro do “ m undo” . (G A RS II: 3 70-371; ver ESSR II: 353) O ra, m agia implica necessariam ente tabu ritual, ritualism o dos brabos, e tabu ritual é estereotipia de form as, diz Weber, de

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form as estéticas sem dúvida, m as não só: norm as alim entares, regulação do espaço físico, alocação de tarefas, proibições de toda ordem. Estereotipia é fixação, é apego congelante ao que sempre foi e sempre será. E tradicionalism o, portanto. Pois muito bem, que melhor lugar do que a China para se observar de perto as im ­ plicações e consequências não antecipadas do respeito absoluto ao ritual e às tradições? M agia implica isto: tradicionalism o. E se a racionalização religiosa específica da China, a ortodoxa e a he­ terodoxa, não rompe com a m agia, não quebra o feitiço porque não consegue, isto significa que o tipo de racionalism o religioso que se desenvolveu na China foi incapaz de injetar nos indivíduos a m otivação interior suficiente — e sabem os desde a primeira ver­ são d’A ética protestante que para Weber o fator motivacional tem peso explicativo crucial — para antagonizar o tradicionalism o e com ele rom per. Veja-se o paralelism o de ideias: rom per com a tradição = quebrar o feitiço. Para rom per o círculo m ágico dessa pura im anência ani­ m ada,63 só m esm o a profecia eticamente exigente enviada “ de fo ra ” por um Deus “ outsider” a esse jardim povoado de potên­ cias invisíveis — e irracionais, porquanto “ capazes de tudo por puro cap rich o” — um Deus único supram undanam ente ético. M onoteísm o é básico para a erradicação da m agia. Para romper a inércia da racionalidade m ágico-prática que faz do m undo um jardim de m aravilhas m as tam bém de m edo, aguçando no indiví­ duo o desejo de se livrar do medo do feitiço [Befreiung von der A ngst vor den bösen Z aub er] (W uG: 3 2 0 ; EeS I: 3 56), só m esmo a racionalidade ético-prática da ascese pedida pelo Deus ético em meio a um mundo “ desvalorizado” com o corrupto: sem Deus, sem valor. E isso, somente com a alavanca da profecia ético-emissária tal com o narrada no Antigo Testam ento, peculiar invenção da

63 “ Desencantar o mundo é destruir o animismo” , vão definir Ador­ no e Horkheimer nos anos 40 (1985: 20).

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cultura religiosa ju d aica, elo-chave na cadeia cau sal histórico-explicativa do desenvolvimento do racionalism o ocidental. Ao contrário, pois, do que afirm a R andall Collins (1986), parece que com o p assar do tem po a ênfase de Weber sobre as consequências econôm icas das crenças e práticas religiosas só fez crescer, conform e se depreende da leitura atenta dos estudos so­ bre a religiosidade da China e da índia. A análise tipológica que W eber faz dessas altas culturas asiáticas com parando-as com o m ainstream da cultura ocidental reprocessa um a vasta casuística de exem plos heterogêneos, m ostrando que a religião e a m agia geram , sim, lá com o aqui, consequências sobre a atividade eco­ nôm ica.64 Consequências indiretas, vá lá, m as aos olhos de We­ ber as consequências indiretas não são necessariamente menos im­ portantes que as consequências diretas. Autor do conceito histórico-cultural de “ p arad o x o das consequências” (que, diga-se de passagem , recebe sua definição m ais explícita justamente na con­ clusão do estudo sobre a China, cf. G A RS I: 524; China: 238), não seria em Weber — e em nenhuma de suas “ fases” produtivas — que iríam os encontrar qualquer m enoscabo das consequên­ cias indiretas. M uito pelo contrário. N ão só toda a análise da influência do protestantism o puritano sobre a conduta de vida dos em presários capitalistas na fase do “ capitalism o h eroico” está perpassada de ponta a ponta pela noção de “ consequências não antecipadas” de duas ou três ideias religiosas sobre o desenvolvi­ mento racional da técnica e da econom ia m odernas, com o tam ­ bém todos esses seus estudos com parativos sobre a “ ética econô­ m ica” das grandes religiões, para não falar do ensaio sistemático de Sociologia da Religião em Econom ia e sociedade.

64 Apenas um exemplo a mais: na India, a proibição de mudar de ocupação imposta pelo tabu do sistema de castas foi um fator que impediu a destruição da organização das guildas (Birnbaum, 1953: 137), um obs­ táculo importante ao desenvolvimento mais racional de uma economia li­ vremente capitalista, baseada nos impulsos econômicos individualistas do ethos capitalista burguês (ver FMW: 322; SPro: 370).

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Correlacionando diretamente m agia com estereotipia65 e, por conseguinte, com estagnação e tradicionalism o, à medida que avançam seus estudos histórico-com parativos entre as altas cultu­ ras Weber passa a considerar sempre mais a questão da “ rem oção da m agia” na chave da “ rem oção de ob stácu los” ao desenvolvi­ mento do capitalism o. Essa tese, aliás, não custa lem brar, tem-se constituído desde então num dos eixos da teoria da m odernização (cf. Eisenstadt, 1968). Em diferentes m om entos dos estudos com ­ parativos sobre a religiosidade da China, da índia e do Oriente M édio, esta é uma outra chave a partir da qual a m agia p assa a ser tratada: com o obstáculo que é [H indernis], barreira |Scbranke\; entrave [Hem mung} a uma racionalização ética da conduta de vida “ eletivamente afim ” à racionalidade econômica do capi­ talism o moderno. N o estudo sobre a China Weber não se cansa de apontar para esta outra verdade sociológica da m agia, a saber, que olhada do ponto de vista do potencial de desenvolvimento econômico, a irra­ cionalidade prática do m agism o aparece, aos olhos do observador europeu, a um “ filho da m oderna civilização europeia” (AIntro/ GARS 1 :1), sob a form a do tradicionalism o m agicam ente sancio­ nado. Esse efeito de estereotipagem próprio de todo apego m ágico à eficácia da fórmula representa na verdade o grande “ obstáculo” a um a racionalização da vida dotada de consistência e “ m otivos constantes” (cf. PE/GARS I: 117; EPbras: 83), na medida em que “ em perra” a instalação, nos indivíduos, de uma personalidade ati­ va unificada identitariamente por dentro. O lhada desse ponto de vista, a m agia não é apenas irracional, m as “ anti” -racional. O en­ raizamento da magia atravanca o fluxo racional da vida cotidiana. Através do que já expusem os ficou perfeitam en­ te claro: que no jardim encantado [Zaubergarten] da

65 Weber faz isso explicitamente na História geral da economia (ver adiante, passo 13).

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doutrina heterodoxa (o taoism o), sob o poder dos cronom antes, geom antes, hidrom antes, m eteorom antes, a par de uma abstrusa e tosca concepção universística da unidade do mundo e faltando todo conhecimento científico-natural, em parte causa e em parte consequên­ cia daqueles poderes elementais, com tantos prebenda­ dos dando apoio à tradição m ágica em cujos rendimen­ tos estavam interessados, estava simplesmente barrada um a econom ia racional e uma técnica de tipo ociden­ tal m oderno. A m anutenção desse jardim encantado [dieses Zaubergartens] era uma das tendências m ais íntimas da ética confuciana. (China: 227; ESSR I: 505506; G A RS I: 513, grifos do original) O nome “ desencantam ento” pode às vezes não ser m encio­ nado, e de fato não aparece no estudo sobre a índia, nem no es­ tudo (pasme o leitor!) sobre o judaísm o antigo, mas sua ideia está sempre ali, o tempo todo, vivamente presente. Pois está lá, o tem­ po inteirinho, a m agia com o obstáculo, entrave, travação, pedra no cam inho a ser removida da m entalidade ou atitude ou orien­ tação econôm ica.66 A consideração da m agia com o obstáculo, estorvo, entrave permite a leitura do desencantamento com o desem baraço. Se a s­ sim é, fica terminantemente descartada do sentido literal de de­ sencantamento do m undo toda a carga m elancólica que o concei­ to m uitas vezes assum e em com entaristas com pendor para o Kulturpessim ism us. D esencantam ento é desatravancam ento, livra­ mento, liberação. Befreiung, release. Com o o carism a, aliás. Que irrompe para rom per, para escancarar portas, abrir cam inhos de saída. Com o a profecia.

66 “ M entalidade” , “ atitude” , “ orientação” são, todas, traduções pos­ síveis, e boas traduções, de um termo alemão usadíssimo por Weber, Gesin­ nung. Pode também ser traduzido por “ convicção” , como em “ ética de con­ vicção” , Gesinnungsethik.

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Em poucas palavras, a tese de Weber no ensaio com parativo sobre a China era a seguinte: sem a desm agificação que o ju daís­ mo operou e hereditariamente transmitiu ao cristianismo, não teria havido o racionalism o de dom ínio do mundo que caracteriza o desenvolvimento do Ocidente. Trata-se, pois, de uma com p ara­ ção entre racionalismos. D ado que no Oriente os obstáculos m ági­ cos não foram removidos pela religiosidade racionalizada dos seus intelectuais típicos, fica explicada a grande diferença nos respec­ tivos processos de racionalização e nos racionalism os resultantes. Em Weber, vale a pena anotar, não se trata apenas de olhar para essa guerra antim agia do ponto de vista geral da “ gênese e estrutura do cam po religioso” , da ótica nom ológica de uma so ­ ciologia geral da religião à maneira de Bourdieu (1974), mas trata-se tam bém de olhar para a m agia com o obstáculo histórico concreto a uma determinada form a de racionalização objetivadora das relações sociais e da atitude econômica. De todo m odo, não dá para esquecer que, do ponto de vista que Weber nos oferece em seus estudos com parativos, m agia é fixidez, é inércia ritualista, é tradicionalism o: “ a crença na m agia conduz à inviolabilidade da tradição” [die Unverbriicblichkeit der Tradition], Vejam os: O contraste [do puritanism o] com o confucionismo é claro. A m bas as éticas tinham suas raízes irra­ cionais: lá a m agia, aqui os desígnios finalmente ines­ crutáveis de um Deus supram undano. M as, tendo em vista que os meios m ágicos já com provados e, final­ mente, todas as form as adquiridas de conduta de vida, permaneciam inalteráveis sob pena de atrair a ira dos espíritos, a crença na m agia conduz à inviolabilidade da tradição. Em confronto com isso, a consequência da relação [puritana] com o Deus supram undano e com o mundo eticamente irracional e corrom pido em sua condição de criatura foi a absoluta não sacralidade da tradição, e a tarefa absolutam ente infinita do trabalho reiterado no controle e dom ínio eticamente racional do

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m undo dado: a objetividade racional do “ progresso” . Portanto, em face da adaptação ao m undo, ali, punha-se aqui a sua transform ação racional. (GA RS I: 527; CP: 155, grifo meu) A firm ação do m undo lá, aqui desvalorização do m undo = jardim encantado lá, aqui m undo desencantado = adaptação ao m undo lá, aqui dom inação do mundo. Sabe quanto dista o Oriente do Ocidente? Weber parece que sabia.

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10. PASSOS 5 E 6: C O N S ID E R A Ç Ã O IN T E R M E D IÁ R IA (1 9 1 3 ,1 9 1 5 )

Quem quiser “ visões” , que vá ao cinema! [...] Quem quiser “ sermões” , que vá ao convento! M ax Weber, AIntro: 14

BREV E N O T ÍC IA DA O BRA Em inglês, a Zw ischenbetracbtung vem sendo cham ada de Intermediate Reflexions, no plural. N ão vejo necessidade do plu­ ral. O s tradutores para o espanhol preferiram dar-lhe o anódino título de Excurso (cf. ESSR I: 527), m as tam bém essa não me p a ­ rece uma boa solução, já que deita a perder a ideia de um m ódu­ lo “ inter’’-calado, efeito de sentido visado com o uso do prefixo alem ão zwischen, uma preposição que tem correspondência di­ reta no inglês between, “ entre duas coisas ou p esso as” , mas não nas línguas latinas. A Consideração interm ediária, título no sin­ gular já adotado por m uitos no Brasil, foi propositalm ente co lo­ cada por W eber “ entre” o ensaio sobre as religiões da China e o ensaio sobre as da índia, e isso já na primeira edição, em 1915. Neste espírito, solução melhor que a castelhana foi encontrada em francês, onde, em tradução publicada nos Archives de Sciences Sociales des Religions (vol. 61, n" 1; cf. W eber, 1986), o ensaio leva o nome de Parentbèse tbéorique. Já ouvi alguém dizendo em português “ interlúdio teórico” , o que me pareceu uma forma justa de traduzir Zw ischenbetracbtung, ainda mais depois que Weber acrescentou-lhe ao subtítulo a palavra “ teoria” , deixando com isso o subtítulo ainda m ais forte, que forte já era por falar não só dos “ estágios” m as tam bém das diferentes “ direções” da rejeição do m undo pelas grandes religiões.

Passos 5 e 6: Consideração intermediária

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N a versão final em alem ão, que fez publicar em 1920 no volume I dos Ensaios reunidos de Sociologia da Religião ainda sob sua supervisão, W eber acrescentou ao subtítulo a palavra ‘"Theorie'” , e o título definitivo ficou sendo o seguinte: Zwischen­ betrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen religiöser Welt­ ablehnung (cf. G A RS I: 536-573). Em português seria, ao pé da letra: “ Consideração intermediária: teoria dos estágios e direções da rejeição religiosa do m undo” . O subtítulo anterior, de 1915, dizia apenas “ Estágios e direções da rejeição religiosa do m undo” . O fato de decidir estam par a palavra “ teoria” na fachada da últi­ ma versão do ensaio m ostra m uito da crescente estatura que We­ ber passou a lhe atribuir no decorrer dos últimos cinco anos de sua vida. D a ótica da presente pesquisa, o fato de que o vocábulo desencantamento seja usado por duas vezes num texto desse porte teórico e com tal significação biográfica constitui por si só uma inform ação factual nada desprezível. Já ficou dito nos passos 2 e 4, relativos à “ Introdução” e à Religião da China, que a Consideração interm ediária veio a pú­ blico na revista Archiv für Sozialw issenschaft und Sozialpolitik no final de dezem bro de 1915, tendo sido escrita “ dois anos an­ tes” , em 1913. Em 1919-20, enquanto preparava sua coletânea de ensaios em Sociologia da R eligião em três volum es, W eber revisou pela última vez a versão da Zw ichenbetrachtung que ha­ via aparecido no n° 41 do Archiv em dezembro de 1915. Ou seja, “ Weber trabalhou nesse texto até bem pouco tem po antes de sua m orte” , salienta Schluchter (1979c: 61), em bora haja muitas evi­ dências de que justam ente as passagens que m encionam o desen­ cantam ento foram redigidas p ara a segunda versão, escrita em 1913 (cf. Grossein, 1996: 51-129). Ensaio altamente teórico, cabendo-lhe com toda a justiça o elogio de ensaio filosófico,67 a

67 São os intérpretes e comentaristas atuais do pensamento de Weber que em sua quase totalidade avaliam a Consideração intermediária como o texto mais altamente filosófico de sua vasta produção, só comparável em

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Zwischenbetrachtung não se produziu de imediato na form a como a conhecemos, não sobreveio assim de estalo. E fruto de diversas com posições e recom posições. Existem três versões sucessivas (cf. Schluchter, 1979c: 60), sendo que só as duas últimas receberam tal título. A versão definitiva, de 1920, figura nas últimas p ági­ nas (536-573) do volume I dos Ensaios reunidos de Sociologia da Religião [G A R SI], o único totalmente preparado por Weber ainda em 1920, logo antes de morrer.

C O M E N T Á R IO E na Consideração intermediária que Weber desenvolve sua tipologia das esferas de valor [W ertspbáren], E o faz de um du­ plo ponto de vista, o de sua bem conhecida teoria da diversidade dos processos de racionalização e o de uma teorização sua, me­ nos conhecida, sobre a cultura com o conflito dos valores. Isso resulta numa teoria da m odernização cultural enquanto autono­ m ização das esferas de valor crescentemente racionalizadas, e ra­ cionalizadas em diferentes direções e sob diferentes pontos de vis­ ta. Desse m odo, o tema central da Consideração intermediária é a racionalização cultural do Ocidente, que Weber disseca em ter­ m os de diferenciação, autonom ização e institucionalização das diferentes ordens de vida \Lebensordnungen] e condensa em ter­ m os plásticos, m etafóricos, na imagem helenizante de um “ poli­ teísmo dos valores” (cf. tb. Neutr: 141s; SWert: 507s). E por isso que desde já me interessa m arcar o rumo desse com entário fazendo a seguinte observação: politeísm o em Weber é uma m etáfora para representar a m odernidade cultural na me­ dida mesma em que remete ao “ m undo encantado” da Antigui­ dade clássica, ao m undo das “ altas culturas” [Hocbkulturen] do

ambição filosófica e pathos existencial à conferência de 1917 sobre A ciên­ cia como vocação.

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mundo antigo. N a conferência sobre A ciência como vocação feita quatro anos mais tarde, ele vai deixar transparecer mais ainda esse seu ponto de vista quando cita aqui e ali nomes de deuses da m ito­ logia grega. Ele aqui vê o politeísm o helénico de uma perspectiva histórico-evolutiva, mas o faz olhando-o pelo avesso, isto é, da perspectiva da crescente im posição e autoafirm ação do m onoteís­ mo judaico-cristão, o detonador histórico do desencantam ento religioso do mundo. Com efeito, na ideia de desencantamento há efetivamente essa faceta de despovoam ento dos panteões, de es­ vaziam ento e deslegitim ação do politeísm o pelo m onoteísm o. O desencantamento do m undo pelo m onoteísm o ético atra­ vessa com o um vetor o Ocidente no bojo da milenar dom inância cultural de uma imagem de m undo m etafísico-religiosa crescen­ temente unificada e internamente sistematizada, que terminou por se im por com o fundam ento legítimo da ordem social com o um todo. Com o advento da m odernidade e a ruptura dos laços tra­ dicionais por uma série de fatores, inclusive no plano cultural e no da personalidade, Weber diagnostica uma importante inflexão no processo de racionalização ocidental: agora é possível conce­ ber a esfera dom éstica e a econom ia, a política e o direito, a vida intelectual e a ciência, a arte e a erótica, independentemente das fundam entações axiológicas religiosas. C ada esfera de valor, ao se racionalizar, se justifica por si mesma: encontra em si sua pró­ pria lógica interna — uma legalidade própria [Eigengesetzlichkeit] — que a leva a se institucionalizar autonom am ente e a se consolidar e se reproduzir socialmente pela form ação de seus pró­ prios quadros profissionais, encarregados de garantir precisamente sua autonom ia.6*^ Vim os no p asso 1 que em W eber o m undo encantado se as­ semelha antes de tudo ao caos, ao caos indiferenciado, ao impé-

68 Cabe assinalar desde já que as esferas culturais de valor autonomi­ zadas devem ser compreendidas em termos típico-ideais, cada qual “ agrupa­ da artificiosamente numa unidade racional” (ESSR I: 527).

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rio do m onism o m ágico que submerge deuses, espíritos, seres hu­ manos e tudo o mais “ na pura im anência” de um hom ogeneizado jardim de energias anímicas “ p o v o ad o ” de espíritos não tão su­ periores assim aos outros seres viventes, e quase tudo aí é ser vi­ vente, pois há sempre um ser “ divino” que se encantou nalgum elemento mineral, na água, na pedra, no raio. M as m undo encan­ tado em Weber tem a ver tam bém com o m undo já razoavelm en­ te diferenciado e incipientemente hierarquizado dos deuses funcio­ nais dos panteões politeístas, com seus inúmeros e desencontrados caprichos apesar de uma inegável hierarquização intraolím pica entre as figuras principais e secundárias e assim por diante até o mais reles dos semideuses. A guerra dos antigos deuses funcionais mantinha o m undo imanentemente encantado, ao m esmo tempo que tentava teoricamente racionalizar a vida, sem contudo alcan­ çar muito sucesso nisso, dada a volubilidade das emoções das di­ vindades em permanente desconcerto. Hoje, no m undo que o m o­ noteísm o triunfante no Ocidente desencantou, porque lhe “ uni­ ficou” e “ despovoou” a imagem de mundo religiosa, destituindo os deuses de seu panteão e m oralizando radicalm ente a religiosi­ dade na base do pecado e da internalização do senso de culpa, pre­ cipitou-se em consequência a instalação de um estado de tensão “ perm anente” e “ insolúvel” (dois adjetivos usados recorrente­ mente por Weber nesse contexto). Tensão entre os cálidos “ valo­ res deste m undo” objetivados em ordens de vida corresponden­ tes e “ o frio escárnio da ética da fraternidade universal de base genuinamente religiosa” (cf. R RM : 259; G A R SI: 562). Com isso, voltam os a viver num permanente “ estado de guerra” , e “ guerra de deuses” . É isso que significa estar sob a égide do “ politeísmo dos valores” (cf. Neutr: 141; SWert: 507). De novo, portanto, no mundo duplam ente desencantado pe­ la religião e pela moderna atitude científica, uma guerra politeísta. Ordens de vida conflitantes, valores últimos inconciliáveis, deu­ ses intram undanos irredutivelmente plurais e autodeterm inados, só que se trata agora, Weber vai dizer n’A ciência como vocação, de deuses “ desencantados” , e os valores últimos agora em luta são

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“ valores deste m undo” [Werten der Welt], sublinha a Conside­ ração interm ediária (GARS I: 544). Valores “ deste m undo” , mas exigentes, com o só os deuses do velho O lim po sabiam ser. De­ sencontrados em suas vontades e desconcertados ao lançar seus dardos, com o só os deuses de qualquer politeísm o sabem ser.69 E o que pede e impõe a lógica interna da falta de lógica unitária própria do politeísm o. “ D euses” , diz Weber, porém “ desencan­ tad o s” , mas nem por isso menos encantadores do que o foram em seus dias A poio, D ioniso, H era, Hermes, Afrodite... desencanta­ dos, m as nem por isso frios, glaciais, pelo contrário, ardentes, in­ flam ados, dardejantes na luta sem trégua que encetam uns con­ tra os outros. E todos contra “ o U n o” (cf. W aB/W L: 605), contra a pretensão monopolista do monoteísmo ético. N o mundo moder­ no radicalmente desencantado, mundo “ desdivinizado” pela pro­ fecia m onoteísta (GARS I: 254), mundo “ sem Deus e sem profe­ ta s ” (WL: 610), os melhores valores m undanos vêm se apresen­ tar a nós com o deuses sempre-já guerreiros, “ mortalmente hostis entre si” (Neutr: 142; SWert: 507s), leais apenas a si mesmos, obe­ dientes apenas à “ sua legalidade própria” . E, enquanto tais, guer­ reiam sem paragem , sem repouso, sem trégua uns contra os ou­ tros e a um só tempo contra “ o U no” , o sentido objetivo e unifica­ do que um dia expulsou do mundo a m agia, e lá se foi o “ sentido m ágico” de cada acontecim ento da vida. A ideia de esferas de valor autonom izadas e obedientes a uma lógica interna própria, W eber vai voltar a trabalhá-la du­ plamente em 1917, e am bas as vezes em contextos cujo assunto principal é a ciência: no ensaio m etodológico sobre O sentido da “neutralidade ax iológica” nas ciências sociais e econôm icas, cujo primeiro manuscrito data de 1913, mas que foi revisado para im­ pressão em 1917 (cf. N eutr), e na conferência sobre A ciência com o vocação. Em diversos m om entos nesses trabalhos emerge também esta que é uma das grandes m etáforas de Weber, a me-

hS> Haja vista, entre nós brasileiros, os orixás do candomblé.

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táfora do politeísm o — o “ irredutível politeísm o dos valores” — que im ediatam ente se desdobra nesta outra, a m etáfora da “ in­ conciliável guerra dos deuses” .70 Daí o comentário de Schluchter, para quem a Consideração intermediária nos oferece “ uma pers­ pectiva ilum inadora [...] sobre A ciência com o vocação, e con­ tém o diagnóstico da m odernidade e seus problem as de sentido” (Schluchter, 1979c: 64). Schluchter concorda com a avaliação de M itzm an quando este, em bora lançando m ão de datas erradas, escreve que “ as últimas páginas das Rejeições religiosas (1916) [NB: erro de data] e a segunda metade d ’A ciência com o voca­ ção (1919) [NB: segundo erro de data] revelam suas reflexões mais atorm entadas sobre o problem a da falta de sentido na socie­ dade m oderna” (M itzm an, 1971: 219). A ssociado à ciência m o­ derna, o conceito weberiano de desencantam ento se refere inescapavelmente ã “ perda de sentido” . N ão foi, portanto, na conferência de 1917 sobre A ciência com o vocação que Weber trabalhou pela primeira vez o conceito de desencantamento do m undo pela ciência. Pelo menos quatro anos antes dessa sua fala em M unique, ele dedicou toda uma se­ ção da Consideração interm ediária a este que a seu ver é o mais radical de todos os conflitos axiológicos: a luta entre a ética reli­ giosa da fraternidade e a esfera do conhecimento racional-intelectual, cuja expressão m áxim a é a ciência empírica m oderna. N o passo 5 W eber expõe a lógica própria do m oderno conhecimen­ to científico que, num a atitude experim entalista-instrum ental, potencializada pelo emprego do cálculo matemático, reduz o mun­ do natural a mero “ m ecanism o cau sal” , desem baraçando-o com

70 “ Qualquer meditação empírica sobre estas situações nos levaria, como bem observou o velho Mill, ao reconhecimento do politeísmo abso­ luto como única metafísica que lhe convém. [...] Porque no fim das contas e no que se refere à oposição entre valores, não só se trata sempre e em to­ das as circunstâncias de alternativas, mas de uma luta mortal e insuperá­ vel, comparável à que opõe ‘Deus’ e o ‘diabo’ ” (Neutr: 141).

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isso daquele sentido metafísico objetivo de “ cosm os ordenado por D eu s” (GA RS I: 564; R R M : 261). Imediatamente em seguida ao passo 5, W eber acrescenta, explicando: A consideração em pírica do m undo, e de resto aquela matematicamente orientada, desenvolve em ter­ m os de princípio a rejeição de toda form a de conside­ ração que de m odo geral pergunte por um “ sentido” do acontecer intram undano [nach einem “Sin n ” des innerweltlichen Geschehens fragt], (ZB/G A RS I: 564; ESSR I: 553) Vou me permitir aqui um pequeno excurso antes de prosse­ guir nos com entários. Q uero cham ar a atenção para esse dado “ biográfico” dos escritos weberianos: se, por um lado, de confor­ m idade com o testemunho do próprio W eber, a Consideração intermediária já se achava escrita em 1913 e se, por outro, os anos de 1912-13 circunscrevem justamente o período que inaugura o uso do term o desencantamento (ver passo 1), e m ais, se aí nesse período o termo desencantamento já é usado para dar conta tam ­ bém dos efeitos corrosivos da ciência experim ental m oderna so­ bre as pretensões de validade objetiva das visões de m undo que veem o m undo com o dotado de um sentido objetivo, penso en­ tão que m ais uma vez fica dem onstrada a tese que eu defendo nes­ ta pesquisa: a de que os dois significados do m esm o significante são coexistentes, coetâneos, concom itantes, e não sucessivos. Em 1904, no ensaio sobre A “objetividade” do conhecimen­ to nas ciências sociais e na política social, M ax W eber já deixara explícito que para ele era autoevidente que, com o advento uni­ versal dos m étodos científicos racionais, toda interpretação da história m undial com pretensões de aplicabilidade universal, fos­ se religiosa, científica ou filosófico-especulativa, noutras palavras, qualquer W eltanschauung, Filosofia da H istória ou “ filosofia de vida” havia sido esvaziada em sua pretensão de objetividade, sim­ plesmente impossível (cf. M om m sen, 1965). Quem não se lem­

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bra da fam osa passagem da parte introdutória do O bjetividade que fala da “ árvore do conhecim ento” , cujo tema é justamente a incapacidade do conhecimento científico de gerar sistemas de sen­ tido existencial? O destino de uma época que comeu da árvore do conhecimento consiste em ter de saber que não pode­ m os colher o sentido do decurso do m undo do resul­ tado da sua investigação por mais completo que ele seja, m as temos de estar aptos a criá-lo nós próprios, em ter de saber que “ visões de m undo” [W eltanschauungen] jam ais podem ser produto da m archa do conhecimen­ to empírico e que, portanto, os ideais mais elevados, que mais fortemente nos comovem , somente atuam no com bate eterno com outros ideais que são tão sagra­ dos para os outros quanto os nossos para nós. (Objekt/ W L: 154; Cohn, 1979b; M SS: 57, grifos do original) Para W eber, objetivo é o conhecimento científico; o sentido é subjetivo. O conhecimento científico objetivo, então, é radical­ mente distinto do conhecimento norm ativo produzido pelos m e­ tafísicos e profetas, e contido nas W eltanschauungen [visões de mundo] ou Weltbilder [imagens de mundo]. A ciência não p ro­ duz visões de mundo e não há orientação axiológica existencial global que p o ssa pretender em basam ento científico. A ciência esbarra aí nos seus próprios limites, limites honestamente intrans­ poníveis para um autêntico cientista. A ciência empírica é im po­ tente para arbitrar entre tom adas de posição valorativas diferen­ tes e não raro conflitantes (cf. Brubaker, 1984: 67). E também neste sentido, me parece, que “ a ciência é um poder especifica­ mente irreligioso” (FMW : 142), ou seja, o cientista no papel pro­ fissional de cientista não precisa ter “ ouvido musical para reli­ g iã o ” . Weber por diversas vezes confessou que não tinha “ ouvi­ do m usical” para religião. N esse ponto e nesse aspecto, ele foi sempre muito enfático.

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Em 1913, quando redige a segunda versão da C onsideração interm ediária, sua antiga convicção de que a ciência não substi­ tui a religião e nem a nenhuma outra form a de imagem holística do m undo vai se casar perfeitamente com sua nova concepção do processo de racionalização religiosa ocidental com o “ descentram ento” do m undo cultural hum ano em relação ao m undo natu­ ral das coisas e, portanto, com o “ naturalização” radical do “ mun­ do natural” (cf. H aberm as, 1987: 64). M as ali onde o conhecimento racional empírico realizou de maneira consequente o desencantamento do m undo e sua transform ação num m ecanism o causal, instala-se de um a vez por todas a tensão contra a pre­ tensão do postulado ético: que o mundo seja um co s­ m os ordenado por Deus e, portanto, orientado etica­ mente de m odo significativo, em caráter definitivo daí para frente. (G A RS I: 564; ESSR I: 553) A m etafísica religiosa, em consequência da atm osfera geral criada por essa atitude-m étodo da ciência m oderna especializada [Facbw issenschaft], acaba sendo redirecionada para o reino do irracional. “ Aquele grande processo histórico-religioso” de racio­ nalização teórica e prática das verdades e norm as de agir divina­ mente reveladas estaciona num determinado ponto, chega a seu termo, e de repente é com o se todo aquele edifício aparentem en­ te coerente principiasse a não m ais fazer sentido no âm bito do ra­ cional e, diante desse outro valor (que) m ais alto se alevanta, co ­ m eçasse a se desnudar, então, com o um processo “ sem sentido” de intelectualização com pretensão à doação de sentido e à vali­ dade racional. W eber não perde a chance de fazer interessante paralelism o vocabular entre o conteúdo de significado historicamente mais m oderno que o processo de desencantamento do m undo assum iu sob o dom ínio crescente da ciência e o desencantam ento enquan­ to rem oção da m agia da prática religiosa, este m uito anterior

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àquele com o fenômeno histórico-civilizacional. Ele emprega para am bos os processos o m esm o verbo “ d esalo jar” [verdrängen]:71 primeiro a religião (monoteísta ocidental) desalojou a m agia e nos entregou o mundo natural “ desdivinizado” , ou seja, devidam en­ te fechado em sua “ naturalidade” , dando-lhe, no lugar do encanto m ágico que foi exorcizado, um sentido m etafísico unificado, to ­ tal, m aiúsculo; m as depois, nos tem pos m odernos, chega a ciên­ cia em pírico-m atem ática e por sua vez d esaloja essa metafísica religiosa, entregando-nos um mundo ainda mais “ n aturalizado” , um universo reduzido a “ m ecanism o cau sal” , totalmente analisável e explicável, incapaz de qualquer sentido objetivo, menos ainda se for uno e total, e capaz apenas de se oferecer aos nossos m icroscópios e aos nossos cálculos m atem áticos em nexos cau ­ sais inteiramente objetivos m as desconexos entre si, avessos à totalização, um m undo desdivinizado que apenas eventualmente é capaz de suportar nossa inestancável necessidade de nele encon­ trar nexos de sentido, nem que sejam apenas subjetivos e provi­ sórios, de alcance breve e curto prazo. A ciência, na verdade, obriga a religião a abandon ar sua pretensão de nos propor o racional. Assim acuada, ela tem de se conform ar em nos oferecer o irracional, melhor, em retirar-se ela m esm a no irracional. A ciência remove a religião aus dem Reich des Rationalen ins Irrationale, “ do reino do racional para o irra­ cional” , reservando-lhe com o prêmio de consolação, “ pura e sim ­ plesm ente” , sublinha W eber, o status de “ potência irracional ou antirracional por excelência” .72 Se a ciência está “ em luta eterna com a religião” (WL: 154), não é na qualidade de “ visão de mundo científica” , uma visão de m undo que estivesse em concorrência

71 Conferir adiante, no comentário sobre o passo 13, o uso da expres­ são “die Magie zu verdrängen" (Wg: 309). 72 Weber emprega o artigo definido grifado: a potência irracional ou antirracional por excelência [die irrationale oder antirationale M acht] (ZB/ GARS 1: 564).

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com a imagem de m undo religiosa no m esmo nível de pretensão, mas apenas como aquele ímpio fado que desmente — “ a totalidade é uma m entira” , dirá um dia A dorno — a existência real de sen­ tido objetivo do mundo e da ação hum ana. E ainda por cima Weber vem e acrescenta no fim da frase um “ pura e sim plesm ente” [schlecbtbin] (GA RS I: 564). É o m esm o princípio que opera por trás da veemente recusa em reconhecer à ciência qualquer apti­ dão para produzir cosm ovisões doadoras de sentido ao m undo e à vida dos hum anos (cf. M om m sen, 1965; Cohn, 1979a). “ Quem quiser ‘visões’, que vá ao cinem a! [...]. Quem quiser ‘serm ões’, que vá ao convento!” , escreverá ele em 1920, separando mais uma vez, não sem uma ponta de hum or, as esferas do ser e do valor.73 M as a Consideração interm ediária nos entrega ainda, com o passo 6, uma outra chave de interpretação. Com mais essa chave penso que vam os estar aptos a afirm ar que em W eber o significa­ do literal de desencantamento do mundo com o desm agificação da busca da salvação talvez seja m esm o seu sentido m ais forte e de­ cisivo, na medida em que nada mais é que a outra face do p ro­ cesso de m oralização da prática religiosa, um processo histórico-religioso tipicamente ocidental e de sérias consequências para o viver humano. Além do m ais, com essa chave, vam os nos conven­ cer um pouco mais de que, em sua sociologia com parada das re­ ligiões, o que de fato lhe interessava não era principalm ente a racionalização teórica, a racionalização do conhecimento, a espe­ culação teológica, o racionalism o filosófico, nem m esm o a racio­ nalidade científica enquanto tal, m as sim , e antes de m ais nada, “ a racionalização do agir” , com o dizem os franceses (cf. Ladrière, 1986). D o agir cotidiano, melhor dizendo, da conduta de vida. N outras palavras, interessava a ele a racionalidade prática em seus

73 Vale a pena ler na íntegra os parágrafos finais da imperdível “ In­ trodução do autor” dos Ensaios reunidos de Sociologia da Religião que cos­ tuma acompanhar as traduções de A ética protestante e o espírito do capi­ talismo (cf. AIntro/GARS I: 14s; ESSR I: 23s; EPbras: 14s).

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dois leitos ou cursos principais: a racionalização prático-técnica e a racionalização prático-ética. O passo 6 deixa isso muito claro: E não foi só o pensam ento teórico que desencan­ tou o m undo, m as foi precisamente a tentativa da éti­ ca religiosa de racionalizá-lo no aspecto prático-ético que levou a este curso. (ZB/G A RS I: 571; ESSR I: 560) A intelectualização científica é sem dúvida fator decisivo de desencantam ento do mundo. A conferência de 1917 e o passo 5 na Consideração interm ediária não deixam dúvida quanto a is­ so. M as, enquanto fator histórico-genético detonador de todo esse vastíssim o processo histórico-cultural, a racionalização prático-ética da conduta de vida [Lebensführung] empalma-lhe com ple­ tamente a precedência na teorização w eberiana: a “ desm agificaçã o ” [Entzauberung| radical da prática religiosa pela “ eticização” [Ethisierung] radical da conduta de vida religiosa foi na verdade o verdadeiro Big Bang (M oscovici, 1990) do racionalism o práti­ co ao m odo do Ocidente m oderno. A prioridade cronológica é dela, assim com o tam bém é dela, na “ problem ática” \Fragestellung] de M ax W eber, no conjunto da obra, a prioridade analítica (cf. Hennis, 1993; 1996). E porque assim é, vale a pena neste momento atrasar em uns anos o relógio e ir ler, com calm a e atentam ente, sem m aiores com entários, um outro texto de M ax W eber absolutam ente sur­ preendente, porquanto praticam ente inédito entre nós, que pou­ quíssim os conhecem. Refiro-me a uma passagem da parte final da “ última palavra anticrítica” de M ax W eber, publicada em 1910. Se voltarm os agora a 1910, vam os encontrar um Weber em pleno debate escrito com seus críticos, excelente situação para o surpreendermos explicando qual é, afinal, “ o ” seu ponto, “ a ” sua grande indagação. V am os lá: O enorme desenvolvim ento que medeia entre os fenôm enos de desenvolvim ento capitalista tardo-me-

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dievais, ainda extrem am ente lábeis, e a m ecanização da técnica, tão decisiva para o capitalism o contem po­ râneo, com pletou-se com a criação de pré-requisitos políticos e econôm icos objetivos, im portantes para a emergência da m ecanização, mas sobretudo através da criação e preparação do “ espírito” racionalista e antitradicionalista e da hum anidade que o assim ilou para si na prática. A saber: de um lado, a história da ciên­ cia m oderna e sua relação prática com a econom ia, que só se desenvolveram na idade m oderna, e, do ou ­ tro, a história da conduta de vida m oderna no seu sig­ nificado prático para a própria economia, eis o que vai nos fornecer, a este respeito, os elementos-chave da investigação. Foi desse último com ponente que eu tratei em meus artigos e do qual eu provavelmente deverei ain­ da tratar ulteriormente. O desenvolvim ento do m éto­ do racional prático de um a conduta de vida é eviden­ temente algo muito diferente do racionalism o cientí­ fico e não necessariam ente associado com ele. (Anti: 1128-1129, grifos do original) Se o que interessava basicamente a M ax Weber ao longo de toda a sua obra era o processo de racionalização ocidental, o foco desse interesse — ei-lo aqui explicando isso a seus beligerantes adversários — dirigia-se muito nitidamente para um ponto ne­ vrálgico, melhor dizendo, para “ o ” ponto nevrálgico desse pro­ cesso: que não é a ciência, não, apesar de todo o pathos existen­ cial que embebe o tratam ento w eberiano da atitude científica. N ão é o racionalism o científico, e menos ainda o racionalism o teórico: é o racionalism o prático-ético, a racionalização ético-ascética da conduta de vida, o verdadeio xis da questão. Hic Rbodus, hic salta! E se assim é, fica fácil então, extremamente fácil, entender por que nos últimos meses de sua vida é a acepção estrita de de-

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sencantam ento do m undo enquanto “ desm agificação da religio­ sidade e m oralização da conduta de vida prática” , e não o signi­ ficado de “ perda de sentido do mundo e da vid a” nas m alhas da ciência a acepção que se faz presente de form a tão intensa nos acréscim os à segunda versão d ’A ética protestante que com en­ tarem os em últim o lugar. Fica fácil, extrem am ente fácil, atinar por que o desencantam ento do m undo vai voltar a se nos ofere­ cer de m odo tão inesperadam ente textual com o desm agificação religiosa nos passos finais dessa trajetória que empreendemos em sua busca.

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11 . PASSOS 7 A 12: A C IÊ N C IA C O M O V O C A Ç Ã O (7 de novembro de 1917)

O trabalho científico está atrelado ao curso do progres­ so. [...] Em princípio, esse progresso não tem fim. Com isso chegamos ao problema do sentido da ciência, pois não é de modo algum autoevidente que uma coisa sujeita assim ã lei do progresso traga em si mesma sentido e razão. M ax Weber, A ciência como vocaçãorWL: 592-593

BREV E N O T ÍC IA DA O BRA A ciência com o vocação é um dos textos m ais lidos de M ax Weber. N o decurso de sua bem -sucedida trajetória de difusão e recepção, porém , têm-se acum ulado alguns equívocos de inter­ pretação decorrentes, por sua vez, de um outro repetido equívo­ co, tam bém am plam ente difundido, a respeito do ano em que Weber teria proferido sua fam osa e particularmente inspirada con­ ferência aos estudantes de M unique. Até recentemente se pensa­ va fosse d atada de 1919, após portanto o fim da Primeira Guer­ ra M undial, em 1918, e a ideia de um texto teoricamente ator­ m entado lido em voz alta a poucos meses de sua morte perante um público jovem levou intérpretes e biógrafos a encará-lo como se fora seu “ canto do cisne” (Honigsheim, 1963), “ testam ento in­ telectual” legado às novas gerações. N ão vou aqui descer às m inúcias historiográficas de com o se chegou erroneamente a tom ar o ano de sua publicação — esta, sim, de 1919 — com o se fosse a data de sua apresentação ao vivo. H á um trabalho de Schluchter (1979d) que conta no detalhe es­ sas vicissitudes todas. Basta por ora deixar registrado que hoje se sabe com precisão a data correta: a conferência sobre A ciên-

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cia com o vocação foi proferida por M ax W eber com o parte de uma série de conferências organizada em M unique pela “ Freistudentische Bund in B avaria” , uma associação de estudantes li­ berais com tendência à esquerda, no dia 7 de novembro de 1917. O historiador Perry Anderson não me deixa esquecer que esse foi, tam bém , “ o dia em que os bolcheviques tom aram o poder na R ú ssia” (Anderson, 1996: 99).

C O M E N T Á R IO Significativamente, e isto merece ser dito com toda força, A ciência com o vocação (1917) é o texto weberiano em que o term o desencantamento m ais aparece. N ad a menos que seis ve­ zes, deu minha contagem , m ais do que em qualquer outro escri­ to de Weber. M as não é só pela frequência quantitativa do significante que A ciência como vocação tem sua im portância acrescida para este meu exercício. Avulta sobretudo pela m udança de registro no uso do significado: aqui ele só funciona expandido, projeta­ do, alongado em sua capacidade de expressar e conceituar, al­ çando voos inéditos em sua acrescida pretensão de questionar. N isso, ocorre com o que um deslizamento tam bém em sua posi­ ção gnosiológica, digam os assim , na finalidade visada por seu uso, na espécie de conhecimento que se pretende produzir com seu emprego. Basta transitar o autor de ponto de vista, e eis que o sintagm a desencantamento do m undo, usado o m ais das vezes para nom ear um elo causal sine qua non no encadeam ento histórico-cultural da emergência e ascensão da form a caracteristi­ camente ocidental de racionalism o que iria se derram ar no “ es­ pírito” do m oderno capitalism o (sentido “ a ” ), p assa a funcionar tam bém , e regiam ente, p ara a produção de um diagnóstico de época, um “ diagnóstico do nosso tem po” (sentido “ b ” ). À pers­ pectiva genealógica possibilitad a pela conceituação estrita de desencantam ento do m undo (sentido “ a ” ) associa-se nessa con­

Passos 7 a 12: A ciência como vocação

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ferência de 1917, a princípio laconicamente e logo com crescen­ te nitidez e prolixidade, esse outro ponto de vista, o da diagnose epocal (sentido “ b ” ), que permite a W eber uma reflexão menos otim ista e sensivelmente mais tensa ante uma determinada atu a­ lidade sociológica — a da Europa de seu tem po, tem po de pai­ x ão nacional e de guerra mundial. Em 1917, a am biguidade do desencantam ento sai portanto do registro lacônico, m ostra-se mais inquieta e se solta mais no texto, que é lindo. E é assim que, nas seis incidências registradas, o significante agora referido ao desencantam ento do m undo em sua “ etapa superior” , digam os assim , o desencantam ento provocado pela “ racionalização intelectualista através da ciência e da técnica cientificamente orien tada” (WaB/W L: 593; CP2V: 30), vai nos falar obstinadam ente de seu significado “ b ” , isto é, da “ perda de sentido” [Sinnverlust]. É bem verdade que em m ais da metade desses seis em pregos continua a aflorar, com o não poderia dei­ xar de ser, o sentido literal de desm agificação religiosa, m as nun­ ca sozinho; ele está sempre acom panhando a ideia m ais am pla, e mais imponente porquanto mais crítica, da “ perda de sentido” . Uma vez que o que a ciência visa com sua racionalidade formal referente a fins [Zweckrationalitàt] é o dom ínio técnico do m un­ do natural pela tecnologia, opondo com isso aguerrida aversão e resistência à expan são, no cotidiano, da racionalidade su bs­ tantiva com relação a valores [W ertrationalitàt], perde seu chão a pertinência mesma da questão do sentido, pois dele, no fim das contas, a ciência que preza seu nome não tem mesmo nada a di­ zer — y com pris o sentido dela própria. Ela que pretende tudo calcular, prever e dom inar, não é capaz de definir nenhum va­ lor, sequer m esm o de dizer se vale a pena ser cientista e dedicar a vida à pesquisa. É aí que entra em cena, no discurso de W eber, a figura de Tolstói. “ Qual é, afinal, o sentido da ciência com o voca­ ção? [...]”

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Tolstói dá a essa pergunta a mais simples das res­ postas, dizendo: “ Ela não tem sentido, já que não consegue respon­ der ã indagação que realmente nos im porta: que de­ vemos fazer? como devemos viver?” (WaB/WL; CP2V: 35-36) A im portância que o conceito de desencantam ento assum e em A ciência com o vocação pode ser imediatamente com preen­ dida quando recordam os que praticam ente desde a entrada de W eber no m undo acadêm ico, m arcada de saída por sua disposi­ ção ao debate m etodológico de fôlego filosófico, o traço central do m oderno conhecimento científico para ele sempre foi sua in­ capacidade constitucional de produzir sentido, ou m esm o de o fundam entar (cf. Objekt). N o s tem pos m odernos, com efeito, an­ dam juntas a ciência e a “ falta de sentido” .74 A ciência, sendo “ objetiva” , inevitavelmente termina por nos desvendar os olhos ante a “ ob jetiva” ausência de “ sentido objetivo” , tanto do m un­ do natural quanto da existência hum ana. N ão querendo fazer blague, tudo se passa com o se para Weber “ a falta de sentido em­ pírico do acontecer n atural” (KS: 2 2 7 )7